UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS DOUTORADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS SYLVANA KELLY MARQUES DA SILVA OS DISCURSOS FOTOGRÁFICOS DE CANINDÉ SOARES: entre o Turismo e a Devoção (2004-2017) NATAL/RN 2017 SYLVANA KELLY MARQUES DA SILVA OS DISCURSOS FOTOGRÁFICOS DE CANINDÉ SOARES: entre o Turismo e a Devoção (2004-2017) Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como parte dos requisitos para obtenção do título de Doutora em Ciências Sociais, com concentração na área de Dinâmicas Sociais, Práticas Culturais e representações. Orientadora: Profa. Dra. Maria Lúcia Bastos Alves. NATAL/RN 2017 Elaborado por Heverton Thiago Luiz da Silva - CRB-15/710 Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN Sistema de Bibliotecas - SISBI Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes - CCHLA Silva, Sylvana Kelly Marques da. Os discursos fotográficos de Canindé Soares: entre o turismo e a devoção (2004-2007) / Sylvana Kelly Marques da Silva. - Natal, 2018. 381f.: il. color. Tese (doutorado) - Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Centro de Ciências Humanas Letras e Artes, Programa de Pós- Graduação em Ciências Sociais. Orientadora: Profa. Dra. Maria Lúcia Bastos Alves. 1. Fotografia - Tese. 2. Paisagem - Tese. 3. Discurso - Tese. 4. Políticas de Turismo - Tese. 5. Enquadramento espetacularizado - Tese. I. Alves, Maria Lúcia Bastos. II. Título. RN/UF/BS-CCHLA CDU 77:338.48(813.2) SYLVANA KELLY MARQUES DA SILVA OS DISCURSOS FOTOGRÁFICOS DE CANINDÉ SOARES: entre o Turismo e a Devoção (2004-2017) Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como parte dos requisitos para obtenção do título de Doutora em Ciências Sociais, com concentração na área de Dinâmicas Sociais, Práticas Culturais e representações. BANCA EXAMINADORA _____________________________________________________________ Profa. Dra. Maria Lúcia Bastos Alves (Orientador) Universidade Federal do Rio Grande do Norte _____________________________________________________________ Prof. Dr. Gilmar Santana (Membro Interno à Instituição) Universidade Federal do Rio Grande do Norte ______________________________________________________________ Prof. Dr. Durval Muniz de Albuquerque Júnior (Membro Interno à Instituição) Universidade Federal do Rio Grande do Norte _____________________________________________________________ Prof. Dr. Luíz Demétrio Janz Laibida (Membro Externo à Instituição) Instituto de Educação do Estado do Paraná _____________________________________________________________ PhD. Jonathan Fredrerick Warren (Membro Externo à Instituição) University of Washington - EUA Dedico aos pesquisadores que sabem amar, que tem confiança, que reconhecem a alegria, que acreditam na solidariedade e que se dedicam a justiça social. AGRADECIMENTOS Agradeço a todos que estiveram comigo nesses anos de doutorado. Período de amadurecimento pessoal e intelectual, consequentemente de muitas superações. À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) pela concessão da bolsa de doutorado no país, que foi fundamental para a participação efetiva na vida acadêmica, para a realização de doutorado sanduíche e concretização desta pesquisa. A minha orientadora, Professora Dra. Maria Lúcia Bastos Alves, por me acompanhar desde o mestrado na busca incessante pela compreensão dos caminhos da vida acadêmica. Pelas orientações realizadas e pela amizade construída ao longo desses anos de trabalho. Ao Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais e a todos os professores que fazem parte desse Programa, pelas contribuições na minha formação. Ao professor Jonathan Warren, meu orientador do doutorado sanduíche, pelas discussões e atenção dispensada durante minha estadia na Universidade de Washington, UW. À dinâmica da vida que me oportunizou existir em um ambiente propício ao meu desenvolvimento humano e profissional. À minha família por todo o apoio. Inicio com os meus pais, pelo amor que sempre me dedicaram, por terem me ensinado a amar, respeitar e acreditar nos outros, principalmente, por terem me dado condições de escolher o meu caminho, errar, voltar e escolher de novo. Individualmente, à minha mãe, Antonia Marques, por toda a proteção, dedicação e cuidado ao longo da minha existência, por ser fonte de inspiração e motivação para que eu não desista dos meus objetivos de vida. Ao meu pai Jurandir pelo amor, proteção, cuidado e dedicação inicial. Atualmente, por se manter presente. Ao Flávio Balby pela dedicação e diversas formas de apoio para que eu pudesse chegar até aqui. Sou grata por todo o amor, amizade e aconchego. Esse caminho foi construído junto com você. À minha irmã, Morgana, pelo companheirismo, por escolher o mesmo caminho profissional, muitas vezes até pessoal, para seguir. O que me faz crer que as mudanças empreendidas em prol da vida acadêmica foram acertadas. Sem você o caminho teria sido mais difícil. À minha tia Isabel Marques, por ter sido sempre uma mãe, dando-me muito carinho, proteção, atenção e força. E, as minhas primas Geovanisa e Maria do Carmo por serem companheiras e irmãs nesse e em outros processos. Aos secretários do Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais (UFRN), Otânio e Jefferson, pela efetividade, respeito e atenção com que resolvem as questões do nosso cotidiano. Aos amigos do doutorado e de vida, que me inspiraram, me aconselharam e dividiram comigo as angustias de concluir um doutorado nas Ciências Sociais em um país frustrado por um “golpe” de Estado, que solapa a soberania popular em prol de uma política desprezada pelo povo. Destaco especialmente Renata, Carmem, Antonino, Renato, Joicy e João. Agradeço, ainda, aos amigos que estão sempre comigo: Graça Correia, Anna Gabriela, Syra, Jacirene, Luciana, Anaxágoras, Gabriel e Arthur. Ao professor Dr. Durval Muniz de Albuquerque Júnior pela produção acadêmica que desenvolve com ímpeto, pelas aulas cheias de entusiasmo, pelas contribuições primordiais realizadas na banca de qualificação e por aceitar participar da banca de defesa. Ao professor Dr. Gilmar Santana, por todo o conhecimento compartilhado em sala de aula, pelo rigor e compromisso acadêmico, pelas valiosas contribuições na qualificação e por continuar colaborando com a minha formação agora na banca de defesa. Ao professor Dr. Lincoln Moraes de Souza, por dividir comigo um conhecimento precioso, por todas as reflexões propiciadas durante as aulas e pelas contribuições na qualificação. Ao professor Dr. Luíz Demétrio Janz Laibida por ter me acompanhado durante a etapa de escrita da tese, apontando as possibilidades e os caminhos, me auxiliando a superar os desafios finais do doutorado. Além, agradeço por aceitar colaborar comigo nesse momento crucial participando da minha banca de defesa. Agradeço aos alunos e professores da Universidade Federal da Paraíba – UFPB, da qual faço parte como docente temporária, pela torcida. A todos os atores entrevistados para essa pesquisa, pelas contribuições valiosas que permitiram a construção da tese. A Secretaria Estadual de Turismo (Setur/RN), a Empresa Potiguar de Promoções Turísticas (EMPROTUR) e a Secretaria de Turismo do Município de Santa Cruz. Por fim, um agradecimento mais que especial ao repórter fotográfico Canindé Soares, por toda a gentileza, colaboração e amizade prestada, sem seu auxílio esse trabalho não se concretizaria. RESUMO Esta tese analisa os discursos fotográficos impressos nas paisagens turísticas registradas no interior do estado do Rio Grande do Norte pelo repórter fotográfico Canindé Soares. A escolha do objeto justifica-se pelos recortes fotográficos estarem inseridos em um cenário político de incentivo ao turismo religioso no estado, como um espaço de confluências sociais mediatizadas pela instituição do turismo no Nordeste brasileiro. Nosso objetivo foi compreender os discursos enquadrados em fotografias que se configuram em aspectos culturais priorizados como parte dessas paisagens. Apreendemos a fotografia como imagem crítica para englobar os significados que legitimam e divulgam esses espaços religiosos em seu processo de caracterização enquanto atrações turísticas. Para viabilizar a pesquisa foram selecionadas as fotografias arquivadas no banco de dados de órgãos oficiais, em livros e fotojornalismo do autor. Também foram realizadas entrevistas semiestruturadas com o referido fotógrafo, secretários políticos e demais agentes envolvidos no cenário turístico. A metodologia se dá através da arqueologia da impressão expressa na confluência da tríade: fotografia, paisagem e turismo definida nesta tese por enquadramento espetacularizado, categoria de análise balizada pelas reflexões de George Didi-Huberman e Guy Debord. O enquadramento espetacularizado trata-se de um discurso permeado pela cumplicidade entre os elementos que elaboram a paisagem e favorecem a perpetuação de visualidades que desenham o espaço transformando-o em espetáculo. Desse eixo, desmembram-se questões que operam com a produção imagética capaz de nortear o entendimento dos discursos que padronizam paisagens, naturalizando as relações socioespaciais. Consideramos que as paisagens elaboradas estão atreladas a ícones passados referenciadores da região que condicionam as visualidades no presente. Em tese verificamos que as paisagens potiguar, enquadradas no discurso fotográfico, dinamizadas a partir das políticas de turismo estão culturamente engendradas por um sintoma de visualidades pretéritas que espetacularizadas favorecem a manutenção de discursos hegemônicos em detrimento dos interesses plurais e democráticos. O que ocorre dá visibilidade a estereótipos pré-estabelecidos e afasta-se da possibilidade de um desenvolvimento baseado na economia interpretativa, capaz de favorecer a valorização do capital cultural local e a inclusão dos indivíduos locais. Palavras-chave: Discurso.Fotografia. Paisagem. Turismo. Enquadramento Espetacularizado. RESUMEN Este trabajo analiza los discursos fotográficos impresos en las paisajes turísticas registrados en el interior del estado de Rio Grande do Norte por el reportero fotográfico Canindé Soares. La elección del objeto se justifica por los recortes fotográficos estar insertados en un escenario político de incentivo al turismo religioso en el estado, como un espacio de confluencias sociales mediatizadas por la institución del turismo en el Nordeste brasileño. Nuestro objetivo fue comprender los discursos encuadrados en fotografías que se configuran en aspectos culturales priorizados como parte de esos paisajes. Apreciamos la fotografía como imagen crítica para englobar los significados que legitiman y divulgan esos espacios religiosos en su proceso de caracterización como atracciones turísticas. Para viabilizar la investigación fueron seleccionadas las fotografías archivadas en el banco de datos de órganos oficiales, en libros y fotoperiodismo del autor. También se realizaron entrevistas semiestructuradas con el referido fotógrafo, secretarios políticos y demás agentes involucrados en el escenario turístico. La metodología se da através de la arqueología de la impresión expresada en la confluencia de la tríada: fotografía, paisaje y turismo definida en este trabajopor marco espectacular, categoría de análisis balizada por las reflexiones de George Didi-Huberman y Guy Debord. El encuadre espectacularizado se trata de un discurso impregnado por la complicidad entre los elementos que elaboran el paisaje y favorecen la perpetuación de visualidades que dibujan el espacio transformándolo en espectáculo. De ese eje, se desmembran cuestiones que operan con la producción imagética capaz de orientar el entendimiento de los discursos que estandarizan paisajes, naturalizando las relaciones socioespaciales. Consideramos que las paisajes elaboradas están vinculadas a iconos pasados referenciadores de la región que condicionan las visualidades en el presente. En trabajo verificamos que las paisajes potiguar, encuadradas en el discurso fotográfico, dinamizadas a partir de las políticas de turismo están culturadamente engendradas por un síntoma de visualidades pretéritas que espectacularizadas favorecen el mantenimiento de discursos hegemónicos en detrimento de los intereses plurales y democráticos. Lo que ocurre da visibilidad a estereotipos preestablecidos y se aparta de la posibilidad de un desarrollo basado en la economía interpretativa, capaz de favorecer la valorización del capital cultural local y la inclusión de los individuos locales. Palabras clave: Discurso. Fotografía. Paisaje. Turismo. Encuadramiento espectacular. RÉSUMÉ Cette thèse analyse les discours photographiques imprimés dans les paysages touristiques enregistrés à l'intérieur de l'État de Rio Grande do Norte par le reporter photographique Canindé Soares. Le choix de l'objet est justifié par les découpes photographiques sont insérées dans un environnement politique pour encourager le tourisme religieux dans l'État, comme un espace de confluences sociaux induits par l'institution du tourisme dans le Nordeste du Brasil. Notre objectif était de comprendre les discours encadrés dans des photographies qui sont configurées dans des aspects culturels prioritaires dans le cadre de ces paysages. Nous saisissons la photographie comme une image critique pour englober les significations qui légitiment et disséminent ces espaces religieux dans leur processus de caractérisation en tant qu'attractions touristiques. Pour rendre la recherche réalisable, les photographies ont été sélectionnées dans la base de données des organes officiels, dans les livres et le photojournalisme de l'auteur. Des entretiens semi-structurés ont également été menés avec le photographe, les secrétaires politiques et d'autres agents impliqués dans le scénario touristique. La méthodologie est par l'archéologie exprimé impression à la confluence de la triade: la photographie, le paysage et le tourisme défini dans cette thèse par le cadre spectacularisés, catégorie d'analyse soutenue par les réflexions de George Didi-Huberman et Guy Debord. Le cadre spectaculaire est un discours imprégné de la complicité entre les éléments qui élaborent le paysage et favorisent la perpétuation des visuels qui conçoivent l'espace en le transformant en spectacle. De cet axe, les problématiques qui opèrent avec la production imaginaire sont capables de guider la compréhension des discours qui standardisent les paysages, en naturalisant les relations socio- spatiales. Nous considérons que les paysages élaborés sont liés à des icônes références passées de la région qui conditionnent les visualités dans le présent. En théorie, nous constatons que les paysages Potiguar, encadrés dans le discours photographique, la rationalisation des politiques touristiques sont culturellement engendrèrent par un symptôme visuels précédents qui spectacularisés et favoriser le maintien des discours hégémoniques au détriment des intérêts plurielles et démocratiques. Ce qui se passe donne une visibilité aux stéréotypes pré-établis et se éloigne de la possibilité d'un développement basé sur l'économie interprétative, capable de promouvoir le développement du capital culturel local et l'inclusion des personnes locales. Mots-clés: Discours. Photographie. Paysage. Tourisme et Cadre spectaculaire. ABSTRACT This thesis analyzes the discourse of the Catholic tourism events landscapes photographed by Canindé Soares in the State of Rio Grande do Norte. To conduct this research we selected the photographs at the database of official tourism organizations, the books and the site of Canindé Soares, did interviews and visited these landscapes. The choice of the object is justified because the photo register is inserted in the political scene of tourism development in Brazil. Moreover to understanding how the landscapes of Rio Grande do Norte are mediated by the National Tourism Policy to the institution of economic development in the Northeast of Brazil. Our goal was to understand the cultural aspects prioritized in these landscapes by photographic discourse. We read the photography as a critical image conception developed by Didi-huberman to understand these religious landscapes spaces in their characterization process as a show place. The methodology is a reflection about the present status of the image as a form of visual knowledge through the archeology. The relationship about photography, landscape and tourism points to what is defined in this thesis by a spectacularized framework, a category that we articulate by the reflections of George Didi-Huberman and Guy Debord. The spectacularized framework is a relationship between the discourses and the social relationships that draw the news landscaps but maintain olds images and turns then into a spectacle. The reflection about the image favors comprehension of the discourses that standardize landscapes and naturalizing the socio-spatial relations. We consider that the landscapes are naturalized by relations linked to the past icons referenciadores of the region and condition the visualities in the present. In this thesis we verified that the landscapes photographed, dynamited from the tourism policies are culturally engendered by a symptom of past visuals that spectacularized favor the maintenance of hegemonic discourses against the democratic interests. This situation prior sharing of pre-established stereotypes between image and discourse and keeps away of a social development based on the interpretive economy, able to valorize the local cultural and the social inclusion. Keywords: Discourse. Photography. Landscape. Tourism. Spectaularized framework. LISTA DE SIGLAS BID – Banco Interamericano de Desenvolvimento BNB – Banco do Nordeste CADASTUR – Cadastro dos Prestadores de Serviços Turísticos CAPES - Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior CNTUR – Conselho Nacional de Turismo COMBRATUR – Comissão Brasileira de Turismo EMBRATUR – Instituto Brasileiro de Turismo EMPROTUR – Empresa Potiguar de Promoção Turística S. A. EUA – Estados Unidos da América FECOMÉRCIO – Federação do Comércio de Bens, Serviços e Turismo do Rio Grande do Norte FINOR - Fundo de Investimento do Nordeste IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística IDH – Índice de Desenvolvimento Humano INVTUR – Inventário da Oferta Turística IPHAN – Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional MTur – Ministério do Turismo NE – Nordeste OMT - Organização Mundial do Turismo PD/VC – Projeto Parque das Dunas - Via Costeira PDITS – Plano de Desenvolvimento Integrado do Turismo Sustentável PIB – Produto Interno Bruto PNMT – Programa Nacional de Municipalização do Turismo PNT – Plano Nacional de Turismo PNUD – Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento PRODETUR – Programa de Desenvolvimento do Turismo PRT – Programa de Regionalização do Turismo RN – Rio Grande do Norte SEBRAE – Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas SENAC – Serviço Nacional de Aprendizagem e Comércio SETUR – Secretaria Estadual de Turismo SIACOR – Sistema de Acompanhamento de Contratos de Repasse SICONV – Sistema de Convênios e Contratos de Repasse SUDENE – Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste UERN – Universidade do Estado do Rio Grande do Norte UFRN – Universidade Federal do Rio Grande do Norte LISTA DE FIGURAS Figura 1- Localização geográfica: Natal - São Bento do Trairí ......................................... 48 Figura 2- No centro dos contatos .......................................................................................... 58 Figura 3- Aparelho usado por Manoel Dantas .................................................................... 67 Figura 4- Autorretrato ........................................................................................................... 68 Figura 5- O fotógrafo Jaeci Galvão....................................................................................... 69 Figura 6- Jornal O Foco “A Realidade da Zona Norte”, Nº 03 ......................................... 80 Figura 7- Jornal A Ponte: A Realidade da Zona Norte, Nº 03 ........................................... 82 Figura 8- Canindé na Sangria do Gargalheira .................................................................... 83 Figura 9- Seca Versus Turismo ou Seca como Turismo? ................................................. 101 Figura 10- Vista da Janela de Le Gras ................................................................................ 118 Figura 11- Primeiro daguerreótipo feito por Daguerre .................................................... 119 Figura 12- Produto Turístico - EMBRATUR ................................................................... 159 Figura 13- Te vejo lá ............................................................................................................. 160 Figura 14- Legado ................................................................................................................. 160 Figura 15- Revista “Natal pra você” ................................................................................... 214 Figura 16- Sol, dunas, mar e flores ..................................................................................... 215 Figura 17- O velho Potengi .................................................................................................. 216 Figura 18- Equipamentos Turísticos na Via Costeira ....................................................... 216 Figura 19- Ampliando os horizontes do turismo ............................................................... 217 Figura 20- Rotas do Turismo Potiguar ............................................................................... 218 Figura 21- Gostoso ................................................................................................................ 219 Figura 22- O Vilarejo .......................................................................................................... 219 Figura 23- Paraíso Perdido .................................................................................................. 220 Figura 24- Rota do sal e do turismo .................................................................................... 220 Figura 25- 23 lagoas .............................................................................................................. 221 Figura 26- Sem pressa .......................................................................................................... 221 Figura 27- Uma "nova" Ponta Negra ................................................................................. 222 Figura 28- Mapa das festas católicas no Brasil .................................................................. 242 Figura 29- Rota da fé ........................................................................................................... 256 Figura 30- O Turismo e a Terra dos Santos Mártires do Brasil ...................................... 274 Figura 31- O tamanho da estátua ........................................................................................ 316 Figura 32- Identidade visual – Marca da cidade ............................................................... 325 LISTA DE FOTOGRAFIAS Fotografia 1- A Casa onde nasci em São Bento do Trairí ................................................... 37 Fotografia 2- O Crepúsculo ................................................................................................... 93 Fotografia 3- Cabeça de boi ................................................................................................. 138 Fotografia 4- Galinhos, RN .................................................................................................. 141 Fotografia 5- Jumento como transporte, RN ..................................................................... 168 Fotografia 6- Parada na Igreja São José, Carnaúba dos Dantas ..................................... 263 Fotografia 7- A escultura dos mitos .................................................................................... 265 Fotografia 8- O Roteiro - Paisagens e Identidades ............................................................ 266 Fotografia 9- Planos no olhar ............................................................................................. 269 Fotografia 10- Capela dos Mártires de Cunhaú com JoaquimTur ................................. 278 Fotografia 11- As índias sem índio – o nativo se torna vil ................................................ 279 Fotografia 12- Paisagem de Celebração aos Mártires de Cunhaú e Uruaçu .................. 282 Fotografia 13- O Paraíso dos Mártires ............................................................................... 283 Fotografia 14- Representante do Governo do Estado e participantes da procissão ....... 287 Fotografia 15- Luzia Luz ..................................................................................................... 291 Fotografia 16- Santa Luzia e o caminho iluminado .......................................................... 291 Fotografia 17- A passagem para Sant’Anna do Caicó ...................................................... 298 Fotografia 18- Feirinha de Famosos e Anônimos .............................................................. 301 Fotografia 19- Festa de Sant’Anna do Caicó – espetáculo da oligarquia verde ............. 302 Fotografia 20- Festa de Sant’Anna do Caicó – espetáculo em vermelho ....................... 302 Fotografia 21- Santuário do Lima ....................................................................................... 309 Fotografia 22- Passagem pelo arco do Lima ..................................................................... 312 Fotografia 23- Dia de Inauguração do Complexo de Santa Rita ..................................... 315 Fotografia 24- Faixas de gratidão e promoção .................................................................. 321 Fotografia 25- Caminho iluminado ..................................................................................... 323 Fotografia 26- Cidade e Complexo de Santa Rita ............................................................. 326 LISTA DE GRÁFICOS Gráfico 1 – Distribuição relativa da população residente, por religião declarada: Brasil – 1950/2000 ............................................................................................................................... 231 Gráfico 2 – Movimento do Turismo Religioso no Brasil ................................................... 245 Gráfico 3 – Municípios com expressão da Religiosidade e com Eventos Religiosos ...... 245 Gráfico 4 – Turismo Religioso ............................................................................................. 246 LISTA DE QUADROS Quadro 1 – Políticas Internacionais de Turismo de 1945 até o fim do século XX .......... 181 Quadro 2 – Vínculo Institucional e Marcos de Intervenção Governamental no Turismo ................................................................................................................................. 196 Quadro 3 – Calendário Festivo............................................................................................ 257 Quadro 4 – Esquema Metodológico .................................................................................... 259 Quadro 5 – Cidades da região turística do Polo Costa das Dunas ................................... 271 Quadro 6 – Cidades da região turística do Polo Costa Branca ........................................ 283 Quadro 7 – Cidades da região turística do Polo Seridó .................................................... 293 Quadro 8 – Cidades da região turística do Polo Serrano ................................................. 303 Quadro 9 – Cidades da região turística do Polo Agreste/Trairí ...................................... 313 SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................... 16 2 CANINDÉ SOARES DE DENTRO PARA FORA, DE FORA PARA DENTRO: TRAJETÓRIA ........................................................................................................................ 30 2.1 FAMÍLIA E GENEALOGIA ............................................................................................. 31 2.1.1 A casa natal .................................................................................................................... 36 2.1.2 A chegada na capital ...................................................................................................... 51 2.2 CANINDÉ SOARES: O FOTÓGRAFO ............................................................................ 58 2.2.1 Sobre fotografia, fotógrafos e o campo de atuação em Natal .................................... 60 2.2.2 O outsider e a construção de possibilidades ................................................................. 72 2.3 VISÕES DO MUNDO ARTÍSTICO E PROFISSIONAL ................................................. 82 2.3.1 O caminho profissional .................................................................................................. 83 2.3.2 Visões artísticas ............................................................................................................ 90 3 O DISCURSO NA FOTOGRAFIA: EU CONSTRUO, ELE CONSTRÓI, NÓS CONSTRUÍMOS .................................................................................................................... 96 3.1 SOBRE DISCURSOS ...................................................................................................... 105 3.1.1 A ideologia e as suas formas ....................................................................................... 106 3.1.2 A formação do discurso ............................................................................................... 111 3.2 A FOTOGRAFIA E A COMPREENSÃO SOCIOLÓGICA ........................................... 113 3.2.1 Fotografia e Sociologia: diálogos iniciais ................................................................... 121 3.2.2 Perspectivas com os clássicos ...................................................................................... 125 3.2.3 Debates atuais .............................................................................................................. 129 3.3 O ENQUADRAMENTO SOCIOLÓGICO: DIÁLOGOS COM DIDI-HUBERMAN ... 135 4 POLÍTICA E TURISMO: A CONSTRUÇÃO DA PAISAGEM NORDESTINO- POTIGUAR ........................................................................................................................... 147 4.1 DE LÁ PRA CÁ: MITOS, IMAGENS E PAISAGENS .................................................. 147 4.1.1 A paisagem nacional: “Meu Brasil brasileiro” ......................................................... 149 4.2 DAQUI PRA LÁ: PAISAGENS DO NORDESTE ......................................................... 160 4.3 O TURISMO E A POLÍTICA: CAMINHOS POSSÍVEIS ............................................. 168 4.4 SOCIOLOGIA E TURISMO: TEORIA CLÁSSICA SOCIOLÓGICA NO TURISMO CONTEMPORÂNEO ............................................................................................................ 171 4.4.1 Desenvolvimento: o discurso inicial ........................................................................... 181 4.4.2 Políticas Nacionais de Turismo: Transições condicionais ....................................... 187 4.5 AS POLÍTICAS E A CONTRUÇÃO DA PAISAGEM NORDESTINO-POTIGUAR .. 198 4.5.1 Primeiros discursos políticos e a construção do litoral ............................................ 199 4.5.2 Estruturando a Cidade do Sol .................................................................................... 208 4.5.3 Canindé Soares e a paisagem Nordestino-potiguar .................................................. 212 5 TURISMO RELIGIOSO: O ENQUADRAMENTO ESPETACULARIZADO ............. 224 5.1 TURISMO CULTURAL E CULTURA COM FOCO NA RELIGIÃO .......................... 224 5.1.1 O turismo e o foco no catolicismo popular ................................................................ 231 5.2 O ESPETÁCULO DA FESTA NO TURISMO RELIGIOSO ......................................... 236 5.3 O OLHAR DE CANINDÉ SOARES E A PAISAGEM TURÍSTICA NORDESTINO- POTIGUAR ............................................................................................................................ 250 5.3.1 O nordeste-potiguar do litoral ao interior ................................................................. 250 5.3.2 O Roteiro do Espetáculo ............................................................................................. 253 5.3.3 Análise: primeiros passos na rota da fé ..................................................................... 261 5.4 O ENQUADRAMENTO ESPETACULARIZADO NA PAISAGEM NORDESTINO- POTIGUAR ............................................................................................................................ 269 5.4.1 Os Mártires: um espetáculo atual .............................................................................. 271 5.4.2 Santa Luzia: Um encontro com a sobrevivência das luzes ...................................... 283 5.4.3 Festa de Sant’Ana: “sofisticada criação de identidade” .......................................... 292 5.4.4 Santuário do Lima: um ponto turístico? ................................................................... 303 5.4.5 Monumento a Santa Rita: Remexendo o concreto da cidade de Santa Cruz ........ 312 6 CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................ 327 REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 335 APÊNDICES ......................................................................................................................... 355 APÊNDICE A- CARTA DE APRESENTAÇÃO A CANINDÉ SOARES ...................... 356 APÊNDICE B- CESSÃO DE DIREITOS SOBRE IMAGENS PARA A UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE ..................................... 357 APÊNDICE C-ROTEIRO DE ENTREVISTA E AUTORIZAÇÃO DE PUBLICAÇÃO - CANINDÉ SOARES ............................................................................................................ 358 APÊNDICE D-TRANSCRIÇÃO DA ENTREVISTA DE CANINDÉ SOARES - ......... 360 FOLHA COM AS RESPOSTAS DA ENTREVISTA TRANSCRITAS ......................... 360 ANEXOS ............................................................................................................................... 371 ANEXO A- TRIBUNA DO NORTE, 15/05/2009 ............................................................... 372 ANEXO B- FOLDER DE PROMOÇÃO DAS FESTIVIDADES DOS PADROEIROS DO ESTADO DO RN ........................................................................................................... 373 ANEXO C- CAPA: A PONTE ............................................................................................ 374 ANEXO D- MIRANTES E COMPLEXO TURÍSTICO EM PATÚ ............................... 375 ANEXO E- REGISTROS DOS MOMENTOS DA PESQUISA DE CAMPO ............... 376 16 1 INTRODUÇÃO O Nordeste bonito de se ver não se resume a praia, areias brancas, mar azul e sol. Há também matas verdejantes, tesouros arqueológicos, engenhos centenários, açudes, montes, vales e outros lugares de tirar o fôlego. Apesar de o turismo vigente ter limitado as atrações da região praticamente ao litoral, há todo um mundo, dirigido ao interior que poderia ser descoberto. O Rio grande do Norte não foge a regra. Há uma série de atrações interioranas que apontam segmentos diversos da cultura potiguar. [...] O caminho para o interior está aberto. basta seguir. (TRIBUNA DO NORTE, 2009)1. Esse é um texto de um jornal que circula no Estado do Rio Grande do Norte, região Nordeste do Brasil, que nos últimos quinze anos, de acordo com os dados divulgados em 2015 pelo Instituto Verificador de Circulação (IVC), tem tido a preferência do leitor potiguar. Estamos nos referindo à notícia publicada pelo jornal Tribuna do Norte em 15 de maio de 2009. O discurso intitulado “Opções de lazer e turismo no interior do RN” mobiliza toda uma carga imagética e referenciadora da região Nordeste2 com fins de incrementar e consolidar a atividade turística nesse espaço regional. E, é claro, mesmo com toda a diversidade que existe entre os Estados, eles são em grande medida representados do modo homogêneo, como promove esse periódico: “que não foge a essa regra”. O texto apresentado no jornal supracitado afirma também que há um tipo de turismo com privilégio à paisagem litorânea que, já legitimado3, acaba ofuscando o olhar para outras atrações. De acordo com esse periódico, são possibilidades que não estão só no litoral, mas pululam no interior do Estado a partir das novas representatividades que os aspectos culturais podem vir a ter nesses espaços, “bastam ser descobertas”. O tipo de discurso difundido pelo jornal em questão vem sendo repetido em distintos canais de informação que têm a fotografia como suporte. Contudo, mensagens como essa são passíveis de serem analisadas por várias óticas: pelo marketing, pela comunicação social, pela história, pela psicologia social, pelo turismo, etc. Nessa perspectiva, interessa aqui recortar as questões sociológicas por intermédio dos discursos enunciados pelas paisagens concatenadas ao turismo. O discurso exposto nessa mídia é um elemento capaz de exemplificar, inicialmente, o direcionamento que é dado ao turismo quando se sugere uma ampliação recente do olhar que 1Informação Disponível em: . Acesso em: 15 maio 2015. Vide Anexo A. 2 Sobre imagens referenciadoras da região Nordeste para o turismo ver: Castro (1997a, 1997b), Lopes Júnior (2000), Dantas (2002), Furtado (2005), Carvalho (2009), Marques (2013). 3 É significativa a produção sobre o turismo com privilégio às paisagens litorâneas no Rio Grande do Norte. Por isso citaremos as pesquisas de maior destaque: FONSECA, Maria Aparecida Pontes. Espaço, Políticas de Turismo e Competitividade. Natal: EDUFRN, 2005. FURTADO, Edna Maria. A onda do turismo na cidade do Sol: A reconfiguração urbana de Natal. Natal: EDUFRN, 2005. LOPES JÚNIOR, Edmilson. A construção social da cidade do prazer. Natal: EDUFRN, 2000. 17 estende o foco de possibilidades da atividade do litoral ao interior. A adição de novos espaços nesse complexo de paisagens turísticas que envolvem o sol e o mar tem sido motivada por um conjunto de políticas públicas que vem produzindo social e espacialmente o Nordeste. À exemplo de outros Estados da região, o Rio Grande do Norte tem sido composto por um regime de visualidades paisagísticas que são enquadradas de modo a permitir a construção de enunciados imagético-discursivos que incentivam o consumo dos espaços pelo turismo. Esse regime visual reelabora a imagem da região trazendo à tona paisagens com elementos específicos, como: praia, coqueirais, dunas, canoas, bugres, mulatas, frutos do mar, frutas consideradas exóticas, etc. São elementos presentes em distintos tipos de mídia, os quais são representados por meio da fotografia, que celebrizam matrizes temáticas relativas ao turismo e criam à identidade nordestino-potiguar4. Do cenário exposto, com atenção ao litoral, acompanhamos, através de pesquisa realizada no âmbito do mestrado, o regime de visualidades que se destacou na construção das primeiras paisagens direcionadas a incentivar a atividade turística na capital do Estado do Rio Grande do Norte (SILVA, 2012). Esse estudo privilegiou as relações históricas que favoreceram a emergência de paisagens utilizadas para atender as demandas turísticas na capital potiguar, tendo como fio condutor o papel pedagógico e formador da fotografia dos cartões-postais na transmissão de novos símbolos, signos e valores. Em meio à pesquisa de campo citada, muitos materiais despertaram a atenção, dentre os quais: fotografias de acervos particulares e públicos, documentos sobre a temática, recortes publicitários em jornais e revistas e vários cartões- postais. Diante do conteúdo citado, muitas questões para novas pesquisas surgiram. Observamos entre as fotografias que destacam e promovem as atividades turísticas novas paisagens que antes não promulgadas aparecem, paulatinamente, com o foco nos aspectos culturais; tais como as festas juninas, festas de padroeiros, procissões, novenas, eventos em torno de santuários, entre outras que dão a ver novos espaços no interior do Estado. Sugerimos, em um primeiro momento, ao Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais o projeto de Doutorado intitulado: “A reinvenção do Nordeste para o turismo: um olhar do sertão ao litoral no fotojornalismo” cuja proposta visava compreender a mudança discursiva que alterou o imaginário paisagístico da região em várias ordens: do sertão para o litoral; da 4 A nomeação nordestino-potiguar, a ser utilizada em diversos momentos deste estudo, baseia-se na identidade direcionada ao Estado da Paraíba, denominada de nordestino-paraibana, na tese de André Luiz Piva de Carvalho (2009). O autor considera que há um ethos identitário e um cabedal cultural que por questões históricas, sociais e econômicas, configuraram os demais Estados da região nordeste com signos de representação semelhantes. O termo é utilizado para denominar as pessoas que nascem no Estado do Rio Grande do Norte, por isso nordestino- potiguar em alusão ao Estado. 18 seca para o oásis; do atraso para o progresso; do inferno ao paraíso; do discurso da dor para o discurso do prazer. Em nossa perspectiva, essas alterações visavam atender os novos interesses político-econômicos, pautados por novas práticas sociais, a partir da noção do turístico. Isso porque as paisagens nordestinas ora situam-se entre as visualidades do sertão como denúncia de uma situação, ora destacam-se pelos aspectos naturais divulgados como perfeitos para o turismo e lazer. Entender o porquê dessas contradições foi a inquietação inicial. Após o encontro com a produção do historiador Durval Muniz de Albuquerque Júnior, deu corpo e fundamentação a essa ideia. Portanto, aqui se baliza a intenção de estudar o espaço, com ele as paisagens do Nordeste. Entre as estratégias enunciativas dos espaços variadas fotografias nos instigaram. O acesso à diversidade nos apontou o singular: o repórter fotográfico Canindé Soares, tanto pela quantidade, quanto pela qualidade das imagens fotográficas dedicadas a revelar o Rio Grande do Norte em seu acervo virtual. Mais ainda pela atenção colocada em paisagens do interior do Estado, visualidades que expressam aspectos considerados representantes da cultura nordestina. O acervo do Canindé Soares era um indicativo de que em se tratando de Nordeste (aqui usaremos a citação inicial como apoio): “O Rio grande do Norte não foge a regra. Há uma série de atrações interioranas que apontam segmentos diversos da cultura. [...] O caminho para o interior está aberto, basta seguir” (TRIBUNA DO NORTE, 20095). O discurso caracteriza a percepção dos espaços e as suas relações sociais. Ou, podemos assegurar que considera uma identidade espacial nordestino-potiguar. Nesse ponto, a fim de contribuir com as questões locais e viabilizarmos a pesquisa, recortamos como campo o Estado do Rio Grande do Norte. No momento de organização da pesquisa de Doutorado, já com a atenção voltada para o interior do Estado, percebemos um eixo visual nas paisagens propagadas como culturais: as que se referem aos eventos religiosos do catolicismo popular. Essa percepção ascendeu diante da atuação no projeto de pesquisa “Festas Religiosas: Perspectivas e desafios das políticas de turismo religioso no Estado do Rio Grande do Norte”; desenvolvido no Programa de Pós- Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, sob a coordenação da Professora Dr.ª Maria Lúcia Bastos Alves. A pesquisa debruça-se sob o turismo religioso e suas implicações socioespaciais e políticas e os seus resultados deixam entrever a transformação dos espaços através da incidência de novas paisagens com prioridade religião católica. O turismo religioso, em termos práticos, consiste em uma das variadas vertentes de divisão da atividade de acordo com as motivações da viagem. Comercialmente denomina-se 5 Informação Disponível em: . Acesso em: 15 maio 2015. Vide Anexo A. 19 por segmentações turísticas em que o conjunto de espaços e práticas religiosas são consideradas atrativos turísticos6. Esse novo tipo de atrativo turístico vem sendo privilegiado na fotografia de Canindé Soares. Uma produção que de antemão tem todos os ingredientes para ser um objeto de análise de pesquisa no campo da sociologia e do turismo, tendo em vista a abrangência temática e pela inserção que o autor tem em seu campo profissional. Com a escolha desse profissional estávamos diante do maior acervo fotográfico das paisagens do Estado. O recente envolvimento com as paisagens do interior, através do projeto de pesquisa já citado, também foi ao encontro das políticas públicas de turismo; uma vez que o interesse do Ministério do Turismo, nos últimos 15 anos, conduziu as perspectivas da atividade para um processo de “interiorização” com o intuito de promover o desenvolvimento econômico e social nas cidades do interior do país. As pesquisas desenvolvidas pela professora e sua equipe já eram um bom exemplo do redirecionamento que ocorria nas políticas públicas: o do deslocamento do litoral para o interior. As paisagens que emergem no Rio Grande do Norte valorizam o turismo religioso e, majoritariamente, apresentam em sua matriz a veneração santoral - uma das maiores expressões da religiosidade no catolicismo popular que, mesmo não sendo uniforme e tendo suas especificidades de acordo com as pluralidades locais, conserva o discurso relacionado a cultura e a tradição. O que são apresentados nas fotografias são novos espaços de devoção, monumentos, cultos a santos mártires, procissões, peregrinações, romarias, novenas, festividades e sacrifícios da fé. São visualidades organizadas na caracterização de um espaço para a tradição. Esses sentidos acrescidos da homogeneização com os quais foi construída a ideia de Nordeste, de modo mais característico, constroem paisagens que retificam a ideia dessa região do país como o espaço da tradição, da saudade, da religiosidade, da cultura popular e, também, do atraso conforme atesta Albuquerque Júnior. Mesmo que em um panorama geral o catolicismo popular possa ser compreendido como um modo de resistência à dominação do catolicismo oficial, essa diferença reside, antes, na compreensão do papel da autoridade eclesiástica, no modo de exercício do seu poder e da sua presença7. Não dando, portanto, ênfase às particularidades sociais e culturais dos diferentes grupos que constroem e vivenciam os espaços sociais onde existe o privilégio da religião. No mais, promove a manutenção de alguns segmentos sociais – como os privilegiados pelo poder 6 Sobre o turismo religioso ver: Abumanssur (2003), Alves (2009, 2013a, 2013b), Dias (2003a, 2003b), Silveira (2004), Steil (2003). 7 Ver Suess (1979, p. 153). 20 público e a instituição ao qual pertence a fé em questão – e; associada ao turismo os lugares coadunam com a lógica paradoxal de um mercado internacional e nacional em que as paisagens, práticas e crenças religiosas são transformadas em espetáculo para o consumo. Há o interesse em que religiões e rituais, entre outros aspectos das culturas locais, sejam visualizados para serem comercializados de forma massiva (ALVES, 2009). A fim de colocarem as cidades concatenadas às expectativas de um mercado global como parte dos roteiros de viagem, os gestores públicos, entre outros interessados na atividade turística, vão traduzindo e dando visualidade aos seus interesses em esfera local. Forjam os espaços urbanos com seus monumentos e festas, inclusive, com as significações oriundas do campo, da vida cotidiana, da religião e da ideologia política (LEFEBVRE, 2001, p.56). O turismo religioso acrescido da peculiaridade dos diferentes lugares e regiões pressupõe que a “função da forma espacial depende da redistribuição – a cada momento histórico, sobre o espaço total – da totalidade das funções que uma formação social é chamada a realizar” (SANTOS, 2002, p.31). Tendo em conta que a paisagem é funcional à constituição de signos, experiências, práticas sociais, culturais, econômicas e políticas (DOSSE, 2003); o que temos é um conjunto de relações socioespaciais. Diante delas, problematizamos os modos como as paisagens de diferentes espaços do Rio Grande do Norte vêm sendo produzidas, recortadas e legitimadas em prol do turismo. Buscamos captar os condicionamentos e os discursos que emergem nas paisagens e compreender a sua relação com a concepção das políticas públicas. Políticas essas que entreveem em seus objetivos a valorização da cultura local, a preservação da tradição, a redução da pobreza e o desenvolvimento social e econômico. Dos elementos socioespaciais que dão formas às paisagens temos como princípio que as fotografias do repórter fotográfico Canindé Soares possibilitam a construção crítica sobre as ideologias das produções que emergem no Rio Grande do Norte. O objetivo é analisar as ideologias enquadradas em fotografias configuradas em aspectos culturais priorizados e destacados como parte das paisagens do interior nordestino-potiguar. Utilizando os aspectos genealógicos direcionados para a análise fotográfica (DIDI-HUBERMAN, 2015a) com o propósito de estabelecer relações entre a estrutura vigente e as políticas direcionadas ao local, demarcamos a espacialização das relações de poder. Entendemos como espaços as percepções que habitam um campo discursivo e se entrelaçam diretamente com o campo de força que as instituiu (SANTOS, 2002; LEFEBVRE, 2001). Esta tese buscou apreender na paisagem fotografada as ideologias que inauguram formas de produzir culturalmente, socialmente e economicamente os espaços destinados ao 21 turismo religioso, as quais são apoiadas pelas políticas de turismo com ênfase na redução de pobreza -período de 2003-2017, período em que foi criada a pasta do turismo no Estado e organizado o programa de interiorização. Para atingir o objetivo proposto elencaram-se os seguintes objetivos específicos: a) compreender o lugar social do repórter fotográfico Canindé Soares, a fim de situar a sua produção fotográfica; b) pontuar as convergências socio-históricas entre os discursos e a fotografia que estabelecem a enunciação da paisagem turística encadeadas por um arquivo imagético pré-estabelecido da região Nordeste; c) analisar os discursos referenciadores do Nordeste que iconizados projetam as paisagens fotografadas em concomitância com o ambiente socioeconômico e político da atividade turística em destaque; d) demarcar os registros fotográficos de Canindé Soares no âmbito dos incentivos ao turismo religioso; e) demonstrar – com apoio em outros documentos, incluindo fontes textuais – o caráter ideológico “de um nordeste enquadrado” captado nessas fotografias como parte estratégica e constituinte de um espetáculo favorecido pelos discursos relacionados às políticas públicas de turismo. Como hipótese central sustentamos que as paisagens incrementadas pelo turismo religioso no Estado do Rio Grande do Norte estão vinculadas aos ícones de um tempo pretérito de caracterização da região Nordeste e surgem no presente enquanto um sintoma que apoia a manutenção de discursos hegemônicos em detrimento dos interesses plurais e democráticos. O que legitima um processo de espetacularização dos espaços em contradição com as expectativas das políticas públicas de combate a pobreza. A manutenção das proposições ideológicas que vem caracterizando a região Nordeste mantém-se nessas paisagens sobrepondo-se as probabilidades de transformações mais amplas e criativas, o que facilitaria lançar-se a redução de pobreza, ao desenvolvimento econômico e a inclusão social, como objetiva a Política Nacional de Turismo. Visto que a fotografia se constitui no “fio de Ariadne” desta tese, o seu sustentáculo é a noção de imagem crítica tal como sugere Georges Didi-Huberman (2010; 2013a; 2013b; 2015a; 2015b), o que vigora a partir da arqueologia da impressão. Metodologia conduzida pela possibilidade de se fazer um contraponto crítico e ideológico com os símbolos que, sustentados na produção fotográfica, são interpretados a partir da ideia de impressão e sintoma; um discurso permeado por questões políticas, sociais, econômicas e estéticas. Nesses termos, a fotografia sobrevém como potência reflexiva às relações contemporâneas. A leitura se deu com o apoio de pesquisas em acervos públicos e privados; observação direta dos indivíduos e espaços envolvidos; incluiu viagens aos locais registrados nas fotografias analisadas; participação em reuniões dos conselhos de turismo; participação em 22 feiras e eventos de turismo religioso; entrevistas semiestruturadas e compreensivas com o fotógrafo Canindé Soares, outros fotojornalistas, agentes estratégicos da Secretaria de Turismo do Estado (SETUR) e da Empresa Potiguar de Promoção Turística (EMPROTUR), entre outros indivíduos institucionalmente ligados ao desenvolvimento da atividade turística na região - o que aprofundou problemáticas interessantes para serem esclarecidas. Ademais, foram realizadas pesquisas bibliográficas em livros, documentos, atas, revistas, jornais impressos e online. Essas últimas fontes de informação foram importantes para se ter um parâmetro do que estava sendo produzido visualmente. As fotografias selecionadas foram as fotodocumentais que retratam as paisagens do interior do Estado coletadas no banco de imagens do Repórter Fotográfico Canindé Soares. Catalogamos as que fazem parte do banco da EMPROTUR por ilustrarem eventos de promoção turística, também, de outros órgãos oficiais relacionados ao turismo no Estado e as de maior quantidade de visualização no site de jornalismo do próprio autor. Separamos as fotografias de paisagens do turismo religioso (nas análises retiramos fotografias da capital do Estado, visto que o foco da pesquisa está na interiorização do turismo, o que não significou afastamento do debate que envolve a capital, mas sim, o fato de que ela não faz parte do nosso eixo) de acordo com as cinco regiões turísticas do Estado. Em cada uma dessas regiões foi estabelecida uma cidade e as fotografias apresentam eventos do catolicismo popular que giram em torno do tema mais representativo para o local, geralmente, contíguo aos Santos Padroeiros. O que foi eleito pelos eventos que captam maior número de pessoas e tem maior apelo ao fomento do turismo. As paisagens enquadradas nas fotografias encontram-se nas regiões dos Polos: Serranos, Seridó, Agreste/Trairí, Costa Branca e Costa das Dunas. No Polo Serrano escolhemos o município de Patú, com as paisagens do templo de Nossa Senhora dos Impossíveis, no Santuário do Lima. De outro modo disposto, o município que se destaca no Polo Seridó é Caicó, com as paisagens e eventos para a padroeira Sant’Ana. O Polo Agreste/Trairí, por sua vez, ganha relevância com as paisagens dos eventos que giram em torno do monumento erguido para Santa Rita, cidade de Santa Cruz. Por outro lado, na região do Polo Costa Branca a cidade em evidência é Mossoró que tem suas festividades do catolicismo direcionadas, em grande parte, à Padroeira Santa Luzia. Por fim, o Polo Costas das Dunas aparece com o interesse que recentemente se constrói para os eventos ligados aos novos elementos que foram agregados a igreja católica, são esses os Mártires de Cunhaú e Uruaçu ou Protomártires do Brasil, envolvendo duas cidades: Canguaretama e São Gonçalo do Amarante. A fotografia apesar de ser tema de debate recente na academia, tratada de modo mais substancial acerca de uns quinze anos, tem sua construção enquanto objeto de pesquisa 23 progressiva, tanto sua apropriação nos estudos sociológicos, quanto nos antropológicos. Aos poucos essas disciplinas rompem com os preconceitos em relação à fotografia, tentam ultrapassar seus aspectos ilustrativos, observá-la além de um documento em si. Intentam mostrar que a fotografia não é uma prova cabal da verdade; mesmo que possa parecer em um primeiro momento (BARTHES, 1984; SAMAIN, 1998; BOURDIEU, 1990; BECKER, 2003; SONTAG, 2006; MARTINS, 2014; KRAUSS, 2013). Esse cenário nos motivou a abraçá-la como objeto de estudo. No mais, existe, é claro, o interesse pessoal pelo artefato, não só pela imagem em si, mas por todo o seu processo estético e técnico. Para a compreensão do uso e apreensão da técnica foram realizados estudos práticos. Os estudos introdutórios com o apoio de amigos que dominavam a prática; após, cursos oferecidos em ambiente virtual com materiais disponíveis e canal direto com instrutor para resolução de dúvidas, desses foi realizado o “Cala a Boca e Clica” com o fotógrafo Henry Alfred Bugalho e o “Curso de Fotografia” com o fotógrafo Sit Kong Sang. Em sequência se deu a aquisição de equipamentos que constituem parte do universo fotográfico; máquina digital DSLR (equipamento profissional), lentes, flash individual, bateria, cartão de memória, filtros UV, tripé, entre outros. O que favoreceu o aprofundamento da técnica e a participação em cursos mais avançados, sendo esses: o curso oferecido na cidade de Lynnwood-Washington mediado por fotógrafos da National Geographic, com patrocínio da empresa Canon; curso particular oferecido semanalmente, com duração total de 4 meses, realizado na cidade de Seattle – Estados Unidos, com o fotógrafo internacional da indústria fashion Von MCnelly, que atualmente dedica-se ao fine artportraits8 e a lecionar nessa perspectiva. Por fim, foi realizado um curso de fotojornalismo com o fotógrafo e Professor do curso de Comunicação Social da UFRN Itamar Nobre, com prioridade à prática fotográfica com o equipamento analógico. Sobre a escolha do fotógrafo Canindé Soares, suas fotografias já eram conhecidas de diferentes oportunidades, elas são procuradas pelos órgãos oficiais locais do turismo. Além disso, a repercussão do trabalho desse profissional em âmbito local e nacional legitima a sua atuação. Tínhamos em conta que o mesmo já havia recebido um dos maiores prêmios do fotojornalismo brasileiro; carregando em seu currículo o registro exclusivo de personalidades conhecidas mundialmente; livros lançados; lista significativa de títulos e homenagens em âmbito estadual. Acrescenta-se ainda o fato de que seu trabalho tem sido cedido para vários 8 Trata-se de um tipo de fotografia artística que através de técnicas especiais, algumas possibilitadas pelo próprio equipamento fotográfico e outras podendo ser adquiridas por intermédio de softwares, produzem efeitos dramáticos, com altas saturações ou fortes efeitos de luz e sombra, alguns simulam as pinturas realistas desenvolvidas antes da existência da máquina fotográfica, as temáticas são variadas e a imaginação em relação ao espaço pode ser ampla, a critério do fotógrafo. 24 pesquisadores. Quando o interesse é a fotografia, esse fotógrafo atua colaborando com palestras nas instituições de ensino superior do Estado do Rio Grande do Norte. Contudo, é importante ressaltar que a sua obra ainda não havia sido objeto de análise em pesquisas científicas. As fotografias foram analisadas em consonância com a trajetória do autor, que assume uma importância significativa no processo de socialização do sujeito. Em se tratando dos estudos de trajetória utilizamos os conceitos bourdieusianos. De acordo com Bourdieu (2003), por meio do habitus, o sujeito interioriza as estruturas objetivas, ou seja, as normas e os valores sociais, assim como os sistemas de classificação e os sistemas de pensamento, determinantes na manutenção e reprodução da ordem social. Neste estudo a fotografia, a paisagem e o turismo se correlacionam e formam uma tríade que contribui para a compreensão mais ampla das ações construídas por distintos indivíduos que se materializam nos espaços e para com os espaços; circunscritas pelas negociações dos diferentes grupos, majoritariamente, acompanhadas de embates sociais, por sua demarcação, utilização e domínio. Nesse aspecto é que questionamos: como o projeto político pautado pelo turismo é enquadrado na fotografia das paisagens dos eventos religiosos do catolicismo popular registradas por Canindé Soares? Desse ponto desmembram-se as seguintes questões: Quais os discursos registrados nas fotografias de Canindé Soares em analogia com as paisagens referenciadoras da região Nordeste e como concatenam-se ao turismo? De que maneira as paisagens dos eventos religiosos são enquadradas na fotografia de Canindé e significadas espacialmente pela ideia de Nordeste? Quais os ícones socioespaciais que podem ser apontados por essas fotografias no decorrer do processo de turistificação das paisagens em questão? E por fim, resta-nos saber se estão concatenados ou não as expectativas de uma política de valorização local, desenvolvimento social e redução da pobreza? Nas fotografias importou o enquadramento (DIDI-HUBERMAN, 2013a), o qual é orientado no conjunto de imagens de pessoas, objetos, lugares e aspectos culturais. Esses elementos são mediados pelo espetáculo (DEBORD, 1997), compreendido como uma dilatação da atividade turística. Nesse enquadramento, que segue os parâmetros definidos por Didi- Huberman (2013a), distinguiu-se o conjunto de informações visuais que compõe o documento fotográfico e concorrem para sua materialização documental. Diante dele destacaram-se nas paisagens fotografadas os códigos visuais anteriormente idealizados como enunciadores da região Nordeste por intermédio do fenômeno aurático (aparição). O fenômeno aurático, especificamente na concepção utilizada para esse estudo, dá visibilidade às lógicas hegemônicas e aos estereótipos pré-estabelecidos, agora utilizados para a promoção de um espaço. A partir desse conjunto de apreensões delimitadas pelo enquadramento, articulou-se o 25 que nesta tese é denominado como enquadramento espetacularizado: uma das contribuições deste estudo por dar visibilidade ao processo de formatação de um modo de representação espacial que se objetiva através da cumplicidade entre os elementos presentes e insistentes no discurso fotográfico e coopera como modo de produção existente priorizando discursos dominantes da vivência social. Sendo essa uma representação ideológica do espaço para o consumo tendo como agente principal o discurso do turismo captado na paisagem. Identificar o enquadramento espetacularizado é o debate sociológico na possibilidade de se lançar com ênfase no horizonte para o real e o possível, para o investigativo e o explicativo, por intermédio dos múltiplos sentidos que envolvem as relações socioespaciais recortadas pela atividade turística. É dar pulso ao discurso da fotografia, desatualizá-lo e contestar projetos ideológicos construídos “de cima para baixo”, que edificam seus alicerces de modo hegemônico. Apontar o enquadramento espetacularizado é perceber na paisagem a forma impressa por condições pré-existentes que em relevo são espetacularizadas para que determinado conteúdo cative o campo da visão. Apontar esse enquadramento dá condições para se refletir na proposição de novas formas de infraestruturas e de organização da atividade capaz de apoiar a economia interpretativa (WARREN, 2017) com prioridade ao capital cultural local. Não significa apontar o turismo como uma atividade positiva ou negativa, entretanto, lançar com apoio da compreensão dos aspectos subjetivos que o envolve possibilidades que priorizem o plural. Esse é um modo de utilizar a fotografia como uma imagem crítica, assim como propõe Didi-Huberman (2010; 2013). A ideia do enquadramento espetacularizado na fotografia enquanto uma categoria de análise está balizada pelas reflexões de Walter Benjamin, George Didi-Huberman e Guy Debord. Conseguimos dar o caráter de imagem crítica a fotografia a partir dos símbolos impressos, como caracterizadores de um espaço apoiado nas reflexões de Albuquerque Júnior; que lança em seus estudos os símbolos de construção da Região Nordeste. Foi, também, primordial a concepção cultural da paisagem que abarcamos com autores clássicos da geografia e com a percepção do sociólogo Georg Simmel. Por fim, a pesquisa de Jonathan Warren (2017), que aponta nos espaços as resistências e emergências culturais e com elas a possibilidade de uma economia interpretativa mediante a valorização da produção de distintos grupos – como ativistas políticos, líderes religiosos, educadores, grupos de mulheres, músicos, artistas locais – nos foi cara para compreender a tônica para as transformações locais a partir de uma perspectiva que vem “de baixo para cima” – “From The Bottom Up”. Para concretizar as análises, inicialmente selecionamos as fotografias do banco de dados do autor que foram vendidas a EMPROTUR. Dividimos em séries homogêneas de acordo com 26 a temática do evento religioso em questão. Esse tipo de divisão intencionou encontrar a paisagem que mais se repete nos discursos visuais, suas inscrições na imagem, no transcorrer da temporalidade em questão, bem como as recorrências existentes entre as fotografias, passando daí às condições de possibilidade, de seleção e de exclusão dessas recorrências. Em outro momento, as fotografias foram decompostas em unidades culturais de significação, nos espaços – de acordo com o lugar da festividade que elegemos –, seguindo os elementos, coisas ou pessoas. O que proporcionou captar a significação do enquadramento em separado e no conjunto do discurso visual proposto pela fotografia. Em seguida, nas fotografias que restaram inspecionamos o quantitativo de visualização das imagens, priorizando assim entre as fotografias promocionais as mais vistas. Essa informação está disponível nos sítios virtuais em um ambiente de segurança que armazena a privacidade e o histórico do específico arquivo de acordo com os distintos IP’s (Internet Protocol) de acesso. Depois da divisão deslindamos o discurso fotográfico, pelo qual o fotógrafo escolhe o ângulo, em que determinados aspectos da paisagem, organizada culturalmente, tecnicamente esteticamente, são priorizados. Então, optamos por três caminhos básicos: 1º) Historiar o assunto; 2º) Apreender as condições de produção e do processo de criação que resultou na representação, a fim de compreender a sua construção, 3º) Demarcar o enquadramento espetacularizado. É oportuno frisar que, embora a imagem enquanto nosso documento seja o referente, nos situamos além dela no círculo das mentalidades, sendo considerada certa subjetividade na análise em questão. No segundo olhar, buscamos a história do processo de construção e origem da representação no contexto em que a fotografia foi gerada. O exercício supracitado favorece o olhar crítico que busca as condições de emissão e recepção da mensagem por meio de razões sociais e “psicológicas que deram origem aos acontecimentos” (KOSSOY, 2003, p. 145). O olhar crítico abarca a fotografia enquanto discurso que, de acordo com a frequência da sua circulação, contagia o olhar e se apresenta em sua “potência epidérmica”. Ele critica as noções sintéticas, fixas e fechadas sobre a fotografia, processualmente averigua a trama dos enunciados objetivos que a institui como verdade, utilizando-a não como objeto de identificação, porém como um elemento capaz de pôr em dúvida as identificações. Porém, antes é necessário apontar a semelhança, o que se impõe a memória enquanto aparição virtual de uma quantidade de figuras associadas que se aproximam e se afastam para construir um significado. Essa é a semelhança figurável, que na fotografia reconcilia o que é análogo entre dois enquadramentos que podem ocorrer diante de um sistema cultural em tempos e espaços diferentes e a qualifica como objeto precípuo para a constituição de um repertório crítico sobre as relações socioespaciais (DIDI-HUBERMAN, 2013). 27 A abordagem escolhida elencou-se à compreensão dos espaços representados pela paisagem enquanto um arranjo social direcionado ao turismo; onde os indivíduos com suas trajetórias, os grupos sociais, as práticas, as instituições, os discursos, as fotografias, os embates, as disposições, os posicionamentos e as negociações concorrem mutuamente. Tratamos de compreender o turismo e a produção espacial que essa atividade motiva a partir de um diálogo sociológico em constante aproximação com outras áreas do conhecimento como os estudos visuais, a história, a geografia e o próprio turismo enquanto disciplina9. Mesmo assim, no âmbito da sociologia, buscar uma corrente de pensamento crítico sobre o turismo não é algo corriqueiro. Até porque as tradições sociológicas no Brasil, por que não dizer em esfera ocidental, ligadas ás matrizes inauguradas pelos clássicos Karl Marx, Émile Durkheim e Max Weber estavam mais preocupadas com questões sociais estruturais relacionadas ao mundo do trabalho, as diferenças de classes sociais, entre outros estudos no qual o turismo aparece como tema periférico. Nesse aspecto, intentamos trazer uma produção crítica sobre o fenômeno do turismo priorizando esses clássicos em diálogo com pesquisadores atuais que seguem essa linha teórica de pensamento. Com eles percorremos os discursos enquadrados na fotografia das paisagens no qual o turismo tem atuado como agente central das novas configurações. O foco foi trazer à tona um olhar diferenciado para as possibilidades da atividade, ou seja, um novo direcionamento para as políticas públicas que giram em torno da promoção e do desenvolvimento dessa atividade; desnaturalizar as relações socioespaciais, para dar ênfase a caminhos inseridos em valores não só econômicos, porém em reflexões éticas e novas condutas morais. Isso para todos os envolvidos terem garantias de melhorias objetivas e não só valorativas; enfrentando a realidade que temos e possibilitando que as relações que estudamos possam ser compreendidas como históricas, sociais, culturais e não atemporais. Construímos a nossa contribuição acadêmica e social, comprometidos como um todo com a mudança das interpretações naturalizadas da dinâmica socioespacial. Levamos em conta a importância do posicionamento presente para transformações qualitativas nos locais, visando um futuro próximo que envolva os espaços com ganhos sociais, não apenas econômicos. 9 Em relação às produções sobre o tema que nos apoiaram a partir de diferentes questões conceituais e metodológicas. Sobre as dimensões humanas que dão a dinâmica espacial moldando-a de acordo com o contexto socio-histórico vigente, ver: Albuquerque Júnior (2006, 2008a, 2008b, 2013a, 2013b); Arrais (2004, 2006, 2008); Lefebvre (1991a, 1991b); Martins (1996). Sobre imagens e representação espacial ver: Dantas (2002); Carvalho (2009); Schama (1996); Corbin (1989; 2001). Sobre fotografia, ver: Bourdieu (1990); Martins (2009); Mauad, (2008); Possamai (2008). Em relação a Cultura; identidade e preconceito, ver: Albuquerque Júnior. (2003, 2012); Warren (2001, 2017). Sobre trajetória, ver: Bourdieu (1996); Laibida (2016), Santana (2007). No aspecto metodológico nos debruçamos sobre a proposta de leitura de fotografia de Didi-Huberman (2003, 2010, 2013a, 2013b, 2015a, 2015b). E para interpretar o sintoma como espetáculo Debord (1997). 28 A tese está estruturada em quatro capítulos. O primeiro capítulo, intitulado “Canindé SOARES: DE DENTRO PARA FORA DE FORA PARA DENTRO – TRAJETÓRIA”, traça uma trajetória do profissional, abarcando seu contexto socio-histórico, geográfico e algumas concepções de cunho pessoal. Com esse percurso trilhado o localizamos em sua consagração profissional diante dos seus capitais e símbolos abordados na fotografia. O segundo capítulo, “O DISCURSO NA FOTOGRAFIA: EU CONSTRUO, ELE CONSTRÓI, NÓS CONSTRUÍMOS”, contempla um debate sobre o discurso e a ideologia na formação discursiva. Através do discurso a fotografia aparece como legitimadora de ideologias, bem como se transforma em um elemento discursivo que diz sobre relações socioespaciais a partir do ponto de vista de seus produtores. Organizamos um diálogo das possibilidades de se construir a crítica sociológica por intermédio da proposta de Didi-Huberman, em que vale-se da arqueologia foucaultiana para recuperar a reflexão ética sobre o valor de uso da fotografia e da semelhança que resiste em seu registro enquanto um sintoma. Nesse cenário, traz à tona o materialismo histórico de Walter Benjamin com a reelaboração da noção de aura a fim de transformar a imagem fotográfica na imagem crítica. Sua motivação tem como ebulição a proposta iconológica de Erwin Panofsky (1892-1968), que interpreta os objetos artísticos a partir da decomposição das imagens e da reconstituição histórica; afirmando a possibilidade de ordenação e apreensão dos sentidos, favorecendo um fechamento analítico direcionado por um tom de certeza que deve ser contestado. No terceiro capítulo, “POLÍTICA E TURISMO: A CONSTRUÇÃO DA PAISAGEM NORDESTINO-POTIGUAR” exploramos a construção da paisagem nacional, o que desemboca na construção do regional, momento em que emerge a ideia do Nordeste, bem como as políticas de desenvolvimento para a região. No âmbito das políticas de desenvolvimento para o Nordeste, abordamos aspectos relativos ao Programa de Regionalização do Turismo- (PRT). Para tano, apresentamos questões concernentes aos objetivos desse Programa, a partir do momento histórico em que começou a ser implementado, bem como sua concepção, diretrizes e ações. Enfatizamos as políticas que, juntamente, com outras relações, imbricadas no cenário global/local, construíram concepções identificadoras das várias fronteiras territoriais, com relevo ao Nordeste onde seus Estados movimentam-se visualmente em torno de uma imagética restrita e, amplamente, estereotipada. No quarto capítulo, “TURISMO RELIGIOSO: O ENQUADRAMENTO ESPETACULARIZADO”, discutimos as análises das fotografias direcionadas a visibilidade do enquadramento espetacularizado nas paisagens turísticas em relação às interferências ocorridas no espaço. Abordamos também a relação da atividade turística com as questões culturais e o 29 desenvolvimento local, a partir das contradições inerentes à própria atividade no espaço em questão. As “Considerações Finais”, por sua vez, se constituem em uma síntese dos resultados alcançados através da realização da pesquisa. Com ela confirmamos a tese que a paisagem nordestino-potiguar, presente nos discursos fotográficos dinamizados a partir das políticas de turismo está culturalmente engendrada por um sintoma de visualidades pretéritas; agora espetacularizadas essas visualidades favorecem a manutenção de discursos hegemônicos em detrimento dos interesses plurais e democráticos. Ao contrário do que considera o Ministério do Turismo (MTUR) como prioridade das políticas públicas que promovem a interiorização da atividade por intermédio da valorização do local; o que ocorre atualmente dá visibilidade a estereótipos pré-estabelecidos e afasta-se da possibilidade de um desenvolvimento baseado na economia interpretativa (WARREN, 2017), capaz de favorecer a valorização do capital cultural local e a inclusão social. 30 2 CANINDÉ SOARES DE DENTRO PARA FORA, DE FORA PARA DENTRO: TRAJETÓRIA Neste capítulo traçaremos a trajetória da vida de Canindé Soares, demarcando como ela concatena-se ao tipo de imagens que ele constrói e essas fotografias traduzem-se no lugar social do autor e em seu ponto de vista. Ainda, direcionam as questões que elencam o tipo de enquadramento dado às paisagens dos eventos religiosos do catolicismo popular; às políticas públicas de turismo que incidem sobre o Nordeste – uma vez que o trabalho do autor está inscrito dentro dessa demanda – e; a espetacularização dos espaços, encarando a espetacularização como uma dilatação dos limites da atividade turística. Diante da interpretação dada pelo deslocamento na orientação espacial das políticas públicas de turismo, encontramos a resposta para a nossa periodização. É de importância ímpar, justamente, o momento em que se tira o foco do litoral e começam as intervenções no interior, o que acontece através da elaboração do Programa de Regionalização de Turismo (PRT); que passa a ser a política estruturante do Ministério do Turismo elaborada no ano de 2003, mas começa paulatinamente suas ações no ano de 2004. No recorte temporal estabelecido pelo PRT, estrategicamente, conseguimos englobar o período de construção do acervo virtual de Canindé Soares, que se inicia no ano de 2004 e (assim como esse programa) segue até os dias atuais. Nesse aspecto fechamos as análises no ano de 2017. No amplo arsenal de fotografias de Canindé Soares sobre o interior do Rio Grande do Norte registram-se carnavais, lazer em rios e açudes, turismo de aventura, ecoturismo, festividades juninas, artesanatos, gastronomia, turismo religioso, entre outras. São muitas possibilidades, porém a temática que incorpora os eventos festivos do catolicismo popular ganha destaque. A justificativa não está apenas na participação no grupo de pesquisa já citado, mas sim diante dos mesmos motivos que impulsionaram a existência desse grupo de pesquisa para analisar o tema; basicamente, o incentivo governamental dado às manifestações católicas em interesse de transformá-las em possibilidade de turismo religioso, direcionando-as enquanto um atrativo apto a atender a demanda econômica global. Ou nas palavras de Canindé Soares – em entrevista realizada quatro dias antes de iniciar as festividades dos Mártires de Cunhaú e Uruaçu, padroeiros do estado10 – sobre o turismo religioso como possibilidade de desenvolvimento econômico: “Acredito que o turismo religioso pode colaborar com o desenvolvimento, porque nas cidades que a princípio não tem nenhum edifício interessante, 10 Ver em Anexo B o folder de promoção da festividade dos mártires enviado por Canindé Soares, via Aplicativo de mídia social Whatsup, em 29 de setembro de 2016. 31 nada que chame atenção na paisagem, se você procurar haverá a igreja católica e a festa do padroeiro, isso tem em todo o estado” (informação verbal, 2016)11. As fotografias de Canindé Soares narram esse processo de emergência do turismo religioso, mais ainda destacam novas paisagens no interior do Estado, dá visibilidade a espaços que estão sendo construídos para atender os novos discursos e as novas práticas a partir da ideia da atividade turística. Uma das possibilidades na sociologia de interpretar esse tipo de documento é, justamente, desmontar a naturalização dos discursos que elas articulam. Assim iniciamos nosso caminho apreendendo a fotografia como imagem crítica (DIDI-HUBERMAN, 2010), para investigar como se articulam discursos, práticas, trajetória, atividades e eventos na definição das paisagens12. 2.1 FAMÍLIA E GENEALOGIA Dedicamo-nos às fotografias documentais de autoria do repórter fotográfico Canindé Soares com foco localizado nas ideologias imersas nas paisagens voltadas ao turismo, que constituem olhares e criam uma realidade sobre os espaços. Porém, antes de tudo se faz mister conhecer as origens, a herança, um pouco da biografia do profissional Francisco Canindé Soares que constrói as imagens importantes para a conhecimento das relações socioespaciais no Estado do Rio Grande do Norte. A rigor, conhecer um pouco da sua história-trajetória favorece que o nosso trato com esses meios sejam expressivos no sentido de entendê-las em suas mensagens enquanto sintoma, potência mítica e intempestiva13 no que as fazem sobreviver (DIDI- HUBERMAN, 2010). Principalmente, nos dedicamos à trajetória desse autor para que fique claro o porquê da sua escolha e de cada vez mais se destacar em seu campo de atuação, ganhando adeptos e legitimadores do seu trabalho. Canindé Soares é brasileiro, o que significa afirmar que é filho de um país reconhecido pela sua heterogeneidade; mesmo que muitas vezes as fotografias, os cartões-postais, os filmes, entre outras distintas formas de imagens levem a crer que haja uma singularidade nesse território. Os diferentes suportes imagéticos citados são enunciados que atualizam generalizações e empregam um tom de unicidade sobre os espaços onde, contraditoriamente, o 11 Diálogo realizado via telefone com Canindé Soares na manhã de 29 de setembro de 2016. 12 CHARTIER, Roger. Conversar con Chartier (Barcelona, 5 de junio de 2007). Historia, Antropología y fuentes orales. Barcelona, Asociación Historia y Fuente Oral; ArxiuHistòric de la Ciutat de Barcelona y Editorial Universidad de Granada, n. 38, p. 66., 2007. 13 Esses são conceitos relidos pelo historiador George Didi-Huberman, que tem grande relevância nos estudos do autor e nos apoiou na análise das imagens fotográficas, serão colocados com maior detalhes em outro momento do texto. 32 que prevalece é a diferença. Situando mais ainda Canindé Soares, o identificamos como um brasileiro nascido na região Nordeste; a região é uma invenção singular na história do Brasil14 apesar de ser uma invenção do século XX, muitas vezes é narrada como se já existisse desde o período colonial, com seus valores culturais e tradições contínuos que agora baliza a ideia de espaço exótico e singular para o desenvolvimento do turismo. Região concebida, relatada, descrita por muitos autores, por exemplo, Gilberto Freyre, como uma organização espacial quase natural em que o espaço aparece como o palco onde se desenrolam os enredos da sociedade, um espaço passivo em termos sociológico; no qual sociedade e natureza conformam- se em singularidades paisagísticas, sociais, políticas e econômicas15. Contudo, as regiões são construídas, inventadas, definidas, narradas, dotadas de sentido a partir das dimensões imaginárias, simbólicas e culturais. São constituídas por intermédio da experiência social, elaboradas a partir de discursos e sentidos. Elas existem de acordo com a existência humana no tempo e no espaço. Para Heidegger (1993)16, elas existem com os indivíduos que, para além da sua individualidade, as constroem e que, em sua coletividade, as dotam de sentido. Albuquerque Júnior (2008b, p.8) enfatiza que a ideia do regional e da sua identidade não está dada a partir do local que se nasce, porém “emerge de um trabalho de subjetivação, ela é a constituição de uma dada subjetividade através das relações sociais e da incorporação consciente ou não das narrativas” que as definem. Nesse caso quem constrói outras representações e discursos a partir do olhar lançado a um recorte espacial dota-os de sentidos, organiza uma forma de relato, de memória, de escrita. É o modo como são apresentadas as fotografias de Canindé Soares, que se relaciona aos capitais17 que o constitui em sua trajetória enquanto indivíduo e marca as impressões sobre o espaço trabalhado (BOURDIEU, 1989). 14 Sobre a ideia de Invenção do Nordeste ver: Albuquerque Júnior, Durval Muniz de. A invenção do Nordeste. 3. ed. São Paulo: Contexto; Recife: FJN, 2006. 15 Ver: ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. Receitas Regionais: a noção de região como um ingrediente da historiografia brasileira ou o regionalismo como modo de preparo historiográfico. In: ENCONTRO DE HISTÓRIA ANPUH -RIO: IDENTIDADES., 13. Rio de Janeiro, 2008b. Anais... Rio de Janeiro, 2008b. Disponível em: < http://encontro2008.rj.anpuh.org/resources/content/anais/durval.pdf>. Acesso em: 23 mar. 2018. 16 HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. 4 ed. Petrópolis: Vozes, 1993. 17 A ideia de diferentes capitais faz parte do escopo teórico e metodológico de Pierre Bourdieu. Os capitais buscam ampliar a concepção marxista de capital, pois vão para além do acúmulo de bens e riquezas econômicas, agregam- se aos recursos ou poder que se manifesta em uma atividade social além do capital econômico (renda, salários, imóveis). É crucial na teoria de Bourdieu, também, a compreensão de capital cultural (saberes e conhecimentos reconhecidos por diplomas e títulos) e capital social (relações sociais que podem ser convertidas em recursos de dominação). Esses são conceitos que devem ser compreendidos em sua interdependência com as noções de habitus, campo e capital simbólico (que se constitui nos capitais citados: cultural, econômico e social).Ver Bourdieu (2003, p. 11). 33 Canindé Soares, como qualquer indivíduo, tem uma biografia, uma trajetória de vida, um percurso histórico e social que está diretamente relacionado com o tipo de fotografias que ele produz. Sua cabeça, sua arte, sua técnica é formada por demandas criadas em seu período histórico pelos pressupostos que o circunscrevem enquanto ser social e cultural. Para entender sua obra se faz mister antes compreender sua trajetória, para tal acessamos o conceito de trajetória. A ideia de trajetória foi gestada a partir da noção de história de vida. A história de vida abriu-se enquanto um campo de estudo ainda nas primeiras décadas do século XX. Iniciou-se nas ciências humanas, na chamada Escola de Chicago, com foco no indivíduo, sem dar prioridade aos vínculos sociais em que esse estaria envolvido (BERTAUX, 1999). Depois de uma produção significativa nessa linha metodológica surgiram teorias consideradas mais objetivas, abordagens estruturais que buscavam dar conta das variáveis de um dado sistema, recorrentes de uma específica realidade social afastando-se da análise da vida e da experiência dos indivíduos. No final da década de 1970 e início de 1980, o sociólogo Daniel Bertaux balizou uma proposta de reconstrução das vivências dos sujeitos como método nas análises sociais. O que o tornou o principal nome dos estudos de história de vida da sua época, colocando essa perspectiva no centro de vários debates (GUÉRIOS, 2011). Ainda na década de 1980, Pierre Bourdieu lançou um curto e crítico artigo na revista Actes de La Recherche en Sciences Sociales onde se opõe as concepções existentes sobre as histórias de vida nas ciências sociais e desqualificando assim tanto o objeto, quanto o método. O sociólogo afirma que as noções existentes que partiam desse enfoque biográfico consistiam em um tipo de senso comum que invadiu o universo acadêmico; o texto ao qual nos referimos é a “ilusão biográfica” (BOURDIEU, 1996, p. 69). Em sua escrita, esse autor desqualifica tanto o método como o seu objeto principalmente por não se situar as histórias de vida diante das condições concretas de existência a ela implícita, o que denotava falta de objetivação sociológica. Nas palavras de Bourdieu: A análise crítica [destes] processos sociais [...] conduz à construção da noção de trajetória como série de posições ocupadas por um mesmo agente (ou um mesmo grupo) em um espaço ele mesmo em devir e submetido a incessantes transformações. Tentar compreender uma vida como uma série única e suficiente em si mesma de eventos sucessivos sem outra ligação que a associação a um “sujeito” cuja constância é apenas aquela de um nome próprio é quase tão absurdo quanto tentar explicar um trajeto no metrô sem levar em conta a estrutura da rede, ou seja, a matriz das relações objetivas entre as diferentes estações (BOURDIEU, 1996, p. 71). A proposta é que os esforços acerca do assunto fossem transformados em “estudos de trajetórias”. O foco na trajetória de uma pessoa coloca-se nos ambientes sociais que ela 34 frequenta, nos sujeitos aos quais se liga e nas redes de interdependência que se desdobram além de seu pertencimento social imediato (ELIAS, 1994). Deparam-se frontalmente com a questão da relação entre o individual e o social, entre o pequeno e o grande, entre a parte e o todo. Entretanto, o corpo teórico e operacional de Pierre Bourdieu envolve uma série de conceitos que estão em constante interação e mutualidade, são relacionais assim como a sociedade é. A sociedade em sua estrutura é interpretada como um sistema hierarquizado por acesso ao poder e privilégios que depende da detenção de diferentes capitais. Esses são determinados pelas relações materiais e econômicas, também por relações simbólicas ou elos culturais que se dá entre os indivíduos. Desse modo a posição ou privilégio ocupado por um indivíduo ou grupo é definida no campo em conformidade com o volume e a composição de capitais adquiridos e incorporados ao longo de sua trajetória. O complexo de capitais é interpretado por intermédio de um sistema de disposições culturais, em seus aspectos materiais e simbólicos que resultam em práticas e disposições que diferenciam os indivíduos aproximando-os por meio dos interesses comuns e similaridades ou afastando-os no espaço social; o que Bourdieu chama de habitus. Na compreensão do habitus é impossível separar o coletivo do individual e do psicológico; uma vez que a estrutura estruturante do indivíduo é composta pelo processo de internalização e externalização das composições construídas na esfera coletiva e do ethos do indivíduo internalizado com o habitus do coletivo, quer dizer, seu psicológico. Na teoria bourdieusianao habitus é expresso pela subjetividade e o campo pela objetividade; assim, um complementa o outro, de modo que o campo molda e é moldado pelo agente. De outro modo, a maneira de se relacionar; comportamento; práticas sociais e; aprendizados estão marcados pelas trajetórias sociais vividas pelos indivíduos (BOURDIEU, 1997a; 2003). Partindo da teoria bourdiesiana sobre os estudos de trajetória é prioritário enfatizar a influência familiar. O convívio familiar é por excelência marcante para a transmissão e acumulação dos distintos capitais. Sendo essa um dos principais princípios responsáveis pelas estratégias de reprodução do social. A família é um princípio de construção da realidade social, também é preciso lembrar, contra a etnometodologia, que esse princípio de construção é ele próprio socialmente construído e que é comum a todos os agentes socializados de uma certa maneira. [...] Esse princípio de construção é um dos elementos constitutivos de nosso habitus, uma estrutura mental que, tendo sido inculcada em todas as mentes socializadas de uma certa maneira, é ao mesmo tempo individual e coletiva; uma lei tácita (nomos) da percepção e da prática que fundamenta o consenso sobre o sentido do mundo social (e da palavra família em particular), fundamenta o senso comum [...[ Assim, a família como categoria social objetiva (estrutura estruturante) é o fundamento da família como categoria social subjetiva (estrutura estruturada), categoria mental que é a base 35 de milhares de representações e de ações (casamentos, por exemplo) que contribuem para reproduzir a categoria social objetiva. Esse é o círculo de reprodução da ordem social (BOURDIEU, 1994, p. 127-128). A família constitui a matriz da trajetória social e da relação do indivíduo com essa trajetória. Família e genealogia se entrecruzam nas concepções de mundo expressas nos relatos de Canindé Soares, narrativas que demonstram força e obstinação, nos dá a ver tanto as possibilidades que se abriram para o alcance de um lugar central no campo que ocupa, quanto nos informa sobre as inflexões de sua trajetória. Numa zona de interseção entre possibilidades e inflexões temos em conta que o indivíduo é capaz de criar. Compreendemos a criação como estratégias, o que para Bourdieu (1990) é um instrumento de ruptura com o ponto de vista objetivista e com a ação sem agente, suposta pelo estruturalismo. Aqui conectamos as estratégias individuais às perspectivas de Santana (2007) no qual assegura que o destaque de um indivíduo no mercado audiovisual se dá a partir de ações ou, podemos dizer, capacidades em diálogo com o universo que o circunscreve. Essas sugerem comportamentos, atitudes, criatividades e práticas que o chancelam em seu campo profissional. Esse conjunto de ações é o que o pesquisador chama de autenticidade do profissional. A autenticidade que identificamos em Canindé Soares, como será demonstrada no decorrer do capítulo, é um dos aspectos que o faz ser reconhecido em seu meio de atuação como “O Onipresente Canindé Soares”18. Direcionamos que a adaptação ao meio fotográfico, a aceitação das relações de poder no campo social, além das estratégias de comunicação desenvolvidas pelo fotógrafo, o ajudou a construir sua centralidade no campo do fotojornalismo. Canindé denomina sua vitória a um traço que comumente ele pontua como comum a sua origem: a humildade. Sobre a relação com a família tem sido recorrente nas lembranças do fotógrafo a narrativa da humildade. Não a humildade no sentido de submissão e passividade, mas analisamos que esse fator, combinado a outros fatores, se constituiu em um tipo de ferramenta estratégica, no qual o próprio indivíduo se reconhece e se legitima. Em sua memória estão arquivados inúmeros fragmentos que o remete a humildade, em geral todas relacionadas às lembranças familiar. 18 O termo onipresente é utilizado por vários jornalistas que publicam artigos sobre Canindé Soares. Pode ser observado no próprio site do profissional o fragmento retirado do “Novo Jornal”, que expõe a matéria de Alexis Peixoto, realizada no ano de 2010, destacando a onipresença do profissional e o privilégio deste ter sido homenageado com o título de cidadão natalense. Ainda, o texto elaborado pelo jornalista Rubens Lemos Filho, em 17 de dezembro de 2011, publicado em seu site e reproduzido no site da jornalista Thaísa Galvão. Disponível em:< http://www.thaisagalvao.com.br/2011/12/17/rubens-lemos-e-o-olhar-sobre-natal-pelas-lentes-de-caninde- soares/>. Acesso em 13 fev. 2017. 36 Minha família é muito humilde, meus avós também são, paternos e maternos. Não tive amizade com meu avô paterno porque quando ele morreu eu era muito novo, quem frequentava muito a minha casa eram meus avós maternos. Depois que nos mudamos para cidade meus avós maternos vieram juntos (informação verbal, 2017)19. O discurso obedece a um modelo de reinterpretação que consolida as circunstâncias da sua trajetória de vida onde a humildade se constitui em um elemento que salienta a ascensão, a quebra de barreira de uma estrutura, a condição que o direcionou ao sucesso e ao reconhecimento profissional. Como podemos observar nas palavras de Soares: Eu sou de uma origem muito humilde, de uma família muito humilde, nasci no interior, numa cidade chamada São Bento do Trairí. Eu costumo até dizer que quando eu nasci existiam duas ruas e hoje são umas três ruas mais ou menos, meu pai vivia de agricultura de subsistência e veio para a cidade grande em busca de melhores dias e a cidade grande era natal que naquele momento tinha menos de 300 mil habitantes e ele veio tentar sobreviver, imagina uma família pobre em uma cidade grande e, logicamente, eu. Mas foi bom, foi muito bom porque se não fosse isso eu não sei qual teria sido meu futuro (informação verbal, 2013).20 A origem humilde teve que ser vencida, porém a humildade parece prevalecer como requisito para o merecimento do êxito social e consequentemente profissional. Temos em conta que a humildade foi um tipo de representação que o dotou de autenticidade favorecendo a construção da figura pública, constituindo-se assim em uma ferramenta estratégica que deu a Canindé a autenticidade necessária para expandir seus feitos. Quando eu era jovem, eu acho que já te falei isso em outras conversas, eu pensava que teria que trabalhar 30 anos de trabalho, em uma rotina de 30 horas, cumprindo uma rotina igual de trabalho, isso era muito ruim. E graças a deus eu não preciso ter essas profissões que tem que cumprir 30 horas de trabalho direto, com rotina, hoje eu tenho uma profissão que eu amo, ela não tem rotina (informação verbal, 2013)21. A humildade na doutrina cristã representa um tipo de virtude, ao mesmo tempo em que estabelece uma função relacional entre o crente e deus (a coisa desejada). Para Aquino (1957) a humildade é um tipo de perfeição que se coaduna à graça. Combinado a outros fatores a ideia de humildade de Canindé associa-se a uma trajetória de superação, de merecimento. 2.1.1 A casa natal 19 Entrevista realizada com Canindé Soares em 28 de março de 2017. Para ver o roteiro de entrevistas e as respostas dadas à entrevista na íntegra, vide Apêndice D. 20 Matéria de Canindé Soares cedida ao Coletivo Foque TV, narrando sua história de vida e a inserção na fotografia. Publicado em 31 de maio de 2013. Disponível em: . Acesso em 13 jun. 2017. 21 Idem. 37 A família também é responsável pela coerção e pelas contradições que nascem principalmente das discordâncias entre as disposições do herdeiro e o porvir apresentado por sua herança. Nesse ínterim, a família é geradora de tensões e de contradições genéricas (observáveis em todas as famílias, porque ligadas à sua propensão a se perpetuar) e específicas (evitando, principalmente, segundo as características da herança). O habitus familiar constrói, ou não, as ferramentas necessárias para a obtenção de uma trajetória de vida bem-sucedida ou não. Como veremos com a casa natal, com a origem familiar do profissional. Fotografia 1- A Casa onde nasci em São Bento do Trairí Fonte: Soares (2016)22. Conforme é possível visualizar na Fotografia 1, a porta da casa natal está aberta. Nos permitiram cruzá-la, ao atravessá-la buscaremos reconstruir as memórias de infância de Canindé Soares com o objetivo de traçar alguns aspectos da sua trajetória de vida familiar. Contudo, antes de adentrarmos nesse espaço, não nos escapou a paisagem construída que se cinge à casa Natal. Muito menos, deixamos de perceber a legenda que a suporta. 22 Fotojornalismo Canindé Soares. Em 20/06/2016. Sob o título de: Novos tempos, novos rumos e grandes mudanças de inversão dos valores morais e éticos. “Para ilustrar o texto de Arnaldo Jabor, a foto da casa onde nasci em São Bento do Trairí, onde meus pais, mesmo humildes e semianalfabetos, me ensinaram os verdadeiros valores morais e éticos da vida. Tenho muito orgulho de tudo isso”(informação verbal, 2017). 38 Antes de iniciar nas lembranças de infância do autor do nosso objeto, repassadas oralmente para essa pesquisa a fim de traçarmos uma pequena trajetória do mesmo, iremos nos debruçar, em poucas linhas, a apreensão da imagem elaborada por Canindé sobre à casa que nasceu, o lugar23 da sua infância. Um discurso como agência, como memória/duração, como afeto e ambiência (DIDI-HUBERMAN, 2010). As fotografias de Canindé são registros, promoções, ordenações e denúncias, mas, concomitante, são artísticas, produções, estéticas e subjetivas. São imagens multifacetadas, assim como as distintas diretrizes percorridas pelos modos que se dão as relações sociais que aparecem inscritas nos espaços. Da mesma forma subscrevem esse ator em seu campo social, nada mais adequado do que privilegiarmos a sua fotografia como introdutória nesse texto. Enquanto um discurso, as imagens fotográficas representam os espaços ao mesmo tempo em que criam geografias – como a paisagem recortada na fotografia –, sendo as últimas, frutos das práticas espaciais. A linguagem que utiliza na constituição das paisagens incorpora- se aos sistemas de objetos e de ações que ocorrem nos espaços (SANTOS, 2002). Ademais, temporais, contínuos, dialéticos; Com formas, plasticidade, ritmo e força que de acordo com a sua aparição atrela-se a noção de “sintoma-tempo”. Irrompe-se como imagem nas crises do próprio tempo, nas lembranças da infância que remetem ao arquivo imagético construído nesse período, depois em outra fase da vida retorna como memória traduzida na estética, na técnica e na arte reproduzindo códigos a partir do acesso e da força da sua aparição (DIDI-HUBERMAN, 2015a). A fotografia destacada foi captada pelo repórter-fotográfico no ano de 198924. Um momento ímpar, visto que foi a primeira vez que o profissional retornou à cidade onde nasceu depois de ter se mudado, ainda criança, para a capital do Estado do Rio grande do Norte. Aventurou-se em aproximadamente 140 km de rodovia precária que ligava Natal até São Bento do Trairí em cima de uma moto, um percurso de quase três horas, visto a limitação do transporte e da própria estrada. Nesse dia teve como companheiros a câmara analógica Canon FTB, com lente de 35 milímetros e foco manual (opção, totalmente mecânica, para fotógrafos amadores em nível avançado) e o esposo de uma das suas tias25. O fotógrafo não sabe, mas a imagem 23 Para compreender a ideia de lugar ver AUGÉ, Marc. Não lugares: uma introdução a uma antropologia da supermodernidade, Campinas, SP: Papirus, 1994; e CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano 1: Artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 1994. 24 As informações foram coletadas em entrevista com o autor no dia 19/11/2015. Essa foi a primeira entrevista oral, gravada em áudio, realizada no Bistrô Douce France, na Avenida Afonso Pena, 628, Bairro Petrópolis, Natal, RN. 25 Informações repassadas por Canindé Soares em diálogo realizado no dia 20/08/2016. 39 capitada movimenta-se em escalas de espaço e tempo, cuja existência efetiva-se respectivamente “aquém e além” do seu tempo histórico (SERRES, 2005, p. 12). Ao ser publicada no site Fotojornalismo Canindé Soares recentemente, no dia 20 de junho de 2016, pelo próprio fotojornalista Canindé Soares em termos de qualidade técnica é primorosa. Explicamos o porquê: as disposições dos elementos enquadrados concordam com as estruturas exigidas pela estética da imagem fotográfica. No mais, todos os elementos são valorizados, mas o autor consegue, ainda assim, colocar em destaque um único símbolo; os planos estão demarcados em ordem de importância, são focos perfeitos com uma exposição harmoniosa, mesmo para uma imagem que foi captada, provavelmente, em um horário considerado “menos propício” para a fotografia externa. Ou seja, horas próximas ao meio-dia. Para um entendimento simplificado podemos afirmar que é considerado “impróprio” em termos de horário o período em que o sol está acima das nossas cabeças, esse momento infere em sombras curtas e marcadas, acentuando os contrastes, por esse motivo os profissionais preferem evitar fotos ao ar livre nesses horários. Todavia, estamos falando de um profissional que marca hoje em seu currículo quase quarenta anos de experiência, nas contas de Canindé Soares são trinta e oito anos já dedicados à técnica, no período do registro fotográfico exposto já eram quase quinze anos de experiência profissional. E o destaque que conquistou nesse campo de atuação nos indica que naquele momento o horário escolhido foi proposital. O autor decidiu optar por uma luz considerada dura, priorizou a incidência solar no corpo dos objetos a fim de obter maior contraste sobre os elementos que compõe a cena, são esses: céu, árvore, casa, terra, animal de estimação, humano, montanhas e a cidade. Intermediado pelo contraste favorecido pela dinâmica luz e sombra, Canindé Soares expõe sua obra imagética, apresenta a “sua paisagem” e por meio do olhar e da narrativa dirige à sensibilidade do leitor para o espaço da sua infância. Temos a ideia do passado como algo significativo nesse enquadramento, a profundidade de campo conquistada com a representação do céu bem azulado e cheio de nuvens valoriza a dinâmica temporal, os movimentos sugeridos pelas nuvens direcionam ao espaço íntimo e passado da casa natal, o lugar do aconchego familiar. Essa é uma expressão da capacidade humana de preparar imagens poéticas a partir do contato de seus sentidos com as coisas. É o que coloca Bachelard (2008), quando expõe a ideia da imaginação material. A configuração desse espaço recortado incide constantemente na ideia de retorno ao espaço íntimo, agora publicizado, da casa natal. Carrega em sua construção a afetividade que há no interior das coisas. A narrativa expressa tem seu ponto de origem na solidão da infância, 40 momento em que Canindé conheceu por intermédio dos pais o que ele considera como valores concisos e éticos. Esse cenário da casa natal é o que permite, tempos depois, o adulto viver seu próprio momento de solidão e nostalgia (BACHELARD, 2009). Todavia, retornar a esse espaço natal é de algum modo afastar-se do real para habitar as lembranças. Observe que o autor não enquadra apenas um espaço, mas todo o simbolismo que existe nesse trecho imagético. Essa dimensão destaca o rumo que restitui à infância, “a nossa infância sonhadora que desejava imagens, que desejava símbolos para duplicar a realidade” (BACHELARD, 2009, p. 94). Pode-se afirmar, conforme o historiador Albuquerque Júnior (2006 p.27), que “nossos territórios existenciais são imagéticos. Eles nos chegam e são subjetivados por meio da educação, dos contatos sociais, dos hábitos, ou seja, da cultura” e a partir dessa relação é que somos capazes de dar às feições a natureza que está intimamente ligada aos lugares e as práticas nela desenvolvida. São imagens que duplicam a realidade, constroem figuras que direcionam ao que Didi-Huberman (2015a, p. 310) chama de “dialética das formas”, que atraem, mais também repelem. O retorno à casa natal tanto tempo depois, é um misto de aproximação e afastamento; saudade e alívio; prisão e liberdade. Parece não ser para o autor um encontro ansiado, a demora no retorno coloca reticências. O reencontro traz enunciados que determinaram como na legenda exposta pelo fotógrafo, valores éticos e morais. Todavia, construídos a partir de uma produção sociocultural da dor, do sofrimento, do autoritarismo, muitas vezes da resignação a uma natureza considerada seca, árdua, áspera e inóspita. Interpretada como um espaço de aprisionamento (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2003). Levando a uma confusão de sentimentos e mesmo a construção de fronteiras entre o presente e o passado. Voltar é novamente se emaranhar entre as teias dos galhos secos que aparecem no primeiro plano da fotografia e enunciam a força imperiosa desse tipo de natureza que cerca e isola a casa natal, mantendo-a submersa na cena. Metaforicamente os galhos da árvore podem indicar a mão paterna, que traduziu e moldou esses valores éticos e morais; um misto de orgulho e dor, que reúne, transborda e subverte as novas referências imagéticas do repórter fotográfico (DIDI-HUBERMAN, 2015a). Os discursos expressos na discrição dada à cena podem parecer um direcionamento particular a esse adulto por recriar uma cena significativa e íntima, mas o que foi dito não se constrói sozinho. Os enunciados captados ao mirar a fotografia são moldados por diversos discursos e representações, produzidos por intermédio de um amplo arsenal imagético que constrói, organiza e dá sentido socioespacial aos símbolos expostos – e, são consequentemente coletivos. Se trata da “semelhança informe”, da reprodução fotográfica de um espaço percebido 41 pelos sentidos, de discursos que se assemelham na imagem e se movimentam no tempo, mesmo diante de perspectivas que se mostram como contraditórias ou divergentes, dialéticas em sua forma. Nesse percurso estamos seguindo rumo à arqueologia da imagem. No dia em que o fotógrafo em questão decidiu expor publicamente essa imagem – já divulgada em seu site de fotojornalismo quase um mês antes –, data de 27 de agosto de 2012, em sua página virtual da rede social Facebook, diversas foram as linhas de comentários que acessaram toda uma referência pré-elaborada sobre o espaço em questão. As impressões ultrapassam os territórios pertencentes à casa natal e acessam os códigos que constroem a ideia da região nordeste26. Sobre a fotografia: Arlindo Freire: Onde nasceu Canindé, na pobreza do sertão Semiárido - reside toda a riqueza dos Ventos Fortes e das Nuvens, sob o azul do céu, sem o aproveitamento que deveria ser feito pelos governantes - para que houvesse saúde e paz para todos os homens. (10 de setembro de 2012). Walter Medeiros: Canindé, você conseguiu contar sua história de forma fenomenal. Que lugar, que casa, que árvore, que chão, que céu, que belo!!! (10 de setembro de 2012) Kaká Nascimento: E eu vou pintar um quadro dessa foto, pois tudo q lembra o sertão nordestino me lembra o meu querido, amado e falecido pai! (16 de setembro de 2012). Juvanilson Santos: Meu Deus, quantas lembranças boas eu recordo agora desta imagem, chega até a cair lágrimas dos meus olhos, foi nesta humilde casa que eu também nasci e me criei, lembro como se fosse hoje, o dia em que você Canindé Soares chegou nesta casa mais seu Louro Camilo e tirou esta foto, eu era criança, hoje muitas coisas mudaram a casa passou por uma reforma, o banheiro de palha de coco e o pé de garrancheira não existe mais. É uma pena as coisas terem que mudar, mas é a realidade da vida, as coisas tem que evoluir. Fiquei sabendo que você veio um dia destes com os seus filhos para mostrar este lugar, eu não estava em casa, mas meu pai me falou. Me orgulho muito ter nascido neste lugar e também é uma honra ter nascido onde você Canindé Soares nasceu também, eu me sinto uma pessoa privilegiada. (17 de setembro de 2012). Wanderley Mattos Júnior.: Que foto sensacional. E que legal você retomar e compartilhar suas origens. Creio que tal qual a árvore fincada em frente à sua casa, que certamente testemunhou seu nascimento, de alguma forma estende os ramos para além da casa, tal qual você, estendeu-se para além, e seguiu adiante, sem, contudo, negar, com orgulho, sua própria origem. Parabéns! (18 de setembro de 2012). Adriana Souto: Como disse Euclides da Cunha “O sertanejo é antes de tudo um forte!” Acho perfeita essa colocação e como você tenho o maior orgulho de ser "sertaneja". Perfeito. (18 de setembro de 2012). Katson Martins: Parabéns Canindé pela sua humildade, sem vergonha de mostrar seu passado. Digno de rei. É com essa sua humildade que cada vez mais Deus tem soprado teu nome. Um forte abraço. (18 de setembro de 2012) NerialbaSinedino:Velhos tempos que éramos felizes! ñ parecia as pessoas não demostravão tanto ódio, quase ñ tinha violência. também nasci no lugar parecido com esse, Saudade!!! (18 de setembro de 2012). 26 Ver: ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. A invenção do Nordeste. 3. ed. São Paulo: Contexto; Recife: FJN, 2006. 42 Elias Dantas: Muito boa essa foto, uma aula de nordeste... (7 de novembro de 2012).27 A fotografia exposta como índice; descrita na fala dos amigos de Canindé, representa o registro de um lugar, mas essencialmente na ordem da impressão, da contiguidade física, funciona como a marca de uma região. Como podemos ler não é necessariamente requerida à semelhança. Pois não é a semelhança que chama a atenção, mas é a impressão que gera a imagem destacada no original. Esse original remete-nos a signos de como o Nordeste emerge poética, política, cultural e cientificamente, ou seja, como as práticas e os discursos o definiram e o incluíram na história. O Nordeste, como nos relata o historiador Durval Muniz de Albuquerque Júnior (2012), nasce e cresce no imaginário nacional associado à ideia de região seca, atrasada, arraigada a valores passados. Chama a atenção na citação acima a impressão em relação à imagem que funciona como um dispositivo discursivo com ideias que se afastam e unem-se de modo variado em uma dialética imagética. Os enunciados direcionam: a “pobreza do sertão semiárido”, a “casa humilde”, a necessidade do “sertanejo ser antes de tudo um forte” para enfrentar a natureza áspera, pelos outros elementos que circunscreve a paisagem. São também relatos que rementem ao patriarcado, o que coloca o pai no centro das relações – existe mais de uma referência à figura paterna, contraditoriamente, denotam saudades. Em tom nostálgico demarca-se a presença de um passado que foi encerrado em prol da “evolução”. Que sertão é esse recortado por Canindé que desperta tais impressões nos colegas do autor? É o sertão Nordestino que, conforme construído, criaria, inclusive, características viris, rudes, másculas em seus habitantes28, traços que privilegiam as representações do masculino, onde até a mulher sertaneja se enrudeceria pelo contato com o espaço; como elucida Adriana Souto na citação ao concordar com Euclides da Cunha e por esse motivo ter orgulho de ser sertaneja, logo, um forte. Os discursos expostos são as marcas do que vemos e que nos forma. O que está antes da semelhança identificada, é o que se vê e o que se diz do que se vê, as contradições, o movimento dialético que dá vida a fotografia. A potência da fotografia está justamente no exposto diante do exemplo citado, no que ela causa, nos sintomas que emerge, nas memórias que acessa, nas enunciações que traz à tona. Nesse conjunto consiste sua resistência enquanto 27 Informações coletadas no perfil do Facebook de Canindé Soares. Disponível em: . Acesso em: 19/05/2016. 28 Ver: ALBUQUERQUE JÚNIOR. Nordestino uma invenção do falo: uma história do gênero masculino. Maceió: Edições Catavento, 2003. 43 impressão; sua “aura”29 traduzida na relação entre a distância sobre o que vemos e o que é a imagem (DIDI-HUBERMAN, 2010). Na perspectiva de Benjamin (2012) a “aura” teria se liquidado com a reprodutibilidade técnica possível à fotografia. Didi-Huberman (2010) em sua releitura coloca que não se extinguiu, mas reside justamente na tensão da imagem, no anacronismo de percebê-la no tempo presente diante de um turbilhão de experiências distintas que marcam através do passado um processo de impressão presente. A impressão estabelecida na imagem fotográfica é a marca que motiva o autor a desprender-se da ideia de estética para sinalizar o culto genealógico, transportando os diversos processos metodológicos e analíticos para o que chama de arqueologia da impressão ou da reprodutibilidade técnica. O que está na contramão da consagrada semiótica ou da leitura iconológica sugerida por Panofsky (1991), que no Brasil foi recentemente readequada para a análise de imagens fotográficas pelo historiador Boris Kossoy (2003, 2009). A fotografia exposta por Canindé Soares percorre a memória construída por simbologias que traçam uma trama singular, estabelece uma realidade em que apenas um olhar não basta para desvendar seu ponto de origem; independente de toda a conjuntura técnica e estética a marca impressa na imagem fotográfica a medida em que circula se renova, traça novos sentidos e experiências alinhados ao culto da imagem simbólica. (DIDI-HUBERMAN, 2010). A visibilidade expressa pela impressão do que seja a região Nordeste é construída através de vários discursos pré-elaborados; o galho favorecido pelo contraste da luz solar racha com sombras o chão seco, distante do asfalto, rendilhado e intrincado aparece como representante em plano privilegiado de uma vida seca, esse é um tipo de interpretação recorrente nas manifestações estéticas e artísticas do sertão nordestino. Um discurso que metaforicamente podemos pensar relacionado intimamente com os movimentos arteriais no qual partindo de uma origem seguem um trajeto, nem sempre contínuo. É um caminho que ultrapassa, corre, distribui, cruza, irriga e até divide temporalmente a cena. Divide, visto que as primeiras imagens que exploravam o chão rachado, os galhos secos e as casas simples divulgadas na imprensa eram argumento central para chamar a atenção da injustiça social ao qual estava acometido esse espaço. 29 Didi-Huberman, historiador da arte, na construção da sua teoria crítica traz para o processo operatório analítico das imagens fotográficas conceitos que de algum modo estariam em desuso, procura ver uma potência de transformação a partir da crise semântica responsável por determinado significante cair em desuso, como por exemplo o de “aura” do Walter Benjamin, “sintoma” de Freud, entre outros, Didi-Huberman (2010, p.201), afirma que é preciso “tentar produzir uma ‘crise’ de palavras – uma crise portadora, se possível, de efeitos ‘críticos’. 44 Mesmo com destaque aos símbolos que representam a seca e a pobreza no sertão em posição de destaque: os galhos da árvore e o chão de areia batida aparentemente rachado no cenário dialogam e escapam aos sentidos de tristeza, miséria e dor. Nas falas apresentadas os elementos que dão ânimo a cena já o vinculam a um espaço de integridade. Ou seja, são falas que se sustentam por meio da retroalimentação executada pela integração dos discursos que recebem, comunicam, posicionam e constituem o recorte. A impressão da fotografia que seria a marca da miséria é informe e se retraduz em seu contrário, na saudade dos valores éticos e familiares. Embora com contraste bem definidos o azul intenso do céu, que toma grande parte da imagem, não incuti a tristeza, o calor dos tons alaranjados não permite que se construa essa ideia. A cor quente é o contraponto à frieza do azul. As formas não se nutrem isoladas em um domínio específico de representação, correspondem a estados sociais contraditórios, são sintomas de um estado de coisas até em tumulto, é o triste que emerge do belo, o pesar pelo que foi abandonado, a fuga do que se acreditava como destino. Continuando, o olhar possivelmente se deslocará da esquerda superior para o lado direito inferior e retornará ao centro. Novamente na casa o contraste da cor quente e crua dos tijolos quase se confunde com a cor da terra em seus arredores, logo, a porta aberta com total ausência de luz, chama igualmente a atenção. Não é momento de entrar, no lado esquerdo podem ser exploradas outros elementos. O animal de pequeno porte é um porco que dá uma dinâmica especial à cena, mais para a esquerda um indivíduo em pé descansa o corpo sobre as lenhas trabalhadas. O solo avermelhado que parece rachado pelo efeito das sombras demarcam um trajeto que coincidentemente finaliza na porta da casa. Popularmente conhecido como chão de areia batida; se trata do solo vermelho-amarelo, solo de ampla distribuição geográfica no Brasil. O cenário poderia ter sido retratado em diferentes pontos do país, mas o desvio no tempo mostra que o que sobrevive e o que é latente na imagem aponta para o Nordeste. Interessante é perceber que a captura da imagem foi feita no ano de 1989, mas as impressões descritas datam de 2012, no decorrer desse período o discurso naturalizado sobre o espaço regional se reafirma na fotografia. Para um dos internautas a visualidade dá “uma aula de Nordeste”. O sentido que traz o discurso “aula de Nordeste” pode nos direcionar de maneira mais simples ao entendimento dessa primeira análise, baseados no do que Didi-Huberman (2010) localiza como o “informe” da imagem, ou a semelhança informe, sendo a imagem que não culmina em destruição, sua forma resiste e faz agir. Vale ressaltar que nessa “semelhança informe” está à potência, o movimento, a sobrevivência, a “aura” da fotografia. O que confirma que a fotografia de Canindé Soares não pertence ao ano de 1989, não representa de modo isolado a infância do autor, mas mesmo assim não está solta no tempo. 45 Antes, é uma imagem temporalmente enquadrada nas relações que envolvem o espaço social por intermédio de arquivos de imagens que preexistem à fotografia e ao próprio autor. Isso porque incorpora elementos hegemônicos e basilares que foram centrais para o processo de formação histórica, cultural e social do espaço representado como região Nordeste; tal qual a identificamos – de modo geral – nos dias atuais (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2003). Em síntese, nas primeiras décadas do século XX a região Nordeste do Brasil começou a ter suas fronteiras desenhadas nacionalmente a partir da ressignificação do imaginário paisagístico em torno do espaço30. Uma das características desse novo recorte é justamente a afirmação e o saudosismo que existe por parte de setores das camadas populares e das elites letradas de um passado que estaria desaparecendo em prol de um presente marcado por relações consideradas efêmeras, superficiais e muitas vezes até degradante (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2003). Esse presente é expresso no plano de fundo com a cidade que aparece praticamente abaixo de todos os elementos; ora, se é a cidade que corrompe os valores, nada mais óbvio do que numa representação espacial com apelo ao passado organizá-la no plano inferior. O passado que vem desaparecendo sob o impacto das relações urbanas contemporâneas em uma estratégia reversa do fotógrafo é construído no plano frontal e distanciado do presente. O discurso fotográfico aponta para um momento em que a reprodutibilidade imagética permitiu que se construísse um discurso objetivo sobre um espaço; um tipo específico de paisagem, recortada culturalmente enquanto Nordeste. Ao mesmo tempo em que disseminava a fotografia enquanto uma técnica essencial para a reprodução de uma verdade, de um fato. Com efeito, é creditada a imagem fotográfica o caráter de representação da realidade, a prova da existência do seu referente. Contudo, o que ocorre nada mais é que a semelhança transbordando na própria evidência, uma rede de saberes e poderes que produzem enunciados e práticas ao mesmo tempo em que nutrem os próprios discursos que os contrapõem. Após essa mirada na fotografia entramos nas possibilidades que o conhecimento em torno da visualização da casa nos proporciona. É uma construção de tijolos, o que a diferenciava das casas vizinhas da época que eram, majoritariamente, construídas com material de taipa. Foi um presente dado ao casal; Terezinha Soares de Lima e Valdemar Pinheiro de Lima, pelo tropeiro e pai do seu Valdemar; Antonio Pinheiro de Lima. A profissão de tropeiro data desde o período colonial e era comum nas cidades do interior do Brasil, se constituia através do deslocamento de indivíduos de negócios feitos no lombo de animais com o objetivo de comprar 30 Ver o historiador Durval Muniz de Albuquerque Júnior, que em seus estudos há muito tempo, explora a invenção discursiva da região Nordeste, procurando capturar os cenários históricos e os modos de apresentação das vozes dos políticos, dos literatos, dos historiadores e dos estudiosos da cultura popular 46 e vender animais e utensílios diversos. O que ajudou a diversificar e a garantir a circulação de bens no interior do país, não só de bens, mas também de notícias ou “causos”, ao circularem levavam para quem encontravam as notícias de conhecidos, amigos, parentes, etc. Era comum aos filhos mais velhos acompanharem os pais tropeiros, esses, geralmente começavam a trabalhar por volta dos 10 anos de idade31. A residência recebida como presente está (até os dias atuais) localizada no município de São Bento do Trairí, no Estado do Rio Grande do Norte. Sobre o local vale a pena destacar que antes era a fazenda São Bento que pertencia a José Paulino de Oliveira Garrote e localizava-se na cidade de Santa Cruz, às margens do riacho São Bento, a fazenda sobrevivia do plantio de algodão e cereais. O espaço foi ganhando corpo com o crescimento de seus habitantes (que eram trabalhadores da fazenda) e tornou-se um pequeno povoado no ano de 1907. Logo, foi erguida uma capela em homenagem ao santo católico São Sebastião, o feito foi intermediado por Dona Francisca, a esposa do fazendeiro que afirmou ter tido uma graça32 alcançada, o santo foi transformado em padroeiro da localidade. Até os dias atuais no mês de janeiro grande parte dos moradores dedicam-se à realização e participação de eventos festivos em torno do santo. Sobre a cidade de Santa Cruz, antes habitada pelos índios Tapuios, pode-se dizer que a mesma iniciou suas atividades econômicas por intermédio do pastoril. Os esforços para tal se desenvolviam nos espaços ribeiros, com destaque ao Rio Potengi e ao Rio Trairí. Em 1831, José Rodrigues da Silva, proprietário da Fazenda Cachoeira na localidade Cachoeira, aliou-se aos irmãos Rochas que eram donos de terras localizadas às margens do rio Trairí e deram início à fundação da povoação de Santa Rita da Cachoeira. José Rodrigues era devoto da santa católica para comemorar o feito e a união entre as fazendas e os interesses próximos impulsionaram a construção de uma capela em homenagem à santa. As casas foram sendo construídas no entorno dessa capela. Antes de ser Santa Cruz a cidade possuiu outros nomes: Santa Rita da Cachoeira, Santa Cruz do Inharé, Santa Cruz da Ribeira do Trairí33 e, por último, Santa Cruz (INSTITUTO DE DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL E MEIO AMBIENTE. 2012). São Bento do Trairí, no ano de 1958, depois de elevado a condição de vila, desmembrou-se da cidade de Santa Cruz ganhando foro de município. 31 Para maior entendimento sobre o universo do tropeirismo no Brasil ver: RIBEIRO, Darcy. O mulo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981. 32 A palavra graça tem distintos significados na língua portuguesa, contudo, como citado no texto refere-se a um tipo de crença em que um indivíduo religioso faz um pedido a um ente divino, no caso da religião católica há um deus ou santos que servem de intermediadores desse pedido ao deus. Ao ter o pedido alcançado diz-se ter recebido uma graça. 33 No ano de 1835, com o nome de Santa Cruz da Ribeira do Trairí, tornou-se distrito pela Lei número 24, de 27 de Março de 1835. Desmembrado do município de São José de Mipibu, no dia 11 de Dezembro de 1876, o distrito tornou-se município do Rio Grande do Norte, passando a ser denominada Santa Cruz. 47 Para o Estado do Rio Grande do Norte a cidade central é Natal, considerando que toda sociedade possui um centro que representa esferas de valores e crenças que a designa. O centro constrói uma ordem a partir de crenças, valores e símbolos responsáveis por regular uma sociedade (SHILS, 1992). Isso acontece por orientação de grupos que possuem habitus que os distinguem pela idade, educação, proveniência étnica, regional ou classe. Podemos entender então que esses grupos contêm os capitais privilegiados para atuarem na organização do centro endossando um sistema central de valores estabelecidos com o que é prioritário na estrutura social demarcando visualidade, porém fluídas, uma vez que alteram-se de acordo com as técnicas envolvidas, as subjetividades e a própria inserção do capital que se impõe sobre os locais, apontando para um percurso territorial que diante das variantes temporais se constituem em espaços diferentes. O centro vai sendo colocado como representacional, também, de outros espaços. Os valores culturais de Santa Cruz se constituíram em centrais para a organização posterior do município de São Bento do Trairí que os absorve enquanto um estrato de ordens e crenças já pré-estabelecidas pelas instituições ou grupos que exercem o poder34. 34 Edward Shils analisa os elementos de consenso que levam à integração de uma sociedade a partir dos conceitos de centro e periferia, debate sobre as propriedades da estrutura (grifo nosso) suas variedade e constituições englobantes que conservam ou alteram as ordens. Ver: SHILS, Edward. Centro e periferia. Lisboa: Difel, 1992. 48 Figura 1 - Localização geográfica: Natal - São Bento do Trairí Fonte: Google Maps (2017). Apenas dois anos depois que São Bento do Trairí se constituiu em cidade, no dia 13 de abril de 1960, nasceu Francisco Canindé Soares de Lima pelas mãos de uma parteira. As parteiras ainda persistem na contemporaneidade, principalmente nas regiões que estão distantes dos centros econômicos, se conserva a partir das experiências que são transmitidas de geração para geração, portanto a sua prática é permeada por simbolismo, crenças e rituais. Dos rituais que envolvem o nascimento através das parteiras, além das técnicas apreendidas no decorrer da vida, estão a confiança entre os envolvidos, essa se estabelece através de diálogos, orações, benzeduras e promessas para que o parto possa ocorrer da melhor maneira possível, sem prejuízos a mãe e ao recém-nascido. Como Canindé era o primeiro filho do casal, foi a primeira experiência da Dona Terezinha com uma parteira, embora houvesse o medo e o receio amenizados pela fé católica, com a possibilidade de se recorrer às promessas. Se o parto corresse bem, Dona Terezinha daria ao filho o nome de um santo. Canindé teve, então, seu nome motivado pela devoção materna assentada na proteção divina ao São Francisco das Chagas, personagem envolvido com questões relativas ao povo sofrido, a paz, a pobreza, a humildade e a um estilo de vida simples. Escolher um santo padroeiro e pedir-lhe distintos tipos de proteções por meio de promessas é uma prática comum no Brasil entre os devotos e fiéis católicos; baseia-se no processo de evangelização por qual o território foi submetido em seu período de colonização, um elemento residual da nossa história. 49 Ao conseguir resolver as causas difíceis, os fiéis agradecem e pagam a intervenção do santo, com esforços e sacrifícios que traduzem-se em pagamentos e em demonstrações explícitas de fé. A atribuição de nomes de santos aos filhos também faz parte dos ritos de fé, demonstra um tipo de valor exaltado. Francisco tem sua inserção social ligada ao culto católico, à luz da tradição cristã. Passa a ser herdeiro da promessa realizada pela mãe que se traduz em uma dívida ao qual se confessa ainda devedor, para pagá-la deve ir referenciar São Francisco caracterizado de vestimentas simples e sem adornos, similar ao do personagem santificado. Não é em qualquer capela ou santuário dedicado a São Francisco das Chagas que essa promessa pode ser paga, Dona Terezinha estabeleceu como critério de pagamento a peregrinação até o santuário localizado na cidade sertaneja de Canindé, estado do Ceará. Lugar do maior santuário franciscano das Américas, polo de uma das romarias mais expressivas no Brasil, o qual reúne uma média de 2,5 milhões de pessoas incentivando o turismo religioso considerado uma das maiores fontes de renda do local. Sobre o meu nome foi uma promessa. E eu tenho uma promessa pra pagar que eu não paguei: lá em São Francisco do Canindé. Nossa, minha mãe fez uma promessa que eu deveria ir vestido de Canindé lá para o Ceará, mas eu nunca vou fazer isso, realmente eu nunca vou fazer isso (informação verbal, 2017)35. O nome é um dos detalhes reveladores da história de um indivíduo, carrega uma carga cultural do habitus familiar, acaba por ser constituir em um aspecto central da nossa condição de ser humano. Isso posto, o nome de Francisco Canindé Soares de Lima está intimamente ligado a uma paisagem de devoção católica já legitimada e amplamente divulgada na atualidade com o apoio do fomento ao Turismo Religioso. Como vimos, no período em que nasceu Canindé Soares a cidade de São Bento do Trairí tinha sido recentemente elevada à categoria de município. Mas, era ainda um espaço rural e de poucos habitantes, que moravam espaçadamente. Parte da infância do nosso repórter- fotográfico, mais detidamente até os sete anos, ocorreu na nova cidade de ares rural. Voltando para infância, eu tenho uma vaga lembrança, minha memória é muito curta (risos), eu consigo lembrar de coisas pontuais, eu morava naquela casinha, eu lembro da janela pra rua, eu lembro de algumas brincadeiras de bola com as poucas crianças, pois ali era um sítio e eu tenho flashes do campo de futebol que nós fizemos. Eu tenho muita lembrança de injeção, por isso o meu medo de injeção, sabe eu tenho medo mesmo de injeção e naquela época era diferente, eu ficava doente. Eu lembro de doenças, de febres, eu lembro que meu pai me levava para Santa Cruz36. 35 Entrevista realizada com Canindé Soares em 28 de março de 2017. Transcrição na íntegra vide apêndice D. 36 Idem. 50 De acordo com Pollak (1992) a memória é um evento, também social, construído coletivamente e levado a mudanças constantes. Sendo essa memória o que transmite os aspectos culturais, os valores herdados, os resultados de fatos vividos individualmente e socialmente. Possui um conteúdo seletivo, o que leva as pessoas a não gravarem todas as coisas na mente, mas sim o que possui um grande grau de importância. O que faz com que a objetividade, a neutralidade e a realidade afaste-se da análise do discurso narrado, no sentido em que o narrador, mesmo inconscientemente, não tem a intenção de informar, mas sim, por meio da memória, eleger aquilo que ele considera importante. Sendo a memória também falha as histórias são modificadas e contadas a partir de interesses presentes. Atrela-se a um sentimento de identificação com o presente em que as emoções preenchem de sentidos os acontecimentos, o que dá, a partir da lógica atual, coerência aos fatos vividos no passado. E no mais, os códigos anulados pela memória acabam tendo um papel importante, alivia o passado, tornando-o descomplexo. Afinal “no que nós indivíduos e grupos nos transformaríamos se nos lembrássemos de tudo? (SERRES, 2005, p. 42) Em termos de infraestrutura com algum tipo de estrutura em termos de comércio, saúde, transporte o que havia de mais próximo era o município de Santa Cruz, mas também com várias restrições. Mesmo se considerando “de família humilde” pelas próprias condições do espaço e pelas posses restritas, podemos dizer que os pais de Canindé ainda gozavam da possibilidade de escolhas. Para seu Valdemar seguir residindo em São Bento seria uma privação de possibilidades, um cerceamento na expansão de capacidades dos filhos, uma ausência de liberdade. Para entender do que se trata a expansão das capacidades aqui citadas e a possibilidade de ampliação das liberdades individuais nos é cara a explicação dos conceitos do Indiano Amartya Sen (2000). Para Amartya Sen (2000, p.26), a liberdade é tema central na análise do desenvolvimento, pois é um dos seus elementos constitutivos. O desenvolvimento está relacionado à expansão das liberdades, das capacidades sociais e da eliminação das privações cotidianas, sejam elas pobreza econômica, carência de serviços públicos, assistência social, assistência médica, entre outras. Nas palavras do autor: “[...] com oportunidades sociais adequadas, os indivíduos podem efetivamente moldar seu próprio destino e ajudar uns aos outros”. A expansão das liberdades dos indivíduos tem a ver com o desenvolvimento humano e com a condição de se atuar socialmente e escolher caminhos que se considera mais propício para a sua vida (SEN, 2000). Essa era a liberdade que seu Valdemar almejava, poder sair de um 51 espaço que já dependia de distintos tipos de capitais valorizados em nossa sociedade, porém dificultava o acesso a esses capitais. O transporte era escasso, as estradas precárias, havia o desprezo estatal e a ausência de meios que favorecessem aos que viviam da agricultura de subsistência reunir recursos para uma sobrevivência digna era fato. Essas são as privações sociais no sentido dado por Amartya Sen, que significa a negação da expansão das capacidades, o que exprime uma falta de liberdade. Mesmo que não haja carência por renda, o indivíduo experimenta uma série de barreiras em relação ao acesso aos instrumentos que são valorizados na sociedade contemporânea, comprometendo, muitas vezes, sua interação satisfatória com a esfera social (SEN, 2000). A união dessas privações foram os principais fatores que direcionaram seu Valdemar e Dona Terezinha, no ano de 1967 a abandonarem o local, nas palavras de Canindé: “meu pai saiu de São Bento fugindo da seca, ele vivia da agricultura”37. Os agricultores na década de 1960 ainda sentiam os efeitos da grande seca da década de 1942, que assolou o interior norte- rio-grandense e penavam sob a crise ocorrida no setor algodoeiro- o que favoreceu o processo de migração de milhares de pessoas para a capital do estado. 2.1.2 A chegada na capital O itinerário escolhido foi a capital do Estado do Rio Grande do Norte, local em que já vivia parte de familiares de Valdemar. Nesse momento em que a família decidiu se deslocar do interior para a capital, entre as décadas de 1960 a 1970, a população de Natal saltou de 160.253 habitantes para o número de 264.379, de acordo com os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Um momento de ebulição urbana nessa cidade. Muitas coisas começaram a mudar, entretanto as opções de moradia para casais e grandes famílias de trabalhadores eram restritas. Restava a essas classes sociais viverem nos bairros periféricos e enfrentar todos os problemas do desordenamento espacial que acompanha a ocupação desses lugares. É exemplo a Zona Oeste da cidade de Natal, região que concentrou grande parte da população migrante de baixo poder aquisitivo e que se configura como um local que até hoje preserva uma cultura de segregação social e espacial. Nesse espaço, especificamente no Bairro de Dix-sept Rosado, alojou-se a família de seu Valdemar; nesse período composta por três filhos, além do primogênito Canindé, tinha, também as duas irmãs Marluce Soares de Lima e Valéria Soares de Lima. O sítio no município de São 37Idem. 52 Bento do Trairí não ficou para trás somente na distância, mas também em termos de memória. Canindé Soares passou a criar uma relação vital com a cidade de Natal, o que nos direciona ao que Paul Ricoeur (2007) afirma sobre a relação entre a memória, o corpo e o espaço. Para esse historiador francês: Não nos lembramos somente de nós, vendo, experimentando, aprendendo, mas das situações do mundo, nas quais vivemos, experimentamos e aprendemos. Elas implicam o próprio corpo e o corpo dos outros, o espaço onde se vive, o horizonte do mundo e dos mundos, sob o qual alguma coisa aconteceu. [Em suma], fenômenos mnemônicos [...] implicam o corpo, o espaço, o horizonte de mundo ou de um mundo (RICOEUR, 2007, p.57). As nossas lembranças trazem consigo aqueles que fizeram parte das situações lembradas. Recordamos não somente das próprias histórias, mas de todas as situações que dela fizeram parte, tanto em relação àquilo que nos pertence, como em relação aos elementos que estamos associados. Traduzido nas palavras de Canindé Soares: Eu não, eu lembro do sítio, eu tenho uns flashes do sítio, lembro do roçado que o meu pai plantava algodão, lembro que lá foi onde levei uma queda de jumento quando eu tinha seis anos e eu fiquei com trauma de montar em jumento e o restante das lembranças são aqui em Natal, em Dix-Sept Rosado, ali é aonde terminava a cidade de Natal, era saindo de lá que nós íamos para o alecrim, para feira, para a Ribeira, para vender as carnes (informação verbal, 2017)38. A relação que envolve o lugar, com a memória e o corpo é marcada pela passagem do tempo, pelas experiências vividas, pelas impressões, pelo ponto de origem que não permite o engano: nem de tempo, nem de lugar. Quando se afirma a recordação “de ter gozado ou sofrido” na carne, “neste ou naquele período de minha vida passada”; ou de ter, “por muito tempo, vivido nesta ou naquela casa, daquela cidade; de ter viajado para tal parte do mundo”, pois “é daqui que eu evoco todos esses lá onde eu estava” 39. O corpo é o referente espacial primordial da nossa memória dotado de subjetividades. Evoca a aproximação ou o afastamento dos lugares. O corpo infantil de Canindé, com cerca de oito anos de idade, depois de instalados na capital, iniciou o processo de trabalho no auxílio ao pai que segundo o fotógrafo “quase diariamente se deslocava a pé do bairro DixSept Rosado para Ribeira. “Ele com um cesto com carne de dois bodes nas costas para vender nas oficinas do bairro e eu com uma bacia com duas 38 Idem. 39 Entrevista feita pela repórter Dani Pacheco a Canindé Soares para o Jornal de Hoje, no dia 14 de fevereiro de 2013. Disponível em . Acesso em 23 de dez. 2016. 53 buchadas na cabeça”40. Uma distância de aproximadamente cinco quilômetros, provavelmente percorrida em uma hora de caminhada ou mais. As lembranças da infância de Canindé Soares destacam a necessidade e a presença do trabalho no cotidiano: Eu cheguei em Natal ainda criança, eu cheguei em Natal com 7 anos, eu tenho que confirmar com o meu pai o ano que nós viemos para Natal, mas eu acho que foi em 1967, acho que eu tinha uns sete anos. O que eu lembro, na verdade, é que nós mudamos muito e na segunda ou terceira morada a nossa casa era em frente ao campo de futebol e eu nunca chutei uma bola porque o meu pai usava a gente pra trabalhar. Meu pai matava a criação, se não me engano três vezes por semana, ele matava dois bodes e duas ovelhas e a minha mãe fazia o tratamento da buchada e eu levava em uma bacia na cabeça lá para Ribeira; meu pai comprou um cesto para eu ajudar, eu tinha entre nove e dez anos e trabalhava para ajudar na renda. Na rua onde eu morava também tinham feirantes nos dias de sábado, eu ia também para ajudar os feirantes e as minhas irmãs ajudavam em casa, apenas uma porque a outra é deficiente.41 A figura paterna condiciona a prática do trabalho, bem como da responsabilidade no cotidiano infantil de Canindé Soares, o que muitas vezes não era visto com satisfação pelo filho. Mesmo que, através das entrevistas realizadas, se torne evidente a admiração pelo pai, é possível verificar que a afirmativa se dá na figura materna enquanto representação de amizade e compreensão. O pai traduz a ideia da labuta, o desejo de contestar, de mudar a trajetória futura. A minha mãe foi muito amiga, eu era tudo pra ela e vice-versa, ela tinha muito orgulho de tudo que eu fazia. Sempre quem me apoiou foi a minha mãe, inclusive ela foi a única pessoa que soube que eu pedi baixa no quartel, meu pai não sabe até hoje que fui eu, não imagina que eu pedi baixa. Eu queria levar uma vida de artista a minha mãe me apoiava em tudo (risos), meu pai até hoje acha que a Marinha me deu a baixa. Na cabeça do meu pai sair de um emprego era ser vagabundo (risos), ele falava: ‘isso é coisa de vagabundo [...]’(informação verbal, 2017).42 Para Bourdieu (1996), o pai ocupa o lugar e o instrumento de um "projeto" (ou melhor, de um conatus) inscrito nas disposições herdadas e que se transmite inconscientemente na sua maneira de ser e por sua maneira de ser. Da mesma forma, precisamente, por ações educativas orientadas para a perpetuação da linhagem. A condição do herdeiro é a de perpetuar o conatus, aceitar fazer-se instrumento dócil do "projeto" de reprodução em que a herança bem-sucedida se concretiza na imposição paterna, compreendida como o assassinato do pai que ocorre por meio da sua superação. A superação paterna associa-se a conservação do projeto familiar na ordem das sucessões. A identificação do filho com o desejo do pai como anseio de ser continuado produz o herdeiro sem história. É nesse contexto que Canindé Soares reforça o seu 40 Entrevista feita pela repórter Dani Pacheco a Canindé Soares para o Jornal de Hoje, no dia 14 de fevereiro de 2013. Disponível em . Acesso em 23 de dez. 2016. 41 Entrevista concedida por Canindé Soares em 28 de março de 2017 para fins de realização da pesquisa doutoral. 42 Idem. 54 caráter transformativo, impõe uma micro resistência mediando às condições futuras de autenticidade, o que se inicia através de diversos questionamentos: O meu pai é muito católico, ele vai para a igreja todos os dias, ele assiste à missa na televisão ele escuta a missa pelo rádio todos os dias. Eu sou católico, mas eu tenho alguns questionamentos, eu sempre pensei assim: de não me apegar a religião, às vezes até eu falo brincando: graças a Deus eu não tenho religião. Ele briga porque a gente não reza. Ah, tem dia que eu sinto muita saudade dele, eu estou louco de saudade dele, preciso visitá-lo. Mas meu pai é muito ranzinza, ele parece com o seu Lunga. Você conhece o seu Lunga? O seu Lunga é um senhor que mora no Ceará, em Juazeiro, uma pessoa muito ranzinza, ele inclusive ficou famoso por causa disso, o meu pai parece com ele. Já a minha mãe é uma pessoa muito simples, muito humilde, ela tinha um orgulho de mim imenso [...] (informação verbal, 2017)43. A religiosidade não está nas práticas diárias do fotógrafo, mas o espírito religioso católico marca os discursos fotográficos do mesmo e o constrói. Segundo Bourdieu (1996), a incorporação e sedimentação levam ao fechamento e, ao mesmo tempo, a abertura de possibilidades de ação futura para os indivíduos, delimitando, desde já, não só a formação individual, mas também quais papéis podem ser desenvolvidos por ela na vida coletiva. Esse é o processo relacional entre o habitus na sua forma criativa (com seus aspectos de constituição individual e coletiva) e nas estruturas sociais que o circunscrevem. Essa relação dialética entre posição e disposição indicou, no caso de Canindé Soares, o que repercute em suas ações de autenticidade formada por imagens que subvertem, mesmo que momentaneamente, sua estratégia de utilização. Em uma visão pessoal sobre as amizades de infância, Canindé ressalta que essas foram relações reduzidas, as quais são justificadas pelos distanciamentos atribuídos à sua condição social menos favorecida economicamente. Para esse informante, a sua origem simples foi fator de afastamento e da possibilidade de ter um grupo mais amplo de amigos. Momentos de solidão trazem embates pela personalidade tímida, considerada como simples, pela discriminação das outras crianças em se aproximar dos meninos considerados mais “humildes”: Eu não tinha muitos amigos, eu era uma criança tímida e afastada. A minha timidez era talvez pela simplicidade, por eu ser uma pessoa pobre, por eu ser uma pessoa discriminada, eu não tinha muitos amigos, eu me lembro de um amigo que a gente estudou, fiz a oitava série, fiz o primeiro ano, fiz o segundo ano com ele. Ele era muito meu amigo, era de uma família classe média e me tinha muita atenção, o nome dele era Eduardo. E depois o Eduardo desapareceu, quando nós terminamos o estudo nós nos encontrávamos sempre, depois que ele desapareceu ficamos muito tempo sem nos ver e eu consegui encontrar ele muito tempo depois em Guamaré. Lá em Guamaré ele estava trabalhando em um posto de gasolina, ele era gerente e está muito rico, porque casou com uma pessoa muito rica de lá, hoje ele é crente me levou lá, me apresentou 43 Idem. 55 a família toda. Sabe ele é único dessa minha época de infância que eu lembro, que ficou a lembrança, já os outros eu não tenho contato (informação verbal, 2017)44. Quanto aos estudos de Canindé Soares esses seguiram com algumas dificuldades até o ensino médio. A principal dificuldade enfatizada foi a distância de mais de três quilômetros entre a residência e a Escola Municipal João XXIII, bairro do Alecrim em Natal, local aonde atualmente situa-se o Viaduto do Baldo. A zona que rodeia o atual viaduto do Baldo nos finais de 1960 e início da década de 1970, período em que esse fotógrafo começou a caminhar pela localidade, já estava concatenada a lógica moderna. Natal não era mais conhecida como cidade “dorminhoquenta”, os efeitos pós Segunda Guerra Mundial, marcado, principalmente, pelo maciço investimento financeiro feito por parte das Tropas Aliadas, que instalaram a base área dos Estados Unidos na cidade; pela sociabilidade dos militares norte-americanos nas ruas da capital, a própria infraestrutura implantada com a mão de obra e técnica desses militares balizou-se como um período de superação aos resquícios coloniais. Esses resquícios coloniais ainda resistiam em alguns espaços e foi o salto necessário para a cidade mergulhar na lógica do que se instituía como progresso, já que a primeira metade do século XX foi um período que em termos de infraestrutura moderna (como estradas, energia elétrica, transporte, etc.) foi bastante restrito. Um momento marcado por marchas e contramarchas em seu processo de consecução. Na lembrança de muitos natalenses, a grande guerra foi o período que despertou a cidade de um sono secular. São afirmações encontradas nas narrativas de vários moradores, nas produções acadêmicas, além de outras fontes que tratam do assunto. Nesse aspecto, já existe uma bibliografia ampla sobre o período.45Em função disso, várias melhorias urbanas aconteceram na cidade. Destaca-se o Aeroporto de Parnamirim, como a obra principal do período, que favoreceu o fluxo de mais pessoas em Natal (SMITH JÚNIOR, 1993). A capital, de fato, se insere de forma mais intensa nos acontecimentos mundiais e passa a vivenciar, mesmo que pelas vitrines ou com certa distância os meios de comunicação, o aumento da população, as transformações de hábitos, entre outras experiências. Canindé Soares viveu um processo de absorção de toda essa nova lógica em que a cidade estava imersa. Os quilômetros caminhados para chegar até a sua escola o fez transitar pelo centro agitado do comércio com novos prédios, ruas mais amplas, aterramento de rios, como o do próprio riacho do Baldo. O menino que saiu do interior está em frente ao movimento, aos burburinhos de pedestres, as buzinas de carros nas ruas, ao barulho de avião e de aeromodelos, 44 Idem. 45 Para conhecer o contexto da Segunda Guerra Mundial em Natal ver: Smith Júnior (1992). 56 bem como encontra-se com a rapidez do novo espaço encantador e ameaçador. Entretanto, ele começou a construir a ideia da cidade em seu rigor conceitual (SEVCENKO, 1992). Observa- se, portanto, que tal fato é repercutido nas obras desse fotógrafo, levando em consideração as suas próprias preferências em registrar metrópoles por meio de imagens aéreas. Os atores sociais estão inseridos espacialmente em determinados campos (BOURDIEU, 1996). A posse de grandezas de certos capitais (cultural, social, econômico, político, artístico etc.) e o habitus de cada ator social condicionam seu posicionamento nos diferentes espaços do campo. Mesmo o capital econômico sendo determinante para a construção da posição espacial no campo social, as posses do capital cultural e do capital social se fazem estratégicas. Os sujeitos ocuparão espaços mais próximos quanto mais similares forem à quantidade e a espécie de capitais que detiverem. Em consonância, os tipos de capitais que Canindé Soares passou a adquirir foram construindo internalizações e disposições (habitus) que favoreceram a conquista de novos espaços. Nas palavras de Bourdieu: O espaço de posições sociais se retraduz em um espaço de tomadas de posição pela intermediação do espaço de disposições (ou do habitus); ou, em outros termos, ao sistemas de separações diferenciais, que definem diferentes posições nos dois sistemas principais do espaço social, corresponde um sistema de separações diferenciais nas propriedades dos agentes, isto é, em suas práticas e nos bens que possuem. A cada classe de posições corresponde uma classe de habitus produzidos pelos condicionamentos sociais associados à condição correspondente e, pela intermediação desses habitus e de suas capacidades geradoras, um conjunto sistemático de bens e de propriedades, vinculadas entre si por uma afinidade de estilo (BOURDIEU, 1996, p 21). Se formos comparar Natal aos maiores centros econômicos brasileiros nas décadas de 1960, 1970, 1980, quiçá até os dias atuais, pontuaremos várias discrepâncias estruturais. As apropriações dos espaços, os sentidos, as transformações, mesmo chegando a diversas partes do mundo, nem sempre estão em sincronia. Nas capitais mais afastadas da circulação frenética dos grandes centros econômicos, longe das maiores capitais, os processos desenvolvem-se mais tardiamente. No entanto, essa distância não impediu que os moradores desses espaços também se vissem atingidos por um turbilhão de mudanças que transformavam e inseriam novos sentidos no espaço de sua vivência. Os encontros e desencontros proporcionados pelas mudanças nem sempre bem-vindas servem de inspiração para o foco que o fotógrafo elabora em suas imagens fotográficas. É um conjunto de visualidades e experiências que mesmo possuindo fronteiras – sejam ela da timidez, do recato, dos valores, dos próprios limites em relação aos acessos de bens – tem linhas irregulares e fluídas que as ultrapassam. Mais do que isso, para ultrapassar barreiras, Canindé 57 teve que aprimorar seu cabedal de contatos e de comunicação; precisou receber as influências do exterior, as ideias, os trabalhos e as pessoas. E o que perpassa essas fronteiras é modificado pelo simples fato de ultrapassar; é o processo de assimilação do autor que a partir daí criou um novo produto. As lembranças tão frágeis e reticentes de sua infância, das paisagens que ficaram para trás, ganham novas cores e contornos na imagem do fotógrafo, mostram a força dos ecos dessa infância na sua obra e na sua vida. Podemos perceber que existem ecos do passado que por mais laborioso e difícil que tenha sido são relembrados. Nessa perspectiva, no trecho abaixo é exposta parte dessa trajetória marcada pelo discurso: Eu casei e fui morar na Zona Norte de Natal, como eu gostava de estar junto da família vendi a casa do meu pai que se localizava no bairro de Dix-Sept Rosado e comprei para ele uma casa próxima a minha. Comprei uma casa perto da minha para a gente ficar juntos. Sabe essa coisa de gostar de ficar junto, então, éramos vizinhos: eu, meu pai e minha irmã e ficamos muito tempo morando vizinhos até que meu pai decidiu voltar para o interior. Ele queria voltar para as origens, aí nós nos afastamos um pouco, aí para visitá-lo ficou mais difícil, eu não ia sempre, apesar de ser perto, é uma distância de 210 a 220 km, mas eu só ia visitá-lo uma vez por mês, as vezes de dois em dois meses, ficou mais difícil o contato. Essa é a relação que a gente sempre teve, de gostar de ficar juntos, sempre perto e hoje eu moro vizinho a minha irmã, olha que coisa boa! Eu só tenho duas irmãs, uma é deficiente e ficou no interior e a outra é essa, que é casada e que eu tive a felicidade de comprar uma casa vizinha dela. Isso pra mim é muito bom, eu me sinto feliz em estar perto dela, o nome da minha irmã é Marluce, mas a minha mãe chamava ela de Eliene. Essa é uma história engraçada, depois que ela foi registrada alguém próximo colocou nome da filha, também, de Marluce, uma outra criança, minha mãe não gostou nada de outra criança se chamar Marluce e passou a chamar a minha irmã de Eliene. Já sobre a minha avó lembro (a materna) que ela era muito próxima, muito brincalhona, muito gaiata, eu sinto muita falta dela. O terreno do meu pai em Dix-SeptRosado era muito grande e ele deu uma parte para a minha avó construir (informação verbal, 2017).46 Canindé sustenta que o sertanejo é forte, haja vista os valores passados que constroem o homem no presente e no futuro. Essas são as lembranças contadas com otimismo pelo fotógrafo, as quais remetem a instituição familiar, aos pais, as irmãs, a avó próxima e toda a rede de relação basilar para a sua vivência, bem como aos familiares que saíram da pequena cidade em direção a capital. Esse tipo de relação de proximidade entre os familiares faz parte de um conjunto de valores que são caros a Canindé, ele tem em conta que o construiu e o moldou a partir da dignidade. Na fase adulta, na cidade de Natal, ele conseguiu reunir em torno de si os pais e as irmãs. Moravam todos próximos e com o falecimento de sua mãe no ano de 2014, o pai de Francisco 46 Entrevista concedida por Canindé Soares em 28 de março de 2017 para fins de realização da pesquisa doutoral. 58 Canindé decidiu retornar ao interior, onde está nos dias atuais com a filha mais nova. Com residência fixa em Natal, vizinho da irmã mais velha, Canindé vive em união estável com a sua segunda companheira Deborah Kalina Souza de Andrade, nesse caminho tomaram para si o cuidado e a responsabilidade pela vida e educação da menina Ana Paula de 3 anos. Da primeira união, quando Canindé Soares era ainda bem jovem (com 20 anos de idade), nasceram dois filhos: Renato Freire Soares de Lima, que atualmente está com 36 anos de idade, e Thiago freire Soares de Lima (33 anos) - ambos nascidos no Rio de Janeiro. Soares morou na capital do Rio de Janeiro pelo período de 7 anos, servindo a Marinha do Brasil como Fuzileiro Naval, o objetivo do deslocamento foi fazer um curso para subir da patente de soldado para a de cabo. A relação com o Estado do Rio de Grande do Norte, mais detidamente, com a capital, é de grande aproximação. Nesse local, Canindé viveu o período de sua adolescência e da fase adulta; onde apreendeu distintos estímulos; entrou em conflitos; negociou forças e relações sociais a fim de construir as viabilidades para a sua trajetória de vida. Nesse sentido, Natal se configura como a cidade que o transformou na medida em que ele transitava pelas ruas, pelos bairros, pelas instituições, ou seja, a cidade que o elaborou como uma das mais importantes figuras da fotografia atual em seu Estado. Nas palavras do profissional a relação com o Estado. É uma relação de paixão, tanto que eu fui pro Rio de Janeiro, uma cidade grande, e eu voltei pra cá. Voltei pra desenvolver o meu trabalho, o Rio de Janeiro é uma cidade bonita, talvez a mais linda e mesmo assim eu voltei, voltei por essa paixão que eu tenho. Essa paixão pelo Rio Grande do Norte eu tenho desde criança, veja na minha infância nós fizemos algumas mudanças de lugares e eu lembro que eu sentia muita saudade, eu sentia saudade do local. Tem a ver com a falta que eu sinto dos amigos, dos conhecidos, saudade da relação de convivência, tudo isso é muito forte, é uma questão de paixão; é um sentimento que muda de pessoa para pessoa, tem gente que é diferente que vai embora e esquece47. 2.2 CANINDÉ SOARES: O FOTÓGRAFO Figura 2 – No centro dos contatos Fonte: Acervo particular da Jornalista Renata Silveira (1997) 47 Idem. 59 Nesse tópico dissertaremos sobre as normas de socialização e as relações de poder baseadas nas concepções de Nobert Elias, que se movimentam através dos aspectos econômicos, político e social. Destarte, acreditamos que os elementos teóricos integradores da sua sociologia processual que criticam os conceitos reificados de indivíduo e sociedade – baseados em heranças deterministas sobre a influência da natureza nos espaços – sustentam nosso argumento sobre Canindé Soares, inclusive sobre a ideia de autenticidade que relacionamos ao profissional. Isso porque abrange “as teias de interdependência ou figurações de muitos tipos, tais como família, escolas, cidades, estratos sociais ou estados” em que as pessoas estão envolvidas (ELIAS, 2005, p. 15). Na análise realizada sobre as figurações em processo na sociedade da corte, o autor não autonomiza os indivíduos, os coloca em valor de interdependência aos demais e ao contexto geral. Entretanto, mantém o valor que esses têm enquanto “indivíduos singulares”, que podem ser analisados “como sistemas próprios, abertos, orientados para a reciprocidade, ligados por interdependências dos mais diversos tipos e que formam entre si figurações específicas, em virtude de suas interdependências” (ELIAS, 2001, p.51). Nobert Elias (1995) coloca ainda, em outro momento da sua obra, que a compreensão da vida de um indivíduo resulta no alcance dos anseios fundamentais que ele tentou satisfazer, no modo como as realizações destes anseios determinam se a vida fez ou não sentido. Não concebe os anseios como predefinidos e estáticos. Eles se modificam na medida em que o indivíduo convive com outras pessoas. Com quatro décadas de experiência na fotografia, mais de vinte anos na área jornalística, Canindé Soares hoje atua como fotógrafo freelancer para a mídia, empresa do ramo publicitário local e nacional. A trajetória profissional lhe rende prestígio, além de vários capitais sociais como o título de cidadão natalense entre vários prêmios. Suas redes de relações envolvem fotojornalistas e jornalistas com representatividade significativa na área, em âmbito nacional. No Estado do Rio Grande do Norte chama a atenção à influência, o respeito e à legitimidade conquistada em seu campo. Até os dias atuais, esse fotógrafo se mostra totalmente entusiasmado com o que faz profissionalmente e não pretende interromper o seu trabalho, uma vez que ele direciona os segmentos que mais lhe atraem e envolve-se em distintas possibilidades. A trajetória na fotografia para Canindé Soares não foi pautada em heranças familiares, muito menos nos acessos a certos capitais como saberes e tecnologias específicas. Ao contrário, a fotografia enquanto técnica/arte apareceu na vida do profissional como oportunidade de 60 sobrevivência. Uma oportunidade estratégica, visto que lhe daria possibilidades de ousar, de criar, de fazer, de arquitetar. Mesmo que o profissional tenha que conviver, em seu cotidiano, com um tempo exaustivo de trabalho, não tem que cumprir uma jornada fixa. Mesmo que passe noites inteiras em claro, é ele o proprietário do seu modo de produção, detentor das etapas do seu trabalho; sua jornada de trabalho também lhe pertence; oscila no meio de momentos de disciplina e lazer; entre foco e criatividade; se constrói no interior da razão e emoção; cercado por ousadia e competência, entre a técnica e arte. Essa é a capacidade de estabelecer até que ponto os anseios que envolvem sua profissão estão em seu controle (ELIAS, 1995). Os conceitos desenvolvidos por Elias (1995) destacam que a capacidade para estabelecer ou não os anseios pessoais, está relacionada ao contexto no qual o indivíduo se insere, o que (de acordo com o prestígio ou status) favorece o estabelecimento do grau de autonomia conquistado. O autor destaca as possibilidades que se abrem para o posicionamento dos indivíduos de acordo com as suas origens, o que envolve a luta, a coragem e os recursos utilizados como ferramentas de conquistas e superação em prol de suas obras (ELIAS, 1995). A vida de Mozart ilustra nitidamente a situação de grupos burgueses outsiders numa economia dominada pela aristocracia de corte, num tempo em que o equilíbrio de forças ainda era muito favorável ao establishment cortesão, mas não a ponto de suprimir todas as expressões de protesto, ainda que apenas na arena, politicamente menos perigosa, da cultura. Como um burguês outsider a serviço da corte,Mozart lutou com uma coragem espantosa para se libertar dos aristocratas, seus patronos e senhores. Fez isto com seus próprios recursos, em prol de sua dignidade pessoal e de sua obra musical (ELIAS, 1995, p. 16). De acordo com Elias os anseios de Mozart referem-se à sua condição de outsider. Ele estava fora da corte, não era um inserido no ambiente que experiência e desse modo sofria grandes pressões sociais. Em relação ao profissional, muito do seu trabalho dependia do favor e dos gostos alheios, assim a sua subsistência estava condicionada a uma rede de relações pertencentes a outro grupo social; no caso de Mozart: o da corte. 2.2.1 Sobre fotografia, fotógrafos e o campo de atuação em Natal À exemplo da fotografia profissional, as relações sociais estabelecem-se na concorrência associada a uma cumplicidade objetiva e visam interesses comuns ligados à sua posição no campo de produção simbólica. É lícito supor que seu campo de atuação é similar ao que Bourdieu (1997b) destaca sobre o campo jornalístico. Podemos pensar a fotografia em analogia com a área mais ampla: o jornalismo. Bourdieu (1997b) coloca que esse é um espaço 61 social estruturado com relações diversas composto por dominantes e dominados – cada um empenha a força que detém e que define sua posição no campo e, consequentemente, suas estratégias constituindo assim a estrutura do campo. Um campo é um espaço social que também se configura como um campo de lutas para transformar ou conservar esse campo de forças. Cada um define seu lugar no campo, conforme sua concorrência com as outras forças, definindo a sua estratégia. Seguindo esse pensamento, se faz mister descrever, em síntese, o campo e os agentes da fotografia em Natal em seu processo de inserção e expansão para que possamos visualizar a localização de Canindé nesse espaço e imaginar as direções traçadas para as suas consequentes conquistas. A fotografia enquanto um artefato cultural relaciona-se com o seu produtor e com o mundo de relações que o circunscreve; representa-o e, desse modo, as apreensões que o construíram socialmente. Dessa maneira, a imagem dá visualidade aos códigos culturais que permitem o conhecimento do autor; bem como destaca as condutas determinadas, os valores exaltados, as crenças escolhidas, as representações prioritárias, os aspectos simbólicos predominantes socialmente, culturalmente e politicamente. A perspectiva em que captou, nos primeiros momentos de sua existência, o fragmento do que se considerava a realidade foi com ímpeto divulgado como um marco da imagem técnica. Nesse momento coadunava-se às transformações que ocorriam no século XIX, na medida em que conciliava a utilização da máquina, a rapidez e a precisão na captação de imagens apreendidas de um plano do real. A origem do fazer fotográfico ligada a noção de semelhança com o existente captado por intermédio do seu mecanismo foi marcado pela ideia de “espelho do real”, como tão bem explicita Dubois (1993, p.27, grifo nosso): Trata-se aqui do primeiro discurso (e primário) sobre a fotografia. [...] Embora comportasse declarações muitas vezes contraditórias e talvez polêmicas, o conjunto de todas essas discussões, de toda essa metalinguagem nem por isso deixava de compartilhar uma concepção geral bastante comum: quer seja contra, quer a favor, a fotografia nelas é considerada como a imitação mais perfeita da realidade. E, de acordo com os discursos da época, essa capacidade mimética procede de sua natureza técnica, de seu procedimento mecânico, que permite fazer uma imagem de maneira ‘automática’, ‘objetiva’ ou quase ‘natural’, sem que a mão do artista intervenha diretamente. A sociedade abraçou a fotografia como um sinônimo de imparcialidade e acurácia científica, negando, em grande medida, qualquer proposta estética, ideológica e mesmo a interferência humana em seu resultado final. A obsessão pela verdade era intrínseca a ideia do progresso que significava a desaparição da alma em prol do crescente domínio da matéria. Fato que significava a renúncia da estética do belo e da criação para escolher a verdade proposta pela 62 ciência material. A fotografia era a escolha do que poderia ser visto e reproduzido ao invés do que pode ser sonhado e criado. Contudo, mesmo diante das circunstâncias ideológicas do surgimento da famosa máquina oitocentista, como esclarece Dubois (1993) aflorou uma acalorada discussão sobre o fato dessa se constituir em um aparato mecânico ou em uma arte. Benjamin (2012, p. 97) indica que a evolução da fotografia para desempenhar os papéis sociais e utilitários foi tão expressiva que, logo após a sua invenção, a maioria dos pintores de retratos em miniatura se transformaram em fotógrafos. “Não é por acaso que o retrato era o principal tema das fotografias” (BENJAMIN, 2012, p. 174). As primeiras imagens fotográficas remetem à captação dos mistérios imanente ligados aos rostos fotografados, que sugeriam algo externo às próprias fisionomias. Afinal, pela primeira vez, uma máquina criava imagens que só eram possíveis pelas mãos do indivíduo e de realidade nunca vista anteriormente (BENJAMIN, 2012). A novidade foi se estabelecendo, despertando em seu início o desejo, suspense e contradições. Das ambivalências em relação ao daguerreótipo48, Dubois (1993) aponta o senso contraditório do teórico Baudelaire, ao mesmo tempo em que denunciava a imagem fotográfica como parte de um gosto vulgar das multidões, pediu a Nadar e a Carjat – pintores de miniatura que transformaram-se nos primeiros fotógrafos –, que fizessem vários retratos seu (BENJAMIN, 2012). A contradição de Baudelarie é um demonstrativo do êxtase causado pelos grandes símbolos e elementos da modernidade: como o daguerreótipo.49A realização das imagens monocromáticas e melancólicas, ao mesmo tempo em que encantava por sua veracidade, atemorizava por seu aspecto congelado e sombrio. Ao mesmo tempo em que se traduzia como um símbolo de status entre as camadas abastadas da sociedade que podiam possuir um desses objetos. Era uma das novas formas de ver e absorver o mundo que constituiu uma (re)construção nos olhares e no estabelecimento de novas práticas, todavia, restritas a quem detinha o método artesanal do seu processo. Restrita inicialmente a um grupo seleto, essas práticas não deixavam de indicar o objetivo claro de documentar e explicitar o mundo, de representá-lo da melhor maneira possível em suas variáveis espaciais, sociais e materiais. E, somente uma maneira de recepção da fotografia ao público viabilizaria essa lógica de disseminação. Superando assim a existência 48 Antigo aparelho fotográfico inventado pelo físico e pintor francês Daguerre (1787-1851) responsável pela produção de uma imagem fotográfica sem negativo. Informação disponível em: < https://www.infoescola.com/fotografia/daguerreotipo/>. Acesso em: 25 mar. 2018. 49 Para um maior entendimento sobre a sensação de êxtase e de choque causado pelas transformações do mundo moderno ver: SEVCENKO, Nicolau. Orfeu extático na metrópole: São Paulo, sociedade e cultura nos frementes anos 20. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, p. 17-88. 63 única em prol da existência serial. Logo, a fotografia se traduziu em uma experiência coletiva, de consequências sociais e políticas significativas, por seu alto grau de massificação, sendo produzidas, reproduzidas e visualizadas cotidianamente. Já no final do século de sua invenção, a fotografia foi amplamente difundida como ilustração e linguagem. Em sequência a criação dos filmes substituíveis em rolos negativos capazes de gerar vários positivos coadjuvou a criação das câmeras pessoais, colocando a fotografia mais próxima das massas humanas modernas. O acesso visual aos objetos, paisagens e práticas, fazia com que esses objetos ou locais, ao serem mirados pelo público, se tornassem irresistíveis e desejados (BENJAMIN, 2012). A burguesia abraçou essa forma de representação imagética com certo fascínio, uma vez que possibilitava a expansão de seus ideais e ajudava a firmar o desenvolvimento da classe. A ligação fiel que a fotografia tem com o objeto original passa a ser atravessada por manipulações que vão além dos recursos da câmara fotográfica. Os retoques, as fotomontagens, a luz e a interferência nos negativos criaram artifícios que atendiam aos desejos dos compradores. Esses fatores colocavam os fotógrafos detentores dessas técnicas de tratamento da imagem em vantagem diante da concorrência que começava a se estabelecer. Até os fotógrafos mais puristas renderam-se aos procedimentos de manipulação em favor dos interesses econômicos. Nesse entendimento, a fotografia chegou ao Brasil pouco tempo depois em que foi notificado e legitimado o seu invento, em janeiro de 1840, na cidade do Rio de Janeiro, trazida pelo abade Louis Comte. Sob o título de “Notícias Científicas” a chegada do equipamento de daguerreótipa foi notificado pelo também Jornal do Commercio. “Esse acontecimento tornaria a cidade uma das primeiras a serem fotografadas em todo o mundo” e seu aparecimento se encadeou aos projetos do II Império que então se iniciava (PERROTTA, 2011). O imperador desenvolveu um gosto pessoal pela fotografia. Ele procurou associar a técnica aos projetos de construção de uma identidade nacional, que ao mesmo tempo em que exaltava os aspectos naturais do país, procurava demonstrar as imagens do desenvolvimento material e social como seguimento dos ideais europeus. A predileção pela técnica servia de índice para o gosto geral da elite brasileira da época. O projeto incentivador de uma civilização aos moldes europeus e o destaque da natureza local eram, respectivamente, a formulação ideológica da nação brasileira. O desenvolvimento da ordem e do progresso eram impulsionados e constituídos pelo Estado. A base territorial e material necessária para nutrir o Estado em seus objetivos era concebida pela natureza incorporada, dominada e destacada na tentativa de estabelecer uma identidade nacional. O uso ideológico da fotografia para esse fim é esclarecedor nesse período por exercer provas visuais 64 caracterizadas como verídicas. “A autonomia da imagem fotográfica, permite transplantes de seus conteúdos para os mais diferentes e por vezes, inusitados contextos” (KOSSOY, 2009, p. 76). Com a instauração da república associada ao discurso da cidade moderna que passou a sugerir práticas antes impensadas no espaço urbano, a fotografia criou raízes e expandiu seu cenário de atuação. A cidade do Rio de Janeiro, onde o engenheiro Pereira Passos (1902-1906), influenciado pelas ideias dominantes de modernidade, promoveu mudanças significativas – transformando-a na cidade modelo, digna de ser fotografada e divulgada em cartão-postal para servir como ícone em referência urbana para outras cidades do Brasil – recebeu vários fotógrafos alemães, italianos e norte-americanos que buscavam o enriquecimento propiciado pelo desenvolvimento econômico e transformações urbanas. Convém observar que a primeira e maior demanda refere-se aos retratos de pessoas feitos em séries e conhecidos como cartes de visite, compostos em uma cena elaborada. Com as cópias em mãos o cliente divulgava sua imagem idealizada, dando-as como lembrança aos amigos e parentes, tornando-se usual a troca de fotografia entre as pessoas. Na lógica que concerne às cidades, outros locais, de acordo com as “suas próprias possibilidades, vivenciam a atmosfera das reformas urbanas, mesmo que em pequenas doses [...]. Essas intervenções eram tanto mais intensas quanto mais fortemente as cidades se inseriam no mercado capitalista internacional” (ARRAIS, 2008, p. 66). Destarte, o meio mais potente de divulgação das novidades era a fotografia, em desenvolvimento dos seus processos técnicos, simplificando e reduzindo os altos custos da técnica. No dia 8 de junho de 1849, na cidade de Natal, Rio Grande do Norte, “chega o primeiro fotógrafo: Pacheco. O dia é conjectural” como afirma Luís da Câmara Cascudo (1980, p.434)50. Sobre o trabalho de Pacheco pouco se sabe, o que podemos afirmar é que a cidade Potiguar teve sua demanda inicial atendida pelos fotógrafos itinerantes Max e Bruno Bougard, irmãos que chegaram ao Brasil pela capital pernambucana, principal polo econômico do Nordeste. O grau de desenvolvimento urbano alcançado por Recife na época era convidativo aos fotógrafos, mas esses já viviam em grande concorrência. Na disputa pelo mercado de fotografias os irmãos e sócios Bougard resolveram estender as suas atividades pelo interior e litoral. Para isso, buscaram vários estados do Norte e Nordeste. Em Natal, localizaram seu ateliê na Rua Treze de Maio, nº 38, atual Rua Princesa Isabel, no Bairro da Cidade Alta. O ateliê era um espaço 50 Ver em CASCUDO. Luís da Câmara. História da cidade do Natal. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira: Instituto Nacional do Livro; Natal: EDUFRN, 1980. (Coleção Retratos do Brasil, volume 145). p. 434. 65 importante para a encenação do registro, lá existiam vários objetos que eram utilizados para se criar um cenário e valorizar o ambiente em que se inseria o personagem a ser fotografado. Em 1897, a sociedade dos irmãos foi desfeita e Bruno Bougard (1859-1930),51 passou a oferecer sozinho os seus serviços fotográficos ao público de Natal52. O fotógrafo estabeleceu laços com o governador Alberto Maranhão, irmão do fundador do jornal “A República”, onde Bougard por anos, também fez sua propaganda. No ano de 1904, último ano do seu governo, Alberto Maranhão solicitou o registro da capital ao atelier do fotógrafo. O caráter documental da fotografia revela o objetivo de retratar a nova dinâmica com foco às ações sistematizadas pelo governo, em busca de uma cidade com salubridade e higiene, inicia-se nos espaços urbanos de Natal. O princípio ordenador de ideias e valores que se impunham a época começava a tracejar a capital natalense, claro que de acordo com as possibilidades locais (ARRAIS; ANDRADE; MARINHO, 2008). As fotografias de Bougard apontam o limite histórico da cidade colonial e o início do processo de modernização. Bruno Bourgard foi o um fotógrafo itinerante clássico, prosseguiu com suas viagens pelo interior do Rio Grande do Norte em busca de clientes abonados capazes de pagar seus serviços. Retratava pessoas e equipamentos urbanos que se formavam nessas pequenas cidades ou vilas. Muitas de suas atividades estiveram ligadas à igreja. Era convidado pelas arquidioceses para documentar os eventos, geralmente, no período das festas das padroeiras, momento de aglomeração de pessoas. Da cúpula das igrejas conseguia abarcar as procissões. Esse tipo de registro pode ser encontrado em diferentes acervos dos municípios do Rio Grande do Norte53. Bougard tinha um ateliê em Recife e era nesse espaço que ele revelava todas as suas fotografias54. Bougard é um destaque para a história do Rio Grande do Norte, estrangeiro e itinerante, foi o autor dos primeiros registros fotográficos do Estado. Porém, o Rio Grande do Norte não deixou de ter entre seus nativos um fotógrafo. No mesmo período, primeiras décadas do século XX, dos filhos da terra que se dedicaram a fotografia temos os registros de Manoel Gomes de Medeiros Dantas (1867-1924). Um dos homens mais influentes do seu período, considerado um grande intelectual. Bacharelou-se em Direito pela Universidade de Recife, tendo antes 51 Provável data de nascimento/morte do fotógrafo. Em: The German Eye in America Photographers: List of German-born photographers. Disponível em: < http://www.sallylarsen.com/SL_Web_GE_fotogs.html>. Acesso em: 15 mar. 2017. 52 Conforme nota colocada pelo fotógrafo no Jornal Diário do Natal em de 2 agosto de 1898, p.2. 53Informações obtidas na palestra História da Fotografia no Rio Grande do Norte ministrada pelo Fotógrafo publicitário, escritor, odontólogo e pesquisador da história da fotografia do Rio Grande do Norte, Giovanni Sérgio. 54 Informações fornecidas por Edgar Ramalho Dantas, neto de Manuel Dantas, para esta pesquisa, em 19 de agosto de 2017. 66 desenvolvido estudos em latim, francês, inglês, retórica, aritmética, geometria, história e filosofia. Ocupou importantes e estratégicos cargos públicos: foi juiz e procurador geral do Estado. Dedicou-se à remodelação do sistema educacional local, deu aulas no colégio Atheneu, escreveu contos, participou com assiduidade do jornalismo, foi redator d’A República. E, conforme afirma Miranda (1981, p. 10), “pelo amor ao registro dos fatos e das coisas da cidade que habitava e pela qual tinha o mais extremado afeto”, foi fotógrafo55. O afeto que Manoel Dantas tinha pela cidade, contudo, estava aportado no futuro, em expectativas do que essa poderia vir a ser quando as antigas tradições fossem substituídas pela nova lógica capitalista, industrial e mercadológica, quando atingisse o auge das transformações que vinham sendo implementadas nas grandes cidades. “Não parecia pensar duas vezes em enterrar o passado e preparar a mente dos natalenses para a chegada da modernidade” (MARINHO, 2008, p. 35-39). Contraditoriamente, foi com a conservação de registros do passado, por meio da fotografia, que deixou para as gerações futuras um dos seus maiores legados: os registros imagéticos e únicos de um tempo ainda circunscrito pelas tradições coloniais. Muitas técnicas fotográficas que se desenvolveram na Europa eram lidas por Dantas nas literaturas em inglês e francês. Leituras que para o aspirante a fotógrafo eram primordiais, visto que os métodos utilizados para obter a fotografia exigiam conhecimentos especializados, principalmente da química. Possivelmente, pela época que viveu em Natal, pela dinâmica da cidade, pela afinidade com a fotografia e pelas relações que teve56, Dantas se encontrou com Bougard e possivelmente desenvolveu algum tipo de aproximação que pode ter contribuído de maneira positiva em relação ao seu conhecimento e autonomia desenvolvidos nos usos do equipamento que utilizava, sendo que o primeiro foi um verascópio. O verascópio continha um sistema ótico de captação da imagem com uma caixa acoplada onde ficavam as placas de vidro 55 O arquivo fotográfico de Manoel Dantas tem como responsável o seu neto Edgar Ramalho Dantas, membro do IHGRN. De acordo com informações de Edgar, em entrevista feita para essa pesquisa no dia 19 de agosto de 2017, existe hoje uma média de quase 3.000 mil lâminas fotográficas. Manuel Dantas deixou dois grandes baús com uma quantidade aproximada de 10.000 lâminas de fotografia, que antes ficaram na responsabilidade do seu filho Silvino, após a morte de Silvino os baús foram abandonados no quintal sobre as agruras do tempo, expostos a chuva e ao sol. Os baús transformados em moradas de ratos foram resgatados por seu filho mais novo. Na década de 1970, o arquiteto João Maurício interessado em desenvolver um projeto sobre a história da arquitetura de Natal, nesse mesmo período restaurou e revelou parte desse acervo. Além, dos objetos arquitetônicos as fotografias reúnem personagens que faziam parte da elite local, amigos de Manuel Dantas, destacavam também rituais importantes da época, eventos, os tipos de vestimentas, modos de sociabilidade, entre outras informações que podem ser lidas. Uma curiosidade é a foto de Manuel Dantas em seu jardim, junto com a sua esposa Dona Chiquinha, rodeados por crianças, ambos com roupas de dormir. De acordo com Edgar os vizinhos iam até a casa de Manuel somente para vê-lo usando o pijama. Grande parte do acervo foi perdido. 56 Dantas e Bougard viveram praticamente na mesma época, em Natal os grupos abastados frequentavam o mesmo ambiente, Bougard fotografou para Albuquerque Maranhão com quem Dantas mantinha relações, por esses indícios acreditamos em algum tipo de relação estabelecida entre esses homens para trocas sobre a fotografia. 67 negativas para ser sensibilizadas. A produção fotográfica de Manuel Dantas era, inicialmente, revelada em Recife, já no ano de 1910, de posse de materiais necessários, passou a revelá-las no porão da sua casa. No início do século XX, já existia uma grande camada de aficionados pela fotografia no Brasil, porém de classe social bem definida. O uso do equipamento fotográfico nesse período, mesmo nos locais mais desenvolvidos, exigia investimentos elevados e esbarravam em problemas de ordem material. Essas dificuldades, na sua época, só podiam ser superadas pelas classes mais abastadas. O custo do equipamento e a carência de materiais fazia com que esses equipamentos fossem armazenados como verdadeiras joias. Giovanni Sérgio destaca que, entre os residentes de Natal (na época de Manoel Dantas), ele era o único possuidor do equipamento. Em função disso, agrupava em sua casa vários amigos, formava uma plateia para apresentar tudo o que fotografava. As reuniões contavam, também, com um aparelho ótico de projeção conhecido como lanterna mágica ou estereoscópico57, no qual eram exibidos paisagens e retratos (Figura 03). A diversão ficava por conta dos olhares lançados às exposições de mulheres desnudas e sensuais. “Dantas fazia essas fotografias e isso morre com ele, acabou pelo moralismo em Natal” 58. Figura 3- Aparelho usado por Manoel Dantas Fonte: Acervo Giovani Sérgio (2012). 57O estereoscópico foi um passatempo popular entre as classes abastadas em inícios do século XX. Era moda a coleção de pares de fotos para a observação em três dimensões. A tomada das fotografias simultaneamente com afastamento similar aos olhos humanos propiciava a representação da imagem com a sensação de profundidade tridimensional. 58 Informação dada por Edgar Ramalho Dantas, neto de Manoel Dantas em entrevista feita para essa pesquisa no dia 19 de agosto de 2017. 68 Figura 4- Autorretrato59 Fonte: Arquivo Giovanni Sérgio, fotografia de 1909, restaurada em 2012. Esses são personagens pioneiros e responsáveis pelos primeiros registros fotográficos das primeiras transformações urbanas que chegaram até Natal: Bruno Bougard e Manoel Dantas. A fotografia os imortalizaram na história de Natal, mas esses homens que dividiram os mesmos espaços viveram lógicas opostas. Das grandes metrópoles às províncias, Bougard foi o fotógrafo comerciante que, preso nas teias do capitalismo já instaurado, precisou migrar e itinerar para viver “melhor”. Dantas foi o fotógrafo formador de opinião, não buscou sobrevivência econômica na fotografia e sim o interesse de usá-la como aliada técnica e objetiva dos seus ideais. Apresentou o tempo que viu nascer, documentou os espaços que se modificaram. No contra fluxo dos flâneurs,60 que brotam nesse período, passeia nas ruas em busca de um foco espetacular de multidão (SILVA, 2012). A fotografia nas décadas iniciais do século XX esteve restrita a uma camada social de significativo poder aquisitivo. Essa foi uma situação que se estendeu por décadas, ultrapassou a primeira metade do século XX, dependendo do local em que se estava no Brasil, mesmo com a ampliação e com a popularização dos equipamentos em grande parte do ocidente, a técnica continuou sob o domínio das classes médias em diante. Na cidade de Natal, duas décadas depois de Manoel Dantas, destacaram-se alguns fotógrafos, entre eles: João de Britto Namorado, Emílio Vale, João Alves de Melo, Luiz Grevy Silva, José Seabra, Jaeci Galvão e, logo em 59 Nessa imagem, apresentam-se Manoel Dantas e Dona Maria Francisca em frente ao espelho. Manoel Dantas está acionando com o dedo indicador o dispositivo. 60Conceito aplicado por Benjamin para representar a experiência da modernidade no homem, impregnado pelo tédio. Ver BOLLE, Willi. “A metrópole: palco do flâneur”. In:______. Fisiognomia da metrópole moderna. Representações da história em Walter Benjamin. São Paulo: Editora da USP, 2000. 69 sequência, Lolita do Rêgo - a primeira profissional da área a atuar profissionalmente em Natal61. Seabra na década de 1940, fotografava as pessoas que faziam fila na praça pública, sua atuação inspirou o jovem Jaeci Galvão que ocupa lugar de destaque na memória fotográfica potiguar, com apenas 15 anos começou o seu trabalho na fotografia, com uma das máquinas mais modernas e cobiçadas da época: máquina de fole, com médio porte, de origem alemã a Voiitlender Baby Bessa (SILVA, 2012, p. 111). Figura 5- O fotógrafo Jaeci Galvão Fonte: Acervo de Jaeci Galvão (1950). Para seguir adiante nesse empreendimento foi preciso o gosto pelas leituras que direcionavam a técnica, precisou empreender buscas para ser capaz de desenvolver sua arte dentro de uma determinada estética e de técnicas necessárias para a revelação de seus negativos. Conduziu também estudos na língua inglesa, que também foi essencial para a aquisição de material fotográfico junto aos militares norte-americanos que estavam em Natal no período da Segunda Mundial, e para a leitura das principais revistas fotográficas. Jaeci acompanhou a evolução da fotografia e dos profissionais e ressalta que desde quando começou a fotografar era necessário o profissionalismo: Hoje, tiram uma foto rapidamente, tem o seu valor... hoje, não existe mais a cobrança de antigamente... antes, o trabalho era duro. Nunca tive um professor, comprava livros, revistas, aprendia a mexer nas câmeras, tudo sozinho. Eu fazia todo o processo: 61 Informação apresentada por Giovani Sérgio, filho de Lolita do Rêgo, em 19 agosto de 2017. 70 fotografava, comprava as fórmulas, as químicas, o filme, ia para o laboratório revelar, pendurava o filme para secar, fazia até a limpeza do laboratório. Um trabalho demorado levava horas... comecei comprando com os americanos, depois comprava no Rio de Janeiro nas viagens que eu fazia. 62 À medida que a cidade de ruas estreitas, pavimentada de paralelepípedo e com prédios simples foi sendo ocupada pelos militares e civis norte-americanos, nesse momento de guerra, novas práticas foram sendo imersas e entre elas a fotografia. Francisco Lira63 ressalta que no período em que Jaeci – como a maioria dos fotógrafos que hoje são lembrados como destaques na cidade – iniciou sua carreira, as coisas eram difíceis. Antes de popularidade e do conforto profissional, os fotógrafos iniciaram suas trajetórias profissionais percorrendo o colégio Atheneu e a Praça Pedro Velho, atual Praça Cívica. Nesse espaço captavam imagens de famílias em passeio, de casal de namorados e jovens que queriam registrar seus momentos de lazer. Nas palavras de Lira: A entrada de Jaeci na fotografia local demorou um pouco. Mesmo pertencendo a duas famílias de tradição ele foi fotógrafo lambe-lambe na Praça Pedro Velho. Com o tempo e a sua visão comercial a vida lhe deu conforto e status. A loja que teve durante muitos anos na João Pessoa era moderna e tornou-se referência de equipamentos fotográficos e a casa da Rodrigues Alves, em que vivia era um bangalô de rico. [...] Ele tornou-se proprietário do que havia de melhor para se fotografar. Nos anos 70 tive alguma aproximação com Jaeci e lembro que estava sempre com a Nikon no banco do seu Landau (informação verbal, 2012).64 A fala de Lira localiza meados do século XX, destaca como a profissão de fotógrafo foi ganhando espaço na cidade. Entretanto, como podemos perceber, poucos nomes incluem-se nesse contexto. Jaeci Galvão foi um nome de grande relevância, atuante até o início da década de 1990, paulatinamente foi diminuindo seu trabalho, passando muito da sua produção e clientela para os filhos e netos, atualmente, por restrições de saúde decorrente da própria idade, não atua mais. Porém é lembrado na mídia local, recebe homenagens entre seus pares e é legitimado como um dos grandes nomes da fotografia no decorrer do século XX. O triunfo 62 O primeiro, dos vários diálogos que estabelecemos com Jaeci Galvão, em 05 de novembro de 2011. Após os contatos por telefone vieram às visitas a residência. A primeira visita, foi realizada em 20 de abril de 2012. Somaram-se um total de 07 visitas, nos quais 04 foram acompanhadas pelo seu filho Jaeci Galvão Junior. No decorrer da pesquisa, entendemos que algumas limitações recentes impostas a sua vida, em prol de sua saúde, fizeram com que o retorno às lembranças do passado fosse repleta de saudade e, consequentemente, silêncio. Jaeci, além de fotógrafo, exercia também atividades sociais e esportivas intensas. Hoje leva uma vida pacata, com restrições. Para mais informações ver: Marques (2013). 63 Francisco Lira é odontólogo por formação (1980 – UFRN), filho das famílias tradicionais da capital, é muito conhecido, tem um grande interesse pelas fotografias, principalmente as de paisagem, exerce a profissão de Produtor e editor de guias de Turismo. 64 Entrevista concedida por Francisco Lira em 25 de junho de 2012. 71 profissional se deu arraigado ao avanço urbano e populacional da cidade, concomitante ao apoio familiar e ao acesso aos bens necessários para tal65. No contexto geral, Natal experimentou uma grande intensificação na vida social e econômica dos seus habitantes, principalmente nos serviços de lazer e cultura. Entretanto, com o final da guerra grande parte dos militares que avolumaram o comércio local deixou pouco a pouco a cidade, permanecendo aqui somente os que necessitavam prestar serviços especiais na base aérea. Conforme Smith Júnior, existia uma “grande preocupação por parte do governo norte-americano com relação à Cidade de Natal, uma vez que com a retirada das tropas americanas a cidade poderia sofrer um colapso. Contudo, devido aos eventos posteriores nada foi feito” (SMITH JÚNIOR, 1992, p. 158). Sobre essa época o próprio Jaeci considera um detalhe: “você via dez americanos e um brasileiro. O comércio era todo voltado para as forças armadas americanas”66. Natal teve que enquadrar-se ao esvaziamento ocorrido com o fim do conflito militar, com a retirada do capital estrangeiro. A cidade ficou marcada por novas fisionomias decorrentes da movimentação promovida pelos militares que aqui residiram e ajudaram a delinear novas práticas sociais, comerciais e urbanas. É exemplo à obra da Avenida Circular que liga os bairros centrais às praias urbanas e à edificação da Estrada Parnamirim Road. Essas construções transmudaram os espaços de Natal, motivaram a transferência do comércio elitista que se situava na Ribeira, para a Cidade Alta, Tirol e Petrópolis. Além, precisaram espaços de segregação na capital com o deslocamento dos estabelecimentos comerciais. Um exemplo é o Grande Hotel que fora um importante símbolo social do Bairro da Ribeira e entrou em declínio a partir do final da Segunda Guerra Mundial (SOUZA, 2008). Nos anos de 1960 os estabelecimentos de prestígio comercial e social praticamente abandonaram a Ribeira em direção à cidade alta. A Avenida Rio Branco era o ponto principal de circulação de mercadorias para a classe abastada em Natal e Jaeci acompanhou essa transformação, instalou a sua loja na esquina da Avenida Rio Branco com a Rua Coronel Cascudo, conhecida popularmente por “Beco da Casa Régio” e, posteriormente, por “Beco do Jaeci”. Sobre esse deslocamento o fotógrafo destaca: 65 Sobre o destaque de Jaeci Emerenciano Galvão, é de conhecimento público, existe um material significativo de domínio público na web, matérias sobre o profissional em arquivos de jornais locais, certificados de reconhecimento pelo trabalho dado por membros do poder público e, legitimando sua importância nesse campo, recentemente, fomos convidados pelo Governo do Estado do Rio Grande do Norte, juntamente, com a Fundação José Augusto para fazer uma palestra sobre Jaeci Emerenciano Galvão, no evento: História e Memória da Fotografia Potiguar. Para mais detalhes sobre a trajetória do fotógrafo ver: Marques (2013). 66 Entrevista concedida por Jaeci Galvão em 2003 (ARAÚJO, 2003, p. 187). 72 Nós vimos uma mudança nesses dois bairros, naturalmente, naquela época a Ribeira teve uma vida bastante agitada com vários atrativos. Essa mudança que foi sentida trouxe, inclusive, a necessidade de acompanharmos. Eu saí da rua Dr. Barata, alto da loja Paulista, para a Avenida Rio Branco, ali no Grande Ponto, com Coronel Cascudo. E naquela época o Reginaldo Teófilo montou uma loja do lado e eu tinha a foto do outro lado... Inclusive foi chamado de Beco do Jaeci. A Coronel Cascudo era conhecida como o Beco do Jaeci67. Para Jaeci, as transformações que ocorreram na capital potiguar, tanto na economia, nas práticas sociais, como no traçado urbano da cidade, foram promissoras. Já na década de 1970, Jaeci era, senão o maior nome da fotografia Potiguar, o mais comentado fotógrafo. O seu empreendimento comercial era o preferido da classe alta natalense, considerado um ícone de beleza e de diversidade em variadas tecnologias, referência em equipamentos cinematográficos e fotográficos, seus negócios iam além da fotografia. Esse foi também o período em que deu aporte para o seu filho abrir seu ponto comercial, também, no mesmo seguimento. Jaeci aos poucos afastou-se da atuação de fotógrafo profissional, priorizando o lazer com os amigos, as atividades esportivas, os eventos sociais e se dedicando também ao mandato de Comodoro que exerceu durante quase toda a década de 1980 no elitizado Iate Clube de Natal (1981/1983 – 1983/1985 – 1985/1987). No período em que Canindé se direcionou para a fotografia, os acessos já eram mais amplos no contexto de Natal, tendo em vista que não é nada fácil para um jovem de origem simples atuar nesse campo com destaque. Ainda é um mercado excludente, quando priorizada a qualidade do material e a própria captação de clientes aptos a pagar pelas mais distintas possibilidades dadas por meio da apreensão da técnica fotográfica. No mais, já existia na cidade nomes conhecidos e de prestígio no campo da fotografia pelas relações estabelecidas ou por parentescos com pessoas influentes no campo, como o caso dos filhos de Jaeci. Vale ressaltar que, até os dias atuais, filhos e netos de Jaeci ainda atuam em Natal nos mais diversos campos da fotografia, com clientela privilegiada e destaque no campo da fotografia (SILVA, 2012). 2.2.2 O outsider e a construção de possibilidades O processo de inserção de Canindé Soares na fotografia é singular pela necessidade de superação da origem espacial e da classe social. As condições objetivas de sua vivência não facilitaram uma configuração de privilégio no campo profissional, se pensarmos de acordo com os meios indicados por Bourdieu. Origem simples, com recursos econômicos restritos, iniciando sua carreira como autodidata, afastado do convívio de fotógrafos de prestígio, distante 67 Idem. 73 dos debates que envolviam técnica e a estética fotográfica, é praticamente impossível imaginá- lo, nesse momento inicial da profissão, sendo legitimado e reconhecido em sua atividade. Diante da realidade de Canindé Soares em seu ambiente profissional podemos interpretá-lo enquanto um outsider, por não ter recebido as influências básicas que o direcionassem às trajetórias mais simples para o alcance de status e sucesso. O fotógrafo não teve uma herança genealógica que lhe favorecesse a inserção num espaço privilegiado. Nesse aspecto podemos entender que ele é “alguém de fora”, suas origens escapam aos principais habitus que a sociedade respalda para os acessos ao prestígio e ao triunfo em seu campo de atuação. Não havia nas bases desse fotógrafo capital econômico ou cultural que o introduzisse diante dos grupos específicos capazes de favorecer a fortuna. De fato eram poucas as chances desse indivíduo se afirmar em seu campo de atuação profissional, mas como um outsider ele conseguiu implantar-se. Grande parte dos fotógrafos do período em que Canindé Soares iniciou sua carreira veio de grupos economicamente privilegiados, podemos entendê-los enquanto estabelecidos, com acesso a capitais direcionados à fotografia e o seu meio. A condição de Canindé foi construída por intermédio de sua vivência na capital do Estado. A mudança para a cidade fez com que os estímulos absorvidos o impulsionassem para uma trajetória de determinação, de construção de possibilidades e de libertação de uma realidade anterior. O choque que a cidade proporcionou lhe muniu de um arsenal de atitudes que o conduziram a realização de um campo, em que preferiu o embate, à omissão; o movimento a resignação. No que tange ao modo que coloca Sevcenko (1992), o choque é o grande elemento da modernidade, da cidade grande, porque a cidade traz surpresas, choca, causa medo, proporciona ao indivíduo a certeza de que tudo é incerto. Tudo parece transitório, um olhar nas grandes cidades não se fixa, porque tudo está sendo transformado. A paisagem está mudando a todo tempo e com as transformações surgem às novas possibilidades. A cidade de Natal é a contraposição à casa natal, um choque com o objeto, com a construção residencial por décadas intacta. Na cidade as pessoas transitam, os carros desaparecem, as construções mudam a cada momento. Cenário em que Canindé foi colocado em situação de instabilidade profunda comparada ao período anterior. Esse repórter fotográfico vivenciou em sua infância o desenraizamento, a percepção de um mundo instável. A mudança é uma das maiores lembranças de Canindé: “Parece que eu não tenho memória, eu tenho uma vaga lembrança, minha memória é muito curta [...], o que eu lembro na verdade é que nós 74 mudamos muito e na segunda ou terceira morada nossa casa era em frente ao campo de futebol”68. O estado de mudança o faz ansiar e favorece a reconstrução dos fatos. Desse modo nosso profissional, Canindé vivenciou um estado de êxtase (SEVCENKO, 1992), que foi ordenando novos valores percebidos através das experiências e dos novos saberes adquiridos na prática cotidiana e nas instituições. Nesses espaços, esse fotógrafo buscou o início do processo formativo com os cursos do Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial (SENAC), no Bairro da Cidade Alta em Natal, que tem como objetivo capacitar e conectar as pessoas para atender as demandas exigidas pelo mundo do trabalho. Logo, começou o percurso do trabalho, não mais acompanhado pelo pai. Os seus novos trajetos lhe conferiram autonomia, contatos e lhe transformou em cidadão potiguar, natalense, carioca, nacional e global. Canindé teve acesso às práticas fotográficas nesses ambientes, ao passo que o registro visual começou a marcar as suas atividades, acompanhando-o. Os assuntos sobre a fotografia, como observaremos, de algum modo, sempre estiveram relacionados a um forte componente pessoal. Passou a documentar uma realidade que construiu em seu cotidiano como possibilidade de ampliação de horizontes. Era o ano de 1977, e o jovem Canindé estava com 17 anos de idade. No bairro do Alecrim, zona central da capital, ele conseguiu o primeiro emprego, sendo uma espécie de vigilante e zelador em uma loja de carros. Organizava os automóveis e, após o horário de trabalho, tinha o seu tempo livre, conseguindo assim interagir com a vizinhança, com os transeuntes. Nesse momento, lhe chamou a atenção um indivíduo que sempre passava em frente à loja de carros com uma caixinha na mão. Sem demora Canindé descobriu que se tratava de fotografias. Nos relatos desse repórter fotográfico aquelas fotografias lhe causavam muita curiosidade, ele não entendia muito bem o que eram as imagens, mas procurou saber o que significava. Também, sem ter muitas informações, o rapaz que trabalhava na entrega dessas fotografias apenas comentou que entregava “fotos” para um estúdio que ficava em um bairro próximo. Canindé não sabia o porquê, porém, sentiu muita vontade de entregar aquelas fotografias. A empresa ao qual o rapaz se referia era o Studio fotográfico BlowUp69, com edifício na Rua Ulisses Caldas, no Bairro da Cidade Alta para aonde o comércio elitista de Natal que antes 68 Informações coletadas na entrevista realizada com Canindé Soares no dia 28 de março de 2017 para fins de desenvolvimento desta Tese. 69 Informação apresentada por Canindé Soares em entrevista realizada com o fotógrafo para a disciplina de Comunicação e Artes Visuais do curso de Comunicação Social da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Publicada em 27 de maio de 201 no canal YouTube. Disponível em: . Acesso em 28 de dez. 2016. 75 situava-se no bairro da Ribeira já havia migrado tendo como ponto principal a Avenida Rio Branco, cortada por ruas de grande importância, como a própria Ulisses Caldas. De acordo com o entregador de “fotos” pertencia ao filho do fotógrafo Jaeci70 - como visto um dos mais atuantes e influentes fotógrafos do estado. O empreendimento era uma sociedade entre três jovens fotógrafos: Fred Galvão – filho de Jaeci Galvão, Lauro Maranhão e Rildécio Medeiros – jornalista conhecido em Natal/RN. Jaeci Galvão com sua situação econômica abastada era proprietário de uma grande loja na Avenida Rio Branco, referência estadual em materiais fotográficos e cinematográficos o que facilitava, sobremaneira, o acesso dos jovens empreendedores aos materiais mais sofisticados. Foi nesse estúdio com o filho de um dos nomes mais conhecidos da fotografia natalense do século XX, o qual Canindé carinhosamente chama de “Mestre Jaeci”, que o jovem se aproximou do seu objeto de trabalho. Ao conseguir seu intento de trabalhar nesse Studio, Canindé passou a observar os sócios em atuação. Esse fotógrafo recorda que eles entravam em um ambiente fechado para fazer as fotografias de dimensão 3x4. Em sua concepção, o que via parecia ser improvável. Perguntava- se: “Meu deus o que esses ‘caras’ fazem lá dentro, vão para lá, se escondem e quando voltam, voltam com essas fotografias, lá dentro é tão escuro” (informação verbal, 2017)71. Essas eram as impressões da mente entusiasmada de Canindé Soares. Ele acreditou por algum tempo que nesse tipo de processo existia um tipo de magia. Nas palavras de Soares: “E essas perguntas são perguntas de menino, era uma curiosidade, pôxa eu ficava muito curioso, eu achava que aquilo ali era uma mágica” (informação verbal, 2017)72. Quanto mais aumentava a sua curiosidade, mas se aproximava da sala que acreditava mágica. Porém, os sócios não deixavam que ninguém ultrapassasse a porta da câmara escura. Vê-los trabalhar era improvável, conservavam todo o cuidado sobre aquele processo, ainda misterioso para o adolescente. Na época já havia um número maior de fotógrafos atuando no Estado. Antes, a técnica se encontrava nas mãos de 5 ou 6 profissionais73, nos finais da década de 1970 a fotografia circulava nas mãos de centenas, embora fosse um número considerado reduzido. Havia, ainda, o receio entre os sócios que cada vez mais o modo do fazer fotográfico se expandisse. O que lhes aumentaria a concorrência e, provavelmente, lhes podariam alguns privilégios em termos de atuação no mercado. 70 Para mais informação sobre o fotógrafo e o período ver: MARQUES, Sylvana. Centelhas de uma cidade turística nos cartões-postais de Jaeci Galvão (1940-1980). 2012. 194f. Dissertação (Mestrado em Turismo, desenvolvimento e Gestão). Universidade Federal do Rio Grande do Norte, 2012. 71 Entrevista concedida por Canindé Soares em 28 de março de 2017, para fins de desenvolvimento desta Tese. 72 Idem. 73 Para mais informações sobre esse campo profissional no período citado ver: Silva (2012). 76 O Studio BlowUp atendia a uma demanda significativa de trabalho e Canindé era responsável pela entrega das fotografias das colações de grau da UFRN que esses fotógrafos cobriam. Eram imagens em Preto e Branco e em tamanho de 18 por 24 cm. Como geralmente acontece, quanto mais podavam a aproximação do adolescente daquele espaço, mais o estímulo em descobrir o que acontecia por trás daquela porta aumentava. A atividade de observar nesse local o envolvimento dos donos com a fotografia despertou a vontade de Canindé Soares em explorar esse segmento. Contudo, não era apenas a fotografia que Canindé observava, os jovens donos do laboratório pertenciam a um grupo social privilegiado na capital natalense, eram filhos de indivíduos conhecidos e respeitados, estudaram nos colégios tradicionais. O próprio Fred Galvão, por intermédio do pai, tinha uma rede ampla de amigos. Os sócios frequentavam o Iate Clube de Natal, do qual o pai do Fred Galvão era Comodoro; ainda era sócio do aeroclube, dono de aeromodelo; conhecido por sua coleção de carros de luxo, recebia em sua casa, localizada em um dos pontos mais nobre da capital, artistas que despontavam na cidade do Rio de Janeiro. Desse modo, os jovens empresários tinham acesso, através de familiares e de relacionamentos próximos, a vários capitais valorizados na nossa sociedade. O campo em que estavam inseridos os seus grupos sociais de convívio, as relações profissionais e os seus habitus contribuíram para o destaque profissional e social da equipe e vice-versa. Isso tudo não passava despercebido pela mente ativa de Canindé Soares, o jovem menino que saiu do interior e que chegou à capital se deparando com distintos estímulos frequentes em uma capital em seu período de transformação, de apropriação frenética de símbolos modernos. A apropriação de diversos tipos de máquinas, a explosão de novos fenômenos sociais, diversas conquistas mecânicas, novos modos de sociabilidade causavam ebulição no imaginário de um rapaz, que na atualidade se descreve como extremamente tímido. Natal em seu processo de transformação expandia as possibilidades de acessos a capitais valorizados. Nas palavras de Sevcenko (1992) há uma esfinge moderna que também amaldiçoa os que não são capazes de decifrá-la e, muito embora, sua pluralidade desconcertante e metamórfica exija a fixidez de qualquer forma explicativa existe um confronto entre o mundo que se acreditava fixo em suas classes e ambiências e essa nova lógica que acaba por desmanchar a fixidez: é a ebulição das referências. Percebê-las, mesmo sem racionalizá-las é um modo de decifrar e se situar, como foi fazendo Canindé Soares e a partir daí demarcando modelos existenciais, referenciais, sociais e estéticos. Nesse sentido, Canindé decidiu buscar conhecimento para poder também atuar como fotógrafo. No início, sem o apoio no seu ambiente de trabalho, contou com o auxílio de uma 77 amiga, a moça possuía uma Câmera Kodak com lente fixa e Flash embutido de estilo considerado muito simples e popular. Ela utilizava um filme negativo conhecido como 127mm, formato que começou a circular em 1912, através da Kodak. Na década de 1950 teve o seu auge por ser utilizado em câmaras baratas e de pequenos portes, por ser pouco comum no estado o filme não era de fácil acesso. Perdeu muito espaço entre as décadas de 1960 e 1970 quando a Kodak lançou uma linha de máquinas denominadas Instamatic, o que contribuiu para o aumento da popularidade dos modelos para amadores. O modelo vendeu mais de 50 milhões de câmeras até 1970, exigiam poucos procedimentos, eram câmaras viewfinder74em que o único ajuste necessário para o uso é girar o anel em torno da lente para definir Sol ou Nublado/Flash. Sobre o filme de 127 mm tinha como restrição, se usado em formatos tradicionais, rende apenas umas 12 fotos em formato 4×4, 8 fotos em 4×6 e 16 fotos em 4×3. Com a chegada dos filmes de 126 mm e de 120mm, o de 127 praticamente ficou obsoleto. Ainda trabalhando no estúdio fotográfico citado, com um dos seus salários Canindé comprou a sua primeira máquina fotográfica era uma Kodak da linha Instamatic, conhecida como Kodak Xereta, câmara de bolso, com filme de 120mm. A fotografia mesmo tendo aparecido por acidente o livrou da rotina de ser um operário ou um trabalhador de outro segmento com um cotidiano rotineiro e massivo. E em função da constante negociação do qual tinha que tratar com o seu meio social, Canindé decidiu correr em busca de conhecimento para poder atuar como fotógrafo: Aquele mundo da fotografia era o mundo misterioso e me fascinava, mas na realidade o que eu busquei nesse mundo foi uma forma de sobrevivência esse é verdade eu comecei a fotografar crianças filhos de vizinhas não teve ninguém pra me ensinar não teve ninguém pra me dar a mão, esse início foi um caminho sozinho, sozinho mesmo (informação verbal, 2017).75 O início de sua trajetória profissional, conforme o relato apresentado, não foi fácil. Existiam dificuldades de deslocamento, dinheiro escasso, clientela restrita, além de um grande obstáculo que ainda se impunha na época na capital do Rio Grande do Norte: a ausência de informações sobre a técnica fotográfica. Para superar essa barreira Canindé Soares recorria à revista chamada Iris Foto76, entretanto em distintos momentos não teve condições de comprá-la, mesmo sendo uma publicação mensal. Não existiam cursos no período, nem 74 Tipo de visor ótico que apresenta o objeto que será fotografado, presente nas câmaras analógicas e nas atuais SLR digitais. 75 Entrevista concedida por Canindé Soares em 28 de março de 2017 para fins de desenvolvimento desta Tese. 76 A revista Iris foto foi uma publicação brasileira especializada no cenário das fotografias‚ a mais antiga revista do seguimento, ultrapassando as cinco décadas de sua real existência entre 1947 e 1999. 78 existia um meio que fosse acessível à população geral para captar informações a respeito do tema. Uma viabilidade encontrada pelo repórter fotográfico a fim de ampliar seus conhecimentos, ainda restritos, foi a matrícula em um curso de fotografia por correspondência. Existiam dois cursos oferecido pelo Instituto Universal Brasileiro (IUB) e pelas Escolas Associadas. Como o custo do curso nas Escolas Associadas era mais acessível, foi o que Canindé escolheu, embora não houvesse condições para finalizar esse estudo. Eu posso falar que o meu grande mestre foi o curso que eu fiz é por correspondência nas escolas associadas que era um curso mais barato que pertence ao Instituto Universal brasileiro, ele foi o meu grande mestre e quando eu podia a minha referência era a Iris foto. A revista íris foto era realmente uma grande referência na fotografia, era uma revista mensal e quando eu podia eu comprava, mas, não era todo mês que eu podia comprar a revista. Ela tinha sempre muitos artigos do Clício Barroso, fotógrafo bem conhecido (informação verbal, 2017).77 No final da década de 1970, como já colocado de modo resumido, nos maiores centros econômicos do Brasil haviam grupos de pessoas empolgadas em apreender a técnica para o uso da câmara fotográfica, amadores e profissionais. O processo de revelação já estava bem mais divulgado e mais acessível do que nas primeiras décadas desse século, em que somente pequenos grupos de alto poder aquisitivo podiam aproveitar- se do engenho. O cenário já não era tão limitador, ferramentas do universo fotográfico eram encontradas com certa facilidade nas maiores cidades do país. Contudo, é preciso acentuar que o uso do equipamento fotográfico ainda exigia investimentos elevados e os usuários que estavam distantes dos grandes centros continuavam esbarrando em problemas de ordem material. Essas eram dificuldades que só podiam ser superadas de modo mais prático por quem detinha o capital financeiro. O nível econômico de Canindé era uma grande barreira. A referência a esse contexto é acompanhada de questões que demonstram as dificuldades a serem ultrapassadas: O curso por correspondência eu não cheguei a concluir, não tive condições de terminar, paralelo a isso a fotografia era muito cara, os equipamentos, também, não são diferentes de hoje que ainda continuam caros, mas, você imagina uma pessoa de origem humilde comprar uma câmara fotográfica? Não tinha a mínima condição. Na época nem condições de comprar uma bicicleta para me deslocar 77 Entrevista concedida por Canindé Soares em 28 de março de 2017 para fins de desenvolvimento desta Tese. Sobre o Profissional Clício Barros, atualmente é professor de Tecnologia; consultor da empresa Adobe; consultor do SENAC/SP; presidente da Associação de Fotógrafos Fototech; colunista da revista PhotoMagazine e colaborador das revistas Fotografe, Fhox, Desktop, Publish, e da Photos& Imagens. Nascido em São Paulo é filho e irmão de publicitários, a fotografia, entrou cedo em sua vida. Ainda, morou e trabalhou em New York, São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador, Madrid, Lisboa e Atenas, fotografando editoriais de moda e publicidade. 79 com maior facilidade eu tinha, anos depois quando comprei uma foi uma realização (informação verbal, 2015)78. Os seus primeiros clientes viviam, assim como ele, na periferia. Apesar da situação econômica restrita esses moradores se organizavam para poder estruturar eventos comemorativos socialmente importantes como aniversários, casamentos ou mesmo os batizados, os registros eram feitos de modo limitado, muitos só podiam pagar por duas ou três fotografias em Preto e Branco com tamanho convencional e reduzido de 10×15 cm. A divulgação inicial do seu material fotográfico se deu da seguinte forma: o autor organizava em um pequeno álbum distribuído pelo estúdio Kodak suas melhores fotografias e com esse material em mãos divulgava-o a cada amigo ou familiar que encontrasse. Era um processo lento, visto que para mostrar seu trabalho necessitava chegar a cada pessoa por vez: A minha primeira câmera mais sofisticada foi uma semiprofissional, não era profissional até porque ela não trocava de lente, foi uma máquina que eu consegui trocando com amigo... Ela tava até quebrada, mas ela funcionava. E eu fui sozinho fazer as minhas fotos com ela, mas só funcionava durante o dia. Só funcionava durante o dia porque não tinha o flash (risos). Aí depois eu comprei uma Cânon, uma profissional que se chamava FTB. Essa cânon FTB parecia um trator toda de ferro. A FTB era totalmente mecânica, toda manual. Aí eu já estava trabalhando mesmo com a fotografia. Lembro que eu me preocupava muito com exposição e essa tinha um fotômetro mecânico, nossa eu me preocupava muito com a exposição, essa meia luz, eu já sabia a exposição correta, a velocidade...A coisa começou com essa câmara aí e se você pensa que existiu ajuda, não teve quase nada, muitas pessoas não sabiam ou não passavam, não é como hoje. Nada eu fui sozinho mesmo! Eu fui descobrindo o caminho das pedras, um caminho solitário e sem condições financeiras (informação verbal, 2017)79. Depois dos complicados passos iniciais, que o profissional afirma que não gosta nem de lembrar, assumiu definitivamente o compromisso de pendurar a câmara fotográfica em seu pescoço e conduzi-la em seu percurso de vida com a profissão de fotógrafo. A vontade de ver suas imagens publicadas era tamanha que uniu seus recursos e criou um jornal impresso em folha de ofício onde construía um texto e registrava as imagens necessárias para acompanhar o discurso escolhido; as fotografias reveladas em preto e branco eram coladas na folha, após reproduzia esse material por meio de fotocopiadoras e os distribuía. A minha vontade de aprender as fotografias era tão grande que eu fiz um jornal, eu já te falei, também, sobre isso eu fiz um jornal. Sobre esse jornal eu datilografava matéria 78 Entrevista cedida por Canindé Soares para esta pesquisa em 18 de novembro de 2015. Encontro realizado no bistrô Douce France, localizado na Avenida Afonso Pena, 628, Bairro Petrópolis, Natal/RN. 79 Entrevista concedida por Canindé Soares em 28 de março de 2017 para fins de desenvolvimento desta Tese. 80 numa foto ia para o quartinho, que era um banheiro onde eu revelava a foto, depois colava na folha, reproduzia e distribuía. Pode acreditar nessa época tudo o que eu tinha era somente à vontade. Depois junto com amigos fui criar um jornal, eu acho que o nome do jornal era O Foco (informação verbal, 2017)80. Essa luta pela posição social pode ser compreendida como o quadro das pressões sociais que agem sobre os outsiders, fazendo com que sua existência se atrele a manutenção de algum tipo de posto na rede das instituições de interesse ou em suas ramificações (ELIAS, 1995, p. 23). No início da década de 1990, Canindé Soares em parceria com o jornalista e amigo fotógrafo Fernando Pereira81 e o amigo Adrovando Claro82decidiu criar o jornal de fotografia intitulado “O Foco”, o qual circulou impresso no período de 1992 a 1997. Figura 6- Jornal O Foco “A Realidade da Zona Norte”, Nº 0383 Fonte: Acervo particular de Canindé Soares (1992). Na década de 1990, Canindé teve dois encontros promissores, primeiro com o computador e logo com o fotógrafo Clício Barroso em São Paulo, em um evento dedicado a fotografia. Após esse evento, os profissionais estreitaram os laços por meio de um grupo de discussão construído via e-mail. A partir desses diálogos Canindé decidiu criar eventos em Natal direcionados a técnica e aos usos da fotografia. Se em um primeiro momento lhe foi negado os acessos ao conhecimento do universo fotográfico por indivíduos imersos no campo, ele decidiu que deveria compartilhar esse conhecimento possibilitando as pessoas que 80 Idem. 81 Fernando Pereira é um respeitado fotógrafo em Natal, onde atua a mais de 40 anos, natural da cidade de Santo Antônio de Pádua (RJ), acumula mais de 20 premiações no segmento fotográfico em âmbito local, nacional e internacional. Hoje é jornalista da hemeroteca. 82Adrovando Claro é fotógrafo e formado em artes pela UFRN e atua como educador nessa disciplina. Ajudou a fundar e deu colaborações a jornais do estado. Em 1999, recebeu menção honrosa no II Salão Nacional de Fotografia de Sorocaba (SP), primeiro lugar no concurso “Um Olhar Sobre a Gente de Natal” (fotos publicadas) em comemoração aos 400 anos de Natal (RN) e o terceiro lugar no II Prêmio Euzébio Rocha do Sindpetro/RN. Teve fotos publicadas em revistas, jornais e livros de circulação nacional e internacional. Suas fotos estão publicadas em diversos jornais, revistas, calendários e livros no Rio Grande do Norte. 83 Fotografia de autoria de Fernando Pereira, Canindé Soares e Adrovando Claro (1992). 81 quisessem uma diretriz mais pontual ao mundo da fotografia. Dessa forma, para falar sobre fotografias aos que se interessavam Canindé Soares convidou Clício Barroso. Nas palavras de Canindé Soares: Ah, tiveram muitos cursos bacanas, cursos de moda, cursos de software, cursos do Adobe Photoshop. O cliente sempre vinha prestigiar. Hoje o Clício é um grande nome, ele é um consultor da Adobe no Brasil, né? É a empresa que criou Photoshop e o light room. Nessa época eu procurava fazer muita coisa queria aprender a montar esse laboratório, inventava esses cursos e foi justamente na invenção, inventando esses cursos e dando aula, me disponibilizando para ensinar que eu aprendi. Foi assim que eu fui aprendendo e com tempo eu fui aperfeiçoando a minha fotografia. Com isso de ensinar eu aprendi muito. Teve ainda uma que eu fui convidado a dar um curso de fotografia no Sesc e eu lembro que eu não sabia nada. Eu não entendia nada tudo que eu tinha era só à vontade eu me tremia para falar para as pessoas, imagina eu ficava tremendo para falar só para 34 pessoas, mas eu fui lá e formei uma turma, montava turmas novas e logo montei o meu laboratório preto e branco. Lembro que eu fiz um evento aqui tão bacana que eu chamei de A Maratona, era naquela época do filme de 36 poses. Nós dividimos esse evento em cinco pautas e as pautas eram assim: 10 minutos fotografando aqui, usando tantos fotogramas, depois já íamos para outro lugar; tudo era cronometrado. Olha, veio gente de Recife, de João Pessoa, veio muita gente participar desse evento. Foi algo tão bacana que eu elaborei sozinho, pensei isso na minha cabeça, corri atrás e deu certo. 150 pessoas vieram participar desse evento (informação verbal, 2017)84. Desse modo, na época Canindé seguiu atuando com na dupla jornalismo e fotografia. O primeiro jornal em que trabalhou foi na década de 1990 denominado “A Ponte: a realidade da Zona Norte”, foi um meio de comunicação que circulou entre os anos de 1992 e 1994, criado por Walter Medeiros e outros jornalistas. A mídia alternativa priorizava as notícias da Zona Norte de Natal, tinha um caráter crítico e visava defender os moradores locais dos abusos do poder público. A primeira fotografia feita por Canindé para o jornal trouxe coincidentemente a imagem da ponte para o Jornal A Ponte: 84 Entrevista concedida por Canindé Soares em 28 de março de 2017 para fins de desenvolvimento desta Tese. 82 Figura 7- Jornal A Ponte: A Realidade da Zona Norte, Nº 0385 Fonte: Acervo Particular de Eduardo Alexandre Garcia (1992)86 Em sequência Canindé foi trabalhar na “Gazeta da Praia Bela”, jornal que circulava em Pirangi. Posteriormente, seguiu com o editor Marcos Aurélio de Sá para o jornal Dois Pontos: os dois lados da notícia, periódico semanal que circulou nas décadas de 1980 e 1990. Paralelamente, Canindé começou a cobrir pautas para a revista “RN Econômico”, do mesmo editor, nesse jornal atuou por 3 anos. Com incentivo de Ozair Vasconcelos no ano de 1995, esse fotógrafo iniciou o trabalho na “Tribuna do Norte”, nesse jornal foi fotógrafo e editor de imagem, atuando no período de 1995 a 1999. Foi o único meio de comunicação que Canindé Soares trabalhou de modo formal. Além disso, teve suas fotografias nas páginas de praticamente todas as publicações impressas do Estado do Rio Grande do Norte, se destacando como um dos únicos fotógrafos freelancer que mais publicou fotografias nas primeiras páginas dos principais jornais do Estado. Como o próprio profissional relata o momento é mais conforto profissional. O percurso o permitiu chegar a uma demanda significativa de trabalhos, propostas e contratos que lhe dá as condições de escolher aonde, com quem e em que atuar com a sua fotografia. Como veremos no próximo tópico. 2.3 VISÕES DO MUNDO ARTÍSTICO E PROFISSIONAL 85 Foto de Foto de Canindé Soares, publicada na edição do jornal de Nº 03, maio de 1992. 86 Para ver a página inicial do jornal “A Ponte: a realidade da Zona Norte”, vide Anexo C. 83 2.3.1 O caminho profissional Figura 8- Canindé na Sangria do Gargalheira87 Fonte: Acervo particular de Deborah Kaline (2007). As questões práticas da vida levaram Canindé Soares a percorrer o mundo da fotografia. Todavia, esse direcionamento deslocava-se das profissões familiares. O menino que saiu do interior do Estado não se interessou em reproduzir a profissão do avô paterno e nem do pai. Queria fugir do labor comum, da rotina diária de um trabalho monótono, da repetição das mesmas tarefas. Não queria os trabalhos fabris que começavam a aparecer em Natal, nem as viabilidades de atuação no comércio, nem os empregos públicos médios atraiam o jovem. Essa é a direção provável oferecida pela sociedade industrial, principalmente, quando se trata de pensar as atividades laborais das classes menos abastadas e as tarefas que os trabalhadores têm que cumprir socialmente. Para Marx (1998)88 as maquinações que se davam no sistema capitalista de produção acabavam por colocar o cidadão comum diante de uma realidade que o submete a cumprir um papel alienante e repetitivo como sustentáculo da ordem social na linha de montagem. Esse seria o tipo de atividade realizada pelo trabalhador que habita o espaço fabril – tipo de trabalho surgido com a sociedade burguesa e emergência das grandes indústrias –, que diante do tempo cronometrado, de uma jornada fixa vai adaptando peças por peças a partir de reproduções 87 Fotografia de autoria de Déborah Kaline, no ano de 2007, durante o processo de sangria do açude gargalheira. 88MARX, Karl e ENGELS, Friedrich.Manifesto Comunista. São Paulo: Boitempo, 1998. 84 contínuas de um mesmo movimento. É a sujeição do operário ao capital. Nas inquietações de Canindé se traduz a explanação colocada por Marx: Na adolescência eu ficava imaginando como seria trabalhar trinta anos em uma rotina diária, em qualquer segmento, em qualquer trabalho, eu não entendia e de certa forma eu não queria aceitar trabalhar nessa rotina. Então, com certeza eu tinha que encontrar algo que me tirasse dessa rotina, que me fizesse inovar. A fotografia eu encontrei por acidente e, graças a deus, é com essa profissão que eu me realizo. Foi essa profissão que fez eu me livrar dessa rotina de ser um operário ou um trabalhador. Mesmo numa profissão de sucesso, talvez; mas eu não seria feliz por ter que cumprir essa rotina de trabalho de média de trinta anos como é preciso, e hoje eu já trabalho com a fotografia a mais de 35 anos e não estou preocupado em me aposentar porque é um trabalho prazeroso (informação verbal, 2017)89. O conjunto de imagens, as experiências vividas na infância e adolescência foram marcando a visão social do profissional, transformando as contingências; alterando uma vida que se inicia assinalada pela vigilância, pelo controle moral, religioso e masculino e pelo trabalho infantil. Porém, também, pelos espaços de fuga como o oferecido pela figura materna. A cidade lançou-lhe diante dos novos caminhos para a manutenção da sobrevivência, chance de ascensão social e construção de “certa” liberdade de atuação com a fotografia. A abertura e as promessas que a cidade pode vir a oferecer não são simples. Trata- se de ambientes inseguros e conflitivos a serem explorados e Canindé inseriu-se nesses espaços, primeiro nas zonas periféricas conquistando confiança e treinando sua atuação nos espaços próximos a sua residência. O que lhe deu segurança necessária para ultrapassar obstáculos e promover sua inserção nos setores intermediários da sociedade. Quando esse fotógrafo iniciou sua jornada profissional era um cenário que quem quisesse atuar deveria antes de tudo ter um laboratório. Com o seu laboratório pronto foi entrando no mercado P&B que já não chamava mais tanto a atenção do consumidor que preferia ver suas imagens reveladas em cores. Para o acesso às fotografias coloridas o caminho era a cidade do Rio de Janeiro e de São Paulo, o que encarecia o produto e reduzia o público de clientes. No campo do fotojornalismo onde os acontecimentos são prospectados e os profissionais agendados para a construção de pautas performáticas, as dificuldades são variadas. Vale apontar que quando o profissional saía da redação a fim de cobrir uma pauta, possuía, na maioria das vezes, somente a vaga noção do que a fotografia deveria revelar 89 Entrevista concedida por Canindé Soares em 28 de março de 2017 para fins de desenvolvimento desta Tese. 85 para se transformar na história que deveria contar. Ou seja, transformar-se em foto-notícia. Aconteciam, também, as fotografias inesperadas, em situação inusitada, o que repercute de modo substancial na agenda da redação. “Sobre a foto-notícia constitui-se em um artefato elaborado por meio de mecanismos pessoais sociais, ideológicos, históricos, culturais e tecnológicos” (SOUZA, 1998, p.22-23). No campo do foto jornalismo as convenções sociais, as ideologias hegemônicas favorecem que seja dado significado social a determinados acontecimentos, em detrimento de outros, promovendo, por consequência, específicos eventos (e não outros) à categoria de foto-notícia. Segundo os parâmetros do fotojornalismo, uma boa fotografia é aquela que une a informação e a plasticidade. Mais do que em qualquer outro meio de comunicação a imagem deve informar algo como se fosse um documento comprobatório do fato. Nesse cenário, o profissional com um conhecimento limitado do que encontraria e com os limites impostos pelo manuseio da câmara analógica; desde a apreensão da técnica até o elevado custo do material envolvido, existiam poucos meios para captar uma imagem, o que significava que não poderia perder o foco. Só no retorno a redação, saberia se sua imagem poderia ser aproveitada. Nas palavras de Canindé Soares: Esse era um processo antiquado e sofrido, eu não quero nem lembrar esse processo analógico. Muitas vezes eu questionava: como é que já com toda a tecnologia que existe ainda não inventaram um processo de revelação que fosse mais ágil, mais prático e mais moderno? (informação verbal, 2017)90. Mesmo nos locais onde as tecnologias circulavam com mais facilidade existia a dificuldade no manuseio dos equipamentos fotográficos, as câmaras que dominaram o mercado entre as décadas de 1970 até aproximadamente a década de 1990, envolviam processos em que o controle de erros ainda era distante: Se você pedisse aos especialistas dos laboratórios fotográficos líderes de mercado para listar os problemas mais comumente encontrados nas fotos de clientes, eles rapidamente responderiam: exposição imprópria, enquadramento ruim e erro de foco. Sistemas automáticos conseguem agora dar conta do cálculo da exposição fotográfica para várias pessoas. O enquadramento ainda precisa estar na cabeça do fotógrafo. E, até recentemente, este também era o caso com a escolha do foco, mas agora, sofisticados sistemas eletrônicos estão começando a colocar um fim nisso (JACOBS, 1980). 90 Idem. 86 Já no período que se estende por praticamente toda a década de 1980, mais precisamente de 1981 até 1987 – quatro anos depois de ter iniciado no Studio Blow up – Canindé esteve em missão militar na cidade do Rio de Janeiro e não abandonou a câmara nesse percurso; aproveitou o momento no Rio de Janeiro para ampliar seus conhecimentos e treinava fotografando os colegas militares. Quando eu fui ser militar eu já levei a câmera do lado e antes de ser militar eu já fotografava os militares comercialmente, eu comecei inicialmente vendendo as fotos, foi uma continuação de um trabalho que eu já tinha iniciado, não era a fotografia documental era um registro para sobreviver eu precisava vender a foto, era uma profissão, a fotografia era um produto para eu poder conquistar alguma coisa (informação verbal, 2017)91. As dificuldades encontradas e a necessidade de superá-las foi dando a esse profissional senso de justiça e de solidariedade com os profissionais que, assim como ele, se sentiam a margem do processo diante das dificuldades encontradas. Canindé praticamente começou a atuar na distribuição de informações no campo da fotografia em Natal; organizava eventos relacionados à disseminação do processo da fotografia, formava grupos de estudos, dava palestras em instituições como SENAC, estabelecia contato com os que podiam e desejavam, também, compartilhar o conhecimento. Foi assim ampliando o seu campo de atuação que começou a ser conhecido e a formar suas redes de contato, ganhando simpatizantes, chegando, inclusive, a presidir o Sindicato dos Fotógrafos. Conviveu com o período de transição da fotografia do universo analógico ao digital. Em 2001, comprou a sua primeira câmara digital, uma máquina usada com 3.1 Mega Pixels, a D30 da empresa Cânon. A inserção da fotografia no universo das tecnologias digitais para Canindé Soares se constituiu na libertação das amarras que envolviam o fazer fotográfico: “a digital foi o sonho da minha vida toda” (informação verbal, 2010) 92. O equipamento fotográfico transformou-se em uma máquina sensora capaz de receber e processar informações, a complexidade aumentou em termos de sofisticação técnica, de outro modo, facilitou o manuseio do operador. A fotografia digital chegou para uma realização mais pratica e rápida, ela está em nossas mãos, e com a internet temos tudo o que precisamos, é tudo que o profissional da fotojornalismo precisa. E em termos de qualidade para comparar com o filme, a partir do ponto de vista do suporte eu acho que a qualidade ultrapassou. O filme em si é uma imagem real com perfeição máxima. Mas, 91 Idem. 92 Entrevista concedida por Canindé Soares para o Jornal “Nominuto”, com a repórter Isabela Santos, em 11 de julho de 2010. Disponível em: .Acesso em: 11 de nov. 2017. 87 quando você passa para o suporte você consegue absorver toda essa qualidade do filme? Da sua transparência? Já com a digital, com o processo de manipulação, do tratamento, você consegue um resultado muito maior. Essa versatilidade é a grande importância do digital. O que com a fotografia convencional, o filme não permitia (informação verbal, 2017)93. As chances circunscritas pelas novas relações sociais organizadas a partir da sociedade em rede94 se expressaram ao profissional na comprovada popularização da técnica; no método de captura; processamento e transmissão dos dados que pode se concentrar em distintas mãos. Canindé não vê a excessiva ampliação da técnica como um problema de estrutura para os que trabalham com esse meio, não dá ênfase aos debates contrários ao acesso mais amplo da fotografia, aos que julgam ameaçadora a democratização da técnica a partir das tecnologias. O que se percebe é que para ele rompeu- se um período rodeado de barreiras e dificuldades. Iniciou-se uma fase de expansão, de superação das antigas e restritas formas de uso e acesso à fotografia, de dilatação das chances das pessoas apreenderem o fazer fotográfico, de diferentes grupos e classes econômicas passarem a ter acesso ao universo da fotografia. A internet, nesse ínterim, facilita a inclusão e a mobilidade. Quando eu comecei eu tinha que fazer um álbum para mostrar as fotos aos clientes, fazia um albunzinho da Kodak com as melhores fotos e saia mostrando aos amigos e para mostrar a um maior número de pessoas eu tinha que ralar muito mais. Hoje você pode chegar a milhões de pessoas com um álbum no Facebook, com o seu blog ou site, ou através de redes sociais como twitter e você pode mostrar a um grande número de pessoas em minutos, o que antes não existia, não se chegava a tantas pessoas com tanta rapidez (informação verbbal, 2017)95. O fotógrafo presenciou em sua atuação a revolução causada pela introdução dos meios tecnológicos, a sofisticação e difusão da sociedade informacional e aproveitou para ampliar ainda mais o seu espaço. Mesmo tendo em conta que a concorrência e a competitividade nesse ambiente são substanciais, principalmente, pela nova configuração sociocultural favorecida pela democratização das tecnologias que concernem a esse campo, sabe que os interessados ainda esbarram em dificuldades, uma vez que além de se capacitar, deve investir em equipamentos de custos elevados - o corpo de uma câmara profissional considerada de boa qualidade custa entre 15 a 30 salários mínimos, uma média de 15 a 30 mil reais. No mais, é necessário possuir lentes, entre outros dispositivos capazes de fazer 93 Entrevista concedida por Canindé Soares em 28 de março de 2017 para fins de desenvolvimento desta Tese. 94 Para mais informações sobre o cenário social das redes interativas de computadores ver: Castells (1999). 95 Idem. 88 o corpo da máquina ser operável. Mesmo com as facilidades, esse tipo de aquisição ainda escapa a realidade de muitos. Para o fotojornalista os meios de superação dos impedimentos de ordem econômica, fronteiras que limitam as condições operacionais, estão na interatividade oferecida pela internet, que amplia o acesso a um mercado de bens simbólicos criando possibilidades de expansão do conhecimento. O entusiasmo revelado por Canindé fundamenta-se com às perspectivas apontadas por Pierre Lévy (2009) quando esse autor traça as suas percepções sobre o boom da interconexão favorecida pelo uso dos computadores com acesso ao universo virtual. De acordo com Lévy (2009, p. 15) as ferramentas que interconectam-se em um espaço virtual favorecendo diferentes trocas constrói um novo tipo de relação social denominado por ele de cibercultura. “A cibercultura expressa o surgimento de um novo universo, diferente das formas que vieram antes dele no sentido de que ele se constrói sobre a indeterminação de um sentido global qualquer”. Essa cultura processa-se por intermédio das trocas favorecidas no ciberespaço, termo que especifica não apenas a infraestrutura material da comunicação digital, porém o universo oceânico de informação que ela abriga, assim como os seres humanos que navegam e alimentam esse universo. Ou seja, é o conjunto de técnicas (materiais e intelectuais), de práticas, de atitudes, de modos de pensamento e valores que se desenvolvem juntamente com o crescimento do ciberespaço (LÉVY, 2009, p. 17). Esse é o período em que a sociedade ocidental, de modo geral, passa por um processo de universalização cultural, na medida em que estamos dia-a-dia mais imersos nas novas relações de comunicação e produção de conhecimento que ela nos oferece. E para Canindé essa é uma porta que se abre favorecendo a integração no campo através de contatos, de amizades, de trocas e informações. O mesmo coloca que se a técnica se expande, se a concorrência aumenta; pode ficar “difícil por um lado, mas fica mais fácil por outro, uma vez que você tem a internet – que é o mundo em suas mãos”. A incerteza que vem na esteira das mudanças sociais, do trabalho informal, das pressões do cotidiano colocou Soares diante de diversidades, mas também, das várias perspectivas abertas à apreensão do conhecimento que o interessava. Conseguiu converter sistemas culturais de representação em instrumentos de estratégia: “você tem as redes sociais e essas são poderosas na questão do relacionamento, de divulgação do seu trabalho, quando eu comecei isso não existia”. 89 É indiscutível que as tecnologias são favorecedoras de novas formas de acesso à informação, de novos estilos difusão de informações com um forte caráter socializador. Todo o evento tecnológico – sobretudo na esfera da comunicação – pelo qual passamos e vivenciamos no dia-a-dia suas contínuas transformações interfere tanto nas formas de ouvir, olhar e sentir, como nas relações sociais provenientes delas. Ainda assim, o otimismo colocado diante dessa revolução proporcionada pela interação favorecida pela internet é questionado; debate-se sobre as relações construídas com esse novo tipo de informação. Reflete-se inclusive em relação à expansão real desse acesso, visto que grande parte da sociedade inserida no atual sistema global está à margem ou tem sido margeada por essas tecnologias96. A reconfiguração do cenário social da vida humana que veio em conjunto com a reestruturação global do sistema de produção capitalista, para o qual o avanço da tecnologia informacional foi uma ferramenta básica favoreceu ao indivíduo perceber novos valores e possibilidades de condutas sobre ele mesmo. Nesse cenário as redes interativas de computadores cresceram exponencialmente criando novas formas e canais de comunicação, moldando a vida e, ao mesmo tempo, sendo moldadas por ela. As mudanças ocorridas no âmbito social são tão drásticas quanto os processos de transformação tecnológica e econômica. As redes sociais globais conectam e desconectam indivíduos, grupos, regiões e países, em pertinência com objetivos processados em um fluxo de decisões estratégicas abstratas ou de identidades particularistas historicamente enraizadas (CASTELLS, 2010). Contudo, a tecnologia não determina a sociedade e nem a sociedade escreve o curso da transformação tecnológica, mas a tecnologia acaba incorporando a sociedade que a utiliza por diferentes fatores que ela agrega. Dentre esses fatores podemos pensar nas diferentes iniciativas que surgem em rede, distintas criatividades e inovações com aplicações sociais que terão seu resultado final dependentes de um complexo padrão interativo. O repórter-fotográfico Canindé Soares, ao incorporar o meio tecnológico, o traduz em ferramenta estratégica de libertação. De acordo com a matéria publicada no jornal No Minuto Soares iniciou o processo de divulgação do seu trabalho ainda no ano de 1996, na blogosfera, o primeiro espaço virtual de um fotógrafo profissional no Rio Grande do Norte. Em um segundo criou o seu site que é alimentado cotidianamente com a atualização de notícias e divulgação das suas fotografias. 96Sobre as implicações da sociedade informacional e suas consequências sociais, principalmente na questão do trabalho e das exclusões construídas ver: Schaff (1995). 90 As estratégias utilizadas por Canindé para a inserção em seu campo profissional lhe garantiram juntamente com seu comportamento humilde a abertura aos espaços privilegiados. A postura tomada tornou-o carismático, mesmo sendo cada vez mais incisivo em seu trabalho no que confere a distribuição da sua obra, mantém uma postura humilde e discreta, o que chega a ser irônico, porque rompe com uma lógica ampla de seu campo que é a necessidade de visibilidade e do status quo. As vestimentas em cores neutras, o boné que muitas vezes lhe esconde a face, garante que se camufle para captar variados ambientes. Em outra linha, seu nome circula com rapidez transformando-o em um personagem significativo do espaço potiguar. Seu modo de ver, agir, viver e até escolhas de onde morar lançam questões que remetem a reflexão das perspectivas sociais de uma cidade que vive em dualidades políticas, valores arraigados e condicionamentos tradicionais. Eu não tenho problemas em fazer parceria, mas quando só um lado obtém vantagens não é parceria, eu tenho pedido de fotos quase diariamente para alguém utilizar em varias situações. As pessoas me buscam e pedem, me chateia muito quando alguém me pede, dizendo que vai dar o crédito, como se dar o crédito fosse uma moeda de troca, uma contrapartida, quando na verdade o crédito é um direito conquistado e legal, e a maioria das pessoas sabem disso que e um direito, não e pelo credito que eu estou cedendo, eu estou cedendo minha foto, mas ela é meu produto de sobrevivência (informação verbal, 2017)97. Dialeticamente o profissional constrói seu campo ao mesmo tempo em que permite que se coloque em cheque as relações anteriores. Apresenta toda a sua disposição para ousar, enfrentar novos segmentos e criar propostas. Assim segue Canindé, com autonomia e liberdade em ambientes heterogêneos; uma vez que cobre até eventos de grupos políticos opostos. A conduta plural e aparente no ambiente profissional desaparece em prol de posicionamentos. 2.3.2 Visões artísticas Em questões de estética a fotografia de Canindé não se confunde das demais fotografias, existe uma singular saturação de cores que dá volume a imagem e simula a tridimensionalidade do espaço o que garante uma perfeita profundidade de campo. Do início da carreira com a fotografia dando ênfase a cobertura de eventos sociais em zonas periféricas; até as captações aéreas de paisagens como as do arquipélago de São Pedro e 97 Entrevista concedida por Canindé Soares em 28 de março de 2017 para fins de desenvolvimento desta Tese. 91 São Paulo98, ilha localizada a mais de mil quilômetros da costa potiguar, a convite da Marinha do Brasil, contabiliza-se 40 anos de trajetória. Nesse curso existiram influências que foram construindo o olhar do repórter-fotográfico. As fotografias são imagens polissêmicas por permitirem sempre uma leitura plural que dependerá do seu expectador e de seu arquivo imagético, imagens mentais preconcebidas acerca de determinados assuntos. “As imagens mentais funcionam como filtros: ideológicos, culturais, morais, éticos, etc”. Esses são construídos na trajetória do indivíduo e forma seu olhar, “sendo que para cada receptor, individualmente, os mencionados componentes interagem entre si, atuando com maior ou menor intensidade” (KOSSOY, 2009, p. 44). Nesse aspecto pode-se considerar que a história de vida, as angústias, os anseios, as expectativas futuras, as relações sociais e os contatos profissionais de Canindé Soares foram moldando o seu modo de ver e captar o mundo ao redor. Em relação às influências, Canindé Soares citou um dos maiores ícones do fotojornalismo francês Henri Cartier-Bresson (1908-2004), nome de destaque mundial da fotografia jornalística, considerado uma autoridade no fotojornalismo do mundo inteiro. Sobre o francês Cartier-Bresson, filho de industriais têxteis, começou a fotografar ainda criança e estudou artes em estúdio renomado de Paris, fundou a conhecida agência fotográfica Magnum junto com Bill Vandivert, Robert Capa, George Rodger e David Seymour. Fotografou espaços nos quais incidiam questões políticas e sociais de importância mundial, vários livros com seus trabalhos foram lançados transformando-o em referência. Algumas de suas posturas em relação à fotografia são representativas: não admitia recortes posteriores na edição das suas imagens pelo valor que dava ao conjunto capturado na cena como a culminância do ato fotográfico; evitava qualquer tipo de iluminação artificial entre elas o flash e sua preferência era o preto-e-branco. Considerado um fotógrafo purista por não usar efeitos especiais nem na revelação nem na ampliação. Procurava passar despercebido nas cenas que iria fotografar mantendo-se em atenção para a captação do momento que considerava único. O momento único da fotografia para Bresson traduzia-se na concepção do instante decisivo. Conceito que vem povoando o imaginário de uma multidão de fotógrafos e de outros envolvidos com o artefato. Apoia-se na aceitação de que há um momento cuja 98 Ver matéria e fotografias no Portal G1, de 03 de julho de 2017. InterTV. Bom Dia RN. Disponível em: . Acesso em 05 de jul. 2017. 92 duração é uma reduzida fração de tempo, em que o clique fotográfico deve acontecer. Caso não ocorra a captura precisa nesse tempo único à obra fotográfica pode ser irremediavelmente perdida. Cartier-Bresson considera que os instrumentos de captura desse instante são sensibilidade e intuição. Sendo a sensibilidade mais importante do que a razão para tornar o olhar apto a captar o “acaso objetivo”. Nas fotografias de Bresson nota-se a composição mais preocupada com a disposição espacial dos objetos do que com a luz, há a busca dos detalhes nos ângulos, formas, simetrias e perspectivas. “É pela linguagem geométrica da física que nos habituamos a pensar o instante. Nela, um instante é um ponto numa reta que representa o tempo” (TASSINARI, 2008, p.3). O modus operandi desse fotógrafo influenciou o habitus de vários profissionais. Em Canindé além das reservas, das entradas disfarçadas nos ambientes de trabalho, há a opção pelo simples e casual. À moral cristã compartilhada no habitus de ambos também influenciam o conteúdo em cena. Canindé é um herdeiro dessa composição alinhada que produz montagens e organiza as cenas, com privilégio aos recortes geométricos, às linhas que dividem os espaços como o mar, o céu, a areia, os monumentos. A luz também é um dos instrumentos que ligam as concepções desses fotógrafos, assim como Bresson, Canindé prioriza a iluminação já existente no espaço. A distinção entre a fotografia de Canindé e de Bresson é o que dá singularidade a sua obra: o apelo ao colorido. As cenas apresentadas por Soares utilizam a luz para captar vários tons de cores em seus contrastes. A Luz é o que gera o que ele considera sublunar para fazer uma boa foto: a saturação. O colorido saturado camufla a bidimensionalidade da fotografia dando-lhe profundidade, favorece a simulação da tridimensionalidade aproximando-a do real. Por isso prefere atuar no início da manhã ou final da tarde, sendo o crepúsculo seu momento de êxtase para o ato fotográfico. 93 Fotografia 2-O Crepúsculo Fonte: Canindé Soares (2016). A fotografia acima foi elaborada nas proximidades do Campus Universitário da UFRN, entre a parte alta do bairro da Candelária e do bairro de Lagoa Nova. Ângulo improvável de se reproduzir no momento atual, visto que o espaço captado foi transformado, hoje contém o edifício do Instituto Metrópole Digital (IMD/UFRN). O jogo hábil e criativo do fotógrafo simula o do caçador que com paciência aguarda o melhor momento. Essa fotografia representa o acaso, a pressa, a vontade de captar dimensões e cores, a ansiedade do fotógrafo pelo melhor momento, pela ficção da captação do que Bresson denominou como o instante decisivo, ou seja, momento exato, associado ao vício de produzir o melhor para alimentar o olhar do público. Não pensamos a ficção como aparência, mas como a subjetividade do indivíduo que diante de sua cultura cria, produz e constrói com o que acredita que lhe foi dado por um instante da natureza. No dia que fotografou essa paisagem Soares estava com a sua companheira no Bairro de Ponta Negra. Já definido pelo modo de ver – que vai além de enxergar – da profissão deambula transformando espaços em paisagens possíveis de serem apreendidas. O modo de olhar o redor distingue-se pela contínua inquietude de captar algo diferente do que há. Esse tipo de olhar, frequentemente, faz com que se perca a dimensão mais ampla oferecida pela retina, porém, a atenção ao detalhe através de um recorte treinado possibilita a apreensão de um fragmento do real que foge ao cotidiano, é um olhar em tensão constante. 94 Canindé geralmente espreita os pores do sol de Natal, para ele belas fotografias do crepúsculo são favorecidas a partir de espaços como o Rio Potengi, a Pedra do Rosário ou o Porto do Mangue. Durante o passeio em Ponta Negra percebeu nuvens formando-se no céu, para ele diferenciadas, distante dos locais de sua preferência entrou no carro com a companheira e decidiu se dirigir a um dos ambientes já reconhecidos. Todavia, começava a escurecer, não daria tempo para alcançar um dos destinos, assim o jeito foi parar nas proximidades do campus universitário e correr atrás do melhor ângulo, o que foi feito. Captou o instante decisivo; nele apresenta suas preferências, sua possibilidade artística diante da técnica. Nessa perspectiva, as nuvens ganham ritmo e movimento proporcionado pela saturação, já o alto contraste amplia a luz do crepúsculo. Na cena a natureza pesa sobre a metrópole, minimiza seus prédios, esconde as pessoas, destaca seus opostos, coloca em atrito o frio do azul que enfrenta a ausência de luz e se expande na tentativa de dissipar o predomínio do tom quente. Nesse campo em que as cores contrastam-se entre o quente e o frio frenético emerge a dialética do fascinante e do ameaçador. É o colorido que marca a visão do mundo de Canindé Soares: “a paisagem tem cor, ela não é preto e branco (informação verbal, 2016)99”. Nessa cor existe o que o autor chama de simplicidade, de fuga do que é considerado status na fotografia. Todavia, a cena é pomposa, monumental, remete a técnica e a tecnologia sofisticada. Alguns fotógrafos de repercussão nacional questionam a escolha de Canindé pela prioridade ao colorido, podemos citar como exemplo Marcelo Bauainain, que abandonou a medicina já no final do curso para se dedicar a fotografia e, atualmente, é reconhecido pelo trabalho desenvolvido em revistas de grande circulação (como Veja, Isto é, Manchete, entre outras), por prêmios nacionais e internacionais. Esse é um dos profissionais que ao encontrar com Canindé em viagens e observar as suas fotografias, seleciona algumas e interroga o porquê das fotografias não estarem em preto e branco, acreditando que se assim fosse essas ganhariam em impacto. Ao questionamento Soares prontamente responde que as fotos não deveriam ser em preto e branco, ele se definiu pelo colorido: A fotografia P&B em minha opinião não influencia positivamente para a paisagem. Mas, tem gente que faz fotos perfeitas em P&B, eu não segui pra esse lado, eu não faço P&B, eu até costumo dizer que o preto e branco é uma fotografia muito difícil de fazer e eu me identifico muito com cor, então... O Marcelo Buainain, que é um grande amigo meu, grande nome da fotografia, ganhador de prêmios, ele segue a linha de Henri Cartier-Bresson, Marcelo é um dos que pega a minha foto e fala rapaz essa foto tem que ser P&B e eu olho e 99 Entrevista concedida por Canindé Soares em 23 de novembro de 2016 para fins de desenvolvimento desta Tese. 95 digo pra ele: Não, não Marcelo, não tem, não tem que ser P&B, eu faço colorido (informação verbal, 2016)100. Essas são as influências que moldaram o olhar de Canindé Soares, que possibilitaram a construção do seu discurso imagético. Continuando com a exposição, o próximo capítulo apresentará um histórico da emergência da fotografia enquanto um discurso legitimador de determinadas concepções e valores vigentes em nossa sociedade. Portanto, direcionará ao entendimento das fotografias como uma referência na construção de simbologias, e mostrará de que forma, em grande medida, a fotografia se traduz em um discurso ideológico. 100 Idem. 96 3 O DISCURSO NA FOTOGRAFIA: EU CONSTRUO, ELE CONSTRÓI, NÓS CONSTRUÍMOS As fotos são, talvez, os mais misteriosos de todos os objetos que compõem e adensam o ambiente que identificamos como moderno (SONTAG, 2004, p.14). Neste capítulo introduzimos a fotografia enquanto um discurso que enquadra e auxilia no processo de validação ou descrédito de ideologias segundo o direcionamento prévio do que será fotografado; um discurso que produz espaços, paisagens, demarca os territórios de modo objetivo e subjetivo. Materializa-se em formas visuais que dirige o olhar de quem vai fotografar, entre um universo de opções, enquadrando um específico registro. Isso quer dizer que é mediada por molduras culturais, sociais e ideológicas. Mas, nem sempre foi vista desse modo, só atualmente começa a ser interpretada como um elemento discursivo, que revela e diz sobre relações socioespaciais a partir do ponto de vista de seus distintos produtores. Antes, sua interpretação fundava-se em seu valor ontológico, era apreendida como o espelho do real. A fotografia se legitima de tal forma como uma concepção da realidade que quando assume a reprodutibilidade excessiva chega até ser encarada como um tipo de simulação a serviço das mídias de massa por perder uma pretensa originalidade. Essa originalidade é apreendida pelo conceito de aura de Benjamim (2012), que aponta à exclusividade da fotografia captada em um instante único. A reprodução massiva lhe retirou a aura, ainda assim o artefato é complexo, algo de ontológico resiste na fotografia, ou pelo seu valor de culto, ou pela exposição. Temos em conta que algum tipo de caráter impresso na imagem, mesmo que pensado como o puctum barthesiano, é inerente a democratização do que representa. Esse caráter, essa impressão é o que debateremos no decorrer desse capítulo. O discurso fotográfico carrega impressões que perpetuam códigos e sintomas que comunicam por meio de afirmações e idiossincrasias. Nesse eixo, o artefato abre-se para o diálogo de interesse sociológico, uma vez que possibilita a crítica das construções socioespaciais. A imagem sugerida como instrumento crítico para reflexão é cara a Didi- Huberman que a partir do conceito de sintoma, noção captada a partir da perspectiva freudiana, propicia uma mirada na fotografia a partir das representações formatadas nos processos sociais; um elemento de contato entre as distintas temporalidades que assinalam a impressão da imagem. Essa impressão é a semelhança que resiste em seu registro enquanto um sintoma. Sintoma esse que chama a atenção do olhar, que se reproduz enquanto valor, enquanto discurso. 97 Lançando mão desses conceitos como possibilidade de se analisar a fotografia Didi- Huberman traz um olhar crítico e inovador o que favorece o seu uso na sociologia. Esse empreendimento é motivado por suas pesquisas que se debruçam por meio de todo o processo histórico da fotografia, mais, pelos discursos que a compreendem e tendem a organizar um fechamento sobre as suas análises. Depois que a fotografia foi inventada, em 1939, praticamente tudo que existe é captado e registrado. É das produções materiais modernas que mais se multiplicam de acordo com o desenvolvimento tecnológico presente, seu suporte nos dias atuais só se amplia, caminha entre materiais impressos, online, computadores, smartphones entre outros. Nas palavras de Sontag (2004) constituem uma gramática e, mais importante ainda, direcionam a uma ética do ver uma vez que passam a requerer diferentes níveis de reflexão por definirem, entre os códigos visuais modernos, o que olhar e como se deve olhar. Impõem valores que orientam as práticas em torno dos seus recortes. Dos temas privilegiados para o registro fotográfico estão as paisagens cujo enquadramento representa padrões estéticos, políticos e econômicos alinhados as visões de mundo que afloraram com a representação espacial moderna. A sociedade moderna é produtora de distintas paisagens: da campesina à urbana, da montanhosa a litorânea, do campo a cidade. Essas paisagens destacam-se atreladas a vários discursos. Em torno do campo as imagens são associadas à simplicidade, paz, natureza e inocência; já em relação a cidade elas aparecem no centro das realizações, da racionalidade, das práticas de lazer e de trabalho. De forma concomitante constrói-se a cidade como o local da aglomeração, da mundanidade e da ambição e o campo como o espaço do atraso, da ignorância e da limitação (WILLIANS, 2011). A máquina fotográfica surge como um instrumento atrelado à promessa de retratar fidedignamente as coisas, pessoas, espaços e fatos e ratifica o que se diz sobre as paisagens citadas. Dos temas mais recorrentes nas fotografias estão os elementos relacionados ao avanço técnico material, à noção de progresso e de civilidade; o meio urbano com sua paisagem representa essa concepção. O campo e a cidade circulam nos mais variados meios; a cidade como a paisagem do progresso e o campo nas representações do pitoresco e do exótico. Diversos fotógrafos se interessaram em registrar as transformações urbanas, sobretudo, as que destacavam uma série de reformas empreendidas entre a segunda metade do século XIX e as primeiras décadas do século XX. Alterações que se iniciaram em cidades da Europa, Estados Unidos e seguiram para a América Latina com base nas intervenções urbanísticas, sanitárias e legais impostas pelos Estados ao lado das inovações de cunho tecnológico que modificaram profunda e rapidamente os antigos espaços urbanos. 98 É o período em que a ampliação dos direitos sociais que surgem na Europa favorece, também, as viagens que passaram a ser organizadas, comercializadas e realizadas sistematicamente para atender a uma demanda em busca de atividades culturais e de lazer em espaços distintos do trabalho. O tempo livre é racionalizado e direcionado ás perspectivas de consumo, dando aos deslocamentos o fórum de atividade turística. Isso ocorre em praticamente todos os locais com circulação mais significativa de capital, concatenando-se as representações que surgem e favorecem a criação de comportamentos ancorados nas novas bases materiais e no conjunto de valores em voga. É uma mercadoria que começa a ser formada tendo como uma das suas características fundamentais o apelo à subjetividade humana. Os discursos que circulam na Europa e nos Estados Unidos antenados a lógica moderna constroem novas práticas, sociabilidades e diferentes modos de relações e atingem distintas partes do Ocidente, até as consideradas periféricas, como é o caso do Brasil, que as abraça com maior ou menor entusiasmo dependendo das relações socioespaciais pré-existentes onde as novas ideias começaram a aportar. O Brasil, que inicialmente era polo de extração de produtos naturais, viu em seu período colonial, mais precisamente nos séculos XVIII e primeira metade do século XIX, o litoral nordestino despontar como núcleo econômico através dos engenhos de açúcar que garantiam transações comerciais satisfatórias com a Europa. Posteriormente, com o advento do café, o porto do Rio de Janeiro passa a concentrar as exportações brasileiras com um volume de mercadoria que transforma as relações de produção agregando à mão-de-obra escrava a do imigrante. Logo, a proclamação da república favorece que esse eixo que compreende o sudeste e o sul do país desponte como polo do poder econômico e político em âmbito nacional. Nessa conjuntura do final do século XIX, e início do século XX, começou a ser gestado um espaço que nasceu no norte do Brasil, como nos relata o historiador Albuquerque Júnior (2012) na contramão do que era cunhado por progresso. Nesse território as mudanças trazidas pela vida urbana e pelo mundo que se modernizava são questionadas. Parte de intelectuais e políticos, entre outros agentes ligados à elite açucareira nascidos nesse cenário, iniciaram um processo de defesa das relações tradicionais, dos modos aristocráticos e hierárquicos e creditaram seus argumentos ao risco do país perder a identidade ou sua autenticidade. Ressentiam-se do declínio da ordem patriarcal em prol de uma sociedade burguesa e industrial. Esse movimento foi demarcando uma região concatenada a um suposto atraso econômico pensado a partir dos efeitos da miscigenação das raças, da estrutura social baseada em tradições preservadas e arraigadas a um sistema econômico esfacelado. Também, acrescenta-se a esse espaço social uma condição geográfica e climática perversa que 99 conservaria a terra seca e improdutiva. Nessa parte norte do país situações chocantes de seca, miséria e fome foram registradas, o que agenciou imagens que sustentou e justificou a naturalização do espaço como acometido por tragédias que interferiam diretamente e de forma negativa na vida social, econômica e política dos seres humanos. O discurso reproduzido construiu bases para a organização de um pensamento coletivo que ideologicamente vincula-se aos interesses das elites políticas nortistas, impulsionaram a construção de imagens da seca correlacionadas a de reação conservadora à sociedade capitalista. Essas imagens proliferaram-se nas produções culturais marcadas pelo saudosismo: da estrutura social colonial desenvolvida em torno da casa-grande, das famílias sustentadas pela monocultura e norteadas pelo cotidiano rural, da religiosidade católica, da mestiçagem e das festas ancoradas nos rituais religiosos. Os discursos acabaram por caracterizar uma cultura folclórica de atraso dos costumes, de patriarcado, do cangaço, da tradição, do coronelismo, do fanatismo religioso e da seca (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2006). Modos de dizer em que o campo e a cidade são antagônicos (WILIAMS, 2011). Nessa dialética um território apreendido como norte e sul demarcou um novo espaço: o Nordeste. Paulatinamente, um tipo singular de discurso que emergiu nas primeiras décadas do século criou socialmente, culturalmente, politicamente e economicamente um espaço que antes não era visualizado nas outras áreas do país enquanto um retrato da tradição, da religião, do atraso e da injustiça social a fim de atender a interesses específicos, considerados reativos (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2006). Os registros do termo Nordeste para designar um espaço nacional estão relacionados à atuação da Inspetoria Federal de Obras Contra as Secas (IFOCS), criado em 1919, direcionado aos estados de Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará. Locais que teriam além da geografia similar, aspectos culturais e interesses econômicos e políticos coniventes. Também, passou-se a creditar ao espaço uma autenticidade em termos de nacionalidade, uma vez que o encontro das três raças, onde não houve a imigração estrangeira, teria supostamente garantido a região às características de povo mais brasileiro. As visualidades em torno da região criaram concepções que resistem até os dias atuais, mas, simulam-se em novas roupagens, enquadradas por novas práticas sociais, acolhendo novos interesses políticos e econômicos vinculados à atividade turística. Em coexistência os discursos ora acessam imagens da seca, ora do turismo, ora confrontam-se; é exemplo o emblemático discurso realizado em 30 de junho de 1987, pelo então presidente da EMBRATUR- Empresa Brasileira de turismo (atual Instituto Brasileiro de Turismo), João Doria Júnior que propôs a “seca virar turismo”. Doria atualmente é prefeito de São Paulo pelo partido político PSDB, anteriormente, quando estava ligado a EMBRATUR 100 disse em reportagem que foi publicada pelo jornal “O Globo” em 1º de julho de 1987, que “A Caatinga nordestina poderia ser um ponto de visitação turística e gerar uma fonte de renda para a população sofrida da área”. De acordo com as informações apresentadas pelo Jornal “O Estadão”, em 01 de julho de 1987, em nota enviada pela agência do Estado de Fortaleza, João Doria haveria afirmado que não estava propondo que a seca “na sua inclemência, na miséria de sua gente”, se transformasse num ponto turístico. Como colocado no jornal: EMBRATUR QUER FAZER A SECA VIRAR TURISMO: ‘Transformar as caatingas nordestinas em ponto de visitação turística para gerar uma fonte de renda para a população sofrida destas áreas, desde que respeitadas às características culturais e humanas das populações, sem a exploração da miséria. Essa sugestão foi apresentada ontem em Fortaleza, pelo Presidente da Embratur João Doria Júnior, a um grupo de 300 empresários do setor turístico, jornalistas e representantes do governo do estado. Surpresos, os jornalistas pediram a Dória Júnior que escrevesse o que estava dizendo, ao que ele não se recusou e depois argumentou: ‘Em Serra Pelada, onde milhares de garimpeiros vivem em condições subumanas, essa garimpagem já se transformou em um ponto de visitação turística’. E completou. ‘Lá existem até especialistas em fotografia daqueles homens, transportando sacos de areia nas costas, em busca de ouro’. O presidente da Embratur tentou esclarecer, porém, não estar propondo que a seca ‘na sua inclemência, na miséria de sua gente’, se transforme num ponto de atração turística. ‘Pelo contrário, o que vislumbro é o fato de podermos transformar a seca num ponto positivo, onde os trabalhadores prejudicados por ela pudessem desenvolver outras atividades, como o artesanato e trabalhos diferentes daqueles do campo’(O ESTADÃO, 1987)101. O discurso aparece na edição de setembro/outubro, 1987, da revista “Agropecuária Tropical”, da Associação Norte-Riograndense de criadores102. 101 O ESTADÃO. EMBRATUR quer fazer a seca virar Turismo. São Paulo, 1 jul. 1987. 102 A matéria da revista agropecuária tropical foi encontrada durante a pesquisa de sociologia rural e enviado a Carta Capital pelo doutorando da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) Valdênio Meneses. 101 Figura 9- Seca Versus Turismo ou Seca como Turismo? Fonte: Carta Capital (2017). O grande problema dos discursos apontados é que criam no imaginário nacional uma região como se essa fosse um corpo à parte, um espaço fora do desenvolvimento. Esses discursos constroem dois mundos: um da prosperidade e o outro da miséria. Além, obliteram a variedade social, espacial e histórica; apagam a ampla gama de conexões humanas, seus fluxos, suas capilaridades e as reais possibilidades de enfrentamento das desigualdades nos acesso aos bens econômicos, culturais e sociais. Ao ofuscarem o entendimento da dinâmica sociocultural dificultam ainda a elaboração e consumação de políticas públicas mais justas, com indicação à pluralidade cultural; escapam ao próprio sentido do incentivo à atividade turística que de acordo com a Lei º 11.771, de 17 de setembro de 2008; que dispõe sobre a Política Nacional de Turismo com o objetivo de “reduzir as disparidades sociais e econômicas de ordem regional, promovendo a inclusão social pelo crescimento da oferta de trabalho e melhor distribuição de renda” (BRASIL, 2008)103. As concepções construídas em cima dos discursos colocados em evidência refletem-se na prática. Exemplo são as políticas públicas de turismo no Nordeste que acabam favorecendo e promovendo a manutenção de certos mitos. Os símbolos visuais originados prevalecem camuflados pelos direcionamentos de entretenimento dado a atividade. A análise elaborada por Karl Marx (1969) no texto intitulado “O 18 Brumário”, em um aspecto bem pontual, nos alerta sobre a evidência de que no citado cenário a burguesia abriu mão do seu domínio político direto 103 Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2008/lei/l11771.htm>. Acesso em: 26 mar. 2018. 102 para canalizar recursos econômicos, no momento em que se joga nos braços de Napoleão. Essa análise condiz com a ideia de que se um grupo detentor de poder político e econômico tiver que escolher entre a manutenção dos seus privilégios ou um governo minimamente democrático, certamente priorizará sustentar o seu poder econômico. Essa compreensão em muitos aspectos tem similaridade com a tese levantada por Durval (2006) de que uma dada elite ao perceber seu poder político e econômico subtraído, não só apoia, mas constrói um tipo de discurso que alimenta um preconceito histórico em prol da sua manutenção econômica. Esse processo se repete com o reenquadramento e a reorganização do mito inicial de construção do Nordeste através da noção do turismo que, ampliado, favorece o interesse de poucos na sombra do mito de um Nordeste atrasado. Os que dominam as estruturas da atividade participam, em grande medida, de um jogo de disputa política. Nas palavras de Santos Filho (2011), que desenvolve pesquisas no campo das políticas de turismo, os órgãos destinados a impulsionar a atividade (tanto em âmbito nacional como local, caso do Ministério do Turismo) são palcos de estratégias e apadrinhamentos políticos. Prática que desde a formação da EMBRATUR vem sendo corriqueira no interior do Estado brasileiro. Isso se comprova na facilidade de encontrar matérias como a citada abaixo: Políticos estão fazendo, literalmente, a festa com dinheiro público. Associam-se a ONGs para conseguir recursos do Ministério do Turismo e realizar eventos festivos, num esquema que muitas vezes envolve fraudes e tira proveito de falhas de fiscalização do governo federal. A Polícia Federal e a Controladoria-Geral da União investigam corretagem de emendas parlamentares, pagamento de propina a quem libera a verba e uso de notas frias. [...] Entre as 50 ONGs que mais receberam dinheiro do Turismo para organizar festas entre 2007 e 2009, a Folha identificou que 26 têm relação direta com políticos e partidos. As entidades receberam R$ 53 milhões no período. Pelo menos nove deputados federais beneficiaram-se dos recursos, seja diretamente ou por meio de assessores ou doadores de campanha. São eles: Armando Monteiro (PTB-PE), Sandro Mabel (PR-GO), Alfredo Kaefer (PSDB-TO), Geraldo Magela (PT-DF), José Ayrton (PT-CE), Sandes Júnior (PP-GO), Rodovalho (PR-DF), Rômulo Gouveia (PSDB-PB) e Leo Alcântara (PR-CE). Além disso, há entidades contempladas e subcontratadas que são ligadas a deputados, vereadores e assessores (FOLHA DE S. PAULO, 2010)104. Esse tipo de arranjo marca divisões sociais fortes no Brasil favorecendo as dicotomias como descrição da realidade; nesse caso, como se o espaço brasileiro fosse apenas duas partes adversas: sudeste e nordeste; superiores e inferiores; desenvolvidos e atrasados, ricos e pobres. Pior, são discursos que mascaram as consequências das relações econômicas reproduzidas no 104 FOLHA DE S. PAULO. Fraude com recursos para festas repete “Sanguessuga”. Seção Brasil, São Paulo,19 abr.2010. Disponível em: . Acesso em: 26 mar. 2018. 103 Brasil, tomando a natureza, o meio e a raça como conceitos para análise do comportamento dos indivíduos, colocam ainda, os problemas sociais como determinados enquanto um aspecto da moral ou do caráter de um povo. Os discursos constroem uma identidade espacial para o Nordeste, um ethos que estipula configurações comuns aos estados da região dotando-os com os mesmos signos de representações presentes nos diversos dispositivos comunicacionais como as fotografias, os folders publicitários, as redes sociais, as músicas, o cinema, etc. O Estado do Rio Grande do Norte é objeto dessa identidade nordestina: nordestino-potiguar, que o fez, assim como os outros estados do Nordeste, ora ser apontado por discursos da seca, ora por discursos em favor do turismo (CARVALHO, 2009). As “formações discursivas” favorecem o aparecimento desse “novo” Nordeste turístico ancorados na construção identitária de origem cujo os rebentos localizam-se nos símbolos depreciativos de construção da região onde determinados agentes, entre eles os próprios personagens do lugar, foram responsáveis pela discursiva histórica que a desenha com sentidos desfavoráveis. Assim “devemos suspeitar que somos agentes de nossa própria discriminação, opressão ou exploração” (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2006, p. 21). O sol, maior símbolo da seca, aparece no turismo como ponto central de destaque para a valorização do litoral: um paraíso que se abre ao lazer e o descanso. O cacto que, ao lado do gado morto e dos rostos esquálidos, representava as adversidades do clima desértico, brand em restaurantes e feiras de artesanato. O mestiço montado em seu burro, representantes de um modo de vida arcaico, viram peças de artesanato para decoração de ambientes rústicos. A figura do cangaceiro Lampião, líder de um movimento marcado pelo banditismo e por vários eventos de violência, é souvenir pontual no artesanato regional firmando-se como tipo representante do espaço. Alguns rituais da fé católica, como as promessas e seus pagamentos, compõem o cenário da seca, uma vez que os moradores direcionariam aos santos e suas providências a possibilidade de melhoria de vida; no turismo essa religiosidade popular, consagrada como um patrimônio cultural transforma-se em evento festivo. Essas são formas que difundem uma imagética para destacar a região e os estados que a compõe. O turismo passa a fazer parte do interesse do Estado quando os discursos construídos a partir de dados empíricos e estatísticos acenam para a atividade como uma série fantástica de números recordes de entrada de divisas nos países. Nesse cenário, que corresponde à primeira metade do século XX, o Estado brasileiro envolve-se com a organização de projetos e leis para incentivo da atividade concebidas a partir da importância da representação desse setor na economia. 104 Na era centralizadora de Vargas, na ditadura militar, o país foi recortado por decisões políticas e programas que priorizavam o desenvolvimento econômico com base na industrialização e na modernização das cidades. A partir de 1964, novas formas de intervenções socioespaciais são valorizadas diante de conotações essencialmente econômicas; a industrialização é colocada como prioridade, os planos nacionais passam a favorecer a entrada de empresas multinacionais e o turismo aparece como um dos carros chefes, também, como um facilitador da integração nacional. Entre outras expectativas que atendem a uma hierarquia nas relações de poder e estimulam a organização das políticas de turismo no Brasil a fim de demandar a organização do setor no país (BENI, 2006). Em sequência ao quartel citado, os discursos em prol do turismo começaram a ficar mais substanciais e a ganhar materialidade com a organização de infraestruturas para apoio da atividade. Por outro lado, as exposições que indicavam o local como seco, tradicional, rural e economicamente atrasado persistiam, mesmo o Nordeste abrigando uma das maiores metrópoles do país, além do fato de que grande parte da sua população passou a viver em áreas urbanas, ademais a região se concentrava (e se concentra) em uma sociedade moderna e capitalista. Tudo isso tornavam antagônicas as definições baseadas em um conjunto singular de enunciados que atribuíam à região o estatuto de subordinada, longínqua, rural e folclórica. O peso com que a atividade turística se colocou na conjuntura nacional e as expectativas de inserção no cenário global impôs a necessidade de reformulação dos discursos em relação à visualidade da região. Essas mudanças são gestadas na segunda metade do século XX. Seus germens estavam na década de 1960, quando conceberam-se as primeiras articulações para transformação das visualidades tradicionais que dominavam o espaço. Uma nova versão do Nordeste começou a ser elaborada pela propaganda da elite local que visava atrair recursos financeiros por intermédio do turismo e da industrialização. Contudo, as ações que sucedem a esse período ancoram-se na construção de uma imagem utópica e imaginária, sempre com vias de se consolidar no amanhã e nunca no hoje (FERREIRA, 2006). As promessas em torno da atividade ampliaram-se, todavia, esbarraram no retrato construído anteriormente no plano político, econômico e social. Os ícones consolidados como representativos da região não se extinguiram em prerrogativa a um novo conjunto de imagens, ao contrário, sobreviveram. A fim de atender aos novos interesses foram reelaborados e ganharam status de aspectos culturais, tradicionais e folclóricos da região Nordeste – fazem parte de um arsenal estratégico direcionados à impulsionar a atividade turística. Mudam-se os sentidos, mas os símbolos construídos através dos discursos fundantes da região são “imagens 105 sobreviventes” 105 que penetram nas relações atuais entremeados nas fotografias e nos ícones culturais, permanecem perturbando a história, fixando os espaços e encadeando novos projetos. 3.1 SOBRE DISCURSOS Antes de pensar em discurso toma-se como ponto de partida a concepção da linguagem, essa tem como referência os estudos de Saussure (2006). O autor esboça uma proposta sobre a ciência geral dos signos, composto pela dicotomia do significante versus significado, ou melhor, segundo a sua interpretação no domínio do signo tem-se a junção entre um significado (conceito) e um significante (forma ou imagem) que seria a articulação entre a imagem e o conceito. Nesse viés, o significante apenas significa sem visar atingir uma comunicação sendo vazio de sentido. Já o significado traduzido pelo conceito é o sistema que conduz a comunicação sendo o produtor de sentidos. Albuquerque Júnior (2013, p. 26) simplifica o conceito de Saussure, para isso basta olhar a capoeira: um conjunto de práticas culturais que envolve gestos, formas e imagens. No século XIX, esse conjunto de gestos, formas e imagens denominado por capoeira carregava significados de crime e violência. Nos dias atuais, mantendo o mesmo nome de capoeira e os mesmos gestuais, práticas, formas e imagens carrega o sentido de esporte ou dança. Desse modo, a capoeira é um signo, como signo está aberta a distintas significações no percurso do tempo. Vamos agora assumir o nosso exemplo: o mar; ao pensarmos hoje nesse signo, nessa entidade concreta que é o mar, provavelmente a articulação que vem em mente é a do prazer, do lazer, do gozo, da diversão. Uma vez que o mar é um espaço onde o ser humano pode brincar e relaxar. Mar é um signo, exposto somente em sua forma ou imagem, e é vazio de sentido, visto que forma e imagem são significantes que só passam a comunicar algo quando conceituadas pelo significado, o significado é a “chave” para a sua compreensão. Ao mar diversos sentidos, de acordo com as percepções sócio-históricas, foram atribuídos. Corbin (1989) aponta três momentos distintos: primeiro, na idade média o mar era significado através dos discursos bíblicos como um lugar de perigo, ambiente demoníaco, hostil, terrível aos humanos. Segundo, no período iluminista o mar estava atrelado aos discursos científicos, passando a ser um local terapêutico, para uso racionalizado. O contato do indivíduo com o mar se dá a partir de prescrições médicas, com o objetivo de cura, o uso é sistematizado por intermédio de tempo e movimentos determinados. Terceiro, a concepção atual, que o data de 105 Analogia ao título do livro de Georges Didi-Huberman (2013) intitulado “A imagem sobrevivente”. 106 vários sentidos, mas privilegia-o como espaço de desfrute e lazer. O signo mar abarcou distintas significações ao longo do tempo que suportou o seu significado. Essas são as noções fundantes do estudo da linguagem. Postas as limitações a esses esboços iniciais que se baseavam na dicotomia entre a língua e a fala, em que a língua aparecia como objeto dos estudos linguísticos, os autores passam a enveredar para o entendimento da linguagem para além da língua, atrelados às condições sócio-históricas. O liame dessas significações opera-se na vinculação entre o fenômeno linguístico e o social onde manifesta-se a ideologia, sendo valorizada no campo acadêmico a teoria de Bakhtin (1979), em que o princípio é a língua como um fato social de natureza ideológica. Para esse autor, no ato da fala reside a enunciação, componente que estrutura o processo de interação social, ideológica por excelência. Corroborando com essa perspectiva Barthes (2003) aponta o caráter ideológico e os sentidos socialmente atribuídos presentes nos signos divulgados pela burguesia, com o objetivo de desmascará-los. Esses estudos englobam a articulação dos fenômenos linguísticos e dos processos ideológicos, partem do entendimento da linguagem como um processo vinculado as suas distintas condições de existência, uma mediação entre o indivíduo e o seu meio social; aqui se tem o discurso. O discurso inscreve-se nas relações entre o que dizer e as condições sociais que permitem a produção desse dizer106. Diante dessa concepção, Maingueneau (2015) coloca que para a análise deve-se levar em conta o quadro das instituições por demarcarem a enunciação no qual o discurso é produzido. De antemão, as questões sociais e históricas não podem ser menosprezadas, pois se plasmam na linguagem construindo o discurso. Acrescenta-se o fato dos discursos configurarem espaços próprios no interior de um interdiscurso traduzindo-se em um produto balizado pelas conexões estabelecidas entre os indivíduos com o seu tempo e espaço encadeado às dimensões socioculturais. Sendo assim, o discurso é uma interpretação emitida por intermédio das relações humanas, da qual participamos ativamente, por isso longe de ser passivo manifesta uma competência ideológica. 3.1.1 A ideologia e as suas formas 106 De modo geral, podemos afirmar que existem duas perspectivas básicas e distintas que marcam as posturas teóricas para a análise do discurso: a norte-americana e a europeia. Nosso foco se dá na linha europeia. A percepção norte-americana parte da relação entre o lugar social do sujeito e a fala, com atenção ao seu processo de enunciação, alguns autores colocam que essa contribuição por se dar no interior do linguístico, analisa o texto de modo redutor. Para mais informações ver: Charaudeau e Maingueneau (2016); Maingueneau (2015); Brandão (2002). 107 Sobre a ideologia há uma quantidade abundante de debates que abordam essa noção, sendo por isso um conceito que aparece muitas vezes de forma confusa e controversa incorporando variados valores. Já sobre os discursos, como vimos, materializam realidades a partir de uma concepção ideológica. Visto que os discursos se concretizam nos espaços circunscritos por condições objetivas e subjetivas muitas vezes por meio da opressão concordamos com Eagleton (1997), que deixar em eclipse e obsolescência o conceito de ideologia é absurdo, já que ele é capaz de criticar essas condições e direcionar possibilidades de transformá-la. O termo ideologia traz o prefixo grego “ideia” do “protótipo ideal”. Literalmente significa “ver”, em “forma” e “aparência”. O conjunto tem como base a ideia unida ao “logos” que remete ao sentido de “discurso” e de “estudo”. Por fim, a percepção desse traçado etimológico nos conecta ao discurso da forma ideal ou ao estudo da aparência. Outro modo de entendimento do conceito, simplificado, é apresentado pelo Dicionário Priberam da Língua Portuguesa107, são três concepções básicas; primeira: ciência da formação das ideias; segunda: tratado sobre as faculdades intelectuais; terceira: conjunto de ideias, convicções ou princípios filosóficos, sociais e políticos que caracterizam o pensamento de um indivíduo, grupo, movimento, época, sociedade (ex.: ideologia política). O dicionário Michaelis108 destaca que ideologia é a ciência da formação das ideias; um tratado das ideias em abstrato; sistema que considera a sensação como fonte única dos nossos conhecimentos e único princípio das nossas faculdades, e; maneira de pensar que caracteriza um indivíduo ou um grupo de pessoas: ideologia socialista. Em todas as colocações sobre o conceito de ideologia temos como panorama geral um direcionamento para a compreensão das ideias que caracterizam um grupo social, consequentemente, com repercussão sobre os indivíduos e suas ações. Se abarcássemos uma concepção mais ampla direcionada à ideologia, se a incorporássemos relacionada aos valores vigentes reproduzidos em uma determinada, sociedade o debate poderia até ser profícuo, mas seria longo e complexo, levando em consideração que desde a antiguidade existem formas de se pensar em uma consciência social coesa. Por isso elaboramos uma explanação pontual em acordo com a emergência do termo e seus principais usos. A gênese da expressão ideologia é relativamente recente, sua origem se dá em bases iluministas, aparecendo pela primeira vez no ano de 1815, no livro Elements de idéologie. 107 107 Disponível em: < https://www.priberam.pt/dlpo/>. Acesso em: 26 mar. 2018. 108 Disponível em: < http://michaelis.uol.com.br/>. Acesso em: 26 mar. 2018. 108 Criada por Antoine Destutt de Tracy, membro da elite de cientistas e filósofos os quais constituíam a ala teórica francesa, despontou como um sinônimo da atividade científica capaz de analisar o pensamento como parte da zoologia da ciência geral do humano. Nesses termos tratava uma associação de ideias como fenômenos naturais capazes de exprimir a relação do corpo humano, enquanto organismo vivo, com o meio ambiente. Partia do pensamento vigente na época que se a ciência repousa em ideias, então, seria necessário esmiuçar as leis dessas ideias. O método para a sua análise estava ancorado nos rigores científicos impostos pelo positivismo, opondo-se a metafísica, a teologia e a psicologia (WILLIANS, 1979; EAGLETON, 1997; KONDER, 2002; CHAUÍ, 2004; BOSI, 2010). Na contramão dessa perspectiva externa-se o sentido desdenhoso cunhado por Napoleão Bonaparte ao sentir o seu autoritarismo ameaçado pelo idealismo revolucionário. Esse ataca os ideólogos e, principalmente, De Tracy, desqualificando-os e expondo-os enquanto responsáveis pelos infortúnios franceses; coloca-os enquanto figuras nebulosas, abstratas e; desconhecedoras da realidade concreta. Esse discurso notabiliza um novo sentido atrelado à ideia de falsa consciência. Logo, a ideologia que era o estudo científico das ideias humanas passou a significar o próprio sistema de ideias. Igualmente um ideólogo ao invés de ser um estudioso das ideias passou a ser alguém que as expunha motivado por algum tipo de interesse. O que, aliás, antecipa o sentido acolhido por Marx ao propor que a ideologia se trata de uma ideia abstrata de “apologia política” (EAGLETON, 1997, p. 69). Em “A Ideologia Alemã”, Marx (1999) segue essa concepção de falsa consciência dada ao vocábulo e constrói o conceito como equivalente à ilusão: uma concepção idealista na qual a realidade é invertida e as ideias aparecem como motor da vida real. Ou melhor, a ideologia, de acordo com a formulação de Marx, não é simplesmente a mentira: ela pressupõe algum tipo de conhecimento concreto da realidade e a distorce a ponto de traí-la. Essas distorções ideológicas não são resultantes de conspirações e tramas que estão a serviço da burguesia, embora elas existam e se aproveitem delas, mas são sua base e a causa está, justamente, na própria organização da sociedade e em seu processo de complexificação que reduziu aos indivíduos a capacidade de compreender de modo mais amplo as distintas relações sociais, naturalizando-as (KONDER, 2002). Para Marx, claramente, ideologia é um conceito pejorativo, um conceito crítico que implica em ilusão, ou se refere à consciência deformada da realidade que se exerce através da ideologia dominante. Isso se dá porque o estudioso se debruça sobre a crítica ao sistema capitalista e ao desnudamento da ideologia burguesa. “Se as ideias são apreendidas como entidades autônomas, então isso ajuda a naturalizá-las e a desistoricizá-las; e esse é, para o jovem Marx, o segredo de toda a ideologia” (EAGLETON, 1997, p. 70). 109 Para Eagleton (1997) os estudos que envolvem o conceito de ideologia estão divididos em duas grandes orientações teóricas caudatárias de dois filósofos alemães do século XIX, Hegel e Schopenhauer. A primeira, oriunda de Hegel (A fenomenologia do espírito) desdobra- se do idealismo para o materialismo, traçando o debate iniciado por Marx e Engels (A ideologia alemã) até as inúmeras produções do marxismo ocidental. A segunda concepção parte de Schopenhauer (O mundo como vontade e representação) ganhou força subsequentemente com as obras de Nietzsche, Freud e, em linhas gerais, na obra de Foucault e dos pós-estruturalistas. Para Mannheim, o sentido da ideologia não se restringe apenas a um conjunto fechado de representações e valores que estão ligados a determinados interesses. Além, são valores projetivos com objetivos que direcionam às perspectivas futuras baseados na reelaboração de uma construção feita no passado. Por isso relaciona a ideologia com o conceito da utopia uma vez que afirma o papel ideológico de projeção do futuro na utopia, tanto por buscar objetivos futuros, quanto por poder influenciar na ação social visando à construção de um mundo melhor. A ideia de utopia em Mannheim amplia o conceito de ideologia não apenas como uma descrição e justificativa, mas como uma projeção de futuro e modo de se repensar o próprio passado (BOSI, 2010, p. 82). Já Walter Benjamin desenvolve a sua contribuição por intermédio do que ele chama de “escovar a história a contrapelo”; metáfora utilizada a fim de compreender, alicerçado na história, o conceito de utopia presente em Marx, Engels e Hegel apoiado nas relações entre passado e presente, com os olhos postos no futuro. É uma união em pensamento e ação de passado, presente e futuro. Em Mikhail Bakhtin como a linguística deve ultrapassar a ótica da língua como sistema, recusa o fechamento do texto, então formula uma análise que põe em relação à ideologia com a psicologia afirmando a primazia da ideologia na construção da consciência individual. Aponta a impossibilidade de se entender isoladamente a língua, uma vez que essa é um signo social e ideológico por excelência, transcendendo a abordagem marxista, combinando-a com o freudismo e o estruturalismo. Inclusive, são os estudos de Mikhail Bakhtin e Roland Barthes que possibilitam a análise dos meios e das condições nas quais os sentidos são socialmente construídos e experimentados nos distintos tipos de discursos sociais. Para Paul Ricoeur (1977, p.68) a ideologia aparece de modo reduzido quando as tendências marxistas a encerra na convicção da falsa consciência. Não que o autor queira combater esse direcionamento, mas chama atenção para o seu caráter restritivo. Colabora com o alargamento do debate ao interpretar, inicialmente, o conceito como resposta à necessidade o qual os grupos sociais têm de “conferir-se uma imagem de si mesmo”, isto é, uma necessidade 110 de representar-se no sentido teatral do termo, para si mesmo e para o outro. A lembrança é o elemento fator da formação das ideologias, ela sedimenta ideias enquanto as situações se transformam segundo as identidades que constrói. Como consequência o discurso é a consagração da ideologia, pois tem um caráter codificado e esquemático. Com base no discurso as ideologias são sedimentadas e em tal caso o pensamento crítico cede lugar à simplificação do discurso integrador, o que ocorre na contramão da análise, da interpretação e do julgamento, atividades intelectuais fundadoras do espírito científico. Logo, para Ricouer a ideologia aparece no reino da opinião (doxa), do estereótipo, da frase feita prestando-se facilmente a jogos de prestígio (BOSI, 2010, p. 136). De acordo com Willians (1979; 2011) a questão da ideologia extrapola os estudos marxistas e coteja três noções comuns que circunscrevem o conceito: a primeira refere-se a um conjunto de crenças e valores de uma classe; a segunda é análoga à falsa consciência e; a terceira diz respeito ao processo de produção de ideias e significados culturais. Em suma, um sistema de crenças e valores de uma classe social que repercutem sobre a dinâmica do pensamento social e falseia o real a fim de assegurar a perpetuação da sua posição de classe. Nesse ínterim, a linguagem, em seu enredo cultural, é primordial para a constituição de ideias, imagens e símbolos que organizam, delimitam e classificam os grupos ou classes, o que só é possível por intermédio da ordem de produção do discurso hegemônico. O que favorece aos que produzem o discurso legitimado em detrimento de outros grupos, sendo esses últimos suscetíveis ao descrédito, aos clichês e estereótipos em suas práticas. Diversos autores construíram definições sobre a ideologia que trazem à tona os diversos corpus de significados existentes, talvez a noção mais comum seja a alegação de que a ideologia tem a ver com a legitimação do poder de um grupo social dominante ou classe. Porém, Eagleton (1997) aponta que a ideologia refere-se às representações empíricas vivenciadas pelo homem e que como tal pode e deve ser alterada. As relações vivenciadas e transformadas forneceriam as ferramentas necessárias para a constante mudança da sociedade, dilacerando com as condições propícias de dominação. Para a filósofa Marilena Chauí (2004), a ideologia se traduz em um conjunto sistematizado de representações e condutas no qual deve-se questionar “o que” e “como” deve pensar, sentir, valorizar e agir os membros de uma sociedade. Contudo, subscreve-se como um corpo explicativo (representações) e prático (normas, regras, preceitos) de caráter regulador, cuja função é justificar racionalmente aos membros de uma sociedade dividida em classes as diferenças sociais, políticas e culturais, sem atribuir essas diferenças às divisões na esfera da produção. Longe disso, sua incumbência é suprimir as diferenças de classes e fornecer aos 111 membros da sociedade o sentimento de identidade social a partir de referenciais identificadores de todos e para todos, como, por exemplo, a humanidade, a liberdade, a igualdade, a nação ou o Estado. Baseados nesses autores endossamos que na atualidade não se deve primar por um estatuto ontológico para definir a ideologia, ao contrário, para que o termo sirva como ferramenta de análise deve ultrapassar os limites dos significados fechados e ir além da bipolarização. Queremos dizer que não devemos apreender a ideologia fundamentados no discurso de quem é privilegiado ou não nas distintas esferas de poder, isso porque nos comunicamos através de ideias e de ações que constituem formas culturais e comportamentos sociais, dessa maneira todos nós participamos do processo de elaboração de ideologias. Ou seja, não estamos isentos de (re)produzi-las. Temos em conta que a ideologia não é apenas proveniente dos grupos privilegiados nas relações de poder, não é produzida somente pelas classes dominantes, uma vez que não só são esses grupos que produzem valores. Inclusive, os valores de um determinado momento se destaca mais do que a classe que o produziu; como não é só a classe dominante que produz valores se torna mais adequado pensar em valores dominantes de uma época, do que pensar propriamente em uma classe produtora de valores. Não há uma ideologia só de grupos, classes, religiões, políticas ou de outro elemento isolado; o que há são os elementos em conexões sutis do discurso, seja o discurso das fotografias, do turismo, do estilo de vida, dos tipos de lazer e viagens, ou outros. Com tais características o jogo da ideologia é complexo e parte de uma rede de valores vinculados em distintos segmentos, tempos e espaços. 3.1.2 A formação do discurso Os estudos que se debruçam sobre o discurso nas ciências sociais oscilam basicamente em dois objetivos: analisar funcionamentos e exercer um poder crítico. Para se pensar em crítica seria necessário buscar desvendar interesses que de algum modo o discurso dissimula, essa perspectiva eclode em 1960. O caráter dessas análises se manifesta por intermédio de uma força crítica que encadeia os seus textos ao funcionamento das instituições que os produzem e os gerem. Nelas o discurso aparece como um conjunto de enunciados que praticados ao longo do tempo dão ênfase a uma dada formação discursiva construída através de um sistema regular existente na dispersão do conjunto de enunciados estudados. A regularidade, em seu turno, é constituída por regras de formação, ou melhor, por orientações em que os enunciados são enquadrados a fim de pertencer a uma dada formação discursiva (FOUCAULT, 1969; 2007). 112 Embora não seja o único, Michel Foucault é um dos pensadores mais fecundos a fim de se considerar a questão do discurso, para ele se trata de elementos ou enunciados dispersos que mesmo não sendo arbitrários não estão ligados a uma unidade comum, conservando-se na invisibilidade. Para dar coerência à dispersão do discurso Foucault (2007) coloca que se deve construir um sistema de relações entre objetos, enunciados, estratégias e termos capazes de dar uma lógica a dispersão existente. Assim, os elementos constitutivos de um dado discurso aparecerão regularizados por suas matrizes denominadas por formação discursiva. Podemos afirmar que o autor busca na pluralidade, nos espaços alternativos e fora das fronteiras à racionalidade capaz de explicar as práticas constituintes do discurso. Pensar nessa direção é se entrelaçar na dispersão dos acontecimentos que constituem as produções humanas materializadas nos enunciados e na formação discursiva. Não se trata de interpretar o discurso para fazer através dele uma história do referente; [...] Sem dúvida, semelhante história do referente é possível; não se exclui, de imediato, o esforço para desenterrar e libertar do texto essas experiências ‘pré- discursivas’. Mas não se trata, aqui, de neutralizar o discurso, transformá-lo em signo de outra coisa e atravessar-lhe a espessura para encontrar o que permanece silenciosamente aquém dele, e sim, pelo contrário, mantê-lo em sua consistência, fazê- lo surgir na complexidade que lhe é própria. Em uma palavra, quer-se, na verdade, renunciar às ‘coisas’, ‘despresentificá-las’; conjurar sua rica, relevante e imediata plenitude, que costumamos considerar como a lei primitiva de um discurso que dela só se afastaria pelo erro, esquecimento, ilusão, ignorância ou inércia das crenças e das tradições ou, ainda, desejo, inconsciente talvez, de não ver e de não dizer; substituir o tesouro enigmático das ‘coisas’ anteriores ao discurso pela formação regular dos objetos que só nele se delineiam; definir esses objetos sem referência ao fundo das coisas, mas relacionando-os ao conjunto de regras que permitem formá-los como objetos de um discurso e que constituem, assim, suas condições de aparecimento histórico; [...] trata-se de identificar os relacionamentos que caracterizam uma prática discursiva (FOUCAULT, 2008, p. 53-54.). A percepção presente na obra de Foucault (2008) é derivada do paradigma marxista de formação social e ideológica. Contudo, a partir desse norte, essa concepção extrapola o movimento dialético em prol do pensamento da coexistência. Princípio que parte do olhar das condições históricas, sociais e das suas variáveis mais abrangentes e pertinentes aos seus intuitos investigativos: em vez de limitar-se ao sistema da estrutura e a ideologias contextualizadas foca-se nos acontecimentos que reproduzem as estruturas; nos discursos e nas suas cadeias, na emergência e nas redes do enunciado. Tal, um enunciado que é unidade elementar do discurso não se fecha sobre si mesmo, longe disso, conecta-se com outros enunciados. O “enunciado é uma verdadeira coisa situada num entremeio, com a língua como sistema de regras de um lado e, do outro, o corpus como o discurso efetivamente pronunciado” 113 (DOSSE, 2007, p. 301). Para Foucault (2008), o enunciado, menor unidade do discurso, perpassa os blocos discursivos de um texto promovendo os conteúdos no tempo e no espaço. Não acredito que a condição necessária e suficiente para que haja enunciado seja a presença de uma estrutura proposicional definida, e que se possa falar de enunciado todas as vezes que houver proposição e apenas neste caso. Pode-se, na verdade, ter dois enunciados perfeitamente distintos que se referem a grupamentos discursivos bem diferentes, a elaboração de um discurso que, como qualquer outro, não está permanentemente submetido ao poder, nem oposto a ele. ‘É preciso admitir um jogo complexo e instável em que o discurso (historiográfico) pode ser ao mesmo tempo, instrumento e feito do poder, e também obstáculo, escora, ponto de resistência e ponto de partida de uma estratégia oposta’ (FOUCAULT, 1977, p.96). O enunciado elabora os signos que dão lógica ao discurso e define a produção dos sentidos. Qualquer série de signos, de figuras, de grafismos ou de traços - não importa qual seja sua organização ou probabilidade - constrói um enunciado. Enquanto a gramática determina se é ou não uma frase; à lógica define se comporta ou não uma forma; e à análise precisa a linguagem que a transpõe. Neste caso, existe o enunciado desde que existam vários signos justapostos. O limiar do enunciado seria o limiar da existência dos signos (FOUCAULT, 2008, p. 95) sendo elaborado por “um sujeito, em um lugar institucional, determinado por regras socio-históricas que definem e possibilitam que ele seja enunciado” (GREGOLIN, 2003, p. 2). As regras devem ser realçadas por intermédio da análise da formação dos objetos discursivos, das suas operações, conceituações e opções teóricas, para que pululem os sistemas e as redes de relações que se estabelecem nos discursos. Como coloca Foucault (1984a, p.17) é a multiplicidade que cria o sentido, direciona aos inúmeros afrontamentos entre forças e saberes, aflorados pela dispersão de acontecimentos consequente de embates que emergem em meio a forças litigantes. Por isso a história praticada como genealogia “restabelece os diversos sistemas de submissão: não a potência antecipadora de um sentido, mas o jogo casual das dominações”. Em nosso direcionamento, os sentidos sedimentaram os estereótipos e estigmas genéricos sobre os estados nordestinos, reduzidos, comumente a duas acepções anteriormente: a da seca; e, a do turismo. A segunda apreende a região, os costumes, as festas, a religião e aspectos culturais como exóticos. 3.2 A FOTOGRAFIA E A COMPREENSÃO SOCIOLÓGICA A palavra fotografia é originária do grego phosgraphein, junção dos elementos: phos ou photo, que significa “luz”, e de graphein, que constitui “marcar”, “desenhar” ou “registrar”. Literalmente a palavra quer dizer desenhar com a luz, marcar com a luz ou registrar com a luz. 114 O termo surge a partir do processo que envolve a produção das fotografias, que se desenvolve de modo mais efetivo nas duas primeiras décadas do século XIX, tendo sido oficialmente registrada em 1926, no nome do Joseph Nicéphore Niépce. A fotografia é um tipo de representação imagética que se dá através da captura visual de elementos distribuídos em um espaço enquadrado no visor pelo operador. Esse último sustenta-se em específicas distâncias dos elementos que se pretende reproduzir. Submetidos a exposição da luz através de uma lente sensível e própria para este efeito os elementos distribuídos espacialmente são reproduzidos em uma superfície fotossensível. Esse é o processo que deu nome a um tipo de escrita específico, que é a escrita com a luz. Barthes (1984, p. 121) enfatiza que a fotografia é um processo de construção da imagem por meio da luz que, em sua incidência, sensibiliza sais de prata colocados em uma superfície e assim permite “captar e imprimir diretamente os raios luminosos emitidos por um objeto diversamente iluminado”. Consiste-se em uma impressão que a relaciona ao conceito de índice. Nesse sentido, a fotografia não tem que ser semelhante ao objeto ao qual se refere, mas distingue-se dos desenhos e da pintura, primordialmente, pelo contato físico com o referente, pela impressão que gera uma imagem presa ao original. Para Dubois (1993, p. 61) a fotografia é um índice discursivo que mantém relação com o seu referente, para então produzir variadas interpretações. Antes de qualquer outra consideração representativa, antes de ser uma imagem reprodutora das aparências de um objeto, pessoa ou espetáculo do mundo, a fotografia é da ordem da impressão, do traço, da marca e do registro. Em seu caráter realístico ou simbólico envolve o discurso da mimese, o discurso do simbólico e o discurso do referencial 109. Nesse norte se destaca como passível de uma infinidade de interpretações posteriores. O surgimento da fotografia no cenário da modernidade trouxe novas sensações aos indivíduos, dilataram as experiências, marcaram conceitos híbridos e fluídos como o mistério, a dúvida e o desassossego. Transcendeu muito do que havia sido construído até então. Toda a consciência estabelecida pela lógica do olhar para si e para o ambiente durante séculos foi sobrepujada no momento em que o rosto, os feitos humanos e os espaços foram representados na imagem fotográfica. Em acordo com as concepções que permeavam o momento, a representação observada no artefato fotográfico era tal como se apresentavam dotados de uma 109 Dubois (1993) ao se basear na perspectiva peirceana da distinção entre ícone, índice e símbolo destaca três diferentes posições epistemológicas em relação ao realismo e ao valor documental da fotografia: o discurso da mimese, em que a fotografia é interpretada como espelho do real (ícone); o discurso do código e da desconstrução, onde a fotografia ressignifica o real (símbolo); e o discurso do índice e da referência, que destaca a fotografia como vestígio do real. 115 relação essencial com o referente. Esse invento fortalecia a certeza, cada vez mais presente, de que o desenvolvimento técnico estava a serviço da sociedade, um apoio ímpar para desvendar o mundo e construir novas certezas; concepção ideológica do momento. O domínio racional do mundo incluía o homem na categoria de objeto a ser analisado, calculado e classificado. Não havia mais a possibilidade que dava ideia da dúvida ou do erro. A necessidade de estabelecer um recorte que priorize o ponto de vista do campo acadêmico no qual observaremos esse objeto é primordial, diante de sua amplitude temática, a fotografia se enraizou de forma demasiada extensa em diferentes âmbitos sociais. Abarcá-la em todas as suas dimensões seria uma tarefa improvável. Mas, isso não impede uma reconstrução de seu percurso, ocupando-nos em colocar de maneira geral, as nuances que essa exerceu ao firmar-se nos diferentes contextos do espaço/tempo social, de revisar a representação e o simbolismo capazes de iluminar as mudanças ocorridas em sua trajetória. Diante da inserção da fotografia na sociedade, surgira vários olhares que almejaram apreender seus sentidos. As ciências naturais a adotava como prova técnica de algum evento, em sequência áreas epistêmicas como a sociologia, a antropologia, a geografia e a história trilham o mesmo horizonte. Todavia, abrem-se como itinerários para compreensão dos seus múltiplos enunciados e ao focarem na abrangência imagética dos elementos que a constitui constrói-se um caminho que busca ir além da ilustração. A fotografia é um fragmento das inúmeras narrativas que emergem sobre o Ocidente. Sobre o mundo de modo geral, sua importância abrange-se com sua reprodução e circulação. Sem dúvida, das diversas fontes iconográficas – pintura, escultura, televisão, cinema e etc. – a fotografia caracteriza-se como um ícone da cultura visual, vigente por mais de um século e meio. Quando sua técnica concretizou-se baseada na possibilidade de reproduzir automaticamente um instante do mundo real lhe rendeu o pendor de imagem “espelho”: habilidade materializada em meio às transformações ocorridas no século XIX, por intermédio dos recursos tecnológicos (DUBOIS, 1993). Essa perspectiva fascinou e serviu aos projetos científicos e aos ideários correntes. Na ciência, por exemplo, foi um recurso (em grande medida ainda é) utilizado para justificar a pretensa objetividade das coisas. Apoiou à constatação de fatos científicos das ciências naturais as humanas. A crença a legitimidade atribuída às imagens fotográficas atravessou o século XIX, e continuou como uma assertiva em praticamente todo o século XX. Sociólogos, antropólogos, historiadores, entre outros estudiosos valeram-se dessa imagem como um documento objetivo e indiscutível dos fatos, acontecimentos e situações. Ao contrário de outras fontes, a imagem fotográfica colocaria o pesquisador diante de uma situação que está revelada. O historiador 116 Didi-Huberman (2003) exemplifica como se deu esse processo em seu estudo sobre Charcot e a Iconografia de Salpêtrière, maior manicômio de Paris. Nele é averiguada a objetividade dada as fotografias de pacientes histéricas produzidas no período da Belle Époque Photography: ‘The Pencil of Nature’ (Talbot 1833) —'the Photographer needs in many cases no aid from any language of his own, but prefers rather to listen, with the picture before him, to the silent but telling language of Nature’ (H. W. Diamond, the first photographer of madness, 1856). In photography, everything is already objective, even cruelty; in it one can see, so they say, ‘the very least flaw.’ It was already almost a science, humility made into the absence of language. This message without code thus always says more than the best description; and, where medicine is concerned, it seemed to fulfill the very ideal of the ‘Observation,’ reuniting case and tableau. This is why, in the nineteenth century, photography became the paradigm of the scientist’s ‘true retina’ (DIDI-HUBERMAN, 2003, p. 32).110 Didi-Huberman descreve o momento em que a fotografia aparece como prova cabal de algo, sendo o fotógrafo um mero sujeito da sua produção, uma vez que esse indivíduo não precisaria intervir no processo de compreensão do que foi captado. Ao contrário, diante dessa noção é a imagem que revelaria algo, que ilustraria o despercebido ao olhar humano, por conter em si mesma o evento captado. Contudo, o que se tem é uma realidade aparente, uma vez que o que se apreende é o que se quer ver. A fotografia considerada como autônoma, em sua interpretação, nada mais seria do que um recurso técnico da modernidade que manipulado por um indivíduo revela verdades do cotidiano. No caso do Salpêtrière, os psiquiatras buscavam no dispositivo de visibilidade a apreensão da manifestação da histeria contida no que se acreditava já evidente. No manicômio os corpos das internas eram submetidos a uma rotina de poses que favorecia ao psiquiatra conceituar a patologia. Esse é o modo inicial de se relacionar e compreender a técnica que tomava corpo e construía os modos de olhar legitimando várias concepções do saber. Os primeiros discursos são marcados pela concepção geral de que a fotografia é “a imitação mais perfeita da realidade”, como explica Dubois (1993, p.27). Essa é origem do fazer fotográfico conectada a noção de semelhança com o existente captado por intermédio da mecânica. Mesmo sendo um discurso rodeado por contradições e polêmicas, é clara a ideia ortodoxa da sua objetividade, da captação do natural. Nesse sentido, o procedimento mecânico seria capaz de 110 Fotografia: “O pincel da natureza” (Talbot, 1833) - “Em muitos casos o fotógrafo não precisa de uma linguagem que lhe seja própria, ao invés disso, prefere ouvir junto com a imagem que está diante dele, a silenciosa, mas reveladora linguagem da Natureza” (Diamond, A primeira fotografia da loucura, 1856). Na fotografia tudo já está objetivado, até mesmo a crueldade; e pode ser observado, eles dizem, “até os mínimos detalhes.” Isso já era quase uma ciência, a submissão na ausência de linguagem. É uma mensagem sem códigos, consequentemente, diz mais do que a melhor das descrições. E, em relação à medicina, ela parecia cumprir o ideal da “Observação”, reunindo o caso e o quadro. Esse é o motivo pelo qual no século XIX, a fotografia tornou-se o paradigma “da visão real” do cientista. Tradução nossa. 117 construir uma imagem que fosse o “espelho do real”, possível “sem que a mão do artista intervenha diretamente” (DUBOIS, 1993 p. 27). O cenário embrionário da fotografia fortaleceu a crença na captação de um registro de um momento imobilizado no tempo. Essa convicção partiu de um paradigma vigente que também construía paradigmas sobre as pessoas, objetos, paisagens e lugares. Essa confiança na apropriação de fragmentos do real, da reprodução de maneira mecânica da realidade visual, como ressalta Martins (2009, p.29), é a expressão de uma das grandes e fundantes ilusões da sociedade contemporânea, a da paralisação da vida. As premissas que deram origem a essa concepção do caráter fidedigno da imagem fotográfica têm seu início no período renascentista, com a busca de se retratar a realidade da maneira mais próxima ao olhar humano. Foi desse intento que floresceu a perspectiva artificialis ou uniocular, sistema baseado na geometria euclidiana que procurava dar a ilusão de profundidade nas representações pictóricas, oferecendo nitidez ao objeto de interesse e distanciando os outros objetos no quadro. A convenção da perspectiva como referencial procedente do real foi organizada por intermédio de um ponto central – o ponto de fuga –, ordenador da materialização dos objetos reproduzidos em relação a sua posição a outros objetos inclusos no campo pictórico. Trata-se de um sistema ordenador, nele o espaço assume um caráter concreto e imutável diante dos objetos que sobre sua base tem caráter móvel. Essa construção conferiu uma nova visualidade em relação ao sujeito/objeto/natureza, separando, destacando e dotando-os de inteligibilidade. Uma técnica revolucionária que, na época em questão, estava coadunada a uma consciência inovadora de transformações e evoluções que levou o indivíduo a empreender meios de representação cada vez mais capazes de aumentar o grau de veridicidade dos objetos (COSTA; SILVA, 2004). A genuinidade pretendida na reprodução dos indivíduos e dos espaços que os circunscrevem consistia substancialmente na construção dos conhecimentos sobre os sujeitos e a natureza. Ideia que rompe com as concepções anteriores, majoritariamente, calcadas nas lógicas religiosas. São transformações que se instauraram em todas as esferas da vida social, econômica e cultural, norteadas por meio da ótica científica que aflora na modernidade com técnicas construídas e aliadas ao conhecimento. A fotografia como parte desse escopo tem a inovadora tarefa de representar o real, por ser resultado de um sistema mecânico compreendido como preciso, caracterizando uma cultura visual até então inédita. A primeira imagem fotográfica reconhecida oficialmente foi uma paisagem elaborada pelo francês Joseph Nicéphore Niépce (1765-1833), antes empolgado com a litografia começou 118 seus experimentos valendo-se da câmara escura. Em 1826111, após oito horas de exposição à luz fixou a famosa imagem “View from the Window at Le Gras” (Figura 10)112. Processo que denominou por “Heliography” (gravura de luz solar). Contudo essa conquista não foi uma obra isolada, mas decorrente de vários experimentos em diferentes pontos do mundo, marcado por políticas sociais, econômicas e territoriais que favoreceram o destaque de alguns nomes e o obscurecimento de outros. Figura 10- Vista da Janela de Le Gras. Fonte: A fotografia já era reclamada por alguns pesquisadores que afirmavam ter elaborado, também, os meios ideais para materializá-la. Havia uma corrida entre os entusiasmados pela finalização efetiva do processo de revelação. Niépce procurou fazer parceria com os estudiosos do procedimento, após cautelosos contatos chegou até o pintor e físico Louis Jacques Mandé Daguerre (1781- 1851). Com ele selou um contrato em 14 de Dezembro de 1829, a fim de aprimorar a técnica. Niépce faleceu pouco tempo depois de firmada à sociedade, em 1833, no anonimato.113 Deixou seu parceiro em uma situação privilegiada pelos avanços alcançados em suas pesquisas (KOSSOY, 2006). 111 Ainda que essa data seja oficializada existem divergências quanto a sua veridicidade. Um exemplo é o do pesquisador Boris Kossoy, que embora concorde que Niépce foi certamente autor das primeiras imagens permanentes obtidas por processo fotográfico questiona essa data, “seria 1824 ou 1826? ” (KOSSOY, 2006, p.121)] 112 “Vista da janela em Le Gras”, nome dado à imagem de Niépce, marcou o início da fixação da imagem por meio da técnica. Em 2003, foi publicada pela Revista life entre as 100 fotografias que mudaram o mundo. 100 Photographs that Changed the World. New York: Revista Life, 2003. 113 Texto The First Photograph, sobre a primeira imagem permanente de Niépce, disponível no site do Centro Harry Ransom localizado na Universidade do Texas. 119 Daguerre seguiu com as pesquisas e chegou ao processo de revelação entre os anos de 1834 ou 1835, sendo o tempo de exposição ainda um agravante, com o tratamento dos vapores de mercúrio conseguiu reduzir a exposição à luz de horas para cerca de 20 a 30 minutos (KOSSOY, 2006). Já a questão da fixação ideal das imagens nas placas, foi resolvida por volta de 1839, com o uso de hipossulfito de sódio. Logo, contou com o apoio político do secretário permanente da Academia de Ciências de Paris que propôs ao governo a compra do invento. Em 19 de agosto de 1839, foi reconhecido no instituto da França e anunciado ao mundo o invento que levou o nome de seu idealizador, posteriormente foi doado pelo governo a vários países. A maior intenção sobre esse invento era criar uma perspectiva tão próxima ao real a ponto de reprimir a própria representação. A partir daí, houve uma corrida de aperfeiçoamentos tecnológicos destinados à criação de imagens mais próxima da realidade. Figura 11- Primeiro daguerreótipo feito por Daguerre. Fonte: Na época em que operou-se a fixação da imagem fotográfica já existia todo uma conjuntura que indicava “que a hora de sua invenção chegara e haviam vários pesquisadores que trabalhando independentemente visavam o mesmo objetivo”, como nos descreve Benjamin (2012, p.91), que era “fixar as imagens da câmara obscura, conhecidas desde Leonardo”. Ao se tratar da história, não é fechada ou estratificada, mas ao contrário, é um processo dinâmico, que revivifica os fatos passados por estar em contínua construção. O privilégio dado a alguns espaços e personagens faz perder de vista outros caminhos, sobre esse aspecto Kossoy destaca que no contexto de descoberta da fotografia: Herschel empregou o termo photography pela primeira em fevereiro de 1839. [...] Outros precursores ainda poderiam ser citados, como Hippolyte Bayard, funcionário público do governo da França, que foi habilmente deslocado por Francisco Arago – comprometido com Daguerre – de uma posição mais destacada na história da 120 descoberta da fotografia.[...] Devemos frisar, novamente, o fato de que uma descoberta nunca surge do nada; ela é o resultado de um processo cumulativo de outras descobertas que vão sendo elaboradas ao longo do tempo, por vezes ao longo de séculos: a descoberta da fotografia bem exemplifica isso (KOSSOY, 2006, p. 127). O cenário social que germinou esse invento marca o etnocentrismo europeu impulsionado pela revolução industrial e pelo fato do território ser o berço das mais importantes descobertas científicas e tecnológicas do momento. Um período de grande opulência socioespacial que se ocupou, entre outros assuntos, com a formação de grandes nomes para a sua história. Logo, a possibilidade de regularizar experiências pré-existentes às já lavradas pelos meios oficiais europeus, por pessoas que seus feitos e suas relações sociais não eram influentes, mormente, se essas estivessem estabelecidas em territórios colonizados, como, por exemplo, o da “exótica” América latina, acarretariam grandes desconfortos. Histórias do invento fotográfico ficaram nas sombras, como a Hercule Florence (1804 -1879)114 que só veio à tona um século e meio depois da datação oficial, foi uma revisão isolada do pioneirismo do processo fotográfico descrita pelo historiador Boris Kossoy (2006), traz à baila fatos que confirmam as experiências desenvolvidas por Hercule, cujos resultados alcançou na ainda “sem relevância” província de São Carlos, atual cidade de Campinas, em São Paulo, muitos anos antes que Daguerre. A pesquisa desconstrói a hegemonia histórica direcionada a Daguerre e revela o processo de registro da imagem como resultado de múltiplas pesquisas, com destaque a França, Inglaterra e Brasil. Depois da tese de Kossoy importantes pesquisadores da fotografia passaram a citar Hercule Florence como “um dos pais” da fotografia. Uma revisão no qual nem o Niépce e nem o Daguerre podem deter essa exclusividade. Antes, a fotografia foi inventada na Inglaterra por William Talbot (1800 – 1877)115 e nas Américas por Hercule Florence silenciado por encontrar-se isolado e distante do centro gerador das ideias e tecnologias dominantes da época. Quando Florence soube pelos jornais o alvoroço causado pelo invento do mecanismo que fixava as imagens declarou: “Realizei-a antes do processo de Daguerre, mas trabalhei no exílio. Imprimi por meio do sol sete anos antes de se falar em fotografia. Já tinha lhe dado esse nome, entretanto, a Daguerre todas as honras” (MONTEIRO; KAZ, 1998, p. 360). Como marco da imagem técnica a fotografia atravessou com ímpeto os valores de autenticidade e unicidade referentes às imagens antecessoras ao seu advento. Metamorfoseou 114 Para um maior conhecimento sobre o assunto ver; KOSSOY, Boris. Hercules Florence, a descoberta isolada da fotografia no Brasil. 3 ed. São Paulo: EDUSP, 2006. 115 Astrônomo, químico e linguista inglês, que em 1835, após longos anos de experiências obteve as primeiras imagens fotográficas através do princípio negativo-positivo, a qual denominou por photogenic drawings. Para um entendimento maior do assunto ler: Kossoy (2006). 121 as formas do olhar, de percepções e distinção das coisas que se projetam no mundo. Também, modificou sensações e valores intrínsecos aos seres humanos, como, por exemplo, a maneira de lidar com as lembranças, com os esquecimentos, de contemplar paisagens, de perceber o mundo e os eventos sociais, de reviver um amor, de viajar em diferentes espaços, entre outras. 3.2.1 Fotografia e Sociologia: diálogos iniciais Como já mencionado anteriormente, a fotografia surgiu em uma conjuntura de significativas transformações mediadas pelo desenvolvimento técnico, por novos tipos de experiências que envolveram as emergentes metrópoles. Seus impactos culturais, também, são sentidos no Brasil inicialmente na cidade do Rio de Janeiro onde o uso desse recurso imagético esteve ancorado a lógica moderna imersa na cidade, testemunhando-a. Nesse entendimento, as fotografias estiveram presentes nesse momento de ebulição de impressões sobre a cidade, sendo usadas como elementos de promoção e divulgação turística, virando inclusive um mimo, um souvenir, um meio de mostrar partes do Brasil ao mundo, do mundo ao Brasil e do Brasil ao próprio Brasil, alimentando vários imaginários. Elas podiam ser compradas no comércio pelos visitantes figurava entre outros produtos como o artesanato, as frutas, os animais selvagens, as ervas medicinais e temperos. O Guia Internacional da Europa confirma que quando se refere às lembranças encontradas para vender aos turistas, uma opção era as fotografias de Marc Ferrez, com referência significativa da fotografia paisagística do Brasil. “Como lembrança do Rio de janeiro, encontram-se em casa de Sñr Marc Ferres, á rua de S. José, n. 88 perto do largo da Carioca, uma bonita e variada collecção de vistas photographicas da cidade, da bahia e dos arrabaldes” (GUIA INTERNACIONAL, 1889, p. 265 e 267). A fotografia se espalhou com as imagens impressas em suas bases difundindo ideias, operando uma das mais significativas revoluções culturais que permearam a sociedade racionalista moderna. Diminuiu as distâncias dando a ver os locais mais longínquos, uma valiosa fonte imagética para a história das cidades, principalmente, quando atrelada ao turismo que as revelava de modo otimista. As fotografias forneciam vários significados visuais com as insígnias e interesses dos discursos próprios dos grupos ou indivíduo ao qual era um instrumento de comunicação. Destacava tanto as cenas modernas, quanto as consideradas exóticas. Nesse cenário social, político, cultural e ideológico que a câmara fotográfica surgiu, marcando uma nova sensibilidade nos modos de olhar e interpretar as coisas urge a necessidade 122 de explicações coerentes para as transformações. As mudanças geram a necessidade do entendimento dessa nova sociedade que desponta com suas novidades e contradições. Precisa- se de uma chave para interpretar, discutir e diagnosticar os diversos panoramas sociais existentes e em processo de criação. É o momento em que os conhecimentos sob a denominação de ciência, deixam de ser parte de sistemas filosóficos, a fim de se tornarem disciplinas individuais e específicas, demarcada em suas funções e objetivos próprios. Nesse processo concomitante aos novos modos de produção industriais e o nascimento de classes sociais, constrói-se a sociologia como referência para a compreensão dos modos de organizar, vivenciar e ver a sociedade. A disciplina sociológica, assim como a imagem fotográfica, surge marcada pela concepção de imobilização do tempo e do espaço. Pretende explicar as questões sociais por meio da fixidez; encarava a ideia de progresso atrelada ao desenvolvimento da ordem nas coisas; da sociedade como coisa; da sociedade como organismo; do mundo material e; dos fenômenos determinados. Nesse período de constituição da disciplina sociológica o que se busca apreender é o confronto social entre o mundo fixo – que se consolida no século XIX, com as classes sociais – como a burguesia e o proletariado –, de um ordenamento bem claro (DURKHEIM, 1982; 1996). Pretende-se desvendar o mundo com as classificações sociológicas bem marcadas; um panorama de muitas projeções; tais como a esperança na potencialidade libertadora que se almejava em torno da ciência contra as limitações humanas. Por outro lado, isso tudo transparece desaparecer rapidamente com os conflitos que surgiram diante dos problemas que assolaram as cidades desde a redução de fronteiras espaciais até a própria velocidade favorecida pelos meios de transportes que sofisticavam-se, o que provoca uma sensação de ausência de referências. Iniciou-se uma série de bombardeios as noções existentes que as ciências sociais não dão conta de esclarecer. É o ímpeto arrebatado desse cenário absorto, atordoado com os principais traços que caracterizam o modo de vida urbano levada a cabo diante das grandes mudanças estruturais do mundo moderno: que vão desde a racionalização das relações até o ritmo moderno ocidental fragmentário, nervoso, fugidio, efêmero, responsável pela cisão entre as culturas subjetivas e objetivas. É um panorama que requer racionalidade explicativa diante da pluralidade desconcertante dos acontecimentos que emergem (SIMMEL, 1967). Busca-se abarcar várias novas manifestações sociais, entre elas a metrópole, as viagens, as trocas, as sociabilidades, as relações culturais que se dão diante das novas experiências tecnológicas. As linguagens e categorias convencionais não são mais suficientes para descrever as relações que povoam o mundo. Contraditoriamente, algumas interpretações que tentam dar 123 conta dessa realidade como as do estudioso Georg Simmel que questiona os modos da vida urbana; a entrada do dinheiro nas relações modernas; as paisagens que surgem com a nova dinâmica e as subjetividades impostas em torna delas são pouco valorizadas só sendo reconhecidas anos depois. A ortodoxia existente diante das lógicas institucionalizadas dificultava qualquer tipo de rompimento com as naturalizações. A lógica mecânica e funcional era tão forte que a própria explicação científica em torno da anatomia do glóbulo ocular, conceituada após o invento da máquina fotográfica, foi determinada em conexões com o funcionamento do instrumento fotográfico; ou seja, foi explicada a partir da noção do funcionamento do equipamento fotográfico para captação da realidade. Até os dias atuais não tem sido uma tarefa simples desmitificar tais noções; a fotografia, por exemplo, ainda é confundida com a realidade dos fatos, até em âmbito acadêmico. Foi legitimada como um objeto da análise sociológica e antropológica a partir da ótica da revelação do real, contudo, as armadilhas que entremeiam esse discurso ficam mais claras recentemente. A aparição constante da fotografia como prova de uma pesquisa, como balizamento do que foi escrito em um artigo ou do que está sendo dito construiu as próprias bases para o questionamento sobre os tipos de realidade que a fotografia revelou enquanto realidade. Ampliou-se, portanto, a possibilidade de se pensar que o que está sendo produzido ou revelado com o apoio da fotografia recorta interesses imersos no próprio processo do resultado do que está sendo criado. Convém observar que esse é, do mesmo modo, o destaque dado por Georges Didi-Huberman (2003), diante do acervo iconográfico do manicômio parisiense de Salpetrièrê, onde o uso da fotografia gozou de grande prestígio. A fotografia era o instrumento de revelação do invisível ao olhar do psiquiatra, na medida em que se acreditava que captava a realidade dos sintomas e dos estigmas dos pacientes. Interpretada como uma prova objetiva capaz de encerrar qualquer outra especulação ou descrição, confirmava o discurso médico da patologia que se queria destacar. Semelhante o caso da definição da anatomia ocular, vejamos: A ciência materialista transformando o olho ou o globo ocular da tradição num objeto de estudo e aplicando os princípios da física e da química a esse mesmo órgão sensorial logo a seguir, ou seja, na segunda metade do século XIX descobriu, coincidentemente, que o olho funcionava quase da mesma maneira como uma câmara fotográfica antiga fazia. Os pretensos estímulos luminosos emanados por uma não menos pretensa forma externa penetravam pela pupila, pelo cristalino, pelo corpo vítreo e aqui a imagem do objeto externo ficava de perna para o ar ou a imagem ficava invertida como acontece numa câmara fotográfica por causa das lentes. Ao invés de incidir numa placa sensível ou num filme, com nitrato de prata e tudo o mais, a imagem invertida ocular incidia numa pequena zona especial do fundo do olho 124 chamada retina, fóvea centralis, as quais e por ironia, ou coincidentemente equivaliam à placa sensível ou ao filme da máquina fotográfica (BONO, 2010, p 147). O autor questiona a objetividade dada aos mecanismos modernos e aos conhecimentos institucionalizados, a partir da relação dos discursos e dos paradigmas que marcam uma época interligando-se e atuando na própria elaboração desses discursos. Ambos os exemplos dialogam com a concepção de que o pesquisador no processo de construção do conhecimento, independente do campo em que atua, quando utiliza suas imagens fotográficas não possui um olhar totalmente neutro ou imparcial diante do ponto de vista de suas redes de relações sociais. O olhar de quem pesquisa é muito mais interessado do que o olhar de um simples indivíduo que convive em um grupo e reproduz aleatoriamente julgamentos que fazem parte do senso comum. Ao contrário, um pesquisador é alguém com ponto de vista pré-elaborado por intermédio de um escopo de leitura e conhecimento que antecede as imagens fotográficas usadas em seus estudos, sejam essas da sua própria câmara ou das imagens que seleciona de um fotógrafo para a construção da sua pesquisa. As fotografias indiciam o pertencimento ao campo escolhido e aos objetivos que os correspondem. Se levarmos em conta a concepção da imagem fotográfica como uma prova do real, como portadora de um fato em si mesmo, como a retina do cientista e a prova de um registro não abrimos a perspectiva para uma análise crítica de um dado contexto. Nesse aspecto, não há como se pensar na crítica sociológica. As interpretações que direcionam a fotografia à descrição dos fatos e outras noções que entendem a imagem somente como ilustrações distanciam-se das perspectivas contemporâneas da sociologia, posto que esse saber não se situa em nenhum desses dois polos: O fato em si mesmo Fotografia: Não há a reflexão sociológica aqui. Ilustração do fato As análises da sociologia não estão ancoradas na realidade dos fatos em si, mas na interpretação das concepções desses fatos em acordo com os envolvidos cotidianamente; está ainda pautada na interpretação que organiza e torna inteligíveis as relações sociais nos processos interativos que se realizam no confronto entre referências culturais, históricas e as próprias condições estruturais; questões essas que escapam a compreensão cotidiana. 125 No campo sociológico, justamente no uso frequente das fotografias como um documento de registro objetivo, foram analisadas as limitações desse recurso imagético; uma vez que as fotografias demarcam apenas um aspecto do que é visível, mantendo a invisibilidade de várias dimensões que constroem as relações sociais. Nesse conjunto, a fotografia teria dois usos específicos: primeiro, poderia ser usada pelo sociólogo de forma invasiva infiltrando-se no espaço com sua presença e ideias a fim de flagrar seus sujeitos desprevenidos; aqui se constrói a ideia da fotografia documental. Segundo; poderiam ser utilizadas as fotografias já existentes, nelas o principal objetivo seria a captação do social, constituído em prol dessa prática a partir das questões que envolvem uma sociedade imersa na cultura popular da imagem; aqui buscam-se os códigos que imprimem esse tipo de visualidade, como documento de diversas sociabilidades (MARTINS, 2009). Nessa segunda opção emerge um terreno profícuo para o uso da fotografia como um fenômeno social. Áreas como a arte, filosofia, semiótica, história, sociologia, antropologia, etc., abrem-se como itinerários que visam permear os múltiplos enunciados e a abrangência imagética dos elementos existentes na imagem, enveredam por um caminho que objetiva ir além da ilustração. No entanto, seu uso serviu e, ainda serve como recurso de legitimação dos fatos pesquisados. 3.2.2 Perspectivas com os clássicos As produções técnicas e culturais devem ser pensadas a partir do vivido, nesses termos o modo de olhar o que nos cerca não está à parte das projeções construídas em âmbito social, são modos que adquirem sentidos no cotidiano. O olhar é simbólico e se constrói nas mediações entre os indivíduos e o objeto olhado – uma relação entre o concreto e o abstrato, entre o visível e o invisível – externando as “coisas” do mundo em acordo com as manifestações culturais. Uma interferência culturalmente construída, visto que não lidamos com o universo real das coisas (AUGRAS, 1967). Esse olhar lançado à fotografia é central na sociedade atual. A máquina fotográfica está presente em muitas mãos registrando variados assuntos, divulgando pontos de vistas que circulam e rapidamente são apreendidos por distintos olhares. O que fotografar? Como fotografar? Como se deixar fotografar? Como materializar o que foi produzido no momento do registro? Aonde divulgar o que foi fotografado? Porque divulgar? São questões concernentes às mediações que envolvem o universo da fotografia. A fotografia não só chama a atenção de vários pesquisadores, como faz parte do seu cotidiano profissional e pessoal, visto a inserção que tem em nossa sociedade. E, mesmo tendo sido aclamada por seu valor de uso e pelas contradições que causou no momento de sua 126 emergência, não fez parte das questões presentes nas obras dos autores clássicos da sociologia. Se desde o seu início a fotografia tem sido fundamental nas relações humanas, porque só agora ela se torna um objeto que ganha importância nos debates acadêmicos? Ora, quando foi criada não era dotada de um caráter de universalidade. No período que despontou às ciências humanas, de modo geral, a imagem fotográfica estava fundada na ótica funcional do seu uso e na interpretação contextual dos elementos que retratava. Ainda, a fotografia adaptada aos prazeres da burguesia externava os modos no qual “se viam” e desejam “ser vistos” socialmente. As vestimentas, a arquitetura, o cotidiano, as práticas, os espaços e todos os aparatos disponíveis e passíveis de serem reproduzidos e comercializados pelos indivíduos foram difundidos pela imagem. As práticas sociais e as diversas relações que se estenderam socioespacialmente se ancoraram nos projetos burgueses que preliminarmente circularam em imagens fotográficas. O cartão-postal foi um dos grandes suportes iniciais, circulou fortalecendo imaginários sociais, indicando modos específicos de sociedades e identidades. Proporcionou a materialização da dinâmica burguesa estabelecendo-a no imaginário social. A fotografia foi assim um objeto legitimado diante da classe social burguesa, porém nem Karl Marx a cita em sua obra, uma vez que não era massificada, que não existia o alcance que tem na atualidade. Mas, mesmo afastado de um pensamento que se refere à fotografia, Karl Marx (2004) nos Manuscritos Econômico-filosóficos aponta para a objetividade e a subjetividade da vida entrelaçadas no contexto das produções materiais a partir de uma descrição ontológica dos sujeitos sobre as bases produtivas. Nessa gama de objetos e produções poderia ter pensado a relação da fotografia com o olhar humano. “A formação dos cinco sentidos é um trabalho de toda a história do mundo até os nossos dias” (MARX, 2004, p. 110). Esses são construídos por meio das subjetividades concernentes às relações sociais. Nessas o processo do ver se faz diferente do enxergar e o olho tornou-se humano assim como o seu objeto tornou-se objeto social. Em um paralelo com a filosofia e procurando salientar o pensamento de Marx, o filósofo grego Platão em uma de suas máximas diz que o homem está em contato permanente com dois tipos de realidade: a sensível e a inteligível. A primeira parte do mundo dos sentidos, do qual temos um conhecimento aproximado ou imperfeito, nessa realidade fazemos o uso dos nossos cinco sentidos (visão, audição, olfato, tato e paladar). A subjetividade pode ocorrer numa experiência particular de um indivíduo com um objeto, por exemplo, ao comer uma fruta um indivíduo conhece a fruta. Através de seus sentidos ele pode dizer sobre a doçura, a cor ou o cheiro dela. As proposições são frutos das 127 experiências subjetivas; por isso estas proposições são opinativas, não decorrem de exatidão, precisão e ciência (MARX; ENGELS, 2010, p. 134-135). A segunda parte, por sua vez, está associada ao mundo das ideias, do conhecimento obtido através do intelecto a partir da sistematização de elementos, utilizando a razão. Esse mundo das ideias não pode ser conhecido através dos sentidos. Em compensação, as ideias ou formas são eternas e imutáveis. Uma pessoa leiga sabe da existência das vacinas através de uma reportagem mostrada numa TV, em que a comunidade científica descreve os benefícios da vacina e os efeitos que elas causam em um organismo. Mesmo sem saber se ela funciona os ouvintes do noticiário acreditam no conhecimento que é passado pela ciência. Este tipo de conhecimento é objetivo, contrário da realidade sensível que é subjetivo. Platão afirma que é no mundo das ideias que moram os seres totais e perfeitos: a justiça, a bondade, a coragem, a sabedoria, etc. O mundo concreto percebido pelos sentidos é uma pálida reprodução do mundo das ideias e fora deste último tudo o que captamos através dos sentidos possui apenas uma parte do ser ideal. O mundo sensível, portanto, é um mundo de seres incompletos e imperfeitos. Cada objeto concreto que existe participa, junto com todos os outros objetos de sua categoria, de uma ideia perfeita. Uma determinada mesa, por exemplo, terá determinados atributos (cor, formato, tamanho, etc.). Outra mesa terá outros atributos, sendo ela também uma mesa, tanto quanto a outra. Aquilo que faz com que as duas sejam mesas para Platão é a ideia da mesa perfeita que apreende todas as possibilidades de ser mesa. Karl Marx e Platão tem uma ligação teórica muito interessante sobre a importância da subjetividade do indivíduo influenciando a objetividade social. A construção teórica desses ícones direcionada à fotografia sugere a perspicácia das subjetividades do fotografo, e da própria fotografia, dada pelo mundo dos sentidos. Remete ao resultado do aparente uma consonância social objetiva. Outro pensador caro as Ciências Sociais é Émile Durkheim, se formos analisar a fotografia diante do que expôs a atrelaríamos a sua gênese, instituição e funcionamento na sociedade, essa apareceria como um fato social. O fato social é o objeto da sociologia e exerceria nos indivíduos uma coerção exterior, a fotografia cumpriria as regras do fato social, visto que gera um tipo de impacto, isto é, causaria coerção no modo de ação das pessoas. Uma vez que esse recurso imagético segue uma estética tanto na sua elaboração, quanto nos rituais de se manter diante do equipamento para ser fotografado, cria aparências, desperta desejo, forma ideias e padrões. Quem não o segue é penalizado. Imaginem crianças sendo fotografadas para a formatura escolar, existe um padrão a ser seguido; o corpo ereto, vestimentas adequadas, o sorriso, a fila, um conjunto normativo, a criança que não estiver condizente com a norma 128 geral, será penalizada socialmente, tanto na instituição escolar, como em outros momentos que por ventura tenha que expor e se deparar com a fotografia. A fotografia circula destacando modos de comportamento, tipos de corpos humanos em suas representações simbólicas, delimitam os cenários das próprias paisagens fornecendo uma classificação que pode enquadrá-la enquanto modernas ou rústicas; urbanas ou naturais, religiosa ou profana, do progresso ou da tradição. Ela promove uma ordenação, que escapa a consciências das pessoas que reproduzem essa ordem. Sendo a fotografia exterior ao indivíduo, nem sempre o seu uso depende da vontade dele. Entretanto, ela está atrelada as instituições sociais, por exemplo: a maioria dos documentos que se prestam à identificação válidos em diversos países do ocidente necessitam de uma fotografia, esse seria um tipo de coerção, é exterior a vontade do indivíduo, mas está imbuída na necessidade social da comprovação com a imagem. Essa reprodução da ordenação constrói um imaginário que reveste de sentido o que a fotografia por si só não tem e “esse sentido permite cada um de nós viver e sobreviver socialmente” (MARTINS, 2009, p.19). Se tratando do imaginário ambos os autores, Karl Marx e Émile Durkheim, destacam que esse não é um processo consciente. Durkheim pensa o imaginário como uma forma de organização das relações sociais. Para esse autor, a sociedade em qualquer momento pode entrar em um estado de patologia, ou seja, de anomia – de ausência de regras – então, as noções fortes têm o papel de colocar as coisas dentro das regras. O ponto de vista direcionado aos registros fotográficos permite pensá-los a partir de uma localização que é dada aos indivíduos por meio do ordenamento da imagem, dessa forma a fotografia cria regularidades. Tendo a fotografia como exemplo é perceptível que esse artefato é dotado de uma espacialidade, em uma imagem da cidade os elementos vigentes são os edifícios, os monumentos, as pessoas em suas hierarquias sociais, etc. O modo como esses ícones são representados favorece a construção de uma ordem social dando ênfase ao que é priorizado como parte e ordem de uma cidade. Durkheim ao tratar da anomia destaca que o homem comum seria uma vítima impotente da sua incapacidade de fazer interpretações corretas sobre a sua situação, quer dizer, não consegue esclarecer o cotidiano por não estar imbuído da totalidade social, o que o faz perder o controle do coletivo. Para Marx, essa perda acarretaria no processo de alienação. A fotografia nesse ambiente é construída como imagem que se quer real, autêntica e verdadeira (BECKER, 2003). Seu aparecimento como técnica é fruto do rigor e das concepções que pautou a busca pela captura objetiva das relações humanas, com origem na coletividade. Nesse contexto social residem as explicações para as formas do seu uso em face do conceito desses autores. 129 Para Weber (2002) a racionalização da sociedade ganha importantes aspectos. Nas afirmações desse autor, as revoluções tecnológicas atuantes nesse período são coadjuvantes à ciência e a burocratização das relações sociais. A fotografia em sua origem foi coadjuvante desse processo; aliada aos discursos que justificaram os transcursos da sociedade capitalista balizou as práticas da técnica, da noção de certeza, exatidão e realidade. Qualquer cenário captado pela máquina fotográfica após revelado era passível de análise. E frente ao pensamento em voga esclareceria fatos que o olho humano manteria nas sombras em razão da crença que essa imagem não deixaria espaço para as dúvidas pela objetividade vinculada em sua aparição. À vista dessas premissas a ficção artística, o sonho ou a imaginação estariam a cargo dos lápis e dos pincéis, seriam representados como resultados da imaginativa mente humana; ao contrário, à fotografia cabia o papel de resultado técnico proporcionado pela perícia humana. Qualquer subjetividade lhe era negada, inclusive a do próprio olhar do fotógrafo. Enquanto percebida como retrato da realidade decorrente de uma consciência prática engendraria na sociedade um papel racionalizador, direcionamento profícuo ante o prisma Weberiano. Se a fotografia constrói os sentidos em conjunção aos discursos que lhe caracterizam como prova do real, certamente, o autor apontaria o papel do desencantamento proporcionado por este artefato, ainda mais quando colocado diante das representações pictóricas. Os autores clássicos citados e suas teorias coordenadas com seu tempo histórico dão chaves iniciais para a análise da fotografia a partir dos seus diferentes usos e funções sociais; para interpretá-la como a escolha do que poderia ser visto e reproduzido ao invés do que poderia ser sonhado e criado. Nessa conjuntura em que o invento foi abraçado como sinônimo de imparcialidade e acurácia científica, foi negado em seu resultado final qualquer proposta estética, ideológica ou mesmo a interferência humana. 3.2.3 Debates atuais Como observado, os usos da fotografia como objeto de análise na pesquisa acadêmica dependeram desde os primórdios das transformações e afiliações a áreas distintas como a sociologia, a antropologia, a arte, etc. O significado e a significância das imagens fotográficas são, portanto, fruto das mesmas transformações históricas que acompanharam o desenrolar do mundo moderno e sua noção específica da realidade; contígua à objetividade da ciência, em particular, das Ciências Sociais. Proposições que se tornaram possíveis devido à difusão de um forte convencionalismo que negou e substituiu outros tipos de representações 130 institucionalizando a fotografia como prova cabal. O discurso sobre a representação do real também favoreceu o domínio social da fotografia no mercado de imagens. Dubois (1993), esclarece que as circunstâncias ideológicas do surgimento da famosa máquina oitocentista favoreceram uma acalorada discussão sobre o fato do questionamento se o material fotográfico se constituía em um aparato mecânico ou em uma arte: técnica ou arte. Não havia a possibilidade de pensar a união entre essas duas instâncias, até porque é a conjuntura das classificações. A sociedade vive as grandes separações em torno do que é produzido com o intuito de se explicar os diferentes aspectos e seres da natureza, a ciência é separada da arte, o próprio ser humano foi separado da natureza. Logo, os artistas reagem à industrialização técnica nas artes e colocam: “a arte aqui (a pintura), a indústria ali (a foto).” Dubois (1993) aponta o senso contraditório do teórico Baudelaire: ao mesmo tempo que denunciava a imagem fotográfica como parte de um gosto vulgar das multidões, se rendeu aos seus apelos ao solicitar para Nadar e Carjat – pintores de miniatura que transformaram-se nos primeiros fotógrafos –, que fizessem vários retratos seu (BENJAMIN, 2012, p. 97). Baudelaire traduz para a linguagem que lhe é mais apropriada a sensação “monstruosa” de ver a multidão exaltar a produção mecânica racional que é a fotografia, para ele uma mera reprodução. A possibilidade de ver a arte associada a processos industriais e a toda transitoriedade instaurada nas metrópoles, sob a égide do fluxo, do inusitado e da rápida obsolescência provocados pelo capitalismo, causa em Baudelarie uma sensação de choque. Na concepção acadêmica do século XIX, concatenada ao ideal renascentista a arte não poderia ser passível de reprodutibilidade, posto que o artista era um gênio produtor de algo além do, simplesmente, material. Assim cria-se a aversão dos artistas à difusão da técnica fotográfica como uma espécie de arte. O seu caráter de cópia, o seu aspecto mercadológico, documental e burguês vai de encontro às ideologias elitistas que congregam a crença da arte ser despossuída de qualquer finalidade e de funções sociais. O valor da fotografia residia justamente aí, em ser o registro fidedigno do visível, pois para esse recurso imagético ficavam as funções sociais e utilitárias, o que permitia a arte ser livre em suas finalidades (DUBOIS,1993). Diante das várias contradições inerentes às formas de pensamento que se constroem em torno da arte moderna, período das maiores transformações urbanas e de dinamização das fotografias documentais, surgem também às dissonâncias ao redor do registro fotográfico: vincula-se ao projeto burguês de modernização da natureza, ao mesmo tempo em que documenta a degradação da mesma, chamando a atenção aos prejuízos materiais, sociais e 131 espaciais que essas modificações representaram. Os prejuízos citados ancorados à própria questão da reprodução social fundada no cotidiano pós-guerra instituiu uma tendência à fragmentação e a incerteza colocando uma maior atenção no presente. Essa situação trouxe a vida cotidiana para o primeiro plano, um privilégio aos modos de ser do presente, fragmentário e incerto, o que coloca o registro fotográfico diante de novos questionamentos, uma vez que o que ele reproduz não é o cotidiano em si. O sociólogo Henri Lefèbvre foi um dos estudiosos que observou a prevalência do repetitivo em relação ao transformador e mesmo não tratando da fotografia nos dá as ferramentas para pensá-la em sua relação com o cotidiano. Apareceria nesse pensamento não como o retrato da sociedade, sim como a representação e memória dessa sociedade fragmentada, um discurso que aparenta revelar o todo, mas demarca momentos efêmeros, desconectados dos diferentes tempos e da sua própria origem. Observada desse modo a fotografia se configura como um documento que se estabelece na tensão de fragmentos que surgem como resíduos entre o passado e o presente. Se em um primeiro momento ela foi interpretada como um resultado da verdade; é porque estava inicialmente atrelada a lógica positiva da ciência que a reduzia a um acessório comprobatório. Ou melhor, documento visual capaz de ilustrar e validar as pesquisas acadêmicas. Os estudos posteriores deram uma nova nuance ao interpretá-la enquanto resultado das relações que revelam ou ocultam um contexto social, amparados por outros documentos capazes de destacar a realidade que, em um primeiro momento, se encontra ocultada. Esse é um modo de pensar a imagem no sentido do mascaramento da realidade, noção que gira em torno do conceito de ideologia. Assim sendo, ao desvelar o contexto de produção da fotografia chegar-se-ia a realidade camuflada pela ideologia carregada na imagem que aparece em detrimento da realidade escondida. Essas questões pululam nas décadas finais do século XX, os debates no campo da antropologia, da história e da sociologia construíram novas categorias de análise no uso da imagem, principalmente, aonde a fotografia aparece como suscetível ao olhar do fotógrafo e a vários outros olhares. O olhar do fotógrafo começou a ser apreendido como invasivo; mesmo sendo um pesquisador, o fotógrafo é percebido como um agente de alteração no cotidiano do ambiente a ser captado por seu registro. Ganharam ênfase os códigos de vestimentas; os comportamentos que não são reais ao que é fotografado; o conjunto de práticas estabelecidas diante do próprio artefato; a ideia do fotografado de como deve aparecer nesses registros, isso constrói a permissividade ou não. Esses debates abriram novas possibilidades e buscam romper 132 com preconceitos em relação ao uso da fotografia e ultrapassar os aspectos ilustrativos da imagem enquanto um documento em si (MARTINS, 2009). Pensar em uma perspectiva crítica amarrando a fotografia aos fatos seria uma incongruência na contemporaneidade, uma vez que a crítica se fundamenta diante dos conhecimentos capazes de conectar um cenário histórico mais amplo ao contexto presente com o objetivo de compreender as conexões processadas em âmbito coletivo e individual. Nesse escopo apresentar as contradições ou antagonismos de estruturas sociais conectadas aos ambientes de pequena escala (MILLS, 1975). Por conseguinte, a fotografia traduziria a relação social (re)produzida e apreendida na cotidianidade – coletiva local e individual, de acordo com os códigos de uso ancorados nas relações globais. A interconexão entre as relações citadas constroem novos modos de ver e de se comportar diante da fotografia, isso a transforma em mediadora, operadora, produtora e ao mesmo tempo produto de distintas práticas. Benjamin (2012, p. 97) indica que a evolução da fotografia para desempenhar os papéis sociais e utilitários foi tão expressiva que logo após o seu invento a maioria dos pintores de retratos em miniatura se transformou em fotógrafos. “Não é por acaso que o retrato era o principal tema das fotografias” (BENJAMIN, 2012, p. 174). O fulgor com que a sociedade a abrigou e a reproduziu demarcou a magia dos seus primórdios. O autor descreve que no início o tempo gasto com a longa exposição favorecia aos modelos incorporarem uma postura rígida e profunda no qual encarnavam e cresciam dentro da imagem. Tudo nesse cenário inaugural da fotografia era feito para durar, para revelar os aspectos fisionômicos apreendidos pela misteriosa experiência que se enraizava. Os aspectos vivos e tão verídicos como a própria natureza causavam perplexidade, maravilha e assombro. Benjamin (2012, p. 95) cita algumas afirmações sobre os primeiros retratos onde “a nitidez dessas fisionomias assustava, e tinha-se a impressão de que os pequenos rostos humanos que apareciam na imagem eram capazes de ver-nos, tão surpreendente era para todos a nitidez insólita dos primeiros daguerreótipos.” As fotografias iniciais remetem à captação dos anseios que sugeriam algo externo às próprias fisionomias. Afinal, pela primeira vez uma máquina criava imagens que só eram possíveis pelas mãos do indivíduo e de realidade tal, nunca vista anteriormente (BENJAMIN, 2012). Essa vertiginosa modificação propiciada pelo desenvolvimento da técnica dava ao indivíduo a certeza de que tudo é incerto e transitório. Desde a paisagem que está mudando todo o tempo até a velocidade que faz os carros desaparecer. Isso coloca o sujeito em situação de instabilidade profunda diante desse novo mundo. Olhar-se na fotografia já era uma importante mudança de percepção que “transformava o sujeito em objeto”, e foi preciso então 133 aprender a olhar esse objeto feito da própria imagem e aprender, também, a ser imagem (BARTHES, 1984, p. 25). Benjamin (2012) enfatiza que as fotografias rompem com a aura por democratizar as experiências – para ele a aura dessa imagem só esteve presente em caráter inapreensível inicial, com a sua dimensão oculta ao conhecimento, frente à possibilidade de ser vista como fonte de inspiração para o culto. Nesse início ela era distante, passível de contemplação, incessível, "longe, por mais próxima que esteja”. Deixar-se fotografar era inusitado, exigia uma abertura singular, inclusive das crenças a fim de se prender os corpos em longo tempo de rigidez e sustentar as faces tensas do melhor modo possível. Era em seu início um êxtase “irracional” por transgredir o tradicional. A aura dos primeiros retratos manteve-se na restrição ao acesso que ele mesmo como técnica estava destinado a aniquilar no momento em que possibilita com qualidade e rapidez a sua reprodução, assim destrói a unicidade. Já no final do século da sua invenção, a fotografia era sustentada em folhas avulsas e passou também a ser incorporada aos livros e revistas por meios fotomecânicos de reprodução, acoplados à impressão tipográfica ou impressa em folhas separadas incorporadas às bases no processo de encadernação. Dessa maneira, ela foi amplamente difundida como ilustração e linguagem. Em sequência, a criação dos filmes substituíveis em rolos negativos capazes de gerar vários positivos coadjuvou a criação das câmeras pessoais, colocando a fotografia mais próxima das grandes massas modernas. O modo de recepção da fotografia ao público prescindiu a existência única em prol da existência serial traduzindo-a em uma experiência coletiva de consequências sociais e políticas significativas, abraçando e expandindo o ideal burguês e firmando o desenvolvimento da classe. Essa nova percepção pode ser captada na interpretação dada pelo crítico da arte John Peter Berger diante da fotografia “Young Farmers, 1914”, de August Sander (1989). No ensaio intitulado por “The suit and the Photograph” esse autor demonstra os paradoxos iniciais da cultura urbana em processo de hegemonização no campo ou como coloca o historiador Jennings (2000, p 32) “the momentum of the transition away from the land into the cities”116. Sander (1989) retrata três jovens camponeses vestidos de terno e gravata, traje de baile privilegiado na cidade, com outros elementos que os conectam, de modo incongruente pela falta de familiaridade, aos códigos urbanos como o cigarro em oposição ao cachimbo, um corte com as condutas tradicionais marcando a liberdade que afasta-se da moral privilegiada no campo. 116 Tradução nossa: O ímpeto da transformação que afasta-se do campo em direção a cidade. 134 As inadequações são destacadas por Berger (1980), em primeira instancia, porque a roupa não cabe nos modelos, muito menos estaria em conjunção com as práticas do campo, o que fica claro na postura desses indivíduos. O biotipo dos camponeses afirma a contradição entre a vestimenta e os usuários. Nas palavras de Berger (1980, p. 30): “The date is 1914. The three young men belong, at the very most, to the second generation who ever wore such suits in the European countryside. Twenty or 30 years earlier, such clothes did not exist at a price which peasants could afford”117. Esse autor afirma que o mercado massificado na busca de estender suas raias simula a qualidade oferecida a alta burguesia urbana, contraditoriamente, destaca aspectos da ‘social caste’ dos jovens ao invés de disfarçá-los: “Their hands look too big, their bodies too thin, their legs too short”118. Entretanto, a fotografia não revela isso em si mesma. O fotografado, mesmo estando fora de um padrão estético considerado ideal, comumente se considera bonito na roupa determinada para o lazer, não é consciente da contradição em que foi exposto. O observador traduz a imagem de acordo com os seus signos, com a apropriação relacionada ao cotidiano que ele pertence, assim reproduz os discursos que representados na fotografia dá o significado a imagem, inserindo-a em seu local de discurso e mascarando as diferenças sociais. O imaginário revelado concatena-se ao que a pessoa percebe, busca atender, na maioria desses casos, uma estética de valorização do status o que assemelha-se ao processo de alienação destacado por Karl Marx. Muitas vezes as pessoas se ofendem com certos tipos de fotografias, podendo ser considerado uma violência fotografar o outro desprevenido, como nas situações que escapam aos cenários pré-elaborados: a dos registros trágicos, por exemplo, ainda assim a imagem é dotada de significados e a sua representação também o é. Nesse caminho crítico a função social das fotografias é analisada por Bourdieu (1965), todavia, ao invés de explorá-la como elemento de inserção, divulgação e ampliação dos valores modernos, esse autor observa a sua função enquanto um sociograma das relações tradicionais; enquanto uma mediadora dos papéis sociais normativos e institucionais. Quando essas aparecem registrando os espaços e as práticas consideradas tradicionais acabam por demarcar as sociabilidades pré-modernas e os ritos incorporados como corpo estranho e exótico às relações sociais estabelecidas. Subjacente, não cabem concepções fechadas. Souza (2009) aponta como o fotógrafo, pensando que está simplesmente registrando uma realidade já está selecionando um ângulo, 117 A data é 1914. Os três jovens são, no máximo, a segunda geração de camponeses europeus a usar ternos. A 20 ou 30 anos atrás, o custo desse tipo de vestimenta não poderia ser pago por camponeses. 118 As mãos são muito grandes, os corpos muito magros e a pernas muito curtas. 135 direcionando ao seu olhar, o que escapa a um simples registro imparcial da realidade. O olhar do fotógrafo é muito mais interessado até do que ele pensa. Até mesmo o registro do cotidiano que marca o distanciamento da fotografia como arte por ser materializada como uma possibilidade de reprodução da realidade cotidiana acaba por traduzir a ilusão, uma vez que o que acredita-se banal ao ser captado já passa a ser significativo. O registro é o imaginário social elaborado e direcionado a uma distinta visualidade mediadora das relações, isso porque mesmo o que parece ser repetitivo é dotado de vários significados, não é igual, mas sim dinâmico. Portanto, o processo dinâmico é o que caracteriza a fotografia como um sistema que sintetiza, coordena e classifica os objetos no espaço, transformando-a em um dos maiores modelos de inteligibilidade da sociedade ocidental moderna. Agrega-se ao dinamismo da fotografia o discurso que abre-se para distintas possibilidades de interpretação através do seu processo de ordenação mediado pelo padrão enquadrado na representação. 3.3 O ENQUADRAMENTO SOCIOLÓGICO: DIÁLOGOS COM DIDI-HUBERMAN A fotografia em seu enquadramento traça uma rede de jogos, de tramas e representações por intermédio de um discurso, que se analisado em sua origem favorece o entendimento das relações de poder, dos significados culturais, políticos e ideológicos privilegiados ou não. Ao pensar no processo de ordenação que favorece determinados enquadramentos revelados nos registros fotográficos e nas mediações dessas ordenações em seu caráter representacional enquanto crítica sociológica nos é caro o debate iniciado pelo filósofo e historiador da arte Georges Didi-Huberman. Ele esclarece, antes de tudo, que a imagem é construída por meio dos sentidos, mas não só; “uma das grandes forças da imagem é a de produzir ao mesmo tempo sintoma (ruptura dentro do saber) e conhecimento (ruptura dentro do caos)”, ou seja, ela constitui-se da coexistência de resultados e de perturbações (DIDI- HUBERMAN, 2013, p. 31). Uma vez que a fotografia apresenta as dimensões da própria cultura, de modo inconsciente e sintomático, por ser construída através do nosso arquivo imagético – que é sociocultural e sobrevivente na medida em que afloram em distintos contextos sociais; colocar em prova a representação visual do passado e o seu estatuto a fim de captar a sua problemática no presente é lançar-se a crítica social. Desse modo, que Didi-huberman (2013) deslinda a trama de enunciados objetivos que, mormente, institui a fotografia como um dado do real. Utilizando- a, não como objeto de identificação, porém, como um elemento que coloca as certezas e as identidades expostas em seu jogo de mediações em questão. 136 A ênfase da análise está nas semelhanças que se impõe a memória enquanto reprodução e aparição virtual de uma quantidade de figuras associadas que se aproximam e se afastam na construção de um significado. Essa é a figurabilidade fotográfica que busca a analogia entre dois enquadramentos que podem ocorrer diante de um sistema cultural em tempos e espaços diferentes (DIDI-HUBERMAN, 2013). Das várias possibilidades de se debruçar sobre a fotografia esse é o caminho escolhido para indicar que a região Nordeste do Brasil vem sendo recortada por um grupo de signos que a constrói historicamente, discursivamente e visualmente delimitando seus espaços como único. Essa região é institucionalizada como um recorte nacional a partir de um discurso imagético que ora dirige-se ao espaço do sertão como um lugar desértico, pobre, distante, atrasado e místico em sua religiosidade (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2006). Ora se direciona ao litoral com praias deslumbrantes e dignas de deleite, vastas em sua dimensão de areia e nas possibilidades de lazer e turismo. O que cria uma visualidade singular para a região mesmo em lógicas aparentemente opostas como podemos observar na imagem abaixo (Fotografia 3) captada pelo fotógrafo Canindé Soares. O cenário registrado na fotografia em questão, disponível para venda e uso posterior de agências publicitárias; foi captado em um percurso entre a cidade de Natal e a cidade de Caicó. Canindé e um amigo tinham como objetivo fotografar os efeitos da seca no açude Itans, em Caicó. Entre as várias cenas encontradas essa chamou a atenção do profissional que percebeu no elemento a representação do local como espaço da seca, mesmo essa cabeça de boi sendo uma decoração colocada na cerca do sítio para funcionar como amuleto. O enquadramento fotográfico dá relevo ao chão árido, gretado, com galhos secos fincados e a cabeça de um boi morto na zona de interesse da paisagem, representa em seus detalhes tonalidades e nuances do discurso da seca. Esses símbolos apoiaram a centralização do fenômeno e o transformou em uma grande temática que dá ao Nordeste um referencial paisagístico. Nas palavras de Barthes (2003) é a “tópica”; um tema tornado obrigatório por meio da sua consagração que acontece através de um tratamento fixo e repetitivo que constrói estereótipos. A tópica da seca do Nordeste o constrói, não isoladamente, mas junto com outros elementos, outros conteúdos, que em um conjunto de articulação produzem fragmentos de sentidos para o local. Esses elementos vinculados a outras temáticas fundamentais como o coronelismo, o cangaço, o flagelo, o fanatismo religioso, etc., remetem o Nordeste a um estágio considerado tradicional, conservador, atrasado, pobre e pré-industrial. Um dos motivos da escolha dessa fotografia não é só a representação do mito inicial do Nordeste, mas, apesar de clássica em sua estética pulsa em encontros e contradições, é 137 emblemática. O studium se transforma em punctum, te toca no ato do olhar que segue em círculos em busca de algo que parece ainda não definido. Há um paradoxo em relação à tópica da seca que dá margens à rasgadura, conceito que iremos mais a frente descrever baseados na concepção de Didi-Hubermam (2013, p. 12-15), mas que, grosso modo, significa a possibilidade de se abrir para novas interpretações, sem estar totalmente fechada como acontece no plano iconológico. A cabeça de boi não está posicionada como um amuleto de proteção, porém advém um esqueleto abandonado. Misticamente o elemento protege a cerca afugentando os maus espíritos, um bicho pronto para atacar quem se aproxima da propriedade privada. A contradição está na vida e proteção representadas diante da paisagem que dói na alma e enfatiza a agrura da seca. A simbologia não é figurada em terreno neutro, mas no espaço dotado de um mito de origem, desse modo a ênfase na existência forte, fiel e brava da cabeça de boi, pronta para investir contra qualquer intrusão, se exprime no velho que não permite que o novo adentre em sua região. Visto que o sentido dado abre-se para o folclore regional: a cabeça de boi repõe a imagem da cabeça da carranca, figura do passado, da cultura popular, preso às tradições com que se inscreve a região: Os barcos usados pelos barqueiros tinham usualmente uma imagem na proa, a carranca, habitualmente um monstro, rudemente falqueada – a cabeça de um homem, de um dragão, leão, cavalo ou outro ser real ou imaginário, esperando-se que ela avisasse o remeiro com três gemidos se o barco estivesse prestes a afundar (PIERSIN, 1972, p.9).119 A fotografia é um arsenal discursivo que estabelece imagens, efeitos, causas, consequências, preconceitos sociais e culturais; fecham e abrem portas, mas seu enunciado é latente, vem do passado, se reconstrói diante da repetição do feio que virou belo, da miséria que enuncia a estética, do mito que se quer verdade, da paisagem perene pelo olhar reduzido. São marcas da construção idealizada do Nordeste, insistentes na aparição. 119 PIERSIN, Donald. O homem no Vale do São Francisco. Rio de Janeiro: Superintendência do Vale do São Francisco, 1972. 138 Fotografia 3- Cabeça de boi120 Fonte: Essa é apenas uma das possibilidades de se ver o Nordeste, saturada de sentido a partir de vários enunciados impostos aos olhos. Nordeste da fotografia de Canindé Soares que testemunha as lembranças promovidas em face da forma una de ver a região. Um dos retratos mais pulsantes do Nordeste é conflitante no que diz a sua própria geografia: a seca. Essa suscita um ambiente desértico, porém nesse recorte não há aridez; o que demonstra um quadro incompleto. Se pensarmos no que geograficamente venha a ser um ambiente árido, seco, desértico uma analogia interessante pode ser feita. No período em que os discursos da seca iam delimitando o que era a região Nordeste – área com uma variedade climática que vai do equatorial e litorâneo úmido até o semiárido devido a sua grande extensão territorial –, demarcando sua geografia como responsável pela disparidade social e econômica; outro lugar do continente americano, de fato desértico, de clima hostil – com o processo de colonização relegado e uma população restrita de índios locais – abre-se para o desenvolvimento econômico e social. Se trata de Nevada, Estado que hoje tem uma das cidades com maior expressividade no turismo mundial: Las Vegas, surgiu como cidade em 1911, a partir da chegada da ferrovia e do período em que o estado implementou um projeto de irrigação 120 Autor da fotografia: Canindé Soares. Fonte: CS Fotojornalismo: Agência Potiguar de Fotografias e Notícias. 139 artificial em grande escala. Atravessada pelo deserto de Mojave, próximo a área conhecida como o Vale da Morte, Las Vegas cresceu no século anterior como o lugar dos jogos, prazeres e do lazer moderno, a tecnologia existente associada à infraestrutura adequada a constituiu como um dos maiores polos econômicos dos Estados Unidos. Mesmo com todas as ressalvas existentes em termos de comparação, a analogia visa colocar por terra a ideia do quesito clima/natureza como determinante das questões sociais concernentes ao Nordeste. Partir desse princípio é pueril e inadequado, uma vez que os símbolos que forjaram a região foram potencializados nas tramas políticas e sociais, por outro lado, os recursos, as tecnologias e a mão de obra existentes a tempos são suficientes para abastecer grandes extensões de terra com água. O discurso da seca que percorre grande parte do século XX, não é posto em questão nas instâncias: econômica, social e política. Contrariamente dá a base para uma nova versão de Nordeste que ganha corpo no século XXI, uma espécie de paraíso a ser descoberto como uma opção de turismo e lazer para a população trabalhadora nacional e internacional. O Nordeste passa a ser explorado como espaço para a fuga do cotidiano industrializado e desenvolvido, ambiente idílico, dos coqueirais, do sol, do mar morno e do folclore. A região é romantizada em diversos signos permitindo que a paisagem entronize esse processo de “fetichização” em torno de sua natureza e da sua cultura acentuando cada vez mais as dicotomias. Na atualidade o cotidiano efêmero e com influência global direciona ao fragmento do espaço para o registro fetichizado, mesmo com uma relação tradicional deslocada do plano real. As fotografias que favorecem esse imaginário estão, geralmente, vinculadas ao litoral e comunica um ambiente de poucas pessoas com a vivência distante do cotidiano agitado; economia de subsistência com as jangadas ao mar; um local que simula estar suspenso dos desenvolvimentos tecnológicos, das questões políticas mundiais e da reunião das grandes massas. São quadros alheios às relações desenvolvidas nas capitais nordestinas por apagarem todo o aparato necessário a estrutura requerida pela atividade turística. As produções fotográficas, tecnicamente perfeitas, seguem o modelo de estilos direcionados à divulgação do turismo ante a dialética trabalho/lazer. Para tal, constroem um cenário propício ao descanso, à fuga dos problemas modernos através da possibilidade que oferece ao indivíduo de usufruir com liberdade momentos que o permite imaginar um encontro com a sua própria dimensão natural, quase primitiva: ou seja, correr livremente, comer com fartura, aproveitar a disposição para o amor e o sexo, entre outras possibilidades que escapam em alguns termos, da vigilância do tempo cronológico. O que deixa implícito toda a dimensão laboral existente. 140 Ou seja, o que se pensa como fuga ou escape só é possível porque existe uma rotina do trabalho para se afastar, porque existe um tempo livre construído na própria dimensão do trabalho. Ainda mais, o espaço para o gozo da liberdade abraçado pelo turismo só existe porque não há a liberdade, em seu sentido lato, mas sim um trabalho racionalizado e controlado pela infraestrutura turística dependente da rotina e do labor padronizado em voga com os padrões hegemônicos. Simula-se uma liberdade que é ausente porque lida diretamente com o que está presente no cotidiano, nas ruas, no trabalho e na hierarquia da ordem burguesa. Ou, o turista, como destaca Bauman (1997) no papel de um aventureiro consome o espaço e o tempo de modo diferente, na contramão dos residentes que na prática do cotidiano ficam submetidos ao trabalho e a rotina própria do sistema capitalista. E, mesmo assim o turista aventureiro consome o que é pré-planejado para o seu uso, geralmente vaga por onde lhe é permitido, e usufrui o que, anteriormente, é pré-estabelecido. Afinal, como destaca o sociólogo Krippendorf (1989, p. 71) não dá para ser diferente demais diante da atividade turística, o que parece por demais exótico, “por demais estrangeiro, por demais diferente do comum, acaba se tornando desconfortável e talvez até ameaçador.” Afastando assim o objetivo final do lucro. O paraíso está associado à perspectiva promocional do turismo, nele a natureza é a grande “vedete” do quadro político e ideológico que se orienta pelo econômico. Nesse intuito a cidade que pretende oferecer um paraíso turístico deve priorizar seus espaços naturais otimizando-os para satisfazer os desejos de quem pode pagar. Isso de modo interconectado ao cenário global do mercado de viagens, o que não é exclusivo ao Brasil, muito menos ao Nordeste, incorporam-se as formas que, atreladas ao contexto local, definem os ambientes a partir de identidades elaboradas no jogo das relações existentes. Caso do Nordeste que se constrói envolvido em simbologias que, como pontua Albuquerque Júnior (2012), originam o “preconceito contra a origem geográfica e de lugar”. Os símbolos imagéticos que se estendem na esteira dos planos políticos, ideológicos culturais e econômicos da região, uma vez que negam a sua pluralidade, a condena e a sua população a um estereótipo pejorativo; orientado pelo equívoco que aponta natureza e raça como responsáveis pelo atraso e pelos problemas existentes diluindo-as em uma única noção de resultado fatídico de uma questão natural, afastando da conjuntura social as possibilidades de retratamento. Abaixo expomos a Fotografia 4, Galinhos, RN. Nessa imagem, em uma primeira mirada, podemos imaginar deslocada do grande mito original do Nordeste: a seca. É a paisagem comprada por quem deseja consumir praias e o clima tropical em momentos de lazer. Todavia, um mito não aparece sozinho, protagoniza uma cena junto com outros personagens, cercado 141 por coadjuvantes. Na fotografia em questão escolhe-se um ângulo e constrói-se uma paisagem fundamentada em um conjunto discursivo significativo e particular do espaço que incrementa os personagens. Veja a carroça na beira-mar, sendo esse meio de transporte um veículo de tração natural, antecedente a visão de progresso, compreende a tradição do meio rural, um resquício do período colonial dá a singularidade que a distingue do litoral dos grandes centros. Assim, se preenche o Nordeste recente e atual como um espaço prenhe de ícones pretéritos em sua paisagem. Em uma conjunção mais ampla de significados, algumas matrizes episódicas são utilizadas para a construção da semelhança que produz pelo processo da repetição uma percepção da composição; impressões que fornecem grandes possibilidades de moldar a visão para a formulação dos estereótipos. Fotografia 4- Galinhos, RN121 Fonte: . Nesse processo, a ordenação favorece determinados enquadramentos nos registros fotográficos e nas reproduções dessas ordenações, isso parte de um discurso traçado que se 121 Fotografia de autoria de Canindé Soares. Fonte: CS Fotojornalismo: Agência Potiguar de Fotografias e Notícias. 142 analisado em sua origem favorece o entendimento dos significados culturais, políticos e ideológicos privilegiados ou não, que os constrói. Didi-Huberman indica a fotografia como um material oportuno para se fazer a crítica das relações sociais. Nela está contida a compreensão da elaboração de discursos históricos que demarcam relações atuais, muitas vezes aparecendo como conflitivas a lógica convencional. Sua proposição acaba apontando e questionando os dois procedimentos mais comuns quando a fotografia aparece como objeto de análise, são esses; o da crença - que busca ver sempre alguma coisa além do que se vê; e o da tautologia - que concentra-se em não ver nada além da imagem, nada além do que é visto. Essas são abordagens que construíram o saber tradicional em torno das obras de arte e que na compreensão de Didi-Huberman (2010, 2013, 2015a, 2015b) acabam recalcando a ausência pertinente aos recortes demandados pelo próprio limite do objeto. Examinando o ‘dilema do visível’ nos propõe a transposição desse dilema. A proposta de Didi-Huberman (2010, 2013) é a de entender as fotografias pelo ato fotográfico e criticar as noções sintéticas, fixas e fechadas sobre o objeto que vem sendo desenvolvidas intermediadas pelos conhecimentos estabelecidos na disciplina história da arte. Esse autor inicia, então, se contrapondo a uma teoria existente da História da Arte que pensa a imagem como um conhecimento fechado, que diz claramente o que elas são ou significam. Em sua concepção, essas interpretações precisam ser rompidas, bem como necessitam enfrentar uma “rasgadura” a fim de ultrapassar esses limites, uma vez que para o autor a imagem faz parte de uma experiência visual, sendo assim capaz de provocar distintas reações, diferentes leituras e interpretações. Para chegar a esse momento de ruptura, ou melhor, de transposição com as noções cerradas, é realizado um debate profícuo sobre os conceitos e as teorias de autores como Sigmund Freud, Merleau-Ponty, Aby Warburg, Walter Benjamin, Hubert Damisch, entre outros cujos estudos estão pautados na imagem. Esse debate tem um objetivo básico de contestar a tradição iconológica que, diante da sua concepção de cientificidade, procura dar conta do visível. O problema é que a história da arte colocava o visual sob a tirania do visível (imitação) e o figurável sob a tirania do legível e da iconologia, fechando-o. Caso das fotografias de Salpètriere e de Auschwitz que acabam servindo como um instrumento de reprodução do discurso. Sobre esses estudos é enfatizado que desde o início da disciplina, que se dá de Vasari até Erwin Panofsky, recoloca-se o problema da razão. Segundo Didi-Huberman (2013) a configuração metodológica à disciplina foi dada por Panofsky que fundamentado em Kant – por intermédio de Cassirer – abriu questões pertinentes e criativas, instituindo uma maneira até 143 então inédita de se debruçar sobre as obras de arte; entretanto, dando um tom de certeza na análise levantada em cima do objeto, o que a fechou em uma camisa de força. Panosfsky mesmo sem se dar conta, dá uma forma a um saber produzido sobre as artes. A título de informação, há que se ressaltar que Erwin Panofsky nunca se deteve sobre a arte moderna e muito menos sobre a fotografia, cuja entronização ele testemunhou pessoalmente. Essa ausência inspirou o historiador Kossoy (2003) a adaptar o seu método de interpretação das pinturas para a análise de imagem fotográfica, dividindo-a nos níveis de observação iconográfica e iconológica. Na iconografia temos a fase de observação, identificação e descrição dos “elementos icônicos formativos” da fotografia. E, com a iconologia, busca-se apreender significados intrínsecos as imagens, que para Kossoy (2003) encontram-se nas entrelinhas. A crítica destacada faz parte do livro O que vemos, o que nos olha (DIDI-HUBERMAN, 2010). Nele mostra-se a rasgadura na compreensão da fotografia a partir da relação entre o olhante e o olhado; a dinâmica da imagem é dada a partir da função crítica e social mediada pelos conceitos de aura e de imagem dialética do Walter Benjamin. A imagem dialética está no ponto crítico das diferentes temporalidades que cruzam a história do referente imagético (DIDI- HUBERMAN, 2010). É o ponto onde o outrora encontra o agora e constrói nas constelações que ilumina os significados que a perpassa no presente e passado, escapando a uma sequência linear histórica, atravessando períodos de latência e tensão, ora pela transmissão, ora pelo esquecimento, ora pela redescoberta, em que repete-se e metamorfoseia-se. Nas constelações construídas a concentração da totalidade histórica está nos momentos que irrompem com a sua continuidade (DIDI- HUBERMAN, 2013). Essas são as abordagens que construíram o saber tradicional em torno das obras de arte e que na compreensão de Didi-Huberman (2010, 2013a, 2013b, 2015a, 2015b) acabam recalcando a ausência pertinente aos recortes demandados pelo próprio limite do objeto. Por isso suas concepções vêm sendo fundamentadas para se pensar a partir do que está enquadrado conectado ao contexto do ato fotográfico. Para Didi-Huberman (2010) como o que vemos só vale pelo que nos olha, se olhamos um cubo da arte minimalista, negro, com cerca de 1,6 metro de lado, podemos, diante do que está à nossa frente, ter duas atitudes: primeiro, só vemos o inelutável volume do corpo; sua forma única de ocupar o espaço, como se no objeto nada nos olhasse. Essa é a visão tautológica, só aparece pelo que se vê. Porém, existe outro modo de ver o cubo, considerando o que dele nos olha. Antes o autor coloca as seguintes questões: haverá dentro do cubo um vazio? Poderíamos sentir medo se o cubo nos lembrasse um túmulo? Nesse caso, o cubo abrigaria um vazio interno, em que caberia um corpo. De lá, o que nos olha? Diante 144 dessas questões algo se abre e “cada coisa a ver torna-se inelutável quando uma perda a suporta, e desse ponto nos olha, nos concerne, nos persegue” (DIDI-HUBERMAN, 2010, p. 31). No cubo um movimento entre a superfície e o fundo sobrevém e manifesta-se no plano óptico, “do fluxo e do refluxo, do avanço e do recuo, do aparecimento e do desaparecimento” (DIDI- HUBERMAN, 2010, p. 33): Tal seria, portanto, a modalidade do visível quando sua instância se faz inelutável: um trabalho do sintoma no qual o que vemos é suportado por (e remetido a) uma obra de perda. Um trabalho do sintoma que atinge o visível em geral e nosso corpo vidente em particular. Inelutável como uma doença. Inelutável como um fechamento definitivo de nossas pálpebras (DIDI-HUBERMAN, 2010, p. 34). Essa experiência sintomática da dinâmica do ir e vir, da liquidez e da retenção está arraigada à sensação da perda. Implica, portanto, na percepção de que algo nos escapa assim como água retida nas mãos: em tal caso, “ver é perder” (DIDI-HUBERMAN, 2010, p. 34). Ao viver uma experiência, para além da pura tautologia, volve a possibilidade de querer recusá-la. Principalmente, se tomarmos o tom da crença, podemos negar essa experiência simplesmente porque: O túmulo, quando o vejo, me olha até o âmago. Diante da tumba, eu mesmo tombo, caio na angústia, esse modo fundamental do sentimento de toda situação, revelação privilegiada do ser-aí. É a angústia de olhar o fundo — o lugar — do que me olha, a angústia de ser lançado à questão de saber o que vem a ser meu próprio corpo, entre sua capacidade de fazer volume e sua capacidade de se oferecer ao vazio, de se abrir (DIDI-HUBERMAN,2010, p. 38). O que Didi-Huberman (2010, p. 77) quer enfatizar é que o ato de ver não é “o ato de uma máquina de perceber o real enquanto composto de evidências tautológicas”. Essa é a síntese do ato de ver transpondo uma realidade cercada por evidências tautológicas. É o modo de escapar da hegemonia do que está dito a partir de enunciados considerados como detentores da verdade única. É a fuga da evidência visível “que se vê”. A imagem dialética trata de inquietar o ver, mostrar que não há evidências, a não ser no movimento que cristaliza o real nos arquivos imagéticos da objetivação tautológica através de regimes de visibilidade de via única. A imagem dialética figura-se assim como interpretação crítica da dinâmica social por favorecer uma rasgadura nos aspectos unilaterais do pensamento, colocando as relações em seu movimento. A fotografia coloca em prova a representação visual do passado por captar na sua problemática o presente, já que essa apresenta as dimensões da própria cultura, de modo inconsciente e sintomático, por ser intermediado por nosso arquivo imagético que é sociocultural e sobrevivente e aflora em distintos contextos sociais. 145 A semelhança da fotografia que informa na visibilidade o movimento e a passagem do processo dialético em seus desvios e negatividades; é o informe que qualifica o poder das formas de se deformar, de passar subitamente da semelhança ao dessemelhante, também, as imagens na forma que pressupõe é o que nos interessa. Uma vez que a semelhança que sobrevive anacronicamente está situada na repetição e na diferença, no ir e voltar no tempo causando sintomas que identificados facilitam o rompimento das máscaras discursivas. Sendo a forma uma transgressão, não a transgressão da forma, mas a transgressão relacionada aos conflitos em ação no tempo se impõe a memória enquanto aparição virtual de uma quantidade de figuras associadas que se aproximam e se afastam para construir um significado. Essa é a semelhança figurável, que na fotografia reconcilia o que é análogo entre dois enquadramentos que podem ocorrer diante de um sistema cultural em tempos e espaços diferentes (DIDI- HUBERMAN, 2013b). A semelhança que se reproduz e tem um ponto de origem coaduna-se nas atuais paisagens registradas em fotografias que circulam como fomentadoras do turismo nos Estados do Nordeste. Isso se dá do seguinte modo: a visualidade prévia da região, em um contexto outro, resiste na semelhança que a conforma no espaço e nos vestígios que a designa e constrói o seu entorno. Nesse caso, o anacronismo e a arqueologia foucaultiana estão intimamente vinculados em prol da percepção dos distintos usos e pareceres da extensão do seu emprego. A semelhança resistente é o sintoma, é a impressão evidente, o que oferece oportunidade de elaboração da crítica interna dos sistemas de representação que sobre ela emerge. O sintoma hubermasiano em nossas fotografias aparecerá enquanto uma expressão de relações sociais não capitalistas que configuraram a sociedade brasileira e que, posteriormente, conformaram as imagens do espaço criado no âmbito da sociedade capitalista. Essas fotografias carregam heranças do passado, que não resolvidas, mal colocadas, atormentam o presente com a sua carga de discriminação e desigualdade. Na noção da análise fotográfica proposta por Didi- Huberman (2010), em seu livro intitulado “O que vemos e o que nos Olha”, o movimento dialético diante da ótica do olhado e do olhante afirma o tempo como intermediador principal da relação. Ou melhor, o discurso presente nas fotografias escapa a um sistema finalizado, como ocorre na proposta de leitura iconológica, ao contrário, nesses termos entre passado e presente existe uma forma que deve ser acessada por meio do tempo e dos sentidos da sua aparição abusiva. A forma que se sobressai, anacronicamente, é onde está à possibilidade da crítica, é o movimento dialético propiciador da transformação que provoca a imaginação. A par dessa possibilidade de leitura, procuramos deslindar a trama de enunciados objetivos que, mormente, institui a fotografia como uma verdade, como uma construtora e 146 reprodutora de realidades. Abraçamos a fotografia não como objeto de identificação, porém, como elemento questionador das certezas e identificações que surgem nas mediações que estabelece os variados modos de exposição. Essa é a proposta que integra as nossas pretensões na análise das fotografias de Canindé Soares que atingem um alto grau de circulação, ainda, são utilizadas por órgãos públicos e pelas mídias como mediadoras do turismo no Estado do Rio Grande do Norte, mais recentemente, com a promessa do turismo religioso. Com a busca pela imagem crítica, que aparece no sintoma, visamos transformar o modo pelo qual nos engajamos no mundo do consumo. Na fotografia existem marcas de uma temporalidade cristalizada; a abstração temporal configurada por intermédio da imagem. Acionam o seu tempo de produção, mobilizam experiências passadas e convocam as convenções do passado. Entretanto, resiste entre o outrora e o agora. Nesses termos, a fotografia fixa e mobiliza as experiências passadas do seu autor quando é vista no agora, convocam às convenções do outrora, ao mesmo tempo em que movimenta as experiências do observador quando esse põe os olhos nela. À vista disso passado e presente se conservam em tensão constante, é aonde surge à imagem dialética, com a chave de interpretação do presente mobilizado na experiência prévia. A partir disso, o ponto de vista sociológico critica os discursos e eventos que essa dinâmica imagética e temporal promove nas relações atuais. 147 4 POLÍTICA E TURISMO: A CONSTRUÇÃO DA PAISAGEM NORDESTINO- POTIGUAR Neste capítulo apresentaremos um histórico das políticas públicas de turismo desvelando as concepções inerentes a cada momento histórico e as principais ações desenvolvidas pelo poder público concatenadas a emergência das paisagens que identificam o nacional e, em sequência, o regional. Veremos que o Estado brasileiro começa a agir de forma mais substancial e integradora na questão das identidades, paisagens culturais e, concomitante, na elaboração do turismo com a criação do Ministério do Turismo (em 2003), um momento ímpar para o turismo brasileiro. Em seguida, percorremos o histórico das políticas públicas de turismo no Nordeste e no Rio Grande do Norte e do processo de estruturação das paisagens em prol da atividade. 4.1 DE LÁ PRA CÁ: MITOS, IMAGENS E PAISAGENS Um dos grandes mecanismos para a elaboração da paisagem é o olhar, contudo, o ato de olhar está para além de enxergar. Aquilo que olhamos não é o que o olho enxerga biologicamente, porque no ato de olhar tem toda a carga cultural direcionada por nossa história social e individual. A visualidade das paisagens com a diversidade e a pluralidade do olhar atribui os diferentes sentidos da intervenção humana que recaem sobre essa categoria. Assim, a apropriação humana dos elementos da natureza – pois a paisagem não está na natureza como tal –, nasce com a interferência do olhar e é justamente essa apropriação, esse conhecimento da natureza que constrói o que chamamos de paisagem (SCHAMA, 1996; CORBIN, 1982). No ocidente, as primeiras representações da paisagem apontam a emergência do seu surgimento como fenômeno, por meio de duas percepções que foram essenciais para o seu entendimento. A primeira, a laicização dos elementos naturais dos espaços sagrados. A segunda, a organização desses elementos naturais em grupos autônomos e coerentes. Alguns estudiosos desse tema assinalam que o surgimento do conceito de paisagem está atrelado a uma ideologia conservadora de proprietários fundiários à beira do mundo moderno, mais especificamente no norte europeu (MENEZES, 2004). Com o movimento renascentista e o uso dessa perspectiva desenvolveu-se enquanto gênero artístico que imprimia o realismo e o naturalismo nas pinturas. Para o geógrafo Claval (2004), a perspectiva revolucionou a visibilidade da paisagem ocidental no início do século XV. 148 Também, a descoberta do novo mundo causou um grande impacto na concepção do espaço, surgem cenários antes desconhecidos, bem como novos sentidos começaram a ser construídos e com eles novas paisagens. Localiza-se um novo continente, novos signos e com isso há toda uma revolução conceitual e um alargamento de paisagens e noções sobre elas. Essas descobertas propiciaram o surgimento das literaturas dos viajantes, ricas nas descrições de viagens às ilhas paradisíacas, cheias de imagens, cheias de mitos, cheias de simbolismo em torno do que ainda era um mistério. O movimento das descobertas junto às técnicas desenvolvidas permitiu maior domínio dos espaços. Os locais considerados longínquos e assustadores começam a ter seus sentidos revistos, uma vez que a ciência contribuiu para o enfrentamento desses ambientes. Caso dos sentidos que envolveram o mar; primeiro, vivenciado a partir do medo, depois transforma-se em local de cura e finalmente passa a servir ao deleite e a apreciação. No mar encontra-se na atualidade o “prazer, até então desconhecido, de usufruir de um ambiente convertido em espetáculo” (CORBIN, 1989, p.35). Esse cenário entusiasmado com a natureza vai construindo o desejo de vivenciá-la. A paisagem natural promulgada nas dimensões artísticas (como na literatura, na música e no teatro) ajudou a delinear esses locais. O historiador Gombrich, faz referência a esse aspecto com o movimento de turismo ao apresentar um guia turístico da Inglaterra do século XIX, que já inserido em um contexto mercadológico de valorização da natureza, fazia ofertas tentadoras aos que se propusessem embarcar nas viagens paisagísticas. O guia promete ao turista ver no Lago de Coniston paisagens “com os delicados toques da pintura de Claude”, segue oferecendo as águas de Windermere que dará ao visitante “acesso ao senso de nobreza do pintor Nicolas Poussin” (um dos maiores representantes do classicismo no século XVII). E, o Lago de Derwent proporcionará um encontro com as magníficas ideias românticas de Salvador Rosa (MENEZES, 2004, p.34). Na paisagem recai toda a carga cultural que é construída temporalmente, socialmente, politicamente e economicamente, isso quer dizer que para enxergá-la não bastam os elementos da natureza dispostos ao nosso olhar, sobrepostos em um espaço. Devemos antes, encontrar nesses elementos visíveis, nessa natureza demarcada, condições para que certo conteúdo chame a nossa atenção (SIMMEL, 2009). Essas condições são arquitetadas na dinâmica das relações; em que somos: indivíduos e paisagem, obras culturais das nossas percepções que criam e delimitam espaços. A busca do ser humano pela natureza pura, como um espaço isolado em si, para seu refúgio é inexistente. O desejo e anseio por determinada paisagem só nasce, só ganha forma, porque a natureza e o humano são elementos intrínsecos; nesse entendimento, criamos a natureza e ela existe em nós (SCHAMA, 1996). 149 4.1.1 A paisagem nacional: “Meu Brasil brasileiro” Os símbolos constituintes das paisagens as balizam diante da visão dos indivíduos; a sociedade capitalista, por exemplo, valoriza ou desvaloriza as paisagens conforme a perspectiva de consumo possível. Se trata da construção de significados que contribuem com a instituição de determinadas fronteiras políticas, econômicas e culturais. Das fronteiras sociopolíticas existentes, um exemplo significativo são as nacionais. Muitas paisagens foram construídas a fim de se marcar e institucionalizar o que é a fronteira concernente à identidade nacional. Com isso, criam-se paisagens para dar identidade ao espaço, ao mesmo tempo que servem para legitimar territórios culturais, econômicos e, políticos. É interessante notar que as paisagens são elaboradas em distintos planos, sendo o processo cultural a argamassa. Se pensarmos na paisagem brasileira, certamente, veremos em nossa mente um recorte com o Cristo Redentor de Braços abertos para a Guanabara ou o morro do Pão de Açúcar; ambos, cercados por uma natureza bela e pontos representando as pessoas vivenciando seus entornos. Essa imagem não surge do nada, ela é o resultado de vários discursos; uma fotografia ao representá-la seria, provavelmente, uma panorâmica aérea, um modo de construir paisagem consequente dos avanços técnicos que possibilitaram o alargamento do olhar. Ainda, poderíamos recortar em nossas mentes paisagens nacionais com praias, mulheres de topless (prática proibida no Brasil), festas com palmeiras, sambas, frutas tropicais, macacos e papagaios. Todos esses símbolos estariam ligados à paisagem nacional. Nem sempre reais, esses símbolos incorporam ideologias elaboradas aproximadamente entre os anos de 1880 a 1950, período que compreende a construção de uma identidade do nacional. Em visita a casa de um norte-americano no Estado de Washington, EUA - no dia da festa do seu aniversário –, que afirma ser o Brasil o país dos seus sonhos, foi possível observar muito do que se caracteriza enquanto essa paisagem que identifica o nacional para o olhar do outro. Ao entrar na casa nos deparamos com pessoas sambando ao som de pandeiros e cavaquinhos ao redor de uma fogueira, era uma noite de três graus Celsius, as roupas tinham as cores verdes e amarelas. Nas paredes predominavam quadros com paisagens do Brasil: carnavais na Marquês de Sapucaí, Rio de Janeiro; mulatas desfilando com os seios a mostra; noites com mulheres e bebidas; vistas do Cristo Redentor e Pão de Açúcar, ainda, alguns espaços da Bahia, suas igrejas e retratos em closet de índios122. Interessante é que o Estado de 122 A alusão é feita a Richard HopKins, norte-americano, atualmente com 65 anos de idade, foi comerciante de pedras preciosas brasileira nos EUA. Com o comércio de pedras conseguiu manter uma vida confortável. Empreendia muitas visitas ao Brasil, seu campo de trabalho era Bahia, Minas Gerais e alguns locais da região norte. Porém, mantinha um apartamento alugado no Rio de Janeiro, capital. Era frequentador das noites cariocas, 150 Washington tem uma política de valorização ampla da cultura indígena, além das variadas áreas de reservas. Todas as cidades desse Estado têm nomes de origem indígena, nos edifícios residenciais sempre existe algum tipo de arte que valoriza a cultura desse grupo; além de festividades públicas que envolve a cultura indígena e seus representantes, mesmo assim, não havia nenhuma foto dos índios americanos, essas imagens são representações dos índios brasileiros. Avançando, uma grande tela exibia, sem som, o filme “Black Orpheus” de Marcel Camus (1958), ganhador do festival de Cannes de 1959 e do Oscar de melhor filme estrangeiro em Hollywood 1960. Com esse filme os convidados viam somente imagens de um Brasil que o nosso amigo conseguiu enxergar: das pedras preciosas que o sustentou e das aventuras noturnas relembradas com saudade. Um lugar que a produção cultural nacional ajudou a inventar. O filme Black Orpheus – Orfeu Negro foi um grande veículo de divulgação da nacionalidade brasileira, revela para as plateias internacionais uma imagem do Brasil a partir da cultura popular, da música e do carnaval. Tem o foco na população mestiça, sensual e feliz, reverberando o que seria o resultado da composição étnica brasileira. Tem como principal paisagem fragmentos do Rio de Janeiro, composto pela favela e a Baía da Guanabara. A paisagem é formada pelos modelos de convivência da cordialidade inter-racial, em um sistema hierárquico que vigora o homem branco como comerciante, dono do espaço que condiciona as relações correntes na película. Mesmo sem ser o protagonista, o espaço do imigrante europeu é privilegiado, o centro econômico e racional que dá base para o desenvolvimento dos personagens mestiços; esses apresentados pela emotividade e sensualidade aguçadas que encena um estágio de afetividade pueril, a musicalidade corporal do grupo mestiço é dada como intrínseca, o corpo se torna objeto do nacional e as crenças em entidades sobrenaturais são postas em relevo. Presenciar a noção do amigo norte americano – sobre as paisagens e a vivência no Brasil – foi esclarecedora e fundamental para vivenciar na prática os caminhos que tornam possíveis a construção de um imaginário nacional, interessante ver in loco as expectativas que circundam esse imaginário coletivo no indivíduo. No mais, esse caminho é o da construção da imagem sócio da boate Hippotamus que teve seu auge entre as décadas de 1970 e 1980, uma boate frequentada por artistas famosos e socialites. Atualmente, reside no estado de Washington, se tornou um amigo próximo, nos diversos diálogos estabelecidos é corrente a alusão e a saudade que sente das noites cariocas, do carnaval, do samba. Em seus discursos o Brasil é principalmente o Rio de Janeiro; local de muitas festas, muito samba, muitos artistas, local de gente boa com muita sensualidade. Os outros brasis, o do comércio das pedras, é o Brasil selvagem, dos índios, com pessoas carentes, mas hospitaleiras, prontas a servir. Ao que parece Richard não consegue se libertar dos mitos. Curioso foi participar de seu aniversário, cujo o tema foi o Brasil, haviam muitas paisagens “do Brasil espalhadas na sala”; o bolo era a bandeira brasileira; acrescido de um grupo de sambistas que animava a festa, esse era o cenário. 151 nacional como parte de uma produção política e cultural, que teve como um dos seus objetivos construir um vínculo de inúmeras afetividades e pertencimentos entre o cidadão e o recorte territorial. A implementação do território nacional fundou distintos discursos que veicularam as características de um povo ao seu espaço (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2012). Ao se debruçar sobre a ideologia nacionalista, em sua vertente burguesa e popular, Hobsbawn (1991) coloca-a como protagonista central do cenário político, sendo essa uma comunidade imaginária construída por meio de mitos e realidades. Outros autores tratam da construção do nacional123 e deslindam os instrumentos envolvidos nas percepções desses espaços. Todos são pontuais na noção da nacionalidade como uma generalização dos discursos que nega toda a carga complexa humana de símbolos, ideias, valores e construções, na medida em que unifica um tipo de visualidade. O historiador Albuquerque Júnior (2012, p. 22) em um alerta a negação da pluralidade que as identidades apagam, diz que animosidades como a dos EUA e México ou Brasil e Argentina, entre outras, tiveram no discurso nacionalista uma das suas fontes de alimentação; se o discurso nacionalista afirma como característica inata do brasileiro ser hospitaleiro e alegre, a contramão dessa percepção favorece que essa alegria e a hospitalidade sejam vistas como uma “micagem”, ponto de vista preconceituoso de muitos argentinos que caracterizam os brasileiros como “macaquitos” negros que gostam de imitar os outros; esse é o resultado de dirigir na contramão de uma via única: a colisão. As restritas e repetidas paisagens que elaboram um imaginário a partir de um conjunto de percepções específicas sobre as partes do mundo e das pessoas que as habitam, em grande medida, formatadas pelo processo de expansão e hegemonia cultural europeia submetem socialmente, politicamente e economicamente outros territórios. Ainda mais, pautam as concepções sobre as imagens das paisagens diante do conceito de civilização europeu. Isso, tanto para definir positivamente, quanto negativamente os espaços e seus habitantes causando uma variada gama de tensões, crises e preconceitos. São características recentes que marcam um conjunto de sentidos, de símbolos, de eventos que envolvem o modo de ser visto e entendido o Brasil. Nesse esquema nasce à ideia de nação brasileira, delimitando o que é ser brasileiro em prol de um projeto político que se traça para o país baseado em algo que se acredita ser o melhor de acordo com o parâmetro europeu. Para tal, um conjunto arquitetônico permeado de valores 123 Ver: Comunidades Imaginadas de Benedict Anderson; A invenção das tradições, também de Eric Hobsbawm, junto com Terence Ranger; Estado, nação e violência de Anthony Giddens, entre outros. Esses livros, entre outros títulos estão relacionados na obra de Albuquerque Júnior (2012). 152 e condutas é implantado na capital do Estado em moldes europeus com o objetivo de mostrar para o mundo um Brasil que emerge civilizado e direcionado ao “progresso” - por meio da materialização das cidades. A natureza ganha à cena uma vez que a sua exuberância destaca, também, o potencial do trabalho agrícola. “Pensado ora como paraíso edênico, ora como inferno verde, o Brasil teria na natureza um dos traços fundamentais a lhe diferenciar dos demais países”. O que desemboca na construção do mito do “gigante pela própria natureza”, como parte dessa natureza cria-se a caracterização do índio, seguida pela do sertanejo, ambas carregadas de romantismo (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2012, p. 53-54). No entanto, a representação sobre o Brasil no exterior se dava nos moldes do “exótico”. Afinal de contas, o pensamento era definido por meio de parâmetros estabelecidos pelo que se via e se vivia na Europa, também pelo que era legitimado cientificamente; como as teorias raciais do fim do século XIX, no qual o branco era entendido como uma raça superior e as outras raças incapazes de atingir valores mais elevados, sua manutenção dependia da submissão ao branco. Elementos distintos dos das paisagens ditas civilizadas eram considerados exóticos. A própria literatura dos viajantes destacava o comércio brasileiro escravo em plena praça pública na contramão da civilização; a forte presença de negros nas ruas com suas manifestações culturais e religiosas; pessoas vestidas em trajes pobres e de pés descalços seriam signos das relações marcadas pela mestiçagem e sua degenerescência racial. Esse é um conjunto de visualidades que coloca o Brasil como digno de curiosidade, mas não como exemplo. Logo, a par dessa realidade as instituições públicas objetivavam “desvanecer no espírito das populações europeias os preconceitos que nos amesquinha[vam] a seus olhos” (DIÁRIO DO RIO DE JANEIRO, 1861). As fotografias quando começam a circular se tornam parceiras e coadjuvantes da propaganda do que se queria mostrar como sendo o moderno Brasil. As imagens fotográficas que revelassem cenas com índios e negros, vestimentas consideradas impróprias, edifícios fora dos padrões da arquitetura moderna, paisagens pitorescas e bucólicas eram rejeitadas. A prioridade era dada às paisagens das cidades do Rio de Janeiro, São Paulo, Salvador, Recife, Belém e Ouro Preto. As cidades de dimensões mais modestas também eram fotografadas em seu ponto mais atrativo seguindo o modelo hegemônico. Os aspectos positivos que encenam o final do século XIX e as primeiras décadas do século XX, grosso modo, são caracterizadas por fotografias que privilegiam paisagens constituídas pela expansão urbana, o aumento da população na cidade, a valorização da racionalidade técnica, a higienização, a intensificação das relações sociais e a incorporação ao mundo capitalista. 153 Com a crise do conceito de civilização europeu após a Primeira Guerra, acrescido da emergência econômica dos Estados Unidos e Canadá, o continente americano passa a representar um novo papel político, econômico e cultural traduz-se na grande fonte inspiração. Como consequência as nações americanas empenham-se em fortalecer e repensar os seus discursos sobre a nacionalidade. Essa virada é sublunar para a redução do complexo de inferioridade que o Brasil nutria em relação à Europa, também, para se pensar a questão do Velho e do Novo Mundo de modo invertido. O velho agora significa o decadente, o que está distante dos fluxos econômicos e sociais almejados, visto que está arraigado nos costumes arcaicos. O novo estaria aberto às oportunidades, a aventura do tempo presente e ao enfrentamento dos riscos futuros. Esse discurso dá as bases para a construção do mito dos Estados Unidos como a terra das oportunidades e realizações. O Sonho Americano passa inclusive a ser uma metáfora para o sucesso econômico em território Norte Americano. Isso estimula a se pensar uma identidade forte para o Brasil que o torne independente dos padrões europeus e destaque a sua força como nação próspera para os empreendimentos futuros. A década dos 1930 é singular para a organização da identidade nacional. Em 1931 foi inaugurada no Rio de Janeiro a estátua do Cristo Redentor, paisagem central de promoção turística e identitária do país. A cidade já fazia parte do grupo de locais mais visitados no mundo, sendo sua paisagem uma das mais representativas para o turismo. No mesmo ano foi publicado o romance de Jorge Amado O país do carnaval, em sequência os blocos carnavalescos são oficializados transformando-se em escolas de samba e Lamartine Babo lança a canção intitulada “O teu cabelo não nega”. É do ano de 1934, a marchinha carnavalesca de André Filho, Cidade Maravilhosa. Em 1935 foi estabelecido um acordo comercial com os EUA, no mesmo ano Carmem Miranda estreia o filme Alô-alô, Brasil, sendo considerada um símbolo nacional e sensual com os seus trajes alegóricos, carregando na cabeça a flora e a fauna tropical. Com a criação da política oficial de cultura e apoio aos intelectuais e artistas do modernismo no Estado Novo surge a oportunidade do redirecionamento da imagem da natureza, do índio, do sertanejo e do sertão, que eram descritos, anteriormente, pelos românticos a partir de uma perspectiva bucólica e colonial. Esses novos agentes pontuam as amarras provocadas pela colonização, situam a cidade de São Paulo como a locomotiva central do país, interpretam a mestiçagem como uma particularidade da nação, tirando o foco do aspecto biológico, mas não anulando-o, porém entendendo-o como traço cultural – momento em que o mulato emerge como tipo sensual e, às vezes, malandro. Esse é o palco da construção da cultura popular com seu ápice no carnaval carioca (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2012). 154 As expressões culturais que antes eram margeadas, perseguidas e colocadas na categoria de inferior passaram a ocupar uma posição de destaque diante das referências nacionais com a concepção do popular. Imaginários que antes eram negados viram referência do Brasil no exterior como os que aparecem nos desenhos produzidos pela Walt Disney. São produções que emergem com o acordo da política de boa vizinhança entre o Brasil e os EUA. São exemplos marcantes: o desenho animado Alô amigos (de 1942) que retrata a primeira aparição do personagem José Carioca: um tipo dançante com jeito de malandro. O desenho é paisagístico e inicia mostrando o Rio de Janeiro como uma floresta com aves e frutas tropicais. A capital é apresentada pelo Zé Carioca ao pato Donald em um passeio ao som do samba. Donald que tenta resistir ao samba, após tomar a cachaça cai no embalo; finaliza com a paisagem da cidade iluminada, um contexto mais urbanizado. Também o desenho “Você já foi à Bahia?” (de 1944) é o reencontro do Pato Donald e do José Carioca que dessa vez se dirigem até a Bahia, um desenho também recortado por paisagens bucólicas que lembram trechos do anterior, a ideia da natureza é constante. Os contornos decisivos para a reelaboração da imagética nacional foram dados no governo de Juscelino Kubitschek com marcas até os dias atuais. Alguns estudos foram essenciais na delimitação do que deveria ou não fazer parte da cultura popular brasileira, entre eles estão os textos do folclorista Câmara Cascudo que valorizava a tradição e questionava o progresso como um processo de desconsagração da sabedoria popular. O autor desenhava a sua obra como um meio de salvação dos rituais, festas e lendas que estariam prestes a desaparecer onde “o sujeito dessa história seria o Povo, uma espécie de entidade abstrata, que reúne a todos, sem distinções de classe, de etnia, de gênero, de faixa etária” (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2013, p. 156)124. O povo está presente na mistura das raças pronunciada no livro intitulado “Casa Grande e Senzala” com largo alcance no exterior. Nesse livro Gilberto Freyre (2003) interpreta o Brasil com a construção da cultura nacional sendo estabelecida pela mestiçagem, a grandeza do português é ressaltada pela sua facilidade de adaptação e interação com o que é estranho. Nessa adaptação portuguesa aos outros residiria à explicação para a sua potência colonizadora, principalmente, pelas práticas sexuais entre as raças. Freyre (2003) afirma a influência dos índios na formação brasileira dada em muitos aspectos por intermédio da índia, cuja sexualidade exaltada combinou com a do português, ainda em uma memória social existiria entre os 124 Para a compreensão da construção dos conceitos que envolvem os saberes sobre o folclore e a cultura popular, as relações que permitem suas emergências, ver: Albuquerque Júnior (2013). 155 brasileiros os resquícios do animismo indígena aproximando-o da vida selvagem e da crença no sobrenatural. Com grande destaque e responsável pela incidência de imagens sobre o nacional devido ao seu teor analítico sobre a identidade brasileira está também à obra de Sérgio Buarque de Holanda (1936) intitulada “Raízes do Brasil”. O autor lança mão da tese que o brasileiro é indolente, instável, imprudente e pouco interessado no trabalho, raízes herdadas do colonizador. Quanto ao mais, à emotividade comporia o caráter nacional. Esse caráter se definiria pela generosidade e a busca de intimidade rápida, superficialidade, informalidade e um tipo específico de hospitalidade. Tais condutas se contraporiam a formalidade, racionalidade, equilíbrio e a comportamentos mais distantes, considerados civilizados. Outras obras também marcam esse momento de definição da identidade nacional, entre elas estão Evolução Política do Brasil do Caio Prado Júnior e História Econômica do Brasil de Roberto Simonsen. Outro elemento presente na nacionalidade brasileira é a relação com a religião católica. A igreja, edifício de materialização da instituição católica seria mais um corpo de firmação identitária, de base colonial. Ela se viu ameaçada pelas mudanças ocorridas nas raias da república, dentre elas: a perda de espaço e a redução de prestígio incitada pela liberdade de culto; a reconstrução concernente ao processo de estadualização que passa a requerer novas adaptações econômicas e administrativas, e; as novas propostas para a educação que solaparam a hegemonia em relação ao processo educacional no país que a igreja mantinha desde o período colonial. Estrategicamente a igreja sob a liderança do arcebispo-coadjutor do Rio de Janeiro D. Sebastião Leme, busca negar as relações com a monarquia e prima pelo estabelecimento de uma república católica. Nessa conjuntura a estátua do Cristo Redentor aparece como instrumento de firmação do poder da instituição marcada no espaço nacional, o que a torna o maior símbolo de identidade relacionado à fé. Outros empreendimentos, com apoio do D. Leme, buscam promover a manutenção do poder católico no Estado laico, são ações que vinham de cima para baixo com o apoio da elite católica (FONSECA, 2011). As paisagens ditas exóticas, sensuais, mestiças e tropicais com que o Brasil passa a ser conhecido são reforçadas e trazem em sua esteira novos símbolos a partir da segunda metade do século XX. Paisagens do Pão de Açúcar, do Cristo redentor, das mulatas na praia, do carnaval e seus desfiles, do avião aterrissando nas proximidades da praia de Copacabana com foragidos de outros países são ingredientes que atraem produtores de filmes e de séries que explodem com o meio de comunicação de massas. Nas palavras do historiador Albuquerque Júnior (2012, p. 83 -84): 156 Se continuamos em muitos filmes estrangeiros sendo vistos como o endereço preferencial para onde fogem os grandes gangsteres internacionais, afinal demos guarida ao chefe da quadrilha que realizou o maior assalto feito até aquele momento no mundo, o assalto ao trem pagador na Inglaterra, se transformamos Ronald Bigs em atração turística, se os escândalos de corrupção não param de explodir na administração pública, esta imagem e este estereótipo com que somos marcados se assentam em muitos eventos concretos, embora, como todo estereótipo, seja generalizante e injusto com uma grande maioria de brasileiros que não se dedicam a atividades ilícitas. Embora tenhamos que reconhecer que faz parte da cultura brasileira um elogio da burla, do jeitinho, que se oferece, em certos momentos, necessários e fundamentais espaços de liberdade, também leva a ilicitude, ao pouco respeito às normas coletivas e até mesmo obstaculiza o desenvolvimento econômico e social do país. Mas como procurou mostrar o historiador Emanuel Araújo em seu livro Teatro dos vícios, isto advém da própria sociedade colonial, e não propriamente por nossos habitantes serem degredados, mas pela sociedade colonial ter se caracterizado, entre outras coisas, pela ausência do Estado, pela prevalência da vontade dos mais poderosos, pela possibilidade mais ampliada da transgressão, pelo pouco respeito às normas e às leis. As características que marcam a ausência do Estado na história nacional foram responsáveis, em muitos casos, pela organização e manutenção das relações de apadrinhamento, favoreceram a burla das leis em prol de interesses individuais diversos, incentivaram as quebras das normas e condutas sociais em favor das paixões momentâneas. É o paraíso edênico fundamentado na convivência das belezas naturais; da sexualidade aguçada do mulato; da terra do faz quem pode; do jeitinho brasileiro como uma forma moderna de arranjos e favores, quem sabe seja a ideia de um desenrolar dos com padrinhamentos, característica associada à malandragem em resolver as situações mais inaceitáveis, ou melhor, situações complicadas. Como explica Paulo Mendes Campos (1965) ao narrar às disposições do brasileiro, em seu texto irônico, “dar um jeito” é uma constante cem por cento nacional, impossível de se achar em outra parte do mundo. “Dar um jeito é um talento brasileiro, coisa que a pessoa de fora não pode entender ou praticar, a não ser depois de viver dez anos entre nós, bebendo cachaça conosco, adorando feijoada e jogando no bicho”. 125 Essa imagem dita como cultural do nacional conjuntamente com as questões sociais que começam a ser divulgadas com o fotojornalismo que se intensifica favorece o paradoxo das instâncias discursivas sobre a imagem do País. Aparecem dois brasis, em metáfora e analogia ao filme de Glauber Rocha é o Brasil “Do Deus e do Diabo na terra do sol”, o Brasil do paraíso 125 Paulo Mendes Campos no ano de 1965, destacada em dois textos que transformam-se em uma única crônica as características dos brasileiros. 1º Texto: Brasileiro, homem do amanhã – 2ºTexto, Dar um jeitinho. Finaliza colocando essa como uma matéria do “Colunista do Morro”, 1965. Editora do autor. Ver em: CAMPOS, Paulo Mendes. Brasil brasileiro: crônicas do país, das cidades e do povo. 3. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. 157 e do inferno, dos prazeres e da miséria; do encanto e da corrupção. O próprio Roger Bastide cunha o país por sua dualidade contrastante em seu livro: “Brasil: terra dos contrastes”, de 1959. Como geralmente acontece nos espaços periféricos que buscam seguir modelos vindos de outras realidades negando as pluralidades e a espacialidade local, essas elaborações em ocasiões atendem uma cultura sociopolítica de revisão da criação da nacionalidade a fim de estabelecer e valorizar os mitos. Ora, apresentam-se como seu contrário, por intermédio de preconceitos fomentados por discursos anteriores. O resultado do enaltecimento dos fragmentos imagéticos socioespaciais limita a identificação da diversidade do país e promove uma imagem estereotipada. Incorporadas até por muitos brasileiros em seus hábitos cotidianos, é comum encontrar indivíduos com trajes que vão ao encontro das visualidades definidoras do malandro carioca, contudo, interessante é perceber que muitos “malandros” brasileiros trabalham em vários empregos; até constroem empregos informais para conseguir manter uma vida com o mínimo de dignidade. Esses agentes incorporam-se à paisagem nacional e se dizem malandros por afetividades musicais, culturais, pelo lugar e as práticas estabelecidas, congregam o mito do malandro, de modo geral, são os trabalhadores pobres. O que é distinto da malandragem absorvida pelo olhar do estrangeiro, essa se aproxima da do Zé Carioca, com a conduta de passar por cima dos outros, burlar a lei, não gostar de trabalhar. São imagens que requerem um entendimento mais amplo dos mitos que criam, da sua absorção e reprodução. Sobre o trabalho126, isso inclui as pessoas que têm algum tipo de registro, na última década do século XX, segundo dados do IBGE, das pessoas com mais de 10 anos de idade 56,6% da população total estavam entre os economicamente ativos127em questão de horas trabalhadas. É possível levar em consideração o fato de que muitas empresas privadas no Brasil orientam reuniões para os fins de semana e não as contabilizam como horas trabalhadas agregando ao seu escopo institucional o trabalho informal; mesmo com esses desvios o Brasil se compara a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), grupo das nações mais ricas, com índices similares ao do Canadá, Japão e EUA128. No mais, o Brasil acumula uma média de dez milhões de trabalhadores informais de acordo com A Pesquisa 126 Ver em: ALVES, José Eustáquio Diniz. A transição demográfica e a janela de oportunidade. São Paulo: Instituto Fernand Braudel, 2008. p.1-13. Disponível em: . Acesso em: 26 mar. 2018. 127 INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Tendências demográficas: Análise dos resultados da amostra do Censo Demográfico 2000. Trabalho e Rendimento, 2001. 128 Ver em: BBC NEWS. Brasil, Será que os brasileiros trabalham pouco? Números respondem. 12 de dezembro de 2016. Disponível em: . Acesso em: 26 mar. 2018. 158 Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD)129. O que indica que o brasileiro não é, em sua maioria, um povo apático ou contrário ao trabalho. Esses mitos destoam da realidade. De acordo com Ortiz (1995), autores do início do século XX foram basilares para a conformação da identidade nacional que se caracteriza pela indolência do brasileiro, pela insegurança da elite intelectual, pelo lirismo ardente dos poetas e a sexualidade desenfreada do mulato, entre outras especificações. A produção intelectual atrelada às produções literárias, musicais, entre outros materiais que circularam com as fotografias, tornaram-se uma das maiores fontes de reprodução dos mitos que conformaram o Brasil e suas paisagens. Mesmo a promulgada sexualidade aguçada do brasileiro é um discurso frágil, vários estudos comprovam que a prostituição no Brasil se dá majoritariamente por extremas condições de pobreza, não por um tipo de afeição excessiva às práticas sexuais.130 O Brasil não é um país próximo dos maiores consumidores de pornografia na Internet. Nem mesmo é o maior produtor de pornografia. Nas décadas de 1970, 1980, 1990 e 2000 esse mercado foi liderado pelos EUA, onde, em termos de remuneração, as principais estrelas chegam a receber cerca de US$ 15 mil por filme. Alguns pornstar tem patrimônio que gira em torno de US$ 30 milhões, fortuna superior a de muitos astros de Hollywood. Já o Brasil, entrou no mercado somente na década de 1980, ainda na clandestinidade, em um período posterior a censura militar.131 Não é nosso objetivo achar que a sexualidade dita brasileira mereça críticas ou defesas, até porque não há uma típica sexualidade, mas sim rever os discursos que as especificam pejorativamente como particular do povo e do espaço. No caso do Brasil a associação do sexual ao exótico acaba parecendo algo natural. O emaranhado de relações que constrói a nossa paisagem nacional se sobrepõe no aspecto social sendo assumida, por muitos, como elementos verdadeiros da cultura brasileira. Entretanto, elas são constituídas por meio de um sistema de representação totalmente elaborado. Grosso modo, podemos afirmar que as paisagens brasileiras se constituem no discurso do Brasil 129 Ver em: ESTADÃO. Economia e Negócios. Trabalhadores informais chegam a 10 milhões no País. 22 de agosto de 2016. Disponível em: . Acesso em: 26 mar. 2018. 130 Sobre a relação entre prostituição e pobreza ver: LIMA JÚNIOR, Jayme Benvenuto; ZETTERSTROM, Lena (Orgs.). Extrema pobreza no Brasil: a situação do direito à alimentação e moradia adequada. São Paulo: Loyola, 2002. Ver também: TORRES, Gilson; DAVIM, Rejane Marie Barbosa; COSTA, Terêsa. Prostituição: causas e perspectivas de futuro em um grupo de jovens. Revista latino americana de enfermagem, v. 7, n.3, p. 09-15, jul.,1999. 131 Sobre o consumo de produção pornográfica ver: Acervo O Globo. Cultura do cinema pornô. Publicado em 07 de junho de 2017. Disponível em: .Acesso em: 26 mar. 2018. 159 Paraíso Tropical; Brasil, País do Carnaval; Brasil do Mulato Inzoneiro; Brasil Exótico; Brasil Místico; Brasil, Terra de Nosso Senhor. Essas representações se materializaram em paisagens cooptadas pelo, ou para, o turismo. Os interesses do desenvolvimento da atividade no Brasil, fomentada pelo Estado, partiram do privilégio ao turista europeu e norte-americano, o que se entende por turismo receptivo, inclusive, reflete a homogeneização e a centralização dos sentidos que identificam o país com o arsenal imagético descrito para formação do olhar estrangeiro. O produto turístico foi vendido ao exterior com estratégias de marketing postas em prática por meio de publicidades que abarcavam essas visualidades; como exemplo a que foi direcionada aos táxis ingleses e aos imensos painéis usados para exposições em feiras internacionais destacando o perfil erótico da mulher brasileira. Como em termos de atrativos a paisagem urbana nacional, de acordo com a percepção dos viajantes da América do Norte e da Europa – locais de maior emissão de turistas para o Brasil -, não apresenta maiores atrativos, ergue-se o cenário da natureza em oposição ao urbano. O caminho possível desse cenário é um roteiro exótico que leva a floresta tropical onde praticamente tudo é permitido; segue em direção ao litoral edênico com homens e mulheres sensuais e seminus, mulatas (como se fossem outra categoria de mulher) cordiais, receptivas e despudoradas em um caminho repleto de musicalidade com o samba dando o tom da malandragem. Por fim, o encontro com “nosso senhor”, todavia, outras divindades também são possíveis. Figura 12- Produto turístico - EMBRATUR132 Fonte: < http://g1.globo.com/turismo-e-viagem/noticia/2014/02/no-passado-brasil-ja-teve-material- oficial-de-turismo-com-apelo-sexual.html> 132 Guias turístico de promoção do Brasil – EMBRATUR (1977 e 1978). Gestão: João Dória Júnior. Fotografia que remete a promoção do turismo sexual no Brasil. Foto reproduzida por Kelly Akemi Kajira. 160 Figura 13-Te vejo lá133 Fonte: Figura 14- Legado134 Fonte: . Essas imagens se retroalimentam e compõe um regime de visualidades sobre Brasil difícil de ser modificado. Desde a criação do Ministério do Turismo em 2003, tenta-se reverter algumas delas. Entretanto, a sedução que envolve o fetiche do paraíso sensual e tropical atrelado à construção derivada da paisagem nacional inculcada na mente dos indivíduos estabelece estruturas no mundo social. Essas estruturas assinalam antagonismos mascarados cotidianamente, dando ao Produto Brasil – onde as paisagens, as pessoas e suas práticas são alegorizadas como mercadoria de valor – um status de natural e de mercadoria adequada para a fruição sem qualquer restrição. 4.2 DAQUI PRA LÁ: PAISAGENS DO NORDESTE 133 Guias turístico de promoção do Brasil – EMBRATUR (1983). Foto reproduzida por Kelly Akemi Kajira. 134 O Brasil é divulgado em revistas europeias com apelo a sexualidade nas vésperas da copa do mundo (Março, 2014). Revista do Jornal Inglês The Sun. Fonte: CNEWS. 161 A paisagem está além de ser um volume, um recorte geográfico, um aglomerado de fixos e fluxos, como ressalta Santos (1998), ela é o reflexo das dinâmicas, das cores, dos sons, dos odores da acumulação de distintas temporalidades que representam diferentes momentos do desenvolvimento da sociedade. É nas palavras de Schama (1996) uma obra dos sentidos que a contempla com a mediação dos elementos naturais e toda a carga cultural que um ser humano coloca sobre ela. A paisagem nacional emerge a partir da criação de sentidos para um conjunto de tensões e elaborações que envolvem o global e o local. É obra de enunciados, ações, aceitações, práticas, valores, interesses, memórias e mitos, que surgem das tensões existentes na dinâmica social resultante dos movimentos “de lá pra cá e daqui pra lá”. Nesse relacionar entre natureza e cultura surgem as paisagens do Nordeste, construídas em torno da fixação de uma singularidade orientadas por interesses vigentes. As formas do que viria a ser o Nordeste surgiu de um discurso que iniciou seu traçado quando uma parte do norte do Brasil foi assolado pela seca que se deu 1877, considerada uma das maiores do país. Livros, artigos e jornais narraram essa história, construíram uma paisagem com ênfase na experiência da miséria sustentada pelos enunciados, narrativas e imagens vinculadas às fotografias. Um evento natural em conjunção com o descaso social marca a construção de uma geografia associada à fome e a miséria, notadamente com cenas de homens, mulheres e crianças esquálidas e expostas em poses marcantes, o que se tornou recorrente em diversos noticiários. A estiagem já não era novidade nessa parte do país, o ineditismo se deu pelo fenômeno coincidir com a crise econômica que levou grandes proprietários de terra a falência, ademais, foi o período de emergência dos meios de comunicação e a fotografia acoplada a eles promoveu uma repercussão nacional dessa imagética visualidade chocante e nunca antes vista, desperta a atenção em torno do espaço (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2012). As lutas no interior do país entre polos políticos e econômicos que pretendem acender da esfera local para a nacional singularizam seus signos como possibilidade de identidade nacional. De acordo com a influência dos grupos ou indivíduos que os promovem, esses signos são monumentalizados nos locais. Afinal de contas, como pensar o nacional se não for a partir de um local? Assim, a construção da nação germina enquanto imagem de um conglomerado de fragmentos escolhidos de diversos cantos do país. Sobrevém do discurso e da interpretação de indivíduos locais que procuram impor a sua visualização formatada no seu lugar de fala e direcioná-la como algo central do país: é o embate entre visões regionais que se transportam para o nacional. Surgem assim as paisagens locais com seu tipo de convívio e história vinculada a região em uma imagética extenuada dos seus pontos de ebulição. Em consequência, as produções de elementos regionalistas acabam aparecendo na arte, na cultura, nas obras 162 intelectuais caracterizando o que seria a visualidade do nacional (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2006). Os discursos delineados por partículas de espaços são como os raios que ao colidirem viram luz, se cruzam para forjar a nação e a ilumina por intermédio da identidade. Com os novos contornos dados pela dinâmica global, um rosto para distinguir o espaço se faz primordial; com privilégio ao que representaria a cultura geral escolhe-se o rosto popular. Dos discursos responsáveis por formar as expressões do que é o popular o movimento modernista ganha o destaque, ergue com precisão o que será o Brasil brasileiro; constrói suas bases no mito das três raças, o mais agenciado nesse processo. Com a divisão dos eixos territoriais, compreendendo a nação a partir do norte e do sul, esse mito ganha expressão. Os extremos geográficos intensificam a sua identidade fazendo despontar particularidades; ou seja, exaltam- se lendas, costumes e hábitos possíveis de se verificar em manifestações culturais e expressar a originalidade do local, sendo essas tecidas para compor o cenário da cultura popular. A imagética construída esbarra na reavaliação dos elementos verificados em sua zona de gestação, fazendo irromper a necessidade de uma revisão do regional. As análises do nacional a partir do campo regional são circunscritas pelo projeto naturalista realista que desembocou primordialmente na ideia do Brasil Tropical. Sistema de ideias que apresenta o privilégio ao meio ambiente e a raça como estâncias definidoras de caráter, possibilidades, capacidades e desenvolvimento135. O olhar que sai do regional tem a expectativa, basicamente, de responder as questões da origem do caráter nacional e da formação das tradições em sua influência com o meio combinado às características racial, o que justificaria os porquês do comportamento do brasileiro. À exemplo o negro do litoral compreendido como malevolente, o sertanejo como sisudo e ríspido, o mulato como sensual, entre outros tipos unificados e degenerados no discurso da identidade brasileira. Dessa concepção de degeneração se eleva a ideia do paulista; na contramão do sertanejo; do litoral versus o interior. Nela, o interior do país, no espaço do sertão, seria composto pela ânima que deu o suporte para o espírito da população nacional a representação primária, mais pura. No sertão as relações se dariam em estágios iniciais, livre da falsidade, da arrogância e da superficialidade, da cópia do estrangeiro. Nesse ambiente os homens estariam em harmonia com a sua própria natureza, seriam, no entanto rústicos e sem o polimento dos cosmopolitas. A 135 Renato Ortiz em seu estudo sobre a cultura brasileira e a identidade nacional explica como se desenvolveram as teorias que desembocaram no processo de construção da identidade nacional correlacionadas a raça e ao meio geográfico. Ver: Ortiz (1995). 163 dicotomia definidora dos discursos sobre as regiões brasileiras ao assumir essa simplificação identitária de dois brasis, em lados opostos, tutela uma armadilha. Isso porque as ideias que surgem minam a pluralidade e abrem as janelas para a entrada de uma única visão estereotipada em acordo com os modos de ver do regionalismo naturalista, predominantemente, após o grande conflito mundial. Momento em que a técnica passa a identificar os espaços por meio de sua inserção e uso; quanto mais conectado as novas transformações, mais próximo se estaria de algo positivo. No restante, os espaços vistos como mais atrasados em relação aos polos técnicos e econômicos eram interpretados como distantes longínquos e tradicionais; até mesmo como espaços subjugados às relações retrógradas, amarrados na contra mão do progresso. O modernismo com a crítica ao olhar regional acabou caindo na mesma armadilha e convencionou a ideia do paulista que emerge a partir da resistência à permanência do Rio de Janeiro enquanto centro cultural. Isso porque São Paulo já era o polo econômico, moderno e político do país, um status para São Paulo a partir de um olhar que sai, também, do local (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2012). Esse olhar assenta a parte sul do país como menos influenciada pelas agruras do clima quente e pelos mestiços, salienta o paulista como a representação principal dos brancos celebrados por sua altivez e pela disposição ao trabalho. Esses aspectos do regional ratificam que o norte do Brasil por seu calor favorece os tipos indolentes, o que unido à concentração dos mestiços ampliaria a apatia como característica pessoal, desqualificando o espaço e apontando- o como fadado ao fracasso. No ponto central da busca dessa identidade se define a diferença, ou o diferente. Alteridade marcada pela homogeneização de tipos e espaços compreendidos na contramão do progresso. Com a revisão do regional, na primeira metade do século XX, vai se definindo discursivamente e imageticamente a região Nordeste do Brasil. Em âmbito político- administrativo passou a existir em 1938, como parte do Anuário Estatístico do Brasil do IBGE, sendo institucionalizada em 1942. A proposta original dividiria o país em cinco principais regiões: Norte, Nordeste, Leste, Sul e Centro Oeste. Da região Norte fazia parte o Maranhão e Piauí, junto com o território do Acre e os estados do Amazonas e do Pará. No Nordeste estava o Ceará, o Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco e Alagoas. Não existia a região Sudeste, porém a região Este, com os estados de Sergipe, Bahia e Espírito Santo. No Sul, estavam o Rio de Janeiro e São Paulo. Como parte do Sul os estados do Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Por fim, a região chamada Centro, onde estavam localizados os estados do Mato Grosso, Goiás e Minas Gerais (ABRANTES, 2007; ALMEIDA, 2003). 164 Logo, fazendo parte de ordenações que refletem o predomínio da concepção naturalista do espaço geográfico que tem em conta as paisagens como aspectos naturais da geografia e não como simbologia humana é oficializada a divisão que compõe a região Nordeste do Brasil, o corre após a estruturação do IBGE. Como a ideia de nação aparece muito mais enquanto um objetivo a ser alcançado em acordo com a modernização e o progresso, os fatores interpostos enquanto barreiras para o alcance dessa meta foram associados às características do povo e do espaço geográfico. O caminho priorizado, identificado nas reflexões de Albuquerque Júnior (2006), foi o de inventar uma oposição regional capaz de marcar a distinção entre um Brasil que se aspira: ideal moderno, rico, industrial, formado por uma grande parcela de imigrantes europeus e; um Brasil que se abjeta: atrasado, pobre, rural, escurecido por uma população mestiça de índios e negros. Nesse entendimento, constrói-se a ênfase na diferença entre as regiões do Brasil a partir da dicotomia Nordeste e Sudeste. O Nordeste seria o outro atrasado e não integrado às novas demandas, isso nos “aparece como um desfilar dos elementos culturais raros, pinçados como relíquias em via de extinção diante do progresso” (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2006, p. 52). São apanhados alicerçados em uma tradição memorialística e em seus elementos folclóricos, rurais, populares, analisados como fragmentos de um mundo à parte. Peculiaridades que vieram à tona e passam a representar por meio da unidade a diversidade Nordestina. A visão que se coloca nesses elementos enquanto estruturas ameaçadas e frágeis diante da dinâmica do progresso localizam o espaço como um lugar onde predomina uma cultura “de museu” em que se expõe como “os estrangeiros” os da própria terra. Signos submetidos a um discurso político-ideológico que se pretende transformador acabam sendo conservador por se atrelar a discursos já canonizados sobre a região (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2006, p. 242- 249). Os vários tipos criados como nordestino; o retirante, o flagelado, o beato, o romeiro, o cangaceiro, o jagunço, o sertanejo, o brejeiro, se aproximam da imagem do matuto e do caipira, afastando-se dos tipos considerados citadinos. Grande parte da produção cultural que vai ser nomeada nordestina é apoiada por imagens do sertão; da preservação da tradição; da saudade da casa grande e da senzala; da família patriarcal; da capela; e, da reação conservadora à sociedade capitalista. Concepções marcadas por uma indisfarçável nostalgia em torno da sociedade escravista, do império e da vida rural com seus rituais e festividades católicas (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2012). É “a invenção do Nordeste e outras artes” como parte da produção dos grandes intelectuais, dos latifundiários, dos descendentes dos donos de engenhos de açúcar e dos artistas que cantam, romanceiam, narram, pintam e fotografavam locais consolidando a identidade do local. 165 Já na história do Rio Grande do Norte, espaço nordestino-potiguar, temáticas comuns ao cenário construído para o Nordeste são presentes, como a seca, banditismo social, o êxodo, a religiosidade, a cultura popular, o folclore, etc. Essas deram o enredo para estudos de Lyra (1921); Cascudo (1955); Mariz e Suassuna (2002) que não deixam de narrar em seus estudos sobre as famílias inteiras que abandonavam o alto sertão e iam em direção às cidades como Natal, Mossoró e Ceará-mirim em busca de sobrevivência. Além disso, o intelectual Manoel Dantas publicou vários trabalhos publicados, os quais objetivavam destacar a seca. Em seu livro intitulado “Homens de Outrora” (1941) são incluídos cinco ensaios, entre eles o texto “O Problema da Seca” vinculado no jornal “A República” da cidade de Natal no período de julho a outubro de 1901. Em todos os autores a relação da seca com o Rio Grande do Norte é marcada pelo tom de calamidade. “O povo pobre pôs os cacarecos à cabeça e tratou de emigrar, ao azar de sua desgraça, em busca dos brejos e portos, morrendo de fome e doenças ao longo das estradas” (DANTAS, 2001, p.119). Macêdo (2005, p. 26) relata em seus estudos que o sertão norte-rio-grandense acometido pela seca no final do século XIX, apareceu como um espaço da provação divina com o intuito de evidenciar a fé humana. O fenômeno marcou a “estratégia divina” que pretendeu colocar os indivíduos em harmonia com seu espaço natural. Já o litoral, natureza sobre o qual está assentada a capital do Estado, também, nesse período era hostil. Os estudiosos da região chamaram a atenção para o isolamento de Natal, causado por uma cadeia de dunas, tabuleiros de areia e rios. Segundo os jovens bacharéis do local, seriam esses elementos naturais responsáveis pela paisagem monótona de Natal submetendo-a a apatia, a preguiça e ao ócio. O progresso desejado pela elite era barrado pela força imperiosa da natureza que circundava a cidade, processo estudado pelo historiador Arrais (2006), no qual afirma que para esses indivíduos havia a necessidade de vencer o isolamento imposto pelas barreiras naturais para colocar Natal no caminho do progresso. A interferência do regionalismo pernambucano de Gilberto Freyre marcou os escritores potiguares que escreviam estimulando o leitor a criar cenários paisagísticos que são verdadeiros guias em direção ao que vale a pena ser visto e lembrado. Esses autores evocam a sociedade colonial, a casa grande e a senzala. O intelectual Nilo Pereira é um dos vários exemplos que podem ser apontados; quando escreve sobre o engenho “Guaporé”, antigo solar patriarcal que pertenceu a sua família, coloca: “Há poucos dias tive a emoção de rever o Ceará-Mirim. [...[naquela terra que é uma das mais aristocráticas do Estado é onde vivi toda a minha meninice” (PEREIRA, 1969, p.13). Em uma escrita saudosa desdobram-se construções sobre a paisagem nordestino-potiguar consoantes a estética regional. 166 Ao longo das décadas o discurso nordestino-potiguar se conforma em dependência as imagens unificadas pela ideia de região. A imagética produzida a fotografia é uma das mais expressivas para a fixação da dimensão paisagística. Nela os mitos persistem e desenham a crítica quando aparecem enquanto um sintoma aurático. Essa resistência pode ser observada na fotografia de 2016, captada pelo repórter fotográfico Canindé Soares. O registro é do interior do Estado do Rio Grande do Norte. A paisagem nordestino-potiguar avança em nossa direção representada por um jumento. Ora, as figuras remetem à marcha lenta e a resignação do animal diante do progresso, na sina de carregar os símbolos que o forjam amarrado em um espaço como se lhe fosse algo próprio. Se antes, o jumento era desprezado, depois das drásticas secas se tornou parte do sertanejo. O potiguar Manoel Dantas enfatiza que, só após 1877, o jumento (animal resistente) ganhou lugar de destaque. O sertanejo que possuía um burro, a não ser por espírito de curiosidade, tornava-se objeto de chacota. Em 1877, foi que se verificou a força de resistência de que o burro era dotado. O burro tornou-se uma verdadeira providencia para o transporte de cereaes aos pontos mais distantes flagelados pela seca (DANTAS, 2001, p.120). Observamos no discurso desse autor como o animal que antes era desprezado passa a ser valorizado, contudo, para um cenário, que é o cenário da seca. Isso o relaciona de modo determinante a uma realidade específica, a um povo e a uma geografia. Assim, resiste na fotografia o jumento carregando em seu dorso o velho sertanejo, homem simples, prevenido com os mantimentos em seus caçuas, quadriculado pelo sol que calcina, com o abdômen comprimido. Esse é um apelo visual que ressalta a forma curvada do indivíduo regional submetido às agruras do sertão, com os seus olhos baixos direcionados ao chão e disfarçados pelo chapéu de palha. As cores saturadas por Canindé atribuem vivacidade a cena e destaque a natureza, coloca em contraste o tom vermelho e o verde em fortes nuances. A terra aparece encarnada em seu solo batido, a intervenção humana que abriu o caminho entre a vegetação é apagada para dar o teor de uma cena atemporal. O choque entre o vermelho e o verde explode na união central de todas as cores e estoura em luz criando o plano de fundo para apoiar o homem e o jumento que cercados de simbologia relutam em seguir. Como coloca Didi-Huberman (2012, p. 31), em uma das suas análises de imagens, “a cor não é uma veste; a cor nunca deveria vir sobre os corpos, como um recobrimento. Quando ela o faz, é apenas um sudário ou, então, um fardo”. E, como seria a cor em seu subtom? Considerada neutra, o marrom seria o fardo ou sudário? O marrom é a nuance correspondente aos dois seres, os estreitam e os confundem no ambiente, forjando a prevalência do meio e a pequenez do indivíduo. Homem e animal, nenhum, nem outro, 167 indeterminados cobertos pelo verde da vegetação e vermelho da terra. Essa é mais uma das criações da paisagem Nordestina, uma imagem que se institui mais do que se vê. É uma amostra do Nordeste que reaparece como um sintoma, uma sombra sobre forma de conteúdo responsável pela ordenação da atual representação, o sertanejo é delineado como parte da geografia e relacionado aos elementos percebidos como característicos do espaço, caso do jegue: tem-se nesses elementos então o componente do contato que é o fenômeno aurático utilizado para colocar os discursos sócios históricos em crise. É a aura em sua dinâmica, não no que singulariza, mas no que sustenta constante ao longo de décadas. 168 Fotografia 5- Jumento como transporte, RN136 Disponível em: 4.3 O TURISMO E A POLÍTICA: CAMINHOS POSSÍVEIS Cabe aqui pontuar o que é turismo, definição preliminar e central para determinar esse campo. Um dos primeiros teóricos a se debruçar sobre o turismo o economista austríaco Herman von Shullard (1911) em seu livro intitulado “Turismo e economia nacional” como a soma das operações, principalmente de natureza econômica, que estão diretamente relacionadas com a entrada, permanência e deslocamento de estrangeiros para dentro e para fora de um país (DIAS, 2013). Nas décadas seguintes o interesse nos estudos sistemáticos do turismo aumentou, esse logo é definido como conjunto de viagens cujo objetivo é o prazer, motivos comerciais ou profissionais ou outros análogos, e durante os quais a ausência da residência habitual é temporária. Escapando as viagens realizadas para deslocar-se ao lugar de trabalho, a definição é de Bormann, 1930 (DIAS, 2013). Nesse mesmo período outro integrante da escola de Berlim Schwink, (1929-1930) caracterizou o turismo por meio do movimento de pessoas que abandonam temporariamente o lugar de sua residência permanente por qualquer motivo 136 Fotografia de autoria de Canindé Soares. Fonte: CS Fotojornalismo: Agência Potiguar de Fotografias e Notícias. Marcadores: Caçua; idoso; jumento; sertanejo; transporte; nordeste regional. 169 relacionado com o espírito, com o seu corpo e com a sua profissão. Todavia, uma grande questão era posta de lado, o espaço. Assim, em 1935, Glucksmann alertou que as definições direcionavam ao tráfego de pessoas, deixando de lado o lugar da hospedagem, que em sua concepção é onde começou o turismo. Aqui há um refinamento do conceito que aponta para o espaço em que essas atividades ocorrem. Após o segundo conflito mundial com o turismo interpretado como um fenômeno de massa, além do espaço é também incluído em sua definição o tempo: Então, toda pessoa que viaja por um período de 24 horas ou mais para um país (Liga das Nações – turista internacional – 1937/38) diferente daquele de sua residência habitual está praticando o turismo. Nessa ótica, classifica-se a atividade contemplando só os deslocamentos internacionais. Observa-se que o seu centro de emergência é o continente europeu o que favorece os deslocamentos entre países, porém essa noção continua limitando as viagens ao movimento de pessoas por razões distintas das de se ter no país visitado qualquer vínculo com remuneração. Em 1967, um Grupo de Especialistas em Estatísticas contratados pelo serviço da Organização das Nações Unidas (ONU), em um exame mais detido dos conceitos de turismo acabou em 1968 reformulando-os e construindo uma nova concepção que foi oficialmente adotada pela Comissão de Estatísticas da ONU. Nessa oportunidade também foi sugerido substituir a expressão de visitante-do-mesmo-dia (day visitor) pela de excursionista, para permanências de até 24 horas (DIAS; AGUIAR, 2002). Nos anos de 1970 e de 1980, o desenvolvimento dos conceitos estatísticos e do marco para o turismo não acompanhou as mudanças ocorridas na estruturação e ampliação do fenômeno, muito menos a importância dada ao turismo em aspectos mais globais, bem como sua própria possibilidade de ampliação futura. E só mesmo no fechamento do breve século XX que a Organização Mundial para o Turismo (OMT) destacou que a atividade compreende o conjunto de ações realizadas pelos indivíduos durante as suas viagens e estadias em lugares diferentes de seu entorno habitual, por um período de tempo consecutivo inferior a um ano; tendo em vista o lazer, os negócios ou outros motivos não especificados como exercício de uma atividade remunerada no lugar visitado (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS; ORGANIZAÇÃO MUNDIAL PARA O TURISMO, 1999). Essa definição marcou uma jornada em busca da apreensão da atividade e de uma demarcação oficial e global. A trajetória da demarcação da atividade pela OMT, juntamente com outras instituições internacionais, vai ao encontro de alguns conjuntos de recomendações para as viabilizações das estatísticas que envolvem o turismo, correspondendo à proposta de avançar em sua promoção e comparação de índices internacional. O que é bastante óbvio, se levar em conta o objetivo 170 central da organização mundial, uma vez que as definições que tangem as instituições estão direcionadas aos seus respectivos públicos. Nesse caso, outras instituições que lidam de modo pontual e operacional com a implementação da atividade, baseando-se em levantamentos estatísticos para a obtenção de dados que destaquem a incidência da atividade em diversos países. Essa instituição assume um papel representativo em tentar definir o fenômeno de acordo com as demandas mais significativas impostas em torno da atividade, mesmo em âmbito acadêmico, uma vez que sua definição encabeça uma centena de artigos científicos no campo do turismo. A definição mais recente das Nações Unidas juntamente com a Organização Mundial do Turismo, elaborada em 2008, apresenta o turismo com um enfoque diferente e nada tradicional, marcando uma nova fase na concepção da atividade, uma vez que assume que: O turismo é um fenômeno social, cultural e econômico que envolve o movimento de pessoas para lugares fora do seu local de residência habitual, geralmente por prazer (NACIONES UNIDAS; UNWTO, [200-?]). Sendo assim, essa definição não apenas aponta para a essência do fenômeno do turismo (estabelecendo suas dimensões social, cultural e econômica), mas indica como fato essencial o que acontece em decorrência da saída de pessoas do entorno habitual e, finalmente, assinala o prazer (lazer) como principal motivação (PAKMAN, 2014). Essa é uma síntese do trajeto conceitual do turismo que recebe muitas críticas de acadêmicos, entretanto continua sendo balizada e reproduzida teoricamente nesse campo do conhecimento. A posição da OMT é pragmática, está distante das concepções em que sociólogos ou outros cientistas sociais deveriam se debruçar, contudo, não há de fato uma definição específica entre os estudiosos do fenômeno, sendo essa elaborada, frequentemente, quando se tem o fenômeno como objeto no interior de cada disciplina. O caminho da construção do pensamento crítico em turismo que permite pensar o seu papel no desvendamento do mundo moderno é relativamente novo como objeto de reflexão teórica e científica. Um corpo significativo de estudiosos dedicados à pesquisa da problemática ainda apontam as dificuldades desse domínio e marcam a necessidade de um mergulho à dimensão histórica, social e cultural para maior entendimento do fenômeno e da sua importância na estrutura sociocultural do ocidente.137 137 Embora o fomento da investigação no turismo no âmbito social, ainda esteja longe de corresponder à relevância do seu contributo para a sociedade brasileira, como nos lembra Panosso Neto (2005, p.19), onde “em inúmeros textos, os benefícios sociais do turismo são esquecidos, originando assim uma visão fragmentada e superficial desse fenômeno que necessita de uma interpretação minuciosa, fugindo de textos acadêmicos reducionistas que simplesmente abordam uma ou duas de suas facetas.” Ver: PANOSSO NETTO, Alexandre. Filosofia do turismo. Teoria e epistemologia. São Paulo: ALEPH, 2005. Esse autor abre um campo para um investimento na linha de investigação filosófica e histórico-social. Lançando um novo olhar a esses estudos. 171 4.4 SOCIOLOGIA E TURISMO: TEORIA CLÁSSICA SOCIOLÓGICA NO TURISMO CONTEMPORÂNEO A sociologia permite a interpretação da realidade que vivemos. No turismo ela nos auxilia a fazer a ponte com as matrizes sociológicas expressas por diferentes formas teórico- filosóficas de interpretar o objeto pesquisado, apontando que a sua importância extrapola os circuitos econômico-financeiros, sendo o seu significado bem mais amplo em termos socioculturais. Essa disciplina nos ensina a pensar a atividade em sua prática, relações e consequências, como parte da engenhosidade humana e interpretação da vida social. Nesse campo pouca atenção foi dada a atividade, mesmo sendo uma prática cultural que faz parte da experiência moderna o turismo aparecia como periférico, isso porque as linhas teóricas críticas fundadas nos clássicos: Durkheim, Weber e Marx estavam mais envolvidas nos estudos que sustentavam o trabalho como fundador da sociabilidade. O arcabouço teórico existente no interior da sociologia auxilia na análise das relações que se produzem em sociedade constituindo-se em um instrumental desafiador para o entendimento do turismo. Vejamos, para Durkheim, a sociologia é uma ciência que se preocupa com as possibilidades das coações sociais sobre o sujeito, através das instituições sociais, cujo próprio método do autor é a análise do funcionamento dessas instituições. Sejam essas instituições informais como a família, formais (como a escola, a política e o trabalho) ou mesmo dogmáticas (como a religião). O fenômeno social constitui-se para esse autor como um fato social e esse é interpretado como o objeto da sociologia, sendo analisado a partir de três características: exterioridade, generalidade e coercitividade. O primeiro é externo ao indivíduo, ou seja, independe de sua vontade; o segundo tem grau de generalidade, quer dizer, passível de pertencimento a todas as pessoas de uma mesma sociedade e por fim, o último, que significa o que vem de cima como algum tipo de coerção, obrigação ou imposição. O turismo poderia ser inserido na perspectiva de Durkheim visto que o indivíduo enquanto turista assume os comportamentos propostos pelo fato social, se comportando de forma diferente do seu habitual, extravasando suas emoções, comedidas pelo seu ambiente comum. O fato social turístico se apresentaria como maneiras de agir, pensar e sentir que são exteriores ao indivíduo e que se lhe impõem, pois são dotadas de um poder coercitivo. Melhor dizendo, a comunidade de uma região turística, os hoteleiros, os turistas assumem um comportamento que lhes é dado pelo poder coercitivo que o turismo pode exercer como fato social, atitudes estas que são diferentes das assumidas quando integram outros tipos de fenômenos sociais; tais como a religião, a política, a escola ou o trabalho onde assumem 172 posturas específicas. Enquanto Durkheim prioriza a sociedade na análise dos fenômenos sociais, Max Weber enfatiza o papel dos atores e as suas ações individuais. A sociologia para Weber pretende compreender interpretativamente a ação social e assim explicá-la em termos causal em seu curso e efeito. A ação social conquista o significado de uma ação que aparece em relação ao sentido visado pelo indivíduo e não pela sociedade como em Durkheim, a sua referência está no comportamento dos outros, orientando-se por estes em seu curso. Exemplificando: a ação de viajar para um específico lugar é realizada a partir de um conjunto de opiniões de outras pessoas, entre as quais a mãe, o namorado, os amigos, colegas, estranhos, os meios de comunicação, entre outros. Nesse aspecto a relação do turista com a comunidade na qual interage constituiria-se em um fenômeno social, pois seus agentes têm um ao outro como referência para seus atos, isso é o que Weber chamaria de ação social. A ação social pode ser assim classificada com quatro possibilidades, a racional, referente a fins; racional, referente a valores; afetivo; e, tradicional. Detalhadamente, a ação social racional referente aos fins se realiza pela capacidade de racionalização do indivíduo com intuito de atingir um objetivo determinado. Por exemplo: um turista que faz uma viagem analisando o destino pelo preço e benefício, ou seja, custo baixo, acomodações boas e um local que lhe desperte maior interesse. Já a ação social referente aos valores é determinada pela concepção geral do grupo social ou sociedade ao qual pertence o indivíduo, ou seja, a ação do sujeito vai se realizar de acordo com aquilo que seu meio valorizar, independentemente de sua capacidade efetiva. O turista escolhe o destino muito mais pelo status, pela indicação do seu grupo, do que pela sua própria condição financeira ou gosto individual. A ação social de modo afetivo é determinada por afeto e estado emocional visto que a relação entre os indivíduos se expressa em termos de amizade, confiança e credibilidade. O turista escolhe a sua opção baseando-se em laços afetivos, como escolha do cônjuge, do amigo, das lembranças da infância, etc. A ação social tradicional é determinada pelas tradições, pelos costumes. Nesse sentido, o destino turístico será escolhido em função dos costumes e das tradições adquiridas. As férias, o fim de semana, recorrem à rotina e, normatividades onde há a certeza e a imprevisibilidade são consideradas nulas. Fica explícito que as ações sociais não são determinadas por um único tipo de ação, mas se concretizam enquanto um componente universal e específico na vida social e fundamental para a organização da sociedade humana. Segundo Karl Marx, um dos mais conhecidos críticos do capitalismo, a mercadoria se configura como o elemento primordial da sua análise, ela está no topo dos requisitos e da satisfação da necessidade humana, sendo apreendida como meio de subsistência, um objeto de 173 consumo, ou mais, como um meio de produção. Todo o desenvolvimento teórico de Karl Marx está focado no capitalismo, sistema de produção vigente em que a luta de classes e as consequências dessa luta o traduziria. Em uma análise do turismo realizada por esse teórico a luta de classes ganharia privilégio, uma vez que aparece como um fenômeno de servidão de algumas pessoas, ou seja, em prol de alguns indivíduos usufruírem o local. Muitos têm que trabalhar em sistemas terceirizados, em horários amplos, muitas vezes não participando de modo efetivo do ambiente em que se trabalha em nenhum momento da vida. Destacaria ainda que a hora elevada desse sistema de servidão acaba causando a alienação humana. Esse teórico apontaria para a promoção da desigualdade social favorecendo uma elite burguesa em detrimento de um proletariado trabalhador alienado dependente e usurpado pela burguesia na racionalização e transformação das suas horas livres em lazer-mercadoria. No atual sistema, o consumo é a palavra-chave, ou seja, é o que o diferencia (de modo mais contundente). O consumo se revestiria em “status” para os indivíduos, nessa perspectiva, o turismo e o lazer também fazem parte desse status social, desde onde se viaja, o que se come nesse trajeto, até aonde se hospeda, tudo o que se consome. O turismo pode ser motivado através da construção do desejo organizado. Isso se dá desde a sua organização para a visita de um ambiente público, como uma praia, durando um período curto, o que aparece como excursão; até uma viagem internacional de meses, reafirmando assim a sociedade de classes e os possíveis graus de status que o turismo enquanto fenômeno social, também, reafirma. O capital consegue, por este mecanismo, que o dinheiro, da força do trabalhador, poupado, circule no processo de consumo da nova mercadoria: “lazer”. Trata-se de um paradoxo, uma vez que a mais valia, por um lado, exige a redução de salários para aumentar a acumulação e, por outro necessita da poupança dos trabalhadores (poupança interna), necessária à sociedade de consumo, sem a qual não haveria circulação de mercadorias. O cidadão na sociedade de classes será cada vez mais inserido socialmente quanto mais ele consumir. Nessa concepção, o turismo é nitidamente um modo de consumo, inclusive, do consumo dos espaços e dos indivíduos. Como um fenômeno social parte do processo ideológico de transformação das paisagens em ambiente de consumo, coisificando-as por meio do fetiche. Assim sendo, a ideologia passa pelas veias do turismo e inculca na mente dos indivíduos as ilusões que constroem o recorte espacial, como se esse fosse capaz de oferecer o reino da felicidade. No capitalismo a intenção é transformar a atividade turística no encantamento para as fantasmagorias do capital. A esse respeito sobressai na atividade turística a sua capacidade de utilizar do fetiche para fazer circular as mercadorias; processo que se inicia no valor de uso pleno dos espaços, 174 onde os seus valores simbólicos reúnem diversos fatores para a sedução. Com foco nas paisagens culturais direcionadas ao turismo, em um exame crítico, o autor Santos (2002, p. 13) analisa o turismo como uma prática intercultural, assumindo as suas intensas metamorfoses nas quais novas e distintas subjetividades são produzidas para os específicos consumos, juntamente com os seus sentidos, símbolos, imagens, imaginários na construção de paisagens. Portanto, o fetiche é abarcado como elemento essencial de manipulação por parte dos sujeitos e das relações conexas para a produção de mercadoria. Com efeito, se de um lado o simbólico atua na construção da atividade, na formação do valor do espaço, na estética que determina as paisagens direcionadas para o turismo, por outro, trata das formas em seu processo de objetivação e mercantilização. Mesmo que as paisagens apareçam como um conjunto específico de qualidades ou um dom da natureza cumprem o plano de fundo de formas e funções inseparáveis da emergência de produtores interessado na elevação de determinados objetos que as instituem enquanto turística. Os processos relacionados a essa objetivação operam construções com base na seletividade de imagens e conceitos que, combinados e reproduzidos, emergem iconograficamente, dando novas visualidades ao já visto, assim os recortes paisagísticos tendem a ser considerados realidades em si próprias, fetichizadas. De acordo com Foucault (1998) os discursos uma vez cristalizados implicam em controle, formação de convenções e na canalização da conduta dos indivíduos em detrimento de outras possíveis direções. O resultado é que os discursos direcionados a organização do turismo produzem enquadramentos paisagísticos que destacam espaços com características pré- escolhidas para representar um lugar, como ocorre com os recortes definidores da região Nordeste, na mesma lógica segue o espaço nordestino-potiguar. Essas escolhas em âmbito nacional são marcadas, entre outras ações, por políticas públicas com vistas ao desenvolvimento socioeconômico. Como afirma Krippendorf (1989) o objeto turístico conforma-se em uma simbiose em que confluem discursos condensados em uma série de objetos direcionados ao consumo. Quer dizer que o turismo enquanto uma atividade, seja ele em sua vertente de patrimônio cultural ou natural, é constituída por um conjunto de convenções reguladas por instituições. As instituições efetuam as classificações por nós [...], orientam de maneira sistemática a memória dos indivíduos e canalizam as nossas percepções dentro das formas compatíveis com as relações por elas mesmas autorizadas. Elas fixam processos que são essencialmente dinâmicos, ocultam a sua influência e suscitam as nossas emoções a um nível fixado em temas estabelecidos (DOUGLAS, 1990, p. 141-142). 175 O turismo aparece sendo formatado por complexas transformações sociais que acentuaram o fenômeno, juntamente com as práticas e discursos que colocaram o descanso e o lazer como direito de todos. Logo, passou a ser difundido também entre a pequena burguesia e seguido por uma parcela do operariado (BOYER, 2003). Porém, embora a burguesia empreendesse viagens e suas bénéfices fossem alardeadas pelos vários meios que circulam com a comunicação essa só foi percebida de maneira mais abrangente enquanto atividade econômica após a Segunda Guerra Mundial. Em sua dinâmica processual o turismo antes de se tornar uma atividade substancial e convencionalizada foi moldado por mecanismos formais, sociais e econômicos. Ganhou centralidade nos discursos estatais que o definem, em aspectos mais amplos, como uma atividade passível de influenciar na redução da pobreza, do desemprego e do déficit econômico (BRASIL, 2004). Os princípios desses discursos atrelam-se a lógica do capital e ao privilégio da atividade em seus aspectos econômicos, isso diante das múltiplas dimensões que fazem parte de uma série de discursos, instituições, organizações administrativas, decisões regulamentares que iniciaram o incentivo das férias e do lazer; fato que pode ser identificado no próprio percurso de tentativa de definição da atividade e do direcionamento dado ao turismo em relação às instituições internacionais como a OMT/ONU. O alardeamento do turismo enquanto uma atividade que possibilita a captação de somas financeiras suntuosas, até o final do século XX, já tinha colocado para trás a indústria bélica e se equiparava aos benefícios lucrativos da indústria petrolífera, primeira no ranking mundial. As estatísticas internacionais destacavam o turismo incluindo sua capacidade de deslocamentos de fluxos na mão de obra empregada e na geração de renda local. Todavia, o deslumbramento em torno das expectativas numéricas oferecida pelos órgãos internacionais de turismo, mais limita, do que amplia o entendimento da atividade. Muitas vezes empobrece as análises que existem. No Brasil o discurso que associa o turismo ao crescimento econômico está atrelado a vários fatores. O mais óbvio é o da própria concepção global da atividade que se inscreve sobre as motivações da política e da economia nacional em correlação com as instituições organizadoras da atividade. Essas fundam o turismo no conjunto de suas experiências rumo às paisagens naturais, em contraponto, a paisagem urbana mais ligada ao cotidiano do trabalho. É o início da tendência paisagística determinada por interesses comerciais, pelo gozo das paisagens exóticas e pitorescas brasileira. Importante colocar que entre meados do século XIX e início do século XX o uso dessas paisagens pelo turismo era integralmente feito a partir de infraestruturas criadas com outros objetivos que não o lazer. 176 No decorrer desse processo as paisagens naturais permeadas por um sistema de valores e classificação são demarcadas com intervenções físicas e simbólicas para a instrumentalização do imaginário convertido em mercado. Constituído a partir de significados inaugurados pelo Estado, entre outras organizações que pouco a pouco vão sendo elaboradas em torno da atividade, tais como: rede hoteleira, operadores de turismo, agências de viagens, transportadoras, organizações nacionais e internacionais de turismo. Essas fazem parte de toda uma rede de instituições que constroem e mediam a atividade. Que nos dias atuais já goza de uma incontestável capacidade de organizar localidades inteiras de elaborar em torno do seu discurso variadas paisagens (re)ordenando-as para a sua realização. Ademais, é nessa característica que reside a sua maior especificidade: o atrativo turístico (URRY, 1999; CRUZ, 2002). No cenário internacional os movimentos iniciais em prol da mercantilização das paisagens se dão na França e na Espanha, esses países desenvolveram as primeiras políticas com objetivo de fomentar a atividade (ACERENZA, 2003). Conforme o turismo vai se ampliando, concomitante, há a circulação de informações estatísticas que se avolumam em torno do enaltecimento das suas divisas financeiras; mais as intervenções estatais aparecem e vão se tornando pontuais. Os deslocamentos da atividade turística desde a sua organização têm sido influenciados pelo Estado, em alguns casos, de modo mais reduzido, aonde a atuação se dá somente na regulação da atividade em torno dos espaços. Numa figuração mais ampla, o Estado atua no incentivo, na fomentação, na promoção e na divulgação. Criam-se uma série de políticas públicas que dão forma e conteúdo ao tipo de turismo que se quer estabelecer; influenciando, imensamente, as possibilidades, as práticas e as representações da paisagem. O estímulo a partir do Estado, como já colocado, além de ser justificado pela atividade captar grandes somas financeiras, atrela-se aos objetivos que correspondem à ideia de desenvolvimento econômico em suas elaborações históricas138, por gerar renda, ampliar o roll de empregos e dinamizar as economias locais. Esse cenário impulsionou a criação de políticas públicas de turismo internacionalmente e no Brasil. Embora em contextos diferenciados. 138 A noção de desenvolvimento ganha vários desdobramentos na história da modernidade, primeiro, a tradicional incutida na ideia de progresso e amarrada aos aspectos econômicos, o que aparece como um avatar do progresso iluminista. Ver em: Furtado (1989); Heidemann (2010). Após passa a assumir formas mais complexas, não sendo mais considerado nessa perspectiva tradicional, atingindo campos mais amplos que envolvem o bem-estar da sociedade e do indivíduo, inclusive em sua capacidade de expansão de possibilidades para o acesso, a atuação e a participação nas esferas sociais, como é a proposta sugerida por Amartya Kumar Sen, indiano, ganhador do Prêmio Nobel de economia no ano de 1998. Ver em: Sem (2000). 177 Os países que apresentam hegemonia econômica e cultural, melhores distribuições de renda, participação de seus cidadãos, infraestrutura mais sofisticada em suas zonas urbanas e rurais e; evidentemente, estão em relação de privilégio por fazerem parte da construção inicial dos contornos que cingem a atual lógica ocidental, logram as maiores cifras do turismo. Isso não ocorre pelo turismo se constituir em um salvador da pátria, mas sim, pelas questões citadas que dão o cenário propício para um fluxo de circulação de pessoas, o que favorece o turismo. A própria posição desses países no processo global os coloca como culturalmente e economicamente centrais o que já favorece o movimento turístico, não de modo natural, mas sim como consequência e reflexo de relações mais complexas. Já no início do século XX, os governos europeus mantêm as estatísticas sobre o potencial lucrativo do fluxo de viajantes desejosos por conhecer os seus atrativos139. A valorização da natureza deu destaque acentuado ao paisagismo, montanhismo, alpinismo e a busca medicinal e prazerosa das águas termais, o que acentuou a entrada de divisas nos países detentores dessas paisagens acrescidas de infraestrutura. As leis que beneficiaram uma classe de trabalhadores com a redução da jornada de trabalho, com os descansos dominicais e a instituição das férias remuneradas (1936) juntamente com a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) ampliaram a circulação dos viajantes. Contudo, a crise que aconteceu no Ocidente na década dos 1930 corroborou para que as análises em relação ao lazer continuassem restritas aos seus aspectos econômicos. A sociologia, por exemplo, seguia o foco no trabalho operário. No ano de 1942, em um estudo sobre a difusão do turismo Hunziker e Krapf (apud PASSO NETTO, 2010, p.40) fazem uma constatação: Assim, sozinha, a orientação para a paisagem tem criado o turismo moderno. Sua característica é o turismo de massas. A viagem se converte de um privilégio da personalidade, como era antes, em um assunto da coletividade. O turismo perde cada vez mais, em seu valor, o conteúdo subjetivo de vivências; começa a ser medido com escalas objetivas: em cifras de frequência e segundo seus rendimentos econômicos [...] A serena contemplação dá lugar a um vai e vem sem pausa, o respeito frente ao pequeno cede vez ao culto do colosal, a vivência espiritual à atividade externa. (Grundriss der allgemeinen fremdenverkehrslehre, 1942, p. 195. 139 Ver: Castillo Nechar; Panosso Netto (2010, p.43), o autor expõe tabela com dados estatísticos de entrada de turistas estrangeiros na Suíça, esses dados foram computados pela primeira vez em 1848 e seguem-se com pequenos intervalos até 1940. Apenas a título de comparação, no início do século XX, ano de 1929, a Suíça apresentou uma entrada de 4.230.000 de turistas; o Brasil em início do século XXI, ano de 2009, recebeu por volta de 4.800.000. 178 Sob a Égide do descanso e lazer, o turismo enquanto atividade econômica nasceu com a indústria e com o emprego que foi modelando o tempo livre, preenchendo-o, formulando-o. No fim, chega a ser divulgado como um direito universal. Nas regiões consideradas periféricas a essa ordem, como a América latina, a África e, de modo particular, a África Austral, não houve esse conjunto complexo de motivações que reverberassem em uma dinâmica turística de peso. Não havia nada que favorecesse esse surgimento “quase autônomo” de somas esplendorosas uma vez que muitos países dessas áreas, por questões conjunturais e estruturais, vivem a “mercê” das ações políticas de desenvolvimento emanadas pelos órgãos e pelas corporações das regiões hegemônicas. É o caso do Brasil. A variedade geográfica brasileira e o que se entende por cultura diversificada, desde o primeiro quartel do século passado, vêm motivando os governos a encontrarem modos para desenhar e direcionar a atividade turística como elemento propício ao desenvolvimento econômico. É uma apreciação da atividade que favorece muitos países, admitirem o turismo como uma base sólida para a promoção do desenvolvimento social e do crescimento econômico (ANSARAH, 2000). Nesses países a panaceia que envolve a atividade turística parte da ideia reforçada da redução da pobreza e coloca a atividade em foros privilegiado quando o assunto é desenvolvimento. As organizações mundiais como a Organização Mundial do Turismo (OMT) e a World Travel and Tourism Council (WTTC) referenciam esses discursos; os governos nacionais e locais; os meios de comunicação e; as pesquisas acadêmicas o propagam. São muitos estudos nessa linha de pensamento como, por exemplo, o de Buarque (2005) que corrobora com a ideia vigente, ao afirmar o turismo enquanto um dos poucos setores mundiais que para crescer precisa incluir os excluídos socialmente. Para o autor essa característica o diferencia da indústria comum que para expandir os lucros pode simplesmente aumentar o consumo dentro de determinado grupo, sem precisar ampliar-se para outros, além do mais, consegue aumentar a produção investindo em máquinas e não em humanos. O turismo, mesmo sendo uma atividade sazonal, diferencia-se do exemplo anterior porque para crescer precisa abarcar cada vez mais pessoas em diferentes níveis de campo e especialização, vai do mensageiro ao administrador hoteleiro. Rua (2005) também conclui que o turismo pode contribuir para a inclusão social por facilitar o intercâmbio entre as diferentes culturas, estimulando o respeito e a manutenção de diversas comunidades. Em segundo lugar agrega pelas relações prazerosas que favorece o estabelecimento de empatia entre os diferentes 179 atores. Terceiro, propicia oportunidades de geração de trabalhos e renda. Essas são algumas panorâmicas acadêmicas em torno do turismo. É por meio dessas concepções que a atividade emerge como um marco do desenvolvimento, sendo abarcada por planos e ações comandados pelos órgãos do Estado e mediadas pelas políticas públicas elaboradas a partir da prática da canalização de interesses, em que por meio delas se governa e se ordena a vida em coletividade, uma vez que a estrutura social se sustenta a partir desses arranjos em forma de processo político. Sobre a concepção da política pública é interessante pontuar que se referem às relações de poder produtoras de procedimentos formais e informais no campo da administração. O conceito aparece relacionado ao desenvolvimento do Estado capitalista a fim de determinar as diretrizes prioritárias dos diversos setores econômicos, sociais, políticos e ambientais, direcionando a utilização dos recursos públicos em benefício dos cidadãos (MEKSENAS, 2002). São caracterizadas por duas dimensões que se complementam: a técnica-administrativa e a política (FERNANDES, 2007). A geógrafa Rita Cruz enfatiza a política pública como um dos instrumentos norteadores do processo de planejamento, apontando para três formas de intervenção do Estado: a participação; a indução e o controle (CRUZ, 2002). A participação ocorre quando o Estado exerce alguma atividade econômica no setor, como a administração de um meio de hospedagem. A indução, quando o Estado orienta o comportamento dos agentes de mercado, por meio de incentivos financeiros e fiscais. Já o controle, relaciona-se a regulação dada pelo poder público, determinando formas pela qual a iniciativa privada poderá explorar determinada atividade econômica. Alguns conceitos de política pública se aproximam, Lynn (1980) discute as políticas como parte de um conjunto de ações do governo produtoras de efeitos específicos por intermédio de programas ou leis implementadas pela administração pública. Meny e Thoening (1992) destacam que são programas de ação governamental em um setor da sociedade. Laswell (1936), por sua vez, ressalta que entender as políticas públicas significa compreender “who gets what, when, how”, título do seu livro clássico. Dye (2008) define como tudo aquilo que o governo escolhe ou não fazer. Em suma, são ações baseadas em leis constitucionais legitimadas pelas instituições estatais e que depois de definidas em ação atuam coercitivamente sobre os indivíduos; entretanto, não há como negar a influência dos diversos fatores externos. A legitimação se dá pela combinação de elementos discursivos que partem dos atores sociais, das instituições, dos 180 grupos sociais, das questões econômicas e entre outras, em busca de alcançarem determinados resultados que dependerá das relações causais dos envolvidos (SILVEIRA, et.al., 2014). Sobre as políticas públicas de turismo podemos compreendê-las como uma articulação de intenções, diretrizes, estratégias e ações deliberadas realizadas pela gestão pública com a intenção de impulsionar e/ou dar continuidade ao desenvolvimento do turismo num certo ambiente (CRUZ, 2002). A política pública do turismo é uma das áreas da política responsável por desenvolver diretrizes, planejamento, promoção e controle da atividade turística de um país, Estado, região ou município. Na maioria das vezes, essas políticas são criadas pelos órgãos administrativos ligados ao setor de turismo, que são os Ministérios e Secretarias Estaduais e Municipais de Turismo. Nessa esfera demonstra como os indivíduos que estão agindo no poder público veem, pensam e se posicionam (HALL, 2001). No ponto de vista desse autor: As políticas públicas de turismo são de extrema importância como instrumento norteador do processo de planejamento, pois há uma intrínseca relação entre o planejamento governamental e a política pública. O planejamento público do turismo é, por sua vez, uma espécie de resposta do poder público aos efeitos indesejados do desenvolvimento do setor (HALL, 2001, p.25). Internacionalmente as políticas de turismo, enquanto idealizações do Estado, só começam a ocorrer efetivamente na década de 1990. Sendo a França um dos países pioneiros na instauração da primeira lei orgânica para a atividade no ano de 1910. No ano de 1940, o país deu destaque ao movimento turístico enquanto segmento econômico, chamando a atenção do público alvo para a identidade do país em termos culturais, ainda, correlacionando o turismo a outras atividades (BADARÓ, 2006). Ao longo dos anos as transformações que ocorreram no planejamento turístico e a própria facilidade dos deslocamentos reduziram os investimentos públicos. Essas foram se localizando apenas nos aspectos mais básicos, como a composição da infraestrutura de suporte a atividade, até a fase em que se atrelam às formações de parcerias público-privadas, regulamentação ambiental e marketing turístico. No quadro a seguir é apresentada uma síntese das principais fases das políticas de turismo no cenário internacional (HALL, 2001). 181 Quadro 1- Políticas Internacionais de Turismo de 1945 até o fim do século XX. Fase Características 1945-1970 Desagregação e racionalização da política, da alfândega, da moeda e de regulamentações referentes à saúde que haviam sido adotados após a Segunda Guerra Mundial. 1955-1970 Maior envolvimento do governo no marketing turístico a fim de aumentar o potencial de ganhos do setor. 1970-1985 Envolvimento do governo no fornecimento de infraestrutura turística e no uso do turismo como instrumento de desenvolvimento regional. A partir de 1985 O uso continuado do turismo como instrumento de desenvolvimento regional, maior foco em questões ambientais, menor envolvimento do governo no fornecimento de infraestrutura turística, maior ênfase no desenvolvimento de parcerias públicas e autorregulamentação do setor. Fonte: Elaborado com base nas informações apresentadas em OCDE (1974); Hall (1994, 2001); Hall e Jenkins (1995). As etapas citadas acima abordam as características de cada estágio de incentivo estatal no processo de expansão da atividade turística nos países desenvolvidos. Como exposto anteriormente, presencia-se em início uma maior atenção à dotação da infraestrutura para a recepção do turismo. Logo, com a influência do neoliberalismo o foco da gestão vai para a busca de parcerias público-privadas, com cerne na autorregulamentação da atividade no mercado global. Nos países ditos subdesenvolvidos ou em desenvolvimento, caso do Brasil, o desenho é outro e se prolonga aos dias atuais; vive-se um processo que se assemelha ao da terceira fase, tendo em vista que o investimento em infraestrutura e demais aspectos de suporte basilares ao turismo ainda é de responsabilidade, quase exclusiva, do Estado. As diversas alternativas cujo turismo oferece parte de um planejamento e de atribuições estatais. Mesmo com todo o interesse que se desenvolve no turismo em um plano global no decorrer do século passado, somente no século XXI, são movimentadas as políticas, os planos e as ações voltadas a sua organização e fortalecimento no Brasil. 4.4.1 Desenvolvimento: o discurso inicial O turismo não existe como atividade econômica por si só, uma vez que ele toma corpo como um elemento proveniente das distintas interações e transformações socioeconômicas ocorridas no ocidente pela expansão industrial e pela emergência das novas tecnologias. São os meios de transportes mais rápidos e com capacidade para o deslocamento de um número maior de pessoas; o fortalecimento das experiências urbanas; as conquistas trabalhistas que dão direito a períodos de descanso e férias; a própria disseminação das imagens fotográficas espalhando imagens de diferentes locais e a influência direta dos meios de comunicação de apelo em massa. 182 Todos esses fatores contribuem para a ampliação das visualidades e da curiosidade em relação aos lugares do mundo; agrega-se a isso, a ampliação e organização de serviços de hospedarias e alimentação. O Estado só concebe políticas públicas para uma atividade econômica a partir da significância da representação do setor. Ou seja, dos mediadores, da posição de poder que exerce em âmbito social, da sua importância na divisão social do trabalho, bem como da sua função social; entre outros elementos que atendem a uma hierarquia nas relações de poder. E as políticas de turismo no Brasil demandam a organização do próprio setor, na maioria das vezes traduzidas na visão de poucos (BENI, 2006). É pertinente, ainda, apontar que as políticas públicas de turismo nesse país, em grande parte do seu processo histórico, não foram claramente explicitadas mantendo-se desconectadas de outras políticas e fragmentadas em aspectos específicos da atividade (CRUZ, 2002). Para um entendimento das motivações iniciais do turismo no Brasil vale destacar alguns aspectos que moldaram a sua base. Primeiro: das representações e práticas sociais em relação aos espaços e seu entorno, que recortados constituem-se em paisagens, destaca-se a fruição dos espaços iniciada como consequência da ocidentalização e reprodução dos hábitos instaurados com a chegada da família real no país. O que consistiria na emergência de alguns elementos singulares entrecruzados com a posterior estruturação e organização da atividade turística em consonância com a Europa Ocidental e os germens das revoluções industriais e iluminismo (ASSUNÇÃO, 2012; CAMARGO, 2007). Nas práticas e representações sociais como as afirmadas por Corbin (1989), as quais desembocaram na transformação das relações das sensibilidades entre o homem e o mar, articuladas ao conceito de paisagem, aparecem às primeiras prescrições de viagens vinculadas à saúde: como os banhos terapêuticos em águas minerais e marítimas. Juntamente com outros atrativos naturais valorizados a paisagem litorânea foi afirmada como de vocação curativa, recreativa e após turística legitimando a atividade. Nessa lógica a cidade do Rio de Janeiro despontou com as paisagens da Boa Vista, do Jardim Botânico, da Floresta da Tijuca, das praias de Botafogo, Copacabana, Leme e Flamengo, unidos ao clima considerado ameno e a representação social e econômica da cidade no território brasileiro. Logo, as visitas a esses ambientes estimularam a implantação de hotéis, como o existente “na descida para o rio da Cachoeira, depois de passar a Boa Vista” que tinha como foco a recepção dos veranistas (CAMARGO, 2007, p. 270). Os meios de transporte eram regulares para atrair e conduzir os hóspedes aos locais em que foram implantados os hotéis. Não se pode ainda falar de atividade turística, essa não fazia parte dos guias de viagem do final 183 dos oitocentos, não havia referência ao termo turista ou turismo, dando a entender que não havia uma prática estruturada do turismo140. Já informações sobre o turismo aparecem nos periódicos e guias de viagem relatando as saídas dos brasileiros até a Europa e suas descrições sobre os locais visitados. “Com a elite fazendeira fluminense e do oeste paulista, no fim dos oitocentos temos a definição mais clara de viagens realizadas por brasileiros à Europa” (MARCELO, 2011, p. 18). Nas últimas décadas do século XIX, os guias de viagem já incluíam informações sobre como empreender uma viagem pelo Rio de Janeiro ou para conhecer algumas partes do interior do país. Esse material informava sobre serviços existentes, tais como: a hospedagem, os transportes, os restaurantes e seus horários acompanhando sempre a narração detalhada do exótico e do pitoresco da geografia brasileira, com destaque especial, para o Rio de Janeiro. Em princípio, não se pode pensar em lazer como o desfrute do tempo livre assim, também, não se pode falar propriamente em turismo, visto que só foi possível pensar em lazer, diante do gozo do tempo, em contraposição a organização das horas de trabalho, orientado pelo sistema econômico de produção capitalista. Todavia, as narrativas dos viajantes no quartel final do século XIX, deixa clara a existência de uma demanda, ainda que incipiente, que encontrava hotéis em condições precárias, muitas vezes não passavam de simples restaurantes. As condições higiênicas dos hotéis não atendiam padrões de qualidade já exigidos, muitos viajantes apontavam, como fez William Hadfield, no ano de 1870, a necessidade de “um hotel realmente bom, algo semelhante àqueles dos Estados Unidos [...] existem muitos hotéis espalhados pela cidade, alguns mais ou menos pretensiosos, mas nenhum apresenta grau de conforto tão essencial para uma grande cidade como o Rio de Janeiro” (BELCHYOR; POYARES, 1987, p. 57-59). Além das questões especificadas os espaços eram organizados e equipados para atender as necessidades mais básicas das altas camadas da sociedade. Esse pequeno e privilegiado grupo, quando não satisfeito com os equipamentos locais, seguiam empreendendo viagens, incutindo modas, lugares, regras, formas de deslocamentos e apropriações. Isso foi gerando gradativamente uma infraestrutura capaz de atender os usos e práticas voltadas a esse público. Mesmo diante desses elementos, afirmar o momento de concepção da atividade turística é tarefa ingrata, tanto pelas questões críticas que giram em torno dos marcos temporais, quanto pela bibliografia escassa. Os principais estudos que abordam essa temática são: Uma pré-história do 140 Ver: CUNHA, Antonio Geraldo. Os estrangeirismos da língua portuguesa: vocabulário histórico- etimológico. São Paulo: Humanitas, 2003, p.01. Nessa obra são mapeados os primeiros usos das terminologias turismo e turista no Brasil. 184 turismo no Brasil: recreações aristocráticas e lazeres burgueses (1808 – 1850), do pesquisador Haroldo Leitão Camargo; História do turismo no Brasil: entre os séculos XVI e XX, do doutor em história Paulo Assunção (2012); o livro Raízes do turismo no Brasil: hóspedes, hospedeiros e viajantes no século XIX, do Mário Jorge Pires (2001) e; o Guia histórico das viagens e do turismo no Brasil, do professor de Luiz Godoi Trigo (2000). Na virada para o século XX, o cenário nacional ainda era o de pensões e hospedarias, as questões voltadas para o turismo continuavam precárias. Os transportes, hotéis e pensões existentes atendiam a demanda influenciada pela abertura dos portos; os viajantes estudiosos/pesquisadores e; estrangeiros que vinham ao país em busca de negócios lucrativos. A infraestrutura que se construiu nos grandes centros econômicos do país, ao redor de paisagens privilegiadas, como as citadas no Rio de Janeiro, por motivos óbvios era a mais atrativa para os hóspedes. No início do século XX, no Rio de Janeiro começou-se a esboçar as primeiras intervenções como o incentivo à instalação de hotéis pelo governo. A ação partiu do Decreto nº 1160, de 23 de dezembro de 1907, que isentava por sete anos de todos os emolumentos e impostos municipais a empresa do ramo de hospedagem que se aventurasse no empreendimento. O decreto resultou na instalação dos cinco primeiros grandes hotéis do Rio de Janeiro. Entre eles estava o que foi considerado o maior do Brasil: Hotel Avenida, inaugurado em 1908. O Hotel Avenida com 220 quartos inicia, por assim dizer, a relação econômica com o turismo no país (CASTELLI, 2003). No Rio de Janeiro em 1923 foi inaugurado o marco da hotelaria no Brasil, o Copacabana Palace Hotel, empreendimento que movimentou o turismo e hospedou muitas personalidades internacionais (CASTELLI, 2002). As ações mais pontuais iniciaram-se somente com o incentivo do Estado na década de 1930 com os primeiros decretos legais que objetivaram organizar alguns aspectos da atividade turística (PIRES, 2001). É importante salientar que até esse período os investimentos dados ao turismo foram frutos de iniciativas isoladas. Já que não se pode considerar que existia de fato uma atividade turística nacional. Situação que só muda a partir da referida década, quando o poder público vislumbra a possibilidade de fomentar o setor enquanto atividade econômica. Trinta e um anos após o primeiro decreto de nº 1160, criou-se o decreto que dispõe sobre a normatização das vendas de passagens aéreas, marítimas e terrestres, no ano de 1938. Em agosto do mesmo ano um novo decreto dispôs sobre o funcionamento das agências que vendiam passagens e das agências de turismo. No ano seguinte, em 27 de dezembro de 1939 foi criado o primeiro organismo oficial de turismo da administração pública federal: A Divisão de 185 Turismo; colocado como instrumento privilegiado da Divisão de Imprensa e Propaganda (DIP) – instrumento de propaganda e de censura do período Estado Novo – responsável pela construção da imagem de Getúlio Vargas como presidente defensor da nação141. A partir daí foi publicada a primeira estatística sobre a visita dos turistas estrangeiros ao Brasil em 1942. A divisão do turismo foi pensada junto ao Serviço de Inquéritos Políticos e Sociais (SIPS), encarregado da coordenação de elementos informativos de interesse da polícia preventiva, atuava em prol das atividades de informação e segurança nacional. Constrói-se ainda o decreto- lei 1.915, que amplia o significado do que é o turismo para o Estado (SANTOS FILHO, 2008, p.108). A DIP nas suas divisões possuía setores de Divulgação, Cinema, Teatro, Radiodifusão, Turismo, Imprensa, Literatura Social e Política. Coordenava, bem como orientava e centralizava a propaganda interna e externa. Com censura ao teatro, cinema, funções esportivas e recreativas, organizava as exposições cívicas, patrióticas, exposições, concertos e estimulava a produção de filmes educativos e de projetos sobre a História do Brasil, ainda dirigia o programa de radiodifusão do governo. Faz parte de um contexto ideológico que foi além das raias do Estado Novo, abrangeu toda a direção nacionalista do governo de Getúlio Vargas. Essa foi a primeira vez como projeto político governamental a defesa do patrimônio histórico e cultural brasileiro arraigado à nova perspectiva de cultura brasileira delineada desde o movimento modernista. A divisão de turismo além de se debruçar pela questão da preservação do Patrimônio Histórico foi responsável pela criação de museus, bibliotecas e centro culturais, promoveu intercambio entre grupos musicais, folclóricos e tradicionais. Na década de 1940 foi lançado o Decreto-lei 2.440 de 23 de julho de 1940, primeiro decreto que versa exclusivamente sobre a atividade turística para tratar das agências de viagens. Nele foi destacado que as agências de viagens e turismo; as agências de turismo; as companhias e agências de navegação; e as de passagens marítimas, fluviais e aéreas poderiam organizar, por conta própria ou em conexão com empresas de transporte e de hospedagem, viagens coletivas de excursões, “quando autorizadas pelo Departamento de Imprensa e Propaganda, e na forma e condições que este determinar” (CRUZ, 2002, p. 45). Sob esse viés, o objetivo maior desse decreto era impulsionar o turismo com propensão e expressividade ideológicas nacional, por isso é dado no decreto às possibilidades de conexões entre as agências de viagens terrestres e as aéreas com as companhias de navegação e de passagens marítimas; uma interação entre as 141 Mais informações ver Decreto-Lei nº 1.915, de 27 de dezembro de 1939, livre para o acesso no site da Câmara dos Deputados. Disponível em: Acesso em 22 de jul. 2017. 186 empresas para facilitar deslocamentos internos. Com efeito, o decreto ainda ensejou a organização da iniciativa privada em relação à ampliação da atividade. Foram anos marcados por transformações sociais e econômicas profundas. Uma das principais foi a mudança da economia exportadora para a implementação das atividades industriais, a qual marcou a base de desenvolvimento do Brasil. Buscando atender a esses critérios o Brasil entra na Segunda Guerra Mundial ao lado dos aliados. Isso não quer dizer que se adotou uma política econômica claramente industrialista. Porque, se de um lado o governo investia na indústria, também se coadunava com as oligarquias agrárias tendo como prioridade a defesa do café, principal fonte de receitas do país. Já o movimento turístico com a guerra e a diminuição do tráfego marítimo ficou absolutamente reduzido. Mesmo assim foi publicada no ano de 1941 uma relação de turistas que estiveram no país: “o Brasil foi visitado por 1.793 turistas dos Estados Unidos, 1.008 argentinos, 285 uruguaios, 101 ingleses e um menor número procedente de nacionalidades diferentes” (CULTURA POLÍTICA, 1942, p. 185). Com a queda do Estado Novo, em 1946, foi extinta a Divisão de Turismo e os assuntos alusivos ao turismo passaram a de ser responsabilidade do Departamento Nacional de Imigração e Colonização do Ministério do Trabalho, da Indústria e do Comércio no período de 1946-1952. As discussões sobre o turismo ficaram escassas, o que ganhou maior atenção foi o Decreto-lei nº 9.215 que ao proibir os jogos de azar em território nacional afeta as cidades que tinham o turismo vinculado aos jogos. Outro organismo com porte nacional só aparece doze anos depois. O percurso da intervenção Estatal brasileira no turismo tem um caminho assimétrico com entradas, mas não de estabelecimento efetivo das políticas públicas do setor, além disso, as políticas que envolviam o turismo não eram precisas (CRUZ, 2002). Sobre esse momento pesquisas como as de Santos Filho (2008) e Paschoal (2010) afirmam o uso do turismo como um instrumento estratégico do Estado para dar suporte ao controle social da sociedade civil e para impor a lógica do Estado Novo que utiliza o poder e a repressão para governar. Por outro lado há os que consideram que a divisão do turismo além do populismo, do nacionalismo e do autoritarismo teve um papel primordial por servir como espaço de interlocução favorecendo transformações significativas e positivas em âmbito artístico e cultural, como na pesquisa de Anjos (2009). Outrossim, autores como Badaró (2006); Beni (2006); Dias (2003a, 2003b) e; Rejowski (2002) acreditam que o Estado, ao perceber a importância econômica da atividade, tenta (mesmo tropegamente) organizar o setor para fins econômicos. Conforme perceptível, esse início da legislação turística no Brasil foi marcado por normas eventuais e transitórias que não regulamentavam a atividade em sua totalidade, sendo essa interpretada pelo Estado de forma sucinta; apenas como um setor referente à venda de 187 passagens ou sobre o funcionamento das agências de viagens e turismo, ou em alguns casos como suporte da organização e manutenção de objetivos do Estado. Em 1958 foi formulada através do Decreto-lei nº 44.863, de 21 de novembro, a Comissão Brasileira de Turismo (Combratur); órgão nacional subordinado à Presidência da República, cuja funcionalidade se daria a partir da coordenação das atividades destinadas ao desenvolvimento do turismo com vias a simplificar as exigências de entradas e saídas de visitantes, estudar a movimentação dos fluxos de turistas, entre outros objetivos. Através da lei nº 4.048 de 29 de dezembro de 1961, como apoio a atuação da Combratur, foi originada a Divisão de Turismo e Certames, cuja responsabilidade seria executar as diretrizes da política nacional de turismo. Entretanto, em 1962 essa comissão foi extinta, o motivo alegado foi a dificuldade na gestão por questões financeiras. Sendo assim, não houve diretrizes a serem executadas nesse cenário (DIAS, 2003a; CRUZ, 2002). A existência da Combratur marcou um cenário de promoção e circulação das paisagens nacionais concatenadas a atividade turística de forma mais contundente, uma vez que se concentrou em divulgar essas paisagens em hotéis e outros ambientes relacionados ao turismo. Na oportunidade, deu início a um processo de cadastro e de fiscalização das agências de viagens, de realização de negociações com grupos hoteleiros internacionais, foi responsável pela organização de um cadastro nacional de exposição. Para Cruz (2002, p. 48), a concepção dessa comissão constituiu-se como um marco nas políticas nacionais de turismo, já que introduziu, pela primeira vez, referências para uma política nacional. Porém, como observa a autora, essa organização teve uma vida curta. Após esse período, juntamente com transformações mais amplas, o significado do turismo ampliou-se, contudo, circunscrito por um viés autoritário, em acordo com a centralização política administrativa firmada no país. A atividade foi secundarizada e seu processo histórico expôs a ausência do planejamento que a caracterizou por várias décadas. Isso fica demonstrado pela grande variabilidade da gestão do turismo, pelos vários setores da administração governamental, bem como pela visão estreita de que a área é um amontoado de partes e não um todo complexo. Situação que só muda recentemente. 4.4.2 Políticas Nacionais de Turismo: Transições condicionais Até o final da primeira década do século XX não houve um compromisso maior com o turismo. As políticas que surgiram permaneceram mais no discurso. A primeira Política Nacional de Turismo (PNT) apareceu somente no ano de 1966 – ditadura militar no Brasil –, 188 quando o setor ganhou destaque nacional guiado pelo entendimento de que contribui para diminuir os desequilíbrios sociais. Nesta época, além da definição da política nacional foi criado o Conselho Nacional de Turismo (CNTUR), da Empresa Brasileira de Turismo (EMBRATUR), e dos direcionamentos que deveriam compor o Plano Nacional de Turismo (PLANTUR) - elemento básico da Política Nacional de Turismo. Entretanto, na prática, esse plano não foi executado (CRUZ, 2002). Beni (2006) expõe os diversos incentivos criados através dos recursos para o financiamento de projetos de desenvolvimento do turismo a partir da Política Nacional de Turismo de 1966, os quais foram elaborados no decorrer da década de 1970, dentre eles: o FUNGETUR (sistema de incentivos fiscais para o setor hoteleiro); FINOR (Fundo de Investimento do Nordeste); FINAM (Fundo de Investimento da Amazônia) e o FISET (Fundo de Investimentos Setoriais). Já na década de 1980, com a redemocratização do Estado brasileiro, ocorreu a reformulação de alguns decretos das décadas anteriores com a finalidade de consolidar e ampliar o turismo. A Política Nacional de 1966 nutriu idealizações, em termos concretos podemos citar o parque hoteleiro brasileiro que recebeu investimento no período das décadas de 1960 a 1980; se considerava que a fragilidade desse setor era o maior impeditivo para a expansão do turismo nacional. Outra ação esteve vinculada à formatação da imagem do Brasil no cenário internacional como um país exótico, cristão, alegre, carnavalesco e sensual: pró-americano e anticomunista, o que foi feito junto com o Ministério do Exterior. Lima (2017, p. 125) ressalta que “não houve uma Política Nacional de Turismo nesse período e nenhum Plano Nacional do setor foi implementado, uma vez que as ações restringem-se a incentivos financeiros e fiscais”. A década de 1970 reafirmou essa questão recortada pela composição dos variados fundos para o financiamento do turismo. Sobre esse período é interessante mencionar a análise do turismólogo João dos Santos Filho (2008), uma vez que esse autor relaciona os incentivos promocionais ao turismo como aliados a desconstrução de uma imagem do Brasil que no cenário internacional ganhava corpo, estando relacionada às agruras da ditadura. A mídia internacional denunciava as torturas, as prisões e os assassinatos ocorridos no país nesse momento; a EMBRATUR, na contramão dessa lógica buscava divulgar um Brasil democrático, pró-americano e cristão. O tipo de turismo promovido e as imagens destacadas maquiariam atos de repressão social. Diante das perspectivas apontadas, o pesquisador supracitado afirma que a criação do órgão não se deu para a ordem, exclusiva, operacional da atividade. Ainda assim, atraiu-se um número significativo de investidores, concomitante, o 189 envolvimento direto do Estado nas promoções publicitárias e entrada de novos personagens marcou um caráter estereotipado, muitas vezes pejorativo, para o povo brasileiro. A divulgação de paisagens coaduna com a organização de aspectos culturais e folclóricos enquanto atrativos turísticos, construindo um país de poucos que vive de sol, de sombra e dormem sobre um berço esplêndido, entre outras visões já pontuadas no decorrer desse trabalho. A década de 1980 foi sublinhada com os incentivos iniciais da EMBRATUR a partir das verbas do FUNGETOR com o objetivo de apoiar a iniciativa privada na construção de vários hotéis a fim de canalizar um fluxo de turistas estrangeiros no país. Para isso foram construídos verdadeiros paraísos tropicais a beira mar, muitas praias estavam praticamente privatizadas por esses hotéis. Além das questões negativas que envolvem os usos desses espaços em termos ambientais, acrescentou-se nesse período o uso ilegal de áreas públicas, do patrimônio da união, em benefício dos empresários hoteleiros, visto que muitos hotéis foram construídos em locais de preservação ambiental e áreas da Marinha do Brasil. Com ênfase nessa conjuntura podemos considerar a centralização da promoção da imagem da mulher brasileira que nos deixou um péssimo legado: o turismo sexual. Essa espécie de turismo é determinada pela exploração sexual de mulheres adultas e crianças, pelo favorecimento do tráfico de mulheres, consumo de drogas e fortalecimento de organizações criminosas. É importante ter em conta que essa realidade fez parte da estrutura estatal elaborada para o turismo, portanto o turismo sexual não está dissociado do tipo de desenvolvimento que foi privilegiado para o país. Na década de 1990 houve uma reformulação na Política Nacional de Turismo acarretando em transformações na recomposição dos direcionamentos estatais. Os primeiros dois anos desse período foram marcados pelas alterações realizadas pelo Governo de Fernando Collor de Mello, dentre as quais se destacam por intermédio da Lei nº 8.181 de 28 de março a reestruturação da EMBRATUR e da Política Nacional de Turismo. A primeira alteração transformou a empresa pública EMBRATUR em uma autarquia especial, passando a ser denominada de Instituto Brasileiro de Turismo e extinguiu o CNTUR. Já a segunda modificação implicou na criação de novas diretrizes para a política nacional do setor, apresentando a necessidade de preservação do patrimônio natural e cultural do país; e a valorização do homem enquanto destinatário final do desenvolvimento do turismo. Data desse período, em 1992, a constituição de um novo Plano Nacional de Turismo (PLANTUR), instrumento de implementação da Política Nacional de Turismo. Contudo, o PLANTUR surgiu antes mesmo de se ter uma Política Nacional de Turismo, o que havia eram objetivos e diretrizes, não um documento formulado de maneira completa (CRUZ, 2002). Um 190 erro operacional, já que a política deve anteceder o plano. Além do mais, tais direcionamentos se deram em um momento de instabilidade política que culminou no impeachment do Presidente da República. Continua por motivos políticos e operacionais a política de turismo detida em decretos, sem efetivação na prática. Por sua vez, o governo de Itamar Franco, sucessor do de Fernando Collor, criou um importante programa, o Programa Nacional de Municipalização do Turismo (PNMT), pela portaria nº 130 de 1994, do Ministério da Indústria, Comércio e Turismo. Lançado em 1996, permaneceu em vigor até a última gestão de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002). Esse programa efetuou a descentralização do planejamento no turismo brasileiro por intermédio da sensibilização dos municípios e das pessoas a respeito dos benefícios do turismo. O modelo de gestão descentralizada foi desenhado pelas recomendações propostas pela Organização Mundial do Turismo (OMT). Visava implementar um novo modelo de gestão da atividade turística, simplificado e uniformizado, para os estados e municípios de maneira integrada, buscando maior eficiência e eficácia na administração da atividade turística, de forma participativa (DIAS, 2003, p. 144). O objetivo base do plano era fomentar o turismo nos municípios a partir dos seguintes pontos: conscientização a sociedade para a importância do turismo; descentralização das ações de planejamento; estimulo ao fortalecimento das relações dos diferentes níveis do poder público com a iniciativa privada; e disponibilização aos municípios brasileiros com potencial turístico, condições técnicas, organizacionais e gerenciais para o desenvolvimento do turismo. “É talvez o mais importante representante da mudança de modelo, no âmbito do setor turístico, em direção ao cenário de descentralização de produção de políticas públicas e ampliação da autonomia das entidades federativas” (ARAÚJO; CÉSAR, 2012, p. 269). No Governo do Fernando Henrique Cardoso houve a reformulação da PNT (instituindo o período de 1996-1999), vinculada ao Ministério do Esporte e do Turismo, adotando-se vários direcionamentos do Governo anterior. Esta intervenção foi o mais completo e detalhado documento oficial das políticas de turismo em território nacional até aquele momento, mas, não implicou “necessariamente, em maior eficiência relativamente às políticas anteriores” (CRUZ, 2002, p. 62). Essa política refletiu na valorização do setor turístico como destino tropical e a possibilidade de se atrair fluxos internacionais e transformar a atividade em produto nacional. Na reformulação da política nacional agregou-se os seguintes projetos que abordavam a questão da sustentabilidade: o PNMT; a criação do PRODETUR/NE (1991), formulado para impulsionar o setor no Nordeste brasileiro e servindo de modelo, quando em execução, para a 191 criação de outros PRODETUR´s regionais (como é o caso do Programa de Desenvolvimento do Turismo na Amazônia Legal, Centro-oeste e Pantanal mato-grossense -PROECOTUR); PRODETUR-SUL; e PRODETUR-SE (na região Sudeste). Apesar da ampliação das políticas as ações continuavam fragmentadas. No mais, o fato de terem sido colocadas à disposição da administração local, sem requerer nenhum tipo de fiscalização ou avaliação posterior, beneficiou poucos interessados, excluindo a população de uma participação mais direta e, também, os profissionais da área. A EMBRATUR ressaltou que foram treinados nesse período 27.438 pessoas (BRUSADIN, 2005). Em suas análises, Beni (2006) observa que tal modelo não foi posto em prática conforme as recomendações operacionais, não obtendo por isso, os resultados esperados. Entre as falhas estavam o desconhecimento por parte do governo da época das características de cada espaço turístico nacional; o que provocou o problema de se lançar uma política nacional sem atentar para as particularidades locais. Em suma, a década de 1990 foi marcada pela tentativa de estabelecer o debate sobre o turismo entre governo, iniciativa privada, academia e sociedade. A política nacional mais substantiva propiciou novo impulso à atividade turística em âmbito nacional. A configuração da concepção das políticas de turismo deslocou-se do entendimento que a formulação e a implementação dessas políticas deve se dar de forma centralizadora pelo governo federal, para o entendimento que a percepção desse processo deve envolver necessariamente os diversos atores, estaduais e municipais (BENI, 2006). O governo seguinte trouxe para o país uma nova institucionalidade na gestão do turismo através do mandato presidencial de Luiz Inácio Lula da Silva, no período de 2003 a 2010. Nesse mandato uma pasta no Estado foi dada ao turismo com a elaboração do Ministério do Turismo (MTUR) no ano de 2003. Estava nas bases desse órgão à promoção e divulgação da atividade, o estímulo ao setor, planejamento, coordenação, supervisão e, de modo inédito, a avaliação dos planos e programas de incentivo ao turismo. Logo, no primeiro período do governo Lula o CNTUR foi todo reestruturado passando a atuar como um instrumento imprescindível de assessoramento do MTUR, em todas as suas ações, com as atribuições de propor diretrizes e oferecer subsídios técnicos para a formulação da Política Nacional de Turismo (BRASIL, 2003). Já a EMBRATUR teve suas ações direcionadas, exclusivamente, para a promoção do Brasil, no que diz respeito ao marketing e a comercialização dos destinos, serviços e produtos turísticos (BRASIL, 2003). Sua função se deu a partir da publicidade do país enquanto destino turístico, dessa vez buscando desconstruir a imagem do Brasil fortemente relacionada no 192 exterior como um Destino Turístico Sexual; O MTUR, com seu Plano Nacional de Turismo – Diretrizes, Metas e Programas, 2003-2007, se comprometeu a profissionalizar a EMBRATUR. O PNMT foi transformado no Programa de Regionalização do Turismo (PRT); publicado do Plano Nacional de Turismo (PNT). Outro instrumento criado como resultado dessas transformações foi o Fórum Nacional de Secretários e Dirigentes Estaduais de Turismo - um órgão informal, consultivo, constituído pelos Secretários e Dirigentes Estaduais de Turismo que auxilia no apontamento de problemas e soluções, concentrando as demandas oriundas dos Estados e Municípios. Desdobrou-se em outros 27 fóruns estaduais criados em cada unidade da federação com papel fundamental na operacionalização das políticas formuladas pelo núcleo estratégico, constituindo-se em um canal de ligação entre o Governo Federal e os destinos turísticos (BRASIL, 2003). O objetivo era criar o cenário para a geração de 1.200.000 (um milhão e duzentos mil) postos de trabalho, estimular a visita de estrangeiros ao país, chegando a um número de nove milhões a fim de favorecer a aquisição de oito bilhões de dólares em divisas. Além disso, o objetivo era expandir voos domésticos, interiorizar as ofertas turísticas, trabalhar para que cada estado da federação tivesse no mínimo três elementos de qualidade a fim de possibilitar o turismo. Para atingir tal meta, uma gama significativa de materiais explicativos, com marcos teóricos, conceitos sobre o turismo, objetivos, perspectivas, entre outras informações importantes foram disponibilizadas através do site do Ministério do Turismo. São materiais claros em delimitar os seus objetivos e revelar as possibilidades existentes, inclusive, de participação dos diferentes envolvidos. No mais, esse foi o primeiro Plano Nacional de Turismo colocado em prática no país. A PNT tem o foco na descentralização priorizando uma relação entre as três esferas, isso para regular a atividade em nível local uma vez que se pretende a monitoração dos impactos sociais, econômicos e ambientais dessa atividade; e para inter-relacionar o turismo com outros setores da administração pública, o que demanda em articulação e em comunicação efetiva entre as diferentes esferas de poder. Atenta-se ainda para a inclusão social por meio da geração de trabalho e renda, com privilégio às pessoas de poder aquisitivo mais baixo nos ambientes turísticos. No governo do Presidente Lula dois PNT’s foram postos em prática: o 1º PNT (de 2003 a 2007) com os objetivos acima citados e o 2º PNT (de 2007 a 2010) criado em seu segundo mandato como uma nova versão do plano nacional. Esse segundo plano, denominado por: “Uma Viagem de Inclusão” concatenou-se a vários outros projetos políticos desenvolvidos nesse governo, desde projetos de mobilidade urbana a projetos educacionais que priorizam o 193 social. Esse segundo momento objetivou a promoção das viagens no mercado interno a partir da estruturação de 65 destinos turísticos que deveriam ser compostos de parâmetros de qualidade considerados internacionais; em termos financeiros almejou gerar 7,7 bilhões de dólares e criar 1,7 milhões de empregos e ocupações. Também, foi elaborada a Lei Geral do Turismo, nº 11.771 de 17 de setembro de 2008, que dispõe sobre o PNT e demarca as atribuições do Governo Federal. O Ministério do Turismo transformou o PRT em seu programa estruturante, adotando a região e o lugar como primordiais para a implementação dos processos de desenvolvimento socioeconômico por meio da regionalização. Ou seja, diante do viés macro das ações do MTUR, encontrava-se o direcionamento para a abordagem regional do desenvolvimento do turismo, no qual o programa Regionalização do Turismo é sua operacionalização. O PRT enquanto diretriz orientadora para o desenvolvimento de produtos turísticos segmenta-os como turismo cultural, rural, aventura, ecoturismo, náutico, de pesca, de estudos e intercâmbio, de negócios e eventos e, do sol e mar. O MTUR parte da premissa que “segmentar é olhar para o destino, inclusive os mais tradicionais, e encontrar nele uma vocação, de modo que atenda ou agrade um público específico” (BRASIL, 2013). A ideia de vocação turística foi criada no momento em que naturalizou-se o espaço negando as relações sociais, históricas e espaciais, acreditando-se em um tipo de pré-disposição inerente ao espaço, algo que seria eterno, que estaria ali desde sempre. Nesse aspecto é importante estar atento que nenhum lugar tem essa vocação turística, o que seria apontado como vocação é um elemento construído em um determinado espaço e esse advém através de várias operações sociais. A operacionalização do turismo requer a instrumentalização dos conceitos de Região e Lugar, tais como os de Paisagem, Território e Espaço. Esses são basilares, isso porque o turismo ocorre nos espaços, consumindo-os e, além disso, depende dos espaços e dos seus elementos para existir. A região tem sido cada vez mais acoplada aos diversos interesses que se relacionam ao conhecimento ou a própria intervenção espacial. A região tem servido, muitas vezes, como legitimadora da produção do saber, um “objeto de lutas”, que vai além do estudo difundido entre os geógrafos; esses “aspiram ao monopólio da definição legítima, mas também historiadores, enólogos e, sobretudo desde que exista uma política de regionalização e movimentos regionalistas, economistas e sociólogos” (BOURDIEU, 2009, p.108). Os movimentos regionalistas ganharam o foco na disciplina sociológica. Para os economistas eles têm sido contemplados nos assuntos referentes à administração pública. Na geografia foram considerados objetos formais da disciplina compreendidos em sua relação com 194 o indivíduo e a natureza, em que um apanhado de elementos estaria intrinsecamente conectado e destacado pela singularidade (LA BLACHE, 1955). De certa maneira, confundia-se com o conceito de paisagem pela exaltação da forma e conteúdo. Esses enfoques abriram espaço para uma maré de ambiguidades. Uma vez que o lugar acabou sendo tomado como se fosse autocontido por essa região e essa designa diferentes dimensões; sendo que a dimensão geográfica do tempo mais externo é o mundo, mas a do tempo mais interno, não se sabe, e qualquer recorte não seria absoluto, seria apenas convenção (SANTOS, 1997). Assim, a ideia geral que esse é um recorte constituído a partir de áreas que se diferem entre si sobressai-se no conceito de região, nos diferentes estudos acadêmicos, nos planos políticos e no entendimento do cotidiano (CORRÊA, 2003). É interessante destacar que, tanto a região como o lugar não têm existência própria. Nesses termos, o que se constrói enquanto singularidade desses espaços não é o que eles realmente são em sua totalidade, mas sim fragmentos abstraídos em cada momento histórico que podem ser distribuídos de diferentes modos combinados. O que demarca uma diferenciação no interior do espaço total e confere a cada região ou lugar a sua especificidade é a identidade. Sua significação é dada pela totalidade de recursos e muda conforme o movimento histórico. No decorrer da história as regiões vêm sendo configuradas através de processos orgânicos, expressos pela territorialidade de um grupo em que prevalece suas características de identidade, exclusividade e limites, devido à única presença desse grupo, sem mediação (CORRÊA, 2003; SANTOS, 1997). A região se produz assim na classificação, no controle, no fluxo dos embates sociais, no ordenamento do Estado, nos processos de subjetivação de quem a pratica e a vivencia (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2006). Já a regionalização é o uso da região em sua dinâmica processual a partir do tempo e dos espaços vividos e produzidos pelos grupos. Mesmo sendo esses espaços carregados de simbolismos assumem-se para eles uma natureza, ou seja, naturaliza-os a partir de discursos que são elaborados ou recriados colocando os espaços enquanto dotados de um ser regional. Nos dias atuais o ato de regionalizar pode ser interpretado como um condicionamento, mas também, condicionante dos processos local/global em constante arranjo proporcionado pelos agentes produtores do espaço (HAESBAERT, 2010). Conquanto regionalizar implica em construir um recorte, material, funcional e imaginário, que atua como suporte das experiências, vivências, entre outros tipos de investimentos objetivos e subjetivos (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2008). Á contento do turismo as delimitações dadas à região para a formatação das políticas enfatizam os aspectos paisagísticos e ambientais nos termos das representações dadas ao 195 espaço, ou seja, com foco em um espaço social que é conceituado por Lefebvre (1991, p. 38- 39) como o espaço social concebido; “this is the dominant space in any society (or mode of production)”, nesse “conceptions of space tend [...] towards a system of verbal (and therefore intellectually worked out) signs”142. O espaço assim concebido na perspectiva Lefebvriana concretiza-se a partir do espaço planejado, pensado, idealizado. Um espaço que advém de interesses que determinam o porquê e como deve ser utilizado e quais as articulações desse espaço com outras dimensões143. Essa concepção traduz bem a ideia das regiões instituídas pelo PRT. Em síntese o programa parte do pressuposto que cada região ou município possui particularidades próprias que devem ser a base para as possibilidades de desenvolvimento; bem como da compreensão da necessidade de construção de um ambiente democrático, que envolva os diversos atores do turismo: poder público, iniciativa privada, sociedade civil e população local. O programa visa subsidiar a elaboração, a estruturação e a qualificação de cada região turística do Brasil, de forma a respeitar os princípios de sustentabilidade econômica, ambiental, sociocultural e político-institucional. De acordo com os princípios adotados, esse processo deve ocorrer de forma autônoma e participativa. Devendo existir, consolidação de roteiros turísticos, tanto antigos quanto novos, para garantir a competitividade dos destinos nos mercados nacional e internacional (BRASIL, 2007). Subsequente ao governo do presidente Lula foi iniciado o mandato da Presidenta Dilma Vana Rousseff, o qual iniciou em 2011 e finalizou em 2014. A presidenta foi reeleita em 2014, sendo empossada em 2015, no ano de 2016 foi destituída da Presidência da República por meio de um golpe parlamentar. Em 2013 lançou um novo plano nacional, o 3º PNT (2013-2016), dando sequência às diretrizes anteriores cuja proposta é denominada “O turismo fazendo muito mais pelo Brasil” e foi direcionada aos grandes eventos esportivos a serem realizados no Brasil: Capa do Mundo e as Olimpíadas. 142 Tradução nossa: This is the dominant space in any society (or mode of production) – Esse é o espaço dominante em cada sociedades (ou modo de produção)/ Conceptions of space tend [...] towards a system of verbal (and therefore intellectually worked out) signs – As concepções sobre o espaço tendem para um sistema de signos discursivos. 143 Em sua concepção de espaço social Henry Levbre constrói uma tríade conceitual para a compreensão das relações que constroem os espaços a partir do vivido, percebido e do concebido. O vivido como um espaço de representação através daqueles que o vivenciam e que o faz em sua dinâmica, se traduz na diferença ao modo de vida programado. Exemplo, o que um urbanista projeta durante a elaboração de um bairro ou uma cidade não é a mesma coisa que o sujeito que vive naquele espaço vivencia. O espaço percebido são as práticas espaciais unidas dos valores e informações específicas de cada orientação social, corresponde a uma lógica de percepção e da produção social. Esse espaço fica na dialética entre o vivido e o concebido. O espaço concebido, como já colocado no texto, parte da determinação dada aos espaços Como se espera que esse seja usado, quando se faz a sua projeção, os seus recortes, se estabelece e se dá forma ao que se imagina, mas nem sempre quando as pessoas começam a vivenciar esse espaço, elas o fazem conforme foi planejado. Para mais informações ver: Levbre (1991). 196 A seguir a síntese das ações realizadas na relação entre Turismo e Estado: Quadro 2- Vínculo Institucional e Marcos de Intervenção Governamental no Turismo Período Vínculo Institucional e Marcos de Intervenção Governamental no Turismo 1937-1945 - Proteção de bens históricos e artísticos nacionais; fiscalização de agências e venda de passagens. 1946-1497 - Ministério da Justiça e Negócios. 1948-1958 - Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio: Intervenção estatal percebida na criação de órgãos e instituições normativas e executivas e na produção do espaço; Início do planejamento do turismo em nível nacional; Combratur (Comissão Brasileira de Turismo). 1959-1962 - Subordinação direta à presidência da república (COMBRATUR). 1963-1966 - Ministério da Indústria e Comércio (Divisão de Turismo e Certames do Departamento Nacional do Comércio): modernização e expansão do aparelho administrativo do Estado e sua correspondência com os diversos níveis da federação, tendo como marca a hierarquização/centralização dessa estrutura; ação mais rígida de controle; criação da EMBRATUR e do Conselho Nacional de Turismo; definição da política nacional de turismo. 1971 - Criação de incentivos fiscais como FUNGETUR - Fundo Nacional do Turismo (Decreto-lei n. 1.191, de 27 de outubro). 1973 -Disposição sobre zonas prioritárias para o desenvolvimento do turismo (Decreto-lei n. 71.791 de 1977). 1977 - Lei n. 6505 de 13 de dezembro de 1977 (dispõe sobre atividades e serviços turísticos, estabelecendo condições para funcionamento e fiscalização); Lei n. 6.513 (cria áreas e locais de interesse turístico) de 20 de dezembro de 1977. 1985-1986 - Liberação do mercado para o exercício e a exploração de atividades turísticas e consequente redução da clandestinidade e aumento no número de agências registradas; criação do programa “passaporte Brasil” para a promoção do turismo interno; estímulo à criação de albergues. 1987 - Incorporação das questões ambientais na formulação das políticas públicas; lançamento, pela EMBRATUR, do turismo ecológico como novo produto turístico brasileiro. 1988 - O turismo é citado na constituição brasileira em seu art. 180, no qual se atribui responsabilidades iguais a todos os níveis governamentais. 1992 - Ministério da Indústria, do Comércio e do Turismo: revitalização do FUNGETUR e dos incentivos fiscais do setor; apresentação do PLANTUR- Plano Nacional de Turismo; Criação do PRODETUR-NE – Programa de Desenvolvimento do Turismo no Nordeste. 197 1993-1994 - Implantação do PRODETUR-NE; lançamento de diretrizes para uma Política Nacional de Ecoturismo; Incorporação dos princípios de descentralização governamental no turismo por meio do PNMT- Plano Nacional de Municipalização do Turismo. 1996-2002 - Ministério do Esporte e Turismo: apresentação da nova Política Nacional de Turismo para o período de 1996-1999, contendo dez objetivos estratégicos, entre os quais destacam-se a descentralização, “conscientização” e articulação intra e extragovernamental; Instalação dos comitês “Visit Brazil”, maiores investimentos em marketing e divulgação no exterior, bem como promoção da pesca esportiva e do ecoturismo; flexibilização da legislação (resultando na queda das tarifas aéreas e no início de cruzeiros com navios de bandeira internacional pela costa brasileira). 2003-2007 - Criação de uma pasta no Estado específica para o Turismo. Que significa na prática que os interesses do setor nos estados brasileiros serão debatidos em âmbito ministerial, com planejamento e orçamento próprio para desenvolver as ações necessárias para sua expansão em território nacional. - Elaborada a Secretaria Nacional de Políticas de Turismo; Secretaria Nacional de Desenvolvimento do Turismo; o Plano Nacional de Turismo; o Programa de Regionalização de Turismo; estabelecido o Fórum Nacional de Secretários de Estado do Turismo; recriado o Conselho Nacional de Turismo; a EMBRATUR é direcionada para a promoção do turismo; criados os Planos Aquarela e o Plano Cores que complementam as ações dos planos nacionais, ambos planos de Marketing e é organizado o programa de Regionalização Turística e os Roteiros do Brasil. 2007-2010 - Publicação da Lei Geral do Turismo, nº 11.771, de 17 de setembro de 2008. - Criado o 2º PNT, intitulado “uma viagem de inclusão”. 2011 É lançado o diagnóstico do cenário, das projeções e das proposições referentes ao planejamento do turismo no Brasil. 2013-2016 3º Plano Nacional de Turismo- O Turismo fazendo muito mais pelo Brasil; plano lançado visando atender as demandas referentes aos dois megaeventos Copa do Mundo e das Olimpíadas. Fonte: Elaboração própria com base nos dados apresentados por Beni (2006). Na história das Políticas Nacionais de Turismo houve diversos equívocos. Essas falhas se deram, em grande medida, pela própria alternância com que este setor esteve vinculado a administração pública, não estando de forma permanentemente ligado a um departamento ou Ministério específico. A política de turismo avançou nos anos 2000 com a criação do Ministério do Turismo (MTur), o qual fez o turismo contar pela primeira vez na história com uma “[...] pasta própria, além de estrutura e orçamentos específicos, não mais dividindo com outros setores de atividades a condução dos interesses particulares do turismo em nível nacional” (BENI, 2006, p. 28). Contudo, a criação da pasta própria para a atividade turística em âmbito 198 nacional não reverberou em ampliação econômica e melhorias sociais significativas para os locais. O próprio programa estruturante de regionalização do turismo não foi formatado nos moldes necessários para tal intento. As metas estabelecidas foram exageradas, baseadas em expectativas infladas. Diante da percepção da inviabilidade de atingir os objetivos estipulados as metas são reduzidas, como menciona Lima (2017, p. 131): “as metas referentes ao número de turísticas internacionais, tendo o primeiro (PNT 2003-2007) estabelecido alcançar a marca de 9 milhões e o último (PNT 2013-2016) 7,9 milhões”. Muitas propostas de Estados não estavam ancoradas em estruturas de suporte consolidadas. É interessante observar que os objetivos traçados dependem do encaminhamento de um plano turístico em nível local primeiramente, o que não existiu em diversos municípios. Em uma microrregião o turismo até pode favorecer um crescimento adequado, mas isso só e possível quando a atividade é vista como correlata a outras dimensões de um plano de desenvolvimento integralizado; que se concretize com a estrutura federal coerente com o envolvimento e operacionalidade dos estados e municípios. A dificuldade destes entes federados de entender, aplicar, operacionalizar e continuar as diretrizes nacionais significou é uma barreira para o turismo nacional. Esses empecilhos apresentam-se em dois cenários: o primeiro refletindo a ausência de recursos humanos qualificados para absorver, entender e interpretar os conceitos e metodologias adotadas pelo MTur, trabalhando-as no sentido de harmonizá-las e compatibilizá-las com as especificidades locais e os instrumentos operacionais disponíveis; o segundo revela-se pela fragilidade e incapacidade institucional para a gestão do turismo em muitas regiões do país, apesar das sucessivas tentativas de planejamento do desenvolvimento integrado dessa atividade (BENI, 2006). O primeiro cenário ressaltado por esse autor é resultado da própria história das políticas nacionais de turismo no Brasil, marcada pela diversidade dos vínculos institucionais e pela descontinuidade entre as ações, sendo a criação do MTUR recente, não tendo-se ainda de fato ocorrido um processo de qualificação profissional das pessoas que trabalham com o turismo nos estados brasileiros. O segundo cenário, por sua vez, é decorrente dessa mesma situação, não tendo a recente política nacional de turismo do MTUR ocasionado melhorias efetivas no fortalecimento institucional das secretarias municipais de turismo. 4.5 AS POLÍTICAS E A CONTRUÇÃO DA PAISAGEM NORDESTINO-POTIGUAR 199 4.5.1 Primeiros discursos políticos e a construção do litoral No Rio Grande do Norte as paisagens construídas para atender a demanda do turismo têm sido significativas na identificação do Estado. São paisagens ditas privilegiadas, porém, esse não é em primeira mão um privilégio da mãe natureza, mas sim de diretrizes sociopolíticas e econômicas. As paisagens turísticas do Rio Grande do Norte, juntamente, como a de outros estados que compõe a região Nordeste tem o litoral como núcleo gerador da economia. Circulam em jornais, revistas, folders e diferentes mídias imagens com praias, dunas, coqueirais e bugres. Em complementação a essas primeiras imagens, como um pano de fundo de Nordeste, aparecem festivais juninos e feiras de artesanatos com roupas de renda, bordados, cestos de sisal e carnaúba, esculturas de lampiões, marias bonitas, sertanejos em cima do jegue feitos com argila, sandálias e chapéus de couro. Essas são elaborações em prol do turismo que complementam o roteiro previamente direcionado ao litoral nordestino. O litoral do Estado do Rio Grande do Norte iniciou um processo de redefinição na percepção que a sua elite tinha ainda no início do século passado. A praia nesse período se constitua apenas em um depósito de lixo, um esgoto, pois foi hábito no Brasil nos períodos anteriores usá-la como receptáculo de dejetos domésticos, sendo o mar transformado em sinônimo de sujeira. Ainda, os estudiosos chamaram a atenção para o isolamento da capital causado por uma cadeia de dunas, tabuleiros de areia e rios. Os jovens bacharéis pertencentes à elite local afirmaram que esses elementos naturais eram os responsáveis pela paisagem monótona e fatigante do local. Uma vez que o ambiente estaria submerso a essa força imperiosa da natureza que circundava a cidade. De acordo com os estudos concluídos por Arrais (2006), a esperança da elite local estava em vencer o isolamento imposto pelas barreiras naturais para colocar Natal no caminho do progresso. De todo modo os melhoramentos144 efetuados pela administração municipal, que surgiam de acordo com a busca ansiosa pelo progresso eram interpretados como desnecessários e as verbas utilizadas na cidade eram questionadas pela interpretação que se tinha que dever- se-ia priorizar o seu uso no combate a seca. Levou certo tempo para que os brasileiros desvinculassem do mar a imagem de esgoto. Os discursos médicos foram primordiais para essa transformação de sentido, foram eles que, paulatinamente, convenceram as elites dos benefícios ao corpo do banho de mar. As literaturas 144 Conceito estabelecido por Arrais (2004) para designar as transformações urbanas ocorridas com base na modernização europeia nos espaços do Recife, em que se faz uma alusão otimista sobre a capacidade humana de corrigir os “males da natureza” através do emprego da técnica. 200 médicas aos poucos foram sendo assimiladas e no Rio Grande do Norte, por iniciativa do Dr. Calistrato, médico que atendia na capital potiguar, nas primeiras décadas do século XX, foi fundada a primeira estação balneária de Natal, localizada na praia de Areia Preta, recebida com muito entusiasmo pela elite (MARINHO, 2008). A praia começou a receber então novos usos e foi ordenada através de normas terapêuticas e de condutas consideradas civilizadas, entre elas o vestuário adequado, que não era possível a todas as classes -fazendo com que o espaço fosse inicialmente ocupado pela elite da cidade (ARRAIS; ANDRADE; MARINHO, 2008). A terapêutica faz parte de um contexto arraigado às novas tecnologias, ao desenvolvimento da ciência, a industrialização e traz vários outros sentidos, como as viagens. Os jornais que circulavam no Estado do Rio Grande do Norte; assim como outros periódicos nacionais passam a manter, na primeira metade do século XX, colunas fixas sobre os viajantes, ressaltavam os espaços que ganhavam privilégios na sociedade, anunciavam a todo o momento quem partia e quem chegava, como um símbolo de status. No jornal da capital norte rio grandense “A Republica” encontramos colunas sociais que apresentavam, com orgulho, o nome dos residentes que podiam usufruir das viagens de turismo. Na página dedicada à sociedade, os que viajavam de avião ganhavam um destaque especial, eram noticiadas também as viagens de navio, de carro e o movimento dos portos.145 Na década de 1930, o supracitado periódico separou locais para colunas diárias dando mais ênfase aos vários tipos de viagem. Essa foi a mesma década, que como vimos, deu início à trajetória legislativa da atividade turística no Brasil com a normatização das agências de turismo, das vendas de passagens aéreas, marítimas e terrestres. Deu-se, também, a criação do primeiro organismo oficial de turismo da administração pública federal e o lançamento do decreto lei que ampliou o significado do turismo para o Estado. Esse início de tentativa de organização estatal da atividade propiciou que o discurso do turismo ganhasse mais visibilidade nos meios de comunicação. As colunas dos jornais de Natal, capital potiguar, atravessaram as décadas de 1930, 1940 e 1950 recheando o imaginário da população com ideias de viagens de turismo. Associações importantes emergiram chamando a atenção para as belezas naturais do país. O Touring Club do Brasil, fundado em 1923, com a denominação de Sociedade Brasileira de Turismo, foi uma das inúmeras expressões nacionalistas que visou divulgar os recursos turísticos no país junto às 145 Ver jornal “A Republica” de 09 de julho de 1948: Movimento do Porto e Aeroporto. Jornal “A Republica” de 16 de janeiro de 1940: Viajantes. Jornal “A Republica” de 05 de janeiro de 1930: Vai & Vem. 201 elites brasileiras. No dia 16 de janeiro de 1940, o jornal “A Republica” publicou uma nota referindo-se ao clube, denominada por: Ensaio de turismo[...] Estiveram aqui cidadãos do Rio, de São Paulo e de outros Estados do sul em viagem de turismo, patrocinada pelo Touring Clube do Brasil. Mais uma vez o “Almirante Jaceguaí” nos trouxe um grupo de brasileiros que não conhecem o norte do seu país. A viagem que agora se realiza é a quarta que aquela respeitável associação de turismo organiza ao norte, até o Amazonas. A primeira, em 1932, foi denominada pelos cronistas de Viagem Maravilhosa (JORNAL A REPÚBLICA, 16 de janeiro de 1940). As décadas de 1940 e de 1950, principalmente pela influência exercida com o advento da Segunda Guerra Mundial, marcaram de forma histórica os espaços centrais do Rio Grande do Norte, abrindo as possibilidades de se pensar sobre o turismo na capital do Estado. As transformações urbanas que ocorreram durante a guerra e as reformas implementadas na gestão do prefeito Sylvio Pedroza146, iniciaram, mesmo que timidamente, uma política de visibilidade da cidade. O calçamento de ruas, a abertura e reordenamento de vias de acesso e principalmente, a construção da Avenida Circular – com início na Praia do Meio chegando até a Praça do Cais do Porto, na Ribeira –, considerada a principal obra da gestão. No início da sua construção foi criticada, concebida como algo fora dos padrões urbanísticos para uma cidade como Natal, entretanto depois de construída foi considerada uma importante obra, que de acordo com o prefeito, serviria como elo fundamental na “integração à Cidade de nossas praias” (TORQUATO, 2011, p. 33). A estrutura criada selou a inserção da cidade na lógica de valorização das viagens um marco na relação da cidade com o sol e mar, uma vez que antes crescia com suas construções de costas para a beira-mar. O discurso de Sylvio Pedroza, em julho de 1946, destacava os benefícios que a ligação da cidade com o mar poderia proporcionar: Da sua gestão na Prefeitura, a cidade ficara a lhe dever, entre outras coisas, a Avenida Circular, que acentuou sua identificação urbana como capital [...]. Superou uma mentalidade mesquinha e acomodada, mas de uma resistência deplorável ao progresso. Hoje, Natal tem nessa avenida diante do mar a sua mais bela e procurada perspectiva (TORQUATO, 2011, p. 33).147 146 O Prefeito referido no texto é Silvio Pedrosa, de formação escolar londrina, administrou Natal entre os anos de 1946-1951. Após esse período assumiu o cargo de governador do estado do Rio Grande do Norte. O investimento que fez na orla marítima se destacou entre seus feitos. Teve como seu secretário de cultura o representativo Folclorista e Historiador da cidade de Natal Luís da Câmara Cascudo, autor do livro “História da Cidade do Natal” de 1947, que foi distribuído pela administração de Silvio Pedrosa em várias cidades do Brasil. 147 Ver Torquato (2011. p. 33). 202 O discurso se deu em consonância com o que aconteceu em outras zonas litorâneas, foi o início da elaboração do turismo litorâneo que começou a penetrar nos âmbitos político, econômico e social, fomentado pela promessa do progresso econômico que, seria capaz de conduzir a nação a um futuro promissor. Subscrevendo assim novos sentidos em relação às paisagens litorâneas, que aliadas à atividade turística inserem-se numa nova lógica de construção de imaginários. O sol, relacionado aos infortúnios da seca 148, transformou-se em um dos principais motivadores do uso da paisagem litorânea. A conexão que a Avenida Circular criou em relação à cidade e a beira-mar já resultou do imaginário do sol associado ao prazer e ao banho de mar. As praias da capital habitadas anteriormente por pescadores foram ocupadas por casas de veraneio de políticos, industriais, funcionários públicos e comerciantes. O ajustamento das regiões às novas regras capitalistas buscavam a industrialização e a modernização como metas. As imagens que estavam vinculadas a região Nordeste, majoritariamente, ao imaginário em torno da seca, já começaram a não se sustentar diante das novas perspectivas. Nesse cenário iniciou-se a preocupação estatal em redefinir o seu esquema de reprodução de divisas que estava fortemente vinculado à agricultura comercial. Na região esses produtos eram basicamente o algodão, a cana-de-açúcar e o cacau. Um ponto importante para o início dessas transformações com apoio nacional foi a criação do Banco do Nordeste do Brasil (BNB) em 1952, que apoiou alguns projetos que incorporaram a paisagem litorânea. A paisagem praiana aliada ao mercado das viagens turísticas deu os primeiros contornos que arquitetaram o espaço designando-lhe para o turismo. O discurso da atividade foi imbricado nas relações sócias como um elemento natural, suas características culturais e históricas são apagadas e privilegiam a ideia de uma natureza determinada. A escrita de Heron Domingues no jornal “A Republica” é esclarecedora dessa percepção em relação da paisagem natural relacionada ao turismo que começou a ser construída: RAIO X - DE UMA CIDADE Heron Domingues As 24 horas que estou passando nesta cidade de Natal cão das mais alegres dos últimos tempos da minha vida. Tenho, ao meu redor uma coletividade de pessoas divertidas e de mentalidade arejada, cuja preocupação é trabalhar dia e distrair-se à noite. São ruas largas que o “sol de junho” nordestino ilumina com alacridade. A circulação do tráfego é intenso, (e depois de uma sesta post-carangueijos) acordo-me no Grande Hotel e ao ouvir as buzinas e o rolar dos carros percebo que é a hora do “rush”. Por instantes, tenho a ilusão de que estou no Rio de Janeiro. Sinto-me feliz em Natal como se estivesse na melhor cidade do mundo. Voltaire Leuenroth e Amilcare de Carolis, homens de publicidade do Rio, participam do meu namoro com esta bela capital. No andar térreo da Rádio Nordeste, a sorveteria e “boite” “Oasis” e uma nota colorida de 148 Sobre a construção da seca e o seu contexto histórico e político ver: ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. A invenção do Nordeste e outras artes. Recife: FJN/ Ed. Massangana. São Paulo: Cortez, 2006. 203 simpatia e cordialidade. As cadeiras na calçada, intenso movimento, decoração moderna. E’ claro que Natal não resolveu ainda o problema dos hotéis. Este é um mal nacional. Por falta de acomodações as grandes companhias aéreas que na sua maioria faziam escala em Pernambuco estão transferindo seu pouso para a orgulhosa Recife. Acredito que o governo potiguar, entre outros problemas a resolver, deveria encarar com mais seriedade este dos hotéis, para dotar sua bela cidade de casas de hospedagem que permitissem o turismo. Natal pelo seu clima privilegiado, pela sua paisagem surpreendente, poderá vir a constituir-se num dos pontos de maior atração turística de todo o norte do Brasil (JORNAL A REPÚBLICA, 11 de junho de 1956). Heron incorpora para Natal símbolos de grandes capitais modernas: o tráfego intenso, as buzinas, “o horário do rush”, a comparação com a capital do país; o que podemos traduzir como fora de contexto, uma afirmação alegórica, contudo revela um momento em que parte da população nacional deseja ver a economia do país dinamizada visionando sua inserção enquanto grande potência mundial. Natal cidade moderna/cadeiras na calçada; por instantes temos a ilusão de estar no Rio de Janeiro/ falta hospedagem que permita o turismo. É o discurso em seu processo germinal engendrando o turismo como o que pode vir a elevar a capital a uma categoria de destaque frente às demais. Afinal esse é o primeiro ano do governo nacional que promete crescer 50 anos em 5, nesse horizonte se almeja fortalecer o turismo. Nesse mesmo ano de 1956, o prefeito da capital potiguar Djalma Maranhão, em busca de sanar os inconvenientes econômicos e compensar o quadro de atraso industrial da capital, apontou de forma pioneira para o turismo. Na concepção desse gestor, assim como no relato de Heron, a atividade turística seria um dos caminhos para desenvolver a cidade; deveria se destacar às paisagens naturais da cidade e trabalhar em cima do seu favorecimento, só assim seria dado o impulso ao tão almejado desenvolvimento (FERREIRA, 2006). O incentivo do Djalma Maranhão à prática da atividade turística teve como resposta a criação do Conselho Municipal do Turismo. O prefeito embelezou e dotou pontos estratégicos da capital com equipamentos de infraestrutura básica. A partir de então começam a se pensar e assegurar políticas públicas para o incentivo do turismo, a exemplo de outras cidades litorâneas do Nordeste vinculadas ao ideal do turismo sol e ao mar (FERREIRA, 2006). Pouco tempo depois, em 1959, foi elaborada a instituição desenvolvimentista que visava a superação do subdesenvolvimento econômico na região Nordeste, a SUDENE149 (Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste). Mesmo com o foco no combate à seca, deu abertura à industrialização da região com vias a política desenvolvimentista, o que ocorreu 149 No ano de dezembro de 1959, o então presidente Kubitschek direciona ao Congresso Nacional o projeto de criação da Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE). Nesse momento o diagnóstico da situação da região Nordeste era de uma região pobre quando comparada às áreas mais dinâmicas do país e de um espaço que era vitimizado por condicionantes naturais, históricos e estruturais. 204 por encadeamento no Rio Grande do Norte. Com a SUDENE o governo federal firmou também na atividade turística um dos carros chefes para investimentos financeiros e direcionamento das verbas, que serviu para o incremento de hotéis e a construção de rodovias que ligavam Natal a João Pessoa, Recife e Fortaleza (CAVALCANTI, 1998). Um sistema de visibilidades turística em torno do litoral começou a ser privilegiado. Tanto o Estado do Rio Grande do Norte, quanto outros Estados do Nordeste com capitais no litoral, os quais são apontados como estratégicos para a incrementação do turismo, recebendo incentivos e investimentos públicos (FONSECA, 2005). Começaram a circular as imagens fotográficas que comunicavam e consolidavam a beira mar enquanto paisagem representativa do turismo no Nordeste, em consequência, no Rio Grande do Norte (SILVA, 2012). Incentivado por esse cenário, entre os anos de 1959 e 1960, o bacharel em direito e jornalista José Alexandre Garcia escreveu o Roteiro Turístico da Cidade de Natal150 composto por 59 páginas cujos originais estão em processo de publicação e encontram-se em posse do seu filho Eduardo Alexandre Garcia, que nos ofereceu as cópias para o uso na pesquisa. O roteiro turístico de José Alexandre Garcia é escrito de maneira poética e envolvente. O autor desnuda a cidade ao desejo do visitante, incita-o de uma forma intensa a percorrer os espaços de Natal. Das paisagens litorâneas monumentais aos monumentos históricos, nada passa despercebido pelo olhar de Alexandre, que destaca em início do seu texto o clima ameno e a brisa suave, o que favorecia os modos simples e afáveis dos habitantes locais: Cidade alegre, movimentada, clara, batida pelo sol, mas amenizada – até nos seus dias mais quentes – por sua suave brisa que sopra do atlântico. De topografia curiosamente ondulada e de inúmeras ladeiras a interligar os bairros, Natal possui 178 quilômetros de extensão. Cada um dos 220.000 papa-gerimuns que habitam a capital do Rio Grande do Norte, julga-se um mestre na arte do bem receber, desejoso de transformar o visitante recém-chegado em amigo do peito em cinco minutos. Talvez seja esse o segredo do eterno encanto dessa cidade: sua plácida beleza e a maneira simples e afável dos seus habitantes151. Através da centralização do poder estatal a partir do golpe militar de 1964, a política de desenvolvimento econômico foi planificada e deu preferência a implementação de propostas vindas da iniciativa privada. Logo, as políticas nacionais passaram a privilegiar o local com ênfase ao desenvolvimento regional. Mudou-se o cenário, mas os militares continuavam com a ideia do desenvolvimentismo objetivando construir um país gigante pela própria natureza cujo 150 Os originais estão em processo de publicação e na posse do seu filho Eduardo Alexandre Garcia, que nos ofereceu as cópias para o uso nesta pesquisa. O roteiro inicia-se no Forte dos Reis Magos, percorre prédios públicos, principais ruas e praças, passa pelas praias e finaliza com um roteiro gastronômico. 151 Idem. 205 prisma cultiva o discurso turismo. Todavia, muitos governantes no Nordeste oscilavam em relação às novas medidas, uma vez que elas ameaçavam os seus interesses enquanto elites oligárquicas. Mesmo assim, personagens norte-rio-grandenses ligados à política agrária conservadora deram novas roupagens aos discursos cedendo ao teor desenvolvimentista, não por convicção, porém para a manutenção das conveniências sociais, econômicas e políticas. No Rio Grande do Norte esse panorama foi corporificado com a chegada de Aluísio Alves ao poder, nesse sentido o turismo surgiu como um dos elementos para o seu mandato (LOPES; ALVES, 2015). Nesse entendimento, foram construídos mecanismos que facilitaram a implantação do Turismo no Estado como a Superintendência de Hotéis e Turismo do Estado em 1964 (SUTUR). Essa Superintendência consiste em um órgão estadual associado às políticas de industrialização de âmbito federal que tem como objetivo administrar os poucos hotéis existentes e promover a atividade. A infraestrutura foi melhorada e através dessa política houve a criação de uma rede hoteleira no Estado do Rio Grande do Norte com recursos do governo federal, da Aliança para o Progresso e do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID); com destaque para o Hotel Reis Magos (1965), localizado na Avenida Café Filho, 822, em Natal. O hotel construído próximo à beira-mar tinha o objetivo de intensificar o uso daquele espaço por moradores e visitantes. Ainda fez parte desse incentivo o Esperança Palace Hotel em Mossoró, o Cabugi Palace Hotel em Angicos e o Balneário de Olho D’ água do Milho em Caraúbas. O governo vigente estabeleceu uma política de infraestrutura de acordo com as diretrizes políticas provenientes do nacional-desenvolvimentismo, as quais eram baseadas (em um primeiro momento) na ampliação dos transportes e das telecomunicações, mudando o seu foco no período ditatorial para os investimentos no setor industrial produtivo. Aluísio Alves apoiou o turismo enlevado por todo o contexto direcionado a dotação de infraestrutura, sustentando como beneficiários do seu mandato os integrantes do pacto oligárquico e conservador local, essa se configurou em uma das bases de sustentação do seu governo (LOPES; ALVES, 2015). No ano de 1968 foi executada a Secretaria Municipal de Turismo (SECTUR), com o objetivo de adaptar o Estado à política federal de incentivos ao turismo. Essas ações que visavam inserir o turismo, na maioria das vezes ignoravam, sistematicamente, o complexo conjunto das relações que envolvem os espaços onde estão constituídas - fato que historicamente pode ser constatado na maioria das políticas urbanas brasileiras. Essas ações eram discutidas e levadas ao público como temas de jornais, assuntos de rádio ou de televisão e se impunhavam às expectativas coletivas. Assim foi sendo construída uma das paisagens 206 principais relacionadas ao turismo no Rio Grande do Norte, que a identificou como a Cidade do Sol. As areias brancas dos campos dunares, o azul do céu e do mar e as falésias que constituem paredões avermelhados, corporizaram-se em exóticas e apreciadas paisagens divulgadas. Uma das primeiras chamadas públicas de âmbito nacional para a construção da imagem paisagística da cidade de Natal como o destino turístico da Cidade do Sol estava relacionada a um significativo reclame publicitário que circulou por todo o país no mesmo ano de criação da SECTUR, em 1968. Tratou-se de um semanário ilustrado e popular que permitia a visualização de variadas fotografias: Fatos e Fotos152. O subtítulo da reportagem: “Paraíso tropical com oito praias, coqueirais e dunas de areias coloridas” é a afirmativa sobre Natal que recheada de imagens fotográficas, a nomeia como “Cidade do Sol” (ARRUDA, 1968, p. 43). A imagem fotográfica apresenta ao leitor vários coqueirais de altura elevada que se inclinam para o céu, um mar sereno, calmo, de ondulações leves e um colorido que fulgura entre tons de azul, verde e amarelo; o plano de fundo é composto por nuvens bem delimitadas, pelo sol com sua cor vibrante e o azul do céu. Na reportagem o turismo é qualificado como uma das “indústrias” necessárias ao progresso de Natal (ARRUDA, 1968, p. 44-45). Existe nos textos e nas imagens a alusão ao moderno e ao tradicional. O moderno se configura nos espaços urbanizados e pela tecnologia apresentada, já o tradicional aparece com o folclore e a cultura popular (ARRUDA, 1968, p. 52-53). Entretanto, os espaços plasmam-se nas imagens e para usar Barthes (1984), de puctum à cidade que se quer representada como moderna circula na famosa revista nacional tendo em sua via principal, junto com o modesto fluxo de automóveis, a carroça puxada por um burro. Todavia, a mensagem principal marca o espaço. As fotografias apresentam o enredo que cristalizam um imaginário paisagístico sobre a cidade relacionado à tônica das revistas ilustradas do período que se davam à descoberta de várias imagens do Brasil (ARRUDA, 1968, p. 46- 47). No trecho em que o jornalista fala da Barreira do Inferno, base de lançamento de foguetes construída na época da Segunda Guerra Mundial, como um motivo de orgulho para toda a cidade, existe a valorização da relação com os Estados Unidos da América. Trata-se de um período associado a uma fase de desenvolvimento, também, de uma maneira da cidade ter seu nome presente “no noticiário de todos os grandes jornais e revistas”, pela relação que desenvolveu com a grande potência norte-americana (ARRUDA, 1968, p. 50-51), conforme 152 As fotografias descritas nesse texto estão na Revista semanal Fatos e Fotos. Especial: Natal – A Cidade do Sol. Bloch Editôres: Brasília, 29 de agosto de 1968, nº 395, pág. 43 – 58. A matéria foi realizada pelo jornalista Cassiano Arruda (1968). 207 pode ser visualizado na Figura 14. Para esse autor, a barreira do inferno é um dos primeiros resultados práticos de chamadas para o turismo e que deve ser associado ao serviço de hotelaria e transportes, juntamente com a oferta de atrações naturais ou artificiais. Não existe a ideia de um planejamento que envolva a população e os impactos que o turismo pode trazer à cidade. Há somente a esperança do turismo interpretado como atividade “industrial” favorável à localidade. No discurso o que se projeta é o deslumbre, afinal como narra o texto: Não é sem motivo que os locutores das rádios em Natal, ao anunciarem a hora certa, diziam: “Na capital espacial do Brasil são 13 horas”. Nada mais progressista do que ser a capital do espaço (ARRUDA, 1968, p. 54- 55). As espacialidades que circunscrevem o local parecem suspensas diante dessa lógica. As imagens fotográficas destacam os paradoxos; ao mesmo tempo em que projetam a capital em um ritmo de velocidade dos foguetes, lança como característica o tempo ritualizado dos cultos, do ambiente paradisíaco, do menino que vende passarinho de modo descontraído na feira livre. As incongruências de uma capital que se quer espacial e paradisíaca, mas se identifica com santos, carrancas, procissões, promessas e esperança no futuro. Um futuro que o turismo, atividade carregada de simbolismo baseada em modelos externos, é absorvido como capaz de proporcionar. Logo após a matéria da revista fatos e fotos ter sido publicada, foi comprada pela prefeitura e reproduzida em folhetos para serem distribuídos entre a população de residentes e turistas. Não podemos esquecer que a cidade vem de um contexto de promoção de abertura para o outro, um reflexo da sociabilidade do período da guerra, com os estadunidenses. Todavia, diferente do que proclamam as memórias mais românticas e os noticiários a “imposição” do outro no espaço de Natal, foi um encontro que se deu com muitos conflitos, raivas, estranhamentos, surpresas, mas também, influências, empolgação e amores (PEDREIRA, 2005). O período marca o discurso da abertura da cidade para o novo, negando as resistências e centralizando a projeção do turismo no estado. A afinidade com o turismo foi reafirmada no ano de 1969. Natal conseguiu ser eleita a sede do II Congresso Brasileiro de Turismo, na época era governador monsenhor Walfredo Dantas Gurgel (sucessor do Alves) que governou de 31 de janeiro de 1966 a 15 de março de 1971, dando sequência as projeções anteriores. Esse governador já acumulava mandatos de deputado federal, vice-governador e senador. Sobre esse fato o periódico RN Econômico, de 16 de novembro de 1969, divulga que: 208 Quatrocentas pessoas reúnem-se de 4 a 6 de dezembro em Natal, no auditório do SESC, para falar de turismo como forma desenvolvimento. Mas Natal poderá perder esta oportunidade ímpar de mostrar a sua vocação turística aos participantes do II congresso nacional de turismo, de vez que quase nada vem sendo cumprido de todo um planejamento feito pela SERETE que descobriu a vocação da Capital do Rio Grande do Norte e recomendou à Prefeitura uma série de medidas que permanecem engavetadas. Estas medidas visam o aprimoramento das belezas naturais da cidade que servem como ponto de atração turística, mas que estão abandonadas (RN ECONÔMICO, 16 de novembro de 1969). Dos problemas que circunscreviam a capital, a pouca estrutura para atender uma demanda maior de pessoas foi ressaltada. O evento realizou-se tendo como anfitrião um dos mais significativos personagens da capital, na época, o folclorista Câmara Cascudo. Recebeu os participantes do congresso com uma comitiva de treze embarcações navegando pelo Rio Potengi. O RN Econômico se posicionou contra o que chama de descaso dado a atividade turística por parte do governo ressaltando a aposta de que muitos grupos tinham na intervenção urgente e grandiosa do Estado por meio do turismo para geração de renda. 4.5.2 Estruturando a Cidade do Sol Da década de 1970 em diante os espaços do Rio Grande do norte começaram a receber cada vez mais ações para a formatação do turismo, com grande ênfase no litoral da capital e cidades vizinhas. No ano de 1971, no governo do José Cortez Pereira de Araújo (1971-1975) o cerne para o turismo se deu na construção da Empresa de Promoção e Desenvolvimento do Turismo do Rio Grande do Norte S/A- EMPROTURN. O órgão tinha como objetivo avaliar os principais potenciais turísticos da capital do estado divulgá-los, fomentar e operacionalizar infraestruturas básicas de apoio (SOUZA, 1997). A EMPROTURN de início realizou um estudo que abarca a zona litorânea do município de Baía Formosa até Areia Branca, área que vai de um extremo ao outro do estado, na capital aponta para as belezas das praias de Areia Preta e Ponta Negra. O estudo classificou as praias citadas como espaços potenciais ao turismo. A crise vivenciada pelo país na década seguinte reafirmou ainda mais o discurso do turismo, no cenário econômico norte-rio-grandense. Dessa forma, a atividade foi vista como triunfante em relação a grande seca que desequilibrou as indústrias potiguares (DANTAS, 2007). Em 1973 foi elaborado o Projeto Educacional de Turismo e o Bosque dos Namorados (Projetur), voltando-se para essa área de preservação da Mata Atlântica em ambiente urbano (1975). No ano de 1977 foi iniciado no Rio Grande do Norte um importante projeto para o turismo que teve a sua execução na metade dos anos 1980, o qual se debruçava sobre a união das praias urbanas da capital consideradas pela EMPROTURN como pontos específicos de 209 interesse ao desenvolvimento do turismo. Essas deveriam ser ligadas por uma avenida com cerca de oito quilômetros, ideia que foi muito rebatida uma vez que o espaço delimitado se tratava de uma Área de Proteção Ambiental (APA) (CRUZ, 2002); A ação era parte da Política de Megaprojetos para o Nordeste e seguia o modelo de urbanização turística do México com o objetivo da distribuição horizontal de hotéis ao longo da costa das praias. São exemplos: as cidades de Manzanillo, Acapulco e Cancún. A política de Megaprojetos iniciou no Rio Grande do Norte com o Parque das Dunas/Via Costeira- PD/VC; seguiu com o estado da Paraíba com o Projeto Cabo Branco; privilegiou, também, os estados de Pernambuco e Alagoas com o Projeto Costa Dourada e; na Bahia se materializou com o Projeto Costa Verde. A política foi “o marco fundamental para a expansão da atividade turística local e a produção social de Natal como cidade turística” (LOPES JÚNIOR, 2000, p. 48), o processo de implementação da atividade dividiu-se em “antes” e “depois” do Projeto Parque das Dunas-Via Costeira, em que foram erguidos hotéis com padrão internacional, a residência oficial do governador, o Centro de Convenções, entre outros edifícios que fortaleceram a infraestrutura urbana e consequentemente o turismo. Com a Via Costeira o objetivo do governo e do empresariado local era a construção de uma “Copacabana” (praia localizada na zona nobre do Rio de Janeiro) em Natal, destinada a moradores e frequentadores de alto poder aquisitivo, como salientou Cavalcanti (1993, p. 138). Esses empreendimentos erguidos a partir de incentivos fiscais de âmbito estadual e nacional beneficiaram, sobremaneira, indivíduos da elite local (FONSECA, 2005). De acordo com Lopes e Alvez (2015) o discurso tradicionalista e agrário-político se fixou na capital norte-rio-grandense e estendeu suas raias ao turismo, fazendo desse uma ferramenta para manutenção da sua reprodução e poder. Uma dessas ligações entre o turismo e a elite local pode ser feita com o hotel cinco estrelas Ocean Palace, instalado na Via Costeira. O empreendimento é do empresário e engenheiro Arnaldo Gaspar, que com a sua construtora A Gaspar ganhou repercussão na engenharia de grandes obras em todo o Brasil. O dono do hotel cinco estrelas entrou no mercado e conseguiu ascensão social com grande apoio do sogro, Ruy Pereira Antunes, latifundiário, “Senhor” do Engenho Mucuripe, filho da escritora Madalena Antunes, conhecida como a Sinhá- moça do Engenho Oiticeiro, ambos localizado em Ceará-mirim. Ruy Pereira com a influência social e política no Estado do Rio Grande do Norte conseguiu apoio para que seu único genro entrasse já com certo prestígio nas grandes obras do Estado, ainda, na década de 1960. O Ocean Palace é administrado atualmente por um dos filhos de Arnaldo Gaspar, o Ruy Pereira Gaspar Neto, atual secretário de turismo do Estado. 210 Há um conflito de objetivos entre a elite local, uma vez que alguns grupos não endossaram o turismo acreditando ser esse um tipo de projeto redentorista para Natal. Também, a entrada inesperada na cena de novos atores impôs a preocupação com a questão ambiental. Entretanto, as justificativas do governo estadual e do empresariado permitiram a materialização do turismo com vias a ascensão da economia local. Os terrenos de propriedade da Marinha foram transferidos para o Governo Estadual e repassados aos empresários com valores irrisórios153 (LOPES JÚNIOR, 2000). Como o Rio Grande do Norte ainda era um estado carente em infraestrutura, o que inviabilizava a prática do turismo, o apoio estatal deu a sustentação inicial para à atividade que por si só não se desenvolveria e nem agregaria recursos para uma melhor estruturação de seus equipamentos. Contudo, mesmo diante desse salto, como enfatiza Cruz (2002, p.81): O Rio Grande do Norte ainda ocupava, em meados da década de 1980, uma posição ripícola entre os principais destinos turísticos do Nordeste – Salvador e Porto Seguro (BA), Fortaleza (CE), Recife (PE) e Maceió (AL) – devido a fatores de deficiência em infraestrutura turística, em destaque a de hospedagem, somado a inexistência de um marketing turístico estadual mais agressivo (CRUZ, 2002, p.81). As obras dos Mega Projetos foram estratégicas para a apropriação espacial que se deu pelo turismo, tanto do ponto de vista objetivo, como subjetivo. Elas estabeleceram um marco na cidade, favoreceram um diálogo entre os campos imaginários e os significados produzidos internalizando o discurso do desenvolvimento pelo turismo, principalmente na vida cotidiana de Natal. Há uma identificação direta dos moradores entre a inserção dos projetos e a atividade turística. Sobre esse aspecto é bem ilustrativa a declaração do Jornalista Eduardo Alexandre Garcia, ao ser solicitado a discorrer sobre a atividade turística na capital norte-rio-grandense: O marco do turismo em Natal é a construção da Via Costeira feita por Tarcísio Maia que era o governador e chegou de paraquedas, indicado pela ditadura, não tinha programa de governo, foi quando se começou a falar seriamente em turismo em natal. A prefeitura fez uma campanha muito legal; todos os domingos, o Poti publicava uma crônica de algum natalense sob o título "Natal Vista por"... Foi uma série de crônicas, postadas sempre aos domingos, cada dia, uma pessoa diferente da cidade escrevia, digo, a cada publicação dominical. Era Marcos César Formiga o prefeito (informação verbal, 2014)154 153 Somente para exemplificar: O metro quadrado para os empresários que pretendiam erguer seus hotéis custou entre U$ 0,68 chegando a um valor máximo de U$5,60. Nesse mesmo período o metro quadrado em Ponta Negra custava U$ 55,00 e terrenos distantes em áreas periféricas custavam U$ 8,00. Para mais detalhes ver: Lopes Júnior (2000) e Cavalcanti (1993). 154 Eduardo Alexandre Garcia é jornalista, nasceu e reside em Natal. Trabalhou nos jornais “A República”, “Correio Braziliense”, “Diário de Natal” e na “Tribuna do Norte”. Foi entrevistado em 17 de abril de 2014. 211 Em 15 de março de 1983 foi inaugurada a Via Costeira e a duplicação da Estrada de Ponta Negra. O Centro de Convenções foi concluído no governo seguinte, de José Agripino, no dia 31 de julho de 1983. Esse foi o impulso para o surgimento de outros empreendimentos de pequeno e médio porte de investidores de outras regiões do país. Os primeiros hotéis iniciaram o seu funcionamento em 1986 e o turismo, já como interesse de diversos empresários locais, se configurava em uma importante atividade econômica para o Estado, recebendo mais apoio em suas diversas instancias (FONSECA, 2005; DANTAS, 2006). O turismo não alcançou a abrangência esperada. Na década seguinte foi sublunar em âmbito regional o programa de mobilização de recursos financeiros para o turismo: PRODETUR/NE (Programa de Ação para o Desenvolvimento do Turismo/Nordeste); uma política idealizada pela SUDENE e EMBRATUR em 1991, de incentivo ao turismo por intermédio da conjugação dos esforços governamentais para a dotação de equipamentos, infraestrutura urbana e serviços públicos básicos a fim de subsidiar a atividade (CRUZ, 2002). A política aconteceu em dois momentos, com o PRODETUR/NE I e o II. A meta do programa era reforçar a capacidade existente da Região Nordeste em manter e ampliar o turismo contribuindo para o desenvolvimento socioeconômico regional em áreas apontadas como promissoras à atividade (BANCO DO NORDESTE, 2009). Os investimentos referentes ao PRODETUR beneficiariam a população pobre uma vez que fossem “empregados na indústria da construção”; que “usuários intensivos da infraestrutura; ou suas sobras” ou se as atividades econômicas induzidas “pelos investimentos em questão conseguissem beneficiar grandemente a população pobre” (BANCO MUNDIAL, 2003, p.42). No Rio Grande do Norte a área litorânea foi privilegiada para atuação do programa com concentração nas praias da capital e próximas a capital. Além de Natal, seis municípios foram envolvidos no projeto155. Depois de finalizada a 1ª etapa do PRODETUR/NE, no ano de 1999 iniciou-se o PRODETUR/NE II tendo como objetivo a reparação dos impactos negativos ocasionados com o programa anterior e a incorporação de princípios de desenvolvimento sustentável. Foram definidas as áreas a serem beneficiadas com base no conceito de Polos Turísticos; com ações nas áreas de Meio Ambiente, apoio à Gestão Municipal e à Capacitação Profissional (BANCO DO NORDESTE, 2009). Elas foram efetivadas nos municípios do Polo Costa das Dunas com 155 Os municípios envolvidos foram: Ceará - Mirim, Extremoz, Natal, Parnamirim, Nísia Floresta e Tibau do Sul. Esses atendiam o critério de proximidade com a capital, Natal. Essas cidades foram agrupadas em polos, de acordo com o tipo de interesse turístico capaz que o espaço pudesse atender com o desenvolvimento de produtos a fim de se formar corredores culturais, reforçando a consolidação de um destino turístico (BANCO DO NORDESTE, 1999). 212 o foco no litoral, porém foram ampliadas com a inserção de novas cidades. Além do aumento do Polo já existente foram criados mais dois novos polos a fim de receber os recursos financeiros do PRODETUR/RN II para elaboração e diversificação da oferta de produtos turísticos do Estado, são eles: Polo Costa Branca e Polo Seridó. A partir de 2006 foram incluídos os polos Serrano e Agreste/Traíri (SECRETARIA DE ESTADO DO TURISMO DO RIO GRANDE DO NORTE, 2009). Nesse segmento, as expectativas em relação a esses polos estão na possibilidade da geração de empregos. As bases para a visualidade do Estado continuam, majoritariamente, com a ênfase em aspectos naturais, no primeiro momento, no litoral, uma vez que a infraestrutura e as condições existentes não favoreciam o incremento da atividade em outros espaços. No interior do Estado a ausência ou precariedade nos meios de hospedagens, no sistema de transportes, em locais para alimentação e em mecanismos de promoção e comercialização de mercadorias, inviabilizou, ou pelo menos dificultou, até se aspirar e tentar organizar o turismo. 4.5.3 Canindé Soares e a paisagem Nordestino-potiguar O trabalho de Canindé Soares iniciou-se na conjuntura de construção do imaginário turístico, um compartilhamento simbólico promovido através do processo institucional de demarcação do turismo, que se revela enquanto os primeiros esforços empreendidos para uma política de visibilidade em analogia com a atividade. Construíram-se, portanto, os principais ícones paisagísticos do Estado em fotografia que informa variados grupos (com as outras instâncias), visto seu grau de reprodução. Nas palavras de Benjamin (2012) se configura como uma linguagem de amplo alcance, ou seja, é o dispositivo pelo qual se calibra os objetos da paisagem cultural em termos de reprodutibilidade e proporciona a criação da dimensão simbólica da representação desse objeto. São elementos icônicos que se obtém, antes, no discurso e no símbolo projetado nos espaços. “Concede a realidade imediata um caráter de ausência, mas também integra a realidade dentro do sujeito” (AUGRAS, 1967, p. 06 -07). Canindé é um fotógrafo icônico por materializar os discursos nas imagens que produz diante das concepções estabelecidas, também, por transformar o espaço em seu objeto de trabalho mediado por essas imagens. Esse fotógrafo condensa nas imagens todas as expectativas que se criam em relação às proposições do Estado aberto ao turismo. Antonio Roberto Rocha, jornalista local com ênfase no campo do turismo, afirmou ter percebido nas fotografias de Canindé Soares “uma vocação” para a captação dos lugares e das 213 paisagens. Foi editor dos Cadernos de Turismo do jornal, do Diário de Natal e da Tribuna do Norte, onde mantém na atualidade, na versão virtual do periódico, um blog intitulado por e- turismo. Para o jornalista essas fotografias assinalam o que um lugar pode oferecer de mais atraente, por isso no ano de 1998, convidou Soares para uma “aventura” profissional: o objetivo era percorrer de carro toda a orla marítima do estado do Rio Grande do Norte considerada pela EMPROTURN como potencial ao turismo156. A viagem culminou na revista que divulgaria os locais do Rio Grande do norte para os turistas em eventos, congressos, feiras e outros ambientes que visavam divulgar o Estado em âmbito nacional e internacional. A revista emerge do fazer individual atrelado a um conjunto de concepções que colocava o turismo como uma das forças motrizes para o desenvolvimento econômico; direcionando o jornalista Antonio Roberto às perspectivas desse nicho do mercado, até então, não exploradas. A revista é um convite para visitar o Rio Grande do Norte, com prioridade a capital. Os arranjos e as disposições erguidos com base no imaginário do turismo são habilmente captados pelo fotógrafo e expressos no título: “Natal pra você: turismo; cultura; economia”, com a chamada na capa ao litoral, afirmando “Maracajaú: O Caribe é aqui” – uma publicação dirigida aos diferentes agentes que promovem a cidade (ver Figura 15). O desfrute é cuidadosamente registrado para encantar o olhar com a semelhança, em consequência demarca a dessemelhança no discurso e nas perspectivas existentes de turismo; uma vez que a autonomia elaborada subordina-se a valorização dos espaços outros, emulado por uma perspectiva dominante de lazer. Ser o Caribe é ser também colonizado, é almejar ser semelhante ao outro no tempo pretérito e nas perspectivas futuras. É o que Raymond Willians como a escrita compartilhada por instituições, sentidos e práticas que revelam os conflitos de valores e crenças contidos em sua condição social e histórica. 156 Informações repassadas por Antonio Roberto em encontro ocorrido no dia 16 de julho de 2016, durante a exposição de fotografias do autor Canindé Soares na Biblioteca Zila Mamede, localizada na Universidade Federal do rio Grande do Norte. 214 Figura 15 – Revista “Natal pra você”157 Fonte: Acervo particular do editor Antônio Roberto (1998). As andanças pelo Rio Grande do Norte começaram na capital do Estado em direção ao litoral norte. Nas páginas iniciais, o encontro com o mar, com o sol e com as dunas, não é mais suficiente. Os melhoramentos são divulgados e mais de um milhão de mudas das mais diversas espécies foram plantadas para compor quase 20 quilômetros de canteiro organizado pela prefeitura na estrada BR-101, entrada da cidade e nas principais avenidas da cidade como a Engenheiro Roberto Freire e a Via Costeira. “O canteiro central será modificado e ganhara plantas nativas. Ao invés das espirradeiras trazidas de Israel nos anos 70” (ver Figura 15). A revista é um convite para desvendar o Rio Grande do Norte. Esse periódico leva o turista para conhecer os segredos do Rio Potengi e favorece aos visitantes paisagens inusitadas de Natal. Bairros simples de pescadores, pequeno mercado e “humilde pracinha junto a um atracadouro de barcos de pesca”. É a viagem para o passado do trabalho artesanal como o da pesca, um estágio onde o indivíduo e a natureza confundem-se e retratam um ambiente distante, inclusive, do padrão que envolve a capital, com relações de troca interpretadas como 157 Periódico publicado em 1998 com Fotografias de autoria de Canindé Soares. 215 tradicionais. Logo, o rio não aparece como o lugar dos balbúrdios e das agitações do lazer, mas é oferecido como espaço para a contemplação (ver Figura 17). A emergente Ponta Negra é o espaço que promete aos que desejam um turismo urbano, marca o boom turístico do Estado. Nesse cenário são novos flats e a inauguração de uma grande cervejaria, todavia, era cercada por paisagens paradisíacas (ver Figura 18). O roteiro segue destacando os parceiros do desenvolvimento de Natal para o turismo, o PRODETUR em sua fase I e o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) dão relevo ao direcionamento de suas verbas para ampliação do aeroporto Augusto Severo, orçado na época em 30 milhões de reais, obras de saneamento, ampliações de estradas como a da Rota do Sol, a urbanização do bairro de Ponta Negra, entre outras (ver Figura 19). Figura 16- Sol, dunas, mar e flores158 Fonte: Acervo particular do editor Antônio Roberto (1998). 158 Idem. 216 Figura 17- O velho Potengi159 Fonte: Acervo particular do editor Antônio Roberto (1998). Figura 18- Equipamentos Turísticos na Via Costeira160 Fonte: Acervo particular do editor Antônio Roberto (1998). 159 Idem. 160 Idem. 217 Figura 19- Ampliando os horizontes do turismo Fonte: Acervo particular do editor Antônio Roberto (1998). As vias de ligação, as reformas ocorridas, foram extremamente importantes para legitimar a atividade e ir montando a Cidade do Sol três décadas depois de surgir o seu codinome na revista fatos e fotos. Uma cidade turística que foi inicialmente materializada na mente de seus idealizadores vai sendo estruturada conforme as distintas relações. Se o Rio Grande do Norte teve uma importante base econômica relacionada à produção agrária, se almejou as atividades industriais, agora, cada vez mais, torna-se o espaço das paisagens paradisíacas para o consumo e o lazer. Muitas fotografias do autor são registradas a partir dessa estética do belo, da natureza, da grandiosidade que busca conquistar o olhar do outro. Mesmo em contraponto com a ideia do autor, que nos revelou em diálogo que sua fotografia tem como objetivo mostrar o Rio Grande do Norte, principalmente, para seus moradores, para o potiguar. Canindé tem o desejo de mostrar o belo entre os seus conterrâneos, apresentar aos potiguares os encantos de Natal e dos arredores. Já deixou em vários momentos escapar que se assusta por ter muitos conhecidos que dizem com orgulho conhecer Paris ou os Estados Unidos, até São Paulo ou Rio de Janeiro, mas não conhecem o local. E, o objetivo maior de alguns agentes envolvidos com as políticas de turismo continua sendo, antes de tudo, o convite ao turista estrangeiro, como se nele existisse o potencial de construção da atividade vinculada, em termos práticos, a um compromisso econômico e social - o que não é real. Em 1999 foram incluídas as novas rotas turísticas e a revista “Natal pra você” apareceu mediando essa construção; igualmente as fotografias de Canindé Soares compõe a cena, um 218 convite feito pelo fotógrafo que também vê nas raias do turismo a esperança do reconhecimento profissional (ver Figura 20). O Roteiro dessa vez iniciou-se em um ambiente historicamente polêmico na cidade de Touros. Lá está implantado o Marco da Posse das terras pelos portugueses com o ano de 1501, na Praia do Marco, segundo pesquisas do professor Lenine Pinto, o que transformaria a história tradicional sobre a descoberta do Brasil pelos portugueses. O foco era a praia de São Miguel de Touros, depois oficializada como São Miguel do Gostoso. Essa praia nos dias atuais tem sido relevante para o turismo de aventura com os esportes náuticos (ver Figura 20). Figura 20- Rotas do Turismo Potiguar161 Fonte: Acervo particular do editor Antônio Roberto (1999). A sequência é dada com Caiçara do Norte, apontando como vilarejo que ainda existe nos mapas. Segundo o autor, outro paraíso ainda intocado é Galinhos, ambiente dos pescadores e das dormidas em redes, do tráfego com carroças puxadas por jumentos. “Buggies e carros com tração costumam se misturar a paisagem, invadindo um território pouco habituado ao progresso”. No município de Mossoró o turismo está ligado ao sal da terra, a cenas de cidades provincianas, com jangadas, casas simples, até um pequeno cemitério a beira mar, um lugar que parece esquecido. Na cidade de Nísia Floresta a novidade, além das praias, são 23 lagoas. Finalizando as paisagens da praia de Sagi; situada na divisa com o Estado da Paraíba, nela a receita é ir sem pressa e sem exigência, uma vez que até bem pouco tempo a cidade só dispunha 161 Periódico publicado em 1999 com Fotografias de autoria de Canindé Soares. 219 de um aparelho de televisão público, “para os nativos assistirem o Jornal Nacional” (ver Figura 21). Figura 21- Gostoso162 Fonte: Acervo particular do editor Antônio Roberto (1999). Figura 22- O vilarejo163 Fonte: Acervo particular do editor Antônio Roberto (1999). 162 Idem. 163 Idem. 220 Figura 23- Paraíso perdido164 Fonte: Acervo particular do editor Antônio Roberto (1999). Figura 24- Rota do sal e do turismo Fonte: Acervo particular do editor Antônio Roberto (1999). 164 Idem. 221 Figura 25- 23 lagoas165 Fonte: Acervo particular do editor Antônio Roberto (1999). Figura 26- Sem pressa166 Fonte: Acervo particular do editor Antônio Roberto (1999). 165 Idem. 166 Idem. 222 Figura 27- Uma "nova" Ponta Negra167 Fonte: Acervo particular do editor Antônio Roberto (1999). As paisagens retratadas nas imagens apresentadas anteriormente valorizam os símbolos pretéritos, aparecem como um túnel que direciona os visitantes a um momento de nostalgia, indica o artesanal, o simples, o exótico, o primitivo. A paisagem é a utopia da máquina do tempo: elabora a volta ao passado. O litoral nordestino-potiguar uma das representações do turismo nordestino, em seu lugar de atraso. As imagens fotográficas são absorvidas pelos espectadores que a partir da visualidade naturaliza o discurso produzido pelos ícones que reinventam as memórias desses locais. O global parece distante. A contradição em termos de relações sociais, uma vez que a própria atividade turística faz parte dessas relações, requer elementos padronizados, concatenados ao tempo presente, como alimentos diversificados, bebidas de vários sabores, vestuários concatenados a um apelo global, equipamentos tecnológicos, entre outros tipos de produtos. Essas são as utopias criadas na sociedade representada pelo espetáculo. As fotografias apresentam um deslocamento na representação do ícone da seca, o sol, que está concatenado como símbolo tradicional referenciador da região; tanto favorece o imaginário sobre a seca (acrescido da morte e da pobreza do sertão) quanto o imaginário do local turístico repleto de sol para aquecer o lazer, acalentar a preguiça, as brincadeiras e as férias. Essa é uma nova paisagem nordestina, a do paraíso a ser descoberto, pelas empresas 167 Idem. 223 ligadas às atividades turísticas, um nordeste das águas quentes, dos verdes coqueirais, das frutas exóticas e saborosas e de um povo hospitaleiro. A valorização do litoral para o turismo, claramente, ajudou a fazer circular novas imagens do nordeste, com elas a paisagem nordestino-potiguar. A imagética trouxe um novo olhar para os próprios moradores do local, muitos têm orgulho de falar que residem em um lugar propício para passar as férias, alusão comum nas redes sociais por moradores da capital norte-rio-grandense e cidades próximas. Contudo, alguns símbolos omitem as relações existentes e acentuam enunciados que rementem a códigos que faz crer na existência de um espaço atrasado e demarcado pelas relações tradicionais que não existem. A Figura 15 apresenta uma alusão interessante: ao observar o velho bote no lado esquerdo do enquadramento pode-se projetar um desenvolvimento futuro idealizado para a cidade como um todo. No momento em que o foco se dá no velho bote, a cidade enquanto invenção humana extremamente sofisticada está no plano de fundo, o moderno, continua ao fundo, longe do plano central. 224 5 TURISMO RELIGIOSO: O ENQUADRAMENTO ESPETACULARIZADO Nesse capítulo trataremos dos discursos que envolvem a consumação do turismo enquanto um vetor de desenvolvimento socioeconômico e de transformações socioespaciais, trazendo à tona imagens que refletem o espetáculo. É nessa esfera que se amplia a visualidade das fotografias registradas por Canindé Soares: elas dão a ver as mudanças imagéticas nas paisagens nordestinas-potiguares estruturadas a partir da caracterização do turismo. Nos seus registros visuais percebemos como o discurso se interpõe nas expectativas dos indivíduos e constrói o espaço formando-o através de representações, ações e práticas. Nesse escopo a política interposta no espaço nordestino-potiguar, aliada por outra série de operações socioculturais, viabiliza a condensação de formas que aparecem como a expressão de paisagens turísticas no discurso fotográfico. Essas passam a direcionar um novo roteiro; com o olhar nos mitos168 que desenha atrativos para o turismo religioso de cunho católico; produto elaborado a partir da cultura que remonta ao Brasil colônia – em que o processo de miscigenação, fusão de hábitos, crenças e formas de pensamentos resultaria em combinações identitárias expressas na gastronomia, na música, no artesanato e, particularmente, na religiosidade compreendida como típica. Apesar do Estado do Rio Grande do Norte não figurar entre os principais centros de peregrinação e romarias do Brasil, verifica-se que os investimentos políticos e eclesiásticos em prol desse turismo religioso só aumentam. O que procuramos deixar claro nesse capítulo é que no enquadramento fotográfico reside o sintoma, melhor dizendo, as imagens anâcronicas. São esses elementos residuais parte da memória coletiva que reaparecem no tempo presente causando tensão e organizando a nossa crítica. 5.1 TURISMO CULTURAL E CULTURA COM FOCO NA RELIGIÃO Apesar das expectativas e dos projetos de turismo, dos melhoramentos estabelecidos para o espaço em prol da atividade, a distância entre a realidade local e o ideal assumido continuou imensa desde os primeiros incentivos a atividade no Estado potiguar. Um problema fundamental era o fato do processo de transformação espacial pelo qual o Estado Rio Grande do Norte passava não ser consequência de algum tipo de desenvolvimento econômico alcançado 168 Para o autor o mito não é a negação da existência dos elementos iconizados, ao contrário, é o seu relevo, uma vez que esses existem e estão dispostos para distintos usos. Contudo o mito empobrece o sentido pelo qual esse foi gestado no momento em que o traduz a partir de novas formas. Ver Albuquerque Júnior (2012). 225 – como, por exemplo, um desenvolvimento relacionado a investimentos e melhorias na qualidade de vida e expectativa dos cidadãos locais–; todavia, era justamente o contrário, já que se antecipava a esse desenvolvimento. Nessa urgência, o espaço é iniciado em seu processo de artificialização, promoção, turistificação e mercantilização. “O espaço é a instância em que os grupos sociais edificam obras materiais e inscrevem uma ordem simbólica” (ARRAIS, 2004. p.18). Nos espaços o discurso do turismo tem promovido à encenação, manutenção ou mesmo emergência de variados ícones que complementam as paisagens locais, dando-lhes novos sentidos. A atividade cada vez mais ganha importância em distintos debates, mais do que nunca o acesso aos locais tem se expandido por interferência das tecnologias e equipamentos facilitadores dos deslocamentos. Concomitante, acredita-se que o vai e vem turístico nos locais pode fazer milagres em termos de economia, o que sabemos, muitas vezes não ocorrer. Vários fatores movimentam o turismo, entre eles, fica cada vez mais claro: o tipo de infraestrutura que atende o local; as facilidades pensadas para vivência dos moradores; o respeito aos diferentes modos de vida que interagem no espaço; a existência de ambientes de convivência para os residentes; a variedade e a qualidade de transportes públicos; os serviços públicos oferecidos; segurança pública; entres esses fatores, ainda acrescenta-se a sensação de pertencimento que os residentes nutrem com o lugar por sentirem-se incluídos e valorizados, em acréscimo, quando o sentido do público é incorporado pela população em suas esferas de vivência. Esses são fatores que propiciam qualidade de vida a quem vive, consequentemente, um ambiente atrativo ao turismo. No Brasil os feitos em prol do turismo, de modo geral, priorizam tipos de infraestrutura que buscam atender temporariamente os visitantes, ainda existem os discursos legitimados em cima de ações insipientes por estarem descontextualizadas de propostas políticas efetivas para a sociedade. Projetos e ações incorreram em grandes erros na passagem dos séculos XX para XXI, mesmo assim, a atividade é reafirmada em esfera econômica, política e social como um dos carros-chefes para o incentivo ao desenvolvimento socioeconômico no país. Expande-se as expectativas sobre o turismo e acrescenta-se novas ações, dessa vez enveredando para as cidades do interior. O direcionamento da atividade com prioridade às áreas interioranas do país inicia-se após a criação do MTUR (2003) – Ministério do Turismo – por meio do Programa de Regionalização do Turismo – PRT. O programa incentiva o desenvolvimento de elementos englobados enquanto potenciais para o turismo, relacionadas à vivência do conjunto de componentes do patrimônio histórico e cultural e dos eventos culturais que conglomeram 226 manifestações temporárias. Incluem-se nessa categoria os eventos religiosos, musicais, gastronômicos, danças, exposições de arte, de artesanato e outros. Se trata do turismo cultural e da sua interpretação entre os planejadores da atividade. O turismo cultural passou a ser segmentado e reconhecido como uma forma de viagem onde à cultura constitui a base para atrair turistas ou a motivação para muitos turistas e/ou visitantes culturais viajarem. Na Europa, o turismo cultural foi reconhecido como um importante agente de mudança social e econômica (RICHARDS, 1996) e ganhou ênfase no final dos anos de 1970. Na década seguinte, em 1985, a OMT propôs uma definição ampla e outra mais restrita para o turismo cultural. No sentido mais amplo quer dizer que todos os movimentos dos indivíduos podem ser incluídos na definição porque satisfazem a necessidade humana pela diversidade e tendem a aumentar o nível de conhecimento do indivíduo e a proporcionar novas experiências e encontros. No sentido mais restrito, o turismo cultural era definido como os movimentos das pessoas com motivos considerados fundamentalmente de caráter culturais, tais como: circuitos culturais e de artes, de espetáculo, viagens a festivais ou a outros eventos culturais, visitas a monumentos, o consumo do folclore ou da arte, etc. (RICHARDS, 1996). No Brasil o MTur, em parceria com o Ministério da Cultura e o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN); com base na representatividade da Câmara Temática de Segmentação do Conselho Nacional do Turismo, realizou a releitura das atividades culturais do país e as suas principais características definindo o Turismo Cultural como a atividade que abarca à vivência do conjunto de elementos significativos do patrimônio histórico e cultural e dos eventos culturais, valorizando e promovendo os bens materiais e imateriais. O objetivo da conceituação é a orientação de políticas públicas para o segmento, em que as principais características apreendidas relacionam-se aos serviços que o turista utiliza e as atividades que realiza durante sua viagem e sua estadia no destino, tais como: transporte; agenciamento turístico; hospedagem; alimentação; recepção; eventos; recreação e entretenimento; além de outras atividades complementares. O cenário para esse segmento do turismo parte dos serviços e infraestruturas que podem incorporar as características do ambiente cultural como elementos que conferem identidade e demonstram o envolvimento da empresa com o lugar em que ela se encontra e com o público que atende. Procedimentos que vão desde a elaboração do projeto arquitetônico integrado à paisagem cultural e/ou para adaptação de uma edificação de valor histórico, passando pelo uso das matérias-primas da região, a contratação de mão de obra local, são alguns dos diferenciais valorizados pelo turista cultural. Os elementos do patrimônio cultural segundo variadas 227 bibliografias e a orientação do ministério do turismo, se constituem em aspectos diferenciais para o desenvolvimento de produtos e para a promoção dos empreendimentos. O que pode ser feito através de restaurantes dedicados à gastronomia tradicional, artesanato local na decoração e ambientação dos equipamentos, nas programações de entretenimento com manifestações culturais autênticas, na tematização de memórias para ampliar e motivar a emoção do visitante, ainda, se coteja entre essas ofertas a hospedagem domiciliar. Essa é interpretada como uma forma de vivência cultural, em que o turista se hospeda na casa de um residente experimentando o seu modo de vida e observando o cotidiano da comunidade e sua hospitalidade. Proposta já conhecida em iniciativas como a do Turismo de Habitação em Portugal ou do Cama e Café no Brasil, que funcionam como redes de operação e cooperação com hotéis, também como a do aplicativo Airbnb, serviço online que favorece essa interação. O patrimônio histórico e cultural e os eventos culturais, que repercutem a partir da importância dos primeiros; são bens de natureza material e imaterial que expressam ou revelam a memória e a identidade das populações e comunidades. Esses bens tem valor histórico, artístico, científico, simbólico, passíveis de se tornarem atrações turísticas; são delimitados para tais fins: arquivos, edificações, conjuntos urbanísticos, sítios arqueológicos, ruínas, museus e outros espaços destinados à apresentação ou contemplação de bens materiais e imateriais, manifestações como música, gastronomia, artes visuais e cênicas, festas e celebrações. Já os eventos culturais englobam as manifestações temporárias, enquadradas ou não na definição de patrimônio, incluindo-se nessa categoria os eventos gastronômicos, religiosos, musicais, de dança, de teatro, de cinema, exposições de arte, de artesanato e outros. A promoção desses eventos para a utilização turística pressupõe a valorização, a manutenção e a permanência de sua dinâmica no tempo como símbolos de memória e de identidade. Há com isso a pretensão de difundir o conhecimento sobre esses bens, facilitar seu acesso e usufruto a moradores e turistas; além de se valorizar a importância da cultura na relação turista e comunidade com os meios necessários para que essa convivência ocorra em harmonia e em benefício de ambos. No ponto de vista de Carvalho (2009) o crescimento do turismo cultural, em diferentes contextos e escalas espaciais, constitui uma resposta às características e mudanças da sociedade contemporânea e, também, representa um sinal de esperança (econômica), para os destinos que apresentam relevância patrimonial. Mesmo que a cultura surja como elemento secundário para visitar um destino o turista acaba sempre por consumir algo com significado cultural. Atualmente, o turismo cultural é um dos segmentos mais importantes do turismo (RICHARDS, 2013). 228 Os recursos associados ao turismo cultural expandiram-se do patrimônio fixo tangível do passado em direção aos produtos intangíveis e móveis da cultura contemporânea. Isso deve- se essencialmente ao processo da globalização que, de certa forma, favorece o crescimento e desenvolvimento cultural em âmbito global. Tal fato começou por criar uma consciência de diferentes estilos regionais de turismo cultural, os quais se relacionam não só com a cultura consumida, mas também com a organização e gestão desse consumo (RICHARDS, 2007). Na visão do autor o turismo cultural abarca tanto o “turismo do patrimônio cultural” (relacionado com artefatos do passado), como o “turismo de arte” (relacionado com a produção cultural contemporânea). Para Craik (2003), a cultura deve ser moldada para o turismo e os turistas, ou vice-versa. Logo, torna-se necessário desenvolver produtos especializados ou, então, modificar atrações para integrar ou destacar as características culturais de um lugar. Ainda na perspectiva da comercialização do turismo, coloca-se que os destinos onde não há reputação para o turismo cultural ou não possuem elementos culturais globais para atrair visitantes; esses sim têm a necessidade de desenvolver novos produtos e atrações a fim de prender a atenção dos turistas que tem curiosidade nas particularidades da cultura global (RICHARDS; WILSON, 2008). O processo de elaboração para o turismo cultural envolve o desenvolvimento e a mercantilização das relações consideradas tradicionais no lugar ou de uma série deles, usando identificadores temáticos. “Essencialmente, o processo de transformação envolve a fabricação de uma experiência para torná-la mais atraente para o turista” (McKERCHER et al., 2004, p. 395). Segundo os autores, o sucesso das atrações culturais devem compartilhar características comuns, ou seja, elas devem contar uma história, tornar a experiência participativa, focar na qualidade, ser relevantes para o turista e proporcionarem uma sensação de autenticidade. As definições expostas sobre o turismo cultural revelam o ponto de vista de alguns estudiosos que partem da perspectiva da comercialização da cultura. Compreendendo, antes de tudo, a cultura como um traço particular e identitário de um povo e de um espaço, ou seja, alguns elementos que entre variados elementos são escolhidos através de embates para representar um espaço social são divulgados como únicos e característicos, retirando outras representações. Em uma sociedade complexa, como a que fazemos parte, essas elaborações que negam as subjetividades e mascaram os embates sociais acabam fortalecendo impasses e disfunções nos espaços; afastando-se das soluções mais democráticas. É inegável que o turismo enquanto atividade econômica e socioespacial pode cumprir um papel de estimular o exercício da pluralidade; reduzir as discriminações, na medida em que “os outros” se encontram e deixam de ser somente estranhos e passam a ser ver antes de tudo como seres humanos; ainda mais, 229 pode dar relevo a interpretações e particularidades que privilegiam grupos e espaços, aumentando a autoestima de um povo e valorizando-o em uma esfera mais ampla; no mais fortalecer economicamente e com infraestrutura inclusiva uma área. Todavia, mercantilizar aspectos culturais sem um debate profícuo com os diferentes agentes que serão afetados por essa atividade, como de modo geral acontece no Brasil, não gera efeitos positivos, pelo contrário, aumentam os abismos sociais; uma amostra pode ser dada através da concepção de hospitalidade. Os planos nacionais de turismo se dispõem em proclamar a hospitalidade como um traço cultural marcante e de grande qualidade do brasileiro. A hospitalidade como aspecto cultural a ser explorado pelo turismo está profusamente correlacionada ao mito da miscigenação, esse mito traz consigo vários princípios, um deles é que a mistura racial ocorrida no Brasil foi impulsionadora da convivência pacífica entre as diferentes “raças”. Literaturas, músicas, pinturas, fotografias, filmes, novelas, até mesmo algumas produções acadêmicas endossam esse discurso, o resultado é a manutenção de uma ordem prática de imagens que confunde as realidades e camuflam os discursos contrários; o que seria saudável para dar suporte às ações democráticas. No mais, a convivência entre “raças”, classes, espaços, concepções políticas, credos, entre outras convivências no Brasil não são pacíficas. Nossa história é marcada por violências, preconceitos e segregações. Sobre esse aspecto a pesquisa de Warren (2001), realizada no sudeste do Brasil que deu origem ao livro Racial Revolutions coloca o preconceito como o alicerce da negação de direitos e de possíveis debates sobre a questão racial. O que favorece o margeamento de específicos grupos de muitos processos, omitindo os diversos conflitos existentes; a comunidade remanescente de indígenas, foco da pesquisa do autor citado, existe como se fossem figuras folclóricas amarradas no passado. Pior, não se divulga que o lugar marginalizado relegado a essa população, como a própria ideia que constrói o que é índio em nossa sociedade, é parte dos meandros de toda uma construção social; conserva-se para além dos preconceitos culturais o do fenótipo. Outro exemplo está nas pesquisas de Albuquerque Júnior (2003, 2006, 2008a, 2012), essas destacam os estereótipos e preconceitos originários de discursos que traçam perspectivas identitárias elaboradas para se ver e dizer um local, estigmatizando seus moradores e construindo segregações sociais intermediadas por uma geografia da exclusão e do medo. O discurso da hospitalidade ao se sobrepor como aspecto cultural identitário, como uma fala recorrente mascara os modos que persistem em se sobrepor no tratamento social com a heterogeneidade. Modos esses que explodem com linchamentos, mortes, discussões, 230 perseguições, entre outros vários tipos de violência que surgem da dificuldade de apreender e lidar com as diferenças. Esse discurso constrói o nacional, perpassa o regional e atinge o local, o bem receber é exaltado nos submetendo a apenas uma parcela da realidade apontada como boa. Em torno dele organizam-se todos os elementos necessários para a manutenção da atividade, constroem-se espaços nos moldes do concebido (LEFEBVRE, 1991a), o local recortado pelo turismo passa a ser elaborado com a ideia da paisagem tradicional da hospitalidade. Hospitalidade que no caso do nosso turismo é muitas vezes confundida, pelo turismo que foi imposto com forte apelo ao sexual, com servidão. Une-se a isso o preconceito e os tipos de racismos existentes no Brasil que se instalam nas intersubjetividades por meio da interiorização da inferioridade, em que: La jerarquía de superioridad/inferioridad sobre la línea de lo humano puede ser construida con categorías raciales diversas. El racismo puede marcarse por color, etnicidad, lengua, cultura o religión. Aunque el racismo de color ha sido predominante en muchas partes del mundo, no es la forma única y exclusiva de racismo 169 (GROSFOGUEL, 2011, p. 98). Em grande medida não se discute a elaboração dos espaços em termos de vivido; não se questiona se somos realmente uma nação hospitaleira e aberta a todas as diferenças; não se pergunta como esses traços culturais foram elaborados. O discurso do turismo como gerador de renda, de empregos e incentivador da redução da desigualdade social, mesmo sem ser pensado como o turismo atuará na redução dessa desigualdade em termos mais amplos e efetivos, se mantém abarcando a questão da hospitalidade170. Os debates que visam rachar com as cristalizações que circunscrevem a ideia de hospitalidade/servidão ficam na margem, suas ramificações são limitadas, logo, muitos locais destinados ao turismo estão localizados em região com sérias questões econômicas advindas das grandes desigualdades sociais marcadas por projetos políticos organizados de cima para baixo; conservando os benefícios nas mãos de grupos restritos e afastando-se de que se propõe inicialmente atingir. No mais, a ideia de cultura é complexa e passa por várias transformações, Eagleton (2011) ao discorrer sobre o conceito e as suas variantes ressalta como pode ser nocivo pensar a cultura no sentido de afirmação da totalidade, ou da semelhança, ou da superioridade das 169 “A hierarquia de superioridade/inferioridade sobre a linha do humano pode ser elaborada a partir de distintas categorias raciais. O racismo pode ser determinado a partir da cor, etnicidade, língua, cultura e religião. Mesmo que o racismo de cor tenha sido predominante em várias partes do mundo, não é a única forma exclusiva de racismo” (GROSFOGUEL, 2011, p. 98, tradução nossa). 170 A preferência para investimento no turismo tem sido em cima do turismo receptivo, que dá prioridade aos vindo do exterior; europeus e norte-americanos, endossam a lista. Contudo, o maior mercado do turismo brasileiro está entre os próprios brasileiros que circulam em viagens dentro do país, Ver: Castillo Nechar; Panosso Netto (2010). 231 capacidades humanas: se a cultura é livre, dinâmica e se origina nas vivências e práticas cotidianas, consequentemente é paradoxal pensá-la de modo partidário. Ela mesma seria um antídoto à política que confina as manifestações sociais a estreiteza dos enunciados. Nesse norte, a própria ideia de cultura propõe a dúvida aos discursos que formatam a identidade socioespacial, pois exige um olhar além dos interesses parciais; que se desamarre dos estereótipos, dos mitos e que construa novos regimes de verdades e de relações com justiça para os grupos minoritários. 5.1.1 O turismo e o foco no catolicismo popular A religião é uma marca indelével das relações sócio-históricas. Não há como negar a sua contribuição, principalmente a do cristianismo na organização e formação cultural da sociedade ocidental. São peregrinações, ritos, cultos, grupos comunitários e movimentos com grande mobilização de pessoas que atestam a importância das práticas religiosas na vida cotidiana. No Brasil o censo demográfico é uma das grandes referências sobre a investigação da religião e aponta que significativa parcela da população declara professar alguma religião. O que infere em ações cotidianas e práticas socioespaciais regidas por valores religiosos, morais e éticos conforme a religião que se professa. Em uma análise feita sobre a religião declarada dos últimos 50 anos no Brasil e publicada em 2001, temos os seguintes dados: Gráfico 1- Distribuição relativa da população residente, por religião declarada: Brasil – 1950/2000 Fonte: IBGE, Censo Demográfico 1950/2000. 232 O Gráfico 1 demonstra o domínio da religião católica em nosso país. Contudo, essa porcentagem de católicos a partir de meados do século XX vem declinando. Por outro lado, desde 1950, as proporções de evangélicos crescem, quando eram apenas 3,4%, passando para 9,1%, em 1991 e atingindo 15,4% no ano de 2000. Além disso, observa-se um salto na proporção dos indivíduos sem religião que nos anos de 1960 e 1970 eram bem pequenas e durante a década de 1980 os percentuais passaram de 1,6%, para 4,8%, em 1991. No período seguinte, o percentual de pessoas sem religião continuou em crescimento atingindo o patamar de 7,4%, em 2000171. No Censo de 2010, foi demonstrada a continuidade da queda da porcentagem de católicos e a expansão das correntes evangélicas. A queda acelerada entre os fiéis católicos, entre 2000 e 2010 evidencia em dados uma retração de 22%. Isso em porcentagem representa um declínio de 73,7% para 64,6% da população desse grupo de indivíduos, em termos total a redução é da ordem de 1,7 milhão de fiéis172. O que representa um impacto significativo para a religião católica. Mesmo assim, o Brasil ainda é considerado o país que possui a maior nação católica do mundo em um universo plural e competitivo; nesse cenário suas manifestações religiosas mobilizam milhares de pessoas a circularem entre os mais diversos locais173. Ao perder o domínio na formação da identidade religiosa nos modos tradicionais, as instituições que a definem buscam se posicionar e ampliar seu contato com a sociedade de diferentes modos; a fim de recuperar a prospecção dos indivíduos. O apelo midiático é um dos meios pelo qual as religiões inserem-se na Sociedade do Consumo174 (BRONSZTEIN; ALVES, 171 Ver em: IBGE, Tendências Demográficas: uma análise dos resultados da amostra do Censo Demográfico 2000. Disponível em: Acesso em: 23 jun. 2017. 172 Ver em: IBGE, Censo Demográfico 2010: Características gerais da população, religião. Disponível em: . Acesso em 23 jun.2017. 173De acordo com dados da EMBRATUR em levantamento feito pelo Instituto de Pesquisas da Universidade de São Paulo, cerca de 15 milhões de brasileiros viajam anualmente para locais e templos religiosos. No país as cidades de maior destaque são: Juazeiro do Norte, no Ceará, terra do Padre Cícero; Bom Jesus da Lapa, na Bahia; Nova Trento, em Santa Catarina, onde se encontra o Santuário da Madre Paulina; Belém do Pará, com a festa do Círio de Nazaré; e Aparecida do Norte, em São Paulo, onde se encontra o Santuário da Padroeira Nossa Senhora Aparecida. 174 Estudiosos como Frederic Jameson, Jean Baudrillard e Zygman Bauman constroem a crítica social a partir da perspectiva que a cultura do consumo é a que está em vigor na sociedade pós-moderna ou do capitalismo tardio. Apontam os prejuízos relacionados ao ato do consumo, como o materialismo, a exclusão social, a superficialidade, entre outros, permeando com discursos morais sobre os efeitos do consumo na contemporaneidade. O sociólogo Zygmunt Bauman atua nas análises da cultura do consumismo pós-moderno, seu objeto pesquisa, nela aborda os efeitos da atual estrutura social e econômica, baseada no Consumo, e no que esse provoca nas diversas esferas da vida humana. Bauman (2008) avalia os efeitos da troca da Sociedade de Produtores, que define como moderna e sólida, pela Sociedade de Consumidores, que define como pós-moderna e líquida. Na Sociedade de Produtores os bens eram resistentes, a satisfação residia na promessa da segurança em longo prazo e o consumo excessivo era mal visto; já na Sociedade de Consumidores, os desejos de estabilidade e saciedade vinculados à ideia de felicidade 233 2014). O turismo aparece como uma dessas fontes de inserção uma vez que favorece a marcação dos territórios sacralizando-os com as mediações e as paisagens. Vinculada ao turismo a religião transforma-se em atrativo cultural, parte do segmento turismo religioso. O direcionamento ao turismo religioso está classificado pela OMT entre os principais motivos das viagens turísticas, o que é destacado por Dias e Silveira (2003) e afirmado por Andrade (2000). No Brasil a religiosidade cotejada pelo turismo é a católica, fé promulgada nos órgãos oficiais do turismo, essa tem reunido recursos para a edificação de fixos que a representa nos espaços festivos criando paisagens atrativas a atração das pessoas para os locais em que suas manifestações se realizam. O interesse por lugares encontra no calendário cristão católico, com variados eventos e festividade, novas perspectivas para acelerar a economia nos locais aonde esses eventos são realizados. As tradições religiosas de um povo são cooptadas como motivação para o turista vir a conhecer regiões cujo alicerce se fundamenta em suas manifestações (SERVIÇO BRASILEIRO DE APOIO ÀS MICRO E PEQUENAS EMPRESAS DO RIO GRANDE DO NORTE, 2005). De acordo com o Ministério do Turismo (2006, p.3), “os segmentos turísticos podem ser estabelecidos a partir dos elementos de identidade da oferta e também das características e variáveis da demanda”. No aspecto identitário se atesta a relevância dos elementos religiosos, como as crenças, os hábitos e os valores praticados. Como já abordado no tópico anterior, as concepções que embasam mais amplamente o conceito de cultura estão inseridas nessa categoria que recorta as festividades católicas como aspectos culturais a serem trabalhados pelo turismo. Para muitos agentes a experiência do turismo agregada à religião tem uma dupla face que tanto enriquece a experiência do visitante e reforça o sentimento de pertencimento dos moradores com o lugar; quanto descaracteriza a identidade cultural local por meio da imposição de novos padrões culturais. Essas são as diferentes faces de uma moeda que preocupam os seus produtores, sentimentos como o de pertencimento e ações como a descaracterização são colocados como impactos positivos e negativos; modos de pensar o turismo em longo prazo, a fim de que esse não prejudique o local se autodestruindo posteriormente, perspectiva funcional, no qual o aspecto negativo reside no fato dos bens culturais religiosos serem consumidos de forma massiva, banalizada e passível de perder os seus significados originais. A noção descrita converge para a partilha da idealização de uma verdade original e autêntica que existiria e desvinculam-se; a satisfação sai do campo das necessidades e passa a ser concatenada a uma intensidade de desejos sem fim - o que implica um estado de troca permanente. 234 estaria ameaçada pela invasão não controlada de indivíduos contemporâneos com práticas desvencilhadas do local, de ações globais - o que colocaria em risco tanto essas manifestações como o turismo. Kripppendorf (1987) e Greenwood (1989), similarmente sustentam que o turismo é uma ameaça às culturas receptoras, lhes causariam riscos de destruição ou perversão, subjugando-as a um exercício neocolonial de dependência face ao exterior e privando-as de poder de decisão. Sobre esse ponto de vista Canclini (2008, p. 220-221) sugere que os recursos culturais diante do processo de globalização e da consequente transformação dos produtos turísticos em nível local, regional, nacional e internacional, não devem ser pensados nas oposições entre o tradicional e o moderno; entre o culto e o popular; positivos e negativos. Sendo assim, o autor citado afirma que a produção dos eventos religiosos tradicionais, como de outros eventos, além da fabricação de artesanatos, não é tarefa exclusiva de grupos étnicos ou de outros setores mais amplos. Entretanto, se configura como “produtos multideterminados de agentes populares e hegemônicos rurais e urbanos, locais, nacionais e transnacionais”. Ainda assume que o popular é constituído por processos híbridos e complexos que utilizam como signos de identificação elementos procedentes de diversas classes e nações (BRONSZTEIN; ALVES, 2014). A pesquisa sobre “Religiosidade, Turismo e Cultura no Rio Grande do Norte” da Professora Maria Lúcia Bastos Alves (2009, 2013a, 2013b), com foco nas festividades do catolicismo, aponta para as tensões e coexistências culturais a partir de um campo de disputa em que diferentes agentes interagem por meio de motivações concatenadas as suas trajetórias; favorecendo a construção de múltiplos sentidos que implicam na elaboração desses eventos a partir da redefinição acentuada com a presença do turismo. Retrata que as políticas de turismo junto com a Igreja no processo de divulgação da fé católica associada à perspectiva do desenvolvimento econômico reapropriam e revalorizam as festas. Na mesma via dos pontos de vista citados está a concepção de Chartier (1998), o qual contesta as noções binárias de classe para se pensar o universo da cultura, das representações sociais, o que as formulações citadas não conseguem superar. Atenta-se para a multiplicidade e diversidade das atividades, enfatizando a sua complexidade e evidenciando as práticas e representações dos grupos sociais e dos múltiplos trânsitos existentes nas diferentes conjunturas de significação operadas por distintas hermenêuticas e regimes de leitura que orquestram a vida social. A cultura também vem sendo detidamente apontada por Albuquerque Júnior (2012) como um elemento certeiro na construção de identidades. O autor salienta como os discursos, mesmo sem se dar conta, circunscrevem a noção de identidade, principalmente, por intermédio 235 das noções de “resgate” histórico e “tradição” – conceitos caros ao turismo. Ainda de acordo com esse autor, alguns agentes sociais se organizam em diversos campos enquanto promotores ou salvadores da cultura local, regional ou nacional, a fim de resgatar as suas manifestações em risco de transformação, de perda da autenticidade ou mesmo ameaçadas de desaparecimento. O que incorre ao fechamento das ideias, das identidades e das novas possibilidades. O “bom” turismo ou o turismo sustentável quando implementado em certos locais é definido pelo discurso do resgate; um instrumento de preservação; cria as suas paisagens de festas e rituais, porém essas não são vistas ou trabalhadas como fabricação, mas sim como tradição; esquecendo-se que a própria ideia de tradição já é um significado que foi construído a partir do esvaziamento de outras práticas. Com o catolicismo popular, no Nordeste, a paisagem em voga é a da tradição. Nela o discurso é de que o turismo, se bem planejado, permite aos seus clientes presenciar o registro “autêntico” de um ritual cristalizado no tempo e no espaço. Contudo, fechar o espaço no passado é sufocá-lo em seus mitos. Inclusive, nesse norte podemos compreender o turismo como o elemento salva-vidas, pronto para mergulhar e resgatar a vítima em vias de afogamento. Só que um detalhe é esquecido: nesse movimento de retorno não existe mais o passado, em seu lugar está à dinâmica, o fluxo, o presente e o devir repletos de decalques que molduram o corpo da vítima em seu solo construindo o corpo do resgatado. Na prisão dessa criação se concentra a crítica – não na ideia do registro, da encenação, da representação; no mito que prende à identidade, afastando a potência da criação. As paisagens da saudade, dos rituais e da tradição imbricadas ao fenômeno do turismo são elaborações recentes e conectadas com o mercado global, em constante transformação. Não são fragmentos pretéritos das antigas manifestações populares presos ao espaço, índice do passado em conserva até os dias atuais. Ao contrário, são produções criativas com a inserção de novos agentes e registros do turismo dotando-as de novos sentidos que favorecem uma ficção dimensional na paisagem local. O foco sobre os espaços festivos do catolicismo popular se dá na tentativa de reelaborar sua dinâmica em prol de um fluxo de contingências atuais, a fim de captar verbas e dimensionar a cidade em um capo econômico competitivo. Nesse ponto reside à construção, uma vez que o movimento que existia não era turismo, muito menos turismo religioso. Ao turismo interessa a romaria em espetáculo de imagens, interessa a novena com a atração de pessoas, a festa da padroeira como um arranjo midiático. Como colocam Bronsztein e Alves (2014) os megaeventos religiosos marcam presença em diferentes contextos sociais e geográficos disseminando imagens e transformando as celebrações em espetáculos a serem consumidos. É 236 por isso que as celebrações religiosas com maiores impactos são realizadas em estádios de futebol, nas principias avenidas, praças, espaços de grande visibilidade, transformando tais espaços em paisagens midiáticas (CANCLINI, 2008). A reconfiguração das paisagens locais inspiradas no espetáculo a partir da reelaboração para o turismo é fundamental não só do ponto de vista dos poderes públicos, para arrecadação de divisas e captação de turistas; mas, também se constitui como uma forma do catolicismo se reciclar, se repor, se reconfigurar diante do campo de disputa do mercado religioso, onde ano após ano a instituição, como apontam os dados, vem perdendo fiéis. 5.2 O ESPETÁCULO DA FESTA NO TURISMO RELIGIOSO O Estado “desempenha um papel controlador” do turismo e sua ação deve ser exercida por meio de uma política setorial, entendida “como um curso de ação calculado para alcançar objetivos”, detalhada pelos programas constantes dos processos de planejamento estratégico (BENI, 2006, p. 109). Essa realidade é a que está sendo posta em ação com o PRT desde que o mesmo está em operação. Nele as festas religiosas do catolicismo popular ganham expressividade. No Estado do Rio Grande do Norte começam a fazer parte das visualidades que compõem um conjunto de imagens e se revelam como possibilidade de fomento à atividade turística. Além dos comportamentos e das experiências religiosas vividas pelos indivíduos em suas relações societais, o turismo conforma certa totalidade que define o modus vivendi de uma determinada parcela da população integrada de maneira privilegiada à dinâmica de produção e demanda de bens simbólicos. Embora a motivação religiosa possa ser considerada como não turística, os efeitos de uma viagem com esse fim são iguais para o mercado já que são utilizados hotéis, agência de viagens, transportes, alimentação, movimentando essas e outras atividades econômicas ligadas à produção artesanal e industrial. Com as cidades buscando atender essa lógica inicia-se a construção do espetáculo, nele o “parecer” ganha destaque, simulando aquilo que não é. Passamos a viver num mundo mediado por imagens onde “o que era ‘vivido’ diretamente tornou-se representação” (DEBORD, 1997). Como parte da cultura o turismo na contemporaneidade condiciona práticas de consumos e de comportamentos análogos ao espetáculo175. Presente nas fotografias concentra seus condicionantes e consiste na operação do olhar e do pensamento quando capturados pela proliferação incontrolavel e ilimitada de imagens causando uma saturação. A saturação 175 A ideia do espetáculo tem uma raiz comum com a especulação na perspectiva construída por Debord (1997). 237 especula, pressupõe e incita ao mesmo tempo em que desfoca o sentido das imagem e indiferencia a hierarquia existente entre elas prejudicando a reflexão. Tudo pode e deve ser mostrado a qualquer momento e essa é a sociedade onde ser é ser percebido, ou seja, o que não está exposto em uma imagem parece não existir para o mundo. Essa exposição nos dias atuais invade até mesmo a esfera privada, quiçá se estamos tratando de algo público como as paisagens inseridas em um ambiente de competição onde se constrói a necessidade de um grau elevado de visibilidade perante os demais. O que vale é alimentar constantemente uma boa imagem para se manter ativo no mercado, na sociedade do consumo (BAUMAN, 2008). Nesses termos, a ideia central de Debord (1997) é operacional porque a imagem não significa apenas a imagem fotográfica, ela é também um estado de atividade no vazio, portanto, da passividade em frente a imagem, uma vez que há a obrigatoriedade de tudo mostrar de tudo expor, a ideia da exposição de tudo é balizada por esse autor na interpretação da sociedade do segredo generalizado. Nessa concepção, quando mais mostra-se, quanto mais expõe-se, mais não sabe-se aonde se aloja o segredo. Sendo assim, menos compreende-se da onde vem e para onde vai o que se quer expor. Os mecanismos que alimentam e perpetuam os símbolos presentes na imagem ancoram-se na passividade, encontram terreno fertil para propagação na impossibilidade de se refletir criticamente no excesso de informção e de espetáculo. No livro intitulado “A sociedade do espetáculo” o autor Debord (1997, p. 17) garante que as condições de produção moderna se apresentam aos indivíduos enquanto um espetáculo porque o vivido é substituído pelo percebido em forma de representação. No turismo a representação, em grande medida, surge como um espetáculo, aliás, tem o espetáculo como imperioso para sua publicidade e difusão. Nessa atividade “o que aparece é bom, o que é bom aparece”; exposição tática para se pensar a dinâmica do turismo cada vez mais diversificada, abrangente e conectada a tantos e complexos modos de consumo. O turismo religioso, de modo geral, se difere de todos os outros segmentos do mercado turístico por ter como motivação fundamental a fé. De acordo com a Conferência Mundial de Roma, realizada no ano de 1960, o turismo religioso se traduz em uma atividade que movimenta peregrinos em viagens de fé ou de devoção a algum santo. Na prática, são viagens destinadas a locais considerados como sagrados, a congressos e seminários religiosos, a festividades religiosas celebradas periodicamente, a espetáculos e a apresentações teatrais de cunho religioso. Esses passeios turísticos estão correlacionados, majoritariamente, ao calendário e acontecimentos religiosos das localidades receptoras dos fluxos turísticos. Inseridos nas atividades de cunho turístico, os eventos perdem algumas características essenciais e passam a figurar como espetáculos atrativos para os distintos visitantes, romeiros e turistas. Tornam-se 238 espetáculos de forte apelo econômico, com intervenções políticas promovidas pelo Estado, prefeituras e iniciativas privadas, cujos objetivos se pautam na promoção e incentivos à “preservação” e divulgação das práticas religiosas tradicionais (ALVES, 2013). A religiosidade expressa nas festividades aos santos padroeiros por meio das procissões, novenas e outros eventos que incluem uma imagética composta por momentos religiosos e profanos, entra no roll dos interesses dos agentes de turismo e colocam os espaços que a suportam em posição privilegiada para o desenvolvimento da atividade. Os eventos festivos religiosos passam a ser adequados ao seguimento do turismo religioso; nesse segmento as festas, principalmente as de santos padroeiros, são retrabalhadas e entram como parte dos roteiros de viagem. Conforme, Lefebvre (2001, p.56), na cidade que os monumentos e as festas têm seu sentido forjado, as festas engendradas com o turismo transformam-se em espetáculo que se apresenta como a própria sociedade, como seu instrumento global. Assim, emergem um conjunto de imagens que passam a mediar as relações sociais em que os indivíduos muitas vezes partem do conformismo (DEBORD, 1997), nela a cultura é espetáculo e o espetáculo é a cultura - elementos interligados e indissoluvelmente conectados a economia; desembocando na própria naturalização e fechamento das concepções manifestas, que se tornam passíveis de abertura no momento em que os sujeitos tornam-se agentes. Nas palavras de Debord (1997, p.14): O espetáculo não é um conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas, mediztizada por imagens. O espetáculo, compreendido na sua totalidade, é ao mesmo tempo o resultado e o projeto do modo de produção existente. Ele não é um suplemento ao mundo real, a sua decoração readicionada. É o coração da irrealidade da sociedade real. Sob todas as suas formas particulares, informação ou propaganda, publicidade ou consumo direto de divertimentos, o espetáculo constitui o modelo presente da vida socialmente dominante. Ele é a afirmação onipresente da escolha já feita na produção, e o seu corolário o consumo. Forma e conteúdo do espetáculo são, identicamente, a justificação total das condições e dos fins do sistema existente. O espetáculo é também a presença permanente desta justificação, enquanto ocupação da parte principal do tempo vivido fora da produção moderna. A manifestação espetacular da sociedade é o projeto e resultado do modo de produção existente. Nas sociedades onde reinam as modernas condições de produção a vida se apresenta como uma imensa acumulação de espetáculos, onde tudo que era vivido diretamente vira representação. O espetáculo torna-se o modelo atual da vida dominante na sociedade, sendo propagado por meio da publicidade, induzindo o consumo de divertimento (DEBORD, 1997). Nesse ínterim entram as festas ornamentadas para atender uma demanda turística; festas que nem sempre se constituíram em espetáculos da fé. As pesquisas sobre festas religiosas no Brasil datam do final do século XIX, com forte influência da ideia da cultura popular com suas bases no romantismo, incentivando estudos dos 239 costumes e das culturas por meio dos viajantes, memorialistas, literatos e folcloristas176. Articuladas em teorias e métodos distintos as pesquisas desenvolvidas, principalmente após a segunda metade do século XX, enriqueceram os debates sobre os festejos177. Seja na perspectiva tal como pensada por Durkheim (1996) ou Mauss (2009), que coloca em destaque as funções integradoras das estruturas sociais; as que partem do mito das origens (ELIADE, 1977); as que se baseiam no processo ritual (TURNER, 1969); ou os que pensam as festas como produtoras e formadoras de códigos sociais (GEERTZ, 1989); ou como quebra da rotina (CALLOIS, 1988), além dos que analisam os rituais festivos pela ótica da subversão, da transgressão, da ruptura com o establishment e a transformação na vida social (DUVIGNAUD, 1983). Ou, mais recentemente, como propõe Albuquerque Júnior (2011) em seu artigo Festas para que te quero e Alves (2013a) em Festas Religiosas e Políticas de Turismo pensá-las como espaço de negociações, tensões, conflitos, alianças e disputas em torno das práticas que as constituirão, estabelecendo seus limites e fronteiras. É nessa linha de pensamento que a categoria ou segmento do “turismo religioso” alia- se ao consumo de bens simbólicos e se pauta na perspectiva do desenvolvimento regional e local abarcando as festas religiosas. É um empreendimento político, mas também, religioso que se retroalimenta no fomento das paisagens das cidades em que se sobrepõem. As festas religiosas enquanto expressão cultural marcam momentos de ritualização de uma intervenção divina requalificada na memória coletiva. A narrativa sobre o mito de origem e a consequente constituição do local sagrado desempenha um papel fulcral no processo de institucionalização da fé (ALVES, 2013a). A Igreja Católica mantém estreita relação com o sistema turístico a fim de adquirir benefícios auferidos para a conservação dos seus templos, assim como vê a oportunidade de difundir sua doutrina. Muitos roteiros são realizados e organizados pela própria instituição católica, constituindo-se, além de terreno fértil “para a dinamização, dilatação e transformação da nova forma e estrutura cristã” (PASTORAL DO TURISMO,1782009, p. 17), uma importante 176 Dentre eles citamos os estudos de Morais Filho (1888), intitulado “Festas e Tradições populares do Brasil”, que serviu de referência para autores como Vieira Fazenda, Luiz Edmundo e Gilberto Freyre. Melhores informações consultar a reedição: MORAIS FILHO, Melo. Festas e Tradições Populares do Brasil. Brasília- DF: Senado Federal, 2002. 177 Ver: PEREIRA DE QUEIROZ, M. Isaura. O messianismo no Brasil e no mundo. [S.l.]: Dominus, 1965; VAINFAS, Ronaldo. Da festa tupinambá ao sabá tropical: a catequese pelo avesso. In: JANCSON, István; KANTOR, Íris (orgs.). Festa: cultura e sociabilidade na América Portuguesa. São Paulo: Hucitec; Edusp; FAPESP; Imprensa Oficial, 2001; PRIORE, Mary Del. Festas e utopias no Brasil colonial. São Paulo: Brasiliense, 1994; PEREIRA, Mabel Salgado; CAMURÇA, Marcelo Ayres (orgs.). Festa e Religião: imaginário e sociedade em Minas Gerais. Juiz de Fora-MG: Templo Editora, 2003. 178 De acordo com a concepção da Igreja Católica a Pastoral do Turismo é uma instituição que visa realizar um conjunto de ações em nome da fé católica; visa evangelizar com novos métodos as pessoas envolvidas na prática 240 fonte de rendas. Nesses roteiros o espaço é espetacularizado e unificado, formando “um processo extensivo e intensivo de banalização” (DEBORD, 1997, p. 130). O turismo reflete bem este quadro, como subproduto da circulação de mercadorias a circulação humana resume- se fundamentalmente no lazer de ir ver o que se tornou banal. Com efeito, essas festas do catolicismo popular expressam vivências, histórias e mitos presentes no imaginário coletivo. Promovidas por festeiros, leigos, fieis, políticos, patrocinadores e “especialistas”, elas vêm sendo institucionalizadas enquanto patrimônio identificador dos locais na medida em que se nutrem de específicos aspectos imersos em uma pluralidade cultural e de valores inseridos em habitus179 “ancorados na socieogênese”180 do campo religioso brasileiro (SANCHIS, 2011). Para além dos dias consagrados aos santos padroeiros, as paisagens visíveis no período festivo – uma vez que não se limitam apenas ao calendário de eventos, mas desenrolam-se durante todo o ano num movimento contínuo de trocas e adesões – são estruturadas por diferentes manifestações em práticas e existências concomitantes à vida cotidiana. O Ministério do Turismo (2017) afirma em seu site181 que todos os anos o turismo religioso movimenta milhões de viajantes no Brasil. Nesse ínterim a cultura aparece como o pilar do turismo religioso e o turismo religioso com suas festas populares como um dos sustentáculos para o desenvolvimento do turismo no Brasil. As festas assumem tal importância uma vez que dos 880 eventos cadastrados no Calendário Nacional de Eventos Festivos em 2016, 149 eram relacionados às celebrações religiosas. De acordo com a Pasta, mais de 17,7 milhões de fiéis fizeram turismo religioso no Brasil em 2014182. A mercadoria incorporou a cultura como mais um de seus produtos na sociedade do espetáculo. Sendo esfera geral do conhecimento e das representações do vivido, a cultura ganha independência e inicia um movimento imperialista de enriquecimento declinando com a sua liberdade e autonomia. A cultura tornou-se a mercadoria vedete na sociedade espetacular (DEBORD, 1997). do turismo, tanto aquelas que se deslocam pelos mais variados motivos como as que estão envolvidas em todo processo. Ainda, afirma ter como propósito central “suscitar aquelas condições excelentes que ajudam o cristão a viver a realidade do turismo como momento de graça e de salvação” (PASTORAL DO TURISMO, 2009, p. 18). 179 [...] Sistema de disposições duráveis e transponíveis que, integrando todas as experiências passadas, funciona a cada momento como uma matriz de percepções, de apreciações e de ações – e torna possível a realização de tarefas infinitamente diferenciadas, graças às transferências analógicas de esquemas [...] (BOURDIEU, 1983 p. 65) 180 Termo trabalhado por Gilberto Freyre em Casa-Grande & Senzala (1989) ao reportar o momento genético da sociedade brasileira, no período colonial, com miscigenação do povo brasileiro, formadora da “cultura brasileira”. 181 Disponível em: < http://www.turismo.gov.br/>. Acesso em: < http://www.turismo.gov.br/>. Acesso em: 04 jun. 2017. 182 Informação disponível em: . Acesso em 10 out. 2017. 241 Antes mesmo do turismo ter sua pasta exclusiva no Estado brasileiro, quando ainda estava atrelado aos esportes, as festas religiosas do catolicismo já faziam parte do seu arsenal de produtos. No ano de 2000, a EMBRATUR, com apoio da Arquidiocese da cidade do Rio de Janeiro, demarcava 50 destinos turísticos religiosos no Brasil. A justificava era a de que esses eventos eram um dos principais motivadores de viagens no país, logo, consolida-se um catálogo oficial denominado por “Roteiros da Fé Católica”183. Nas palavras do Ministro do Esporte “estaremos criando empregos, melhorando a renda das pessoas e cidades que tem na fé seu potencial turístico [...] ao mesmo tempo estamos preservando fração significativa da nossa herança cultural e de nossa fé (JORNAL DO BRASIL, 2000, p. 44). A proposta institucionalizou o calendário festivo do catolicismo popular em âmbito nacional, com foco nos padroeiros das capitai; como listados em “Os caminhos da Fé”: Festas Religiosas da Igreja Católica: ACRE (AC) - São Sebastião do Xapuri; ALAGOAS (AL) – Bom Jesus dos Navegantes; AMAZONAS (AM) – Santo Antônio do Borba; AMAPÁ (AP) – São Tiago; BAHIA (BA) – Nossa Senhoras da Conceição da Praia; CEARÁ (CE) – Padre Cícero; DISTRITO FEDERAL (DF) – Divino Espírito Santo; ESPÍRITO SANTO(ES) - Convento da Nossa senhora da Penha; GOIÁS (GO) – Procissão do Fogaréu; MARANHÃO (MA) – São José do Ribamar; MATO GROSSO (MT) – São Benedito; MATO GROSSO DO SUL (MS) – São João do Corumbá; MINGAS GERAIS (MG) – Semana Santa, Bom Jesus de Matosinhos; PARÁ (PA) – Círio de Nazaré; PARANÁ (PR) – Swieconka; PARAÍBA (PB) – São João; PERNAMBUCO (PE) – Nosso Senhor Salvador do Mundo; PIAUÍ (PI) – São Pedro; RIO DE JANEIRO (RJ) – São Sebastião, Divino Espírito Santo; RIO GRANDE DO NORTE (RN) – Nossa Senhora dos Navegantes; RIO GRANDE DO SUL(RS) – Nossa Senhora dos Navegantes; RONDÔNIA (RO) – São Francisco; RORAIMA (RR) – Paixão de Cristo; SANTA CATARINA (SC) – Madre Paulina; SÃO PAULO (SP) – Nossa Senhora Aparecida; SERGIPE (SE) – Nossa Senhora do Carmo; TOCANTINS (TO) – Nossa Senhora da Natividade (JORNAL DO BRASIL, 2000, p. 40). As festividades religiosas do catolicismo popular vão sendo promulgadas de acordo com os padroeiros referentes aos lugares, com datas móveis e fixas. A relação desses eventos é dada 183 Ver: MELLES, Carlos (Ministro do Esporte e Turismo). A fé no turismo. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 10 de setembro 2000. Revista: Roteiros da Fé, p. 44. 242 em nível local, regional e nacional, em alguns momentos intercomunicando-se nessas diferentes escalas, como, por exemplo, o caso da festa do Divino Espírito Santo que realiza-se em todos os Estados em um único período. Agregam-se aos padroeiros outras festividades como o Natal, a Semana Santa e o Carnaval, que inclusive são festejos que se organizam através de um ciclo de eventos. A seguir (Figura 28) será apresentado o mapa elaborado a partir do modelo disponibilizado no Jornal do Brasil, com as imagens representativas dos padroeiros e a sigla dos respectivos Estados ao qual pertencem: Figura 28- Mapa das festas católicas no Brasil Fonte: Mapa elaborado a partir dos Roteiros da Fé no Brasil (Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 20 set., 2000, p. 40) A elaboração e institucionalização desse calendário foi um marco, contudo, as festividades continuam, em sua maioria, resumidas ao público de fieis já frequentadores desses eventos. A questão turística e o impulsionamento desses eventos ainda são bem pontuais, tendo como os principais roteiros: a Basílica de Nossa Senhora Aparecida, na cidade de Aparecida, o 243 maior santuário brasileiro, com espaço para receber 75 mil pessoas; a festa do Círio de Nazaré que acontece em Belém do Pará, considerada pelos seus organizadores como uma das festividades que mais atraem fiéis em âmbito mundial, uma média de dois milhões de pessoas (PASTORAL DO TURISMO, 2009); a romaria em devoção ao Padre Cícero que acontece no Juazeiro do Norte, Estado do Ceará, está entre as que reúnem um contingente significativo de pessoas; em Nova Trento, Estado de Santa Catarina, localiza-se o Santuário da Madre Paulina, ambiente que atrai em torno da peregrinação, após beatificado passou a receber uma média de duas mil pessoas para a sua principal peregrinação; por fim, outro espaço que atrai milhares de pessoas é a cidade do Brejo da Madre de Deus, no Estado de Pernambuco, o ambiente transforma sua paisagem para se reverter em teatro ao ar livre, recebendo cerca de 500 atores que encenam da paixão de cristo em 8 dias de apresentação (DIAS, 2003). Mesmo com a Igreja já mantendo uma Pastoral do Turismo e fazendo parte de roteiros no Brasil, a organização do MTUR foi estratégica para o segmento. A visibilidade das paisagens concatenadas aos eventos festivos do catolicismo popular se ampliou, lugares de menor significância tiveram a oportunidade de planejar e organizar melhor as festividades para atuarem em termos de turismo. Essa possibilidade reside no incentivo à implementação da regionalização, interiorização e segmentação da atividade turística, apoiada pelas políticas públicas do MTUR. Sobretudo, com a proposta de diversificação de roteiros para a oferta turística e com o lançamento do Programa de Regionalização do Turismo no ano de 2004 (BRASIL, 2004). Composto por novenas, quermesses, procissões, cavalgadas, leilões, missas e shows artísticos - entre outros tipos de celebrações relevantes para a intensificação das economias locais-, os debates em torno do turismo passam a fazer parte da agenda de governantes entre outros envolvidos com a atividade. Na 2ª edição do Fórum Nacional de Turismo Religioso realizado na cidade de Natal/RN, promovido pela PRODEVTUR-(Produtora e Promotora de Eventos e Turismo Religioso), foi organizado pela empresa Ideias Eventos184, evento que ocorreu entre os dias 18 e 19 de agosto de 2016, no auditório do SEBRAE tendo como idealizador o promotor do evento, Manoel Sidnésio; foi colocado a importância de fortalecer e pontuar o Turismo Religioso nas várias regiões do país como fonte de desenvolvimento econômico e cultural. Visava, ainda mais, sensibilizar os participantes da cidade do Natal e do 184 O evento contou com a apoio da Prefeitura de natal, a Emproturn, UERN (Universidade do Estado do Rio Grande do Norte), UFRN (Universidade Federal do Rio grande do Norte), agência Viagens de Fé, Massas Jucurutu, Bar e Restaurante Casa do Matuto e da casa de show Forró com turista 244 Estado do Rio Grande do Norte. O jornalista do Turismo religioso de São Paulo, Amadeu Castanho185, coloca que: Hoje é um dos segmentos mais mencionados nas mídias e redes sociais atualmente. O segmento tem ganhado proporções que merecem uma atenção cuidadosa e uma preparação melhor daqueles que atuam e promovem romarias. Podemos então dizer que o segmento no país tem seu ponto principal invisível no Santuário Nacional de Aparecida, onde recebe anualmente um pouco mais de 12 milhões de pessoas. O ministério do turismo, juntamente com o ministério do trabalho, em uma pesquisa realizada no ano de 2014, divulgou que o turismo religioso deixa no país anualmente o valor de 15 bilhões de reais. Conforme o ministério do turismo, um público aproximado de 17,7 milhões de pessoas buscam esse tipo de segmento durante o ano. Pesquisas preliminares realizadas onde nós realizamos, com oito destinos, entre Aparecida e Juazeiro, Canção Nova, Cachoeira Paulista, Belém do Pará, Santa Cruz, Nova Trento, Trindade e o estado do Paraná, encontramos em torno de 25,5 milhões por ano. Claro que neste caso incluímos todo o estado do Paraná, que hoje tem um fluxo de 7,2 milhões por ano (informações fornecidas através da própria ANATUR). Segundo o relatório de tendências de 2015, o turismo religioso brasileiro se destaca como um dos maiores do setor e aponta para o crescimento deste mercado (Castanho, 2016, informação verbal)186. Paulatinamente esses eventos vão sendo inseridos nos roteiros turísticos motivando uma série de movimentos e transformações nos espaços. No Brasil os números recentes sobre essa realidade são um pouco divergentes. Em relação ao número de turistas religiosos analisamos os dados mais frequentes em artigos científicos e órgãos oficiais do tema, convergem em torno de dezoito milhões de brasileiros, porém há dados muitos concretos em relação às quais festividades que reúnem esses turistas e como percentualmente eles são divididos. Das festas do catolicismo popular interligadas ao turismo, listamos nos Gráficos a seguir as festas de maior relevância em território nacional, como se dividem em captação de pessoas e sua importância entre outros segmentos do turismo: 185 Amadeu castanho é editor chefe no site viagens de fé. Mais informações ver . 186 Notícia fornecida, com gravada para esta pesquisa, pelo jornalista de turismo religioso Amadeu Castanho em palestra nacional sobre o turismo que religioso, realizada na cidade de Natal, no auditório do Sebrae, no dia 18 de agosto. O evento teve a participação do presidente da ABAV-PR, Pedro Kempe; do secretário de Turismo de Nova Trento (SC), Eluisio Voltolini; o presidente da Associação de Guias do Circuito Turístico religioso de Aparecida (SP) e do coordenador da Romaria dos Profissionais de Turismo, João Gilberto Oliveira. Foram inscritos 168 participantes. Entre os secretários de turismo do estado do RN, apenas dois dos secretários inscritos apareceram, entra eles a secretária de turismo da cidade de Santa Cruz e de Patu; estava ainda entre o publico presente estavam padres, representantes de outros segmentos religiosos, como mulçumanos, evangélicos e espíritas; professores, técnicos de guias de turismo e estudantes. 245 Gráfico 2- Movimento do Turismo Religioso no Brasil Fonte: Elaboração própria. Gráfico 3- Municípios com expressão da Religiosidade e com Eventos Religiosos Fonte: Elaboração própria. 246 Gráfico 4- Turismo Religioso Fonte: Elaboração própria. De uma maneira geral, os participantes do Turismo Religioso são motivados pela fé, pelas manifestações religiosas, pela paisagem arquitetônica de igrejas, santuários, monumentos, museus sacros, entre outras possibilidades. Uma vez que o peregrino turista é a pessoa que vai ao encontro do local sagrado ou do seu líder religioso para cumprir uma promessa, um voto ou manifestar sua adesão ou confirmação a uma determinada fé, esse se desloca sob a motivação religiosa; em locais de interesses religiosos que podem ser combinados com locais para o turismo e lazer, descanso, visitas culturais, estudos, aperfeiçoamento profissional, oportunidades de participar da gastronomia ou de alguma oferta local colaborando nesse aspecto com a economia local. Mesmo indispensáveis ao turismo e ao próprio movimento de visitantes o conjunto que envolve essa infraestrutura, incluindo os diferentes serviços prestados, nem sempre é interpretado com bons olhos pelos fiéis, como traduz o estudioso Steil (2003, p.36-37): “a retirada da centralidade e da profundidade do ato religioso é nocivo frente às ações dispersivas e superficiais do turismo”. Concepção que não concordamos, uma vez que o cenário que envolve os deslocamentos nos dias atuais, diante das suas diferentes motivações, não necessariamente encontra no turismo a sua dispersão; mas o seu fomento. Caso que vem ocorrendo na instituição católica, fé de maior dimensão no mercado do turismo religioso 247 nacional que com a redução do número de seus fiéis tem encontrado no turismo, com o apoio do Estado, um instrumento estratégico de ampliação da sua visualidade; isso se dá com a produção do espaço em prol dos seus símbolos; com a emergência de novas paisagens que estimulam a religião; com a monumentalização dos seus ícones sagrados; ainda, com a possibilidade de concentrar nos locais milhares de indivíduos da sua fé e até de outros credos, a partir de toda uma mobilização impulsionada em prol de um espetáculo religioso, em grande parte, promovido pelo poder público. O que ao contrário de dispersar, aglomera ao mesmo tempo em que promove a expansão da fé. Sobre os gráficos apresentados anteriormente, algumas considerações são muito pertinentes e relevantes para a área do turismo, da religião e da sociologia, principalmente enquanto um campo de estudo empírico. Procuramos apontar de acordo com esses gráficos algumas informações que merecem reflexão, as quais são consideradas como relevantes para pensar como se dá a produção dos discursos no Brasil. A primeira informação que pode ser extraída através das análises dos gráficos está contida na axiologia e na epistemologia da ciência na qual essa tese abrange. É a do senso comum arraigado à religião e a falsa ideologização do imaginário popular brasileiro, em especial sobre a região Nordeste do Brasil, a qual traz um dos menores volumes de turistas religiosos no país. Entretanto, essa Região é pré-determinada em diversos discursos por ser dotada de um aspecto atemporal, místico, ortodoxo e de religiosidade católica expressiva. A concepção de local atrasado por ser perpetuador do catolicismo popular subscreve a “nordestinice”187; todavia, em um olhar mais abrangente acaba por se mostrar como uma mitologia no sentido barthesiano. Ou, a “feira dos mitos” que envolve a região, como reclama Albuquerque Júnior (2013, p.31) ao sustentar que os significantes identificadores da região resistem por meio da “plasticidade” que os cinge; da abrangência da sua “elasticidade”; do “pouco rigor” que o envolve; mais, principalmente, pela sua capacidade de ser “funcional” em “muitas situações e contextos”. Uma das principais características do Brasil é a heterogeneidade, herdada do projeto de construção da identidade nacional, quem vem na esteira da ideia da mestiçagem, contemplada na raça, economia, cor e credo. Porém sobre esse último, engatado pelo turismo religioso, afirma-se extremamente homogêneo e pouco receptivo ao chamado sincretismo religioso brasileiro, pois 100% do mapa religioso do Brasil é Cristão Católico, excluindo-se qualquer 187 Ver em Albuquerque Júnior (2012, p. 32), termo utilizado pelo autor em alusão aos neologismos que surgem como elementos importantes na caracterização do discurso mítico, como bem observado por Roland Barthes (2003). 248 outra possibilidade de pensar a religião e mesmo contrariando o ideal de Estado Laico, postulado na nossa Constituição de 1988, chamada de Constituição Cidadã. O que em termos de democracia e, inclusive, criatividade é bastante limitado. Percebe-se que Debord (1997) estava certo ao afirmar que em nosso tempo há uma preferência da imagem a coisa real, da representação a realidade, da aparência ao ser. Como se configura o Gráfico 1, dos 17,7 milhões de turistas religiosos do Brasil, mais da metade deles se concentra num único local: Aparecida do Norte no Estado de São Paulo - região sudeste do Brasil- que destaca-se por ser a Padroeira do Brasil, não por ser um evento específico como o Círio de Nazaré em Belém do Pará, região norte do Brasil, segundo maior evento religioso do país. Em comparação de grandezas entre as duas maiores mobilizações do turismo religioso nacional, como pode ser observado no Gráfico 1, percebemos que o turismo em Aparecida do Norte atrai o quíntuplo de indivíduos quando comparado ao segundo lugar, que é o Círio de Nazaré, o que já indica uma redução significativa em termos de visitação. O Nordeste aparece apenas na terceira posição das cinco regiões do Brasil, com o monumento do Padre Cícero no Ceará, os outros Estados da região, incluindo o Rio Grande do Norte, não são sequer cogitados em nível nacional e menos ainda Internacional. Isso não quer dizer que os pequenos municípios do Brasil não possuam religiosidade, muito pelo contrário, estudos comprovam que há muitos micro eventos religiosos que contemplam apenas os locais e adjacências, longe de números que gerem alguma significância em termos turísticos, ou seja, que incluem hotelaria, transporte, alimentação, outros. Essa informação vai ao encontro do Gráfico 2, demonstrando que há poucos municípios com calendários relevantes para o turismo religioso nacional. No Gráfico 3, por sua vez, fica explicito que existem resistências sobre a grande importância do Turismo Religioso e das necessidades das parcerias públicas, privadas, pois esse turismo representa apenas 3% das possibilidades do turismo no Brasil. O Turismo Religioso deveria refletir em conjunto com práticas sustentáveis, economicamente viáveis, socialmente justas e ambientalmente adequadas. Todos são consumidores de bens e serviços do núcleo receptor, adaptando-se à renda de cada um e à capacidade de consumir durante a estadia. Os visitantes do turismo religioso, se comparado com outras formas de turismo, não são consumidores destacados no comércio local, até porque em sua maioria são excursionistas. Suas visitas são relacionadas com fatores e interesses específicos. Entretanto, contribuem na geração de emprego e renda do sistema de acolhimento quando a infraestrutura local funciona com regularidade. 249 Os locais com valores espirituais, templos religiosos (incluindo catedrais, igrejas, etc.) também são atrativos turísticos. Na realidade, o Turismo Religioso está cada vez mais presente no mundo contemporâneo influenciado pela globalização econômica, os avanços tecnológicos, desregulamentações dos mercados e da sustentabilidade ambiental. O Turismo Religioso está relacionado a todo um processo de deslocamento turístico de âmbito global que vem junto com os elementos citados, desenvolvido antes na Europa central estende suas raias aos diferentes espaços atravessado pelo discurso do social, da cidadania e democracia. Todavia, as metas que pretende alcançar em proveito da pluralidade dependem de como esse turismo é inserido nos espaços. O modo como é projetado pode contribuir na melhoria e divulgação da localidade do destino turístico, podendo ampliar o fluxo de visitantes; motivar a valorização do local diante do global, dar condições de reduzir as desigualdades, mesmo às cidades mais afastadas dos grandes centros tem condições de adquirir benefícios com essa atividade uma vez que são ligados ao dinamismo e aos processos das grandes cidades. Essa estratégia dependerá do modo como ele é realizado, do que se escolhe priorizar e em benefício de quem. Ou seja, no turismo religioso deve-se questionar como as diferentes religiões também podem ser inseridas, como podem ser englobadas nesse movimento as diferentes realidades, não só se pensar no privilégio e manutenção de poderes hegemônicos, esse é o tipo de abertura que auxilia, até mesmo, na desconstrução de preconceitos. É ainda pertinente colocar que os dados sobre o turismo religioso são encontrados em materiais da Pastoral do Turismo, em jornais de circulação nacional, em matérias publicadas no site do Ministério do Turismo elencados a coluna últimas notícias- onde a última matéria envolvendo o tema foi de 12 de janeiro de 2015, sobre a alta das viagens motivadas pelo segmento. Todavia, ao procurarmos os dados específicos sobre esses eventos, número de visitantes, municípios em que ocorrem, não conseguimos encontrar. Nenhum dado sobre o turismo religioso estava disponível para consulta. Mesmo havendo no site do MTUR um link específico para o turismo religioso não existem informações precisas, estudos e análises sobre essa perspectiva. Mesmo os “roteiros da fé”, implementado pela EMBRATUR não estão contemplados na página do Ministério de Turismo. Não há caracterização dos eventos médios e nem das pequenas festas. Mesmo com o projeto de interiorização, não há firmado ainda um pensamento entre os agentes de turismo em âmbito municipal e estadual para tal segmento. Aqui fica claro que nem tudo o que é exposto é o que parece ser. O turismo religioso aparece assim como uma atividade em confluência com as diferentes relações desenvolvidas na sociedade contemporânea, muitas por meio do espetáculo, da saturação imagética que o desfoca, deixando longínquo o entendimento de suas relações. Entretanto, no momento em que 250 tem seu impulso direcionado por políticas de âmbito nacional e encontra no Estado seu grande motivador, o interesse é coletivo, suas redes devem englobar a todos. Principalmente quando os condicionamentos que o submetem atuam diretamente na esfera local impactando nas relações entre os indivíduos e seus espaços; valorizados enquanto paisagens do turismo. Os discursos envoltos pelo espetáculo constroem apenas expectativas que não se concretizam de modo mais amplo. A sociedade produziu o espetáculo, a especulação, e hoje é um dos seus principais objetos, ao mesmo tempo em que é sua organizadora, essa organização mantém em destaque muitas contradições, irrealidades que se fazem passar por realidades. Debord (1997) afirma que nessa lógica em que estamos imersos a realidade se inverte e é a verdade que passa a ser o momento do falso; uma vez que vivemos no falso generalizado, um falso que se faz passar por verdadeiro produz um mundo fetichizado, onde o sentido das coisas escapam permanentemente. 5.3 O OLHAR DE CANINDÉ SOARES E A PAISAGEM TURÍSTICA NORDESTINO- POTIGUAR 5.3.1 O nordeste-potiguar do litoral ao interior As próprias transformações ocorridas no mundo do trabalho fazem parte do discurso que tem no turismo o espetáculo; desde as que construíram o direito ao tempo livre, no qual o turismo é engenhoso na estruturação e organização do tempo para os gozos da vida; como no momento em que o trabalho se transforma a partir da flexibilização e fragmentação das suas relações. Nesse o turismo assume a forma de um gerador de empregos, formais ou informais, na corrente do empreendedorismo ou baseado na criatividade do indivíduo. São tempos intercruzados pela compreensão do turismo em torno da sua dialética trabalho/lazer, que projetam a atividade e constroem símbolos, imagens e paisagens - o que favorece novas subjetividades. A visualidade que adquire é intensa e encontra um grande apelo visual nas fotografias. Na paisagem nordestino-potiguar, Canindé Soares materializa e condensa na fotografia as novas formas mediadas pelas políticas públicas turismo, juntamente com outras interações sociais, em benefício a paisagem espetáculo. As principais ações políticas na esfera do Rio Grande do Norte, balizadas pela criação da SUTUR, SECTUR e da EMPROTURN, sinalizaram a importância da prática turística no cenário econômico local e começou a elaborar paisagens em termos de identidade local. A crise econômica vivenciada pelo país em 1980 colocou em nível estadual a atividade como triunfante 251 sobre a seca que desregulou as indústrias potiguares, produtoras de matérias-primas. Surgia, portanto, o turismo como um setor terciário forte, que redireciona o foco estatal apreendendo- o como uma atividade econômica promissora e possível em terras potiguares (DANTAS, 2007). Paisagísticamente o turismo passa a ser o contraponto da seca. Com apoio estatal para sua sustentação começava à corrida para munir e vender o turismo nordestino-potiguar, considerado possuidor de recursos naturais necessários, concomitante a outras identidades como a amabilidade potiguar, o que ratificava a ideia de vocação estadual para o turismo. Porém mesmo com esse discurso: O Rio Grande do Norte ainda ocupava, em meados da década de 1980, uma posição ripícola entre os principais destinos turísticos do Nordeste – Salvador e Porto Seguro (BA), Fortaleza (CE), Recife (PE) e Maceió (AL) – devido a fatores de deficiência em infra-estrutura turística, em destaque a de hospedagem, somado a inexistência de um marketing turístico estadual mais agressivo (CRUZ, 2002, p.81). Os esforços empreendidos na década de 1980 no turismo começaram a criar um rosto para as paisagens do espaço nordestino-potiguar. A política de mega projetos deu ênfase à visualidade do litoral urbano sul em detrimento do centro-sul, direcionando os incentivos iniciais para a produção do principal cartão-postal do estado, a grande duna da praia do bairro de Ponta Negra: o Morro do Careca. As décadas seguintes abraçaram como projetos educacionais e de qualificação profissional o marketing e a propaganda, os serviços e obras concernentes ao turismo através de parcerias público-privadas fortalecendo cada vez mais o discurso do turismo e legitimando-o. Há o estímulo imagético das paisagens do sol e mar em praticamente toda a região Nordeste, também, influenciada pelas mesmas políticas e incentivos, o que traz à tona a região do uso do tempo livre. Após esses primeiros empreendimentos e com o turismo fortalecido como atividade econômica viável e estratégica surgiram, em sequência, as ações mediadas pelo programa de captação de rendas PRODETUR I e II, com ênfase na redução dos desníveis econômicos inter- regionais, aplicando recursos e dotando de infraestruturas as áreas consideradas de expansão turística. Logo, organizado na esteira do MTUR, surgiu em 29 de abril de 2004, o PRT: Roteiros do Brasil188, parte dos macroprogramas do PNT (2003-2007); (2007-2010); (2013-2016)189. 188 No ano de 2013, com a atualização do programa, em sua terceira fase, o subtítulo Roteiros do Brasil foi retirado, uma vez que induzia o foco na execução de roteiros regionalizados, com centralidade no marketing e mercantilização. O que retirou a atenção para a regionalização social e sustentável: meta do governo federal. Para mais informações ver: Beni (2006); Nóbrega (2012); Lima (2017). 189 Para entender melhor o desenho institucional do Programa de Regionalização de Turismo e sua ação no estado do Rio Grande de Norte. Ver: Lima (2017). 252 Com ele foi concluída a divisão das cinco regiões turísticas no Rio Grande do Norte; a fim de se elaborar, com outras ações que fazem parte da plataforma do governo do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, um programa de cunho inclusivo, social e sustentável; com prioridade as circulações intranacionais - uma vez que é o turismo interno o maior gerador de renda. Unido a isso estava a necessidade de se olhar para o interior na busca de ampliar as conquistas econômicas e sociais da atividade. Nesse novo direcionamento as cidades próximas e integradas ao programa devem organizar a atividade através da gestão compartilhada, com a composição de espaços participativos em sua instância regional para “que a regionalização do turismo se dê de modo pleno”, o que requer se “envolver e abrir espaço para todas as instâncias públicas, privadas, terceiro setor, para o coletivo e para o individual” (BRASIL, 2007b, p. 31). Fundado nessas bases o PRT possui uma rede de incentivos e intervenções para o seu exercício ocorrer em termos práticos, como por exemplo, um conjunto com 13 cadernos que abordam temáticas diferenciadas englobadas a partir de conceitos, princípios, orientações e atuações para a materialização do PRT. Esse projeto tem como ponto comum a caracterização e reforço da identidade regional. Seja para a intervenção de estratégias, de sensibilizações, mobilização entre agentes, institucionalização de planos e ações ou promoções e apoios, a identidade regional se constitui em uma marca presente que dá o movimento aos distintos temas. Sem a marca, sem a identidade para compor o espaço, o turismo não ocorre. Entre os cadernos citados existe um específico que trata do tema: o da Roteirização Turística. Nesse caderno é evidenciada a constituição de roteiros turísticos como parte de um processo de identificação, organização e integração de atrativos, serviços e infraestruturas de apoio ao turismo. A ideia de roteiros no turismo é caracterizada por um caminho construído a partir da definição de um ou mais elementos que conferem identidade ao espaço para fins de promoção e comercialização turística. O roteiro está ancorado na ideia de rota turística; um percurso continuado construído a partir de uma identidade elaborada para o turismo ou mesmo por intermédio de uma identidade já pré-existente que é reforçada para fins de utilização turística. O conceito de roteirizarão em toda a primeira década de efetivação do PRT tem sido confundido com a ideia de regionalização sustentável do turismo, o que trouxe alguns problemas para a compreensão da organização de um trabalho conjunto e cooperativo entre os agentes do turismo. Tanto Beni (2006) como Carneiro (2014) destacam a elaboração dos roteiros e do seu caráter mercadológico, inclusive, desvinculados das questões locais. O que realçou a nossa percepção para o papel do Marketing no fortalecimento ou na elaboração das identidades em desvantagem aos aspectos plurais e democráticos. 253 5.3.2 O Roteiro do Espetáculo Canindé Soares vem paripassu acompanhando e construindo em arquivos fotográficos as transformações espaciais do RN com a atividade turística, elaborando a visualidade das paisagens e acompanhando o projeto de interiorização. Pela terra, pelo mar e em tomadas aéreas as paisagens do Rio Grande do Norte é seu tema de destaque. As fotografias que circulam em seu site, nos folders, nas redes sociais, em panfletos de empresas aéreas e que fazem parte do acervo da EMPROTUR se configuram como um convite para se visitar o Estado. Hoje Canindé mantém em seu acervo um grande número de fotografias relacionadas ao turismo religioso. O fotógrafo está presente em feiras, congressos, roteiros turísticos, inaugurações de monumentos. Recentemente o governo do Estado, na figura da EMPROTUR, elaborou uma revista de bordo para ser distribuída entre clientes: A “THERAPY” – nesse periódico existe mais de 15 páginas de fotografias de Canindé e já estão incluídas as fotografias da interiorização do turismo. Nas palavras diretora de marketing EMPROTUR: O turismo hoje no interior do Estado é uma das nossas principais ações porque ela está extremamente vinculada ao que delimita e ao que impõe o programa RN sustentável190. E aonde nós estivermos, seja nacionalmente ou internacionalmente, estamos falando do Rio Grande do Norte, as pessoas não têm noção do que é o nome Rio Grande do Norte, as pessoas conhecem Natal, mas não esse nome: Rio Grande do Norte. Para alguns europeus ou mesmo para alguns brasileiros não é claro o que são esses outros municípios, realmente muitos europeus não conhecem o que é Rio Grande do Norte mas o nome Natal sempre escutaram falar e são para essas pessoas conhecerem o estado é que nós estamos lá trabalhando. Não estou nem falando necessariamente de todo o interior... Nesse lado o turismo religioso é um grande impulsionador do interior, existem muitas romarias para a Serra do Lima em Patú, inclusive, fazem parte dos materiais que a gente trabalha existe o santuário lá e existem romarias o ano inteiro. Mas eu sinto, que a gente começou a trabalhar o turismo religioso, quero dizer com essa imagem do turismo religioso para o Rio Grande do Norte a partir da Santa Rita de Cássia. Basicamente pela proximidade com Natal, é muito fácil você ter um turista hospedado aqui em Natal, você pegá-lo e fazer com ele um bate e volta lá em Santa Cruz. E os roteiros já existem, são vários roteiros, já existe esse receptivo191. A instituição na figura da sua representante entende que o turismo é uma grande possibilidade de desenvolvimento econômico para as cidades a partir das rendas que podem proporcionar as pessoas envolvidas. Entretanto, afirma que os projetos muitas vezes não seguem adiante, uma vez que quando se fala em cortar verbas a primeira instância a ser 190 RN Sustentável é o Projeto Integrado de Desenvolvimento Sustentável do Rio Grande do Norte, uma fonte de recursos que também pode ser utilizada pelo turismo a fim de implementar ações de interiorização 191 Entrevista com Diretora de Marketing da EMPROTUR, Tereza Suyane França, em 04 de março de 2017. Local: Centro de Convenções, Natal –RN. 254 envolvida é o turismo. Outra questão que a profissional percebe é o fato de o turismo do Rio Grande do Norte ainda não ter uma cara própria. Observamos a produção da necessidade de um rosto e não de muitos rostos, o que seria interessante em nossa perspectiva porque a aceitação da heterogeneidade reduz os estereótipos e pode favorecer, de modo inédito, novas formas de reconhecimento do Estado a partir das pluralidades locais. Um dado interessante sobre a realidade turística no Estado é relacionada às categorizações feitas pelo MTUR, elas corroboram o cenário percebido durante o período de quase um mês que empreendemos com viagens pelas regiões turísticas do Rio Grande d Norte e seus principais municípios. De acordo com a categorização do desempenho de economia do turismo no RN, oferecida pelo MTUR (2017), que inclui o local possuir infraestruturas adequadas; ter respostas em geração de rendas e emprego; acesso a informações sobre e turismo e a transparência dos dados; entrada e saída de turistas, coloca-se que: 53,33% dos municípios do Estado concentram-se na categoria D, ou seja, são considerados deficientes em relação aos quesitos especificados, sendo considerado deficiente para o turismo. Seguindo de 25,33% de municípios que tiveram todos os requisitos zerados, nesses não existe turismo e nem informações que possam dar qualquer direcionamento a essa atividade. 17, 33% são considerados regulares. Somente 2, 67% dos municípios está na categoria de bom e apenas 1,33% atingiram respostas positivas em todos os quesitos - o que não quer dizer que o local tem excelência no turismo, porém, que na média dos quesitos citados em relação ao fenômeno atendem os requisitos básicos citados. Em relação a capital do Estado do Rio Grande do Norte lançamos uma questão ao quesito informação. Em pesquisa na secretaria de turismo da capital, essa ainda nem possuía um plano de turismo, nem documentos básicos como um inventário turístico atualizado, além de outras informações que solicitamos e não foram repassadas. Outro problema que existe perceptível nas intenções de se organizar o turismo no estado é que tenta-se dar uma cara governamental as implementações efetivadas e não administrativas. Ou seja, em todo o governo o turismo aparece tendo que ter um perfil novo, um perfil do seu novo gestor público e dos seus novos objetivos. Não existe a marca da atividade no Rio Grande do Norte, nem uma delimitação efetiva dos seguimentos e dos agentes que se pretende envolver e colocar como beneficiários desse desenvolvimento. O turismo reestrutura-se de acordo com cada político eleito, o que ocorre também com as suas paisagens e com as visualidades. Nesse aspecto, a fotografia, dependendo do seu tipo de circulação, ajuda a construir, manter e fortificar as paisagens, ou seja, se constitui como uma estratégica para construir a subjetividade da experiência e da representação do Rio Grande do Norte. Nas palavras da Diretora de Marketing: 255 A fotografia é de extrema importância é inviável a nossa divulgação sem a imagem fotográfica, não é à toa que a todo instante nosso trabalho é com imagem e através dessa imagem a gente tenta causar uma primeira sensação, se não essa sensação, pelo mesmo essa expectativa de sensação. Aqui entra a importância das fotografias do Canindé Soares para o turismo religioso e para o turismo de modo geral. Sabe por quê? O Canindé Soares é a nossa principal fonte de imagens porque ele consegue apreender o que nós desejamos, eu o conheço e penso assim. Ele responde diante do que nós desejamos trabalhar em um plano de marketing, diante do que nós desejamos apresentar em termos da imagem de um destino aqui para o Rio Grande do Norte, a importância da fotografia dele para o turismo religioso é primordial. Independente do turismo religioso, a importância da fotografia dele pra tudo, pra qualquer tipo de turismo. Meu trabalho é o marketing e o olhar que ele escolhe, o ângulo, é o modo dele fazer a fotografia. Isso que é muito característico de cada profissional você consegue ver com potencialidade na fotografia do Canindé, você consegue ver características de Canindé em uma foto; mesmo que você não saiba que a foto é dele. Ele conseguiu essa identidade e é por isso que eu acredito que hoje ele é o profissional ou um dos profissionais mais renomados pra fotografia religiosa, a fotografia religiosa que ele faz tem um apelo, talvez por ele ser alguém do estado, não sei ao certo se ele é uma pessoa do Rio Grande do Norte. Eu acredito que é, mas, se não for ele tem um conhecimento muito forte do imaginário potiguar, do imaginário religioso, eu sinto com as fotos dele a gente consegue sentir mais familiaridade, isso pra mim é um ponto muito importante e totalmente diferente de quando você traz pessoas de outros lugares para visualizar um local da mesma forma que alguém local está visualizando. Isso é muito abstrato é uma relação muito abstrata na verdade, tem pessoas que não conseguem enxergar a diferença, mas, você para conquistar alguém tem que ter algumas prioridades no produto que você vai preparar. E é claro é melhor você preparar um produto que tenha efeito. E esse produto só consegue ser preparado por alguém que já tenha esse efeito dentro desse conhecimento local. Todas as nossas fotos, todos os nossos trabalhos são feitos com imagem de Canindé.192 A dinamização desse segmento acarreta novos resultados e insere novas paisagens, mas, em sua rede fortalece alguns mitos; sustenta as antigas identidades sincronizadas aos espaços já construídos. Situação que se materializa no turismo a partir dos roteiros criados, como as Rotas da Fé193: que além da visita a religiosidade potiguar inclui a cultura, o artesanato e a gastronomia. 192 Idem. 193 Roteiro elaborado pelo SEBRAE/RN em parceria com o a Secretaria de Turismo como proposta as agências que atuam no segmento do turismo religioso, no ano de 2013. 256 Figura 29- Rota da Fé Fonte: SEBRAE/RN. Nesse tipo de roteiro há o privilégio aos espaços festivos com motivos religiosos do catolicismo, a fim de fomentar o turismo no interior do Estado. Durante os períodos festivos, além dos costumeiros rituais como as novenas, missas, procissões, realizados concomitantes aos elementos profanos próprios das festividades, a exemplo das quermesses, leilões, alvoradas, vendas de artigos religiosos, novos atrativos são introduzidos nas paisagens: as representações teatrais, feiras de produtos artesanais, a presença “imprescindível” dos padres cantores e de bandas regionais, além dos encontros e seminários de cunho evangelizador. Cada região turística, de acordo com o calendário festivo do catolicismo, tem pelo menos um evento de proporção significativa em termos de concentração de pessoas que gira em torno do seu santo padroeiro. No quadro abaixo listamos, com base na pesquisa de campo os eventos de cada polo turístico de acordo com a maior captação de visitantes, sendo assim considerado de maior apelo ao turismo. 257 Quadro 3- Calendário Festivo CIDADE POLO FESTA RELIGIOSA PERÍODO DA FESTA SANTA CRUZ AGRESTE/TRAÍRI SANTA RITA 13 A 22 DE MAIO CAICÓ SERIDÓ SANT’ANA 22 DE JULHO A 02 DE AGOSTO PATÚ SERRANO NOSSA SENHORA DOS IMPOSSÍVEIS 11 A 21 DE NOVEMBRO MOSSORÓ COSTA BRANCA SANTA LUZIA 03 A 13 DE DEZEMBRO EXTREMOZ/ CANGUARETAMA COSTA DAS DUNAS OS MARTÍRES 11 A 21 DE NOVEMBRO Fonte: Elaborado pela autora a partir do calendário festivos dos municípios descritos. Essas são as festas religiosas do catolicismo popular que figuram nos discursos do Estado como atrativos turísticos. Em meio a um processo dialético determinado pelo contexto cultural e socioeconômico as festas são incorporadas em roteiros turísticos abandonando ou redefinindo rituais. Por outro lado, o setor turístico ao privilegiar a religião católica e determinados aspectos dessa cultura religiosa, provoca profundas mudanças no espaço, justificadas a partir da “necessidade” de ampliação e diversificação das paisagens que dão suporte a esses eventos, ainda, acabam por “legitimar” as construções de Santuários e Complexos Turísticos Religiosos implementados nas diversas regiões do estado do Rio Grande do Norte, cujo principal atrativo são as edificações de gigantescas estátuas relacionadas à crença em voga. Á exemplo, a construção da estátua de Santa Rita de Cássia, medindo 50 metros de altura, localizada na cidade de Santa Cruz (Polo Agreste/Trairí), onde foram realizadas viagens de campo para adquirir informações sobre os impactos socioeconômicos e políticos advindos da construção do Complexo Turístico Religioso Alto de Santa Rita. Hoje esse monumento serve como referência para demais polos turísticos, o que motivou a cidade de Mossoró (Polo Costa Branca) a também pensar em obra parecida para contemplar o turismo e a padroeira do município Santa Luzia. Se em outro momento, num passado não tão distante, as festas religiosas apresentavam- se como restritas a um grupo específico, composto por fiéis e festeiros locais, atualmente elas fazem parte dos programas governamentais, entram nos roteiros turísticos como mais um atrativo de forte apelo político e econômico. Se nesse outro momento os sentidos, ações e experiências se localizavam em uma esfera do vivido, hoje muito do que significa é organizado 258 na esfera do concebido. O percebido é, em grande medida, orientado pelo imaginário, onde está a grande eficácia da fotografia. Os roteiros turísticos assumem em seu percurso o âmbito do percebido e do vivido, posteriormente, exposto nas fotografias, incumbe-se do concebido no espetáculo. Nesse momento, o que é realidade e construção intercruzam-se intermediados pelo imaginário. Os espaços ganham luz, sombra e cor, as experiências são supervalorizadas e concentradas. Como ocorre nos roteiros enquadrados por Canindé Soares: nele o autor subtrai o contingente narrando a partir da sua metáfora (BENJAMIN, 2012). Já são Roteiros legitimados a mais de uma década o: “Conhecendo os santuários potiguares: com monsenhor Lucas” da agência de viagens Dandara Turismo e o “Roteiro Pedagógico” da agência JoaquimTur – Turismo e Eventos, ambos se organizam em torno do Turismo Religioso no Estado. São acompanhados pelo olhar especial do fotojornalista que em sua prática mostra a experiência desses eventos em luz e sombra, almeja que sua arte fique marcada e não seja efêmera nessa balburdia de imagem. A emoção enquadrada pela imagem fotográfica operacionaliza sentidos que transformam a percepção do real: quanto mais temporalmente distante do momento de registro, mais há a operacionalização do que se tem como real. Esse real está amparado no conceito do espetáculo atribuído pelo foco intenso em que se desdobram os mitos da religião, também, amarrados a um conjunto de referências em que se debatem as identidades agrilhoadas do nordestino- potiguar. O esquema elaborado e apresentado no Quadro 4 visa entrever essa percepção imagética: 259 Quadro 4- Esquema Metodológico Fonte: Elaboração própria a partir da leitura de Didi-huberman (2003; 2010; 2013a; 2013b; 2015a; 2015b). O esquema segue a metologia direcionada pelos modos de ver e ser olhado pela fotografia, tal como sugere Georges Didi-Huberman. Esse autor vem questionando sistemas de pensamentos traçados por intermédio de leituras que induzem ao fechamento das concepções passíveis de se vir a ter sobre o objeto. Com essa finalidade o estudioso reanima conceitos já pouco operacionais, retira o famoso “anacronismo” histórico do campo adversário e o insere em uma arqueologia crítica com ênfase na análise da emeregência e manutenção dos símbolos em diferentes períodos históricos. No turismo os elementos imagéticos do passado ressurgem com nova roupagem e por meio do espetáculo. É o que ocorre com as fotografias que publicizam as paisagens, visto que circulam promovendo o desejo de se vivenciar e consumir o espaço. Nessa perspectiva, os elementos compreendidos a partir de um discurso negativo passam a representar novas possibilidades, eles surgem ornados para o consumo em prol da fruição e do lazer e se configuram como um sintoma estabelecido pelo espetáculo, a aparição proporcionada pelo espetáculo. Todavia, a sua aparição não está desvinculada dos elementos constituintes do discurso que o legitimou no passado, com isso fortalecem-se os antigos mitos e esteriótipos O molde regional do Nordeste estrutura cada uma das suas unidades federativas com a sua identidade, o que se dá em torno do Rio Grande do Norte na imagética nordestino-potiguar. Linha do Tempo Potência Epidérmica Interações sociais [Políticas] Turismo Religioso Turism o Mito - Nordeste (sintoma) Paisage m Fotografi a Imaginári o Mito - Nordeste (Aura) Enquadramento Espetacularizado Paisagen s Turística Reprodutibilidade Canindé Soares Espaço Social Imagem Crítica 260 Os símbolos incidem direto nesses espaços confundindo e homogeinizando aspectos da cultura local. No turismo essa construção é muito perceptível por alegorias específicas serem usadas em vários Estados para identificá-los, é exemplo, imagens que remetem ao cangaceiro Lampião e sua companheira Maria Bonita, representações da seca, vegetação com o cactos, são todos reproduzidos como logomarca de restaurantes, hotéis, grupos de dança, casas de show, etc., de modo geral são utilizados para a promoção dos ambientes sendo o grande representante do Nordeste, o que sobrepõe um mito local a todos os Estados. Lampião é natural do Estado de Pernambuco, nem mesmo os deslocamentos que lhe deram fama o levou a conhecer ou a atuar em todos os Estados que concernem a região. Então o que o legitima como representante de todos esses Estados, como se todos fossem apenas um? São escolhas que seguem um padrão de visualidade pré-estabelecido, porém, não necessariamente real ou favorável ao local que o toma como símbolo, uma vez que acessa um mito rodeado por preconceitos e adjetivos pejorativos. Lampião é apenas um dos exemplos amplificados e reproduzidos em detrimento de outras possibilidades criativas. Nesse aspecto o mito se torna um sintoma que diante das interações sociais constroem o imaginário dos agentes locais e acabam sendo reproduzidos em vários níveis do social. Mitos seguem impressos e enquadrados nas imagéticas que se reproduzem e circulam em torno da promoção da atividade turística. Canindé Soares, enquanto fotógrafo de destaque entre os orgão oficiais do Estado atende uma demanda atual e mantém a aura dos mitos nordestinos ligados ao processo de construção da unidade regional. Atualmente eles aparecem em contextos outros, em uma realidade distinta, cerceados por novas subjetividades e expectativas. Contudo, surgem de modo anacrônico nas fotografias para suprir novas demandas, mas preservam seus sintomas. A origem e o processo de formação dos mitos em torno da região são apagados no turismo, o que resta é um conjunto de imagens acessadas por experts em marketing ou publicidade, pelos gestores públicos, por agentes ligados a cultura, entre outros que elaboram a atividade baseados na noção de identidade primeira. Para nós, observar a identidade utilizada pelo turismo na formação dos novos espaços com as impressões que sobrevivem e ressurgem realinhadas à sociedade e a produção do espetáculo é basilar; uma vez que essas impressões permanecem e moldam o olhar do fotógrafo na construção do enquadramento espetacularizado. O espetáculo tem todas as dimensões para compor a proposta de Didi-Huberman da imagem crítica, uma imagem para além do dilema entre revelação e ocultação, tramas e ficções, falsidade e verdade. Segundo esse autor, o foco não está na ausência e presença, mas sim nas 261 tensões e oscilações entre a presença e a ausência como um jogo dialético do visual em que o fim encontra o início. 5.3.3 Análise: primeiros passos na rota da fé A paisagem turística fotografada faz parte do processo econômico e social vivenciado por meio das conexões urbanas que se retroalimentam em expectativas globais. Nela até mesmo o catolicismo dá a ver sua renovação ao competir pelo mercado religioso com vínculo nas interações sociais vigentes. Como veremos a seguir na experiência da Rota dos Santuários Potiguares registradas por Canindé Soares e divulgadas em seu site de fotojornalismo194. O referido evento tem se realizado mensalmente com saída de Natal, onde o grupo viaja acompanhado de um líder espiritual. O seu roteiro é móvel, podendo seguir com destino ao município de Espírito Santo/RN onde é apresentado aos visitantes à cidade e o Santuário de Nossa Senhora da Piedade. Em direção ao Município de Passa e Fica/RN visita-se a Pedra da Boca e o Santuário de Fátima com momentos de oração e louvor. Por volta de 11hs acontece a parada para o almoço no restaurante do Seu Tico, local onde se degusta a galinha caipira. Às 13hs retorna-se ao itinerário em direção a cidade de Uruaçú; nesse espaço o atrativo gira em torno da visita ao monumento dos Mártires de Uruaçú e Cunhaú e da apresentação do espetáculo intitulado “A Caminhada dos Mártires”. Ao término da apresentação partilha-se de momentos de oração com o conselheiro espiritual do roteiro Monsenhor Lucas. O trajeto tem destino final na Praça de Uruaçu, contudo antes disso existe uma parada para o lanche, ocasião em que se aprecia o Grude com Café. O grupo tem previsão de chegar em Natal, em média, às 17 horas195. Existe, ainda, o roteiro denominado por Caminhadas eclesiásticas. A outra possibilidade de trajeto que engloba a mesma temática é mais longa, nela os visitantes passam o final de semana em deslocamentos. Com saída de Natal a primeira cidade a ser visitada é Carnaúba dos Dantas, em seguida Caicó, por fim, Mossoró. A saída é às 05 horas da manhã. Em Carnaúba dos Dantas é realizada a visita no Monte do Galo e na Capela de Nossa Senhora das Vitórias. O segundo destino é o município de Caicó, onde é realizado uma missa com os convidados Monsenhor Lucas Batista e Pe. Freitas Campos, depois o trajeto é a Ilha de Sant’Ana. Desse espaço os visitantes seguem após o almoço para o Hotel Thermas 194 Mais fotografias desse roteiro disponíveis em: . Acesso em: 15 jun. 2017. 195 Nesse trajeto as distancias percorridas são de: Natal/RN – Espírito Santo/RN: 72 km, em média 1h 05min; Espírito Santo/RN – Passa e Fica/RN: 51 km, em média 45min; Passa e Fica/RN – Uruaçu/RN: 110 km, em média 1h 40min. 262 em Mossoró. No domingo à tarde ainda em Mossoró realiza-se a missa na paróquia de Santa Luzia celebrada pelo Monsenhor Lucas com apoio do padre do local, após os envolvidos no roteiro retornam para a capital. Os roteiros organizados por essa agência situam-se nos projetos que envolvem o mercado da interiorização. Apesar da proprietária nos afirmar que seu marketing é o boca a boca e que seu foco é a religião, assim como também se subscreve o proprietário da JoaquimTur, os agentes investem forte em promoção, isso fica claro pela própria presença de Canindé Soares em seus eventos, além de encontrarmos esses agentes investindo na publicidade por meio de feiras, congressos, workshops e na organização de pacotes que se estendem ao âmbito internacional. Atuam em vários seguimentos, tais como excursões, locação de carros; mediação para o processo de obtenção de passaportes e vistos; reserva de hotéis; cruzeiros; compras de passagem aérea; receptivo turístico; seguro de viagem e organização de eventos. Em termos de experiência e vivência a empresa Dandara garante a preferência do cliente potiguar, mas compete de modo equilibrado com a JoaquimTur - ambos são bem disputados em termos de turismo religioso. Para a análise escolhemos um dos itinerários religiosos da Dandara, pois é a rota mais antiga que mantém sequência em sua atuação demandando maior procura, para tanto observamos em campo o roteiro. Sobre o acervo de Canindé Soares destinado a empresa Dandara, das 48 fotografias que o compõe escolhemos as fotografias com maior número de acessos. Abaixo, na Fotografia 6 com a orientação de paisagem temos os excursionistas reunidos, antes do trajeto, em um objeto comum: a religião, o lazer e os deslocamentos. É a primeira parada para visita e a fotografia na Igreja de São José, em Carnaúba dos Dantas. Ao vislumbrá- la nos parece similar a outras fotografias que narram os mesmos eventos, pessoas de meia idade ou mais em que o cenário de lazer, ordem, trabalho e instituições organizam a coesão dos grupos. Essa é a interação social em sua dinâmica narrada a partir do autor da fotografia em que técnica e arte dão a imagem o recorte que capta o templo em perpendicular. A busca da harmonia entre o ISO, o obturador e o diafragma compõe a cena com a explosão da luz da esquerda para a direita sem prejuízo aos referentes. Ao contrário a estratégia constrói as sombras que indicam a metade do dia, por volta das nove horas da manhã, o horário sob o controle do profissional valoriza o colorido saturado nas roupas. Entrevem a descontração contraída nas poses e gestuais dos corpos eretos, dos sorrisos treinados, das mãos acenando e dos olhos que não sabem para qual dispositivo mirar. O fotógrafo oficial disputa alguns olhares com os amigos e familiares dos fotografados que disparam, ao mesmo tempo, os obturadores 263 dos seus Smartphones e, do mesmo modo, que Canindé Soares buscam o registro despojado do tempo. Desse tempo contemporâneo, fluído, efêmero, mas também, contínuo, concentrado e tradicional - porque corre cronometrado pelo relógio que disciplina a fruição de cada espaço - tudo é demarcado, até o tempo da fotografia, uma vez que o roteiro deve seguir adiante. A dialética está presente entre a luz e a sombra, o tempo livre e organizado, o contemporâneo e o tradicional. Os espaços e tempos se interconectam em um sintoma impresso no conjunto: disfarçado entre o grupo, um no início e outro em direção ao meio da fotografia mantém-se resistente, ostentado na cabeça dos organizadores do grupo o símbolo do sertão – o sintoma que repercute sobre o espectador como o símbolo da cultura local, mediado pela crise do tempo – mas, local da onde? –; um chapéu de couro em estilo de vaqueiro. A imagem poossui o enquadramento que leva ao espetáculo; na roupagem multicolorida do turismo que mistura a extravagância, a lembrança do exótico, do primitivismo, do sertão, ainda é internalizada como se dissesse respeito a uma questão de gosto e de influências. O sintoma que resiste cria um espaço nervoso no ambiente novo que oscila na dialética da possibilidade do espaço que ele assassina e espetaculariza. Fotografia 6- Parada na Igreja São José, Carnaúba dos Dantas196 Fonte: 196 Fotojornalismo Canindé Soares, do dia 26 de março de 2012. Roteiro Santuário Potiguar. 264 Não se trata aqui de pensarmos em um espaço irreal, porém a mediação do fotógrafo e da composição dada ao seu artefato acessa todo um arsenal imagético que constrói a emoção, a ação e as subjetividades em torno dos ícones registrados. Em relação dialógica está à Fotografia 7, onde o autor toma como espetáculo o produtor e o produto; ambos colocados em espaços privilegiados, ou seja, nas linhas dos terços, são ícones a disposição do discurso do enquadramento espetacularizado fotográfico; uma vez que são elementos que não estão ingenuamente dispostos, mas constroem a unidade da imagem, chamam a atenção do olhar e teimam em manter-se como o mito de um espaço arcaico- produtos resistentes que hoje preenchem um mercado de bens simbólicos que oferecem artesão e escultura como tradicional e popular. Sim, o que vemos poderia muito bem demarcar a criatividade arcaica. Contudo, o que nos olha questiona: Como ir além dessa aura que se mantém como impressão fulgurando resistente em sua potência epidérmica mesmo diante de novas lógicas latentes? São as palavras de Didi–Huberman (2010, p. 31) quando propõe que “devemos fechar os olhos para ver quando o ato de ver nos abre um vazio que nos olha, nos concerne e, em certo sentido, nos constitui. Que espécie de vazio?” O vazio das mãos, esse pulula na imagem fotográfica. A perda que o vazio suporta dá a agonia da imagem, ela traz a tensão que direciona a imagem crítica. Sendo o órgão do trabalho a mão é igualmente produto dele, onde em manipulações complexas alcança altos níveis de destreza e refinamento em suas obras. Desse modo, “a produção não se limita apenas a oferecer um objeto material à necessidade – também oferece uma necessidade ao objeto material” (MARX; ENGELS, 2010, p.137). Além disso, o objeto como produto e necessidade do produtor começa a ser moderno. A escultura religiosa de mãos amputada no registro constrói em destaque com o cavalheiro medieval e suas mãos estratégicas que, segurando à crina do cavalo, lhe dá a firmeza para suportar sua arma a fim de lhe garantir empenho no ataque ou na defesa transformando-se na “acrobacia anedótica” que faz do mito um álibi (DIDI-HUBERMAN, 2015a, p. 232). O amputamento e o arcaismo das figuras elaboradas agonizam no escritório moderno, iluminado e fluorescente. A ausência das mãos reclama o devir criativo, habilidoso e libertador que desvia do caminho único a fim de exercer a força construtiva da arte; sendo essa uma das maiores e mais subversivas forças que existe para a transformação da ordem vigente. Na ausência das mãos está a liberdade da invenção; Nas mãos ocupadas a sujeição ao status quo. 265 Fotografia 7- A escultura dos mitos197 Fonte: . E o roteiro segue com os excursionistas organizados no ônibus para saborear os petiscos, orar e curtir as descontrações. A Fotografia 8, por sua vez, destaca a cena da brincadeira corriqueira entre as agências de viagem que disputam o mercado turístico no século XXI. Em uma mirada inicial não parece haver nada de diferente, nada que possa causar comoção ou prender a atenção. Conseguimos ver três pessoas em pé, sorrindo, cumprindo o seu papel social no competitivo e desmantelado mercado de trabalho do mundo contemporâneo; construindo seu espaço no embate com os outros agentes de viagens pela fatia dos clientes disponíveis a passear pelo roteiro religioso. Da esquerda para a direita a proprietária da agência Dandara que diz ter como meta propiciar em seus roteiros o foco na vivência e por isso optou por trabalhar com o público da “melhor idade”. Sorrindo e com um olhar distante está o guia de turismo orientado por estratégias do marketing que o moldam para melhor oferecer o dinamismo de atrações do turismo. Todos esses agentes têm aprendido a viver na insegurança eficaz para manutenção do sistema econômico, adaptam-se as novas circunstancias e flexibilidade de seus trabalhos sem amarras. Nos sorrisos expostos ante as vestes que os institui e lhes dão o propósito de ser um arquivo imagético reside o sintoma e o espetáculo das suas atuações. Não há nessa fotografia um aspecto dramático ou uma performance expressiva deveras artística. Todavia, a suposta naturalidade aponta as fendas da incongruência e do espetáculo na hierarquia do primeiro ao último olhar que vem da esquerda para a direita, nas posições sociais do empresário, do técnico 197 Fotojornalismo Canindé Soares, de dia 26 de março de 2012. Roteiro Santuários Potiguar. 266 e do empregado caracterizado, no que age de modo quase involuntário como um “Lampião” que se modernizou em anedota e caricatura, figura errante agora presa nas teias do mito e na artimanha do espetáculo. O espetáculo mascara a nova ordem do mundo desmobilizado no trabalho. A empresária da agência Dandara, o técnico do SEBRAE e o Guia de Turismo personificam a construção do não-trabalho nas subjetividades que envolve a reviravolta ocorrida após os ataques aos direitos conquistados pelos trabalhadores. A atividade favorece o sombreamento do trabalho que organiza o tempo do não-trabalho deixando seu trabalhador à mercê como em um espetáculo. De acordo com Sennett (1999), o mundo do trabalho vai se tornando também um valor cultural por estar a deriva nas expectativas do longo prazo e próximo à efemeridade manifesta. Fotografia 8- O Roteiro - Paisagens e Identidades198 Fonte: Para finalizar esse roteiro, apresentamos a Fotografia 9 registrada na cidade de Mossoró. Essa é uma fotografia que traz o drama, a estética, a técnica e a brincadeira dos planos que direcionam o olhar. Captada no interior da Catedral de Santa Luzia, a imagem enquadra esculturas simbólicas do rito católico, dois agentes e outros elementos que compõe a cena. Nessa moldura a zona de interesse não foi dada a partir das linhas principais do terço, a prioridade está na construção dos planos do olhar. 198Fotojornalismo Canindé Soares, de dia 24 de março de 2014. Roteiro Santuários Potiguar. 267 1º plano A: curiosamente nessa fotografia o primeiro plano confunde-se entre a pequena estátua da santa e a cruz de madeira, um dos elementos de maior representatividade na fé católica. Depois de algum tempo de atenção percebemos que a cruz é o maior interesse do registro, por dois motivos: primeiro, a dinâmica da barra horizontal, com a fotografia ampliada à barra parece saltar diante dos nossos olhos encenando uma terceira dimensão; segundo, porque, mesmo não se configurando esteticamente o centro, o lugar privilegiado do enquadramento fotográfico traduz a valorização do olhar ocidental majoritariamente direcionado ao centro das coisas. No centro da fotografia estão às cruzes tomando o plano dianteiro e o plano de fundo, elas dividem a cena ao meio dando o mesmo sentido ao início e ao fim, ou seja, do lado esquerdo o primeiro plano se dispõe com a escultura e o indivíduo e; no plano de fundo, do lado direito, a imagem finaliza com o indivíduo e a escultura. O símbolo maior da fé católica centralizado estrutura a paisagem exposta. Em sequência vem o 1º plano B: a escultura que representa a Santa Luzia, principal motivo do templo em questão, mas hierarquicamente inferior ao símbolo maior representado pela cruz. No 2º plano encontra-se o representante religioso da igreja católica em sua atuação de evangelização, nesse sentido a palavra é valorizada. O representante da igreja foi fotografado no momento do seu sermão, no discurso da homilia para os seus fiéis, ocasião em que a representação se dá no indivíduo como mediador da doutrina divina aos presentes. No plano central encontram-se as cruzes que retornam ao olhar como o início, o meio e o fim. De outro modo disposto, no plano de fundo encontra-se o anjo acima do outro representante da igreja. A mais fundamental relação dessa arquitetura imagética com as práticas contemporâneas é a tradição. A tradição se materializa na instituição católica com seus dogmas, com a sua ordem. A sua forma de organização conservadora e de preservação de repressões é incorporada na forma de tradição cultural que age com maior ou menor força de acordo com as circunstancias em que é chamada a atuar. O discurso que abraça é idealista e atua nas consciências ao qual se dirige e “mesmo quando exige da razão uma submissão cega, o faz falando-lhe a linguagem da razão; estratégia “de maravilhosa habilidade para tornar a tradição invariável” (DURKHEIM, 1982, p. 118)”. Em termos dessa religiosidade muitos potiguares se reconhecem, interpretam seu local a partir do catolicismo como uma expressão do povo, como uma instituição marcada pelo passado e por sua história continuada e fixa. Não é uma tendência só dos potiguares, uma grande parcela da população nacional ao se remeter a religião católica a concebe em termos de tradição e verdade. Mas no local a tradição católica e a hierarquia que a acompanha, aliada a outros elementos como a saudade do passado; o domínio da terra e; dos indivíduos pela manutenção 268 da educação serviram como princípios para a reação às novas dinâmicas sociais que se deram concomitante ao momento de construção socioespacial do recorte regional. A tradição católica no espaço nordestino amplia-se no imaginário das cidades favorecendo que seus ritos e mitos sejam privilegiados em manifestações artísticas, culturais e políticas, concentrando em si as visualidades. Isso garante a manutenção de alguns privilégios por parte da igreja, ainda, o discurso da religiosidade popular apoia a sensibilidade conservadora. Como afirma Albuquerque Júnior (2006), a tradição, assim como os valores, se impõe de cima para baixo como verdades validadas pelo do tempo e pela sua durabilidade. Amarrados em um tempo do passado: a religião e a tradição compõem um espetáculo em livros, filmes, apresentações, músicas, literatura, crenças e tudo o mais. Ainda, a junção da saudade, da tradição e da ideia da região nordeste unificada por crenças e práticas alimenta o espetáculo do turismo. Apesar de ambos (turismo e nordeste) serem produtos das relações contemporâneas, legitimados praticamente em tempos paralelos ao serem unidos no espetáculo social, trazem à tona uma distinção crucial. O turismo está fortemente amarrado à região em torno das expectativas do futuro. Já o Nordeste se retroalimenta do turismo amalgamado às expectativas do passado. No espetáculo que encena o turismo acredita-se que a possibilidade de futuro construída no agora, busca no outrora a sua substância. Desse modo, Turismo e Nordeste apresentam-se como lampejos estratégicos das relações atuais. E a fotografia que apresenta o produto da obra humana sobreposto aos seus agentes é o sintoma dessa relação atual. A fotografia de Canindé é a imagem dialética que mostra foco e desfoco, clareza e embaçamento, realidades e ficções da política de turismo na construção da visualidade paisagística nordestino-potiguar. Essa fotografia nos induz a questionar a visualidade que construiu uma cultura dita imóvel, mesmo estando em rota, em deslocamento, em roteiros turísticos. Ela rasga uma fenda no tradicional ao revelá-lo em cores e tons adequados para encenar o mais novo espetáculo do turismo: o da cultura religiosa empalhada para o show. 269 Fotografia 9- Planos no olhar199 Fonte: 5.4 O ENQUADRAMENTO ESPETACULARIZADO NA PAISAGEM NORDESTINO- POTIGUAR As fotografias nos dão a possibilidade de ver e rever mais profundamente o que ela representa quando colocada em modo relacional com as contingências sociais. Assim, somos obrigados a ver aonde elas estão e o que de fato mostram. Em metáfora: as fotografias brincam, revelam e escondem. Em suas diatribes te desafiam a entrar no jogo da esfinge e ordenam: “decifra-me ou te devoro”. Decifrá-la é coloca-las em crise, reconstruir possibilidades de ver o passado, aproximar-se dele diante do tempo presente e renovar suas experiências. Não decifrá- la é se envolver na totalidade da saturação que ela indica, é jogar o seu jogo, deixar que a luz que permite a sua escrita elaborada pelo próprio engenho humano ofusque a visão. A visão é embassada pela ideia da generalização do segredo e não da exposição, ou realidade, isso se dá porque na sociedade do espetáculo a realidade aparece como o lugar comum e todos adotam acriticamente o que é realidade. O jogo da revelação e ocultação desaparece, porque parece que tudo é revelado a qualquer momento, uma vez que ser visto passou a significar existir. Quando ser visto significa existir, o que é impresso e se conserva em fluxos e influxos, sobrevive sobre nova roupagem e aparece para compor um espetáculo. No turismo o quadro 199 Fotojornalismo Canindé Soares, de dia 24 de março de 2014. Padre Campos em homilia. Roteiro Santuários Potiguar. 270 montado revela sintomas que aparecem por meio de imagens anâcronicas constituindo as tensões do tempo presente. É o que faremos nesse subcapítulo, atentarmo-nos aos sintomas que resistem e tornam-se espetáculos, colocando em prática a metodologia de leitura de imagens proposta. Em seguida, as experiências do campo serão explanadas juntamente com a leitura crítica da imagem e com a identificação do enquadramento espetacularizado pontuado na impressão, no sintoma, no cerne do espetáculo que constrói as subjetividades espaciais em torno do turismo. Das fotografias retratadas por Canindé Soares nos deteremos nas paisagens do turismo religioso no interior do Estado. São fotografias compradas pelos orgãos oficiais de turismo no estado, como a EMPROTUR, a Secretaria de Turismo de Santa Cruz e de São Gonçalo do Amarante; as fotografias dos livros lançados por Canindé e; as que fazem parte do seu acervo virtual e fotojornalístico. Outrossim, foi importante observar que algumas dessas fotografias estavam expostas em eventos, no qual estivemos presente, tais como Fórum Nacional de Turismo Religioso – 2016; Expotur Católica I e II, Fórum de Turismo RN. Inicialmente separamos em séries temáticas de acordo com o motivo da paisagem festiva e a cidade, incluindo também, os santuários. A escolha desses registros não necessariamente atendeu uma forma linear ou cronológica, mas sim a distribuição do registro em distintos espaços de promoção turística, tais como as redes sociais. São paisagens do santuário de Santa Rita, paisagens do Santuário do Lima, paisagens do espaço festivo da Padroeira Santanna do Caicó, paisagens da festividade que envolve a festa da Santa Luzia padroeira de Mossoró; e, dos novos santos do Brasil os protomartires de Cunhaú e Uruaçú. Cada um desses eventos e espaços pertencem a um dos cinco polos turísticos do Estado do Rioo Grande do Norte, onde o Projeto de Regionalização do Turismo (PRT) tem ocorrido. As fotografias apresentam paisagens do catolicismo com templos e eventos de maior representação para o local, geralmente, contíguos aos Santos Padroeiros e considerados de maior apelo ao fomento do turismo. No Polo Seridó o município que se destaca é o de Caicó com as paisagens de eventos para Sant’Ana e do complexo turístico realizado em torno desse tema. O Polo Agreste/Trairí ganha relevância com as paisagens do monumento de Santa Rita e seu complexo turístico na cidade de Santa Cruz. Por outro lado, na região do Polo Costa Branca a cidade em evidência é Mossoró com suas festividades do catolicismo direcionadas, em grande parte, à Padroeira Santa Luzia. Por fim, o Polo Costas das Dunas aparece com o interesse construído recentemente para eventos ligados aos novos elementos que foram agregados a igreja católica, os Mártires de 271 Cunhaú e Uruaçu ou Protomártires do Brasil, envolvendo duas cidades: Canguaretama e São Gonçalo do Amarante. A ordem dos subtítulos segue a sequência de institucionalização dos polos, o que não tem a ver com o turismo religioso, mas com a importância que atribuída ao turismo de maneira geral na região turística. 5.4.1 Os Mártires: um espetáculo atual Quadro 5- Cidades da região turística do Polo Costa das Dunas CIDADES DA REGIÃO TURÍSTICA POLO COSTA DAS DUNAS/ RN Baia Formosa; CANGUARETAMA; Ceará-mirim; Extremoz; Macaíba; Maxaranguape; Natal; Níseia Floresta; Parnamirim; Pedra Grande; Rio do Fogo; SÃO GONÇALO DO AMARANTE; São Miguel do Gostoso; Senador Georgino Avelino; Tibau do Sul; Touros. Fonte: Brasil (2016). O Polo Costa das Dunas surgiu a partir do Decreto nº 18.186, de 14 de Abril de 2005. Desde a sua implementação recolhe recursos financeiros por meio de programas, convênios e captação direta com o MTUR. Nesse polo, os anos de 2012 e 2013 apresentaram as maiores concentrações de renda em prol do turismo, com montantes de R$ 19.671.360,00 (2012) e R$ 14.231.795,40 (2013). Há maior direcionamento de investimento dessas rendas na área litorânea na capital ou seus entornos. Com o processo de interiorização e a necessidade de compor novos atrativos a fim de diversificar a oferta do turismo no Estado outros aspectos começaram a ser priorizados e foram destinadas verbas para questões que envolveram o patrimônio cultural local, tendo como um dos seus pilares a religião. A relação entre o patrimônio cultural e o turismo está intrinsecamente atrelada às questões da identidade, requerendo a promoção e ampliação dos símbolos. Em relação aos patrimônios organizados através da concepção da fé católica, os santuários e os monumentos aparecem como referências para compor o arsenal do patrimônio cultural. Para os participantes da fé católica o Santuário é o “lugar do Espírito, onde a fidelidade de Deus alcança e transforma a pessoa. É o lugar da Palavra, em que o Espírito convoca à fé, onde se promove a comunhão” (PASTORAL DO TURISMO, 2009). Já para o turismo, esses locais são possibilidades de geração de renda, a partir da expansão, requalificação e reutilização 272 de seus espaços onde são também agregados outros elementos capazes de atender um mercado que gira em torno dos frequentadores do ambiente. Atualmente as histórias dos mártires e santos da Igreja católica fazem parte das atrações turísticas de muitos dos patrimônios culturais. As visitações levam à valorização da história, mostrando a importância que a religião teve e continua tendo para os indivíduos e a sociedade. As histórias dos santos e as concepções de santidade que as sustentam não apenas expressam a memória e evolução de um saber religioso, mas também apontam para questões sociais mais amplas. Entretanto, carecem de registros e análises sociológicas suficientes para qualificá-las em sua expressão contemporânea (PEIXOTO, 2006, p. 21). No Estado do Rio Grande do Norte os investimentos no turismo religioso e alguns resultados práticos motivados pelo PRT- em termos políticos, econômicos e religiosos- têm mobilizado agentes locais que enxergam nichos de oportunidades nessa comunhão de interesses. O Estado, a Igreja católica e os envolvidos com o turismo em parceria – essa sim mais duradoura – buscam localizar, organizar e institucionalizar aspectos passíveis de concentrar interesses a fim de motivar o deslocamento e o consumo de bens locais. É o que ocorre nos municípios de São Gonçalo do Amarante e Canguaretama que, por meio da trama histórica e religiosa, encena o passado das cidades vinculadas a massacres de católicos ocorridos em período colonial e os transformam em ambientes para cultos e festividades fazendo emergir novas paisagens turísticas. Existem dois lugares de referência para o culto e o turismo em torno desses Mártires. O monumento em homenagem aos Mártires de Uruaçu inaugurado no ano 2000, após 355 anos do dito massacre, datado em 1645, localizado no distrito de Uruaçu, área rural de São Gonçalo do Amarante, a 17 km de distância de Natal. Cidade que de acordo com os dados do IBGE no último censo de 2017, conta com uma população de 101.492 habitantes. O monumento aparece como resultado do esforço da Arquidiocese de Natal em beatificar 30 luso-brasileiros assassinados no contexto de disputa territorial do Brasil Colônia. A beatificação ocorreu no final da década de 1980 e com ela inicia a campanha de promoção imagética desses personagens. O segundo lugar de referência é a capela de Nossa Senhora das Candeias, no Engenho de Cunhaú, onde ocorreu o primeiro massacre. Esse local é situado em Canguaretama a 77 km de Natal com 34.267 habitantes, tendo na sua entrada um monumento na Capela desde outubro de 2009. Após a beatificação o local começa a ser palco de exibição do “morticínio de Cunhaú” representado pelo grupo teatral de Canguaretama. Sendo assim, o evento passa a ocorrer anualmente, nesse cenário os expectadores assumem o papel de testemunhas oculares da ficção encenada em âmbito religioso. 273 A negociação do terreno para doação da área com vistas à construção do Monumento dos Mártires se deu entre a Arquidiocese de Natal e a família proprietária da fazenda. A parte cedida fica distante do cruzeiro onde ocorreu o martírio. O Monumento inaugurado em 05 de dezembro de 2000, tornou-se um espaço de convergência para o incentivo a devoção, favorecendo as excursões religiosas. As visitas mais constantes são as escolares, compostas por alguns turistas interessados em conhecer essa história do massacre como parte da história do Estado, e de pessoas que seguem a fé católica. O investimento da Arquidiocese de Natal para canonizar os Mártires de Cunhaú e Uruaçu, como também incentivar a sua devoção envolveu três principais polos de mobilização: o primeiro é a Capela de Nossa Senhora das Cadeias, em Cunhaú na cidade de Canguaretama; O segundo, Santuário dos “Bem-Aventurados Mártires de Uruaçu e Cunhaú”, localizado no Bairro de Nazaré, zona oeste de Natal200; o terceiro, o Monumento de Uruaçu. Esses três polos tem seu ponto de apoio na história balizada por historiadores locais como: Lyra (1921) e Cascudo (1955). Segundo eles, de fato teria ocorrido um evento denominado por “O massacre de Cunhaú e Uruaçú”. Nesses eventos luso-brasileiros católicos teriam sido vítimas de um massacre orquestrado por protestantes calvinistas e barbaramente efetivado por índios Tapuias e Potiguares. É importante afirmar que Câmara Cascudo em sua obra demonstra clara simpatia a fé católica, mais ainda, é fiel às posições da igreja, “quer seja em termos filosóficos, quer seja em termos políticos” (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2003, p. 3). O mesmo acontece em relação ao seu conterrâneo Tavares de Lyra; a sua narrativa ao se reportar aos luso-brasileiros deixa clara a sua posição sobre os protagonistas desse fato. Suas palavras afirmam que: “compreenderam esses mártires ter chegado o seu fim”; aqui já lhes intitula por heróis. Admite ainda que “obedeceram com grande paciência e resignação”, ao ataque dos índios e declara que “morreram todos na fé católica, apostólica, romana, e recusando com firmeza o ministério de um predicante herético que se apresentou” (LYRA, 1921, p. 105). As noções de Lyra e Cascudo fornecem toda uma cena onde está demarcado quem é o herói e quem é o bandido. Ambos constroem uma paisagem de terror que vem marcando por décadas o imaginário potiguar, onde o outro é o desviado dos padrões estabelecidos e interpretados como corretos, sendo considerados corretos os valores do colonizador português. Essas são as narrativas que constroem os espaços de simbolismo: 200 O Santuário tem a capacidade para receber 1.200 pessoas. 274 eu conheço essa história contada por minha mãe, que nasceu em 1922, e ela dizia que escutava dos pais dela. A gente sentava no chão da casa da gente [...] quando ela dizia que o índio pegou o Mateus Moreira e ele disse ‘louvado seja o santíssimo sacramento’, ela dizia e se emocionava muito e eu também! Por que eu via ela se emocionar e eu me emocionava também’ (informação verbal, 2016)201. Hoje esses espaços aparecem como cartões-postais do turismo religioso no Estado e de acordo com as performances culturais contemporâneas, com privilégio a versão da igreja católica, teriam sido testemunhas de um morticínio, de um grande massacre apoiado pelos índios tapuias e potiguares contra os luso-brasileiros. O evento com o enredar do tempo passa a ser celebrado como um ato heroico, produtor, nos dias atuais, de uma paisagem de celebrações e cultos dos personagens Mártires de Cunhaú e Uruaçú ou, mais recentemente, os protomártires do Brasil. Figura 30- O Turismo e a Terra dos Santos Mártires do Brasil202 Fonte: Fotojornalismo de Canindé Soares – acervo público (2015) A Fotografia 10, apresentada a seguir, representa uma panorâmica área registrada por um drone teleguiado por Canindé Soares. A imagem parece uma pintura realista, levando em conta a saturação das cores que constroem essa paisagem; a tecnologia ultramoderna que a imprime. A cena enquadrada representa muito bem o discurso que emerge em relação a esse espaço, um ambiente bucólico, rural, calmo, tomado pelo símbolo cultural do colonizador estrangeiro. Essa é uma das paisagens elaboradas nos escritos dos intelectuais filhos da elite agrária em crise no início do século XX. Agora revela anacronicamente a paisagem nordestino- 201 Informações fornecidas pela frequentadora do local em 12 de dezembro de 2016 na visita realizada em Uruaçu (RN). 202 Panfleto de promoção de evento católico com fotografias do Canindé Soares. 275 potiguar como sintoma da representação da vida passada, em que a região não existia, mas posteriormente adota para si os adjetivos de arcaico e colonial. Se não fosse alguns elementos para nos situar no período atual; como as antenas parabólicas, os carros, o apoio de ferro para idosos ou pessoas com necessidades especiais, a placa marrom turística com a referência a Capela Nossa Senhora das Candeias apontando que ali é um espaço que está sendo mobilizado em torno do interesse da atividade econômica contemporânea e o edifício verde de arquitetura funcional quase escondido atrás das palmeiras, a imagem se revelaria como um túnel do tempo. Esse é o grande sintoma dos espaços nordestino-potiguares que vêm à tona quando menos se espera, criando tensão por serem renovados em um outro ambiente. Por representar o que nunca foi: uma visualidade velha de uma construção nova; que se repete no enaltecimento de valores hegemônicos e antagoniza as alteridades. A imagem reproduz essa ordem no sentido que dá destaque aos valores e símbolos coloniais, as noções construídas a partir deles. A luz e a sombra são construídas com o contraste duro, demarcado e a luz incide nos elementos da natureza, destacando-os. Também, atinge, por sua vez, a fachada da capela medieval; o prédio mais alto do registro, de modo interessante, é colocado pelo fotógrafo no meio da cena organizada em conexão com todos os quadrantes resultantes da divisão da paisagem, ângulo capaz de oferecer à visão do leitor o sistema de hierarquia que promove a manutenção da ordem vigente. Os humanos estão à sombra, pequenos e pouco relevantes diante do templo iluminado, perdem a noção da dimensão que tomaram as suas construções e de quem são diante delas, em praticamente todas as suas criações são minimizados, aparecem como objeto dos seus produtos. O apelo recente do turismo faz o que não era visto ser inserido nos roteiros coroando o modelo que enaltece a memória do colonizador das terras, das vidas e das memórias dos primeiros habitantes. Esse é legitimado e divinizado na história. Confundem-se os personagens. Nas palavras de Simmel (2009) o estrangeiro por sua natureza não é proprietário do solo, sendo para esse autor o solo, muito além do que espaço físico, mas também as relações de vivência, das mais íntimas até as que demarcam as posições sociais. O estrangeiro é sentido precisamente como um estranho, isto é, como outro não "proprietário do solo". O estrangeiro não é quem já estava, mas quem vem de fora. Contudo, quem residia, a população indígena, é adjetivada com termos como violentos, selvagens e cruéis ao lutar pela manutenção das suas terras. As fotografias suscitam imagens que aparecem e desaparecem de acordo com a necessidade histórica de satisfazer às relações predominantes. As celebrações organizadas em torno dos mártires não têm nomes identificados; saem dos poucos livros especializados; dos rituais pontuais; das histórias orais locais e penetram no estadual com vias a alcançar o regional 276 e o nacional, legitimando o local como centro de peregrinação religiosa. São divulgações em meios de transportes, propagandas, inserção do discurso dos mártires nos rituais da igreja – para a surpresa de muitos fiéis que ainda questionam e estranham esses nomes serem incluídos; por exemplo, no momento de prática com os terços, em sequência a alusões comuns nesses rituais como a Jesus e a Maria. Uma história que está sendo impregnada, gestada, em concomitância com as relações globais que envolvem a perspectiva do turismo torna-se oficial e constrói as novas paisagens no Estado. No ano de 2016 os panfletos promocionais organizados pela EMPROTUR ainda não priorizavam esses novos heróis como atrativo turístico, dando ênfase ao complexo turístico que envolve as estruturas de apoio a estátua da Santa Rita de Cássia erguida no município de Santa Cruz. O período que antecede a canonização desses indivíduos pelo Papa203 marcou também a circulação intensa das suas representações, assim a fotografia entrou em sua potência epidérmica. Sobre a questão religiosa atrelada ao turismo podemos pensar, fazendo alusão com Latour (2004, p. 349), que “a fala religiosa é aqui vista como um discurso transformativo antes que informativo”. Afirmação não tão diferente a do discurso do Marketing quando pretende antes transformar do que informar, compreendendo a transformação como inculcação de uma mensagem e consequente naturalização desta interligada ao processo de massificação ou de saturação imagética; criando realidades no dinamismo contemporâneo. Sobre este aspecto, Brandão (1992), no artigo intitulado “Crença e Identidade: campo religioso e mudança cultural” evidencia a forma universalista com a qual a Igreja Católica abriu espaços para desenvolver a “oferta pura e simples de bens de salvação entre a fé e a magia” (BRANDÃO, 1992, p. 47), práticas “disjuntivas” próprias do “desenvolvimento histórico da sua conflituosa relação na cultura ocidental” (PIERUCCI, 2001, p.102). Esse é o enquadramento colonizado nos discursos fotográficos, o qual pode ser observado na Fotografia 11, a partir da montagem. A imagem que vemos dá continuidade à história anterior, fixa nas esculturas dos mártires e dos anjos até a porta do Santuário Chama de Amor, edifício contemporâneo que completa o sentido da cena. A montagem nos permite compreender que o que dá o movimento na imagem é a própria capacidade de se movimentar. Com ela nos deslocamos da capela ao santuário. O primeiro edifício resiste ao tempo e o 203 A poucos dias aconteceu a canonização dos personagens citados acima. O Papa Francisco presidiu no dia 15 de outubro de 2017, um domingo, na Praça São Pedro, à Canonização dos Mártires brasileiros de Cunhaú e Uruaçu: André de Soveral, Ambrósio Francisco Ferro, Mateus Moreira e 27 companheiros envolvidos na história que narra um massacre. 277 segundo edifício é a manobra no tempo presente, espaços de espetáculos e de fé. A fotografia convida o expectador a percorrer o cenário do primeiro plano ao plano de fundo, até chegar na porta em arco. O caminho começa ao vislumbrar as esculturas dos mártires, rostos frios que pretendem despertar a emoção, faces que foram desenhadas para representar a vivência em um campo de batalha, rostos que tentam simular a serenidade de um pacificador. Nesse espaço adaptado pelo simbólico passar por esses rostos é caminhar até os anjos até se atravessar a porta do santuário. Nota-se na imagem que a porta está enquadrada no plano de fundo, o deslocamento então é o retorno, nesse vai e vem trôpego do olhar pela imagem aparece no caminho os tempos e os contratempos. Quando o movimento ameniza a tensão aparece em forma de sufoco. O céu azul com sua sombra superior parece agora desabar sobre todos os elementos. É o momento que vem à dialética das tensões não resolvidas, silencia e ruído, luz e sombra, olímpico e demoníaco, deus e o diabo, a realidade e o mito. Por fim descobrimos que o combate interno é o da cultura, sobrevivente nos olha e nos traz a agonia da questão: e a outra história? Enredos oficiais, mais ponderados contam uma história sem os índios, amenizam a sua aparição, já as histórias locais relatam índios bárbaros, cruéis e desalmados, resquícios dos escritos de origem. A história local ao qual nos referimos é atravessada por seres humanos, pelos seus modos de ver, ouvir e compreender. Seja qual for a versão a população originária, eles aparecem como bárbaros, romantizados ou reduzidos na história, os índios sobrevivem nos mitos, no folclore, na lembrança dos seus símbolos como o arco e a flecha. Porém como a imagem que nos olha está além do que podemos ver é latente e sobrevive na representação dos índios Tapuias e Potiguares. O que nos olha cobra a revisão da aparição dos índios na história, requer que esses indivíduos saiam da condição que os mantém abaixo da linha do humano; que sejam mais do que meros coadjuvantes ao colonizador; às vezes aparecem nos romances e nas artes, onde lhes dão uma morte heroica, mas a morte. Encarcerados, violentados, inferiorizados, minimizados, transformados em estranhos em sua morada são apagados para o Estado e demonizados entre a população. Sina que se repete na história dos Protomartíres entre investimentos e promoções que vibram com o apoio do estado. Esse é o ponto máximo da fotografia: a crítica. Ela serve para denunciar as relações sociais da desvinculação vinculada entre o Estado e a igreja nas políticas públicas de turismo que na manutenção e ampliação da atividade encontram a conveniência da realização de seus interesses na recolonização favorecida pelo espetáculo. Nessa acepção está a função da imagem dialética: propiciar a ambiguidade na tensão que submete o olhar, que exige o esforço da 278 ultrapassagem, ou mesmo da ironia (DIDI-HUBERMAN, 2015a). A operação da imagem crítica reside em dissolver as nossas mitologias na tensão em que se estabelece entre mito; história e sociedade. Uma vez que a razão humana não acabou com o mito, como pretendeu na modernidade, ao contrário, lhe deu uma nova face ancorada no consumo e espetáculo. Desenhada com os mitos a população indígena grita, deixa latente o seu extermínio, aponta a violência social e continua a afirmar: Eu existo! O enquadramento espetacularizado se dá como no sintoma da neurose, aparente pelo discurso que a legitima como distúrbio, nos elementos que, presos na fotografia, legitimam o martírio do forte através da população indígena, o distúrbio central. A crítica é efetiva quando o que nos olha aponta para o margeamento da população indígena, favorecendo a reflexão apoiada por teorias que pretendem abrir caminho para possibilidades criativas e inclusivas de organizações socioespaciais. Nesse norte os estudos de Warren (2001, 2013) são precisos quando afirmam o silêncio no qual é relegada a população indígena; afastada dos debates, mantida como irrelevante para as questões que envolvem os diversos aspectos da inclusão racial. Não que haja um antagonismo amplo, porém a negligência é profusa. Os índios aparecem no imaginário como alegorias passadas. A paisagem nordestino-potiguar reforça imagens já pré-utilizadas, lugares comuns que permeiam a ideia da região, do campo, da vida da cidade do interior, encerrando a população indígena em um mito do passado. Fotografia 10- Capela dos Mártires de Cunhaú com JoaquimTur204 Fonte: 204 Fotografia de autoria de Canindé Soares registrada em 20 de Fevereiro de 2017 em Canguaretama, RN. 279 Fotografia 11- As índias sem índio – o nativo se torna vil205 Fonte: As novas paisagens são elaboradas a partir de expectativas proclamadas e na oportunidade de ampliar o trabalho de Canindé Soares que já tem em mente fazer um registro específico dos eventos religiosos e transformar em um livro. Segundo esse fotógrafo, seria um livro em privilégio ao turismo religioso no Rio Grande do Norte, destacando as principais paisagens culturais e religiosas do povo potiguar, reunindo fotografias de procissões, espetáculos, festas religiosas, igrejas, espaços de culto, diferentes práticas e hábitos culturais de cristãos católicos. O projeto atualmente encontra-se pronto e o fotógrafo está ansioso para atuar, porém, no aguardo do apoio financeiro. Enquanto isso, ele segue com a sua atuação cotidiana de repórter fotojornalista206, revelando o espaço modificado em paisagens turísticas e construindo um acervo fotodocumentado. Dá relevo aos próprios potiguares sobre os novos lugares que aparecem em paisagens; educa o olhar e materializa os discursos proclamados com as políticas de turismo como provável instrumento de desenvolvimento. Uma das características das paisagens no fotodocumentário é de ter a aspiração de substituir o espaço real. O sentido de documentário foi conferido quando em 1926, John Griergson o empregou para referir-se ao longa metragem Moana, do cineasta Robert Flaherty - 205 Idem. 206 Afirmação feita pelo fotojornalista em 11 de dezembro de 2014. Op. cit. 280 espécie de filme que pretendia estabelecer relação com a representação do real factual, em contraposição às produções hollywoodianas que se popularizavam como fonte de entretenimento. Desde então essa referência tem servido de base para a organização de conceitos mais elaborados, como acontece, também, no âmbito da fotografia. Ainda nessa década denominavam-se de documentário fotográfico as produções que tomavam a fotografia como representação do real, em oposição aos registros mais artísticos (BARTOLOMEU, 1999). Nas paisagens captadas recentemente pela lente de Canindé Soares percebemos tais concepções. As Fotografias 12 e 13, por exemplo, descrevem um lugar que começa a se encher de simbolismo marcado pela fé católica. A paisagem é a panorâmica feita em um helicóptero e a aglomeração de pessoas está relacionada ao espetáculo montado para a comemoração dos 15 anos de beatificação dos: “Bem Aventurados Mártires de Cunhaú e Uruaçu”. Esse recorte já parece um fato, mas é um espetáculo que tem seu fio condutor cortado, tendo em vista que faz parecer que o monumento e todo o espaço paradisíaco que o circunda surgiu por já ser dotado desse simbolismo e desses elementos de fé. Outros entrevistados como a ex-secretária de educação da época, Tereza Oliveira, falam como nasceu o Monumento: “a ideia surgiu da Igreja, na perspectiva de transformar os Mártires em beatos. E o governo pactuou com isso. Não foi um desejo da comunidade e sim da Igreja” (informação verbal, 2014). [...] o Monumento em Uruaçu foi para marcar o lugar. Em Cunhaú, já tinha um lugar determinado, pela história mesmo. Foi na capela, que está lá, mas em Uruaçu não tinha precisão do local [...] as inspeções do rio Uruaçu, Jundiaí, Potengi e baseado pelos mapas não resta dúvida que foi naquele lugar (informação verbal, 2015)207. O evento que aconteceu no Monumento dos Mártires, do distrito de Uruaçu, com publicidade em torno do Show da cantora nacional Elba Ramalho e registro aéreo de Canindé Soares permite distintas naturalizações que envolvem uma variedade de relações e discursos. Desde os tons da natureza aparecem saturados na imagem enquanto elementos que a corresponde e circunda toda a paisagem. Até se pensarmos na dicotomia homem/natureza, através do modo como foi forjada a consciência moderna, nela há a prevalência da natureza na imagem despertando a atenção do olhar, chamando a atenção para o espaço amplo, para uma natureza edênica, privilegiada. Nessa lógica, é como se houvesse um recuo do homem que se afasta do seu cotidiano, para ir ao encontro com o divino em um espaço sacralizado. Da direita para a esquerda o olhar do espectador caminha em direção ao monumento 207 Informações fornecidas pelo Padre Antônio Murilo de Paiva, Capelão do Monumento, em entrevista concedida em Dezembro de 2015. 281 disposto em um espaço privilegiado na cena fotográfica. Os fiéis/turistas em miniaturas ganharam o centro da cena, parecem pequenas criaturas sendo observadas pelo seu criador, que está em posição superior, situação privilegiada. O Fotografo ou Deus? Harvey (2005), se refere a esse tipo de olhar como “visão de Deus da cidade”, um olhar de cima, divino e um olhar sem corpos humanos. Esse panorama para Certeau (1994) é a representação do que realmente é a cidade em uma espécie de simulação visual. A poucos quilômetros de distância do centro da cidade a paisagem emerge como uma ilha no qual tudo é silêncio, desaparecem os sorrisos, as falas, as mercadorias, os agentes de viagens; tudo e silêncio, tudo é divino. A imagem cria uma realidade à parte do cotidiano da cidade, cria a representação do que é esse momento, uma identidade, uma visualidade única. No instante em que o fotógrafo capta a paisagem do espetáculo, enquanto unidade, perde-se o conjunto de singularidades. Todavia, temos em conta que há uma mobilização estratégica de distintos setores do Estado, juntamente com empresas privadas para promover o turismo e o interesse da igreja em mobilizar o culto, expectativas que se coadunam no segmento do turismo religioso; assim, essa imagem tem significados reveladores em termos sociológicos. Existe uma rede de incentivos no consumo do espaço captado na imagem que atende a lógicas hegemônicas, como a do capital e da fé católica. São interseções de interesses ao mesmo tempo culturais, políticos, sociais, econômicos e religiosos tencionando e sendo tensionado pelo espaço representado, invertendo- o e transformando-o em produto no momento em que o espetaculariza (DEBORD, 1997). A Fotografia 13, claramente dá relevo à organização construída em prol do evento. São as cores, as intensidades com que foram elaboradas e a vista ampla das cercanias. A imagem coloca diante do expectador uma paisagem paradisíaca, o éden dos mártires, representações que ao serem recortadas em paisagens passam a povoar o imaginário coletivo cristalizando relações e situações. Canindé Soares consegue construir o espaço concebido, o espaço como obra, como se quer que seja visto, vivido ou percebido. Contudo, a sua vivência e a sua percepção transformam a concepção que se tem, tendo em vista que na fotografia o espaço é um produto do turismo que na vivência dos indivíduos se amplia para o espaço de fé a partir de uma realidade constituída no jogo de vários agentes e nos seus usos e contra-usos. O espaço é plural, porém enquanto concebido realizado na fotografia é parte da idealização de seus agentes, um modo que tenta afastar outras possibilidades e distanciar o debate. Vem de cima para baixo priorizando o discurso do dominador, do capital, das luzes e do espetáculo; motivados por estratégias políticas que privilegiam acontecimentos históricos para torná-los, de forma planejada, em lucrativas instituições que mascaram a diversidade de interesses do cotidiano. Ora, em nome do turismo no RN, o Estado laico promove políticas 282 públicas que fomentam a construção de santuários, edificam monumentos, patrocinam eventos festivos religiosos, constrói paisagens em prol desses eventos, apoia a demarcação desse específico poder, o que é restrito e não plural. Não se trata aqui de ser contra ou a favor destas iniciativas, mas sim de pensar que os discursos que as justificam e as patrocinam, são frágeis em seus argumentos. O discurso que faz acreditar na existência de uma vocação turística religiosa católica no interior desse Estado promove a construção de paisagens que emergem e materializam-se em torno de contradições. Inclusive, porque esse discurso da vocação natural desses espaços para a atividade acompanha um outro discurso maior que é o do turismo como elemento capaz de trazer e acelerar o crescimento econômico do local, superar a miséria e a pobreza. Além do discurso acerca da determinação geográfica nos aspectos sociais, daí a ideia de vocação. Na maioria dos exemplos, o que se percebe é que a atividade ordena os espaços, que anteriormente seriam de devoção, em prol dos interesses do capital e nas localidades beneficia pequenos grupos, muitas vezes margeando a população (SANTOS FILHO, 2003). Fotografia 12- Paisagem de Celebração aos Mártires de Cunhaú e Uruaçu208 Fonte:< http://www.csfotojornalismo.net/Cidades/i-rdGZdgQ> 208 Fotografia de autoria de Canindé Soares registrada em 3 de outubro de2014. Monumento aos Mártires de Uruaçu e Cunhaú, município de São Gonçalo do Amarante/RN. 283 Fotografia 13- O paraíso dos Mártires209 Fonte:< http://www.csfotojornalismo.net/Cidades/i-7ZvwV46> 5.4.2 Santa Luzia: Um encontro com a sobrevivência das luzes Quadro 6- Cidades da região turística do Polo Costa Branca CIDADES DA REGIÃO TURÍSTICA POLO COSTA BRANCA/ RN Açu, Afonso Bezerra, Areia Branca, Baraúna, Carnaúbais, Galinhos, Grossos, Guamaré, Ipanguaçu, Itajá, Macau, Mossoró, Porto do Mangue, São Rafael. Tibau Fonte: Brasil (2016). As festividades da padroeira de Santa Luzia, uma das mais representativas do Estado do Rio Grande do Norte, faz parte do Polo Costa Branca e é realizada na cidade de Mossoró - município que contabiliza 295.619 habitantes de acordo com o censo de 2017 e está a 281 km de distância da capital potiguar. Mossoró faz parte da Região turística do Polo Costa Branca que surge a partir do Decreto nº 18.187, de 14 de Abril de 2005. Atualmente fazem parte do seu escopo 15 cidades; seus de recursos financeiros são captados através de programas, convênios e contratos de repasse. A chamada do turismo nessa região se dá com base na cidade de Mossoró, tanto o material organizado pela prefeitura, quanto pelo governo do Estado valorizam os aspectos 209 Fotografia de autoria de Canindé Soares registrada em 29 de outubro de 2017. Monumento aos Mártires de Uruaçu e Cunhaú, município de São Gonçalo do Amarante/RN. 284 culturais da cidade, que de acordo com os agentes organizadores do turismo seria um tipo de “vocação” do local. Em torno desses aspectos culturais foi construída a ideia de Mossoró Cidade Junina tendo como ápice festivais de quadrilhas e o espetáculo Chuva de Bala no País de Mossoró exaltando a resistência da cidade ao bando de lampião. E a Festa da Santa Luzia realizada em dezembro com missas, novenas, leilões, apresentações musicais e culturais e procissão. O destaque é dado para o Oratório de Santa Luzia, espetáculo teatral que conta a história da mártir de Siracusa. A cidade conta ainda com um memorial que narra a resistência de Mossoró ao bando do cangaceiro lampião e em suas proximidades contém uma praça de convivência que faz parte do corredor cultural do local, com bares e restaurantes decorados com representações do Lampião, Maria Bonita e elementos da caatinga. Os anos de 2008 e 2013 aparecem em destaque nesse polo, tendo em vista o montante de renda destinado ao turismo, sendo primeiro o valor de R$ 5.113.125,00 e R$ 4.631.250,00. Essas somas corresponderam aos vários tipos de convênios feitos com alguns municípios da região turística, sendo o último praticamente todo destinado ao município para obra de infraestrutura urbana em uma Avenida de Pendências. Os investimentos ainda ocorrem em âmbito de estruturas básicas. Ao percorrermos essa região turística várias questões são observáveis, como falta de sinalização, estradas precárias, estabelecimentos de hospedagem escassos e de qualidade questionável. De acordo com a categorização do desempenho de economia do turismo no Rio Grande do Norte, oferecida pelo Ministério de Turismo (2017), nessa região com 16 municípios, 9 estão na categoria D (sendo considerado deficiente em termos de atividade turística), 2 contém seus valores complemente zerados, Guamaré e Tibau estão na categoria C. Somente a cidade de Mossoró consegue chegar à categoria B, sendo a segunda maior cidade do Estado em aspectos econômicos. A religião nos últimos meses ganhou fórum de grande potencial. Nesse segmento, o devir é a adesão ao espetáculo das estátuas gigantes, embora, ainda não concretizada, o projeto já está adiantado. Durante as entrevistas realizadas na primeira visita ao município ficou perceptível que já existe uma expectativa significativa da população para a construção da estátua – a visita se deu entre os dias 10 em 13 de junho de 2015; momento em que buscamos conhecer a cidade, caminhar nas ruas, conversar com os moradores, visitar a igreja de Santa Luzia, os espaços da festa, também, espaços de outros cultos. Foi unânime a afirmação de que os benefícios do turismo correlacionado a construção de uma estátua da santa seriam positivos, até mesmo entre os evangélicos. Entrevistado o, então, vereador Vingt-Un Rosado Maia Neto (PSB), nos afirmou que no início do ano de 2013 a câmara dos vereadores apresentou através do parlamentar Genivan Vale 285 uma emenda aditiva ao Plano Plurianual (2014-2017) com a proposição de um estudo de viabilidade para a construção de um complexo turístico religioso a Santa Luzia; que se localizaria na Serra de Mossoró. A proposição ganhou o apoio do presidente da câmara, Francisco José Lima Silveira Júnior, que pouco tempo depois, mediante afastamento judicial de prefeito e vice-prefeito, passou a assumir a prefeitura de Mossoró dando ênfase ao projeto. De acordo com Vingt-Un, nesse momento, os representantes locais da igreja católica não apoiavam o projeto. Durante outro momento da pesquisa de campo, no ano 2016 – em observação não participante, na reunião do Polo Turístico Costa Branca, que se realizou no Hotel Costa Atlântico, praia de Areia Branca, cidade de Mossoró –; constatamos avanços em relação às primeiras expectativas à construção do complexo turístico religioso. Já havia sido assinado pelo prefeito Francisco Júnior a desapropriação do terreno para organização do santuário; existia uma comissão especial para incentivar o andamento do mesmo, composta por representantes da diocese, da sociedade civil, do poder executivo e legislativo; projeto e maquete pronta; tudo associado ao discurso do turismo como o futuro de Mossoró. Na reunião citada, Renato Fernandes, nesse período secretário de turismo da cidade, afirmou a proximidade da conclusão do aeroporto de Mossoró, concomitante, ao andamento do projeto do complexo turístico; em seu discurso as perspectivas eram de bastante otimismo, levando em conta que um aeroporto e um santuário parecem capazes de garantir as expectativas de desenvolvimento econômico esperadas. Segundo esse informante, a obra física não começou porque o IDEMA não concluiu o licenciamento do espaço para implantação da estrutura, repassando a responsabilidade para a secretaria de meio ambiente. O objetivo é que tudo se concretize, de acordo com o que foi projetado. Sobre a futura construção: será uma estátua de Santa Luzia que deverá ter 80 metros de altura, superando a sua concorrente com 50 metros, o objetivo é ser a maior estátua católica do mundo, esperam ainda a visita de 10 mil indivíduos por dia. Depois da estátua da Santa Rita concretizada o desejo de construir estátuas de padroeiros passou a compor, até mesmo, o arsenal de promessas para campanha eleitoral, com certo sucesso. Sobre a Santa Luzia em Mossoró, essa é a Padroeira do município, as suas festividades envolvem um número significativo de pessoas. O cenário da festa é envolto pelos variados grupos que se articulam em função dos interesses expressos na competência e nas relações de poder, específicas de cada setor. São grupos de políticos, de empresários, de comerciantes, do clero e dos moradores locais que vão construindo suas referências mediante os múltiplos significados que as festas propiciam. Essas relações se dão praticamente durante todo o ano, 286 engloba reuniões, jantares, visitas para aquisição de recursos financeiros, envolvimento de clubes locais, como o Rotary Club e seus participantes, organização de rifas, vários outros eventos de porte menor atuam na manutenção desse evento que é a festa da padroeira. As festas de padroeiros têm sido requalificadas não só como momento propício de evangelização e difusão da religião católica, mas também como palco de disputas políticas entre o município e Estado em face aos investimentos provenientes do setor turístico. As maiores festas do Rio Grande do Norte tem a presença garantida do governador do Estado, de deputados, parlamentares locais, até mesmo dos políticos que se situam em ambiente de representação nacional. Na Fotografia 14 é possível visualizar o atual governador do Estado do Rio Grande do Norte, Robinson Faria, acompanhado pelo presidente da Câmara Municipal de Mossoró, Jório Nogueira, caminhando entre a multidão de participantes do eventos, de fiéis e devotos de Santa Luzia na procissão que reune o maior número de pessoas. Se trata do cortejo final, do fechamento do evento realizado aos domingos, percorrendo quatro quilômetros de uma das avenidas principais de Mossoró. Essa é uma das mais tradicionais festas religiosas do Estado e leva anualmente para as ruas do município aproximadamente 100 mil romeiros. “É uma festa contagiante. Sempre que venho me impressiono com a quantidade de fiéis nas ruas”, comentou o governador para o fotojornalismo de Canindé Soares em 13 de Dezembro de 2015, o qual se deslocou de Natal para Mossoró com a comitiva do governador a fim de registrar o evento. O governador, figura central da imagem fotográfica, aparece como o mediador da construção de esperança para as realidades difíceis e das expectativas do turismo e de acumulação capital para o local, sobre o discurso e a tutela da Santa Luzia, são parodoxos que se esbarram mas que estão estranhamente unidos nas relações dos dias atuais. O cortejo religioso tem seu ponto de culminância com a chegada da imagem de Santa Luzia à Paróquia que leva seu nome, nesse dia foi presidida pelo padre Walter Colinni. A transformação da paisagem da cidade para atender a demanda de um evento religioso festivo, refere-se à valorização de símbolos vinculados as experiências das formas e funções da religiosidade de um grupo cultural. Esse espaço, como uma trama simbólica partilhada por todos, reproduz uma visão direcionada de mundo que constrói paisagens religiosas, reflexo da crença e da busca da sua significação (ROSENDAHL, 2007). O enquadramento dá o siginificado do poder das instituições local na figura da Igreja e do Estado, o destaque é para o agente de maior relevo na representação do Estado, que tem trabalhado em algumas vias, pontuais, como já vimos, para fortificar o turismo religioso. 287 Fotografia 14- Representante do Governo do Estado e participantes da procissão210 Fonte: Acerca da Fotografia 15 e da Fotografia 16, essas falam sobre a luz. O que temos são dois enquadramentos, um com prioridade a luz, a mão e os símbolos de referência a santa; o segundo fala sobre a luz e a multidão em caminhada. É um enquadramento investido de significados simbólicos, dos detalhes culturais que envolvem a paisagem, de um construto da imaginação que se materializa em formas, ações e subjetividades. Como coloca Benjamin (1931) em seu texto sobre “A pequena história da fotografia” o fotógrafo procura a luz para extrair do mundo a sua própria escuridão. E, de acordo com os vagalumes que sobrevivem essa luz persiste em seus sentidos. Mas, diante dessa sobrevivência o que Passoline diz é que essa tem sido uma das nossas realidades contemporâneas, “uma realidade política tão evidente que ninguém quer vê-la” (DIDI-HUBERMAN, 2014, p. 38). Se entendermos que a paisagem é um espaço constituído ideologicamente por significados simbólicos e identitários; temporais e espaciais, em suma, culturais, esses elementos captados fazem parte das elaborações socioculturais. Todo o processo tem grande conotação no simbólico desde o pré-evento, que envolve a elaboração da propaganda até a infraestrutura espacial, o evento e o pós-evento com as notícias, fotografias e memórias do espaço transformado. Esses constroem e fixam imaginários que se materializam em paisagens 210 Fotografia de autoria de Canindé Soares registrada em 13 de Dezembro de 2015. 288 com suas cores, objetos, pessoas, sentidos e sentimentos que despertam nos indivíduos que compartilham o cotidiano da mesma. A luz quente que oscila em tons entre o amarelo e o vermelho carrega as noções da paixão de Jesus Cristo. A evidência é dada a fé, nas palavras do fotojornalista: Como podemos observar na fotografia de Santa Luzia em Mossoró, cenas da religiosidade dos católicos mossorenses que em todo trecho da procissão usa apetrechos religiosos, principalmente essas lanterninas de velas, são famílias, idosos, jovens, crianças. Cenas muito marcantes, muito legais de ver e fotografar” (informação verbal, 2016)211. De acordo com o fotojornalista a expressão das pessoas e dos seus atos de fé simbolizam o respeito, a união entre esses grupos, até mesmo um saudosismo dos seus tempos de criança por afirmar a crença dos pais e a atuação nesses ritos de fé. Porém, Canindé Soares nota todas as transformações, percebe as mudanças nos espaços e as sofisticações. O que lhe encanta é a manutenção ou requalificação de alguns símbolos em um momento atual. Em sua concepção, que não se compreende enquanto uma pessoa religiosa, a fé tem seu lugar, tem importância para os enredos que a cidade encena, para a união dos indivíduos, para fortalecer algum tipo de respeito e de forças. Nas palavras do governador do Estado: Vivemos momentos de dificuldades é fato. E um dia como hoje é para a gente aliar a fé aos desejos mais concretos de melhoras. Um dos meus pedidos é que Santa Luzia ilumine os céus com muita chuva para nosso Alto Oeste, assim como também nas regiões mais atingidas pela seca. Disse o governador, que ficou até o final do evento, acompanhando de perto as celebrações religiosas, os cânticos e apresentações artísticas do povo mossoroense (informação verbal, 2015). Se mirarmos a luz da Fotografia 15 com as palavras de Robinson Farias, apresentadas anteriormente, encontraremos o clichê do Nordeste, em seu discurso. A paisagem nordestino- potiguar aliada à devoção carrega ainda o estigma da seca. A luz teria sentido, para dar forma aos antigos mitos que estão aliados à esperança das preces do povo e das promessas. Um modo estratégico de retirar as responsabilidades das questões sociais do plano das relações sociais e coloca-las em outras dependências. Se essas representações por um lado abrangem indivíduos locais e agregam símbolos na construção de suas memórias espaciais, fortalecendo as relações de pertencimento e de coletividade; por outro lado, se prestam a inculcação de ideologias enquanto instrumentos de hegemonia diretamente ligados às relações de poder. Ideologias essas que são encomendadas, planejadas e produzidas servindo às finalidades concatenadas a lógica 211 Informações concedidas em entrevista com Canindé Soares em 14 de Dezembro de 2016 para fins de realização desta pesquisa. 289 capitalista de produção/consumo de espaços, pessoas e objetos. Visualizadas direcionam a um tipo de espetacularização cultural; de aceitação passiva, obtida pelo monopólio da visibilidade (DEBORD, 1997). Esses eventos religiosos enquanto manifestações culturais estão circunscritos por um conjunto de significados construídos em um processo histórico e cultural de tensões cotidianas que estão ocultos na representação mais aparente do espaço: a paisagem. Na Fotografia 16 são apresentadas diferentes realidades que se encontram nessa caminhada por fé. Observamos uma pluralidade não amarrada no estereótipo de um pretenso tipo nordestino, mas, sim rostos construídos pelas misturas que nos compõe. São pessoas posicionadas em vida e em marcha que se encantam com a luz e a segue nesse trajeto pela fé. As faces surgem no primeiro plano da imagem fotográfica e são faces de um grupo médio participantes da fé católica, de pessoas belas, com roupas atuais, composto por uma mulher, dois meninos e uma menina, formam um grupo com um tipo de emoção valorizada pela luz da vela e a astúcia do fotógrafo. A luz compõe um tom e uma forma nesses rostos, essa é uma das suas peculiaridades, revelar ou esconder traços; em par com a sombra ela dá a ver novos cursos, permite a mutação e a flexibilidade do que se vê, aumenta e diminui emoções. Rostos, gestos e pessoas vistos por luzes incandescente, amarelada, sempre aparecem diferentes entram no jogo da iluminação, do simbolismo representado: fé, técnica, arte e espetáculo. De acordo com a pesquisa organizada por Alves (2007) sobre o turismo religioso no Estado do Rio Grande do Norte (RN), o crescente número de visitantes a lugares considerados sagrados, sejam eles periféricos ou centrais, tem motivado diferentes segmentos sociais – políticos, autoridades civis e religiosas, empresários, pesquisadores e moradores locais – a promoverem as festas religiosas do catolicismo transformando as devoções em atrativos turísticos que visam atender à nova ordem econômica de produção e consumo de bens materiais e imateriais. Compostas por uma sequência de rituais as devoções religiosas ocupam um lugar central no cenário festivo. Via de regra são práticas que expressam agradecimentos e pedidos que giram em torno de problemas cotidianos, sem necessariamente contar com o aparato da doutrina oficial e que mesmo reconhecendo a legitimidade dos sacramentos, reserva sua forma peculiar de manifestar a fé. São devoções entrecruzadas aos sacramentos trazidos pelo clero e aceitos pelos romeiros, algumas vezes compõem-se de elementos nada afeitos à liturgia oficial. Em um movimento dinâmico esses rituais também vão se adequando a nova lógica, construindo novas figurabilidades. Na Fotografia 16 é nítido que o rosto adulto feminino é carregado de valores, apresenta- se como sério, composto de gestos organizados a fim de conduzir de modo coerente a 290 caminhada, uma escultura em movimento. O menino ao lado da mulher revela empolgação com o que vê a sua frente, sendo organizado para lograr a fé. Mais atrás, no lado esquerdo, outro menino, pouco mais jovem, sendo parte do grupo brincando com a luz, distrai-se com a vela e sorri em brincadeira de criança que observa o vento na ânsia de não deixar sua luz parar de brilhar. Quebrando a marcha católica que segue em frente com a meta de expandir o seu canto, a sua concepção, a sua verdade e a sua fé, está à menina fora da forma, da esquerda para a direita do observador deixa entrever a apreensão da caminhada. Todavia, ainda alheia aos sentidos das emoções que se materializam nas faces e gestuais dos atores que encenam esse ritual ela corta a cena e se desloca na perpendicular encantada com a luz e desorientada com o seu sentido. Na sequência os rostos vão se desconfigurando e tornam-se apenas parte de uma massa, todos perdem a forma para o grande espetáculo de luzes que piscam como vagalumes sobreviventes. Todos caminham com a esperança; em busca de cura para si ou pessoas queridas. Alguns apenas para garantir a manutenção do que lhe satisfaz; os despossuídos de vários bens materiais encontram na fé a alternativa para tentando se inserir mais intensamente nas relações sociais. Todos são atraídos pela luz como se fossem mariposas em suas próprias histórias de vida imantada na trajetória tranquila que os coloca como parte do todo iluminado no meio da escuridão. Esses são os significados armazenados com esses símbolos (GEERTZ, 1989, p. 144) que dão a ver conhecimentos sobre a forma do mundo e dos comportamentos diante dele. 291 Fotografia 15- Luzia Luz212 Fonte: Fotografia 16- Santa Luzia e o caminho iluminado213 Fonte:< http://canindesoares.com/site/wp-content/gallery/santaluziaprocissao15/13122015- _MG_5416.jpg> Essa é uma festa de forte apelo simbólico para o município que, unida ao turismo, tem 212 Idem. 213 Idem. 292 a espetacularização como elemento de abertura para a sua futura organização. O evento festivo de público estadual amplia-se através dos laços firmados no próprio local, a incidência do lugar é significativa nesse arranjo por organizar as identidades em torno do evento. Todavia, a realidade global é que dá os moldes finais em favorecimento das aglutinações; nesse ínterim local/global estão em constante confluência. A promoção se dá em cima das possibilidades de trabalho que giram em torno do evento, das propostas de atividades múltiplas que agregam diferentes demandas, desde a fé até diversos tipos de lazer. O acesso mais fácil aos deslocamentos; dos equipamentos urbanos inseridos capazes de aglomerar diferentes equipes que atuam nos vários locais e tipos de festividades, são estruturas divulgadas que introjetam novas práticas e modifica, em grande medida, as expectativas da igreja, ao mesmo tempo que alimenta o seu discurso. Em diálogo sobre a festividade e o turismo com a população local, como motoristas de táxi, funcionários de hotéis, comerciantes e transeuntes é fácil perceber que esses atores sociais compreendem o evento em termos de incentivo público; observam o grande número de visitantes circulando na cidade. Todavia, apontam que a festa se dá em torno dos habitantes do local, dos seus familiares que foram residir em outros locais, moradores de cidades próximas e dos excursionistas que vem para vivenciar os ritos de fé. A religião e os hábitos locais apoiam e justificam o evento remetendo a maior coesão e fortalecimento da tradição. Já o turismo faz parte do processo de escolhas políticas e do modelo em que se deseja pensar a cidade nos moldes globais. Sobre o turismo em si, não existe, como não existe a ritual religioso em si, as possibilidades se sedimentam no tecido social no jogo amplo de relações de poder. Ao fotografar o espaço de celebração, Canindé Soares não capta um cenário que por si só expressa a realidade religiosa, festiva ou turística. Porém, o fragmento registrado significa a representação de um espaço modificado e captado do seu ponto de vista sobre as relações sociais e econômicas que o movimenta (BERNARDET, 2006). 5.4.3 Festa de Sant’Ana: “sofisticada criação de identidade”214 214 Utilizamos como subtítulo parte do título do artigo Nordeste: uma sofisticada criação de identidade regional, homogeneizando o diverso, elabora pelo historiador Albuquerque Júnior (2006b) pois vai ao encontro das perspectivas que queremos dar ênfase no espaço em questão. 293 Quadro 7- Cidades da região turística do Polo Seridó CIDADES DA REGIÃO TURÍSTICA POLO COSTA BRANCA/ RN Acari; Caicó; Carnaúba dos Dantas; Cerro Corá; Currais Novos; Florânia; Jucurutu; Parelhas; Serra Negra do Norte. Fonte: Brasil (2016). A festa de Sant’anna é realizada no município de Caicó, cidade com 68.222 habitantes de acordo com o censo de 2017, localiza-se a 269 km de distância de Natal, na região Turística do Seridó. O município de Caicó é um dos municípios que tem sido apontado como de maior relevância ao turismo, tendo como sublunar para tal concepção, além de alguns equipamentos de infraestrutura para apoio da atividade, o atrativo cultural que é a festa da Padroeira Sant’Anna. A representatividade da festa concomitante as expectativas da interiorização do turismo estimulou a construção de um Complexo Turístico denominado Ilha de Sant’Ana. Esse empreendimento foi inaugurado no ano de 2008, durante o governo Lula. Segundo informações da Secretaria de Turismo do Rio Grande do Norte o Estado apoiou a obra investindo uma quantia de R$ 18.000.000,00. A área de construção compreende 147 mil metros quadrados e é utilizada para eventos como a Festa de Sant’Ana, no mês de julho. Em relação aos investimentos no período da pesquisa de campo estava sendo realizada obras de melhorias na infraestrutura dentro da Ilha de Santana, eram essas as adequações de instalação de equipamento anti-pânico e acessos radiais ao ginásio da ilha orçados em R$ 86.580,52, com recursos do governo do Estado. Também, a ampliação de proteção contra descargas atmosféricas. Ainda, sobre esse ambiente, está previsto a construção de três pousadas - cada uma dispondo de 20 unidades de hospedagem, com infraestrutura de suporte como estacionamentos, pontes, avenidas, boxes para vendas de produtos artesanais, parques e passarelas. Sobre o nome Caicó o historiador e folclorista Câmara Cascudo (1955), coloca que sua origem se deve aos índios e, dentre as várias versões, a mais aceitável é a que defende sua gênese a partir dos termos Acauã e Cuó que servem à designação de acidentes geográficos (rio e serra) encontrados na região. O termo Acauã pertence ao idioma tupi, enquanto Cuó é proveniente da língua dos Tapuias e Tarairiús. Esses indígenas identificavam ainda o rio pelo nome de "quei", o que sugere que Caicó seja uma corrutela de "Queicuó", o mesmo que rio do Cuó. Nessa cidade localiza-se a maior festa de padroeiro do Estado. O evento tem seu ponto de referência no Polo Seridó, região turística que passou a existir a partir do Decreto nº 18.429, de 15 de Agosto de 2005; composta por 10 munícipios listados no quadro acima. 294 Caicó, assim como as outras cidades listadas, tem os seus recursos financeiros captados através de programas, convênios e contratos de repasse. Nesse polo os recursos alcaçaram seu ápice no ano de 2007 e em 2013, reunindo a ordem de R$ 6.203.500,00 e no ano de 2013 captou o valor de R$ 4.745.250,00. No ano de 2007 ocorreu uma série de convênios, no município de Caicó tem-se o valor de R$ 975.000,00 a fim de se erguer uma praça e um outro convênio foi celebrado com o município de Currais Novos, no mesmo valor, para a construção de um centro cultural e a requalificação de uma praça. Ainda em Currais Novos o valor de R$ 2.000.000,00 foi direcionado, no ano de 2013, para a implantação do centro cultural Parque da Pedra do Cruzeiro. Nesse mesmo ano a cidade de Jucurutu foi beneficiada com a ordem de R$ 1.000.000,00 para a construção de um teatro municipal e aquisição de seus mobiliários (LIMA, 2017). Dos 10 municípios envolvidos; Carnaúba dos Dantas não atendeu nenhum requisto, zerando na pontuação. E 7 cidades foram categorizadas pelo MTUR como deficientes, ficando com a representação D. Dentre essas cidades, apenas Caicó foi colocada na condição de regular com o símbolo C. Comemorada há mais de dois séculos a Festa de Sant’Ana é realizada todos os anos em uma das semanas do mês de julho. Durante o período que antecede a celebração os moradores, a igreja, o comércio, o poder público local e estadual mobilizam-se a fim de criar condições e infraestrutura para esse evento. No período festivo a população da cidade praticamente duplica colocando em cena variados elementos que destacam uma coletividade heterogênea, não só do ponto de vista religioso, como também do ponto de vista econômico. O signo urbano se torna ainda mais variado para convergir em um espetáculo ornamental dinâmico e produtor de novos efeitos imagéticos, novas figurabilidades. Antes da abertura da festa as cidades vizinhas começam o movimento de deslocamento, como acontece com um grupo de aproximadamente 50 pessoas, composto por homens, mulheres, jovens e crianças conhecidos como os “Peregrinos de Currais Novos”. Esses moradores vizinhos são auxiliados por uma estrutura que lhes garante um deslocamento com segurança, higiene e alimentação. Caminham até a cidade de Caicó pernoitando em fazendas e pousadas preparados para esse acontecimento. A chegada desse grupo marca o início das comemorações que envolvem caracterizações de anjos, roupas específicas para pagar promessas ou para apresentações, cantigas que fazem parte do ritual e valorização da banda municipal Recreio Caicoense. São organizações que vem acontecendo, com transformações em acordo com a demanda de momento, desde de 1908. O encerramento dessa festa se dá com os festejos e fogos de artifícios (ALVES, 2007). 295 A dimensão da festa, as práticas religiosas e o tipo de relação que os fiéis estabelecem com as imagens sagradas constroem a importãncia para o evento da Sant’Ana. São símbolos que vem de uma ordem hegemônica, entretanto, encontram no junção local/global suas possibilidades de tranformações em concordância com as manifestações religiosas do catolicismo que passam a ser revalorizadas e propagadas pelos programas de políticas públicas que buscam modelos condizentes com o mercado turístico. Diante desse mercado as devoções são “reinventadas” e/ou reinterpretadas, tanto por parte daqueles que as vivenciam quanto por grupos distintos que veêm nos rituais religiosos um espetáculo da fé. Isto é, em um tempo e lugar onde as continuidades entre o passado e o presente são des-construídas e re-construídas em uma variedade de formas e ritmos, as tradições também foram "inventadas" (HOBSBAWN, 1984). Ou seja, se um sintoma irrompe em um corpo, em um determinado momento histórico como imagem, como já foi visto nas tensões temporais, também emergirá uma imagem na sua manutenção em um sintoma-tempo (HOBSBAWN, 2015a). Vamos a história que circunscreve o cenário da festa à Santanna, a avó do sertão. Os eventos em torno de Sant’Ana ganharam importância através do mito de fundação da cidade que encenam as lutas dos moradores contra a natureza considerada selvagem. Entre as diferentes versões uma fala sobre um vaqueiro perdido em frente a um touro bravo – possuído por Tupã – e nisso ele rogou à Sant’Ana que o protegesse do ataque do animal, a santa teria feito por mágica o animal desaparecer e em sua homenagem o vaqueiro construiu uma capela dedicada à sua devoção. Durante a construção uma seca acometeu o local e o vaqueiro recorreu a Sant’Ana solicitando que ela nunca deixasse aquele poço secar, conta-se que nas secas de 1977, 1982 e 1983, momentos considerados de grande estiagem o poço continuava cheio de água. No entorno dessa capela começou a povoação de Caicó. O interessante é que a estrutura desse mito está presente em outras cidades que tiveram seu espaço produzido pela pecuária, valorizando assim as encenações e relações que coadunam-se a estes espaços. Note-se que Sant’Ana era considerada a protetora dos pastores (ALVES, 2007). Outra versão é colocada por Dantas (2001), nela Caicó era habitada por índios ferozes dizimados pelos colonos e a divindade desses índios teria se transformado em um touro poderoso. Um vaqueiro perdido se vê diante desse touro e solicita a Sant’Ana o desaparecimento do touro; em troca constrói uma capela com um poço, em um ano de seca com a intervenção da Sant’Ana o poço de água existente continua cheio. Ainda, fala-se que em 1725, o fundador de Caicó um português chamado Manuel de Souza Forte mandou construir uma capela para Sant’Ana a fim de obter como graça água para a criação de seu gado. Como se percebe atribui-se a Sant’Ana o poder de conceder ao Caiacoense a condição de lidar com o 296 problema que limitaria a sua existência e conseqüentemente lhe aflige que é o problema da estiagem (ALVES, 2007). Os mitos colocam nas entrelinhas como problema do Caicoense a questão do colonizador agricultor, nisso recorre aos seus símbolos para obter a ajuda; Sant’Ana canaliza esses elementos que legitimam a entrada dos colonos através do domínio da natureza e favorece a organização da cidade. Um vez que esse tipo de culto vem da Espanha e de Portugal se espalha em território brasileiro por intermédio da colonização. Tem em seu ápice a valorização da família com a crença apoiada na mãe e na avó de Jesus Cristo. Enquanto expressão da tradição católica a Festa de Sant’Ana adquiriu as suas transformações e agregou traços das práticas locais. Em seu processo percebe-se a mudança nas práticas religiosas, entra em cena a presença de um “capital” religioso coletivamente possuído com transformações no curso do tempo e de acordo com os espaços inseridos (Bourdieu, 1996). Em um contexto outro os imaginários se libertam, coadunam-se as lógicas atuais e promovem a manutenção do discurso como ferramenta estratégica da memória do lugar. A memória comum aos membros de um grupo se expande para outros grupos e a festividade que gira em torno dessa crença responde não somente a uma demanda inerente aos produtores do sagrado, como também, a todos aqueles que se apropriam de seus espaços para reproduzir, sistematizar e legitimar a religião dentro de um contexto político cultural e socioeconômico. Para os moradores de Caicó a festividade dá sentido a ideia de lugar como referênciado por Marc Augé (1994). Os moradores percebem-se como culturalmente privilegiados e diferenciados das outras cidades do estado. Colocam-se como: Um povo que, segundo seus próprios depoimentos, sobrevive às condições ambientais adversas, é forte, corajoso, desbravador, empreendedor, inteligente e muito criativo. Ser de Caicó é como portar uma ‘grife’, uma marca especial, que se estende ainda aos produtos que ali são produzidos como símbolo de qualidade e de merecimento da preferência dos consumidores (ALVES, 2007, p. 11). Ainda se subentendem como hospitaleiros, os moradores representam o que Derridá (2002) denomina “hospitalidade incondicional”, aquela que independente da origem e da identidade do outro pressupõe sua aceitação como um semelhante. Essas são concepções ao mesmo tempo em que colocam em si valores comporta a sua própria contradição. Como coloca Didi-Huberman (2010) é estar entre um diante e um dentro. Em Caicó o Arco do Triunfo, um dos cartões-postais da cidade no presente (destacado na Fotografia 17), é um espetáculo da história. Como é possível observar, a Fotografia 17 é animada pelo símbolo que auxilia na estrutura do valor do evento religioso local, a paisagem faz parte das performances que envolve as celebrações e inscrevem-se no cotidiano dos 297 indivíduos locais; apresenta o monumento em formato de arco, com 16 metros de altura e 8 metros de largura localizado em frente a Catedral de Santana, o qual serve como homenagem a imagem da Nossa Senhora de Fátima peregrina que passou pela cidade de Caicó. O Arco do Triunfo é uma passagem, um arco rodeado por palmeiras imperiais que representam um portal, outras árvores que enfeitam e deixam a passagem a vista, juntamente, com a escultura réplica da imagem de Nossa Senhora de Fátima que circulava como peregrina nas cidades, ela é envolta por uma aura com dezenas de lampadas na parte central da imagem e no ambiente mais elavado. Essa é a porta de passagem em Caicó, um local, do modo como coloca Didi-huberman (2010, p. 236) de abertura, mas de abertura condicional, já ameaçado por vários discursos que teimam em entrar. É também um traço tradicional, arcaico e religioso que registra a presença de uma sociabilidade festiva fundada em valores coloniais. O sentido da passagem na maioria das vezes encenado por uma porta, faz parte do nosso arsenal imagético cristão. As passagens estão presentes nos discursos bíblicos e poéticos que narram as portas que se fecham na dor, também, em arrependimentos, em assombos divinos; mas, são possíveis de se abrir condicionadas por reinvenções e criatividades na continuidade das memórias descontínuas. As atividades que ocorrem nesse espaço são dotadas de sentidos, como coloca Certeau (1994), em analogia com as práticas dos indivíduos que a significa em sua dinâmica onde a hospitalidade e a generosidade agregada são apreendidas nos dias atuais pelo turismo. Conforme destaca Cavignac e Alves (2007) Caicó tem um discurso identitário em termos de coletividade que o coloca enquanto dotado de hospitalidade e abertura ao outro. A aceitação do outro e de si, tal qual é colocado nos convida a passar pelo arco, pela porta da história das identidades que petrificam e acumulam os espaços de símbolos e objetos esculpidos, como esses arcos, para nunca transformarem-se em um outro, para esconder as diferenças e a estratificações criando um cenário ficcional homogêneo. A festa é um espaço de disputa social, de disputa de olhares, até mesmo de embate entre os jovens pelos melhores espaços da praça pública, dos termos que definem e separam os participantes do evento, como os “cú doces” para as classes mais abastadas e os “mundiças” para as pessoas com menor condições financeiras. É ainda um espaço de disputa política, onde grupos organizam as suas estratégias e demarcam os seus territórios. Não é homogêneo para o que está interno e nem para o que chega. As identidades que se formam nesse ambiente são originárias de um olhar de cima para baixo funcionando diante dos seus elementos indispensáveis. É o olhar organizado pelas regras do ver e do dizer que leva ao símbolo da religiosidade como o expoente maior, como o que vem após a porta. Nessa 298 fotografia o que vem dentro observa-se adiante, são os modos de ver consegrados pelo tradicional. Como Durval (2006a, 2006b) enfatiza, nas raias da seca se formula, também, a idéia de um Nordeste de cultura única e própria que tradicionaliza os ritos e os coloca como genuínos ao local, como se a própria tradicionalização dos costumes já não fosse também uma elaboração das interações sociais. A própria religiosidade que coloca as relações dos fiéis com a padroeira como genuínas ao local, parte da elaboração do que é escolhido para ser considerado como genuíno ou não. Nesse caso, ainda devemos levar em conta que a religão em questão e seus arquétipos são parte de um processo de colonização e mascaramento de outras possibilidades. Nas relações sociais o que é genuíno é o que foi inventado e formalizado. Essa passagem encaminha a igreja, leva o visitante a padroeira que guardaria a história da cidade, os motivos da sua construção e o seu sentido, deixando em relevo a ideologia do dominador. É uma entrada que direciona a um contexto rural, religioso, tratado como tradicional, marcado pela coragem, resistência e valentia de seus homens. Uma relação social construída e favorecida em sua manutenção por meio da elite local. Ver e entender esses espaços como parte de uma cultura genuína do povo, poderia ser apenas uma visão romântica, mas também reforça, mesmo que não seja de maneira intencional, ideologias dominantes. Fotografia 17- A passagem para Sant’Anna do Caicó215 Fonte: < http://www.csfotojornalismo.net/Cidades/i-Z4qRTQf > 215 Fotografia de autoria de Canindé Soares registrada em de 25 de julho de 2014. Igreja e Cunhaú, município de São Gonçalo do Amarante/RN. 299 A Fotografia 18, por sua vez, revela um momento da Feirinha de Sant’Ana de Caicó, enquadramento de ambiência concorrida e popularizada, com cadeiras plásticas, pessoas vestidas com trajes mais despojados em acordo com o lugar simples e festivo. A “feirinha” aparece marcando a identidade como mais um mito da região, nesse período festivo destaca-se como um espaço lúdico. Ao circularmos o olhar por todo o quadro, a impressão que se tem é a dos balbucios, gargalhadas, do zum-zum-zum, do calor, suor que emana das pessoas que circulam comprando, vendendo e se socializando. É um espaço apertado e confuso, que ao mesmo tempo em que desperta o desejo e a curiosidade de se fazer parte, pode dar agonia pois indica que o local já está lotado. A feirinha de Sant’Ana do Caicó, é um local onde centenas de pessoas se encontram: visitantes, turistas, vagabundos, residentes e figuras populares no cenário político, social e religioso do Estado. A feira atua como uma metáfora, tal qual Albuquerque Júnior (2013) coloca em seu texto, em que analisa como o processo de fabricação do folclore e da cultura popular para o Nordeste emerge a partir de mensagens, de sistemas de comunicação, de discursos produzidos através das relações sociais, temporalmente e espacialmente localizadas. Nessa metáfora representa o espaço do artesanato, das coisas misturadas, do arcaico, do comércio antigo como parte da cidadezinha rural do interior. A imagem nordestino-potiguar está atrelada ao arsenal imagético que constrói a cultura popular e artesanal, dita autêntica e folclórica pertencente ao Nordeste. Entre as visualidades que dão forma a essa região, para Albuquerque Júnior (2013), a feira é um local estratégico para se pensar os discursos em torno do Nordeste - uma vez que é um ambiente que aparece no Brasil no período colonial; encena as primeiras manifestações comerciais, ainda um espaço onde ocorriam vários tipos de sociabilidades no período colonial. A feira está presente em grande diversidade de lugares, faz parte da cultura ocidental, organiza-se também nos ambientes mais desenvolvidos. Porém, na paisagem nordestino-potiguar ela surge com um sintoma do espaço interpretado e legitimado pela ciência, pela literatura, pela música, teatro e cinema, entre outras produções culturais, como agora o turismo que reinterpreta essa realidade fazendo dela um cenário mágico e atrativo. A feira de Caicó aparece no enquadramento de Canindé Soares, como uma paisagem representante da festividade da padroeira do interior, paisagem que embora diferenciada, rodeada das sociabilidades contemporâneas, inclusive da multidão, da aglomeração de pessoas no mesmo ambiente, é um discurso que resiste e sobrevive como marca do local. O lócus privilegiado das muitas formas e significados elaborados sobre a cultura nordestina: o espaço do artesanal, do folclórico, da alegoria, etc. Um espaço que amplia conforme as novas relações 300 sociais que passam a priorizar a identidade empalhada para ser divulgada e promovida no turismo. A feira é um local de estratégias políticas e sociais, e acabou sendo apontada em 2014 como a mais prestigiada, dos últimos 20 anos, principalmente, nesse ano em que a imagem foi captada- por ser um ano eleitoral onde os políticos candidatos a cargos eletivos aproveitam para aparecer e conquistar eleitores, como aparece nas Fotografias 19 e 20. A extensa programação reúne milhares de pessoas nos festejos da padroeira da cidade de Caicó no entorno da Catedral de Sant’Ana para se confraternizar, se mostrar. São pessoas que encontram nesses espaços a sua satisfação, a estratégia e oportunidades procuradas em um cenário mercantil, de aparências que se reproduzem em uma encenação entre personagens que procuram a visibilidade. Em consonância de evidências, na Fotografia 20 os personagens aparecem com a singularidade do ano eleitoral; bastam poucos minutos em ambiente público para cristalizarem a presença. Circulam em cada ambiente da festa, entre abraços, sorrisos em uma simpatia referente ao mundo do espetáculo, onde tudo parece ser; partidos políticos se transformam em cores, os personagens da elite política marcam o registro de sua ida até o povo, até o ambiente interpretado como popular. Nessa fotografia observamos indivíduos da oligarquia pertencente à família Alves, que concentram o poder político e comunicacional no Estado: Garibaldi Alves no lado esquerdo da fotografia, que no momento era Ministro da Previdência Social no governo da Dilma Rousseff; no outro extremo, ao lado direito Henrique Alves, então candidato a governador do estado, após derrota foi agraciado com o cargo de Ministro do Turismo. Ambos os sujeitos possuem grande influência na política local, reúnem apoios e desafetos. Entretanto, atualmente, também estão envolvidos em escândalos e corrupções. No momento do clique marcam a presença entre os “bacuraus” – apelido colocado em seus eleitores –. Os sorrisos treinados e a disposição escolhida dá centralidade a um dos mais novos membros do clã que começa a barganhar a atuação direta no cenário político local. Na Fotografia 21, por sua vez, é apresentado o grupo de políticos composto por figuras que marcam oposição aos supracitados. O candidato a governador Robinson Faria, que atualmente representa o Estado do RN e no momento aparece entre seu grupo de eleitores denominados por “araras”. Mesmo marcando uma oposição ao grupo anterior se unem em interesses em concepções e fazem parte da oligarquia que centraliza o poder estadual. Esse é o sintoma-tempo que aparece na fotografia em questão, o espetáculo do tempo outro; das oligarquias, dos apadrinhamentos que giram em torno da manutenção de poderes e valores em um cenário fugídio, fragmentado, onde convivem distintos valores na feira que não mais os suportam. Mesmo que a feira nessa paisagem seja gestada por seu valor agregado a concepção 301 colonial e religiosa, ela é um ambiente transformado, nada igual ou com sociabilidades similares a do passado, modificada faz parte do espetáculo atual e global, mesmo que chame uma identidade local pretérita. A partir das práticas desses grupos e de seus movimentos, também surpreendidos por transformações e embates internos sua ideologia dominante, surge o espetáculo enquadrado na imagem que transforma os signos legitimando-os a partir das representações visuais que mais circulam na nossa sociedade: a fotografia. E sem dúvida o nosso tempo prefere a imagem à coisa, a cópia ao original, a representação à realidade, a aparência ao ser. Ele considera que a ilusão é sagrada, e a verdade é profana. E mais: a seus olhos o sagrado aumenta à medida que a verdade decresce e a ilusão cresce, a tal ponto que, para ele, o cúmulo da ilusão fica sendo o cúmulo do sagrado (DEBORD, 1997, p. 13). Fotografia 18- Feirinha de Famosos e Anônimos216 Fonte: 216 Fotografia de autoria de Canindé Soares registrada em 25 de julho de 2014 durante a feirinha da Festa de Santana do Caicó. 302 Fotografia 19- Festa de Sant’ Anna do Caicó – espetáculo da oligarquia verde217 Fonte: Fotografia 20- Festa de Sant’Anna do Caicó – espetáculo em vermelho218 Fonte: 217 Idem. 218 Idem. 303 5.4.4 Santuário do Lima: um ponto turístico? Quadro 8- Cidades da região turística do Polo Serrano CIDADES DA REGIÃO TURÍSTICA POLO SERRANO/ RN Alexandria; Apodi; Carnaúbas; Encanto; Felipe Guerra; Frutuoso Gomes; Janduís; José da Penha; Lucrécia; Luís Gomes; Major Sales; Marcelino Vieira; Martins; PATU; Pau dos Ferros; Portalegre; Riacho da Cruz; São Miguel; Serrinha dos Pintos; Venha Ver e Viçosa Fonte: Brasil (2016). No alto Oeste do Estado do Rio Grande do Norte localiza-se o município de Patu, nome que remete aos seus primeiros habitantes, os índios Cariris. A denominação dessa cidade faz alusão as montanhas altas e sonoras que cercam a região. O município foi fundado, como aponta a história oficial, em 07 de julho de 1777. Patu é um dos 21 municípios que compõe o Polo Serrano instituído a partir do Decreto nº 20. 624 de 17 de julho de 2008. Tem atualmente 12.844 habitantes. A região turística supracitada desde a organização do MTUR teve seus maiores picos de investimentos nos anos de 2008, em que captou R$ 7.428.750,00 e 2009, com uma soma de R$ 5.200.850,00. Nessa região 8 municípios tiveram os seus espaços e infraestrutura básicas consideradas como insuficientes para a organização e a manutenção da prática do turismo, sendo assim foram categorizados com zero, ou seja, pontuados com E. 10 municípios estão em níveis de deficiência com a categoria D; sendo considerados regular apenas as cidades de Pau dos Ferros, Apodi e Caraúbas. Nessa região turística da cidade de Patu foi construído o Santuário do Lima destacado na Fotografia 20. De acordo com a oralidade, o santuário se originou a partir da promessa feita pelo Coronel Antonio Ferreira de Lima à Virgem Maria. Após o seu desejo ser realizado, ele implantou no alto da serra uma capela com escultura da Virgem, peça trazida de Portugal para homenagear a mãe de Jesus Cristo, transfigurada diante da concepção de realizadora das causas impossíveis, seu nome é convertido para Nossa Senhora dos Impossíveis. Nas primeiras décadas do século XX o santuário começou a ser administrado pelos missionários da sagrada família. Na década de 1960 chegou ao local o padre alemão Henrique Spitz e com recursos captados de fieis alemães organizou o processo da construção de um novo santuário de arquitetura futurista, o qual foi inaugurado no ano de 1969219. 219 Informações dadas pelo Padre Domingos de Sá, durante diálogo em visita de campo. Em 30 de agosto de 2016. 304 Como pode ser observado na Fotografia 20, no lado direito (vertical na linha dos terços) está o templo, local principal para realização dos eventos católicos que possui influência da arquitetura europeia, agredando ainda uma capela antiga que serve como ponto auxiliar e ambiente transformado na sala dos milagres - local onde as pessoas fazem as promessas e deixam objetos que remetem a graça obtida. Na nave principal do santuário estão os túmulos dos padres que o ergueram. Há no lugar uma pousada que recebe alguns fieis e outros visitantes, barragem que concentra águas da chuva utilizada como apoio para manutenção do local e uma estrutura que organiza o mirante para a apreciação da paisagem, sendo utilizado também como rampa para voo livre. O espaço está a 6 km do centro da cidade de Patu. Ao se pensar no turismo religioso e nas ações de fomento de desenvolvimento social e econômicos proposto pelo PRT, a cidade de Patu aparece por ter esse santuário, considerado o mais antigo do Estado existente por mais de um século, comportando os três edificios citados destinados a fé. Motivado por esses edifícios e a infraestrtura o movimento de fieis começou paulatinamente e se mantém em um ritmo modesto, contudo, constante. E porque não há uma promoção mais contundente desse espaço? Vários são os motivos, as próprias imagens de Canindé Soares que circulam indicam as limitações do espaço para a ampliação da sua visualidade, consequentemente, da atividade. No acervo com centenas de fotos, existem apenas duas fotografias que destacam esse santuário, demonstrando até mesmo a falta de interesse e da procura dessa visualidade em relação às instituições de promoção do Estado. Uma relação interessante entre a produção de imagens e o direcionamento da produção do espaço que até momento pode favorecer vivências com a pluralidade local ou se fechar em lógicas de imposição. Em visita ao santuário valorizado pela beleza na organização das plantas em sua cercania, mesmo havendo a afirmação por parte dos entrevistados que fazem parte do Santuário que existe todo o interesse de se construir um turismo religioso, percebemos que não é bem assim, pelo menos em um primeiro momento, esse tipo de movimento parece não ser desejado. Reservados, os padres que habitam esse local preferem ficar no âmbito privado e prevalecer com a rotatividade no local dos fiéis católicos. Ademais eles apreendem aquele espaço como um local discreto para suas atividades profissionais, para o repouso, lazer e vivência cotidiana. Os discursos mais fortes sobre o turismo, as maiores expectativas que percebemos gira em torno dos agentes locais como políticos e os envolvidos mais diretamente com a atividade, há uma contradição de interesses em que o espaço do santuário é o foco central, realmente esse reside na disputa entre o turismo e a devoção. 305 Sobre turismo e a sua relação com a política lançada pelo MTUR, a fim de captar recursos para o desenvolvimento do local, o munícipio de Patu é visto como potencial para o segmento religioso por causa do Santuário da Serra do Lima. Essa é uma região turística que desde que o polo foi organizado há variação nas cidades que fazem parte do seu mapa regional. Para fazer parte do programa é necessário atender os requisitos estabelecidos pela política nacional; essa inconstância entrada e saída de munícipios se dá concatenada as perspectivas do gestor público em relação ao turismo e acabam por atrapalhar um trabalho capaz de abarcar um conjunto de municípios o que poderia dar maior visibilidade a Patú e seu santurário. Nesse aspecto, os interesses e os embates são bem claros, demarcam continuidades e rupturas de ações. O local tem uma geografia singular, em termos de atração turística podemos afirmar que se constitui em um atrativo significativo - uma vez que se difere de outros aspectos geográficos do Estado: muitas rochas, área verde e paisagem esteticamente favorável a apreciação. Todavia, mesmo com essa dimensão paisagística atraente e já com alguma infraestrutura de apoio durante os dias de estadia no local entendemos que não há uma circulação constante de pessoas. Em informações colhidas e diante da nossa percepção sobre o campo fica claro que as aglomerações motivadas por esse ambiente religioso e seus entornos restringem-se a poucos eventos festivos e as excursões de turismo religioso que também são pontuais e organizadas em sua maioria pela Agência de Turismo Dandara e Juca Tour ambas localizadas em Natal e, esporadicamente, em grupos que praticam voos livres e arriscam saltar do local, realmente um risco, uma vez que não existem equipamentos de apoio para essa prática, podendo ocorrer acidentes e ausência de socorro. A cidade de Patu é distante da capital do Estado, são aproximadamente 320 quilometros que separam essas cidades. As estradas não incentivam o deslocamento, há pouca sinalização, as vias são únicas e sem iluminação, o que gera um grande problema para o turismo - uma vez que a atividade tem base a facilidade do deslocamento. Sobre as estadias oferecidas, se reduzem a pousadas e alguns moteis, funcionam em edifícios simples, com valores relativamente alto se fizermos um comparativo com estadias populares em âmbito nacional e mesmo global. O que se justifica pela ausência de turismo no local, uma vez que não há demanda, não há como reduzir os valores, ainda a oferta de alimentação nesses ambientes é limitada e com horários reduzidos. A infraestrutura visa atender as necessidades que giram em torno da economia local, supermercados, mercearias, farmácias, lojas diversas, com funcionamento que organizam-se com abertura as 07:00 horas e fechamento as 11:00; reabrindo as 14:00 e fechando novamente 306 a partir das 17:00 horas. Não existinto assim infraestrutura turística e motivação para esses investimentos, uma vez que o segmento é muito restrito nesse contexto. O interessante a ser relatado é que, nas reuniões dos conselhos de turismo encabeçada pelo Estado, desde que o PRT começou a ser efetivado no Rio Grande do Norte, Patú tem se mantido entre os cinco principais municípios participantes e conserva ativa a sua secretaria de turismo, agregada a secretaria de cultura - o que se constitui em um requisito para acessar verbas do governo federal em prol da atividade. As atas referentes as reuniões organizadas apresentam uma participação de 73,33% desse munícipio. Todavia, circulando pela cidade observa-se claramente que a efetivação dessa participação não reverbera em termos de ampliação do turismo. Em Patu, além de visitarmos a serra onde se localiza o santuário e seus arredores, realizamos entrevistas com dois agentes envolvidos com o turismo. Evitamos tratar de questões pontuais, focamos em um panorama geral da atividade na cidade, também, não colocamos o nome dos entrevistados uma vez que as relações políticas vigentes interferem em âmbito privado, a partir de ressentimentos e perseguições. A primeira entrevista se deu com o secretário de turismo e cultura do município, estudante universitário, em exercício recente da função. Esse nos apresentou informações restritas sobre o andamento e as persectivas do turismo. Observou- se que não havia por parte do entrevistado o conhecimento acerca dos projetos e metas do MTUR e a percepção de implementação turística estava relacionada às visitas que o Santuário do Lima recebe. Além disso, a crença que para implementar o turismo, além, de se promover o santuário deveria haver a divulgação de alguns eventos significativos no calendário festivo da cidade, envolvendo o aniversário de fundação, festas culturais como romarias, padroeiro e festividades juninas, pensou ainda, nas apresentaçoes escolares. A aproximação inicial com o secretário se deu durante a reunião do polo, realizada em 30 de agosto de 2016, nesse mesmo dia marcamos um encontro no período noturno, no edifício católico Igreja Matriz, local em que o entrevistado estava atuando treinando um grupo de dança para se apresentar em semana cultural da cidade. Com o segundo agente entrevistado realizamos três encontros, que gerou duas entrevistas compreensivas. Esse é gestor ambiental e técnico em turismo, foi secretário de turismo da cidade, função que atuou durante todo o exercício da gestão pública do período. Hoje é um dos membros do conselho de turismo, contribui ativamente desde o ano de 2005, momento em que o conselho de turismo foi criado a partir do interesse de empresários em desenvolver o segmento na região. No ano de 2008, esse conselho de turismo foi institucionalizado. Com esse agente do turismo coletamos informações pertinentes para a 307 pesquisa em relação ao local, principalmente ao Santuário. O primeiro encontro, assim como o anterior, aconteceu no dia 30 de agosto durante a reunião do polo Serrano, no dia seguinte, 31 de agosto saímos durante a parte da manhã para percorrer o município, finalizamos o encontro na Serra do Lima com a visita ao Santuário. Em um terceiro momento foi concretizada outra entrevista compreensiva na residência deste agente, no dia 13 de setembro de 2016, na capital do Estado. Para o técnico em turismo o polo Serrano tem grandes possibilidades de desenvolver-se a partir de uma economia interpretativa em alguns de seus municipios, incluindo Patu, com o Santuário do Lima, visto que existe a infraestrutura básica e os atrativos percebidos no santuário e na paisagem local. Contudo, o foco dos gestores públicos está nos repasses financeiros e não na atividade como instrumento de desenvolvimento socioeconômico. Como restrição coloca que as demandas exigidas pelo MTUR para aquisição de verbas não são atendidas por alguns municípios, motivando os gestores a recorrer para outros meios de mais fáceis acessos ou já implementados para a aquisição financeira, deiando o turismo à parte do processo. É comum não existir continuidade nos projetos turísticos, ao contrário cada gestão procura apagar os feitos antigos. As estratégias são mudanças de nome, da função e até mesmo das cores. As cores alteram-se conforme os partidos políticos. Se existe uma obra relevante para a valorização da imagem do gestor público que a implementou e a oposição assume o poder pode ocorrer da obra ser totalmente abandonada. Essa situação ficou clara em duas conjunturas significativas, vamos explica-lás: A Serra do Lima tem dois mirantes no local do santuário, ficam no mesmo terreno dos templos, ambos organizados com verba pública, um vizinho ao outro, não finalizados e abandonados220. História parecida aconteceu com o projeto de uma segunda rodoviária na cidade, a justificativa da construção se deu porque alegou-se que deveria haver uma rodoviária próxima ao santuário a fim de facilitar o acesso dos fiéis e turistas; hoje existe o esqueleto de uma rodoviária a poucos metros do santuário, abandonada antes do processo final da construção. No mais com o objetivo de melhorar os espaços ao redor do santuário visto que os visitantes do local reclamam por praticamente não haver estrutura adequada de estacionamento ou de quiosques com vendas de alimentos para servir de apoio nos períodos de maiores movimentações, a Prefeitura de Patu, com recursos do Ministério do Turismo, iniciou a construção de um Terminal Turístico Religioso de Patú221. Contudo, o investimento feito a partir de repasse avaliado em R$ 525.344,22 está parado, faltando pequenos detalhes. O prédio 220 Ver em Anexo D, as fotografias dos dois Mirantes e terminal turístico. 221 Idem 308 está praticamente pronto, entretanto não enontra-se em funcionamento, bem como não correspondendo as expectativas dos visitantes e da população local. Antes do período eleitoral, no mês de agosto de 2016, durante a nossa visita, ainda não estava em funcionamento, porém estava todo pintado de verde, de acordo com a cor da filiação partidária do prefeito em gestão. São casos que denotam a falta de responsabilidade de alguns representantes políticos, como também o descaso com a “coisa” pública e a utilização desses ambientes enquanto coisa privada. Associa-se a isso o desinteresse dos representantes da igreja católica em ampliar as visitas ao espaço, uma vez que há todo um movimento da instituição em captar mais seguidores. São poucos agentes atuando nessa esfera do turismo religioso em Patú, esse número reduzido, conforme exposto, muitas vezes são diretamente ameaçados quando cobram medidas ou justificativas sobre o uso efetivo do dinheiro público. Em Patu o discurso do turismo gera muitas expectativas, tanto é, que como foi dito, é um dos municípios que sempre apresenta seus representantes nas reuniões do PRT, porém, ainda se pensa em como organizar a serra, se por um turismo de aventura favorecido por infraestrutura que incentive o uso da paisagem como espaço para voo livre ou se esse voo se mantém no campo das divindades. Mesmo com os preparativos iniciais para organização da rampa para o voo livre, o projeto parece inerte, nos dias atuais aparece nos folhetos publicitários a preferência de organização do turismo para o santuário. O cenário do turismo religioso que se legimita por meio do discurso das possibilidades de desenvolvimento econômico nos arredores do Estado também favorece a crença de que há uma pré-disposição a publicização do Santuário e a aquisição de melhoria de renda para os moradores a partir desse tipo de turismo, mesmo que as relações entre representantes da religião em questão e os agentes políticos não sejam harmoniosas. O que percebemos é um turismo motivado por interesses da elite religiosa ou política. As possibilidades de se pensar na organização de ambientes a partir do envolvimento com seus aspectos plurais, com a busca de diferentes consciências e benefícios que envolvam os moradores é afastada. A prioridade está na questão do turismo e da devoção. 309 Fotografia 21- Santuário do Lima222 Fonte: A fotografia 21, apresentada em sequência, nos favorecerá desenvolver a crítica e demonstrar o seu sintoma. Nessa imagem a paisagem nos aparece mediada pela passagem que é apresentada como o arco. A passagem para Benjamin (2009, p. 77-100) mostra como os fragmentos da cidade faiscando entre o passado e presente contam a sua história. Nas passagens, aludindo à obra citada, encontram-se as últimas estruturas habituais que resistem ao ser iniciado o processo de modernização urbana em Paris. Sua singularidade consiste na configuração de um território onde paradoxalmente alguma coisa antiga resiste em contraponto ao cenário que aponta ao mesmo tempo para o sonho coletivo de consumo próprio da modernidade. Na passagem do Lima, no cruzamento do arco, está a abordagem da contemporaneidade que em seu valor de tradição, aspectos culturais e até na arquitetura reside a transformação que impregna a sociedade do lazer e do espetáculo. O templo aparece em formato de cone, unindo todas as suas linhas em um único vértice que aponta em direção ao céu. O cone está ligado a outros templos que foram construídos no Brasil aproximadamente no mesmo período, como: a Catedral Metropolitana de São Sebastião do Rio de Janeiro, a Catedral de Nossa Senhora da Glória no Paraná e a Cadetral de Brasília. 222 Fotografia de autoria de Canindé Soares. Igreja Nossa Senhora dos Impossíveis no Santuário do Lima em Patu, Rio Grande do Norte. 310 Todos eles seguem o direcionamento do Concílio do Vaticano II para a arquitetura religiosa, significa a equidistancia e a proximidade das pessoas em relação ao deus católico. Se pensarmos a fotografia como uma experiência de arte, ela aparece como uma montagem das subjetividades e objetividades dos elementos que envolve, com o investimento dos agentes sociais que a transcreve e a legitima sob o direcionamento do Vaticano, das relações hegemônicas locais e do Estado. A memória reúne o que está inserido no espaço, o que é fruto de percepções heterogêneas- uma vez que se projeta a partir de uma combinatória de relações e de camadas temporais que assumem as transformações de acordo com as dinâmicas sociais e as inumeráveis junções das coisas globais em que se conecta no local, mas existe na manutenção da ordem estabelecida. Antes, o que vemos parece a escultura de uma oca contemporânea, transformada pelo cimento em espetáculo, no meio de uma natureza local abundante representada pelo aspecto tropical dado pela famosa palmeira. Entretanto, a arquitetura exposta e a organização desse Santuário marca na paisagem um discurso moderno e econômico da representação da fé. O cenário captado pelo artista é a latência da constituição dos novos processos de subjetivação organizados pelo turismo, são combinados a cores, projetos e elementos que o reprocessa em favor do espetáculo. Mesmo que o elemento ordenador seja o símbolo de uma sociedade hierárquica e de valores elitistas como seus motivadores. A estrutura espacial do Lima se mantém em dinâmica e interação com as relações presentes. O conjunto arquitetônico que remete a uma história de submissão e ordenação das pessoas que viviam os espaços conflui novos movimentos e marca tanto a opressão como a possibilidade de libertação. O espaço impressiona e é marcado por histórias de milagres de diversas pessoas que querem agradecer o amor, a felicidade e a redução da dor. No dia da nossa visita ao Santuário em questão encontramos um devoto que estava levando um pé de cera para deixar na sala dos milagres do santuário, sobre a alegação que quase tinha perdido o pé em um acidente de motocicleta, ele afirmou: “aqui estou eu pagando uma promessa feita pela minha mãe” (informação verbal). Assim como esse rapaz, existem pessoas que se deslocam até o santuário movidas pela crença, grupos que por anos acompanham as festividades e as romarias anuais. Solicitam a libertação de vícios para maridos/esposas e filhos(as), muitos(as) encontram nessa fé e nesses espaços os sentidos de solidariedade. Quando se deslocam em excursão é comum que levem seus alimentos, suas estruturas básicas para o tempo gasto nas estradas precárias. O turismo diante dessa situação que é a que permeia o santuário é concreto. 311 A hierarquia e a manutenção da ordem ainda é prioridade, mas o espaço começa a viabilizar seus ícones em graus e natureza variáveis a construção de paisagens que prescrevem o status da fé concomitante aos estilos de vida resultante das relações contemporâneas, flexibilizando a racionalidade religiosa. Um ambiente que antes não era reconhecido socialmente como promissor ao turismo, começou a se constituir em uma paisagem aberta para as experiências atuais, agregando velhos e novos ideais, resultando conflitos e tensões entre os interesses, nas palavras de um dos entrevistados. O turismo aqui é aquele chamado boca a boca. Não é muito veiculado nas principais redes de comunicação. A boca a boca tem funcionado bastante aqui. O turista que vai em Martins quer vir até Patú, porque sempre aparece uma pessoa ou outra que diz “se você tá aqui em Martins, vê se conhece Patú, que é tão bonito quanto aqui”. Mas, existem problemas com a classe religiosa daqui que empancam o desenvolvimento do turismo, mas isso parece ser exclusivamente de Patu. Eles parecem gostar de ter tudo isso só para eles. São poucos visitantes, tem dois tipos de visitante em Patu. Dois tipos de turista: o menos favorecido e aquele que vem mesmo para deixar algumas divisas. O romeiro em si vem mais para visitar o Santuário do Lima, pagar as suas obrigações religiosas, já vem com pacotes fechados e os pacotes não são nem vendidos para Patu e sim para Canindé, no Ceará. Canindé e Juazeiro. Aí eles fazem uma rota por Patu, geralmente na madrugada. A dificuldade de parar aqui é enorme, até hoje persiste, e o motorista do transporte que faz as viagens para Canindé e Juazeiro, chega em Patú e dá só meia-hora pro romeiro subir e descer a serra. Ele tem que ir lá visitar o santuário, pagar as obrigações religiosas e já voltar. O motorista nem desliga o ônibus dele, fica lá funcionando e ele fica tomando um café ou coisa parecida. Parece sugestivo afirmar que, mesmo diante da distância e das dificuldades encontradas para implementar o turismo, esse não está distante. Ele vem sendo alimentado e redefine o espaço inserindo-o na estratégia simbólica do espetáculo, mesmo que mais lentamente do que em outros ambientes. A finalidade de efetivar o espaço no roteiro turístico estadual, sem dúvida, atende o apelo central que o discurso do turismo desempenha. E a paisagem é cooptada na produção de ícones de identificação do lugar onde a natureza e a experiência religiosa evidenciam o primado da produção do espaço e da perspectiva de consumo de imagens tornando-as indispensáveis. Se existe a organização das fotografias traduzidas em um cenário privilegiado e espetacular, mesmo que pontuais, existe a busca de organização da economia e da política na lógica vigente. Em Patu, as imagens paradisíacas do Santuário do Lima e seu grande cone conduz a inquietação por revelar toda a sua superfície, que quem a coordena preferiria ocultar. Mesmo sem repercutir em completude, a visualidade desmascara por rasgar e atingir a sua estrutura (DIDI-HUBERMAN, 2013, p. 188). O sentido configurado por meio da imagem se dá em uma incansável relação com o que não está expresso no visual, nesse caso, inclusive, com o que não quer ser visual. Mas, tudo leva a crer que o jogo das relações sociais contemporâneas não deixa 312 nenhuma estrutura física escapar da visualidade, no sentido em que essa serve aos interesses de manutenção do capital. O que foi imposto no espaço para demarcar uma outra hierarquia, agora resiste, mas é sugado pelo fluxo das relações que transformam o espaço em paisagens turísticas. Mesmo que a fotografia não expresse o Santuário em sua realidade, serve como metáfora para expressar o confronto político e econômico, direto e explícito, que permanece eficiente nos processos de legitimação do seu poder, deixando claro que aparece o que deve ser mostrado, mas em sua rede vem a condição de transformar esse caráter em outras formas possíveis de pensar as instituições e símbolos na superação desse dilema das valorizações do que já era poder. Fotografia 22- Passagem pelo arco do Lima223 Fonte: 5.4.5 Monumento a Santa Rita: Remexendo o concreto da cidade de Santa Cruz 223 Fotografia de autoria de Canindé Soares. Santuário do Lima, Patu, RN. 313 Quadro 9- Cidades da região turística do Polo Agreste/Trairí CIDADES DA REGIÃO TURÍSTICA POLO AGRESTE/TRAIRÍ- RN Campo Redondo; Coronel Ezequiel; Jaçanã; Montanhas; Monte Gameleiras; Passa e fica; Santa Cruz; São Bento do Trairí; São José do Campestre; Serra Caiada; Serra de São Bento; Sítio Novo; Tangará Fonte: Brasil (2016). O Polo Agreste/Trairí surgiu a partir do Decreto nº 21.390 de 11 de dezembro de 2009. É composto por sete cidades que formam a sua região turística. Embora a Serra de São Bento seja um espaço privilegiado e já legitimado na recepção de visitantes em âmbito local e até regional, o município de Santa Cruz tem sido a evidência no turismo. Essa cidade vem participando constantemente das atividades relacionadas à sua promoção. Desde o ano de 2009 tem se mantido com 100% de presença nas reuniões dos conselhos gestores do PRT, de acordo com as atas de participação dos municípios que fazem parte desta unidade regional. Além disso, a cidade tem se envolvido em feiras nacionais e internacionais a fim de divulgar seus espaços, com destaque ao complexo turístico religioso que foi recentemente estruturado. De acordo com os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE (2017) a cidade de Santa Cruz tem 39.667 habitantes. Em termos de turismo o foco tem sido dado ao religioso com ênfase nos eventos que giram em torno da padroeira, ou seja, nas comemorações da Festa de Santa Rita realizada na cidade Santa Cruz/RN224, no período de 13 a 22 de maio – esse último dia é consagrado à santa padroeira considerada pelos fiéis da região como a “Madrinha dos Sertões”. A própria festa da padroeira de Santa Cruz tem sido alvo de muitas notícias e especulações que giram em torno das políticas de turismo religioso no Estado. Com a Fotografia 23 entramos de modo sucinto nessa história. O enquadramento da imagem nos mostra um monumento de concreto armado com 56 metros de altura que representa a santa padroeira da cidade: Rita de Cássia. A estátua é a grande vedete, ou para melhor se expressar o espetáculo turístico, da construção que envolve todo o Complexo Turístico Alto de Santa Rita225, construído no antigo Monte do Cruzeiro226, inaugurado em 27 de junho de 2010, 224 Município brasileiro localizado na Mesorregião Agreste Potiguar. Distância de 111 km de Natal. 225 Santuário que abrange uma aérea de 2.800 metros quadrados, composto por igreja, duas capelas, auditório para 225 pessoas, praça de alimentação, restaurante, salas dos milagres, salas para atendimento de saúde e administração, lojas de artigos religiosos, pátio de estacionamento e um mirante que contempla a região serrana do Agreste/Trairí. 226 Propriedade pertencente à Paróquia de Santa Cruz. O referido Monte foi atribuído, inicialmente, a Nossa Senhora do Carmo e à Santa Rita de Cássia. 314 local hoje conhecido como Alto de Santa Rita ou Santuário de Santa Rita227. O empreendimento resulta de uma parceria entre a prefeitura local e Governo do Estado. A meta é fortalecer a região do Agrestre/Trairí no cenário turístico nacional. Sendo assim, o complexo obteve cerca de R$ 6.000.000,00 advindos dos recursos municipais, estaduais e federais. A cidade ainda foi inserida no Processo Seletivo de Projetos de Fortalecimento do Turismo Religioso no Brasil228 promovido pelo Ministério do Turismo. Entre as propostas colocadas pela prefeitura, encontrou-se o projeto de um teleférico ligando o complexo turístico ao centro da cidade, que mesmo antes da aquisição de verbas para a sua implementação já era divulgado nas feiras de turismo. Como pudemos comprovar em pesquisa, atualmente a ideia do teleférico está em vias de implementação, principalmente, pelo acesso do deputado Tomba ao ex-ministro do turismo, o potiguar Henrique Eduardo Alves, representante do PMDB-RN (atualmente preso por envolvimento em corrupção) e ao senador Garibaldi Alves Filho (PMDB-RN), que lhe garantiu o andamento na demanda. O projeto orçado em 12,6 milhões de reais, já retirou dos cofres públicos uma média de 5,5 milhões de reais, parte desse montante se originou através de emendas parlamentares viabilizadas pelos Alves229. Como podemos observar na Fotografia 23, a grandeza do monumento implantando no espaço público é uma reação a espetacularização das cidades no cenário global. São as expectativas que envolvem a representação do urbano diante de um cenário maior de visualidades que se querem atraentes, também, um sinal de vitória do interesse pessoal diante da coisa pública. Como nos foi colocado pela secretária de turismo, a construção da estátua foi um desejo do ex-prefeito Tomba Farias relacionado à sua devoção na santa católica das causas impossíveis. Prometeu que se ganhasse a eleição construiria uma imagem magnânima da sua crença em um local estratégico na cidade. A materialização da ideia lhe rendeu reeleição, em sequência foi eleito deputado estadual, ainda cultivou o domínio no município por meio da eleição da esposa à prefeitura. O objeto do desejo pessoal ganhou legitimidade diante da perspectiva do desenvolvimento econômico a partir do turismo, esse deu aos sentidos que envolve a forma adquirida pelo concreto a categoria de espetáculo. Nem beleza, nem 227 Trata de um projeto da Prefeitura de Santa Cruz idealizado pelo ex-prefeito Luiz Antonio Lourenço de Farias, conhecido como Tomba, que, em parceria com as Paróquias de Natal e de Santa Cruz, tem a pretensão de introduzir a cidade na rota do turismo religioso do Brasil. 228 Para detalhamento do processo seletivo de projeto de fortalecimento do turismo religioso no Brasil ver a portaria do MTUR nº112, de 09 de março de 2012 e suas alteraões. Disponível em: 229 Informações obtidas por meio de entrevista com a secretária do turismo Marcela Pessoa em Monte das Gameleiras, RN no dia 01 de setembro de 2016. E, em encontro posterior no dia 08 de abril de 2017 no Centro de Convenções, Natal-RN. 315 humildade, nem formosura, porém agigantamento, grandiosidade e portento garantem a forma da nova paisagem. As linhas duras e desagradáveis, a depender da incidência da luz solar sobre o objeto deturpam a visualidade da imagem, conforme visto na Fotografia 23. O exemplo do indesejável olhar de panda, geralmente, evitado com linhas mais arredondadas, menos profundas e inclinações estratégicas, o que não ocorreu no empreendimento realizado pela construtora A. Gaspar S/A (já citada anteriormente nas conexões de seu proprietário com o turismo no Estado). O enquadramento fotográfico habilmente dá a ver essa tônica da divindade, Canindé Soares ao captar a opulenta estátua representa-a dando ao espetáculo caráter eminente diante do seu olhar em câmara baixa. Esse tipo de enquadramento situa o objeto acima do espectador, engrandecendo-o e sugerindo, por consequência, a sua superioridade. Uma vez que minimiza a cidade, as pessoas, os detalhes, tudo parece pequeno demais diante da grandeza que o mito ganha pela sua singularidade na sociedade do consumo. Fotografia 23- Dia de Inauguração do Complexo de Santa Rita230 Fonte:< http://canindesoares.com/site/wp- content/gallery/santaritainauguracao/IMG_0924%20%282%29.jpg> De acordo com a pesquisa realizada na cidade de Santa Cruz por Maria Lúcia Bastos Alves (2013), após a construção do Santuário novos rituais foram incorporados nas práticas de 230 Fotografia de autoria de Canindé Soares registrada em 27 de junho de 2010. 316 devoção a santa das causas impossíveis, adotou-se missas celebradas no Santuário nos dias de domingo, organização de bênçãos a outras divindades, além do incentivo por parte da paróquia em organizar romarias para divulgar o local. O calendário se expandiu: são “Romarias Eucarísticas”, realizadas todos os dias 21 e 22 de abril, em memória à primeira missa celebrada no Santuário; as “Romarias de Santa Rita de Cássia”, em todos os dias 13 a 22 de maio, na festa da padroeira; as “Romarias Marianas”, de 17 a 22 de julho, festa de Nossa Senhora do Carmo; as “Romarias da Gratidão”, nos dias 11 e 12 de outubro pelo aniversário da criação do Santuário; e as “Romarias da Coroa”, no 22 de cada mês a fim de promover a devoção à Santa Rita e captar a participação dos moradores da cidade, dos residentes nas zona rurais e cidades circunvizinhas. Outros eventos, como a “Expo Santa Rita” – realizado em parceria com a Casa de Cultura –, propagandeia o santuário e a fé em questão. Figura 31- O tamanho da estátua Fonte: Secretaria de Turismo de Santa Cruz (2016) Na Fotografia 24 é possível visualizar a experiência da obra de gratidão e promoção, peças que aparentam simplicidade, porém não comportam a pureza nem a tautologia que quer escapar da rasgadura, muito menos a ilusão de parecer dizer que não importa, pois dirige o olhar ao símbolo de outra coisa em questão, inquietadora do olhar, cuja a ordem é do discurso, para além de uma escrita histórica traz à tona uma figurabilidade e dizibilidade. Nas faixas vemos que os moradores do conjunto Cônego Monte, nome que remete a uma autoridade cristã 317 católica, agradecem a estátua a duas figuras políticas do contexto local: o prefeito do município Tomba e o governador do estado Iberê Ferreira - ambos filiados ao partido político PSB, sem alusão ao governo federal responsável pela disponibilização das verbas para implementação da obra. A hierarquia da faixa aponta a importância das relações; a AVART – Associação dos Vaqueiros da Região do Trairí – agrega o discurso dos agradecimentos ao que consideram um presente dado pelo gestor local; logo, abaixo anúncio de festividade em homenagem a mais dois santos católicos. Essa é a experiência subjetiva, uma vez que a ação do nosso olhar sobre o objeto constitui a experiência com a imagem, ou demarca a esfera relacional entre o sujeito e o objeto. Ainda na Fotografia de 24, a faixa apresentada dá o tom saturado da imagem, com isso faz presente o sistema de hierarquias e de valores sociais através da política, do espaço urbano, dos grupos e das instituições, da questão religiosa e econômica. A ausência do visível “desencadeia, de maneira inteiramente inesperada (como um sintoma), a abertura de uma dialética (visual) que a ultrapassa, que a revela e que a implica” (DIDI-HUBERMAN, 2005, p. 99). Ou seja, ausenta-se a política de fomento à transformação do urbano, as redes que a legitimam, deixando nítido o enredo local. Uma forma de manifestação pontual e reduzida. No mesmo fio que conduz a figurabilidade do discurso narrado sobre o monumento está o do pároco de Santa Cruz, o padre Vicente Fernandes da Silva, quando ressalta que “a grande imagem de Santa Rita de Cássia coloca a cidade de Santa Cruz na rota do turismo religioso do país” (informação verbal, 2016). Esse representante cristão não deixa de incluir-se como parte dos idealizadores do monumento que promove a sua fé e acrescenta que: “estamos oferecendo aos católicos do Brasil um lugar com infraestrutura adequada, onde os milhares de devotos poderão vir vivenciar sua fé e pagar suas promessas” (informação verbal, 2016). A quantidade reduzida das faixas, o olhar direcionado para essa paisagem, na ausência de outra mais saturada, induz a pensarmos que há um embate nas concepções sobre a obra efetuada. O motorista de taxi, Jaime, afirma que não percebeu transformações no seu cotidiano, mas que o turismo religioso, sim, cresceu o município pois o projeta para o mundo por ter a maior estátua católica de todo o mundo. Outros olhares surgem, Adriana, estudante universitária e moradora da cidade, afirma que “a construção do Alto de Santa Rita não alterou a vida da cidade” (informação verbal, 2016). Remete-se ao ponto cujo interesse se dá nos aspectos econômicos capazes de reduzir a pobreza do município, acrescenta que “o incentivo ao turismo religioso não proporcionou melhoria na qualidade de vida da população” (informação verbal, 2016). O turismólogo Sebastião afirma que a “prefeitura ofereceu apenas um curso ‘relâmpago’ e de vagas limitadas 318 para guia turístico” (informação verbal, 2016). Ambos os informantes supracitados concordam que o desenvolvimento da cidade não provém da construção do Complexo Alto de Santa Rita, mas de outros investimentos nos setores educacional e comercial. Entretanto, eles esclarecem que as estratégias utilizadas pelo poder público local, aliadas à divulgação midiática de um turismo religioso, oferecem à população a possibilidade de melhoria de vida, uma vez que a festa pode gerar empregos, trazendo o desenvolvimento para a cidade. Ademais, foram realizadas outras entrevistas em articulação com pessoas ligadas ao comércio, como padaria, lanchonete, a associação de mototaxistas, pousadas, SEBRAE e rádio. Em análise realizada na concepção dessas pessoas, observa-se que o turismo religioso não é o responsável pelo desenvolvimento que vem ocorrendo no município, ele tem contribuído com a divulgação e marketing da cidade. Todavia, existem outros projetos do próprio governo federal, como a “minha casa minha vida”, o “bolsa família”, investimento em projetos e educação, entre outros, de cunho social que aqueceram o comércio local e contribuíram para a melhoria da qualidade de vida das pessoas no município. Portanto, de acordo com os entrevistados os turistas só passam um dia, ou seja, são excursionistas, o que gastam é muito pouco. Ocorrem melhorias na cidade, porém são pontuais, como por exemplo a demanda com os ônibus durante os finais de semana ajudou alguns comerciantes do ramo alimentar, como o da padaria local, que já foi até reformada e se preparou para receber esses grupos. Os sujeitos informantes ressaltaram que a cidade não foi preparada pra acompanhar esse crescimento. A chegada das Universidades e do Instituto Federal de Educação (UFRN, UERN e IFRN) tem contribuído para o desenvolvimento econômico do local. Essas instituições chegaram e trouxeram muita coisa, desde aumento e melhorias de estabelecimentos comerciais, ampliação de propostas de empregos na cidade, como também especulação imobiliária no local e questões relacionadas à insegurança pública e tráfico de drogas. No mais, o Santuário aumentou o movimento da paróquia, que vendeu a festa social da padroeira para empresários de fora, ou seja, o que mantém o dinheiro não fica na cidade. Os entrevistados não associam uma melhoria ou expansão na capacidade e nos acessos dos moradores ao turismo. Sobre as afirmações expostas na Feira Nacional de Turismo (FNTUR), no dia 27 de agosto de 2016 a secretária de turismo de Santa Cruz coloca ao ser questionada sobre o fato de não ser visível à dita melhoria na qualidade de vida da população local favorecida a partir do turismo que: Temos seis anos de santuário e turismo não é resultado imediato, é a médio e longo prazo. O poder público tem um papel de fomentar a atividade, de preparar a cidade para viabilizar a infraestrutura básica, que é o que tem sido feito durante esses seis 319 anos. Posso falar muito de perto, estou à frente na pasta praticamente há sete anos. Então o poder público, nas duas gestões que passaram por esse período têm investido muito em infraestrutura básica, mas o nosso maior problema hoje em Santa Cruz, tá aqui o SEBRAE para afirmar é o nosso empresariado local. Desde quando começamos a discutir turismo na cidade, na fase de obra em 2008, comecei a entender qual a importância da atividade econômica que é o turismo. Então, quando nós começamos a levar esta fala, lá em 2008, 2009, falávamos exatamente disso, da importância do turismo para a comunidade: dávamos o exemplo de Pipa. Pipa hoje é permeada por estrangeiros, tem poucos empresários do Rio Grande do Norte investindo em Pipa. Nós falávamos isso em relação ao nosso empresariado local, que se eles não investissem, viriam empresários de fora e iriam investir, não era interesse do município, do SEBRAE, do SENAC, da FECOMERCIO, parceiros estrangeiros lá. O nosso intuito era que realmente o empresário local investisse, mas esse olhar empreendedor para o turismo ainda não aconteceu em Santa Cruz. As pessoas colocam muita responsabilidade no poder público e o poder público não faz tudo só. O mais beneficiado com a cidade é o comércio. Uma fala da nossa prefeita é que ela fica muito angustiada com a situação, porque infelizmente foge às nossas mãos, ela não consegue realmente resolver essa parte da iniciativa privada. Somos sim fomentadores do turismo, em relação ao turismo internacional, temos que ter cuidado com nossos passos. Precisamos promover e divulgar o destino em outros estados. Santa Cruz hoje tem 605 leitos, conseguimos receber esses números de pessoas. Muitos frutos que estamos colocando agora, não iremos colher, quem irá colher são as futuras gerações, mas nosso papel é esse: fomentar a atividade, qualificar a mão de obra. Eu fiz um levantamento, nesses últimos três anos e sete meses qualificamos 1.498 pessoas na cidade, então é muita coisa para uma população de 40.000 habitantes. Santa Cruz hoje é um referencial como turismo religioso no estado, fazemos questão de participar de todas as discussões Polo Regional, Conselho Estadual, de tudo que tá sendo formado agora para o futuro (informação verbal, 2016)231. As expectativas do turismo trazem a modificação nos espaços em que ele está inserido, alimenta o mercado, a circulação de capital, constrói um discurso que tem um forte apelo paisagístico estadual, motiva e insere a população nas raias do espetáculo. O discurso que subscreve é ideológico, mas não deixa de ser real, uma vez que a fotografia ao enquadrar paisagens concatenadas ás perspectivas contemporâneas organiza as continuidades espaciais e temporais a partir de projetos restritos, pessoais, nem sempre em consonância com o que se pretende como coletivo. As fotografias preparam o cenário, acomodam a vista e constroem o discurso em voga. Prepara, antes os indivíduos locais para a recepção do que está sendo organizado nos grandes centros, o que requer todo um investimento que dura um certo tempo. São mudanças que atendem antes de tudo interesses locais, interligados ás expectativas globais. É interessante ressaltar que no Estado vizinho, no campus principal da Universidade Federal da Paraíba, localizado na capital (João Pessoa), local aonde reside a secretária de turismo de Santa Cruz, 53 discentes, já em período adiantado do curso de turismo e hotelaria foram questionados sobre 231 Informação concedida por Marcela, Secretária de Turismo de Santa Cruz, em 27 de agosto de 2016, Natal, RN. 320 a estátua de Santa Rita e os roteiros. Com surpresa, esse grupo não conhecia o empreendimento, nenhum aluno comunicou saber da existência desse complexo turístico. Antes de tudo as faixas são visíveis primeiro para quem as tem ao seu alcance. A gratidão e o desenvolvimento econômico para o amanhã tem atendido aos interesses restritos, servem de exemplo para outros candidatos atuar em propostas exatamente iguais, como a que está em andamento agora na cidade de Mossoró. 321 Fotografia 24- Faixas de gratidão e promoção232 Fonte: Na Fotografia 25, por sua vez, vemos uma trajetória noturna sendo realizada até o Santuário. A fotografia está enquadrada pelo aniversário de cinco anos do Santuário de Santa Rita de Cássia, que se dá com a inauguração da iluminação desse complexo turístico. O evento recebeu agentes da política local, entre eles a prefeita do município, Fernanda Costa (PMDB), do seu esposo o deputado estadual Tomba Farias (PSB), e do senador José Agripino (DEM) que viabilizou os recursos para o projeto de iluminação do complexo, além da presença da vice- prefeita de Natal, Vilma de Faria (PSB). Todos participaram da procissão, comandada pelo pároco Vicente Fernandes. O deputado Tomba Farias aproveita o momento e destaca que “Santa Cruz se consolidará como um dos principais polos turísticos do Brasil” (informação verbal, 2016). O que concerne a quem valoriza o seu feito, imbuído da pretensão de garantir um desenvolvimento econômico e conquistar mais visibilidade. A Fotografia manifesta a supremacia dos desejos que coaduna-se as noções socialmente ortodoxas arranjadas em uma urdidura de imagens e símbolos que em prol desse santuário constitui o panorama das redes do poder, dos arranjos, dos controles e das ideologias hegemônicas. É a constituição de um suporte com apoio de um sistema de hierarquias e sua consequente ordenação do desejo do maior implantando os elementos culturais que já venceram 232 Fotografia de autoria de Canindé Soares registrada em 27 de junho de 2010. Faixas, Santa Cruz, RN. 322 uma batalha anteriormente e se tornaram primordiais na cultura ocidental. Em sua própria escuridão ela ilumina as imagens do êxodo; que remete ao deslocamento por condições melhores de sua terra natal até uma terra estranha. Igualmente, a da via cruzes; caminho que representa o esforço feito por Jesus Cristo carregando a cruz, que pode ser interpretado com caminhadas de fiéis reproduzindo mentalmente esse percurso de Jesus. Ambas as imagens promovem experiência dessas ordens, acessam o que já está condicionado por intermédio de cristalizações. O deslocamento de fé acessa ainda os discursos privilegiados no processo de consolidação da visibilidade da região Nordeste, consciente ou inconscientemente relatam a via cruzes dos retirantes saindo do sertão. Em um ambiente marcado pela concentração de terra; de renda; de economia; de produtos; diante da dinâmica que requer a circulação da renda muitos padecem. O êxodo nordestino levou os retirantes, em sua maioria, até São Paulo- cidade que representava o progresso, o desenvolvimento, o concreto, a selva de pedras. A fotografia apresenta um caminho iluminado até o concreto representado na madrinha dos sertões, indicando que agora a terra prometida é aqui. A mesma promessa de fé em um futuro melhor renasce junto ao discurso do turismo local, com um discurso que tem um forte apelo paisagístico, motiva e insere a população nas raias do espetáculo, cujo que parece ser, nem sempre é. Possibilidade promissora, mas com a sua forma presa e exposta a uma visibilidade local passada, construída a despeito das ânsias de quem caminha. A fotografia traduz o fruto de conquista dos direitos de construir e constituir o corpo da cidade a partir de paisagens que colocam no tempo da cidade as configurações que ordenam o mundo em fluxos contínuos entre os arranjos do local/global. 323 Fotografia 25- Caminho iluminado233 Fonte: Todo o arranjo na cidade, bem como o valor de uso do espaço se dão no enquadramento das relações atuais. Como ressalta Lefebvre (1991a) o espaço é produzido como resultado de um desenvolvimento capitalista. E nessa ordem o espetáculo do capital requer uma marca, uma identidade, um rosto. Elaborada por especialistas em desenho e marketing a cidade ganha a sua logomarca (Figura 32). Nela, presente sintetiza o passado, de modo mascarado, mas fulgurado por visualidades que preponderaram no momento de construção da paisagem original do Nordeste, contudo a lógica atual dissolve os mitos passados e mesmo as figuras atuais insistindo no refugo da evidência da paisagem de origem abrem possibilidades para outros sentidos. É a rasgadura latente no sentido da imagem. Como ocorre na Fotografia 26, que expõe a festividade da padroeira organizada por residentes, empresários, políticos, membros das pastorais e lideradas pelo pároco local. A festa obedece a uma programação previamente estabelecida pela equipe responsável, ordena o espaço, reúne diferentes segmentos sociais, sejam eles provenientes de bairros periféricos ou representantes do setor político e comercial. Segue uma hierarquia composta por arcebispo, bispo, padres e diáconos acompanhados por coroinhas e autoridades políticas estaduais e locais 233 Fotografia de autoria de Canindé Soares. Iluminação, Santa Cruz, RN. 324 “misturando-se” aos féis. Essa dinâmica é engendrada pela expansão do mercado. Moradores preocupam-se em tentar obter lucros, seja com a locação de casas ou com a prática de comércio temporário, um dos poucos benefícios gerados pelo turismo religioso. O que se abre na fotografia e nos olha é um recorte da cidade em festa, como em uma bela pintura com cores saturadas e movimento. Se imaginarmos a regra dos terços na imagem, o movimento sai do terço superior na interseção esquerda, as nuvens trazem esse movimento que se abre em analogia do passado com o tempo presente. Então, vindo do plano de fundo em direção ao primeiro plano surge um dos fixos, no cume do morro, parecendo isolada está à estátua de Santa Rita. Se trata do fixo mais elevado no recorte fotográfico, em posição de destaque tem sua representação privilegiada, como se surgisse a partir do nada, da parte mais profunda da imagem. No alto, acentua a pequenez do povo diante da fé. Essa é a visualidade da fotografia, cuja latência se abre para a crítica ao pensarmos que não se pode encarnar a paisagem em um único elemento, uma vez que a imaginação não se funde numa só imagem e a própria paisagem remete a um ambiente fértil de fenômenos. O monumento que chama para si os olhares e as novas experiências na cidade de Santa Cruz é resultado de conflitos e cisões; de desejos; “da grana que ergue e destrói coisas belas”. Demarca a complexa rede de exposição e silêncio, de paz e embate, de movimento e estase, que dá consistência as coisas e as ações enquadradas por um entorno que quase faz confundir a criação com a criatura: figurabilidades que discursam através da sociedade do espetáculo. A Fotografia 26 também permite alusão a visualidades da cidade de Deus tal como idealizadas por Santo Agostinho. A cidade que se funda no amor as coisas de Deus. Um pouco abaixo participando diretamente do espaço ordenado, aparentemente homogêneo em seu recorte, mas permeado por uma multiplicidade de relações está o fixo basilar das pequenas cidades cristãs: a igreja. O templo cristão aponta para o que é comum nos espaços urbanos do nacional: a instituição de símbolos que direcionam ao nosso longo processo de conquista e colonização europeia. Muitas figuras emergem com relevo a religião católica cuja centralização em nossos espaços é constante, porém, não tem mais a perspectiva do passado. Nesse aspecto a fotografia reinventa a paisagem, não como restauração, mas como parte de um grande espetáculo contemporâneo em sua rede abrangente de interrelações, em diversos níveis, técnicos e subjetivos, desde o planejamento do local até a vivência no ambiente mediados pelo lazer, pela religião, pelo turismo. O que vemos continua a ser a ordenação dos modelos hegemônicos, agora pelo discurso do turismo, que pretende garantir a realização do desenvolvimento econômico e local, concatenado a uma causa política e cultural. O que nos olha faz parte dos pressupostos que 325 alicerçam as bases de um turismo idealizado para beneficiar poucos em seus projetos restritos. O turismo, uma atividade direcionada por noções plurais e democráticas, ao ser forjado no local privilegia unidade de propósitos, estratificação e hierarquização de um mito, fazendo com que outros objetos se percam para nós, mesmo que estejam muito próximos; desestabilizando e deformando as coisas. Figura 32- Identidade Visual – Marca da cidade Fonte: Secretaria de Turismo de Santa Cruz (2016). 326 Fotografia 26- Cidade e Complexo de Santa Rita234 Fonte: 234 Fotografia de autoria de Canindé Soares registrada em 23 de maio de 2017. 327 6 CONSIDERAÇÕES FINAIS Esta tese de doutoramento procurou através do olhar crítico da sociologia analisar, em seus discursos e visualidades, as paisagens produzidas por intermédio das fotografias registradas pelo repórter-fotográfico Canindé Soares. Senda essas paisagens parte da instituição do turismo religioso no interior do Estado do Rio Grande do Norte mediada por políticas públicas de fomento ao turismo na região Nordeste do Brasil. Dessa forma, buscamos entender os condicionamentos que figuram nas paisagens registradas em sua relação com as políticas públicas de turismo acarreadas pelo processo de desenvolvimento capitalista da região. Observamos, portanto, que as visualidades que emergem escapam as relações complexas e as produções culturais organizadas pelos agentes locais. Ao contrário, estão condicionadas pelo processo de homogeneização em relação às visualidades que incidiram no processo de organização da região Nordeste do Brasil construída, em grande medida, pelas elites regionais e responsáveis, posteriormente, por uma imagem depreciativa da região. Propomos especificamente essa análise através da correlação entre as visualidades do regional/local – Nordeste/Rio Grande do Norte – nas paisagens que salientamos enquanto nordestino-potiguar, captadas no percurso profissional do fotógrafo Canindé Soares. O que inclui as ideologias e discursos que cercam o campo político, econômico, cultural e visual de acordo com as promoções do espaço incrementado a partir das escolhas dos órgãos oficiais de turismo no Estado. Sob esse viés, é de suma importância entender as visualidades que constroem o espaço, absorvemos a paisagem como maior representante desse enquadramento sendo um produto das confluências sociais com dimensões aparentes nos registros fotográficos. Pensar as visualidades do Nordeste em concomitância com a política e a religião é enveredar por um universo amplo e heterogêneo, parte de uma rede de relações socioculturais travadas em diálogo constante com as concepções globais e as composições locais. Essa complexidade nos fez optar por uma divisão onde os capítulos se cruzam, mas que priorizam especificamente cada um dos elementos sugeridos, com eixo na apreensão dos discursos enquadrados nas fotografias; e comprovação da hipótese, cujo direcionamento diz respeito às paisagens nordestino-potiguares, relacionadas ao turismo religioso, produzidas no presente a partir da espetacularização de um sintoma visual do passado, culturalmente engendrado por discursos hegemônicos e específicos que favorecem a sua manutenção em detrimento dos interesses plurais e democráticos. Uma vez que é a abertura ao social, ao heterogêneo o que pretende as políticas em questão. 328 Trabalhar com um cenário regional amplo e pouco homogêneo, dificulta a realização de diagnósticos precisos em relação às visualidades organizadas pelo turismo religioso. Por isso a escolha do Estado do Rio Grande do Norte e das visualidades que o cinge moldadas pela ideia da região. Nesse cenário os espaços mais significativos diante das regiões turísticas do Estado, como representante do regime que dá a ver paisagens convergentes a perspectiva geral do Nordeste em suas nuances identitárias. Nesse aspecto a sociologia contemporânea permite trazer contribuições para além da criticidade, papel próprio do sociólogo, através de um olhar mais amplo e menos engessado dos atores que permeiam o objeto de estudo. Verificou-se neste estudo que as paisagens produzidas pelas fotografias com a temática do turismo religioso podem ser identificadas de modo socioespacial sob três perspectivas: uma de natureza geral, sociológica, do discurso político, através dos polos que congregam a região turística, os quais recebem influências globais das políticas de fomento ao turismo, com ênfase nas ideologias de desenvolvimento econômico e redução da pobreza na região Nordeste; outra, que se dá a partir dos pressupostos do discurso oficial que recai sobre a região Nordeste cuja visibilidade direciona o enquadramento do fotojornalista à cultura religiosa, mística, folclórica e artesanal; terceiro, de natureza específica, pela vinculação das relações sociopolíticas à fé nas localidades que integram as zonas turísticas no segmento do turismo religioso, inclusive, como se essas fossem herança de um passado, sendo o turismo uma possibilidade de “resgate” e de “preservação” dessas práticas. Sob o argumento exposto instaura-se nas paisagens; espaços dinâmicos, transitórios, efêmeros e produzidos por meio de discursos; a questão da regionalidade em acordo com o interesse de cada grupo. Para os peregrinos as paisagens remetem a extensão dos atos de fé. De outro modo disposto, para os moradores locais elas representam perspectivas de desenvolvimento, uma vez que estão agregadas ao momento em que a cidade se transforma em palco de espetáculo, suscitando visibilidade e atraindo visitantes que contribuem com as atividades econômicas; mas que levantam muitos questionamentos. No olhar do turista a paisagem remete a possibilidade de retornar a um tempo tradicional e festivo marcado pelos valores e bons costumes. Para os políticos ou personalidades da sociedade, as paisagens festivas registradas em fotografias se tornam o palco das representações, das ascensões sociais, um álibi para os investimentos, muitas vezes tornando-se o lugar da disputa e do confronto. As fotografias relacionadas ao turismo religioso no Estado do Rio Grande do Norte estão atreladas aos ícones culturais de um tempo pretérito e organizam as visualidades paisagísticas que surgem no presente a partir de um discurso ideológico hegemônico. Discurso esse que é possível por meio de um sistema social de hierarquias que desenham a cidade em um panorama 329 de controles, ações e elementos culturais priorizados nas redes de poder que legitimam um espetáculo de transformações simbólicas e imagéticas nos espaços, verificáveis nas paisagens “nordestino-potiguares” onde findam como discursos empenhados em atender interesses específicos e não uma realidade plural. Na imagem fotográfica é evidente a supremacia desse modelo histórico operando nas subjetividades do tempo e do espaço atual margeando a rede de relações que a constrói concernente às novas relações socioespaciais. Diante de tal situação há a redução dos discursos que avançam no debate dos espaços, consequentemente, das ações capazes de favorecer oportunidades mais justas a população de modo geral. Do mesmo modo, o que ocorre, ao contrário do que se pensa, não tem a ver com a valorização, com a “preservação” ou mesmo o “resgate” cultural; posto que a preservação parte da ideia de se conservar a representação do que foi e não do que é, isso nega a cultura, sufocando-a em um fragmento do passado. Há que se considerar que a imposição dos discursos pretéritos nega a dinâmica cultural presente no cotidiano, reduz a sua produção e importância social, política e econômica. No fim, margeiam artistas locais, educadores, esportistas, líderes religiosos de variados credos, movimentos sociais, ativistas, entre outros que constroem cotidianamente sensibilidades, estéticas, discursos, símbolos e novas paisagens culturais interessantes a atividade turística. Observamos os traços peculiares da atividade turística em termos do turismo religioso que se constroem com versões e interesses ambíguos e conflituosos em relação às paisagens destacadas. É inegável que o uso dessas paisagens através das festividades, principalmente, dos santos padroeiros faz parte do imaginário produzido coletivamente. Entretanto, nem sempre elas retornam em viabilidades ou em expansão de acessos, melhorias de qualidade de vida de modo coletivo. Quanto mais se investe na visibilidade das práticas religiosas católicas como um construto social e identitário, mais chances existem de incremento de um turismo religioso restrito alimentado pelas mesmas instituições que usufruem dessa prática. O que supõe a manutenção de práticas margeadoras. Visando atender o desejo de uma clientela que busca prestígio e apoio político as paisagens do turismo religioso transformam-se em mercadorias ressignificadas em seus elementos à medida que passam a ser alvo da promoção das políticas públicas de governo encenando um jogo de adesões entre as instituições que propõem o desenvolvimento. Esse desenvolvimento deveria compreender os objetivos de bem-estar e a melhoria da qualidade de vida da comunidade residente, a satisfação das necessidades e expectativas do turista e a integração econômica local e regional. Ou seja, um sistema complexo, uma vez que o turismo é uma atividade de tal porte e importância que só pode ser planejada como um sistema 330 integrado, considerando-se o conjunto das diversas variáveis envolvidas; culturais, sociais, político-legais, econômicas e tecnológicas. Todavia, não há diálogo profícuo e produções plurais quando o que se tem é o interesse restrito em uma expectativa ampla e plural. Tal complexidade foi analisada em imagens produzidas pelo fotógrafo potiguar Canindé Soares, objeto central desta tese, traçando a sua trajetória. Seu discurso denota uma multiplicidade de variantes econômicas da sua vida privada, de campos de atuação, do reconhecimento que tem em âmbito social e político, de dicotomias das imagens e da própria inserção no cenário potiguar. Sua produção é de milhares de imagens, escolhemos uma quantidade restrita vinculada a produção específica do segmento religioso católico que recentemente foi abarcado diante dos interesses dos agentes que tratam do turismo em âmbito nacional, levando essa influência ao regional. Não nos debruçamos a uma análise à arte de Canindé Soares por si só, porém, a uma crítica aos discursos que articulados a vários elementos, nesse caso do turismo, legitimam uma visualidade do Nordeste que o remete ao seu mito de origem elaborado pela elite agrária em declínio econômico e político. É preciso ressaltar que as fotografias de Canindé Soares abordam temáticas amplas. As suas imagens, em termos gerais, suportam a transformação de uma identidade submersa à política social e econômica que se materializa na experiência do consumo, na contemporaneidade. Sob a égide do capitalismo neoliberal e a promessa do desenvolvimento regional e local materializa em sua obra a paisagem da sociedade no espetáculo, transforma-a em espaço de atração, de visitação e de contemplação. Ao tratarmos de um padrão comum das visualidades do Nordeste o autor, em grande medida, é inovador, uma vez que vai de encontro à estética padronizada, o que pode ser percebido em suas escolhas, como por exemplo, abrir mão da dramaticidade encontrada nos tons Preto e Branco. Tal estratégia está atrelado ao fato de que o fotógrafo busca articular nas imagens as paisagens ao moderno e ao tecnológico; dar um colorido saturado a paisagem da caatinga; destacar açudes transbordando em águas e sendo utilizados como espaço de lazer pela população, destacando o espaço vivenciado em seu contra- uso; mostrar as pequenas cidades transformadas pela multidão, luz e tecnologia, por dar a ver santas padroeiras em cidades do interior carregadas em caminhonetes importadas. Canindé Soares foge do olhar clichê ao transformar elementos que emergiram no discurso da dor em quadros alegres, de vida e de promoção do espaço. Apresenta a paisagem- nordestino potiguar em sua arquitetura vertical e moderna, nas luzes da metrópole e dos eventos de grande porte. Portanto, esse fotógrafo estendeu seu foco para o contemporâneo e esteticamente valorizado nas cidades e conseguiu ampliar o seu horizonte de oportunidades. Todavia, sendo alguns elementos parte do aspecto cultural responsável pela própria 331 construção da região, Canindé os representa em seu enquadramento. Esse é o sintoma que surge como resquício de um passado que se apresenta na memória coletiva. Em sua latência os sintomas expressos no arquivo mental do autor atuam no direcionamento do registro fotográfico para a recriação de identidades que forjam novas paisagens a partir de celebração religiosa nos moldes contemporâneos. Sobre as análises da fotografia se fez necessário um estudo em relação aos discursos e as suas ideologias; no qual tomamos a fotografia enquanto imagem crítica e reflexiva das relações sociais a partir da sua potência epidérmica. Isto é, do seu alto nível de reprodução, análise desenvolvida por Georges Didi-Huberman e que vigora por meio da arqueologia da impressão; com o visível sendo interpretado por sua constante aparição a partir de um discurso permeado por questões sociais, econômicas e estéticas enquadradas em seu recorte. Acrescentamos a concepção de Didi-Huberman o conceito de espetáculo tal qual define Guy Debord e construímos a ideia de se olhar a fotografia na busca do enquadramento espetacularizado. O enquadramento espetacularizado aponta o discurso cúmplice dos sintomas em relevo, que elaboram a representação ideológica do espaço. Nesses termos, buscamos apreender o que nessa tese se chama enquadramento espetacularizado a partir da confluência entre a fotografia a paisagem e o turismo. Tendo em que conta que o turismo se faz a partir do consumo de paisagens. Nelas alguns elementos devem chamar a atenção, apelar à impressão de condições pré-existentes que em relevo são espetacularizadas a fim de determinado conteúdo cativar o campo da visão. Ficou bastante explícito que a fotografia dialoga com os discursos cujo processo histórico serviu como legitimador de ideologias; assim como se transforma a partir de novas leituras em um elemento discursivo, que revela e diz sobre relações socioespaciais a partir do ponto de vista de seus produtores que instituem a sua caracterização enquanto espetáculo para o turismo. Exploramos os discursos que acenderam as ideologias para a construção da paisagem nacional no turismo, o que propiciou na construção do regional, momento em que emergiu a ideia do Nordeste e das suas paisagens. Enfatizamos as políticas que, juntamente, com outras relações, imbricadas no cenário global/local, trouxeram a possibilidade do crescimento e d desenvolvimento regional, porém a qual na prática ainda tem barreiras nas chamadas políticas públicas de desenvolvimento do turismo, no caso específico, do turismo religioso - seja nas esferas municipais, estaduais ou nacional. As pesquisas de campo, a construção teórica sociológica, o desenvolvimento empírico de gráficos e tabelas dialogam com a necessidade de um olhar mais apurado para esse campo religioso de atuação do turismo. Isso porque a tese demonstrou que as políticas públicas, apesar 332 de priorizarem em seu escopo os aspectos plurais da realidade social, com referência a política escolhida: o PRT, que tem como estratégia basilar facilitar a coordenação de esforços na implementação do turismo articulando o poder público, a iniciativa privada e a sociedade civil. Contudo, na prática a apresentação de resultados não surte o efeito desejável para fomento da atividade em prol das expectativas almejadas diante das realidades locais. As transformações que envolvem os moradores locais são ínfimas; a multiplicidade religiosa esbarra no catolicismo; os discursos em prol do turismo cultiva os mitos passados de uma oligarquia agrária que teve seus símbolos ampliados no plano político e econômico e incorporados nos mais variados campos das produções culturais. O tom desses discursos, muitos preservados até os dias atuais, obstruem a emergência de formas criativas de se pensar e recortar visualidades a partir de novas paisagens turísticas para a região. Impossibilita ações criativas nos espaços, alimentam o privilégio e o interesse restrito a poucos grupos. A própria academia, em muitos casos, se restringe as questões culturais submetidas e distribuídas diante da lógica do turismo. Não se pode considerar os conceitos de religião/religiosidade dissociados da dimensão local que a caracteriza quando conformada ao sistema territorial do turismo. Em verdade podemos dizer que o turismo religioso constitui uma atividade econômica territorializada quando os seus ativos fundamentais; os atrativos paisagísticos; a história e a cultura marcam em seu conjunto uma identidade social e territorial, com o poder de atrair investimentos públicos e privados, nacionais e internacionais. Ao abordarmos a relação turismo e religião e religiosidade, um aspecto relevante é o da debilidade econômica do local considerado turístico. Pois quanto mais ou menos deprimido economicamente for o turismo irá se inserir no contexto socioeconômico cumprindo funções de distintos matizes e alcances: como atividade dominante; como atividade estruturante; como atividade complementar; ou como atividade residual, dependendo de onde se localizem as atividades turísticas e da importância que elas assumem na economia verificada. Em termos econômicos o turismo religioso é referenciado como uma atividade detentora de relevante potencial de propulsão do desenvolvimento, porém, ocupa números ínfimos em relação a outras possibilidades turísticas, mais consome do poder público do que destina a população, como observado em campo. A concepção do turismo religioso se sustenta e abrange sua espacialidade acessando os enunciados clichês do Nordeste, assim se insere diante das festas católicas interpretadas no discurso de vários agentes políticos como possibilidade de preservação da tradição, divulgação da cultura popular; dando a ver a cultura Nordestina como 333 fora da urbanidade contemporânea; mas arraigada ao culto religioso, místico, popular, folclórico e artesanal. Para se ter uma noção mais clara, em termos econômicos pode-se observar o dimensionamento da atividade em âmbito local, isso permitirá comprovar ou não tal potencial, possibilitando que se qualifique melhor o escopo das políticas públicas e de investimentos setoriais e infraestruturais. Esse é um exercício importante, visto a simplicidade dos discursos em prol da aquisição de verbas públicas para a construção de estátuas e templos católicos, ao mesmo tempo em que tem sido difícil o investimento em ações plurais com privilégio a bens simbólicos diversos que localizam-se a margem dos discursos dominantes. Esses últimos, ao contrário do que é suposto, tolhem e retardam o desenvolvimento econômico de modo justo e equilibrado. Nos dias atuais, embora os discursos priorizem o turismo religioso e o direcionamento de verbas para esse fim, essa tese constatou que não existe turismo religioso efetivo em termos de desenvolvimento no Rio Grande do Norte. O que se tem é um movimento, basicamente municipal, de excursionistas e peregrinos ligados à fé católica. Isso nutre um movimento estadual entre as paisagens católicas oferecidas. Percebemos então que se molda o espaço em torno de um turismo desviado da cultura imaterial plural e dedicado a megaprojetos de benefícios econômicos questionáveis. Os templos já foram erguidos e somas suntuosas investidas, mesmo que haja algum tipo de indicador positivo em termos econômicos, esse não atinge a população de modo amplo por manter ausente o debate cultural imaterial e a economia interpretativa. Não queremos dizer que o que foi implantado não deve servir, ou é inválido, mas manteve ausente o debate e o planejamento com viés democrático. Com isso fica claro que continuar a transformar espaços para o turismo sem a implantação do processo de planejamento que leve em conta as especificidades e a pluralidade existente nos locais é simplista e reducionista. Deve-se ampliar os propósitos em termos de cultura, das suas visualidades e dos agentes envolvidos, abarcando outros olhares, outros credos. Mesmo no credo hegemônico há novas possibilidades de articulação capazes de desconstruir preconceitos. Debater a cultura em sua diversidade e diante da organização espacial que se quer atuar é uma questão ética que, antes de tudo, deve passar pela transformação dos discursos visuais. É importante que o planejamento não ajude a fomentar discursos como os atuais onde a comunicação é sistematicamente distorcida e confunde a realidade linguística com a realidade fenomenal; como por exemplo o prefeito da cidade de Santa Cruz afirmar que conseguiu realizar o sonho de construir uma estátua gigante pela “graça de Deus”; negando as mediações 334 políticas e religiosas em torno da obra. Esse tipo de estrutura retira a responsabilidade prática dos representantes públicos com as questões socioespaciais, desvia o foco das questões estruturais mais urgentes nas localidades e as insere em um vácuo cultural. Levar a cultura a sério em seus discursos, produções e visualidades é priorizar o desenvolvimento do capital humano e social. Nesses termos para o turismo religioso ser inserido no processo de desenvolvimento econômico dos municípios da região necessita de maior cuidado dos poderes públicos, investimento do setor privado, fomento científico das universidades e reconhecimento da heterogeneidade brasileira. Por apresentar um caráter múltiplo e abraçar a cultura imaterial o turismo religioso pode ser um grande dinamizador no processo de desenvolvimento econômico, social e cultural, haja vista a sua capacidade ampla de inserção de aspectos concretos e de fé. Ele envolve questões materiais e imateriais, objetivas e subjetivas. E aquilo que é concreto, objetivo e material está no plano econômico e no político, também, no aspecto sólido do turismo com suas estratégias e aparatos estruturais tais como a hotelaria, alimentação, transporte, espaços de fruição, etc., por outro lado, se agrega valores culturais, imateriais, subjetivos, simbólicos e sustentáveis que remetem à fé, ao sagrado e profano, a solidariedade, a heterogeneidade; ainda, alimentam a esperança e dão sentido a vida de muitos. Sociologicamente por mais complexas ou arcaicas que as sociedades sejam, a instituição religiosa é extremamente relevante em suas estruturas. Para além da fé, dos aspectos transcendentais, ela possui raízes nas mais diversas estruturas sociais fazendo parte da cultura imaterial de um povo. 335 REFERÊNCIAS ABRANTES, Vera Lucia Cortes. O IBGE e a formação da nacionalidade: território, memória e identidade em construção. In: SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA, 24., 2007, São Leopoldo, RS. Anais eletrônicos... 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Porém aconteceram alguns desentendimentos familiares, problemas... E houve um afastamento. Eu casei e fui morar na Zona Norte de Natal, como eu gostava de estar junto da família vendi a casa do meu pai que se localizava no bairro de Dix-Sept Rosado e comprei para ele uma casa próxima a minha. Comprei uma casa perto da minha para a gente ficar juntos. Sabe essa coisa de gostar de ficar junto, então, éramos vizinhos: eu, meu pai e minha irmã e ficamos muito tempo morando vizinhos até que meu pai decidiu voltar para o interior. Ele queria voltar para as origens, aí nós nos afastamos um pouco, aí para visitá-lo ficou mais difícil, eu não ia sempre, apesar de ser perto, é uma distância de 210 a 220 km, mas eu só ia visitá-lo uma vez por mês, as vezes de dois em dois meses, ficou mais difícil o contato. E depois que a minha mãe faleceu eu estive lá só duas vezes, mas me senti muito mal, fiquei muito mal quando chegava em casa, então depois que a minha mãe morreu eu me afastei do meu pai, mas este afastamento se deu também por questões financeiras. Minha mãe morreu em 2014, nesse período eu fiquei afastado do meu pai, a questão financeira tem pesado, preciso realmente cortar as viagens, cortar as despesas. Eu tinha planejado ir agora em fevereiro visitá-lo, eu acho que agora já da pra eu suportar ausência da minha. Essa é a relação que a gente sempre teve, de gostar de ficar juntos, sempre perto e hoje eu moro vizinho a minha irmã, olha que coisa boa! Eu só tenho duas irmãs, uma é deficiente e ficou no interior e a outra é essa, que é casada e que eu tive a felicidade de comprar uma casa vizinha dela. Isso pra mim é muito bom, eu me sinto feliz em estar perto dela, o nome da minha irmã é Marluce, mas a minha mãe chamava ela de Eliene. Essa é uma história engraçada, depois que ela foi registrada alguém próximo colocou nome da filha, também, de Marluce, uma outra criança, minha mãe não gostou nada de outra criança se chamar Marluce e passou a chamar a minha irmã de Eliene. 361 Já sobre a minha avó lembro (a materna) que ela era muito próxima, muito brincalhona, muito gaiata, eu sinto muita falta dela. O terreno do meu pai em Dix-Sept Rosado era muito grande e ele deu uma parte para a minha avó construir. Sabe que eu talvez seja único da família, de todos, eu sou o único que costuma visitar os parentes, eles nunca vão na minha casa, ninguém vai na minha casa, eu que vou na casa dos meus tios, irmãos da minha mãe, tem um irmão e tem uma tia da minha mãe que faleceu recentemente. Sou sempre eu que vou lá, talvez seja algo de família ou cultural da cidade, eles não gostam de visitar, mas eu sempre vou na casa deles. Sobre o meu nome foi uma promessa e eu tenho uma promessa pra pagar que eu não paguei lá em São Francisco do Canindé, minha mãe fez uma promessa que eu deveria ir vestido de Canindé lá para o Ceará, mas eu nunca vou fazer isso, realmente eu nunca vou fazer isso. Em termos de religião eu sou católico, mas eu tenho alguns questionamentos, eu sempre pensei assim de não me apegar a religião, as vezes até eu falo brincando: graças a Deus eu não tenho religião. Eu acredito em Deus e eu me denomino da religião católica (risos), eu acredito em Deus, mas eu não aceito muitas coisas... Tem coisas que realmente eu não sei... Eu já pensei até em ser crente, mas lá também encontro coisas parecidas, são coisas que acho um absurdo. Eu não gosto de religião, na realidade da mesma forma que tem coisas erradas na igreja de crente, tem na igreja católica. Como eu quero falar? Bem, são coisas que fogem das coisas normais. São atitudes que fogem das coisas normais da razão, do pensamento, da solidariedade, da amizade, de sentimentos. Esses sentimentos muitas vezes faltam dentro da religião, eu acho. A religião da gente é o amor, o respeito. Isso as vezes falta dentro da religião, falta o sentimento de respeito e de amor verdadeiro, nós vemos muito inveja e uma série de coisas que eu não aceito. O meu pai é muito católico, ele vai para a igreja todos os dias, ele assiste à missa na televisão ele escuta a missa pelo rádio, são todos os dias. Ele briga porque a gente não reza. Ah, tem dia que eu sinto muita saudade dele, eu estou louco de saudade dele, preciso visitá-lo. Meu pai é muito ranzinza, ele parece com o seu Lunga. Você conhece o seu Lunga? O seu Lunga é um senhor que mora no Ceará, em Juazeiro, uma pessoa muito ranzinza, ele inclusive ficou famoso por causa disso, o meu pai parece com ele. Já a minha mãe é uma pessoa muito simples, muito humilde, ela tinha um orgulho de mim imenso. 2) Sobre os estudos eu tinha muita vontade de fazer uma Escola Técnica, os meus filhos fizeram a Escola Técnica, um deles hoje é funcionário do IFRN. O meu outro filho faz faculdade de tecnologia da Informação no IFRN, os meus filhos realizam hoje o que eu não realizei. 362 Eu estudei até o terceiro ano do segundo grau, naquela época chamava de segundo grau, mas eu não terminei o terceiro ano porque eu fui ser militar trabalhava, nossa, eu trabalhava muito. Eu fiquei impossibilitado de estudar devido à alta carga de trabalho e, é claro, teve também a minha comodidade, eu me acomodei. Eu fiz até o supletivo lá no Rio de Janeiro e nesse supletivo eu terminei, mas perdi os documentos e depois fiquei desmotivado. Eu sempre tive vontade de fazer faculdade, mas pelo menos eu concluí o segundo grau. Sei que por vários fatores eu terminei não fazendo a faculdade e hoje eu nem me interesso mais em fazer, porque eu não tenho mais saco de ficar numa sala de aula. Hoje eu tenho outros objetivos e uma faculdade tomaria muito meu tempo, o meu objetivo principal hoje é fotografar. Mas, sobre a faculdade, hoje eu tenho até inveja de colegas, puxa, eu tenho um amigo que se chama Valmir que voltou estudar depois dos 60 anos e terminou faculdade, ele fez Marketing. E, sabe? Agora está fazendo o mestrado (risos), ele é um amigão de infância e eu falo pra ele: eu tenho 100% de inveja de você. Digo isso porque hoje eu não tenho coragem de enfrentar a rotina da sala de aula. Quando eu era jovem, eu acho que já te falei isso em outras conversas, eu pensava que teria que trabalhar 30 anos de trabalho em uma rotina de 30 horas, cumprindo uma rotina igual de trabalho, isso era muito ruim. E graças a deus eu não preciso ter essas profissões que tem que cumprir 30 horas de trabalho direto, com rotina, hoje eu tenho uma profissão que eu amo, ela não tem rotina. Eu não fiz faculdade, mas hoje eu dou palestras, dou palestras tanto na UNP (Universidade Potiguar), quanto na Universidade Federal, eu dou dezenas de palestras. É interessante isso, mas a nível do curso de jornalismo eu digo que a maior escola é a redação do jornal diário e eu passei pela redação da Tribuna do Norte. Eu coloco isso sempre nas minhas palestras: um jornalista só é completo quando ele passa pela redação de um jornal diário, essa é a grande prática; você está lá dentro e você sai pra pauta e você tem que voltar com um resultado, não é só esse procedimento, existem outros ensinamentos da redação, ela te ensina a construir o texto, te ensina a deadline, o tempo limite. O próprio repórter fotográfico tem que ir pra rua, ele tem que produzir imagens e isso te ensina a informar e a produzir a notícia para informar bem através daquela imagem. Isso tudo eu tenho, isso tudo eu construí, eu não tenho uma teoria acadêmica e se eu tivesse essa teoria acadêmica seria muito bom pra mim. A prática eu sei que eu tenho, mas realmente eu sinto que falta a teoria acadêmica e a falta da teoria acadêmica me deixa limitado, se eu tivesse passado pela academia, pela universidade seria uma coisa muito mais bacana. 363 Ah! Tem o Sandro Fortunato que me ajuda muito ele me deu muito incentivo nesse lance de estudo, inclusive foi ele o cara que me chamou atenção para a importância das minhas fotografias com um documento histórico, ele me ajudou muito, me incentivou muito a produzir, ele também chegou a me incentivar a ler, porque eu não leio, eu leio muitas revistas, mas livros eu não leio e pelo incentivo dele eu comecei a ler alguns. Tem alguns autores que eu tenho que ler, eu me cobro, eu sempre estou dizendo isso, mas eu não consigo colocar em prática, mas eu vou colocar qualquer hora. Eu acho que ler seria até mais importante ou tão importante quanto à faculdade. É eu sei que tenho que fazer isso, a faculdade talvez não, mas eu sei que eu preciso ler. Eu encontrei com o Sandro há uns três meses atrás e eu dei um carão nele, eu disse: - cara você me incentivou a ler, você me deu livros e depois me abandonou. E esse cara, ele lê pelo menos um livro por dia, ele é um intelectual e olha, é um cara novo, é um cara que deve ter entre 45 ou 48 anos. Sobre o período no Rio de Janeiro, eu fui para o Rio de Janeiro em 1981, voltei no final de 1987, e nesse momento já havia a influência da fotografia na minha vida porque quando eu fui ser militar eu já levei a câmera do lado e antes de ser militar eu já fotografava os militares comercialmente, eu comecei inicialmente vendendo as fotos, foi uma continuação de um trabalho que eu já tinha iniciado, não era a fotografia documental era um registro para sobreviver eu precisava vender a foto, era uma profissão, a fotografia era um produto para eu poder conquistar alguma coisa essa fotografia que tem a importância documental, o documento histórico, eu acho que eu comecei no início da década de 1990, mas no final dos anos noventa e na década de dois mil foi quando eu despertei para essa vontade de fotografar o documental, o próprio jornalismo me deu esse direcionamento, o jornalismo foi me motivando e o Sandro me incentivou muito, o Sandro sempre falou: Canindé sobre o seu trabalho no futuro ninguém vai poder pesquisar Natal sem passar pela sua fotografia ele sempre me falou muito isso. 3) Voltando para infância parece que eu não tenho memória, eu tenho uma vaga lembrança, minha memória é muito curta, tenho problemas de memória (risos), eu consigo lembrar de coisas pontuais, eu morava naquela casinha, eu lembro da janela pra rua, eu lembro de algumas brincadeiras de bola com as poucas crianças, pois ali era um sítio e eu tenho flashes do campo de futebol que nós fizemos. Eu tenho muita lembrança de injeção, por isso o meu medo de injeção, sabe eu tenho medo mesmo de injeção e naquela época era diferente, eu ficava doente e chegava o cara lá, levava aquele troço e colocava aqui, passava o álcool... Eu lembro de doenças, de febres, eu lembro que meu pai me levava para Santa Cruz mas eu cheguei em 364 Natal ainda criança eu cheguei em Natal com 7 anos, eu tenho que confirmar com meu pai o ano que nós viemos para o Natal mas eu acho que foi em 1967, acho que eu tinha uns sete anos, o que eu lembro na verdade é que nós mudamos muito e na segunda ou terceira morada nossa casa era em frente ao campo de futebol e eu nunca chutei uma bola porque o meu pai usava a gente pra trabalhar, ele matava a criação, se não me engano três vezes por semana, ele matava dois bodes e duas ovelhas e a minha mãe fazia o tratamento da buchada e eu levava em uma bacia na cabeça lá para Ribeira, meu comprou um cesto para eu ajudar, eu tinha entre nove e dez anos e trabalhava para ajudar na renda. Na rua onde eu morava também tinham feirantes nos dias de sábado, eu ia também para ajudar os feirantes e as minhas irmãs ajudavam em casa, apenas uma porque a outra é deficiente. 4) Eu não tenho mágoa de ninguém, minha mãe sempre colocou na cabeça da gente uma certa inocência, talvez a única magoa seja de um familiar muito próximo, mas são questões que não cabem aqui. 5) Uma coisa que me marcou muito foi a perda da minha mãe eu ficava até preocupado imaginando como ia suportar, a gente sente muita falta... Eu consegui muita força para suportar sabe quando eu estive em São Bento, depois que ela faleceu, eu não aguentei ficar lá. A minha mãe foi muito amiga, eu era tudo pra ela e vice-versa, ela tinha muito orgulho de tudo que eu fazia. 6) Sempre quem me apoiou foi a minha mãe, inclusive ela foi a única pessoa que soube que eu pedi baixa no quartel, meu pai não sabe até hoje que fui eu, não imagina que eu pedi baixa. Eu queria levar uma vida de artista a minha mãe me apoiava em tudo (risos), meu pai até hoje acho que a Marinha me deu a baixa. Na cabeça do meu pai sair de um emprego era ser vagabundo (risos), ele falava: “isso é coisa de vagabundo...” Eu tive muitos empregos, trabalhei no alecrim em comércio e aquilo me aborrecia e com pouco tempo e já não aguentava e pedia para sair. O pensamento do meu pai é bem de pessoas do interior, são as coisas do interior, o cara lá no interior, sem nenhuma cultura... Sobre a fotografia ela me deu todo o apoio, a minha mãe era uma pessoa humilde, simples, ela era praticamente semianalfabeta, mas ela gostava de ler, ela lia o básico, mas gostava de ler e ela tinha orgulho de tudo que eu fazia, qualquer coisa que eu fizesse pra ela era o máximo. Sempre que eu ia pra São Bento a galera vinha me contar que quando via uma reportagem minha na TV falava pra ela, ela achava o máximo. Lá em São Bento na nossa casa para assistir TV tinha parabólica e na parabólica não pegava o sinal local, as pessoas que me viam nos programas locais falavam pra ela: eu vi o Canindé. Era o orgulho dela. 365 7) A relação que eu tenho com o estado do Rio Grande do Norte é uma relação de paixão, tanto que eu fui pro Rio de Janeiro, uma cidade grande, e eu voltei pra cá. Voltei pra desenvolver o meu trabalho, é uma cidade bonita, talvez a mais linda e eu voltei por essa paixão que eu tenho. Essa paixão pelo Rio Grande do Norte eu tenho desde criança, veja na minha infância nós fizemos algumas mudanças de lugares e eu lembro que eu sentia muita saudade, eu sentia saudade do local. Tem a ver com a falta que eu sinto dos amigos, dos conhecidos, saudade da relação de convivência, tudo isso é muito forte, é uma questão de paixão; é um sentimento que muda de pessoa para pessoa, tem gente que é diferente que vai embora e esquece. Eu não, eu lembro do sítio, eu tenho uns flashes do sítio, lembro do roçado que o meu pai plantava algodão, lembro que lá foi onde levei uma queda de jumento quando eu tinha seis anos e eu fiquei com trauma de montar em jumento e o restante das lembranças são aqui em Natal, em Dix-Sept Rosado, ali é aonde terminava a cidade de Natal, era saindo de lá que nós íamos para o alecrim, para feira, para a Ribeira, para vender as carnes. Eu não tinha muitos amigos, eu era uma criança tímida e afastada. A minha timidez era talvez pela simplicidade, por eu ser uma pessoa pobre, por eu ser uma pessoa discriminada, eu não tinha muitos amigos, eu me lembro de um amigo que a gente estudou, fiz a oitava série, fiz o primeiro ano, fiz o segundo ano com ele. Ele era muito meu amigo, era de uma família classe média e me tinha muita atenção, o nome dele era Eduardo. E depois o Eduardo desapareceu, quando nós terminamos o estudo nós nos encontrávamos sempre, depois que ele desapareceu ficamos muito tempo sem nos ver e eu consegui encontrar ele muito tempo depois em Guamaré. Lá em Guamaré ele estava trabalhando em um posto de gasolina, ele era gerente e está muito rico, porque casou com uma pessoa muito rica de lá, hoje ele é crente me levou lá, me apresentou a família toda. Sabe ele é único dessa minha época de infância que eu lembro, que ficou a lembrança, já os outros eu não tenho contato. 8) Eu tenho orgulho de ser do Nordeste, se eu estou aqui eu tenho que me orgulha disso aqui, se eu fosse nascer de novo eu não queria nascer no Rio de Janeiro ou nos Estados Unidos eu queria nascer aqui, queria nascer aqui no nordeste eu sou daqui. E eu tenho também uma relação de bairrismo com o nordeste eu gosto do Nordeste e pt saudações, eu tenho orgulho eu acho muito bacana eu não escolheria outro lugar pra nascer. Se me falassem que iria nascer de novo e me pedissem para escolher aonde eu diria que quero nascer lá naquela casinha, lá naquele sítio na roça, aquele que você viu na foto. Trajetória Profissional do Canindé Soares 366 A trajetória na fotografia começou mais ou menos, eu acho que você já sabe, mas eu vou repetir, eu fui trabalhar numa loja de carros e eu trabalhava como uma espécie de vigia, não era um contínuo eu era um tipo de zelador lá. Eu zelava os carros, mantinha-os limpos. E o Alecrim ali era um bairro residencial, isso era no ano de 1977 e eu vi um cara passando com uma caixinha para entregar fotos, fiquei curioso e procurei saber o que era. Ele me disse que entregava fotos para um estúdio daqui, o estúdio do filho do Jaeci Galvão, era o Fred Galvão. E, o cara me disse eu entrego fotos pra eles, pro filho do Jaeci, Fred Galvão, para o Lauro Maranhão e Gildésio que era um conhecido jornalista aqui. E depois de ver esse rapaz entregando essa caixinha eu decidi, também que queria entregar esse material. Foi aí a minha primeira aproximação com a fotografia. E foi aí que eu comecei; eu sempre ficava olhando os caras trabalhando eles entrando no estúdio fazendo a três por quatro eu perguntava: - meu Deus o que é que esses caras fazem lá dentro, era curiosidade de menino... Eu não entendia, o cara vai lá pra dentro se esconde e quando volta, volta com essas imagens e lá dentro é tão escuro. E essas perguntas são perguntas de menino! É uma curiosidade eu ficava muito curioso eu achava que aquilo ali era uma mágica, Foi assim que eu me aproximei do estúdio, aí eu comprei uma Kodakezinha e comecei a fotografar. Poxa, mas eles não davam oportunidades eles não mostravam a técnica eu acredito que o pensamento deles naquele momento era de não criar concorrência. Por isso eles não deixavam ninguém ver o trabalho. Na cabeça deles fazer isso seria criar um concorrente. Então eu tive que ir olhando, ver como se fazia, fui buscando... Então foi esse o meu primeiro encontro com o mercado profissional e depois daí eu caí dentro lá na periferia. Peguei a minha maquinazinha e fui fazer a minhas fotos na periferia. Aquele mundo da fotografia era o mundo misterioso e me fascinava, mas na realidade o que eu busquei nesse mundo foi uma forma de sobrevivência essa é a verdade. Eu comecei a fotografar crianças filhos de vizinhas não teve ninguém pra me ensinar, não teve ninguém pra me dar a mão, esse início foi um caminho árduo, sozinho, sozinho mesmo. Sobre os mestres eu posso falar que o meu grande mestre foi o curso que eu fiz por correspondência nas Escolas Associadas que era um curso mais barato, que pertencia ao Instituto Universal brasileiro. Sabe e eu nem cheguei a terminar esse curso, não tive condições de terminar esse curso, mas ele foi o meu mestre e quando eu podia a minha referência era a revista Irís foto. A revista íris foto era realmente uma grande referência na fotografia, era uma revista mensal e quando eu podia eu comprava, mas não era todo mês que eu podia comprar. Ah, na revista, eles tinham muitos artigos, os que mais apareciam eram os do Clício Barroso, fotografo bem conhecido. Naquela época o Clício escrevia artigos e fazia ensaios de 367 moda e publicidade e o Clício tornou-se meu amigo depois. E a nossa amizade começou assim: eu fui para um congresso em São Paulo e o Clício estava lá e nós começamos a trocar ideia por e-mail; me parece que foi criado um grupo de discussão e foi a partir desse grupo que nos aproximamos, mas era um grupo de discussão de e-mail isso foi em meados dos anos 90, foi quando eu tive acesso ao computador e a internet. E nessa época não eram as redes sociais, eram grupos de discussão em e-mail e foi aí que eu conheci o Clício e depois disso eu comecei a criar eventos em Natal, eventos para ensinar a fotografia, e eu convidei o Clício várias vezes para vir falar aqui em Natal. Olha fizemos muitos cursos bacanas; curso de moda; curso de software; curso de Adobe... O Clício sempre vinha e hoje ele é um consultor da Adobe, né? A empresa que criou Photoshop e o Lightroom. Eu estou até pensando em organizar um novo evento e trazê-lo. Vou trazer ele esses dias por aqui. Ele foi um dos meus mestres, ele foi o meu ensinamento, ele é um nome muito forte na minha vida. Fora isso os ensinamentos que eu tive foi eu mesmo organizando... Seminários de fotografia, o seminário do Photoshop, workshops... Eu lembro que eu fui convidado para dar um curso de fotografia no Sesc, nossa e eu lembro que eu não sabia nada... Eu não entendia nada, tudo que eu tinha era só a vontade de realizar algo. Eu me tremia, eu ficava tremendo pra falar só pra trinta e quatro pessoas mas eu fui lá e formei uma turma; eu montava turmas e também montei o meu laboratório em preto e branco. Sylvana a minha vontade de aprender as fotografias é tão grande que eu fiz um jornal, eu já te falei, também, sobre isso, eu fiz um jornal e eu datilografava a matéria e sobre ela eu tirava uma foto, ia pro quartinho, que era um banheiro e revelava a foto. Daí eu colava na folha, reproduzia e distribuía tudo que eu tinha era somente à vontade eu acho que eu nome do jornal era em Foco. Nessa época eu procurava fazer muita coisa, queria aprender a montar esse laboratório, inventava esses cursos e foi justamente inventando esses cursos, dando aula, me disponibilizando pra ensinar que eu aprendi, foi assim que eu fui aprendendo e com tempo eu fui aperfeiçoando. Com isso de ensinar eu aprendi... Eu fiz um evento aqui tão bacana que eu chamei de maratona fotográfica, foi naquela época do filme de 36 poses, nós dividíamos esse evento em cinco pautas, as pautas eram assim: 10 minutos fotografando aqui que deveria dar tantos fotogramas, aí já corríamos pra outro lugar, tudo era cronometrado. Olha, veio gente de Recife, de João Pessoa, veio muita gente participar desse evento. Foi uma coisa bacana que eu elaborei sozinho na minha cabeça e deu certo. 150 pessoas vieram participar desse evento. Eu também participei de algumas coisas, fui pra São Paulo e agora vai ter um congresso em Recife que me fez lembrar de uma coisa que aconteceu lá no início dos anos 90, no 368 comecinho da minha carreira, eu participei desse congresso que eu vou agora, mas, na época era uma coisa tão falada, tão falada no início dos anos 90, que eu nem sei como e nem porque eu participei... No início como eu não tive apoio, eu peguei essa Kodak simples e com ela eu comecei a estudar os princípios da fotografia. Eu estou lembrando agora que no começo eu tive o apoio sim, contei com apoio de uma amiga minha, ela tinha uma câmera e ela me emprestou essa câmera bem simplezinha. E eu fiquei fazendo foto com essa câmara e depois eu comprei uma também bem simples e fiquei fazendo a foto, mas isso tudo era o início era aquela vontade de aprender. Se eu não me engano essa câmera que a minha amiga me emprestou utilizava um filme bem fora do comum era um filme 127 mm da Kodak. Eu lembro que a Kodak lançou o filme 126mm e o filme 110mm e esse 127mm. Esse último praticamente não tinha no mercado, lançaram algumas câmeras com esse filme de 127mm e depois viram que não dava certo essa era o filme da câmera Kodak da minha amiga. Então, depois eu comprei a minha Kodak comprei uma 126. E depois eu comprei outra, era simples, pequenininha, era uma xereta de 110, o cartucho dela era 110. A primeira câmara era muito sofisticada, uma semi- profissional, não era profissional até porque ela não trocava de lente, eu consegui essa máquina trocando com um amigo, ela tava até quebrada, mas ela funcionava e eu sozinho tirava as minhas fotos com ela, mas só funcionava durante o dia. Aí depois eu comprei uma Canon, uma profissional que se chamava FTB. Só funcionava durante o dia porque não tinha o flash. Depois comprei outra Canon FTB que parecia um trator: toda de ferro. Era toda manual e tinha que saber fotografia, porque se não, não se mexia com ela. E a semi-profissional era uma Yashika eletro 35. Aí, quando eu comecei a trabalhar mesmo com a fotografia foi a Canon FTB, totalmente mecânica, manual... Eu me preocupava muito com a exposição e essa tinha um fotômetro mecânico, me preocupava com essa meia luz, sabia exposição, velocidade... E a coisa começou com essa câmara aí. E se você pensa q existiu ajuda, não houve nada, eu fui sozinho mesmo. Eu fui descobrindo o caminho das pedras, um caminho solitário e sem condições financeiras. O Clício foi uma grande inspiração, mas tem outros nomes também. Sobre o espaço de atuação: turismo e fotografia – Nordeste e Rio Grande do Norte E sobre os fotógrafos do Rio Grande do Norte eu posso até ter sido injusto em algumas entrevistas por não ter citado, mas pra mim não existe fotógrafo de paisagens como o Giovanni Sérgio, com certeza eu estou hoje aqui, eu sou fotógrafo paisagista, agradeço também ao Giovanni Sérgio. 369 O Giovanni Sérgio foi a grande inspiração porque ele é o cara que sempre fez fotografia de paisagens, entre a publicidade, a gente trabalhava as referências paisagísticas. Então, o Giovanni Sérgio me influenciou na paisagem, mas tem muita moda, por exemplo, tem muitas pessoas que gostam do preto e branco, mas essa técnica eu não tenho agrado, não sei se é por causa da paisagem que eu gosto muito, porque eu sou fotografo de paisagem e a paisagem ela tem cor, né? Ela não é preto e branco. A fotografia preto e branco eu acho que não é uma boa influencia para mostrar a paisagem, eu nunca quis seguir pra esse lado, eu não faço preto e branco. Eu até costumo dizer que o preto e branco é uma fotografia muito difícil de fazer e eu me identifico muito com a cor. Sabe, uma vez o fotógrafo Marcelo Baunai que é um grande amigo meu, grande nome da fotografia, um grande um ganhador de prêmios. E ele segue a linha Cartier Bresson, ele é um dos que pega a minha foto e fala: - rapaz essa foto tem que ser preto e branco. Eu olho pra ele e digo, não Marcelo, não tem não, não tem que ser preto branco, eu faço colorido. Quando eu vejo fotógrafo fazendo colorido, preto e branco, colorido em preto e branco e vai lá e coloca no ensaio dele tudo isso misturado, eu penso logo: aí, esse cara não está conseguindo se organizar; é claro que você pode fazer os dois, mas você não pode misturar isso no mesmo ensaio. Você tem que saber separar as coisas, esse ensaio eu vou fazer preto e branco, o outro ensaio eu vou fazer colorido mas não pode misturar. Quando você mistura dá pra perceber que você é uma pessoa que não se define, que não sabe o que quer, e você tem que recortar uma realidade, saber o que você quer. Quando você faz isso no seu ensaio mistura preto e branco a gente vê que você está perdido, que você não se define, que você não sabe o que você quer. Eu tava vendo essa semana uma reportagem, na reportagem eles ficavam dando aqueles flashs preto e branco no meio, eu penso: - cara não tem nada a ver fazer isso, em algumas situações têm, mas o editor exagera, você tem que se definir na fotografia, principalmente, você tem que escolher o que você quer; você até pode fazer os dois, mas as pessoas não podem ficar na dúvida sobre o seu trabalho, mas elas tem que ver o que elas se identificam mais em cada tipo de ensaio, não quer dizer que você tenha que ser fotógrafo só do colorido ou só do preto e branco, mas isso é uma coisa que você tem que definir e você define a partir da temática: eu vou fazer favela; eu vou fazer gente; eu vou fazer crianças pobres e humildes. Daí eu penso: isso aqui tem que ser o que? Tem que ser preto e branco ou tem que ser colorido? A minha opção pelo colorido é porque o colorido é o real e o preto e branco você tem que transformar a informação no real, pra mim é bem mais difícil, porque você só tem duas cores, então você tem que entender não só da questão da luz na influência daquelas cores, mas da nuance do cinza, do preto no colorido, não é como o real do colorido, esse é muito mais fácil 370 e prático e eu gosto da praticidade. Fazer o colorido é mais prático e pra que eu vou fazer o preto e branco se eu tenho dificuldade, pra que eu vou mexer no meu colorido se o resultado está satisfatório? Eu gosto da fotografia preto e branco, mas, não pra eu estar trabalhando com ela. É uma fotografia importante, tanto é que os maiores nomes da fotografia, como o francês Henri Cartier bresson e o brasileiro Sebastião Salgado escolheram o preto e branco. Essa minha escolha tem também a ver com meu trabalho no jornal, me marcou bastante. Engraçado, o que eu posso dizer que me marcou não foi um fato ou um personagem, mas o que me marcou foi trabalhar na redação do jornal, trabalhar no jornal dois pontos que foi o começo da minha aproximação com o jornalismo. O Flavio Rezende é um personagem do jornalismo é uma pessoa que eu posso falar que é um ser humano excelente, ele só tem um defeito, o defeito dele é que ele fica agora escrevendo matéria direto detonando o PT. Detornar o PT é o defeito dele (risos). Eu já aconselhei, já mandei ele parar com isso, já falei: - homem para com isso, não faz parte da sua índole, mas ele me responde: Não, não, não, eu vou detonar sim. Mas ele é uma pessoa espetacular e no começo, no início da minha entrada para o jornalismo ele foi um personagem importante, interessante que ele era repórter da tropical e a voz dele é muito chata e eu tinha raiva daquilo e eu achava que ele era chato. Isso foi muito interessante porque me fez aprender muita coisa a princípio você olha uma pessoa e cria uma antipatia, no caso dele depois de conhecê-lo eu vi que era uma pessoa maravilhosa, eu entendi que primeiro a gente tem que conhecer a pessoa pra depois poder julgar, pra não sair assim jogando preconceito. 371 ANEXOS 372 ANEXO A- TRIBUNA DO NORTE, 15/05/2009 Fonte: 373 ANEXO B- FOLDER DE PROMOÇÃO DAS FESTIVIDADES DOS PADROEIROS DO ESTADO DO RN Fonte: Emprotur, 2016. 374 ANEXO C- CAPA: A PONTE Fonte: Arquivo do fotojornalista Canindé Soares, 2016. 375 ANEXO D- MIRANTES E COMPLEXO TURÍSTICO EM PATÚ Imagem 1- Primeiro mirante construído no alto da serra Fonte: Elaborada pela autora (2016). Imagem 2 - Segundo mirante construído no alto da serra Fonte: Elaborada pela autora (2016). Imagem 3 - Terminal turístico em Patu. Obra inacabada. Fonte: Elaborada pela autora (2016). 376 ANEXO E- REGISTROS DOS MOMENTOS DA PESQUISA DE CAMPO Início do trabalho com a fotografia: aulas de fotografia. Em Seattle-WA/ EUA. Registro: Sylvana Marques. Participação na Expotour Católica. Arena das Dunas Natal-RN, Brasil. Registro: Sylvana Marques. 13 de novembro de 2014. Expotour Católica. Estande de Canindé Soares, 13 de novembro 2014. Registro: Sylvana Marques. Aulas de digital e analógica com o professor de fotografia Von McKenelly. Em Seattle –WA/EUA. Registro: Sylvana Marques. . Com Canindé Soares e Joaquim Tour. Expotour Católica em estande de Canindé Soares, 13 de novembro de 2014. Registro: Morgana Souza. Pesquisa de campo: encontro com Canindé Soares e fotojornalistas do Rio Grande do Norte em Biblioteca Central Zila Mamede, UFRN. 26 de jul de 2015. Acervo do autor. 377 Canindé fotografando o 2 Fórum Nacional de Turismo Religioso, com políticos locais e representantes do turismo. 19 de agosto de 2016. Registro: Sylvana Marques. Solimar Internacional - Empresa Norte Americana contratada pelo estado para desenvolver o plano estratégico e marketing para o turismo no Rio Grande do Norte. Registro de Sylvana Marques Reunião dos conselheiros da Região Serrana, Patú 30/08/2016. Registro de Sylvana Marques. 30/08/2016. Reunião do plano estratégico de turismo para o estado do Rio Grande do Norte com gestores públicos, representantes da segurança pública e sociedade civil. Organização da SETUR, em 25 de agosto de 2016, auditório do Sebrae, em 25 de agosto de 2016. Reunião com conselheiros do Turismo. Areia Branca, RN. 29 de agosto de 2016. Registro de Sylvana Marques. Sylvana Marques e Fany Carlos, ex secretário de turismo e atual conselheiro do turismo em Patú. Em 30/08/2016. Registro de Sylvana Marques. 378 Repentista em apresentação para conselheiros na reunião de sobre o turismo em Caicó, 31/08/2016. Registro de Sylvana Marques. . Placa anunciando melhorias no complexo turístico Ilha de Santana. Registro Sylvana Marques. 06 de setembro de 2017. Marcela Pessoa, Secretária de turismo de Santa Cruz, ao lado secretária de turismo de São Bento, da Diretora do Sebrae, entrevista: 06/09/2017. Acervo Sylvana Marques. Souvenirs oferecidos a convidados que participaram da reunião em prol do desenvolvimento do turismo em Caicó. 31/08/2016. Registro de Sylvana Marques. Placa de Inauguração do Complexo turístico Ilha de Santana, 06 de setembro de 2017. Registro de Sylvana Estande de Canindé Soares em Feira de Turismo no Centro de Convenções. 08/04/2015. Registro de Sylvana Marques