UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS
DOUTORADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS
SYLVANA KELLY MARQUES DA SILVA
OS DISCURSOS FOTOGRÁFICOS DE CANINDÉ SOARES: entre o Turismo e a
Devoção (2004-2017)
NATAL/RN
2017
SYLVANA KELLY MARQUES DA SILVA
OS DISCURSOS FOTOGRÁFICOS DE CANINDÉ SOARES: entre o Turismo e a
Devoção (2004-2017)
Tese de Doutorado apresentada ao Programa de
Pós-graduação em Ciências Sociais da
Universidade Federal do Rio Grande do Norte,
como parte dos requisitos para obtenção do título de
Doutora em Ciências Sociais, com concentração na
área de Dinâmicas Sociais, Práticas Culturais e
representações.
Orientadora: Profa. Dra. Maria Lúcia Bastos
Alves.
NATAL/RN
2017
Elaborado por Heverton Thiago Luiz da Silva - CRB-15/710
Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN
Sistema de Bibliotecas - SISBI
Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes - CCHLA
Silva, Sylvana Kelly Marques da.
Os discursos fotográficos de Canindé Soares: entre o turismo e
a devoção (2004-2007) / Sylvana Kelly Marques da Silva. - Natal,
2018.
381f.: il. color.
Tese (doutorado) - Universidade Federal do Rio Grande do
Norte, Centro de Ciências Humanas Letras e Artes, Programa de Pós-
Graduação em Ciências Sociais.
Orientadora: Profa. Dra. Maria Lúcia Bastos Alves.
1. Fotografia - Tese. 2. Paisagem - Tese. 3. Discurso - Tese.
4. Políticas de Turismo - Tese. 5. Enquadramento espetacularizado
- Tese. I. Alves, Maria Lúcia Bastos. II. Título.
RN/UF/BS-CCHLA CDU 77:338.48(813.2)
SYLVANA KELLY MARQUES DA SILVA
OS DISCURSOS FOTOGRÁFICOS DE CANINDÉ SOARES: entre o Turismo e a
Devoção (2004-2017)
Tese de Doutorado apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Ciências Sociais da
Universidade Federal do Rio Grande do Norte,
como parte dos requisitos para obtenção do título de
Doutora em Ciências Sociais, com concentração na
área de Dinâmicas Sociais, Práticas Culturais e
representações.
BANCA EXAMINADORA
_____________________________________________________________
Profa. Dra. Maria Lúcia Bastos Alves (Orientador)
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
_____________________________________________________________
Prof. Dr. Gilmar Santana (Membro Interno à Instituição)
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
______________________________________________________________
Prof. Dr. Durval Muniz de Albuquerque Júnior (Membro Interno à Instituição)
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
_____________________________________________________________
Prof. Dr. Luíz Demétrio Janz Laibida (Membro Externo à Instituição)
Instituto de Educação do Estado do Paraná
_____________________________________________________________
PhD. Jonathan Fredrerick Warren (Membro Externo à Instituição)
University of Washington - EUA
Dedico aos pesquisadores que sabem amar,
que tem confiança, que reconhecem a alegria,
que acreditam na solidariedade e que se
dedicam a justiça social.
AGRADECIMENTOS
Agradeço a todos que estiveram comigo nesses anos de doutorado. Período de
amadurecimento pessoal e intelectual, consequentemente de muitas superações.
À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) pela
concessão da bolsa de doutorado no país, que foi fundamental para a participação efetiva na
vida acadêmica, para a realização de doutorado sanduíche e concretização desta pesquisa.
A minha orientadora, Professora Dra. Maria Lúcia Bastos Alves, por me acompanhar
desde o mestrado na busca incessante pela compreensão dos caminhos da vida acadêmica. Pelas
orientações realizadas e pela amizade construída ao longo desses anos de trabalho.
Ao Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais e a todos os professores que fazem
parte desse Programa, pelas contribuições na minha formação.
Ao professor Jonathan Warren, meu orientador do doutorado sanduíche, pelas
discussões e atenção dispensada durante minha estadia na Universidade de Washington, UW.
À dinâmica da vida que me oportunizou existir em um ambiente propício ao meu
desenvolvimento humano e profissional.
À minha família por todo o apoio. Inicio com os meus pais, pelo amor que sempre me
dedicaram, por terem me ensinado a amar, respeitar e acreditar nos outros, principalmente, por
terem me dado condições de escolher o meu caminho, errar, voltar e escolher de novo.
Individualmente, à minha mãe, Antonia Marques, por toda a proteção, dedicação e cuidado ao
longo da minha existência, por ser fonte de inspiração e motivação para que eu não desista dos
meus objetivos de vida. Ao meu pai Jurandir pelo amor, proteção, cuidado e dedicação inicial.
Atualmente, por se manter presente.
Ao Flávio Balby pela dedicação e diversas formas de apoio para que eu pudesse chegar
até aqui. Sou grata por todo o amor, amizade e aconchego. Esse caminho foi construído junto
com você.
À minha irmã, Morgana, pelo companheirismo, por escolher o mesmo caminho
profissional, muitas vezes até pessoal, para seguir. O que me faz crer que as mudanças
empreendidas em prol da vida acadêmica foram acertadas. Sem você o caminho teria sido mais
difícil.
À minha tia Isabel Marques, por ter sido sempre uma mãe, dando-me muito carinho,
proteção, atenção e força. E, as minhas primas Geovanisa e Maria do Carmo por serem
companheiras e irmãs nesse e em outros processos.
Aos secretários do Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais (UFRN), Otânio e
Jefferson, pela efetividade, respeito e atenção com que resolvem as questões do nosso cotidiano.
Aos amigos do doutorado e de vida, que me inspiraram, me aconselharam e dividiram
comigo as angustias de concluir um doutorado nas Ciências Sociais em um país frustrado por
um “golpe” de Estado, que solapa a soberania popular em prol de uma política desprezada pelo
povo. Destaco especialmente Renata, Carmem, Antonino, Renato, Joicy e João. Agradeço,
ainda, aos amigos que estão sempre comigo: Graça Correia, Anna Gabriela, Syra, Jacirene,
Luciana, Anaxágoras, Gabriel e Arthur.
Ao professor Dr. Durval Muniz de Albuquerque Júnior pela produção acadêmica que
desenvolve com ímpeto, pelas aulas cheias de entusiasmo, pelas contribuições primordiais
realizadas na banca de qualificação e por aceitar participar da banca de defesa.
Ao professor Dr. Gilmar Santana, por todo o conhecimento compartilhado em sala de
aula, pelo rigor e compromisso acadêmico, pelas valiosas contribuições na qualificação e por
continuar colaborando com a minha formação agora na banca de defesa.
Ao professor Dr. Lincoln Moraes de Souza, por dividir comigo um conhecimento
precioso, por todas as reflexões propiciadas durante as aulas e pelas contribuições na
qualificação.
Ao professor Dr. Luíz Demétrio Janz Laibida por ter me acompanhado durante a etapa
de escrita da tese, apontando as possibilidades e os caminhos, me auxiliando a superar os
desafios finais do doutorado. Além, agradeço por aceitar colaborar comigo nesse momento
crucial participando da minha banca de defesa.
Agradeço aos alunos e professores da Universidade Federal da Paraíba – UFPB, da qual
faço parte como docente temporária, pela torcida.
A todos os atores entrevistados para essa pesquisa, pelas contribuições valiosas que
permitiram a construção da tese. A Secretaria Estadual de Turismo (Setur/RN), a Empresa
Potiguar de Promoções Turísticas (EMPROTUR) e a Secretaria de Turismo do Município de
Santa Cruz.
Por fim, um agradecimento mais que especial ao repórter fotográfico Canindé Soares,
por toda a gentileza, colaboração e amizade prestada, sem seu auxílio esse trabalho não se
concretizaria.
RESUMO
Esta tese analisa os discursos fotográficos impressos nas paisagens turísticas registradas no
interior do estado do Rio Grande do Norte pelo repórter fotográfico Canindé Soares. A escolha
do objeto justifica-se pelos recortes fotográficos estarem inseridos em um cenário político de
incentivo ao turismo religioso no estado, como um espaço de confluências sociais mediatizadas
pela instituição do turismo no Nordeste brasileiro. Nosso objetivo foi compreender os discursos
enquadrados em fotografias que se configuram em aspectos culturais priorizados como parte
dessas paisagens. Apreendemos a fotografia como imagem crítica para englobar os significados
que legitimam e divulgam esses espaços religiosos em seu processo de caracterização enquanto
atrações turísticas. Para viabilizar a pesquisa foram selecionadas as fotografias arquivadas no
banco de dados de órgãos oficiais, em livros e fotojornalismo do autor. Também foram
realizadas entrevistas semiestruturadas com o referido fotógrafo, secretários políticos e demais
agentes envolvidos no cenário turístico. A metodologia se dá através da arqueologia da
impressão expressa na confluência da tríade: fotografia, paisagem e turismo definida nesta tese
por enquadramento espetacularizado, categoria de análise balizada pelas reflexões de George
Didi-Huberman e Guy Debord. O enquadramento espetacularizado trata-se de um discurso
permeado pela cumplicidade entre os elementos que elaboram a paisagem e favorecem a
perpetuação de visualidades que desenham o espaço transformando-o em espetáculo. Desse
eixo, desmembram-se questões que operam com a produção imagética capaz de nortear o
entendimento dos discursos que padronizam paisagens, naturalizando as relações
socioespaciais. Consideramos que as paisagens elaboradas estão atreladas a ícones passados
referenciadores da região que condicionam as visualidades no presente. Em tese verificamos
que as paisagens potiguar, enquadradas no discurso fotográfico, dinamizadas a partir das
políticas de turismo estão culturamente engendradas por um sintoma de visualidades pretéritas
que espetacularizadas favorecem a manutenção de discursos hegemônicos em detrimento dos
interesses plurais e democráticos. O que ocorre dá visibilidade a estereótipos pré-estabelecidos
e afasta-se da possibilidade de um desenvolvimento baseado na economia interpretativa, capaz
de favorecer a valorização do capital cultural local e a inclusão dos indivíduos locais.
Palavras-chave: Discurso.Fotografia. Paisagem. Turismo. Enquadramento Espetacularizado.
RESUMEN
Este trabajo analiza los discursos fotográficos impresos en las paisajes turísticas registrados en
el interior del estado de Rio Grande do Norte por el reportero fotográfico Canindé Soares. La
elección del objeto se justifica por los recortes fotográficos estar insertados en un escenario
político de incentivo al turismo religioso en el estado, como un espacio de confluencias sociales
mediatizadas por la institución del turismo en el Nordeste brasileño. Nuestro objetivo fue
comprender los discursos encuadrados en fotografías que se configuran en aspectos culturales
priorizados como parte de esos paisajes. Apreciamos la fotografía como imagen crítica para
englobar los significados que legitiman y divulgan esos espacios religiosos en su proceso de
caracterización como atracciones turísticas. Para viabilizar la investigación fueron
seleccionadas las fotografías archivadas en el banco de datos de órganos oficiales, en libros y
fotoperiodismo del autor. También se realizaron entrevistas semiestructuradas con el referido
fotógrafo, secretarios políticos y demás agentes involucrados en el escenario turístico. La
metodología se da através de la arqueología de la impresión expresada en la confluencia de la
tríada: fotografía, paisaje y turismo definida en este trabajopor marco espectacular, categoría
de análisis balizada por las reflexiones de George Didi-Huberman y Guy Debord. El encuadre
espectacularizado se trata de un discurso impregnado por la complicidad entre los elementos
que elaboran el paisaje y favorecen la perpetuación de visualidades que dibujan el espacio
transformándolo en espectáculo. De ese eje, se desmembran cuestiones que operan con la
producción imagética capaz de orientar el entendimiento de los discursos que estandarizan
paisajes, naturalizando las relaciones socioespaciales. Consideramos que las paisajes
elaboradas están vinculadas a iconos pasados referenciadores de la región que condicionan las
visualidades en el presente. En trabajo verificamos que las paisajes potiguar, encuadradas en el
discurso fotográfico, dinamizadas a partir de las políticas de turismo están culturadamente
engendradas por un síntoma de visualidades pretéritas que espectacularizadas favorecen el
mantenimiento de discursos hegemónicos en detrimento de los intereses plurales y
democráticos. Lo que ocurre da visibilidad a estereotipos preestablecidos y se aparta de la
posibilidad de un desarrollo basado en la economía interpretativa, capaz de favorecer la
valorización del capital cultural local y la inclusión de los individuos locales.
Palabras clave: Discurso. Fotografía. Paisaje. Turismo. Encuadramiento espectacular.
RÉSUMÉ
Cette thèse analyse les discours photographiques imprimés dans les paysages touristiques
enregistrés à l'intérieur de l'État de Rio Grande do Norte par le reporter photographique Canindé
Soares. Le choix de l'objet est justifié par les découpes photographiques sont insérées dans un
environnement politique pour encourager le tourisme religieux dans l'État, comme un espace
de confluences sociaux induits par l'institution du tourisme dans le Nordeste du Brasil. Notre
objectif était de comprendre les discours encadrés dans des photographies qui sont configurées
dans des aspects culturels prioritaires dans le cadre de ces paysages. Nous saisissons la
photographie comme une image critique pour englober les significations qui légitiment et
disséminent ces espaces religieux dans leur processus de caractérisation en tant qu'attractions
touristiques. Pour rendre la recherche réalisable, les photographies ont été sélectionnées dans
la base de données des organes officiels, dans les livres et le photojournalisme de l'auteur. Des
entretiens semi-structurés ont également été menés avec le photographe, les secrétaires
politiques et d'autres agents impliqués dans le scénario touristique. La méthodologie est par
l'archéologie exprimé impression à la confluence de la triade: la photographie, le paysage et le
tourisme défini dans cette thèse par le cadre spectacularisés, catégorie d'analyse soutenue par
les réflexions de George Didi-Huberman et Guy Debord. Le cadre spectaculaire est un discours
imprégné de la complicité entre les éléments qui élaborent le paysage et favorisent la
perpétuation des visuels qui conçoivent l'espace en le transformant en spectacle. De cet axe, les
problématiques qui opèrent avec la production imaginaire sont capables de guider la
compréhension des discours qui standardisent les paysages, en naturalisant les relations socio-
spatiales. Nous considérons que les paysages élaborés sont liés à des icônes références passées
de la région qui conditionnent les visualités dans le présent. En théorie, nous constatons que les
paysages Potiguar, encadrés dans le discours photographique, la rationalisation des politiques
touristiques sont culturellement engendrèrent par un symptôme visuels précédents qui
spectacularisés et favoriser le maintien des discours hégémoniques au détriment des intérêts
plurielles et démocratiques. Ce qui se passe donne une visibilité aux stéréotypes pré-établis et
se éloigne de la possibilité d'un développement basé sur l'économie interprétative, capable de
promouvoir le développement du capital culturel local et l'inclusion des personnes locales.
Mots-clés: Discours. Photographie. Paysage. Tourisme et Cadre spectaculaire.
ABSTRACT
This thesis analyzes the discourse of the Catholic tourism events landscapes photographed by
Canindé Soares in the State of Rio Grande do Norte. To conduct this research we selected the
photographs at the database of official tourism organizations, the books and the site of Canindé
Soares, did interviews and visited these landscapes. The choice of the object is justified because
the photo register is inserted in the political scene of tourism development in Brazil. Moreover
to understanding how the landscapes of Rio Grande do Norte are mediated by the National
Tourism Policy to the institution of economic development in the Northeast of Brazil. Our goal
was to understand the cultural aspects prioritized in these landscapes by photographic discourse.
We read the photography as a critical image conception developed by Didi-huberman to
understand these religious landscapes spaces in their characterization process as a show place.
The methodology is a reflection about the present status of the image as a form of visual
knowledge through the archeology. The relationship about photography, landscape and tourism
points to what is defined in this thesis by a spectacularized framework, a category that we
articulate by the reflections of George Didi-Huberman and Guy Debord. The spectacularized
framework is a relationship between the discourses and the social relationships that draw the
news landscaps but maintain olds images and turns then into a spectacle. The reflection about
the image favors comprehension of the discourses that standardize landscapes and naturalizing
the socio-spatial relations. We consider that the landscapes are naturalized by relations linked
to the past icons referenciadores of the region and condition the visualities in the present. In
this thesis we verified that the landscapes photographed, dynamited from the tourism policies
are culturally engendered by a symptom of past visuals that spectacularized favor the
maintenance of hegemonic discourses against the democratic interests. This situation prior
sharing of pre-established stereotypes between image and discourse and keeps away of a social
development based on the interpretive economy, able to valorize the local cultural and the social
inclusion.
Keywords: Discourse. Photography. Landscape. Tourism. Spectaularized framework.
LISTA DE SIGLAS
BID – Banco Interamericano de Desenvolvimento
BNB – Banco do Nordeste
CADASTUR – Cadastro dos Prestadores de Serviços Turísticos
CAPES - Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
CNTUR – Conselho Nacional de Turismo
COMBRATUR – Comissão Brasileira de Turismo
EMBRATUR – Instituto Brasileiro de Turismo
EMPROTUR – Empresa Potiguar de Promoção Turística S. A.
EUA – Estados Unidos da América
FECOMÉRCIO – Federação do Comércio de Bens, Serviços e Turismo do Rio Grande do Norte
FINOR - Fundo de Investimento do Nordeste
IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
IDH – Índice de Desenvolvimento Humano
INVTUR – Inventário da Oferta Turística
IPHAN – Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
MTur – Ministério do Turismo
NE – Nordeste
OMT - Organização Mundial do Turismo
PD/VC – Projeto Parque das Dunas - Via Costeira
PDITS – Plano de Desenvolvimento Integrado do Turismo Sustentável
PIB – Produto Interno Bruto
PNMT – Programa Nacional de Municipalização do Turismo
PNT – Plano Nacional de Turismo
PNUD – Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento
PRODETUR – Programa de Desenvolvimento do Turismo
PRT – Programa de Regionalização do Turismo
RN – Rio Grande do Norte
SEBRAE – Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas
SENAC – Serviço Nacional de Aprendizagem e Comércio
SETUR – Secretaria Estadual de Turismo
SIACOR – Sistema de Acompanhamento de Contratos de Repasse
SICONV – Sistema de Convênios e Contratos de Repasse
SUDENE – Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste
UERN – Universidade do Estado do Rio Grande do Norte
UFRN – Universidade Federal do Rio Grande do Norte
LISTA DE FIGURAS
Figura 1- Localização geográfica: Natal - São Bento do Trairí ......................................... 48
Figura 2- No centro dos contatos .......................................................................................... 58
Figura 3- Aparelho usado por Manoel Dantas .................................................................... 67
Figura 4- Autorretrato ........................................................................................................... 68
Figura 5- O fotógrafo Jaeci Galvão....................................................................................... 69
Figura 6- Jornal O Foco “A Realidade da Zona Norte”, Nº 03 ......................................... 80
Figura 7- Jornal A Ponte: A Realidade da Zona Norte, Nº 03 ........................................... 82
Figura 8- Canindé na Sangria do Gargalheira .................................................................... 83
Figura 9- Seca Versus Turismo ou Seca como Turismo? ................................................. 101
Figura 10- Vista da Janela de Le Gras ................................................................................ 118
Figura 11- Primeiro daguerreótipo feito por Daguerre .................................................... 119
Figura 12- Produto Turístico - EMBRATUR ................................................................... 159
Figura 13- Te vejo lá ............................................................................................................. 160
Figura 14- Legado ................................................................................................................. 160
Figura 15- Revista “Natal pra você” ................................................................................... 214
Figura 16- Sol, dunas, mar e flores ..................................................................................... 215
Figura 17- O velho Potengi .................................................................................................. 216
Figura 18- Equipamentos Turísticos na Via Costeira ....................................................... 216
Figura 19- Ampliando os horizontes do turismo ............................................................... 217
Figura 20- Rotas do Turismo Potiguar ............................................................................... 218
Figura 21- Gostoso ................................................................................................................ 219
Figura 22- O Vilarejo .......................................................................................................... 219
Figura 23- Paraíso Perdido .................................................................................................. 220
Figura 24- Rota do sal e do turismo .................................................................................... 220
Figura 25- 23 lagoas .............................................................................................................. 221
Figura 26- Sem pressa .......................................................................................................... 221
Figura 27- Uma "nova" Ponta Negra ................................................................................. 222
Figura 28- Mapa das festas católicas no Brasil .................................................................. 242
Figura 29- Rota da fé ........................................................................................................... 256
Figura 30- O Turismo e a Terra dos Santos Mártires do Brasil ...................................... 274
Figura 31- O tamanho da estátua ........................................................................................ 316
Figura 32- Identidade visual – Marca da cidade ............................................................... 325
LISTA DE FOTOGRAFIAS
Fotografia 1- A Casa onde nasci em São Bento do Trairí ................................................... 37
Fotografia 2- O Crepúsculo ................................................................................................... 93
Fotografia 3- Cabeça de boi ................................................................................................. 138
Fotografia 4- Galinhos, RN .................................................................................................. 141
Fotografia 5- Jumento como transporte, RN ..................................................................... 168
Fotografia 6- Parada na Igreja São José, Carnaúba dos Dantas ..................................... 263
Fotografia 7- A escultura dos mitos .................................................................................... 265
Fotografia 8- O Roteiro - Paisagens e Identidades ............................................................ 266
Fotografia 9- Planos no olhar ............................................................................................. 269
Fotografia 10- Capela dos Mártires de Cunhaú com JoaquimTur ................................. 278
Fotografia 11- As índias sem índio – o nativo se torna vil ................................................ 279
Fotografia 12- Paisagem de Celebração aos Mártires de Cunhaú e Uruaçu .................. 282
Fotografia 13- O Paraíso dos Mártires ............................................................................... 283
Fotografia 14- Representante do Governo do Estado e participantes da procissão ....... 287
Fotografia 15- Luzia Luz ..................................................................................................... 291
Fotografia 16- Santa Luzia e o caminho iluminado .......................................................... 291
Fotografia 17- A passagem para Sant’Anna do Caicó ...................................................... 298
Fotografia 18- Feirinha de Famosos e Anônimos .............................................................. 301
Fotografia 19- Festa de Sant’Anna do Caicó – espetáculo da oligarquia verde ............. 302
Fotografia 20- Festa de Sant’Anna do Caicó – espetáculo em vermelho ....................... 302
Fotografia 21- Santuário do Lima ....................................................................................... 309
Fotografia 22- Passagem pelo arco do Lima ..................................................................... 312
Fotografia 23- Dia de Inauguração do Complexo de Santa Rita ..................................... 315
Fotografia 24- Faixas de gratidão e promoção .................................................................. 321
Fotografia 25- Caminho iluminado ..................................................................................... 323
Fotografia 26- Cidade e Complexo de Santa Rita ............................................................. 326
LISTA DE GRÁFICOS
Gráfico 1 – Distribuição relativa da população residente, por religião declarada: Brasil –
1950/2000 ............................................................................................................................... 231
Gráfico 2 – Movimento do Turismo Religioso no Brasil ................................................... 245
Gráfico 3 – Municípios com expressão da Religiosidade e com Eventos Religiosos ...... 245
Gráfico 4 – Turismo Religioso ............................................................................................. 246
LISTA DE QUADROS
Quadro 1 – Políticas Internacionais de Turismo de 1945 até o fim do século XX .......... 181
Quadro 2 – Vínculo Institucional e Marcos de Intervenção Governamental no
Turismo ................................................................................................................................. 196
Quadro 3 – Calendário Festivo............................................................................................ 257
Quadro 4 – Esquema Metodológico .................................................................................... 259
Quadro 5 – Cidades da região turística do Polo Costa das Dunas ................................... 271
Quadro 6 – Cidades da região turística do Polo Costa Branca ........................................ 283
Quadro 7 – Cidades da região turística do Polo Seridó .................................................... 293
Quadro 8 – Cidades da região turística do Polo Serrano ................................................. 303
Quadro 9 – Cidades da região turística do Polo Agreste/Trairí ...................................... 313
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................... 16
2 CANINDÉ SOARES DE DENTRO PARA FORA, DE FORA PARA DENTRO:
TRAJETÓRIA ........................................................................................................................ 30
2.1 FAMÍLIA E GENEALOGIA ............................................................................................. 31
2.1.1 A casa natal .................................................................................................................... 36
2.1.2 A chegada na capital ...................................................................................................... 51
2.2 CANINDÉ SOARES: O FOTÓGRAFO ............................................................................ 58
2.2.1 Sobre fotografia, fotógrafos e o campo de atuação em Natal .................................... 60
2.2.2 O outsider e a construção de possibilidades ................................................................. 72
2.3 VISÕES DO MUNDO ARTÍSTICO E PROFISSIONAL ................................................. 82
2.3.1 O caminho profissional .................................................................................................. 83
2.3.2 Visões artísticas ............................................................................................................ 90
3 O DISCURSO NA FOTOGRAFIA: EU CONSTRUO, ELE CONSTRÓI, NÓS
CONSTRUÍMOS .................................................................................................................... 96
3.1 SOBRE DISCURSOS ...................................................................................................... 105
3.1.1 A ideologia e as suas formas ....................................................................................... 106
3.1.2 A formação do discurso ............................................................................................... 111
3.2 A FOTOGRAFIA E A COMPREENSÃO SOCIOLÓGICA ........................................... 113
3.2.1 Fotografia e Sociologia: diálogos iniciais ................................................................... 121
3.2.2 Perspectivas com os clássicos ...................................................................................... 125
3.2.3 Debates atuais .............................................................................................................. 129
3.3 O ENQUADRAMENTO SOCIOLÓGICO: DIÁLOGOS COM DIDI-HUBERMAN ... 135
4 POLÍTICA E TURISMO: A CONSTRUÇÃO DA PAISAGEM NORDESTINO-
POTIGUAR ........................................................................................................................... 147
4.1 DE LÁ PRA CÁ: MITOS, IMAGENS E PAISAGENS .................................................. 147
4.1.1 A paisagem nacional: “Meu Brasil brasileiro” ......................................................... 149
4.2 DAQUI PRA LÁ: PAISAGENS DO NORDESTE ......................................................... 160
4.3 O TURISMO E A POLÍTICA: CAMINHOS POSSÍVEIS ............................................. 168
4.4 SOCIOLOGIA E TURISMO: TEORIA CLÁSSICA SOCIOLÓGICA NO TURISMO
CONTEMPORÂNEO ............................................................................................................ 171
4.4.1 Desenvolvimento: o discurso inicial ........................................................................... 181
4.4.2 Políticas Nacionais de Turismo: Transições condicionais ....................................... 187
4.5 AS POLÍTICAS E A CONTRUÇÃO DA PAISAGEM NORDESTINO-POTIGUAR .. 198
4.5.1 Primeiros discursos políticos e a construção do litoral ............................................ 199
4.5.2 Estruturando a Cidade do Sol .................................................................................... 208
4.5.3 Canindé Soares e a paisagem Nordestino-potiguar .................................................. 212
5 TURISMO RELIGIOSO: O ENQUADRAMENTO ESPETACULARIZADO ............. 224
5.1 TURISMO CULTURAL E CULTURA COM FOCO NA RELIGIÃO .......................... 224
5.1.1 O turismo e o foco no catolicismo popular ................................................................ 231
5.2 O ESPETÁCULO DA FESTA NO TURISMO RELIGIOSO ......................................... 236
5.3 O OLHAR DE CANINDÉ SOARES E A PAISAGEM TURÍSTICA NORDESTINO-
POTIGUAR ............................................................................................................................ 250
5.3.1 O nordeste-potiguar do litoral ao interior ................................................................. 250
5.3.2 O Roteiro do Espetáculo ............................................................................................. 253
5.3.3 Análise: primeiros passos na rota da fé ..................................................................... 261
5.4 O ENQUADRAMENTO ESPETACULARIZADO NA PAISAGEM NORDESTINO-
POTIGUAR ............................................................................................................................ 269
5.4.1 Os Mártires: um espetáculo atual .............................................................................. 271
5.4.2 Santa Luzia: Um encontro com a sobrevivência das luzes ...................................... 283
5.4.3 Festa de Sant’Ana: “sofisticada criação de identidade” .......................................... 292
5.4.4 Santuário do Lima: um ponto turístico? ................................................................... 303
5.4.5 Monumento a Santa Rita: Remexendo o concreto da cidade de Santa Cruz ........ 312
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................ 327
REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 335
APÊNDICES ......................................................................................................................... 355
APÊNDICE A- CARTA DE APRESENTAÇÃO A CANINDÉ SOARES ...................... 356
APÊNDICE B- CESSÃO DE DIREITOS SOBRE IMAGENS PARA A
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE ..................................... 357
APÊNDICE C-ROTEIRO DE ENTREVISTA E AUTORIZAÇÃO DE PUBLICAÇÃO -
CANINDÉ SOARES ............................................................................................................ 358
APÊNDICE D-TRANSCRIÇÃO DA ENTREVISTA DE CANINDÉ SOARES - ......... 360
FOLHA COM AS RESPOSTAS DA ENTREVISTA TRANSCRITAS ......................... 360
ANEXOS ............................................................................................................................... 371
ANEXO A- TRIBUNA DO NORTE, 15/05/2009 ............................................................... 372
ANEXO B- FOLDER DE PROMOÇÃO DAS FESTIVIDADES DOS PADROEIROS
DO ESTADO DO RN ........................................................................................................... 373
ANEXO C- CAPA: A PONTE ............................................................................................ 374
ANEXO D- MIRANTES E COMPLEXO TURÍSTICO EM PATÚ ............................... 375
ANEXO E- REGISTROS DOS MOMENTOS DA PESQUISA DE CAMPO ............... 376
16
1 INTRODUÇÃO
O Nordeste bonito de se ver não se resume a praia, areias brancas, mar azul e sol. Há
também matas verdejantes, tesouros arqueológicos, engenhos centenários, açudes,
montes, vales e outros lugares de tirar o fôlego. Apesar de o turismo vigente ter
limitado as atrações da região praticamente ao litoral, há todo um mundo, dirigido ao
interior que poderia ser descoberto. O Rio grande do Norte não foge a regra. Há uma
série de atrações interioranas que apontam segmentos diversos da cultura potiguar.
[...] O caminho para o interior está aberto. basta seguir. (TRIBUNA DO NORTE,
2009)1.
Esse é um texto de um jornal que circula no Estado do Rio Grande do Norte, região
Nordeste do Brasil, que nos últimos quinze anos, de acordo com os dados divulgados em 2015
pelo Instituto Verificador de Circulação (IVC), tem tido a preferência do leitor potiguar.
Estamos nos referindo à notícia publicada pelo jornal Tribuna do Norte em 15 de maio de 2009.
O discurso intitulado “Opções de lazer e turismo no interior do RN” mobiliza toda uma carga
imagética e referenciadora da região Nordeste2 com fins de incrementar e consolidar a atividade
turística nesse espaço regional. E, é claro, mesmo com toda a diversidade que existe entre os
Estados, eles são em grande medida representados do modo homogêneo, como promove esse
periódico: “que não foge a essa regra”.
O texto apresentado no jornal supracitado afirma também que há um tipo de turismo
com privilégio à paisagem litorânea que, já legitimado3, acaba ofuscando o olhar para outras
atrações. De acordo com esse periódico, são possibilidades que não estão só no litoral, mas
pululam no interior do Estado a partir das novas representatividades que os aspectos culturais
podem vir a ter nesses espaços, “bastam ser descobertas”. O tipo de discurso difundido pelo
jornal em questão vem sendo repetido em distintos canais de informação que têm a fotografia
como suporte. Contudo, mensagens como essa são passíveis de serem analisadas por várias
óticas: pelo marketing, pela comunicação social, pela história, pela psicologia social, pelo
turismo, etc. Nessa perspectiva, interessa aqui recortar as questões sociológicas por intermédio
dos discursos enunciados pelas paisagens concatenadas ao turismo.
O discurso exposto nessa mídia é um elemento capaz de exemplificar, inicialmente, o
direcionamento que é dado ao turismo quando se sugere uma ampliação recente do olhar que
1Informação Disponível em: . Acesso em: 15 maio 2015. Vide Anexo A.
2 Sobre imagens referenciadoras da região Nordeste para o turismo ver: Castro (1997a, 1997b), Lopes Júnior
(2000), Dantas (2002), Furtado (2005), Carvalho (2009), Marques (2013).
3 É significativa a produção sobre o turismo com privilégio às paisagens litorâneas no Rio Grande do Norte. Por
isso citaremos as pesquisas de maior destaque: FONSECA, Maria Aparecida Pontes. Espaço, Políticas de
Turismo e Competitividade. Natal: EDUFRN, 2005. FURTADO, Edna Maria. A onda do turismo na cidade
do Sol: A reconfiguração urbana de Natal. Natal: EDUFRN, 2005. LOPES JÚNIOR, Edmilson. A construção
social da cidade do prazer. Natal: EDUFRN, 2000.
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estende o foco de possibilidades da atividade do litoral ao interior. A adição de novos espaços
nesse complexo de paisagens turísticas que envolvem o sol e o mar tem sido motivada por um
conjunto de políticas públicas que vem produzindo social e espacialmente o Nordeste. À
exemplo de outros Estados da região, o Rio Grande do Norte tem sido composto por um regime
de visualidades paisagísticas que são enquadradas de modo a permitir a construção de
enunciados imagético-discursivos que incentivam o consumo dos espaços pelo turismo. Esse
regime visual reelabora a imagem da região trazendo à tona paisagens com elementos
específicos, como: praia, coqueirais, dunas, canoas, bugres, mulatas, frutos do mar, frutas
consideradas exóticas, etc. São elementos presentes em distintos tipos de mídia, os quais são
representados por meio da fotografia, que celebrizam matrizes temáticas relativas ao turismo e
criam à identidade nordestino-potiguar4.
Do cenário exposto, com atenção ao litoral, acompanhamos, através de pesquisa
realizada no âmbito do mestrado, o regime de visualidades que se destacou na construção das
primeiras paisagens direcionadas a incentivar a atividade turística na capital do Estado do Rio
Grande do Norte (SILVA, 2012). Esse estudo privilegiou as relações históricas que favoreceram
a emergência de paisagens utilizadas para atender as demandas turísticas na capital potiguar,
tendo como fio condutor o papel pedagógico e formador da fotografia dos cartões-postais na
transmissão de novos símbolos, signos e valores. Em meio à pesquisa de campo citada, muitos
materiais despertaram a atenção, dentre os quais: fotografias de acervos particulares e públicos,
documentos sobre a temática, recortes publicitários em jornais e revistas e vários cartões-
postais. Diante do conteúdo citado, muitas questões para novas pesquisas surgiram.
Observamos entre as fotografias que destacam e promovem as atividades turísticas novas
paisagens que antes não promulgadas aparecem, paulatinamente, com o foco nos aspectos
culturais; tais como as festas juninas, festas de padroeiros, procissões, novenas, eventos em
torno de santuários, entre outras que dão a ver novos espaços no interior do Estado.
Sugerimos, em um primeiro momento, ao Programa de Pós-graduação em Ciências
Sociais o projeto de Doutorado intitulado: “A reinvenção do Nordeste para o turismo: um olhar
do sertão ao litoral no fotojornalismo” cuja proposta visava compreender a mudança discursiva
que alterou o imaginário paisagístico da região em várias ordens: do sertão para o litoral; da
4 A nomeação nordestino-potiguar, a ser utilizada em diversos momentos deste estudo, baseia-se na identidade
direcionada ao Estado da Paraíba, denominada de nordestino-paraibana, na tese de André Luiz Piva de Carvalho
(2009). O autor considera que há um ethos identitário e um cabedal cultural que por questões históricas, sociais e
econômicas, configuraram os demais Estados da região nordeste com signos de representação semelhantes. O
termo é utilizado para denominar as pessoas que nascem no Estado do Rio Grande do Norte, por isso nordestino-
potiguar em alusão ao Estado.
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seca para o oásis; do atraso para o progresso; do inferno ao paraíso; do discurso da dor para o
discurso do prazer. Em nossa perspectiva, essas alterações visavam atender os novos interesses
político-econômicos, pautados por novas práticas sociais, a partir da noção do turístico. Isso
porque as paisagens nordestinas ora situam-se entre as visualidades do sertão como denúncia
de uma situação, ora destacam-se pelos aspectos naturais divulgados como perfeitos para o
turismo e lazer. Entender o porquê dessas contradições foi a inquietação inicial. Após o
encontro com a produção do historiador Durval Muniz de Albuquerque Júnior, deu corpo e
fundamentação a essa ideia. Portanto, aqui se baliza a intenção de estudar o espaço, com ele as
paisagens do Nordeste.
Entre as estratégias enunciativas dos espaços variadas fotografias nos instigaram. O
acesso à diversidade nos apontou o singular: o repórter fotográfico Canindé Soares, tanto pela
quantidade, quanto pela qualidade das imagens fotográficas dedicadas a revelar o Rio Grande
do Norte em seu acervo virtual. Mais ainda pela atenção colocada em paisagens do interior do
Estado, visualidades que expressam aspectos considerados representantes da cultura nordestina.
O acervo do Canindé Soares era um indicativo de que em se tratando de Nordeste (aqui
usaremos a citação inicial como apoio): “O Rio grande do Norte não foge a regra. Há uma série
de atrações interioranas que apontam segmentos diversos da cultura. [...] O caminho para o
interior está aberto, basta seguir” (TRIBUNA DO NORTE, 20095). O discurso caracteriza a
percepção dos espaços e as suas relações sociais. Ou, podemos assegurar que considera uma
identidade espacial nordestino-potiguar. Nesse ponto, a fim de contribuir com as questões locais
e viabilizarmos a pesquisa, recortamos como campo o Estado do Rio Grande do Norte.
No momento de organização da pesquisa de Doutorado, já com a atenção voltada para
o interior do Estado, percebemos um eixo visual nas paisagens propagadas como culturais: as
que se referem aos eventos religiosos do catolicismo popular. Essa percepção ascendeu diante
da atuação no projeto de pesquisa “Festas Religiosas: Perspectivas e desafios das políticas de
turismo religioso no Estado do Rio Grande do Norte”; desenvolvido no Programa de Pós-
Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, sob a
coordenação da Professora Dr.ª Maria Lúcia Bastos Alves. A pesquisa debruça-se sob o turismo
religioso e suas implicações socioespaciais e políticas e os seus resultados deixam entrever a
transformação dos espaços através da incidência de novas paisagens com prioridade religião
católica. O turismo religioso, em termos práticos, consiste em uma das variadas vertentes de
divisão da atividade de acordo com as motivações da viagem. Comercialmente denomina-se
5 Informação Disponível em: . Acesso em: 15 maio 2015. Vide Anexo A.
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por segmentações turísticas em que o conjunto de espaços e práticas religiosas são consideradas
atrativos turísticos6.
Esse novo tipo de atrativo turístico vem sendo privilegiado na fotografia de Canindé
Soares. Uma produção que de antemão tem todos os ingredientes para ser um objeto de análise
de pesquisa no campo da sociologia e do turismo, tendo em vista a abrangência temática e pela
inserção que o autor tem em seu campo profissional. Com a escolha desse profissional
estávamos diante do maior acervo fotográfico das paisagens do Estado. O recente envolvimento
com as paisagens do interior, através do projeto de pesquisa já citado, também foi ao encontro
das políticas públicas de turismo; uma vez que o interesse do Ministério do Turismo, nos
últimos 15 anos, conduziu as perspectivas da atividade para um processo de “interiorização”
com o intuito de promover o desenvolvimento econômico e social nas cidades do interior do
país. As pesquisas desenvolvidas pela professora e sua equipe já eram um bom exemplo do
redirecionamento que ocorria nas políticas públicas: o do deslocamento do litoral para o
interior.
As paisagens que emergem no Rio Grande do Norte valorizam o turismo religioso e,
majoritariamente, apresentam em sua matriz a veneração santoral - uma das maiores expressões
da religiosidade no catolicismo popular que, mesmo não sendo uniforme e tendo suas
especificidades de acordo com as pluralidades locais, conserva o discurso relacionado a cultura
e a tradição. O que são apresentados nas fotografias são novos espaços de devoção,
monumentos, cultos a santos mártires, procissões, peregrinações, romarias, novenas,
festividades e sacrifícios da fé. São visualidades organizadas na caracterização de um espaço
para a tradição. Esses sentidos acrescidos da homogeneização com os quais foi construída a
ideia de Nordeste, de modo mais característico, constroem paisagens que retificam a ideia dessa
região do país como o espaço da tradição, da saudade, da religiosidade, da cultura popular e,
também, do atraso conforme atesta Albuquerque Júnior.
Mesmo que em um panorama geral o catolicismo popular possa ser compreendido como
um modo de resistência à dominação do catolicismo oficial, essa diferença reside, antes, na
compreensão do papel da autoridade eclesiástica, no modo de exercício do seu poder e da sua
presença7. Não dando, portanto, ênfase às particularidades sociais e culturais dos diferentes
grupos que constroem e vivenciam os espaços sociais onde existe o privilégio da religião. No
mais, promove a manutenção de alguns segmentos sociais – como os privilegiados pelo poder
6 Sobre o turismo religioso ver: Abumanssur (2003), Alves (2009, 2013a, 2013b), Dias (2003a, 2003b), Silveira
(2004), Steil (2003).
7 Ver Suess (1979, p. 153).
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público e a instituição ao qual pertence a fé em questão – e; associada ao turismo os lugares
coadunam com a lógica paradoxal de um mercado internacional e nacional em que as paisagens,
práticas e crenças religiosas são transformadas em espetáculo para o consumo. Há o interesse
em que religiões e rituais, entre outros aspectos das culturas locais, sejam visualizados para
serem comercializados de forma massiva (ALVES, 2009).
A fim de colocarem as cidades concatenadas às expectativas de um mercado global
como parte dos roteiros de viagem, os gestores públicos, entre outros interessados na atividade
turística, vão traduzindo e dando visualidade aos seus interesses em esfera local. Forjam os
espaços urbanos com seus monumentos e festas, inclusive, com as significações oriundas do
campo, da vida cotidiana, da religião e da ideologia política (LEFEBVRE, 2001, p.56). O
turismo religioso acrescido da peculiaridade dos diferentes lugares e regiões pressupõe que a
“função da forma espacial depende da redistribuição – a cada momento histórico, sobre o
espaço total – da totalidade das funções que uma formação social é chamada a realizar”
(SANTOS, 2002, p.31).
Tendo em conta que a paisagem é funcional à constituição de signos, experiências,
práticas sociais, culturais, econômicas e políticas (DOSSE, 2003); o que temos é um conjunto
de relações socioespaciais. Diante delas, problematizamos os modos como as paisagens de
diferentes espaços do Rio Grande do Norte vêm sendo produzidas, recortadas e legitimadas em
prol do turismo. Buscamos captar os condicionamentos e os discursos que emergem nas
paisagens e compreender a sua relação com a concepção das políticas públicas. Políticas essas
que entreveem em seus objetivos a valorização da cultura local, a preservação da tradição, a
redução da pobreza e o desenvolvimento social e econômico.
Dos elementos socioespaciais que dão formas às paisagens temos como princípio que
as fotografias do repórter fotográfico Canindé Soares possibilitam a construção crítica sobre as
ideologias das produções que emergem no Rio Grande do Norte. O objetivo é analisar as
ideologias enquadradas em fotografias configuradas em aspectos culturais priorizados e
destacados como parte das paisagens do interior nordestino-potiguar. Utilizando os aspectos
genealógicos direcionados para a análise fotográfica (DIDI-HUBERMAN, 2015a) com o
propósito de estabelecer relações entre a estrutura vigente e as políticas direcionadas ao local,
demarcamos a espacialização das relações de poder. Entendemos como espaços as percepções
que habitam um campo discursivo e se entrelaçam diretamente com o campo de força que as
instituiu (SANTOS, 2002; LEFEBVRE, 2001).
Esta tese buscou apreender na paisagem fotografada as ideologias que inauguram
formas de produzir culturalmente, socialmente e economicamente os espaços destinados ao
21
turismo religioso, as quais são apoiadas pelas políticas de turismo com ênfase na redução de
pobreza -período de 2003-2017, período em que foi criada a pasta do turismo no Estado e
organizado o programa de interiorização. Para atingir o objetivo proposto elencaram-se os
seguintes objetivos específicos: a) compreender o lugar social do repórter fotográfico Canindé
Soares, a fim de situar a sua produção fotográfica; b) pontuar as convergências socio-históricas
entre os discursos e a fotografia que estabelecem a enunciação da paisagem turística encadeadas
por um arquivo imagético pré-estabelecido da região Nordeste; c) analisar os discursos
referenciadores do Nordeste que iconizados projetam as paisagens fotografadas em
concomitância com o ambiente socioeconômico e político da atividade turística em destaque;
d) demarcar os registros fotográficos de Canindé Soares no âmbito dos incentivos ao turismo
religioso; e) demonstrar – com apoio em outros documentos, incluindo fontes textuais – o
caráter ideológico “de um nordeste enquadrado” captado nessas fotografias como parte
estratégica e constituinte de um espetáculo favorecido pelos discursos relacionados às políticas
públicas de turismo.
Como hipótese central sustentamos que as paisagens incrementadas pelo turismo
religioso no Estado do Rio Grande do Norte estão vinculadas aos ícones de um tempo pretérito
de caracterização da região Nordeste e surgem no presente enquanto um sintoma que apoia a
manutenção de discursos hegemônicos em detrimento dos interesses plurais e democráticos. O
que legitima um processo de espetacularização dos espaços em contradição com as expectativas
das políticas públicas de combate a pobreza. A manutenção das proposições ideológicas que
vem caracterizando a região Nordeste mantém-se nessas paisagens sobrepondo-se as
probabilidades de transformações mais amplas e criativas, o que facilitaria lançar-se a redução
de pobreza, ao desenvolvimento econômico e a inclusão social, como objetiva a Política
Nacional de Turismo.
Visto que a fotografia se constitui no “fio de Ariadne” desta tese, o seu sustentáculo é a
noção de imagem crítica tal como sugere Georges Didi-Huberman (2010; 2013a; 2013b; 2015a;
2015b), o que vigora a partir da arqueologia da impressão. Metodologia conduzida pela
possibilidade de se fazer um contraponto crítico e ideológico com os símbolos que, sustentados
na produção fotográfica, são interpretados a partir da ideia de impressão e sintoma; um discurso
permeado por questões políticas, sociais, econômicas e estéticas. Nesses termos, a fotografia
sobrevém como potência reflexiva às relações contemporâneas.
A leitura se deu com o apoio de pesquisas em acervos públicos e privados; observação
direta dos indivíduos e espaços envolvidos; incluiu viagens aos locais registrados nas
fotografias analisadas; participação em reuniões dos conselhos de turismo; participação em
22
feiras e eventos de turismo religioso; entrevistas semiestruturadas e compreensivas com o
fotógrafo Canindé Soares, outros fotojornalistas, agentes estratégicos da Secretaria de Turismo
do Estado (SETUR) e da Empresa Potiguar de Promoção Turística (EMPROTUR), entre outros
indivíduos institucionalmente ligados ao desenvolvimento da atividade turística na região - o
que aprofundou problemáticas interessantes para serem esclarecidas. Ademais, foram
realizadas pesquisas bibliográficas em livros, documentos, atas, revistas, jornais impressos e
online. Essas últimas fontes de informação foram importantes para se ter um parâmetro do que
estava sendo produzido visualmente.
As fotografias selecionadas foram as fotodocumentais que retratam as paisagens do
interior do Estado coletadas no banco de imagens do Repórter Fotográfico Canindé Soares.
Catalogamos as que fazem parte do banco da EMPROTUR por ilustrarem eventos de promoção
turística, também, de outros órgãos oficiais relacionados ao turismo no Estado e as de maior
quantidade de visualização no site de jornalismo do próprio autor. Separamos as fotografias de
paisagens do turismo religioso (nas análises retiramos fotografias da capital do Estado, visto
que o foco da pesquisa está na interiorização do turismo, o que não significou afastamento do
debate que envolve a capital, mas sim, o fato de que ela não faz parte do nosso eixo) de acordo
com as cinco regiões turísticas do Estado. Em cada uma dessas regiões foi estabelecida uma
cidade e as fotografias apresentam eventos do catolicismo popular que giram em torno do tema
mais representativo para o local, geralmente, contíguo aos Santos Padroeiros. O que foi eleito
pelos eventos que captam maior número de pessoas e tem maior apelo ao fomento do turismo.
As paisagens enquadradas nas fotografias encontram-se nas regiões dos Polos: Serranos,
Seridó, Agreste/Trairí, Costa Branca e Costa das Dunas. No Polo Serrano escolhemos o
município de Patú, com as paisagens do templo de Nossa Senhora dos Impossíveis, no Santuário
do Lima. De outro modo disposto, o município que se destaca no Polo Seridó é Caicó, com as
paisagens e eventos para a padroeira Sant’Ana. O Polo Agreste/Trairí, por sua vez, ganha
relevância com as paisagens dos eventos que giram em torno do monumento erguido para Santa
Rita, cidade de Santa Cruz. Por outro lado, na região do Polo Costa Branca a cidade em
evidência é Mossoró que tem suas festividades do catolicismo direcionadas, em grande parte, à
Padroeira Santa Luzia. Por fim, o Polo Costas das Dunas aparece com o interesse que
recentemente se constrói para os eventos ligados aos novos elementos que foram agregados a
igreja católica, são esses os Mártires de Cunhaú e Uruaçu ou Protomártires do Brasil,
envolvendo duas cidades: Canguaretama e São Gonçalo do Amarante.
A fotografia apesar de ser tema de debate recente na academia, tratada de modo mais
substancial acerca de uns quinze anos, tem sua construção enquanto objeto de pesquisa
23
progressiva, tanto sua apropriação nos estudos sociológicos, quanto nos antropológicos. Aos
poucos essas disciplinas rompem com os preconceitos em relação à fotografia, tentam
ultrapassar seus aspectos ilustrativos, observá-la além de um documento em si. Intentam
mostrar que a fotografia não é uma prova cabal da verdade; mesmo que possa parecer em um
primeiro momento (BARTHES, 1984; SAMAIN, 1998; BOURDIEU, 1990; BECKER, 2003;
SONTAG, 2006; MARTINS, 2014; KRAUSS, 2013). Esse cenário nos motivou a abraçá-la
como objeto de estudo. No mais, existe, é claro, o interesse pessoal pelo artefato, não só pela
imagem em si, mas por todo o seu processo estético e técnico.
Para a compreensão do uso e apreensão da técnica foram realizados estudos práticos. Os
estudos introdutórios com o apoio de amigos que dominavam a prática; após, cursos oferecidos
em ambiente virtual com materiais disponíveis e canal direto com instrutor para resolução de
dúvidas, desses foi realizado o “Cala a Boca e Clica” com o fotógrafo Henry Alfred Bugalho
e o “Curso de Fotografia” com o fotógrafo Sit Kong Sang. Em sequência se deu a aquisição
de equipamentos que constituem parte do universo fotográfico; máquina digital DSLR
(equipamento profissional), lentes, flash individual, bateria, cartão de memória, filtros UV,
tripé, entre outros. O que favoreceu o aprofundamento da técnica e a participação em cursos
mais avançados, sendo esses: o curso oferecido na cidade de Lynnwood-Washington mediado
por fotógrafos da National Geographic, com patrocínio da empresa Canon; curso particular
oferecido semanalmente, com duração total de 4 meses, realizado na cidade de Seattle – Estados
Unidos, com o fotógrafo internacional da indústria fashion Von MCnelly, que atualmente
dedica-se ao fine artportraits8 e a lecionar nessa perspectiva. Por fim, foi realizado um curso
de fotojornalismo com o fotógrafo e Professor do curso de Comunicação Social da UFRN
Itamar Nobre, com prioridade à prática fotográfica com o equipamento analógico.
Sobre a escolha do fotógrafo Canindé Soares, suas fotografias já eram conhecidas de
diferentes oportunidades, elas são procuradas pelos órgãos oficiais locais do turismo. Além
disso, a repercussão do trabalho desse profissional em âmbito local e nacional legitima a sua
atuação. Tínhamos em conta que o mesmo já havia recebido um dos maiores prêmios do
fotojornalismo brasileiro; carregando em seu currículo o registro exclusivo de personalidades
conhecidas mundialmente; livros lançados; lista significativa de títulos e homenagens em
âmbito estadual. Acrescenta-se ainda o fato de que seu trabalho tem sido cedido para vários
8 Trata-se de um tipo de fotografia artística que através de técnicas especiais, algumas possibilitadas pelo próprio
equipamento fotográfico e outras podendo ser adquiridas por intermédio de softwares, produzem efeitos
dramáticos, com altas saturações ou fortes efeitos de luz e sombra, alguns simulam as pinturas realistas
desenvolvidas antes da existência da máquina fotográfica, as temáticas são variadas e a imaginação em relação ao
espaço pode ser ampla, a critério do fotógrafo.
24
pesquisadores. Quando o interesse é a fotografia, esse fotógrafo atua colaborando com palestras
nas instituições de ensino superior do Estado do Rio Grande do Norte. Contudo, é importante
ressaltar que a sua obra ainda não havia sido objeto de análise em pesquisas científicas.
As fotografias foram analisadas em consonância com a trajetória do autor, que assume
uma importância significativa no processo de socialização do sujeito. Em se tratando dos
estudos de trajetória utilizamos os conceitos bourdieusianos. De acordo com Bourdieu (2003),
por meio do habitus, o sujeito interioriza as estruturas objetivas, ou seja, as normas e os valores
sociais, assim como os sistemas de classificação e os sistemas de pensamento, determinantes
na manutenção e reprodução da ordem social.
Neste estudo a fotografia, a paisagem e o turismo se correlacionam e formam uma tríade
que contribui para a compreensão mais ampla das ações construídas por distintos indivíduos
que se materializam nos espaços e para com os espaços; circunscritas pelas negociações dos
diferentes grupos, majoritariamente, acompanhadas de embates sociais, por sua demarcação,
utilização e domínio. Nesse aspecto é que questionamos: como o projeto político pautado pelo
turismo é enquadrado na fotografia das paisagens dos eventos religiosos do catolicismo popular
registradas por Canindé Soares? Desse ponto desmembram-se as seguintes questões: Quais os
discursos registrados nas fotografias de Canindé Soares em analogia com as paisagens
referenciadoras da região Nordeste e como concatenam-se ao turismo? De que maneira as
paisagens dos eventos religiosos são enquadradas na fotografia de Canindé e significadas
espacialmente pela ideia de Nordeste? Quais os ícones socioespaciais que podem ser apontados
por essas fotografias no decorrer do processo de turistificação das paisagens em questão? E por
fim, resta-nos saber se estão concatenados ou não as expectativas de uma política de valorização
local, desenvolvimento social e redução da pobreza?
Nas fotografias importou o enquadramento (DIDI-HUBERMAN, 2013a), o qual é
orientado no conjunto de imagens de pessoas, objetos, lugares e aspectos culturais. Esses
elementos são mediados pelo espetáculo (DEBORD, 1997), compreendido como uma dilatação
da atividade turística. Nesse enquadramento, que segue os parâmetros definidos por Didi-
Huberman (2013a), distinguiu-se o conjunto de informações visuais que compõe o documento
fotográfico e concorrem para sua materialização documental. Diante dele destacaram-se nas
paisagens fotografadas os códigos visuais anteriormente idealizados como enunciadores da
região Nordeste por intermédio do fenômeno aurático (aparição). O fenômeno aurático,
especificamente na concepção utilizada para esse estudo, dá visibilidade às lógicas
hegemônicas e aos estereótipos pré-estabelecidos, agora utilizados para a promoção de um
espaço. A partir desse conjunto de apreensões delimitadas pelo enquadramento, articulou-se o
25
que nesta tese é denominado como enquadramento espetacularizado: uma das contribuições
deste estudo por dar visibilidade ao processo de formatação de um modo de representação
espacial que se objetiva através da cumplicidade entre os elementos presentes e insistentes no
discurso fotográfico e coopera como modo de produção existente priorizando discursos
dominantes da vivência social. Sendo essa uma representação ideológica do espaço para o
consumo tendo como agente principal o discurso do turismo captado na paisagem.
Identificar o enquadramento espetacularizado é o debate sociológico na possibilidade
de se lançar com ênfase no horizonte para o real e o possível, para o investigativo e o
explicativo, por intermédio dos múltiplos sentidos que envolvem as relações socioespaciais
recortadas pela atividade turística. É dar pulso ao discurso da fotografia, desatualizá-lo e
contestar projetos ideológicos construídos “de cima para baixo”, que edificam seus alicerces de
modo hegemônico. Apontar o enquadramento espetacularizado é perceber na paisagem a
forma impressa por condições pré-existentes que em relevo são espetacularizadas para que
determinado conteúdo cative o campo da visão. Apontar esse enquadramento dá condições para
se refletir na proposição de novas formas de infraestruturas e de organização da atividade capaz
de apoiar a economia interpretativa (WARREN, 2017) com prioridade ao capital cultural local.
Não significa apontar o turismo como uma atividade positiva ou negativa, entretanto, lançar
com apoio da compreensão dos aspectos subjetivos que o envolve possibilidades que priorizem
o plural. Esse é um modo de utilizar a fotografia como uma imagem crítica, assim como propõe
Didi-Huberman (2010; 2013).
A ideia do enquadramento espetacularizado na fotografia enquanto uma categoria de
análise está balizada pelas reflexões de Walter Benjamin, George Didi-Huberman e Guy
Debord. Conseguimos dar o caráter de imagem crítica a fotografia a partir dos símbolos
impressos, como caracterizadores de um espaço apoiado nas reflexões de Albuquerque Júnior;
que lança em seus estudos os símbolos de construção da Região Nordeste. Foi, também,
primordial a concepção cultural da paisagem que abarcamos com autores clássicos da geografia
e com a percepção do sociólogo Georg Simmel. Por fim, a pesquisa de Jonathan Warren (2017),
que aponta nos espaços as resistências e emergências culturais e com elas a possibilidade de
uma economia interpretativa mediante a valorização da produção de distintos grupos – como
ativistas políticos, líderes religiosos, educadores, grupos de mulheres, músicos, artistas locais –
nos foi cara para compreender a tônica para as transformações locais a partir de uma perspectiva
que vem “de baixo para cima” – “From The Bottom Up”.
Para concretizar as análises, inicialmente selecionamos as fotografias do banco de dados
do autor que foram vendidas a EMPROTUR. Dividimos em séries homogêneas de acordo com
26
a temática do evento religioso em questão. Esse tipo de divisão intencionou encontrar a
paisagem que mais se repete nos discursos visuais, suas inscrições na imagem, no transcorrer
da temporalidade em questão, bem como as recorrências existentes entre as fotografias,
passando daí às condições de possibilidade, de seleção e de exclusão dessas recorrências. Em
outro momento, as fotografias foram decompostas em unidades culturais de significação, nos
espaços – de acordo com o lugar da festividade que elegemos –, seguindo os elementos, coisas
ou pessoas. O que proporcionou captar a significação do enquadramento em separado e no
conjunto do discurso visual proposto pela fotografia. Em seguida, nas fotografias que restaram
inspecionamos o quantitativo de visualização das imagens, priorizando assim entre as
fotografias promocionais as mais vistas. Essa informação está disponível nos sítios virtuais em
um ambiente de segurança que armazena a privacidade e o histórico do específico arquivo de
acordo com os distintos IP’s (Internet Protocol) de acesso.
Depois da divisão deslindamos o discurso fotográfico, pelo qual o fotógrafo escolhe o
ângulo, em que determinados aspectos da paisagem, organizada culturalmente, tecnicamente
esteticamente, são priorizados. Então, optamos por três caminhos básicos: 1º) Historiar o
assunto; 2º) Apreender as condições de produção e do processo de criação que resultou na
representação, a fim de compreender a sua construção, 3º) Demarcar o enquadramento
espetacularizado. É oportuno frisar que, embora a imagem enquanto nosso documento seja o
referente, nos situamos além dela no círculo das mentalidades, sendo considerada certa
subjetividade na análise em questão. No segundo olhar, buscamos a história do processo de
construção e origem da representação no contexto em que a fotografia foi gerada.
O exercício supracitado favorece o olhar crítico que busca as condições de emissão e
recepção da mensagem por meio de razões sociais e “psicológicas que deram origem aos
acontecimentos” (KOSSOY, 2003, p. 145). O olhar crítico abarca a fotografia enquanto
discurso que, de acordo com a frequência da sua circulação, contagia o olhar e se apresenta em
sua “potência epidérmica”. Ele critica as noções sintéticas, fixas e fechadas sobre a fotografia,
processualmente averigua a trama dos enunciados objetivos que a institui como verdade,
utilizando-a não como objeto de identificação, porém como um elemento capaz de pôr em
dúvida as identificações. Porém, antes é necessário apontar a semelhança, o que se impõe a
memória enquanto aparição virtual de uma quantidade de figuras associadas que se aproximam
e se afastam para construir um significado. Essa é a semelhança figurável, que na fotografia
reconcilia o que é análogo entre dois enquadramentos que podem ocorrer diante de um sistema
cultural em tempos e espaços diferentes e a qualifica como objeto precípuo para a constituição
de um repertório crítico sobre as relações socioespaciais (DIDI-HUBERMAN, 2013).
27
A abordagem escolhida elencou-se à compreensão dos espaços representados pela
paisagem enquanto um arranjo social direcionado ao turismo; onde os indivíduos com suas
trajetórias, os grupos sociais, as práticas, as instituições, os discursos, as fotografias, os embates,
as disposições, os posicionamentos e as negociações concorrem mutuamente. Tratamos de
compreender o turismo e a produção espacial que essa atividade motiva a partir de um diálogo
sociológico em constante aproximação com outras áreas do conhecimento como os estudos
visuais, a história, a geografia e o próprio turismo enquanto disciplina9.
Mesmo assim, no âmbito da sociologia, buscar uma corrente de pensamento crítico
sobre o turismo não é algo corriqueiro. Até porque as tradições sociológicas no Brasil, por que
não dizer em esfera ocidental, ligadas ás matrizes inauguradas pelos clássicos Karl Marx, Émile
Durkheim e Max Weber estavam mais preocupadas com questões sociais estruturais
relacionadas ao mundo do trabalho, as diferenças de classes sociais, entre outros estudos no
qual o turismo aparece como tema periférico. Nesse aspecto, intentamos trazer uma produção
crítica sobre o fenômeno do turismo priorizando esses clássicos em diálogo com pesquisadores
atuais que seguem essa linha teórica de pensamento. Com eles percorremos os discursos
enquadrados na fotografia das paisagens no qual o turismo tem atuado como agente central das
novas configurações.
O foco foi trazer à tona um olhar diferenciado para as possibilidades da atividade, ou
seja, um novo direcionamento para as políticas públicas que giram em torno da promoção e do
desenvolvimento dessa atividade; desnaturalizar as relações socioespaciais, para dar ênfase a
caminhos inseridos em valores não só econômicos, porém em reflexões éticas e novas condutas
morais. Isso para todos os envolvidos terem garantias de melhorias objetivas e não só
valorativas; enfrentando a realidade que temos e possibilitando que as relações que estudamos
possam ser compreendidas como históricas, sociais, culturais e não atemporais. Construímos a
nossa contribuição acadêmica e social, comprometidos como um todo com a mudança das
interpretações naturalizadas da dinâmica socioespacial. Levamos em conta a importância do
posicionamento presente para transformações qualitativas nos locais, visando um futuro
próximo que envolva os espaços com ganhos sociais, não apenas econômicos.
9 Em relação às produções sobre o tema que nos apoiaram a partir de diferentes questões conceituais e
metodológicas. Sobre as dimensões humanas que dão a dinâmica espacial moldando-a de acordo com o contexto
socio-histórico vigente, ver: Albuquerque Júnior (2006, 2008a, 2008b, 2013a, 2013b); Arrais (2004, 2006, 2008);
Lefebvre (1991a, 1991b); Martins (1996). Sobre imagens e representação espacial ver: Dantas (2002); Carvalho
(2009); Schama (1996); Corbin (1989; 2001). Sobre fotografia, ver: Bourdieu (1990); Martins (2009); Mauad,
(2008); Possamai (2008). Em relação a Cultura; identidade e preconceito, ver: Albuquerque Júnior. (2003, 2012);
Warren (2001, 2017). Sobre trajetória, ver: Bourdieu (1996); Laibida (2016), Santana (2007). No aspecto
metodológico nos debruçamos sobre a proposta de leitura de fotografia de Didi-Huberman (2003, 2010, 2013a,
2013b, 2015a, 2015b). E para interpretar o sintoma como espetáculo Debord (1997).
28
A tese está estruturada em quatro capítulos. O primeiro capítulo, intitulado “Canindé
SOARES: DE DENTRO PARA FORA DE FORA PARA DENTRO – TRAJETÓRIA”, traça
uma trajetória do profissional, abarcando seu contexto socio-histórico, geográfico e algumas
concepções de cunho pessoal. Com esse percurso trilhado o localizamos em sua consagração
profissional diante dos seus capitais e símbolos abordados na fotografia.
O segundo capítulo, “O DISCURSO NA FOTOGRAFIA: EU CONSTRUO, ELE
CONSTRÓI, NÓS CONSTRUÍMOS”, contempla um debate sobre o discurso e a ideologia na
formação discursiva. Através do discurso a fotografia aparece como legitimadora de ideologias,
bem como se transforma em um elemento discursivo que diz sobre relações socioespaciais a
partir do ponto de vista de seus produtores. Organizamos um diálogo das possibilidades de se
construir a crítica sociológica por intermédio da proposta de Didi-Huberman, em que vale-se
da arqueologia foucaultiana para recuperar a reflexão ética sobre o valor de uso da fotografia e
da semelhança que resiste em seu registro enquanto um sintoma. Nesse cenário, traz à tona o
materialismo histórico de Walter Benjamin com a reelaboração da noção de aura a fim de
transformar a imagem fotográfica na imagem crítica. Sua motivação tem como ebulição a
proposta iconológica de Erwin Panofsky (1892-1968), que interpreta os objetos artísticos a
partir da decomposição das imagens e da reconstituição histórica; afirmando a possibilidade de
ordenação e apreensão dos sentidos, favorecendo um fechamento analítico direcionado por um
tom de certeza que deve ser contestado.
No terceiro capítulo, “POLÍTICA E TURISMO: A CONSTRUÇÃO DA PAISAGEM
NORDESTINO-POTIGUAR” exploramos a construção da paisagem nacional, o que
desemboca na construção do regional, momento em que emerge a ideia do Nordeste, bem como
as políticas de desenvolvimento para a região. No âmbito das políticas de desenvolvimento para
o Nordeste, abordamos aspectos relativos ao Programa de Regionalização do Turismo- (PRT).
Para tano, apresentamos questões concernentes aos objetivos desse Programa, a partir do
momento histórico em que começou a ser implementado, bem como sua concepção, diretrizes
e ações. Enfatizamos as políticas que, juntamente, com outras relações, imbricadas no cenário
global/local, construíram concepções identificadoras das várias fronteiras territoriais, com
relevo ao Nordeste onde seus Estados movimentam-se visualmente em torno de uma imagética
restrita e, amplamente, estereotipada.
No quarto capítulo, “TURISMO RELIGIOSO: O ENQUADRAMENTO
ESPETACULARIZADO”, discutimos as análises das fotografias direcionadas a visibilidade do
enquadramento espetacularizado nas paisagens turísticas em relação às interferências ocorridas
no espaço. Abordamos também a relação da atividade turística com as questões culturais e o
29
desenvolvimento local, a partir das contradições inerentes à própria atividade no espaço em
questão.
As “Considerações Finais”, por sua vez, se constituem em uma síntese dos resultados
alcançados através da realização da pesquisa. Com ela confirmamos a tese que a paisagem
nordestino-potiguar, presente nos discursos fotográficos dinamizados a partir das políticas de
turismo está culturalmente engendrada por um sintoma de visualidades pretéritas; agora
espetacularizadas essas visualidades favorecem a manutenção de discursos hegemônicos em
detrimento dos interesses plurais e democráticos. Ao contrário do que considera o Ministério
do Turismo (MTUR) como prioridade das políticas públicas que promovem a interiorização da
atividade por intermédio da valorização do local; o que ocorre atualmente dá visibilidade a
estereótipos pré-estabelecidos e afasta-se da possibilidade de um desenvolvimento baseado na
economia interpretativa (WARREN, 2017), capaz de favorecer a valorização do capital cultural
local e a inclusão social.
30
2 CANINDÉ SOARES DE DENTRO PARA FORA, DE FORA PARA DENTRO:
TRAJETÓRIA
Neste capítulo traçaremos a trajetória da vida de Canindé Soares, demarcando como ela
concatena-se ao tipo de imagens que ele constrói e essas fotografias traduzem-se no lugar social
do autor e em seu ponto de vista. Ainda, direcionam as questões que elencam o tipo de
enquadramento dado às paisagens dos eventos religiosos do catolicismo popular; às políticas
públicas de turismo que incidem sobre o Nordeste – uma vez que o trabalho do autor está
inscrito dentro dessa demanda – e; a espetacularização dos espaços, encarando a
espetacularização como uma dilatação dos limites da atividade turística.
Diante da interpretação dada pelo deslocamento na orientação espacial das políticas
públicas de turismo, encontramos a resposta para a nossa periodização. É de importância ímpar,
justamente, o momento em que se tira o foco do litoral e começam as intervenções no interior,
o que acontece através da elaboração do Programa de Regionalização de Turismo (PRT); que
passa a ser a política estruturante do Ministério do Turismo elaborada no ano de 2003, mas
começa paulatinamente suas ações no ano de 2004. No recorte temporal estabelecido pelo PRT,
estrategicamente, conseguimos englobar o período de construção do acervo virtual de Canindé
Soares, que se inicia no ano de 2004 e (assim como esse programa) segue até os dias atuais.
Nesse aspecto fechamos as análises no ano de 2017.
No amplo arsenal de fotografias de Canindé Soares sobre o interior do Rio Grande do
Norte registram-se carnavais, lazer em rios e açudes, turismo de aventura, ecoturismo,
festividades juninas, artesanatos, gastronomia, turismo religioso, entre outras. São muitas
possibilidades, porém a temática que incorpora os eventos festivos do catolicismo popular
ganha destaque. A justificativa não está apenas na participação no grupo de pesquisa já citado,
mas sim diante dos mesmos motivos que impulsionaram a existência desse grupo de pesquisa
para analisar o tema; basicamente, o incentivo governamental dado às manifestações católicas
em interesse de transformá-las em possibilidade de turismo religioso, direcionando-as enquanto
um atrativo apto a atender a demanda econômica global. Ou nas palavras de Canindé Soares –
em entrevista realizada quatro dias antes de iniciar as festividades dos Mártires de Cunhaú e
Uruaçu, padroeiros do estado10 – sobre o turismo religioso como possibilidade de
desenvolvimento econômico: “Acredito que o turismo religioso pode colaborar com o
desenvolvimento, porque nas cidades que a princípio não tem nenhum edifício interessante,
10 Ver em Anexo B o folder de promoção da festividade dos mártires enviado por Canindé Soares, via Aplicativo
de mídia social Whatsup, em 29 de setembro de 2016.
31
nada que chame atenção na paisagem, se você procurar haverá a igreja católica e a festa do
padroeiro, isso tem em todo o estado” (informação verbal, 2016)11.
As fotografias de Canindé Soares narram esse processo de emergência do turismo
religioso, mais ainda destacam novas paisagens no interior do Estado, dá visibilidade a espaços
que estão sendo construídos para atender os novos discursos e as novas práticas a partir da ideia
da atividade turística. Uma das possibilidades na sociologia de interpretar esse tipo de
documento é, justamente, desmontar a naturalização dos discursos que elas articulam. Assim
iniciamos nosso caminho apreendendo a fotografia como imagem crítica (DIDI-HUBERMAN,
2010), para investigar como se articulam discursos, práticas, trajetória, atividades e eventos na
definição das paisagens12.
2.1 FAMÍLIA E GENEALOGIA
Dedicamo-nos às fotografias documentais de autoria do repórter fotográfico Canindé
Soares com foco localizado nas ideologias imersas nas paisagens voltadas ao turismo, que
constituem olhares e criam uma realidade sobre os espaços. Porém, antes de tudo se faz mister
conhecer as origens, a herança, um pouco da biografia do profissional Francisco Canindé Soares
que constrói as imagens importantes para a conhecimento das relações socioespaciais no Estado
do Rio Grande do Norte. A rigor, conhecer um pouco da sua história-trajetória favorece que o
nosso trato com esses meios sejam expressivos no sentido de entendê-las em suas mensagens
enquanto sintoma, potência mítica e intempestiva13 no que as fazem sobreviver (DIDI-
HUBERMAN, 2010). Principalmente, nos dedicamos à trajetória desse autor para que fique
claro o porquê da sua escolha e de cada vez mais se destacar em seu campo de atuação,
ganhando adeptos e legitimadores do seu trabalho.
Canindé Soares é brasileiro, o que significa afirmar que é filho de um país reconhecido
pela sua heterogeneidade; mesmo que muitas vezes as fotografias, os cartões-postais, os filmes,
entre outras distintas formas de imagens levem a crer que haja uma singularidade nesse
território. Os diferentes suportes imagéticos citados são enunciados que atualizam
generalizações e empregam um tom de unicidade sobre os espaços onde, contraditoriamente, o
11 Diálogo realizado via telefone com Canindé Soares na manhã de 29 de setembro de 2016.
12 CHARTIER, Roger. Conversar con Chartier (Barcelona, 5 de junio de 2007). Historia, Antropología
y fuentes orales. Barcelona, Asociación Historia y Fuente Oral; ArxiuHistòric de la Ciutat de
Barcelona y Editorial Universidad de Granada, n. 38, p. 66., 2007.
13 Esses são conceitos relidos pelo historiador George Didi-Huberman, que tem grande relevância nos estudos do
autor e nos apoiou na análise das imagens fotográficas, serão colocados com maior detalhes em outro momento
do texto.
32
que prevalece é a diferença. Situando mais ainda Canindé Soares, o identificamos como um
brasileiro nascido na região Nordeste; a região é uma invenção singular na história do Brasil14
apesar de ser uma invenção do século XX, muitas vezes é narrada como se já existisse desde o
período colonial, com seus valores culturais e tradições contínuos que agora baliza a ideia de
espaço exótico e singular para o desenvolvimento do turismo. Região concebida, relatada,
descrita por muitos autores, por exemplo, Gilberto Freyre, como uma organização espacial
quase natural em que o espaço aparece como o palco onde se desenrolam os enredos da
sociedade, um espaço passivo em termos sociológico; no qual sociedade e natureza conformam-
se em singularidades paisagísticas, sociais, políticas e econômicas15.
Contudo, as regiões são construídas, inventadas, definidas, narradas, dotadas de sentido
a partir das dimensões imaginárias, simbólicas e culturais. São constituídas por intermédio da
experiência social, elaboradas a partir de discursos e sentidos. Elas existem de acordo com a
existência humana no tempo e no espaço. Para Heidegger (1993)16, elas existem com os
indivíduos que, para além da sua individualidade, as constroem e que, em sua coletividade, as
dotam de sentido. Albuquerque Júnior (2008b, p.8) enfatiza que a ideia do regional e da sua
identidade não está dada a partir do local que se nasce, porém “emerge de um trabalho de
subjetivação, ela é a constituição de uma dada subjetividade através das relações sociais e da
incorporação consciente ou não das narrativas” que as definem. Nesse caso quem constrói
outras representações e discursos a partir do olhar lançado a um recorte espacial dota-os de
sentidos, organiza uma forma de relato, de memória, de escrita. É o modo como são
apresentadas as fotografias de Canindé Soares, que se relaciona aos capitais17 que o constitui
em sua trajetória enquanto indivíduo e marca as impressões sobre o espaço trabalhado
(BOURDIEU, 1989).
14 Sobre a ideia de Invenção do Nordeste ver: Albuquerque Júnior, Durval Muniz de. A invenção do Nordeste.
3. ed. São Paulo: Contexto; Recife: FJN, 2006.
15 Ver: ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. Receitas Regionais: a noção de região como um ingrediente
da historiografia brasileira ou o regionalismo como modo de preparo historiográfico. In: ENCONTRO DE
HISTÓRIA ANPUH -RIO: IDENTIDADES., 13. Rio de Janeiro, 2008b. Anais... Rio de Janeiro, 2008b.
Disponível em: < http://encontro2008.rj.anpuh.org/resources/content/anais/durval.pdf>. Acesso em: 23 mar. 2018.
16 HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. 4 ed. Petrópolis: Vozes, 1993.
17 A ideia de diferentes capitais faz parte do escopo teórico e metodológico de Pierre Bourdieu. Os capitais buscam
ampliar a concepção marxista de capital, pois vão para além do acúmulo de bens e riquezas econômicas, agregam-
se aos recursos ou poder que se manifesta em uma atividade social além do capital econômico (renda, salários,
imóveis). É crucial na teoria de Bourdieu, também, a compreensão de capital cultural (saberes e conhecimentos
reconhecidos por diplomas e títulos) e capital social (relações sociais que podem ser convertidas em recursos de
dominação). Esses são conceitos que devem ser compreendidos em sua interdependência com as noções de habitus,
campo e capital simbólico (que se constitui nos capitais citados: cultural, econômico e social).Ver Bourdieu (2003,
p. 11).
33
Canindé Soares, como qualquer indivíduo, tem uma biografia, uma trajetória de vida,
um percurso histórico e social que está diretamente relacionado com o tipo de fotografias que
ele produz. Sua cabeça, sua arte, sua técnica é formada por demandas criadas em seu período
histórico pelos pressupostos que o circunscrevem enquanto ser social e cultural. Para entender
sua obra se faz mister antes compreender sua trajetória, para tal acessamos o conceito de
trajetória.
A ideia de trajetória foi gestada a partir da noção de história de vida. A história de vida
abriu-se enquanto um campo de estudo ainda nas primeiras décadas do século XX. Iniciou-se
nas ciências humanas, na chamada Escola de Chicago, com foco no indivíduo, sem dar
prioridade aos vínculos sociais em que esse estaria envolvido (BERTAUX, 1999). Depois de
uma produção significativa nessa linha metodológica surgiram teorias consideradas mais
objetivas, abordagens estruturais que buscavam dar conta das variáveis de um dado sistema,
recorrentes de uma específica realidade social afastando-se da análise da vida e da experiência
dos indivíduos. No final da década de 1970 e início de 1980, o sociólogo Daniel Bertaux balizou
uma proposta de reconstrução das vivências dos sujeitos como método nas análises sociais. O
que o tornou o principal nome dos estudos de história de vida da sua época, colocando essa
perspectiva no centro de vários debates (GUÉRIOS, 2011).
Ainda na década de 1980, Pierre Bourdieu lançou um curto e crítico artigo na revista
Actes de La Recherche en Sciences Sociales onde se opõe as concepções existentes sobre as
histórias de vida nas ciências sociais e desqualificando assim tanto o objeto, quanto o método.
O sociólogo afirma que as noções existentes que partiam desse enfoque biográfico consistiam
em um tipo de senso comum que invadiu o universo acadêmico; o texto ao qual nos referimos
é a “ilusão biográfica” (BOURDIEU, 1996, p. 69).
Em sua escrita, esse autor desqualifica tanto o método como o seu objeto principalmente
por não se situar as histórias de vida diante das condições concretas de existência a ela implícita,
o que denotava falta de objetivação sociológica. Nas palavras de Bourdieu:
A análise crítica [destes] processos sociais [...] conduz à construção da noção de
trajetória como série de posições ocupadas por um mesmo agente (ou um mesmo
grupo) em um espaço ele mesmo em devir e submetido a incessantes transformações.
Tentar compreender uma vida como uma série única e suficiente em si mesma de
eventos sucessivos sem outra ligação que a associação a um “sujeito” cuja constância
é apenas aquela de um nome próprio é quase tão absurdo quanto tentar explicar um
trajeto no metrô sem levar em conta a estrutura da rede, ou seja, a matriz das relações
objetivas entre as diferentes estações (BOURDIEU, 1996, p. 71).
A proposta é que os esforços acerca do assunto fossem transformados em “estudos de
trajetórias”. O foco na trajetória de uma pessoa coloca-se nos ambientes sociais que ela
34
frequenta, nos sujeitos aos quais se liga e nas redes de interdependência que se desdobram além
de seu pertencimento social imediato (ELIAS, 1994). Deparam-se frontalmente com a questão
da relação entre o individual e o social, entre o pequeno e o grande, entre a parte e o todo.
Entretanto, o corpo teórico e operacional de Pierre Bourdieu envolve uma série de
conceitos que estão em constante interação e mutualidade, são relacionais assim como a
sociedade é. A sociedade em sua estrutura é interpretada como um sistema hierarquizado por
acesso ao poder e privilégios que depende da detenção de diferentes capitais. Esses são
determinados pelas relações materiais e econômicas, também por relações simbólicas ou elos
culturais que se dá entre os indivíduos. Desse modo a posição ou privilégio ocupado por um
indivíduo ou grupo é definida no campo em conformidade com o volume e a composição de
capitais adquiridos e incorporados ao longo de sua trajetória.
O complexo de capitais é interpretado por intermédio de um sistema de disposições
culturais, em seus aspectos materiais e simbólicos que resultam em práticas e disposições que
diferenciam os indivíduos aproximando-os por meio dos interesses comuns e similaridades ou
afastando-os no espaço social; o que Bourdieu chama de habitus. Na compreensão do habitus
é impossível separar o coletivo do individual e do psicológico; uma vez que a estrutura
estruturante do indivíduo é composta pelo processo de internalização e externalização das
composições construídas na esfera coletiva e do ethos do indivíduo internalizado com o habitus
do coletivo, quer dizer, seu psicológico. Na teoria bourdieusianao habitus é expresso pela
subjetividade e o campo pela objetividade; assim, um complementa o outro, de modo que o
campo molda e é moldado pelo agente. De outro modo, a maneira de se relacionar;
comportamento; práticas sociais e; aprendizados estão marcados pelas trajetórias sociais
vividas pelos indivíduos (BOURDIEU, 1997a; 2003).
Partindo da teoria bourdiesiana sobre os estudos de trajetória é prioritário enfatizar a
influência familiar. O convívio familiar é por excelência marcante para a transmissão e
acumulação dos distintos capitais. Sendo essa um dos principais princípios responsáveis pelas
estratégias de reprodução do social.
A família é um princípio de construção da realidade social, também é preciso lembrar,
contra a etnometodologia, que esse princípio de construção é ele próprio socialmente
construído e que é comum a todos os agentes socializados de uma certa maneira. [...]
Esse princípio de construção é um dos elementos constitutivos de nosso habitus, uma
estrutura mental que, tendo sido inculcada em todas as mentes socializadas de uma
certa maneira, é ao mesmo tempo individual e coletiva; uma lei tácita (nomos) da
percepção e da prática que fundamenta o consenso sobre o sentido do mundo social
(e da palavra família em particular), fundamenta o senso comum [...[ Assim, a família
como categoria social objetiva (estrutura estruturante) é o fundamento da família
como categoria social subjetiva (estrutura estruturada), categoria mental que é a base
35
de milhares de representações e de ações (casamentos, por exemplo) que contribuem
para reproduzir a categoria social objetiva. Esse é o círculo de reprodução da ordem
social (BOURDIEU, 1994, p. 127-128).
A família constitui a matriz da trajetória social e da relação do indivíduo com essa
trajetória. Família e genealogia se entrecruzam nas concepções de mundo expressas nos relatos
de Canindé Soares, narrativas que demonstram força e obstinação, nos dá a ver tanto as
possibilidades que se abriram para o alcance de um lugar central no campo que ocupa, quanto
nos informa sobre as inflexões de sua trajetória. Numa zona de interseção entre possibilidades
e inflexões temos em conta que o indivíduo é capaz de criar. Compreendemos a criação como
estratégias, o que para Bourdieu (1990) é um instrumento de ruptura com o ponto de vista
objetivista e com a ação sem agente, suposta pelo estruturalismo. Aqui conectamos as
estratégias individuais às perspectivas de Santana (2007) no qual assegura que o destaque de
um indivíduo no mercado audiovisual se dá a partir de ações ou, podemos dizer, capacidades
em diálogo com o universo que o circunscreve. Essas sugerem comportamentos, atitudes,
criatividades e práticas que o chancelam em seu campo profissional. Esse conjunto de ações é
o que o pesquisador chama de autenticidade do profissional.
A autenticidade que identificamos em Canindé Soares, como será demonstrada no
decorrer do capítulo, é um dos aspectos que o faz ser reconhecido em seu meio de atuação como
“O Onipresente Canindé Soares”18. Direcionamos que a adaptação ao meio fotográfico, a
aceitação das relações de poder no campo social, além das estratégias de comunicação
desenvolvidas pelo fotógrafo, o ajudou a construir sua centralidade no campo do
fotojornalismo. Canindé denomina sua vitória a um traço que comumente ele pontua como
comum a sua origem: a humildade. Sobre a relação com a família tem sido recorrente nas
lembranças do fotógrafo a narrativa da humildade. Não a humildade no sentido de submissão e
passividade, mas analisamos que esse fator, combinado a outros fatores, se constituiu em um
tipo de ferramenta estratégica, no qual o próprio indivíduo se reconhece e se legitima. Em sua
memória estão arquivados inúmeros fragmentos que o remete a humildade, em geral todas
relacionadas às lembranças familiar.
18 O termo onipresente é utilizado por vários jornalistas que publicam artigos sobre Canindé Soares. Pode ser
observado no próprio site do profissional o fragmento retirado do “Novo Jornal”, que expõe a matéria de Alexis
Peixoto, realizada no ano de 2010, destacando a onipresença do profissional e o privilégio deste ter sido
homenageado com o título de cidadão natalense. Ainda, o texto elaborado pelo jornalista Rubens Lemos Filho, em
17 de dezembro de 2011, publicado em seu site e reproduzido no site da jornalista Thaísa Galvão. Disponível em:<
http://www.thaisagalvao.com.br/2011/12/17/rubens-lemos-e-o-olhar-sobre-natal-pelas-lentes-de-caninde-
soares/>. Acesso em 13 fev. 2017.
36
Minha família é muito humilde, meus avós também são, paternos e maternos. Não
tive amizade com meu avô paterno porque quando ele morreu eu era muito novo,
quem frequentava muito a minha casa eram meus avós maternos. Depois que nos
mudamos para cidade meus avós maternos vieram juntos (informação verbal, 2017)19.
O discurso obedece a um modelo de reinterpretação que consolida as circunstâncias da
sua trajetória de vida onde a humildade se constitui em um elemento que salienta a ascensão, a
quebra de barreira de uma estrutura, a condição que o direcionou ao sucesso e ao
reconhecimento profissional. Como podemos observar nas palavras de Soares:
Eu sou de uma origem muito humilde, de uma família muito humilde, nasci no
interior, numa cidade chamada São Bento do Trairí. Eu costumo até dizer que
quando eu nasci existiam duas ruas e hoje são umas três ruas mais ou menos,
meu pai vivia de agricultura de subsistência e veio para a cidade grande em busca
de melhores dias e a cidade grande era natal que naquele momento tinha menos
de 300 mil habitantes e ele veio tentar sobreviver, imagina uma família pobre em
uma cidade grande e, logicamente, eu. Mas foi bom, foi muito bom porque se
não fosse isso eu não sei qual teria sido meu futuro (informação verbal, 2013).20
A origem humilde teve que ser vencida, porém a humildade parece prevalecer como
requisito para o merecimento do êxito social e consequentemente profissional. Temos em conta
que a humildade foi um tipo de representação que o dotou de autenticidade favorecendo a
construção da figura pública, constituindo-se assim em uma ferramenta estratégica que deu a
Canindé a autenticidade necessária para expandir seus feitos.
Quando eu era jovem, eu acho que já te falei isso em outras conversas, eu pensava que
teria que trabalhar 30 anos de trabalho, em uma rotina de 30 horas, cumprindo uma
rotina igual de trabalho, isso era muito ruim. E graças a deus eu não preciso ter essas
profissões que tem que cumprir 30 horas de trabalho direto, com rotina, hoje eu tenho
uma profissão que eu amo, ela não tem rotina (informação verbal, 2013)21.
A humildade na doutrina cristã representa um tipo de virtude, ao mesmo tempo em que
estabelece uma função relacional entre o crente e deus (a coisa desejada). Para Aquino (1957)
a humildade é um tipo de perfeição que se coaduna à graça. Combinado a outros fatores a ideia
de humildade de Canindé associa-se a uma trajetória de superação, de merecimento.
2.1.1 A casa natal
19 Entrevista realizada com Canindé Soares em 28 de março de 2017. Para ver o roteiro de entrevistas e as respostas
dadas à entrevista na íntegra, vide Apêndice D.
20 Matéria de Canindé Soares cedida ao Coletivo Foque TV, narrando sua história de vida e a inserção na fotografia.
Publicado em 31 de maio de 2013. Disponível em: . Acesso
em 13 jun. 2017.
21 Idem.
37
A família também é responsável pela coerção e pelas contradições que nascem
principalmente das discordâncias entre as disposições do herdeiro e o porvir apresentado por
sua herança. Nesse ínterim, a família é geradora de tensões e de contradições genéricas
(observáveis em todas as famílias, porque ligadas à sua propensão a se perpetuar) e específicas
(evitando, principalmente, segundo as características da herança). O habitus familiar constrói,
ou não, as ferramentas necessárias para a obtenção de uma trajetória de vida bem-sucedida ou
não. Como veremos com a casa natal, com a origem familiar do profissional.
Fotografia 1- A Casa onde nasci em São Bento do Trairí
Fonte: Soares (2016)22.
Conforme é possível visualizar na Fotografia 1, a porta da casa natal está aberta. Nos
permitiram cruzá-la, ao atravessá-la buscaremos reconstruir as memórias de infância de
Canindé Soares com o objetivo de traçar alguns aspectos da sua trajetória de vida familiar.
Contudo, antes de adentrarmos nesse espaço, não nos escapou a paisagem construída que se
cinge à casa Natal. Muito menos, deixamos de perceber a legenda que a suporta.
22 Fotojornalismo Canindé Soares. Em 20/06/2016. Sob o título de: Novos tempos, novos rumos e grandes
mudanças de inversão dos valores morais e éticos. “Para ilustrar o texto de Arnaldo Jabor, a foto da casa onde
nasci em São Bento do Trairí, onde meus pais, mesmo humildes e semianalfabetos, me ensinaram os verdadeiros
valores morais e éticos da vida. Tenho muito orgulho de tudo isso”(informação verbal, 2017).
38
Antes de iniciar nas lembranças de infância do autor do nosso objeto, repassadas
oralmente para essa pesquisa a fim de traçarmos uma pequena trajetória do mesmo, iremos nos
debruçar, em poucas linhas, a apreensão da imagem elaborada por Canindé sobre à casa que
nasceu, o lugar23 da sua infância. Um discurso como agência, como memória/duração, como
afeto e ambiência (DIDI-HUBERMAN, 2010). As fotografias de Canindé são registros,
promoções, ordenações e denúncias, mas, concomitante, são artísticas, produções, estéticas e
subjetivas. São imagens multifacetadas, assim como as distintas diretrizes percorridas pelos
modos que se dão as relações sociais que aparecem inscritas nos espaços. Da mesma forma
subscrevem esse ator em seu campo social, nada mais adequado do que privilegiarmos a sua
fotografia como introdutória nesse texto.
Enquanto um discurso, as imagens fotográficas representam os espaços ao mesmo
tempo em que criam geografias – como a paisagem recortada na fotografia –, sendo as últimas,
frutos das práticas espaciais. A linguagem que utiliza na constituição das paisagens incorpora-
se aos sistemas de objetos e de ações que ocorrem nos espaços (SANTOS, 2002). Ademais,
temporais, contínuos, dialéticos; Com formas, plasticidade, ritmo e força que de acordo com a
sua aparição atrela-se a noção de “sintoma-tempo”. Irrompe-se como imagem nas crises do
próprio tempo, nas lembranças da infância que remetem ao arquivo imagético construído nesse
período, depois em outra fase da vida retorna como memória traduzida na estética, na técnica e
na arte reproduzindo códigos a partir do acesso e da força da sua aparição (DIDI-HUBERMAN,
2015a).
A fotografia destacada foi captada pelo repórter-fotográfico no ano de 198924. Um
momento ímpar, visto que foi a primeira vez que o profissional retornou à cidade onde nasceu
depois de ter se mudado, ainda criança, para a capital do Estado do Rio grande do Norte.
Aventurou-se em aproximadamente 140 km de rodovia precária que ligava Natal até São Bento
do Trairí em cima de uma moto, um percurso de quase três horas, visto a limitação do transporte
e da própria estrada. Nesse dia teve como companheiros a câmara analógica Canon FTB, com
lente de 35 milímetros e foco manual (opção, totalmente mecânica, para fotógrafos amadores
em nível avançado) e o esposo de uma das suas tias25. O fotógrafo não sabe, mas a imagem
23 Para compreender a ideia de lugar ver AUGÉ, Marc. Não lugares: uma introdução a uma antropologia da
supermodernidade, Campinas, SP: Papirus, 1994; e CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano 1: Artes de
fazer. Petrópolis: Vozes, 1994.
24 As informações foram coletadas em entrevista com o autor no dia 19/11/2015. Essa foi a primeira entrevista
oral, gravada em áudio, realizada no Bistrô Douce France, na Avenida Afonso Pena, 628, Bairro Petrópolis, Natal,
RN.
25 Informações repassadas por Canindé Soares em diálogo realizado no dia 20/08/2016.
39
capitada movimenta-se em escalas de espaço e tempo, cuja existência efetiva-se
respectivamente “aquém e além” do seu tempo histórico (SERRES, 2005, p. 12).
Ao ser publicada no site Fotojornalismo Canindé Soares recentemente, no dia 20 de
junho de 2016, pelo próprio fotojornalista Canindé Soares em termos de qualidade técnica é
primorosa. Explicamos o porquê: as disposições dos elementos enquadrados concordam com
as estruturas exigidas pela estética da imagem fotográfica. No mais, todos os elementos são
valorizados, mas o autor consegue, ainda assim, colocar em destaque um único símbolo; os
planos estão demarcados em ordem de importância, são focos perfeitos com uma exposição
harmoniosa, mesmo para uma imagem que foi captada, provavelmente, em um horário
considerado “menos propício” para a fotografia externa. Ou seja, horas próximas ao meio-dia.
Para um entendimento simplificado podemos afirmar que é considerado “impróprio” em termos
de horário o período em que o sol está acima das nossas cabeças, esse momento infere em
sombras curtas e marcadas, acentuando os contrastes, por esse motivo os profissionais preferem
evitar fotos ao ar livre nesses horários.
Todavia, estamos falando de um profissional que marca hoje em seu currículo quase
quarenta anos de experiência, nas contas de Canindé Soares são trinta e oito anos já dedicados
à técnica, no período do registro fotográfico exposto já eram quase quinze anos de experiência
profissional. E o destaque que conquistou nesse campo de atuação nos indica que naquele
momento o horário escolhido foi proposital. O autor decidiu optar por uma luz considerada
dura, priorizou a incidência solar no corpo dos objetos a fim de obter maior contraste sobre os
elementos que compõe a cena, são esses: céu, árvore, casa, terra, animal de estimação, humano,
montanhas e a cidade.
Intermediado pelo contraste favorecido pela dinâmica luz e sombra, Canindé Soares
expõe sua obra imagética, apresenta a “sua paisagem” e por meio do olhar e da narrativa dirige
à sensibilidade do leitor para o espaço da sua infância. Temos a ideia do passado como algo
significativo nesse enquadramento, a profundidade de campo conquistada com a representação
do céu bem azulado e cheio de nuvens valoriza a dinâmica temporal, os movimentos sugeridos
pelas nuvens direcionam ao espaço íntimo e passado da casa natal, o lugar do aconchego
familiar. Essa é uma expressão da capacidade humana de preparar imagens poéticas a partir do
contato de seus sentidos com as coisas. É o que coloca Bachelard (2008), quando expõe a ideia
da imaginação material.
A configuração desse espaço recortado incide constantemente na ideia de retorno ao
espaço íntimo, agora publicizado, da casa natal. Carrega em sua construção a afetividade que
há no interior das coisas. A narrativa expressa tem seu ponto de origem na solidão da infância,
40
momento em que Canindé conheceu por intermédio dos pais o que ele considera como valores
concisos e éticos. Esse cenário da casa natal é o que permite, tempos depois, o adulto viver seu
próprio momento de solidão e nostalgia (BACHELARD, 2009). Todavia, retornar a esse espaço
natal é de algum modo afastar-se do real para habitar as lembranças. Observe que o autor não
enquadra apenas um espaço, mas todo o simbolismo que existe nesse trecho imagético. Essa
dimensão destaca o rumo que restitui à infância, “a nossa infância sonhadora que desejava
imagens, que desejava símbolos para duplicar a realidade” (BACHELARD, 2009, p. 94).
Pode-se afirmar, conforme o historiador Albuquerque Júnior (2006 p.27), que “nossos
territórios existenciais são imagéticos. Eles nos chegam e são subjetivados por meio da
educação, dos contatos sociais, dos hábitos, ou seja, da cultura” e a partir dessa relação é que
somos capazes de dar às feições a natureza que está intimamente ligada aos lugares e as práticas
nela desenvolvida. São imagens que duplicam a realidade, constroem figuras que direcionam
ao que Didi-Huberman (2015a, p. 310) chama de “dialética das formas”, que atraem, mais
também repelem.
O retorno à casa natal tanto tempo depois, é um misto de aproximação e afastamento;
saudade e alívio; prisão e liberdade. Parece não ser para o autor um encontro ansiado, a demora
no retorno coloca reticências. O reencontro traz enunciados que determinaram como na legenda
exposta pelo fotógrafo, valores éticos e morais. Todavia, construídos a partir de uma produção
sociocultural da dor, do sofrimento, do autoritarismo, muitas vezes da resignação a uma
natureza considerada seca, árdua, áspera e inóspita. Interpretada como um espaço de
aprisionamento (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2003). Levando a uma confusão de sentimentos
e mesmo a construção de fronteiras entre o presente e o passado.
Voltar é novamente se emaranhar entre as teias dos galhos secos que aparecem no
primeiro plano da fotografia e enunciam a força imperiosa desse tipo de natureza que cerca e
isola a casa natal, mantendo-a submersa na cena. Metaforicamente os galhos da árvore podem
indicar a mão paterna, que traduziu e moldou esses valores éticos e morais; um misto de orgulho
e dor, que reúne, transborda e subverte as novas referências imagéticas do repórter fotográfico
(DIDI-HUBERMAN, 2015a).
Os discursos expressos na discrição dada à cena podem parecer um direcionamento
particular a esse adulto por recriar uma cena significativa e íntima, mas o que foi dito não se
constrói sozinho. Os enunciados captados ao mirar a fotografia são moldados por diversos
discursos e representações, produzidos por intermédio de um amplo arsenal imagético que
constrói, organiza e dá sentido socioespacial aos símbolos expostos – e, são consequentemente
coletivos. Se trata da “semelhança informe”, da reprodução fotográfica de um espaço percebido
41
pelos sentidos, de discursos que se assemelham na imagem e se movimentam no tempo, mesmo
diante de perspectivas que se mostram como contraditórias ou divergentes, dialéticas em sua
forma. Nesse percurso estamos seguindo rumo à arqueologia da imagem.
No dia em que o fotógrafo em questão decidiu expor publicamente essa imagem – já
divulgada em seu site de fotojornalismo quase um mês antes –, data de 27 de agosto de 2012,
em sua página virtual da rede social Facebook, diversas foram as linhas de comentários que
acessaram toda uma referência pré-elaborada sobre o espaço em questão. As impressões
ultrapassam os territórios pertencentes à casa natal e acessam os códigos que constroem a ideia
da região nordeste26. Sobre a fotografia:
Arlindo Freire: Onde nasceu Canindé, na pobreza do sertão Semiárido - reside toda
a riqueza dos Ventos Fortes e das Nuvens, sob o azul do céu, sem o aproveitamento
que deveria ser feito pelos governantes - para que houvesse saúde e paz para todos os
homens. (10 de setembro de 2012).
Walter Medeiros: Canindé, você conseguiu contar sua história de forma fenomenal.
Que lugar, que casa, que árvore, que chão, que céu, que belo!!!
(10 de setembro de 2012)
Kaká Nascimento: E eu vou pintar um quadro dessa foto, pois tudo q lembra o sertão
nordestino me lembra o meu querido, amado e falecido pai! (16 de setembro de 2012).
Juvanilson Santos: Meu Deus, quantas lembranças boas eu recordo agora desta
imagem, chega até a cair lágrimas dos meus olhos, foi nesta humilde casa que eu
também nasci e me criei, lembro como se fosse hoje, o dia em que você Canindé
Soares chegou nesta casa mais seu Louro Camilo e tirou esta foto, eu era criança, hoje
muitas coisas mudaram a casa passou por uma reforma, o banheiro de palha de coco
e o pé de garrancheira não existe mais. É uma pena as coisas terem que mudar, mas
é a realidade da vida, as coisas tem que evoluir. Fiquei sabendo que você veio um dia
destes com os seus filhos para mostrar este lugar, eu não estava em casa, mas meu pai
me falou. Me orgulho muito ter nascido neste lugar e também é uma honra ter nascido
onde você Canindé Soares nasceu também, eu me sinto uma pessoa privilegiada. (17
de setembro de 2012).
Wanderley Mattos Júnior.: Que foto sensacional. E que legal você retomar e
compartilhar suas origens. Creio que tal qual a árvore fincada em frente à sua casa,
que certamente testemunhou seu nascimento, de alguma forma estende os ramos para
além da casa, tal qual você, estendeu-se para além, e seguiu adiante, sem, contudo,
negar, com orgulho, sua própria origem. Parabéns! (18 de setembro de 2012).
Adriana Souto: Como disse Euclides da Cunha “O sertanejo é antes de tudo um
forte!” Acho perfeita essa colocação e como você tenho o maior orgulho de ser
"sertaneja". Perfeito. (18 de setembro de 2012).
Katson Martins: Parabéns Canindé pela sua humildade, sem vergonha de mostrar
seu passado. Digno de rei. É com essa sua humildade que cada vez mais Deus tem
soprado teu nome. Um forte abraço. (18 de setembro de 2012)
NerialbaSinedino:Velhos tempos que éramos felizes! ñ parecia as pessoas não
demostravão tanto ódio, quase ñ tinha violência. também nasci no lugar parecido com
esse, Saudade!!! (18 de setembro de 2012).
26 Ver: ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. A invenção do Nordeste. 3. ed. São Paulo: Contexto;
Recife: FJN, 2006.
42
Elias Dantas: Muito boa essa foto, uma aula de nordeste... (7 de novembro de
2012).27
A fotografia exposta como índice; descrita na fala dos amigos de Canindé, representa o
registro de um lugar, mas essencialmente na ordem da impressão, da contiguidade física,
funciona como a marca de uma região. Como podemos ler não é necessariamente requerida à
semelhança. Pois não é a semelhança que chama a atenção, mas é a impressão que gera a
imagem destacada no original. Esse original remete-nos a signos de como o Nordeste emerge
poética, política, cultural e cientificamente, ou seja, como as práticas e os discursos o definiram
e o incluíram na história. O Nordeste, como nos relata o historiador Durval Muniz de
Albuquerque Júnior (2012), nasce e cresce no imaginário nacional associado à ideia de região
seca, atrasada, arraigada a valores passados.
Chama a atenção na citação acima a impressão em relação à imagem que funciona como
um dispositivo discursivo com ideias que se afastam e unem-se de modo variado em uma
dialética imagética. Os enunciados direcionam: a “pobreza do sertão semiárido”, a “casa
humilde”, a necessidade do “sertanejo ser antes de tudo um forte” para enfrentar a natureza
áspera, pelos outros elementos que circunscreve a paisagem. São também relatos que rementem
ao patriarcado, o que coloca o pai no centro das relações – existe mais de uma referência à
figura paterna, contraditoriamente, denotam saudades. Em tom nostálgico demarca-se a
presença de um passado que foi encerrado em prol da “evolução”. Que sertão é esse recortado
por Canindé que desperta tais impressões nos colegas do autor? É o sertão Nordestino que,
conforme construído, criaria, inclusive, características viris, rudes, másculas em seus
habitantes28, traços que privilegiam as representações do masculino, onde até a mulher sertaneja
se enrudeceria pelo contato com o espaço; como elucida Adriana Souto na citação ao concordar
com Euclides da Cunha e por esse motivo ter orgulho de ser sertaneja, logo, um forte.
Os discursos expostos são as marcas do que vemos e que nos forma. O que está antes
da semelhança identificada, é o que se vê e o que se diz do que se vê, as contradições, o
movimento dialético que dá vida a fotografia. A potência da fotografia está justamente no
exposto diante do exemplo citado, no que ela causa, nos sintomas que emerge, nas memórias
que acessa, nas enunciações que traz à tona. Nesse conjunto consiste sua resistência enquanto
27 Informações coletadas no perfil do Facebook de Canindé Soares. Disponível em:
.
Acesso em: 19/05/2016.
28 Ver: ALBUQUERQUE JÚNIOR. Nordestino uma invenção do falo: uma história do gênero masculino.
Maceió: Edições Catavento, 2003.
43
impressão; sua “aura”29 traduzida na relação entre a distância sobre o que vemos e o que é a
imagem (DIDI-HUBERMAN, 2010).
Na perspectiva de Benjamin (2012) a “aura” teria se liquidado com a reprodutibilidade
técnica possível à fotografia. Didi-Huberman (2010) em sua releitura coloca que não se
extinguiu, mas reside justamente na tensão da imagem, no anacronismo de percebê-la no tempo
presente diante de um turbilhão de experiências distintas que marcam através do passado um
processo de impressão presente. A impressão estabelecida na imagem fotográfica é a marca que
motiva o autor a desprender-se da ideia de estética para sinalizar o culto genealógico,
transportando os diversos processos metodológicos e analíticos para o que chama de
arqueologia da impressão ou da reprodutibilidade técnica. O que está na contramão da
consagrada semiótica ou da leitura iconológica sugerida por Panofsky (1991), que no Brasil foi
recentemente readequada para a análise de imagens fotográficas pelo historiador Boris Kossoy
(2003, 2009).
A fotografia exposta por Canindé Soares percorre a memória construída por simbologias
que traçam uma trama singular, estabelece uma realidade em que apenas um olhar não basta
para desvendar seu ponto de origem; independente de toda a conjuntura técnica e estética a
marca impressa na imagem fotográfica a medida em que circula se renova, traça novos sentidos
e experiências alinhados ao culto da imagem simbólica. (DIDI-HUBERMAN, 2010). A
visibilidade expressa pela impressão do que seja a região Nordeste é construída através de
vários discursos pré-elaborados; o galho favorecido pelo contraste da luz solar racha com
sombras o chão seco, distante do asfalto, rendilhado e intrincado aparece como representante
em plano privilegiado de uma vida seca, esse é um tipo de interpretação recorrente nas
manifestações estéticas e artísticas do sertão nordestino. Um discurso que metaforicamente
podemos pensar relacionado intimamente com os movimentos arteriais no qual partindo de uma
origem seguem um trajeto, nem sempre contínuo. É um caminho que ultrapassa, corre, distribui,
cruza, irriga e até divide temporalmente a cena. Divide, visto que as primeiras imagens que
exploravam o chão rachado, os galhos secos e as casas simples divulgadas na imprensa eram
argumento central para chamar a atenção da injustiça social ao qual estava acometido esse
espaço.
29 Didi-Huberman, historiador da arte, na construção da sua teoria crítica traz para o processo operatório analítico
das imagens fotográficas conceitos que de algum modo estariam em desuso, procura ver uma potência de
transformação a partir da crise semântica responsável por determinado significante cair em desuso, como por
exemplo o de “aura” do Walter Benjamin, “sintoma” de Freud, entre outros, Didi-Huberman (2010, p.201), afirma
que é preciso “tentar produzir uma ‘crise’ de palavras – uma crise portadora, se possível, de efeitos ‘críticos’.
44
Mesmo com destaque aos símbolos que representam a seca e a pobreza no sertão em
posição de destaque: os galhos da árvore e o chão de areia batida aparentemente rachado no
cenário dialogam e escapam aos sentidos de tristeza, miséria e dor. Nas falas apresentadas os
elementos que dão ânimo a cena já o vinculam a um espaço de integridade. Ou seja, são falas
que se sustentam por meio da retroalimentação executada pela integração dos discursos que
recebem, comunicam, posicionam e constituem o recorte. A impressão da fotografia que seria
a marca da miséria é informe e se retraduz em seu contrário, na saudade dos valores éticos e
familiares. Embora com contraste bem definidos o azul intenso do céu, que toma grande parte
da imagem, não incuti a tristeza, o calor dos tons alaranjados não permite que se construa essa
ideia. A cor quente é o contraponto à frieza do azul. As formas não se nutrem isoladas em um
domínio específico de representação, correspondem a estados sociais contraditórios, são
sintomas de um estado de coisas até em tumulto, é o triste que emerge do belo, o pesar pelo que
foi abandonado, a fuga do que se acreditava como destino.
Continuando, o olhar possivelmente se deslocará da esquerda superior para o lado
direito inferior e retornará ao centro. Novamente na casa o contraste da cor quente e crua dos
tijolos quase se confunde com a cor da terra em seus arredores, logo, a porta aberta com total
ausência de luz, chama igualmente a atenção. Não é momento de entrar, no lado esquerdo
podem ser exploradas outros elementos. O animal de pequeno porte é um porco que dá uma
dinâmica especial à cena, mais para a esquerda um indivíduo em pé descansa o corpo sobre as
lenhas trabalhadas. O solo avermelhado que parece rachado pelo efeito das sombras demarcam
um trajeto que coincidentemente finaliza na porta da casa. Popularmente conhecido como chão
de areia batida; se trata do solo vermelho-amarelo, solo de ampla distribuição geográfica no
Brasil. O cenário poderia ter sido retratado em diferentes pontos do país, mas o desvio no tempo
mostra que o que sobrevive e o que é latente na imagem aponta para o Nordeste.
Interessante é perceber que a captura da imagem foi feita no ano de 1989, mas as
impressões descritas datam de 2012, no decorrer desse período o discurso naturalizado sobre o
espaço regional se reafirma na fotografia. Para um dos internautas a visualidade dá “uma aula
de Nordeste”. O sentido que traz o discurso “aula de Nordeste” pode nos direcionar de maneira
mais simples ao entendimento dessa primeira análise, baseados no do que Didi-Huberman
(2010) localiza como o “informe” da imagem, ou a semelhança informe, sendo a imagem que
não culmina em destruição, sua forma resiste e faz agir. Vale ressaltar que nessa “semelhança
informe” está à potência, o movimento, a sobrevivência, a “aura” da fotografia.
O que confirma que a fotografia de Canindé Soares não pertence ao ano de 1989, não
representa de modo isolado a infância do autor, mas mesmo assim não está solta no tempo.
45
Antes, é uma imagem temporalmente enquadrada nas relações que envolvem o espaço social
por intermédio de arquivos de imagens que preexistem à fotografia e ao próprio autor. Isso
porque incorpora elementos hegemônicos e basilares que foram centrais para o processo de
formação histórica, cultural e social do espaço representado como região Nordeste; tal qual a
identificamos – de modo geral – nos dias atuais (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2003).
Em síntese, nas primeiras décadas do século XX a região Nordeste do Brasil começou
a ter suas fronteiras desenhadas nacionalmente a partir da ressignificação do imaginário
paisagístico em torno do espaço30. Uma das características desse novo recorte é justamente a
afirmação e o saudosismo que existe por parte de setores das camadas populares e das elites
letradas de um passado que estaria desaparecendo em prol de um presente marcado por relações
consideradas efêmeras, superficiais e muitas vezes até degradante (ALBUQUERQUE
JÚNIOR, 2003). Esse presente é expresso no plano de fundo com a cidade que aparece
praticamente abaixo de todos os elementos; ora, se é a cidade que corrompe os valores, nada
mais óbvio do que numa representação espacial com apelo ao passado organizá-la no plano
inferior. O passado que vem desaparecendo sob o impacto das relações urbanas contemporâneas
em uma estratégia reversa do fotógrafo é construído no plano frontal e distanciado do presente.
O discurso fotográfico aponta para um momento em que a reprodutibilidade imagética
permitiu que se construísse um discurso objetivo sobre um espaço; um tipo específico de
paisagem, recortada culturalmente enquanto Nordeste. Ao mesmo tempo em que disseminava
a fotografia enquanto uma técnica essencial para a reprodução de uma verdade, de um fato.
Com efeito, é creditada a imagem fotográfica o caráter de representação da realidade, a prova
da existência do seu referente. Contudo, o que ocorre nada mais é que a semelhança
transbordando na própria evidência, uma rede de saberes e poderes que produzem enunciados
e práticas ao mesmo tempo em que nutrem os próprios discursos que os contrapõem.
Após essa mirada na fotografia entramos nas possibilidades que o conhecimento em
torno da visualização da casa nos proporciona. É uma construção de tijolos, o que a diferenciava
das casas vizinhas da época que eram, majoritariamente, construídas com material de taipa. Foi
um presente dado ao casal; Terezinha Soares de Lima e Valdemar Pinheiro de Lima, pelo
tropeiro e pai do seu Valdemar; Antonio Pinheiro de Lima. A profissão de tropeiro data desde
o período colonial e era comum nas cidades do interior do Brasil, se constituia através do
deslocamento de indivíduos de negócios feitos no lombo de animais com o objetivo de comprar
30 Ver o historiador Durval Muniz de Albuquerque Júnior, que em seus estudos há muito tempo, explora a invenção
discursiva da região Nordeste, procurando capturar os cenários históricos e os modos de apresentação das
vozes dos políticos, dos literatos, dos historiadores e dos estudiosos da cultura popular
46
e vender animais e utensílios diversos. O que ajudou a diversificar e a garantir a circulação de
bens no interior do país, não só de bens, mas também de notícias ou “causos”, ao circularem
levavam para quem encontravam as notícias de conhecidos, amigos, parentes, etc. Era comum
aos filhos mais velhos acompanharem os pais tropeiros, esses, geralmente começavam a
trabalhar por volta dos 10 anos de idade31.
A residência recebida como presente está (até os dias atuais) localizada no município de
São Bento do Trairí, no Estado do Rio Grande do Norte. Sobre o local vale a pena destacar que
antes era a fazenda São Bento que pertencia a José Paulino de Oliveira Garrote e localizava-se
na cidade de Santa Cruz, às margens do riacho São Bento, a fazenda sobrevivia do plantio de
algodão e cereais. O espaço foi ganhando corpo com o crescimento de seus habitantes (que
eram trabalhadores da fazenda) e tornou-se um pequeno povoado no ano de 1907. Logo, foi
erguida uma capela em homenagem ao santo católico São Sebastião, o feito foi intermediado
por Dona Francisca, a esposa do fazendeiro que afirmou ter tido uma graça32 alcançada, o santo
foi transformado em padroeiro da localidade. Até os dias atuais no mês de janeiro grande parte
dos moradores dedicam-se à realização e participação de eventos festivos em torno do santo.
Sobre a cidade de Santa Cruz, antes habitada pelos índios Tapuios, pode-se dizer que a
mesma iniciou suas atividades econômicas por intermédio do pastoril. Os esforços para tal se
desenvolviam nos espaços ribeiros, com destaque ao Rio Potengi e ao Rio Trairí. Em 1831,
José Rodrigues da Silva, proprietário da Fazenda Cachoeira na localidade Cachoeira, aliou-se
aos irmãos Rochas que eram donos de terras localizadas às margens do rio Trairí e deram início
à fundação da povoação de Santa Rita da Cachoeira. José Rodrigues era devoto da santa católica
para comemorar o feito e a união entre as fazendas e os interesses próximos impulsionaram a
construção de uma capela em homenagem à santa. As casas foram sendo construídas no entorno
dessa capela. Antes de ser Santa Cruz a cidade possuiu outros nomes: Santa Rita da Cachoeira,
Santa Cruz do Inharé, Santa Cruz da Ribeira do Trairí33 e, por último, Santa Cruz (INSTITUTO
DE DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL E MEIO AMBIENTE. 2012). São Bento do
Trairí, no ano de 1958, depois de elevado a condição de vila, desmembrou-se da cidade de Santa
Cruz ganhando foro de município.
31 Para maior entendimento sobre o universo do tropeirismo no Brasil ver: RIBEIRO, Darcy. O mulo. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1981.
32 A palavra graça tem distintos significados na língua portuguesa, contudo, como citado no texto refere-se a um
tipo de crença em que um indivíduo religioso faz um pedido a um ente divino, no caso da religião católica há um
deus ou santos que servem de intermediadores desse pedido ao deus. Ao ter o pedido alcançado diz-se ter recebido
uma graça.
33 No ano de 1835, com o nome de Santa Cruz da Ribeira do Trairí, tornou-se distrito pela Lei número 24, de 27
de Março de 1835. Desmembrado do município de São José de Mipibu, no dia 11 de Dezembro de 1876, o distrito
tornou-se município do Rio Grande do Norte, passando a ser denominada Santa Cruz.
47
Para o Estado do Rio Grande do Norte a cidade central é Natal, considerando que toda
sociedade possui um centro que representa esferas de valores e crenças que a designa. O centro
constrói uma ordem a partir de crenças, valores e símbolos responsáveis por regular uma
sociedade (SHILS, 1992). Isso acontece por orientação de grupos que possuem habitus que os
distinguem pela idade, educação, proveniência étnica, regional ou classe. Podemos entender
então que esses grupos contêm os capitais privilegiados para atuarem na organização do centro
endossando um sistema central de valores estabelecidos com o que é prioritário na estrutura
social demarcando visualidade, porém fluídas, uma vez que alteram-se de acordo com as
técnicas envolvidas, as subjetividades e a própria inserção do capital que se impõe sobre os
locais, apontando para um percurso territorial que diante das variantes temporais se constituem
em espaços diferentes.
O centro vai sendo colocado como representacional, também, de outros espaços. Os
valores culturais de Santa Cruz se constituíram em centrais para a organização posterior do
município de São Bento do Trairí que os absorve enquanto um estrato de ordens e crenças já
pré-estabelecidas pelas instituições ou grupos que exercem o poder34.
34 Edward Shils analisa os elementos de consenso que levam à integração de uma sociedade a partir dos conceitos
de centro e periferia, debate sobre as propriedades da estrutura (grifo nosso) suas variedade e constituições
englobantes que conservam ou alteram as ordens. Ver: SHILS, Edward. Centro e periferia. Lisboa: Difel, 1992.
48
Figura 1 - Localização geográfica: Natal - São Bento do Trairí
Fonte: Google Maps (2017).
Apenas dois anos depois que São Bento do Trairí se constituiu em cidade, no dia 13 de
abril de 1960, nasceu Francisco Canindé Soares de Lima pelas mãos de uma parteira. As
parteiras ainda persistem na contemporaneidade, principalmente nas regiões que estão distantes
dos centros econômicos, se conserva a partir das experiências que são transmitidas de geração
para geração, portanto a sua prática é permeada por simbolismo, crenças e rituais. Dos rituais
que envolvem o nascimento através das parteiras, além das técnicas apreendidas no decorrer da
vida, estão a confiança entre os envolvidos, essa se estabelece através de diálogos, orações,
benzeduras e promessas para que o parto possa ocorrer da melhor maneira possível, sem
prejuízos a mãe e ao recém-nascido. Como Canindé era o primeiro filho do casal, foi a primeira
experiência da Dona Terezinha com uma parteira, embora houvesse o medo e o receio
amenizados pela fé católica, com a possibilidade de se recorrer às promessas. Se o parto
corresse bem, Dona Terezinha daria ao filho o nome de um santo.
Canindé teve, então, seu nome motivado pela devoção materna assentada na proteção
divina ao São Francisco das Chagas, personagem envolvido com questões relativas ao povo
sofrido, a paz, a pobreza, a humildade e a um estilo de vida simples. Escolher um santo
padroeiro e pedir-lhe distintos tipos de proteções por meio de promessas é uma prática comum
no Brasil entre os devotos e fiéis católicos; baseia-se no processo de evangelização por qual o
território foi submetido em seu período de colonização, um elemento residual da nossa história.
49
Ao conseguir resolver as causas difíceis, os fiéis agradecem e pagam a intervenção do santo,
com esforços e sacrifícios que traduzem-se em pagamentos e em demonstrações explícitas de
fé.
A atribuição de nomes de santos aos filhos também faz parte dos ritos de fé, demonstra
um tipo de valor exaltado. Francisco tem sua inserção social ligada ao culto católico, à luz da
tradição cristã. Passa a ser herdeiro da promessa realizada pela mãe que se traduz em uma dívida
ao qual se confessa ainda devedor, para pagá-la deve ir referenciar São Francisco caracterizado
de vestimentas simples e sem adornos, similar ao do personagem santificado. Não é em
qualquer capela ou santuário dedicado a São Francisco das Chagas que essa promessa pode ser
paga, Dona Terezinha estabeleceu como critério de pagamento a peregrinação até o santuário
localizado na cidade sertaneja de Canindé, estado do Ceará. Lugar do maior santuário
franciscano das Américas, polo de uma das romarias mais expressivas no Brasil, o qual reúne
uma média de 2,5 milhões de pessoas incentivando o turismo religioso considerado uma das
maiores fontes de renda do local.
Sobre o meu nome foi uma promessa. E eu tenho uma promessa pra pagar que eu não
paguei: lá em São Francisco do Canindé. Nossa, minha mãe fez uma promessa que eu
deveria ir vestido de Canindé lá para o Ceará, mas eu nunca vou fazer isso, realmente
eu nunca vou fazer isso (informação verbal, 2017)35.
O nome é um dos detalhes reveladores da história de um indivíduo, carrega uma carga
cultural do habitus familiar, acaba por ser constituir em um aspecto central da nossa condição
de ser humano. Isso posto, o nome de Francisco Canindé Soares de Lima está intimamente
ligado a uma paisagem de devoção católica já legitimada e amplamente divulgada na atualidade
com o apoio do fomento ao Turismo Religioso.
Como vimos, no período em que nasceu Canindé Soares a cidade de São Bento do Trairí
tinha sido recentemente elevada à categoria de município. Mas, era ainda um espaço rural e de
poucos habitantes, que moravam espaçadamente. Parte da infância do nosso repórter-
fotográfico, mais detidamente até os sete anos, ocorreu na nova cidade de ares rural.
Voltando para infância, eu tenho uma vaga lembrança, minha memória é muito curta
(risos), eu consigo lembrar de coisas pontuais, eu morava naquela casinha, eu lembro
da janela pra rua, eu lembro de algumas brincadeiras de bola com as poucas crianças,
pois ali era um sítio e eu tenho flashes do campo de futebol que nós fizemos. Eu tenho
muita lembrança de injeção, por isso o meu medo de injeção, sabe eu tenho medo
mesmo de injeção e naquela época era diferente, eu ficava doente. Eu lembro de
doenças, de febres, eu lembro que meu pai me levava para Santa Cruz36.
35 Entrevista realizada com Canindé Soares em 28 de março de 2017. Transcrição na íntegra vide apêndice D.
36 Idem.
50
De acordo com Pollak (1992) a memória é um evento, também social, construído
coletivamente e levado a mudanças constantes. Sendo essa memória o que transmite os aspectos
culturais, os valores herdados, os resultados de fatos vividos individualmente e socialmente.
Possui um conteúdo seletivo, o que leva as pessoas a não gravarem todas as coisas na mente,
mas sim o que possui um grande grau de importância. O que faz com que a objetividade, a
neutralidade e a realidade afaste-se da análise do discurso narrado, no sentido em que o
narrador, mesmo inconscientemente, não tem a intenção de informar, mas sim, por meio da
memória, eleger aquilo que ele considera importante. Sendo a memória também falha as
histórias são modificadas e contadas a partir de interesses presentes. Atrela-se a um sentimento
de identificação com o presente em que as emoções preenchem de sentidos os acontecimentos,
o que dá, a partir da lógica atual, coerência aos fatos vividos no passado. E no mais, os códigos
anulados pela memória acabam tendo um papel importante, alivia o passado, tornando-o
descomplexo. Afinal “no que nós indivíduos e grupos nos transformaríamos se nos
lembrássemos de tudo? (SERRES, 2005, p. 42)
Em termos de infraestrutura com algum tipo de estrutura em termos de comércio, saúde,
transporte o que havia de mais próximo era o município de Santa Cruz, mas também com várias
restrições. Mesmo se considerando “de família humilde” pelas próprias condições do espaço e
pelas posses restritas, podemos dizer que os pais de Canindé ainda gozavam da possibilidade
de escolhas. Para seu Valdemar seguir residindo em São Bento seria uma privação de
possibilidades, um cerceamento na expansão de capacidades dos filhos, uma ausência de
liberdade. Para entender do que se trata a expansão das capacidades aqui citadas e a
possibilidade de ampliação das liberdades individuais nos é cara a explicação dos conceitos do
Indiano Amartya Sen (2000).
Para Amartya Sen (2000, p.26), a liberdade é tema central na análise do
desenvolvimento, pois é um dos seus elementos constitutivos. O desenvolvimento está
relacionado à expansão das liberdades, das capacidades sociais e da eliminação das privações
cotidianas, sejam elas pobreza econômica, carência de serviços públicos, assistência social,
assistência médica, entre outras. Nas palavras do autor: “[...] com oportunidades sociais
adequadas, os indivíduos podem efetivamente moldar seu próprio destino e ajudar uns aos
outros”. A expansão das liberdades dos indivíduos tem a ver com o desenvolvimento humano
e com a condição de se atuar socialmente e escolher caminhos que se considera mais propício
para a sua vida (SEN, 2000). Essa era a liberdade que seu Valdemar almejava, poder sair de um
51
espaço que já dependia de distintos tipos de capitais valorizados em nossa sociedade, porém
dificultava o acesso a esses capitais.
O transporte era escasso, as estradas precárias, havia o desprezo estatal e a ausência de
meios que favorecessem aos que viviam da agricultura de subsistência reunir recursos para uma
sobrevivência digna era fato. Essas são as privações sociais no sentido dado por Amartya Sen,
que significa a negação da expansão das capacidades, o que exprime uma falta de liberdade.
Mesmo que não haja carência por renda, o indivíduo experimenta uma série de barreiras em
relação ao acesso aos instrumentos que são valorizados na sociedade contemporânea,
comprometendo, muitas vezes, sua interação satisfatória com a esfera social (SEN, 2000).
A união dessas privações foram os principais fatores que direcionaram seu Valdemar e
Dona Terezinha, no ano de 1967 a abandonarem o local, nas palavras de Canindé: “meu pai
saiu de São Bento fugindo da seca, ele vivia da agricultura”37. Os agricultores na década de
1960 ainda sentiam os efeitos da grande seca da década de 1942, que assolou o interior norte-
rio-grandense e penavam sob a crise ocorrida no setor algodoeiro- o que favoreceu o processo
de migração de milhares de pessoas para a capital do estado.
2.1.2 A chegada na capital
O itinerário escolhido foi a capital do Estado do Rio Grande do Norte, local em que já
vivia parte de familiares de Valdemar. Nesse momento em que a família decidiu se deslocar do
interior para a capital, entre as décadas de 1960 a 1970, a população de Natal saltou de 160.253
habitantes para o número de 264.379, de acordo com os dados do Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística (IBGE). Um momento de ebulição urbana nessa cidade. Muitas coisas
começaram a mudar, entretanto as opções de moradia para casais e grandes famílias de
trabalhadores eram restritas. Restava a essas classes sociais viverem nos bairros periféricos e
enfrentar todos os problemas do desordenamento espacial que acompanha a ocupação desses
lugares. É exemplo a Zona Oeste da cidade de Natal, região que concentrou grande parte da
população migrante de baixo poder aquisitivo e que se configura como um local que até hoje
preserva uma cultura de segregação social e espacial.
Nesse espaço, especificamente no Bairro de Dix-sept Rosado, alojou-se a família de seu
Valdemar; nesse período composta por três filhos, além do primogênito Canindé, tinha, também
as duas irmãs Marluce Soares de Lima e Valéria Soares de Lima. O sítio no município de São
37Idem.
52
Bento do Trairí não ficou para trás somente na distância, mas também em termos de memória.
Canindé Soares passou a criar uma relação vital com a cidade de Natal, o que nos direciona ao
que Paul Ricoeur (2007) afirma sobre a relação entre a memória, o corpo e o espaço. Para esse
historiador francês:
Não nos lembramos somente de nós, vendo, experimentando, aprendendo, mas das
situações do mundo, nas quais vivemos, experimentamos e aprendemos. Elas
implicam o próprio corpo e o corpo dos outros, o espaço onde se vive, o horizonte do
mundo e dos mundos, sob o qual alguma coisa aconteceu. [Em suma], fenômenos
mnemônicos [...] implicam o corpo, o espaço, o horizonte de mundo ou de um mundo
(RICOEUR, 2007, p.57).
As nossas lembranças trazem consigo aqueles que fizeram parte das situações
lembradas. Recordamos não somente das próprias histórias, mas de todas as situações que dela
fizeram parte, tanto em relação àquilo que nos pertence, como em relação aos elementos que
estamos associados.
Traduzido nas palavras de Canindé Soares:
Eu não, eu lembro do sítio, eu tenho uns flashes do sítio, lembro do roçado que o meu
pai plantava algodão, lembro que lá foi onde levei uma queda de jumento quando eu
tinha seis anos e eu fiquei com trauma de montar em jumento e o restante das
lembranças são aqui em Natal, em Dix-Sept Rosado, ali é aonde terminava a cidade
de Natal, era saindo de lá que nós íamos para o alecrim, para feira, para a Ribeira, para
vender as carnes (informação verbal, 2017)38.
A relação que envolve o lugar, com a memória e o corpo é marcada pela passagem do
tempo, pelas experiências vividas, pelas impressões, pelo ponto de origem que não permite o
engano: nem de tempo, nem de lugar. Quando se afirma a recordação “de ter gozado ou sofrido”
na carne, “neste ou naquele período de minha vida passada”; ou de ter, “por muito tempo, vivido
nesta ou naquela casa, daquela cidade; de ter viajado para tal parte do mundo”, pois “é daqui
que eu evoco todos esses lá onde eu estava” 39. O corpo é o referente espacial primordial da
nossa memória dotado de subjetividades. Evoca a aproximação ou o afastamento dos lugares.
O corpo infantil de Canindé, com cerca de oito anos de idade, depois de instalados na
capital, iniciou o processo de trabalho no auxílio ao pai que segundo o fotógrafo “quase
diariamente se deslocava a pé do bairro DixSept Rosado para Ribeira. “Ele com um cesto com
carne de dois bodes nas costas para vender nas oficinas do bairro e eu com uma bacia com duas
38 Idem.
39 Entrevista feita pela repórter Dani Pacheco a Canindé Soares para o Jornal de Hoje, no dia 14 de fevereiro de
2013. Disponível em . Acesso em 23 de dez. 2016.
53
buchadas na cabeça”40. Uma distância de aproximadamente cinco quilômetros, provavelmente
percorrida em uma hora de caminhada ou mais. As lembranças da infância de Canindé Soares
destacam a necessidade e a presença do trabalho no cotidiano:
Eu cheguei em Natal ainda criança, eu cheguei em Natal com 7 anos, eu tenho que
confirmar com o meu pai o ano que nós viemos para Natal, mas eu acho que foi em
1967, acho que eu tinha uns sete anos. O que eu lembro, na verdade, é que nós
mudamos muito e na segunda ou terceira morada a nossa casa era em frente ao campo
de futebol e eu nunca chutei uma bola porque o meu pai usava a gente pra trabalhar.
Meu pai matava a criação, se não me engano três vezes por semana, ele matava dois
bodes e duas ovelhas e a minha mãe fazia o tratamento da buchada e eu levava em
uma bacia na cabeça lá para Ribeira; meu pai comprou um cesto para eu ajudar, eu
tinha entre nove e dez anos e trabalhava para ajudar na renda. Na rua onde eu morava
também tinham feirantes nos dias de sábado, eu ia também para ajudar os feirantes e
as minhas irmãs ajudavam em casa, apenas uma porque a outra é deficiente.41
A figura paterna condiciona a prática do trabalho, bem como da responsabilidade no
cotidiano infantil de Canindé Soares, o que muitas vezes não era visto com satisfação pelo filho.
Mesmo que, através das entrevistas realizadas, se torne evidente a admiração pelo pai, é
possível verificar que a afirmativa se dá na figura materna enquanto representação de amizade
e compreensão. O pai traduz a ideia da labuta, o desejo de contestar, de mudar a trajetória futura.
A minha mãe foi muito amiga, eu era tudo pra ela e vice-versa, ela tinha muito orgulho
de tudo que eu fazia. Sempre quem me apoiou foi a minha mãe, inclusive ela foi a
única pessoa que soube que eu pedi baixa no quartel, meu pai não sabe até hoje que
fui eu, não imagina que eu pedi baixa. Eu queria levar uma vida de artista a minha
mãe me apoiava em tudo (risos), meu pai até hoje acha que a Marinha me deu a baixa.
Na cabeça do meu pai sair de um emprego era ser vagabundo (risos), ele falava: ‘isso
é coisa de vagabundo [...]’(informação verbal, 2017).42
Para Bourdieu (1996), o pai ocupa o lugar e o instrumento de um "projeto" (ou melhor,
de um conatus) inscrito nas disposições herdadas e que se transmite inconscientemente na sua
maneira de ser e por sua maneira de ser. Da mesma forma, precisamente, por ações educativas
orientadas para a perpetuação da linhagem. A condição do herdeiro é a de perpetuar o conatus,
aceitar fazer-se instrumento dócil do "projeto" de reprodução em que a herança bem-sucedida
se concretiza na imposição paterna, compreendida como o assassinato do pai que ocorre por
meio da sua superação. A superação paterna associa-se a conservação do projeto familiar na
ordem das sucessões. A identificação do filho com o desejo do pai como anseio de ser
continuado produz o herdeiro sem história. É nesse contexto que Canindé Soares reforça o seu
40 Entrevista feita pela repórter Dani Pacheco a Canindé Soares para o Jornal de Hoje, no dia 14 de fevereiro de
2013. Disponível em . Acesso em 23 de dez. 2016.
41 Entrevista concedida por Canindé Soares em 28 de março de 2017 para fins de realização da pesquisa doutoral.
42 Idem.
54
caráter transformativo, impõe uma micro resistência mediando às condições futuras de
autenticidade, o que se inicia através de diversos questionamentos:
O meu pai é muito católico, ele vai para a igreja todos os dias, ele assiste à missa na
televisão ele escuta a missa pelo rádio todos os dias. Eu sou católico, mas eu tenho
alguns questionamentos, eu sempre pensei assim: de não me apegar a religião, às
vezes até eu falo brincando: graças a Deus eu não tenho religião. Ele briga porque a
gente não reza. Ah, tem dia que eu sinto muita saudade dele, eu estou louco de saudade
dele, preciso visitá-lo. Mas meu pai é muito ranzinza, ele parece com o seu Lunga.
Você conhece o seu Lunga? O seu Lunga é um senhor que mora no Ceará, em
Juazeiro, uma pessoa muito ranzinza, ele inclusive ficou famoso por causa disso, o
meu pai parece com ele. Já a minha mãe é uma pessoa muito simples, muito humilde,
ela tinha um orgulho de mim imenso [...] (informação verbal, 2017)43.
A religiosidade não está nas práticas diárias do fotógrafo, mas o espírito religioso
católico marca os discursos fotográficos do mesmo e o constrói. Segundo Bourdieu (1996), a
incorporação e sedimentação levam ao fechamento e, ao mesmo tempo, a abertura de
possibilidades de ação futura para os indivíduos, delimitando, desde já, não só a formação
individual, mas também quais papéis podem ser desenvolvidos por ela na vida coletiva. Esse é
o processo relacional entre o habitus na sua forma criativa (com seus aspectos de constituição
individual e coletiva) e nas estruturas sociais que o circunscrevem. Essa relação dialética entre
posição e disposição indicou, no caso de Canindé Soares, o que repercute em suas ações de
autenticidade formada por imagens que subvertem, mesmo que momentaneamente, sua
estratégia de utilização.
Em uma visão pessoal sobre as amizades de infância, Canindé ressalta que essas foram
relações reduzidas, as quais são justificadas pelos distanciamentos atribuídos à sua condição
social menos favorecida economicamente. Para esse informante, a sua origem simples foi fator
de afastamento e da possibilidade de ter um grupo mais amplo de amigos. Momentos de solidão
trazem embates pela personalidade tímida, considerada como simples, pela discriminação das
outras crianças em se aproximar dos meninos considerados mais “humildes”:
Eu não tinha muitos amigos, eu era uma criança tímida e afastada. A minha timidez
era talvez pela simplicidade, por eu ser uma pessoa pobre, por eu ser uma pessoa
discriminada, eu não tinha muitos amigos, eu me lembro de um amigo que a gente
estudou, fiz a oitava série, fiz o primeiro ano, fiz o segundo ano com ele. Ele era muito
meu amigo, era de uma família classe média e me tinha muita atenção, o nome dele
era Eduardo. E depois o Eduardo desapareceu, quando nós terminamos o estudo nós
nos encontrávamos sempre, depois que ele desapareceu ficamos muito tempo sem nos
ver e eu consegui encontrar ele muito tempo depois em Guamaré. Lá em Guamaré ele
estava trabalhando em um posto de gasolina, ele era gerente e está muito rico, porque
casou com uma pessoa muito rica de lá, hoje ele é crente me levou lá, me apresentou
43 Idem.
55
a família toda. Sabe ele é único dessa minha época de infância que eu lembro, que
ficou a lembrança, já os outros eu não tenho contato (informação verbal, 2017)44.
Quanto aos estudos de Canindé Soares esses seguiram com algumas dificuldades até o
ensino médio. A principal dificuldade enfatizada foi a distância de mais de três quilômetros
entre a residência e a Escola Municipal João XXIII, bairro do Alecrim em Natal, local aonde
atualmente situa-se o Viaduto do Baldo. A zona que rodeia o atual viaduto do Baldo nos finais
de 1960 e início da década de 1970, período em que esse fotógrafo começou a caminhar pela
localidade, já estava concatenada a lógica moderna. Natal não era mais conhecida como cidade
“dorminhoquenta”, os efeitos pós Segunda Guerra Mundial, marcado, principalmente, pelo
maciço investimento financeiro feito por parte das Tropas Aliadas, que instalaram a base área
dos Estados Unidos na cidade; pela sociabilidade dos militares norte-americanos nas ruas da
capital, a própria infraestrutura implantada com a mão de obra e técnica desses militares
balizou-se como um período de superação aos resquícios coloniais. Esses resquícios coloniais
ainda resistiam em alguns espaços e foi o salto necessário para a cidade mergulhar na lógica do
que se instituía como progresso, já que a primeira metade do século XX foi um período que em
termos de infraestrutura moderna (como estradas, energia elétrica, transporte, etc.) foi bastante
restrito. Um momento marcado por marchas e contramarchas em seu processo de consecução.
Na lembrança de muitos natalenses, a grande guerra foi o período que despertou a cidade
de um sono secular. São afirmações encontradas nas narrativas de vários moradores, nas
produções acadêmicas, além de outras fontes que tratam do assunto. Nesse aspecto, já existe
uma bibliografia ampla sobre o período.45Em função disso, várias melhorias urbanas
aconteceram na cidade. Destaca-se o Aeroporto de Parnamirim, como a obra principal do
período, que favoreceu o fluxo de mais pessoas em Natal (SMITH JÚNIOR, 1993). A capital,
de fato, se insere de forma mais intensa nos acontecimentos mundiais e passa a vivenciar,
mesmo que pelas vitrines ou com certa distância os meios de comunicação, o aumento da
população, as transformações de hábitos, entre outras experiências.
Canindé Soares viveu um processo de absorção de toda essa nova lógica em que a cidade
estava imersa. Os quilômetros caminhados para chegar até a sua escola o fez transitar pelo
centro agitado do comércio com novos prédios, ruas mais amplas, aterramento de rios, como o
do próprio riacho do Baldo. O menino que saiu do interior está em frente ao movimento, aos
burburinhos de pedestres, as buzinas de carros nas ruas, ao barulho de avião e de aeromodelos,
44 Idem.
45 Para conhecer o contexto da Segunda Guerra Mundial em Natal ver: Smith Júnior (1992).
56
bem como encontra-se com a rapidez do novo espaço encantador e ameaçador. Entretanto, ele
começou a construir a ideia da cidade em seu rigor conceitual (SEVCENKO, 1992). Observa-
se, portanto, que tal fato é repercutido nas obras desse fotógrafo, levando em consideração as
suas próprias preferências em registrar metrópoles por meio de imagens aéreas.
Os atores sociais estão inseridos espacialmente em determinados campos (BOURDIEU,
1996). A posse de grandezas de certos capitais (cultural, social, econômico, político, artístico
etc.) e o habitus de cada ator social condicionam seu posicionamento nos diferentes espaços do
campo. Mesmo o capital econômico sendo determinante para a construção da posição espacial
no campo social, as posses do capital cultural e do capital social se fazem estratégicas. Os
sujeitos ocuparão espaços mais próximos quanto mais similares forem à quantidade e a espécie
de capitais que detiverem. Em consonância, os tipos de capitais que Canindé Soares passou a
adquirir foram construindo internalizações e disposições (habitus) que favoreceram a conquista
de novos espaços. Nas palavras de Bourdieu:
O espaço de posições sociais se retraduz em um espaço de tomadas de posição pela
intermediação do espaço de disposições (ou do habitus); ou, em outros termos, ao
sistemas de separações diferenciais, que definem diferentes posições nos dois sistemas
principais do espaço social, corresponde um sistema de separações diferenciais nas
propriedades dos agentes, isto é, em suas práticas e nos bens que possuem. A cada
classe de posições corresponde uma classe de habitus produzidos pelos
condicionamentos sociais associados à condição correspondente e, pela intermediação
desses habitus e de suas capacidades geradoras, um conjunto sistemático de bens e de
propriedades, vinculadas entre si por uma afinidade de estilo (BOURDIEU, 1996, p
21).
Se formos comparar Natal aos maiores centros econômicos brasileiros nas décadas de
1960, 1970, 1980, quiçá até os dias atuais, pontuaremos várias discrepâncias estruturais. As
apropriações dos espaços, os sentidos, as transformações, mesmo chegando a diversas partes
do mundo, nem sempre estão em sincronia. Nas capitais mais afastadas da circulação frenética
dos grandes centros econômicos, longe das maiores capitais, os processos desenvolvem-se mais
tardiamente. No entanto, essa distância não impediu que os moradores desses espaços também
se vissem atingidos por um turbilhão de mudanças que transformavam e inseriam novos
sentidos no espaço de sua vivência.
Os encontros e desencontros proporcionados pelas mudanças nem sempre bem-vindas
servem de inspiração para o foco que o fotógrafo elabora em suas imagens fotográficas. É um
conjunto de visualidades e experiências que mesmo possuindo fronteiras – sejam ela da timidez,
do recato, dos valores, dos próprios limites em relação aos acessos de bens – tem linhas
irregulares e fluídas que as ultrapassam. Mais do que isso, para ultrapassar barreiras, Canindé
57
teve que aprimorar seu cabedal de contatos e de comunicação; precisou receber as influências
do exterior, as ideias, os trabalhos e as pessoas. E o que perpassa essas fronteiras é modificado
pelo simples fato de ultrapassar; é o processo de assimilação do autor que a partir daí criou um
novo produto.
As lembranças tão frágeis e reticentes de sua infância, das paisagens que ficaram para
trás, ganham novas cores e contornos na imagem do fotógrafo, mostram a força dos ecos dessa
infância na sua obra e na sua vida. Podemos perceber que existem ecos do passado que por mais
laborioso e difícil que tenha sido são relembrados. Nessa perspectiva, no trecho abaixo é
exposta parte dessa trajetória marcada pelo discurso:
Eu casei e fui morar na Zona Norte de Natal, como eu gostava de estar junto da família
vendi a casa do meu pai que se localizava no bairro de Dix-Sept Rosado e comprei
para ele uma casa próxima a minha. Comprei uma casa perto da minha para a gente
ficar juntos. Sabe essa coisa de gostar de ficar junto, então, éramos vizinhos: eu, meu
pai e minha irmã e ficamos muito tempo morando vizinhos até que meu pai decidiu
voltar para o interior. Ele queria voltar para as origens, aí nós nos afastamos um pouco,
aí para visitá-lo ficou mais difícil, eu não ia sempre, apesar de ser perto, é uma
distância de 210 a 220 km, mas eu só ia visitá-lo uma vez por mês, as vezes de dois
em dois meses, ficou mais difícil o contato. Essa é a relação que a gente sempre teve,
de gostar de ficar juntos, sempre perto e hoje eu moro vizinho a minha irmã, olha que
coisa boa! Eu só tenho duas irmãs, uma é deficiente e ficou no interior e a outra é essa,
que é casada e que eu tive a felicidade de comprar uma casa vizinha dela. Isso pra
mim é muito bom, eu me sinto feliz em estar perto dela, o nome da minha irmã é
Marluce, mas a minha mãe chamava ela de Eliene. Essa é uma história engraçada,
depois que ela foi registrada alguém próximo colocou nome da filha, também, de
Marluce, uma outra criança, minha mãe não gostou nada de outra criança se chamar
Marluce e passou a chamar a minha irmã de Eliene. Já sobre a minha avó lembro (a
materna) que ela era muito próxima, muito brincalhona, muito gaiata, eu sinto muita
falta dela. O terreno do meu pai em Dix-SeptRosado era muito grande e ele deu uma
parte para a minha avó construir (informação verbal, 2017).46
Canindé sustenta que o sertanejo é forte, haja vista os valores passados que constroem
o homem no presente e no futuro. Essas são as lembranças contadas com otimismo pelo
fotógrafo, as quais remetem a instituição familiar, aos pais, as irmãs, a avó próxima e toda a
rede de relação basilar para a sua vivência, bem como aos familiares que saíram da pequena
cidade em direção a capital. Esse tipo de relação de proximidade entre os familiares faz parte
de um conjunto de valores que são caros a Canindé, ele tem em conta que o construiu e o moldou
a partir da dignidade.
Na fase adulta, na cidade de Natal, ele conseguiu reunir em torno de si os pais e as irmãs.
Moravam todos próximos e com o falecimento de sua mãe no ano de 2014, o pai de Francisco
46 Entrevista concedida por Canindé Soares em 28 de março de 2017 para fins de realização da pesquisa
doutoral.
58
Canindé decidiu retornar ao interior, onde está nos dias atuais com a filha mais nova. Com
residência fixa em Natal, vizinho da irmã mais velha, Canindé vive em união estável com a sua
segunda companheira Deborah Kalina Souza de Andrade, nesse caminho tomaram para si o
cuidado e a responsabilidade pela vida e educação da menina Ana Paula de 3 anos. Da primeira
união, quando Canindé Soares era ainda bem jovem (com 20 anos de idade), nasceram dois
filhos: Renato Freire Soares de Lima, que atualmente está com 36 anos de idade, e Thiago freire
Soares de Lima (33 anos) - ambos nascidos no Rio de Janeiro. Soares morou na capital do Rio
de Janeiro pelo período de 7 anos, servindo a Marinha do Brasil como Fuzileiro Naval, o
objetivo do deslocamento foi fazer um curso para subir da patente de soldado para a de cabo.
A relação com o Estado do Rio de Grande do Norte, mais detidamente, com a capital, é
de grande aproximação. Nesse local, Canindé viveu o período de sua adolescência e da fase
adulta; onde apreendeu distintos estímulos; entrou em conflitos; negociou forças e relações
sociais a fim de construir as viabilidades para a sua trajetória de vida. Nesse sentido, Natal se
configura como a cidade que o transformou na medida em que ele transitava pelas ruas, pelos
bairros, pelas instituições, ou seja, a cidade que o elaborou como uma das mais importantes
figuras da fotografia atual em seu Estado. Nas palavras do profissional a relação com o Estado.
É uma relação de paixão, tanto que eu fui pro Rio de Janeiro, uma cidade grande, e eu
voltei pra cá. Voltei pra desenvolver o meu trabalho, o Rio de Janeiro é uma cidade
bonita, talvez a mais linda e mesmo assim eu voltei, voltei por essa paixão que eu
tenho. Essa paixão pelo Rio Grande do Norte eu tenho desde criança, veja na minha
infância nós fizemos algumas mudanças de lugares e eu lembro que eu sentia muita
saudade, eu sentia saudade do local. Tem a ver com a falta que eu sinto dos amigos,
dos conhecidos, saudade da relação de convivência, tudo isso é muito forte, é uma
questão de paixão; é um sentimento que muda de pessoa para pessoa, tem gente que
é diferente que vai embora e esquece47.
2.2 CANINDÉ SOARES: O FOTÓGRAFO
Figura 2 – No centro dos contatos
Fonte: Acervo particular da Jornalista Renata Silveira (1997)
47 Idem.
59
Nesse tópico dissertaremos sobre as normas de socialização e as relações de poder
baseadas nas concepções de Nobert Elias, que se movimentam através dos aspectos
econômicos, político e social. Destarte, acreditamos que os elementos teóricos integradores da
sua sociologia processual que criticam os conceitos reificados de indivíduo e sociedade –
baseados em heranças deterministas sobre a influência da natureza nos espaços – sustentam
nosso argumento sobre Canindé Soares, inclusive sobre a ideia de autenticidade que
relacionamos ao profissional. Isso porque abrange “as teias de interdependência ou figurações
de muitos tipos, tais como família, escolas, cidades, estratos sociais ou estados” em que as
pessoas estão envolvidas (ELIAS, 2005, p. 15). Na análise realizada sobre as figurações em
processo na sociedade da corte, o autor não autonomiza os indivíduos, os coloca em valor de
interdependência aos demais e ao contexto geral. Entretanto, mantém o valor que esses têm
enquanto “indivíduos singulares”, que podem ser analisados “como sistemas próprios, abertos,
orientados para a reciprocidade, ligados por interdependências dos mais diversos tipos e que
formam entre si figurações específicas, em virtude de suas interdependências” (ELIAS, 2001,
p.51).
Nobert Elias (1995) coloca ainda, em outro momento da sua obra, que a compreensão
da vida de um indivíduo resulta no alcance dos anseios fundamentais que ele tentou satisfazer,
no modo como as realizações destes anseios determinam se a vida fez ou não sentido. Não
concebe os anseios como predefinidos e estáticos. Eles se modificam na medida em que o
indivíduo convive com outras pessoas.
Com quatro décadas de experiência na fotografia, mais de vinte anos na área jornalística,
Canindé Soares hoje atua como fotógrafo freelancer para a mídia, empresa do ramo publicitário
local e nacional. A trajetória profissional lhe rende prestígio, além de vários capitais sociais
como o título de cidadão natalense entre vários prêmios. Suas redes de relações envolvem
fotojornalistas e jornalistas com representatividade significativa na área, em âmbito nacional.
No Estado do Rio Grande do Norte chama a atenção à influência, o respeito e à legitimidade
conquistada em seu campo. Até os dias atuais, esse fotógrafo se mostra totalmente
entusiasmado com o que faz profissionalmente e não pretende interromper o seu trabalho, uma
vez que ele direciona os segmentos que mais lhe atraem e envolve-se em distintas
possibilidades.
A trajetória na fotografia para Canindé Soares não foi pautada em heranças familiares,
muito menos nos acessos a certos capitais como saberes e tecnologias específicas. Ao contrário,
a fotografia enquanto técnica/arte apareceu na vida do profissional como oportunidade de
60
sobrevivência. Uma oportunidade estratégica, visto que lhe daria possibilidades de ousar, de
criar, de fazer, de arquitetar. Mesmo que o profissional tenha que conviver, em seu cotidiano,
com um tempo exaustivo de trabalho, não tem que cumprir uma jornada fixa. Mesmo que passe
noites inteiras em claro, é ele o proprietário do seu modo de produção, detentor das etapas do
seu trabalho; sua jornada de trabalho também lhe pertence; oscila no meio de momentos de
disciplina e lazer; entre foco e criatividade; se constrói no interior da razão e emoção; cercado
por ousadia e competência, entre a técnica e arte. Essa é a capacidade de estabelecer até que
ponto os anseios que envolvem sua profissão estão em seu controle (ELIAS, 1995).
Os conceitos desenvolvidos por Elias (1995) destacam que a capacidade para
estabelecer ou não os anseios pessoais, está relacionada ao contexto no qual o indivíduo se
insere, o que (de acordo com o prestígio ou status) favorece o estabelecimento do grau de
autonomia conquistado. O autor destaca as possibilidades que se abrem para o posicionamento
dos indivíduos de acordo com as suas origens, o que envolve a luta, a coragem e os recursos
utilizados como ferramentas de conquistas e superação em prol de suas obras (ELIAS, 1995).
A vida de Mozart ilustra nitidamente a situação de grupos burgueses outsiders numa
economia dominada pela aristocracia de corte, num tempo em que o equilíbrio de
forças ainda era muito favorável ao establishment cortesão, mas não a ponto de
suprimir todas as expressões de protesto, ainda que apenas na arena, politicamente
menos perigosa, da cultura. Como um burguês outsider a serviço da corte,Mozart
lutou com uma coragem espantosa para se libertar dos aristocratas, seus patronos e
senhores. Fez isto com seus próprios recursos, em prol de sua dignidade pessoal e de
sua obra musical (ELIAS, 1995, p. 16).
De acordo com Elias os anseios de Mozart referem-se à sua condição de outsider. Ele
estava fora da corte, não era um inserido no ambiente que experiência e desse modo sofria
grandes pressões sociais. Em relação ao profissional, muito do seu trabalho dependia do favor
e dos gostos alheios, assim a sua subsistência estava condicionada a uma rede de relações
pertencentes a outro grupo social; no caso de Mozart: o da corte.
2.2.1 Sobre fotografia, fotógrafos e o campo de atuação em Natal
À exemplo da fotografia profissional, as relações sociais estabelecem-se na
concorrência associada a uma cumplicidade objetiva e visam interesses comuns ligados à sua
posição no campo de produção simbólica. É lícito supor que seu campo de atuação é similar ao
que Bourdieu (1997b) destaca sobre o campo jornalístico. Podemos pensar a fotografia em
analogia com a área mais ampla: o jornalismo. Bourdieu (1997b) coloca que esse é um espaço
61
social estruturado com relações diversas composto por dominantes e dominados – cada um
empenha a força que detém e que define sua posição no campo e, consequentemente, suas
estratégias constituindo assim a estrutura do campo. Um campo é um espaço social que também
se configura como um campo de lutas para transformar ou conservar esse campo de forças.
Cada um define seu lugar no campo, conforme sua concorrência com as outras forças, definindo
a sua estratégia. Seguindo esse pensamento, se faz mister descrever, em síntese, o campo e os
agentes da fotografia em Natal em seu processo de inserção e expansão para que possamos
visualizar a localização de Canindé nesse espaço e imaginar as direções traçadas para as suas
consequentes conquistas.
A fotografia enquanto um artefato cultural relaciona-se com o seu produtor e com o
mundo de relações que o circunscreve; representa-o e, desse modo, as apreensões que o
construíram socialmente. Dessa maneira, a imagem dá visualidade aos códigos culturais que
permitem o conhecimento do autor; bem como destaca as condutas determinadas, os valores
exaltados, as crenças escolhidas, as representações prioritárias, os aspectos simbólicos
predominantes socialmente, culturalmente e politicamente. A perspectiva em que captou, nos
primeiros momentos de sua existência, o fragmento do que se considerava a realidade foi com
ímpeto divulgado como um marco da imagem técnica. Nesse momento coadunava-se às
transformações que ocorriam no século XIX, na medida em que conciliava a utilização da
máquina, a rapidez e a precisão na captação de imagens apreendidas de um plano do real.
A origem do fazer fotográfico ligada a noção de semelhança com o existente captado
por intermédio do seu mecanismo foi marcado pela ideia de “espelho do real”, como tão bem
explicita Dubois (1993, p.27, grifo nosso):
Trata-se aqui do primeiro discurso (e primário) sobre a fotografia. [...] Embora
comportasse declarações muitas vezes contraditórias e talvez polêmicas, o conjunto
de todas essas discussões, de toda essa metalinguagem nem por isso deixava de
compartilhar uma concepção geral bastante comum: quer seja contra, quer a favor, a
fotografia nelas é considerada como a imitação mais perfeita da realidade. E, de
acordo com os discursos da época, essa capacidade mimética procede de sua natureza
técnica, de seu procedimento mecânico, que permite fazer uma imagem de maneira
‘automática’, ‘objetiva’ ou quase ‘natural’, sem que a mão do artista intervenha
diretamente.
A sociedade abraçou a fotografia como um sinônimo de imparcialidade e acurácia
científica, negando, em grande medida, qualquer proposta estética, ideológica e mesmo a
interferência humana em seu resultado final. A obsessão pela verdade era intrínseca a ideia do
progresso que significava a desaparição da alma em prol do crescente domínio da matéria. Fato
que significava a renúncia da estética do belo e da criação para escolher a verdade proposta pela
62
ciência material. A fotografia era a escolha do que poderia ser visto e reproduzido ao invés do
que pode ser sonhado e criado. Contudo, mesmo diante das circunstâncias ideológicas do
surgimento da famosa máquina oitocentista, como esclarece Dubois (1993) aflorou uma
acalorada discussão sobre o fato dessa se constituir em um aparato mecânico ou em uma arte.
Benjamin (2012, p. 97) indica que a evolução da fotografia para desempenhar os papéis
sociais e utilitários foi tão expressiva que, logo após a sua invenção, a maioria dos pintores de
retratos em miniatura se transformaram em fotógrafos. “Não é por acaso que o retrato era o
principal tema das fotografias” (BENJAMIN, 2012, p. 174). As primeiras imagens fotográficas
remetem à captação dos mistérios imanente ligados aos rostos fotografados, que sugeriam algo
externo às próprias fisionomias. Afinal, pela primeira vez, uma máquina criava imagens que só
eram possíveis pelas mãos do indivíduo e de realidade nunca vista anteriormente (BENJAMIN,
2012). A novidade foi se estabelecendo, despertando em seu início o desejo, suspense e
contradições. Das ambivalências em relação ao daguerreótipo48, Dubois (1993) aponta o senso
contraditório do teórico Baudelaire, ao mesmo tempo em que denunciava a imagem fotográfica
como parte de um gosto vulgar das multidões, pediu a Nadar e a Carjat – pintores de miniatura
que transformaram-se nos primeiros fotógrafos –, que fizessem vários retratos seu
(BENJAMIN, 2012).
A contradição de Baudelarie é um demonstrativo do êxtase causado pelos grandes
símbolos e elementos da modernidade: como o daguerreótipo.49A realização das imagens
monocromáticas e melancólicas, ao mesmo tempo em que encantava por sua veracidade,
atemorizava por seu aspecto congelado e sombrio. Ao mesmo tempo em que se traduzia como
um símbolo de status entre as camadas abastadas da sociedade que podiam possuir um desses
objetos. Era uma das novas formas de ver e absorver o mundo que constituiu uma (re)construção
nos olhares e no estabelecimento de novas práticas, todavia, restritas a quem detinha o método
artesanal do seu processo.
Restrita inicialmente a um grupo seleto, essas práticas não deixavam de indicar o
objetivo claro de documentar e explicitar o mundo, de representá-lo da melhor maneira possível
em suas variáveis espaciais, sociais e materiais. E, somente uma maneira de recepção da
fotografia ao público viabilizaria essa lógica de disseminação. Superando assim a existência
48 Antigo aparelho fotográfico inventado pelo físico e pintor francês Daguerre (1787-1851) responsável pela
produção de uma imagem fotográfica sem negativo. Informação disponível em: <
https://www.infoescola.com/fotografia/daguerreotipo/>. Acesso em: 25 mar. 2018.
49 Para um maior entendimento sobre a sensação de êxtase e de choque causado pelas transformações do mundo
moderno ver: SEVCENKO, Nicolau. Orfeu extático na metrópole: São Paulo, sociedade e cultura nos frementes
anos 20. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, p. 17-88.
63
única em prol da existência serial. Logo, a fotografia se traduziu em uma experiência coletiva,
de consequências sociais e políticas significativas, por seu alto grau de massificação, sendo
produzidas, reproduzidas e visualizadas cotidianamente.
Já no final do século de sua invenção, a fotografia foi amplamente difundida como
ilustração e linguagem. Em sequência a criação dos filmes substituíveis em rolos negativos
capazes de gerar vários positivos coadjuvou a criação das câmeras pessoais, colocando a
fotografia mais próxima das massas humanas modernas. O acesso visual aos objetos, paisagens
e práticas, fazia com que esses objetos ou locais, ao serem mirados pelo público, se tornassem
irresistíveis e desejados (BENJAMIN, 2012).
A burguesia abraçou essa forma de representação imagética com certo fascínio, uma vez
que possibilitava a expansão de seus ideais e ajudava a firmar o desenvolvimento da classe. A
ligação fiel que a fotografia tem com o objeto original passa a ser atravessada por manipulações
que vão além dos recursos da câmara fotográfica. Os retoques, as fotomontagens, a luz e a
interferência nos negativos criaram artifícios que atendiam aos desejos dos compradores. Esses
fatores colocavam os fotógrafos detentores dessas técnicas de tratamento da imagem em
vantagem diante da concorrência que começava a se estabelecer. Até os fotógrafos mais puristas
renderam-se aos procedimentos de manipulação em favor dos interesses econômicos.
Nesse entendimento, a fotografia chegou ao Brasil pouco tempo depois em que foi
notificado e legitimado o seu invento, em janeiro de 1840, na cidade do Rio de Janeiro, trazida
pelo abade Louis Comte. Sob o título de “Notícias Científicas” a chegada do equipamento de
daguerreótipa foi notificado pelo também Jornal do Commercio. “Esse acontecimento tornaria
a cidade uma das primeiras a serem fotografadas em todo o mundo” e seu aparecimento se
encadeou aos projetos do II Império que então se iniciava (PERROTTA, 2011). O imperador
desenvolveu um gosto pessoal pela fotografia. Ele procurou associar a técnica aos projetos de
construção de uma identidade nacional, que ao mesmo tempo em que exaltava os aspectos
naturais do país, procurava demonstrar as imagens do desenvolvimento material e social como
seguimento dos ideais europeus. A predileção pela técnica servia de índice para o gosto geral
da elite brasileira da época.
O projeto incentivador de uma civilização aos moldes europeus e o destaque da natureza
local eram, respectivamente, a formulação ideológica da nação brasileira. O desenvolvimento
da ordem e do progresso eram impulsionados e constituídos pelo Estado. A base territorial e
material necessária para nutrir o Estado em seus objetivos era concebida pela natureza
incorporada, dominada e destacada na tentativa de estabelecer uma identidade nacional. O uso
ideológico da fotografia para esse fim é esclarecedor nesse período por exercer provas visuais
64
caracterizadas como verídicas. “A autonomia da imagem fotográfica, permite transplantes de
seus conteúdos para os mais diferentes e por vezes, inusitados contextos” (KOSSOY, 2009, p.
76).
Com a instauração da república associada ao discurso da cidade moderna que passou a
sugerir práticas antes impensadas no espaço urbano, a fotografia criou raízes e expandiu seu
cenário de atuação. A cidade do Rio de Janeiro, onde o engenheiro Pereira Passos (1902-1906),
influenciado pelas ideias dominantes de modernidade, promoveu mudanças significativas –
transformando-a na cidade modelo, digna de ser fotografada e divulgada em cartão-postal para
servir como ícone em referência urbana para outras cidades do Brasil – recebeu vários
fotógrafos alemães, italianos e norte-americanos que buscavam o enriquecimento propiciado
pelo desenvolvimento econômico e transformações urbanas.
Convém observar que a primeira e maior demanda refere-se aos retratos de pessoas
feitos em séries e conhecidos como cartes de visite, compostos em uma cena elaborada. Com
as cópias em mãos o cliente divulgava sua imagem idealizada, dando-as como lembrança aos
amigos e parentes, tornando-se usual a troca de fotografia entre as pessoas. Na lógica que
concerne às cidades, outros locais, de acordo com as “suas próprias possibilidades, vivenciam
a atmosfera das reformas urbanas, mesmo que em pequenas doses [...]. Essas intervenções eram
tanto mais intensas quanto mais fortemente as cidades se inseriam no mercado capitalista
internacional” (ARRAIS, 2008, p. 66). Destarte, o meio mais potente de divulgação das
novidades era a fotografia, em desenvolvimento dos seus processos técnicos, simplificando e
reduzindo os altos custos da técnica.
No dia 8 de junho de 1849, na cidade de Natal, Rio Grande do Norte, “chega o primeiro
fotógrafo: Pacheco. O dia é conjectural” como afirma Luís da Câmara Cascudo (1980, p.434)50.
Sobre o trabalho de Pacheco pouco se sabe, o que podemos afirmar é que a cidade Potiguar teve
sua demanda inicial atendida pelos fotógrafos itinerantes Max e Bruno Bougard, irmãos que
chegaram ao Brasil pela capital pernambucana, principal polo econômico do Nordeste. O grau
de desenvolvimento urbano alcançado por Recife na época era convidativo aos fotógrafos, mas
esses já viviam em grande concorrência. Na disputa pelo mercado de fotografias os irmãos e
sócios Bougard resolveram estender as suas atividades pelo interior e litoral. Para isso,
buscaram vários estados do Norte e Nordeste. Em Natal, localizaram seu ateliê na Rua Treze
de Maio, nº 38, atual Rua Princesa Isabel, no Bairro da Cidade Alta. O ateliê era um espaço
50 Ver em CASCUDO. Luís da Câmara. História da cidade do Natal. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira:
Instituto Nacional do Livro; Natal: EDUFRN, 1980. (Coleção Retratos do Brasil, volume 145). p. 434.
65
importante para a encenação do registro, lá existiam vários objetos que eram utilizados para se
criar um cenário e valorizar o ambiente em que se inseria o personagem a ser fotografado.
Em 1897, a sociedade dos irmãos foi desfeita e Bruno Bougard (1859-1930),51 passou a
oferecer sozinho os seus serviços fotográficos ao público de Natal52. O fotógrafo estabeleceu
laços com o governador Alberto Maranhão, irmão do fundador do jornal “A República”, onde
Bougard por anos, também fez sua propaganda. No ano de 1904, último ano do seu governo,
Alberto Maranhão solicitou o registro da capital ao atelier do fotógrafo. O caráter documental
da fotografia revela o objetivo de retratar a nova dinâmica com foco às ações sistematizadas
pelo governo, em busca de uma cidade com salubridade e higiene, inicia-se nos espaços urbanos
de Natal. O princípio ordenador de ideias e valores que se impunham a época começava a
tracejar a capital natalense, claro que de acordo com as possibilidades locais (ARRAIS;
ANDRADE; MARINHO, 2008). As fotografias de Bougard apontam o limite histórico da
cidade colonial e o início do processo de modernização.
Bruno Bourgard foi o um fotógrafo itinerante clássico, prosseguiu com suas viagens
pelo interior do Rio Grande do Norte em busca de clientes abonados capazes de pagar seus
serviços. Retratava pessoas e equipamentos urbanos que se formavam nessas pequenas cidades
ou vilas. Muitas de suas atividades estiveram ligadas à igreja. Era convidado pelas
arquidioceses para documentar os eventos, geralmente, no período das festas das padroeiras,
momento de aglomeração de pessoas. Da cúpula das igrejas conseguia abarcar as procissões.
Esse tipo de registro pode ser encontrado em diferentes acervos dos municípios do Rio Grande
do Norte53. Bougard tinha um ateliê em Recife e era nesse espaço que ele revelava todas as suas
fotografias54.
Bougard é um destaque para a história do Rio Grande do Norte, estrangeiro e itinerante,
foi o autor dos primeiros registros fotográficos do Estado. Porém, o Rio Grande do Norte não
deixou de ter entre seus nativos um fotógrafo. No mesmo período, primeiras décadas do século
XX, dos filhos da terra que se dedicaram a fotografia temos os registros de Manoel Gomes de
Medeiros Dantas (1867-1924). Um dos homens mais influentes do seu período, considerado
um grande intelectual. Bacharelou-se em Direito pela Universidade de Recife, tendo antes
51 Provável data de nascimento/morte do fotógrafo. Em: The German Eye in America Photographers: List of
German-born photographers. Disponível em: < http://www.sallylarsen.com/SL_Web_GE_fotogs.html>. Acesso
em: 15 mar. 2017.
52 Conforme nota colocada pelo fotógrafo no Jornal Diário do Natal em de 2 agosto de 1898, p.2.
53Informações obtidas na palestra História da Fotografia no Rio Grande do Norte ministrada pelo Fotógrafo
publicitário, escritor, odontólogo e pesquisador da história da fotografia do Rio Grande do Norte, Giovanni Sérgio.
54 Informações fornecidas por Edgar Ramalho Dantas, neto de Manuel Dantas, para esta pesquisa, em 19 de
agosto de 2017.
66
desenvolvido estudos em latim, francês, inglês, retórica, aritmética, geometria, história e
filosofia. Ocupou importantes e estratégicos cargos públicos: foi juiz e procurador geral do
Estado. Dedicou-se à remodelação do sistema educacional local, deu aulas no colégio Atheneu,
escreveu contos, participou com assiduidade do jornalismo, foi redator d’A República. E,
conforme afirma Miranda (1981, p. 10), “pelo amor ao registro dos fatos e das coisas da cidade
que habitava e pela qual tinha o mais extremado afeto”, foi fotógrafo55.
O afeto que Manoel Dantas tinha pela cidade, contudo, estava aportado no futuro, em
expectativas do que essa poderia vir a ser quando as antigas tradições fossem substituídas pela
nova lógica capitalista, industrial e mercadológica, quando atingisse o auge das transformações
que vinham sendo implementadas nas grandes cidades. “Não parecia pensar duas vezes em
enterrar o passado e preparar a mente dos natalenses para a chegada da modernidade”
(MARINHO, 2008, p. 35-39). Contraditoriamente, foi com a conservação de registros do
passado, por meio da fotografia, que deixou para as gerações futuras um dos seus maiores
legados: os registros imagéticos e únicos de um tempo ainda circunscrito pelas tradições
coloniais.
Muitas técnicas fotográficas que se desenvolveram na Europa eram lidas por Dantas nas
literaturas em inglês e francês. Leituras que para o aspirante a fotógrafo eram primordiais, visto
que os métodos utilizados para obter a fotografia exigiam conhecimentos especializados,
principalmente da química. Possivelmente, pela época que viveu em Natal, pela dinâmica da
cidade, pela afinidade com a fotografia e pelas relações que teve56, Dantas se encontrou com
Bougard e possivelmente desenvolveu algum tipo de aproximação que pode ter contribuído de
maneira positiva em relação ao seu conhecimento e autonomia desenvolvidos nos usos do
equipamento que utilizava, sendo que o primeiro foi um verascópio. O verascópio continha um
sistema ótico de captação da imagem com uma caixa acoplada onde ficavam as placas de vidro
55 O arquivo fotográfico de Manoel Dantas tem como responsável o seu neto Edgar Ramalho Dantas, membro do
IHGRN. De acordo com informações de Edgar, em entrevista feita para essa pesquisa no dia 19 de agosto de 2017,
existe hoje uma média de quase 3.000 mil lâminas fotográficas. Manuel Dantas deixou dois grandes baús com uma
quantidade aproximada de 10.000 lâminas de fotografia, que antes ficaram na responsabilidade do seu filho
Silvino, após a morte de Silvino os baús foram abandonados no quintal sobre as agruras do tempo, expostos a
chuva e ao sol. Os baús transformados em moradas de ratos foram resgatados por seu filho mais novo. Na década
de 1970, o arquiteto João Maurício interessado em desenvolver um projeto sobre a história da arquitetura de Natal,
nesse mesmo período restaurou e revelou parte desse acervo. Além, dos objetos arquitetônicos as fotografias
reúnem personagens que faziam parte da elite local, amigos de Manuel Dantas, destacavam também rituais
importantes da época, eventos, os tipos de vestimentas, modos de sociabilidade, entre outras informações que
podem ser lidas. Uma curiosidade é a foto de Manuel Dantas em seu jardim, junto com a sua esposa Dona
Chiquinha, rodeados por crianças, ambos com roupas de dormir. De acordo com Edgar os vizinhos iam até a casa
de Manuel somente para vê-lo usando o pijama. Grande parte do acervo foi perdido.
56 Dantas e Bougard viveram praticamente na mesma época, em Natal os grupos abastados frequentavam o mesmo
ambiente, Bougard fotografou para Albuquerque Maranhão com quem Dantas mantinha relações, por esses
indícios acreditamos em algum tipo de relação estabelecida entre esses homens para trocas sobre a fotografia.
67
negativas para ser sensibilizadas. A produção fotográfica de Manuel Dantas era, inicialmente,
revelada em Recife, já no ano de 1910, de posse de materiais necessários, passou a revelá-las
no porão da sua casa.
No início do século XX, já existia uma grande camada de aficionados pela fotografia no
Brasil, porém de classe social bem definida. O uso do equipamento fotográfico nesse período,
mesmo nos locais mais desenvolvidos, exigia investimentos elevados e esbarravam em
problemas de ordem material. Essas dificuldades, na sua época, só podiam ser superadas pelas
classes mais abastadas. O custo do equipamento e a carência de materiais fazia com que esses
equipamentos fossem armazenados como verdadeiras joias.
Giovanni Sérgio destaca que, entre os residentes de Natal (na época de Manoel Dantas),
ele era o único possuidor do equipamento. Em função disso, agrupava em sua casa vários
amigos, formava uma plateia para apresentar tudo o que fotografava. As reuniões contavam,
também, com um aparelho ótico de projeção conhecido como lanterna mágica ou
estereoscópico57, no qual eram exibidos paisagens e retratos (Figura 03). A diversão ficava por
conta dos olhares lançados às exposições de mulheres desnudas e sensuais. “Dantas fazia essas
fotografias e isso morre com ele, acabou pelo moralismo em Natal” 58.
Figura 3- Aparelho usado por Manoel Dantas
Fonte: Acervo Giovani Sérgio (2012).
57O estereoscópico foi um passatempo popular entre as classes abastadas em inícios do século XX. Era moda a
coleção de pares de fotos para a observação em três dimensões. A tomada das fotografias simultaneamente com
afastamento similar aos olhos humanos propiciava a representação da imagem com a sensação de profundidade
tridimensional.
58 Informação dada por Edgar Ramalho Dantas, neto de Manoel Dantas em entrevista feita para essa pesquisa no
dia 19 de agosto de 2017.
68
Figura 4- Autorretrato59
Fonte: Arquivo Giovanni Sérgio, fotografia de 1909, restaurada em 2012.
Esses são personagens pioneiros e responsáveis pelos primeiros registros fotográficos
das primeiras transformações urbanas que chegaram até Natal: Bruno Bougard e Manoel
Dantas. A fotografia os imortalizaram na história de Natal, mas esses homens que dividiram os
mesmos espaços viveram lógicas opostas. Das grandes metrópoles às províncias, Bougard foi
o fotógrafo comerciante que, preso nas teias do capitalismo já instaurado, precisou migrar e
itinerar para viver “melhor”. Dantas foi o fotógrafo formador de opinião, não buscou
sobrevivência econômica na fotografia e sim o interesse de usá-la como aliada técnica e objetiva
dos seus ideais. Apresentou o tempo que viu nascer, documentou os espaços que se
modificaram. No contra fluxo dos flâneurs,60 que brotam nesse período, passeia nas ruas em
busca de um foco espetacular de multidão (SILVA, 2012).
A fotografia nas décadas iniciais do século XX esteve restrita a uma camada social de
significativo poder aquisitivo. Essa foi uma situação que se estendeu por décadas, ultrapassou
a primeira metade do século XX, dependendo do local em que se estava no Brasil, mesmo com
a ampliação e com a popularização dos equipamentos em grande parte do ocidente, a técnica
continuou sob o domínio das classes médias em diante. Na cidade de Natal, duas décadas depois
de Manoel Dantas, destacaram-se alguns fotógrafos, entre eles: João de Britto Namorado,
Emílio Vale, João Alves de Melo, Luiz Grevy Silva, José Seabra, Jaeci Galvão e, logo em
59 Nessa imagem, apresentam-se Manoel Dantas e Dona Maria Francisca em frente ao espelho. Manoel Dantas
está acionando com o dedo indicador o dispositivo.
60Conceito aplicado por Benjamin para representar a experiência da modernidade no homem, impregnado pelo
tédio. Ver BOLLE, Willi. “A metrópole: palco do flâneur”. In:______. Fisiognomia da metrópole moderna.
Representações da história em Walter Benjamin. São Paulo: Editora da USP, 2000.
69
sequência, Lolita do Rêgo - a primeira profissional da área a atuar profissionalmente em Natal61.
Seabra na década de 1940, fotografava as pessoas que faziam fila na praça pública, sua atuação
inspirou o jovem Jaeci Galvão que ocupa lugar de destaque na memória fotográfica potiguar,
com apenas 15 anos começou o seu trabalho na fotografia, com uma das máquinas mais
modernas e cobiçadas da época: máquina de fole, com médio porte, de origem alemã a
Voiitlender Baby Bessa (SILVA, 2012, p. 111).
Figura 5- O fotógrafo Jaeci Galvão
Fonte: Acervo de Jaeci Galvão (1950).
Para seguir adiante nesse empreendimento foi preciso o gosto pelas leituras que
direcionavam a técnica, precisou empreender buscas para ser capaz de desenvolver sua arte
dentro de uma determinada estética e de técnicas necessárias para a revelação de seus negativos.
Conduziu também estudos na língua inglesa, que também foi essencial para a aquisição de
material fotográfico junto aos militares norte-americanos que estavam em Natal no período da
Segunda Mundial, e para a leitura das principais revistas fotográficas. Jaeci acompanhou a
evolução da fotografia e dos profissionais e ressalta que desde quando começou a fotografar
era necessário o profissionalismo:
Hoje, tiram uma foto rapidamente, tem o seu valor... hoje, não existe mais a cobrança
de antigamente... antes, o trabalho era duro. Nunca tive um professor, comprava
livros, revistas, aprendia a mexer nas câmeras, tudo sozinho. Eu fazia todo o processo:
61 Informação apresentada por Giovani Sérgio, filho de Lolita do Rêgo, em 19 agosto de 2017.
70
fotografava, comprava as fórmulas, as químicas, o filme, ia para o laboratório revelar,
pendurava o filme para secar, fazia até a limpeza do laboratório. Um trabalho
demorado levava horas... comecei comprando com os americanos, depois comprava
no Rio de Janeiro nas viagens que eu fazia. 62
À medida que a cidade de ruas estreitas, pavimentada de paralelepípedo e com prédios
simples foi sendo ocupada pelos militares e civis norte-americanos, nesse momento de guerra,
novas práticas foram sendo imersas e entre elas a fotografia. Francisco Lira63 ressalta que no
período em que Jaeci – como a maioria dos fotógrafos que hoje são lembrados como destaques
na cidade – iniciou sua carreira, as coisas eram difíceis. Antes de popularidade e do conforto
profissional, os fotógrafos iniciaram suas trajetórias profissionais percorrendo o colégio
Atheneu e a Praça Pedro Velho, atual Praça Cívica. Nesse espaço captavam imagens de famílias
em passeio, de casal de namorados e jovens que queriam registrar seus momentos de lazer. Nas
palavras de Lira:
A entrada de Jaeci na fotografia local demorou um pouco. Mesmo pertencendo a duas
famílias de tradição ele foi fotógrafo lambe-lambe na Praça Pedro Velho. Com o
tempo e a sua visão comercial a vida lhe deu conforto e status. A loja que teve durante
muitos anos na João Pessoa era moderna e tornou-se referência de equipamentos
fotográficos e a casa da Rodrigues Alves, em que vivia era um bangalô de rico. [...]
Ele tornou-se proprietário do que havia de melhor para se fotografar. Nos anos 70 tive
alguma aproximação com Jaeci e lembro que estava sempre com a Nikon no banco do
seu Landau (informação verbal, 2012).64
A fala de Lira localiza meados do século XX, destaca como a profissão de fotógrafo foi
ganhando espaço na cidade. Entretanto, como podemos perceber, poucos nomes incluem-se
nesse contexto. Jaeci Galvão foi um nome de grande relevância, atuante até o início da década
de 1990, paulatinamente foi diminuindo seu trabalho, passando muito da sua produção e
clientela para os filhos e netos, atualmente, por restrições de saúde decorrente da própria idade,
não atua mais. Porém é lembrado na mídia local, recebe homenagens entre seus pares e é
legitimado como um dos grandes nomes da fotografia no decorrer do século XX. O triunfo
62 O primeiro, dos vários diálogos que estabelecemos com Jaeci Galvão, em 05 de novembro de 2011. Após os
contatos por telefone vieram às visitas a residência. A primeira visita, foi realizada em 20 de abril de 2012.
Somaram-se um total de 07 visitas, nos quais 04 foram acompanhadas pelo seu filho Jaeci Galvão Junior. No
decorrer da pesquisa, entendemos que algumas limitações recentes impostas a sua vida, em prol de sua saúde,
fizeram com que o retorno às lembranças do passado fosse repleta de saudade e, consequentemente, silêncio. Jaeci,
além de fotógrafo, exercia também atividades sociais e esportivas intensas. Hoje leva uma vida pacata, com
restrições. Para mais informações ver: Marques (2013).
63 Francisco Lira é odontólogo por formação (1980 – UFRN), filho das famílias tradicionais da capital, é muito
conhecido, tem um grande interesse pelas fotografias, principalmente as de paisagem, exerce a profissão de
Produtor e editor de guias de Turismo.
64 Entrevista concedida por Francisco Lira em 25 de junho de 2012.
71
profissional se deu arraigado ao avanço urbano e populacional da cidade, concomitante ao apoio
familiar e ao acesso aos bens necessários para tal65.
No contexto geral, Natal experimentou uma grande intensificação na vida social e
econômica dos seus habitantes, principalmente nos serviços de lazer e cultura. Entretanto, com
o final da guerra grande parte dos militares que avolumaram o comércio local deixou pouco a
pouco a cidade, permanecendo aqui somente os que necessitavam prestar serviços especiais na
base aérea. Conforme Smith Júnior, existia uma “grande preocupação por parte do governo
norte-americano com relação à Cidade de Natal, uma vez que com a retirada das tropas
americanas a cidade poderia sofrer um colapso. Contudo, devido aos eventos posteriores nada
foi feito” (SMITH JÚNIOR, 1992, p. 158).
Sobre essa época o próprio Jaeci considera um detalhe: “você via dez americanos e um
brasileiro. O comércio era todo voltado para as forças armadas americanas”66. Natal teve que
enquadrar-se ao esvaziamento ocorrido com o fim do conflito militar, com a retirada do capital
estrangeiro. A cidade ficou marcada por novas fisionomias decorrentes da movimentação
promovida pelos militares que aqui residiram e ajudaram a delinear novas práticas sociais,
comerciais e urbanas. É exemplo à obra da Avenida Circular que liga os bairros centrais às
praias urbanas e à edificação da Estrada Parnamirim Road. Essas construções transmudaram os
espaços de Natal, motivaram a transferência do comércio elitista que se situava na Ribeira, para
a Cidade Alta, Tirol e Petrópolis. Além, precisaram espaços de segregação na capital com o
deslocamento dos estabelecimentos comerciais. Um exemplo é o Grande Hotel que fora um
importante símbolo social do Bairro da Ribeira e entrou em declínio a partir do final da Segunda
Guerra Mundial (SOUZA, 2008).
Nos anos de 1960 os estabelecimentos de prestígio comercial e social praticamente
abandonaram a Ribeira em direção à cidade alta. A Avenida Rio Branco era o ponto principal
de circulação de mercadorias para a classe abastada em Natal e Jaeci acompanhou essa
transformação, instalou a sua loja na esquina da Avenida Rio Branco com a Rua Coronel
Cascudo, conhecida popularmente por “Beco da Casa Régio” e, posteriormente, por “Beco do
Jaeci”. Sobre esse deslocamento o fotógrafo destaca:
65 Sobre o destaque de Jaeci Emerenciano Galvão, é de conhecimento público, existe um material significativo de
domínio público na web, matérias sobre o profissional em arquivos de jornais locais, certificados de
reconhecimento pelo trabalho dado por membros do poder público e, legitimando sua importância nesse campo,
recentemente, fomos convidados pelo Governo do Estado do Rio Grande do Norte, juntamente, com a Fundação
José Augusto para fazer uma palestra sobre Jaeci Emerenciano Galvão, no evento: História e Memória da
Fotografia Potiguar. Para mais detalhes sobre a trajetória do fotógrafo ver: Marques (2013).
66 Entrevista concedida por Jaeci Galvão em 2003 (ARAÚJO, 2003, p. 187).
72
Nós vimos uma mudança nesses dois bairros, naturalmente, naquela época a Ribeira
teve uma vida bastante agitada com vários atrativos. Essa mudança que foi sentida
trouxe, inclusive, a necessidade de acompanharmos. Eu saí da rua Dr. Barata, alto da
loja Paulista, para a Avenida Rio Branco, ali no Grande Ponto, com Coronel Cascudo.
E naquela época o Reginaldo Teófilo montou uma loja do lado e eu tinha a foto do
outro lado... Inclusive foi chamado de Beco do Jaeci. A Coronel Cascudo era
conhecida como o Beco do Jaeci67.
Para Jaeci, as transformações que ocorreram na capital potiguar, tanto na economia, nas
práticas sociais, como no traçado urbano da cidade, foram promissoras. Já na década de 1970,
Jaeci era, senão o maior nome da fotografia Potiguar, o mais comentado fotógrafo. O seu
empreendimento comercial era o preferido da classe alta natalense, considerado um ícone de
beleza e de diversidade em variadas tecnologias, referência em equipamentos cinematográficos
e fotográficos, seus negócios iam além da fotografia. Esse foi também o período em que deu
aporte para o seu filho abrir seu ponto comercial, também, no mesmo seguimento. Jaeci aos
poucos afastou-se da atuação de fotógrafo profissional, priorizando o lazer com os amigos, as
atividades esportivas, os eventos sociais e se dedicando também ao mandato de Comodoro que
exerceu durante quase toda a década de 1980 no elitizado Iate Clube de Natal (1981/1983 –
1983/1985 – 1985/1987).
No período em que Canindé se direcionou para a fotografia, os acessos já eram mais
amplos no contexto de Natal, tendo em vista que não é nada fácil para um jovem de origem
simples atuar nesse campo com destaque. Ainda é um mercado excludente, quando priorizada
a qualidade do material e a própria captação de clientes aptos a pagar pelas mais distintas
possibilidades dadas por meio da apreensão da técnica fotográfica. No mais, já existia na cidade
nomes conhecidos e de prestígio no campo da fotografia pelas relações estabelecidas ou por
parentescos com pessoas influentes no campo, como o caso dos filhos de Jaeci. Vale ressaltar
que, até os dias atuais, filhos e netos de Jaeci ainda atuam em Natal nos mais diversos campos
da fotografia, com clientela privilegiada e destaque no campo da fotografia (SILVA, 2012).
2.2.2 O outsider e a construção de possibilidades
O processo de inserção de Canindé Soares na fotografia é singular pela necessidade de
superação da origem espacial e da classe social. As condições objetivas de sua vivência não
facilitaram uma configuração de privilégio no campo profissional, se pensarmos de acordo com
os meios indicados por Bourdieu. Origem simples, com recursos econômicos restritos,
iniciando sua carreira como autodidata, afastado do convívio de fotógrafos de prestígio, distante
67 Idem.
73
dos debates que envolviam técnica e a estética fotográfica, é praticamente impossível imaginá-
lo, nesse momento inicial da profissão, sendo legitimado e reconhecido em sua atividade.
Diante da realidade de Canindé Soares em seu ambiente profissional podemos
interpretá-lo enquanto um outsider, por não ter recebido as influências básicas que o
direcionassem às trajetórias mais simples para o alcance de status e sucesso. O fotógrafo não
teve uma herança genealógica que lhe favorecesse a inserção num espaço privilegiado. Nesse
aspecto podemos entender que ele é “alguém de fora”, suas origens escapam aos principais
habitus que a sociedade respalda para os acessos ao prestígio e ao triunfo em seu campo de
atuação. Não havia nas bases desse fotógrafo capital econômico ou cultural que o introduzisse
diante dos grupos específicos capazes de favorecer a fortuna. De fato eram poucas as chances
desse indivíduo se afirmar em seu campo de atuação profissional, mas como um outsider ele
conseguiu implantar-se.
Grande parte dos fotógrafos do período em que Canindé Soares iniciou sua carreira veio
de grupos economicamente privilegiados, podemos entendê-los enquanto estabelecidos, com
acesso a capitais direcionados à fotografia e o seu meio. A condição de Canindé foi construída
por intermédio de sua vivência na capital do Estado. A mudança para a cidade fez com que os
estímulos absorvidos o impulsionassem para uma trajetória de determinação, de construção de
possibilidades e de libertação de uma realidade anterior. O choque que a cidade proporcionou
lhe muniu de um arsenal de atitudes que o conduziram a realização de um campo, em que
preferiu o embate, à omissão; o movimento a resignação. No que tange ao modo que coloca
Sevcenko (1992), o choque é o grande elemento da modernidade, da cidade grande, porque a
cidade traz surpresas, choca, causa medo, proporciona ao indivíduo a certeza de que tudo é
incerto. Tudo parece transitório, um olhar nas grandes cidades não se fixa, porque tudo está
sendo transformado. A paisagem está mudando a todo tempo e com as transformações surgem
às novas possibilidades.
A cidade de Natal é a contraposição à casa natal, um choque com o objeto, com a
construção residencial por décadas intacta. Na cidade as pessoas transitam, os carros
desaparecem, as construções mudam a cada momento. Cenário em que Canindé foi colocado
em situação de instabilidade profunda comparada ao período anterior. Esse repórter fotográfico
vivenciou em sua infância o desenraizamento, a percepção de um mundo instável. A mudança
é uma das maiores lembranças de Canindé: “Parece que eu não tenho memória, eu tenho uma
vaga lembrança, minha memória é muito curta [...], o que eu lembro na verdade é que nós
74
mudamos muito e na segunda ou terceira morada nossa casa era em frente ao campo de
futebol”68. O estado de mudança o faz ansiar e favorece a reconstrução dos fatos.
Desse modo nosso profissional, Canindé vivenciou um estado de êxtase (SEVCENKO,
1992), que foi ordenando novos valores percebidos através das experiências e dos novos saberes
adquiridos na prática cotidiana e nas instituições. Nesses espaços, esse fotógrafo buscou o início
do processo formativo com os cursos do Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial
(SENAC), no Bairro da Cidade Alta em Natal, que tem como objetivo capacitar e conectar as
pessoas para atender as demandas exigidas pelo mundo do trabalho.
Logo, começou o percurso do trabalho, não mais acompanhado pelo pai. Os seus novos
trajetos lhe conferiram autonomia, contatos e lhe transformou em cidadão potiguar, natalense,
carioca, nacional e global. Canindé teve acesso às práticas fotográficas nesses ambientes, ao
passo que o registro visual começou a marcar as suas atividades, acompanhando-o. Os assuntos
sobre a fotografia, como observaremos, de algum modo, sempre estiveram relacionados a um
forte componente pessoal. Passou a documentar uma realidade que construiu em seu cotidiano
como possibilidade de ampliação de horizontes.
Era o ano de 1977, e o jovem Canindé estava com 17 anos de idade. No bairro do
Alecrim, zona central da capital, ele conseguiu o primeiro emprego, sendo uma espécie de
vigilante e zelador em uma loja de carros. Organizava os automóveis e, após o horário de
trabalho, tinha o seu tempo livre, conseguindo assim interagir com a vizinhança, com os
transeuntes. Nesse momento, lhe chamou a atenção um indivíduo que sempre passava em frente
à loja de carros com uma caixinha na mão. Sem demora Canindé descobriu que se tratava de
fotografias. Nos relatos desse repórter fotográfico aquelas fotografias lhe causavam muita
curiosidade, ele não entendia muito bem o que eram as imagens, mas procurou saber o que
significava. Também, sem ter muitas informações, o rapaz que trabalhava na entrega dessas
fotografias apenas comentou que entregava “fotos” para um estúdio que ficava em um bairro
próximo. Canindé não sabia o porquê, porém, sentiu muita vontade de entregar aquelas
fotografias.
A empresa ao qual o rapaz se referia era o Studio fotográfico BlowUp69, com edifício na
Rua Ulisses Caldas, no Bairro da Cidade Alta para aonde o comércio elitista de Natal que antes
68 Informações coletadas na entrevista realizada com Canindé Soares no dia 28 de março de 2017 para fins de
desenvolvimento desta Tese.
69 Informação apresentada por Canindé Soares em entrevista realizada com o fotógrafo para a disciplina de
Comunicação e Artes Visuais do curso de Comunicação Social da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
Publicada em 27 de maio de 201 no canal YouTube. Disponível em:
. Acesso em 28 de dez. 2016.
75
situava-se no bairro da Ribeira já havia migrado tendo como ponto principal a Avenida Rio
Branco, cortada por ruas de grande importância, como a própria Ulisses Caldas. De acordo com
o entregador de “fotos” pertencia ao filho do fotógrafo Jaeci70 - como visto um dos mais
atuantes e influentes fotógrafos do estado. O empreendimento era uma sociedade entre três
jovens fotógrafos: Fred Galvão – filho de Jaeci Galvão, Lauro Maranhão e Rildécio Medeiros
– jornalista conhecido em Natal/RN. Jaeci Galvão com sua situação econômica abastada era
proprietário de uma grande loja na Avenida Rio Branco, referência estadual em materiais
fotográficos e cinematográficos o que facilitava, sobremaneira, o acesso dos jovens
empreendedores aos materiais mais sofisticados. Foi nesse estúdio com o filho de um dos nomes
mais conhecidos da fotografia natalense do século XX, o qual Canindé carinhosamente chama
de “Mestre Jaeci”, que o jovem se aproximou do seu objeto de trabalho.
Ao conseguir seu intento de trabalhar nesse Studio, Canindé passou a observar os sócios
em atuação. Esse fotógrafo recorda que eles entravam em um ambiente fechado para fazer as
fotografias de dimensão 3x4. Em sua concepção, o que via parecia ser improvável. Perguntava-
se: “Meu deus o que esses ‘caras’ fazem lá dentro, vão para lá, se escondem e quando voltam,
voltam com essas fotografias, lá dentro é tão escuro” (informação verbal, 2017)71. Essas eram
as impressões da mente entusiasmada de Canindé Soares. Ele acreditou por algum tempo que
nesse tipo de processo existia um tipo de magia. Nas palavras de Soares: “E essas perguntas
são perguntas de menino, era uma curiosidade, pôxa eu ficava muito curioso, eu achava que
aquilo ali era uma mágica” (informação verbal, 2017)72. Quanto mais aumentava a sua
curiosidade, mas se aproximava da sala que acreditava mágica. Porém, os sócios não deixavam
que ninguém ultrapassasse a porta da câmara escura. Vê-los trabalhar era improvável,
conservavam todo o cuidado sobre aquele processo, ainda misterioso para o adolescente.
Na época já havia um número maior de fotógrafos atuando no Estado. Antes, a técnica
se encontrava nas mãos de 5 ou 6 profissionais73, nos finais da década de 1970 a fotografia
circulava nas mãos de centenas, embora fosse um número considerado reduzido. Havia, ainda,
o receio entre os sócios que cada vez mais o modo do fazer fotográfico se expandisse. O que
lhes aumentaria a concorrência e, provavelmente, lhes podariam alguns privilégios em termos
de atuação no mercado.
70 Para mais informação sobre o fotógrafo e o período ver: MARQUES, Sylvana. Centelhas de uma cidade
turística nos cartões-postais de Jaeci Galvão (1940-1980). 2012. 194f. Dissertação (Mestrado em Turismo,
desenvolvimento e Gestão). Universidade Federal do Rio Grande do Norte, 2012.
71 Entrevista concedida por Canindé Soares em 28 de março de 2017, para fins de desenvolvimento desta Tese.
72 Idem.
73 Para mais informações sobre esse campo profissional no período citado ver: Silva (2012).
76
O Studio BlowUp atendia a uma demanda significativa de trabalho e Canindé era
responsável pela entrega das fotografias das colações de grau da UFRN que esses fotógrafos
cobriam. Eram imagens em Preto e Branco e em tamanho de 18 por 24 cm. Como geralmente
acontece, quanto mais podavam a aproximação do adolescente daquele espaço, mais o estímulo
em descobrir o que acontecia por trás daquela porta aumentava. A atividade de observar nesse
local o envolvimento dos donos com a fotografia despertou a vontade de Canindé Soares em
explorar esse segmento.
Contudo, não era apenas a fotografia que Canindé observava, os jovens donos do
laboratório pertenciam a um grupo social privilegiado na capital natalense, eram filhos de
indivíduos conhecidos e respeitados, estudaram nos colégios tradicionais. O próprio Fred
Galvão, por intermédio do pai, tinha uma rede ampla de amigos. Os sócios frequentavam o Iate
Clube de Natal, do qual o pai do Fred Galvão era Comodoro; ainda era sócio do aeroclube, dono
de aeromodelo; conhecido por sua coleção de carros de luxo, recebia em sua casa, localizada
em um dos pontos mais nobre da capital, artistas que despontavam na cidade do Rio de Janeiro.
Desse modo, os jovens empresários tinham acesso, através de familiares e de relacionamentos
próximos, a vários capitais valorizados na nossa sociedade. O campo em que estavam inseridos
os seus grupos sociais de convívio, as relações profissionais e os seus habitus contribuíram para
o destaque profissional e social da equipe e vice-versa.
Isso tudo não passava despercebido pela mente ativa de Canindé Soares, o jovem
menino que saiu do interior e que chegou à capital se deparando com distintos estímulos
frequentes em uma capital em seu período de transformação, de apropriação frenética de
símbolos modernos. A apropriação de diversos tipos de máquinas, a explosão de novos
fenômenos sociais, diversas conquistas mecânicas, novos modos de sociabilidade causavam
ebulição no imaginário de um rapaz, que na atualidade se descreve como extremamente tímido.
Natal em seu processo de transformação expandia as possibilidades de acessos a capitais
valorizados. Nas palavras de Sevcenko (1992) há uma esfinge moderna que também amaldiçoa
os que não são capazes de decifrá-la e, muito embora, sua pluralidade desconcertante e
metamórfica exija a fixidez de qualquer forma explicativa existe um confronto entre o mundo
que se acreditava fixo em suas classes e ambiências e essa nova lógica que acaba por
desmanchar a fixidez: é a ebulição das referências. Percebê-las, mesmo sem racionalizá-las é
um modo de decifrar e se situar, como foi fazendo Canindé Soares e a partir daí demarcando
modelos existenciais, referenciais, sociais e estéticos.
Nesse sentido, Canindé decidiu buscar conhecimento para poder também atuar como
fotógrafo. No início, sem o apoio no seu ambiente de trabalho, contou com o auxílio de uma
77
amiga, a moça possuía uma Câmera Kodak com lente fixa e Flash embutido de estilo
considerado muito simples e popular. Ela utilizava um filme negativo conhecido como 127mm,
formato que começou a circular em 1912, através da Kodak. Na década de 1950 teve o seu auge
por ser utilizado em câmaras baratas e de pequenos portes, por ser pouco comum no estado o
filme não era de fácil acesso. Perdeu muito espaço entre as décadas de 1960 e 1970 quando a
Kodak lançou uma linha de máquinas denominadas Instamatic, o que contribuiu para o aumento
da popularidade dos modelos para amadores. O modelo vendeu mais de 50 milhões de câmeras
até 1970, exigiam poucos procedimentos, eram câmaras viewfinder74em que o único ajuste
necessário para o uso é girar o anel em torno da lente para definir Sol ou Nublado/Flash. Sobre
o filme de 127 mm tinha como restrição, se usado em formatos tradicionais, rende apenas umas
12 fotos em formato 4×4, 8 fotos em 4×6 e 16 fotos em 4×3. Com a chegada dos filmes de 126
mm e de 120mm, o de 127 praticamente ficou obsoleto.
Ainda trabalhando no estúdio fotográfico citado, com um dos seus salários Canindé
comprou a sua primeira máquina fotográfica era uma Kodak da linha Instamatic, conhecida
como Kodak Xereta, câmara de bolso, com filme de 120mm. A fotografia mesmo tendo
aparecido por acidente o livrou da rotina de ser um operário ou um trabalhador de outro
segmento com um cotidiano rotineiro e massivo. E em função da constante negociação do qual
tinha que tratar com o seu meio social, Canindé decidiu correr em busca de conhecimento para
poder atuar como fotógrafo:
Aquele mundo da fotografia era o mundo misterioso e me fascinava, mas na realidade
o que eu busquei nesse mundo foi uma forma de sobrevivência esse é verdade eu
comecei a fotografar crianças filhos de vizinhas não teve ninguém pra me ensinar não
teve ninguém pra me dar a mão, esse início foi um caminho sozinho, sozinho mesmo
(informação verbal, 2017).75
O início de sua trajetória profissional, conforme o relato apresentado, não foi fácil.
Existiam dificuldades de deslocamento, dinheiro escasso, clientela restrita, além de um grande
obstáculo que ainda se impunha na época na capital do Rio Grande do Norte: a ausência de
informações sobre a técnica fotográfica. Para superar essa barreira Canindé Soares recorria à
revista chamada Iris Foto76, entretanto em distintos momentos não teve condições de
comprá-la, mesmo sendo uma publicação mensal. Não existiam cursos no período, nem
74 Tipo de visor ótico que apresenta o objeto que será fotografado, presente nas câmaras analógicas e nas atuais
SLR digitais.
75 Entrevista concedida por Canindé Soares em 28 de março de 2017 para fins de desenvolvimento desta Tese.
76 A revista Iris foto foi uma publicação brasileira especializada no cenário das fotografias‚ a mais antiga revista
do seguimento, ultrapassando as cinco décadas de sua real existência entre 1947 e 1999.
78
existia um meio que fosse acessível à população geral para captar informações a respeito
do tema. Uma viabilidade encontrada pelo repórter fotográfico a fim de ampliar seus
conhecimentos, ainda restritos, foi a matrícula em um curso de fotografia por
correspondência. Existiam dois cursos oferecido pelo Instituto Universal Brasileiro (IUB)
e pelas Escolas Associadas. Como o custo do curso nas Escolas Associadas era mais
acessível, foi o que Canindé escolheu, embora não houvesse condições para finalizar esse
estudo.
Eu posso falar que o meu grande mestre foi o curso que eu fiz é por correspondência
nas escolas associadas que era um curso mais barato que pertence ao Instituto
Universal brasileiro, ele foi o meu grande mestre e quando eu podia a minha referência
era a Iris foto. A revista íris foto era realmente uma grande referência na fotografia,
era uma revista mensal e quando eu podia eu comprava, mas, não era todo mês que
eu podia comprar a revista. Ela tinha sempre muitos artigos do Clício Barroso,
fotógrafo bem conhecido (informação verbal, 2017).77
No final da década de 1970, como já colocado de modo resumido, nos maiores
centros econômicos do Brasil haviam grupos de pessoas empolgadas em apreender a
técnica para o uso da câmara fotográfica, amadores e profissionais. O processo de
revelação já estava bem mais divulgado e mais acessível do que nas primeiras décadas
desse século, em que somente pequenos grupos de alto poder aquisitivo podiam aproveitar-
se do engenho. O cenário já não era tão limitador, ferramentas do universo fotográfico
eram encontradas com certa facilidade nas maiores cidades do país. Contudo, é preciso
acentuar que o uso do equipamento fotográfico ainda exigia investimentos elevados e os
usuários que estavam distantes dos grandes centros continuavam esbarrando em problemas
de ordem material. Essas eram dificuldades que só podiam ser superadas de modo mais
prático por quem detinha o capital financeiro. O nível econômico de Canindé era uma
grande barreira. A referência a esse contexto é acompanhada de questões que demonstram
as dificuldades a serem ultrapassadas:
O curso por correspondência eu não cheguei a concluir, não tive condições de
terminar, paralelo a isso a fotografia era muito cara, os equipamentos, também,
não são diferentes de hoje que ainda continuam caros, mas, você imagina uma
pessoa de origem humilde comprar uma câmara fotográfica? Não tinha a mínima
condição. Na época nem condições de comprar uma bicicleta para me deslocar
77 Entrevista concedida por Canindé Soares em 28 de março de 2017 para fins de desenvolvimento desta Tese.
Sobre o Profissional Clício Barros, atualmente é professor de Tecnologia; consultor da empresa Adobe; consultor
do SENAC/SP; presidente da Associação de Fotógrafos Fototech; colunista da revista PhotoMagazine e
colaborador das revistas Fotografe, Fhox, Desktop, Publish, e da Photos& Imagens. Nascido em São Paulo é filho
e irmão de publicitários, a fotografia, entrou cedo em sua vida. Ainda, morou e trabalhou em New York, São Paulo,
Rio de Janeiro, Salvador, Madrid, Lisboa e Atenas, fotografando editoriais de moda e publicidade.
79
com maior facilidade eu tinha, anos depois quando comprei uma foi uma
realização (informação verbal, 2015)78.
Os seus primeiros clientes viviam, assim como ele, na periferia. Apesar da situação
econômica restrita esses moradores se organizavam para poder estruturar eventos
comemorativos socialmente importantes como aniversários, casamentos ou mesmo os
batizados, os registros eram feitos de modo limitado, muitos só podiam pagar por duas ou
três fotografias em Preto e Branco com tamanho convencional e reduzido de 10×15 cm.
A divulgação inicial do seu material fotográfico se deu da seguinte forma: o autor
organizava em um pequeno álbum distribuído pelo estúdio Kodak suas melhores
fotografias e com esse material em mãos divulgava-o a cada amigo ou familiar que
encontrasse. Era um processo lento, visto que para mostrar seu trabalho necessitava chegar
a cada pessoa por vez:
A minha primeira câmera mais sofisticada foi uma semiprofissional, não era
profissional até porque ela não trocava de lente, foi uma máquina que eu consegui
trocando com amigo... Ela tava até quebrada, mas ela funcionava. E eu fui sozinho
fazer as minhas fotos com ela, mas só funcionava durante o dia. Só funcionava durante
o dia porque não tinha o flash (risos). Aí depois eu comprei uma Cânon, uma
profissional que se chamava FTB. Essa cânon FTB parecia um trator toda de ferro. A
FTB era totalmente mecânica, toda manual. Aí eu já estava trabalhando mesmo com
a fotografia. Lembro que eu me preocupava muito com exposição e essa tinha um
fotômetro mecânico, nossa eu me preocupava muito com a exposição, essa meia luz,
eu já sabia a exposição correta, a velocidade...A coisa começou com essa câmara aí e
se você pensa que existiu ajuda, não teve quase nada, muitas pessoas não sabiam ou
não passavam, não é como hoje. Nada eu fui sozinho mesmo! Eu fui descobrindo o
caminho das pedras, um caminho solitário e sem condições financeiras (informação
verbal, 2017)79.
Depois dos complicados passos iniciais, que o profissional afirma que não gosta nem de
lembrar, assumiu definitivamente o compromisso de pendurar a câmara fotográfica em seu
pescoço e conduzi-la em seu percurso de vida com a profissão de fotógrafo. A vontade de ver
suas imagens publicadas era tamanha que uniu seus recursos e criou um jornal impresso em
folha de ofício onde construía um texto e registrava as imagens necessárias para acompanhar o
discurso escolhido; as fotografias reveladas em preto e branco eram coladas na folha, após
reproduzia esse material por meio de fotocopiadoras e os distribuía.
A minha vontade de aprender as fotografias era tão grande que eu fiz um jornal, eu já
te falei, também, sobre isso eu fiz um jornal. Sobre esse jornal eu datilografava matéria
78 Entrevista cedida por Canindé Soares para esta pesquisa em 18 de novembro de 2015. Encontro realizado no
bistrô Douce France, localizado na Avenida Afonso Pena, 628, Bairro Petrópolis, Natal/RN.
79 Entrevista concedida por Canindé Soares em 28 de março de 2017 para fins de desenvolvimento desta Tese.
80
numa foto ia para o quartinho, que era um banheiro onde eu revelava a foto, depois
colava na folha, reproduzia e distribuía. Pode acreditar nessa época tudo o que eu tinha
era somente à vontade. Depois junto com amigos fui criar um jornal, eu acho que o
nome do jornal era O Foco (informação verbal, 2017)80.
Essa luta pela posição social pode ser compreendida como o quadro das pressões sociais
que agem sobre os outsiders, fazendo com que sua existência se atrele a manutenção de algum
tipo de posto na rede das instituições de interesse ou em suas ramificações (ELIAS, 1995, p.
23). No início da década de 1990, Canindé Soares em parceria com o jornalista e amigo
fotógrafo Fernando Pereira81 e o amigo Adrovando Claro82decidiu criar o jornal de fotografia
intitulado “O Foco”, o qual circulou impresso no período de 1992 a 1997.
Figura 6- Jornal O Foco “A Realidade da Zona Norte”, Nº 0383
Fonte: Acervo particular de Canindé Soares (1992).
Na década de 1990, Canindé teve dois encontros promissores, primeiro com o
computador e logo com o fotógrafo Clício Barroso em São Paulo, em um evento dedicado a
fotografia. Após esse evento, os profissionais estreitaram os laços por meio de um grupo de
discussão construído via e-mail. A partir desses diálogos Canindé decidiu criar eventos em
Natal direcionados a técnica e aos usos da fotografia. Se em um primeiro momento lhe foi
negado os acessos ao conhecimento do universo fotográfico por indivíduos imersos no campo,
ele decidiu que deveria compartilhar esse conhecimento possibilitando as pessoas que
80 Idem.
81 Fernando Pereira é um respeitado fotógrafo em Natal, onde atua a mais de 40 anos, natural da cidade de Santo
Antônio de Pádua (RJ), acumula mais de 20 premiações no segmento fotográfico em âmbito local, nacional e
internacional. Hoje é jornalista da hemeroteca.
82Adrovando Claro é fotógrafo e formado em artes pela UFRN e atua como educador nessa disciplina. Ajudou a
fundar e deu colaborações a jornais do estado. Em 1999, recebeu menção honrosa no II Salão Nacional de
Fotografia de Sorocaba (SP), primeiro lugar no concurso “Um Olhar Sobre a Gente de Natal” (fotos publicadas)
em comemoração aos 400 anos de Natal (RN) e o terceiro lugar no II Prêmio Euzébio Rocha do Sindpetro/RN.
Teve fotos publicadas em revistas, jornais e livros de circulação nacional e internacional. Suas fotos estão
publicadas em diversos jornais, revistas, calendários e livros no Rio Grande do Norte.
83 Fotografia de autoria de Fernando Pereira, Canindé Soares e Adrovando Claro (1992).
81
quisessem uma diretriz mais pontual ao mundo da fotografia. Dessa forma, para falar sobre
fotografias aos que se interessavam Canindé Soares convidou Clício Barroso. Nas palavras de
Canindé Soares:
Ah, tiveram muitos cursos bacanas, cursos de moda, cursos de software, cursos do
Adobe Photoshop. O cliente sempre vinha prestigiar. Hoje o Clício é um grande nome,
ele é um consultor da Adobe no Brasil, né? É a empresa que criou Photoshop e o light
room. Nessa época eu procurava fazer muita coisa queria aprender a montar esse
laboratório, inventava esses cursos e foi justamente na invenção, inventando esses
cursos e dando aula, me disponibilizando para ensinar que eu aprendi. Foi assim que
eu fui aprendendo e com tempo eu fui aperfeiçoando a minha fotografia. Com isso de
ensinar eu aprendi muito. Teve ainda uma que eu fui convidado a dar um curso de
fotografia no Sesc e eu lembro que eu não sabia nada. Eu não entendia nada tudo que
eu tinha era só à vontade eu me tremia para falar para as pessoas, imagina eu ficava
tremendo para falar só para 34 pessoas, mas eu fui lá e formei uma turma, montava
turmas novas e logo montei o meu laboratório preto e branco. Lembro que eu fiz um
evento aqui tão bacana que eu chamei de A Maratona, era naquela época do filme de
36 poses. Nós dividimos esse evento em cinco pautas e as pautas eram assim: 10
minutos fotografando aqui, usando tantos fotogramas, depois já íamos para outro
lugar; tudo era cronometrado. Olha, veio gente de Recife, de João Pessoa, veio muita
gente participar desse evento. Foi algo tão bacana que eu elaborei sozinho, pensei isso
na minha cabeça, corri atrás e deu certo. 150 pessoas vieram participar desse evento
(informação verbal, 2017)84.
Desse modo, na época Canindé seguiu atuando com na dupla jornalismo e fotografia. O
primeiro jornal em que trabalhou foi na década de 1990 denominado “A Ponte: a realidade da
Zona Norte”, foi um meio de comunicação que circulou entre os anos de 1992 e 1994, criado
por Walter Medeiros e outros jornalistas. A mídia alternativa priorizava as notícias da Zona
Norte de Natal, tinha um caráter crítico e visava defender os moradores locais dos abusos do
poder público. A primeira fotografia feita por Canindé para o jornal trouxe coincidentemente a
imagem da ponte para o Jornal A Ponte:
84 Entrevista concedida por Canindé Soares em 28 de março de 2017 para fins de desenvolvimento desta Tese.
82
Figura 7- Jornal A Ponte: A Realidade da Zona Norte, Nº 0385
Fonte: Acervo Particular de Eduardo Alexandre Garcia (1992)86
Em sequência Canindé foi trabalhar na “Gazeta da Praia Bela”, jornal que circulava
em Pirangi. Posteriormente, seguiu com o editor Marcos Aurélio de Sá para o jornal Dois
Pontos: os dois lados da notícia, periódico semanal que circulou nas décadas de 1980 e 1990.
Paralelamente, Canindé começou a cobrir pautas para a revista “RN Econômico”, do mesmo
editor, nesse jornal atuou por 3 anos.
Com incentivo de Ozair Vasconcelos no ano de 1995, esse fotógrafo iniciou o trabalho
na “Tribuna do Norte”, nesse jornal foi fotógrafo e editor de imagem, atuando no período
de 1995 a 1999. Foi o único meio de comunicação que Canindé Soares trabalhou de modo
formal. Além disso, teve suas fotografias nas páginas de praticamente todas as publicações
impressas do Estado do Rio Grande do Norte, se destacando como um dos únicos
fotógrafos freelancer que mais publicou fotografias nas primeiras páginas dos principais
jornais do Estado.
Como o próprio profissional relata o momento é mais conforto profissional. O
percurso o permitiu chegar a uma demanda significativa de trabalhos, propostas e contratos
que lhe dá as condições de escolher aonde, com quem e em que atuar com a sua fotografia.
Como veremos no próximo tópico.
2.3 VISÕES DO MUNDO ARTÍSTICO E PROFISSIONAL
85 Foto de Foto de Canindé Soares, publicada na edição do jornal de Nº 03, maio de 1992.
86 Para ver a página inicial do jornal “A Ponte: a realidade da Zona Norte”, vide Anexo C.
83
2.3.1 O caminho profissional
Figura 8- Canindé na Sangria do Gargalheira87
Fonte: Acervo particular de Deborah Kaline (2007).
As questões práticas da vida levaram Canindé Soares a percorrer o mundo da fotografia.
Todavia, esse direcionamento deslocava-se das profissões familiares. O menino que saiu do
interior do Estado não se interessou em reproduzir a profissão do avô paterno e nem do pai.
Queria fugir do labor comum, da rotina diária de um trabalho monótono, da repetição das
mesmas tarefas. Não queria os trabalhos fabris que começavam a aparecer em Natal, nem as
viabilidades de atuação no comércio, nem os empregos públicos médios atraiam o jovem. Essa
é a direção provável oferecida pela sociedade industrial, principalmente, quando se trata de
pensar as atividades laborais das classes menos abastadas e as tarefas que os trabalhadores têm
que cumprir socialmente.
Para Marx (1998)88 as maquinações que se davam no sistema capitalista de produção
acabavam por colocar o cidadão comum diante de uma realidade que o submete a cumprir um
papel alienante e repetitivo como sustentáculo da ordem social na linha de montagem. Esse
seria o tipo de atividade realizada pelo trabalhador que habita o espaço fabril – tipo de trabalho
surgido com a sociedade burguesa e emergência das grandes indústrias –, que diante do tempo
cronometrado, de uma jornada fixa vai adaptando peças por peças a partir de reproduções
87 Fotografia de autoria de Déborah Kaline, no ano de 2007, durante o processo de sangria do açude gargalheira.
88MARX, Karl e ENGELS, Friedrich.Manifesto Comunista. São Paulo: Boitempo, 1998.
84
contínuas de um mesmo movimento. É a sujeição do operário ao capital. Nas inquietações de
Canindé se traduz a explanação colocada por Marx:
Na adolescência eu ficava imaginando como seria trabalhar trinta anos em uma
rotina diária, em qualquer segmento, em qualquer trabalho, eu não entendia e de
certa forma eu não queria aceitar trabalhar nessa rotina. Então, com certeza eu
tinha que encontrar algo que me tirasse dessa rotina, que me fizesse inovar. A
fotografia eu encontrei por acidente e, graças a deus, é com essa profissão que
eu me realizo. Foi essa profissão que fez eu me livrar dessa rotina de ser um
operário ou um trabalhador. Mesmo numa profissão de sucesso, talvez; mas eu
não seria feliz por ter que cumprir essa rotina de trabalho de média de trinta anos
como é preciso, e hoje eu já trabalho com a fotografia a mais de 35 anos e não
estou preocupado em me aposentar porque é um trabalho prazeroso (informação
verbal, 2017)89.
O conjunto de imagens, as experiências vividas na infância e adolescência foram
marcando a visão social do profissional, transformando as contingências; alterando uma
vida que se inicia assinalada pela vigilância, pelo controle moral, religioso e masculino e
pelo trabalho infantil. Porém, também, pelos espaços de fuga como o oferecido pela figura
materna. A cidade lançou-lhe diante dos novos caminhos para a manutenção da
sobrevivência, chance de ascensão social e construção de “certa” liberdade de atuação com
a fotografia.
A abertura e as promessas que a cidade pode vir a oferecer não são simples. Trata-
se de ambientes inseguros e conflitivos a serem explorados e Canindé inseriu-se nesses
espaços, primeiro nas zonas periféricas conquistando confiança e treinando sua atuação
nos espaços próximos a sua residência. O que lhe deu segurança necessária para ultrapassar
obstáculos e promover sua inserção nos setores intermediários da sociedade.
Quando esse fotógrafo iniciou sua jornada profissional era um cenário que quem
quisesse atuar deveria antes de tudo ter um laboratório. Com o seu laboratório pronto foi
entrando no mercado P&B que já não chamava mais tanto a atenção do consumidor que
preferia ver suas imagens reveladas em cores. Para o acesso às fotografias coloridas o
caminho era a cidade do Rio de Janeiro e de São Paulo, o que encarecia o produto e reduzia
o público de clientes.
No campo do fotojornalismo onde os acontecimentos são prospectados e os
profissionais agendados para a construção de pautas performáticas, as dificuldades são
variadas. Vale apontar que quando o profissional saía da redação a fim de cobrir uma pauta,
possuía, na maioria das vezes, somente a vaga noção do que a fotografia deveria revelar
89 Entrevista concedida por Canindé Soares em 28 de março de 2017 para fins de desenvolvimento desta Tese.
85
para se transformar na história que deveria contar. Ou seja, transformar-se em foto-notícia.
Aconteciam, também, as fotografias inesperadas, em situação inusitada, o que repercute de
modo substancial na agenda da redação. “Sobre a foto-notícia constitui-se em um artefato
elaborado por meio de mecanismos pessoais sociais, ideológicos, históricos, culturais e
tecnológicos” (SOUZA, 1998, p.22-23). No campo do foto jornalismo as convenções
sociais, as ideologias hegemônicas favorecem que seja dado significado social a
determinados acontecimentos, em detrimento de outros, promovendo, por consequência,
específicos eventos (e não outros) à categoria de foto-notícia.
Segundo os parâmetros do fotojornalismo, uma boa fotografia é aquela que une a
informação e a plasticidade. Mais do que em qualquer outro meio de comunicação a
imagem deve informar algo como se fosse um documento comprobatório do fato. Nesse
cenário, o profissional com um conhecimento limitado do que encontraria e com os limites
impostos pelo manuseio da câmara analógica; desde a apreensão da técnica até o elevado
custo do material envolvido, existiam poucos meios para captar uma imagem, o que
significava que não poderia perder o foco. Só no retorno a redação, saberia se sua imagem
poderia ser aproveitada.
Nas palavras de Canindé Soares:
Esse era um processo antiquado e sofrido, eu não quero nem lembrar esse
processo analógico. Muitas vezes eu questionava: como é que já com toda a
tecnologia que existe ainda não inventaram um processo de revelação que fosse
mais ágil, mais prático e mais moderno? (informação verbal, 2017)90.
Mesmo nos locais onde as tecnologias circulavam com mais facilidade existia a
dificuldade no manuseio dos equipamentos fotográficos, as câmaras que dominaram o
mercado entre as décadas de 1970 até aproximadamente a década de 1990, envolviam
processos em que o controle de erros ainda era distante:
Se você pedisse aos especialistas dos laboratórios fotográficos líderes de
mercado para listar os problemas mais comumente encontrados nas fotos de
clientes, eles rapidamente responderiam: exposição imprópria, enquadramento
ruim e erro de foco. Sistemas automáticos conseguem agora dar conta do cálculo
da exposição fotográfica para várias pessoas. O enquadramento ainda precisa
estar na cabeça do fotógrafo. E, até recentemente, este também era o caso com a
escolha do foco, mas agora, sofisticados sistemas eletrônicos estão começando a
colocar um fim nisso (JACOBS, 1980).
90 Idem.
86
Já no período que se estende por praticamente toda a década de 1980, mais
precisamente de 1981 até 1987 – quatro anos depois de ter iniciado no Studio Blow up –
Canindé esteve em missão militar na cidade do Rio de Janeiro e não abandonou a câmara
nesse percurso; aproveitou o momento no Rio de Janeiro para ampliar seus conhecimentos
e treinava fotografando os colegas militares.
Quando eu fui ser militar eu já levei a câmera do lado e antes de ser militar eu já
fotografava os militares comercialmente, eu comecei inicialmente vendendo as fotos,
foi uma continuação de um trabalho que eu já tinha iniciado, não era a fotografia
documental era um registro para sobreviver eu precisava vender a foto, era uma
profissão, a fotografia era um produto para eu poder conquistar alguma coisa
(informação verbal, 2017)91.
As dificuldades encontradas e a necessidade de superá-las foi dando a esse
profissional senso de justiça e de solidariedade com os profissionais que, assim como ele,
se sentiam a margem do processo diante das dificuldades encontradas. Canindé
praticamente começou a atuar na distribuição de informações no campo da fotografia em
Natal; organizava eventos relacionados à disseminação do processo da fotografia, formava
grupos de estudos, dava palestras em instituições como SENAC, estabelecia contato com
os que podiam e desejavam, também, compartilhar o conhecimento. Foi assim ampliando
o seu campo de atuação que começou a ser conhecido e a formar suas redes de contato,
ganhando simpatizantes, chegando, inclusive, a presidir o Sindicato dos Fotógrafos.
Conviveu com o período de transição da fotografia do universo analógico ao digital.
Em 2001, comprou a sua primeira câmara digital, uma máquina usada com 3.1 Mega Pixels,
a D30 da empresa Cânon. A inserção da fotografia no universo das tecnologias digitais
para Canindé Soares se constituiu na libertação das amarras que envolviam o fazer
fotográfico: “a digital foi o sonho da minha vida toda” (informação verbal, 2010) 92. O
equipamento fotográfico transformou-se em uma máquina sensora capaz de receber e
processar informações, a complexidade aumentou em termos de sofisticação técnica, de
outro modo, facilitou o manuseio do operador.
A fotografia digital chegou para uma realização mais pratica e rápida, ela está
em nossas mãos, e com a internet temos tudo o que precisamos, é tudo que o
profissional da fotojornalismo precisa. E em termos de qualidade para comparar
com o filme, a partir do ponto de vista do suporte eu acho que a qualidade
ultrapassou. O filme em si é uma imagem real com perfeição máxima. Mas,
91 Idem.
92 Entrevista concedida por Canindé Soares para o Jornal “Nominuto”, com a repórter Isabela Santos, em 11 de
julho de 2010. Disponível em: .Acesso em: 11 de nov. 2017.
87
quando você passa para o suporte você consegue absorver toda essa qualidade do
filme? Da sua transparência? Já com a digital, com o processo de manipulação,
do tratamento, você consegue um resultado muito maior. Essa versatilidade é a
grande importância do digital. O que com a fotografia convencional, o filme não
permitia (informação verbal, 2017)93.
As chances circunscritas pelas novas relações sociais organizadas a partir da
sociedade em rede94 se expressaram ao profissional na comprovada popularização da
técnica; no método de captura; processamento e transmissão dos dados que pode se
concentrar em distintas mãos. Canindé não vê a excessiva ampliação da técnica como um
problema de estrutura para os que trabalham com esse meio, não dá ênfase aos debates
contrários ao acesso mais amplo da fotografia, aos que julgam ameaçadora a
democratização da técnica a partir das tecnologias. O que se percebe é que para ele rompeu-
se um período rodeado de barreiras e dificuldades. Iniciou-se uma fase de expansão, de
superação das antigas e restritas formas de uso e acesso à fotografia, de dilatação das
chances das pessoas apreenderem o fazer fotográfico, de diferentes grupos e classes
econômicas passarem a ter acesso ao universo da fotografia. A internet, nesse ínterim,
facilita a inclusão e a mobilidade.
Quando eu comecei eu tinha que fazer um álbum para mostrar as fotos aos
clientes, fazia um albunzinho da Kodak com as melhores fotos e saia mostrando
aos amigos e para mostrar a um maior número de pessoas eu tinha que ralar muito
mais. Hoje você pode chegar a milhões de pessoas com um álbum no Facebook,
com o seu blog ou site, ou através de redes sociais como twitter e você pode
mostrar a um grande número de pessoas em minutos, o que antes não existia, não
se chegava a tantas pessoas com tanta rapidez (informação verbbal, 2017)95.
O fotógrafo presenciou em sua atuação a revolução causada pela introdução dos
meios tecnológicos, a sofisticação e difusão da sociedade informacional e aproveitou para
ampliar ainda mais o seu espaço. Mesmo tendo em conta que a concorrência e a
competitividade nesse ambiente são substanciais, principalmente, pela nova configuração
sociocultural favorecida pela democratização das tecnologias que concernem a esse campo,
sabe que os interessados ainda esbarram em dificuldades, uma vez que além de se capacitar,
deve investir em equipamentos de custos elevados - o corpo de uma câmara profissional
considerada de boa qualidade custa entre 15 a 30 salários mínimos, uma média de 15 a 30
mil reais. No mais, é necessário possuir lentes, entre outros dispositivos capazes de fazer
93 Entrevista concedida por Canindé Soares em 28 de março de 2017 para fins de desenvolvimento desta Tese.
94 Para mais informações sobre o cenário social das redes interativas de computadores ver: Castells (1999).
95 Idem.
88
o corpo da máquina ser operável. Mesmo com as facilidades, esse tipo de aquisição ainda
escapa a realidade de muitos.
Para o fotojornalista os meios de superação dos impedimentos de ordem econômica,
fronteiras que limitam as condições operacionais, estão na interatividade oferecida pela
internet, que amplia o acesso a um mercado de bens simbólicos criando possibilidades de
expansão do conhecimento. O entusiasmo revelado por Canindé fundamenta-se com às
perspectivas apontadas por Pierre Lévy (2009) quando esse autor traça as suas percepções
sobre o boom da interconexão favorecida pelo uso dos computadores com acesso ao
universo virtual.
De acordo com Lévy (2009, p. 15) as ferramentas que interconectam-se em um
espaço virtual favorecendo diferentes trocas constrói um novo tipo de relação social
denominado por ele de cibercultura. “A cibercultura expressa o surgimento de um novo
universo, diferente das formas que vieram antes dele no sentido de que ele se constrói sobre
a indeterminação de um sentido global qualquer”. Essa cultura processa-se por intermédio
das trocas favorecidas no ciberespaço, termo que especifica não apenas a infraestrutura
material da comunicação digital, porém o universo oceânico de informação que ela abriga,
assim como os seres humanos que navegam e alimentam esse universo. Ou seja, é o
conjunto de técnicas (materiais e intelectuais), de práticas, de atitudes, de modos de
pensamento e valores que se desenvolvem juntamente com o crescimento do ciberespaço
(LÉVY, 2009, p. 17).
Esse é o período em que a sociedade ocidental, de modo geral, passa por um
processo de universalização cultural, na medida em que estamos dia-a-dia mais imersos
nas novas relações de comunicação e produção de conhecimento que ela nos oferece. E
para Canindé essa é uma porta que se abre favorecendo a integração no campo através de
contatos, de amizades, de trocas e informações. O mesmo coloca que se a técnica se
expande, se a concorrência aumenta; pode ficar “difícil por um lado, mas fica mais fácil
por outro, uma vez que você tem a internet – que é o mundo em suas mãos”.
A incerteza que vem na esteira das mudanças sociais, do trabalho informal, das
pressões do cotidiano colocou Soares diante de diversidades, mas também, das várias
perspectivas abertas à apreensão do conhecimento que o interessava. Conseguiu converter
sistemas culturais de representação em instrumentos de estratégia: “você tem as redes
sociais e essas são poderosas na questão do relacionamento, de divulgação do seu trabalho,
quando eu comecei isso não existia”.
89
É indiscutível que as tecnologias são favorecedoras de novas formas de acesso à
informação, de novos estilos difusão de informações com um forte caráter socializador.
Todo o evento tecnológico – sobretudo na esfera da comunicação – pelo qual passamos e
vivenciamos no dia-a-dia suas contínuas transformações interfere tanto nas formas de
ouvir, olhar e sentir, como nas relações sociais provenientes delas. Ainda assim, o
otimismo colocado diante dessa revolução proporcionada pela interação favorecida pela
internet é questionado; debate-se sobre as relações construídas com esse novo tipo de
informação. Reflete-se inclusive em relação à expansão real desse acesso, visto que grande
parte da sociedade inserida no atual sistema global está à margem ou tem sido margeada
por essas tecnologias96.
A reconfiguração do cenário social da vida humana que veio em conjunto com a
reestruturação global do sistema de produção capitalista, para o qual o avanço da
tecnologia informacional foi uma ferramenta básica favoreceu ao indivíduo perceber novos
valores e possibilidades de condutas sobre ele mesmo. Nesse cenário as redes interativas
de computadores cresceram exponencialmente criando novas formas e canais de
comunicação, moldando a vida e, ao mesmo tempo, sendo moldadas por ela. As mudanças
ocorridas no âmbito social são tão drásticas quanto os processos de transformação
tecnológica e econômica. As redes sociais globais conectam e desconectam indivíduos,
grupos, regiões e países, em pertinência com objetivos processados em um fluxo de
decisões estratégicas abstratas ou de identidades particularistas historicamente enraizadas
(CASTELLS, 2010).
Contudo, a tecnologia não determina a sociedade e nem a sociedade escreve o curso
da transformação tecnológica, mas a tecnologia acaba incorporando a sociedade que a
utiliza por diferentes fatores que ela agrega. Dentre esses fatores podemos pensar nas
diferentes iniciativas que surgem em rede, distintas criatividades e inovações com
aplicações sociais que terão seu resultado final dependentes de um complexo padrão
interativo. O repórter-fotográfico Canindé Soares, ao incorporar o meio tecnológico, o
traduz em ferramenta estratégica de libertação. De acordo com a matéria publicada no
jornal No Minuto Soares iniciou o processo de divulgação do seu trabalho ainda no ano de
1996, na blogosfera, o primeiro espaço virtual de um fotógrafo profissional no Rio Grande
do Norte. Em um segundo criou o seu site que é alimentado cotidianamente com a
atualização de notícias e divulgação das suas fotografias.
96Sobre as implicações da sociedade informacional e suas consequências sociais, principalmente na questão do
trabalho e das exclusões construídas ver: Schaff (1995).
90
As estratégias utilizadas por Canindé para a inserção em seu campo profissional lhe
garantiram juntamente com seu comportamento humilde a abertura aos espaços
privilegiados. A postura tomada tornou-o carismático, mesmo sendo cada vez mais incisivo
em seu trabalho no que confere a distribuição da sua obra, mantém uma postura humilde e
discreta, o que chega a ser irônico, porque rompe com uma lógica ampla de seu campo que
é a necessidade de visibilidade e do status quo. As vestimentas em cores neutras, o boné
que muitas vezes lhe esconde a face, garante que se camufle para captar variados
ambientes. Em outra linha, seu nome circula com rapidez transformando-o em um
personagem significativo do espaço potiguar. Seu modo de ver, agir, viver e até escolhas
de onde morar lançam questões que remetem a reflexão das perspectivas sociais de uma
cidade que vive em dualidades políticas, valores arraigados e condicionamentos
tradicionais.
Eu não tenho problemas em fazer parceria, mas quando só um lado obtém
vantagens não é parceria, eu tenho pedido de fotos quase diariamente para
alguém utilizar em varias situações. As pessoas me buscam e pedem, me chateia
muito quando alguém me pede, dizendo que vai dar o crédito, como se dar o
crédito fosse uma moeda de troca, uma contrapartida, quando na verdade o
crédito é um direito conquistado e legal, e a maioria das pessoas sabem disso que
e um direito, não e pelo credito que eu estou cedendo, eu estou cedendo minha
foto, mas ela é meu produto de sobrevivência (informação verbal, 2017)97.
Dialeticamente o profissional constrói seu campo ao mesmo tempo em que permite
que se coloque em cheque as relações anteriores. Apresenta toda a sua disposição para
ousar, enfrentar novos segmentos e criar propostas. Assim segue Canindé, com autonomia
e liberdade em ambientes heterogêneos; uma vez que cobre até eventos de grupos políticos
opostos. A conduta plural e aparente no ambiente profissional desaparece em prol de
posicionamentos.
2.3.2 Visões artísticas
Em questões de estética a fotografia de Canindé não se confunde das demais
fotografias, existe uma singular saturação de cores que dá volume a imagem e simula a
tridimensionalidade do espaço o que garante uma perfeita profundidade de campo. Do
início da carreira com a fotografia dando ênfase a cobertura de eventos sociais em zonas
periféricas; até as captações aéreas de paisagens como as do arquipélago de São Pedro e
97 Entrevista concedida por Canindé Soares em 28 de março de 2017 para fins de desenvolvimento desta Tese.
91
São Paulo98, ilha localizada a mais de mil quilômetros da costa potiguar, a convite da
Marinha do Brasil, contabiliza-se 40 anos de trajetória. Nesse curso existiram influências
que foram construindo o olhar do repórter-fotográfico.
As fotografias são imagens polissêmicas por permitirem sempre uma leitura plural
que dependerá do seu expectador e de seu arquivo imagético, imagens mentais
preconcebidas acerca de determinados assuntos. “As imagens mentais funcionam como
filtros: ideológicos, culturais, morais, éticos, etc”. Esses são construídos na trajetória do
indivíduo e forma seu olhar, “sendo que para cada receptor, individualmente, os
mencionados componentes interagem entre si, atuando com maior ou menor intensidade”
(KOSSOY, 2009, p. 44). Nesse aspecto pode-se considerar que a história de vida, as
angústias, os anseios, as expectativas futuras, as relações sociais e os contatos profissionais
de Canindé Soares foram moldando o seu modo de ver e captar o mundo ao redor.
Em relação às influências, Canindé Soares citou um dos maiores ícones do
fotojornalismo francês Henri Cartier-Bresson (1908-2004), nome de destaque mundial da
fotografia jornalística, considerado uma autoridade no fotojornalismo do mundo inteiro.
Sobre o francês Cartier-Bresson, filho de industriais têxteis, começou a fotografar ainda
criança e estudou artes em estúdio renomado de Paris, fundou a conhecida agência
fotográfica Magnum junto com Bill Vandivert, Robert Capa, George Rodger e David
Seymour. Fotografou espaços nos quais incidiam questões políticas e sociais de
importância mundial, vários livros com seus trabalhos foram lançados transformando-o em
referência. Algumas de suas posturas em relação à fotografia são representativas: não
admitia recortes posteriores na edição das suas imagens pelo valor que dava ao conjunto
capturado na cena como a culminância do ato fotográfico; evitava qualquer tipo de
iluminação artificial entre elas o flash e sua preferência era o preto-e-branco. Considerado
um fotógrafo purista por não usar efeitos especiais nem na revelação nem na ampliação.
Procurava passar despercebido nas cenas que iria fotografar mantendo-se em atenção para
a captação do momento que considerava único.
O momento único da fotografia para Bresson traduzia-se na concepção do instante
decisivo. Conceito que vem povoando o imaginário de uma multidão de fotógrafos e de
outros envolvidos com o artefato. Apoia-se na aceitação de que há um momento cuja
98 Ver matéria e fotografias no Portal G1, de 03 de julho de 2017. InterTV. Bom Dia RN. Disponível em:
. Acesso em 05 de jul. 2017.
92
duração é uma reduzida fração de tempo, em que o clique fotográfico deve acontecer. Caso
não ocorra a captura precisa nesse tempo único à obra fotográfica pode ser
irremediavelmente perdida. Cartier-Bresson considera que os instrumentos de captura
desse instante são sensibilidade e intuição. Sendo a sensibilidade mais importante do que
a razão para tornar o olhar apto a captar o “acaso objetivo”. Nas fotografias de Bresson
nota-se a composição mais preocupada com a disposição espacial dos objetos do que com
a luz, há a busca dos detalhes nos ângulos, formas, simetrias e perspectivas. “É pela
linguagem geométrica da física que nos habituamos a pensar o instante. Nela, um instante
é um ponto numa reta que representa o tempo” (TASSINARI, 2008, p.3).
O modus operandi desse fotógrafo influenciou o habitus de vários profissionais. Em
Canindé além das reservas, das entradas disfarçadas nos ambientes de trabalho, há a opção
pelo simples e casual. À moral cristã compartilhada no habitus de ambos também
influenciam o conteúdo em cena. Canindé é um herdeiro dessa composição alinhada que
produz montagens e organiza as cenas, com privilégio aos recortes geométricos, às linhas
que dividem os espaços como o mar, o céu, a areia, os monumentos. A luz também é um
dos instrumentos que ligam as concepções desses fotógrafos, assim como Bresson, Canindé
prioriza a iluminação já existente no espaço.
A distinção entre a fotografia de Canindé e de Bresson é o que dá singularidade a
sua obra: o apelo ao colorido. As cenas apresentadas por Soares utilizam a luz para captar
vários tons de cores em seus contrastes. A Luz é o que gera o que ele considera sublunar
para fazer uma boa foto: a saturação. O colorido saturado camufla a bidimensionalidade da
fotografia dando-lhe profundidade, favorece a simulação da tridimensionalidade
aproximando-a do real. Por isso prefere atuar no início da manhã ou final da tarde, sendo
o crepúsculo seu momento de êxtase para o ato fotográfico.
93
Fotografia 2-O Crepúsculo
Fonte: Canindé Soares (2016).
A fotografia acima foi elaborada nas proximidades do Campus Universitário da
UFRN, entre a parte alta do bairro da Candelária e do bairro de Lagoa Nova. Ângulo
improvável de se reproduzir no momento atual, visto que o espaço captado foi
transformado, hoje contém o edifício do Instituto Metrópole Digital (IMD/UFRN). O jogo
hábil e criativo do fotógrafo simula o do caçador que com paciência aguarda o melhor
momento. Essa fotografia representa o acaso, a pressa, a vontade de captar dimensões e
cores, a ansiedade do fotógrafo pelo melhor momento, pela ficção da captação do que
Bresson denominou como o instante decisivo, ou seja, momento exato, associado ao vício
de produzir o melhor para alimentar o olhar do público. Não pensamos a ficção como
aparência, mas como a subjetividade do indivíduo que diante de sua cultura cria, produz e
constrói com o que acredita que lhe foi dado por um instante da natureza.
No dia que fotografou essa paisagem Soares estava com a sua companheira no
Bairro de Ponta Negra. Já definido pelo modo de ver – que vai além de enxergar – da
profissão deambula transformando espaços em paisagens possíveis de serem apreendidas.
O modo de olhar o redor distingue-se pela contínua inquietude de captar algo diferente do
que há. Esse tipo de olhar, frequentemente, faz com que se perca a dimensão mais ampla
oferecida pela retina, porém, a atenção ao detalhe através de um recorte treinado possibilita
a apreensão de um fragmento do real que foge ao cotidiano, é um olhar em tensão constante.
94
Canindé geralmente espreita os pores do sol de Natal, para ele belas fotografias do
crepúsculo são favorecidas a partir de espaços como o Rio Potengi, a Pedra do Rosário ou
o Porto do Mangue. Durante o passeio em Ponta Negra percebeu nuvens formando-se no
céu, para ele diferenciadas, distante dos locais de sua preferência entrou no carro com a
companheira e decidiu se dirigir a um dos ambientes já reconhecidos. Todavia, começava
a escurecer, não daria tempo para alcançar um dos destinos, assim o jeito foi parar nas
proximidades do campus universitário e correr atrás do melhor ângulo, o que foi feito.
Captou o instante decisivo; nele apresenta suas preferências, sua possibilidade
artística diante da técnica. Nessa perspectiva, as nuvens ganham ritmo e movimento
proporcionado pela saturação, já o alto contraste amplia a luz do crepúsculo. Na cena a
natureza pesa sobre a metrópole, minimiza seus prédios, esconde as pessoas, destaca seus
opostos, coloca em atrito o frio do azul que enfrenta a ausência de luz e se expande na
tentativa de dissipar o predomínio do tom quente. Nesse campo em que as cores
contrastam-se entre o quente e o frio frenético emerge a dialética do fascinante e do
ameaçador. É o colorido que marca a visão do mundo de Canindé Soares: “a paisagem tem
cor, ela não é preto e branco (informação verbal, 2016)99”. Nessa cor existe o que o autor
chama de simplicidade, de fuga do que é considerado status na fotografia. Todavia, a cena
é pomposa, monumental, remete a técnica e a tecnologia sofisticada.
Alguns fotógrafos de repercussão nacional questionam a escolha de Canindé pela
prioridade ao colorido, podemos citar como exemplo Marcelo Bauainain, que abandonou
a medicina já no final do curso para se dedicar a fotografia e, atualmente, é reconhecido
pelo trabalho desenvolvido em revistas de grande circulação (como Veja, Isto é, Manchete,
entre outras), por prêmios nacionais e internacionais. Esse é um dos profissionais que ao
encontrar com Canindé em viagens e observar as suas fotografias, seleciona algumas e
interroga o porquê das fotografias não estarem em preto e branco, acreditando que se assim
fosse essas ganhariam em impacto. Ao questionamento Soares prontamente responde que
as fotos não deveriam ser em preto e branco, ele se definiu pelo colorido:
A fotografia P&B em minha opinião não influencia positivamente para a
paisagem. Mas, tem gente que faz fotos perfeitas em P&B, eu não segui pra esse
lado, eu não faço P&B, eu até costumo dizer que o preto e branco é uma
fotografia muito difícil de fazer e eu me identifico muito com cor, então... O
Marcelo Buainain, que é um grande amigo meu, grande nome da fotografia,
ganhador de prêmios, ele segue a linha de Henri Cartier-Bresson, Marcelo é um
dos que pega a minha foto e fala rapaz essa foto tem que ser P&B e eu olho e
99 Entrevista concedida por Canindé Soares em 23 de novembro de 2016 para fins de desenvolvimento desta
Tese.
95
digo pra ele: Não, não Marcelo, não tem, não tem que ser P&B, eu faço colorido
(informação verbal, 2016)100.
Essas são as influências que moldaram o olhar de Canindé Soares, que possibilitaram a
construção do seu discurso imagético. Continuando com a exposição, o próximo capítulo
apresentará um histórico da emergência da fotografia enquanto um discurso legitimador de
determinadas concepções e valores vigentes em nossa sociedade. Portanto, direcionará ao
entendimento das fotografias como uma referência na construção de simbologias, e mostrará
de que forma, em grande medida, a fotografia se traduz em um discurso ideológico.
100 Idem.
96
3 O DISCURSO NA FOTOGRAFIA: EU CONSTRUO, ELE CONSTRÓI, NÓS
CONSTRUÍMOS
As fotos são, talvez, os mais misteriosos de todos os objetos que compõem e adensam
o ambiente que identificamos como moderno (SONTAG, 2004, p.14).
Neste capítulo introduzimos a fotografia enquanto um discurso que enquadra e auxilia
no processo de validação ou descrédito de ideologias segundo o direcionamento prévio do que
será fotografado; um discurso que produz espaços, paisagens, demarca os territórios de modo
objetivo e subjetivo. Materializa-se em formas visuais que dirige o olhar de quem vai fotografar,
entre um universo de opções, enquadrando um específico registro. Isso quer dizer que é mediada
por molduras culturais, sociais e ideológicas. Mas, nem sempre foi vista desse modo, só
atualmente começa a ser interpretada como um elemento discursivo, que revela e diz sobre
relações socioespaciais a partir do ponto de vista de seus distintos produtores.
Antes, sua interpretação fundava-se em seu valor ontológico, era apreendida como o
espelho do real. A fotografia se legitima de tal forma como uma concepção da realidade que
quando assume a reprodutibilidade excessiva chega até ser encarada como um tipo de simulação
a serviço das mídias de massa por perder uma pretensa originalidade. Essa originalidade é
apreendida pelo conceito de aura de Benjamim (2012), que aponta à exclusividade da fotografia
captada em um instante único.
A reprodução massiva lhe retirou a aura, ainda assim o artefato é complexo, algo de
ontológico resiste na fotografia, ou pelo seu valor de culto, ou pela exposição. Temos em conta
que algum tipo de caráter impresso na imagem, mesmo que pensado como o puctum
barthesiano, é inerente a democratização do que representa. Esse caráter, essa impressão é o
que debateremos no decorrer desse capítulo.
O discurso fotográfico carrega impressões que perpetuam códigos e sintomas que
comunicam por meio de afirmações e idiossincrasias. Nesse eixo, o artefato abre-se para o
diálogo de interesse sociológico, uma vez que possibilita a crítica das construções
socioespaciais. A imagem sugerida como instrumento crítico para reflexão é cara a Didi-
Huberman que a partir do conceito de sintoma, noção captada a partir da perspectiva freudiana,
propicia uma mirada na fotografia a partir das representações formatadas nos processos sociais;
um elemento de contato entre as distintas temporalidades que assinalam a impressão da
imagem. Essa impressão é a semelhança que resiste em seu registro enquanto um sintoma.
Sintoma esse que chama a atenção do olhar, que se reproduz enquanto valor, enquanto discurso.
97
Lançando mão desses conceitos como possibilidade de se analisar a fotografia Didi-
Huberman traz um olhar crítico e inovador o que favorece o seu uso na sociologia. Esse
empreendimento é motivado por suas pesquisas que se debruçam por meio de todo o processo
histórico da fotografia, mais, pelos discursos que a compreendem e tendem a organizar um
fechamento sobre as suas análises.
Depois que a fotografia foi inventada, em 1939, praticamente tudo que existe é captado
e registrado. É das produções materiais modernas que mais se multiplicam de acordo com o
desenvolvimento tecnológico presente, seu suporte nos dias atuais só se amplia, caminha entre
materiais impressos, online, computadores, smartphones entre outros. Nas palavras de Sontag
(2004) constituem uma gramática e, mais importante ainda, direcionam a uma ética do ver uma
vez que passam a requerer diferentes níveis de reflexão por definirem, entre os códigos visuais
modernos, o que olhar e como se deve olhar. Impõem valores que orientam as práticas em torno
dos seus recortes. Dos temas privilegiados para o registro fotográfico estão as paisagens cujo
enquadramento representa padrões estéticos, políticos e econômicos alinhados as visões de
mundo que afloraram com a representação espacial moderna.
A sociedade moderna é produtora de distintas paisagens: da campesina à urbana, da
montanhosa a litorânea, do campo a cidade. Essas paisagens destacam-se atreladas a vários
discursos. Em torno do campo as imagens são associadas à simplicidade, paz, natureza e
inocência; já em relação a cidade elas aparecem no centro das realizações, da racionalidade, das
práticas de lazer e de trabalho. De forma concomitante constrói-se a cidade como o local da
aglomeração, da mundanidade e da ambição e o campo como o espaço do atraso, da ignorância
e da limitação (WILLIANS, 2011).
A máquina fotográfica surge como um instrumento atrelado à promessa de retratar
fidedignamente as coisas, pessoas, espaços e fatos e ratifica o que se diz sobre as paisagens
citadas. Dos temas mais recorrentes nas fotografias estão os elementos relacionados ao avanço
técnico material, à noção de progresso e de civilidade; o meio urbano com sua paisagem
representa essa concepção. O campo e a cidade circulam nos mais variados meios; a cidade
como a paisagem do progresso e o campo nas representações do pitoresco e do exótico.
Diversos fotógrafos se interessaram em registrar as transformações urbanas, sobretudo,
as que destacavam uma série de reformas empreendidas entre a segunda metade do século XIX
e as primeiras décadas do século XX. Alterações que se iniciaram em cidades da Europa,
Estados Unidos e seguiram para a América Latina com base nas intervenções urbanísticas,
sanitárias e legais impostas pelos Estados ao lado das inovações de cunho tecnológico que
modificaram profunda e rapidamente os antigos espaços urbanos.
98
É o período em que a ampliação dos direitos sociais que surgem na Europa favorece,
também, as viagens que passaram a ser organizadas, comercializadas e realizadas
sistematicamente para atender a uma demanda em busca de atividades culturais e de lazer em
espaços distintos do trabalho. O tempo livre é racionalizado e direcionado ás perspectivas de
consumo, dando aos deslocamentos o fórum de atividade turística. Isso ocorre em praticamente
todos os locais com circulação mais significativa de capital, concatenando-se as representações
que surgem e favorecem a criação de comportamentos ancorados nas novas bases materiais e
no conjunto de valores em voga. É uma mercadoria que começa a ser formada tendo como uma
das suas características fundamentais o apelo à subjetividade humana.
Os discursos que circulam na Europa e nos Estados Unidos antenados a lógica moderna
constroem novas práticas, sociabilidades e diferentes modos de relações e atingem distintas
partes do Ocidente, até as consideradas periféricas, como é o caso do Brasil, que as abraça com
maior ou menor entusiasmo dependendo das relações socioespaciais pré-existentes onde as
novas ideias começaram a aportar.
O Brasil, que inicialmente era polo de extração de produtos naturais, viu em seu período
colonial, mais precisamente nos séculos XVIII e primeira metade do século XIX, o litoral
nordestino despontar como núcleo econômico através dos engenhos de açúcar que garantiam
transações comerciais satisfatórias com a Europa. Posteriormente, com o advento do café, o
porto do Rio de Janeiro passa a concentrar as exportações brasileiras com um volume de
mercadoria que transforma as relações de produção agregando à mão-de-obra escrava a do
imigrante. Logo, a proclamação da república favorece que esse eixo que compreende o sudeste
e o sul do país desponte como polo do poder econômico e político em âmbito nacional.
Nessa conjuntura do final do século XIX, e início do século XX, começou a ser gestado
um espaço que nasceu no norte do Brasil, como nos relata o historiador Albuquerque Júnior
(2012) na contramão do que era cunhado por progresso. Nesse território as mudanças trazidas
pela vida urbana e pelo mundo que se modernizava são questionadas. Parte de intelectuais e
políticos, entre outros agentes ligados à elite açucareira nascidos nesse cenário, iniciaram um
processo de defesa das relações tradicionais, dos modos aristocráticos e hierárquicos e
creditaram seus argumentos ao risco do país perder a identidade ou sua autenticidade.
Ressentiam-se do declínio da ordem patriarcal em prol de uma sociedade burguesa e industrial.
Esse movimento foi demarcando uma região concatenada a um suposto atraso
econômico pensado a partir dos efeitos da miscigenação das raças, da estrutura social baseada
em tradições preservadas e arraigadas a um sistema econômico esfacelado. Também,
acrescenta-se a esse espaço social uma condição geográfica e climática perversa que
99
conservaria a terra seca e improdutiva. Nessa parte norte do país situações chocantes de seca,
miséria e fome foram registradas, o que agenciou imagens que sustentou e justificou a
naturalização do espaço como acometido por tragédias que interferiam diretamente e de forma
negativa na vida social, econômica e política dos seres humanos.
O discurso reproduzido construiu bases para a organização de um pensamento coletivo
que ideologicamente vincula-se aos interesses das elites políticas nortistas, impulsionaram a
construção de imagens da seca correlacionadas a de reação conservadora à sociedade
capitalista. Essas imagens proliferaram-se nas produções culturais marcadas pelo saudosismo:
da estrutura social colonial desenvolvida em torno da casa-grande, das famílias sustentadas pela
monocultura e norteadas pelo cotidiano rural, da religiosidade católica, da mestiçagem e das
festas ancoradas nos rituais religiosos. Os discursos acabaram por caracterizar uma cultura
folclórica de atraso dos costumes, de patriarcado, do cangaço, da tradição, do coronelismo, do
fanatismo religioso e da seca (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2006). Modos de dizer em que o
campo e a cidade são antagônicos (WILIAMS, 2011).
Nessa dialética um território apreendido como norte e sul demarcou um novo espaço: o
Nordeste. Paulatinamente, um tipo singular de discurso que emergiu nas primeiras décadas do
século criou socialmente, culturalmente, politicamente e economicamente um espaço que antes
não era visualizado nas outras áreas do país enquanto um retrato da tradição, da religião, do
atraso e da injustiça social a fim de atender a interesses específicos, considerados reativos
(ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2006). Os registros do termo Nordeste para designar um espaço
nacional estão relacionados à atuação da Inspetoria Federal de Obras Contra as Secas (IFOCS),
criado em 1919, direcionado aos estados de Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará.
Locais que teriam além da geografia similar, aspectos culturais e interesses econômicos e
políticos coniventes. Também, passou-se a creditar ao espaço uma autenticidade em termos de
nacionalidade, uma vez que o encontro das três raças, onde não houve a imigração estrangeira,
teria supostamente garantido a região às características de povo mais brasileiro.
As visualidades em torno da região criaram concepções que resistem até os dias atuais,
mas, simulam-se em novas roupagens, enquadradas por novas práticas sociais, acolhendo novos
interesses políticos e econômicos vinculados à atividade turística.
Em coexistência os discursos ora acessam imagens da seca, ora do turismo, ora
confrontam-se; é exemplo o emblemático discurso realizado em 30 de junho de 1987, pelo então
presidente da EMBRATUR- Empresa Brasileira de turismo (atual Instituto Brasileiro de
Turismo), João Doria Júnior que propôs a “seca virar turismo”. Doria atualmente é prefeito de
São Paulo pelo partido político PSDB, anteriormente, quando estava ligado a EMBRATUR
100
disse em reportagem que foi publicada pelo jornal “O Globo” em 1º de julho de 1987, que “A
Caatinga nordestina poderia ser um ponto de visitação turística e gerar uma fonte de renda para
a população sofrida da área”. De acordo com as informações apresentadas pelo Jornal “O
Estadão”, em 01 de julho de 1987, em nota enviada pela agência do Estado de Fortaleza, João
Doria haveria afirmado que não estava propondo que a seca “na sua inclemência, na miséria de
sua gente”, se transformasse num ponto turístico. Como colocado no jornal:
EMBRATUR QUER FAZER A SECA VIRAR TURISMO: ‘Transformar as
caatingas nordestinas em ponto de visitação turística para gerar uma fonte de renda
para a população sofrida destas áreas, desde que respeitadas às características culturais
e humanas das populações, sem a exploração da miséria. Essa sugestão foi
apresentada ontem em Fortaleza, pelo Presidente da Embratur João Doria Júnior, a
um grupo de 300 empresários do setor turístico, jornalistas e representantes do
governo do estado. Surpresos, os jornalistas pediram a Dória Júnior que escrevesse o
que estava dizendo, ao que ele não se recusou e depois argumentou: ‘Em Serra Pelada,
onde milhares de garimpeiros vivem em condições subumanas, essa garimpagem já
se transformou em um ponto de visitação turística’. E completou. ‘Lá existem até
especialistas em fotografia daqueles homens, transportando sacos de areia nas costas,
em busca de ouro’. O presidente da Embratur tentou esclarecer, porém, não estar
propondo que a seca ‘na sua inclemência, na miséria de sua gente’, se transforme num
ponto de atração turística. ‘Pelo contrário, o que vislumbro é o fato de podermos
transformar a seca num ponto positivo, onde os trabalhadores prejudicados por ela
pudessem desenvolver outras atividades, como o artesanato e trabalhos diferentes
daqueles do campo’(O ESTADÃO, 1987)101.
O discurso aparece na edição de setembro/outubro, 1987, da revista “Agropecuária
Tropical”, da Associação Norte-Riograndense de criadores102.
101 O ESTADÃO. EMBRATUR quer fazer a seca virar Turismo. São Paulo, 1 jul. 1987.
102 A matéria da revista agropecuária tropical foi encontrada durante a pesquisa de sociologia rural e enviado a
Carta Capital pelo doutorando da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) Valdênio Meneses.
101
Figura 9- Seca Versus Turismo ou Seca como Turismo?
Fonte: Carta Capital (2017).
O grande problema dos discursos apontados é que criam no imaginário nacional uma
região como se essa fosse um corpo à parte, um espaço fora do desenvolvimento. Esses
discursos constroem dois mundos: um da prosperidade e o outro da miséria. Além, obliteram a
variedade social, espacial e histórica; apagam a ampla gama de conexões humanas, seus fluxos,
suas capilaridades e as reais possibilidades de enfrentamento das desigualdades nos acesso aos
bens econômicos, culturais e sociais. Ao ofuscarem o entendimento da dinâmica sociocultural
dificultam ainda a elaboração e consumação de políticas públicas mais justas, com indicação à
pluralidade cultural; escapam ao próprio sentido do incentivo à atividade turística que de acordo
com a Lei º 11.771, de 17 de setembro de 2008; que dispõe sobre a Política Nacional de Turismo
com o objetivo de “reduzir as disparidades sociais e econômicas de ordem regional,
promovendo a inclusão social pelo crescimento da oferta de trabalho e melhor distribuição de
renda” (BRASIL, 2008)103.
As concepções construídas em cima dos discursos colocados em evidência refletem-se
na prática. Exemplo são as políticas públicas de turismo no Nordeste que acabam favorecendo
e promovendo a manutenção de certos mitos. Os símbolos visuais originados prevalecem
camuflados pelos direcionamentos de entretenimento dado a atividade. A análise elaborada por
Karl Marx (1969) no texto intitulado “O 18 Brumário”, em um aspecto bem pontual, nos alerta
sobre a evidência de que no citado cenário a burguesia abriu mão do seu domínio político direto
103 Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2008/lei/l11771.htm>. Acesso em: 26
mar. 2018.
102
para canalizar recursos econômicos, no momento em que se joga nos braços de Napoleão. Essa
análise condiz com a ideia de que se um grupo detentor de poder político e econômico tiver que
escolher entre a manutenção dos seus privilégios ou um governo minimamente democrático,
certamente priorizará sustentar o seu poder econômico. Essa compreensão em muitos aspectos
tem similaridade com a tese levantada por Durval (2006) de que uma dada elite ao perceber seu
poder político e econômico subtraído, não só apoia, mas constrói um tipo de discurso que
alimenta um preconceito histórico em prol da sua manutenção econômica. Esse processo se
repete com o reenquadramento e a reorganização do mito inicial de construção do Nordeste
através da noção do turismo que, ampliado, favorece o interesse de poucos na sombra do mito
de um Nordeste atrasado.
Os que dominam as estruturas da atividade participam, em grande medida, de um jogo
de disputa política. Nas palavras de Santos Filho (2011), que desenvolve pesquisas no campo
das políticas de turismo, os órgãos destinados a impulsionar a atividade (tanto em âmbito
nacional como local, caso do Ministério do Turismo) são palcos de estratégias e
apadrinhamentos políticos. Prática que desde a formação da EMBRATUR vem sendo
corriqueira no interior do Estado brasileiro. Isso se comprova na facilidade de encontrar
matérias como a citada abaixo:
Políticos estão fazendo, literalmente, a festa com dinheiro público. Associam-se a
ONGs para conseguir recursos do Ministério do Turismo e realizar eventos festivos,
num esquema que muitas vezes envolve fraudes e tira proveito de falhas de
fiscalização do governo federal. A Polícia Federal e a Controladoria-Geral da União
investigam corretagem de emendas parlamentares, pagamento de propina a quem
libera a verba e uso de notas frias. [...] Entre as 50 ONGs que mais receberam dinheiro
do Turismo para organizar festas entre 2007 e 2009, a Folha identificou que 26 têm
relação direta com políticos e partidos. As entidades receberam R$ 53 milhões no
período. Pelo menos nove deputados federais beneficiaram-se dos recursos, seja
diretamente ou por meio de assessores ou doadores de campanha. São eles: Armando
Monteiro (PTB-PE), Sandro Mabel (PR-GO), Alfredo Kaefer (PSDB-TO), Geraldo
Magela (PT-DF), José Ayrton (PT-CE), Sandes Júnior (PP-GO), Rodovalho (PR-DF),
Rômulo Gouveia (PSDB-PB) e Leo Alcântara (PR-CE).
Além disso, há entidades contempladas e subcontratadas que são ligadas a deputados,
vereadores e assessores (FOLHA DE S. PAULO, 2010)104.
Esse tipo de arranjo marca divisões sociais fortes no Brasil favorecendo as dicotomias
como descrição da realidade; nesse caso, como se o espaço brasileiro fosse apenas duas partes
adversas: sudeste e nordeste; superiores e inferiores; desenvolvidos e atrasados, ricos e pobres.
Pior, são discursos que mascaram as consequências das relações econômicas reproduzidas no
104 FOLHA DE S. PAULO. Fraude com recursos para festas repete “Sanguessuga”. Seção Brasil, São
Paulo,19 abr.2010. Disponível em: . Acesso em:
26 mar. 2018.
103
Brasil, tomando a natureza, o meio e a raça como conceitos para análise do comportamento dos
indivíduos, colocam ainda, os problemas sociais como determinados enquanto um aspecto da
moral ou do caráter de um povo.
Os discursos constroem uma identidade espacial para o Nordeste, um ethos que estipula
configurações comuns aos estados da região dotando-os com os mesmos signos de
representações presentes nos diversos dispositivos comunicacionais como as fotografias, os
folders publicitários, as redes sociais, as músicas, o cinema, etc. O Estado do Rio Grande do
Norte é objeto dessa identidade nordestina: nordestino-potiguar, que o fez, assim como os
outros estados do Nordeste, ora ser apontado por discursos da seca, ora por discursos em favor
do turismo (CARVALHO, 2009). As “formações discursivas” favorecem o aparecimento desse
“novo” Nordeste turístico ancorados na construção identitária de origem cujo os rebentos
localizam-se nos símbolos depreciativos de construção da região onde determinados agentes,
entre eles os próprios personagens do lugar, foram responsáveis pela discursiva histórica que a
desenha com sentidos desfavoráveis. Assim “devemos suspeitar que somos agentes de nossa
própria discriminação, opressão ou exploração” (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2006, p. 21).
O sol, maior símbolo da seca, aparece no turismo como ponto central de destaque para
a valorização do litoral: um paraíso que se abre ao lazer e o descanso. O cacto que, ao lado do
gado morto e dos rostos esquálidos, representava as adversidades do clima desértico, brand em
restaurantes e feiras de artesanato. O mestiço montado em seu burro, representantes de um
modo de vida arcaico, viram peças de artesanato para decoração de ambientes rústicos. A figura
do cangaceiro Lampião, líder de um movimento marcado pelo banditismo e por vários eventos
de violência, é souvenir pontual no artesanato regional firmando-se como tipo representante do
espaço. Alguns rituais da fé católica, como as promessas e seus pagamentos, compõem o
cenário da seca, uma vez que os moradores direcionariam aos santos e suas providências a
possibilidade de melhoria de vida; no turismo essa religiosidade popular, consagrada como um
patrimônio cultural transforma-se em evento festivo. Essas são formas que difundem uma
imagética para destacar a região e os estados que a compõe.
O turismo passa a fazer parte do interesse do Estado quando os discursos construídos a
partir de dados empíricos e estatísticos acenam para a atividade como uma série fantástica de
números recordes de entrada de divisas nos países. Nesse cenário, que corresponde à primeira
metade do século XX, o Estado brasileiro envolve-se com a organização de projetos e leis para
incentivo da atividade concebidas a partir da importância da representação desse setor na
economia.
104
Na era centralizadora de Vargas, na ditadura militar, o país foi recortado por decisões
políticas e programas que priorizavam o desenvolvimento econômico com base na
industrialização e na modernização das cidades. A partir de 1964, novas formas de intervenções
socioespaciais são valorizadas diante de conotações essencialmente econômicas; a
industrialização é colocada como prioridade, os planos nacionais passam a favorecer a entrada
de empresas multinacionais e o turismo aparece como um dos carros chefes, também, como um
facilitador da integração nacional. Entre outras expectativas que atendem a uma hierarquia nas
relações de poder e estimulam a organização das políticas de turismo no Brasil a fim de
demandar a organização do setor no país (BENI, 2006).
Em sequência ao quartel citado, os discursos em prol do turismo começaram a ficar mais
substanciais e a ganhar materialidade com a organização de infraestruturas para apoio da
atividade. Por outro lado, as exposições que indicavam o local como seco, tradicional, rural e
economicamente atrasado persistiam, mesmo o Nordeste abrigando uma das maiores
metrópoles do país, além do fato de que grande parte da sua população passou a viver em áreas
urbanas, ademais a região se concentrava (e se concentra) em uma sociedade moderna e
capitalista. Tudo isso tornavam antagônicas as definições baseadas em um conjunto singular de
enunciados que atribuíam à região o estatuto de subordinada, longínqua, rural e folclórica.
O peso com que a atividade turística se colocou na conjuntura nacional e as expectativas
de inserção no cenário global impôs a necessidade de reformulação dos discursos em relação à
visualidade da região. Essas mudanças são gestadas na segunda metade do século XX. Seus
germens estavam na década de 1960, quando conceberam-se as primeiras articulações para
transformação das visualidades tradicionais que dominavam o espaço. Uma nova versão do
Nordeste começou a ser elaborada pela propaganda da elite local que visava atrair recursos
financeiros por intermédio do turismo e da industrialização. Contudo, as ações que sucedem a
esse período ancoram-se na construção de uma imagem utópica e imaginária, sempre com vias
de se consolidar no amanhã e nunca no hoje (FERREIRA, 2006).
As promessas em torno da atividade ampliaram-se, todavia, esbarraram no retrato
construído anteriormente no plano político, econômico e social. Os ícones consolidados como
representativos da região não se extinguiram em prerrogativa a um novo conjunto de imagens,
ao contrário, sobreviveram. A fim de atender aos novos interesses foram reelaborados e
ganharam status de aspectos culturais, tradicionais e folclóricos da região Nordeste – fazem
parte de um arsenal estratégico direcionados à impulsionar a atividade turística. Mudam-se os
sentidos, mas os símbolos construídos através dos discursos fundantes da região são “imagens
105
sobreviventes” 105 que penetram nas relações atuais entremeados nas fotografias e nos ícones
culturais, permanecem perturbando a história, fixando os espaços e encadeando novos projetos.
3.1 SOBRE DISCURSOS
Antes de pensar em discurso toma-se como ponto de partida a concepção da linguagem,
essa tem como referência os estudos de Saussure (2006). O autor esboça uma proposta sobre a
ciência geral dos signos, composto pela dicotomia do significante versus significado, ou
melhor, segundo a sua interpretação no domínio do signo tem-se a junção entre um significado
(conceito) e um significante (forma ou imagem) que seria a articulação entre a imagem e o
conceito. Nesse viés, o significante apenas significa sem visar atingir uma comunicação sendo
vazio de sentido. Já o significado traduzido pelo conceito é o sistema que conduz a comunicação
sendo o produtor de sentidos. Albuquerque Júnior (2013, p. 26) simplifica o conceito de
Saussure, para isso basta olhar a capoeira: um conjunto de práticas culturais que envolve gestos,
formas e imagens. No século XIX, esse conjunto de gestos, formas e imagens denominado por
capoeira carregava significados de crime e violência. Nos dias atuais, mantendo o mesmo nome
de capoeira e os mesmos gestuais, práticas, formas e imagens carrega o sentido de esporte ou
dança. Desse modo, a capoeira é um signo, como signo está aberta a distintas significações no
percurso do tempo.
Vamos agora assumir o nosso exemplo: o mar; ao pensarmos hoje nesse signo, nessa
entidade concreta que é o mar, provavelmente a articulação que vem em mente é a do prazer,
do lazer, do gozo, da diversão. Uma vez que o mar é um espaço onde o ser humano pode brincar
e relaxar. Mar é um signo, exposto somente em sua forma ou imagem, e é vazio de sentido,
visto que forma e imagem são significantes que só passam a comunicar algo quando
conceituadas pelo significado, o significado é a “chave” para a sua compreensão. Ao mar
diversos sentidos, de acordo com as percepções sócio-históricas, foram atribuídos. Corbin
(1989) aponta três momentos distintos: primeiro, na idade média o mar era significado através
dos discursos bíblicos como um lugar de perigo, ambiente demoníaco, hostil, terrível aos
humanos. Segundo, no período iluminista o mar estava atrelado aos discursos científicos,
passando a ser um local terapêutico, para uso racionalizado. O contato do indivíduo com o mar
se dá a partir de prescrições médicas, com o objetivo de cura, o uso é sistematizado por
intermédio de tempo e movimentos determinados. Terceiro, a concepção atual, que o data de
105 Analogia ao título do livro de Georges Didi-Huberman (2013) intitulado “A imagem sobrevivente”.
106
vários sentidos, mas privilegia-o como espaço de desfrute e lazer. O signo mar abarcou distintas
significações ao longo do tempo que suportou o seu significado.
Essas são as noções fundantes do estudo da linguagem. Postas as limitações a esses
esboços iniciais que se baseavam na dicotomia entre a língua e a fala, em que a língua aparecia
como objeto dos estudos linguísticos, os autores passam a enveredar para o entendimento da
linguagem para além da língua, atrelados às condições sócio-históricas. O liame dessas
significações opera-se na vinculação entre o fenômeno linguístico e o social onde manifesta-se
a ideologia, sendo valorizada no campo acadêmico a teoria de Bakhtin (1979), em que o
princípio é a língua como um fato social de natureza ideológica. Para esse autor, no ato da fala
reside a enunciação, componente que estrutura o processo de interação social, ideológica por
excelência. Corroborando com essa perspectiva Barthes (2003) aponta o caráter ideológico e os
sentidos socialmente atribuídos presentes nos signos divulgados pela burguesia, com o objetivo
de desmascará-los. Esses estudos englobam a articulação dos fenômenos linguísticos e dos
processos ideológicos, partem do entendimento da linguagem como um processo vinculado as
suas distintas condições de existência, uma mediação entre o indivíduo e o seu meio social;
aqui se tem o discurso. O discurso inscreve-se nas relações entre o que dizer e as condições
sociais que permitem a produção desse dizer106.
Diante dessa concepção, Maingueneau (2015) coloca que para a análise deve-se levar
em conta o quadro das instituições por demarcarem a enunciação no qual o discurso é
produzido. De antemão, as questões sociais e históricas não podem ser menosprezadas, pois se
plasmam na linguagem construindo o discurso. Acrescenta-se o fato dos discursos
configurarem espaços próprios no interior de um interdiscurso traduzindo-se em um produto
balizado pelas conexões estabelecidas entre os indivíduos com o seu tempo e espaço encadeado
às dimensões socioculturais. Sendo assim, o discurso é uma interpretação emitida por
intermédio das relações humanas, da qual participamos ativamente, por isso longe de ser
passivo manifesta uma competência ideológica.
3.1.1 A ideologia e as suas formas
106 De modo geral, podemos afirmar que existem duas perspectivas básicas e distintas que marcam as posturas
teóricas para a análise do discurso: a norte-americana e a europeia. Nosso foco se dá na linha europeia. A percepção
norte-americana parte da relação entre o lugar social do sujeito e a fala, com atenção ao seu processo de enunciação,
alguns autores colocam que essa contribuição por se dar no interior do linguístico, analisa o texto de modo redutor.
Para mais informações ver: Charaudeau e Maingueneau (2016); Maingueneau (2015); Brandão (2002).
107
Sobre a ideologia há uma quantidade abundante de debates que abordam essa noção,
sendo por isso um conceito que aparece muitas vezes de forma confusa e controversa
incorporando variados valores. Já sobre os discursos, como vimos, materializam realidades a
partir de uma concepção ideológica. Visto que os discursos se concretizam nos espaços
circunscritos por condições objetivas e subjetivas muitas vezes por meio da opressão
concordamos com Eagleton (1997), que deixar em eclipse e obsolescência o conceito de
ideologia é absurdo, já que ele é capaz de criticar essas condições e direcionar possibilidades
de transformá-la.
O termo ideologia traz o prefixo grego “ideia” do “protótipo ideal”. Literalmente
significa “ver”, em “forma” e “aparência”. O conjunto tem como base a ideia unida ao “logos”
que remete ao sentido de “discurso” e de “estudo”. Por fim, a percepção desse traçado
etimológico nos conecta ao discurso da forma ideal ou ao estudo da aparência.
Outro modo de entendimento do conceito, simplificado, é apresentado pelo Dicionário
Priberam da Língua Portuguesa107, são três concepções básicas; primeira: ciência da formação
das ideias; segunda: tratado sobre as faculdades intelectuais; terceira: conjunto de ideias,
convicções ou princípios filosóficos, sociais e políticos que caracterizam o pensamento de um
indivíduo, grupo, movimento, época, sociedade (ex.: ideologia política). O dicionário
Michaelis108 destaca que ideologia é a ciência da formação das ideias; um tratado das ideias em
abstrato; sistema que considera a sensação como fonte única dos nossos conhecimentos e único
princípio das nossas faculdades, e; maneira de pensar que caracteriza um indivíduo ou um grupo
de pessoas: ideologia socialista.
Em todas as colocações sobre o conceito de ideologia temos como panorama geral um
direcionamento para a compreensão das ideias que caracterizam um grupo social,
consequentemente, com repercussão sobre os indivíduos e suas ações.
Se abarcássemos uma concepção mais ampla direcionada à ideologia, se a
incorporássemos relacionada aos valores vigentes reproduzidos em uma determinada,
sociedade o debate poderia até ser profícuo, mas seria longo e complexo, levando em
consideração que desde a antiguidade existem formas de se pensar em uma consciência social
coesa. Por isso elaboramos uma explanação pontual em acordo com a emergência do termo e
seus principais usos.
A gênese da expressão ideologia é relativamente recente, sua origem se dá em bases
iluministas, aparecendo pela primeira vez no ano de 1815, no livro Elements de idéologie.
107 107 Disponível em: < https://www.priberam.pt/dlpo/>. Acesso em: 26 mar. 2018.
108 Disponível em: < http://michaelis.uol.com.br/>. Acesso em: 26 mar. 2018.
108
Criada por Antoine Destutt de Tracy, membro da elite de cientistas e filósofos os quais
constituíam a ala teórica francesa, despontou como um sinônimo da atividade científica capaz
de analisar o pensamento como parte da zoologia da ciência geral do humano. Nesses termos
tratava uma associação de ideias como fenômenos naturais capazes de exprimir a relação do
corpo humano, enquanto organismo vivo, com o meio ambiente. Partia do pensamento vigente
na época que se a ciência repousa em ideias, então, seria necessário esmiuçar as leis dessas
ideias. O método para a sua análise estava ancorado nos rigores científicos impostos pelo
positivismo, opondo-se a metafísica, a teologia e a psicologia (WILLIANS, 1979;
EAGLETON, 1997; KONDER, 2002; CHAUÍ, 2004; BOSI, 2010).
Na contramão dessa perspectiva externa-se o sentido desdenhoso cunhado por Napoleão
Bonaparte ao sentir o seu autoritarismo ameaçado pelo idealismo revolucionário. Esse ataca os
ideólogos e, principalmente, De Tracy, desqualificando-os e expondo-os enquanto responsáveis
pelos infortúnios franceses; coloca-os enquanto figuras nebulosas, abstratas e; desconhecedoras
da realidade concreta. Esse discurso notabiliza um novo sentido atrelado à ideia de falsa
consciência. Logo, a ideologia que era o estudo científico das ideias humanas passou a significar
o próprio sistema de ideias. Igualmente um ideólogo ao invés de ser um estudioso das ideias
passou a ser alguém que as expunha motivado por algum tipo de interesse. O que, aliás, antecipa
o sentido acolhido por Marx ao propor que a ideologia se trata de uma ideia abstrata de
“apologia política” (EAGLETON, 1997, p. 69).
Em “A Ideologia Alemã”, Marx (1999) segue essa concepção de falsa consciência dada
ao vocábulo e constrói o conceito como equivalente à ilusão: uma concepção idealista na qual
a realidade é invertida e as ideias aparecem como motor da vida real. Ou melhor, a ideologia,
de acordo com a formulação de Marx, não é simplesmente a mentira: ela pressupõe algum tipo
de conhecimento concreto da realidade e a distorce a ponto de traí-la. Essas distorções
ideológicas não são resultantes de conspirações e tramas que estão a serviço da burguesia,
embora elas existam e se aproveitem delas, mas são sua base e a causa está, justamente, na
própria organização da sociedade e em seu processo de complexificação que reduziu aos
indivíduos a capacidade de compreender de modo mais amplo as distintas relações sociais,
naturalizando-as (KONDER, 2002). Para Marx, claramente, ideologia é um conceito pejorativo,
um conceito crítico que implica em ilusão, ou se refere à consciência deformada da realidade
que se exerce através da ideologia dominante. Isso se dá porque o estudioso se debruça sobre a
crítica ao sistema capitalista e ao desnudamento da ideologia burguesa. “Se as ideias são
apreendidas como entidades autônomas, então isso ajuda a naturalizá-las e a desistoricizá-las;
e esse é, para o jovem Marx, o segredo de toda a ideologia” (EAGLETON, 1997, p. 70).
109
Para Eagleton (1997) os estudos que envolvem o conceito de ideologia estão divididos
em duas grandes orientações teóricas caudatárias de dois filósofos alemães do século XIX,
Hegel e Schopenhauer. A primeira, oriunda de Hegel (A fenomenologia do espírito) desdobra-
se do idealismo para o materialismo, traçando o debate iniciado por Marx e Engels (A ideologia
alemã) até as inúmeras produções do marxismo ocidental. A segunda concepção parte de
Schopenhauer (O mundo como vontade e representação) ganhou força subsequentemente com
as obras de Nietzsche, Freud e, em linhas gerais, na obra de Foucault e dos pós-estruturalistas.
Para Mannheim, o sentido da ideologia não se restringe apenas a um conjunto fechado
de representações e valores que estão ligados a determinados interesses. Além, são valores
projetivos com objetivos que direcionam às perspectivas futuras baseados na reelaboração de
uma construção feita no passado. Por isso relaciona a ideologia com o conceito da utopia uma
vez que afirma o papel ideológico de projeção do futuro na utopia, tanto por buscar objetivos
futuros, quanto por poder influenciar na ação social visando à construção de um mundo melhor.
A ideia de utopia em Mannheim amplia o conceito de ideologia não apenas como uma descrição
e justificativa, mas como uma projeção de futuro e modo de se repensar o próprio passado
(BOSI, 2010, p. 82).
Já Walter Benjamin desenvolve a sua contribuição por intermédio do que ele chama de
“escovar a história a contrapelo”; metáfora utilizada a fim de compreender, alicerçado na
história, o conceito de utopia presente em Marx, Engels e Hegel apoiado nas relações entre
passado e presente, com os olhos postos no futuro. É uma união em pensamento e ação de
passado, presente e futuro.
Em Mikhail Bakhtin como a linguística deve ultrapassar a ótica da língua como sistema,
recusa o fechamento do texto, então formula uma análise que põe em relação à ideologia com
a psicologia afirmando a primazia da ideologia na construção da consciência individual. Aponta
a impossibilidade de se entender isoladamente a língua, uma vez que essa é um signo social e
ideológico por excelência, transcendendo a abordagem marxista, combinando-a com o
freudismo e o estruturalismo. Inclusive, são os estudos de Mikhail Bakhtin e Roland Barthes
que possibilitam a análise dos meios e das condições nas quais os sentidos são socialmente
construídos e experimentados nos distintos tipos de discursos sociais.
Para Paul Ricoeur (1977, p.68) a ideologia aparece de modo reduzido quando as
tendências marxistas a encerra na convicção da falsa consciência. Não que o autor queira
combater esse direcionamento, mas chama atenção para o seu caráter restritivo. Colabora com
o alargamento do debate ao interpretar, inicialmente, o conceito como resposta à necessidade o
qual os grupos sociais têm de “conferir-se uma imagem de si mesmo”, isto é, uma necessidade
110
de representar-se no sentido teatral do termo, para si mesmo e para o outro. A lembrança é o
elemento fator da formação das ideologias, ela sedimenta ideias enquanto as situações se
transformam segundo as identidades que constrói. Como consequência o discurso é a
consagração da ideologia, pois tem um caráter codificado e esquemático. Com base no discurso
as ideologias são sedimentadas e em tal caso o pensamento crítico cede lugar à simplificação
do discurso integrador, o que ocorre na contramão da análise, da interpretação e do julgamento,
atividades intelectuais fundadoras do espírito científico. Logo, para Ricouer a ideologia aparece
no reino da opinião (doxa), do estereótipo, da frase feita prestando-se facilmente a jogos de
prestígio (BOSI, 2010, p. 136).
De acordo com Willians (1979; 2011) a questão da ideologia extrapola os estudos
marxistas e coteja três noções comuns que circunscrevem o conceito: a primeira refere-se a um
conjunto de crenças e valores de uma classe; a segunda é análoga à falsa consciência e; a terceira
diz respeito ao processo de produção de ideias e significados culturais. Em suma, um sistema
de crenças e valores de uma classe social que repercutem sobre a dinâmica do pensamento
social e falseia o real a fim de assegurar a perpetuação da sua posição de classe. Nesse ínterim,
a linguagem, em seu enredo cultural, é primordial para a constituição de ideias, imagens e
símbolos que organizam, delimitam e classificam os grupos ou classes, o que só é possível por
intermédio da ordem de produção do discurso hegemônico. O que favorece aos que produzem
o discurso legitimado em detrimento de outros grupos, sendo esses últimos suscetíveis ao
descrédito, aos clichês e estereótipos em suas práticas.
Diversos autores construíram definições sobre a ideologia que trazem à tona os diversos
corpus de significados existentes, talvez a noção mais comum seja a alegação de que a ideologia
tem a ver com a legitimação do poder de um grupo social dominante ou classe. Porém, Eagleton
(1997) aponta que a ideologia refere-se às representações empíricas vivenciadas pelo homem e
que como tal pode e deve ser alterada. As relações vivenciadas e transformadas forneceriam as
ferramentas necessárias para a constante mudança da sociedade, dilacerando com as condições
propícias de dominação.
Para a filósofa Marilena Chauí (2004), a ideologia se traduz em um conjunto
sistematizado de representações e condutas no qual deve-se questionar “o que” e “como” deve
pensar, sentir, valorizar e agir os membros de uma sociedade. Contudo, subscreve-se como um
corpo explicativo (representações) e prático (normas, regras, preceitos) de caráter regulador,
cuja função é justificar racionalmente aos membros de uma sociedade dividida em classes as
diferenças sociais, políticas e culturais, sem atribuir essas diferenças às divisões na esfera da
produção. Longe disso, sua incumbência é suprimir as diferenças de classes e fornecer aos
111
membros da sociedade o sentimento de identidade social a partir de referenciais identificadores
de todos e para todos, como, por exemplo, a humanidade, a liberdade, a igualdade, a nação ou
o Estado.
Baseados nesses autores endossamos que na atualidade não se deve primar por um
estatuto ontológico para definir a ideologia, ao contrário, para que o termo sirva como
ferramenta de análise deve ultrapassar os limites dos significados fechados e ir além da
bipolarização. Queremos dizer que não devemos apreender a ideologia fundamentados no
discurso de quem é privilegiado ou não nas distintas esferas de poder, isso porque nos
comunicamos através de ideias e de ações que constituem formas culturais e comportamentos
sociais, dessa maneira todos nós participamos do processo de elaboração de ideologias. Ou seja,
não estamos isentos de (re)produzi-las.
Temos em conta que a ideologia não é apenas proveniente dos grupos privilegiados nas
relações de poder, não é produzida somente pelas classes dominantes, uma vez que não só são
esses grupos que produzem valores. Inclusive, os valores de um determinado momento se
destaca mais do que a classe que o produziu; como não é só a classe dominante que produz
valores se torna mais adequado pensar em valores dominantes de uma época, do que pensar
propriamente em uma classe produtora de valores. Não há uma ideologia só de grupos, classes,
religiões, políticas ou de outro elemento isolado; o que há são os elementos em conexões sutis
do discurso, seja o discurso das fotografias, do turismo, do estilo de vida, dos tipos de lazer e
viagens, ou outros. Com tais características o jogo da ideologia é complexo e parte de uma rede
de valores vinculados em distintos segmentos, tempos e espaços.
3.1.2 A formação do discurso
Os estudos que se debruçam sobre o discurso nas ciências sociais oscilam basicamente
em dois objetivos: analisar funcionamentos e exercer um poder crítico. Para se pensar em crítica
seria necessário buscar desvendar interesses que de algum modo o discurso dissimula, essa
perspectiva eclode em 1960. O caráter dessas análises se manifesta por intermédio de uma força
crítica que encadeia os seus textos ao funcionamento das instituições que os produzem e os
gerem. Nelas o discurso aparece como um conjunto de enunciados que praticados ao longo do
tempo dão ênfase a uma dada formação discursiva construída através de um sistema regular
existente na dispersão do conjunto de enunciados estudados. A regularidade, em seu turno, é
constituída por regras de formação, ou melhor, por orientações em que os enunciados são
enquadrados a fim de pertencer a uma dada formação discursiva (FOUCAULT, 1969; 2007).
112
Embora não seja o único, Michel Foucault é um dos pensadores mais fecundos a fim de
se considerar a questão do discurso, para ele se trata de elementos ou enunciados dispersos que
mesmo não sendo arbitrários não estão ligados a uma unidade comum, conservando-se na
invisibilidade. Para dar coerência à dispersão do discurso Foucault (2007) coloca que se deve
construir um sistema de relações entre objetos, enunciados, estratégias e termos capazes de dar
uma lógica a dispersão existente.
Assim, os elementos constitutivos de um dado discurso aparecerão regularizados por
suas matrizes denominadas por formação discursiva. Podemos afirmar que o autor busca na
pluralidade, nos espaços alternativos e fora das fronteiras à racionalidade capaz de explicar as
práticas constituintes do discurso. Pensar nessa direção é se entrelaçar na dispersão dos
acontecimentos que constituem as produções humanas materializadas nos enunciados e na
formação discursiva.
Não se trata de interpretar o discurso para fazer através dele uma história do referente;
[...] Sem dúvida, semelhante história do referente é possível; não se exclui, de
imediato, o esforço para desenterrar e libertar do texto essas experiências ‘pré-
discursivas’. Mas não se trata, aqui, de neutralizar o discurso, transformá-lo em signo
de outra coisa e atravessar-lhe a espessura para encontrar o que permanece
silenciosamente aquém dele, e sim, pelo contrário, mantê-lo em sua consistência, fazê-
lo surgir na complexidade que lhe é própria. Em uma palavra, quer-se, na verdade,
renunciar às ‘coisas’, ‘despresentificá-las’; conjurar sua rica, relevante e imediata
plenitude, que costumamos considerar como a lei primitiva de um discurso que dela
só se afastaria pelo erro, esquecimento, ilusão, ignorância ou inércia das crenças e das
tradições ou, ainda, desejo, inconsciente talvez, de não ver e de não dizer; substituir o
tesouro enigmático das ‘coisas’ anteriores ao discurso pela formação regular dos
objetos que só nele se delineiam; definir esses objetos sem referência ao fundo das
coisas, mas relacionando-os ao conjunto de regras que permitem formá-los como
objetos de um discurso e que constituem, assim, suas condições de aparecimento
histórico; [...] trata-se de identificar os relacionamentos que caracterizam uma prática
discursiva (FOUCAULT, 2008, p. 53-54.).
A percepção presente na obra de Foucault (2008) é derivada do paradigma marxista de
formação social e ideológica. Contudo, a partir desse norte, essa concepção extrapola o
movimento dialético em prol do pensamento da coexistência. Princípio que parte do olhar das
condições históricas, sociais e das suas variáveis mais abrangentes e pertinentes aos seus
intuitos investigativos: em vez de limitar-se ao sistema da estrutura e a ideologias
contextualizadas foca-se nos acontecimentos que reproduzem as estruturas; nos discursos e nas
suas cadeias, na emergência e nas redes do enunciado. Tal, um enunciado que é unidade
elementar do discurso não se fecha sobre si mesmo, longe disso, conecta-se com outros
enunciados. O “enunciado é uma verdadeira coisa situada num entremeio, com a língua como
sistema de regras de um lado e, do outro, o corpus como o discurso efetivamente pronunciado”
113
(DOSSE, 2007, p. 301). Para Foucault (2008), o enunciado, menor unidade do discurso,
perpassa os blocos discursivos de um texto promovendo os conteúdos no tempo e no espaço.
Não acredito que a condição necessária e suficiente para que haja enunciado seja a
presença de uma estrutura proposicional definida, e que se possa falar de enunciado
todas as vezes que houver proposição e apenas neste caso. Pode-se, na verdade, ter
dois enunciados perfeitamente distintos que se referem a grupamentos discursivos
bem diferentes, a elaboração de um discurso que, como qualquer outro, não está
permanentemente submetido ao poder, nem oposto a ele. ‘É preciso admitir um jogo
complexo e instável em que o discurso (historiográfico) pode ser ao mesmo tempo,
instrumento e feito do poder, e também obstáculo, escora, ponto de resistência e ponto
de partida de uma estratégia oposta’ (FOUCAULT, 1977, p.96).
O enunciado elabora os signos que dão lógica ao discurso e define a produção dos
sentidos. Qualquer série de signos, de figuras, de grafismos ou de traços - não importa qual seja
sua organização ou probabilidade - constrói um enunciado. Enquanto a gramática determina se
é ou não uma frase; à lógica define se comporta ou não uma forma; e à análise precisa a
linguagem que a transpõe. Neste caso, existe o enunciado desde que existam vários signos
justapostos. O limiar do enunciado seria o limiar da existência dos signos (FOUCAULT, 2008,
p. 95) sendo elaborado por “um sujeito, em um lugar institucional, determinado por regras
socio-históricas que definem e possibilitam que ele seja enunciado” (GREGOLIN, 2003, p. 2).
As regras devem ser realçadas por intermédio da análise da formação dos objetos discursivos,
das suas operações, conceituações e opções teóricas, para que pululem os sistemas e as redes
de relações que se estabelecem nos discursos.
Como coloca Foucault (1984a, p.17) é a multiplicidade que cria o sentido, direciona aos
inúmeros afrontamentos entre forças e saberes, aflorados pela dispersão de acontecimentos
consequente de embates que emergem em meio a forças litigantes. Por isso a história praticada
como genealogia “restabelece os diversos sistemas de submissão: não a potência antecipadora
de um sentido, mas o jogo casual das dominações”. Em nosso direcionamento, os sentidos
sedimentaram os estereótipos e estigmas genéricos sobre os estados nordestinos, reduzidos,
comumente a duas acepções anteriormente: a da seca; e, a do turismo. A segunda apreende a
região, os costumes, as festas, a religião e aspectos culturais como exóticos.
3.2 A FOTOGRAFIA E A COMPREENSÃO SOCIOLÓGICA
A palavra fotografia é originária do grego phosgraphein, junção dos elementos: phos ou
photo, que significa “luz”, e de graphein, que constitui “marcar”, “desenhar” ou “registrar”.
Literalmente a palavra quer dizer desenhar com a luz, marcar com a luz ou registrar com a luz.
114
O termo surge a partir do processo que envolve a produção das fotografias, que se desenvolve
de modo mais efetivo nas duas primeiras décadas do século XIX, tendo sido oficialmente
registrada em 1926, no nome do Joseph Nicéphore Niépce. A fotografia é um tipo de
representação imagética que se dá através da captura visual de elementos distribuídos em um
espaço enquadrado no visor pelo operador. Esse último sustenta-se em específicas distâncias
dos elementos que se pretende reproduzir. Submetidos a exposição da luz através de uma lente
sensível e própria para este efeito os elementos distribuídos espacialmente são reproduzidos em
uma superfície fotossensível. Esse é o processo que deu nome a um tipo de escrita específico,
que é a escrita com a luz.
Barthes (1984, p. 121) enfatiza que a fotografia é um processo de construção da imagem
por meio da luz que, em sua incidência, sensibiliza sais de prata colocados em uma superfície
e assim permite “captar e imprimir diretamente os raios luminosos emitidos por um objeto
diversamente iluminado”. Consiste-se em uma impressão que a relaciona ao conceito de índice.
Nesse sentido, a fotografia não tem que ser semelhante ao objeto ao qual se refere, mas
distingue-se dos desenhos e da pintura, primordialmente, pelo contato físico com o referente,
pela impressão que gera uma imagem presa ao original.
Para Dubois (1993, p. 61) a fotografia é um índice discursivo que mantém relação com
o seu referente, para então produzir variadas interpretações. Antes de qualquer outra
consideração representativa, antes de ser uma imagem reprodutora das aparências de um objeto,
pessoa ou espetáculo do mundo, a fotografia é da ordem da impressão, do traço, da marca e do
registro. Em seu caráter realístico ou simbólico envolve o discurso da mimese, o discurso do
simbólico e o discurso do referencial 109. Nesse norte se destaca como passível de uma
infinidade de interpretações posteriores.
O surgimento da fotografia no cenário da modernidade trouxe novas sensações aos
indivíduos, dilataram as experiências, marcaram conceitos híbridos e fluídos como o mistério,
a dúvida e o desassossego. Transcendeu muito do que havia sido construído até então. Toda a
consciência estabelecida pela lógica do olhar para si e para o ambiente durante séculos foi
sobrepujada no momento em que o rosto, os feitos humanos e os espaços foram representados
na imagem fotográfica. Em acordo com as concepções que permeavam o momento, a
representação observada no artefato fotográfico era tal como se apresentavam dotados de uma
109 Dubois (1993) ao se basear na perspectiva peirceana da distinção entre ícone, índice e símbolo destaca três
diferentes posições epistemológicas em relação ao realismo e ao valor documental da fotografia: o discurso da
mimese, em que a fotografia é interpretada como espelho do real (ícone); o discurso do código e da desconstrução,
onde a fotografia ressignifica o real (símbolo); e o discurso do índice e da referência, que destaca a fotografia como
vestígio do real.
115
relação essencial com o referente. Esse invento fortalecia a certeza, cada vez mais presente, de
que o desenvolvimento técnico estava a serviço da sociedade, um apoio ímpar para desvendar
o mundo e construir novas certezas; concepção ideológica do momento. O domínio racional do
mundo incluía o homem na categoria de objeto a ser analisado, calculado e classificado. Não
havia mais a possibilidade que dava ideia da dúvida ou do erro.
A necessidade de estabelecer um recorte que priorize o ponto de vista do campo
acadêmico no qual observaremos esse objeto é primordial, diante de sua amplitude temática, a
fotografia se enraizou de forma demasiada extensa em diferentes âmbitos sociais. Abarcá-la em
todas as suas dimensões seria uma tarefa improvável. Mas, isso não impede uma reconstrução
de seu percurso, ocupando-nos em colocar de maneira geral, as nuances que essa exerceu ao
firmar-se nos diferentes contextos do espaço/tempo social, de revisar a representação e o
simbolismo capazes de iluminar as mudanças ocorridas em sua trajetória.
Diante da inserção da fotografia na sociedade, surgira vários olhares que almejaram
apreender seus sentidos. As ciências naturais a adotava como prova técnica de algum evento,
em sequência áreas epistêmicas como a sociologia, a antropologia, a geografia e a história
trilham o mesmo horizonte. Todavia, abrem-se como itinerários para compreensão dos seus
múltiplos enunciados e ao focarem na abrangência imagética dos elementos que a constitui
constrói-se um caminho que busca ir além da ilustração.
A fotografia é um fragmento das inúmeras narrativas que emergem sobre o Ocidente.
Sobre o mundo de modo geral, sua importância abrange-se com sua reprodução e circulação.
Sem dúvida, das diversas fontes iconográficas – pintura, escultura, televisão, cinema e etc. – a
fotografia caracteriza-se como um ícone da cultura visual, vigente por mais de um século e
meio. Quando sua técnica concretizou-se baseada na possibilidade de reproduzir
automaticamente um instante do mundo real lhe rendeu o pendor de imagem “espelho”:
habilidade materializada em meio às transformações ocorridas no século XIX, por intermédio
dos recursos tecnológicos (DUBOIS, 1993). Essa perspectiva fascinou e serviu aos projetos
científicos e aos ideários correntes. Na ciência, por exemplo, foi um recurso (em grande medida
ainda é) utilizado para justificar a pretensa objetividade das coisas. Apoiou à constatação de
fatos científicos das ciências naturais as humanas.
A crença a legitimidade atribuída às imagens fotográficas atravessou o século XIX, e
continuou como uma assertiva em praticamente todo o século XX. Sociólogos, antropólogos,
historiadores, entre outros estudiosos valeram-se dessa imagem como um documento objetivo
e indiscutível dos fatos, acontecimentos e situações. Ao contrário de outras fontes, a imagem
fotográfica colocaria o pesquisador diante de uma situação que está revelada. O historiador
116
Didi-Huberman (2003) exemplifica como se deu esse processo em seu estudo sobre Charcot e
a Iconografia de Salpêtrière, maior manicômio de Paris. Nele é averiguada a objetividade dada
as fotografias de pacientes histéricas produzidas no período da Belle Époque
Photography: ‘The Pencil of Nature’ (Talbot 1833) —'the Photographer needs in
many cases no aid from any language of his own, but prefers rather to listen, with the
picture before him, to the silent but telling language of Nature’ (H. W. Diamond, the
first photographer of madness, 1856). In photography, everything is already objective,
even cruelty; in it one can see, so they say, ‘the very least flaw.’ It was already almost
a science, humility made into the absence of language. This message without code
thus always says more than the best description; and, where medicine is concerned, it
seemed to fulfill the very ideal of the ‘Observation,’ reuniting case and tableau. This
is why, in the nineteenth century, photography became the paradigm of the scientist’s
‘true retina’ (DIDI-HUBERMAN, 2003, p. 32).110
Didi-Huberman descreve o momento em que a fotografia aparece como prova cabal de
algo, sendo o fotógrafo um mero sujeito da sua produção, uma vez que esse indivíduo não
precisaria intervir no processo de compreensão do que foi captado. Ao contrário, diante dessa
noção é a imagem que revelaria algo, que ilustraria o despercebido ao olhar humano, por conter
em si mesma o evento captado. Contudo, o que se tem é uma realidade aparente, uma vez que
o que se apreende é o que se quer ver. A fotografia considerada como autônoma, em sua
interpretação, nada mais seria do que um recurso técnico da modernidade que manipulado por
um indivíduo revela verdades do cotidiano.
No caso do Salpêtrière, os psiquiatras buscavam no dispositivo de visibilidade a
apreensão da manifestação da histeria contida no que se acreditava já evidente. No manicômio
os corpos das internas eram submetidos a uma rotina de poses que favorecia ao psiquiatra
conceituar a patologia. Esse é o modo inicial de se relacionar e compreender a técnica que
tomava corpo e construía os modos de olhar legitimando várias concepções do saber. Os
primeiros discursos são marcados pela concepção geral de que a fotografia é “a imitação mais
perfeita da realidade”, como explica Dubois (1993, p.27). Essa é origem do fazer fotográfico
conectada a noção de semelhança com o existente captado por intermédio da mecânica. Mesmo
sendo um discurso rodeado por contradições e polêmicas, é clara a ideia ortodoxa da sua
objetividade, da captação do natural. Nesse sentido, o procedimento mecânico seria capaz de
110 Fotografia: “O pincel da natureza” (Talbot, 1833) - “Em muitos casos o fotógrafo não precisa de uma linguagem
que lhe seja própria, ao invés disso, prefere ouvir junto com a imagem que está diante dele, a silenciosa, mas
reveladora linguagem da Natureza” (Diamond, A primeira fotografia da loucura, 1856). Na fotografia tudo já está
objetivado, até mesmo a crueldade; e pode ser observado, eles dizem, “até os mínimos detalhes.” Isso já era quase
uma ciência, a submissão na ausência de linguagem. É uma mensagem sem códigos, consequentemente, diz mais
do que a melhor das descrições. E, em relação à medicina, ela parecia cumprir o ideal da “Observação”, reunindo
o caso e o quadro. Esse é o motivo pelo qual no século XIX, a fotografia tornou-se o paradigma “da visão real” do
cientista. Tradução nossa.
117
construir uma imagem que fosse o “espelho do real”, possível “sem que a mão do artista
intervenha diretamente” (DUBOIS, 1993 p. 27).
O cenário embrionário da fotografia fortaleceu a crença na captação de um registro de
um momento imobilizado no tempo. Essa convicção partiu de um paradigma vigente que
também construía paradigmas sobre as pessoas, objetos, paisagens e lugares. Essa confiança na
apropriação de fragmentos do real, da reprodução de maneira mecânica da realidade visual,
como ressalta Martins (2009, p.29), é a expressão de uma das grandes e fundantes ilusões da
sociedade contemporânea, a da paralisação da vida.
As premissas que deram origem a essa concepção do caráter fidedigno da imagem
fotográfica têm seu início no período renascentista, com a busca de se retratar a realidade da
maneira mais próxima ao olhar humano. Foi desse intento que floresceu a perspectiva
artificialis ou uniocular, sistema baseado na geometria euclidiana que procurava dar a ilusão de
profundidade nas representações pictóricas, oferecendo nitidez ao objeto de interesse e
distanciando os outros objetos no quadro. A convenção da perspectiva como referencial
procedente do real foi organizada por intermédio de um ponto central – o ponto de fuga –,
ordenador da materialização dos objetos reproduzidos em relação a sua posição a outros objetos
inclusos no campo pictórico. Trata-se de um sistema ordenador, nele o espaço assume um
caráter concreto e imutável diante dos objetos que sobre sua base tem caráter móvel. Essa
construção conferiu uma nova visualidade em relação ao sujeito/objeto/natureza, separando,
destacando e dotando-os de inteligibilidade. Uma técnica revolucionária que, na época em
questão, estava coadunada a uma consciência inovadora de transformações e evoluções que
levou o indivíduo a empreender meios de representação cada vez mais capazes de aumentar o
grau de veridicidade dos objetos (COSTA; SILVA, 2004).
A genuinidade pretendida na reprodução dos indivíduos e dos espaços que os
circunscrevem consistia substancialmente na construção dos conhecimentos sobre os sujeitos e
a natureza. Ideia que rompe com as concepções anteriores, majoritariamente, calcadas nas
lógicas religiosas. São transformações que se instauraram em todas as esferas da vida social,
econômica e cultural, norteadas por meio da ótica científica que aflora na modernidade com
técnicas construídas e aliadas ao conhecimento. A fotografia como parte desse escopo tem a
inovadora tarefa de representar o real, por ser resultado de um sistema mecânico compreendido
como preciso, caracterizando uma cultura visual até então inédita.
A primeira imagem fotográfica reconhecida oficialmente foi uma paisagem elaborada
pelo francês Joseph Nicéphore Niépce (1765-1833), antes empolgado com a litografia começou
118
seus experimentos valendo-se da câmara escura. Em 1826111, após oito horas de exposição à
luz fixou a famosa imagem “View from the Window at Le Gras” (Figura 10)112. Processo que
denominou por “Heliography” (gravura de luz solar). Contudo essa conquista não foi uma obra
isolada, mas decorrente de vários experimentos em diferentes pontos do mundo, marcado por
políticas sociais, econômicas e territoriais que favoreceram o destaque de alguns nomes e o
obscurecimento de outros.
Figura 10- Vista da Janela de Le Gras.
Fonte:
A fotografia já era reclamada por alguns pesquisadores que afirmavam ter elaborado,
também, os meios ideais para materializá-la. Havia uma corrida entre os entusiasmados pela
finalização efetiva do processo de revelação. Niépce procurou fazer parceria com os estudiosos
do procedimento, após cautelosos contatos chegou até o pintor e físico Louis Jacques Mandé
Daguerre (1781- 1851). Com ele selou um contrato em 14 de Dezembro de 1829, a fim de
aprimorar a técnica. Niépce faleceu pouco tempo depois de firmada à sociedade, em 1833, no
anonimato.113 Deixou seu parceiro em uma situação privilegiada pelos avanços alcançados em
suas pesquisas (KOSSOY, 2006).
111 Ainda que essa data seja oficializada existem divergências quanto a sua veridicidade. Um exemplo é o do
pesquisador Boris Kossoy, que embora concorde que Niépce foi certamente autor das primeiras imagens
permanentes obtidas por processo fotográfico questiona essa data, “seria 1824 ou 1826? ” (KOSSOY, 2006,
p.121)]
112 “Vista da janela em Le Gras”, nome dado à imagem de Niépce, marcou o início da fixação da imagem por meio
da técnica. Em 2003, foi publicada pela Revista life entre as 100 fotografias que mudaram o mundo. 100
Photographs that Changed the World. New York: Revista Life, 2003.
113 Texto The First Photograph, sobre a primeira imagem permanente de Niépce, disponível no site do Centro
Harry Ransom localizado na Universidade do Texas.
119
Daguerre seguiu com as pesquisas e chegou ao processo de revelação entre os anos de
1834 ou 1835, sendo o tempo de exposição ainda um agravante, com o tratamento dos vapores
de mercúrio conseguiu reduzir a exposição à luz de horas para cerca de 20 a 30 minutos
(KOSSOY, 2006). Já a questão da fixação ideal das imagens nas placas, foi resolvida por volta
de 1839, com o uso de hipossulfito de sódio. Logo, contou com o apoio político do secretário
permanente da Academia de Ciências de Paris que propôs ao governo a compra do invento. Em
19 de agosto de 1839, foi reconhecido no instituto da França e anunciado ao mundo o invento
que levou o nome de seu idealizador, posteriormente foi doado pelo governo a vários países. A
maior intenção sobre esse invento era criar uma perspectiva tão próxima ao real a ponto de
reprimir a própria representação. A partir daí, houve uma corrida de aperfeiçoamentos
tecnológicos destinados à criação de imagens mais próxima da realidade.
Figura 11- Primeiro daguerreótipo feito por Daguerre.
Fonte:
Na época em que operou-se a fixação da imagem fotográfica já existia todo uma
conjuntura que indicava “que a hora de sua invenção chegara e haviam vários pesquisadores
que trabalhando independentemente visavam o mesmo objetivo”, como nos descreve Benjamin
(2012, p.91), que era “fixar as imagens da câmara obscura, conhecidas desde Leonardo”. Ao
se tratar da história, não é fechada ou estratificada, mas ao contrário, é um processo dinâmico,
que revivifica os fatos passados por estar em contínua construção. O privilégio dado a alguns
espaços e personagens faz perder de vista outros caminhos, sobre esse aspecto Kossoy destaca
que no contexto de descoberta da fotografia:
Herschel empregou o termo photography pela primeira em fevereiro de 1839. [...]
Outros precursores ainda poderiam ser citados, como Hippolyte Bayard, funcionário
público do governo da França, que foi habilmente deslocado por Francisco Arago –
comprometido com Daguerre – de uma posição mais destacada na história da
120
descoberta da fotografia.[...] Devemos frisar, novamente, o fato de que uma
descoberta nunca surge do nada; ela é o resultado de um processo cumulativo de outras
descobertas que vão sendo elaboradas ao longo do tempo, por vezes ao longo de
séculos: a descoberta da fotografia bem exemplifica isso (KOSSOY, 2006, p. 127).
O cenário social que germinou esse invento marca o etnocentrismo europeu
impulsionado pela revolução industrial e pelo fato do território ser o berço das mais importantes
descobertas científicas e tecnológicas do momento. Um período de grande opulência
socioespacial que se ocupou, entre outros assuntos, com a formação de grandes nomes para a
sua história. Logo, a possibilidade de regularizar experiências pré-existentes às já lavradas pelos
meios oficiais europeus, por pessoas que seus feitos e suas relações sociais não eram influentes,
mormente, se essas estivessem estabelecidas em territórios colonizados, como, por exemplo, o
da “exótica” América latina, acarretariam grandes desconfortos.
Histórias do invento fotográfico ficaram nas sombras, como a Hercule Florence (1804
-1879)114 que só veio à tona um século e meio depois da datação oficial, foi uma revisão isolada
do pioneirismo do processo fotográfico descrita pelo historiador Boris Kossoy (2006), traz à
baila fatos que confirmam as experiências desenvolvidas por Hercule, cujos resultados alcançou
na ainda “sem relevância” província de São Carlos, atual cidade de Campinas, em São Paulo,
muitos anos antes que Daguerre. A pesquisa desconstrói a hegemonia histórica direcionada a
Daguerre e revela o processo de registro da imagem como resultado de múltiplas pesquisas,
com destaque a França, Inglaterra e Brasil. Depois da tese de Kossoy importantes pesquisadores
da fotografia passaram a citar Hercule Florence como “um dos pais” da fotografia. Uma revisão
no qual nem o Niépce e nem o Daguerre podem deter essa exclusividade.
Antes, a fotografia foi inventada na Inglaterra por William Talbot (1800 – 1877)115 e
nas Américas por Hercule Florence silenciado por encontrar-se isolado e distante do centro
gerador das ideias e tecnologias dominantes da época. Quando Florence soube pelos jornais o
alvoroço causado pelo invento do mecanismo que fixava as imagens declarou: “Realizei-a antes
do processo de Daguerre, mas trabalhei no exílio. Imprimi por meio do sol sete anos antes de
se falar em fotografia. Já tinha lhe dado esse nome, entretanto, a Daguerre todas as honras”
(MONTEIRO; KAZ, 1998, p. 360).
Como marco da imagem técnica a fotografia atravessou com ímpeto os valores de
autenticidade e unicidade referentes às imagens antecessoras ao seu advento. Metamorfoseou
114 Para um maior conhecimento sobre o assunto ver; KOSSOY, Boris. Hercules Florence, a descoberta isolada
da fotografia no Brasil. 3 ed. São Paulo: EDUSP, 2006.
115 Astrônomo, químico e linguista inglês, que em 1835, após longos anos de experiências obteve as primeiras
imagens fotográficas através do princípio negativo-positivo, a qual denominou por photogenic drawings. Para um
entendimento maior do assunto ler: Kossoy (2006).
121
as formas do olhar, de percepções e distinção das coisas que se projetam no mundo. Também,
modificou sensações e valores intrínsecos aos seres humanos, como, por exemplo, a maneira
de lidar com as lembranças, com os esquecimentos, de contemplar paisagens, de perceber o
mundo e os eventos sociais, de reviver um amor, de viajar em diferentes espaços, entre outras.
3.2.1 Fotografia e Sociologia: diálogos iniciais
Como já mencionado anteriormente, a fotografia surgiu em uma conjuntura de
significativas transformações mediadas pelo desenvolvimento técnico, por novos tipos de
experiências que envolveram as emergentes metrópoles. Seus impactos culturais, também, são
sentidos no Brasil inicialmente na cidade do Rio de Janeiro onde o uso desse recurso imagético
esteve ancorado a lógica moderna imersa na cidade, testemunhando-a. Nesse entendimento, as
fotografias estiveram presentes nesse momento de ebulição de impressões sobre a cidade, sendo
usadas como elementos de promoção e divulgação turística, virando inclusive um mimo, um
souvenir, um meio de mostrar partes do Brasil ao mundo, do mundo ao Brasil e do Brasil ao
próprio Brasil, alimentando vários imaginários. Elas podiam ser compradas no comércio pelos
visitantes figurava entre outros produtos como o artesanato, as frutas, os animais selvagens, as
ervas medicinais e temperos.
O Guia Internacional da Europa confirma que quando se refere às lembranças
encontradas para vender aos turistas, uma opção era as fotografias de Marc Ferrez, com
referência significativa da fotografia paisagística do Brasil. “Como lembrança do Rio de
janeiro, encontram-se em casa de Sñr Marc Ferres, á rua de S. José, n. 88 perto do largo da
Carioca, uma bonita e variada collecção de vistas photographicas da cidade, da bahia e dos
arrabaldes” (GUIA INTERNACIONAL, 1889, p. 265 e 267).
A fotografia se espalhou com as imagens impressas em suas bases difundindo ideias,
operando uma das mais significativas revoluções culturais que permearam a sociedade
racionalista moderna. Diminuiu as distâncias dando a ver os locais mais longínquos, uma
valiosa fonte imagética para a história das cidades, principalmente, quando atrelada ao turismo
que as revelava de modo otimista. As fotografias forneciam vários significados visuais com as
insígnias e interesses dos discursos próprios dos grupos ou indivíduo ao qual era um
instrumento de comunicação. Destacava tanto as cenas modernas, quanto as consideradas
exóticas.
Nesse cenário social, político, cultural e ideológico que a câmara fotográfica surgiu,
marcando uma nova sensibilidade nos modos de olhar e interpretar as coisas urge a necessidade
122
de explicações coerentes para as transformações. As mudanças geram a necessidade do
entendimento dessa nova sociedade que desponta com suas novidades e contradições. Precisa-
se de uma chave para interpretar, discutir e diagnosticar os diversos panoramas sociais
existentes e em processo de criação. É o momento em que os conhecimentos sob a denominação
de ciência, deixam de ser parte de sistemas filosóficos, a fim de se tornarem disciplinas
individuais e específicas, demarcada em suas funções e objetivos próprios. Nesse processo
concomitante aos novos modos de produção industriais e o nascimento de classes sociais,
constrói-se a sociologia como referência para a compreensão dos modos de organizar, vivenciar
e ver a sociedade.
A disciplina sociológica, assim como a imagem fotográfica, surge marcada pela
concepção de imobilização do tempo e do espaço. Pretende explicar as questões sociais por
meio da fixidez; encarava a ideia de progresso atrelada ao desenvolvimento da ordem nas
coisas; da sociedade como coisa; da sociedade como organismo; do mundo material e; dos
fenômenos determinados. Nesse período de constituição da disciplina sociológica o que se
busca apreender é o confronto social entre o mundo fixo – que se consolida no século XIX, com
as classes sociais – como a burguesia e o proletariado –, de um ordenamento bem claro
(DURKHEIM, 1982; 1996). Pretende-se desvendar o mundo com as classificações sociológicas
bem marcadas; um panorama de muitas projeções; tais como a esperança na potencialidade
libertadora que se almejava em torno da ciência contra as limitações humanas.
Por outro lado, isso tudo transparece desaparecer rapidamente com os conflitos que
surgiram diante dos problemas que assolaram as cidades desde a redução de fronteiras espaciais
até a própria velocidade favorecida pelos meios de transportes que sofisticavam-se, o que
provoca uma sensação de ausência de referências. Iniciou-se uma série de bombardeios as
noções existentes que as ciências sociais não dão conta de esclarecer. É o ímpeto arrebatado
desse cenário absorto, atordoado com os principais traços que caracterizam o modo de vida
urbano levada a cabo diante das grandes mudanças estruturais do mundo moderno: que vão
desde a racionalização das relações até o ritmo moderno ocidental fragmentário, nervoso,
fugidio, efêmero, responsável pela cisão entre as culturas subjetivas e objetivas. É um panorama
que requer racionalidade explicativa diante da pluralidade desconcertante dos acontecimentos
que emergem (SIMMEL, 1967).
Busca-se abarcar várias novas manifestações sociais, entre elas a metrópole, as viagens,
as trocas, as sociabilidades, as relações culturais que se dão diante das novas experiências
tecnológicas. As linguagens e categorias convencionais não são mais suficientes para descrever
as relações que povoam o mundo. Contraditoriamente, algumas interpretações que tentam dar
123
conta dessa realidade como as do estudioso Georg Simmel que questiona os modos da vida
urbana; a entrada do dinheiro nas relações modernas; as paisagens que surgem com a nova
dinâmica e as subjetividades impostas em torna delas são pouco valorizadas só sendo
reconhecidas anos depois.
A ortodoxia existente diante das lógicas institucionalizadas dificultava qualquer tipo de
rompimento com as naturalizações. A lógica mecânica e funcional era tão forte que a própria
explicação científica em torno da anatomia do glóbulo ocular, conceituada após o invento da
máquina fotográfica, foi determinada em conexões com o funcionamento do instrumento
fotográfico; ou seja, foi explicada a partir da noção do funcionamento do equipamento
fotográfico para captação da realidade. Até os dias atuais não tem sido uma tarefa simples
desmitificar tais noções; a fotografia, por exemplo, ainda é confundida com a realidade dos
fatos, até em âmbito acadêmico.
Foi legitimada como um objeto da análise sociológica e antropológica a partir da ótica
da revelação do real, contudo, as armadilhas que entremeiam esse discurso ficam mais claras
recentemente. A aparição constante da fotografia como prova de uma pesquisa, como
balizamento do que foi escrito em um artigo ou do que está sendo dito construiu as próprias
bases para o questionamento sobre os tipos de realidade que a fotografia revelou enquanto
realidade.
Ampliou-se, portanto, a possibilidade de se pensar que o que está sendo produzido ou
revelado com o apoio da fotografia recorta interesses imersos no próprio processo do resultado
do que está sendo criado. Convém observar que esse é, do mesmo modo, o destaque dado por
Georges Didi-Huberman (2003), diante do acervo iconográfico do manicômio parisiense de
Salpetrièrê, onde o uso da fotografia gozou de grande prestígio. A fotografia era o instrumento
de revelação do invisível ao olhar do psiquiatra, na medida em que se acreditava que captava a
realidade dos sintomas e dos estigmas dos pacientes. Interpretada como uma prova objetiva
capaz de encerrar qualquer outra especulação ou descrição, confirmava o discurso médico da
patologia que se queria destacar. Semelhante o caso da definição da anatomia ocular, vejamos:
A ciência materialista transformando o olho ou o globo ocular da tradição num objeto
de estudo e aplicando os princípios da física e da química a esse mesmo órgão
sensorial logo a seguir, ou seja, na segunda metade do século XIX descobriu,
coincidentemente, que o olho funcionava quase da mesma maneira como uma câmara
fotográfica antiga fazia. Os pretensos estímulos luminosos emanados por uma não
menos pretensa forma externa penetravam pela pupila, pelo cristalino, pelo corpo
vítreo e aqui a imagem do objeto externo ficava de perna para o ar ou a imagem ficava
invertida como acontece numa câmara fotográfica por causa das lentes. Ao invés de
incidir numa placa sensível ou num filme, com nitrato de prata e tudo o mais, a
imagem invertida ocular incidia numa pequena zona especial do fundo do olho
124
chamada retina, fóvea centralis, as quais e por ironia, ou coincidentemente equivaliam
à placa sensível ou ao filme da máquina fotográfica (BONO, 2010, p 147).
O autor questiona a objetividade dada aos mecanismos modernos e aos conhecimentos
institucionalizados, a partir da relação dos discursos e dos paradigmas que marcam uma época
interligando-se e atuando na própria elaboração desses discursos. Ambos os exemplos dialogam
com a concepção de que o pesquisador no processo de construção do conhecimento,
independente do campo em que atua, quando utiliza suas imagens fotográficas não possui um
olhar totalmente neutro ou imparcial diante do ponto de vista de suas redes de relações sociais.
O olhar de quem pesquisa é muito mais interessado do que o olhar de um simples indivíduo que
convive em um grupo e reproduz aleatoriamente julgamentos que fazem parte do senso comum.
Ao contrário, um pesquisador é alguém com ponto de vista pré-elaborado por intermédio
de um escopo de leitura e conhecimento que antecede as imagens fotográficas usadas em seus
estudos, sejam essas da sua própria câmara ou das imagens que seleciona de um fotógrafo para
a construção da sua pesquisa. As fotografias indiciam o pertencimento ao campo escolhido e
aos objetivos que os correspondem.
Se levarmos em conta a concepção da imagem fotográfica como uma prova do real,
como portadora de um fato em si mesmo, como a retina do cientista e a prova de um registro
não abrimos a perspectiva para uma análise crítica de um dado contexto. Nesse aspecto, não há
como se pensar na crítica sociológica. As interpretações que direcionam a fotografia à descrição
dos fatos e outras noções que entendem a imagem somente como ilustrações distanciam-se das
perspectivas contemporâneas da sociologia, posto que esse saber não se situa em nenhum desses
dois polos:
O fato em si mesmo
Fotografia: Não há a reflexão sociológica aqui.
Ilustração do fato
As análises da sociologia não estão ancoradas na realidade dos fatos em si, mas na
interpretação das concepções desses fatos em acordo com os envolvidos cotidianamente; está
ainda pautada na interpretação que organiza e torna inteligíveis as relações sociais nos
processos interativos que se realizam no confronto entre referências culturais, históricas e as
próprias condições estruturais; questões essas que escapam a compreensão cotidiana.
125
No campo sociológico, justamente no uso frequente das fotografias como um
documento de registro objetivo, foram analisadas as limitações desse recurso imagético; uma
vez que as fotografias demarcam apenas um aspecto do que é visível, mantendo a invisibilidade
de várias dimensões que constroem as relações sociais. Nesse conjunto, a fotografia teria dois
usos específicos: primeiro, poderia ser usada pelo sociólogo de forma invasiva infiltrando-se
no espaço com sua presença e ideias a fim de flagrar seus sujeitos desprevenidos; aqui se
constrói a ideia da fotografia documental. Segundo; poderiam ser utilizadas as fotografias já
existentes, nelas o principal objetivo seria a captação do social, constituído em prol dessa prática
a partir das questões que envolvem uma sociedade imersa na cultura popular da imagem; aqui
buscam-se os códigos que imprimem esse tipo de visualidade, como documento de diversas
sociabilidades (MARTINS, 2009). Nessa segunda opção emerge um terreno profícuo para o
uso da fotografia como um fenômeno social. Áreas como a arte, filosofia, semiótica, história,
sociologia, antropologia, etc., abrem-se como itinerários que visam permear os múltiplos
enunciados e a abrangência imagética dos elementos existentes na imagem, enveredam por um
caminho que objetiva ir além da ilustração. No entanto, seu uso serviu e, ainda serve como
recurso de legitimação dos fatos pesquisados.
3.2.2 Perspectivas com os clássicos
As produções técnicas e culturais devem ser pensadas a partir do vivido, nesses termos
o modo de olhar o que nos cerca não está à parte das projeções construídas em âmbito social,
são modos que adquirem sentidos no cotidiano. O olhar é simbólico e se constrói nas mediações
entre os indivíduos e o objeto olhado – uma relação entre o concreto e o abstrato, entre o visível
e o invisível – externando as “coisas” do mundo em acordo com as manifestações culturais.
Uma interferência culturalmente construída, visto que não lidamos com o universo real das
coisas (AUGRAS, 1967). Esse olhar lançado à fotografia é central na sociedade atual. A
máquina fotográfica está presente em muitas mãos registrando variados assuntos, divulgando
pontos de vistas que circulam e rapidamente são apreendidos por distintos olhares. O que
fotografar? Como fotografar? Como se deixar fotografar? Como materializar o que foi
produzido no momento do registro? Aonde divulgar o que foi fotografado? Porque divulgar?
São questões concernentes às mediações que envolvem o universo da fotografia.
A fotografia não só chama a atenção de vários pesquisadores, como faz parte do seu
cotidiano profissional e pessoal, visto a inserção que tem em nossa sociedade. E, mesmo tendo
sido aclamada por seu valor de uso e pelas contradições que causou no momento de sua
126
emergência, não fez parte das questões presentes nas obras dos autores clássicos da sociologia.
Se desde o seu início a fotografia tem sido fundamental nas relações humanas, porque só agora
ela se torna um objeto que ganha importância nos debates acadêmicos? Ora, quando foi criada
não era dotada de um caráter de universalidade. No período que despontou às ciências humanas,
de modo geral, a imagem fotográfica estava fundada na ótica funcional do seu uso e na
interpretação contextual dos elementos que retratava.
Ainda, a fotografia adaptada aos prazeres da burguesia externava os modos no qual “se
viam” e desejam “ser vistos” socialmente. As vestimentas, a arquitetura, o cotidiano, as práticas,
os espaços e todos os aparatos disponíveis e passíveis de serem reproduzidos e comercializados
pelos indivíduos foram difundidos pela imagem. As práticas sociais e as diversas relações que
se estenderam socioespacialmente se ancoraram nos projetos burgueses que preliminarmente
circularam em imagens fotográficas. O cartão-postal foi um dos grandes suportes iniciais,
circulou fortalecendo imaginários sociais, indicando modos específicos de sociedades e
identidades. Proporcionou a materialização da dinâmica burguesa estabelecendo-a no
imaginário social.
A fotografia foi assim um objeto legitimado diante da classe social burguesa, porém
nem Karl Marx a cita em sua obra, uma vez que não era massificada, que não existia o alcance
que tem na atualidade. Mas, mesmo afastado de um pensamento que se refere à fotografia, Karl
Marx (2004) nos Manuscritos Econômico-filosóficos aponta para a objetividade e a
subjetividade da vida entrelaçadas no contexto das produções materiais a partir de uma
descrição ontológica dos sujeitos sobre as bases produtivas. Nessa gama de objetos e produções
poderia ter pensado a relação da fotografia com o olhar humano.
“A formação dos cinco sentidos é um trabalho de toda a história do mundo até os nossos
dias” (MARX, 2004, p. 110). Esses são construídos por meio das subjetividades concernentes
às relações sociais. Nessas o processo do ver se faz diferente do enxergar e o olho tornou-se
humano assim como o seu objeto tornou-se objeto social. Em um paralelo com a filosofia e
procurando salientar o pensamento de Marx, o filósofo grego Platão em uma de suas máximas
diz que o homem está em contato permanente com dois tipos de realidade: a sensível e a
inteligível.
A primeira parte do mundo dos sentidos, do qual temos um conhecimento aproximado
ou imperfeito, nessa realidade fazemos o uso dos nossos cinco sentidos (visão, audição, olfato,
tato e paladar). A subjetividade pode ocorrer numa experiência particular de um indivíduo com
um objeto, por exemplo, ao comer uma fruta um indivíduo conhece a fruta. Através de seus
sentidos ele pode dizer sobre a doçura, a cor ou o cheiro dela. As proposições são frutos das
127
experiências subjetivas; por isso estas proposições são opinativas, não decorrem de exatidão,
precisão e ciência (MARX; ENGELS, 2010, p. 134-135).
A segunda parte, por sua vez, está associada ao mundo das ideias, do conhecimento
obtido através do intelecto a partir da sistematização de elementos, utilizando a razão. Esse
mundo das ideias não pode ser conhecido através dos sentidos. Em compensação, as ideias ou
formas são eternas e imutáveis. Uma pessoa leiga sabe da existência das vacinas através de uma
reportagem mostrada numa TV, em que a comunidade científica descreve os benefícios da
vacina e os efeitos que elas causam em um organismo. Mesmo sem saber se ela funciona os
ouvintes do noticiário acreditam no conhecimento que é passado pela ciência. Este tipo de
conhecimento é objetivo, contrário da realidade sensível que é subjetivo.
Platão afirma que é no mundo das ideias que moram os seres totais e perfeitos: a justiça,
a bondade, a coragem, a sabedoria, etc. O mundo concreto percebido pelos sentidos é uma
pálida reprodução do mundo das ideias e fora deste último tudo o que captamos através dos
sentidos possui apenas uma parte do ser ideal. O mundo sensível, portanto, é um mundo de
seres incompletos e imperfeitos. Cada objeto concreto que existe participa, junto com todos os
outros objetos de sua categoria, de uma ideia perfeita. Uma determinada mesa, por exemplo,
terá determinados atributos (cor, formato, tamanho, etc.). Outra mesa terá outros atributos,
sendo ela também uma mesa, tanto quanto a outra. Aquilo que faz com que as duas sejam mesas
para Platão é a ideia da mesa perfeita que apreende todas as possibilidades de ser mesa.
Karl Marx e Platão tem uma ligação teórica muito interessante sobre a importância da
subjetividade do indivíduo influenciando a objetividade social. A construção teórica desses
ícones direcionada à fotografia sugere a perspicácia das subjetividades do fotografo, e da
própria fotografia, dada pelo mundo dos sentidos. Remete ao resultado do aparente uma
consonância social objetiva.
Outro pensador caro as Ciências Sociais é Émile Durkheim, se formos analisar a
fotografia diante do que expôs a atrelaríamos a sua gênese, instituição e funcionamento na
sociedade, essa apareceria como um fato social. O fato social é o objeto da sociologia e
exerceria nos indivíduos uma coerção exterior, a fotografia cumpriria as regras do fato social,
visto que gera um tipo de impacto, isto é, causaria coerção no modo de ação das pessoas. Uma
vez que esse recurso imagético segue uma estética tanto na sua elaboração, quanto nos rituais
de se manter diante do equipamento para ser fotografado, cria aparências, desperta desejo,
forma ideias e padrões. Quem não o segue é penalizado. Imaginem crianças sendo fotografadas
para a formatura escolar, existe um padrão a ser seguido; o corpo ereto, vestimentas adequadas,
o sorriso, a fila, um conjunto normativo, a criança que não estiver condizente com a norma
128
geral, será penalizada socialmente, tanto na instituição escolar, como em outros momentos que
por ventura tenha que expor e se deparar com a fotografia.
A fotografia circula destacando modos de comportamento, tipos de corpos humanos em
suas representações simbólicas, delimitam os cenários das próprias paisagens fornecendo uma
classificação que pode enquadrá-la enquanto modernas ou rústicas; urbanas ou naturais,
religiosa ou profana, do progresso ou da tradição. Ela promove uma ordenação, que escapa a
consciências das pessoas que reproduzem essa ordem. Sendo a fotografia exterior ao indivíduo,
nem sempre o seu uso depende da vontade dele. Entretanto, ela está atrelada as instituições
sociais, por exemplo: a maioria dos documentos que se prestam à identificação válidos em
diversos países do ocidente necessitam de uma fotografia, esse seria um tipo de coerção, é
exterior a vontade do indivíduo, mas está imbuída na necessidade social da comprovação com
a imagem. Essa reprodução da ordenação constrói um imaginário que reveste de sentido o que
a fotografia por si só não tem e “esse sentido permite cada um de nós viver e sobreviver
socialmente” (MARTINS, 2009, p.19).
Se tratando do imaginário ambos os autores, Karl Marx e Émile Durkheim, destacam
que esse não é um processo consciente. Durkheim pensa o imaginário como uma forma de
organização das relações sociais. Para esse autor, a sociedade em qualquer momento pode entrar
em um estado de patologia, ou seja, de anomia – de ausência de regras – então, as noções fortes
têm o papel de colocar as coisas dentro das regras. O ponto de vista direcionado aos registros
fotográficos permite pensá-los a partir de uma localização que é dada aos indivíduos por meio
do ordenamento da imagem, dessa forma a fotografia cria regularidades. Tendo a fotografia
como exemplo é perceptível que esse artefato é dotado de uma espacialidade, em uma imagem
da cidade os elementos vigentes são os edifícios, os monumentos, as pessoas em suas
hierarquias sociais, etc. O modo como esses ícones são representados favorece a construção de
uma ordem social dando ênfase ao que é priorizado como parte e ordem de uma cidade.
Durkheim ao tratar da anomia destaca que o homem comum seria uma vítima impotente da sua
incapacidade de fazer interpretações corretas sobre a sua situação, quer dizer, não consegue
esclarecer o cotidiano por não estar imbuído da totalidade social, o que o faz perder o controle
do coletivo. Para Marx, essa perda acarretaria no processo de alienação.
A fotografia nesse ambiente é construída como imagem que se quer real, autêntica e
verdadeira (BECKER, 2003). Seu aparecimento como técnica é fruto do rigor e das concepções
que pautou a busca pela captura objetiva das relações humanas, com origem na coletividade.
Nesse contexto social residem as explicações para as formas do seu uso em face do conceito
desses autores.
129
Para Weber (2002) a racionalização da sociedade ganha importantes aspectos. Nas
afirmações desse autor, as revoluções tecnológicas atuantes nesse período são coadjuvantes à
ciência e a burocratização das relações sociais. A fotografia em sua origem foi coadjuvante
desse processo; aliada aos discursos que justificaram os transcursos da sociedade capitalista
balizou as práticas da técnica, da noção de certeza, exatidão e realidade. Qualquer cenário
captado pela máquina fotográfica após revelado era passível de análise. E frente ao pensamento
em voga esclareceria fatos que o olho humano manteria nas sombras em razão da crença que
essa imagem não deixaria espaço para as dúvidas pela objetividade vinculada em sua aparição.
À vista dessas premissas a ficção artística, o sonho ou a imaginação estariam a cargo
dos lápis e dos pincéis, seriam representados como resultados da imaginativa mente humana;
ao contrário, à fotografia cabia o papel de resultado técnico proporcionado pela perícia humana.
Qualquer subjetividade lhe era negada, inclusive a do próprio olhar do fotógrafo. Enquanto
percebida como retrato da realidade decorrente de uma consciência prática engendraria na
sociedade um papel racionalizador, direcionamento profícuo ante o prisma Weberiano. Se a
fotografia constrói os sentidos em conjunção aos discursos que lhe caracterizam como prova
do real, certamente, o autor apontaria o papel do desencantamento proporcionado por este
artefato, ainda mais quando colocado diante das representações pictóricas.
Os autores clássicos citados e suas teorias coordenadas com seu tempo histórico dão
chaves iniciais para a análise da fotografia a partir dos seus diferentes usos e funções sociais;
para interpretá-la como a escolha do que poderia ser visto e reproduzido ao invés do que poderia
ser sonhado e criado. Nessa conjuntura em que o invento foi abraçado como sinônimo de
imparcialidade e acurácia científica, foi negado em seu resultado final qualquer proposta
estética, ideológica ou mesmo a interferência humana.
3.2.3 Debates atuais
Como observado, os usos da fotografia como objeto de análise na pesquisa acadêmica
dependeram desde os primórdios das transformações e afiliações a áreas distintas como a
sociologia, a antropologia, a arte, etc. O significado e a significância das imagens fotográficas
são, portanto, fruto das mesmas transformações históricas que acompanharam o desenrolar do
mundo moderno e sua noção específica da realidade; contígua à objetividade da ciência, em
particular, das Ciências Sociais. Proposições que se tornaram possíveis devido à difusão de um
forte convencionalismo que negou e substituiu outros tipos de representações
130
institucionalizando a fotografia como prova cabal. O discurso sobre a representação do real
também favoreceu o domínio social da fotografia no mercado de imagens.
Dubois (1993), esclarece que as circunstâncias ideológicas do surgimento da famosa
máquina oitocentista favoreceram uma acalorada discussão sobre o fato do questionamento se
o material fotográfico se constituía em um aparato mecânico ou em uma arte: técnica ou arte.
Não havia a possibilidade de pensar a união entre essas duas instâncias, até porque é a
conjuntura das classificações. A sociedade vive as grandes separações em torno do que é
produzido com o intuito de se explicar os diferentes aspectos e seres da natureza, a ciência é
separada da arte, o próprio ser humano foi separado da natureza.
Logo, os artistas reagem à industrialização técnica nas artes e colocam: “a arte aqui (a
pintura), a indústria ali (a foto).” Dubois (1993) aponta o senso contraditório do teórico
Baudelaire: ao mesmo tempo que denunciava a imagem fotográfica como parte de um gosto
vulgar das multidões, se rendeu aos seus apelos ao solicitar para Nadar e Carjat – pintores de
miniatura que transformaram-se nos primeiros fotógrafos –, que fizessem vários retratos seu
(BENJAMIN, 2012, p. 97).
Baudelaire traduz para a linguagem que lhe é mais apropriada a sensação “monstruosa”
de ver a multidão exaltar a produção mecânica racional que é a fotografia, para ele uma mera
reprodução. A possibilidade de ver a arte associada a processos industriais e a toda
transitoriedade instaurada nas metrópoles, sob a égide do fluxo, do inusitado e da rápida
obsolescência provocados pelo capitalismo, causa em Baudelarie uma sensação de choque. Na
concepção acadêmica do século XIX, concatenada ao ideal renascentista a arte não poderia ser
passível de reprodutibilidade, posto que o artista era um gênio produtor de algo além do,
simplesmente, material.
Assim cria-se a aversão dos artistas à difusão da técnica fotográfica como uma espécie
de arte. O seu caráter de cópia, o seu aspecto mercadológico, documental e burguês vai de
encontro às ideologias elitistas que congregam a crença da arte ser despossuída de qualquer
finalidade e de funções sociais. O valor da fotografia residia justamente aí, em ser o registro
fidedigno do visível, pois para esse recurso imagético ficavam as funções sociais e utilitárias, o
que permitia a arte ser livre em suas finalidades (DUBOIS,1993).
Diante das várias contradições inerentes às formas de pensamento que se constroem em
torno da arte moderna, período das maiores transformações urbanas e de dinamização das
fotografias documentais, surgem também às dissonâncias ao redor do registro fotográfico:
vincula-se ao projeto burguês de modernização da natureza, ao mesmo tempo em que
documenta a degradação da mesma, chamando a atenção aos prejuízos materiais, sociais e
131
espaciais que essas modificações representaram. Os prejuízos citados ancorados à própria
questão da reprodução social fundada no cotidiano pós-guerra instituiu uma tendência à
fragmentação e a incerteza colocando uma maior atenção no presente. Essa situação trouxe a
vida cotidiana para o primeiro plano, um privilégio aos modos de ser do presente, fragmentário
e incerto, o que coloca o registro fotográfico diante de novos questionamentos, uma vez que o
que ele reproduz não é o cotidiano em si.
O sociólogo Henri Lefèbvre foi um dos estudiosos que observou a prevalência do
repetitivo em relação ao transformador e mesmo não tratando da fotografia nos dá as
ferramentas para pensá-la em sua relação com o cotidiano. Apareceria nesse pensamento não
como o retrato da sociedade, sim como a representação e memória dessa sociedade
fragmentada, um discurso que aparenta revelar o todo, mas demarca momentos efêmeros,
desconectados dos diferentes tempos e da sua própria origem. Observada desse modo a
fotografia se configura como um documento que se estabelece na tensão de fragmentos que
surgem como resíduos entre o passado e o presente.
Se em um primeiro momento ela foi interpretada como um resultado da verdade; é
porque estava inicialmente atrelada a lógica positiva da ciência que a reduzia a um acessório
comprobatório. Ou melhor, documento visual capaz de ilustrar e validar as pesquisas
acadêmicas. Os estudos posteriores deram uma nova nuance ao interpretá-la enquanto resultado
das relações que revelam ou ocultam um contexto social, amparados por outros documentos
capazes de destacar a realidade que, em um primeiro momento, se encontra ocultada. Esse é um
modo de pensar a imagem no sentido do mascaramento da realidade, noção que gira em torno
do conceito de ideologia. Assim sendo, ao desvelar o contexto de produção da fotografia
chegar-se-ia a realidade camuflada pela ideologia carregada na imagem que aparece em
detrimento da realidade escondida.
Essas questões pululam nas décadas finais do século XX, os debates no campo da
antropologia, da história e da sociologia construíram novas categorias de análise no uso da
imagem, principalmente, aonde a fotografia aparece como suscetível ao olhar do fotógrafo e a
vários outros olhares. O olhar do fotógrafo começou a ser apreendido como invasivo; mesmo
sendo um pesquisador, o fotógrafo é percebido como um agente de alteração no cotidiano do
ambiente a ser captado por seu registro. Ganharam ênfase os códigos de vestimentas; os
comportamentos que não são reais ao que é fotografado; o conjunto de práticas estabelecidas
diante do próprio artefato; a ideia do fotografado de como deve aparecer nesses registros, isso
constrói a permissividade ou não. Esses debates abriram novas possibilidades e buscam romper
132
com preconceitos em relação ao uso da fotografia e ultrapassar os aspectos ilustrativos da
imagem enquanto um documento em si (MARTINS, 2009).
Pensar em uma perspectiva crítica amarrando a fotografia aos fatos seria uma
incongruência na contemporaneidade, uma vez que a crítica se fundamenta diante dos
conhecimentos capazes de conectar um cenário histórico mais amplo ao contexto presente com
o objetivo de compreender as conexões processadas em âmbito coletivo e individual. Nesse
escopo apresentar as contradições ou antagonismos de estruturas sociais conectadas aos
ambientes de pequena escala (MILLS, 1975). Por conseguinte, a fotografia traduziria a relação
social (re)produzida e apreendida na cotidianidade – coletiva local e individual, de acordo com
os códigos de uso ancorados nas relações globais. A interconexão entre as relações citadas
constroem novos modos de ver e de se comportar diante da fotografia, isso a transforma em
mediadora, operadora, produtora e ao mesmo tempo produto de distintas práticas.
Benjamin (2012, p. 97) indica que a evolução da fotografia para desempenhar os papéis
sociais e utilitários foi tão expressiva que logo após o seu invento a maioria dos pintores de
retratos em miniatura se transformou em fotógrafos. “Não é por acaso que o retrato era o
principal tema das fotografias” (BENJAMIN, 2012, p. 174). O fulgor com que a sociedade a
abrigou e a reproduziu demarcou a magia dos seus primórdios. O autor descreve que no início
o tempo gasto com a longa exposição favorecia aos modelos incorporarem uma postura rígida
e profunda no qual encarnavam e cresciam dentro da imagem. Tudo nesse cenário inaugural da
fotografia era feito para durar, para revelar os aspectos fisionômicos apreendidos pela
misteriosa experiência que se enraizava. Os aspectos vivos e tão verídicos como a própria
natureza causavam perplexidade, maravilha e assombro. Benjamin (2012, p. 95) cita algumas
afirmações sobre os primeiros retratos onde “a nitidez dessas fisionomias assustava, e tinha-se
a impressão de que os pequenos rostos humanos que apareciam na imagem eram capazes de
ver-nos, tão surpreendente era para todos a nitidez insólita dos primeiros daguerreótipos.”
As fotografias iniciais remetem à captação dos anseios que sugeriam algo externo às
próprias fisionomias. Afinal, pela primeira vez uma máquina criava imagens que só eram
possíveis pelas mãos do indivíduo e de realidade tal, nunca vista anteriormente (BENJAMIN,
2012). Essa vertiginosa modificação propiciada pelo desenvolvimento da técnica dava ao
indivíduo a certeza de que tudo é incerto e transitório. Desde a paisagem que está mudando
todo o tempo até a velocidade que faz os carros desaparecer. Isso coloca o sujeito em situação
de instabilidade profunda diante desse novo mundo. Olhar-se na fotografia já era uma
importante mudança de percepção que “transformava o sujeito em objeto”, e foi preciso então
133
aprender a olhar esse objeto feito da própria imagem e aprender, também, a ser imagem
(BARTHES, 1984, p. 25).
Benjamin (2012) enfatiza que as fotografias rompem com a aura por democratizar as
experiências – para ele a aura dessa imagem só esteve presente em caráter inapreensível inicial,
com a sua dimensão oculta ao conhecimento, frente à possibilidade de ser vista como fonte de
inspiração para o culto. Nesse início ela era distante, passível de contemplação, incessível,
"longe, por mais próxima que esteja”. Deixar-se fotografar era inusitado, exigia uma abertura
singular, inclusive das crenças a fim de se prender os corpos em longo tempo de rigidez e
sustentar as faces tensas do melhor modo possível. Era em seu início um êxtase “irracional” por
transgredir o tradicional. A aura dos primeiros retratos manteve-se na restrição ao acesso que
ele mesmo como técnica estava destinado a aniquilar no momento em que possibilita com
qualidade e rapidez a sua reprodução, assim destrói a unicidade.
Já no final do século da sua invenção, a fotografia era sustentada em folhas avulsas e
passou também a ser incorporada aos livros e revistas por meios fotomecânicos de reprodução,
acoplados à impressão tipográfica ou impressa em folhas separadas incorporadas às bases no
processo de encadernação. Dessa maneira, ela foi amplamente difundida como ilustração e
linguagem. Em sequência, a criação dos filmes substituíveis em rolos negativos capazes de
gerar vários positivos coadjuvou a criação das câmeras pessoais, colocando a fotografia mais
próxima das grandes massas modernas. O modo de recepção da fotografia ao público prescindiu
a existência única em prol da existência serial traduzindo-a em uma experiência coletiva de
consequências sociais e políticas significativas, abraçando e expandindo o ideal burguês e
firmando o desenvolvimento da classe.
Essa nova percepção pode ser captada na interpretação dada pelo crítico da arte John
Peter Berger diante da fotografia “Young Farmers, 1914”, de August Sander (1989). No ensaio
intitulado por “The suit and the Photograph” esse autor demonstra os paradoxos iniciais da
cultura urbana em processo de hegemonização no campo ou como coloca o historiador Jennings
(2000, p 32) “the momentum of the transition away from the land into the cities”116. Sander
(1989) retrata três jovens camponeses vestidos de terno e gravata, traje de baile privilegiado na
cidade, com outros elementos que os conectam, de modo incongruente pela falta de
familiaridade, aos códigos urbanos como o cigarro em oposição ao cachimbo, um corte com as
condutas tradicionais marcando a liberdade que afasta-se da moral privilegiada no campo.
116 Tradução nossa: O ímpeto da transformação que afasta-se do campo em direção a cidade.
134
As inadequações são destacadas por Berger (1980), em primeira instancia, porque a
roupa não cabe nos modelos, muito menos estaria em conjunção com as práticas do campo, o
que fica claro na postura desses indivíduos. O biotipo dos camponeses afirma a contradição
entre a vestimenta e os usuários. Nas palavras de Berger (1980, p. 30): “The date is 1914. The
three young men belong, at the very most, to the second generation who ever wore such suits
in the European countryside. Twenty or 30 years earlier, such clothes did not exist at a price
which peasants could afford”117. Esse autor afirma que o mercado massificado na busca de
estender suas raias simula a qualidade oferecida a alta burguesia urbana, contraditoriamente,
destaca aspectos da ‘social caste’ dos jovens ao invés de disfarçá-los: “Their hands look too
big, their bodies too thin, their legs too short”118.
Entretanto, a fotografia não revela isso em si mesma. O fotografado, mesmo estando
fora de um padrão estético considerado ideal, comumente se considera bonito na roupa
determinada para o lazer, não é consciente da contradição em que foi exposto. O observador
traduz a imagem de acordo com os seus signos, com a apropriação relacionada ao cotidiano que
ele pertence, assim reproduz os discursos que representados na fotografia dá o significado a
imagem, inserindo-a em seu local de discurso e mascarando as diferenças sociais. O imaginário
revelado concatena-se ao que a pessoa percebe, busca atender, na maioria desses casos, uma
estética de valorização do status o que assemelha-se ao processo de alienação destacado por
Karl Marx. Muitas vezes as pessoas se ofendem com certos tipos de fotografias, podendo ser
considerado uma violência fotografar o outro desprevenido, como nas situações que escapam
aos cenários pré-elaborados: a dos registros trágicos, por exemplo, ainda assim a imagem é
dotada de significados e a sua representação também o é.
Nesse caminho crítico a função social das fotografias é analisada por Bourdieu (1965),
todavia, ao invés de explorá-la como elemento de inserção, divulgação e ampliação dos valores
modernos, esse autor observa a sua função enquanto um sociograma das relações tradicionais;
enquanto uma mediadora dos papéis sociais normativos e institucionais. Quando essas
aparecem registrando os espaços e as práticas consideradas tradicionais acabam por demarcar
as sociabilidades pré-modernas e os ritos incorporados como corpo estranho e exótico às
relações sociais estabelecidas.
Subjacente, não cabem concepções fechadas. Souza (2009) aponta como o fotógrafo,
pensando que está simplesmente registrando uma realidade já está selecionando um ângulo,
117 A data é 1914. Os três jovens são, no máximo, a segunda geração de camponeses europeus a usar ternos. A 20
ou 30 anos atrás, o custo desse tipo de vestimenta não poderia ser pago por camponeses.
118 As mãos são muito grandes, os corpos muito magros e a pernas muito curtas.
135
direcionando ao seu olhar, o que escapa a um simples registro imparcial da realidade. O olhar
do fotógrafo é muito mais interessado até do que ele pensa. Até mesmo o registro do cotidiano
que marca o distanciamento da fotografia como arte por ser materializada como uma
possibilidade de reprodução da realidade cotidiana acaba por traduzir a ilusão, uma vez que o
que acredita-se banal ao ser captado já passa a ser significativo. O registro é o imaginário social
elaborado e direcionado a uma distinta visualidade mediadora das relações, isso porque mesmo
o que parece ser repetitivo é dotado de vários significados, não é igual, mas sim dinâmico.
Portanto, o processo dinâmico é o que caracteriza a fotografia como um sistema que
sintetiza, coordena e classifica os objetos no espaço, transformando-a em um dos maiores
modelos de inteligibilidade da sociedade ocidental moderna. Agrega-se ao dinamismo da
fotografia o discurso que abre-se para distintas possibilidades de interpretação através do seu
processo de ordenação mediado pelo padrão enquadrado na representação.
3.3 O ENQUADRAMENTO SOCIOLÓGICO: DIÁLOGOS COM DIDI-HUBERMAN
A fotografia em seu enquadramento traça uma rede de jogos, de tramas e representações
por intermédio de um discurso, que se analisado em sua origem favorece o entendimento das
relações de poder, dos significados culturais, políticos e ideológicos privilegiados ou não.
Ao pensar no processo de ordenação que favorece determinados enquadramentos
revelados nos registros fotográficos e nas mediações dessas ordenações em seu caráter
representacional enquanto crítica sociológica nos é caro o debate iniciado pelo filósofo e
historiador da arte Georges Didi-Huberman. Ele esclarece, antes de tudo, que a imagem é
construída por meio dos sentidos, mas não só; “uma das grandes forças da imagem é a de
produzir ao mesmo tempo sintoma (ruptura dentro do saber) e conhecimento (ruptura dentro do
caos)”, ou seja, ela constitui-se da coexistência de resultados e de perturbações (DIDI-
HUBERMAN, 2013, p. 31).
Uma vez que a fotografia apresenta as dimensões da própria cultura, de modo
inconsciente e sintomático, por ser construída através do nosso arquivo imagético – que é
sociocultural e sobrevivente na medida em que afloram em distintos contextos sociais; colocar
em prova a representação visual do passado e o seu estatuto a fim de captar a sua problemática
no presente é lançar-se a crítica social. Desse modo, que Didi-huberman (2013) deslinda a trama
de enunciados objetivos que, mormente, institui a fotografia como um dado do real. Utilizando-
a, não como objeto de identificação, porém, como um elemento que coloca as certezas e as
identidades expostas em seu jogo de mediações em questão.
136
A ênfase da análise está nas semelhanças que se impõe a memória enquanto reprodução
e aparição virtual de uma quantidade de figuras associadas que se aproximam e se afastam na
construção de um significado. Essa é a figurabilidade fotográfica que busca a analogia entre
dois enquadramentos que podem ocorrer diante de um sistema cultural em tempos e espaços
diferentes (DIDI-HUBERMAN, 2013).
Das várias possibilidades de se debruçar sobre a fotografia esse é o caminho escolhido
para indicar que a região Nordeste do Brasil vem sendo recortada por um grupo de signos que
a constrói historicamente, discursivamente e visualmente delimitando seus espaços como único.
Essa região é institucionalizada como um recorte nacional a partir de um discurso imagético
que ora dirige-se ao espaço do sertão como um lugar desértico, pobre, distante, atrasado e
místico em sua religiosidade (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2006). Ora se direciona ao litoral
com praias deslumbrantes e dignas de deleite, vastas em sua dimensão de areia e nas
possibilidades de lazer e turismo. O que cria uma visualidade singular para a região mesmo em
lógicas aparentemente opostas como podemos observar na imagem abaixo (Fotografia 3)
captada pelo fotógrafo Canindé Soares.
O cenário registrado na fotografia em questão, disponível para venda e uso posterior de
agências publicitárias; foi captado em um percurso entre a cidade de Natal e a cidade de Caicó.
Canindé e um amigo tinham como objetivo fotografar os efeitos da seca no açude Itans, em
Caicó. Entre as várias cenas encontradas essa chamou a atenção do profissional que percebeu
no elemento a representação do local como espaço da seca, mesmo essa cabeça de boi sendo
uma decoração colocada na cerca do sítio para funcionar como amuleto.
O enquadramento fotográfico dá relevo ao chão árido, gretado, com galhos secos
fincados e a cabeça de um boi morto na zona de interesse da paisagem, representa em seus
detalhes tonalidades e nuances do discurso da seca. Esses símbolos apoiaram a centralização
do fenômeno e o transformou em uma grande temática que dá ao Nordeste um referencial
paisagístico. Nas palavras de Barthes (2003) é a “tópica”; um tema tornado obrigatório por meio
da sua consagração que acontece através de um tratamento fixo e repetitivo que constrói
estereótipos. A tópica da seca do Nordeste o constrói, não isoladamente, mas junto com outros
elementos, outros conteúdos, que em um conjunto de articulação produzem fragmentos de
sentidos para o local. Esses elementos vinculados a outras temáticas fundamentais como o
coronelismo, o cangaço, o flagelo, o fanatismo religioso, etc., remetem o Nordeste a um estágio
considerado tradicional, conservador, atrasado, pobre e pré-industrial.
Um dos motivos da escolha dessa fotografia não é só a representação do mito inicial do
Nordeste, mas, apesar de clássica em sua estética pulsa em encontros e contradições, é
137
emblemática. O studium se transforma em punctum, te toca no ato do olhar que segue em
círculos em busca de algo que parece ainda não definido. Há um paradoxo em relação à tópica
da seca que dá margens à rasgadura, conceito que iremos mais a frente descrever baseados na
concepção de Didi-Hubermam (2013, p. 12-15), mas que, grosso modo, significa a
possibilidade de se abrir para novas interpretações, sem estar totalmente fechada como acontece
no plano iconológico.
A cabeça de boi não está posicionada como um amuleto de proteção, porém advém um
esqueleto abandonado. Misticamente o elemento protege a cerca afugentando os maus espíritos,
um bicho pronto para atacar quem se aproxima da propriedade privada. A contradição está na
vida e proteção representadas diante da paisagem que dói na alma e enfatiza a agrura da seca.
A simbologia não é figurada em terreno neutro, mas no espaço dotado de um mito de origem,
desse modo a ênfase na existência forte, fiel e brava da cabeça de boi, pronta para investir contra
qualquer intrusão, se exprime no velho que não permite que o novo adentre em sua região. Visto
que o sentido dado abre-se para o folclore regional: a cabeça de boi repõe a imagem da cabeça
da carranca, figura do passado, da cultura popular, preso às tradições com que se inscreve a
região:
Os barcos usados pelos barqueiros tinham usualmente uma imagem na proa, a
carranca, habitualmente um monstro, rudemente falqueada – a cabeça de um homem,
de um dragão, leão, cavalo ou outro ser real ou imaginário, esperando-se que ela
avisasse o remeiro com três gemidos se o barco estivesse prestes a afundar (PIERSIN,
1972, p.9).119
A fotografia é um arsenal discursivo que estabelece imagens, efeitos, causas,
consequências, preconceitos sociais e culturais; fecham e abrem portas, mas seu enunciado é
latente, vem do passado, se reconstrói diante da repetição do feio que virou belo, da miséria que
enuncia a estética, do mito que se quer verdade, da paisagem perene pelo olhar reduzido. São
marcas da construção idealizada do Nordeste, insistentes na aparição.
119 PIERSIN, Donald. O homem no Vale do São Francisco. Rio de Janeiro: Superintendência do Vale do São
Francisco, 1972.
138
Fotografia 3- Cabeça de boi120
Fonte:
Essa é apenas uma das possibilidades de se ver o Nordeste, saturada de sentido a partir
de vários enunciados impostos aos olhos. Nordeste da fotografia de Canindé Soares que
testemunha as lembranças promovidas em face da forma una de ver a região.
Um dos retratos mais pulsantes do Nordeste é conflitante no que diz a sua própria
geografia: a seca. Essa suscita um ambiente desértico, porém nesse recorte não há aridez; o que
demonstra um quadro incompleto. Se pensarmos no que geograficamente venha a ser um
ambiente árido, seco, desértico uma analogia interessante pode ser feita. No período em que os
discursos da seca iam delimitando o que era a região Nordeste – área com uma variedade
climática que vai do equatorial e litorâneo úmido até o semiárido devido a sua grande extensão
territorial –, demarcando sua geografia como responsável pela disparidade social e econômica;
outro lugar do continente americano, de fato desértico, de clima hostil – com o processo de
colonização relegado e uma população restrita de índios locais – abre-se para o
desenvolvimento econômico e social. Se trata de Nevada, Estado que hoje tem uma das cidades
com maior expressividade no turismo mundial: Las Vegas, surgiu como cidade em 1911, a
partir da chegada da ferrovia e do período em que o estado implementou um projeto de irrigação
120 Autor da fotografia: Canindé Soares. Fonte: CS Fotojornalismo: Agência Potiguar de Fotografias e Notícias.
139
artificial em grande escala. Atravessada pelo deserto de Mojave, próximo a área conhecida
como o Vale da Morte, Las Vegas cresceu no século anterior como o lugar dos jogos, prazeres
e do lazer moderno, a tecnologia existente associada à infraestrutura adequada a constituiu
como um dos maiores polos econômicos dos Estados Unidos.
Mesmo com todas as ressalvas existentes em termos de comparação, a analogia visa
colocar por terra a ideia do quesito clima/natureza como determinante das questões sociais
concernentes ao Nordeste. Partir desse princípio é pueril e inadequado, uma vez que os símbolos
que forjaram a região foram potencializados nas tramas políticas e sociais, por outro lado, os
recursos, as tecnologias e a mão de obra existentes a tempos são suficientes para abastecer
grandes extensões de terra com água.
O discurso da seca que percorre grande parte do século XX, não é posto em questão nas
instâncias: econômica, social e política. Contrariamente dá a base para uma nova versão de
Nordeste que ganha corpo no século XXI, uma espécie de paraíso a ser descoberto como uma
opção de turismo e lazer para a população trabalhadora nacional e internacional. O Nordeste
passa a ser explorado como espaço para a fuga do cotidiano industrializado e desenvolvido,
ambiente idílico, dos coqueirais, do sol, do mar morno e do folclore. A região é romantizada
em diversos signos permitindo que a paisagem entronize esse processo de “fetichização” em
torno de sua natureza e da sua cultura acentuando cada vez mais as dicotomias.
Na atualidade o cotidiano efêmero e com influência global direciona ao fragmento do
espaço para o registro fetichizado, mesmo com uma relação tradicional deslocada do plano real.
As fotografias que favorecem esse imaginário estão, geralmente, vinculadas ao litoral e
comunica um ambiente de poucas pessoas com a vivência distante do cotidiano agitado;
economia de subsistência com as jangadas ao mar; um local que simula estar suspenso dos
desenvolvimentos tecnológicos, das questões políticas mundiais e da reunião das grandes
massas. São quadros alheios às relações desenvolvidas nas capitais nordestinas por apagarem
todo o aparato necessário a estrutura requerida pela atividade turística.
As produções fotográficas, tecnicamente perfeitas, seguem o modelo de estilos
direcionados à divulgação do turismo ante a dialética trabalho/lazer. Para tal, constroem um
cenário propício ao descanso, à fuga dos problemas modernos através da possibilidade que
oferece ao indivíduo de usufruir com liberdade momentos que o permite imaginar um encontro
com a sua própria dimensão natural, quase primitiva: ou seja, correr livremente, comer com
fartura, aproveitar a disposição para o amor e o sexo, entre outras possibilidades que escapam
em alguns termos, da vigilância do tempo cronológico. O que deixa implícito toda a dimensão
laboral existente.
140
Ou seja, o que se pensa como fuga ou escape só é possível porque existe uma rotina do
trabalho para se afastar, porque existe um tempo livre construído na própria dimensão do
trabalho. Ainda mais, o espaço para o gozo da liberdade abraçado pelo turismo só existe porque
não há a liberdade, em seu sentido lato, mas sim um trabalho racionalizado e controlado pela
infraestrutura turística dependente da rotina e do labor padronizado em voga com os padrões
hegemônicos. Simula-se uma liberdade que é ausente porque lida diretamente com o que está
presente no cotidiano, nas ruas, no trabalho e na hierarquia da ordem burguesa. Ou, o turista,
como destaca Bauman (1997) no papel de um aventureiro consome o espaço e o tempo de modo
diferente, na contramão dos residentes que na prática do cotidiano ficam submetidos ao trabalho
e a rotina própria do sistema capitalista. E, mesmo assim o turista aventureiro consome o que é
pré-planejado para o seu uso, geralmente vaga por onde lhe é permitido, e usufrui o que,
anteriormente, é pré-estabelecido. Afinal, como destaca o sociólogo Krippendorf (1989, p. 71)
não dá para ser diferente demais diante da atividade turística, o que parece por demais exótico,
“por demais estrangeiro, por demais diferente do comum, acaba se tornando desconfortável e
talvez até ameaçador.” Afastando assim o objetivo final do lucro.
O paraíso está associado à perspectiva promocional do turismo, nele a natureza é a
grande “vedete” do quadro político e ideológico que se orienta pelo econômico. Nesse intuito
a cidade que pretende oferecer um paraíso turístico deve priorizar seus espaços naturais
otimizando-os para satisfazer os desejos de quem pode pagar. Isso de modo interconectado ao
cenário global do mercado de viagens, o que não é exclusivo ao Brasil, muito menos ao
Nordeste, incorporam-se as formas que, atreladas ao contexto local, definem os ambientes a
partir de identidades elaboradas no jogo das relações existentes.
Caso do Nordeste que se constrói envolvido em simbologias que, como pontua
Albuquerque Júnior (2012), originam o “preconceito contra a origem geográfica e de lugar”.
Os símbolos imagéticos que se estendem na esteira dos planos políticos, ideológicos culturais
e econômicos da região, uma vez que negam a sua pluralidade, a condena e a sua população a
um estereótipo pejorativo; orientado pelo equívoco que aponta natureza e raça como
responsáveis pelo atraso e pelos problemas existentes diluindo-as em uma única noção de
resultado fatídico de uma questão natural, afastando da conjuntura social as possibilidades de
retratamento.
Abaixo expomos a Fotografia 4, Galinhos, RN. Nessa imagem, em uma primeira
mirada, podemos imaginar deslocada do grande mito original do Nordeste: a seca. É a paisagem
comprada por quem deseja consumir praias e o clima tropical em momentos de lazer. Todavia,
um mito não aparece sozinho, protagoniza uma cena junto com outros personagens, cercado
141
por coadjuvantes. Na fotografia em questão escolhe-se um ângulo e constrói-se uma paisagem
fundamentada em um conjunto discursivo significativo e particular do espaço que incrementa
os personagens. Veja a carroça na beira-mar, sendo esse meio de transporte um veículo de
tração natural, antecedente a visão de progresso, compreende a tradição do meio rural, um
resquício do período colonial dá a singularidade que a distingue do litoral dos grandes centros.
Assim, se preenche o Nordeste recente e atual como um espaço prenhe de ícones pretéritos em
sua paisagem. Em uma conjunção mais ampla de significados, algumas matrizes episódicas são
utilizadas para a construção da semelhança que produz pelo processo da repetição uma
percepção da composição; impressões que fornecem grandes possibilidades de moldar a visão
para a formulação dos estereótipos.
Fotografia 4- Galinhos, RN121
Fonte: .
Nesse processo, a ordenação favorece determinados enquadramentos nos registros
fotográficos e nas reproduções dessas ordenações, isso parte de um discurso traçado que se
121 Fotografia de autoria de Canindé Soares. Fonte: CS Fotojornalismo: Agência Potiguar de Fotografias e
Notícias.
142
analisado em sua origem favorece o entendimento dos significados culturais, políticos e
ideológicos privilegiados ou não, que os constrói.
Didi-Huberman indica a fotografia como um material oportuno para se fazer a crítica
das relações sociais. Nela está contida a compreensão da elaboração de discursos históricos que
demarcam relações atuais, muitas vezes aparecendo como conflitivas a lógica convencional.
Sua proposição acaba apontando e questionando os dois procedimentos mais comuns quando a
fotografia aparece como objeto de análise, são esses; o da crença - que busca ver sempre alguma
coisa além do que se vê; e o da tautologia - que concentra-se em não ver nada além da imagem,
nada além do que é visto. Essas são abordagens que construíram o saber tradicional em torno
das obras de arte e que na compreensão de Didi-Huberman (2010, 2013, 2015a, 2015b) acabam
recalcando a ausência pertinente aos recortes demandados pelo próprio limite do objeto.
Examinando o ‘dilema do visível’ nos propõe a transposição desse dilema.
A proposta de Didi-Huberman (2010, 2013) é a de entender as fotografias pelo ato
fotográfico e criticar as noções sintéticas, fixas e fechadas sobre o objeto que vem sendo
desenvolvidas intermediadas pelos conhecimentos estabelecidos na disciplina história da arte.
Esse autor inicia, então, se contrapondo a uma teoria existente da História da Arte que pensa a
imagem como um conhecimento fechado, que diz claramente o que elas são ou significam. Em
sua concepção, essas interpretações precisam ser rompidas, bem como necessitam enfrentar
uma “rasgadura” a fim de ultrapassar esses limites, uma vez que para o autor a imagem faz
parte de uma experiência visual, sendo assim capaz de provocar distintas reações, diferentes
leituras e interpretações.
Para chegar a esse momento de ruptura, ou melhor, de transposição com as noções
cerradas, é realizado um debate profícuo sobre os conceitos e as teorias de autores como
Sigmund Freud, Merleau-Ponty, Aby Warburg, Walter Benjamin, Hubert Damisch, entre outros
cujos estudos estão pautados na imagem. Esse debate tem um objetivo básico de contestar a
tradição iconológica que, diante da sua concepção de cientificidade, procura dar conta do
visível. O problema é que a história da arte colocava o visual sob a tirania do visível (imitação)
e o figurável sob a tirania do legível e da iconologia, fechando-o. Caso das fotografias de
Salpètriere e de Auschwitz que acabam servindo como um instrumento de reprodução do
discurso.
Sobre esses estudos é enfatizado que desde o início da disciplina, que se dá de Vasari
até Erwin Panofsky, recoloca-se o problema da razão. Segundo Didi-Huberman (2013) a
configuração metodológica à disciplina foi dada por Panofsky que fundamentado em Kant –
por intermédio de Cassirer – abriu questões pertinentes e criativas, instituindo uma maneira até
143
então inédita de se debruçar sobre as obras de arte; entretanto, dando um tom de certeza na
análise levantada em cima do objeto, o que a fechou em uma camisa de força. Panosfsky mesmo
sem se dar conta, dá uma forma a um saber produzido sobre as artes.
A título de informação, há que se ressaltar que Erwin Panofsky nunca se deteve sobre a
arte moderna e muito menos sobre a fotografia, cuja entronização ele testemunhou
pessoalmente. Essa ausência inspirou o historiador Kossoy (2003) a adaptar o seu método de
interpretação das pinturas para a análise de imagem fotográfica, dividindo-a nos níveis de
observação iconográfica e iconológica. Na iconografia temos a fase de observação,
identificação e descrição dos “elementos icônicos formativos” da fotografia. E, com a
iconologia, busca-se apreender significados intrínsecos as imagens, que para Kossoy (2003)
encontram-se nas entrelinhas.
A crítica destacada faz parte do livro O que vemos, o que nos olha (DIDI-HUBERMAN,
2010). Nele mostra-se a rasgadura na compreensão da fotografia a partir da relação entre o
olhante e o olhado; a dinâmica da imagem é dada a partir da função crítica e social mediada
pelos conceitos de aura e de imagem dialética do Walter Benjamin. A imagem dialética está no
ponto crítico das diferentes temporalidades que cruzam a história do referente imagético (DIDI-
HUBERMAN, 2010). É o ponto onde o outrora encontra o agora e constrói nas constelações
que ilumina os significados que a perpassa no presente e passado, escapando a uma sequência
linear histórica, atravessando períodos de latência e tensão, ora pela transmissão, ora pelo
esquecimento, ora pela redescoberta, em que repete-se e metamorfoseia-se. Nas constelações
construídas a concentração da totalidade histórica está nos momentos que irrompem com a sua
continuidade (DIDI- HUBERMAN, 2013).
Essas são as abordagens que construíram o saber tradicional em torno das obras de arte
e que na compreensão de Didi-Huberman (2010, 2013a, 2013b, 2015a, 2015b) acabam
recalcando a ausência pertinente aos recortes demandados pelo próprio limite do objeto. Por
isso suas concepções vêm sendo fundamentadas para se pensar a partir do que está enquadrado
conectado ao contexto do ato fotográfico. Para Didi-Huberman (2010) como o que vemos só
vale pelo que nos olha, se olhamos um cubo da arte minimalista, negro, com cerca de 1,6 metro
de lado, podemos, diante do que está à nossa frente, ter duas atitudes: primeiro, só vemos o
inelutável volume do corpo; sua forma única de ocupar o espaço, como se no objeto nada nos
olhasse. Essa é a visão tautológica, só aparece pelo que se vê. Porém, existe outro modo de ver
o cubo, considerando o que dele nos olha. Antes o autor coloca as seguintes questões: haverá
dentro do cubo um vazio? Poderíamos sentir medo se o cubo nos lembrasse um túmulo? Nesse
caso, o cubo abrigaria um vazio interno, em que caberia um corpo. De lá, o que nos olha? Diante
144
dessas questões algo se abre e “cada coisa a ver torna-se inelutável quando uma perda a suporta,
e desse ponto nos olha, nos concerne, nos persegue” (DIDI-HUBERMAN, 2010, p. 31). No
cubo um movimento entre a superfície e o fundo sobrevém e manifesta-se no plano óptico, “do
fluxo e do refluxo, do avanço e do recuo, do aparecimento e do desaparecimento” (DIDI-
HUBERMAN, 2010, p. 33):
Tal seria, portanto, a modalidade do visível quando sua instância se faz inelutável: um
trabalho do sintoma no qual o que vemos é suportado por (e remetido a) uma obra de
perda. Um trabalho do sintoma que atinge o visível em geral e nosso corpo vidente
em particular. Inelutável como uma doença. Inelutável como um fechamento
definitivo de nossas pálpebras (DIDI-HUBERMAN, 2010, p. 34).
Essa experiência sintomática da dinâmica do ir e vir, da liquidez e da retenção está
arraigada à sensação da perda. Implica, portanto, na percepção de que algo nos escapa assim
como água retida nas mãos: em tal caso, “ver é perder” (DIDI-HUBERMAN, 2010, p. 34). Ao
viver uma experiência, para além da pura tautologia, volve a possibilidade de querer recusá-la.
Principalmente, se tomarmos o tom da crença, podemos negar essa experiência simplesmente
porque:
O túmulo, quando o vejo, me olha até o âmago. Diante da tumba, eu mesmo tombo,
caio na angústia, esse modo fundamental do sentimento de toda situação, revelação
privilegiada do ser-aí. É a angústia de olhar o fundo — o lugar — do que me olha, a
angústia de ser lançado à questão de saber o que vem a ser meu próprio corpo, entre
sua capacidade de fazer volume e sua capacidade de se oferecer ao vazio, de se abrir
(DIDI-HUBERMAN,2010, p. 38).
O que Didi-Huberman (2010, p. 77) quer enfatizar é que o ato de ver não é “o ato de
uma máquina de perceber o real enquanto composto de evidências tautológicas”. Essa é a
síntese do ato de ver transpondo uma realidade cercada por evidências tautológicas. É o modo
de escapar da hegemonia do que está dito a partir de enunciados considerados como detentores
da verdade única. É a fuga da evidência visível “que se vê”. A imagem dialética trata de
inquietar o ver, mostrar que não há evidências, a não ser no movimento que cristaliza o real nos
arquivos imagéticos da objetivação tautológica através de regimes de visibilidade de via única.
A imagem dialética figura-se assim como interpretação crítica da dinâmica social por
favorecer uma rasgadura nos aspectos unilaterais do pensamento, colocando as relações em seu
movimento. A fotografia coloca em prova a representação visual do passado por captar na sua
problemática o presente, já que essa apresenta as dimensões da própria cultura, de modo
inconsciente e sintomático, por ser intermediado por nosso arquivo imagético que é
sociocultural e sobrevivente e aflora em distintos contextos sociais.
145
A semelhança da fotografia que informa na visibilidade o movimento e a passagem do
processo dialético em seus desvios e negatividades; é o informe que qualifica o poder das
formas de se deformar, de passar subitamente da semelhança ao dessemelhante, também, as
imagens na forma que pressupõe é o que nos interessa. Uma vez que a semelhança que
sobrevive anacronicamente está situada na repetição e na diferença, no ir e voltar no tempo
causando sintomas que identificados facilitam o rompimento das máscaras discursivas. Sendo
a forma uma transgressão, não a transgressão da forma, mas a transgressão relacionada aos
conflitos em ação no tempo se impõe a memória enquanto aparição virtual de uma quantidade
de figuras associadas que se aproximam e se afastam para construir um significado. Essa é a
semelhança figurável, que na fotografia reconcilia o que é análogo entre dois enquadramentos
que podem ocorrer diante de um sistema cultural em tempos e espaços diferentes (DIDI-
HUBERMAN, 2013b).
A semelhança que se reproduz e tem um ponto de origem coaduna-se nas atuais
paisagens registradas em fotografias que circulam como fomentadoras do turismo nos Estados
do Nordeste. Isso se dá do seguinte modo: a visualidade prévia da região, em um contexto outro,
resiste na semelhança que a conforma no espaço e nos vestígios que a designa e constrói o seu
entorno. Nesse caso, o anacronismo e a arqueologia foucaultiana estão intimamente vinculados
em prol da percepção dos distintos usos e pareceres da extensão do seu emprego. A semelhança
resistente é o sintoma, é a impressão evidente, o que oferece oportunidade de elaboração da
crítica interna dos sistemas de representação que sobre ela emerge.
O sintoma hubermasiano em nossas fotografias aparecerá enquanto uma expressão de
relações sociais não capitalistas que configuraram a sociedade brasileira e que, posteriormente,
conformaram as imagens do espaço criado no âmbito da sociedade capitalista. Essas fotografias
carregam heranças do passado, que não resolvidas, mal colocadas, atormentam o presente com
a sua carga de discriminação e desigualdade. Na noção da análise fotográfica proposta por Didi-
Huberman (2010), em seu livro intitulado “O que vemos e o que nos Olha”, o movimento
dialético diante da ótica do olhado e do olhante afirma o tempo como intermediador principal
da relação. Ou melhor, o discurso presente nas fotografias escapa a um sistema finalizado, como
ocorre na proposta de leitura iconológica, ao contrário, nesses termos entre passado e presente
existe uma forma que deve ser acessada por meio do tempo e dos sentidos da sua aparição
abusiva. A forma que se sobressai, anacronicamente, é onde está à possibilidade da crítica, é o
movimento dialético propiciador da transformação que provoca a imaginação.
A par dessa possibilidade de leitura, procuramos deslindar a trama de enunciados
objetivos que, mormente, institui a fotografia como uma verdade, como uma construtora e
146
reprodutora de realidades. Abraçamos a fotografia não como objeto de identificação, porém,
como elemento questionador das certezas e identificações que surgem nas mediações que
estabelece os variados modos de exposição. Essa é a proposta que integra as nossas pretensões
na análise das fotografias de Canindé Soares que atingem um alto grau de circulação, ainda, são
utilizadas por órgãos públicos e pelas mídias como mediadoras do turismo no Estado do Rio
Grande do Norte, mais recentemente, com a promessa do turismo religioso. Com a busca pela
imagem crítica, que aparece no sintoma, visamos transformar o modo pelo qual nos engajamos
no mundo do consumo.
Na fotografia existem marcas de uma temporalidade cristalizada; a abstração temporal
configurada por intermédio da imagem. Acionam o seu tempo de produção, mobilizam
experiências passadas e convocam as convenções do passado. Entretanto, resiste entre o outrora
e o agora. Nesses termos, a fotografia fixa e mobiliza as experiências passadas do seu autor
quando é vista no agora, convocam às convenções do outrora, ao mesmo tempo em que
movimenta as experiências do observador quando esse põe os olhos nela. À vista disso passado
e presente se conservam em tensão constante, é aonde surge à imagem dialética, com a chave
de interpretação do presente mobilizado na experiência prévia. A partir disso, o ponto de vista
sociológico critica os discursos e eventos que essa dinâmica imagética e temporal promove nas
relações atuais.
147
4 POLÍTICA E TURISMO: A CONSTRUÇÃO DA PAISAGEM NORDESTINO-
POTIGUAR
Neste capítulo apresentaremos um histórico das políticas públicas de turismo
desvelando as concepções inerentes a cada momento histórico e as principais ações
desenvolvidas pelo poder público concatenadas a emergência das paisagens que identificam o
nacional e, em sequência, o regional. Veremos que o Estado brasileiro começa a agir de forma
mais substancial e integradora na questão das identidades, paisagens culturais e, concomitante,
na elaboração do turismo com a criação do Ministério do Turismo (em 2003), um momento
ímpar para o turismo brasileiro. Em seguida, percorremos o histórico das políticas públicas de
turismo no Nordeste e no Rio Grande do Norte e do processo de estruturação das paisagens em
prol da atividade.
4.1 DE LÁ PRA CÁ: MITOS, IMAGENS E PAISAGENS
Um dos grandes mecanismos para a elaboração da paisagem é o olhar, contudo, o ato
de olhar está para além de enxergar. Aquilo que olhamos não é o que o olho enxerga
biologicamente, porque no ato de olhar tem toda a carga cultural direcionada por nossa história
social e individual. A visualidade das paisagens com a diversidade e a pluralidade do olhar
atribui os diferentes sentidos da intervenção humana que recaem sobre essa categoria. Assim,
a apropriação humana dos elementos da natureza – pois a paisagem não está na natureza como
tal –, nasce com a interferência do olhar e é justamente essa apropriação, esse conhecimento da
natureza que constrói o que chamamos de paisagem (SCHAMA, 1996; CORBIN, 1982).
No ocidente, as primeiras representações da paisagem apontam a emergência do seu
surgimento como fenômeno, por meio de duas percepções que foram essenciais para o seu
entendimento. A primeira, a laicização dos elementos naturais dos espaços sagrados. A
segunda, a organização desses elementos naturais em grupos autônomos e coerentes. Alguns
estudiosos desse tema assinalam que o surgimento do conceito de paisagem está atrelado a uma
ideologia conservadora de proprietários fundiários à beira do mundo moderno, mais
especificamente no norte europeu (MENEZES, 2004). Com o movimento renascentista e o uso
dessa perspectiva desenvolveu-se enquanto gênero artístico que imprimia o realismo e o
naturalismo nas pinturas. Para o geógrafo Claval (2004), a perspectiva revolucionou a
visibilidade da paisagem ocidental no início do século XV.
148
Também, a descoberta do novo mundo causou um grande impacto na concepção do
espaço, surgem cenários antes desconhecidos, bem como novos sentidos começaram a ser
construídos e com eles novas paisagens. Localiza-se um novo continente, novos signos e com
isso há toda uma revolução conceitual e um alargamento de paisagens e noções sobre elas. Essas
descobertas propiciaram o surgimento das literaturas dos viajantes, ricas nas descrições de
viagens às ilhas paradisíacas, cheias de imagens, cheias de mitos, cheias de simbolismo em
torno do que ainda era um mistério. O movimento das descobertas junto às técnicas
desenvolvidas permitiu maior domínio dos espaços. Os locais considerados longínquos e
assustadores começam a ter seus sentidos revistos, uma vez que a ciência contribuiu para o
enfrentamento desses ambientes. Caso dos sentidos que envolveram o mar; primeiro,
vivenciado a partir do medo, depois transforma-se em local de cura e finalmente passa a servir
ao deleite e a apreciação. No mar encontra-se na atualidade o “prazer, até então desconhecido,
de usufruir de um ambiente convertido em espetáculo” (CORBIN, 1989, p.35).
Esse cenário entusiasmado com a natureza vai construindo o desejo de vivenciá-la. A
paisagem natural promulgada nas dimensões artísticas (como na literatura, na música e no
teatro) ajudou a delinear esses locais. O historiador Gombrich, faz referência a esse aspecto
com o movimento de turismo ao apresentar um guia turístico da Inglaterra do século XIX, que
já inserido em um contexto mercadológico de valorização da natureza, fazia ofertas tentadoras
aos que se propusessem embarcar nas viagens paisagísticas. O guia promete ao turista ver no
Lago de Coniston paisagens “com os delicados toques da pintura de Claude”, segue oferecendo
as águas de Windermere que dará ao visitante “acesso ao senso de nobreza do pintor Nicolas
Poussin” (um dos maiores representantes do classicismo no século XVII). E, o Lago de Derwent
proporcionará um encontro com as magníficas ideias românticas de Salvador Rosa
(MENEZES, 2004, p.34).
Na paisagem recai toda a carga cultural que é construída temporalmente, socialmente,
politicamente e economicamente, isso quer dizer que para enxergá-la não bastam os elementos
da natureza dispostos ao nosso olhar, sobrepostos em um espaço. Devemos antes, encontrar
nesses elementos visíveis, nessa natureza demarcada, condições para que certo conteúdo chame
a nossa atenção (SIMMEL, 2009). Essas condições são arquitetadas na dinâmica das relações;
em que somos: indivíduos e paisagem, obras culturais das nossas percepções que criam e
delimitam espaços. A busca do ser humano pela natureza pura, como um espaço isolado em si,
para seu refúgio é inexistente. O desejo e anseio por determinada paisagem só nasce, só ganha
forma, porque a natureza e o humano são elementos intrínsecos; nesse entendimento, criamos
a natureza e ela existe em nós (SCHAMA, 1996).
149
4.1.1 A paisagem nacional: “Meu Brasil brasileiro”
Os símbolos constituintes das paisagens as balizam diante da visão dos indivíduos; a
sociedade capitalista, por exemplo, valoriza ou desvaloriza as paisagens conforme a perspectiva
de consumo possível. Se trata da construção de significados que contribuem com a instituição
de determinadas fronteiras políticas, econômicas e culturais. Das fronteiras sociopolíticas
existentes, um exemplo significativo são as nacionais. Muitas paisagens foram construídas a
fim de se marcar e institucionalizar o que é a fronteira concernente à identidade nacional. Com
isso, criam-se paisagens para dar identidade ao espaço, ao mesmo tempo que servem para
legitimar territórios culturais, econômicos e, políticos.
É interessante notar que as paisagens são elaboradas em distintos planos, sendo o
processo cultural a argamassa. Se pensarmos na paisagem brasileira, certamente, veremos em
nossa mente um recorte com o Cristo Redentor de Braços abertos para a Guanabara ou o morro
do Pão de Açúcar; ambos, cercados por uma natureza bela e pontos representando as pessoas
vivenciando seus entornos. Essa imagem não surge do nada, ela é o resultado de vários
discursos; uma fotografia ao representá-la seria, provavelmente, uma panorâmica aérea, um
modo de construir paisagem consequente dos avanços técnicos que possibilitaram o
alargamento do olhar. Ainda, poderíamos recortar em nossas mentes paisagens nacionais com
praias, mulheres de topless (prática proibida no Brasil), festas com palmeiras, sambas, frutas
tropicais, macacos e papagaios. Todos esses símbolos estariam ligados à paisagem nacional.
Nem sempre reais, esses símbolos incorporam ideologias elaboradas aproximadamente entre os
anos de 1880 a 1950, período que compreende a construção de uma identidade do nacional.
Em visita a casa de um norte-americano no Estado de Washington, EUA - no dia da
festa do seu aniversário –, que afirma ser o Brasil o país dos seus sonhos, foi possível observar
muito do que se caracteriza enquanto essa paisagem que identifica o nacional para o olhar do
outro. Ao entrar na casa nos deparamos com pessoas sambando ao som de pandeiros e
cavaquinhos ao redor de uma fogueira, era uma noite de três graus Celsius, as roupas tinham as
cores verdes e amarelas. Nas paredes predominavam quadros com paisagens do Brasil:
carnavais na Marquês de Sapucaí, Rio de Janeiro; mulatas desfilando com os seios a mostra;
noites com mulheres e bebidas; vistas do Cristo Redentor e Pão de Açúcar, ainda, alguns
espaços da Bahia, suas igrejas e retratos em closet de índios122. Interessante é que o Estado de
122 A alusão é feita a Richard HopKins, norte-americano, atualmente com 65 anos de idade, foi comerciante de
pedras preciosas brasileira nos EUA. Com o comércio de pedras conseguiu manter uma vida confortável.
Empreendia muitas visitas ao Brasil, seu campo de trabalho era Bahia, Minas Gerais e alguns locais da região
norte. Porém, mantinha um apartamento alugado no Rio de Janeiro, capital. Era frequentador das noites cariocas,
150
Washington tem uma política de valorização ampla da cultura indígena, além das variadas áreas
de reservas. Todas as cidades desse Estado têm nomes de origem indígena, nos edifícios
residenciais sempre existe algum tipo de arte que valoriza a cultura desse grupo; além de
festividades públicas que envolve a cultura indígena e seus representantes, mesmo assim, não
havia nenhuma foto dos índios americanos, essas imagens são representações dos índios
brasileiros.
Avançando, uma grande tela exibia, sem som, o filme “Black Orpheus” de Marcel
Camus (1958), ganhador do festival de Cannes de 1959 e do Oscar de melhor filme estrangeiro
em Hollywood 1960. Com esse filme os convidados viam somente imagens de um Brasil que o
nosso amigo conseguiu enxergar: das pedras preciosas que o sustentou e das aventuras noturnas
relembradas com saudade. Um lugar que a produção cultural nacional ajudou a inventar.
O filme Black Orpheus – Orfeu Negro foi um grande veículo de divulgação da
nacionalidade brasileira, revela para as plateias internacionais uma imagem do Brasil a partir
da cultura popular, da música e do carnaval. Tem o foco na população mestiça, sensual e feliz,
reverberando o que seria o resultado da composição étnica brasileira. Tem como principal
paisagem fragmentos do Rio de Janeiro, composto pela favela e a Baía da Guanabara. A
paisagem é formada pelos modelos de convivência da cordialidade inter-racial, em um sistema
hierárquico que vigora o homem branco como comerciante, dono do espaço que condiciona as
relações correntes na película. Mesmo sem ser o protagonista, o espaço do imigrante europeu é
privilegiado, o centro econômico e racional que dá base para o desenvolvimento dos
personagens mestiços; esses apresentados pela emotividade e sensualidade aguçadas que
encena um estágio de afetividade pueril, a musicalidade corporal do grupo mestiço é dada como
intrínseca, o corpo se torna objeto do nacional e as crenças em entidades sobrenaturais são
postas em relevo.
Presenciar a noção do amigo norte americano – sobre as paisagens e a vivência no Brasil
– foi esclarecedora e fundamental para vivenciar na prática os caminhos que tornam possíveis
a construção de um imaginário nacional, interessante ver in loco as expectativas que circundam
esse imaginário coletivo no indivíduo. No mais, esse caminho é o da construção da imagem
sócio da boate Hippotamus que teve seu auge entre as décadas de 1970 e 1980, uma boate frequentada por artistas
famosos e socialites. Atualmente, reside no estado de Washington, se tornou um amigo próximo, nos diversos
diálogos estabelecidos é corrente a alusão e a saudade que sente das noites cariocas, do carnaval, do samba. Em
seus discursos o Brasil é principalmente o Rio de Janeiro; local de muitas festas, muito samba, muitos artistas,
local de gente boa com muita sensualidade. Os outros brasis, o do comércio das pedras, é o Brasil selvagem, dos
índios, com pessoas carentes, mas hospitaleiras, prontas a servir. Ao que parece Richard não consegue se libertar
dos mitos. Curioso foi participar de seu aniversário, cujo o tema foi o Brasil, haviam muitas paisagens “do Brasil
espalhadas na sala”; o bolo era a bandeira brasileira; acrescido de um grupo de sambistas que animava a festa, esse
era o cenário.
151
nacional como parte de uma produção política e cultural, que teve como um dos seus objetivos
construir um vínculo de inúmeras afetividades e pertencimentos entre o cidadão e o recorte
territorial. A implementação do território nacional fundou distintos discursos que veicularam
as características de um povo ao seu espaço (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2012). Ao se
debruçar sobre a ideologia nacionalista, em sua vertente burguesa e popular, Hobsbawn (1991)
coloca-a como protagonista central do cenário político, sendo essa uma comunidade imaginária
construída por meio de mitos e realidades. Outros autores tratam da construção do nacional123
e deslindam os instrumentos envolvidos nas percepções desses espaços. Todos são pontuais na
noção da nacionalidade como uma generalização dos discursos que nega toda a carga complexa
humana de símbolos, ideias, valores e construções, na medida em que unifica um tipo de
visualidade.
O historiador Albuquerque Júnior (2012, p. 22) em um alerta a negação da pluralidade
que as identidades apagam, diz que animosidades como a dos EUA e México ou Brasil e
Argentina, entre outras, tiveram no discurso nacionalista uma das suas fontes de alimentação;
se o discurso nacionalista afirma como característica inata do brasileiro ser hospitaleiro e alegre,
a contramão dessa percepção favorece que essa alegria e a hospitalidade sejam vistas como uma
“micagem”, ponto de vista preconceituoso de muitos argentinos que caracterizam os brasileiros
como “macaquitos” negros que gostam de imitar os outros; esse é o resultado de dirigir na
contramão de uma via única: a colisão.
As restritas e repetidas paisagens que elaboram um imaginário a partir de um conjunto
de percepções específicas sobre as partes do mundo e das pessoas que as habitam, em grande
medida, formatadas pelo processo de expansão e hegemonia cultural europeia submetem
socialmente, politicamente e economicamente outros territórios. Ainda mais, pautam as
concepções sobre as imagens das paisagens diante do conceito de civilização europeu. Isso,
tanto para definir positivamente, quanto negativamente os espaços e seus habitantes causando
uma variada gama de tensões, crises e preconceitos. São características recentes que marcam
um conjunto de sentidos, de símbolos, de eventos que envolvem o modo de ser visto e entendido
o Brasil.
Nesse esquema nasce à ideia de nação brasileira, delimitando o que é ser brasileiro em
prol de um projeto político que se traça para o país baseado em algo que se acredita ser o melhor
de acordo com o parâmetro europeu. Para tal, um conjunto arquitetônico permeado de valores
123 Ver: Comunidades Imaginadas de Benedict Anderson; A invenção das tradições, também de Eric Hobsbawm,
junto com Terence Ranger; Estado, nação e violência de Anthony Giddens, entre outros. Esses livros, entre
outros títulos estão relacionados na obra de Albuquerque Júnior (2012).
152
e condutas é implantado na capital do Estado em moldes europeus com o objetivo de mostrar
para o mundo um Brasil que emerge civilizado e direcionado ao “progresso” - por meio da
materialização das cidades. A natureza ganha à cena uma vez que a sua exuberância destaca,
também, o potencial do trabalho agrícola. “Pensado ora como paraíso edênico, ora como inferno
verde, o Brasil teria na natureza um dos traços fundamentais a lhe diferenciar dos demais
países”. O que desemboca na construção do mito do “gigante pela própria natureza”, como
parte dessa natureza cria-se a caracterização do índio, seguida pela do sertanejo, ambas
carregadas de romantismo (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2012, p. 53-54).
No entanto, a representação sobre o Brasil no exterior se dava nos moldes do “exótico”.
Afinal de contas, o pensamento era definido por meio de parâmetros estabelecidos pelo que se
via e se vivia na Europa, também pelo que era legitimado cientificamente; como as teorias
raciais do fim do século XIX, no qual o branco era entendido como uma raça superior e as
outras raças incapazes de atingir valores mais elevados, sua manutenção dependia da submissão
ao branco. Elementos distintos dos das paisagens ditas civilizadas eram considerados exóticos.
A própria literatura dos viajantes destacava o comércio brasileiro escravo em plena praça
pública na contramão da civilização; a forte presença de negros nas ruas com suas
manifestações culturais e religiosas; pessoas vestidas em trajes pobres e de pés descalços seriam
signos das relações marcadas pela mestiçagem e sua degenerescência racial. Esse é um conjunto
de visualidades que coloca o Brasil como digno de curiosidade, mas não como exemplo. Logo,
a par dessa realidade as instituições públicas objetivavam “desvanecer no espírito das
populações europeias os preconceitos que nos amesquinha[vam] a seus olhos” (DIÁRIO DO
RIO DE JANEIRO, 1861).
As fotografias quando começam a circular se tornam parceiras e coadjuvantes da
propaganda do que se queria mostrar como sendo o moderno Brasil. As imagens fotográficas
que revelassem cenas com índios e negros, vestimentas consideradas impróprias, edifícios fora
dos padrões da arquitetura moderna, paisagens pitorescas e bucólicas eram rejeitadas. A
prioridade era dada às paisagens das cidades do Rio de Janeiro, São Paulo, Salvador, Recife,
Belém e Ouro Preto. As cidades de dimensões mais modestas também eram fotografadas em
seu ponto mais atrativo seguindo o modelo hegemônico. Os aspectos positivos que encenam o
final do século XIX e as primeiras décadas do século XX, grosso modo, são caracterizadas por
fotografias que privilegiam paisagens constituídas pela expansão urbana, o aumento da
população na cidade, a valorização da racionalidade técnica, a higienização, a intensificação
das relações sociais e a incorporação ao mundo capitalista.
153
Com a crise do conceito de civilização europeu após a Primeira Guerra, acrescido da
emergência econômica dos Estados Unidos e Canadá, o continente americano passa a
representar um novo papel político, econômico e cultural traduz-se na grande fonte inspiração.
Como consequência as nações americanas empenham-se em fortalecer e repensar os seus
discursos sobre a nacionalidade. Essa virada é sublunar para a redução do complexo de
inferioridade que o Brasil nutria em relação à Europa, também, para se pensar a questão do
Velho e do Novo Mundo de modo invertido. O velho agora significa o decadente, o que está
distante dos fluxos econômicos e sociais almejados, visto que está arraigado nos costumes
arcaicos. O novo estaria aberto às oportunidades, a aventura do tempo presente e ao
enfrentamento dos riscos futuros. Esse discurso dá as bases para a construção do mito dos
Estados Unidos como a terra das oportunidades e realizações. O Sonho Americano passa
inclusive a ser uma metáfora para o sucesso econômico em território Norte Americano. Isso
estimula a se pensar uma identidade forte para o Brasil que o torne independente dos padrões
europeus e destaque a sua força como nação próspera para os empreendimentos futuros.
A década dos 1930 é singular para a organização da identidade nacional. Em 1931 foi
inaugurada no Rio de Janeiro a estátua do Cristo Redentor, paisagem central de promoção
turística e identitária do país. A cidade já fazia parte do grupo de locais mais visitados no
mundo, sendo sua paisagem uma das mais representativas para o turismo. No mesmo ano foi
publicado o romance de Jorge Amado O país do carnaval, em sequência os blocos
carnavalescos são oficializados transformando-se em escolas de samba e Lamartine Babo lança
a canção intitulada “O teu cabelo não nega”. É do ano de 1934, a marchinha carnavalesca de
André Filho, Cidade Maravilhosa. Em 1935 foi estabelecido um acordo comercial com os
EUA, no mesmo ano Carmem Miranda estreia o filme Alô-alô, Brasil, sendo considerada um
símbolo nacional e sensual com os seus trajes alegóricos, carregando na cabeça a flora e a fauna
tropical.
Com a criação da política oficial de cultura e apoio aos intelectuais e artistas do
modernismo no Estado Novo surge a oportunidade do redirecionamento da imagem da
natureza, do índio, do sertanejo e do sertão, que eram descritos, anteriormente, pelos românticos
a partir de uma perspectiva bucólica e colonial. Esses novos agentes pontuam as amarras
provocadas pela colonização, situam a cidade de São Paulo como a locomotiva central do país,
interpretam a mestiçagem como uma particularidade da nação, tirando o foco do aspecto
biológico, mas não anulando-o, porém entendendo-o como traço cultural – momento em que o
mulato emerge como tipo sensual e, às vezes, malandro. Esse é o palco da construção da cultura
popular com seu ápice no carnaval carioca (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2012).
154
As expressões culturais que antes eram margeadas, perseguidas e colocadas na categoria
de inferior passaram a ocupar uma posição de destaque diante das referências nacionais com a
concepção do popular. Imaginários que antes eram negados viram referência do Brasil no
exterior como os que aparecem nos desenhos produzidos pela Walt Disney. São produções que
emergem com o acordo da política de boa vizinhança entre o Brasil e os EUA. São exemplos
marcantes: o desenho animado Alô amigos (de 1942) que retrata a primeira aparição do
personagem José Carioca: um tipo dançante com jeito de malandro. O desenho é paisagístico e
inicia mostrando o Rio de Janeiro como uma floresta com aves e frutas tropicais. A capital é
apresentada pelo Zé Carioca ao pato Donald em um passeio ao som do samba. Donald que tenta
resistir ao samba, após tomar a cachaça cai no embalo; finaliza com a paisagem da cidade
iluminada, um contexto mais urbanizado. Também o desenho “Você já foi à Bahia?” (de 1944)
é o reencontro do Pato Donald e do José Carioca que dessa vez se dirigem até a Bahia, um
desenho também recortado por paisagens bucólicas que lembram trechos do anterior, a ideia da
natureza é constante.
Os contornos decisivos para a reelaboração da imagética nacional foram dados no
governo de Juscelino Kubitschek com marcas até os dias atuais. Alguns estudos foram
essenciais na delimitação do que deveria ou não fazer parte da cultura popular brasileira, entre
eles estão os textos do folclorista Câmara Cascudo que valorizava a tradição e questionava o
progresso como um processo de desconsagração da sabedoria popular. O autor desenhava a sua
obra como um meio de salvação dos rituais, festas e lendas que estariam prestes a desaparecer
onde “o sujeito dessa história seria o Povo, uma espécie de entidade abstrata, que reúne a todos,
sem distinções de classe, de etnia, de gênero, de faixa etária” (ALBUQUERQUE JÚNIOR,
2013, p. 156)124.
O povo está presente na mistura das raças pronunciada no livro intitulado “Casa Grande
e Senzala” com largo alcance no exterior. Nesse livro Gilberto Freyre (2003) interpreta o Brasil
com a construção da cultura nacional sendo estabelecida pela mestiçagem, a grandeza do
português é ressaltada pela sua facilidade de adaptação e interação com o que é estranho. Nessa
adaptação portuguesa aos outros residiria à explicação para a sua potência colonizadora,
principalmente, pelas práticas sexuais entre as raças. Freyre (2003) afirma a influência dos
índios na formação brasileira dada em muitos aspectos por intermédio da índia, cuja sexualidade
exaltada combinou com a do português, ainda em uma memória social existiria entre os
124 Para a compreensão da construção dos conceitos que envolvem os saberes sobre o folclore e a cultura
popular, as relações que permitem suas emergências, ver: Albuquerque Júnior (2013).
155
brasileiros os resquícios do animismo indígena aproximando-o da vida selvagem e da crença
no sobrenatural.
Com grande destaque e responsável pela incidência de imagens sobre o nacional devido
ao seu teor analítico sobre a identidade brasileira está também à obra de Sérgio Buarque de
Holanda (1936) intitulada “Raízes do Brasil”. O autor lança mão da tese que o brasileiro é
indolente, instável, imprudente e pouco interessado no trabalho, raízes herdadas do colonizador.
Quanto ao mais, à emotividade comporia o caráter nacional. Esse caráter se definiria pela
generosidade e a busca de intimidade rápida, superficialidade, informalidade e um tipo
específico de hospitalidade. Tais condutas se contraporiam a formalidade, racionalidade,
equilíbrio e a comportamentos mais distantes, considerados civilizados. Outras obras também
marcam esse momento de definição da identidade nacional, entre elas estão Evolução Política
do Brasil do Caio Prado Júnior e História Econômica do Brasil de Roberto Simonsen.
Outro elemento presente na nacionalidade brasileira é a relação com a religião católica.
A igreja, edifício de materialização da instituição católica seria mais um corpo de firmação
identitária, de base colonial. Ela se viu ameaçada pelas mudanças ocorridas nas raias da
república, dentre elas: a perda de espaço e a redução de prestígio incitada pela liberdade de
culto; a reconstrução concernente ao processo de estadualização que passa a requerer novas
adaptações econômicas e administrativas, e; as novas propostas para a educação que solaparam
a hegemonia em relação ao processo educacional no país que a igreja mantinha desde o período
colonial.
Estrategicamente a igreja sob a liderança do arcebispo-coadjutor do Rio de Janeiro D.
Sebastião Leme, busca negar as relações com a monarquia e prima pelo estabelecimento de
uma república católica. Nessa conjuntura a estátua do Cristo Redentor aparece como
instrumento de firmação do poder da instituição marcada no espaço nacional, o que a torna o
maior símbolo de identidade relacionado à fé. Outros empreendimentos, com apoio do D. Leme,
buscam promover a manutenção do poder católico no Estado laico, são ações que vinham de
cima para baixo com o apoio da elite católica (FONSECA, 2011).
As paisagens ditas exóticas, sensuais, mestiças e tropicais com que o Brasil passa a ser
conhecido são reforçadas e trazem em sua esteira novos símbolos a partir da segunda metade
do século XX. Paisagens do Pão de Açúcar, do Cristo redentor, das mulatas na praia, do
carnaval e seus desfiles, do avião aterrissando nas proximidades da praia de Copacabana com
foragidos de outros países são ingredientes que atraem produtores de filmes e de séries que
explodem com o meio de comunicação de massas. Nas palavras do historiador Albuquerque
Júnior (2012, p. 83 -84):
156
Se continuamos em muitos filmes estrangeiros sendo vistos como o endereço
preferencial para onde fogem os grandes gangsteres internacionais, afinal demos
guarida ao chefe da quadrilha que realizou o maior assalto feito até aquele momento
no mundo, o assalto ao trem pagador na Inglaterra, se transformamos Ronald Bigs em
atração turística, se os escândalos de corrupção não param de explodir na
administração pública, esta imagem e este estereótipo com que somos marcados se
assentam em muitos eventos concretos, embora, como todo estereótipo, seja
generalizante e injusto com uma grande maioria de brasileiros que não se dedicam a
atividades ilícitas. Embora tenhamos que reconhecer que faz parte da cultura brasileira
um elogio da burla, do jeitinho, que se oferece, em certos momentos, necessários e
fundamentais espaços de liberdade, também leva a ilicitude, ao pouco respeito às
normas coletivas e até mesmo obstaculiza o desenvolvimento econômico e social do
país. Mas como procurou mostrar o historiador Emanuel Araújo em seu livro Teatro
dos vícios, isto advém da própria sociedade colonial, e não propriamente por nossos
habitantes serem degredados, mas pela sociedade colonial ter se caracterizado, entre
outras coisas, pela ausência do Estado, pela prevalência da vontade dos mais
poderosos, pela possibilidade mais ampliada da transgressão, pelo pouco respeito às
normas e às leis.
As características que marcam a ausência do Estado na história nacional foram
responsáveis, em muitos casos, pela organização e manutenção das relações de
apadrinhamento, favoreceram a burla das leis em prol de interesses individuais diversos,
incentivaram as quebras das normas e condutas sociais em favor das paixões momentâneas. É
o paraíso edênico fundamentado na convivência das belezas naturais; da sexualidade aguçada
do mulato; da terra do faz quem pode; do jeitinho brasileiro como uma forma moderna de
arranjos e favores, quem sabe seja a ideia de um desenrolar dos com padrinhamentos,
característica associada à malandragem em resolver as situações mais inaceitáveis, ou melhor,
situações complicadas. Como explica Paulo Mendes Campos (1965) ao narrar às disposições
do brasileiro, em seu texto irônico, “dar um jeito” é uma constante cem por cento nacional,
impossível de se achar em outra parte do mundo. “Dar um jeito é um talento brasileiro, coisa
que a pessoa de fora não pode entender ou praticar, a não ser depois de viver dez anos entre
nós, bebendo cachaça conosco, adorando feijoada e jogando no bicho”. 125
Essa imagem dita como cultural do nacional conjuntamente com as questões sociais que
começam a ser divulgadas com o fotojornalismo que se intensifica favorece o paradoxo das
instâncias discursivas sobre a imagem do País. Aparecem dois brasis, em metáfora e analogia
ao filme de Glauber Rocha é o Brasil “Do Deus e do Diabo na terra do sol”, o Brasil do paraíso
125 Paulo Mendes Campos no ano de 1965, destacada em dois textos que transformam-se em uma única crônica as
características dos brasileiros. 1º Texto: Brasileiro, homem do amanhã – 2ºTexto, Dar um jeitinho. Finaliza
colocando essa como uma matéria do “Colunista do Morro”, 1965. Editora do autor. Ver em: CAMPOS, Paulo
Mendes. Brasil brasileiro: crônicas do país, das cidades e do povo. 3. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2005.
157
e do inferno, dos prazeres e da miséria; do encanto e da corrupção. O próprio Roger Bastide
cunha o país por sua dualidade contrastante em seu livro: “Brasil: terra dos contrastes”, de 1959.
Como geralmente acontece nos espaços periféricos que buscam seguir modelos vindos
de outras realidades negando as pluralidades e a espacialidade local, essas elaborações em
ocasiões atendem uma cultura sociopolítica de revisão da criação da nacionalidade a fim de
estabelecer e valorizar os mitos. Ora, apresentam-se como seu contrário, por intermédio de
preconceitos fomentados por discursos anteriores. O resultado do enaltecimento dos fragmentos
imagéticos socioespaciais limita a identificação da diversidade do país e promove uma imagem
estereotipada. Incorporadas até por muitos brasileiros em seus hábitos cotidianos, é comum
encontrar indivíduos com trajes que vão ao encontro das visualidades definidoras do malandro
carioca, contudo, interessante é perceber que muitos “malandros” brasileiros trabalham em
vários empregos; até constroem empregos informais para conseguir manter uma vida com o
mínimo de dignidade. Esses agentes incorporam-se à paisagem nacional e se dizem malandros
por afetividades musicais, culturais, pelo lugar e as práticas estabelecidas, congregam o mito
do malandro, de modo geral, são os trabalhadores pobres. O que é distinto da malandragem
absorvida pelo olhar do estrangeiro, essa se aproxima da do Zé Carioca, com a conduta de
passar por cima dos outros, burlar a lei, não gostar de trabalhar. São imagens que requerem um
entendimento mais amplo dos mitos que criam, da sua absorção e reprodução.
Sobre o trabalho126, isso inclui as pessoas que têm algum tipo de registro, na última
década do século XX, segundo dados do IBGE, das pessoas com mais de 10 anos de idade
56,6% da população total estavam entre os economicamente ativos127em questão de horas
trabalhadas. É possível levar em consideração o fato de que muitas empresas privadas no Brasil
orientam reuniões para os fins de semana e não as contabilizam como horas trabalhadas
agregando ao seu escopo institucional o trabalho informal; mesmo com esses desvios o Brasil
se compara a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), grupo
das nações mais ricas, com índices similares ao do Canadá, Japão e EUA128. No mais, o Brasil
acumula uma média de dez milhões de trabalhadores informais de acordo com A Pesquisa
126 Ver em: ALVES, José Eustáquio Diniz. A transição demográfica e a janela de oportunidade. São Paulo:
Instituto Fernand Braudel, 2008. p.1-13. Disponível em:
. Acesso em: 26 mar.
2018.
127 INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Tendências demográficas: Análise dos
resultados da amostra do Censo Demográfico 2000. Trabalho e Rendimento, 2001.
128 Ver em: BBC NEWS. Brasil, Será que os brasileiros trabalham pouco? Números respondem. 12 de
dezembro de 2016. Disponível em: . Acesso em: 26 mar.
2018.
158
Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD)129. O que indica que o brasileiro não é, em sua
maioria, um povo apático ou contrário ao trabalho. Esses mitos destoam da realidade.
De acordo com Ortiz (1995), autores do início do século XX foram basilares para a
conformação da identidade nacional que se caracteriza pela indolência do brasileiro, pela
insegurança da elite intelectual, pelo lirismo ardente dos poetas e a sexualidade desenfreada do
mulato, entre outras especificações. A produção intelectual atrelada às produções literárias,
musicais, entre outros materiais que circularam com as fotografias, tornaram-se uma das
maiores fontes de reprodução dos mitos que conformaram o Brasil e suas paisagens.
Mesmo a promulgada sexualidade aguçada do brasileiro é um discurso frágil, vários
estudos comprovam que a prostituição no Brasil se dá majoritariamente por extremas condições
de pobreza, não por um tipo de afeição excessiva às práticas sexuais.130 O Brasil não é um país
próximo dos maiores consumidores de pornografia na Internet. Nem mesmo é o maior produtor
de pornografia. Nas décadas de 1970, 1980, 1990 e 2000 esse mercado foi liderado pelos EUA,
onde, em termos de remuneração, as principais estrelas chegam a receber cerca de US$ 15 mil
por filme. Alguns pornstar tem patrimônio que gira em torno de US$ 30 milhões, fortuna
superior a de muitos astros de Hollywood. Já o Brasil, entrou no mercado somente na década
de 1980, ainda na clandestinidade, em um período posterior a censura militar.131 Não é nosso
objetivo achar que a sexualidade dita brasileira mereça críticas ou defesas, até porque não há
uma típica sexualidade, mas sim rever os discursos que as especificam pejorativamente como
particular do povo e do espaço. No caso do Brasil a associação do sexual ao exótico acaba
parecendo algo natural.
O emaranhado de relações que constrói a nossa paisagem nacional se sobrepõe no
aspecto social sendo assumida, por muitos, como elementos verdadeiros da cultura brasileira.
Entretanto, elas são constituídas por meio de um sistema de representação totalmente elaborado.
Grosso modo, podemos afirmar que as paisagens brasileiras se constituem no discurso do Brasil
129 Ver em: ESTADÃO. Economia e Negócios. Trabalhadores informais chegam a 10 milhões no País. 22 de
agosto de 2016. Disponível em: . Acesso em: 26 mar. 2018.
130 Sobre a relação entre prostituição e pobreza ver: LIMA JÚNIOR, Jayme Benvenuto; ZETTERSTROM, Lena
(Orgs.). Extrema pobreza no Brasil: a situação do direito à alimentação e moradia adequada. São Paulo: Loyola,
2002. Ver também: TORRES, Gilson; DAVIM, Rejane Marie Barbosa; COSTA, Terêsa. Prostituição: causas e
perspectivas de futuro em um grupo de jovens. Revista latino americana de enfermagem, v. 7, n.3, p. 09-15,
jul.,1999.
131 Sobre o consumo de produção pornográfica ver: Acervo O Globo. Cultura do cinema pornô. Publicado em
07 de junho de 2017. Disponível em: .Acesso em: 26 mar. 2018.
159
Paraíso Tropical; Brasil, País do Carnaval; Brasil do Mulato Inzoneiro; Brasil Exótico; Brasil
Místico; Brasil, Terra de Nosso Senhor.
Essas representações se materializaram em paisagens cooptadas pelo, ou para, o
turismo. Os interesses do desenvolvimento da atividade no Brasil, fomentada pelo Estado,
partiram do privilégio ao turista europeu e norte-americano, o que se entende por turismo
receptivo, inclusive, reflete a homogeneização e a centralização dos sentidos que identificam o
país com o arsenal imagético descrito para formação do olhar estrangeiro. O produto turístico
foi vendido ao exterior com estratégias de marketing postas em prática por meio de publicidades
que abarcavam essas visualidades; como exemplo a que foi direcionada aos táxis ingleses e aos
imensos painéis usados para exposições em feiras internacionais destacando o perfil erótico da
mulher brasileira.
Como em termos de atrativos a paisagem urbana nacional, de acordo com a percepção
dos viajantes da América do Norte e da Europa – locais de maior emissão de turistas para o
Brasil -, não apresenta maiores atrativos, ergue-se o cenário da natureza em oposição ao urbano.
O caminho possível desse cenário é um roteiro exótico que leva a floresta tropical onde
praticamente tudo é permitido; segue em direção ao litoral edênico com homens e mulheres
sensuais e seminus, mulatas (como se fossem outra categoria de mulher) cordiais, receptivas e
despudoradas em um caminho repleto de musicalidade com o samba dando o tom da
malandragem. Por fim, o encontro com “nosso senhor”, todavia, outras divindades também são
possíveis.
Figura 12- Produto turístico - EMBRATUR132
Fonte: < http://g1.globo.com/turismo-e-viagem/noticia/2014/02/no-passado-brasil-ja-teve-material-
oficial-de-turismo-com-apelo-sexual.html>
132 Guias turístico de promoção do Brasil – EMBRATUR (1977 e 1978). Gestão: João Dória Júnior. Fotografia
que remete a promoção do turismo sexual no Brasil. Foto reproduzida por Kelly Akemi Kajira.
160
Figura 13-Te vejo lá133
Fonte:
Figura 14- Legado134
Fonte:
.
Essas imagens se retroalimentam e compõe um regime de visualidades sobre Brasil
difícil de ser modificado. Desde a criação do Ministério do Turismo em 2003, tenta-se reverter
algumas delas. Entretanto, a sedução que envolve o fetiche do paraíso sensual e tropical atrelado
à construção derivada da paisagem nacional inculcada na mente dos indivíduos estabelece
estruturas no mundo social. Essas estruturas assinalam antagonismos mascarados
cotidianamente, dando ao Produto Brasil – onde as paisagens, as pessoas e suas práticas são
alegorizadas como mercadoria de valor – um status de natural e de mercadoria adequada para
a fruição sem qualquer restrição.
4.2 DAQUI PRA LÁ: PAISAGENS DO NORDESTE
133 Guias turístico de promoção do Brasil – EMBRATUR (1983). Foto reproduzida por Kelly Akemi Kajira.
134 O Brasil é divulgado em revistas europeias com apelo a sexualidade nas vésperas da copa do mundo (Março,
2014). Revista do Jornal Inglês The Sun. Fonte: CNEWS.
161
A paisagem está além de ser um volume, um recorte geográfico, um aglomerado de
fixos e fluxos, como ressalta Santos (1998), ela é o reflexo das dinâmicas, das cores, dos sons,
dos odores da acumulação de distintas temporalidades que representam diferentes momentos
do desenvolvimento da sociedade. É nas palavras de Schama (1996) uma obra dos sentidos que
a contempla com a mediação dos elementos naturais e toda a carga cultural que um ser humano
coloca sobre ela. A paisagem nacional emerge a partir da criação de sentidos para um conjunto
de tensões e elaborações que envolvem o global e o local. É obra de enunciados, ações,
aceitações, práticas, valores, interesses, memórias e mitos, que surgem das tensões existentes
na dinâmica social resultante dos movimentos “de lá pra cá e daqui pra lá”.
Nesse relacionar entre natureza e cultura surgem as paisagens do Nordeste, construídas
em torno da fixação de uma singularidade orientadas por interesses vigentes. As formas do que
viria a ser o Nordeste surgiu de um discurso que iniciou seu traçado quando uma parte do norte
do Brasil foi assolado pela seca que se deu 1877, considerada uma das maiores do país. Livros,
artigos e jornais narraram essa história, construíram uma paisagem com ênfase na experiência
da miséria sustentada pelos enunciados, narrativas e imagens vinculadas às fotografias. Um
evento natural em conjunção com o descaso social marca a construção de uma geografia
associada à fome e a miséria, notadamente com cenas de homens, mulheres e crianças
esquálidas e expostas em poses marcantes, o que se tornou recorrente em diversos noticiários.
A estiagem já não era novidade nessa parte do país, o ineditismo se deu pelo fenômeno coincidir
com a crise econômica que levou grandes proprietários de terra a falência, ademais, foi o
período de emergência dos meios de comunicação e a fotografia acoplada a eles promoveu uma
repercussão nacional dessa imagética visualidade chocante e nunca antes vista, desperta a
atenção em torno do espaço (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2012).
As lutas no interior do país entre polos políticos e econômicos que pretendem acender
da esfera local para a nacional singularizam seus signos como possibilidade de identidade
nacional. De acordo com a influência dos grupos ou indivíduos que os promovem, esses signos
são monumentalizados nos locais. Afinal de contas, como pensar o nacional se não for a partir
de um local? Assim, a construção da nação germina enquanto imagem de um conglomerado de
fragmentos escolhidos de diversos cantos do país. Sobrevém do discurso e da interpretação de
indivíduos locais que procuram impor a sua visualização formatada no seu lugar de fala e
direcioná-la como algo central do país: é o embate entre visões regionais que se transportam
para o nacional. Surgem assim as paisagens locais com seu tipo de convívio e história vinculada
a região em uma imagética extenuada dos seus pontos de ebulição. Em consequência, as
produções de elementos regionalistas acabam aparecendo na arte, na cultura, nas obras
162
intelectuais caracterizando o que seria a visualidade do nacional (ALBUQUERQUE JÚNIOR,
2006).
Os discursos delineados por partículas de espaços são como os raios que ao colidirem
viram luz, se cruzam para forjar a nação e a ilumina por intermédio da identidade. Com os
novos contornos dados pela dinâmica global, um rosto para distinguir o espaço se faz
primordial; com privilégio ao que representaria a cultura geral escolhe-se o rosto popular. Dos
discursos responsáveis por formar as expressões do que é o popular o movimento modernista
ganha o destaque, ergue com precisão o que será o Brasil brasileiro; constrói suas bases no mito
das três raças, o mais agenciado nesse processo. Com a divisão dos eixos territoriais,
compreendendo a nação a partir do norte e do sul, esse mito ganha expressão. Os extremos
geográficos intensificam a sua identidade fazendo despontar particularidades; ou seja, exaltam-
se lendas, costumes e hábitos possíveis de se verificar em manifestações culturais e expressar a
originalidade do local, sendo essas tecidas para compor o cenário da cultura popular. A
imagética construída esbarra na reavaliação dos elementos verificados em sua zona de gestação,
fazendo irromper a necessidade de uma revisão do regional.
As análises do nacional a partir do campo regional são circunscritas pelo projeto
naturalista realista que desembocou primordialmente na ideia do Brasil Tropical. Sistema de
ideias que apresenta o privilégio ao meio ambiente e a raça como estâncias definidoras de
caráter, possibilidades, capacidades e desenvolvimento135. O olhar que sai do regional tem a
expectativa, basicamente, de responder as questões da origem do caráter nacional e da formação
das tradições em sua influência com o meio combinado às características racial, o que
justificaria os porquês do comportamento do brasileiro. À exemplo o negro do litoral
compreendido como malevolente, o sertanejo como sisudo e ríspido, o mulato como sensual,
entre outros tipos unificados e degenerados no discurso da identidade brasileira. Dessa
concepção de degeneração se eleva a ideia do paulista; na contramão do sertanejo; do litoral
versus o interior. Nela, o interior do país, no espaço do sertão, seria composto pela ânima que
deu o suporte para o espírito da população nacional a representação primária, mais pura. No
sertão as relações se dariam em estágios iniciais, livre da falsidade, da arrogância e da
superficialidade, da cópia do estrangeiro. Nesse ambiente os homens estariam em harmonia
com a sua própria natureza, seriam, no entanto rústicos e sem o polimento dos cosmopolitas. A
135 Renato Ortiz em seu estudo sobre a cultura brasileira e a identidade nacional explica como se desenvolveram
as teorias que desembocaram no processo de construção da identidade nacional correlacionadas a raça e ao meio
geográfico. Ver: Ortiz (1995).
163
dicotomia definidora dos discursos sobre as regiões brasileiras ao assumir essa simplificação
identitária de dois brasis, em lados opostos, tutela uma armadilha.
Isso porque as ideias que surgem minam a pluralidade e abrem as janelas para a entrada
de uma única visão estereotipada em acordo com os modos de ver do regionalismo naturalista,
predominantemente, após o grande conflito mundial. Momento em que a técnica passa a
identificar os espaços por meio de sua inserção e uso; quanto mais conectado as novas
transformações, mais próximo se estaria de algo positivo. No restante, os espaços vistos como
mais atrasados em relação aos polos técnicos e econômicos eram interpretados como distantes
longínquos e tradicionais; até mesmo como espaços subjugados às relações retrógradas,
amarrados na contra mão do progresso. O modernismo com a crítica ao olhar regional acabou
caindo na mesma armadilha e convencionou a ideia do paulista que emerge a partir da
resistência à permanência do Rio de Janeiro enquanto centro cultural. Isso porque São Paulo já
era o polo econômico, moderno e político do país, um status para São Paulo a partir de um olhar
que sai, também, do local (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2012).
Esse olhar assenta a parte sul do país como menos influenciada pelas agruras do clima
quente e pelos mestiços, salienta o paulista como a representação principal dos brancos
celebrados por sua altivez e pela disposição ao trabalho. Esses aspectos do regional ratificam
que o norte do Brasil por seu calor favorece os tipos indolentes, o que unido à concentração dos
mestiços ampliaria a apatia como característica pessoal, desqualificando o espaço e apontando-
o como fadado ao fracasso. No ponto central da busca dessa identidade se define a diferença,
ou o diferente. Alteridade marcada pela homogeneização de tipos e espaços compreendidos na
contramão do progresso.
Com a revisão do regional, na primeira metade do século XX, vai se definindo
discursivamente e imageticamente a região Nordeste do Brasil. Em âmbito político-
administrativo passou a existir em 1938, como parte do Anuário Estatístico do Brasil do IBGE,
sendo institucionalizada em 1942. A proposta original dividiria o país em cinco principais
regiões: Norte, Nordeste, Leste, Sul e Centro Oeste. Da região Norte fazia parte o Maranhão e
Piauí, junto com o território do Acre e os estados do Amazonas e do Pará. No Nordeste estava
o Ceará, o Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco e Alagoas. Não existia a região Sudeste,
porém a região Este, com os estados de Sergipe, Bahia e Espírito Santo. No Sul, estavam o Rio
de Janeiro e São Paulo. Como parte do Sul os estados do Paraná, Santa Catarina e Rio Grande
do Sul. Por fim, a região chamada Centro, onde estavam localizados os estados do Mato Grosso,
Goiás e Minas Gerais (ABRANTES, 2007; ALMEIDA, 2003).
164
Logo, fazendo parte de ordenações que refletem o predomínio da concepção naturalista
do espaço geográfico que tem em conta as paisagens como aspectos naturais da geografia e não
como simbologia humana é oficializada a divisão que compõe a região Nordeste do Brasil, o
corre após a estruturação do IBGE. Como a ideia de nação aparece muito mais enquanto um
objetivo a ser alcançado em acordo com a modernização e o progresso, os fatores interpostos
enquanto barreiras para o alcance dessa meta foram associados às características do povo e do
espaço geográfico. O caminho priorizado, identificado nas reflexões de Albuquerque Júnior
(2006), foi o de inventar uma oposição regional capaz de marcar a distinção entre um Brasil
que se aspira: ideal moderno, rico, industrial, formado por uma grande parcela de imigrantes
europeus e; um Brasil que se abjeta: atrasado, pobre, rural, escurecido por uma população
mestiça de índios e negros.
Nesse entendimento, constrói-se a ênfase na diferença entre as regiões do Brasil a partir
da dicotomia Nordeste e Sudeste. O Nordeste seria o outro atrasado e não integrado às novas
demandas, isso nos “aparece como um desfilar dos elementos culturais raros, pinçados como
relíquias em via de extinção diante do progresso” (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2006, p. 52).
São apanhados alicerçados em uma tradição memorialística e em seus elementos folclóricos,
rurais, populares, analisados como fragmentos de um mundo à parte. Peculiaridades que vieram
à tona e passam a representar por meio da unidade a diversidade Nordestina.
A visão que se coloca nesses elementos enquanto estruturas ameaçadas e frágeis diante
da dinâmica do progresso localizam o espaço como um lugar onde predomina uma cultura “de
museu” em que se expõe como “os estrangeiros” os da própria terra. Signos submetidos a um
discurso político-ideológico que se pretende transformador acabam sendo conservador por se
atrelar a discursos já canonizados sobre a região (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2006, p. 242-
249). Os vários tipos criados como nordestino; o retirante, o flagelado, o beato, o romeiro, o
cangaceiro, o jagunço, o sertanejo, o brejeiro, se aproximam da imagem do matuto e do caipira,
afastando-se dos tipos considerados citadinos.
Grande parte da produção cultural que vai ser nomeada nordestina é apoiada por
imagens do sertão; da preservação da tradição; da saudade da casa grande e da senzala; da
família patriarcal; da capela; e, da reação conservadora à sociedade capitalista. Concepções
marcadas por uma indisfarçável nostalgia em torno da sociedade escravista, do império e da
vida rural com seus rituais e festividades católicas (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2012). É “a
invenção do Nordeste e outras artes” como parte da produção dos grandes intelectuais, dos
latifundiários, dos descendentes dos donos de engenhos de açúcar e dos artistas que cantam,
romanceiam, narram, pintam e fotografavam locais consolidando a identidade do local.
165
Já na história do Rio Grande do Norte, espaço nordestino-potiguar, temáticas comuns
ao cenário construído para o Nordeste são presentes, como a seca, banditismo social, o êxodo,
a religiosidade, a cultura popular, o folclore, etc. Essas deram o enredo para estudos de Lyra
(1921); Cascudo (1955); Mariz e Suassuna (2002) que não deixam de narrar em seus estudos
sobre as famílias inteiras que abandonavam o alto sertão e iam em direção às cidades como
Natal, Mossoró e Ceará-mirim em busca de sobrevivência. Além disso, o intelectual Manoel
Dantas publicou vários trabalhos publicados, os quais objetivavam destacar a seca. Em seu livro
intitulado “Homens de Outrora” (1941) são incluídos cinco ensaios, entre eles o texto “O
Problema da Seca” vinculado no jornal “A República” da cidade de Natal no período de julho
a outubro de 1901. Em todos os autores a relação da seca com o Rio Grande do Norte é marcada
pelo tom de calamidade. “O povo pobre pôs os cacarecos à cabeça e tratou de emigrar, ao azar
de sua desgraça, em busca dos brejos e portos, morrendo de fome e doenças ao longo das
estradas” (DANTAS, 2001, p.119).
Macêdo (2005, p. 26) relata em seus estudos que o sertão norte-rio-grandense acometido
pela seca no final do século XIX, apareceu como um espaço da provação divina com o intuito
de evidenciar a fé humana. O fenômeno marcou a “estratégia divina” que pretendeu colocar os
indivíduos em harmonia com seu espaço natural. Já o litoral, natureza sobre o qual está
assentada a capital do Estado, também, nesse período era hostil. Os estudiosos da região
chamaram a atenção para o isolamento de Natal, causado por uma cadeia de dunas, tabuleiros
de areia e rios. Segundo os jovens bacharéis do local, seriam esses elementos naturais
responsáveis pela paisagem monótona de Natal submetendo-a a apatia, a preguiça e ao ócio. O
progresso desejado pela elite era barrado pela força imperiosa da natureza que circundava a
cidade, processo estudado pelo historiador Arrais (2006), no qual afirma que para esses
indivíduos havia a necessidade de vencer o isolamento imposto pelas barreiras naturais para
colocar Natal no caminho do progresso.
A interferência do regionalismo pernambucano de Gilberto Freyre marcou os escritores
potiguares que escreviam estimulando o leitor a criar cenários paisagísticos que são verdadeiros
guias em direção ao que vale a pena ser visto e lembrado. Esses autores evocam a sociedade
colonial, a casa grande e a senzala. O intelectual Nilo Pereira é um dos vários exemplos que
podem ser apontados; quando escreve sobre o engenho “Guaporé”, antigo solar patriarcal que
pertenceu a sua família, coloca: “Há poucos dias tive a emoção de rever o Ceará-Mirim.
[...[naquela terra que é uma das mais aristocráticas do Estado é onde vivi toda a minha
meninice” (PEREIRA, 1969, p.13). Em uma escrita saudosa desdobram-se construções sobre a
paisagem nordestino-potiguar consoantes a estética regional.
166
Ao longo das décadas o discurso nordestino-potiguar se conforma em dependência as
imagens unificadas pela ideia de região. A imagética produzida a fotografia é uma das mais
expressivas para a fixação da dimensão paisagística. Nela os mitos persistem e desenham a
crítica quando aparecem enquanto um sintoma aurático. Essa resistência pode ser observada na
fotografia de 2016, captada pelo repórter fotográfico Canindé Soares. O registro é do interior
do Estado do Rio Grande do Norte. A paisagem nordestino-potiguar avança em nossa direção
representada por um jumento. Ora, as figuras remetem à marcha lenta e a resignação do animal
diante do progresso, na sina de carregar os símbolos que o forjam amarrado em um espaço
como se lhe fosse algo próprio. Se antes, o jumento era desprezado, depois das drásticas secas
se tornou parte do sertanejo. O potiguar Manoel Dantas enfatiza que, só após 1877, o jumento
(animal resistente) ganhou lugar de destaque.
O sertanejo que possuía um burro, a não ser por espírito de curiosidade, tornava-se
objeto de chacota. Em 1877, foi que se verificou a força de resistência de que o burro
era dotado. O burro tornou-se uma verdadeira providencia para o transporte de cereaes
aos pontos mais distantes flagelados pela seca (DANTAS, 2001, p.120).
Observamos no discurso desse autor como o animal que antes era desprezado passa a
ser valorizado, contudo, para um cenário, que é o cenário da seca. Isso o relaciona de modo
determinante a uma realidade específica, a um povo e a uma geografia. Assim, resiste na
fotografia o jumento carregando em seu dorso o velho sertanejo, homem simples, prevenido
com os mantimentos em seus caçuas, quadriculado pelo sol que calcina, com o abdômen
comprimido. Esse é um apelo visual que ressalta a forma curvada do indivíduo regional
submetido às agruras do sertão, com os seus olhos baixos direcionados ao chão e disfarçados
pelo chapéu de palha.
As cores saturadas por Canindé atribuem vivacidade a cena e destaque a natureza, coloca
em contraste o tom vermelho e o verde em fortes nuances. A terra aparece encarnada em seu
solo batido, a intervenção humana que abriu o caminho entre a vegetação é apagada para dar o
teor de uma cena atemporal. O choque entre o vermelho e o verde explode na união central de
todas as cores e estoura em luz criando o plano de fundo para apoiar o homem e o jumento que
cercados de simbologia relutam em seguir. Como coloca Didi-Huberman (2012, p. 31), em uma
das suas análises de imagens, “a cor não é uma veste; a cor nunca deveria vir sobre os corpos,
como um recobrimento. Quando ela o faz, é apenas um sudário ou, então, um fardo”. E, como
seria a cor em seu subtom? Considerada neutra, o marrom seria o fardo ou sudário? O marrom
é a nuance correspondente aos dois seres, os estreitam e os confundem no ambiente, forjando a
prevalência do meio e a pequenez do indivíduo. Homem e animal, nenhum, nem outro,
167
indeterminados cobertos pelo verde da vegetação e vermelho da terra. Essa é mais uma das
criações da paisagem Nordestina, uma imagem que se institui mais do que se vê.
É uma amostra do Nordeste que reaparece como um sintoma, uma sombra sobre forma
de conteúdo responsável pela ordenação da atual representação, o sertanejo é delineado como
parte da geografia e relacionado aos elementos percebidos como característicos do espaço, caso
do jegue: tem-se nesses elementos então o componente do contato que é o fenômeno aurático
utilizado para colocar os discursos sócios históricos em crise. É a aura em sua dinâmica, não no
que singulariza, mas no que sustenta constante ao longo de décadas.
168
Fotografia 5- Jumento como transporte, RN136
Disponível em:
4.3 O TURISMO E A POLÍTICA: CAMINHOS POSSÍVEIS
Cabe aqui pontuar o que é turismo, definição preliminar e central para determinar esse
campo. Um dos primeiros teóricos a se debruçar sobre o turismo o economista austríaco
Herman von Shullard (1911) em seu livro intitulado “Turismo e economia nacional” como a
soma das operações, principalmente de natureza econômica, que estão diretamente relacionadas
com a entrada, permanência e deslocamento de estrangeiros para dentro e para fora de um país
(DIAS, 2013). Nas décadas seguintes o interesse nos estudos sistemáticos do turismo aumentou,
esse logo é definido como conjunto de viagens cujo objetivo é o prazer, motivos comerciais ou
profissionais ou outros análogos, e durante os quais a ausência da residência habitual é
temporária. Escapando as viagens realizadas para deslocar-se ao lugar de trabalho, a definição
é de Bormann, 1930 (DIAS, 2013). Nesse mesmo período outro integrante da escola de Berlim
Schwink, (1929-1930) caracterizou o turismo por meio do movimento de pessoas que
abandonam temporariamente o lugar de sua residência permanente por qualquer motivo
136 Fotografia de autoria de Canindé Soares. Fonte: CS Fotojornalismo: Agência Potiguar de Fotografias e
Notícias. Marcadores: Caçua; idoso; jumento; sertanejo; transporte; nordeste regional.
169
relacionado com o espírito, com o seu corpo e com a sua profissão. Todavia, uma grande
questão era posta de lado, o espaço. Assim, em 1935, Glucksmann alertou que as definições
direcionavam ao tráfego de pessoas, deixando de lado o lugar da hospedagem, que em sua
concepção é onde começou o turismo. Aqui há um refinamento do conceito que aponta para o
espaço em que essas atividades ocorrem.
Após o segundo conflito mundial com o turismo interpretado como um fenômeno de
massa, além do espaço é também incluído em sua definição o tempo: Então, toda pessoa que
viaja por um período de 24 horas ou mais para um país (Liga das Nações – turista internacional
– 1937/38) diferente daquele de sua residência habitual está praticando o turismo. Nessa ótica,
classifica-se a atividade contemplando só os deslocamentos internacionais. Observa-se que o
seu centro de emergência é o continente europeu o que favorece os deslocamentos entre países,
porém essa noção continua limitando as viagens ao movimento de pessoas por razões distintas
das de se ter no país visitado qualquer vínculo com remuneração.
Em 1967, um Grupo de Especialistas em Estatísticas contratados pelo serviço da
Organização das Nações Unidas (ONU), em um exame mais detido dos conceitos de turismo
acabou em 1968 reformulando-os e construindo uma nova concepção que foi oficialmente
adotada pela Comissão de Estatísticas da ONU. Nessa oportunidade também foi sugerido
substituir a expressão de visitante-do-mesmo-dia (day visitor) pela de excursionista, para
permanências de até 24 horas (DIAS; AGUIAR, 2002).
Nos anos de 1970 e de 1980, o desenvolvimento dos conceitos estatísticos e do marco
para o turismo não acompanhou as mudanças ocorridas na estruturação e ampliação do
fenômeno, muito menos a importância dada ao turismo em aspectos mais globais, bem como
sua própria possibilidade de ampliação futura. E só mesmo no fechamento do breve século XX
que a Organização Mundial para o Turismo (OMT) destacou que a atividade compreende o
conjunto de ações realizadas pelos indivíduos durante as suas viagens e estadias em lugares
diferentes de seu entorno habitual, por um período de tempo consecutivo inferior a um ano;
tendo em vista o lazer, os negócios ou outros motivos não especificados como exercício de uma
atividade remunerada no lugar visitado (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS;
ORGANIZAÇÃO MUNDIAL PARA O TURISMO, 1999). Essa definição marcou uma
jornada em busca da apreensão da atividade e de uma demarcação oficial e global.
A trajetória da demarcação da atividade pela OMT, juntamente com outras instituições
internacionais, vai ao encontro de alguns conjuntos de recomendações para as viabilizações das
estatísticas que envolvem o turismo, correspondendo à proposta de avançar em sua promoção
e comparação de índices internacional. O que é bastante óbvio, se levar em conta o objetivo
170
central da organização mundial, uma vez que as definições que tangem as instituições estão
direcionadas aos seus respectivos públicos. Nesse caso, outras instituições que lidam de modo
pontual e operacional com a implementação da atividade, baseando-se em levantamentos
estatísticos para a obtenção de dados que destaquem a incidência da atividade em diversos
países. Essa instituição assume um papel representativo em tentar definir o fenômeno de acordo
com as demandas mais significativas impostas em torno da atividade, mesmo em âmbito
acadêmico, uma vez que sua definição encabeça uma centena de artigos científicos no campo
do turismo.
A definição mais recente das Nações Unidas juntamente com a Organização Mundial
do Turismo, elaborada em 2008, apresenta o turismo com um enfoque diferente e nada
tradicional, marcando uma nova fase na concepção da atividade, uma vez que assume que: O
turismo é um fenômeno social, cultural e econômico que envolve o movimento de pessoas para
lugares fora do seu local de residência habitual, geralmente por prazer (NACIONES UNIDAS;
UNWTO, [200-?]). Sendo assim, essa definição não apenas aponta para a essência do fenômeno
do turismo (estabelecendo suas dimensões social, cultural e econômica), mas indica como fato
essencial o que acontece em decorrência da saída de pessoas do entorno habitual e, finalmente,
assinala o prazer (lazer) como principal motivação (PAKMAN, 2014).
Essa é uma síntese do trajeto conceitual do turismo que recebe muitas críticas de
acadêmicos, entretanto continua sendo balizada e reproduzida teoricamente nesse campo do
conhecimento. A posição da OMT é pragmática, está distante das concepções em que
sociólogos ou outros cientistas sociais deveriam se debruçar, contudo, não há de fato uma
definição específica entre os estudiosos do fenômeno, sendo essa elaborada, frequentemente,
quando se tem o fenômeno como objeto no interior de cada disciplina.
O caminho da construção do pensamento crítico em turismo que permite pensar o seu
papel no desvendamento do mundo moderno é relativamente novo como objeto de reflexão
teórica e científica. Um corpo significativo de estudiosos dedicados à pesquisa da problemática
ainda apontam as dificuldades desse domínio e marcam a necessidade de um mergulho à
dimensão histórica, social e cultural para maior entendimento do fenômeno e da sua importância
na estrutura sociocultural do ocidente.137
137 Embora o fomento da investigação no turismo no âmbito social, ainda esteja longe de corresponder à relevância
do seu contributo para a sociedade brasileira, como nos lembra Panosso Neto (2005, p.19), onde “em inúmeros
textos, os benefícios sociais do turismo são esquecidos, originando assim uma visão fragmentada e superficial
desse fenômeno que necessita de uma interpretação minuciosa, fugindo de textos acadêmicos reducionistas que
simplesmente abordam uma ou duas de suas facetas.” Ver: PANOSSO NETTO, Alexandre. Filosofia do turismo.
Teoria e epistemologia. São Paulo: ALEPH, 2005. Esse autor abre um campo para um investimento na linha de
investigação filosófica e histórico-social. Lançando um novo olhar a esses estudos.
171
4.4 SOCIOLOGIA E TURISMO: TEORIA CLÁSSICA SOCIOLÓGICA NO TURISMO
CONTEMPORÂNEO
A sociologia permite a interpretação da realidade que vivemos. No turismo ela nos
auxilia a fazer a ponte com as matrizes sociológicas expressas por diferentes formas teórico-
filosóficas de interpretar o objeto pesquisado, apontando que a sua importância extrapola os
circuitos econômico-financeiros, sendo o seu significado bem mais amplo em termos
socioculturais. Essa disciplina nos ensina a pensar a atividade em sua prática, relações e
consequências, como parte da engenhosidade humana e interpretação da vida social. Nesse
campo pouca atenção foi dada a atividade, mesmo sendo uma prática cultural que faz parte da
experiência moderna o turismo aparecia como periférico, isso porque as linhas teóricas críticas
fundadas nos clássicos: Durkheim, Weber e Marx estavam mais envolvidas nos estudos que
sustentavam o trabalho como fundador da sociabilidade.
O arcabouço teórico existente no interior da sociologia auxilia na análise das relações
que se produzem em sociedade constituindo-se em um instrumental desafiador para o
entendimento do turismo. Vejamos, para Durkheim, a sociologia é uma ciência que se preocupa
com as possibilidades das coações sociais sobre o sujeito, através das instituições sociais, cujo
próprio método do autor é a análise do funcionamento dessas instituições. Sejam essas
instituições informais como a família, formais (como a escola, a política e o trabalho) ou mesmo
dogmáticas (como a religião). O fenômeno social constitui-se para esse autor como um fato
social e esse é interpretado como o objeto da sociologia, sendo analisado a partir de três
características: exterioridade, generalidade e coercitividade. O primeiro é externo ao indivíduo,
ou seja, independe de sua vontade; o segundo tem grau de generalidade, quer dizer, passível de
pertencimento a todas as pessoas de uma mesma sociedade e por fim, o último, que significa o
que vem de cima como algum tipo de coerção, obrigação ou imposição.
O turismo poderia ser inserido na perspectiva de Durkheim visto que o indivíduo
enquanto turista assume os comportamentos propostos pelo fato social, se comportando de
forma diferente do seu habitual, extravasando suas emoções, comedidas pelo seu ambiente
comum. O fato social turístico se apresentaria como maneiras de agir, pensar e sentir que são
exteriores ao indivíduo e que se lhe impõem, pois são dotadas de um poder coercitivo. Melhor
dizendo, a comunidade de uma região turística, os hoteleiros, os turistas assumem um
comportamento que lhes é dado pelo poder coercitivo que o turismo pode exercer como fato
social, atitudes estas que são diferentes das assumidas quando integram outros tipos de
fenômenos sociais; tais como a religião, a política, a escola ou o trabalho onde assumem
172
posturas específicas.
Enquanto Durkheim prioriza a sociedade na análise dos fenômenos sociais, Max Weber
enfatiza o papel dos atores e as suas ações individuais. A sociologia para Weber pretende
compreender interpretativamente a ação social e assim explicá-la em termos causal em seu
curso e efeito. A ação social conquista o significado de uma ação que aparece em relação ao
sentido visado pelo indivíduo e não pela sociedade como em Durkheim, a sua referência está
no comportamento dos outros, orientando-se por estes em seu curso. Exemplificando: a ação
de viajar para um específico lugar é realizada a partir de um conjunto de opiniões de outras
pessoas, entre as quais a mãe, o namorado, os amigos, colegas, estranhos, os meios de
comunicação, entre outros.
Nesse aspecto a relação do turista com a comunidade na qual interage constituiria-se em
um fenômeno social, pois seus agentes têm um ao outro como referência para seus atos, isso é
o que Weber chamaria de ação social. A ação social pode ser assim classificada com quatro
possibilidades, a racional, referente a fins; racional, referente a valores; afetivo; e, tradicional.
Detalhadamente, a ação social racional referente aos fins se realiza pela capacidade de
racionalização do indivíduo com intuito de atingir um objetivo determinado. Por exemplo: um
turista que faz uma viagem analisando o destino pelo preço e benefício, ou seja, custo baixo,
acomodações boas e um local que lhe desperte maior interesse. Já a ação social referente aos
valores é determinada pela concepção geral do grupo social ou sociedade ao qual pertence o
indivíduo, ou seja, a ação do sujeito vai se realizar de acordo com aquilo que seu meio valorizar,
independentemente de sua capacidade efetiva. O turista escolhe o destino muito mais pelo
status, pela indicação do seu grupo, do que pela sua própria condição financeira ou gosto
individual. A ação social de modo afetivo é determinada por afeto e estado emocional visto que
a relação entre os indivíduos se expressa em termos de amizade, confiança e credibilidade. O
turista escolhe a sua opção baseando-se em laços afetivos, como escolha do cônjuge, do amigo,
das lembranças da infância, etc. A ação social tradicional é determinada pelas tradições, pelos
costumes. Nesse sentido, o destino turístico será escolhido em função dos costumes e das
tradições adquiridas. As férias, o fim de semana, recorrem à rotina e, normatividades onde há a
certeza e a imprevisibilidade são consideradas nulas. Fica explícito que as ações sociais não são
determinadas por um único tipo de ação, mas se concretizam enquanto um componente
universal e específico na vida social e fundamental para a organização da sociedade humana.
Segundo Karl Marx, um dos mais conhecidos críticos do capitalismo, a mercadoria se
configura como o elemento primordial da sua análise, ela está no topo dos requisitos e da
satisfação da necessidade humana, sendo apreendida como meio de subsistência, um objeto de
173
consumo, ou mais, como um meio de produção. Todo o desenvolvimento teórico de Karl Marx
está focado no capitalismo, sistema de produção vigente em que a luta de classes e as
consequências dessa luta o traduziria. Em uma análise do turismo realizada por esse teórico a
luta de classes ganharia privilégio, uma vez que aparece como um fenômeno de servidão de
algumas pessoas, ou seja, em prol de alguns indivíduos usufruírem o local. Muitos têm que
trabalhar em sistemas terceirizados, em horários amplos, muitas vezes não participando de
modo efetivo do ambiente em que se trabalha em nenhum momento da vida. Destacaria ainda
que a hora elevada desse sistema de servidão acaba causando a alienação humana. Esse teórico
apontaria para a promoção da desigualdade social favorecendo uma elite burguesa em
detrimento de um proletariado trabalhador alienado dependente e usurpado pela burguesia na
racionalização e transformação das suas horas livres em lazer-mercadoria.
No atual sistema, o consumo é a palavra-chave, ou seja, é o que o diferencia (de modo
mais contundente). O consumo se revestiria em “status” para os indivíduos, nessa perspectiva,
o turismo e o lazer também fazem parte desse status social, desde onde se viaja, o que se come
nesse trajeto, até aonde se hospeda, tudo o que se consome. O turismo pode ser motivado através
da construção do desejo organizado. Isso se dá desde a sua organização para a visita de um
ambiente público, como uma praia, durando um período curto, o que aparece como excursão;
até uma viagem internacional de meses, reafirmando assim a sociedade de classes e os possíveis
graus de status que o turismo enquanto fenômeno social, também, reafirma. O capital consegue,
por este mecanismo, que o dinheiro, da força do trabalhador, poupado, circule no processo de
consumo da nova mercadoria: “lazer”. Trata-se de um paradoxo, uma vez que a mais valia, por
um lado, exige a redução de salários para aumentar a acumulação e, por outro necessita da
poupança dos trabalhadores (poupança interna), necessária à sociedade de consumo, sem a qual
não haveria circulação de mercadorias.
O cidadão na sociedade de classes será cada vez mais inserido socialmente quanto mais
ele consumir. Nessa concepção, o turismo é nitidamente um modo de consumo, inclusive, do
consumo dos espaços e dos indivíduos. Como um fenômeno social parte do processo ideológico
de transformação das paisagens em ambiente de consumo, coisificando-as por meio do fetiche.
Assim sendo, a ideologia passa pelas veias do turismo e inculca na mente dos indivíduos as
ilusões que constroem o recorte espacial, como se esse fosse capaz de oferecer o reino da
felicidade. No capitalismo a intenção é transformar a atividade turística no encantamento para
as fantasmagorias do capital.
A esse respeito sobressai na atividade turística a sua capacidade de utilizar do fetiche
para fazer circular as mercadorias; processo que se inicia no valor de uso pleno dos espaços,
174
onde os seus valores simbólicos reúnem diversos fatores para a sedução. Com foco nas
paisagens culturais direcionadas ao turismo, em um exame crítico, o autor Santos (2002, p. 13)
analisa o turismo como uma prática intercultural, assumindo as suas intensas metamorfoses nas
quais novas e distintas subjetividades são produzidas para os específicos consumos, juntamente
com os seus sentidos, símbolos, imagens, imaginários na construção de paisagens. Portanto, o
fetiche é abarcado como elemento essencial de manipulação por parte dos sujeitos e das relações
conexas para a produção de mercadoria.
Com efeito, se de um lado o simbólico atua na construção da atividade, na formação do
valor do espaço, na estética que determina as paisagens direcionadas para o turismo, por outro,
trata das formas em seu processo de objetivação e mercantilização. Mesmo que as paisagens
apareçam como um conjunto específico de qualidades ou um dom da natureza cumprem o plano
de fundo de formas e funções inseparáveis da emergência de produtores interessado na elevação
de determinados objetos que as instituem enquanto turística. Os processos relacionados a essa
objetivação operam construções com base na seletividade de imagens e conceitos que,
combinados e reproduzidos, emergem iconograficamente, dando novas visualidades ao já visto,
assim os recortes paisagísticos tendem a ser considerados realidades em si próprias,
fetichizadas.
De acordo com Foucault (1998) os discursos uma vez cristalizados implicam em
controle, formação de convenções e na canalização da conduta dos indivíduos em detrimento
de outras possíveis direções. O resultado é que os discursos direcionados a organização do
turismo produzem enquadramentos paisagísticos que destacam espaços com características pré-
escolhidas para representar um lugar, como ocorre com os recortes definidores da região
Nordeste, na mesma lógica segue o espaço nordestino-potiguar. Essas escolhas em âmbito
nacional são marcadas, entre outras ações, por políticas públicas com vistas ao desenvolvimento
socioeconômico. Como afirma Krippendorf (1989) o objeto turístico conforma-se em uma
simbiose em que confluem discursos condensados em uma série de objetos direcionados ao
consumo. Quer dizer que o turismo enquanto uma atividade, seja ele em sua vertente de
patrimônio cultural ou natural, é constituída por um conjunto de convenções reguladas por
instituições.
As instituições efetuam as classificações por nós [...], orientam de maneira sistemática
a memória dos indivíduos e canalizam as nossas percepções dentro das formas
compatíveis com as relações por elas mesmas autorizadas. Elas fixam processos que
são essencialmente dinâmicos, ocultam a sua influência e suscitam as nossas emoções
a um nível fixado em temas estabelecidos (DOUGLAS, 1990, p. 141-142).
175
O turismo aparece sendo formatado por complexas transformações sociais que
acentuaram o fenômeno, juntamente com as práticas e discursos que colocaram o descanso e o
lazer como direito de todos. Logo, passou a ser difundido também entre a pequena burguesia e
seguido por uma parcela do operariado (BOYER, 2003). Porém, embora a burguesia
empreendesse viagens e suas bénéfices fossem alardeadas pelos vários meios que circulam com
a comunicação essa só foi percebida de maneira mais abrangente enquanto atividade econômica
após a Segunda Guerra Mundial.
Em sua dinâmica processual o turismo antes de se tornar uma atividade substancial e
convencionalizada foi moldado por mecanismos formais, sociais e econômicos. Ganhou
centralidade nos discursos estatais que o definem, em aspectos mais amplos, como uma
atividade passível de influenciar na redução da pobreza, do desemprego e do déficit econômico
(BRASIL, 2004). Os princípios desses discursos atrelam-se a lógica do capital e ao privilégio
da atividade em seus aspectos econômicos, isso diante das múltiplas dimensões que fazem parte
de uma série de discursos, instituições, organizações administrativas, decisões regulamentares
que iniciaram o incentivo das férias e do lazer; fato que pode ser identificado no próprio
percurso de tentativa de definição da atividade e do direcionamento dado ao turismo em relação
às instituições internacionais como a OMT/ONU.
O alardeamento do turismo enquanto uma atividade que possibilita a captação de somas
financeiras suntuosas, até o final do século XX, já tinha colocado para trás a indústria bélica e
se equiparava aos benefícios lucrativos da indústria petrolífera, primeira no ranking mundial.
As estatísticas internacionais destacavam o turismo incluindo sua capacidade de deslocamentos
de fluxos na mão de obra empregada e na geração de renda local. Todavia, o deslumbramento
em torno das expectativas numéricas oferecida pelos órgãos internacionais de turismo, mais
limita, do que amplia o entendimento da atividade. Muitas vezes empobrece as análises que
existem.
No Brasil o discurso que associa o turismo ao crescimento econômico está atrelado a
vários fatores. O mais óbvio é o da própria concepção global da atividade que se inscreve sobre
as motivações da política e da economia nacional em correlação com as instituições
organizadoras da atividade. Essas fundam o turismo no conjunto de suas experiências rumo às
paisagens naturais, em contraponto, a paisagem urbana mais ligada ao cotidiano do trabalho. É
o início da tendência paisagística determinada por interesses comerciais, pelo gozo das
paisagens exóticas e pitorescas brasileira. Importante colocar que entre meados do século XIX
e início do século XX o uso dessas paisagens pelo turismo era integralmente feito a partir de
infraestruturas criadas com outros objetivos que não o lazer.
176
No decorrer desse processo as paisagens naturais permeadas por um sistema de valores
e classificação são demarcadas com intervenções físicas e simbólicas para a instrumentalização
do imaginário convertido em mercado. Constituído a partir de significados inaugurados pelo
Estado, entre outras organizações que pouco a pouco vão sendo elaboradas em torno da
atividade, tais como: rede hoteleira, operadores de turismo, agências de viagens,
transportadoras, organizações nacionais e internacionais de turismo. Essas fazem parte de toda
uma rede de instituições que constroem e mediam a atividade. Que nos dias atuais já goza de
uma incontestável capacidade de organizar localidades inteiras de elaborar em torno do seu
discurso variadas paisagens (re)ordenando-as para a sua realização. Ademais, é nessa
característica que reside a sua maior especificidade: o atrativo turístico (URRY, 1999; CRUZ,
2002).
No cenário internacional os movimentos iniciais em prol da mercantilização das
paisagens se dão na França e na Espanha, esses países desenvolveram as primeiras políticas
com objetivo de fomentar a atividade (ACERENZA, 2003). Conforme o turismo vai se
ampliando, concomitante, há a circulação de informações estatísticas que se avolumam em
torno do enaltecimento das suas divisas financeiras; mais as intervenções estatais aparecem e
vão se tornando pontuais.
Os deslocamentos da atividade turística desde a sua organização têm sido influenciados
pelo Estado, em alguns casos, de modo mais reduzido, aonde a atuação se dá somente na
regulação da atividade em torno dos espaços. Numa figuração mais ampla, o Estado atua no
incentivo, na fomentação, na promoção e na divulgação. Criam-se uma série de políticas
públicas que dão forma e conteúdo ao tipo de turismo que se quer estabelecer; influenciando,
imensamente, as possibilidades, as práticas e as representações da paisagem. O estímulo a partir
do Estado, como já colocado, além de ser justificado pela atividade captar grandes somas
financeiras, atrela-se aos objetivos que correspondem à ideia de desenvolvimento econômico
em suas elaborações históricas138, por gerar renda, ampliar o roll de empregos e dinamizar as
economias locais. Esse cenário impulsionou a criação de políticas públicas de turismo
internacionalmente e no Brasil. Embora em contextos diferenciados.
138 A noção de desenvolvimento ganha vários desdobramentos na história da modernidade, primeiro, a tradicional
incutida na ideia de progresso e amarrada aos aspectos econômicos, o que aparece como um avatar do progresso
iluminista. Ver em: Furtado (1989); Heidemann (2010). Após passa a assumir formas mais complexas, não sendo
mais considerado nessa perspectiva tradicional, atingindo campos mais amplos que envolvem o bem-estar da
sociedade e do indivíduo, inclusive em sua capacidade de expansão de possibilidades para o acesso, a atuação e a
participação nas esferas sociais, como é a proposta sugerida por Amartya Kumar Sen, indiano, ganhador do Prêmio
Nobel de economia no ano de 1998. Ver em: Sem (2000).
177
Os países que apresentam hegemonia econômica e cultural, melhores distribuições de
renda, participação de seus cidadãos, infraestrutura mais sofisticada em suas zonas urbanas e
rurais e; evidentemente, estão em relação de privilégio por fazerem parte da construção inicial
dos contornos que cingem a atual lógica ocidental, logram as maiores cifras do turismo. Isso
não ocorre pelo turismo se constituir em um salvador da pátria, mas sim, pelas questões citadas
que dão o cenário propício para um fluxo de circulação de pessoas, o que favorece o turismo.
A própria posição desses países no processo global os coloca como culturalmente e
economicamente centrais o que já favorece o movimento turístico, não de modo natural, mas
sim como consequência e reflexo de relações mais complexas.
Já no início do século XX, os governos europeus mantêm as estatísticas sobre o
potencial lucrativo do fluxo de viajantes desejosos por conhecer os seus atrativos139. A
valorização da natureza deu destaque acentuado ao paisagismo, montanhismo, alpinismo e a
busca medicinal e prazerosa das águas termais, o que acentuou a entrada de divisas nos países
detentores dessas paisagens acrescidas de infraestrutura.
As leis que beneficiaram uma classe de trabalhadores com a redução da jornada de
trabalho, com os descansos dominicais e a instituição das férias remuneradas (1936) juntamente
com a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) ampliaram a circulação dos
viajantes. Contudo, a crise que aconteceu no Ocidente na década dos 1930 corroborou para que
as análises em relação ao lazer continuassem restritas aos seus aspectos econômicos. A
sociologia, por exemplo, seguia o foco no trabalho operário. No ano de 1942, em um estudo
sobre a difusão do turismo Hunziker e Krapf (apud PASSO NETTO, 2010, p.40) fazem uma
constatação:
Assim, sozinha, a orientação para a paisagem tem criado o turismo moderno. Sua
característica é o turismo de massas. A viagem se converte de um privilégio da
personalidade, como era antes, em um assunto da coletividade. O turismo perde cada
vez mais, em seu valor, o conteúdo subjetivo de vivências; começa a ser medido com
escalas objetivas: em cifras de frequência e segundo seus rendimentos econômicos
[...] A serena contemplação dá lugar a um vai e vem sem pausa, o respeito frente ao
pequeno cede vez ao culto do colosal, a vivência espiritual à atividade externa.
(Grundriss der allgemeinen fremdenverkehrslehre, 1942, p. 195.
139 Ver: Castillo Nechar; Panosso Netto (2010, p.43), o autor expõe tabela com dados estatísticos de entrada de
turistas estrangeiros na Suíça, esses dados foram computados pela primeira vez em 1848 e seguem-se com
pequenos intervalos até 1940. Apenas a título de comparação, no início do século XX, ano de 1929, a Suíça
apresentou uma entrada de 4.230.000 de turistas; o Brasil em início do século XXI, ano de 2009, recebeu por volta
de 4.800.000.
178
Sob a Égide do descanso e lazer, o turismo enquanto atividade econômica nasceu com
a indústria e com o emprego que foi modelando o tempo livre, preenchendo-o, formulando-o.
No fim, chega a ser divulgado como um direito universal.
Nas regiões consideradas periféricas a essa ordem, como a América latina, a África e,
de modo particular, a África Austral, não houve esse conjunto complexo de motivações que
reverberassem em uma dinâmica turística de peso. Não havia nada que favorecesse esse
surgimento “quase autônomo” de somas esplendorosas uma vez que muitos países dessas áreas,
por questões conjunturais e estruturais, vivem a “mercê” das ações políticas de
desenvolvimento emanadas pelos órgãos e pelas corporações das regiões hegemônicas. É o caso
do Brasil.
A variedade geográfica brasileira e o que se entende por cultura diversificada, desde o
primeiro quartel do século passado, vêm motivando os governos a encontrarem modos para
desenhar e direcionar a atividade turística como elemento propício ao desenvolvimento
econômico. É uma apreciação da atividade que favorece muitos países, admitirem o turismo
como uma base sólida para a promoção do desenvolvimento social e do crescimento econômico
(ANSARAH, 2000).
Nesses países a panaceia que envolve a atividade turística parte da ideia reforçada da
redução da pobreza e coloca a atividade em foros privilegiado quando o assunto é
desenvolvimento. As organizações mundiais como a Organização Mundial do Turismo (OMT)
e a World Travel and Tourism Council (WTTC) referenciam esses discursos; os governos
nacionais e locais; os meios de comunicação e; as pesquisas acadêmicas o propagam. São
muitos estudos nessa linha de pensamento como, por exemplo, o de Buarque (2005) que
corrobora com a ideia vigente, ao afirmar o turismo enquanto um dos poucos setores mundiais
que para crescer precisa incluir os excluídos socialmente. Para o autor essa característica o
diferencia da indústria comum que para expandir os lucros pode simplesmente aumentar o
consumo dentro de determinado grupo, sem precisar ampliar-se para outros, além do mais,
consegue aumentar a produção investindo em máquinas e não em humanos.
O turismo, mesmo sendo uma atividade sazonal, diferencia-se do exemplo anterior
porque para crescer precisa abarcar cada vez mais pessoas em diferentes níveis de campo e
especialização, vai do mensageiro ao administrador hoteleiro. Rua (2005) também conclui que
o turismo pode contribuir para a inclusão social por facilitar o intercâmbio entre as diferentes
culturas, estimulando o respeito e a manutenção de diversas comunidades. Em segundo lugar
agrega pelas relações prazerosas que favorece o estabelecimento de empatia entre os diferentes
179
atores. Terceiro, propicia oportunidades de geração de trabalhos e renda. Essas são algumas
panorâmicas acadêmicas em torno do turismo.
É por meio dessas concepções que a atividade emerge como um marco do
desenvolvimento, sendo abarcada por planos e ações comandados pelos órgãos do Estado e
mediadas pelas políticas públicas elaboradas a partir da prática da canalização de interesses, em
que por meio delas se governa e se ordena a vida em coletividade, uma vez que a estrutura
social se sustenta a partir desses arranjos em forma de processo político.
Sobre a concepção da política pública é interessante pontuar que se referem às relações
de poder produtoras de procedimentos formais e informais no campo da administração. O
conceito aparece relacionado ao desenvolvimento do Estado capitalista a fim de determinar as
diretrizes prioritárias dos diversos setores econômicos, sociais, políticos e ambientais,
direcionando a utilização dos recursos públicos em benefício dos cidadãos (MEKSENAS,
2002). São caracterizadas por duas dimensões que se complementam: a técnica-administrativa
e a política (FERNANDES, 2007).
A geógrafa Rita Cruz enfatiza a política pública como um dos instrumentos norteadores
do processo de planejamento, apontando para três formas de intervenção do Estado: a
participação; a indução e o controle (CRUZ, 2002). A participação ocorre quando o Estado
exerce alguma atividade econômica no setor, como a administração de um meio de
hospedagem. A indução, quando o Estado orienta o comportamento dos agentes de mercado,
por meio de incentivos financeiros e fiscais. Já o controle, relaciona-se a regulação dada pelo
poder público, determinando formas pela qual a iniciativa privada poderá explorar determinada
atividade econômica.
Alguns conceitos de política pública se aproximam, Lynn (1980) discute as políticas
como parte de um conjunto de ações do governo produtoras de efeitos específicos por
intermédio de programas ou leis implementadas pela administração pública. Meny e Thoening
(1992) destacam que são programas de ação governamental em um setor da sociedade. Laswell
(1936), por sua vez, ressalta que entender as políticas públicas significa compreender “who gets
what, when, how”, título do seu livro clássico. Dye (2008) define como tudo aquilo que o
governo escolhe ou não fazer.
Em suma, são ações baseadas em leis constitucionais legitimadas pelas instituições
estatais e que depois de definidas em ação atuam coercitivamente sobre os indivíduos;
entretanto, não há como negar a influência dos diversos fatores externos. A legitimação se dá
pela combinação de elementos discursivos que partem dos atores sociais, das instituições, dos
180
grupos sociais, das questões econômicas e entre outras, em busca de alcançarem determinados
resultados que dependerá das relações causais dos envolvidos (SILVEIRA, et.al., 2014).
Sobre as políticas públicas de turismo podemos compreendê-las como uma articulação
de intenções, diretrizes, estratégias e ações deliberadas realizadas pela gestão pública com a
intenção de impulsionar e/ou dar continuidade ao desenvolvimento do turismo num certo
ambiente (CRUZ, 2002).
A política pública do turismo é uma das áreas da política responsável por desenvolver
diretrizes, planejamento, promoção e controle da atividade turística de um país, Estado, região
ou município. Na maioria das vezes, essas políticas são criadas pelos órgãos administrativos
ligados ao setor de turismo, que são os Ministérios e Secretarias Estaduais e Municipais de
Turismo. Nessa esfera demonstra como os indivíduos que estão agindo no poder público veem,
pensam e se posicionam (HALL, 2001). No ponto de vista desse autor:
As políticas públicas de turismo são de extrema importância como instrumento
norteador do processo de planejamento, pois há uma intrínseca relação entre o
planejamento governamental e a política pública. O planejamento público do turismo
é, por sua vez, uma espécie de resposta do poder público aos efeitos indesejados do
desenvolvimento do setor (HALL, 2001, p.25).
Internacionalmente as políticas de turismo, enquanto idealizações do Estado, só
começam a ocorrer efetivamente na década de 1990. Sendo a França um dos países pioneiros
na instauração da primeira lei orgânica para a atividade no ano de 1910. No ano de 1940, o país
deu destaque ao movimento turístico enquanto segmento econômico, chamando a atenção do
público alvo para a identidade do país em termos culturais, ainda, correlacionando o turismo a
outras atividades (BADARÓ, 2006). Ao longo dos anos as transformações que ocorreram no
planejamento turístico e a própria facilidade dos deslocamentos reduziram os investimentos
públicos. Essas foram se localizando apenas nos aspectos mais básicos, como a composição da
infraestrutura de suporte a atividade, até a fase em que se atrelam às formações de parcerias
público-privadas, regulamentação ambiental e marketing turístico.
No quadro a seguir é apresentada uma síntese das principais fases das políticas de
turismo no cenário internacional (HALL, 2001).
181
Quadro 1- Políticas Internacionais de Turismo de 1945 até o fim do século XX.
Fase Características
1945-1970 Desagregação e racionalização da política, da alfândega, da moeda e de
regulamentações referentes à saúde que haviam sido adotados após a Segunda
Guerra Mundial.
1955-1970 Maior envolvimento do governo no marketing turístico a fim de aumentar o
potencial de ganhos do setor.
1970-1985 Envolvimento do governo no fornecimento de infraestrutura turística e no uso
do turismo como instrumento de desenvolvimento regional.
A partir de
1985
O uso continuado do turismo como instrumento de desenvolvimento regional,
maior foco em questões ambientais, menor envolvimento do governo no
fornecimento de infraestrutura turística, maior ênfase no desenvolvimento de
parcerias públicas e autorregulamentação do setor.
Fonte: Elaborado com base nas informações apresentadas em OCDE (1974); Hall (1994, 2001); Hall e Jenkins
(1995).
As etapas citadas acima abordam as características de cada estágio de incentivo estatal
no processo de expansão da atividade turística nos países desenvolvidos. Como exposto
anteriormente, presencia-se em início uma maior atenção à dotação da infraestrutura para a
recepção do turismo. Logo, com a influência do neoliberalismo o foco da gestão vai para a
busca de parcerias público-privadas, com cerne na autorregulamentação da atividade no
mercado global. Nos países ditos subdesenvolvidos ou em desenvolvimento, caso do Brasil, o
desenho é outro e se prolonga aos dias atuais; vive-se um processo que se assemelha ao da
terceira fase, tendo em vista que o investimento em infraestrutura e demais aspectos de suporte
basilares ao turismo ainda é de responsabilidade, quase exclusiva, do Estado. As diversas
alternativas cujo turismo oferece parte de um planejamento e de atribuições estatais.
Mesmo com todo o interesse que se desenvolve no turismo em um plano global no
decorrer do século passado, somente no século XXI, são movimentadas as políticas, os planos
e as ações voltadas a sua organização e fortalecimento no Brasil.
4.4.1 Desenvolvimento: o discurso inicial
O turismo não existe como atividade econômica por si só, uma vez que ele toma corpo
como um elemento proveniente das distintas interações e transformações socioeconômicas
ocorridas no ocidente pela expansão industrial e pela emergência das novas tecnologias. São os
meios de transportes mais rápidos e com capacidade para o deslocamento de um número maior
de pessoas; o fortalecimento das experiências urbanas; as conquistas trabalhistas que dão direito
a períodos de descanso e férias; a própria disseminação das imagens fotográficas espalhando
imagens de diferentes locais e a influência direta dos meios de comunicação de apelo em massa.
182
Todos esses fatores contribuem para a ampliação das visualidades e da curiosidade em relação
aos lugares do mundo; agrega-se a isso, a ampliação e organização de serviços de hospedarias
e alimentação.
O Estado só concebe políticas públicas para uma atividade econômica a partir da
significância da representação do setor. Ou seja, dos mediadores, da posição de poder que
exerce em âmbito social, da sua importância na divisão social do trabalho, bem como da sua
função social; entre outros elementos que atendem a uma hierarquia nas relações de poder. E
as políticas de turismo no Brasil demandam a organização do próprio setor, na maioria das
vezes traduzidas na visão de poucos (BENI, 2006). É pertinente, ainda, apontar que as políticas
públicas de turismo nesse país, em grande parte do seu processo histórico, não foram claramente
explicitadas mantendo-se desconectadas de outras políticas e fragmentadas em aspectos
específicos da atividade (CRUZ, 2002).
Para um entendimento das motivações iniciais do turismo no Brasil vale destacar alguns
aspectos que moldaram a sua base. Primeiro: das representações e práticas sociais em relação
aos espaços e seu entorno, que recortados constituem-se em paisagens, destaca-se a fruição dos
espaços iniciada como consequência da ocidentalização e reprodução dos hábitos instaurados
com a chegada da família real no país. O que consistiria na emergência de alguns elementos
singulares entrecruzados com a posterior estruturação e organização da atividade turística em
consonância com a Europa Ocidental e os germens das revoluções industriais e iluminismo
(ASSUNÇÃO, 2012; CAMARGO, 2007).
Nas práticas e representações sociais como as afirmadas por Corbin (1989), as quais
desembocaram na transformação das relações das sensibilidades entre o homem e o mar,
articuladas ao conceito de paisagem, aparecem às primeiras prescrições de viagens vinculadas
à saúde: como os banhos terapêuticos em águas minerais e marítimas. Juntamente com outros
atrativos naturais valorizados a paisagem litorânea foi afirmada como de vocação curativa,
recreativa e após turística legitimando a atividade.
Nessa lógica a cidade do Rio de Janeiro despontou com as paisagens da Boa Vista, do
Jardim Botânico, da Floresta da Tijuca, das praias de Botafogo, Copacabana, Leme e Flamengo,
unidos ao clima considerado ameno e a representação social e econômica da cidade no território
brasileiro. Logo, as visitas a esses ambientes estimularam a implantação de hotéis, como o
existente “na descida para o rio da Cachoeira, depois de passar a Boa Vista” que tinha como
foco a recepção dos veranistas (CAMARGO, 2007, p. 270). Os meios de transporte eram
regulares para atrair e conduzir os hóspedes aos locais em que foram implantados os hotéis.
Não se pode ainda falar de atividade turística, essa não fazia parte dos guias de viagem do final
183
dos oitocentos, não havia referência ao termo turista ou turismo, dando a entender que não havia
uma prática estruturada do turismo140. Já informações sobre o turismo aparecem nos periódicos
e guias de viagem relatando as saídas dos brasileiros até a Europa e suas descrições sobre os
locais visitados. “Com a elite fazendeira fluminense e do oeste paulista, no fim dos oitocentos
temos a definição mais clara de viagens realizadas por brasileiros à Europa” (MARCELO,
2011, p. 18).
Nas últimas décadas do século XIX, os guias de viagem já incluíam informações sobre
como empreender uma viagem pelo Rio de Janeiro ou para conhecer algumas partes do interior
do país. Esse material informava sobre serviços existentes, tais como: a hospedagem, os
transportes, os restaurantes e seus horários acompanhando sempre a narração detalhada do
exótico e do pitoresco da geografia brasileira, com destaque especial, para o Rio de Janeiro. Em
princípio, não se pode pensar em lazer como o desfrute do tempo livre assim, também, não se
pode falar propriamente em turismo, visto que só foi possível pensar em lazer, diante do gozo
do tempo, em contraposição a organização das horas de trabalho, orientado pelo sistema
econômico de produção capitalista. Todavia, as narrativas dos viajantes no quartel final do
século XIX, deixa clara a existência de uma demanda, ainda que incipiente, que encontrava
hotéis em condições precárias, muitas vezes não passavam de simples restaurantes. As
condições higiênicas dos hotéis não atendiam padrões de qualidade já exigidos, muitos viajantes
apontavam, como fez William Hadfield, no ano de 1870, a necessidade de “um hotel realmente
bom, algo semelhante àqueles dos Estados Unidos [...] existem muitos hotéis espalhados pela
cidade, alguns mais ou menos pretensiosos, mas nenhum apresenta grau de conforto tão
essencial para uma grande cidade como o Rio de Janeiro” (BELCHYOR; POYARES, 1987, p.
57-59).
Além das questões especificadas os espaços eram organizados e equipados para atender
as necessidades mais básicas das altas camadas da sociedade. Esse pequeno e privilegiado
grupo, quando não satisfeito com os equipamentos locais, seguiam empreendendo viagens,
incutindo modas, lugares, regras, formas de deslocamentos e apropriações. Isso foi gerando
gradativamente uma infraestrutura capaz de atender os usos e práticas voltadas a esse público.
Mesmo diante desses elementos, afirmar o momento de concepção da atividade turística é tarefa
ingrata, tanto pelas questões críticas que giram em torno dos marcos temporais, quanto pela
bibliografia escassa. Os principais estudos que abordam essa temática são: Uma pré-história do
140 Ver: CUNHA, Antonio Geraldo. Os estrangeirismos da língua portuguesa: vocabulário histórico-
etimológico. São Paulo: Humanitas, 2003, p.01. Nessa obra são mapeados os primeiros usos das terminologias
turismo e turista no Brasil.
184
turismo no Brasil: recreações aristocráticas e lazeres burgueses (1808 – 1850), do pesquisador
Haroldo Leitão Camargo; História do turismo no Brasil: entre os séculos XVI e XX, do doutor
em história Paulo Assunção (2012); o livro Raízes do turismo no Brasil: hóspedes, hospedeiros
e viajantes no século XIX, do Mário Jorge Pires (2001) e; o Guia histórico das viagens e do
turismo no Brasil, do professor de Luiz Godoi Trigo (2000).
Na virada para o século XX, o cenário nacional ainda era o de pensões e hospedarias, as
questões voltadas para o turismo continuavam precárias. Os transportes, hotéis e pensões
existentes atendiam a demanda influenciada pela abertura dos portos; os viajantes
estudiosos/pesquisadores e; estrangeiros que vinham ao país em busca de negócios lucrativos.
A infraestrutura que se construiu nos grandes centros econômicos do país, ao redor de paisagens
privilegiadas, como as citadas no Rio de Janeiro, por motivos óbvios era a mais atrativa para os
hóspedes.
No início do século XX, no Rio de Janeiro começou-se a esboçar as primeiras
intervenções como o incentivo à instalação de hotéis pelo governo. A ação partiu do Decreto nº
1160, de 23 de dezembro de 1907, que isentava por sete anos de todos os emolumentos e
impostos municipais a empresa do ramo de hospedagem que se aventurasse no
empreendimento. O decreto resultou na instalação dos cinco primeiros grandes hotéis do Rio
de Janeiro. Entre eles estava o que foi considerado o maior do Brasil: Hotel Avenida,
inaugurado em 1908. O Hotel Avenida com 220 quartos inicia, por assim dizer, a relação
econômica com o turismo no país (CASTELLI, 2003).
No Rio de Janeiro em 1923 foi inaugurado o marco da hotelaria no Brasil, o Copacabana
Palace Hotel, empreendimento que movimentou o turismo e hospedou muitas personalidades
internacionais (CASTELLI, 2002). As ações mais pontuais iniciaram-se somente com o
incentivo do Estado na década de 1930 com os primeiros decretos legais que objetivaram
organizar alguns aspectos da atividade turística (PIRES, 2001). É importante salientar que até
esse período os investimentos dados ao turismo foram frutos de iniciativas isoladas. Já que não
se pode considerar que existia de fato uma atividade turística nacional. Situação que só muda a
partir da referida década, quando o poder público vislumbra a possibilidade de fomentar o setor
enquanto atividade econômica.
Trinta e um anos após o primeiro decreto de nº 1160, criou-se o decreto que dispõe sobre
a normatização das vendas de passagens aéreas, marítimas e terrestres, no ano de 1938. Em
agosto do mesmo ano um novo decreto dispôs sobre o funcionamento das agências que vendiam
passagens e das agências de turismo. No ano seguinte, em 27 de dezembro de 1939 foi criado
o primeiro organismo oficial de turismo da administração pública federal: A Divisão de
185
Turismo; colocado como instrumento privilegiado da Divisão de Imprensa e Propaganda (DIP)
– instrumento de propaganda e de censura do período Estado Novo – responsável pela
construção da imagem de Getúlio Vargas como presidente defensor da nação141. A partir daí
foi publicada a primeira estatística sobre a visita dos turistas estrangeiros ao Brasil em 1942. A
divisão do turismo foi pensada junto ao Serviço de Inquéritos Políticos e Sociais (SIPS),
encarregado da coordenação de elementos informativos de interesse da polícia preventiva,
atuava em prol das atividades de informação e segurança nacional. Constrói-se ainda o decreto-
lei 1.915, que amplia o significado do que é o turismo para o Estado (SANTOS FILHO, 2008,
p.108).
A DIP nas suas divisões possuía setores de Divulgação, Cinema, Teatro, Radiodifusão,
Turismo, Imprensa, Literatura Social e Política. Coordenava, bem como orientava e
centralizava a propaganda interna e externa. Com censura ao teatro, cinema, funções esportivas
e recreativas, organizava as exposições cívicas, patrióticas, exposições, concertos e estimulava
a produção de filmes educativos e de projetos sobre a História do Brasil, ainda dirigia o
programa de radiodifusão do governo. Faz parte de um contexto ideológico que foi além das
raias do Estado Novo, abrangeu toda a direção nacionalista do governo de Getúlio Vargas. Essa
foi a primeira vez como projeto político governamental a defesa do patrimônio histórico e
cultural brasileiro arraigado à nova perspectiva de cultura brasileira delineada desde o
movimento modernista. A divisão de turismo além de se debruçar pela questão da preservação
do Patrimônio Histórico foi responsável pela criação de museus, bibliotecas e centro culturais,
promoveu intercambio entre grupos musicais, folclóricos e tradicionais.
Na década de 1940 foi lançado o Decreto-lei 2.440 de 23 de julho de 1940, primeiro
decreto que versa exclusivamente sobre a atividade turística para tratar das agências de viagens.
Nele foi destacado que as agências de viagens e turismo; as agências de turismo; as companhias
e agências de navegação; e as de passagens marítimas, fluviais e aéreas poderiam organizar,
por conta própria ou em conexão com empresas de transporte e de hospedagem, viagens
coletivas de excursões, “quando autorizadas pelo Departamento de Imprensa e Propaganda, e
na forma e condições que este determinar” (CRUZ, 2002, p. 45). Sob esse viés, o objetivo maior
desse decreto era impulsionar o turismo com propensão e expressividade ideológicas nacional,
por isso é dado no decreto às possibilidades de conexões entre as agências de viagens terrestres
e as aéreas com as companhias de navegação e de passagens marítimas; uma interação entre as
141 Mais informações ver Decreto-Lei nº 1.915, de 27 de dezembro de 1939, livre para o acesso no site da
Câmara dos Deputados. Disponível em: Acesso em 22 de jul. 2017.
186
empresas para facilitar deslocamentos internos. Com efeito, o decreto ainda ensejou a
organização da iniciativa privada em relação à ampliação da atividade.
Foram anos marcados por transformações sociais e econômicas profundas. Uma das
principais foi a mudança da economia exportadora para a implementação das atividades
industriais, a qual marcou a base de desenvolvimento do Brasil. Buscando atender a esses
critérios o Brasil entra na Segunda Guerra Mundial ao lado dos aliados. Isso não quer dizer que
se adotou uma política econômica claramente industrialista. Porque, se de um lado o governo
investia na indústria, também se coadunava com as oligarquias agrárias tendo como prioridade
a defesa do café, principal fonte de receitas do país. Já o movimento turístico com a guerra e a
diminuição do tráfego marítimo ficou absolutamente reduzido. Mesmo assim foi publicada no
ano de 1941 uma relação de turistas que estiveram no país: “o Brasil foi visitado por 1.793
turistas dos Estados Unidos, 1.008 argentinos, 285 uruguaios, 101 ingleses e um menor número
procedente de nacionalidades diferentes” (CULTURA POLÍTICA, 1942, p. 185). Com a queda
do Estado Novo, em 1946, foi extinta a Divisão de Turismo e os assuntos alusivos ao turismo
passaram a de ser responsabilidade do Departamento Nacional de Imigração e Colonização do
Ministério do Trabalho, da Indústria e do Comércio no período de 1946-1952. As discussões
sobre o turismo ficaram escassas, o que ganhou maior atenção foi o Decreto-lei nº 9.215 que ao
proibir os jogos de azar em território nacional afeta as cidades que tinham o turismo vinculado
aos jogos. Outro organismo com porte nacional só aparece doze anos depois.
O percurso da intervenção Estatal brasileira no turismo tem um caminho assimétrico
com entradas, mas não de estabelecimento efetivo das políticas públicas do setor, além disso,
as políticas que envolviam o turismo não eram precisas (CRUZ, 2002). Sobre esse momento
pesquisas como as de Santos Filho (2008) e Paschoal (2010) afirmam o uso do turismo como
um instrumento estratégico do Estado para dar suporte ao controle social da sociedade civil e
para impor a lógica do Estado Novo que utiliza o poder e a repressão para governar. Por outro
lado há os que consideram que a divisão do turismo além do populismo, do nacionalismo e do
autoritarismo teve um papel primordial por servir como espaço de interlocução favorecendo
transformações significativas e positivas em âmbito artístico e cultural, como na pesquisa de
Anjos (2009). Outrossim, autores como Badaró (2006); Beni (2006); Dias (2003a, 2003b) e;
Rejowski (2002) acreditam que o Estado, ao perceber a importância econômica da atividade,
tenta (mesmo tropegamente) organizar o setor para fins econômicos.
Conforme perceptível, esse início da legislação turística no Brasil foi marcado por
normas eventuais e transitórias que não regulamentavam a atividade em sua totalidade, sendo
essa interpretada pelo Estado de forma sucinta; apenas como um setor referente à venda de
187
passagens ou sobre o funcionamento das agências de viagens e turismo, ou em alguns casos
como suporte da organização e manutenção de objetivos do Estado.
Em 1958 foi formulada através do Decreto-lei nº 44.863, de 21 de novembro, a
Comissão Brasileira de Turismo (Combratur); órgão nacional subordinado à Presidência da
República, cuja funcionalidade se daria a partir da coordenação das atividades destinadas ao
desenvolvimento do turismo com vias a simplificar as exigências de entradas e saídas de
visitantes, estudar a movimentação dos fluxos de turistas, entre outros objetivos. Através da lei
nº 4.048 de 29 de dezembro de 1961, como apoio a atuação da Combratur, foi originada a
Divisão de Turismo e Certames, cuja responsabilidade seria executar as diretrizes da política
nacional de turismo. Entretanto, em 1962 essa comissão foi extinta, o motivo alegado foi a
dificuldade na gestão por questões financeiras. Sendo assim, não houve diretrizes a serem
executadas nesse cenário (DIAS, 2003a; CRUZ, 2002).
A existência da Combratur marcou um cenário de promoção e circulação das paisagens
nacionais concatenadas a atividade turística de forma mais contundente, uma vez que se
concentrou em divulgar essas paisagens em hotéis e outros ambientes relacionados ao turismo.
Na oportunidade, deu início a um processo de cadastro e de fiscalização das agências de
viagens, de realização de negociações com grupos hoteleiros internacionais, foi responsável
pela organização de um cadastro nacional de exposição. Para Cruz (2002, p. 48), a concepção
dessa comissão constituiu-se como um marco nas políticas nacionais de turismo, já que
introduziu, pela primeira vez, referências para uma política nacional. Porém, como observa a
autora, essa organização teve uma vida curta.
Após esse período, juntamente com transformações mais amplas, o significado do
turismo ampliou-se, contudo, circunscrito por um viés autoritário, em acordo com a
centralização política administrativa firmada no país. A atividade foi secundarizada e seu
processo histórico expôs a ausência do planejamento que a caracterizou por várias décadas. Isso
fica demonstrado pela grande variabilidade da gestão do turismo, pelos vários setores da
administração governamental, bem como pela visão estreita de que a área é um amontoado de
partes e não um todo complexo. Situação que só muda recentemente.
4.4.2 Políticas Nacionais de Turismo: Transições condicionais
Até o final da primeira década do século XX não houve um compromisso maior com o
turismo. As políticas que surgiram permaneceram mais no discurso. A primeira Política
Nacional de Turismo (PNT) apareceu somente no ano de 1966 – ditadura militar no Brasil –,
188
quando o setor ganhou destaque nacional guiado pelo entendimento de que contribui para
diminuir os desequilíbrios sociais. Nesta época, além da definição da política nacional foi criado
o Conselho Nacional de Turismo (CNTUR), da Empresa Brasileira de Turismo (EMBRATUR),
e dos direcionamentos que deveriam compor o Plano Nacional de Turismo (PLANTUR) -
elemento básico da Política Nacional de Turismo. Entretanto, na prática, esse plano não foi
executado (CRUZ, 2002).
Beni (2006) expõe os diversos incentivos criados através dos recursos para o
financiamento de projetos de desenvolvimento do turismo a partir da Política Nacional de
Turismo de 1966, os quais foram elaborados no decorrer da década de 1970, dentre eles: o
FUNGETUR (sistema de incentivos fiscais para o setor hoteleiro); FINOR (Fundo de
Investimento do Nordeste); FINAM (Fundo de Investimento da Amazônia) e o FISET (Fundo
de Investimentos Setoriais). Já na década de 1980, com a redemocratização do Estado brasileiro,
ocorreu a reformulação de alguns decretos das décadas anteriores com a finalidade de
consolidar e ampliar o turismo.
A Política Nacional de 1966 nutriu idealizações, em termos concretos podemos citar o
parque hoteleiro brasileiro que recebeu investimento no período das décadas de 1960 a 1980;
se considerava que a fragilidade desse setor era o maior impeditivo para a expansão do turismo
nacional. Outra ação esteve vinculada à formatação da imagem do Brasil no cenário
internacional como um país exótico, cristão, alegre, carnavalesco e sensual: pró-americano e
anticomunista, o que foi feito junto com o Ministério do Exterior. Lima (2017, p. 125) ressalta
que “não houve uma Política Nacional de Turismo nesse período e nenhum Plano Nacional do
setor foi implementado, uma vez que as ações restringem-se a incentivos financeiros e fiscais”.
A década de 1970 reafirmou essa questão recortada pela composição dos variados fundos para
o financiamento do turismo.
Sobre esse período é interessante mencionar a análise do turismólogo João dos Santos
Filho (2008), uma vez que esse autor relaciona os incentivos promocionais ao turismo como
aliados a desconstrução de uma imagem do Brasil que no cenário internacional ganhava corpo,
estando relacionada às agruras da ditadura. A mídia internacional denunciava as torturas, as
prisões e os assassinatos ocorridos no país nesse momento; a EMBRATUR, na contramão dessa
lógica buscava divulgar um Brasil democrático, pró-americano e cristão. O tipo de turismo
promovido e as imagens destacadas maquiariam atos de repressão social. Diante das
perspectivas apontadas, o pesquisador supracitado afirma que a criação do órgão não se deu
para a ordem, exclusiva, operacional da atividade.
Ainda assim, atraiu-se um número significativo de investidores, concomitante, o
189
envolvimento direto do Estado nas promoções publicitárias e entrada de novos personagens
marcou um caráter estereotipado, muitas vezes pejorativo, para o povo brasileiro. A divulgação
de paisagens coaduna com a organização de aspectos culturais e folclóricos enquanto atrativos
turísticos, construindo um país de poucos que vive de sol, de sombra e dormem sobre um berço
esplêndido, entre outras visões já pontuadas no decorrer desse trabalho.
A década de 1980 foi sublinhada com os incentivos iniciais da EMBRATUR a partir
das verbas do FUNGETOR com o objetivo de apoiar a iniciativa privada na construção de
vários hotéis a fim de canalizar um fluxo de turistas estrangeiros no país. Para isso foram
construídos verdadeiros paraísos tropicais a beira mar, muitas praias estavam praticamente
privatizadas por esses hotéis. Além das questões negativas que envolvem os usos desses espaços
em termos ambientais, acrescentou-se nesse período o uso ilegal de áreas públicas, do
patrimônio da união, em benefício dos empresários hoteleiros, visto que muitos hotéis foram
construídos em locais de preservação ambiental e áreas da Marinha do Brasil.
Com ênfase nessa conjuntura podemos considerar a centralização da promoção da
imagem da mulher brasileira que nos deixou um péssimo legado: o turismo sexual. Essa espécie
de turismo é determinada pela exploração sexual de mulheres adultas e crianças, pelo
favorecimento do tráfico de mulheres, consumo de drogas e fortalecimento de organizações
criminosas. É importante ter em conta que essa realidade fez parte da estrutura estatal elaborada
para o turismo, portanto o turismo sexual não está dissociado do tipo de desenvolvimento que
foi privilegiado para o país.
Na década de 1990 houve uma reformulação na Política Nacional de Turismo
acarretando em transformações na recomposição dos direcionamentos estatais. Os primeiros
dois anos desse período foram marcados pelas alterações realizadas pelo Governo de Fernando
Collor de Mello, dentre as quais se destacam por intermédio da Lei nº 8.181 de 28 de março a
reestruturação da EMBRATUR e da Política Nacional de Turismo. A primeira alteração
transformou a empresa pública EMBRATUR em uma autarquia especial, passando a ser
denominada de Instituto Brasileiro de Turismo e extinguiu o CNTUR. Já a segunda modificação
implicou na criação de novas diretrizes para a política nacional do setor, apresentando a
necessidade de preservação do patrimônio natural e cultural do país; e a valorização do homem
enquanto destinatário final do desenvolvimento do turismo.
Data desse período, em 1992, a constituição de um novo Plano Nacional de Turismo
(PLANTUR), instrumento de implementação da Política Nacional de Turismo. Contudo, o
PLANTUR surgiu antes mesmo de se ter uma Política Nacional de Turismo, o que havia eram
objetivos e diretrizes, não um documento formulado de maneira completa (CRUZ, 2002). Um
190
erro operacional, já que a política deve anteceder o plano. Além do mais, tais direcionamentos
se deram em um momento de instabilidade política que culminou no impeachment do
Presidente da República. Continua por motivos políticos e operacionais a política de turismo
detida em decretos, sem efetivação na prática.
Por sua vez, o governo de Itamar Franco, sucessor do de Fernando Collor, criou um
importante programa, o Programa Nacional de Municipalização do Turismo (PNMT), pela
portaria nº 130 de 1994, do Ministério da Indústria, Comércio e Turismo. Lançado em 1996,
permaneceu em vigor até a última gestão de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002). Esse
programa efetuou a descentralização do planejamento no turismo brasileiro por intermédio da
sensibilização dos municípios e das pessoas a respeito dos benefícios do turismo. O modelo de
gestão descentralizada foi desenhado pelas recomendações propostas pela Organização
Mundial do Turismo (OMT).
Visava implementar um novo modelo de gestão da atividade turística, simplificado e
uniformizado, para os estados e municípios de maneira integrada, buscando maior
eficiência e eficácia na administração da atividade turística, de forma participativa
(DIAS, 2003, p. 144).
O objetivo base do plano era fomentar o turismo nos municípios a partir dos seguintes
pontos: conscientização a sociedade para a importância do turismo; descentralização das ações
de planejamento; estimulo ao fortalecimento das relações dos diferentes níveis do poder público
com a iniciativa privada; e disponibilização aos municípios brasileiros com potencial turístico,
condições técnicas, organizacionais e gerenciais para o desenvolvimento do turismo. “É talvez
o mais importante representante da mudança de modelo, no âmbito do setor turístico, em
direção ao cenário de descentralização de produção de políticas públicas e ampliação da
autonomia das entidades federativas” (ARAÚJO; CÉSAR, 2012, p. 269).
No Governo do Fernando Henrique Cardoso houve a reformulação da PNT (instituindo
o período de 1996-1999), vinculada ao Ministério do Esporte e do Turismo, adotando-se vários
direcionamentos do Governo anterior. Esta intervenção foi o mais completo e detalhado
documento oficial das políticas de turismo em território nacional até aquele momento, mas, não
implicou “necessariamente, em maior eficiência relativamente às políticas anteriores” (CRUZ,
2002, p. 62). Essa política refletiu na valorização do setor turístico como destino tropical e a
possibilidade de se atrair fluxos internacionais e transformar a atividade em produto nacional.
Na reformulação da política nacional agregou-se os seguintes projetos que abordavam a questão
da sustentabilidade: o PNMT; a criação do PRODETUR/NE (1991), formulado para
impulsionar o setor no Nordeste brasileiro e servindo de modelo, quando em execução, para a
191
criação de outros PRODETUR´s regionais (como é o caso do Programa de Desenvolvimento
do Turismo na Amazônia Legal, Centro-oeste e Pantanal mato-grossense -PROECOTUR);
PRODETUR-SUL; e PRODETUR-SE (na região Sudeste).
Apesar da ampliação das políticas as ações continuavam fragmentadas. No mais, o fato
de terem sido colocadas à disposição da administração local, sem requerer nenhum tipo de
fiscalização ou avaliação posterior, beneficiou poucos interessados, excluindo a população de
uma participação mais direta e, também, os profissionais da área.
A EMBRATUR ressaltou que foram treinados nesse período 27.438 pessoas
(BRUSADIN, 2005). Em suas análises, Beni (2006) observa que tal modelo não foi posto em
prática conforme as recomendações operacionais, não obtendo por isso, os resultados
esperados. Entre as falhas estavam o desconhecimento por parte do governo da época das
características de cada espaço turístico nacional; o que provocou o problema de se lançar uma
política nacional sem atentar para as particularidades locais.
Em suma, a década de 1990 foi marcada pela tentativa de estabelecer o debate sobre o
turismo entre governo, iniciativa privada, academia e sociedade. A política nacional mais
substantiva propiciou novo impulso à atividade turística em âmbito nacional. A configuração
da concepção das políticas de turismo deslocou-se do entendimento que a formulação e a
implementação dessas políticas deve se dar de forma centralizadora pelo governo federal, para
o entendimento que a percepção desse processo deve envolver necessariamente os diversos
atores, estaduais e municipais (BENI, 2006).
O governo seguinte trouxe para o país uma nova institucionalidade na gestão do turismo
através do mandato presidencial de Luiz Inácio Lula da Silva, no período de 2003 a 2010. Nesse
mandato uma pasta no Estado foi dada ao turismo com a elaboração do Ministério do Turismo
(MTUR) no ano de 2003. Estava nas bases desse órgão à promoção e divulgação da atividade,
o estímulo ao setor, planejamento, coordenação, supervisão e, de modo inédito, a avaliação dos
planos e programas de incentivo ao turismo. Logo, no primeiro período do governo Lula o
CNTUR foi todo reestruturado passando a atuar como um instrumento imprescindível de
assessoramento do MTUR, em todas as suas ações, com as atribuições de propor diretrizes e
oferecer subsídios técnicos para a formulação da Política Nacional de Turismo (BRASIL,
2003).
Já a EMBRATUR teve suas ações direcionadas, exclusivamente, para a promoção do
Brasil, no que diz respeito ao marketing e a comercialização dos destinos, serviços e produtos
turísticos (BRASIL, 2003). Sua função se deu a partir da publicidade do país enquanto destino
turístico, dessa vez buscando desconstruir a imagem do Brasil fortemente relacionada no
192
exterior como um Destino Turístico Sexual; O MTUR, com seu Plano Nacional de Turismo –
Diretrizes, Metas e Programas, 2003-2007, se comprometeu a profissionalizar a EMBRATUR.
O PNMT foi transformado no Programa de Regionalização do Turismo (PRT);
publicado do Plano Nacional de Turismo (PNT). Outro instrumento criado como resultado
dessas transformações foi o Fórum Nacional de Secretários e Dirigentes Estaduais de Turismo
- um órgão informal, consultivo, constituído pelos Secretários e Dirigentes Estaduais de
Turismo que auxilia no apontamento de problemas e soluções, concentrando as demandas
oriundas dos Estados e Municípios. Desdobrou-se em outros 27 fóruns estaduais criados em
cada unidade da federação com papel fundamental na operacionalização das políticas
formuladas pelo núcleo estratégico, constituindo-se em um canal de ligação entre o Governo
Federal e os destinos turísticos (BRASIL, 2003).
O objetivo era criar o cenário para a geração de 1.200.000 (um milhão e duzentos mil)
postos de trabalho, estimular a visita de estrangeiros ao país, chegando a um número de nove
milhões a fim de favorecer a aquisição de oito bilhões de dólares em divisas. Além disso, o
objetivo era expandir voos domésticos, interiorizar as ofertas turísticas, trabalhar para que cada
estado da federação tivesse no mínimo três elementos de qualidade a fim de possibilitar o
turismo. Para atingir tal meta, uma gama significativa de materiais explicativos, com marcos
teóricos, conceitos sobre o turismo, objetivos, perspectivas, entre outras informações
importantes foram disponibilizadas através do site do Ministério do Turismo. São materiais
claros em delimitar os seus objetivos e revelar as possibilidades existentes, inclusive, de
participação dos diferentes envolvidos. No mais, esse foi o primeiro Plano Nacional de Turismo
colocado em prática no país.
A PNT tem o foco na descentralização priorizando uma relação entre as três esferas,
isso para regular a atividade em nível local uma vez que se pretende a monitoração dos impactos
sociais, econômicos e ambientais dessa atividade; e para inter-relacionar o turismo com outros
setores da administração pública, o que demanda em articulação e em comunicação efetiva
entre as diferentes esferas de poder. Atenta-se ainda para a inclusão social por meio da geração
de trabalho e renda, com privilégio às pessoas de poder aquisitivo mais baixo nos ambientes
turísticos.
No governo do Presidente Lula dois PNT’s foram postos em prática: o 1º PNT (de 2003
a 2007) com os objetivos acima citados e o 2º PNT (de 2007 a 2010) criado em seu segundo
mandato como uma nova versão do plano nacional. Esse segundo plano, denominado por:
“Uma Viagem de Inclusão” concatenou-se a vários outros projetos políticos desenvolvidos
nesse governo, desde projetos de mobilidade urbana a projetos educacionais que priorizam o
193
social. Esse segundo momento objetivou a promoção das viagens no mercado interno a partir
da estruturação de 65 destinos turísticos que deveriam ser compostos de parâmetros de
qualidade considerados internacionais; em termos financeiros almejou gerar 7,7 bilhões de
dólares e criar 1,7 milhões de empregos e ocupações. Também, foi elaborada a Lei Geral do
Turismo, nº 11.771 de 17 de setembro de 2008, que dispõe sobre o PNT e demarca as atribuições
do Governo Federal.
O Ministério do Turismo transformou o PRT em seu programa estruturante, adotando a
região e o lugar como primordiais para a implementação dos processos de desenvolvimento
socioeconômico por meio da regionalização. Ou seja, diante do viés macro das ações do MTUR,
encontrava-se o direcionamento para a abordagem regional do desenvolvimento do turismo, no
qual o programa Regionalização do Turismo é sua operacionalização. O PRT enquanto diretriz
orientadora para o desenvolvimento de produtos turísticos segmenta-os como turismo cultural,
rural, aventura, ecoturismo, náutico, de pesca, de estudos e intercâmbio, de negócios e eventos
e, do sol e mar.
O MTUR parte da premissa que “segmentar é olhar para o destino, inclusive os mais
tradicionais, e encontrar nele uma vocação, de modo que atenda ou agrade um público
específico” (BRASIL, 2013). A ideia de vocação turística foi criada no momento em que
naturalizou-se o espaço negando as relações sociais, históricas e espaciais, acreditando-se em
um tipo de pré-disposição inerente ao espaço, algo que seria eterno, que estaria ali desde
sempre. Nesse aspecto é importante estar atento que nenhum lugar tem essa vocação turística,
o que seria apontado como vocação é um elemento construído em um determinado espaço e
esse advém através de várias operações sociais.
A operacionalização do turismo requer a instrumentalização dos conceitos de Região e
Lugar, tais como os de Paisagem, Território e Espaço. Esses são basilares, isso porque o turismo
ocorre nos espaços, consumindo-os e, além disso, depende dos espaços e dos seus elementos
para existir. A região tem sido cada vez mais acoplada aos diversos interesses que se relacionam
ao conhecimento ou a própria intervenção espacial. A região tem servido, muitas vezes, como
legitimadora da produção do saber, um “objeto de lutas”, que vai além do estudo difundido
entre os geógrafos; esses “aspiram ao monopólio da definição legítima, mas também
historiadores, enólogos e, sobretudo desde que exista uma política de regionalização e
movimentos regionalistas, economistas e sociólogos” (BOURDIEU, 2009, p.108).
Os movimentos regionalistas ganharam o foco na disciplina sociológica. Para os
economistas eles têm sido contemplados nos assuntos referentes à administração pública. Na
geografia foram considerados objetos formais da disciplina compreendidos em sua relação com
194
o indivíduo e a natureza, em que um apanhado de elementos estaria intrinsecamente conectado
e destacado pela singularidade (LA BLACHE, 1955). De certa maneira, confundia-se com o
conceito de paisagem pela exaltação da forma e conteúdo. Esses enfoques abriram espaço para
uma maré de ambiguidades. Uma vez que o lugar acabou sendo tomado como se fosse
autocontido por essa região e essa designa diferentes dimensões; sendo que a dimensão
geográfica do tempo mais externo é o mundo, mas a do tempo mais interno, não se sabe, e
qualquer recorte não seria absoluto, seria apenas convenção (SANTOS, 1997). Assim, a ideia
geral que esse é um recorte constituído a partir de áreas que se diferem entre si sobressai-se no
conceito de região, nos diferentes estudos acadêmicos, nos planos políticos e no entendimento
do cotidiano (CORRÊA, 2003).
É interessante destacar que, tanto a região como o lugar não têm existência própria.
Nesses termos, o que se constrói enquanto singularidade desses espaços não é o que eles
realmente são em sua totalidade, mas sim fragmentos abstraídos em cada momento histórico
que podem ser distribuídos de diferentes modos combinados. O que demarca uma diferenciação
no interior do espaço total e confere a cada região ou lugar a sua especificidade é a identidade.
Sua significação é dada pela totalidade de recursos e muda conforme o movimento histórico.
No decorrer da história as regiões vêm sendo configuradas através de processos orgânicos,
expressos pela territorialidade de um grupo em que prevalece suas características de identidade,
exclusividade e limites, devido à única presença desse grupo, sem mediação (CORRÊA, 2003;
SANTOS, 1997). A região se produz assim na classificação, no controle, no fluxo dos embates
sociais, no ordenamento do Estado, nos processos de subjetivação de quem a pratica e a
vivencia (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2006).
Já a regionalização é o uso da região em sua dinâmica processual a partir do tempo e
dos espaços vividos e produzidos pelos grupos. Mesmo sendo esses espaços carregados de
simbolismos assumem-se para eles uma natureza, ou seja, naturaliza-os a partir de discursos
que são elaborados ou recriados colocando os espaços enquanto dotados de um ser regional.
Nos dias atuais o ato de regionalizar pode ser interpretado como um condicionamento, mas
também, condicionante dos processos local/global em constante arranjo proporcionado pelos
agentes produtores do espaço (HAESBAERT, 2010). Conquanto regionalizar implica em
construir um recorte, material, funcional e imaginário, que atua como suporte das experiências,
vivências, entre outros tipos de investimentos objetivos e subjetivos (ALBUQUERQUE
JÚNIOR, 2008).
Á contento do turismo as delimitações dadas à região para a formatação das políticas
enfatizam os aspectos paisagísticos e ambientais nos termos das representações dadas ao
195
espaço, ou seja, com foco em um espaço social que é conceituado por Lefebvre (1991, p. 38-
39) como o espaço social concebido; “this is the dominant space in any society (or mode of
production)”, nesse “conceptions of space tend [...] towards a system of verbal (and therefore
intellectually worked out) signs”142. O espaço assim concebido na perspectiva Lefebvriana
concretiza-se a partir do espaço planejado, pensado, idealizado. Um espaço que advém de
interesses que determinam o porquê e como deve ser utilizado e quais as articulações desse
espaço com outras dimensões143. Essa concepção traduz bem a ideia das regiões instituídas pelo
PRT.
Em síntese o programa parte do pressuposto que cada região ou município possui
particularidades próprias que devem ser a base para as possibilidades de desenvolvimento; bem
como da compreensão da necessidade de construção de um ambiente democrático, que envolva
os diversos atores do turismo: poder público, iniciativa privada, sociedade civil e população
local. O programa visa subsidiar a elaboração, a estruturação e a qualificação de cada região
turística do Brasil, de forma a respeitar os princípios de sustentabilidade econômica, ambiental,
sociocultural e político-institucional. De acordo com os princípios adotados, esse processo deve
ocorrer de forma autônoma e participativa. Devendo existir, consolidação de roteiros turísticos,
tanto antigos quanto novos, para garantir a competitividade dos destinos nos mercados nacional
e internacional (BRASIL, 2007).
Subsequente ao governo do presidente Lula foi iniciado o mandato da Presidenta Dilma
Vana Rousseff, o qual iniciou em 2011 e finalizou em 2014. A presidenta foi reeleita em 2014,
sendo empossada em 2015, no ano de 2016 foi destituída da Presidência da República por meio
de um golpe parlamentar. Em 2013 lançou um novo plano nacional, o 3º PNT (2013-2016),
dando sequência às diretrizes anteriores cuja proposta é denominada “O turismo fazendo muito
mais pelo Brasil” e foi direcionada aos grandes eventos esportivos a serem realizados no Brasil:
Capa do Mundo e as Olimpíadas.
142 Tradução nossa: This is the dominant space in any society (or mode of production) – Esse é o espaço dominante
em cada sociedades (ou modo de produção)/ Conceptions of space tend [...] towards a system of verbal (and
therefore intellectually worked out) signs – As concepções sobre o espaço tendem para um sistema de signos
discursivos.
143 Em sua concepção de espaço social Henry Levbre constrói uma tríade conceitual para a compreensão das
relações que constroem os espaços a partir do vivido, percebido e do concebido. O vivido como um espaço de
representação através daqueles que o vivenciam e que o faz em sua dinâmica, se traduz na diferença ao modo de
vida programado. Exemplo, o que um urbanista projeta durante a elaboração de um bairro ou uma cidade não é a
mesma coisa que o sujeito que vive naquele espaço vivencia. O espaço percebido são as práticas espaciais unidas
dos valores e informações específicas de cada orientação social, corresponde a uma lógica de percepção e da
produção social. Esse espaço fica na dialética entre o vivido e o concebido. O espaço concebido, como já colocado
no texto, parte da determinação dada aos espaços Como se espera que esse seja usado, quando se faz a sua projeção,
os seus recortes, se estabelece e se dá forma ao que se imagina, mas nem sempre quando as pessoas começam a
vivenciar esse espaço, elas o fazem conforme foi planejado. Para mais informações ver: Levbre (1991).
196
A seguir a síntese das ações realizadas na relação entre Turismo e Estado:
Quadro 2- Vínculo Institucional e Marcos de Intervenção Governamental no Turismo
Período Vínculo Institucional e Marcos de Intervenção Governamental no
Turismo
1937-1945 - Proteção de bens históricos e artísticos nacionais; fiscalização de agências e venda de
passagens.
1946-1497 - Ministério da Justiça e Negócios.
1948-1958 - Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio: Intervenção estatal percebida na criação
de órgãos e instituições normativas e executivas e na produção do espaço; Início do
planejamento do turismo em nível nacional; Combratur (Comissão Brasileira de
Turismo).
1959-1962 - Subordinação direta à presidência da república (COMBRATUR).
1963-1966 - Ministério da Indústria e Comércio (Divisão de Turismo e Certames do Departamento
Nacional do Comércio): modernização e expansão do aparelho administrativo do Estado
e sua correspondência com os diversos níveis da federação, tendo como marca a
hierarquização/centralização dessa estrutura; ação mais rígida de controle; criação da
EMBRATUR e do Conselho Nacional de Turismo; definição da política nacional de
turismo.
1971 - Criação de incentivos fiscais como FUNGETUR - Fundo Nacional do Turismo
(Decreto-lei n. 1.191, de 27 de outubro).
1973 -Disposição sobre zonas prioritárias para o desenvolvimento do turismo (Decreto-lei n.
71.791 de 1977).
1977 - Lei n. 6505 de 13 de dezembro de 1977 (dispõe sobre atividades e serviços turísticos,
estabelecendo condições para funcionamento e fiscalização); Lei n. 6.513 (cria áreas e
locais de interesse turístico) de 20 de dezembro de 1977.
1985-1986 - Liberação do mercado para o exercício e a exploração de atividades turísticas e
consequente redução da clandestinidade e aumento no número de agências registradas;
criação do programa “passaporte Brasil” para a promoção do turismo interno; estímulo
à criação de albergues.
1987 - Incorporação das questões ambientais na formulação das políticas públicas;
lançamento, pela EMBRATUR, do turismo ecológico como novo produto turístico
brasileiro.
1988 - O turismo é citado na constituição brasileira em seu art. 180, no qual se atribui
responsabilidades iguais a todos os níveis governamentais.
1992 - Ministério da Indústria, do Comércio e do Turismo: revitalização do FUNGETUR e
dos incentivos fiscais do setor; apresentação do PLANTUR- Plano Nacional de Turismo;
Criação do PRODETUR-NE – Programa de Desenvolvimento do Turismo no Nordeste.
197
1993-1994 - Implantação do PRODETUR-NE; lançamento de diretrizes para uma Política Nacional
de Ecoturismo; Incorporação dos princípios de descentralização governamental no
turismo por meio do PNMT- Plano Nacional de Municipalização do Turismo.
1996-2002 - Ministério do Esporte e Turismo: apresentação da nova Política Nacional de Turismo
para o período de 1996-1999, contendo dez objetivos estratégicos, entre os quais
destacam-se a descentralização, “conscientização” e articulação intra e
extragovernamental; Instalação dos comitês “Visit Brazil”, maiores investimentos em
marketing e divulgação no exterior, bem como promoção da pesca esportiva e do
ecoturismo; flexibilização da legislação (resultando na queda das tarifas aéreas e no
início de cruzeiros com navios de bandeira internacional pela costa brasileira).
2003-2007 - Criação de uma pasta no Estado específica para o Turismo. Que significa na prática
que os interesses do setor nos estados brasileiros serão debatidos em âmbito ministerial,
com planejamento e orçamento próprio para desenvolver as ações necessárias para sua
expansão em território nacional.
- Elaborada a Secretaria Nacional de Políticas de Turismo; Secretaria Nacional de
Desenvolvimento do Turismo; o Plano Nacional de Turismo; o Programa de
Regionalização de Turismo; estabelecido o Fórum Nacional de Secretários de Estado do
Turismo; recriado o Conselho Nacional de Turismo; a EMBRATUR é direcionada para
a promoção do turismo; criados os Planos Aquarela e o Plano Cores que complementam
as ações dos planos nacionais, ambos planos de Marketing e é organizado o programa
de Regionalização Turística e os Roteiros do Brasil.
2007-2010 - Publicação da Lei Geral do Turismo, nº 11.771, de 17 de setembro de 2008.
- Criado o 2º PNT, intitulado “uma viagem de inclusão”.
2011 É lançado o diagnóstico do cenário, das projeções e das proposições referentes ao
planejamento do turismo no Brasil.
2013-2016 3º Plano Nacional de Turismo- O Turismo fazendo muito mais pelo Brasil; plano lançado
visando atender as demandas referentes aos dois megaeventos Copa do Mundo e das
Olimpíadas.
Fonte: Elaboração própria com base nos dados apresentados por Beni (2006).
Na história das Políticas Nacionais de Turismo houve diversos equívocos. Essas falhas
se deram, em grande medida, pela própria alternância com que este setor esteve vinculado a
administração pública, não estando de forma permanentemente ligado a um departamento ou
Ministério específico. A política de turismo avançou nos anos 2000 com a criação do Ministério
do Turismo (MTur), o qual fez o turismo contar pela primeira vez na história com uma “[...]
pasta própria, além de estrutura e orçamentos específicos, não mais dividindo com outros
setores de atividades a condução dos interesses particulares do turismo em nível nacional”
(BENI, 2006, p. 28). Contudo, a criação da pasta própria para a atividade turística em âmbito
198
nacional não reverberou em ampliação econômica e melhorias sociais significativas para os
locais.
O próprio programa estruturante de regionalização do turismo não foi formatado nos
moldes necessários para tal intento. As metas estabelecidas foram exageradas, baseadas em
expectativas infladas. Diante da percepção da inviabilidade de atingir os objetivos estipulados
as metas são reduzidas, como menciona Lima (2017, p. 131): “as metas referentes ao número
de turísticas internacionais, tendo o primeiro (PNT 2003-2007) estabelecido alcançar a marca
de 9 milhões e o último (PNT 2013-2016) 7,9 milhões”. Muitas propostas de Estados não
estavam ancoradas em estruturas de suporte consolidadas. É interessante observar que os
objetivos traçados dependem do encaminhamento de um plano turístico em nível local
primeiramente, o que não existiu em diversos municípios. Em uma microrregião o turismo até
pode favorecer um crescimento adequado, mas isso só e possível quando a atividade é vista
como correlata a outras dimensões de um plano de desenvolvimento integralizado; que se
concretize com a estrutura federal coerente com o envolvimento e operacionalidade dos estados
e municípios.
A dificuldade destes entes federados de entender, aplicar, operacionalizar e continuar as
diretrizes nacionais significou é uma barreira para o turismo nacional. Esses empecilhos
apresentam-se em dois cenários: o primeiro refletindo a ausência de recursos humanos
qualificados para absorver, entender e interpretar os conceitos e metodologias adotadas pelo
MTur, trabalhando-as no sentido de harmonizá-las e compatibilizá-las com as especificidades
locais e os instrumentos operacionais disponíveis; o segundo revela-se pela fragilidade e
incapacidade institucional para a gestão do turismo em muitas regiões do país, apesar das
sucessivas tentativas de planejamento do desenvolvimento integrado dessa atividade (BENI,
2006).
O primeiro cenário ressaltado por esse autor é resultado da própria história das políticas
nacionais de turismo no Brasil, marcada pela diversidade dos vínculos institucionais e pela
descontinuidade entre as ações, sendo a criação do MTUR recente, não tendo-se ainda de fato
ocorrido um processo de qualificação profissional das pessoas que trabalham com o turismo
nos estados brasileiros. O segundo cenário, por sua vez, é decorrente dessa mesma situação,
não tendo a recente política nacional de turismo do MTUR ocasionado melhorias efetivas no
fortalecimento institucional das secretarias municipais de turismo.
4.5 AS POLÍTICAS E A CONTRUÇÃO DA PAISAGEM NORDESTINO-POTIGUAR
199
4.5.1 Primeiros discursos políticos e a construção do litoral
No Rio Grande do Norte as paisagens construídas para atender a demanda do turismo
têm sido significativas na identificação do Estado. São paisagens ditas privilegiadas, porém,
esse não é em primeira mão um privilégio da mãe natureza, mas sim de diretrizes sociopolíticas
e econômicas. As paisagens turísticas do Rio Grande do Norte, juntamente, como a de outros
estados que compõe a região Nordeste tem o litoral como núcleo gerador da economia.
Circulam em jornais, revistas, folders e diferentes mídias imagens com praias, dunas, coqueirais
e bugres. Em complementação a essas primeiras imagens, como um pano de fundo de Nordeste,
aparecem festivais juninos e feiras de artesanatos com roupas de renda, bordados, cestos de
sisal e carnaúba, esculturas de lampiões, marias bonitas, sertanejos em cima do jegue feitos com
argila, sandálias e chapéus de couro. Essas são elaborações em prol do turismo que
complementam o roteiro previamente direcionado ao litoral nordestino.
O litoral do Estado do Rio Grande do Norte iniciou um processo de redefinição na
percepção que a sua elite tinha ainda no início do século passado. A praia nesse período se
constitua apenas em um depósito de lixo, um esgoto, pois foi hábito no Brasil nos períodos
anteriores usá-la como receptáculo de dejetos domésticos, sendo o mar transformado em
sinônimo de sujeira. Ainda, os estudiosos chamaram a atenção para o isolamento da capital
causado por uma cadeia de dunas, tabuleiros de areia e rios. Os jovens bacharéis pertencentes
à elite local afirmaram que esses elementos naturais eram os responsáveis pela paisagem
monótona e fatigante do local. Uma vez que o ambiente estaria submerso a essa força imperiosa
da natureza que circundava a cidade.
De acordo com os estudos concluídos por Arrais (2006), a esperança da elite local estava
em vencer o isolamento imposto pelas barreiras naturais para colocar Natal no caminho do
progresso. De todo modo os melhoramentos144 efetuados pela administração municipal, que
surgiam de acordo com a busca ansiosa pelo progresso eram interpretados como desnecessários
e as verbas utilizadas na cidade eram questionadas pela interpretação que se tinha que dever-
se-ia priorizar o seu uso no combate a seca.
Levou certo tempo para que os brasileiros desvinculassem do mar a imagem de esgoto.
Os discursos médicos foram primordiais para essa transformação de sentido, foram eles que,
paulatinamente, convenceram as elites dos benefícios ao corpo do banho de mar. As literaturas
144 Conceito estabelecido por Arrais (2004) para designar as transformações urbanas ocorridas com base na
modernização europeia nos espaços do Recife, em que se faz uma alusão otimista sobre a capacidade humana de
corrigir os “males da natureza” através do emprego da técnica.
200
médicas aos poucos foram sendo assimiladas e no Rio Grande do Norte, por iniciativa do Dr.
Calistrato, médico que atendia na capital potiguar, nas primeiras décadas do século XX, foi
fundada a primeira estação balneária de Natal, localizada na praia de Areia Preta, recebida com
muito entusiasmo pela elite (MARINHO, 2008). A praia começou a receber então novos usos
e foi ordenada através de normas terapêuticas e de condutas consideradas civilizadas, entre elas
o vestuário adequado, que não era possível a todas as classes -fazendo com que o espaço fosse
inicialmente ocupado pela elite da cidade (ARRAIS; ANDRADE; MARINHO, 2008).
A terapêutica faz parte de um contexto arraigado às novas tecnologias, ao
desenvolvimento da ciência, a industrialização e traz vários outros sentidos, como as viagens.
Os jornais que circulavam no Estado do Rio Grande do Norte; assim como outros periódicos
nacionais passam a manter, na primeira metade do século XX, colunas fixas sobre os viajantes,
ressaltavam os espaços que ganhavam privilégios na sociedade, anunciavam a todo o momento
quem partia e quem chegava, como um símbolo de status. No jornal da capital norte rio
grandense “A Republica” encontramos colunas sociais que apresentavam, com orgulho, o nome
dos residentes que podiam usufruir das viagens de turismo. Na página dedicada à sociedade, os
que viajavam de avião ganhavam um destaque especial, eram noticiadas também as viagens de
navio, de carro e o movimento dos portos.145
Na década de 1930, o supracitado periódico separou locais para colunas diárias dando
mais ênfase aos vários tipos de viagem. Essa foi a mesma década, que como vimos, deu início
à trajetória legislativa da atividade turística no Brasil com a normatização das agências de
turismo, das vendas de passagens aéreas, marítimas e terrestres. Deu-se, também, a criação do
primeiro organismo oficial de turismo da administração pública federal e o lançamento do
decreto lei que ampliou o significado do turismo para o Estado. Esse início de tentativa de
organização estatal da atividade propiciou que o discurso do turismo ganhasse mais visibilidade
nos meios de comunicação.
As colunas dos jornais de Natal, capital potiguar, atravessaram as décadas de 1930, 1940
e 1950 recheando o imaginário da população com ideias de viagens de turismo. Associações
importantes emergiram chamando a atenção para as belezas naturais do país. O Touring Club
do Brasil, fundado em 1923, com a denominação de Sociedade Brasileira de Turismo, foi uma
das inúmeras expressões nacionalistas que visou divulgar os recursos turísticos no país junto às
145 Ver jornal “A Republica” de 09 de julho de 1948: Movimento do Porto e Aeroporto. Jornal “A Republica” de
16 de janeiro de 1940: Viajantes. Jornal “A Republica” de 05 de janeiro de 1930: Vai & Vem.
201
elites brasileiras. No dia 16 de janeiro de 1940, o jornal “A Republica” publicou uma nota
referindo-se ao clube, denominada por:
Ensaio de turismo[...] Estiveram aqui cidadãos do Rio, de São Paulo e de outros
Estados do sul em viagem de turismo, patrocinada pelo Touring Clube do Brasil. Mais
uma vez o “Almirante Jaceguaí” nos trouxe um grupo de brasileiros que não
conhecem o norte do seu país. A viagem que agora se realiza é a quarta que aquela
respeitável associação de turismo organiza ao norte, até o Amazonas. A primeira, em
1932, foi denominada pelos cronistas de Viagem Maravilhosa (JORNAL A
REPÚBLICA, 16 de janeiro de 1940).
As décadas de 1940 e de 1950, principalmente pela influência exercida com o advento
da Segunda Guerra Mundial, marcaram de forma histórica os espaços centrais do Rio Grande
do Norte, abrindo as possibilidades de se pensar sobre o turismo na capital do Estado. As
transformações urbanas que ocorreram durante a guerra e as reformas implementadas na gestão
do prefeito Sylvio Pedroza146, iniciaram, mesmo que timidamente, uma política de visibilidade
da cidade. O calçamento de ruas, a abertura e reordenamento de vias de acesso e principalmente,
a construção da Avenida Circular – com início na Praia do Meio chegando até a Praça do Cais
do Porto, na Ribeira –, considerada a principal obra da gestão. No início da sua construção foi
criticada, concebida como algo fora dos padrões urbanísticos para uma cidade como Natal,
entretanto depois de construída foi considerada uma importante obra, que de acordo com o
prefeito, serviria como elo fundamental na “integração à Cidade de nossas praias”
(TORQUATO, 2011, p. 33).
A estrutura criada selou a inserção da cidade na lógica de valorização das viagens um
marco na relação da cidade com o sol e mar, uma vez que antes crescia com suas construções
de costas para a beira-mar. O discurso de Sylvio Pedroza, em julho de 1946, destacava os
benefícios que a ligação da cidade com o mar poderia proporcionar:
Da sua gestão na Prefeitura, a cidade ficara a lhe dever, entre outras coisas, a Avenida
Circular, que acentuou sua identificação urbana como capital [...]. Superou uma
mentalidade mesquinha e acomodada, mas de uma resistência deplorável ao
progresso. Hoje, Natal tem nessa avenida diante do mar a sua mais bela e procurada
perspectiva (TORQUATO, 2011, p. 33).147
146 O Prefeito referido no texto é Silvio Pedrosa, de formação escolar londrina, administrou Natal entre os anos de
1946-1951. Após esse período assumiu o cargo de governador do estado do Rio Grande do Norte. O investimento
que fez na orla marítima se destacou entre seus feitos. Teve como seu secretário de cultura o representativo
Folclorista e Historiador da cidade de Natal Luís da Câmara Cascudo, autor do livro “História da Cidade do Natal”
de 1947, que foi distribuído pela administração de Silvio Pedrosa em várias cidades do Brasil.
147 Ver Torquato (2011. p. 33).
202
O discurso se deu em consonância com o que aconteceu em outras zonas litorâneas, foi
o início da elaboração do turismo litorâneo que começou a penetrar nos âmbitos político,
econômico e social, fomentado pela promessa do progresso econômico que, seria capaz de
conduzir a nação a um futuro promissor. Subscrevendo assim novos sentidos em relação às
paisagens litorâneas, que aliadas à atividade turística inserem-se numa nova lógica de
construção de imaginários. O sol, relacionado aos infortúnios da seca 148, transformou-se em
um dos principais motivadores do uso da paisagem litorânea. A conexão que a Avenida Circular
criou em relação à cidade e a beira-mar já resultou do imaginário do sol associado ao prazer e
ao banho de mar. As praias da capital habitadas anteriormente por pescadores foram ocupadas
por casas de veraneio de políticos, industriais, funcionários públicos e comerciantes.
O ajustamento das regiões às novas regras capitalistas buscavam a industrialização e a
modernização como metas. As imagens que estavam vinculadas a região Nordeste,
majoritariamente, ao imaginário em torno da seca, já começaram a não se sustentar diante das
novas perspectivas. Nesse cenário iniciou-se a preocupação estatal em redefinir o seu esquema
de reprodução de divisas que estava fortemente vinculado à agricultura comercial. Na região
esses produtos eram basicamente o algodão, a cana-de-açúcar e o cacau. Um ponto importante
para o início dessas transformações com apoio nacional foi a criação do Banco do Nordeste do
Brasil (BNB) em 1952, que apoiou alguns projetos que incorporaram a paisagem litorânea.
A paisagem praiana aliada ao mercado das viagens turísticas deu os primeiros contornos
que arquitetaram o espaço designando-lhe para o turismo. O discurso da atividade foi imbricado
nas relações sócias como um elemento natural, suas características culturais e históricas são
apagadas e privilegiam a ideia de uma natureza determinada. A escrita de Heron Domingues
no jornal “A Republica” é esclarecedora dessa percepção em relação da paisagem natural
relacionada ao turismo que começou a ser construída:
RAIO X - DE UMA CIDADE
Heron Domingues
As 24 horas que estou passando nesta cidade de Natal cão das mais alegres dos últimos
tempos da minha vida. Tenho, ao meu redor uma coletividade de pessoas divertidas e
de mentalidade arejada, cuja preocupação é trabalhar dia e distrair-se à noite. São ruas
largas que o “sol de junho” nordestino ilumina com alacridade. A circulação do
tráfego é intenso, (e depois de uma sesta post-carangueijos) acordo-me no Grande
Hotel e ao ouvir as buzinas e o rolar dos carros percebo que é a hora do “rush”. Por
instantes, tenho a ilusão de que estou no Rio de Janeiro. Sinto-me feliz em Natal como
se estivesse na melhor cidade do mundo. Voltaire Leuenroth e Amilcare de Carolis,
homens de publicidade do Rio, participam do meu namoro com esta bela capital. No
andar térreo da Rádio Nordeste, a sorveteria e “boite” “Oasis” e uma nota colorida de
148 Sobre a construção da seca e o seu contexto histórico e político ver: ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz
de. A invenção do Nordeste e outras artes. Recife: FJN/ Ed. Massangana. São Paulo: Cortez, 2006.
203
simpatia e cordialidade. As cadeiras na calçada, intenso movimento, decoração
moderna. E’ claro que Natal não resolveu ainda o problema dos hotéis. Este é um mal
nacional. Por falta de acomodações as grandes companhias aéreas que na sua maioria
faziam escala em Pernambuco estão transferindo seu pouso para a orgulhosa Recife.
Acredito que o governo potiguar, entre outros problemas a resolver, deveria encarar
com mais seriedade este dos hotéis, para dotar sua bela cidade de casas de hospedagem
que permitissem o turismo. Natal pelo seu clima privilegiado, pela sua paisagem
surpreendente, poderá vir a constituir-se num dos pontos de maior atração turística de
todo o norte do Brasil (JORNAL A REPÚBLICA, 11 de junho de 1956).
Heron incorpora para Natal símbolos de grandes capitais modernas: o tráfego intenso,
as buzinas, “o horário do rush”, a comparação com a capital do país; o que podemos traduzir
como fora de contexto, uma afirmação alegórica, contudo revela um momento em que parte da
população nacional deseja ver a economia do país dinamizada visionando sua inserção enquanto
grande potência mundial. Natal cidade moderna/cadeiras na calçada; por instantes temos a
ilusão de estar no Rio de Janeiro/ falta hospedagem que permita o turismo. É o discurso em seu
processo germinal engendrando o turismo como o que pode vir a elevar a capital a uma
categoria de destaque frente às demais. Afinal esse é o primeiro ano do governo nacional que
promete crescer 50 anos em 5, nesse horizonte se almeja fortalecer o turismo.
Nesse mesmo ano de 1956, o prefeito da capital potiguar Djalma Maranhão, em busca
de sanar os inconvenientes econômicos e compensar o quadro de atraso industrial da capital,
apontou de forma pioneira para o turismo. Na concepção desse gestor, assim como no relato de
Heron, a atividade turística seria um dos caminhos para desenvolver a cidade; deveria se
destacar às paisagens naturais da cidade e trabalhar em cima do seu favorecimento, só assim
seria dado o impulso ao tão almejado desenvolvimento (FERREIRA, 2006). O incentivo do
Djalma Maranhão à prática da atividade turística teve como resposta a criação do Conselho
Municipal do Turismo. O prefeito embelezou e dotou pontos estratégicos da capital com
equipamentos de infraestrutura básica. A partir de então começam a se pensar e assegurar
políticas públicas para o incentivo do turismo, a exemplo de outras cidades litorâneas do
Nordeste vinculadas ao ideal do turismo sol e ao mar (FERREIRA, 2006).
Pouco tempo depois, em 1959, foi elaborada a instituição desenvolvimentista que visava
a superação do subdesenvolvimento econômico na região Nordeste, a SUDENE149
(Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste). Mesmo com o foco no combate à seca,
deu abertura à industrialização da região com vias a política desenvolvimentista, o que ocorreu
149 No ano de dezembro de 1959, o então presidente Kubitschek direciona ao Congresso Nacional o projeto de
criação da Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE). Nesse momento o diagnóstico da
situação da região Nordeste era de uma região pobre quando comparada às áreas mais dinâmicas do país e de um
espaço que era vitimizado por condicionantes naturais, históricos e estruturais.
204
por encadeamento no Rio Grande do Norte. Com a SUDENE o governo federal firmou também
na atividade turística um dos carros chefes para investimentos financeiros e direcionamento das
verbas, que serviu para o incremento de hotéis e a construção de rodovias que ligavam Natal a
João Pessoa, Recife e Fortaleza (CAVALCANTI, 1998).
Um sistema de visibilidades turística em torno do litoral começou a ser privilegiado.
Tanto o Estado do Rio Grande do Norte, quanto outros Estados do Nordeste com capitais no
litoral, os quais são apontados como estratégicos para a incrementação do turismo, recebendo
incentivos e investimentos públicos (FONSECA, 2005). Começaram a circular as imagens
fotográficas que comunicavam e consolidavam a beira mar enquanto paisagem representativa
do turismo no Nordeste, em consequência, no Rio Grande do Norte (SILVA, 2012). Incentivado
por esse cenário, entre os anos de 1959 e 1960, o bacharel em direito e jornalista José Alexandre
Garcia escreveu o Roteiro Turístico da Cidade de Natal150 composto por 59 páginas cujos
originais estão em processo de publicação e encontram-se em posse do seu filho Eduardo
Alexandre Garcia, que nos ofereceu as cópias para o uso na pesquisa. O roteiro turístico de José
Alexandre Garcia é escrito de maneira poética e envolvente. O autor desnuda a cidade ao desejo
do visitante, incita-o de uma forma intensa a percorrer os espaços de Natal. Das paisagens
litorâneas monumentais aos monumentos históricos, nada passa despercebido pelo olhar de
Alexandre, que destaca em início do seu texto o clima ameno e a brisa suave, o que favorecia
os modos simples e afáveis dos habitantes locais:
Cidade alegre, movimentada, clara, batida pelo sol, mas amenizada – até nos seus dias
mais quentes – por sua suave brisa que sopra do atlântico. De topografia curiosamente
ondulada e de inúmeras ladeiras a interligar os bairros, Natal possui 178 quilômetros
de extensão. Cada um dos 220.000 papa-gerimuns que habitam a capital do Rio
Grande do Norte, julga-se um mestre na arte do bem receber, desejoso de transformar
o visitante recém-chegado em amigo do peito em cinco minutos. Talvez seja esse o
segredo do eterno encanto dessa cidade: sua plácida beleza e a maneira simples e
afável dos seus habitantes151.
Através da centralização do poder estatal a partir do golpe militar de 1964, a política de
desenvolvimento econômico foi planificada e deu preferência a implementação de propostas
vindas da iniciativa privada. Logo, as políticas nacionais passaram a privilegiar o local com
ênfase ao desenvolvimento regional. Mudou-se o cenário, mas os militares continuavam com a
ideia do desenvolvimentismo objetivando construir um país gigante pela própria natureza cujo
150 Os originais estão em processo de publicação e na posse do seu filho Eduardo Alexandre Garcia, que nos
ofereceu as cópias para o uso nesta pesquisa. O roteiro inicia-se no Forte dos Reis Magos, percorre prédios
públicos, principais ruas e praças, passa pelas praias e finaliza com um roteiro gastronômico.
151 Idem.
205
prisma cultiva o discurso turismo. Todavia, muitos governantes no Nordeste oscilavam em
relação às novas medidas, uma vez que elas ameaçavam os seus interesses enquanto elites
oligárquicas. Mesmo assim, personagens norte-rio-grandenses ligados à política agrária
conservadora deram novas roupagens aos discursos cedendo ao teor desenvolvimentista, não
por convicção, porém para a manutenção das conveniências sociais, econômicas e políticas. No
Rio Grande do Norte esse panorama foi corporificado com a chegada de Aluísio Alves ao poder,
nesse sentido o turismo surgiu como um dos elementos para o seu mandato (LOPES; ALVES,
2015).
Nesse entendimento, foram construídos mecanismos que facilitaram a implantação do
Turismo no Estado como a Superintendência de Hotéis e Turismo do Estado em 1964
(SUTUR). Essa Superintendência consiste em um órgão estadual associado às políticas de
industrialização de âmbito federal que tem como objetivo administrar os poucos hotéis
existentes e promover a atividade. A infraestrutura foi melhorada e através dessa política houve
a criação de uma rede hoteleira no Estado do Rio Grande do Norte com recursos do governo
federal, da Aliança para o Progresso e do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID);
com destaque para o Hotel Reis Magos (1965), localizado na Avenida Café Filho, 822, em
Natal. O hotel construído próximo à beira-mar tinha o objetivo de intensificar o uso daquele
espaço por moradores e visitantes. Ainda fez parte desse incentivo o Esperança Palace Hotel
em Mossoró, o Cabugi Palace Hotel em Angicos e o Balneário de Olho D’ água do Milho em
Caraúbas.
O governo vigente estabeleceu uma política de infraestrutura de acordo com as diretrizes
políticas provenientes do nacional-desenvolvimentismo, as quais eram baseadas (em um
primeiro momento) na ampliação dos transportes e das telecomunicações, mudando o seu foco
no período ditatorial para os investimentos no setor industrial produtivo. Aluísio Alves apoiou
o turismo enlevado por todo o contexto direcionado a dotação de infraestrutura, sustentando
como beneficiários do seu mandato os integrantes do pacto oligárquico e conservador local,
essa se configurou em uma das bases de sustentação do seu governo (LOPES; ALVES, 2015).
No ano de 1968 foi executada a Secretaria Municipal de Turismo (SECTUR), com o
objetivo de adaptar o Estado à política federal de incentivos ao turismo. Essas ações que
visavam inserir o turismo, na maioria das vezes ignoravam, sistematicamente, o complexo
conjunto das relações que envolvem os espaços onde estão constituídas - fato que
historicamente pode ser constatado na maioria das políticas urbanas brasileiras. Essas ações
eram discutidas e levadas ao público como temas de jornais, assuntos de rádio ou de televisão
e se impunhavam às expectativas coletivas. Assim foi sendo construída uma das paisagens
206
principais relacionadas ao turismo no Rio Grande do Norte, que a identificou como a Cidade
do Sol. As areias brancas dos campos dunares, o azul do céu e do mar e as falésias que
constituem paredões avermelhados, corporizaram-se em exóticas e apreciadas paisagens
divulgadas.
Uma das primeiras chamadas públicas de âmbito nacional para a construção da imagem
paisagística da cidade de Natal como o destino turístico da Cidade do Sol estava relacionada a
um significativo reclame publicitário que circulou por todo o país no mesmo ano de criação da
SECTUR, em 1968. Tratou-se de um semanário ilustrado e popular que permitia a visualização
de variadas fotografias: Fatos e Fotos152. O subtítulo da reportagem: “Paraíso tropical com oito
praias, coqueirais e dunas de areias coloridas” é a afirmativa sobre Natal que recheada de
imagens fotográficas, a nomeia como “Cidade do Sol” (ARRUDA, 1968, p. 43). A imagem
fotográfica apresenta ao leitor vários coqueirais de altura elevada que se inclinam para o céu,
um mar sereno, calmo, de ondulações leves e um colorido que fulgura entre tons de azul, verde
e amarelo; o plano de fundo é composto por nuvens bem delimitadas, pelo sol com sua cor
vibrante e o azul do céu. Na reportagem o turismo é qualificado como uma das “indústrias”
necessárias ao progresso de Natal (ARRUDA, 1968, p. 44-45).
Existe nos textos e nas imagens a alusão ao moderno e ao tradicional. O moderno se
configura nos espaços urbanizados e pela tecnologia apresentada, já o tradicional aparece com
o folclore e a cultura popular (ARRUDA, 1968, p. 52-53). Entretanto, os espaços plasmam-se
nas imagens e para usar Barthes (1984), de puctum à cidade que se quer representada como
moderna circula na famosa revista nacional tendo em sua via principal, junto com o modesto
fluxo de automóveis, a carroça puxada por um burro. Todavia, a mensagem principal marca o
espaço. As fotografias apresentam o enredo que cristalizam um imaginário paisagístico sobre a
cidade relacionado à tônica das revistas ilustradas do período que se davam à descoberta de
várias imagens do Brasil (ARRUDA, 1968, p. 46- 47).
No trecho em que o jornalista fala da Barreira do Inferno, base de lançamento de
foguetes construída na época da Segunda Guerra Mundial, como um motivo de orgulho para
toda a cidade, existe a valorização da relação com os Estados Unidos da América. Trata-se de
um período associado a uma fase de desenvolvimento, também, de uma maneira da cidade ter
seu nome presente “no noticiário de todos os grandes jornais e revistas”, pela relação que
desenvolveu com a grande potência norte-americana (ARRUDA, 1968, p. 50-51), conforme
152 As fotografias descritas nesse texto estão na Revista semanal Fatos e Fotos. Especial: Natal – A Cidade do Sol.
Bloch Editôres: Brasília, 29 de agosto de 1968, nº 395, pág. 43 – 58. A matéria foi realizada pelo jornalista Cassiano
Arruda (1968).
207
pode ser visualizado na Figura 14. Para esse autor, a barreira do inferno é um dos primeiros
resultados práticos de chamadas para o turismo e que deve ser associado ao serviço de hotelaria
e transportes, juntamente com a oferta de atrações naturais ou artificiais. Não existe a ideia de
um planejamento que envolva a população e os impactos que o turismo pode trazer à cidade.
Há somente a esperança do turismo interpretado como atividade “industrial” favorável à
localidade.
No discurso o que se projeta é o deslumbre, afinal como narra o texto: Não é sem motivo
que os locutores das rádios em Natal, ao anunciarem a hora certa, diziam: “Na capital espacial
do Brasil são 13 horas”. Nada mais progressista do que ser a capital do espaço (ARRUDA,
1968, p. 54- 55). As espacialidades que circunscrevem o local parecem suspensas diante dessa
lógica.
As imagens fotográficas destacam os paradoxos; ao mesmo tempo em que projetam a
capital em um ritmo de velocidade dos foguetes, lança como característica o tempo ritualizado
dos cultos, do ambiente paradisíaco, do menino que vende passarinho de modo descontraído na
feira livre. As incongruências de uma capital que se quer espacial e paradisíaca, mas se
identifica com santos, carrancas, procissões, promessas e esperança no futuro. Um futuro que
o turismo, atividade carregada de simbolismo baseada em modelos externos, é absorvido como
capaz de proporcionar. Logo após a matéria da revista fatos e fotos ter sido publicada, foi
comprada pela prefeitura e reproduzida em folhetos para serem distribuídos entre a população
de residentes e turistas.
Não podemos esquecer que a cidade vem de um contexto de promoção de abertura para
o outro, um reflexo da sociabilidade do período da guerra, com os estadunidenses. Todavia,
diferente do que proclamam as memórias mais românticas e os noticiários a “imposição” do
outro no espaço de Natal, foi um encontro que se deu com muitos conflitos, raivas,
estranhamentos, surpresas, mas também, influências, empolgação e amores (PEDREIRA,
2005). O período marca o discurso da abertura da cidade para o novo, negando as resistências
e centralizando a projeção do turismo no estado.
A afinidade com o turismo foi reafirmada no ano de 1969. Natal conseguiu ser eleita a
sede do II Congresso Brasileiro de Turismo, na época era governador monsenhor Walfredo
Dantas Gurgel (sucessor do Alves) que governou de 31 de janeiro de 1966 a 15 de março de
1971, dando sequência as projeções anteriores. Esse governador já acumulava mandatos de
deputado federal, vice-governador e senador. Sobre esse fato o periódico RN Econômico, de 16
de novembro de 1969, divulga que:
208
Quatrocentas pessoas reúnem-se de 4 a 6 de dezembro em Natal, no auditório do
SESC, para falar de turismo como forma desenvolvimento. Mas Natal poderá perder
esta oportunidade ímpar de mostrar a sua vocação turística aos participantes do II
congresso nacional de turismo, de vez que quase nada vem sendo cumprido de todo
um planejamento feito pela SERETE que descobriu a vocação da Capital do Rio
Grande do Norte e recomendou à Prefeitura uma série de medidas que permanecem
engavetadas. Estas medidas visam o aprimoramento das belezas naturais da cidade
que servem como ponto de atração turística, mas que estão abandonadas (RN
ECONÔMICO, 16 de novembro de 1969).
Dos problemas que circunscreviam a capital, a pouca estrutura para atender uma
demanda maior de pessoas foi ressaltada. O evento realizou-se tendo como anfitrião um dos
mais significativos personagens da capital, na época, o folclorista Câmara Cascudo. Recebeu
os participantes do congresso com uma comitiva de treze embarcações navegando pelo Rio
Potengi. O RN Econômico se posicionou contra o que chama de descaso dado a atividade
turística por parte do governo ressaltando a aposta de que muitos grupos tinham na intervenção
urgente e grandiosa do Estado por meio do turismo para geração de renda.
4.5.2 Estruturando a Cidade do Sol
Da década de 1970 em diante os espaços do Rio Grande do norte começaram a receber
cada vez mais ações para a formatação do turismo, com grande ênfase no litoral da capital e
cidades vizinhas. No ano de 1971, no governo do José Cortez Pereira de Araújo (1971-1975) o
cerne para o turismo se deu na construção da Empresa de Promoção e Desenvolvimento do
Turismo do Rio Grande do Norte S/A- EMPROTURN. O órgão tinha como objetivo avaliar os
principais potenciais turísticos da capital do estado divulgá-los, fomentar e operacionalizar
infraestruturas básicas de apoio (SOUZA, 1997). A EMPROTURN de início realizou um
estudo que abarca a zona litorânea do município de Baía Formosa até Areia Branca, área que
vai de um extremo ao outro do estado, na capital aponta para as belezas das praias de Areia
Preta e Ponta Negra. O estudo classificou as praias citadas como espaços potenciais ao turismo.
A crise vivenciada pelo país na década seguinte reafirmou ainda mais o discurso do turismo, no
cenário econômico norte-rio-grandense. Dessa forma, a atividade foi vista como triunfante em
relação a grande seca que desequilibrou as indústrias potiguares (DANTAS, 2007). Em 1973
foi elaborado o Projeto Educacional de Turismo e o Bosque dos Namorados (Projetur),
voltando-se para essa área de preservação da Mata Atlântica em ambiente urbano (1975).
No ano de 1977 foi iniciado no Rio Grande do Norte um importante projeto para o
turismo que teve a sua execução na metade dos anos 1980, o qual se debruçava sobre a união
das praias urbanas da capital consideradas pela EMPROTURN como pontos específicos de
209
interesse ao desenvolvimento do turismo. Essas deveriam ser ligadas por uma avenida com
cerca de oito quilômetros, ideia que foi muito rebatida uma vez que o espaço delimitado se
tratava de uma Área de Proteção Ambiental (APA) (CRUZ, 2002); A ação era parte da Política
de Megaprojetos para o Nordeste e seguia o modelo de urbanização turística do México com o
objetivo da distribuição horizontal de hotéis ao longo da costa das praias. São exemplos: as
cidades de Manzanillo, Acapulco e Cancún. A política de Megaprojetos iniciou no Rio Grande
do Norte com o Parque das Dunas/Via Costeira- PD/VC; seguiu com o estado da Paraíba com
o Projeto Cabo Branco; privilegiou, também, os estados de Pernambuco e Alagoas com o
Projeto Costa Dourada e; na Bahia se materializou com o Projeto Costa Verde.
A política foi “o marco fundamental para a expansão da atividade turística local e a
produção social de Natal como cidade turística” (LOPES JÚNIOR, 2000, p. 48), o processo de
implementação da atividade dividiu-se em “antes” e “depois” do Projeto Parque das Dunas-Via
Costeira, em que foram erguidos hotéis com padrão internacional, a residência oficial do
governador, o Centro de Convenções, entre outros edifícios que fortaleceram a infraestrutura
urbana e consequentemente o turismo. Com a Via Costeira o objetivo do governo e do
empresariado local era a construção de uma “Copacabana” (praia localizada na zona nobre do
Rio de Janeiro) em Natal, destinada a moradores e frequentadores de alto poder aquisitivo,
como salientou Cavalcanti (1993, p. 138). Esses empreendimentos erguidos a partir de
incentivos fiscais de âmbito estadual e nacional beneficiaram, sobremaneira, indivíduos da elite
local (FONSECA, 2005). De acordo com Lopes e Alvez (2015) o discurso tradicionalista e
agrário-político se fixou na capital norte-rio-grandense e estendeu suas raias ao turismo,
fazendo desse uma ferramenta para manutenção da sua reprodução e poder.
Uma dessas ligações entre o turismo e a elite local pode ser feita com o hotel cinco
estrelas Ocean Palace, instalado na Via Costeira. O empreendimento é do empresário e
engenheiro Arnaldo Gaspar, que com a sua construtora A Gaspar ganhou repercussão na
engenharia de grandes obras em todo o Brasil. O dono do hotel cinco estrelas entrou no mercado
e conseguiu ascensão social com grande apoio do sogro, Ruy Pereira Antunes, latifundiário,
“Senhor” do Engenho Mucuripe, filho da escritora Madalena Antunes, conhecida como a Sinhá-
moça do Engenho Oiticeiro, ambos localizado em Ceará-mirim. Ruy Pereira com a influência
social e política no Estado do Rio Grande do Norte conseguiu apoio para que seu único genro
entrasse já com certo prestígio nas grandes obras do Estado, ainda, na década de 1960. O Ocean
Palace é administrado atualmente por um dos filhos de Arnaldo Gaspar, o Ruy Pereira Gaspar
Neto, atual secretário de turismo do Estado.
210
Há um conflito de objetivos entre a elite local, uma vez que alguns grupos não
endossaram o turismo acreditando ser esse um tipo de projeto redentorista para Natal. Também,
a entrada inesperada na cena de novos atores impôs a preocupação com a questão ambiental.
Entretanto, as justificativas do governo estadual e do empresariado permitiram a materialização
do turismo com vias a ascensão da economia local. Os terrenos de propriedade da Marinha
foram transferidos para o Governo Estadual e repassados aos empresários com valores
irrisórios153 (LOPES JÚNIOR, 2000). Como o Rio Grande do Norte ainda era um estado
carente em infraestrutura, o que inviabilizava a prática do turismo, o apoio estatal deu a
sustentação inicial para à atividade que por si só não se desenvolveria e nem agregaria recursos
para uma melhor estruturação de seus equipamentos. Contudo, mesmo diante desse salto, como
enfatiza Cruz (2002, p.81):
O Rio Grande do Norte ainda ocupava, em meados da década de 1980, uma posição
ripícola entre os principais destinos turísticos do Nordeste – Salvador e Porto Seguro
(BA), Fortaleza (CE), Recife (PE) e Maceió (AL) – devido a fatores de deficiência
em infraestrutura turística, em destaque a de hospedagem, somado a inexistência de
um marketing turístico estadual mais agressivo (CRUZ, 2002, p.81).
As obras dos Mega Projetos foram estratégicas para a apropriação espacial que se deu
pelo turismo, tanto do ponto de vista objetivo, como subjetivo. Elas estabeleceram um marco
na cidade, favoreceram um diálogo entre os campos imaginários e os significados produzidos
internalizando o discurso do desenvolvimento pelo turismo, principalmente na vida cotidiana
de Natal. Há uma identificação direta dos moradores entre a inserção dos projetos e a atividade
turística. Sobre esse aspecto é bem ilustrativa a declaração do Jornalista Eduardo Alexandre
Garcia, ao ser solicitado a discorrer sobre a atividade turística na capital norte-rio-grandense:
O marco do turismo em Natal é a construção da Via Costeira feita por Tarcísio Maia
que era o governador e chegou de paraquedas, indicado pela ditadura, não tinha
programa de governo, foi quando se começou a falar seriamente em turismo em natal.
A prefeitura fez uma campanha muito legal; todos os domingos, o Poti publicava uma
crônica de algum natalense sob o título "Natal Vista por"... Foi uma série de crônicas,
postadas sempre aos domingos, cada dia, uma pessoa diferente da cidade escrevia,
digo, a cada publicação dominical. Era Marcos César Formiga o prefeito (informação
verbal, 2014)154
153 Somente para exemplificar: O metro quadrado para os empresários que pretendiam erguer seus hotéis custou
entre U$ 0,68 chegando a um valor máximo de U$5,60. Nesse mesmo período o metro quadrado em Ponta Negra
custava U$ 55,00 e terrenos distantes em áreas periféricas custavam U$ 8,00. Para mais detalhes ver: Lopes Júnior
(2000) e Cavalcanti (1993).
154 Eduardo Alexandre Garcia é jornalista, nasceu e reside em Natal. Trabalhou nos jornais “A República”,
“Correio Braziliense”, “Diário de Natal” e na “Tribuna do Norte”. Foi entrevistado em 17 de abril de 2014.
211
Em 15 de março de 1983 foi inaugurada a Via Costeira e a duplicação da Estrada de
Ponta Negra. O Centro de Convenções foi concluído no governo seguinte, de José Agripino, no
dia 31 de julho de 1983. Esse foi o impulso para o surgimento de outros empreendimentos de
pequeno e médio porte de investidores de outras regiões do país. Os primeiros hotéis iniciaram
o seu funcionamento em 1986 e o turismo, já como interesse de diversos empresários locais, se
configurava em uma importante atividade econômica para o Estado, recebendo mais apoio em
suas diversas instancias (FONSECA, 2005; DANTAS, 2006).
O turismo não alcançou a abrangência esperada. Na década seguinte foi sublunar em
âmbito regional o programa de mobilização de recursos financeiros para o turismo:
PRODETUR/NE (Programa de Ação para o Desenvolvimento do Turismo/Nordeste); uma
política idealizada pela SUDENE e EMBRATUR em 1991, de incentivo ao turismo por
intermédio da conjugação dos esforços governamentais para a dotação de equipamentos,
infraestrutura urbana e serviços públicos básicos a fim de subsidiar a atividade (CRUZ, 2002).
A política aconteceu em dois momentos, com o PRODETUR/NE I e o II.
A meta do programa era reforçar a capacidade existente da Região Nordeste em manter
e ampliar o turismo contribuindo para o desenvolvimento socioeconômico regional em áreas
apontadas como promissoras à atividade (BANCO DO NORDESTE, 2009). Os investimentos
referentes ao PRODETUR beneficiariam a população pobre uma vez que fossem “empregados
na indústria da construção”; que “usuários intensivos da infraestrutura; ou suas sobras” ou se
as atividades econômicas induzidas “pelos investimentos em questão conseguissem beneficiar
grandemente a população pobre” (BANCO MUNDIAL, 2003, p.42). No Rio Grande do Norte
a área litorânea foi privilegiada para atuação do programa com concentração nas praias da
capital e próximas a capital. Além de Natal, seis municípios foram envolvidos no projeto155.
Depois de finalizada a 1ª etapa do PRODETUR/NE, no ano de 1999 iniciou-se o
PRODETUR/NE II tendo como objetivo a reparação dos impactos negativos ocasionados com
o programa anterior e a incorporação de princípios de desenvolvimento sustentável. Foram
definidas as áreas a serem beneficiadas com base no conceito de Polos Turísticos; com ações
nas áreas de Meio Ambiente, apoio à Gestão Municipal e à Capacitação Profissional (BANCO
DO NORDESTE, 2009). Elas foram efetivadas nos municípios do Polo Costa das Dunas com
155 Os municípios envolvidos foram: Ceará - Mirim, Extremoz, Natal, Parnamirim, Nísia Floresta e Tibau do Sul.
Esses atendiam o critério de proximidade com a capital, Natal. Essas cidades foram agrupadas em polos, de acordo
com o tipo de interesse turístico capaz que o espaço pudesse atender com o desenvolvimento de produtos a fim de
se formar corredores culturais, reforçando a consolidação de um destino turístico (BANCO DO NORDESTE,
1999).
212
o foco no litoral, porém foram ampliadas com a inserção de novas cidades. Além do aumento
do Polo já existente foram criados mais dois novos polos a fim de receber os recursos
financeiros do PRODETUR/RN II para elaboração e diversificação da oferta de produtos
turísticos do Estado, são eles: Polo Costa Branca e Polo Seridó. A partir de 2006 foram incluídos
os polos Serrano e Agreste/Traíri (SECRETARIA DE ESTADO DO TURISMO DO RIO
GRANDE DO NORTE, 2009). Nesse segmento, as expectativas em relação a esses polos estão
na possibilidade da geração de empregos.
As bases para a visualidade do Estado continuam, majoritariamente, com a ênfase em
aspectos naturais, no primeiro momento, no litoral, uma vez que a infraestrutura e as condições
existentes não favoreciam o incremento da atividade em outros espaços. No interior do Estado
a ausência ou precariedade nos meios de hospedagens, no sistema de transportes, em locais para
alimentação e em mecanismos de promoção e comercialização de mercadorias, inviabilizou, ou
pelo menos dificultou, até se aspirar e tentar organizar o turismo.
4.5.3 Canindé Soares e a paisagem Nordestino-potiguar
O trabalho de Canindé Soares iniciou-se na conjuntura de construção do imaginário
turístico, um compartilhamento simbólico promovido através do processo institucional de
demarcação do turismo, que se revela enquanto os primeiros esforços empreendidos para uma
política de visibilidade em analogia com a atividade. Construíram-se, portanto, os principais
ícones paisagísticos do Estado em fotografia que informa variados grupos (com as outras
instâncias), visto seu grau de reprodução. Nas palavras de Benjamin (2012) se configura como
uma linguagem de amplo alcance, ou seja, é o dispositivo pelo qual se calibra os objetos da
paisagem cultural em termos de reprodutibilidade e proporciona a criação da dimensão
simbólica da representação desse objeto.
São elementos icônicos que se obtém, antes, no discurso e no símbolo projetado nos
espaços. “Concede a realidade imediata um caráter de ausência, mas também integra a realidade
dentro do sujeito” (AUGRAS, 1967, p. 06 -07). Canindé é um fotógrafo icônico por materializar
os discursos nas imagens que produz diante das concepções estabelecidas, também, por
transformar o espaço em seu objeto de trabalho mediado por essas imagens. Esse fotógrafo
condensa nas imagens todas as expectativas que se criam em relação às proposições do Estado
aberto ao turismo.
Antonio Roberto Rocha, jornalista local com ênfase no campo do turismo, afirmou ter
percebido nas fotografias de Canindé Soares “uma vocação” para a captação dos lugares e das
213
paisagens. Foi editor dos Cadernos de Turismo do jornal, do Diário de Natal e da Tribuna do
Norte, onde mantém na atualidade, na versão virtual do periódico, um blog intitulado por e-
turismo. Para o jornalista essas fotografias assinalam o que um lugar pode oferecer de mais
atraente, por isso no ano de 1998, convidou Soares para uma “aventura” profissional: o objetivo
era percorrer de carro toda a orla marítima do estado do Rio Grande do Norte considerada pela
EMPROTURN como potencial ao turismo156. A viagem culminou na revista que divulgaria os
locais do Rio Grande do norte para os turistas em eventos, congressos, feiras e outros ambientes
que visavam divulgar o Estado em âmbito nacional e internacional. A revista emerge do fazer
individual atrelado a um conjunto de concepções que colocava o turismo como uma das forças
motrizes para o desenvolvimento econômico; direcionando o jornalista Antonio Roberto às
perspectivas desse nicho do mercado, até então, não exploradas.
A revista é um convite para visitar o Rio Grande do Norte, com prioridade a capital. Os
arranjos e as disposições erguidos com base no imaginário do turismo são habilmente captados
pelo fotógrafo e expressos no título: “Natal pra você: turismo; cultura; economia”, com a
chamada na capa ao litoral, afirmando “Maracajaú: O Caribe é aqui” – uma publicação dirigida
aos diferentes agentes que promovem a cidade (ver Figura 15). O desfrute é cuidadosamente
registrado para encantar o olhar com a semelhança, em consequência demarca a dessemelhança
no discurso e nas perspectivas existentes de turismo; uma vez que a autonomia elaborada
subordina-se a valorização dos espaços outros, emulado por uma perspectiva dominante de
lazer. Ser o Caribe é ser também colonizado, é almejar ser semelhante ao outro no tempo
pretérito e nas perspectivas futuras. É o que Raymond Willians como a escrita compartilhada
por instituições, sentidos e práticas que revelam os conflitos de valores e crenças contidos em
sua condição social e histórica.
156 Informações repassadas por Antonio Roberto em encontro ocorrido no dia 16 de julho de 2016, durante a
exposição de fotografias do autor Canindé Soares na Biblioteca Zila Mamede, localizada na Universidade Federal
do rio Grande do Norte.
214
Figura 15 – Revista “Natal pra você”157
Fonte: Acervo particular do editor Antônio Roberto (1998).
As andanças pelo Rio Grande do Norte começaram na capital do Estado em direção ao
litoral norte. Nas páginas iniciais, o encontro com o mar, com o sol e com as dunas, não é mais
suficiente. Os melhoramentos são divulgados e mais de um milhão de mudas das mais diversas
espécies foram plantadas para compor quase 20 quilômetros de canteiro organizado pela
prefeitura na estrada BR-101, entrada da cidade e nas principais avenidas da cidade como a
Engenheiro Roberto Freire e a Via Costeira. “O canteiro central será modificado e ganhara
plantas nativas. Ao invés das espirradeiras trazidas de Israel nos anos 70” (ver Figura 15).
A revista é um convite para desvendar o Rio Grande do Norte. Esse periódico leva o
turista para conhecer os segredos do Rio Potengi e favorece aos visitantes paisagens inusitadas
de Natal. Bairros simples de pescadores, pequeno mercado e “humilde pracinha junto a um
atracadouro de barcos de pesca”. É a viagem para o passado do trabalho artesanal como o da
pesca, um estágio onde o indivíduo e a natureza confundem-se e retratam um ambiente distante,
inclusive, do padrão que envolve a capital, com relações de troca interpretadas como
157 Periódico publicado em 1998 com Fotografias de autoria de Canindé Soares.
215
tradicionais. Logo, o rio não aparece como o lugar dos balbúrdios e das agitações do lazer, mas
é oferecido como espaço para a contemplação (ver Figura 17). A emergente Ponta Negra é o
espaço que promete aos que desejam um turismo urbano, marca o boom turístico do Estado.
Nesse cenário são novos flats e a inauguração de uma grande cervejaria, todavia, era cercada
por paisagens paradisíacas (ver Figura 18).
O roteiro segue destacando os parceiros do desenvolvimento de Natal para o turismo, o
PRODETUR em sua fase I e o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) dão relevo ao
direcionamento de suas verbas para ampliação do aeroporto Augusto Severo, orçado na época
em 30 milhões de reais, obras de saneamento, ampliações de estradas como a da Rota do Sol, a
urbanização do bairro de Ponta Negra, entre outras (ver Figura 19).
Figura 16- Sol, dunas, mar e flores158
Fonte: Acervo particular do editor Antônio Roberto (1998).
158 Idem.
216
Figura 17- O velho Potengi159
Fonte: Acervo particular do editor Antônio Roberto (1998).
Figura 18- Equipamentos Turísticos na Via Costeira160
Fonte: Acervo particular do editor Antônio Roberto (1998).
159 Idem.
160 Idem.
217
Figura 19- Ampliando os horizontes do turismo
Fonte: Acervo particular do editor Antônio Roberto (1998).
As vias de ligação, as reformas ocorridas, foram extremamente importantes para
legitimar a atividade e ir montando a Cidade do Sol três décadas depois de surgir o seu
codinome na revista fatos e fotos. Uma cidade turística que foi inicialmente materializada na
mente de seus idealizadores vai sendo estruturada conforme as distintas relações. Se o Rio
Grande do Norte teve uma importante base econômica relacionada à produção agrária, se
almejou as atividades industriais, agora, cada vez mais, torna-se o espaço das paisagens
paradisíacas para o consumo e o lazer. Muitas fotografias do autor são registradas a partir dessa
estética do belo, da natureza, da grandiosidade que busca conquistar o olhar do outro. Mesmo
em contraponto com a ideia do autor, que nos revelou em diálogo que sua fotografia tem como
objetivo mostrar o Rio Grande do Norte, principalmente, para seus moradores, para o potiguar.
Canindé tem o desejo de mostrar o belo entre os seus conterrâneos, apresentar aos potiguares
os encantos de Natal e dos arredores. Já deixou em vários momentos escapar que se assusta por
ter muitos conhecidos que dizem com orgulho conhecer Paris ou os Estados Unidos, até São
Paulo ou Rio de Janeiro, mas não conhecem o local. E, o objetivo maior de alguns agentes
envolvidos com as políticas de turismo continua sendo, antes de tudo, o convite ao turista
estrangeiro, como se nele existisse o potencial de construção da atividade vinculada, em termos
práticos, a um compromisso econômico e social - o que não é real.
Em 1999 foram incluídas as novas rotas turísticas e a revista “Natal pra você” apareceu
mediando essa construção; igualmente as fotografias de Canindé Soares compõe a cena, um
218
convite feito pelo fotógrafo que também vê nas raias do turismo a esperança do reconhecimento
profissional (ver Figura 20). O Roteiro dessa vez iniciou-se em um ambiente historicamente
polêmico na cidade de Touros. Lá está implantado o Marco da Posse das terras pelos
portugueses com o ano de 1501, na Praia do Marco, segundo pesquisas do professor Lenine
Pinto, o que transformaria a história tradicional sobre a descoberta do Brasil pelos portugueses.
O foco era a praia de São Miguel de Touros, depois oficializada como São Miguel do Gostoso.
Essa praia nos dias atuais tem sido relevante para o turismo de aventura com os esportes
náuticos (ver Figura 20).
Figura 20- Rotas do Turismo Potiguar161
Fonte: Acervo particular do editor Antônio Roberto (1999).
A sequência é dada com Caiçara do Norte, apontando como vilarejo que ainda existe
nos mapas. Segundo o autor, outro paraíso ainda intocado é Galinhos, ambiente dos pescadores
e das dormidas em redes, do tráfego com carroças puxadas por jumentos. “Buggies e carros
com tração costumam se misturar a paisagem, invadindo um território pouco habituado ao
progresso”. No município de Mossoró o turismo está ligado ao sal da terra, a cenas de cidades
provincianas, com jangadas, casas simples, até um pequeno cemitério a beira mar, um lugar que
parece esquecido. Na cidade de Nísia Floresta a novidade, além das praias, são 23 lagoas.
Finalizando as paisagens da praia de Sagi; situada na divisa com o Estado da Paraíba, nela a
receita é ir sem pressa e sem exigência, uma vez que até bem pouco tempo a cidade só dispunha
161 Periódico publicado em 1999 com Fotografias de autoria de Canindé Soares.
219
de um aparelho de televisão público, “para os nativos assistirem o Jornal Nacional” (ver Figura
21).
Figura 21- Gostoso162
Fonte: Acervo particular do editor Antônio Roberto (1999).
Figura 22- O vilarejo163
Fonte: Acervo particular do editor Antônio Roberto (1999).
162 Idem.
163 Idem.
220
Figura 23- Paraíso perdido164
Fonte: Acervo particular do editor Antônio Roberto (1999).
Figura 24- Rota do sal e do turismo
Fonte: Acervo particular do editor Antônio Roberto (1999).
164 Idem.
221
Figura 25- 23 lagoas165
Fonte: Acervo particular do editor Antônio Roberto (1999).
Figura 26- Sem pressa166
Fonte: Acervo particular do editor Antônio Roberto (1999).
165 Idem.
166 Idem.
222
Figura 27- Uma "nova" Ponta Negra167
Fonte: Acervo particular do editor Antônio Roberto (1999).
As paisagens retratadas nas imagens apresentadas anteriormente valorizam os símbolos
pretéritos, aparecem como um túnel que direciona os visitantes a um momento de nostalgia,
indica o artesanal, o simples, o exótico, o primitivo. A paisagem é a utopia da máquina do
tempo: elabora a volta ao passado. O litoral nordestino-potiguar uma das representações do
turismo nordestino, em seu lugar de atraso. As imagens fotográficas são absorvidas pelos
espectadores que a partir da visualidade naturaliza o discurso produzido pelos ícones que
reinventam as memórias desses locais. O global parece distante. A contradição em termos de
relações sociais, uma vez que a própria atividade turística faz parte dessas relações, requer
elementos padronizados, concatenados ao tempo presente, como alimentos diversificados,
bebidas de vários sabores, vestuários concatenados a um apelo global, equipamentos
tecnológicos, entre outros tipos de produtos. Essas são as utopias criadas na sociedade
representada pelo espetáculo.
As fotografias apresentam um deslocamento na representação do ícone da seca, o sol,
que está concatenado como símbolo tradicional referenciador da região; tanto favorece o
imaginário sobre a seca (acrescido da morte e da pobreza do sertão) quanto o imaginário do
local turístico repleto de sol para aquecer o lazer, acalentar a preguiça, as brincadeiras e as
férias. Essa é uma nova paisagem nordestina, a do paraíso a ser descoberto, pelas empresas
167 Idem.
223
ligadas às atividades turísticas, um nordeste das águas quentes, dos verdes coqueirais, das frutas
exóticas e saborosas e de um povo hospitaleiro.
A valorização do litoral para o turismo, claramente, ajudou a fazer circular novas
imagens do nordeste, com elas a paisagem nordestino-potiguar. A imagética trouxe um novo
olhar para os próprios moradores do local, muitos têm orgulho de falar que residem em um
lugar propício para passar as férias, alusão comum nas redes sociais por moradores da capital
norte-rio-grandense e cidades próximas. Contudo, alguns símbolos omitem as relações
existentes e acentuam enunciados que rementem a códigos que faz crer na existência de um
espaço atrasado e demarcado pelas relações tradicionais que não existem. A Figura 15 apresenta
uma alusão interessante: ao observar o velho bote no lado esquerdo do enquadramento pode-se
projetar um desenvolvimento futuro idealizado para a cidade como um todo. No momento em
que o foco se dá no velho bote, a cidade enquanto invenção humana extremamente sofisticada
está no plano de fundo, o moderno, continua ao fundo, longe do plano central.
224
5 TURISMO RELIGIOSO: O ENQUADRAMENTO ESPETACULARIZADO
Nesse capítulo trataremos dos discursos que envolvem a consumação do turismo
enquanto um vetor de desenvolvimento socioeconômico e de transformações socioespaciais,
trazendo à tona imagens que refletem o espetáculo. É nessa esfera que se amplia a visualidade
das fotografias registradas por Canindé Soares: elas dão a ver as mudanças imagéticas nas
paisagens nordestinas-potiguares estruturadas a partir da caracterização do turismo. Nos seus
registros visuais percebemos como o discurso se interpõe nas expectativas dos indivíduos e
constrói o espaço formando-o através de representações, ações e práticas.
Nesse escopo a política interposta no espaço nordestino-potiguar, aliada por outra série
de operações socioculturais, viabiliza a condensação de formas que aparecem como a expressão
de paisagens turísticas no discurso fotográfico. Essas passam a direcionar um novo roteiro; com
o olhar nos mitos168 que desenha atrativos para o turismo religioso de cunho católico; produto
elaborado a partir da cultura que remonta ao Brasil colônia – em que o processo de
miscigenação, fusão de hábitos, crenças e formas de pensamentos resultaria em combinações
identitárias expressas na gastronomia, na música, no artesanato e, particularmente, na
religiosidade compreendida como típica. Apesar do Estado do Rio Grande do Norte não figurar
entre os principais centros de peregrinação e romarias do Brasil, verifica-se que os
investimentos políticos e eclesiásticos em prol desse turismo religioso só aumentam.
O que procuramos deixar claro nesse capítulo é que no enquadramento fotográfico
reside o sintoma, melhor dizendo, as imagens anâcronicas. São esses elementos residuais parte
da memória coletiva que reaparecem no tempo presente causando tensão e organizando a nossa
crítica.
5.1 TURISMO CULTURAL E CULTURA COM FOCO NA RELIGIÃO
Apesar das expectativas e dos projetos de turismo, dos melhoramentos estabelecidos
para o espaço em prol da atividade, a distância entre a realidade local e o ideal assumido
continuou imensa desde os primeiros incentivos a atividade no Estado potiguar. Um problema
fundamental era o fato do processo de transformação espacial pelo qual o Estado Rio Grande
do Norte passava não ser consequência de algum tipo de desenvolvimento econômico alcançado
168 Para o autor o mito não é a negação da existência dos elementos iconizados, ao contrário, é o seu relevo, uma
vez que esses existem e estão dispostos para distintos usos. Contudo o mito empobrece o sentido pelo qual esse
foi gestado no momento em que o traduz a partir de novas formas. Ver Albuquerque Júnior (2012).
225
– como, por exemplo, um desenvolvimento relacionado a investimentos e melhorias na
qualidade de vida e expectativa dos cidadãos locais–; todavia, era justamente o contrário, já que
se antecipava a esse desenvolvimento. Nessa urgência, o espaço é iniciado em seu processo de
artificialização, promoção, turistificação e mercantilização. “O espaço é a instância em que os
grupos sociais edificam obras materiais e inscrevem uma ordem simbólica” (ARRAIS, 2004.
p.18).
Nos espaços o discurso do turismo tem promovido à encenação, manutenção ou mesmo
emergência de variados ícones que complementam as paisagens locais, dando-lhes novos
sentidos. A atividade cada vez mais ganha importância em distintos debates, mais do que nunca
o acesso aos locais tem se expandido por interferência das tecnologias e equipamentos
facilitadores dos deslocamentos. Concomitante, acredita-se que o vai e vem turístico nos locais
pode fazer milagres em termos de economia, o que sabemos, muitas vezes não ocorrer. Vários
fatores movimentam o turismo, entre eles, fica cada vez mais claro: o tipo de infraestrutura que
atende o local; as facilidades pensadas para vivência dos moradores; o respeito aos diferentes
modos de vida que interagem no espaço; a existência de ambientes de convivência para os
residentes; a variedade e a qualidade de transportes públicos; os serviços públicos oferecidos;
segurança pública; entres esses fatores, ainda acrescenta-se a sensação de pertencimento que os
residentes nutrem com o lugar por sentirem-se incluídos e valorizados, em acréscimo, quando
o sentido do público é incorporado pela população em suas esferas de vivência. Esses são
fatores que propiciam qualidade de vida a quem vive, consequentemente, um ambiente atrativo
ao turismo.
No Brasil os feitos em prol do turismo, de modo geral, priorizam tipos de infraestrutura
que buscam atender temporariamente os visitantes, ainda existem os discursos legitimados em
cima de ações insipientes por estarem descontextualizadas de propostas políticas efetivas para
a sociedade. Projetos e ações incorreram em grandes erros na passagem dos séculos XX para
XXI, mesmo assim, a atividade é reafirmada em esfera econômica, política e social como um
dos carros-chefes para o incentivo ao desenvolvimento socioeconômico no país. Expande-se as
expectativas sobre o turismo e acrescenta-se novas ações, dessa vez enveredando para as
cidades do interior.
O direcionamento da atividade com prioridade às áreas interioranas do país inicia-se
após a criação do MTUR (2003) – Ministério do Turismo – por meio do Programa de
Regionalização do Turismo – PRT. O programa incentiva o desenvolvimento de elementos
englobados enquanto potenciais para o turismo, relacionadas à vivência do conjunto de
componentes do patrimônio histórico e cultural e dos eventos culturais que conglomeram
226
manifestações temporárias. Incluem-se nessa categoria os eventos religiosos, musicais,
gastronômicos, danças, exposições de arte, de artesanato e outros. Se trata do turismo cultural
e da sua interpretação entre os planejadores da atividade.
O turismo cultural passou a ser segmentado e reconhecido como uma forma de viagem
onde à cultura constitui a base para atrair turistas ou a motivação para muitos turistas e/ou
visitantes culturais viajarem. Na Europa, o turismo cultural foi reconhecido como um
importante agente de mudança social e econômica (RICHARDS, 1996) e ganhou ênfase no
final dos anos de 1970. Na década seguinte, em 1985, a OMT propôs uma definição ampla e
outra mais restrita para o turismo cultural. No sentido mais amplo quer dizer que todos os
movimentos dos indivíduos podem ser incluídos na definição porque satisfazem a necessidade
humana pela diversidade e tendem a aumentar o nível de conhecimento do indivíduo e a
proporcionar novas experiências e encontros. No sentido mais restrito, o turismo cultural era
definido como os movimentos das pessoas com motivos considerados fundamentalmente de
caráter culturais, tais como: circuitos culturais e de artes, de espetáculo, viagens a festivais ou
a outros eventos culturais, visitas a monumentos, o consumo do folclore ou da arte, etc.
(RICHARDS, 1996).
No Brasil o MTur, em parceria com o Ministério da Cultura e o Instituto do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional (IPHAN); com base na representatividade da Câmara Temática
de Segmentação do Conselho Nacional do Turismo, realizou a releitura das atividades culturais
do país e as suas principais características definindo o Turismo Cultural como a atividade que
abarca à vivência do conjunto de elementos significativos do patrimônio histórico e cultural e
dos eventos culturais, valorizando e promovendo os bens materiais e imateriais. O objetivo da
conceituação é a orientação de políticas públicas para o segmento, em que as principais
características apreendidas relacionam-se aos serviços que o turista utiliza e as atividades que
realiza durante sua viagem e sua estadia no destino, tais como: transporte; agenciamento
turístico; hospedagem; alimentação; recepção; eventos; recreação e entretenimento; além de
outras atividades complementares.
O cenário para esse segmento do turismo parte dos serviços e infraestruturas que podem
incorporar as características do ambiente cultural como elementos que conferem identidade e
demonstram o envolvimento da empresa com o lugar em que ela se encontra e com o público
que atende. Procedimentos que vão desde a elaboração do projeto arquitetônico integrado à
paisagem cultural e/ou para adaptação de uma edificação de valor histórico, passando pelo uso
das matérias-primas da região, a contratação de mão de obra local, são alguns dos diferenciais
valorizados pelo turista cultural. Os elementos do patrimônio cultural segundo variadas
227
bibliografias e a orientação do ministério do turismo, se constituem em aspectos diferenciais
para o desenvolvimento de produtos e para a promoção dos empreendimentos. O que pode ser
feito através de restaurantes dedicados à gastronomia tradicional, artesanato local na decoração
e ambientação dos equipamentos, nas programações de entretenimento com manifestações
culturais autênticas, na tematização de memórias para ampliar e motivar a emoção do visitante,
ainda, se coteja entre essas ofertas a hospedagem domiciliar. Essa é interpretada como uma
forma de vivência cultural, em que o turista se hospeda na casa de um residente experimentando
o seu modo de vida e observando o cotidiano da comunidade e sua hospitalidade. Proposta já
conhecida em iniciativas como a do Turismo de Habitação em Portugal ou do Cama e Café no
Brasil, que funcionam como redes de operação e cooperação com hotéis, também como a do
aplicativo Airbnb, serviço online que favorece essa interação.
O patrimônio histórico e cultural e os eventos culturais, que repercutem a partir da
importância dos primeiros; são bens de natureza material e imaterial que expressam ou revelam
a memória e a identidade das populações e comunidades. Esses bens tem valor histórico,
artístico, científico, simbólico, passíveis de se tornarem atrações turísticas; são delimitados para
tais fins: arquivos, edificações, conjuntos urbanísticos, sítios arqueológicos, ruínas, museus e
outros espaços destinados à apresentação ou contemplação de bens materiais e imateriais,
manifestações como música, gastronomia, artes visuais e cênicas, festas e celebrações. Já os
eventos culturais englobam as manifestações temporárias, enquadradas ou não na definição de
patrimônio, incluindo-se nessa categoria os eventos gastronômicos, religiosos, musicais, de
dança, de teatro, de cinema, exposições de arte, de artesanato e outros. A promoção desses
eventos para a utilização turística pressupõe a valorização, a manutenção e a permanência de
sua dinâmica no tempo como símbolos de memória e de identidade. Há com isso a pretensão
de difundir o conhecimento sobre esses bens, facilitar seu acesso e usufruto a moradores e
turistas; além de se valorizar a importância da cultura na relação turista e comunidade com os
meios necessários para que essa convivência ocorra em harmonia e em benefício de ambos.
No ponto de vista de Carvalho (2009) o crescimento do turismo cultural, em diferentes
contextos e escalas espaciais, constitui uma resposta às características e mudanças da sociedade
contemporânea e, também, representa um sinal de esperança (econômica), para os destinos que
apresentam relevância patrimonial. Mesmo que a cultura surja como elemento secundário para
visitar um destino o turista acaba sempre por consumir algo com significado cultural.
Atualmente, o turismo cultural é um dos segmentos mais importantes do turismo (RICHARDS,
2013).
228
Os recursos associados ao turismo cultural expandiram-se do patrimônio fixo tangível
do passado em direção aos produtos intangíveis e móveis da cultura contemporânea. Isso deve-
se essencialmente ao processo da globalização que, de certa forma, favorece o crescimento e
desenvolvimento cultural em âmbito global. Tal fato começou por criar uma consciência de
diferentes estilos regionais de turismo cultural, os quais se relacionam não só com a cultura
consumida, mas também com a organização e gestão desse consumo (RICHARDS, 2007). Na
visão do autor o turismo cultural abarca tanto o “turismo do patrimônio cultural” (relacionado
com artefatos do passado), como o “turismo de arte” (relacionado com a produção cultural
contemporânea). Para Craik (2003), a cultura deve ser moldada para o turismo e os turistas, ou
vice-versa. Logo, torna-se necessário desenvolver produtos especializados ou, então, modificar
atrações para integrar ou destacar as características culturais de um lugar.
Ainda na perspectiva da comercialização do turismo, coloca-se que os destinos onde
não há reputação para o turismo cultural ou não possuem elementos culturais globais para atrair
visitantes; esses sim têm a necessidade de desenvolver novos produtos e atrações a fim de
prender a atenção dos turistas que tem curiosidade nas particularidades da cultura global
(RICHARDS; WILSON, 2008). O processo de elaboração para o turismo cultural envolve o
desenvolvimento e a mercantilização das relações consideradas tradicionais no lugar ou de uma
série deles, usando identificadores temáticos. “Essencialmente, o processo de transformação
envolve a fabricação de uma experiência para torná-la mais atraente para o turista”
(McKERCHER et al., 2004, p. 395). Segundo os autores, o sucesso das atrações culturais devem
compartilhar características comuns, ou seja, elas devem contar uma história, tornar a
experiência participativa, focar na qualidade, ser relevantes para o turista e proporcionarem uma
sensação de autenticidade.
As definições expostas sobre o turismo cultural revelam o ponto de vista de alguns
estudiosos que partem da perspectiva da comercialização da cultura. Compreendendo, antes de
tudo, a cultura como um traço particular e identitário de um povo e de um espaço, ou seja,
alguns elementos que entre variados elementos são escolhidos através de embates para
representar um espaço social são divulgados como únicos e característicos, retirando outras
representações. Em uma sociedade complexa, como a que fazemos parte, essas elaborações que
negam as subjetividades e mascaram os embates sociais acabam fortalecendo impasses e
disfunções nos espaços; afastando-se das soluções mais democráticas. É inegável que o turismo
enquanto atividade econômica e socioespacial pode cumprir um papel de estimular o exercício
da pluralidade; reduzir as discriminações, na medida em que “os outros” se encontram e deixam
de ser somente estranhos e passam a ser ver antes de tudo como seres humanos; ainda mais,
229
pode dar relevo a interpretações e particularidades que privilegiam grupos e espaços,
aumentando a autoestima de um povo e valorizando-o em uma esfera mais ampla; no mais
fortalecer economicamente e com infraestrutura inclusiva uma área. Todavia, mercantilizar
aspectos culturais sem um debate profícuo com os diferentes agentes que serão afetados por
essa atividade, como de modo geral acontece no Brasil, não gera efeitos positivos, pelo
contrário, aumentam os abismos sociais; uma amostra pode ser dada através da concepção de
hospitalidade.
Os planos nacionais de turismo se dispõem em proclamar a hospitalidade como um traço
cultural marcante e de grande qualidade do brasileiro. A hospitalidade como aspecto cultural a
ser explorado pelo turismo está profusamente correlacionada ao mito da miscigenação, esse
mito traz consigo vários princípios, um deles é que a mistura racial ocorrida no Brasil foi
impulsionadora da convivência pacífica entre as diferentes “raças”. Literaturas, músicas,
pinturas, fotografias, filmes, novelas, até mesmo algumas produções acadêmicas endossam esse
discurso, o resultado é a manutenção de uma ordem prática de imagens que confunde as
realidades e camuflam os discursos contrários; o que seria saudável para dar suporte às ações
democráticas. No mais, a convivência entre “raças”, classes, espaços, concepções políticas,
credos, entre outras convivências no Brasil não são pacíficas. Nossa história é marcada por
violências, preconceitos e segregações.
Sobre esse aspecto a pesquisa de Warren (2001), realizada no sudeste do Brasil que deu
origem ao livro Racial Revolutions coloca o preconceito como o alicerce da negação de direitos
e de possíveis debates sobre a questão racial. O que favorece o margeamento de específicos
grupos de muitos processos, omitindo os diversos conflitos existentes; a comunidade
remanescente de indígenas, foco da pesquisa do autor citado, existe como se fossem figuras
folclóricas amarradas no passado. Pior, não se divulga que o lugar marginalizado relegado a
essa população, como a própria ideia que constrói o que é índio em nossa sociedade, é parte dos
meandros de toda uma construção social; conserva-se para além dos preconceitos culturais o
do fenótipo. Outro exemplo está nas pesquisas de Albuquerque Júnior (2003, 2006, 2008a,
2012), essas destacam os estereótipos e preconceitos originários de discursos que traçam
perspectivas identitárias elaboradas para se ver e dizer um local, estigmatizando seus moradores
e construindo segregações sociais intermediadas por uma geografia da exclusão e do medo. O
discurso da hospitalidade ao se sobrepor como aspecto cultural identitário, como uma fala
recorrente mascara os modos que persistem em se sobrepor no tratamento social com a
heterogeneidade. Modos esses que explodem com linchamentos, mortes, discussões,
230
perseguições, entre outros vários tipos de violência que surgem da dificuldade de apreender e
lidar com as diferenças.
Esse discurso constrói o nacional, perpassa o regional e atinge o local, o bem receber é
exaltado nos submetendo a apenas uma parcela da realidade apontada como boa. Em torno dele
organizam-se todos os elementos necessários para a manutenção da atividade, constroem-se
espaços nos moldes do concebido (LEFEBVRE, 1991a), o local recortado pelo turismo passa a
ser elaborado com a ideia da paisagem tradicional da hospitalidade. Hospitalidade que no caso
do nosso turismo é muitas vezes confundida, pelo turismo que foi imposto com forte apelo ao
sexual, com servidão. Une-se a isso o preconceito e os tipos de racismos existentes no Brasil
que se instalam nas intersubjetividades por meio da interiorização da inferioridade, em que:
La jerarquía de superioridad/inferioridad sobre la línea de lo humano puede ser
construida con categorías raciales diversas. El racismo puede marcarse por color,
etnicidad, lengua, cultura o religión. Aunque el racismo de color ha sido
predominante en muchas partes del mundo, no es la forma única y exclusiva de
racismo 169 (GROSFOGUEL, 2011, p. 98).
Em grande medida não se discute a elaboração dos espaços em termos de vivido; não se
questiona se somos realmente uma nação hospitaleira e aberta a todas as diferenças; não se
pergunta como esses traços culturais foram elaborados. O discurso do turismo como gerador de
renda, de empregos e incentivador da redução da desigualdade social, mesmo sem ser pensado
como o turismo atuará na redução dessa desigualdade em termos mais amplos e efetivos, se
mantém abarcando a questão da hospitalidade170. Os debates que visam rachar com as
cristalizações que circunscrevem a ideia de hospitalidade/servidão ficam na margem, suas
ramificações são limitadas, logo, muitos locais destinados ao turismo estão localizados em
região com sérias questões econômicas advindas das grandes desigualdades sociais marcadas
por projetos políticos organizados de cima para baixo; conservando os benefícios nas mãos de
grupos restritos e afastando-se de que se propõe inicialmente atingir.
No mais, a ideia de cultura é complexa e passa por várias transformações, Eagleton
(2011) ao discorrer sobre o conceito e as suas variantes ressalta como pode ser nocivo pensar a
cultura no sentido de afirmação da totalidade, ou da semelhança, ou da superioridade das
169 “A hierarquia de superioridade/inferioridade sobre a linha do humano pode ser elaborada a partir de distintas
categorias raciais. O racismo pode ser determinado a partir da cor, etnicidade, língua, cultura e religião. Mesmo
que o racismo de cor tenha sido predominante em várias partes do mundo, não é a única forma exclusiva de
racismo” (GROSFOGUEL, 2011, p. 98, tradução nossa).
170 A preferência para investimento no turismo tem sido em cima do turismo receptivo, que dá prioridade aos vindo
do exterior; europeus e norte-americanos, endossam a lista. Contudo, o maior mercado do turismo brasileiro está
entre os próprios brasileiros que circulam em viagens dentro do país, Ver: Castillo Nechar; Panosso Netto (2010).
231
capacidades humanas: se a cultura é livre, dinâmica e se origina nas vivências e práticas
cotidianas, consequentemente é paradoxal pensá-la de modo partidário. Ela mesma seria um
antídoto à política que confina as manifestações sociais a estreiteza dos enunciados. Nesse
norte, a própria ideia de cultura propõe a dúvida aos discursos que formatam a identidade
socioespacial, pois exige um olhar além dos interesses parciais; que se desamarre dos
estereótipos, dos mitos e que construa novos regimes de verdades e de relações com justiça para
os grupos minoritários.
5.1.1 O turismo e o foco no catolicismo popular
A religião é uma marca indelével das relações sócio-históricas. Não há como negar a
sua contribuição, principalmente a do cristianismo na organização e formação cultural da
sociedade ocidental. São peregrinações, ritos, cultos, grupos comunitários e movimentos com
grande mobilização de pessoas que atestam a importância das práticas religiosas na vida
cotidiana. No Brasil o censo demográfico é uma das grandes referências sobre a investigação
da religião e aponta que significativa parcela da população declara professar alguma religião.
O que infere em ações cotidianas e práticas socioespaciais regidas por valores religiosos, morais
e éticos conforme a religião que se professa. Em uma análise feita sobre a religião declarada
dos últimos 50 anos no Brasil e publicada em 2001, temos os seguintes dados:
Gráfico 1- Distribuição relativa da população residente, por religião declarada: Brasil –
1950/2000
Fonte: IBGE, Censo Demográfico 1950/2000.
232
O Gráfico 1 demonstra o domínio da religião católica em nosso país. Contudo, essa
porcentagem de católicos a partir de meados do século XX vem declinando. Por outro lado,
desde 1950, as proporções de evangélicos crescem, quando eram apenas 3,4%, passando para
9,1%, em 1991 e atingindo 15,4% no ano de 2000. Além disso, observa-se um salto na
proporção dos indivíduos sem religião que nos anos de 1960 e 1970 eram bem pequenas e
durante a década de 1980 os percentuais passaram de 1,6%, para 4,8%, em 1991. No período
seguinte, o percentual de pessoas sem religião continuou em crescimento atingindo o patamar
de 7,4%, em 2000171.
No Censo de 2010, foi demonstrada a continuidade da queda da porcentagem de
católicos e a expansão das correntes evangélicas. A queda acelerada entre os fiéis católicos,
entre 2000 e 2010 evidencia em dados uma retração de 22%. Isso em porcentagem representa
um declínio de 73,7% para 64,6% da população desse grupo de indivíduos, em termos total a
redução é da ordem de 1,7 milhão de fiéis172. O que representa um impacto significativo para
a religião católica. Mesmo assim, o Brasil ainda é considerado o país que possui a maior nação
católica do mundo em um universo plural e competitivo; nesse cenário suas manifestações
religiosas mobilizam milhares de pessoas a circularem entre os mais diversos locais173.
Ao perder o domínio na formação da identidade religiosa nos modos tradicionais, as
instituições que a definem buscam se posicionar e ampliar seu contato com a sociedade de
diferentes modos; a fim de recuperar a prospecção dos indivíduos. O apelo midiático é um dos
meios pelo qual as religiões inserem-se na Sociedade do Consumo174 (BRONSZTEIN; ALVES,
171 Ver em: IBGE, Tendências Demográficas: uma análise dos resultados da amostra do Censo Demográfico
2000. Disponível em:
Acesso em: 23 jun. 2017.
172 Ver em: IBGE, Censo Demográfico 2010: Características gerais da população, religião. Disponível em:
. Acesso em 23 jun.2017.
173De acordo com dados da EMBRATUR em levantamento feito pelo Instituto de Pesquisas da Universidade de
São Paulo, cerca de 15 milhões de brasileiros viajam anualmente para locais e templos religiosos. No país as
cidades de maior destaque são: Juazeiro do Norte, no Ceará, terra do Padre Cícero; Bom Jesus da Lapa, na Bahia;
Nova Trento, em Santa Catarina, onde se encontra o Santuário da Madre Paulina; Belém do Pará, com a festa do
Círio de Nazaré; e Aparecida do Norte, em São Paulo, onde se encontra o Santuário da Padroeira Nossa Senhora
Aparecida.
174 Estudiosos como Frederic Jameson, Jean Baudrillard e Zygman Bauman constroem a crítica social a partir da
perspectiva que a cultura do consumo é a que está em vigor na sociedade pós-moderna ou do capitalismo tardio.
Apontam os prejuízos relacionados ao ato do consumo, como o materialismo, a exclusão social, a superficialidade,
entre outros, permeando com discursos morais sobre os efeitos do consumo na contemporaneidade. O sociólogo
Zygmunt Bauman atua nas análises da cultura do consumismo pós-moderno, seu objeto pesquisa, nela aborda os
efeitos da atual estrutura social e econômica, baseada no Consumo, e no que esse provoca nas diversas esferas da
vida humana. Bauman (2008) avalia os efeitos da troca da Sociedade de Produtores, que define como moderna e
sólida, pela Sociedade de Consumidores, que define como pós-moderna e líquida. Na Sociedade de Produtores os
bens eram resistentes, a satisfação residia na promessa da segurança em longo prazo e o consumo excessivo era
mal visto; já na Sociedade de Consumidores, os desejos de estabilidade e saciedade vinculados à ideia de felicidade
233
2014). O turismo aparece como uma dessas fontes de inserção uma vez que favorece a marcação
dos territórios sacralizando-os com as mediações e as paisagens. Vinculada ao turismo a religião
transforma-se em atrativo cultural, parte do segmento turismo religioso. O direcionamento ao
turismo religioso está classificado pela OMT entre os principais motivos das viagens turísticas,
o que é destacado por Dias e Silveira (2003) e afirmado por Andrade (2000). No Brasil a
religiosidade cotejada pelo turismo é a católica, fé promulgada nos órgãos oficiais do turismo,
essa tem reunido recursos para a edificação de fixos que a representa nos espaços festivos
criando paisagens atrativas a atração das pessoas para os locais em que suas manifestações se
realizam.
O interesse por lugares encontra no calendário cristão católico, com variados eventos e
festividade, novas perspectivas para acelerar a economia nos locais aonde esses eventos são
realizados. As tradições religiosas de um povo são cooptadas como motivação para o turista vir
a conhecer regiões cujo alicerce se fundamenta em suas manifestações (SERVIÇO
BRASILEIRO DE APOIO ÀS MICRO E PEQUENAS EMPRESAS DO RIO GRANDE DO
NORTE, 2005). De acordo com o Ministério do Turismo (2006, p.3), “os segmentos turísticos
podem ser estabelecidos a partir dos elementos de identidade da oferta e também das
características e variáveis da demanda”.
No aspecto identitário se atesta a relevância dos elementos religiosos, como as crenças,
os hábitos e os valores praticados. Como já abordado no tópico anterior, as concepções que
embasam mais amplamente o conceito de cultura estão inseridas nessa categoria que recorta as
festividades católicas como aspectos culturais a serem trabalhados pelo turismo. Para muitos
agentes a experiência do turismo agregada à religião tem uma dupla face que tanto enriquece a
experiência do visitante e reforça o sentimento de pertencimento dos moradores com o lugar;
quanto descaracteriza a identidade cultural local por meio da imposição de novos padrões
culturais.
Essas são as diferentes faces de uma moeda que preocupam os seus produtores,
sentimentos como o de pertencimento e ações como a descaracterização são colocados como
impactos positivos e negativos; modos de pensar o turismo em longo prazo, a fim de que esse
não prejudique o local se autodestruindo posteriormente, perspectiva funcional, no qual o
aspecto negativo reside no fato dos bens culturais religiosos serem consumidos de forma
massiva, banalizada e passível de perder os seus significados originais. A noção descrita
converge para a partilha da idealização de uma verdade original e autêntica que existiria e
desvinculam-se; a satisfação sai do campo das necessidades e passa a ser concatenada a uma intensidade de desejos
sem fim - o que implica um estado de troca permanente.
234
estaria ameaçada pela invasão não controlada de indivíduos contemporâneos com práticas
desvencilhadas do local, de ações globais - o que colocaria em risco tanto essas manifestações
como o turismo.
Kripppendorf (1987) e Greenwood (1989), similarmente sustentam que o turismo é uma
ameaça às culturas receptoras, lhes causariam riscos de destruição ou perversão, subjugando-as
a um exercício neocolonial de dependência face ao exterior e privando-as de poder de decisão.
Sobre esse ponto de vista Canclini (2008, p. 220-221) sugere que os recursos culturais diante
do processo de globalização e da consequente transformação dos produtos turísticos em nível
local, regional, nacional e internacional, não devem ser pensados nas oposições entre o
tradicional e o moderno; entre o culto e o popular; positivos e negativos. Sendo assim, o autor
citado afirma que a produção dos eventos religiosos tradicionais, como de outros eventos, além
da fabricação de artesanatos, não é tarefa exclusiva de grupos étnicos ou de outros setores mais
amplos. Entretanto, se configura como “produtos multideterminados de agentes populares e
hegemônicos rurais e urbanos, locais, nacionais e transnacionais”. Ainda assume que o popular
é constituído por processos híbridos e complexos que utilizam como signos de identificação
elementos procedentes de diversas classes e nações (BRONSZTEIN; ALVES, 2014).
A pesquisa sobre “Religiosidade, Turismo e Cultura no Rio Grande do Norte” da
Professora Maria Lúcia Bastos Alves (2009, 2013a, 2013b), com foco nas festividades do
catolicismo, aponta para as tensões e coexistências culturais a partir de um campo de disputa
em que diferentes agentes interagem por meio de motivações concatenadas as suas trajetórias;
favorecendo a construção de múltiplos sentidos que implicam na elaboração desses eventos a
partir da redefinição acentuada com a presença do turismo. Retrata que as políticas de turismo
junto com a Igreja no processo de divulgação da fé católica associada à perspectiva do
desenvolvimento econômico reapropriam e revalorizam as festas.
Na mesma via dos pontos de vista citados está a concepção de Chartier (1998), o qual
contesta as noções binárias de classe para se pensar o universo da cultura, das representações
sociais, o que as formulações citadas não conseguem superar. Atenta-se para a multiplicidade
e diversidade das atividades, enfatizando a sua complexidade e evidenciando as práticas e
representações dos grupos sociais e dos múltiplos trânsitos existentes nas diferentes conjunturas
de significação operadas por distintas hermenêuticas e regimes de leitura que orquestram a vida
social.
A cultura também vem sendo detidamente apontada por Albuquerque Júnior (2012)
como um elemento certeiro na construção de identidades. O autor salienta como os discursos,
mesmo sem se dar conta, circunscrevem a noção de identidade, principalmente, por intermédio
235
das noções de “resgate” histórico e “tradição” – conceitos caros ao turismo. Ainda de acordo
com esse autor, alguns agentes sociais se organizam em diversos campos enquanto promotores
ou salvadores da cultura local, regional ou nacional, a fim de resgatar as suas manifestações em
risco de transformação, de perda da autenticidade ou mesmo ameaçadas de desaparecimento.
O que incorre ao fechamento das ideias, das identidades e das novas possibilidades. O “bom”
turismo ou o turismo sustentável quando implementado em certos locais é definido pelo
discurso do resgate; um instrumento de preservação; cria as suas paisagens de festas e rituais,
porém essas não são vistas ou trabalhadas como fabricação, mas sim como tradição;
esquecendo-se que a própria ideia de tradição já é um significado que foi construído a partir do
esvaziamento de outras práticas.
Com o catolicismo popular, no Nordeste, a paisagem em voga é a da tradição. Nela o
discurso é de que o turismo, se bem planejado, permite aos seus clientes presenciar o registro
“autêntico” de um ritual cristalizado no tempo e no espaço. Contudo, fechar o espaço no
passado é sufocá-lo em seus mitos. Inclusive, nesse norte podemos compreender o turismo
como o elemento salva-vidas, pronto para mergulhar e resgatar a vítima em vias de afogamento.
Só que um detalhe é esquecido: nesse movimento de retorno não existe mais o passado, em seu
lugar está à dinâmica, o fluxo, o presente e o devir repletos de decalques que molduram o corpo
da vítima em seu solo construindo o corpo do resgatado. Na prisão dessa criação se concentra
a crítica – não na ideia do registro, da encenação, da representação; no mito que prende à
identidade, afastando a potência da criação.
As paisagens da saudade, dos rituais e da tradição imbricadas ao fenômeno do turismo
são elaborações recentes e conectadas com o mercado global, em constante transformação. Não
são fragmentos pretéritos das antigas manifestações populares presos ao espaço, índice do
passado em conserva até os dias atuais. Ao contrário, são produções criativas com a inserção
de novos agentes e registros do turismo dotando-as de novos sentidos que favorecem uma ficção
dimensional na paisagem local.
O foco sobre os espaços festivos do catolicismo popular se dá na tentativa de reelaborar
sua dinâmica em prol de um fluxo de contingências atuais, a fim de captar verbas e dimensionar
a cidade em um capo econômico competitivo. Nesse ponto reside à construção, uma vez que o
movimento que existia não era turismo, muito menos turismo religioso. Ao turismo interessa a
romaria em espetáculo de imagens, interessa a novena com a atração de pessoas, a festa da
padroeira como um arranjo midiático. Como colocam Bronsztein e Alves (2014) os
megaeventos religiosos marcam presença em diferentes contextos sociais e geográficos
disseminando imagens e transformando as celebrações em espetáculos a serem consumidos. É
236
por isso que as celebrações religiosas com maiores impactos são realizadas em estádios de
futebol, nas principias avenidas, praças, espaços de grande visibilidade, transformando tais
espaços em paisagens midiáticas (CANCLINI, 2008).
A reconfiguração das paisagens locais inspiradas no espetáculo a partir da reelaboração
para o turismo é fundamental não só do ponto de vista dos poderes públicos, para arrecadação
de divisas e captação de turistas; mas, também se constitui como uma forma do catolicismo se
reciclar, se repor, se reconfigurar diante do campo de disputa do mercado religioso, onde ano
após ano a instituição, como apontam os dados, vem perdendo fiéis.
5.2 O ESPETÁCULO DA FESTA NO TURISMO RELIGIOSO
O Estado “desempenha um papel controlador” do turismo e sua ação deve ser exercida
por meio de uma política setorial, entendida “como um curso de ação calculado para alcançar
objetivos”, detalhada pelos programas constantes dos processos de planejamento estratégico
(BENI, 2006, p. 109). Essa realidade é a que está sendo posta em ação com o PRT desde que o
mesmo está em operação. Nele as festas religiosas do catolicismo popular ganham
expressividade. No Estado do Rio Grande do Norte começam a fazer parte das visualidades que
compõem um conjunto de imagens e se revelam como possibilidade de fomento à atividade
turística. Além dos comportamentos e das experiências religiosas vividas pelos indivíduos em
suas relações societais, o turismo conforma certa totalidade que define o modus vivendi de uma
determinada parcela da população integrada de maneira privilegiada à dinâmica de produção e
demanda de bens simbólicos. Embora a motivação religiosa possa ser considerada como não
turística, os efeitos de uma viagem com esse fim são iguais para o mercado já que são utilizados
hotéis, agência de viagens, transportes, alimentação, movimentando essas e outras atividades
econômicas ligadas à produção artesanal e industrial. Com as cidades buscando atender essa
lógica inicia-se a construção do espetáculo, nele o “parecer” ganha destaque, simulando aquilo
que não é. Passamos a viver num mundo mediado por imagens onde “o que era ‘vivido’
diretamente tornou-se representação” (DEBORD, 1997).
Como parte da cultura o turismo na contemporaneidade condiciona práticas de
consumos e de comportamentos análogos ao espetáculo175. Presente nas fotografias concentra
seus condicionantes e consiste na operação do olhar e do pensamento quando capturados pela
proliferação incontrolavel e ilimitada de imagens causando uma saturação. A saturação
175 A ideia do espetáculo tem uma raiz comum com a especulação na perspectiva construída por Debord (1997).
237
especula, pressupõe e incita ao mesmo tempo em que desfoca o sentido das imagem e
indiferencia a hierarquia existente entre elas prejudicando a reflexão. Tudo pode e deve ser
mostrado a qualquer momento e essa é a sociedade onde ser é ser percebido, ou seja, o que não
está exposto em uma imagem parece não existir para o mundo. Essa exposição nos dias atuais
invade até mesmo a esfera privada, quiçá se estamos tratando de algo público como as paisagens
inseridas em um ambiente de competição onde se constrói a necessidade de um grau elevado
de visibilidade perante os demais. O que vale é alimentar constantemente uma boa imagem para
se manter ativo no mercado, na sociedade do consumo (BAUMAN, 2008).
Nesses termos, a ideia central de Debord (1997) é operacional porque a imagem não
significa apenas a imagem fotográfica, ela é também um estado de atividade no vazio, portanto,
da passividade em frente a imagem, uma vez que há a obrigatoriedade de tudo mostrar de tudo
expor, a ideia da exposição de tudo é balizada por esse autor na interpretação da sociedade do
segredo generalizado. Nessa concepção, quando mais mostra-se, quanto mais expõe-se, mais
não sabe-se aonde se aloja o segredo. Sendo assim, menos compreende-se da onde vem e para
onde vai o que se quer expor. Os mecanismos que alimentam e perpetuam os símbolos presentes
na imagem ancoram-se na passividade, encontram terreno fertil para propagação na
impossibilidade de se refletir criticamente no excesso de informção e de espetáculo.
No livro intitulado “A sociedade do espetáculo” o autor Debord (1997, p. 17) garante
que as condições de produção moderna se apresentam aos indivíduos enquanto um espetáculo
porque o vivido é substituído pelo percebido em forma de representação. No turismo a
representação, em grande medida, surge como um espetáculo, aliás, tem o espetáculo como
imperioso para sua publicidade e difusão. Nessa atividade “o que aparece é bom, o que é bom
aparece”; exposição tática para se pensar a dinâmica do turismo cada vez mais diversificada,
abrangente e conectada a tantos e complexos modos de consumo.
O turismo religioso, de modo geral, se difere de todos os outros segmentos do mercado
turístico por ter como motivação fundamental a fé. De acordo com a Conferência Mundial de
Roma, realizada no ano de 1960, o turismo religioso se traduz em uma atividade que movimenta
peregrinos em viagens de fé ou de devoção a algum santo. Na prática, são viagens destinadas a
locais considerados como sagrados, a congressos e seminários religiosos, a festividades
religiosas celebradas periodicamente, a espetáculos e a apresentações teatrais de cunho
religioso. Esses passeios turísticos estão correlacionados, majoritariamente, ao calendário e
acontecimentos religiosos das localidades receptoras dos fluxos turísticos. Inseridos nas
atividades de cunho turístico, os eventos perdem algumas características essenciais e passam a
figurar como espetáculos atrativos para os distintos visitantes, romeiros e turistas. Tornam-se
238
espetáculos de forte apelo econômico, com intervenções políticas promovidas pelo Estado,
prefeituras e iniciativas privadas, cujos objetivos se pautam na promoção e incentivos à
“preservação” e divulgação das práticas religiosas tradicionais (ALVES, 2013).
A religiosidade expressa nas festividades aos santos padroeiros por meio das procissões,
novenas e outros eventos que incluem uma imagética composta por momentos religiosos e
profanos, entra no roll dos interesses dos agentes de turismo e colocam os espaços que a
suportam em posição privilegiada para o desenvolvimento da atividade. Os eventos festivos
religiosos passam a ser adequados ao seguimento do turismo religioso; nesse segmento as
festas, principalmente as de santos padroeiros, são retrabalhadas e entram como parte dos
roteiros de viagem. Conforme, Lefebvre (2001, p.56), na cidade que os monumentos e as festas
têm seu sentido forjado, as festas engendradas com o turismo transformam-se em espetáculo
que se apresenta como a própria sociedade, como seu instrumento global. Assim, emergem um
conjunto de imagens que passam a mediar as relações sociais em que os indivíduos muitas vezes
partem do conformismo (DEBORD, 1997), nela a cultura é espetáculo e o espetáculo é a cultura
- elementos interligados e indissoluvelmente conectados a economia; desembocando na própria
naturalização e fechamento das concepções manifestas, que se tornam passíveis de abertura no
momento em que os sujeitos tornam-se agentes. Nas palavras de Debord (1997, p.14):
O espetáculo não é um conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas,
mediztizada por imagens. O espetáculo, compreendido na sua totalidade, é ao mesmo
tempo o resultado e o projeto do modo de produção existente. Ele não é um
suplemento ao mundo real, a sua decoração readicionada. É o coração da irrealidade
da sociedade real. Sob todas as suas formas particulares, informação ou propaganda,
publicidade ou consumo direto de divertimentos, o espetáculo constitui o modelo
presente da vida socialmente dominante. Ele é a afirmação onipresente da escolha já
feita na produção, e o seu corolário o consumo. Forma e conteúdo do espetáculo são,
identicamente, a justificação total das condições e dos fins do sistema existente. O
espetáculo é também a presença permanente desta justificação, enquanto ocupação da
parte principal do tempo vivido fora da produção moderna.
A manifestação espetacular da sociedade é o projeto e resultado do modo de produção
existente. Nas sociedades onde reinam as modernas condições de produção a vida se apresenta
como uma imensa acumulação de espetáculos, onde tudo que era vivido diretamente vira
representação. O espetáculo torna-se o modelo atual da vida dominante na sociedade, sendo
propagado por meio da publicidade, induzindo o consumo de divertimento (DEBORD, 1997).
Nesse ínterim entram as festas ornamentadas para atender uma demanda turística; festas que
nem sempre se constituíram em espetáculos da fé.
As pesquisas sobre festas religiosas no Brasil datam do final do século XIX, com forte
influência da ideia da cultura popular com suas bases no romantismo, incentivando estudos dos
239
costumes e das culturas por meio dos viajantes, memorialistas, literatos e folcloristas176.
Articuladas em teorias e métodos distintos as pesquisas desenvolvidas, principalmente após a
segunda metade do século XX, enriqueceram os debates sobre os festejos177. Seja na perspectiva
tal como pensada por Durkheim (1996) ou Mauss (2009), que coloca em destaque as funções
integradoras das estruturas sociais; as que partem do mito das origens (ELIADE, 1977); as que
se baseiam no processo ritual (TURNER, 1969); ou os que pensam as festas como produtoras
e formadoras de códigos sociais (GEERTZ, 1989); ou como quebra da rotina (CALLOIS,
1988), além dos que analisam os rituais festivos pela ótica da subversão, da transgressão, da
ruptura com o establishment e a transformação na vida social (DUVIGNAUD, 1983). Ou, mais
recentemente, como propõe Albuquerque Júnior (2011) em seu artigo Festas para que te quero
e Alves (2013a) em Festas Religiosas e Políticas de Turismo pensá-las como espaço de
negociações, tensões, conflitos, alianças e disputas em torno das práticas que as constituirão,
estabelecendo seus limites e fronteiras.
É nessa linha de pensamento que a categoria ou segmento do “turismo religioso” alia-
se ao consumo de bens simbólicos e se pauta na perspectiva do desenvolvimento regional e
local abarcando as festas religiosas. É um empreendimento político, mas também, religioso que
se retroalimenta no fomento das paisagens das cidades em que se sobrepõem. As festas
religiosas enquanto expressão cultural marcam momentos de ritualização de uma intervenção
divina requalificada na memória coletiva. A narrativa sobre o mito de origem e a consequente
constituição do local sagrado desempenha um papel fulcral no processo de institucionalização
da fé (ALVES, 2013a).
A Igreja Católica mantém estreita relação com o sistema turístico a fim de adquirir
benefícios auferidos para a conservação dos seus templos, assim como vê a oportunidade de
difundir sua doutrina. Muitos roteiros são realizados e organizados pela própria instituição
católica, constituindo-se, além de terreno fértil “para a dinamização, dilatação e transformação
da nova forma e estrutura cristã” (PASTORAL DO TURISMO,1782009, p. 17), uma importante
176 Dentre eles citamos os estudos de Morais Filho (1888), intitulado “Festas e Tradições populares do Brasil”,
que serviu de referência para autores como Vieira Fazenda, Luiz Edmundo e Gilberto Freyre. Melhores
informações consultar a reedição: MORAIS FILHO, Melo. Festas e Tradições Populares do Brasil. Brasília-
DF: Senado Federal, 2002.
177 Ver: PEREIRA DE QUEIROZ, M. Isaura. O messianismo no Brasil e no mundo. [S.l.]: Dominus, 1965;
VAINFAS, Ronaldo. Da festa tupinambá ao sabá tropical: a catequese pelo avesso. In: JANCSON, István;
KANTOR, Íris (orgs.). Festa: cultura e sociabilidade na América Portuguesa. São Paulo: Hucitec; Edusp;
FAPESP; Imprensa Oficial, 2001; PRIORE, Mary Del. Festas e utopias no Brasil colonial. São Paulo:
Brasiliense, 1994; PEREIRA, Mabel Salgado; CAMURÇA, Marcelo Ayres (orgs.). Festa e Religião: imaginário
e sociedade em Minas Gerais. Juiz de Fora-MG: Templo Editora, 2003.
178 De acordo com a concepção da Igreja Católica a Pastoral do Turismo é uma instituição que visa realizar um
conjunto de ações em nome da fé católica; visa evangelizar com novos métodos as pessoas envolvidas na prática
240
fonte de rendas. Nesses roteiros o espaço é espetacularizado e unificado, formando “um
processo extensivo e intensivo de banalização” (DEBORD, 1997, p. 130). O turismo reflete
bem este quadro, como subproduto da circulação de mercadorias a circulação humana resume-
se fundamentalmente no lazer de ir ver o que se tornou banal.
Com efeito, essas festas do catolicismo popular expressam vivências, histórias e mitos
presentes no imaginário coletivo. Promovidas por festeiros, leigos, fieis, políticos,
patrocinadores e “especialistas”, elas vêm sendo institucionalizadas enquanto patrimônio
identificador dos locais na medida em que se nutrem de específicos aspectos imersos em uma
pluralidade cultural e de valores inseridos em habitus179 “ancorados na socieogênese”180 do
campo religioso brasileiro (SANCHIS, 2011). Para além dos dias consagrados aos santos
padroeiros, as paisagens visíveis no período festivo – uma vez que não se limitam apenas ao
calendário de eventos, mas desenrolam-se durante todo o ano num movimento contínuo de
trocas e adesões – são estruturadas por diferentes manifestações em práticas e existências
concomitantes à vida cotidiana.
O Ministério do Turismo (2017) afirma em seu site181 que todos os anos o turismo
religioso movimenta milhões de viajantes no Brasil. Nesse ínterim a cultura aparece como o
pilar do turismo religioso e o turismo religioso com suas festas populares como um dos
sustentáculos para o desenvolvimento do turismo no Brasil. As festas assumem tal importância
uma vez que dos 880 eventos cadastrados no Calendário Nacional de Eventos Festivos em 2016,
149 eram relacionados às celebrações religiosas. De acordo com a Pasta, mais de 17,7 milhões
de fiéis fizeram turismo religioso no Brasil em 2014182. A mercadoria incorporou a cultura
como mais um de seus produtos na sociedade do espetáculo. Sendo esfera geral do
conhecimento e das representações do vivido, a cultura ganha independência e inicia um
movimento imperialista de enriquecimento declinando com a sua liberdade e autonomia. A
cultura tornou-se a mercadoria vedete na sociedade espetacular (DEBORD, 1997).
do turismo, tanto aquelas que se deslocam pelos mais variados motivos como as que estão envolvidas em todo
processo. Ainda, afirma ter como propósito central “suscitar aquelas condições excelentes que ajudam o cristão a
viver a realidade do turismo como momento de graça e de salvação” (PASTORAL DO TURISMO, 2009, p. 18).
179 [...] Sistema de disposições duráveis e transponíveis que, integrando todas as experiências passadas, funciona
a cada momento como uma matriz de percepções, de apreciações e de ações – e torna possível a realização de
tarefas infinitamente diferenciadas, graças às transferências analógicas de esquemas [...] (BOURDIEU, 1983 p.
65)
180 Termo trabalhado por Gilberto Freyre em Casa-Grande & Senzala (1989) ao reportar o momento genético da
sociedade brasileira, no período colonial, com miscigenação do povo brasileiro, formadora da “cultura brasileira”.
181 Disponível em: < http://www.turismo.gov.br/>. Acesso em: < http://www.turismo.gov.br/>. Acesso em:
04 jun. 2017.
182 Informação disponível em: . Acesso em 10 out. 2017.
241
Antes mesmo do turismo ter sua pasta exclusiva no Estado brasileiro, quando ainda
estava atrelado aos esportes, as festas religiosas do catolicismo já faziam parte do seu arsenal
de produtos. No ano de 2000, a EMBRATUR, com apoio da Arquidiocese da cidade do Rio de
Janeiro, demarcava 50 destinos turísticos religiosos no Brasil. A justificava era a de que esses
eventos eram um dos principais motivadores de viagens no país, logo, consolida-se um catálogo
oficial denominado por “Roteiros da Fé Católica”183. Nas palavras do Ministro do Esporte
“estaremos criando empregos, melhorando a renda das pessoas e cidades que tem na fé seu
potencial turístico [...] ao mesmo tempo estamos preservando fração significativa da nossa
herança cultural e de nossa fé (JORNAL DO BRASIL, 2000, p. 44). A proposta
institucionalizou o calendário festivo do catolicismo popular em âmbito nacional, com foco nos
padroeiros das capitai; como listados em “Os caminhos da Fé”:
Festas Religiosas da Igreja Católica:
ACRE (AC) - São Sebastião do Xapuri;
ALAGOAS (AL) – Bom Jesus dos Navegantes;
AMAZONAS (AM) – Santo Antônio do Borba;
AMAPÁ (AP) – São Tiago;
BAHIA (BA) – Nossa Senhoras da Conceição da Praia;
CEARÁ (CE) – Padre Cícero;
DISTRITO FEDERAL (DF) – Divino Espírito Santo;
ESPÍRITO SANTO(ES) - Convento da Nossa senhora da Penha;
GOIÁS (GO) – Procissão do Fogaréu;
MARANHÃO (MA) – São José do Ribamar;
MATO GROSSO (MT) – São Benedito;
MATO GROSSO DO SUL (MS) – São João do Corumbá;
MINGAS GERAIS (MG) – Semana Santa, Bom Jesus de Matosinhos;
PARÁ (PA) – Círio de Nazaré;
PARANÁ (PR) – Swieconka;
PARAÍBA (PB) – São João;
PERNAMBUCO (PE) – Nosso Senhor Salvador do Mundo;
PIAUÍ (PI) – São Pedro;
RIO DE JANEIRO (RJ) – São Sebastião, Divino Espírito Santo;
RIO GRANDE DO NORTE (RN) – Nossa Senhora dos Navegantes;
RIO GRANDE DO SUL(RS) – Nossa Senhora dos Navegantes;
RONDÔNIA (RO) – São Francisco;
RORAIMA (RR) – Paixão de Cristo;
SANTA CATARINA (SC) – Madre Paulina;
SÃO PAULO (SP) – Nossa Senhora Aparecida;
SERGIPE (SE) – Nossa Senhora do Carmo;
TOCANTINS (TO) – Nossa Senhora da Natividade (JORNAL DO BRASIL, 2000,
p. 40).
As festividades religiosas do catolicismo popular vão sendo promulgadas de acordo com
os padroeiros referentes aos lugares, com datas móveis e fixas. A relação desses eventos é dada
183 Ver: MELLES, Carlos (Ministro do Esporte e Turismo). A fé no turismo. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro,
10 de setembro 2000. Revista: Roteiros da Fé, p. 44.
242
em nível local, regional e nacional, em alguns momentos intercomunicando-se nessas diferentes
escalas, como, por exemplo, o caso da festa do Divino Espírito Santo que realiza-se em todos
os Estados em um único período. Agregam-se aos padroeiros outras festividades como o Natal,
a Semana Santa e o Carnaval, que inclusive são festejos que se organizam através de um ciclo
de eventos. A seguir (Figura 28) será apresentado o mapa elaborado a partir do modelo
disponibilizado no Jornal do Brasil, com as imagens representativas dos padroeiros e a sigla
dos respectivos Estados ao qual pertencem:
Figura 28- Mapa das festas católicas no Brasil
Fonte: Mapa elaborado a partir dos Roteiros da Fé no Brasil (Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 20 set.,
2000, p. 40)
A elaboração e institucionalização desse calendário foi um marco, contudo, as
festividades continuam, em sua maioria, resumidas ao público de fieis já frequentadores desses
eventos. A questão turística e o impulsionamento desses eventos ainda são bem pontuais, tendo
como os principais roteiros: a Basílica de Nossa Senhora Aparecida, na cidade de Aparecida, o
243
maior santuário brasileiro, com espaço para receber 75 mil pessoas; a festa do Círio de Nazaré
que acontece em Belém do Pará, considerada pelos seus organizadores como uma das
festividades que mais atraem fiéis em âmbito mundial, uma média de dois milhões de pessoas
(PASTORAL DO TURISMO, 2009); a romaria em devoção ao Padre Cícero que acontece no
Juazeiro do Norte, Estado do Ceará, está entre as que reúnem um contingente significativo de
pessoas; em Nova Trento, Estado de Santa Catarina, localiza-se o Santuário da Madre Paulina,
ambiente que atrai em torno da peregrinação, após beatificado passou a receber uma média de
duas mil pessoas para a sua principal peregrinação; por fim, outro espaço que atrai milhares de
pessoas é a cidade do Brejo da Madre de Deus, no Estado de Pernambuco, o ambiente
transforma sua paisagem para se reverter em teatro ao ar livre, recebendo cerca de 500 atores
que encenam da paixão de cristo em 8 dias de apresentação (DIAS, 2003).
Mesmo com a Igreja já mantendo uma Pastoral do Turismo e fazendo parte de roteiros
no Brasil, a organização do MTUR foi estratégica para o segmento. A visibilidade das paisagens
concatenadas aos eventos festivos do catolicismo popular se ampliou, lugares de menor
significância tiveram a oportunidade de planejar e organizar melhor as festividades para
atuarem em termos de turismo. Essa possibilidade reside no incentivo à implementação da
regionalização, interiorização e segmentação da atividade turística, apoiada pelas políticas
públicas do MTUR. Sobretudo, com a proposta de diversificação de roteiros para a oferta
turística e com o lançamento do Programa de Regionalização do Turismo no ano de 2004
(BRASIL, 2004).
Composto por novenas, quermesses, procissões, cavalgadas, leilões, missas e shows
artísticos - entre outros tipos de celebrações relevantes para a intensificação das economias
locais-, os debates em torno do turismo passam a fazer parte da agenda de governantes entre
outros envolvidos com a atividade. Na 2ª edição do Fórum Nacional de Turismo Religioso
realizado na cidade de Natal/RN, promovido pela PRODEVTUR-(Produtora e Promotora de
Eventos e Turismo Religioso), foi organizado pela empresa Ideias Eventos184, evento que
ocorreu entre os dias 18 e 19 de agosto de 2016, no auditório do SEBRAE tendo como
idealizador o promotor do evento, Manoel Sidnésio; foi colocado a importância de fortalecer e
pontuar o Turismo Religioso nas várias regiões do país como fonte de desenvolvimento
econômico e cultural. Visava, ainda mais, sensibilizar os participantes da cidade do Natal e do
184 O evento contou com a apoio da Prefeitura de natal, a Emproturn, UERN (Universidade do Estado do Rio
Grande do Norte), UFRN (Universidade Federal do Rio grande do Norte), agência Viagens de Fé, Massas Jucurutu,
Bar e Restaurante Casa do Matuto e da casa de show Forró com turista
244
Estado do Rio Grande do Norte. O jornalista do Turismo religioso de São Paulo, Amadeu
Castanho185, coloca que:
Hoje é um dos segmentos mais mencionados nas mídias e redes sociais atualmente. O
segmento tem ganhado proporções que merecem uma atenção cuidadosa e uma
preparação melhor daqueles que atuam e promovem romarias. Podemos então dizer
que o segmento no país tem seu ponto principal invisível no Santuário Nacional de
Aparecida, onde recebe anualmente um pouco mais de 12 milhões de pessoas. O
ministério do turismo, juntamente com o ministério do trabalho, em uma pesquisa
realizada no ano de 2014, divulgou que o turismo religioso deixa no país anualmente
o valor de 15 bilhões de reais. Conforme o ministério do turismo, um público
aproximado de 17,7 milhões de pessoas buscam esse tipo de segmento durante o ano.
Pesquisas preliminares realizadas onde nós realizamos, com oito destinos, entre
Aparecida e Juazeiro, Canção Nova, Cachoeira Paulista, Belém do Pará, Santa Cruz,
Nova Trento, Trindade e o estado do Paraná, encontramos em torno de 25,5 milhões
por ano. Claro que neste caso incluímos todo o estado do Paraná, que hoje tem um
fluxo de 7,2 milhões por ano (informações fornecidas através da própria ANATUR).
Segundo o relatório de tendências de 2015, o turismo religioso brasileiro se destaca
como um dos maiores do setor e aponta para o crescimento deste mercado (Castanho,
2016, informação verbal)186.
Paulatinamente esses eventos vão sendo inseridos nos roteiros turísticos motivando uma
série de movimentos e transformações nos espaços. No Brasil os números recentes sobre essa
realidade são um pouco divergentes. Em relação ao número de turistas religiosos analisamos os
dados mais frequentes em artigos científicos e órgãos oficiais do tema, convergem em torno de
dezoito milhões de brasileiros, porém há dados muitos concretos em relação às quais
festividades que reúnem esses turistas e como percentualmente eles são divididos.
Das festas do catolicismo popular interligadas ao turismo, listamos nos Gráficos a seguir
as festas de maior relevância em território nacional, como se dividem em captação de pessoas
e sua importância entre outros segmentos do turismo:
185 Amadeu castanho é editor chefe no site viagens de fé. Mais informações ver .
186 Notícia fornecida, com gravada para esta pesquisa, pelo jornalista de turismo religioso Amadeu Castanho em
palestra nacional sobre o turismo que religioso, realizada na cidade de Natal, no auditório do Sebrae, no dia 18 de
agosto. O evento teve a participação do presidente da ABAV-PR, Pedro Kempe; do secretário de Turismo de Nova
Trento (SC), Eluisio Voltolini; o presidente da Associação de Guias do Circuito Turístico religioso de Aparecida
(SP) e do coordenador da Romaria dos Profissionais de Turismo, João Gilberto Oliveira. Foram inscritos 168
participantes. Entre os secretários de turismo do estado do RN, apenas dois dos secretários inscritos apareceram,
entra eles a secretária de turismo da cidade de Santa Cruz e de Patu; estava ainda entre o publico presente estavam
padres, representantes de outros segmentos religiosos, como mulçumanos, evangélicos e espíritas; professores,
técnicos de guias de turismo e estudantes.
245
Gráfico 2- Movimento do Turismo Religioso no Brasil
Fonte: Elaboração própria.
Gráfico 3- Municípios com expressão da Religiosidade e com Eventos Religiosos
Fonte: Elaboração própria.
246
Gráfico 4- Turismo Religioso
Fonte: Elaboração própria.
De uma maneira geral, os participantes do Turismo Religioso são motivados pela fé,
pelas manifestações religiosas, pela paisagem arquitetônica de igrejas, santuários, monumentos,
museus sacros, entre outras possibilidades. Uma vez que o peregrino turista é a pessoa que vai
ao encontro do local sagrado ou do seu líder religioso para cumprir uma promessa, um voto ou
manifestar sua adesão ou confirmação a uma determinada fé, esse se desloca sob a motivação
religiosa; em locais de interesses religiosos que podem ser combinados com locais para o
turismo e lazer, descanso, visitas culturais, estudos, aperfeiçoamento profissional,
oportunidades de participar da gastronomia ou de alguma oferta local colaborando nesse
aspecto com a economia local.
Mesmo indispensáveis ao turismo e ao próprio movimento de visitantes o conjunto que
envolve essa infraestrutura, incluindo os diferentes serviços prestados, nem sempre é
interpretado com bons olhos pelos fiéis, como traduz o estudioso Steil (2003, p.36-37): “a
retirada da centralidade e da profundidade do ato religioso é nocivo frente às ações dispersivas
e superficiais do turismo”. Concepção que não concordamos, uma vez que o cenário que
envolve os deslocamentos nos dias atuais, diante das suas diferentes motivações, não
necessariamente encontra no turismo a sua dispersão; mas o seu fomento. Caso que vem
ocorrendo na instituição católica, fé de maior dimensão no mercado do turismo religioso
247
nacional que com a redução do número de seus fiéis tem encontrado no turismo, com o apoio
do Estado, um instrumento estratégico de ampliação da sua visualidade; isso se dá com a
produção do espaço em prol dos seus símbolos; com a emergência de novas paisagens que
estimulam a religião; com a monumentalização dos seus ícones sagrados; ainda, com a
possibilidade de concentrar nos locais milhares de indivíduos da sua fé e até de outros credos,
a partir de toda uma mobilização impulsionada em prol de um espetáculo religioso, em grande
parte, promovido pelo poder público. O que ao contrário de dispersar, aglomera ao mesmo
tempo em que promove a expansão da fé.
Sobre os gráficos apresentados anteriormente, algumas considerações são muito
pertinentes e relevantes para a área do turismo, da religião e da sociologia, principalmente
enquanto um campo de estudo empírico. Procuramos apontar de acordo com esses gráficos
algumas informações que merecem reflexão, as quais são consideradas como relevantes para
pensar como se dá a produção dos discursos no Brasil.
A primeira informação que pode ser extraída através das análises dos gráficos está
contida na axiologia e na epistemologia da ciência na qual essa tese abrange. É a do senso
comum arraigado à religião e a falsa ideologização do imaginário popular brasileiro, em
especial sobre a região Nordeste do Brasil, a qual traz um dos menores volumes de turistas
religiosos no país. Entretanto, essa Região é pré-determinada em diversos discursos por ser
dotada de um aspecto atemporal, místico, ortodoxo e de religiosidade católica expressiva. A
concepção de local atrasado por ser perpetuador do catolicismo popular subscreve a
“nordestinice”187; todavia, em um olhar mais abrangente acaba por se mostrar como uma
mitologia no sentido barthesiano. Ou, a “feira dos mitos” que envolve a região, como reclama
Albuquerque Júnior (2013, p.31) ao sustentar que os significantes identificadores da região
resistem por meio da “plasticidade” que os cinge; da abrangência da sua “elasticidade”; do
“pouco rigor” que o envolve; mais, principalmente, pela sua capacidade de ser “funcional” em
“muitas situações e contextos”.
Uma das principais características do Brasil é a heterogeneidade, herdada do projeto de
construção da identidade nacional, quem vem na esteira da ideia da mestiçagem, contemplada
na raça, economia, cor e credo. Porém sobre esse último, engatado pelo turismo religioso,
afirma-se extremamente homogêneo e pouco receptivo ao chamado sincretismo religioso
brasileiro, pois 100% do mapa religioso do Brasil é Cristão Católico, excluindo-se qualquer
187 Ver em Albuquerque Júnior (2012, p. 32), termo utilizado pelo autor em alusão aos neologismos que surgem
como elementos importantes na caracterização do discurso mítico, como bem observado por Roland Barthes
(2003).
248
outra possibilidade de pensar a religião e mesmo contrariando o ideal de Estado Laico,
postulado na nossa Constituição de 1988, chamada de Constituição Cidadã. O que em termos
de democracia e, inclusive, criatividade é bastante limitado. Percebe-se que Debord (1997)
estava certo ao afirmar que em nosso tempo há uma preferência da imagem a coisa real, da
representação a realidade, da aparência ao ser.
Como se configura o Gráfico 1, dos 17,7 milhões de turistas religiosos do Brasil, mais
da metade deles se concentra num único local: Aparecida do Norte no Estado de São Paulo -
região sudeste do Brasil- que destaca-se por ser a Padroeira do Brasil, não por ser um evento
específico como o Círio de Nazaré em Belém do Pará, região norte do Brasil, segundo maior
evento religioso do país. Em comparação de grandezas entre as duas maiores mobilizações do
turismo religioso nacional, como pode ser observado no Gráfico 1, percebemos que o turismo
em Aparecida do Norte atrai o quíntuplo de indivíduos quando comparado ao segundo lugar,
que é o Círio de Nazaré, o que já indica uma redução significativa em termos de visitação.
O Nordeste aparece apenas na terceira posição das cinco regiões do Brasil, com o
monumento do Padre Cícero no Ceará, os outros Estados da região, incluindo o Rio Grande do
Norte, não são sequer cogitados em nível nacional e menos ainda Internacional. Isso não quer
dizer que os pequenos municípios do Brasil não possuam religiosidade, muito pelo contrário,
estudos comprovam que há muitos micro eventos religiosos que contemplam apenas os locais
e adjacências, longe de números que gerem alguma significância em termos turísticos, ou seja,
que incluem hotelaria, transporte, alimentação, outros.
Essa informação vai ao encontro do Gráfico 2, demonstrando que há poucos municípios
com calendários relevantes para o turismo religioso nacional.
No Gráfico 3, por sua vez, fica explicito que existem resistências sobre a grande
importância do Turismo Religioso e das necessidades das parcerias públicas, privadas, pois esse
turismo representa apenas 3% das possibilidades do turismo no Brasil. O Turismo Religioso
deveria refletir em conjunto com práticas sustentáveis, economicamente viáveis, socialmente
justas e ambientalmente adequadas. Todos são consumidores de bens e serviços do núcleo
receptor, adaptando-se à renda de cada um e à capacidade de consumir durante a estadia. Os
visitantes do turismo religioso, se comparado com outras formas de turismo, não são
consumidores destacados no comércio local, até porque em sua maioria são excursionistas. Suas
visitas são relacionadas com fatores e interesses específicos. Entretanto, contribuem na geração
de emprego e renda do sistema de acolhimento quando a infraestrutura local funciona com
regularidade.
249
Os locais com valores espirituais, templos religiosos (incluindo catedrais, igrejas, etc.)
também são atrativos turísticos. Na realidade, o Turismo Religioso está cada vez mais presente
no mundo contemporâneo influenciado pela globalização econômica, os avanços tecnológicos,
desregulamentações dos mercados e da sustentabilidade ambiental. O Turismo Religioso está
relacionado a todo um processo de deslocamento turístico de âmbito global que vem junto com
os elementos citados, desenvolvido antes na Europa central estende suas raias aos diferentes
espaços atravessado pelo discurso do social, da cidadania e democracia. Todavia, as metas que
pretende alcançar em proveito da pluralidade dependem de como esse turismo é inserido nos
espaços. O modo como é projetado pode contribuir na melhoria e divulgação da localidade do
destino turístico, podendo ampliar o fluxo de visitantes; motivar a valorização do local diante
do global, dar condições de reduzir as desigualdades, mesmo às cidades mais afastadas dos
grandes centros tem condições de adquirir benefícios com essa atividade uma vez que são
ligados ao dinamismo e aos processos das grandes cidades. Essa estratégia dependerá do modo
como ele é realizado, do que se escolhe priorizar e em benefício de quem. Ou seja, no turismo
religioso deve-se questionar como as diferentes religiões também podem ser inseridas, como
podem ser englobadas nesse movimento as diferentes realidades, não só se pensar no privilégio
e manutenção de poderes hegemônicos, esse é o tipo de abertura que auxilia, até mesmo, na
desconstrução de preconceitos.
É ainda pertinente colocar que os dados sobre o turismo religioso são encontrados em
materiais da Pastoral do Turismo, em jornais de circulação nacional, em matérias publicadas
no site do Ministério do Turismo elencados a coluna últimas notícias- onde a última matéria
envolvendo o tema foi de 12 de janeiro de 2015, sobre a alta das viagens motivadas pelo
segmento. Todavia, ao procurarmos os dados específicos sobre esses eventos, número de
visitantes, municípios em que ocorrem, não conseguimos encontrar. Nenhum dado sobre o
turismo religioso estava disponível para consulta. Mesmo havendo no site do MTUR um link
específico para o turismo religioso não existem informações precisas, estudos e análises sobre
essa perspectiva. Mesmo os “roteiros da fé”, implementado pela EMBRATUR não estão
contemplados na página do Ministério de Turismo. Não há caracterização dos eventos médios
e nem das pequenas festas. Mesmo com o projeto de interiorização, não há firmado ainda um
pensamento entre os agentes de turismo em âmbito municipal e estadual para tal segmento.
Aqui fica claro que nem tudo o que é exposto é o que parece ser. O turismo religioso
aparece assim como uma atividade em confluência com as diferentes relações desenvolvidas na
sociedade contemporânea, muitas por meio do espetáculo, da saturação imagética que o
desfoca, deixando longínquo o entendimento de suas relações. Entretanto, no momento em que
250
tem seu impulso direcionado por políticas de âmbito nacional e encontra no Estado seu grande
motivador, o interesse é coletivo, suas redes devem englobar a todos. Principalmente quando
os condicionamentos que o submetem atuam diretamente na esfera local impactando nas
relações entre os indivíduos e seus espaços; valorizados enquanto paisagens do turismo.
Os discursos envoltos pelo espetáculo constroem apenas expectativas que não se
concretizam de modo mais amplo. A sociedade produziu o espetáculo, a especulação, e hoje é
um dos seus principais objetos, ao mesmo tempo em que é sua organizadora, essa organização
mantém em destaque muitas contradições, irrealidades que se fazem passar por realidades.
Debord (1997) afirma que nessa lógica em que estamos imersos a realidade se inverte e é a
verdade que passa a ser o momento do falso; uma vez que vivemos no falso generalizado, um
falso que se faz passar por verdadeiro produz um mundo fetichizado, onde o sentido das coisas
escapam permanentemente.
5.3 O OLHAR DE CANINDÉ SOARES E A PAISAGEM TURÍSTICA NORDESTINO-
POTIGUAR
5.3.1 O nordeste-potiguar do litoral ao interior
As próprias transformações ocorridas no mundo do trabalho fazem parte do discurso
que tem no turismo o espetáculo; desde as que construíram o direito ao tempo livre, no qual o
turismo é engenhoso na estruturação e organização do tempo para os gozos da vida; como no
momento em que o trabalho se transforma a partir da flexibilização e fragmentação das suas
relações. Nesse o turismo assume a forma de um gerador de empregos, formais ou informais,
na corrente do empreendedorismo ou baseado na criatividade do indivíduo. São tempos
intercruzados pela compreensão do turismo em torno da sua dialética trabalho/lazer, que
projetam a atividade e constroem símbolos, imagens e paisagens - o que favorece novas
subjetividades. A visualidade que adquire é intensa e encontra um grande apelo visual nas
fotografias. Na paisagem nordestino-potiguar, Canindé Soares materializa e condensa na
fotografia as novas formas mediadas pelas políticas públicas turismo, juntamente com outras
interações sociais, em benefício a paisagem espetáculo.
As principais ações políticas na esfera do Rio Grande do Norte, balizadas pela criação
da SUTUR, SECTUR e da EMPROTURN, sinalizaram a importância da prática turística no
cenário econômico local e começou a elaborar paisagens em termos de identidade local. A crise
econômica vivenciada pelo país em 1980 colocou em nível estadual a atividade como triunfante
251
sobre a seca que desregulou as indústrias potiguares, produtoras de matérias-primas. Surgia,
portanto, o turismo como um setor terciário forte, que redireciona o foco estatal apreendendo-
o como uma atividade econômica promissora e possível em terras potiguares (DANTAS, 2007).
Paisagísticamente o turismo passa a ser o contraponto da seca.
Com apoio estatal para sua sustentação começava à corrida para munir e vender o
turismo nordestino-potiguar, considerado possuidor de recursos naturais necessários,
concomitante a outras identidades como a amabilidade potiguar, o que ratificava a ideia de
vocação estadual para o turismo. Porém mesmo com esse discurso:
O Rio Grande do Norte ainda ocupava, em meados da década de 1980, uma posição
ripícola entre os principais destinos turísticos do Nordeste – Salvador e Porto Seguro
(BA), Fortaleza (CE), Recife (PE) e Maceió (AL) – devido a fatores de deficiência
em infra-estrutura turística, em destaque a de hospedagem, somado a inexistência de
um marketing turístico estadual mais agressivo (CRUZ, 2002, p.81).
Os esforços empreendidos na década de 1980 no turismo começaram a criar um rosto
para as paisagens do espaço nordestino-potiguar. A política de mega projetos deu ênfase à
visualidade do litoral urbano sul em detrimento do centro-sul, direcionando os incentivos
iniciais para a produção do principal cartão-postal do estado, a grande duna da praia do bairro
de Ponta Negra: o Morro do Careca. As décadas seguintes abraçaram como projetos
educacionais e de qualificação profissional o marketing e a propaganda, os serviços e obras
concernentes ao turismo através de parcerias público-privadas fortalecendo cada vez mais o
discurso do turismo e legitimando-o. Há o estímulo imagético das paisagens do sol e mar em
praticamente toda a região Nordeste, também, influenciada pelas mesmas políticas e incentivos,
o que traz à tona a região do uso do tempo livre.
Após esses primeiros empreendimentos e com o turismo fortalecido como atividade
econômica viável e estratégica surgiram, em sequência, as ações mediadas pelo programa de
captação de rendas PRODETUR I e II, com ênfase na redução dos desníveis econômicos inter-
regionais, aplicando recursos e dotando de infraestruturas as áreas consideradas de expansão
turística.
Logo, organizado na esteira do MTUR, surgiu em 29 de abril de 2004, o PRT: Roteiros
do Brasil188, parte dos macroprogramas do PNT (2003-2007); (2007-2010); (2013-2016)189.
188 No ano de 2013, com a atualização do programa, em sua terceira fase, o subtítulo Roteiros do Brasil foi retirado,
uma vez que induzia o foco na execução de roteiros regionalizados, com centralidade no marketing e
mercantilização. O que retirou a atenção para a regionalização social e sustentável: meta do governo federal. Para
mais informações ver: Beni (2006); Nóbrega (2012); Lima (2017).
189 Para entender melhor o desenho institucional do Programa de Regionalização de Turismo e sua ação no estado
do Rio Grande de Norte. Ver: Lima (2017).
252
Com ele foi concluída a divisão das cinco regiões turísticas no Rio Grande do Norte; a fim de
se elaborar, com outras ações que fazem parte da plataforma do governo do Presidente Luiz
Inácio Lula da Silva, um programa de cunho inclusivo, social e sustentável; com prioridade as
circulações intranacionais - uma vez que é o turismo interno o maior gerador de renda. Unido
a isso estava a necessidade de se olhar para o interior na busca de ampliar as conquistas
econômicas e sociais da atividade. Nesse novo direcionamento as cidades próximas e integradas
ao programa devem organizar a atividade através da gestão compartilhada, com a composição
de espaços participativos em sua instância regional para “que a regionalização do turismo se dê
de modo pleno”, o que requer se “envolver e abrir espaço para todas as instâncias públicas,
privadas, terceiro setor, para o coletivo e para o individual” (BRASIL, 2007b, p. 31).
Fundado nessas bases o PRT possui uma rede de incentivos e intervenções para o seu
exercício ocorrer em termos práticos, como por exemplo, um conjunto com 13 cadernos que
abordam temáticas diferenciadas englobadas a partir de conceitos, princípios, orientações e
atuações para a materialização do PRT. Esse projeto tem como ponto comum a caracterização
e reforço da identidade regional. Seja para a intervenção de estratégias, de sensibilizações,
mobilização entre agentes, institucionalização de planos e ações ou promoções e apoios, a
identidade regional se constitui em uma marca presente que dá o movimento aos distintos
temas. Sem a marca, sem a identidade para compor o espaço, o turismo não ocorre. Entre os
cadernos citados existe um específico que trata do tema: o da Roteirização Turística. Nesse
caderno é evidenciada a constituição de roteiros turísticos como parte de um processo de
identificação, organização e integração de atrativos, serviços e infraestruturas de apoio ao
turismo.
A ideia de roteiros no turismo é caracterizada por um caminho construído a partir da
definição de um ou mais elementos que conferem identidade ao espaço para fins de promoção
e comercialização turística. O roteiro está ancorado na ideia de rota turística; um percurso
continuado construído a partir de uma identidade elaborada para o turismo ou mesmo por
intermédio de uma identidade já pré-existente que é reforçada para fins de utilização turística.
O conceito de roteirizarão em toda a primeira década de efetivação do PRT tem sido confundido
com a ideia de regionalização sustentável do turismo, o que trouxe alguns problemas para a
compreensão da organização de um trabalho conjunto e cooperativo entre os agentes do
turismo. Tanto Beni (2006) como Carneiro (2014) destacam a elaboração dos roteiros e do seu
caráter mercadológico, inclusive, desvinculados das questões locais. O que realçou a nossa
percepção para o papel do Marketing no fortalecimento ou na elaboração das identidades em
desvantagem aos aspectos plurais e democráticos.
253
5.3.2 O Roteiro do Espetáculo
Canindé Soares vem paripassu acompanhando e construindo em arquivos fotográficos
as transformações espaciais do RN com a atividade turística, elaborando a visualidade das
paisagens e acompanhando o projeto de interiorização. Pela terra, pelo mar e em tomadas aéreas
as paisagens do Rio Grande do Norte é seu tema de destaque. As fotografias que circulam em
seu site, nos folders, nas redes sociais, em panfletos de empresas aéreas e que fazem parte do
acervo da EMPROTUR se configuram como um convite para se visitar o Estado. Hoje Canindé
mantém em seu acervo um grande número de fotografias relacionadas ao turismo religioso. O
fotógrafo está presente em feiras, congressos, roteiros turísticos, inaugurações de monumentos.
Recentemente o governo do Estado, na figura da EMPROTUR, elaborou uma revista de bordo
para ser distribuída entre clientes: A “THERAPY” – nesse periódico existe mais de 15 páginas
de fotografias de Canindé e já estão incluídas as fotografias da interiorização do turismo.
Nas palavras diretora de marketing EMPROTUR:
O turismo hoje no interior do Estado é uma das nossas principais ações porque ela
está extremamente vinculada ao que delimita e ao que impõe o programa RN
sustentável190. E aonde nós estivermos, seja nacionalmente ou internacionalmente,
estamos falando do Rio Grande do Norte, as pessoas não têm noção do que é o nome
Rio Grande do Norte, as pessoas conhecem Natal, mas não esse nome: Rio Grande do
Norte. Para alguns europeus ou mesmo para alguns brasileiros não é claro o que são
esses outros municípios, realmente muitos europeus não conhecem o que é Rio
Grande do Norte mas o nome Natal sempre escutaram falar e são para essas pessoas
conhecerem o estado é que nós estamos lá trabalhando. Não estou nem falando
necessariamente de todo o interior... Nesse lado o turismo religioso é um grande
impulsionador do interior, existem muitas romarias para a Serra do Lima em Patú,
inclusive, fazem parte dos materiais que a gente trabalha existe o santuário lá e
existem romarias o ano inteiro. Mas eu sinto, que a gente começou a trabalhar o
turismo religioso, quero dizer com essa imagem do turismo religioso para o Rio
Grande do Norte a partir da Santa Rita de Cássia. Basicamente pela proximidade com
Natal, é muito fácil você ter um turista hospedado aqui em Natal, você pegá-lo e fazer
com ele um bate e volta lá em Santa Cruz. E os roteiros já existem, são vários roteiros,
já existe esse receptivo191.
A instituição na figura da sua representante entende que o turismo é uma grande
possibilidade de desenvolvimento econômico para as cidades a partir das rendas que podem
proporcionar as pessoas envolvidas. Entretanto, afirma que os projetos muitas vezes não
seguem adiante, uma vez que quando se fala em cortar verbas a primeira instância a ser
190 RN Sustentável é o Projeto Integrado de Desenvolvimento Sustentável do Rio Grande do Norte, uma fonte de
recursos que também pode ser utilizada pelo turismo a fim de implementar ações de interiorização
191 Entrevista com Diretora de Marketing da EMPROTUR, Tereza Suyane França, em 04 de março de 2017. Local:
Centro de Convenções, Natal –RN.
254
envolvida é o turismo. Outra questão que a profissional percebe é o fato de o turismo do Rio
Grande do Norte ainda não ter uma cara própria. Observamos a produção da necessidade de um
rosto e não de muitos rostos, o que seria interessante em nossa perspectiva porque a aceitação
da heterogeneidade reduz os estereótipos e pode favorecer, de modo inédito, novas formas de
reconhecimento do Estado a partir das pluralidades locais.
Um dado interessante sobre a realidade turística no Estado é relacionada às
categorizações feitas pelo MTUR, elas corroboram o cenário percebido durante o período de
quase um mês que empreendemos com viagens pelas regiões turísticas do Rio Grande d Norte
e seus principais municípios. De acordo com a categorização do desempenho de economia do
turismo no RN, oferecida pelo MTUR (2017), que inclui o local possuir infraestruturas
adequadas; ter respostas em geração de rendas e emprego; acesso a informações sobre e turismo
e a transparência dos dados; entrada e saída de turistas, coloca-se que: 53,33% dos municípios
do Estado concentram-se na categoria D, ou seja, são considerados deficientes em relação aos
quesitos especificados, sendo considerado deficiente para o turismo. Seguindo de 25,33% de
municípios que tiveram todos os requisitos zerados, nesses não existe turismo e nem
informações que possam dar qualquer direcionamento a essa atividade. 17, 33% são
considerados regulares. Somente 2, 67% dos municípios está na categoria de bom e apenas
1,33% atingiram respostas positivas em todos os quesitos - o que não quer dizer que o local tem
excelência no turismo, porém, que na média dos quesitos citados em relação ao fenômeno
atendem os requisitos básicos citados.
Em relação a capital do Estado do Rio Grande do Norte lançamos uma questão ao
quesito informação. Em pesquisa na secretaria de turismo da capital, essa ainda nem possuía
um plano de turismo, nem documentos básicos como um inventário turístico atualizado, além
de outras informações que solicitamos e não foram repassadas. Outro problema que existe
perceptível nas intenções de se organizar o turismo no estado é que tenta-se dar uma cara
governamental as implementações efetivadas e não administrativas. Ou seja, em todo o governo
o turismo aparece tendo que ter um perfil novo, um perfil do seu novo gestor público e dos seus
novos objetivos. Não existe a marca da atividade no Rio Grande do Norte, nem uma delimitação
efetiva dos seguimentos e dos agentes que se pretende envolver e colocar como beneficiários
desse desenvolvimento. O turismo reestrutura-se de acordo com cada político eleito, o que
ocorre também com as suas paisagens e com as visualidades. Nesse aspecto, a fotografia,
dependendo do seu tipo de circulação, ajuda a construir, manter e fortificar as paisagens, ou
seja, se constitui como uma estratégica para construir a subjetividade da experiência e da
representação do Rio Grande do Norte. Nas palavras da Diretora de Marketing:
255
A fotografia é de extrema importância é inviável a nossa divulgação sem a imagem
fotográfica, não é à toa que a todo instante nosso trabalho é com imagem e através
dessa imagem a gente tenta causar uma primeira sensação, se não essa sensação, pelo
mesmo essa expectativa de sensação. Aqui entra a importância das fotografias do
Canindé Soares para o turismo religioso e para o turismo de modo geral. Sabe por
quê? O Canindé Soares é a nossa principal fonte de imagens porque ele consegue
apreender o que nós desejamos, eu o conheço e penso assim. Ele responde diante do
que nós desejamos trabalhar em um plano de marketing, diante do que nós desejamos
apresentar em termos da imagem de um destino aqui para o Rio Grande do Norte, a
importância da fotografia dele para o turismo religioso é primordial. Independente do
turismo religioso, a importância da fotografia dele pra tudo, pra qualquer tipo de
turismo. Meu trabalho é o marketing e o olhar que ele escolhe, o ângulo, é o modo
dele fazer a fotografia. Isso que é muito característico de cada profissional você
consegue ver com potencialidade na fotografia do Canindé, você consegue ver
características de Canindé em uma foto; mesmo que você não saiba que a foto é dele.
Ele conseguiu essa identidade e é por isso que eu acredito que hoje ele é o profissional
ou um dos profissionais mais renomados pra fotografia religiosa, a fotografia religiosa
que ele faz tem um apelo, talvez por ele ser alguém do estado, não sei ao certo se ele
é uma pessoa do Rio Grande do Norte. Eu acredito que é, mas, se não for ele tem um
conhecimento muito forte do imaginário potiguar, do imaginário religioso, eu sinto
com as fotos dele a gente consegue sentir mais familiaridade, isso pra mim é um ponto
muito importante e totalmente diferente de quando você traz pessoas de outros lugares
para visualizar um local da mesma forma que alguém local está visualizando. Isso é
muito abstrato é uma relação muito abstrata na verdade, tem pessoas que não
conseguem enxergar a diferença, mas, você para conquistar alguém tem que ter
algumas prioridades no produto que você vai preparar. E é claro é melhor você
preparar um produto que tenha efeito. E esse produto só consegue ser preparado por
alguém que já tenha esse efeito dentro desse conhecimento local. Todas as nossas
fotos, todos os nossos trabalhos são feitos com imagem de Canindé.192
A dinamização desse segmento acarreta novos resultados e insere novas paisagens, mas,
em sua rede fortalece alguns mitos; sustenta as antigas identidades sincronizadas aos espaços
já construídos. Situação que se materializa no turismo a partir dos roteiros criados, como as
Rotas da Fé193: que além da visita a religiosidade potiguar inclui a cultura, o artesanato e a
gastronomia.
192 Idem.
193 Roteiro elaborado pelo SEBRAE/RN em parceria com o a Secretaria de Turismo como proposta as agências
que atuam no segmento do turismo religioso, no ano de 2013.
256
Figura 29- Rota da Fé
Fonte: SEBRAE/RN.
Nesse tipo de roteiro há o privilégio aos espaços festivos com motivos religiosos do
catolicismo, a fim de fomentar o turismo no interior do Estado. Durante os períodos festivos,
além dos costumeiros rituais como as novenas, missas, procissões, realizados concomitantes
aos elementos profanos próprios das festividades, a exemplo das quermesses, leilões, alvoradas,
vendas de artigos religiosos, novos atrativos são introduzidos nas paisagens: as representações
teatrais, feiras de produtos artesanais, a presença “imprescindível” dos padres cantores e de
bandas regionais, além dos encontros e seminários de cunho evangelizador. Cada região
turística, de acordo com o calendário festivo do catolicismo, tem pelo menos um evento de
proporção significativa em termos de concentração de pessoas que gira em torno do seu santo
padroeiro. No quadro abaixo listamos, com base na pesquisa de campo os eventos de cada polo
turístico de acordo com a maior captação de visitantes, sendo assim considerado de maior apelo
ao turismo.
257
Quadro 3- Calendário Festivo
CIDADE POLO FESTA
RELIGIOSA
PERÍODO DA
FESTA
SANTA CRUZ
AGRESTE/TRAÍRI SANTA RITA 13 A 22 DE
MAIO
CAICÓ
SERIDÓ SANT’ANA 22 DE JULHO A
02 DE AGOSTO
PATÚ
SERRANO NOSSA
SENHORA
DOS
IMPOSSÍVEIS
11 A 21 DE
NOVEMBRO
MOSSORÓ
COSTA BRANCA SANTA
LUZIA
03 A 13 DE
DEZEMBRO
EXTREMOZ/
CANGUARETAMA
COSTA DAS
DUNAS
OS
MARTÍRES
11 A 21 DE
NOVEMBRO
Fonte: Elaborado pela autora a partir do calendário festivos dos municípios descritos.
Essas são as festas religiosas do catolicismo popular que figuram nos discursos do
Estado como atrativos turísticos. Em meio a um processo dialético determinado pelo contexto
cultural e socioeconômico as festas são incorporadas em roteiros turísticos abandonando ou
redefinindo rituais. Por outro lado, o setor turístico ao privilegiar a religião católica e
determinados aspectos dessa cultura religiosa, provoca profundas mudanças no espaço,
justificadas a partir da “necessidade” de ampliação e diversificação das paisagens que dão
suporte a esses eventos, ainda, acabam por “legitimar” as construções de Santuários e
Complexos Turísticos Religiosos implementados nas diversas regiões do estado do Rio Grande
do Norte, cujo principal atrativo são as edificações de gigantescas estátuas relacionadas à crença
em voga. Á exemplo, a construção da estátua de Santa Rita de Cássia, medindo 50 metros de
altura, localizada na cidade de Santa Cruz (Polo Agreste/Trairí), onde foram realizadas viagens
de campo para adquirir informações sobre os impactos socioeconômicos e políticos advindos
da construção do Complexo Turístico Religioso Alto de Santa Rita. Hoje esse monumento serve
como referência para demais polos turísticos, o que motivou a cidade de Mossoró (Polo Costa
Branca) a também pensar em obra parecida para contemplar o turismo e a padroeira do
município Santa Luzia.
Se em outro momento, num passado não tão distante, as festas religiosas apresentavam-
se como restritas a um grupo específico, composto por fiéis e festeiros locais, atualmente elas
fazem parte dos programas governamentais, entram nos roteiros turísticos como mais um
atrativo de forte apelo político e econômico. Se nesse outro momento os sentidos, ações e
experiências se localizavam em uma esfera do vivido, hoje muito do que significa é organizado
258
na esfera do concebido. O percebido é, em grande medida, orientado pelo imaginário, onde está
a grande eficácia da fotografia.
Os roteiros turísticos assumem em seu percurso o âmbito do percebido e do vivido,
posteriormente, exposto nas fotografias, incumbe-se do concebido no espetáculo. Nesse
momento, o que é realidade e construção intercruzam-se intermediados pelo imaginário. Os
espaços ganham luz, sombra e cor, as experiências são supervalorizadas e concentradas. Como
ocorre nos roteiros enquadrados por Canindé Soares: nele o autor subtrai o contingente narrando
a partir da sua metáfora (BENJAMIN, 2012). Já são Roteiros legitimados a mais de uma década
o: “Conhecendo os santuários potiguares: com monsenhor Lucas” da agência de viagens
Dandara Turismo e o “Roteiro Pedagógico” da agência JoaquimTur – Turismo e Eventos,
ambos se organizam em torno do Turismo Religioso no Estado. São acompanhados pelo olhar
especial do fotojornalista que em sua prática mostra a experiência desses eventos em luz e
sombra, almeja que sua arte fique marcada e não seja efêmera nessa balburdia de imagem. A
emoção enquadrada pela imagem fotográfica operacionaliza sentidos que transformam a
percepção do real: quanto mais temporalmente distante do momento de registro, mais há a
operacionalização do que se tem como real. Esse real está amparado no conceito do espetáculo
atribuído pelo foco intenso em que se desdobram os mitos da religião, também, amarrados a
um conjunto de referências em que se debatem as identidades agrilhoadas do nordestino-
potiguar.
O esquema elaborado e apresentado no Quadro 4 visa entrever essa percepção
imagética:
259
Quadro 4- Esquema Metodológico
Fonte: Elaboração própria a partir da leitura de Didi-huberman (2003; 2010; 2013a; 2013b; 2015a;
2015b).
O esquema segue a metologia direcionada pelos modos de ver e ser olhado pela
fotografia, tal como sugere Georges Didi-Huberman. Esse autor vem questionando sistemas de
pensamentos traçados por intermédio de leituras que induzem ao fechamento das concepções
passíveis de se vir a ter sobre o objeto. Com essa finalidade o estudioso reanima conceitos já
pouco operacionais, retira o famoso “anacronismo” histórico do campo adversário e o insere
em uma arqueologia crítica com ênfase na análise da emeregência e manutenção dos símbolos
em diferentes períodos históricos.
No turismo os elementos imagéticos do passado ressurgem com nova roupagem e por
meio do espetáculo. É o que ocorre com as fotografias que publicizam as paisagens, visto que
circulam promovendo o desejo de se vivenciar e consumir o espaço. Nessa perspectiva, os
elementos compreendidos a partir de um discurso negativo passam a representar novas
possibilidades, eles surgem ornados para o consumo em prol da fruição e do lazer e se
configuram como um sintoma estabelecido pelo espetáculo, a aparição proporcionada pelo
espetáculo. Todavia, a sua aparição não está desvinculada dos elementos constituintes do
discurso que o legitimou no passado, com isso fortalecem-se os antigos mitos e esteriótipos
O molde regional do Nordeste estrutura cada uma das suas unidades federativas com a
sua identidade, o que se dá em torno do Rio Grande do Norte na imagética nordestino-potiguar.
Linha do Tempo
Potência
Epidérmica
Interações
sociais
[Políticas]
Turismo
Religioso Turism
o
Mito - Nordeste
(sintoma)
Paisage
m Fotografi
a
Imaginári
o
Mito -
Nordeste (Aura)
Enquadramento
Espetacularizado
Paisagen
s
Turística
Reprodutibilidade
Canindé Soares
Espaço Social
Imagem
Crítica
260
Os símbolos incidem direto nesses espaços confundindo e homogeinizando aspectos da cultura
local. No turismo essa construção é muito perceptível por alegorias específicas serem usadas
em vários Estados para identificá-los, é exemplo, imagens que remetem ao cangaceiro Lampião
e sua companheira Maria Bonita, representações da seca, vegetação com o cactos, são todos
reproduzidos como logomarca de restaurantes, hotéis, grupos de dança, casas de show, etc., de
modo geral são utilizados para a promoção dos ambientes sendo o grande representante do
Nordeste, o que sobrepõe um mito local a todos os Estados.
Lampião é natural do Estado de Pernambuco, nem mesmo os deslocamentos que lhe
deram fama o levou a conhecer ou a atuar em todos os Estados que concernem a região. Então
o que o legitima como representante de todos esses Estados, como se todos fossem apenas um?
São escolhas que seguem um padrão de visualidade pré-estabelecido, porém, não
necessariamente real ou favorável ao local que o toma como símbolo, uma vez que acessa um
mito rodeado por preconceitos e adjetivos pejorativos. Lampião é apenas um dos exemplos
amplificados e reproduzidos em detrimento de outras possibilidades criativas. Nesse aspecto o
mito se torna um sintoma que diante das interações sociais constroem o imaginário dos agentes
locais e acabam sendo reproduzidos em vários níveis do social.
Mitos seguem impressos e enquadrados nas imagéticas que se reproduzem e circulam
em torno da promoção da atividade turística. Canindé Soares, enquanto fotógrafo de destaque
entre os orgão oficiais do Estado atende uma demanda atual e mantém a aura dos mitos
nordestinos ligados ao processo de construção da unidade regional. Atualmente eles aparecem
em contextos outros, em uma realidade distinta, cerceados por novas subjetividades e
expectativas. Contudo, surgem de modo anacrônico nas fotografias para suprir novas
demandas, mas preservam seus sintomas.
A origem e o processo de formação dos mitos em torno da região são apagados no
turismo, o que resta é um conjunto de imagens acessadas por experts em marketing ou
publicidade, pelos gestores públicos, por agentes ligados a cultura, entre outros que elaboram a
atividade baseados na noção de identidade primeira. Para nós, observar a identidade utilizada
pelo turismo na formação dos novos espaços com as impressões que sobrevivem e ressurgem
realinhadas à sociedade e a produção do espetáculo é basilar; uma vez que essas impressões
permanecem e moldam o olhar do fotógrafo na construção do enquadramento espetacularizado.
O espetáculo tem todas as dimensões para compor a proposta de Didi-Huberman da imagem
crítica, uma imagem para além do dilema entre revelação e ocultação, tramas e ficções,
falsidade e verdade. Segundo esse autor, o foco não está na ausência e presença, mas sim nas
261
tensões e oscilações entre a presença e a ausência como um jogo dialético do visual em que o
fim encontra o início.
5.3.3 Análise: primeiros passos na rota da fé
A paisagem turística fotografada faz parte do processo econômico e social vivenciado
por meio das conexões urbanas que se retroalimentam em expectativas globais. Nela até mesmo
o catolicismo dá a ver sua renovação ao competir pelo mercado religioso com vínculo nas
interações sociais vigentes. Como veremos a seguir na experiência da Rota dos Santuários
Potiguares registradas por Canindé Soares e divulgadas em seu site de fotojornalismo194.
O referido evento tem se realizado mensalmente com saída de Natal, onde o grupo viaja
acompanhado de um líder espiritual. O seu roteiro é móvel, podendo seguir com destino ao
município de Espírito Santo/RN onde é apresentado aos visitantes à cidade e o Santuário de
Nossa Senhora da Piedade. Em direção ao Município de Passa e Fica/RN visita-se a Pedra da
Boca e o Santuário de Fátima com momentos de oração e louvor. Por volta de 11hs acontece a
parada para o almoço no restaurante do Seu Tico, local onde se degusta a galinha caipira. Às
13hs retorna-se ao itinerário em direção a cidade de Uruaçú; nesse espaço o atrativo gira em
torno da visita ao monumento dos Mártires de Uruaçú e Cunhaú e da apresentação do espetáculo
intitulado “A Caminhada dos Mártires”. Ao término da apresentação partilha-se de momentos
de oração com o conselheiro espiritual do roteiro Monsenhor Lucas. O trajeto tem destino final
na Praça de Uruaçu, contudo antes disso existe uma parada para o lanche, ocasião em que se
aprecia o Grude com Café. O grupo tem previsão de chegar em Natal, em média, às 17 horas195.
Existe, ainda, o roteiro denominado por Caminhadas eclesiásticas.
A outra possibilidade de trajeto que engloba a mesma temática é mais longa, nela os
visitantes passam o final de semana em deslocamentos. Com saída de Natal a primeira cidade
a ser visitada é Carnaúba dos Dantas, em seguida Caicó, por fim, Mossoró. A saída é às 05
horas da manhã. Em Carnaúba dos Dantas é realizada a visita no Monte do Galo e na Capela
de Nossa Senhora das Vitórias. O segundo destino é o município de Caicó, onde é realizado
uma missa com os convidados Monsenhor Lucas Batista e Pe. Freitas Campos, depois o trajeto
é a Ilha de Sant’Ana. Desse espaço os visitantes seguem após o almoço para o Hotel Thermas
194 Mais fotografias desse roteiro disponíveis em: . Acesso em: 15 jun. 2017.
195 Nesse trajeto as distancias percorridas são de: Natal/RN – Espírito Santo/RN: 72 km, em média 1h 05min;
Espírito Santo/RN – Passa e Fica/RN: 51 km, em média 45min; Passa e Fica/RN – Uruaçu/RN: 110 km, em média
1h 40min.
262
em Mossoró. No domingo à tarde ainda em Mossoró realiza-se a missa na paróquia de Santa
Luzia celebrada pelo Monsenhor Lucas com apoio do padre do local, após os envolvidos no
roteiro retornam para a capital.
Os roteiros organizados por essa agência situam-se nos projetos que envolvem o
mercado da interiorização. Apesar da proprietária nos afirmar que seu marketing é o boca a
boca e que seu foco é a religião, assim como também se subscreve o proprietário da
JoaquimTur, os agentes investem forte em promoção, isso fica claro pela própria presença de
Canindé Soares em seus eventos, além de encontrarmos esses agentes investindo na publicidade
por meio de feiras, congressos, workshops e na organização de pacotes que se estendem ao
âmbito internacional. Atuam em vários seguimentos, tais como excursões, locação de carros;
mediação para o processo de obtenção de passaportes e vistos; reserva de hotéis; cruzeiros;
compras de passagem aérea; receptivo turístico; seguro de viagem e organização de eventos.
Em termos de experiência e vivência a empresa Dandara garante a preferência do cliente
potiguar, mas compete de modo equilibrado com a JoaquimTur - ambos são bem disputados
em termos de turismo religioso. Para a análise escolhemos um dos itinerários religiosos da
Dandara, pois é a rota mais antiga que mantém sequência em sua atuação demandando maior
procura, para tanto observamos em campo o roteiro. Sobre o acervo de Canindé Soares
destinado a empresa Dandara, das 48 fotografias que o compõe escolhemos as fotografias com
maior número de acessos.
Abaixo, na Fotografia 6 com a orientação de paisagem temos os excursionistas reunidos,
antes do trajeto, em um objeto comum: a religião, o lazer e os deslocamentos. É a primeira
parada para visita e a fotografia na Igreja de São José, em Carnaúba dos Dantas. Ao vislumbrá-
la nos parece similar a outras fotografias que narram os mesmos eventos, pessoas de meia idade
ou mais em que o cenário de lazer, ordem, trabalho e instituições organizam a coesão dos
grupos. Essa é a interação social em sua dinâmica narrada a partir do autor da fotografia em que
técnica e arte dão a imagem o recorte que capta o templo em perpendicular. A busca da
harmonia entre o ISO, o obturador e o diafragma compõe a cena com a explosão da luz da
esquerda para a direita sem prejuízo aos referentes. Ao contrário a estratégia constrói as
sombras que indicam a metade do dia, por volta das nove horas da manhã, o horário sob o
controle do profissional valoriza o colorido saturado nas roupas. Entrevem a descontração
contraída nas poses e gestuais dos corpos eretos, dos sorrisos treinados, das mãos acenando e
dos olhos que não sabem para qual dispositivo mirar. O fotógrafo oficial disputa alguns olhares
com os amigos e familiares dos fotografados que disparam, ao mesmo tempo, os obturadores
263
dos seus Smartphones e, do mesmo modo, que Canindé Soares buscam o registro despojado do
tempo.
Desse tempo contemporâneo, fluído, efêmero, mas também, contínuo, concentrado e
tradicional - porque corre cronometrado pelo relógio que disciplina a fruição de cada espaço -
tudo é demarcado, até o tempo da fotografia, uma vez que o roteiro deve seguir adiante. A
dialética está presente entre a luz e a sombra, o tempo livre e organizado, o contemporâneo e o
tradicional. Os espaços e tempos se interconectam em um sintoma impresso no conjunto:
disfarçado entre o grupo, um no início e outro em direção ao meio da fotografia mantém-se
resistente, ostentado na cabeça dos organizadores do grupo o símbolo do sertão – o sintoma que
repercute sobre o espectador como o símbolo da cultura local, mediado pela crise do tempo –
mas, local da onde? –; um chapéu de couro em estilo de vaqueiro. A imagem poossui o
enquadramento que leva ao espetáculo; na roupagem multicolorida do turismo que mistura a
extravagância, a lembrança do exótico, do primitivismo, do sertão, ainda é internalizada como
se dissesse respeito a uma questão de gosto e de influências. O sintoma que resiste cria um
espaço nervoso no ambiente novo que oscila na dialética da possibilidade do espaço que ele
assassina e espetaculariza.
Fotografia 6- Parada na Igreja São José, Carnaúba dos Dantas196
Fonte:
196 Fotojornalismo Canindé Soares, do dia 26 de março de 2012. Roteiro Santuário Potiguar.
264
Não se trata aqui de pensarmos em um espaço irreal, porém a mediação do fotógrafo e
da composição dada ao seu artefato acessa todo um arsenal imagético que constrói a emoção, a
ação e as subjetividades em torno dos ícones registrados. Em relação dialógica está à Fotografia
7, onde o autor toma como espetáculo o produtor e o produto; ambos colocados em espaços
privilegiados, ou seja, nas linhas dos terços, são ícones a disposição do discurso do
enquadramento espetacularizado fotográfico; uma vez que são elementos que não estão
ingenuamente dispostos, mas constroem a unidade da imagem, chamam a atenção do olhar e
teimam em manter-se como o mito de um espaço arcaico- produtos resistentes que hoje
preenchem um mercado de bens simbólicos que oferecem artesão e escultura como tradicional
e popular. Sim, o que vemos poderia muito bem demarcar a criatividade arcaica. Contudo, o
que nos olha questiona: Como ir além dessa aura que se mantém como impressão fulgurando
resistente em sua potência epidérmica mesmo diante de novas lógicas latentes? São as palavras
de Didi–Huberman (2010, p. 31) quando propõe que “devemos fechar os olhos para ver quando
o ato de ver nos abre um vazio que nos olha, nos concerne e, em certo sentido, nos constitui.
Que espécie de vazio?” O vazio das mãos, esse pulula na imagem fotográfica.
A perda que o vazio suporta dá a agonia da imagem, ela traz a tensão que direciona a
imagem crítica. Sendo o órgão do trabalho a mão é igualmente produto dele, onde em
manipulações complexas alcança altos níveis de destreza e refinamento em suas obras. Desse
modo, “a produção não se limita apenas a oferecer um objeto material à necessidade – também
oferece uma necessidade ao objeto material” (MARX; ENGELS, 2010, p.137). Além disso, o
objeto como produto e necessidade do produtor começa a ser moderno. A escultura religiosa de
mãos amputada no registro constrói em destaque com o cavalheiro medieval e suas mãos
estratégicas que, segurando à crina do cavalo, lhe dá a firmeza para suportar sua arma a fim de
lhe garantir empenho no ataque ou na defesa transformando-se na “acrobacia anedótica” que
faz do mito um álibi (DIDI-HUBERMAN, 2015a, p. 232). O amputamento e o arcaismo das
figuras elaboradas agonizam no escritório moderno, iluminado e fluorescente. A ausência das
mãos reclama o devir criativo, habilidoso e libertador que desvia do caminho único a fim de
exercer a força construtiva da arte; sendo essa uma das maiores e mais subversivas forças que
existe para a transformação da ordem vigente. Na ausência das mãos está a liberdade da
invenção; Nas mãos ocupadas a sujeição ao status quo.
265
Fotografia 7- A escultura dos mitos197
Fonte: .
E o roteiro segue com os excursionistas organizados no ônibus para saborear os petiscos,
orar e curtir as descontrações. A Fotografia 8, por sua vez, destaca a cena da brincadeira
corriqueira entre as agências de viagem que disputam o mercado turístico no século XXI. Em
uma mirada inicial não parece haver nada de diferente, nada que possa causar comoção ou
prender a atenção. Conseguimos ver três pessoas em pé, sorrindo, cumprindo o seu papel social
no competitivo e desmantelado mercado de trabalho do mundo contemporâneo; construindo
seu espaço no embate com os outros agentes de viagens pela fatia dos clientes disponíveis a
passear pelo roteiro religioso.
Da esquerda para a direita a proprietária da agência Dandara que diz ter como meta
propiciar em seus roteiros o foco na vivência e por isso optou por trabalhar com o público da
“melhor idade”. Sorrindo e com um olhar distante está o guia de turismo orientado por
estratégias do marketing que o moldam para melhor oferecer o dinamismo de atrações do
turismo. Todos esses agentes têm aprendido a viver na insegurança eficaz para manutenção do
sistema econômico, adaptam-se as novas circunstancias e flexibilidade de seus trabalhos sem
amarras. Nos sorrisos expostos ante as vestes que os institui e lhes dão o propósito de ser um
arquivo imagético reside o sintoma e o espetáculo das suas atuações. Não há nessa fotografia
um aspecto dramático ou uma performance expressiva deveras artística. Todavia, a suposta
naturalidade aponta as fendas da incongruência e do espetáculo na hierarquia do primeiro ao
último olhar que vem da esquerda para a direita, nas posições sociais do empresário, do técnico
197 Fotojornalismo Canindé Soares, de dia 26 de março de 2012. Roteiro Santuários Potiguar.
266
e do empregado caracterizado, no que age de modo quase involuntário como um “Lampião”
que se modernizou em anedota e caricatura, figura errante agora presa nas teias do mito e na
artimanha do espetáculo.
O espetáculo mascara a nova ordem do mundo desmobilizado no trabalho. A empresária
da agência Dandara, o técnico do SEBRAE e o Guia de Turismo personificam a construção do
não-trabalho nas subjetividades que envolve a reviravolta ocorrida após os ataques aos direitos
conquistados pelos trabalhadores. A atividade favorece o sombreamento do trabalho que
organiza o tempo do não-trabalho deixando seu trabalhador à mercê como em um espetáculo.
De acordo com Sennett (1999), o mundo do trabalho vai se tornando também um valor cultural
por estar a deriva nas expectativas do longo prazo e próximo à efemeridade manifesta.
Fotografia 8- O Roteiro - Paisagens e Identidades198
Fonte:
Para finalizar esse roteiro, apresentamos a Fotografia 9 registrada na cidade de Mossoró.
Essa é uma fotografia que traz o drama, a estética, a técnica e a brincadeira dos planos que
direcionam o olhar. Captada no interior da Catedral de Santa Luzia, a imagem enquadra
esculturas simbólicas do rito católico, dois agentes e outros elementos que compõe a cena.
Nessa moldura a zona de interesse não foi dada a partir das linhas principais do terço, a
prioridade está na construção dos planos do olhar.
198Fotojornalismo Canindé Soares, de dia 24 de março de 2014. Roteiro Santuários Potiguar.
267
1º plano A: curiosamente nessa fotografia o primeiro plano confunde-se entre a pequena
estátua da santa e a cruz de madeira, um dos elementos de maior representatividade na fé
católica. Depois de algum tempo de atenção percebemos que a cruz é o maior interesse do
registro, por dois motivos: primeiro, a dinâmica da barra horizontal, com a fotografia ampliada
à barra parece saltar diante dos nossos olhos encenando uma terceira dimensão; segundo,
porque, mesmo não se configurando esteticamente o centro, o lugar privilegiado do
enquadramento fotográfico traduz a valorização do olhar ocidental majoritariamente
direcionado ao centro das coisas. No centro da fotografia estão às cruzes tomando o plano
dianteiro e o plano de fundo, elas dividem a cena ao meio dando o mesmo sentido ao início e
ao fim, ou seja, do lado esquerdo o primeiro plano se dispõe com a escultura e o indivíduo e;
no plano de fundo, do lado direito, a imagem finaliza com o indivíduo e a escultura. O símbolo
maior da fé católica centralizado estrutura a paisagem exposta. Em sequência vem o 1º plano
B: a escultura que representa a Santa Luzia, principal motivo do templo em questão, mas
hierarquicamente inferior ao símbolo maior representado pela cruz. No 2º plano encontra-se o
representante religioso da igreja católica em sua atuação de evangelização, nesse sentido a
palavra é valorizada. O representante da igreja foi fotografado no momento do seu sermão, no
discurso da homilia para os seus fiéis, ocasião em que a representação se dá no indivíduo como
mediador da doutrina divina aos presentes. No plano central encontram-se as cruzes que
retornam ao olhar como o início, o meio e o fim. De outro modo disposto, no plano de fundo
encontra-se o anjo acima do outro representante da igreja.
A mais fundamental relação dessa arquitetura imagética com as práticas
contemporâneas é a tradição. A tradição se materializa na instituição católica com seus dogmas,
com a sua ordem. A sua forma de organização conservadora e de preservação de repressões é
incorporada na forma de tradição cultural que age com maior ou menor força de acordo com as
circunstancias em que é chamada a atuar. O discurso que abraça é idealista e atua nas
consciências ao qual se dirige e “mesmo quando exige da razão uma submissão cega, o faz
falando-lhe a linguagem da razão; estratégia “de maravilhosa habilidade para tornar a tradição
invariável” (DURKHEIM, 1982, p. 118)”.
Em termos dessa religiosidade muitos potiguares se reconhecem, interpretam seu local
a partir do catolicismo como uma expressão do povo, como uma instituição marcada pelo
passado e por sua história continuada e fixa. Não é uma tendência só dos potiguares, uma grande
parcela da população nacional ao se remeter a religião católica a concebe em termos de tradição
e verdade. Mas no local a tradição católica e a hierarquia que a acompanha, aliada a outros
elementos como a saudade do passado; o domínio da terra e; dos indivíduos pela manutenção
268
da educação serviram como princípios para a reação às novas dinâmicas sociais que se deram
concomitante ao momento de construção socioespacial do recorte regional.
A tradição católica no espaço nordestino amplia-se no imaginário das cidades
favorecendo que seus ritos e mitos sejam privilegiados em manifestações artísticas, culturais e
políticas, concentrando em si as visualidades. Isso garante a manutenção de alguns privilégios
por parte da igreja, ainda, o discurso da religiosidade popular apoia a sensibilidade
conservadora. Como afirma Albuquerque Júnior (2006), a tradição, assim como os valores, se
impõe de cima para baixo como verdades validadas pelo do tempo e pela sua durabilidade.
Amarrados em um tempo do passado: a religião e a tradição compõem um espetáculo em livros,
filmes, apresentações, músicas, literatura, crenças e tudo o mais. Ainda, a junção da saudade,
da tradição e da ideia da região nordeste unificada por crenças e práticas alimenta o espetáculo
do turismo. Apesar de ambos (turismo e nordeste) serem produtos das relações contemporâneas,
legitimados praticamente em tempos paralelos ao serem unidos no espetáculo social, trazem à
tona uma distinção crucial. O turismo está fortemente amarrado à região em torno das
expectativas do futuro. Já o Nordeste se retroalimenta do turismo amalgamado às expectativas
do passado. No espetáculo que encena o turismo acredita-se que a possibilidade de futuro
construída no agora, busca no outrora a sua substância. Desse modo, Turismo e Nordeste
apresentam-se como lampejos estratégicos das relações atuais. E a fotografia que apresenta o
produto da obra humana sobreposto aos seus agentes é o sintoma dessa relação atual.
A fotografia de Canindé é a imagem dialética que mostra foco e desfoco, clareza e
embaçamento, realidades e ficções da política de turismo na construção da visualidade
paisagística nordestino-potiguar. Essa fotografia nos induz a questionar a visualidade que
construiu uma cultura dita imóvel, mesmo estando em rota, em deslocamento, em roteiros
turísticos. Ela rasga uma fenda no tradicional ao revelá-lo em cores e tons adequados para
encenar o mais novo espetáculo do turismo: o da cultura religiosa empalhada para o show.
269
Fotografia 9- Planos no olhar199
Fonte:
5.4 O ENQUADRAMENTO ESPETACULARIZADO NA PAISAGEM NORDESTINO-
POTIGUAR
As fotografias nos dão a possibilidade de ver e rever mais profundamente o que ela
representa quando colocada em modo relacional com as contingências sociais. Assim, somos
obrigados a ver aonde elas estão e o que de fato mostram. Em metáfora: as fotografias brincam,
revelam e escondem. Em suas diatribes te desafiam a entrar no jogo da esfinge e ordenam:
“decifra-me ou te devoro”. Decifrá-la é coloca-las em crise, reconstruir possibilidades de ver o
passado, aproximar-se dele diante do tempo presente e renovar suas experiências. Não decifrá-
la é se envolver na totalidade da saturação que ela indica, é jogar o seu jogo, deixar que a luz
que permite a sua escrita elaborada pelo próprio engenho humano ofusque a visão. A visão é
embassada pela ideia da generalização do segredo e não da exposição, ou realidade, isso se dá
porque na sociedade do espetáculo a realidade aparece como o lugar comum e todos adotam
acriticamente o que é realidade. O jogo da revelação e ocultação desaparece, porque parece que
tudo é revelado a qualquer momento, uma vez que ser visto passou a significar existir.
Quando ser visto significa existir, o que é impresso e se conserva em fluxos e influxos,
sobrevive sobre nova roupagem e aparece para compor um espetáculo. No turismo o quadro
199 Fotojornalismo Canindé Soares, de dia 24 de março de 2014. Padre Campos em homilia. Roteiro Santuários
Potiguar.
270
montado revela sintomas que aparecem por meio de imagens anâcronicas constituindo as
tensões do tempo presente. É o que faremos nesse subcapítulo, atentarmo-nos aos sintomas que
resistem e tornam-se espetáculos, colocando em prática a metodologia de leitura de imagens
proposta. Em seguida, as experiências do campo serão explanadas juntamente com a leitura
crítica da imagem e com a identificação do enquadramento espetacularizado pontuado na
impressão, no sintoma, no cerne do espetáculo que constrói as subjetividades espaciais em torno
do turismo.
Das fotografias retratadas por Canindé Soares nos deteremos nas paisagens do turismo
religioso no interior do Estado. São fotografias compradas pelos orgãos oficiais de turismo no
estado, como a EMPROTUR, a Secretaria de Turismo de Santa Cruz e de São Gonçalo do
Amarante; as fotografias dos livros lançados por Canindé e; as que fazem parte do seu acervo
virtual e fotojornalístico. Outrossim, foi importante observar que algumas dessas fotografias
estavam expostas em eventos, no qual estivemos presente, tais como Fórum Nacional de
Turismo Religioso – 2016; Expotur Católica I e II, Fórum de Turismo RN.
Inicialmente separamos em séries temáticas de acordo com o motivo da paisagem
festiva e a cidade, incluindo também, os santuários. A escolha desses registros não
necessariamente atendeu uma forma linear ou cronológica, mas sim a distribuição do registro
em distintos espaços de promoção turística, tais como as redes sociais. São paisagens do
santuário de Santa Rita, paisagens do Santuário do Lima, paisagens do espaço festivo da
Padroeira Santanna do Caicó, paisagens da festividade que envolve a festa da Santa Luzia
padroeira de Mossoró; e, dos novos santos do Brasil os protomartires de Cunhaú e Uruaçú.
Cada um desses eventos e espaços pertencem a um dos cinco polos turísticos do Estado do Rioo
Grande do Norte, onde o Projeto de Regionalização do Turismo (PRT) tem ocorrido. As
fotografias apresentam paisagens do catolicismo com templos e eventos de maior representação
para o local, geralmente, contíguos aos Santos Padroeiros e considerados de maior apelo ao
fomento do turismo.
No Polo Seridó o município que se destaca é o de Caicó com as paisagens de eventos
para Sant’Ana e do complexo turístico realizado em torno desse tema. O Polo Agreste/Trairí
ganha relevância com as paisagens do monumento de Santa Rita e seu complexo turístico na
cidade de Santa Cruz. Por outro lado, na região do Polo Costa Branca a cidade em evidência é
Mossoró com suas festividades do catolicismo direcionadas, em grande parte, à Padroeira Santa
Luzia. Por fim, o Polo Costas das Dunas aparece com o interesse construído recentemente para
eventos ligados aos novos elementos que foram agregados a igreja católica, os Mártires de
271
Cunhaú e Uruaçu ou Protomártires do Brasil, envolvendo duas cidades: Canguaretama e São
Gonçalo do Amarante.
A ordem dos subtítulos segue a sequência de institucionalização dos polos, o que não
tem a ver com o turismo religioso, mas com a importância que atribuída ao turismo de maneira
geral na região turística.
5.4.1 Os Mártires: um espetáculo atual
Quadro 5- Cidades da região turística do Polo Costa das Dunas
CIDADES DA REGIÃO TURÍSTICA POLO COSTA DAS DUNAS/ RN
Baia Formosa; CANGUARETAMA; Ceará-mirim; Extremoz; Macaíba;
Maxaranguape; Natal; Níseia Floresta; Parnamirim; Pedra Grande; Rio do Fogo; SÃO
GONÇALO DO AMARANTE; São Miguel do Gostoso; Senador Georgino Avelino;
Tibau do Sul; Touros.
Fonte: Brasil (2016).
O Polo Costa das Dunas surgiu a partir do Decreto nº 18.186, de 14 de Abril de 2005.
Desde a sua implementação recolhe recursos financeiros por meio de programas, convênios e
captação direta com o MTUR. Nesse polo, os anos de 2012 e 2013 apresentaram as maiores
concentrações de renda em prol do turismo, com montantes de R$ 19.671.360,00 (2012) e R$
14.231.795,40 (2013). Há maior direcionamento de investimento dessas rendas na área
litorânea na capital ou seus entornos. Com o processo de interiorização e a necessidade de
compor novos atrativos a fim de diversificar a oferta do turismo no Estado outros aspectos
começaram a ser priorizados e foram destinadas verbas para questões que envolveram o
patrimônio cultural local, tendo como um dos seus pilares a religião. A relação entre o
patrimônio cultural e o turismo está intrinsecamente atrelada às questões da identidade,
requerendo a promoção e ampliação dos símbolos. Em relação aos patrimônios organizados
através da concepção da fé católica, os santuários e os monumentos aparecem como referências
para compor o arsenal do patrimônio cultural.
Para os participantes da fé católica o Santuário é o “lugar do Espírito, onde a fidelidade
de Deus alcança e transforma a pessoa. É o lugar da Palavra, em que o Espírito convoca à fé,
onde se promove a comunhão” (PASTORAL DO TURISMO, 2009). Já para o turismo, esses
locais são possibilidades de geração de renda, a partir da expansão, requalificação e reutilização
272
de seus espaços onde são também agregados outros elementos capazes de atender um mercado
que gira em torno dos frequentadores do ambiente.
Atualmente as histórias dos mártires e santos da Igreja católica fazem parte das
atrações turísticas de muitos dos patrimônios culturais. As visitações levam à
valorização da história, mostrando a importância que a religião teve e continua tendo
para os indivíduos e a sociedade. As histórias dos santos e as concepções de santidade
que as sustentam não apenas expressam a memória e evolução de um saber religioso,
mas também apontam para questões sociais mais amplas. Entretanto, carecem de
registros e análises sociológicas suficientes para qualificá-las em sua expressão
contemporânea (PEIXOTO, 2006, p. 21).
No Estado do Rio Grande do Norte os investimentos no turismo religioso e alguns
resultados práticos motivados pelo PRT- em termos políticos, econômicos e religiosos- têm
mobilizado agentes locais que enxergam nichos de oportunidades nessa comunhão de
interesses. O Estado, a Igreja católica e os envolvidos com o turismo em parceria – essa sim
mais duradoura – buscam localizar, organizar e institucionalizar aspectos passíveis de
concentrar interesses a fim de motivar o deslocamento e o consumo de bens locais. É o que
ocorre nos municípios de São Gonçalo do Amarante e Canguaretama que, por meio da trama
histórica e religiosa, encena o passado das cidades vinculadas a massacres de católicos
ocorridos em período colonial e os transformam em ambientes para cultos e festividades
fazendo emergir novas paisagens turísticas.
Existem dois lugares de referência para o culto e o turismo em torno desses Mártires. O
monumento em homenagem aos Mártires de Uruaçu inaugurado no ano 2000, após 355 anos
do dito massacre, datado em 1645, localizado no distrito de Uruaçu, área rural de São Gonçalo
do Amarante, a 17 km de distância de Natal. Cidade que de acordo com os dados do IBGE no
último censo de 2017, conta com uma população de 101.492 habitantes. O monumento aparece
como resultado do esforço da Arquidiocese de Natal em beatificar 30 luso-brasileiros
assassinados no contexto de disputa territorial do Brasil Colônia. A beatificação ocorreu no
final da década de 1980 e com ela inicia a campanha de promoção imagética desses
personagens. O segundo lugar de referência é a capela de Nossa Senhora das Candeias, no
Engenho de Cunhaú, onde ocorreu o primeiro massacre. Esse local é situado em Canguaretama
a 77 km de Natal com 34.267 habitantes, tendo na sua entrada um monumento na Capela desde
outubro de 2009. Após a beatificação o local começa a ser palco de exibição do “morticínio de
Cunhaú” representado pelo grupo teatral de Canguaretama. Sendo assim, o evento passa a
ocorrer anualmente, nesse cenário os expectadores assumem o papel de testemunhas oculares
da ficção encenada em âmbito religioso.
273
A negociação do terreno para doação da área com vistas à construção do Monumento
dos Mártires se deu entre a Arquidiocese de Natal e a família proprietária da fazenda. A parte
cedida fica distante do cruzeiro onde ocorreu o martírio. O Monumento inaugurado em 05 de
dezembro de 2000, tornou-se um espaço de convergência para o incentivo a devoção,
favorecendo as excursões religiosas. As visitas mais constantes são as escolares, compostas por
alguns turistas interessados em conhecer essa história do massacre como parte da história do
Estado, e de pessoas que seguem a fé católica.
O investimento da Arquidiocese de Natal para canonizar os Mártires de Cunhaú e
Uruaçu, como também incentivar a sua devoção envolveu três principais polos de mobilização:
o primeiro é a Capela de Nossa Senhora das Cadeias, em Cunhaú na cidade de Canguaretama;
O segundo, Santuário dos “Bem-Aventurados Mártires de Uruaçu e Cunhaú”, localizado no
Bairro de Nazaré, zona oeste de Natal200; o terceiro, o Monumento de Uruaçu. Esses três polos
tem seu ponto de apoio na história balizada por historiadores locais como: Lyra (1921) e
Cascudo (1955). Segundo eles, de fato teria ocorrido um evento denominado por “O massacre
de Cunhaú e Uruaçú”. Nesses eventos luso-brasileiros católicos teriam sido vítimas de um
massacre orquestrado por protestantes calvinistas e barbaramente efetivado por índios Tapuias
e Potiguares.
É importante afirmar que Câmara Cascudo em sua obra demonstra clara simpatia a fé
católica, mais ainda, é fiel às posições da igreja, “quer seja em termos filosóficos, quer seja em
termos políticos” (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2003, p. 3). O mesmo acontece em relação ao
seu conterrâneo Tavares de Lyra; a sua narrativa ao se reportar aos luso-brasileiros deixa clara
a sua posição sobre os protagonistas desse fato. Suas palavras afirmam que: “compreenderam
esses mártires ter chegado o seu fim”; aqui já lhes intitula por heróis. Admite ainda que
“obedeceram com grande paciência e resignação”, ao ataque dos índios e declara que
“morreram todos na fé católica, apostólica, romana, e recusando com firmeza o ministério de
um predicante herético que se apresentou” (LYRA, 1921, p. 105). As noções de Lyra e Cascudo
fornecem toda uma cena onde está demarcado quem é o herói e quem é o bandido. Ambos
constroem uma paisagem de terror que vem marcando por décadas o imaginário potiguar, onde
o outro é o desviado dos padrões estabelecidos e interpretados como corretos, sendo
considerados corretos os valores do colonizador português. Essas são as narrativas que
constroem os espaços de simbolismo:
200 O Santuário tem a capacidade para receber 1.200 pessoas.
274
eu conheço essa história contada por minha mãe, que nasceu em 1922, e ela dizia que
escutava dos pais dela. A gente sentava no chão da casa da gente [...] quando ela dizia
que o índio pegou o Mateus Moreira e ele disse ‘louvado seja o santíssimo
sacramento’, ela dizia e se emocionava muito e eu também! Por que eu via ela se
emocionar e eu me emocionava também’ (informação verbal, 2016)201.
Hoje esses espaços aparecem como cartões-postais do turismo religioso no Estado e de
acordo com as performances culturais contemporâneas, com privilégio a versão da igreja
católica, teriam sido testemunhas de um morticínio, de um grande massacre apoiado pelos
índios tapuias e potiguares contra os luso-brasileiros. O evento com o enredar do tempo passa
a ser celebrado como um ato heroico, produtor, nos dias atuais, de uma paisagem de celebrações
e cultos dos personagens Mártires de Cunhaú e Uruaçú ou, mais recentemente, os protomártires
do Brasil.
Figura 30- O Turismo e a Terra dos Santos Mártires do Brasil202
Fonte: Fotojornalismo de Canindé Soares – acervo público (2015)
A Fotografia 10, apresentada a seguir, representa uma panorâmica área registrada por
um drone teleguiado por Canindé Soares. A imagem parece uma pintura realista, levando em
conta a saturação das cores que constroem essa paisagem; a tecnologia ultramoderna que a
imprime. A cena enquadrada representa muito bem o discurso que emerge em relação a esse
espaço, um ambiente bucólico, rural, calmo, tomado pelo símbolo cultural do colonizador
estrangeiro. Essa é uma das paisagens elaboradas nos escritos dos intelectuais filhos da elite
agrária em crise no início do século XX. Agora revela anacronicamente a paisagem nordestino-
201 Informações fornecidas pela frequentadora do local em 12 de dezembro de 2016 na visita realizada em
Uruaçu (RN).
202 Panfleto de promoção de evento católico com fotografias do Canindé Soares.
275
potiguar como sintoma da representação da vida passada, em que a região não existia, mas
posteriormente adota para si os adjetivos de arcaico e colonial.
Se não fosse alguns elementos para nos situar no período atual; como as antenas
parabólicas, os carros, o apoio de ferro para idosos ou pessoas com necessidades especiais, a
placa marrom turística com a referência a Capela Nossa Senhora das Candeias apontando que
ali é um espaço que está sendo mobilizado em torno do interesse da atividade econômica
contemporânea e o edifício verde de arquitetura funcional quase escondido atrás das palmeiras,
a imagem se revelaria como um túnel do tempo. Esse é o grande sintoma dos espaços
nordestino-potiguares que vêm à tona quando menos se espera, criando tensão por serem
renovados em um outro ambiente. Por representar o que nunca foi: uma visualidade velha de
uma construção nova; que se repete no enaltecimento de valores hegemônicos e antagoniza as
alteridades. A imagem reproduz essa ordem no sentido que dá destaque aos valores e símbolos
coloniais, as noções construídas a partir deles. A luz e a sombra são construídas com o contraste
duro, demarcado e a luz incide nos elementos da natureza, destacando-os. Também, atinge, por
sua vez, a fachada da capela medieval; o prédio mais alto do registro, de modo interessante, é
colocado pelo fotógrafo no meio da cena organizada em conexão com todos os quadrantes
resultantes da divisão da paisagem, ângulo capaz de oferecer à visão do leitor o sistema de
hierarquia que promove a manutenção da ordem vigente.
Os humanos estão à sombra, pequenos e pouco relevantes diante do templo iluminado,
perdem a noção da dimensão que tomaram as suas construções e de quem são diante delas, em
praticamente todas as suas criações são minimizados, aparecem como objeto dos seus produtos.
O apelo recente do turismo faz o que não era visto ser inserido nos roteiros coroando o modelo
que enaltece a memória do colonizador das terras, das vidas e das memórias dos primeiros
habitantes. Esse é legitimado e divinizado na história. Confundem-se os personagens. Nas
palavras de Simmel (2009) o estrangeiro por sua natureza não é proprietário do solo, sendo para
esse autor o solo, muito além do que espaço físico, mas também as relações de vivência, das
mais íntimas até as que demarcam as posições sociais. O estrangeiro é sentido precisamente
como um estranho, isto é, como outro não "proprietário do solo". O estrangeiro não é quem já
estava, mas quem vem de fora. Contudo, quem residia, a população indígena, é adjetivada com
termos como violentos, selvagens e cruéis ao lutar pela manutenção das suas terras.
As fotografias suscitam imagens que aparecem e desaparecem de acordo com a
necessidade histórica de satisfazer às relações predominantes. As celebrações organizadas em
torno dos mártires não têm nomes identificados; saem dos poucos livros especializados; dos
rituais pontuais; das histórias orais locais e penetram no estadual com vias a alcançar o regional
276
e o nacional, legitimando o local como centro de peregrinação religiosa. São divulgações em
meios de transportes, propagandas, inserção do discurso dos mártires nos rituais da igreja –
para a surpresa de muitos fiéis que ainda questionam e estranham esses nomes serem incluídos;
por exemplo, no momento de prática com os terços, em sequência a alusões comuns nesses
rituais como a Jesus e a Maria. Uma história que está sendo impregnada, gestada, em
concomitância com as relações globais que envolvem a perspectiva do turismo torna-se oficial
e constrói as novas paisagens no Estado.
No ano de 2016 os panfletos promocionais organizados pela EMPROTUR ainda não
priorizavam esses novos heróis como atrativo turístico, dando ênfase ao complexo turístico que
envolve as estruturas de apoio a estátua da Santa Rita de Cássia erguida no município de Santa
Cruz. O período que antecede a canonização desses indivíduos pelo Papa203 marcou também a
circulação intensa das suas representações, assim a fotografia entrou em sua potência
epidérmica.
Sobre a questão religiosa atrelada ao turismo podemos pensar, fazendo alusão com
Latour (2004, p. 349), que “a fala religiosa é aqui vista como um discurso transformativo antes
que informativo”. Afirmação não tão diferente a do discurso do Marketing quando pretende
antes transformar do que informar, compreendendo a transformação como inculcação de uma
mensagem e consequente naturalização desta interligada ao processo de massificação ou de
saturação imagética; criando realidades no dinamismo contemporâneo. Sobre este aspecto,
Brandão (1992), no artigo intitulado “Crença e Identidade: campo religioso e mudança
cultural” evidencia a forma universalista com a qual a Igreja Católica abriu espaços para
desenvolver a “oferta pura e simples de bens de salvação entre a fé e a magia” (BRANDÃO,
1992, p. 47), práticas “disjuntivas” próprias do “desenvolvimento histórico da sua conflituosa
relação na cultura ocidental” (PIERUCCI, 2001, p.102).
Esse é o enquadramento colonizado nos discursos fotográficos, o qual pode ser
observado na Fotografia 11, a partir da montagem. A imagem que vemos dá continuidade à
história anterior, fixa nas esculturas dos mártires e dos anjos até a porta do Santuário Chama de
Amor, edifício contemporâneo que completa o sentido da cena. A montagem nos permite
compreender que o que dá o movimento na imagem é a própria capacidade de se movimentar.
Com ela nos deslocamos da capela ao santuário. O primeiro edifício resiste ao tempo e o
203 A poucos dias aconteceu a canonização dos personagens citados acima. O Papa Francisco presidiu no dia 15 de
outubro de 2017, um domingo, na Praça São Pedro, à Canonização dos Mártires brasileiros de Cunhaú e Uruaçu:
André de Soveral, Ambrósio Francisco Ferro, Mateus Moreira e 27 companheiros envolvidos na história que narra
um massacre.
277
segundo edifício é a manobra no tempo presente, espaços de espetáculos e de fé. A fotografia
convida o expectador a percorrer o cenário do primeiro plano ao plano de fundo, até chegar na
porta em arco. O caminho começa ao vislumbrar as esculturas dos mártires, rostos frios que
pretendem despertar a emoção, faces que foram desenhadas para representar a vivência em um
campo de batalha, rostos que tentam simular a serenidade de um pacificador. Nesse espaço
adaptado pelo simbólico passar por esses rostos é caminhar até os anjos até se atravessar a porta
do santuário. Nota-se na imagem que a porta está enquadrada no plano de fundo, o
deslocamento então é o retorno, nesse vai e vem trôpego do olhar pela imagem aparece no
caminho os tempos e os contratempos. Quando o movimento ameniza a tensão aparece em
forma de sufoco. O céu azul com sua sombra superior parece agora desabar sobre todos os
elementos.
É o momento que vem à dialética das tensões não resolvidas, silencia e ruído, luz e
sombra, olímpico e demoníaco, deus e o diabo, a realidade e o mito. Por fim descobrimos que
o combate interno é o da cultura, sobrevivente nos olha e nos traz a agonia da questão: e a outra
história? Enredos oficiais, mais ponderados contam uma história sem os índios, amenizam a
sua aparição, já as histórias locais relatam índios bárbaros, cruéis e desalmados, resquícios dos
escritos de origem. A história local ao qual nos referimos é atravessada por seres humanos,
pelos seus modos de ver, ouvir e compreender.
Seja qual for a versão a população originária, eles aparecem como bárbaros,
romantizados ou reduzidos na história, os índios sobrevivem nos mitos, no folclore, na
lembrança dos seus símbolos como o arco e a flecha. Porém como a imagem que nos olha está
além do que podemos ver é latente e sobrevive na representação dos índios Tapuias e
Potiguares. O que nos olha cobra a revisão da aparição dos índios na história, requer que esses
indivíduos saiam da condição que os mantém abaixo da linha do humano; que sejam mais do
que meros coadjuvantes ao colonizador; às vezes aparecem nos romances e nas artes, onde lhes
dão uma morte heroica, mas a morte. Encarcerados, violentados, inferiorizados, minimizados,
transformados em estranhos em sua morada são apagados para o Estado e demonizados entre a
população. Sina que se repete na história dos Protomartíres entre investimentos e promoções
que vibram com o apoio do estado.
Esse é o ponto máximo da fotografia: a crítica. Ela serve para denunciar as relações
sociais da desvinculação vinculada entre o Estado e a igreja nas políticas públicas de turismo
que na manutenção e ampliação da atividade encontram a conveniência da realização de seus
interesses na recolonização favorecida pelo espetáculo. Nessa acepção está a função da imagem
dialética: propiciar a ambiguidade na tensão que submete o olhar, que exige o esforço da
278
ultrapassagem, ou mesmo da ironia (DIDI-HUBERMAN, 2015a). A operação da imagem
crítica reside em dissolver as nossas mitologias na tensão em que se estabelece entre mito;
história e sociedade. Uma vez que a razão humana não acabou com o mito, como pretendeu na
modernidade, ao contrário, lhe deu uma nova face ancorada no consumo e espetáculo.
Desenhada com os mitos a população indígena grita, deixa latente o seu extermínio, aponta a
violência social e continua a afirmar: Eu existo!
O enquadramento espetacularizado se dá como no sintoma da neurose, aparente pelo
discurso que a legitima como distúrbio, nos elementos que, presos na fotografia, legitimam o
martírio do forte através da população indígena, o distúrbio central. A crítica é efetiva quando
o que nos olha aponta para o margeamento da população indígena, favorecendo a reflexão
apoiada por teorias que pretendem abrir caminho para possibilidades criativas e inclusivas de
organizações socioespaciais. Nesse norte os estudos de Warren (2001, 2013) são precisos
quando afirmam o silêncio no qual é relegada a população indígena; afastada dos debates,
mantida como irrelevante para as questões que envolvem os diversos aspectos da inclusão
racial. Não que haja um antagonismo amplo, porém a negligência é profusa. Os índios aparecem
no imaginário como alegorias passadas. A paisagem nordestino-potiguar reforça imagens já
pré-utilizadas, lugares comuns que permeiam a ideia da região, do campo, da vida da cidade do
interior, encerrando a população indígena em um mito do passado.
Fotografia 10- Capela dos Mártires de Cunhaú com JoaquimTur204
Fonte:
204 Fotografia de autoria de Canindé Soares registrada em 20 de Fevereiro de 2017 em Canguaretama, RN.
279
Fotografia 11- As índias sem índio – o nativo se torna vil205
Fonte:
As novas paisagens são elaboradas a partir de expectativas proclamadas e na
oportunidade de ampliar o trabalho de Canindé Soares que já tem em mente fazer um registro
específico dos eventos religiosos e transformar em um livro. Segundo esse fotógrafo, seria um
livro em privilégio ao turismo religioso no Rio Grande do Norte, destacando as principais
paisagens culturais e religiosas do povo potiguar, reunindo fotografias de procissões,
espetáculos, festas religiosas, igrejas, espaços de culto, diferentes práticas e hábitos culturais de
cristãos católicos. O projeto atualmente encontra-se pronto e o fotógrafo está ansioso para atuar,
porém, no aguardo do apoio financeiro. Enquanto isso, ele segue com a sua atuação cotidiana
de repórter fotojornalista206, revelando o espaço modificado em paisagens turísticas e
construindo um acervo fotodocumentado. Dá relevo aos próprios potiguares sobre os novos
lugares que aparecem em paisagens; educa o olhar e materializa os discursos proclamados com
as políticas de turismo como provável instrumento de desenvolvimento.
Uma das características das paisagens no fotodocumentário é de ter a aspiração de
substituir o espaço real. O sentido de documentário foi conferido quando em 1926, John
Griergson o empregou para referir-se ao longa metragem Moana, do cineasta Robert Flaherty -
205 Idem.
206 Afirmação feita pelo fotojornalista em 11 de dezembro de 2014. Op. cit.
280
espécie de filme que pretendia estabelecer relação com a representação do real factual, em
contraposição às produções hollywoodianas que se popularizavam como fonte de
entretenimento. Desde então essa referência tem servido de base para a organização de
conceitos mais elaborados, como acontece, também, no âmbito da fotografia. Ainda nessa
década denominavam-se de documentário fotográfico as produções que tomavam a fotografia
como representação do real, em oposição aos registros mais artísticos (BARTOLOMEU, 1999).
Nas paisagens captadas recentemente pela lente de Canindé Soares percebemos tais
concepções. As Fotografias 12 e 13, por exemplo, descrevem um lugar que começa a se encher
de simbolismo marcado pela fé católica. A paisagem é a panorâmica feita em um helicóptero e
a aglomeração de pessoas está relacionada ao espetáculo montado para a comemoração dos 15
anos de beatificação dos: “Bem Aventurados Mártires de Cunhaú e Uruaçu”. Esse recorte já
parece um fato, mas é um espetáculo que tem seu fio condutor cortado, tendo em vista que faz
parecer que o monumento e todo o espaço paradisíaco que o circunda surgiu por já ser dotado
desse simbolismo e desses elementos de fé. Outros entrevistados como a ex-secretária de
educação da época, Tereza Oliveira, falam como nasceu o Monumento: “a ideia surgiu da
Igreja, na perspectiva de transformar os Mártires em beatos. E o governo pactuou com isso.
Não foi um desejo da comunidade e sim da Igreja” (informação verbal, 2014).
[...] o Monumento em Uruaçu foi para marcar o lugar. Em Cunhaú, já tinha um lugar
determinado, pela história mesmo. Foi na capela, que está lá, mas em Uruaçu não
tinha precisão do local [...] as inspeções do rio Uruaçu, Jundiaí, Potengi e baseado
pelos mapas não resta dúvida que foi naquele lugar (informação verbal, 2015)207.
O evento que aconteceu no Monumento dos Mártires, do distrito de Uruaçu, com
publicidade em torno do Show da cantora nacional Elba Ramalho e registro aéreo de Canindé
Soares permite distintas naturalizações que envolvem uma variedade de relações e discursos.
Desde os tons da natureza aparecem saturados na imagem enquanto elementos que a
corresponde e circunda toda a paisagem. Até se pensarmos na dicotomia homem/natureza,
através do modo como foi forjada a consciência moderna, nela há a prevalência da natureza na
imagem despertando a atenção do olhar, chamando a atenção para o espaço amplo, para uma
natureza edênica, privilegiada. Nessa lógica, é como se houvesse um recuo do homem que se
afasta do seu cotidiano, para ir ao encontro com o divino em um espaço sacralizado.
Da direita para a esquerda o olhar do espectador caminha em direção ao monumento
207 Informações fornecidas pelo Padre Antônio Murilo de Paiva, Capelão do Monumento, em entrevista
concedida em Dezembro de 2015.
281
disposto em um espaço privilegiado na cena fotográfica. Os fiéis/turistas em miniaturas
ganharam o centro da cena, parecem pequenas criaturas sendo observadas pelo seu criador, que
está em posição superior, situação privilegiada. O Fotografo ou Deus? Harvey (2005), se refere
a esse tipo de olhar como “visão de Deus da cidade”, um olhar de cima, divino e um olhar sem
corpos humanos. Esse panorama para Certeau (1994) é a representação do que realmente é a
cidade em uma espécie de simulação visual. A poucos quilômetros de distância do centro da
cidade a paisagem emerge como uma ilha no qual tudo é silêncio, desaparecem os sorrisos, as
falas, as mercadorias, os agentes de viagens; tudo e silêncio, tudo é divino.
A imagem cria uma realidade à parte do cotidiano da cidade, cria a representação do
que é esse momento, uma identidade, uma visualidade única. No instante em que o fotógrafo
capta a paisagem do espetáculo, enquanto unidade, perde-se o conjunto de singularidades.
Todavia, temos em conta que há uma mobilização estratégica de distintos setores do Estado,
juntamente com empresas privadas para promover o turismo e o interesse da igreja em mobilizar
o culto, expectativas que se coadunam no segmento do turismo religioso; assim, essa imagem
tem significados reveladores em termos sociológicos. Existe uma rede de incentivos no
consumo do espaço captado na imagem que atende a lógicas hegemônicas, como a do capital e
da fé católica. São interseções de interesses ao mesmo tempo culturais, políticos, sociais,
econômicos e religiosos tencionando e sendo tensionado pelo espaço representado, invertendo-
o e transformando-o em produto no momento em que o espetaculariza (DEBORD, 1997).
A Fotografia 13, claramente dá relevo à organização construída em prol do evento. São
as cores, as intensidades com que foram elaboradas e a vista ampla das cercanias. A imagem
coloca diante do expectador uma paisagem paradisíaca, o éden dos mártires, representações que
ao serem recortadas em paisagens passam a povoar o imaginário coletivo cristalizando relações
e situações. Canindé Soares consegue construir o espaço concebido, o espaço como obra, como
se quer que seja visto, vivido ou percebido. Contudo, a sua vivência e a sua percepção
transformam a concepção que se tem, tendo em vista que na fotografia o espaço é um produto
do turismo que na vivência dos indivíduos se amplia para o espaço de fé a partir de uma
realidade constituída no jogo de vários agentes e nos seus usos e contra-usos.
O espaço é plural, porém enquanto concebido realizado na fotografia é parte da
idealização de seus agentes, um modo que tenta afastar outras possibilidades e distanciar o
debate. Vem de cima para baixo priorizando o discurso do dominador, do capital, das luzes e
do espetáculo; motivados por estratégias políticas que privilegiam acontecimentos históricos
para torná-los, de forma planejada, em lucrativas instituições que mascaram a diversidade de
interesses do cotidiano. Ora, em nome do turismo no RN, o Estado laico promove políticas
282
públicas que fomentam a construção de santuários, edificam monumentos, patrocinam eventos
festivos religiosos, constrói paisagens em prol desses eventos, apoia a demarcação desse
específico poder, o que é restrito e não plural. Não se trata aqui de ser contra ou a favor destas
iniciativas, mas sim de pensar que os discursos que as justificam e as patrocinam, são frágeis
em seus argumentos.
O discurso que faz acreditar na existência de uma vocação turística religiosa católica no
interior desse Estado promove a construção de paisagens que emergem e materializam-se em
torno de contradições. Inclusive, porque esse discurso da vocação natural desses espaços para
a atividade acompanha um outro discurso maior que é o do turismo como elemento capaz de
trazer e acelerar o crescimento econômico do local, superar a miséria e a pobreza. Além do
discurso acerca da determinação geográfica nos aspectos sociais, daí a ideia de vocação. Na
maioria dos exemplos, o que se percebe é que a atividade ordena os espaços, que anteriormente
seriam de devoção, em prol dos interesses do capital e nas localidades beneficia pequenos
grupos, muitas vezes margeando a população (SANTOS FILHO, 2003).
Fotografia 12- Paisagem de Celebração aos Mártires de Cunhaú e Uruaçu208
Fonte:< http://www.csfotojornalismo.net/Cidades/i-rdGZdgQ>
208 Fotografia de autoria de Canindé Soares registrada em 3 de outubro de2014. Monumento aos Mártires de
Uruaçu e Cunhaú, município de São Gonçalo do Amarante/RN.
283
Fotografia 13- O paraíso dos Mártires209
Fonte:< http://www.csfotojornalismo.net/Cidades/i-7ZvwV46>
5.4.2 Santa Luzia: Um encontro com a sobrevivência das luzes
Quadro 6- Cidades da região turística do Polo Costa Branca
CIDADES DA REGIÃO TURÍSTICA POLO COSTA BRANCA/ RN
Açu, Afonso Bezerra, Areia Branca, Baraúna, Carnaúbais, Galinhos, Grossos,
Guamaré, Ipanguaçu, Itajá, Macau, Mossoró, Porto do Mangue, São Rafael. Tibau
Fonte: Brasil (2016).
As festividades da padroeira de Santa Luzia, uma das mais representativas do Estado do
Rio Grande do Norte, faz parte do Polo Costa Branca e é realizada na cidade de Mossoró -
município que contabiliza 295.619 habitantes de acordo com o censo de 2017 e está a 281 km
de distância da capital potiguar. Mossoró faz parte da Região turística do Polo Costa Branca
que surge a partir do Decreto nº 18.187, de 14 de Abril de 2005. Atualmente fazem parte do seu
escopo 15 cidades; seus de recursos financeiros são captados através de programas, convênios
e contratos de repasse.
A chamada do turismo nessa região se dá com base na cidade de Mossoró, tanto o
material organizado pela prefeitura, quanto pelo governo do Estado valorizam os aspectos
209 Fotografia de autoria de Canindé Soares registrada em 29 de outubro de 2017. Monumento aos Mártires de
Uruaçu e Cunhaú, município de São Gonçalo do Amarante/RN.
284
culturais da cidade, que de acordo com os agentes organizadores do turismo seria um tipo de
“vocação” do local. Em torno desses aspectos culturais foi construída a ideia de Mossoró
Cidade Junina tendo como ápice festivais de quadrilhas e o espetáculo Chuva de Bala no País
de Mossoró exaltando a resistência da cidade ao bando de lampião. E a Festa da Santa Luzia
realizada em dezembro com missas, novenas, leilões, apresentações musicais e culturais e
procissão. O destaque é dado para o Oratório de Santa Luzia, espetáculo teatral que conta a
história da mártir de Siracusa. A cidade conta ainda com um memorial que narra a resistência
de Mossoró ao bando do cangaceiro lampião e em suas proximidades contém uma praça de
convivência que faz parte do corredor cultural do local, com bares e restaurantes decorados com
representações do Lampião, Maria Bonita e elementos da caatinga.
Os anos de 2008 e 2013 aparecem em destaque nesse polo, tendo em vista o montante
de renda destinado ao turismo, sendo primeiro o valor de R$ 5.113.125,00 e R$ 4.631.250,00.
Essas somas corresponderam aos vários tipos de convênios feitos com alguns municípios da
região turística, sendo o último praticamente todo destinado ao município para obra de
infraestrutura urbana em uma Avenida de Pendências. Os investimentos ainda ocorrem em
âmbito de estruturas básicas. Ao percorrermos essa região turística várias questões são
observáveis, como falta de sinalização, estradas precárias, estabelecimentos de hospedagem
escassos e de qualidade questionável. De acordo com a categorização do desempenho de
economia do turismo no Rio Grande do Norte, oferecida pelo Ministério de Turismo (2017),
nessa região com 16 municípios, 9 estão na categoria D (sendo considerado deficiente em
termos de atividade turística), 2 contém seus valores complemente zerados, Guamaré e Tibau
estão na categoria C. Somente a cidade de Mossoró consegue chegar à categoria B, sendo a
segunda maior cidade do Estado em aspectos econômicos.
A religião nos últimos meses ganhou fórum de grande potencial. Nesse segmento, o
devir é a adesão ao espetáculo das estátuas gigantes, embora, ainda não concretizada, o projeto
já está adiantado. Durante as entrevistas realizadas na primeira visita ao município ficou
perceptível que já existe uma expectativa significativa da população para a construção da
estátua – a visita se deu entre os dias 10 em 13 de junho de 2015; momento em que buscamos
conhecer a cidade, caminhar nas ruas, conversar com os moradores, visitar a igreja de Santa
Luzia, os espaços da festa, também, espaços de outros cultos. Foi unânime a afirmação de que
os benefícios do turismo correlacionado a construção de uma estátua da santa seriam positivos,
até mesmo entre os evangélicos.
Entrevistado o, então, vereador Vingt-Un Rosado Maia Neto (PSB), nos afirmou que no
início do ano de 2013 a câmara dos vereadores apresentou através do parlamentar Genivan Vale
285
uma emenda aditiva ao Plano Plurianual (2014-2017) com a proposição de um estudo de
viabilidade para a construção de um complexo turístico religioso a Santa Luzia; que se
localizaria na Serra de Mossoró. A proposição ganhou o apoio do presidente da câmara,
Francisco José Lima Silveira Júnior, que pouco tempo depois, mediante afastamento judicial
de prefeito e vice-prefeito, passou a assumir a prefeitura de Mossoró dando ênfase ao projeto.
De acordo com Vingt-Un, nesse momento, os representantes locais da igreja católica não
apoiavam o projeto.
Durante outro momento da pesquisa de campo, no ano 2016 – em observação não
participante, na reunião do Polo Turístico Costa Branca, que se realizou no Hotel Costa
Atlântico, praia de Areia Branca, cidade de Mossoró –; constatamos avanços em relação às
primeiras expectativas à construção do complexo turístico religioso. Já havia sido assinado pelo
prefeito Francisco Júnior a desapropriação do terreno para organização do santuário; existia
uma comissão especial para incentivar o andamento do mesmo, composta por representantes
da diocese, da sociedade civil, do poder executivo e legislativo; projeto e maquete pronta; tudo
associado ao discurso do turismo como o futuro de Mossoró.
Na reunião citada, Renato Fernandes, nesse período secretário de turismo da cidade,
afirmou a proximidade da conclusão do aeroporto de Mossoró, concomitante, ao andamento do
projeto do complexo turístico; em seu discurso as perspectivas eram de bastante otimismo,
levando em conta que um aeroporto e um santuário parecem capazes de garantir as expectativas
de desenvolvimento econômico esperadas. Segundo esse informante, a obra física não começou
porque o IDEMA não concluiu o licenciamento do espaço para implantação da estrutura,
repassando a responsabilidade para a secretaria de meio ambiente. O objetivo é que tudo se
concretize, de acordo com o que foi projetado. Sobre a futura construção: será uma estátua de
Santa Luzia que deverá ter 80 metros de altura, superando a sua concorrente com 50 metros, o
objetivo é ser a maior estátua católica do mundo, esperam ainda a visita de 10 mil indivíduos
por dia. Depois da estátua da Santa Rita concretizada o desejo de construir estátuas de
padroeiros passou a compor, até mesmo, o arsenal de promessas para campanha eleitoral, com
certo sucesso.
Sobre a Santa Luzia em Mossoró, essa é a Padroeira do município, as suas festividades
envolvem um número significativo de pessoas. O cenário da festa é envolto pelos variados
grupos que se articulam em função dos interesses expressos na competência e nas relações de
poder, específicas de cada setor. São grupos de políticos, de empresários, de comerciantes, do
clero e dos moradores locais que vão construindo suas referências mediante os múltiplos
significados que as festas propiciam. Essas relações se dão praticamente durante todo o ano,
286
engloba reuniões, jantares, visitas para aquisição de recursos financeiros, envolvimento de
clubes locais, como o Rotary Club e seus participantes, organização de rifas, vários outros
eventos de porte menor atuam na manutenção desse evento que é a festa da padroeira. As festas
de padroeiros têm sido requalificadas não só como momento propício de evangelização e
difusão da religião católica, mas também como palco de disputas políticas entre o município e
Estado em face aos investimentos provenientes do setor turístico. As maiores festas do Rio
Grande do Norte tem a presença garantida do governador do Estado, de deputados,
parlamentares locais, até mesmo dos políticos que se situam em ambiente de representação
nacional.
Na Fotografia 14 é possível visualizar o atual governador do Estado do Rio Grande do
Norte, Robinson Faria, acompanhado pelo presidente da Câmara Municipal de Mossoró, Jório
Nogueira, caminhando entre a multidão de participantes do eventos, de fiéis e devotos de Santa
Luzia na procissão que reune o maior número de pessoas. Se trata do cortejo final, do
fechamento do evento realizado aos domingos, percorrendo quatro quilômetros de uma das
avenidas principais de Mossoró. Essa é uma das mais tradicionais festas religiosas do Estado e
leva anualmente para as ruas do município aproximadamente 100 mil romeiros. “É uma festa
contagiante. Sempre que venho me impressiono com a quantidade de fiéis nas ruas”, comentou
o governador para o fotojornalismo de Canindé Soares em 13 de Dezembro de 2015, o qual se
deslocou de Natal para Mossoró com a comitiva do governador a fim de registrar o evento. O
governador, figura central da imagem fotográfica, aparece como o mediador da construção de
esperança para as realidades difíceis e das expectativas do turismo e de acumulação capital para
o local, sobre o discurso e a tutela da Santa Luzia, são parodoxos que se esbarram mas que estão
estranhamente unidos nas relações dos dias atuais.
O cortejo religioso tem seu ponto de culminância com a chegada da imagem de Santa
Luzia à Paróquia que leva seu nome, nesse dia foi presidida pelo padre Walter Colinni. A
transformação da paisagem da cidade para atender a demanda de um evento religioso festivo,
refere-se à valorização de símbolos vinculados as experiências das formas e funções da
religiosidade de um grupo cultural. Esse espaço, como uma trama simbólica partilhada por
todos, reproduz uma visão direcionada de mundo que constrói paisagens religiosas, reflexo da
crença e da busca da sua significação (ROSENDAHL, 2007). O enquadramento dá o
siginificado do poder das instituições local na figura da Igreja e do Estado, o destaque é para o
agente de maior relevo na representação do Estado, que tem trabalhado em algumas vias,
pontuais, como já vimos, para fortificar o turismo religioso.
287
Fotografia 14- Representante do Governo do Estado e participantes da procissão210
Fonte:
Acerca da Fotografia 15 e da Fotografia 16, essas falam sobre a luz. O que temos são
dois enquadramentos, um com prioridade a luz, a mão e os símbolos de referência a santa; o
segundo fala sobre a luz e a multidão em caminhada. É um enquadramento investido de
significados simbólicos, dos detalhes culturais que envolvem a paisagem, de um construto da
imaginação que se materializa em formas, ações e subjetividades. Como coloca Benjamin
(1931) em seu texto sobre “A pequena história da fotografia” o fotógrafo procura a luz para
extrair do mundo a sua própria escuridão. E, de acordo com os vagalumes que sobrevivem essa
luz persiste em seus sentidos. Mas, diante dessa sobrevivência o que Passoline diz é que essa
tem sido uma das nossas realidades contemporâneas, “uma realidade política tão evidente que
ninguém quer vê-la” (DIDI-HUBERMAN, 2014, p. 38).
Se entendermos que a paisagem é um espaço constituído ideologicamente por
significados simbólicos e identitários; temporais e espaciais, em suma, culturais, esses
elementos captados fazem parte das elaborações socioculturais. Todo o processo tem grande
conotação no simbólico desde o pré-evento, que envolve a elaboração da propaganda até a
infraestrutura espacial, o evento e o pós-evento com as notícias, fotografias e memórias do
espaço transformado. Esses constroem e fixam imaginários que se materializam em paisagens
210 Fotografia de autoria de Canindé Soares registrada em 13 de Dezembro de 2015.
288
com suas cores, objetos, pessoas, sentidos e sentimentos que despertam nos indivíduos que
compartilham o cotidiano da mesma. A luz quente que oscila em tons entre o amarelo e o
vermelho carrega as noções da paixão de Jesus Cristo. A evidência é dada a fé, nas palavras do
fotojornalista:
Como podemos observar na fotografia de Santa Luzia em Mossoró, cenas da
religiosidade dos católicos mossorenses que em todo trecho da procissão usa
apetrechos religiosos, principalmente essas lanterninas de velas, são famílias, idosos,
jovens, crianças. Cenas muito marcantes, muito legais de ver e fotografar”
(informação verbal, 2016)211.
De acordo com o fotojornalista a expressão das pessoas e dos seus atos de fé simbolizam
o respeito, a união entre esses grupos, até mesmo um saudosismo dos seus tempos de criança
por afirmar a crença dos pais e a atuação nesses ritos de fé. Porém, Canindé Soares nota todas
as transformações, percebe as mudanças nos espaços e as sofisticações. O que lhe encanta é a
manutenção ou requalificação de alguns símbolos em um momento atual. Em sua concepção,
que não se compreende enquanto uma pessoa religiosa, a fé tem seu lugar, tem importância para
os enredos que a cidade encena, para a união dos indivíduos, para fortalecer algum tipo de
respeito e de forças. Nas palavras do governador do Estado:
Vivemos momentos de dificuldades é fato. E um dia como hoje é para a gente aliar a
fé aos desejos mais concretos de melhoras. Um dos meus pedidos é que Santa Luzia
ilumine os céus com muita chuva para nosso Alto Oeste, assim como também nas
regiões mais atingidas pela seca. Disse o governador, que ficou até o final do evento,
acompanhando de perto as celebrações religiosas, os cânticos e apresentações
artísticas do povo mossoroense (informação verbal, 2015).
Se mirarmos a luz da Fotografia 15 com as palavras de Robinson Farias, apresentadas
anteriormente, encontraremos o clichê do Nordeste, em seu discurso. A paisagem nordestino-
potiguar aliada à devoção carrega ainda o estigma da seca. A luz teria sentido, para dar forma
aos antigos mitos que estão aliados à esperança das preces do povo e das promessas. Um modo
estratégico de retirar as responsabilidades das questões sociais do plano das relações sociais e
coloca-las em outras dependências. Se essas representações por um lado abrangem indivíduos
locais e agregam símbolos na construção de suas memórias espaciais, fortalecendo as relações
de pertencimento e de coletividade; por outro lado, se prestam a inculcação de ideologias
enquanto instrumentos de hegemonia diretamente ligados às relações de poder. Ideologias essas
que são encomendadas, planejadas e produzidas servindo às finalidades concatenadas a lógica
211 Informações concedidas em entrevista com Canindé Soares em 14 de Dezembro de 2016 para fins de realização
desta pesquisa.
289
capitalista de produção/consumo de espaços, pessoas e objetos. Visualizadas direcionam a um
tipo de espetacularização cultural; de aceitação passiva, obtida pelo monopólio da visibilidade
(DEBORD, 1997). Esses eventos religiosos enquanto manifestações culturais estão
circunscritos por um conjunto de significados construídos em um processo histórico e cultural
de tensões cotidianas que estão ocultos na representação mais aparente do espaço: a paisagem.
Na Fotografia 16 são apresentadas diferentes realidades que se encontram nessa
caminhada por fé. Observamos uma pluralidade não amarrada no estereótipo de um pretenso
tipo nordestino, mas, sim rostos construídos pelas misturas que nos compõe. São pessoas
posicionadas em vida e em marcha que se encantam com a luz e a segue nesse trajeto pela fé.
As faces surgem no primeiro plano da imagem fotográfica e são faces de um grupo médio
participantes da fé católica, de pessoas belas, com roupas atuais, composto por uma mulher,
dois meninos e uma menina, formam um grupo com um tipo de emoção valorizada pela luz da
vela e a astúcia do fotógrafo. A luz compõe um tom e uma forma nesses rostos, essa é uma das
suas peculiaridades, revelar ou esconder traços; em par com a sombra ela dá a ver novos cursos,
permite a mutação e a flexibilidade do que se vê, aumenta e diminui emoções. Rostos, gestos e
pessoas vistos por luzes incandescente, amarelada, sempre aparecem diferentes entram no jogo
da iluminação, do simbolismo representado: fé, técnica, arte e espetáculo.
De acordo com a pesquisa organizada por Alves (2007) sobre o turismo religioso no
Estado do Rio Grande do Norte (RN), o crescente número de visitantes a lugares considerados
sagrados, sejam eles periféricos ou centrais, tem motivado diferentes segmentos sociais –
políticos, autoridades civis e religiosas, empresários, pesquisadores e moradores locais – a
promoverem as festas religiosas do catolicismo transformando as devoções em atrativos
turísticos que visam atender à nova ordem econômica de produção e consumo de bens materiais
e imateriais.
Compostas por uma sequência de rituais as devoções religiosas ocupam um lugar central
no cenário festivo. Via de regra são práticas que expressam agradecimentos e pedidos que giram
em torno de problemas cotidianos, sem necessariamente contar com o aparato da doutrina
oficial e que mesmo reconhecendo a legitimidade dos sacramentos, reserva sua forma peculiar
de manifestar a fé. São devoções entrecruzadas aos sacramentos trazidos pelo clero e aceitos
pelos romeiros, algumas vezes compõem-se de elementos nada afeitos à liturgia oficial. Em um
movimento dinâmico esses rituais também vão se adequando a nova lógica, construindo novas
figurabilidades.
Na Fotografia 16 é nítido que o rosto adulto feminino é carregado de valores, apresenta-
se como sério, composto de gestos organizados a fim de conduzir de modo coerente a
290
caminhada, uma escultura em movimento. O menino ao lado da mulher revela empolgação com
o que vê a sua frente, sendo organizado para lograr a fé. Mais atrás, no lado esquerdo, outro
menino, pouco mais jovem, sendo parte do grupo brincando com a luz, distrai-se com a vela e
sorri em brincadeira de criança que observa o vento na ânsia de não deixar sua luz parar de
brilhar. Quebrando a marcha católica que segue em frente com a meta de expandir o seu canto,
a sua concepção, a sua verdade e a sua fé, está à menina fora da forma, da esquerda para a
direita do observador deixa entrever a apreensão da caminhada. Todavia, ainda alheia aos
sentidos das emoções que se materializam nas faces e gestuais dos atores que encenam esse
ritual ela corta a cena e se desloca na perpendicular encantada com a luz e desorientada com o
seu sentido.
Na sequência os rostos vão se desconfigurando e tornam-se apenas parte de uma massa,
todos perdem a forma para o grande espetáculo de luzes que piscam como vagalumes
sobreviventes. Todos caminham com a esperança; em busca de cura para si ou pessoas queridas.
Alguns apenas para garantir a manutenção do que lhe satisfaz; os despossuídos de vários bens
materiais encontram na fé a alternativa para tentando se inserir mais intensamente nas relações
sociais. Todos são atraídos pela luz como se fossem mariposas em suas próprias histórias de
vida imantada na trajetória tranquila que os coloca como parte do todo iluminado no meio da
escuridão. Esses são os significados armazenados com esses símbolos (GEERTZ, 1989, p. 144)
que dão a ver conhecimentos sobre a forma do mundo e dos comportamentos diante dele.
291
Fotografia 15- Luzia Luz212
Fonte:
Fotografia 16- Santa Luzia e o caminho iluminado213
Fonte:< http://canindesoares.com/site/wp-content/gallery/santaluziaprocissao15/13122015-
_MG_5416.jpg>
Essa é uma festa de forte apelo simbólico para o município que, unida ao turismo, tem
212 Idem.
213 Idem.
292
a espetacularização como elemento de abertura para a sua futura organização. O evento festivo
de público estadual amplia-se através dos laços firmados no próprio local, a incidência do lugar
é significativa nesse arranjo por organizar as identidades em torno do evento. Todavia, a
realidade global é que dá os moldes finais em favorecimento das aglutinações; nesse ínterim
local/global estão em constante confluência. A promoção se dá em cima das possibilidades de
trabalho que giram em torno do evento, das propostas de atividades múltiplas que agregam
diferentes demandas, desde a fé até diversos tipos de lazer. O acesso mais fácil aos
deslocamentos; dos equipamentos urbanos inseridos capazes de aglomerar diferentes equipes
que atuam nos vários locais e tipos de festividades, são estruturas divulgadas que introjetam
novas práticas e modifica, em grande medida, as expectativas da igreja, ao mesmo tempo que
alimenta o seu discurso.
Em diálogo sobre a festividade e o turismo com a população local, como motoristas de
táxi, funcionários de hotéis, comerciantes e transeuntes é fácil perceber que esses atores sociais
compreendem o evento em termos de incentivo público; observam o grande número de
visitantes circulando na cidade. Todavia, apontam que a festa se dá em torno dos habitantes do
local, dos seus familiares que foram residir em outros locais, moradores de cidades próximas e
dos excursionistas que vem para vivenciar os ritos de fé. A religião e os hábitos locais apoiam
e justificam o evento remetendo a maior coesão e fortalecimento da tradição. Já o turismo faz
parte do processo de escolhas políticas e do modelo em que se deseja pensar a cidade nos moldes
globais. Sobre o turismo em si, não existe, como não existe a ritual religioso em si, as
possibilidades se sedimentam no tecido social no jogo amplo de relações de poder. Ao
fotografar o espaço de celebração, Canindé Soares não capta um cenário que por si só expressa
a realidade religiosa, festiva ou turística. Porém, o fragmento registrado significa a
representação de um espaço modificado e captado do seu ponto de vista sobre as relações
sociais e econômicas que o movimenta (BERNARDET, 2006).
5.4.3 Festa de Sant’Ana: “sofisticada criação de identidade”214
214 Utilizamos como subtítulo parte do título do artigo Nordeste: uma sofisticada criação de identidade regional,
homogeneizando o diverso, elabora pelo historiador Albuquerque Júnior (2006b) pois vai ao encontro das
perspectivas que queremos dar ênfase no espaço em questão.
293
Quadro 7- Cidades da região turística do Polo Seridó
CIDADES DA REGIÃO TURÍSTICA POLO COSTA BRANCA/ RN
Acari; Caicó; Carnaúba dos Dantas; Cerro Corá; Currais Novos; Florânia; Jucurutu;
Parelhas; Serra Negra do Norte.
Fonte: Brasil (2016).
A festa de Sant’anna é realizada no município de Caicó, cidade com 68.222 habitantes
de acordo com o censo de 2017, localiza-se a 269 km de distância de Natal, na região Turística
do Seridó. O município de Caicó é um dos municípios que tem sido apontado como de maior
relevância ao turismo, tendo como sublunar para tal concepção, além de alguns equipamentos
de infraestrutura para apoio da atividade, o atrativo cultural que é a festa da Padroeira
Sant’Anna. A representatividade da festa concomitante as expectativas da interiorização do
turismo estimulou a construção de um Complexo Turístico denominado Ilha de Sant’Ana. Esse
empreendimento foi inaugurado no ano de 2008, durante o governo Lula. Segundo informações
da Secretaria de Turismo do Rio Grande do Norte o Estado apoiou a obra investindo uma
quantia de R$ 18.000.000,00. A área de construção compreende 147 mil metros quadrados e é
utilizada para eventos como a Festa de Sant’Ana, no mês de julho.
Em relação aos investimentos no período da pesquisa de campo estava sendo realizada
obras de melhorias na infraestrutura dentro da Ilha de Santana, eram essas as adequações de
instalação de equipamento anti-pânico e acessos radiais ao ginásio da ilha orçados em R$
86.580,52, com recursos do governo do Estado. Também, a ampliação de proteção contra
descargas atmosféricas. Ainda, sobre esse ambiente, está previsto a construção de três pousadas
- cada uma dispondo de 20 unidades de hospedagem, com infraestrutura de suporte como
estacionamentos, pontes, avenidas, boxes para vendas de produtos artesanais, parques e
passarelas.
Sobre o nome Caicó o historiador e folclorista Câmara Cascudo (1955), coloca que sua
origem se deve aos índios e, dentre as várias versões, a mais aceitável é a que defende sua
gênese a partir dos termos Acauã e Cuó que servem à designação de acidentes geográficos (rio
e serra) encontrados na região. O termo Acauã pertence ao idioma tupi, enquanto Cuó é
proveniente da língua dos Tapuias e Tarairiús. Esses indígenas identificavam ainda o rio pelo
nome de "quei", o que sugere que Caicó seja uma corrutela de "Queicuó", o mesmo que rio do
Cuó. Nessa cidade localiza-se a maior festa de padroeiro do Estado. O evento tem seu ponto de
referência no Polo Seridó, região turística que passou a existir a partir do Decreto nº 18.429, de
15 de Agosto de 2005; composta por 10 munícipios listados no quadro acima.
294
Caicó, assim como as outras cidades listadas, tem os seus recursos financeiros captados
através de programas, convênios e contratos de repasse. Nesse polo os recursos alcaçaram seu
ápice no ano de 2007 e em 2013, reunindo a ordem de R$ 6.203.500,00 e no ano de 2013
captou o valor de R$ 4.745.250,00. No ano de 2007 ocorreu uma série de convênios, no
município de Caicó tem-se o valor de R$ 975.000,00 a fim de se erguer uma praça e um outro
convênio foi celebrado com o município de Currais Novos, no mesmo valor, para a construção
de um centro cultural e a requalificação de uma praça. Ainda em Currais Novos o valor de R$
2.000.000,00 foi direcionado, no ano de 2013, para a implantação do centro cultural Parque da
Pedra do Cruzeiro. Nesse mesmo ano a cidade de Jucurutu foi beneficiada com a ordem de R$
1.000.000,00 para a construção de um teatro municipal e aquisição de seus mobiliários (LIMA,
2017). Dos 10 municípios envolvidos; Carnaúba dos Dantas não atendeu nenhum requisto,
zerando na pontuação. E 7 cidades foram categorizadas pelo MTUR como deficientes, ficando
com a representação D. Dentre essas cidades, apenas Caicó foi colocada na condição de regular
com o símbolo C.
Comemorada há mais de dois séculos a Festa de Sant’Ana é realizada todos os anos em
uma das semanas do mês de julho. Durante o período que antecede a celebração os moradores,
a igreja, o comércio, o poder público local e estadual mobilizam-se a fim de criar condições e
infraestrutura para esse evento. No período festivo a população da cidade praticamente duplica
colocando em cena variados elementos que destacam uma coletividade heterogênea, não só
do ponto de vista religioso, como também do ponto de vista econômico. O signo urbano se
torna ainda mais variado para convergir em um espetáculo ornamental dinâmico e produtor de
novos efeitos imagéticos, novas figurabilidades.
Antes da abertura da festa as cidades vizinhas começam o movimento de deslocamento,
como acontece com um grupo de aproximadamente 50 pessoas, composto por homens,
mulheres, jovens e crianças conhecidos como os “Peregrinos de Currais Novos”. Esses
moradores vizinhos são auxiliados por uma estrutura que lhes garante um deslocamento com
segurança, higiene e alimentação. Caminham até a cidade de Caicó pernoitando em fazendas e
pousadas preparados para esse acontecimento. A chegada desse grupo marca o início das
comemorações que envolvem caracterizações de anjos, roupas específicas para pagar
promessas ou para apresentações, cantigas que fazem parte do ritual e valorização da banda
municipal Recreio Caicoense. São organizações que vem acontecendo, com transformações em
acordo com a demanda de momento, desde de 1908. O encerramento dessa festa se dá com os
festejos e fogos de artifícios (ALVES, 2007).
295
A dimensão da festa, as práticas religiosas e o tipo de relação que os fiéis estabelecem
com as imagens sagradas constroem a importãncia para o evento da Sant’Ana. São símbolos
que vem de uma ordem hegemônica, entretanto, encontram no junção local/global suas
possibilidades de tranformações em concordância com as manifestações religiosas do
catolicismo que passam a ser revalorizadas e propagadas pelos programas de políticas públicas
que buscam modelos condizentes com o mercado turístico. Diante desse mercado as devoções
são “reinventadas” e/ou reinterpretadas, tanto por parte daqueles que as vivenciam quanto por
grupos distintos que veêm nos rituais religiosos um espetáculo da fé. Isto é, em um tempo e
lugar onde as continuidades entre o passado e o presente são des-construídas e re-construídas
em uma variedade de formas e ritmos, as tradições também foram "inventadas" (HOBSBAWN,
1984). Ou seja, se um sintoma irrompe em um corpo, em um determinado momento histórico
como imagem, como já foi visto nas tensões temporais, também emergirá uma imagem na sua
manutenção em um sintoma-tempo (HOBSBAWN, 2015a).
Vamos a história que circunscreve o cenário da festa à Santanna, a avó do sertão. Os
eventos em torno de Sant’Ana ganharam importância através do mito de fundação da cidade
que encenam as lutas dos moradores contra a natureza considerada selvagem. Entre as
diferentes versões uma fala sobre um vaqueiro perdido em frente a um touro bravo – possuído
por Tupã – e nisso ele rogou à Sant’Ana que o protegesse do ataque do animal, a santa teria
feito por mágica o animal desaparecer e em sua homenagem o vaqueiro construiu uma capela
dedicada à sua devoção. Durante a construção uma seca acometeu o local e o vaqueiro recorreu
a Sant’Ana solicitando que ela nunca deixasse aquele poço secar, conta-se que nas secas de
1977, 1982 e 1983, momentos considerados de grande estiagem o poço continuava cheio de
água. No entorno dessa capela começou a povoação de Caicó. O interessante é que a estrutura
desse mito está presente em outras cidades que tiveram seu espaço produzido pela pecuária,
valorizando assim as encenações e relações que coadunam-se a estes espaços. Note-se que
Sant’Ana era considerada a protetora dos pastores (ALVES, 2007).
Outra versão é colocada por Dantas (2001), nela Caicó era habitada por índios ferozes
dizimados pelos colonos e a divindade desses índios teria se transformado em um touro
poderoso. Um vaqueiro perdido se vê diante desse touro e solicita a Sant’Ana o
desaparecimento do touro; em troca constrói uma capela com um poço, em um ano de seca com
a intervenção da Sant’Ana o poço de água existente continua cheio. Ainda, fala-se que em 1725,
o fundador de Caicó um português chamado Manuel de Souza Forte mandou construir uma
capela para Sant’Ana a fim de obter como graça água para a criação de seu gado. Como se
percebe atribui-se a Sant’Ana o poder de conceder ao Caiacoense a condição de lidar com o
296
problema que limitaria a sua existência e conseqüentemente lhe aflige que é o problema da
estiagem (ALVES, 2007). Os mitos colocam nas entrelinhas como problema do Caicoense a
questão do colonizador agricultor, nisso recorre aos seus símbolos para obter a ajuda; Sant’Ana
canaliza esses elementos que legitimam a entrada dos colonos através do domínio da natureza
e favorece a organização da cidade. Um vez que esse tipo de culto vem da Espanha e de Portugal
se espalha em território brasileiro por intermédio da colonização. Tem em seu ápice a
valorização da família com a crença apoiada na mãe e na avó de Jesus Cristo.
Enquanto expressão da tradição católica a Festa de Sant’Ana adquiriu as suas
transformações e agregou traços das práticas locais. Em seu processo percebe-se a mudança nas
práticas religiosas, entra em cena a presença de um “capital” religioso coletivamente possuído
com transformações no curso do tempo e de acordo com os espaços inseridos (Bourdieu, 1996).
Em um contexto outro os imaginários se libertam, coadunam-se as lógicas atuais e promovem
a manutenção do discurso como ferramenta estratégica da memória do lugar. A memória
comum aos membros de um grupo se expande para outros grupos e a festividade que gira em
torno dessa crença responde não somente a uma demanda inerente aos produtores do sagrado,
como também, a todos aqueles que se apropriam de seus espaços para reproduzir, sistematizar
e legitimar a religião dentro de um contexto político cultural e socioeconômico.
Para os moradores de Caicó a festividade dá sentido a ideia de lugar como referênciado
por Marc Augé (1994). Os moradores percebem-se como culturalmente privilegiados e
diferenciados das outras cidades do estado. Colocam-se como:
Um povo que, segundo seus próprios depoimentos, sobrevive às condições ambientais
adversas, é forte, corajoso, desbravador, empreendedor, inteligente e muito criativo.
Ser de Caicó é como portar uma ‘grife’, uma marca especial, que se estende ainda aos
produtos que ali são produzidos como símbolo de qualidade e de merecimento da
preferência dos consumidores (ALVES, 2007, p. 11).
Ainda se subentendem como hospitaleiros, os moradores representam o que Derridá
(2002) denomina “hospitalidade incondicional”, aquela que independente da origem e da
identidade do outro pressupõe sua aceitação como um semelhante. Essas são concepções ao
mesmo tempo em que colocam em si valores comporta a sua própria contradição. Como coloca
Didi-Huberman (2010) é estar entre um diante e um dentro.
Em Caicó o Arco do Triunfo, um dos cartões-postais da cidade no presente (destacado
na Fotografia 17), é um espetáculo da história. Como é possível observar, a Fotografia 17 é
animada pelo símbolo que auxilia na estrutura do valor do evento religioso local, a paisagem
faz parte das performances que envolve as celebrações e inscrevem-se no cotidiano dos
297
indivíduos locais; apresenta o monumento em formato de arco, com 16 metros de altura e 8
metros de largura localizado em frente a Catedral de Santana, o qual serve como homenagem a
imagem da Nossa Senhora de Fátima peregrina que passou pela cidade de Caicó.
O Arco do Triunfo é uma passagem, um arco rodeado por palmeiras imperiais que
representam um portal, outras árvores que enfeitam e deixam a passagem a vista, juntamente,
com a escultura réplica da imagem de Nossa Senhora de Fátima que circulava como peregrina
nas cidades, ela é envolta por uma aura com dezenas de lampadas na parte central da imagem
e no ambiente mais elavado. Essa é a porta de passagem em Caicó, um local, do modo como
coloca Didi-huberman (2010, p. 236) de abertura, mas de abertura condicional, já ameaçado
por vários discursos que teimam em entrar. É também um traço tradicional, arcaico e religioso
que registra a presença de uma sociabilidade festiva fundada em valores coloniais. O sentido
da passagem na maioria das vezes encenado por uma porta, faz parte do nosso arsenal imagético
cristão. As passagens estão presentes nos discursos bíblicos e poéticos que narram as portas que
se fecham na dor, também, em arrependimentos, em assombos divinos; mas, são possíveis de
se abrir condicionadas por reinvenções e criatividades na continuidade das memórias
descontínuas.
As atividades que ocorrem nesse espaço são dotadas de sentidos, como coloca Certeau
(1994), em analogia com as práticas dos indivíduos que a significa em sua dinâmica onde a
hospitalidade e a generosidade agregada são apreendidas nos dias atuais pelo turismo.
Conforme destaca Cavignac e Alves (2007) Caicó tem um discurso identitário em termos de
coletividade que o coloca enquanto dotado de hospitalidade e abertura ao outro. A aceitação do
outro e de si, tal qual é colocado nos convida a passar pelo arco, pela porta da história das
identidades que petrificam e acumulam os espaços de símbolos e objetos esculpidos, como esses
arcos, para nunca transformarem-se em um outro, para esconder as diferenças e a estratificações
criando um cenário ficcional homogêneo. A festa é um espaço de disputa social, de disputa de
olhares, até mesmo de embate entre os jovens pelos melhores espaços da praça pública, dos
termos que definem e separam os participantes do evento, como os “cú doces” para as classes
mais abastadas e os “mundiças” para as pessoas com menor condições financeiras. É ainda um
espaço de disputa política, onde grupos organizam as suas estratégias e demarcam os seus
territórios.
Não é homogêneo para o que está interno e nem para o que chega. As identidades que
se formam nesse ambiente são originárias de um olhar de cima para baixo funcionando diante
dos seus elementos indispensáveis. É o olhar organizado pelas regras do ver e do dizer que leva
ao símbolo da religiosidade como o expoente maior, como o que vem após a porta. Nessa
298
fotografia o que vem dentro observa-se adiante, são os modos de ver consegrados pelo
tradicional. Como Durval (2006a, 2006b) enfatiza, nas raias da seca se formula, também, a idéia
de um Nordeste de cultura única e própria que tradicionaliza os ritos e os coloca como genuínos
ao local, como se a própria tradicionalização dos costumes já não fosse também uma elaboração
das interações sociais. A própria religiosidade que coloca as relações dos fiéis com a padroeira
como genuínas ao local, parte da elaboração do que é escolhido para ser considerado como
genuíno ou não. Nesse caso, ainda devemos levar em conta que a religão em questão e seus
arquétipos são parte de um processo de colonização e mascaramento de outras possibilidades.
Nas relações sociais o que é genuíno é o que foi inventado e formalizado.
Essa passagem encaminha a igreja, leva o visitante a padroeira que guardaria a história
da cidade, os motivos da sua construção e o seu sentido, deixando em relevo a ideologia do
dominador. É uma entrada que direciona a um contexto rural, religioso, tratado como
tradicional, marcado pela coragem, resistência e valentia de seus homens. Uma relação social
construída e favorecida em sua manutenção por meio da elite local. Ver e entender esses espaços
como parte de uma cultura genuína do povo, poderia ser apenas uma visão romântica, mas
também reforça, mesmo que não seja de maneira intencional, ideologias dominantes.
Fotografia 17- A passagem para Sant’Anna do Caicó215
Fonte: < http://www.csfotojornalismo.net/Cidades/i-Z4qRTQf >
215 Fotografia de autoria de Canindé Soares registrada em de 25 de julho de 2014. Igreja e Cunhaú, município de
São Gonçalo do Amarante/RN.
299
A Fotografia 18, por sua vez, revela um momento da Feirinha de Sant’Ana de Caicó,
enquadramento de ambiência concorrida e popularizada, com cadeiras plásticas, pessoas
vestidas com trajes mais despojados em acordo com o lugar simples e festivo. A “feirinha”
aparece marcando a identidade como mais um mito da região, nesse período festivo destaca-se
como um espaço lúdico. Ao circularmos o olhar por todo o quadro, a impressão que se tem é a
dos balbucios, gargalhadas, do zum-zum-zum, do calor, suor que emana das pessoas que
circulam comprando, vendendo e se socializando. É um espaço apertado e confuso, que ao
mesmo tempo em que desperta o desejo e a curiosidade de se fazer parte, pode dar agonia pois
indica que o local já está lotado. A feirinha de Sant’Ana do Caicó, é um local onde centenas de
pessoas se encontram: visitantes, turistas, vagabundos, residentes e figuras populares no cenário
político, social e religioso do Estado. A feira atua como uma metáfora, tal qual Albuquerque
Júnior (2013) coloca em seu texto, em que analisa como o processo de fabricação do folclore e
da cultura popular para o Nordeste emerge a partir de mensagens, de sistemas de comunicação,
de discursos produzidos através das relações sociais, temporalmente e espacialmente
localizadas. Nessa metáfora representa o espaço do artesanato, das coisas misturadas, do
arcaico, do comércio antigo como parte da cidadezinha rural do interior.
A imagem nordestino-potiguar está atrelada ao arsenal imagético que constrói a cultura
popular e artesanal, dita autêntica e folclórica pertencente ao Nordeste. Entre as visualidades
que dão forma a essa região, para Albuquerque Júnior (2013), a feira é um local estratégico
para se pensar os discursos em torno do Nordeste - uma vez que é um ambiente que aparece no
Brasil no período colonial; encena as primeiras manifestações comerciais, ainda um espaço
onde ocorriam vários tipos de sociabilidades no período colonial. A feira está presente em
grande diversidade de lugares, faz parte da cultura ocidental, organiza-se também nos ambientes
mais desenvolvidos. Porém, na paisagem nordestino-potiguar ela surge com um sintoma do
espaço interpretado e legitimado pela ciência, pela literatura, pela música, teatro e cinema, entre
outras produções culturais, como agora o turismo que reinterpreta essa realidade fazendo dela
um cenário mágico e atrativo.
A feira de Caicó aparece no enquadramento de Canindé Soares, como uma paisagem
representante da festividade da padroeira do interior, paisagem que embora diferenciada,
rodeada das sociabilidades contemporâneas, inclusive da multidão, da aglomeração de pessoas
no mesmo ambiente, é um discurso que resiste e sobrevive como marca do local. O lócus
privilegiado das muitas formas e significados elaborados sobre a cultura nordestina: o espaço
do artesanal, do folclórico, da alegoria, etc. Um espaço que amplia conforme as novas relações
300
sociais que passam a priorizar a identidade empalhada para ser divulgada e promovida no
turismo. A feira é um local de estratégias políticas e sociais, e acabou sendo apontada em 2014
como a mais prestigiada, dos últimos 20 anos, principalmente, nesse ano em que a imagem foi
captada- por ser um ano eleitoral onde os políticos candidatos a cargos eletivos aproveitam para
aparecer e conquistar eleitores, como aparece nas Fotografias 19 e 20.
A extensa programação reúne milhares de pessoas nos festejos da padroeira da cidade
de Caicó no entorno da Catedral de Sant’Ana para se confraternizar, se mostrar. São pessoas
que encontram nesses espaços a sua satisfação, a estratégia e oportunidades procuradas em um
cenário mercantil, de aparências que se reproduzem em uma encenação entre personagens que
procuram a visibilidade.
Em consonância de evidências, na Fotografia 20 os personagens aparecem com a
singularidade do ano eleitoral; bastam poucos minutos em ambiente público para cristalizarem
a presença. Circulam em cada ambiente da festa, entre abraços, sorrisos em uma simpatia
referente ao mundo do espetáculo, onde tudo parece ser; partidos políticos se transformam em
cores, os personagens da elite política marcam o registro de sua ida até o povo, até o ambiente
interpretado como popular. Nessa fotografia observamos indivíduos da oligarquia pertencente
à família Alves, que concentram o poder político e comunicacional no Estado: Garibaldi Alves
no lado esquerdo da fotografia, que no momento era Ministro da Previdência Social no governo
da Dilma Rousseff; no outro extremo, ao lado direito Henrique Alves, então candidato a
governador do estado, após derrota foi agraciado com o cargo de Ministro do Turismo. Ambos
os sujeitos possuem grande influência na política local, reúnem apoios e desafetos. Entretanto,
atualmente, também estão envolvidos em escândalos e corrupções. No momento do clique
marcam a presença entre os “bacuraus” – apelido colocado em seus eleitores –. Os sorrisos
treinados e a disposição escolhida dá centralidade a um dos mais novos membros do clã que
começa a barganhar a atuação direta no cenário político local.
Na Fotografia 21, por sua vez, é apresentado o grupo de políticos composto por figuras
que marcam oposição aos supracitados. O candidato a governador Robinson Faria, que
atualmente representa o Estado do RN e no momento aparece entre seu grupo de eleitores
denominados por “araras”. Mesmo marcando uma oposição ao grupo anterior se unem em
interesses em concepções e fazem parte da oligarquia que centraliza o poder estadual. Esse é o
sintoma-tempo que aparece na fotografia em questão, o espetáculo do tempo outro; das
oligarquias, dos apadrinhamentos que giram em torno da manutenção de poderes e valores em
um cenário fugídio, fragmentado, onde convivem distintos valores na feira que não mais os
suportam. Mesmo que a feira nessa paisagem seja gestada por seu valor agregado a concepção
301
colonial e religiosa, ela é um ambiente transformado, nada igual ou com sociabilidades
similares a do passado, modificada faz parte do espetáculo atual e global, mesmo que chame
uma identidade local pretérita.
A partir das práticas desses grupos e de seus movimentos, também surpreendidos por
transformações e embates internos sua ideologia dominante, surge o espetáculo enquadrado na
imagem que transforma os signos legitimando-os a partir das representações visuais que mais
circulam na nossa sociedade: a fotografia.
E sem dúvida o nosso tempo prefere a imagem à coisa, a cópia ao original, a
representação à realidade, a aparência ao ser. Ele considera que a ilusão é sagrada,
e a verdade é profana. E mais: a seus olhos o sagrado aumenta à medida que a verdade
decresce e a ilusão cresce, a tal ponto que, para ele, o cúmulo da ilusão fica sendo
o cúmulo do sagrado (DEBORD, 1997, p. 13).
Fotografia 18- Feirinha de Famosos e Anônimos216
Fonte:
216 Fotografia de autoria de Canindé Soares registrada em 25 de julho de 2014 durante a feirinha da Festa de
Santana do Caicó.
302
Fotografia 19- Festa de Sant’ Anna do Caicó – espetáculo da oligarquia verde217
Fonte:
Fotografia 20- Festa de Sant’Anna do Caicó – espetáculo em vermelho218
Fonte:
217 Idem.
218 Idem.
303
5.4.4 Santuário do Lima: um ponto turístico?
Quadro 8- Cidades da região turística do Polo Serrano
CIDADES DA REGIÃO TURÍSTICA POLO SERRANO/ RN
Alexandria; Apodi; Carnaúbas; Encanto; Felipe Guerra; Frutuoso Gomes; Janduís; José
da Penha; Lucrécia; Luís Gomes; Major Sales; Marcelino Vieira; Martins; PATU; Pau
dos Ferros; Portalegre; Riacho da Cruz; São Miguel; Serrinha dos Pintos; Venha Ver e
Viçosa
Fonte: Brasil (2016).
No alto Oeste do Estado do Rio Grande do Norte localiza-se o município de Patu, nome
que remete aos seus primeiros habitantes, os índios Cariris. A denominação dessa cidade faz
alusão as montanhas altas e sonoras que cercam a região. O município foi fundado, como aponta
a história oficial, em 07 de julho de 1777. Patu é um dos 21 municípios que compõe o Polo
Serrano instituído a partir do Decreto nº 20. 624 de 17 de julho de 2008. Tem atualmente 12.844
habitantes. A região turística supracitada desde a organização do MTUR teve seus maiores
picos de investimentos nos anos de 2008, em que captou R$ 7.428.750,00 e 2009, com uma
soma de R$ 5.200.850,00. Nessa região 8 municípios tiveram os seus espaços e infraestrutura
básicas consideradas como insuficientes para a organização e a manutenção da prática do
turismo, sendo assim foram categorizados com zero, ou seja, pontuados com E. 10 municípios
estão em níveis de deficiência com a categoria D; sendo considerados regular apenas as cidades
de Pau dos Ferros, Apodi e Caraúbas.
Nessa região turística da cidade de Patu foi construído o Santuário do Lima destacado
na Fotografia 20. De acordo com a oralidade, o santuário se originou a partir da promessa feita
pelo Coronel Antonio Ferreira de Lima à Virgem Maria. Após o seu desejo ser realizado, ele
implantou no alto da serra uma capela com escultura da Virgem, peça trazida de Portugal para
homenagear a mãe de Jesus Cristo, transfigurada diante da concepção de realizadora das causas
impossíveis, seu nome é convertido para Nossa Senhora dos Impossíveis. Nas primeiras
décadas do século XX o santuário começou a ser administrado pelos missionários da sagrada
família. Na década de 1960 chegou ao local o padre alemão Henrique Spitz e com recursos
captados de fieis alemães organizou o processo da construção de um novo santuário de
arquitetura futurista, o qual foi inaugurado no ano de 1969219.
219 Informações dadas pelo Padre Domingos de Sá, durante diálogo em visita de campo. Em 30 de agosto de
2016.
304
Como pode ser observado na Fotografia 20, no lado direito (vertical na linha dos terços)
está o templo, local principal para realização dos eventos católicos que possui influência da
arquitetura europeia, agredando ainda uma capela antiga que serve como ponto auxiliar e
ambiente transformado na sala dos milagres - local onde as pessoas fazem as promessas e
deixam objetos que remetem a graça obtida. Na nave principal do santuário estão os túmulos
dos padres que o ergueram. Há no lugar uma pousada que recebe alguns fieis e outros visitantes,
barragem que concentra águas da chuva utilizada como apoio para manutenção do local e uma
estrutura que organiza o mirante para a apreciação da paisagem, sendo utilizado também como
rampa para voo livre. O espaço está a 6 km do centro da cidade de Patu.
Ao se pensar no turismo religioso e nas ações de fomento de desenvolvimento social e
econômicos proposto pelo PRT, a cidade de Patu aparece por ter esse santuário, considerado o
mais antigo do Estado existente por mais de um século, comportando os três edificios citados
destinados a fé. Motivado por esses edifícios e a infraestrtura o movimento de fieis começou
paulatinamente e se mantém em um ritmo modesto, contudo, constante. E porque não há uma
promoção mais contundente desse espaço? Vários são os motivos, as próprias imagens de
Canindé Soares que circulam indicam as limitações do espaço para a ampliação da sua
visualidade, consequentemente, da atividade. No acervo com centenas de fotos, existem apenas
duas fotografias que destacam esse santuário, demonstrando até mesmo a falta de interesse e da
procura dessa visualidade em relação às instituições de promoção do Estado. Uma relação
interessante entre a produção de imagens e o direcionamento da produção do espaço que até
momento pode favorecer vivências com a pluralidade local ou se fechar em lógicas de
imposição.
Em visita ao santuário valorizado pela beleza na organização das plantas em sua
cercania, mesmo havendo a afirmação por parte dos entrevistados que fazem parte do Santuário
que existe todo o interesse de se construir um turismo religioso, percebemos que não é bem
assim, pelo menos em um primeiro momento, esse tipo de movimento parece não ser desejado.
Reservados, os padres que habitam esse local preferem ficar no âmbito privado e prevalecer
com a rotatividade no local dos fiéis católicos. Ademais eles apreendem aquele espaço como
um local discreto para suas atividades profissionais, para o repouso, lazer e vivência cotidiana.
Os discursos mais fortes sobre o turismo, as maiores expectativas que percebemos gira em torno
dos agentes locais como políticos e os envolvidos mais diretamente com a atividade, há uma
contradição de interesses em que o espaço do santuário é o foco central, realmente esse reside
na disputa entre o turismo e a devoção.
305
Sobre turismo e a sua relação com a política lançada pelo MTUR, a fim de captar
recursos para o desenvolvimento do local, o munícipio de Patu é visto como potencial para o
segmento religioso por causa do Santuário da Serra do Lima. Essa é uma região turística que
desde que o polo foi organizado há variação nas cidades que fazem parte do seu mapa regional.
Para fazer parte do programa é necessário atender os requisitos estabelecidos pela política
nacional; essa inconstância entrada e saída de munícipios se dá concatenada as perspectivas do
gestor público em relação ao turismo e acabam por atrapalhar um trabalho capaz de abarcar um
conjunto de municípios o que poderia dar maior visibilidade a Patú e seu santurário. Nesse
aspecto, os interesses e os embates são bem claros, demarcam continuidades e rupturas de
ações.
O local tem uma geografia singular, em termos de atração turística podemos afirmar que
se constitui em um atrativo significativo - uma vez que se difere de outros aspectos geográficos
do Estado: muitas rochas, área verde e paisagem esteticamente favorável a apreciação. Todavia,
mesmo com essa dimensão paisagística atraente e já com alguma infraestrutura de apoio durante
os dias de estadia no local entendemos que não há uma circulação constante de pessoas. Em
informações colhidas e diante da nossa percepção sobre o campo fica claro que as aglomerações
motivadas por esse ambiente religioso e seus entornos restringem-se a poucos eventos festivos
e as excursões de turismo religioso que também são pontuais e organizadas em sua maioria pela
Agência de Turismo Dandara e Juca Tour ambas localizadas em Natal e, esporadicamente, em
grupos que praticam voos livres e arriscam saltar do local, realmente um risco, uma vez que
não existem equipamentos de apoio para essa prática, podendo ocorrer acidentes e ausência de
socorro.
A cidade de Patu é distante da capital do Estado, são aproximadamente 320 quilometros
que separam essas cidades. As estradas não incentivam o deslocamento, há pouca sinalização,
as vias são únicas e sem iluminação, o que gera um grande problema para o turismo - uma vez
que a atividade tem base a facilidade do deslocamento. Sobre as estadias oferecidas, se reduzem
a pousadas e alguns moteis, funcionam em edifícios simples, com valores relativamente alto se
fizermos um comparativo com estadias populares em âmbito nacional e mesmo global. O que
se justifica pela ausência de turismo no local, uma vez que não há demanda, não há como reduzir
os valores, ainda a oferta de alimentação nesses ambientes é limitada e com horários reduzidos.
A infraestrutura visa atender as necessidades que giram em torno da economia local,
supermercados, mercearias, farmácias, lojas diversas, com funcionamento que organizam-se
com abertura as 07:00 horas e fechamento as 11:00; reabrindo as 14:00 e fechando novamente
306
a partir das 17:00 horas. Não existinto assim infraestrutura turística e motivação para esses
investimentos, uma vez que o segmento é muito restrito nesse contexto.
O interessante a ser relatado é que, nas reuniões dos conselhos de turismo encabeçada
pelo Estado, desde que o PRT começou a ser efetivado no Rio Grande do Norte, Patú tem se
mantido entre os cinco principais municípios participantes e conserva ativa a sua secretaria de
turismo, agregada a secretaria de cultura - o que se constitui em um requisito para acessar verbas
do governo federal em prol da atividade. As atas referentes as reuniões organizadas apresentam
uma participação de 73,33% desse munícipio. Todavia, circulando pela cidade observa-se
claramente que a efetivação dessa participação não reverbera em termos de ampliação do
turismo.
Em Patu, além de visitarmos a serra onde se localiza o santuário e seus arredores,
realizamos entrevistas com dois agentes envolvidos com o turismo. Evitamos tratar de questões
pontuais, focamos em um panorama geral da atividade na cidade, também, não colocamos o
nome dos entrevistados uma vez que as relações políticas vigentes interferem em âmbito
privado, a partir de ressentimentos e perseguições. A primeira entrevista se deu com o secretário
de turismo e cultura do município, estudante universitário, em exercício recente da função. Esse
nos apresentou informações restritas sobre o andamento e as persectivas do turismo. Observou-
se que não havia por parte do entrevistado o conhecimento acerca dos projetos e metas do
MTUR e a percepção de implementação turística estava relacionada às visitas que o Santuário
do Lima recebe. Além disso, a crença que para implementar o turismo, além, de se promover o
santuário deveria haver a divulgação de alguns eventos significativos no calendário festivo da
cidade, envolvendo o aniversário de fundação, festas culturais como romarias, padroeiro e
festividades juninas, pensou ainda, nas apresentaçoes escolares. A aproximação inicial com o
secretário se deu durante a reunião do polo, realizada em 30 de agosto de 2016, nesse mesmo
dia marcamos um encontro no período noturno, no edifício católico Igreja Matriz, local em que
o entrevistado estava atuando treinando um grupo de dança para se apresentar em semana
cultural da cidade.
Com o segundo agente entrevistado realizamos três encontros, que gerou duas
entrevistas compreensivas. Esse é gestor ambiental e técnico em turismo, foi secretário de
turismo da cidade, função que atuou durante todo o exercício da gestão pública do período.
Hoje é um dos membros do conselho de turismo, contribui ativamente desde o ano de 2005,
momento em que o conselho de turismo foi criado a partir do interesse de empresários em
desenvolver o segmento na região. No ano de 2008, esse conselho de turismo foi
institucionalizado. Com esse agente do turismo coletamos informações pertinentes para a
307
pesquisa em relação ao local, principalmente ao Santuário. O primeiro encontro, assim como o
anterior, aconteceu no dia 30 de agosto durante a reunião do polo Serrano, no dia seguinte, 31
de agosto saímos durante a parte da manhã para percorrer o município, finalizamos o encontro
na Serra do Lima com a visita ao Santuário. Em um terceiro momento foi concretizada outra
entrevista compreensiva na residência deste agente, no dia 13 de setembro de 2016, na capital
do Estado.
Para o técnico em turismo o polo Serrano tem grandes possibilidades de desenvolver-se
a partir de uma economia interpretativa em alguns de seus municipios, incluindo Patu, com o
Santuário do Lima, visto que existe a infraestrutura básica e os atrativos percebidos no santuário
e na paisagem local. Contudo, o foco dos gestores públicos está nos repasses financeiros e não
na atividade como instrumento de desenvolvimento socioeconômico. Como restrição coloca
que as demandas exigidas pelo MTUR para aquisição de verbas não são atendidas por alguns
municípios, motivando os gestores a recorrer para outros meios de mais fáceis acessos ou já
implementados para a aquisição financeira, deiando o turismo à parte do processo.
É comum não existir continuidade nos projetos turísticos, ao contrário cada gestão
procura apagar os feitos antigos. As estratégias são mudanças de nome, da função e até mesmo
das cores. As cores alteram-se conforme os partidos políticos. Se existe uma obra relevante para
a valorização da imagem do gestor público que a implementou e a oposição assume o poder
pode ocorrer da obra ser totalmente abandonada. Essa situação ficou clara em duas conjunturas
significativas, vamos explica-lás: A Serra do Lima tem dois mirantes no local do santuário,
ficam no mesmo terreno dos templos, ambos organizados com verba pública, um vizinho ao
outro, não finalizados e abandonados220. História parecida aconteceu com o projeto de uma
segunda rodoviária na cidade, a justificativa da construção se deu porque alegou-se que deveria
haver uma rodoviária próxima ao santuário a fim de facilitar o acesso dos fiéis e turistas; hoje
existe o esqueleto de uma rodoviária a poucos metros do santuário, abandonada antes do
processo final da construção.
No mais com o objetivo de melhorar os espaços ao redor do santuário visto que os
visitantes do local reclamam por praticamente não haver estrutura adequada de estacionamento
ou de quiosques com vendas de alimentos para servir de apoio nos períodos de maiores
movimentações, a Prefeitura de Patu, com recursos do Ministério do Turismo, iniciou a
construção de um Terminal Turístico Religioso de Patú221. Contudo, o investimento feito a
partir de repasse avaliado em R$ 525.344,22 está parado, faltando pequenos detalhes. O prédio
220 Ver em Anexo D, as fotografias dos dois Mirantes e terminal turístico.
221 Idem
308
está praticamente pronto, entretanto não enontra-se em funcionamento, bem como não
correspondendo as expectativas dos visitantes e da população local. Antes do período eleitoral,
no mês de agosto de 2016, durante a nossa visita, ainda não estava em funcionamento, porém
estava todo pintado de verde, de acordo com a cor da filiação partidária do prefeito em gestão.
São casos que denotam a falta de responsabilidade de alguns representantes políticos,
como também o descaso com a “coisa” pública e a utilização desses ambientes enquanto coisa
privada. Associa-se a isso o desinteresse dos representantes da igreja católica em ampliar as
visitas ao espaço, uma vez que há todo um movimento da instituição em captar mais seguidores.
São poucos agentes atuando nessa esfera do turismo religioso em Patú, esse número reduzido,
conforme exposto, muitas vezes são diretamente ameaçados quando cobram medidas ou
justificativas sobre o uso efetivo do dinheiro público.
Em Patu o discurso do turismo gera muitas expectativas, tanto é, que como foi dito, é
um dos municípios que sempre apresenta seus representantes nas reuniões do PRT, porém,
ainda se pensa em como organizar a serra, se por um turismo de aventura favorecido por
infraestrutura que incentive o uso da paisagem como espaço para voo livre ou se esse voo se
mantém no campo das divindades. Mesmo com os preparativos iniciais para organização da
rampa para o voo livre, o projeto parece inerte, nos dias atuais aparece nos folhetos publicitários
a preferência de organização do turismo para o santuário. O cenário do turismo religioso que se
legimita por meio do discurso das possibilidades de desenvolvimento econômico nos arredores
do Estado também favorece a crença de que há uma pré-disposição a publicização do Santuário
e a aquisição de melhoria de renda para os moradores a partir desse tipo de turismo, mesmo que
as relações entre representantes da religião em questão e os agentes políticos não sejam
harmoniosas.
O que percebemos é um turismo motivado por interesses da elite religiosa ou política.
As possibilidades de se pensar na organização de ambientes a partir do envolvimento com seus
aspectos plurais, com a busca de diferentes consciências e benefícios que envolvam os
moradores é afastada. A prioridade está na questão do turismo e da devoção.
309
Fotografia 21- Santuário do Lima222
Fonte:
A fotografia 21, apresentada em sequência, nos favorecerá desenvolver a crítica e
demonstrar o seu sintoma. Nessa imagem a paisagem nos aparece mediada pela passagem que
é apresentada como o arco. A passagem para Benjamin (2009, p. 77-100) mostra como os
fragmentos da cidade faiscando entre o passado e presente contam a sua história. Nas passagens,
aludindo à obra citada, encontram-se as últimas estruturas habituais que resistem ao ser iniciado
o processo de modernização urbana em Paris. Sua singularidade consiste na configuração de
um território onde paradoxalmente alguma coisa antiga resiste em contraponto ao cenário que
aponta ao mesmo tempo para o sonho coletivo de consumo próprio da modernidade. Na
passagem do Lima, no cruzamento do arco, está a abordagem da contemporaneidade que em
seu valor de tradição, aspectos culturais e até na arquitetura reside a transformação que
impregna a sociedade do lazer e do espetáculo.
O templo aparece em formato de cone, unindo todas as suas linhas em um único vértice
que aponta em direção ao céu. O cone está ligado a outros templos que foram construídos no
Brasil aproximadamente no mesmo período, como: a Catedral Metropolitana de São Sebastião
do Rio de Janeiro, a Catedral de Nossa Senhora da Glória no Paraná e a Cadetral de Brasília.
222 Fotografia de autoria de Canindé Soares. Igreja Nossa Senhora dos Impossíveis no Santuário do
Lima em Patu, Rio Grande do Norte.
310
Todos eles seguem o direcionamento do Concílio do Vaticano II para a arquitetura religiosa,
significa a equidistancia e a proximidade das pessoas em relação ao deus católico. Se pensarmos
a fotografia como uma experiência de arte, ela aparece como uma montagem das subjetividades
e objetividades dos elementos que envolve, com o investimento dos agentes sociais que a
transcreve e a legitima sob o direcionamento do Vaticano, das relações hegemônicas locais e
do Estado.
A memória reúne o que está inserido no espaço, o que é fruto de percepções
heterogêneas- uma vez que se projeta a partir de uma combinatória de relações e de camadas
temporais que assumem as transformações de acordo com as dinâmicas sociais e as inumeráveis
junções das coisas globais em que se conecta no local, mas existe na manutenção da ordem
estabelecida. Antes, o que vemos parece a escultura de uma oca contemporânea, transformada
pelo cimento em espetáculo, no meio de uma natureza local abundante representada pelo
aspecto tropical dado pela famosa palmeira. Entretanto, a arquitetura exposta e a organização
desse Santuário marca na paisagem um discurso moderno e econômico da representação da fé.
O cenário captado pelo artista é a latência da constituição dos novos processos de subjetivação
organizados pelo turismo, são combinados a cores, projetos e elementos que o reprocessa em
favor do espetáculo. Mesmo que o elemento ordenador seja o símbolo de uma sociedade
hierárquica e de valores elitistas como seus motivadores. A estrutura espacial do Lima se
mantém em dinâmica e interação com as relações presentes.
O conjunto arquitetônico que remete a uma história de submissão e ordenação das
pessoas que viviam os espaços conflui novos movimentos e marca tanto a opressão como a
possibilidade de libertação. O espaço impressiona e é marcado por histórias de milagres de
diversas pessoas que querem agradecer o amor, a felicidade e a redução da dor.
No dia da nossa visita ao Santuário em questão encontramos um devoto que estava
levando um pé de cera para deixar na sala dos milagres do santuário, sobre a alegação que quase
tinha perdido o pé em um acidente de motocicleta, ele afirmou: “aqui estou eu pagando uma
promessa feita pela minha mãe” (informação verbal). Assim como esse rapaz, existem pessoas
que se deslocam até o santuário movidas pela crença, grupos que por anos acompanham as
festividades e as romarias anuais. Solicitam a libertação de vícios para maridos/esposas e
filhos(as), muitos(as) encontram nessa fé e nesses espaços os sentidos de solidariedade. Quando
se deslocam em excursão é comum que levem seus alimentos, suas estruturas básicas para o
tempo gasto nas estradas precárias. O turismo diante dessa situação que é a que permeia o
santuário é concreto.
311
A hierarquia e a manutenção da ordem ainda é prioridade, mas o espaço começa a
viabilizar seus ícones em graus e natureza variáveis a construção de paisagens que prescrevem
o status da fé concomitante aos estilos de vida resultante das relações contemporâneas,
flexibilizando a racionalidade religiosa. Um ambiente que antes não era reconhecido
socialmente como promissor ao turismo, começou a se constituir em uma paisagem aberta para
as experiências atuais, agregando velhos e novos ideais, resultando conflitos e tensões entre os
interesses, nas palavras de um dos entrevistados.
O turismo aqui é aquele chamado boca a boca. Não é muito veiculado nas principais
redes de comunicação. A boca a boca tem funcionado bastante aqui. O turista que vai
em Martins quer vir até Patú, porque sempre aparece uma pessoa ou outra que diz “se
você tá aqui em Martins, vê se conhece Patú, que é tão bonito quanto aqui”. Mas,
existem problemas com a classe religiosa daqui que empancam o desenvolvimento do
turismo, mas isso parece ser exclusivamente de Patu. Eles parecem gostar de ter tudo
isso só para eles. São poucos visitantes, tem dois tipos de visitante em Patu. Dois tipos
de turista: o menos favorecido e aquele que vem mesmo para deixar algumas divisas.
O romeiro em si vem mais para visitar o Santuário do Lima, pagar as suas obrigações
religiosas, já vem com pacotes fechados e os pacotes não são nem vendidos para Patu
e sim para Canindé, no Ceará. Canindé e Juazeiro. Aí eles fazem uma rota por Patu,
geralmente na madrugada. A dificuldade de parar aqui é enorme, até hoje persiste, e
o motorista do transporte que faz as viagens para Canindé e Juazeiro, chega em Patú
e dá só meia-hora pro romeiro subir e descer a serra. Ele tem que ir lá visitar o
santuário, pagar as obrigações religiosas e já voltar. O motorista nem desliga o ônibus
dele, fica lá funcionando e ele fica tomando um café ou coisa parecida.
Parece sugestivo afirmar que, mesmo diante da distância e das dificuldades encontradas
para implementar o turismo, esse não está distante. Ele vem sendo alimentado e redefine o
espaço inserindo-o na estratégia simbólica do espetáculo, mesmo que mais lentamente do que
em outros ambientes. A finalidade de efetivar o espaço no roteiro turístico estadual, sem dúvida,
atende o apelo central que o discurso do turismo desempenha. E a paisagem é cooptada na
produção de ícones de identificação do lugar onde a natureza e a experiência religiosa
evidenciam o primado da produção do espaço e da perspectiva de consumo de imagens
tornando-as indispensáveis. Se existe a organização das fotografias traduzidas em um cenário
privilegiado e espetacular, mesmo que pontuais, existe a busca de organização da economia e
da política na lógica vigente.
Em Patu, as imagens paradisíacas do Santuário do Lima e seu grande cone conduz a
inquietação por revelar toda a sua superfície, que quem a coordena preferiria ocultar. Mesmo
sem repercutir em completude, a visualidade desmascara por rasgar e atingir a sua estrutura
(DIDI-HUBERMAN, 2013, p. 188). O sentido configurado por meio da imagem se dá em uma
incansável relação com o que não está expresso no visual, nesse caso, inclusive, com o que não
quer ser visual. Mas, tudo leva a crer que o jogo das relações sociais contemporâneas não deixa
312
nenhuma estrutura física escapar da visualidade, no sentido em que essa serve aos interesses de
manutenção do capital. O que foi imposto no espaço para demarcar uma outra hierarquia, agora
resiste, mas é sugado pelo fluxo das relações que transformam o espaço em paisagens turísticas.
Mesmo que a fotografia não expresse o Santuário em sua realidade, serve como metáfora para
expressar o confronto político e econômico, direto e explícito, que permanece eficiente nos
processos de legitimação do seu poder, deixando claro que aparece o que deve ser mostrado,
mas em sua rede vem a condição de transformar esse caráter em outras formas possíveis de
pensar as instituições e símbolos na superação desse dilema das valorizações do que já era
poder.
Fotografia 22- Passagem pelo arco do Lima223
Fonte:
5.4.5 Monumento a Santa Rita: Remexendo o concreto da cidade de Santa Cruz
223 Fotografia de autoria de Canindé Soares. Santuário do Lima, Patu, RN.
313
Quadro 9- Cidades da região turística do Polo Agreste/Trairí
CIDADES DA REGIÃO TURÍSTICA POLO AGRESTE/TRAIRÍ- RN
Campo Redondo; Coronel Ezequiel; Jaçanã; Montanhas; Monte Gameleiras; Passa e
fica; Santa Cruz; São Bento do Trairí; São José do Campestre; Serra Caiada; Serra de
São Bento; Sítio Novo; Tangará
Fonte: Brasil (2016).
O Polo Agreste/Trairí surgiu a partir do Decreto nº 21.390 de 11 de dezembro de 2009.
É composto por sete cidades que formam a sua região turística. Embora a Serra de São Bento
seja um espaço privilegiado e já legitimado na recepção de visitantes em âmbito local e até
regional, o município de Santa Cruz tem sido a evidência no turismo. Essa cidade vem
participando constantemente das atividades relacionadas à sua promoção. Desde o ano de 2009
tem se mantido com 100% de presença nas reuniões dos conselhos gestores do PRT, de acordo
com as atas de participação dos municípios que fazem parte desta unidade regional. Além disso,
a cidade tem se envolvido em feiras nacionais e internacionais a fim de divulgar seus espaços,
com destaque ao complexo turístico religioso que foi recentemente estruturado. De acordo com
os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE (2017) a cidade de Santa Cruz
tem 39.667 habitantes. Em termos de turismo o foco tem sido dado ao religioso com ênfase nos
eventos que giram em torno da padroeira, ou seja, nas comemorações da Festa de Santa Rita
realizada na cidade Santa Cruz/RN224, no período de 13 a 22 de maio – esse último dia é
consagrado à santa padroeira considerada pelos fiéis da região como a “Madrinha dos Sertões”.
A própria festa da padroeira de Santa Cruz tem sido alvo de muitas notícias e especulações que
giram em torno das políticas de turismo religioso no Estado.
Com a Fotografia 23 entramos de modo sucinto nessa história. O enquadramento da
imagem nos mostra um monumento de concreto armado com 56 metros de altura que representa
a santa padroeira da cidade: Rita de Cássia. A estátua é a grande vedete, ou para melhor se
expressar o espetáculo turístico, da construção que envolve todo o Complexo Turístico Alto de
Santa Rita225, construído no antigo Monte do Cruzeiro226, inaugurado em 27 de junho de 2010,
224 Município brasileiro localizado na Mesorregião Agreste Potiguar. Distância de 111 km de Natal.
225 Santuário que abrange uma aérea de 2.800 metros quadrados, composto por igreja, duas capelas, auditório para
225 pessoas, praça de alimentação, restaurante, salas dos milagres, salas para atendimento de saúde e
administração, lojas de artigos religiosos, pátio de estacionamento e um mirante que contempla a região serrana
do Agreste/Trairí.
226 Propriedade pertencente à Paróquia de Santa Cruz. O referido Monte foi atribuído, inicialmente, a Nossa
Senhora do Carmo e à Santa Rita de Cássia.
314
local hoje conhecido como Alto de Santa Rita ou Santuário de Santa Rita227. O empreendimento
resulta de uma parceria entre a prefeitura local e Governo do Estado. A meta é fortalecer a
região do Agrestre/Trairí no cenário turístico nacional. Sendo assim, o complexo obteve cerca
de R$ 6.000.000,00 advindos dos recursos municipais, estaduais e federais. A cidade ainda foi
inserida no Processo Seletivo de Projetos de Fortalecimento do Turismo Religioso no Brasil228
promovido pelo Ministério do Turismo. Entre as propostas colocadas pela prefeitura,
encontrou-se o projeto de um teleférico ligando o complexo turístico ao centro da cidade, que
mesmo antes da aquisição de verbas para a sua implementação já era divulgado nas feiras de
turismo. Como pudemos comprovar em pesquisa, atualmente a ideia do teleférico está em vias
de implementação, principalmente, pelo acesso do deputado Tomba ao ex-ministro do turismo,
o potiguar Henrique Eduardo Alves, representante do PMDB-RN (atualmente preso por
envolvimento em corrupção) e ao senador Garibaldi Alves Filho (PMDB-RN), que lhe garantiu
o andamento na demanda. O projeto orçado em 12,6 milhões de reais, já retirou dos cofres
públicos uma média de 5,5 milhões de reais, parte desse montante se originou através de
emendas parlamentares viabilizadas pelos Alves229.
Como podemos observar na Fotografia 23, a grandeza do monumento implantando no
espaço público é uma reação a espetacularização das cidades no cenário global. São as
expectativas que envolvem a representação do urbano diante de um cenário maior de
visualidades que se querem atraentes, também, um sinal de vitória do interesse pessoal diante
da coisa pública. Como nos foi colocado pela secretária de turismo, a construção da estátua foi
um desejo do ex-prefeito Tomba Farias relacionado à sua devoção na santa católica das causas
impossíveis. Prometeu que se ganhasse a eleição construiria uma imagem magnânima da sua
crença em um local estratégico na cidade. A materialização da ideia lhe rendeu reeleição, em
sequência foi eleito deputado estadual, ainda cultivou o domínio no município por meio da
eleição da esposa à prefeitura. O objeto do desejo pessoal ganhou legitimidade diante da
perspectiva do desenvolvimento econômico a partir do turismo, esse deu aos sentidos que
envolve a forma adquirida pelo concreto a categoria de espetáculo. Nem beleza, nem
227 Trata de um projeto da Prefeitura de Santa Cruz idealizado pelo ex-prefeito Luiz Antonio Lourenço de Farias,
conhecido como Tomba, que, em parceria com as Paróquias de Natal e de Santa Cruz, tem a pretensão de introduzir
a cidade na rota do turismo religioso do Brasil.
228 Para detalhamento do processo seletivo de projeto de fortalecimento do turismo religioso no Brasil ver a
portaria do MTUR nº112, de 09 de março de 2012 e suas alteraões. Disponível em:
229 Informações obtidas por meio de entrevista com a secretária do turismo Marcela Pessoa em Monte das
Gameleiras, RN no dia 01 de setembro de 2016. E, em encontro posterior no dia 08 de abril de 2017 no Centro
de Convenções, Natal-RN.
315
humildade, nem formosura, porém agigantamento, grandiosidade e portento garantem a forma
da nova paisagem. As linhas duras e desagradáveis, a depender da incidência da luz solar sobre
o objeto deturpam a visualidade da imagem, conforme visto na Fotografia 23. O exemplo do
indesejável olhar de panda, geralmente, evitado com linhas mais arredondadas, menos
profundas e inclinações estratégicas, o que não ocorreu no empreendimento realizado pela
construtora A. Gaspar S/A (já citada anteriormente nas conexões de seu proprietário com o
turismo no Estado).
O enquadramento fotográfico habilmente dá a ver essa tônica da divindade, Canindé
Soares ao captar a opulenta estátua representa-a dando ao espetáculo caráter eminente diante
do seu olhar em câmara baixa. Esse tipo de enquadramento situa o objeto acima do espectador,
engrandecendo-o e sugerindo, por consequência, a sua superioridade. Uma vez que minimiza a
cidade, as pessoas, os detalhes, tudo parece pequeno demais diante da grandeza que o mito
ganha pela sua singularidade na sociedade do consumo.
Fotografia 23- Dia de Inauguração do Complexo de Santa Rita230
Fonte:< http://canindesoares.com/site/wp-
content/gallery/santaritainauguracao/IMG_0924%20%282%29.jpg>
De acordo com a pesquisa realizada na cidade de Santa Cruz por Maria Lúcia Bastos
Alves (2013), após a construção do Santuário novos rituais foram incorporados nas práticas de
230 Fotografia de autoria de Canindé Soares registrada em 27 de junho de 2010.
316
devoção a santa das causas impossíveis, adotou-se missas celebradas no Santuário nos dias de
domingo, organização de bênçãos a outras divindades, além do incentivo por parte da paróquia
em organizar romarias para divulgar o local. O calendário se expandiu: são “Romarias
Eucarísticas”, realizadas todos os dias 21 e 22 de abril, em memória à primeira missa celebrada
no Santuário; as “Romarias de Santa Rita de Cássia”, em todos os dias 13 a 22 de maio, na festa
da padroeira; as “Romarias Marianas”, de 17 a 22 de julho, festa de Nossa Senhora do Carmo;
as “Romarias da Gratidão”, nos dias 11 e 12 de outubro pelo aniversário da criação do
Santuário; e as “Romarias da Coroa”, no 22 de cada mês a fim de promover a devoção à Santa
Rita e captar a participação dos moradores da cidade, dos residentes nas zona rurais e cidades
circunvizinhas. Outros eventos, como a “Expo Santa Rita” – realizado em parceria com a Casa
de Cultura –, propagandeia o santuário e a fé em questão.
Figura 31- O tamanho da estátua
Fonte: Secretaria de Turismo de Santa Cruz (2016)
Na Fotografia 24 é possível visualizar a experiência da obra de gratidão e promoção,
peças que aparentam simplicidade, porém não comportam a pureza nem a tautologia que quer
escapar da rasgadura, muito menos a ilusão de parecer dizer que não importa, pois dirige o olhar
ao símbolo de outra coisa em questão, inquietadora do olhar, cuja a ordem é do discurso, para
além de uma escrita histórica traz à tona uma figurabilidade e dizibilidade. Nas faixas vemos
que os moradores do conjunto Cônego Monte, nome que remete a uma autoridade cristã
317
católica, agradecem a estátua a duas figuras políticas do contexto local: o prefeito do município
Tomba e o governador do estado Iberê Ferreira - ambos filiados ao partido político PSB, sem
alusão ao governo federal responsável pela disponibilização das verbas para implementação da
obra. A hierarquia da faixa aponta a importância das relações; a AVART – Associação dos
Vaqueiros da Região do Trairí – agrega o discurso dos agradecimentos ao que consideram um
presente dado pelo gestor local; logo, abaixo anúncio de festividade em homenagem a mais dois
santos católicos. Essa é a experiência subjetiva, uma vez que a ação do nosso olhar sobre o
objeto constitui a experiência com a imagem, ou demarca a esfera relacional entre o sujeito e o
objeto.
Ainda na Fotografia de 24, a faixa apresentada dá o tom saturado da imagem, com isso
faz presente o sistema de hierarquias e de valores sociais através da política, do espaço urbano,
dos grupos e das instituições, da questão religiosa e econômica. A ausência do visível
“desencadeia, de maneira inteiramente inesperada (como um sintoma), a abertura de uma
dialética (visual) que a ultrapassa, que a revela e que a implica” (DIDI-HUBERMAN, 2005, p.
99). Ou seja, ausenta-se a política de fomento à transformação do urbano, as redes que a
legitimam, deixando nítido o enredo local. Uma forma de manifestação pontual e reduzida.
No mesmo fio que conduz a figurabilidade do discurso narrado sobre o monumento está
o do pároco de Santa Cruz, o padre Vicente Fernandes da Silva, quando ressalta que “a grande
imagem de Santa Rita de Cássia coloca a cidade de Santa Cruz na rota do turismo religioso do
país” (informação verbal, 2016). Esse representante cristão não deixa de incluir-se como parte
dos idealizadores do monumento que promove a sua fé e acrescenta que: “estamos oferecendo
aos católicos do Brasil um lugar com infraestrutura adequada, onde os milhares de devotos
poderão vir vivenciar sua fé e pagar suas promessas” (informação verbal, 2016). A quantidade
reduzida das faixas, o olhar direcionado para essa paisagem, na ausência de outra mais saturada,
induz a pensarmos que há um embate nas concepções sobre a obra efetuada. O motorista de
taxi, Jaime, afirma que não percebeu transformações no seu cotidiano, mas que o turismo
religioso, sim, cresceu o município pois o projeta para o mundo por ter a maior estátua católica
de todo o mundo.
Outros olhares surgem, Adriana, estudante universitária e moradora da cidade, afirma
que “a construção do Alto de Santa Rita não alterou a vida da cidade” (informação verbal,
2016). Remete-se ao ponto cujo interesse se dá nos aspectos econômicos capazes de reduzir a
pobreza do município, acrescenta que “o incentivo ao turismo religioso não proporcionou
melhoria na qualidade de vida da população” (informação verbal, 2016). O turismólogo
Sebastião afirma que a “prefeitura ofereceu apenas um curso ‘relâmpago’ e de vagas limitadas
318
para guia turístico” (informação verbal, 2016). Ambos os informantes supracitados concordam
que o desenvolvimento da cidade não provém da construção do Complexo Alto de Santa Rita,
mas de outros investimentos nos setores educacional e comercial. Entretanto, eles esclarecem
que as estratégias utilizadas pelo poder público local, aliadas à divulgação midiática de um
turismo religioso, oferecem à população a possibilidade de melhoria de vida, uma vez que a
festa pode gerar empregos, trazendo o desenvolvimento para a cidade.
Ademais, foram realizadas outras entrevistas em articulação com pessoas ligadas ao
comércio, como padaria, lanchonete, a associação de mototaxistas, pousadas, SEBRAE e rádio.
Em análise realizada na concepção dessas pessoas, observa-se que o turismo religioso não é o
responsável pelo desenvolvimento que vem ocorrendo no município, ele tem contribuído com
a divulgação e marketing da cidade. Todavia, existem outros projetos do próprio governo
federal, como a “minha casa minha vida”, o “bolsa família”, investimento em projetos e
educação, entre outros, de cunho social que aqueceram o comércio local e contribuíram para a
melhoria da qualidade de vida das pessoas no município. Portanto, de acordo com os
entrevistados os turistas só passam um dia, ou seja, são excursionistas, o que gastam é muito
pouco. Ocorrem melhorias na cidade, porém são pontuais, como por exemplo a demanda com
os ônibus durante os finais de semana ajudou alguns comerciantes do ramo alimentar, como o
da padaria local, que já foi até reformada e se preparou para receber esses grupos.
Os sujeitos informantes ressaltaram que a cidade não foi preparada pra acompanhar esse
crescimento. A chegada das Universidades e do Instituto Federal de Educação (UFRN, UERN
e IFRN) tem contribuído para o desenvolvimento econômico do local. Essas instituições
chegaram e trouxeram muita coisa, desde aumento e melhorias de estabelecimentos comerciais,
ampliação de propostas de empregos na cidade, como também especulação imobiliária no local
e questões relacionadas à insegurança pública e tráfico de drogas. No mais, o Santuário
aumentou o movimento da paróquia, que vendeu a festa social da padroeira para empresários
de fora, ou seja, o que mantém o dinheiro não fica na cidade. Os entrevistados não associam
uma melhoria ou expansão na capacidade e nos acessos dos moradores ao turismo.
Sobre as afirmações expostas na Feira Nacional de Turismo (FNTUR), no dia 27 de
agosto de 2016 a secretária de turismo de Santa Cruz coloca ao ser questionada sobre o fato de
não ser visível à dita melhoria na qualidade de vida da população local favorecida a partir do
turismo que:
Temos seis anos de santuário e turismo não é resultado imediato, é a médio e longo
prazo. O poder público tem um papel de fomentar a atividade, de preparar a cidade
para viabilizar a infraestrutura básica, que é o que tem sido feito durante esses seis
319
anos. Posso falar muito de perto, estou à frente na pasta praticamente há sete anos.
Então o poder público, nas duas gestões que passaram por esse período têm investido
muito em infraestrutura básica, mas o nosso maior problema hoje em Santa Cruz, tá
aqui o SEBRAE para afirmar é o nosso empresariado local. Desde quando começamos
a discutir turismo na cidade, na fase de obra em 2008, comecei a entender qual a
importância da atividade econômica que é o turismo. Então, quando nós começamos
a levar esta fala, lá em 2008, 2009, falávamos exatamente disso, da importância do
turismo para a comunidade: dávamos o exemplo de Pipa. Pipa hoje é permeada por
estrangeiros, tem poucos empresários do Rio Grande do Norte investindo em Pipa.
Nós falávamos isso em relação ao nosso empresariado local, que se eles não
investissem, viriam empresários de fora e iriam investir, não era interesse do
município, do SEBRAE, do SENAC, da FECOMERCIO, parceiros estrangeiros lá. O
nosso intuito era que realmente o empresário local investisse, mas esse olhar
empreendedor para o turismo ainda não aconteceu em Santa Cruz. As pessoas
colocam muita responsabilidade no poder público e o poder público não faz tudo só.
O mais beneficiado com a cidade é o comércio. Uma fala da nossa prefeita é que ela
fica muito angustiada com a situação, porque infelizmente foge às nossas mãos, ela
não consegue realmente resolver essa parte da iniciativa privada. Somos sim
fomentadores do turismo, em relação ao turismo internacional, temos que ter cuidado
com nossos passos. Precisamos promover e divulgar o destino em outros estados.
Santa Cruz hoje tem 605 leitos, conseguimos receber esses números de pessoas.
Muitos frutos que estamos colocando agora, não iremos colher, quem irá colher são
as futuras gerações, mas nosso papel é esse: fomentar a atividade, qualificar a mão de
obra. Eu fiz um levantamento, nesses últimos três anos e sete meses qualificamos
1.498 pessoas na cidade, então é muita coisa para uma população de 40.000
habitantes. Santa Cruz hoje é um referencial como turismo religioso no estado,
fazemos questão de participar de todas as discussões Polo Regional, Conselho
Estadual, de tudo que tá sendo formado agora para o futuro (informação verbal,
2016)231.
As expectativas do turismo trazem a modificação nos espaços em que ele está inserido,
alimenta o mercado, a circulação de capital, constrói um discurso que tem um forte apelo
paisagístico estadual, motiva e insere a população nas raias do espetáculo. O discurso que
subscreve é ideológico, mas não deixa de ser real, uma vez que a fotografia ao enquadrar
paisagens concatenadas ás perspectivas contemporâneas organiza as continuidades espaciais e
temporais a partir de projetos restritos, pessoais, nem sempre em consonância com o que se
pretende como coletivo.
As fotografias preparam o cenário, acomodam a vista e constroem o discurso em voga.
Prepara, antes os indivíduos locais para a recepção do que está sendo organizado nos grandes
centros, o que requer todo um investimento que dura um certo tempo. São mudanças que
atendem antes de tudo interesses locais, interligados ás expectativas globais. É interessante
ressaltar que no Estado vizinho, no campus principal da Universidade Federal da Paraíba,
localizado na capital (João Pessoa), local aonde reside a secretária de turismo de Santa Cruz,
53 discentes, já em período adiantado do curso de turismo e hotelaria foram questionados sobre
231 Informação concedida por Marcela, Secretária de Turismo de Santa Cruz, em 27 de agosto de 2016, Natal,
RN.
320
a estátua de Santa Rita e os roteiros. Com surpresa, esse grupo não conhecia o empreendimento,
nenhum aluno comunicou saber da existência desse complexo turístico. Antes de tudo as faixas
são visíveis primeiro para quem as tem ao seu alcance. A gratidão e o desenvolvimento
econômico para o amanhã tem atendido aos interesses restritos, servem de exemplo para outros
candidatos atuar em propostas exatamente iguais, como a que está em andamento agora na
cidade de Mossoró.
321
Fotografia 24- Faixas de gratidão e promoção232
Fonte:
Na Fotografia 25, por sua vez, vemos uma trajetória noturna sendo realizada até o
Santuário. A fotografia está enquadrada pelo aniversário de cinco anos do Santuário de Santa
Rita de Cássia, que se dá com a inauguração da iluminação desse complexo turístico. O evento
recebeu agentes da política local, entre eles a prefeita do município, Fernanda Costa (PMDB),
do seu esposo o deputado estadual Tomba Farias (PSB), e do senador José Agripino (DEM)
que viabilizou os recursos para o projeto de iluminação do complexo, além da presença da vice-
prefeita de Natal, Vilma de Faria (PSB). Todos participaram da procissão, comandada pelo
pároco Vicente Fernandes. O deputado Tomba Farias aproveita o momento e destaca que “Santa
Cruz se consolidará como um dos principais polos turísticos do Brasil” (informação verbal,
2016). O que concerne a quem valoriza o seu feito, imbuído da pretensão de garantir um
desenvolvimento econômico e conquistar mais visibilidade.
A Fotografia manifesta a supremacia dos desejos que coaduna-se as noções socialmente
ortodoxas arranjadas em uma urdidura de imagens e símbolos que em prol desse santuário
constitui o panorama das redes do poder, dos arranjos, dos controles e das ideologias
hegemônicas. É a constituição de um suporte com apoio de um sistema de hierarquias e sua
consequente ordenação do desejo do maior implantando os elementos culturais que já venceram
232 Fotografia de autoria de Canindé Soares registrada em 27 de junho de 2010. Faixas, Santa Cruz, RN.
322
uma batalha anteriormente e se tornaram primordiais na cultura ocidental. Em sua própria
escuridão ela ilumina as imagens do êxodo; que remete ao deslocamento por condições
melhores de sua terra natal até uma terra estranha. Igualmente, a da via cruzes; caminho que
representa o esforço feito por Jesus Cristo carregando a cruz, que pode ser interpretado com
caminhadas de fiéis reproduzindo mentalmente esse percurso de Jesus. Ambas as imagens
promovem experiência dessas ordens, acessam o que já está condicionado por intermédio de
cristalizações.
O deslocamento de fé acessa ainda os discursos privilegiados no processo de
consolidação da visibilidade da região Nordeste, consciente ou inconscientemente relatam a via
cruzes dos retirantes saindo do sertão. Em um ambiente marcado pela concentração de terra; de
renda; de economia; de produtos; diante da dinâmica que requer a circulação da renda muitos
padecem. O êxodo nordestino levou os retirantes, em sua maioria, até São Paulo- cidade que
representava o progresso, o desenvolvimento, o concreto, a selva de pedras. A fotografia
apresenta um caminho iluminado até o concreto representado na madrinha dos sertões,
indicando que agora a terra prometida é aqui. A mesma promessa de fé em um futuro melhor
renasce junto ao discurso do turismo local, com um discurso que tem um forte apelo
paisagístico, motiva e insere a população nas raias do espetáculo, cujo que parece ser, nem
sempre é. Possibilidade promissora, mas com a sua forma presa e exposta a uma visibilidade
local passada, construída a despeito das ânsias de quem caminha. A fotografia traduz o fruto de
conquista dos direitos de construir e constituir o corpo da cidade a partir de paisagens que
colocam no tempo da cidade as configurações que ordenam o mundo em fluxos contínuos entre
os arranjos do local/global.
323
Fotografia 25- Caminho iluminado233
Fonte:
Todo o arranjo na cidade, bem como o valor de uso do espaço se dão no enquadramento
das relações atuais. Como ressalta Lefebvre (1991a) o espaço é produzido como resultado de
um desenvolvimento capitalista. E nessa ordem o espetáculo do capital requer uma marca, uma
identidade, um rosto. Elaborada por especialistas em desenho e marketing a cidade ganha a sua
logomarca (Figura 32). Nela, presente sintetiza o passado, de modo mascarado, mas fulgurado
por visualidades que preponderaram no momento de construção da paisagem original do
Nordeste, contudo a lógica atual dissolve os mitos passados e mesmo as figuras atuais insistindo
no refugo da evidência da paisagem de origem abrem possibilidades para outros sentidos. É a
rasgadura latente no sentido da imagem.
Como ocorre na Fotografia 26, que expõe a festividade da padroeira organizada por
residentes, empresários, políticos, membros das pastorais e lideradas pelo pároco local. A festa
obedece a uma programação previamente estabelecida pela equipe responsável, ordena o
espaço, reúne diferentes segmentos sociais, sejam eles provenientes de bairros periféricos ou
representantes do setor político e comercial. Segue uma hierarquia composta por arcebispo,
bispo, padres e diáconos acompanhados por coroinhas e autoridades políticas estaduais e locais
233 Fotografia de autoria de Canindé Soares. Iluminação, Santa Cruz, RN.
324
“misturando-se” aos féis. Essa dinâmica é engendrada pela expansão do mercado. Moradores
preocupam-se em tentar obter lucros, seja com a locação de casas ou com a prática de comércio
temporário, um dos poucos benefícios gerados pelo turismo religioso.
O que se abre na fotografia e nos olha é um recorte da cidade em festa, como em uma
bela pintura com cores saturadas e movimento. Se imaginarmos a regra dos terços na imagem,
o movimento sai do terço superior na interseção esquerda, as nuvens trazem esse movimento
que se abre em analogia do passado com o tempo presente. Então, vindo do plano de fundo em
direção ao primeiro plano surge um dos fixos, no cume do morro, parecendo isolada está à
estátua de Santa Rita. Se trata do fixo mais elevado no recorte fotográfico, em posição de
destaque tem sua representação privilegiada, como se surgisse a partir do nada, da parte mais
profunda da imagem. No alto, acentua a pequenez do povo diante da fé. Essa é a visualidade da
fotografia, cuja latência se abre para a crítica ao pensarmos que não se pode encarnar a paisagem
em um único elemento, uma vez que a imaginação não se funde numa só imagem e a própria
paisagem remete a um ambiente fértil de fenômenos.
O monumento que chama para si os olhares e as novas experiências na cidade de Santa
Cruz é resultado de conflitos e cisões; de desejos; “da grana que ergue e destrói coisas belas”.
Demarca a complexa rede de exposição e silêncio, de paz e embate, de movimento e estase, que
dá consistência as coisas e as ações enquadradas por um entorno que quase faz confundir a
criação com a criatura: figurabilidades que discursam através da sociedade do espetáculo.
A Fotografia 26 também permite alusão a visualidades da cidade de Deus tal como
idealizadas por Santo Agostinho. A cidade que se funda no amor as coisas de Deus. Um pouco
abaixo participando diretamente do espaço ordenado, aparentemente homogêneo em seu
recorte, mas permeado por uma multiplicidade de relações está o fixo basilar das pequenas
cidades cristãs: a igreja. O templo cristão aponta para o que é comum nos espaços urbanos do
nacional: a instituição de símbolos que direcionam ao nosso longo processo de conquista e
colonização europeia. Muitas figuras emergem com relevo a religião católica cuja centralização
em nossos espaços é constante, porém, não tem mais a perspectiva do passado. Nesse aspecto
a fotografia reinventa a paisagem, não como restauração, mas como parte de um grande
espetáculo contemporâneo em sua rede abrangente de interrelações, em diversos níveis,
técnicos e subjetivos, desde o planejamento do local até a vivência no ambiente mediados pelo
lazer, pela religião, pelo turismo.
O que vemos continua a ser a ordenação dos modelos hegemônicos, agora pelo discurso
do turismo, que pretende garantir a realização do desenvolvimento econômico e local,
concatenado a uma causa política e cultural. O que nos olha faz parte dos pressupostos que
325
alicerçam as bases de um turismo idealizado para beneficiar poucos em seus projetos restritos.
O turismo, uma atividade direcionada por noções plurais e democráticas, ao ser forjado no local
privilegia unidade de propósitos, estratificação e hierarquização de um mito, fazendo com que
outros objetos se percam para nós, mesmo que estejam muito próximos; desestabilizando e
deformando as coisas.
Figura 32- Identidade Visual – Marca da cidade
Fonte: Secretaria de Turismo de Santa Cruz (2016).
326
Fotografia 26- Cidade e Complexo de Santa Rita234
Fonte:
234 Fotografia de autoria de Canindé Soares registrada em 23 de maio de 2017.
327
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Esta tese de doutoramento procurou através do olhar crítico da sociologia analisar, em
seus discursos e visualidades, as paisagens produzidas por intermédio das fotografias
registradas pelo repórter-fotográfico Canindé Soares. Senda essas paisagens parte da instituição
do turismo religioso no interior do Estado do Rio Grande do Norte mediada por políticas
públicas de fomento ao turismo na região Nordeste do Brasil.
Dessa forma, buscamos entender os condicionamentos que figuram nas paisagens
registradas em sua relação com as políticas públicas de turismo acarreadas pelo processo de
desenvolvimento capitalista da região. Observamos, portanto, que as visualidades que emergem
escapam as relações complexas e as produções culturais organizadas pelos agentes locais. Ao
contrário, estão condicionadas pelo processo de homogeneização em relação às visualidades
que incidiram no processo de organização da região Nordeste do Brasil construída, em grande
medida, pelas elites regionais e responsáveis, posteriormente, por uma imagem depreciativa da
região.
Propomos especificamente essa análise através da correlação entre as visualidades do
regional/local – Nordeste/Rio Grande do Norte – nas paisagens que salientamos enquanto
nordestino-potiguar, captadas no percurso profissional do fotógrafo Canindé Soares. O que
inclui as ideologias e discursos que cercam o campo político, econômico, cultural e visual de
acordo com as promoções do espaço incrementado a partir das escolhas dos órgãos oficiais de
turismo no Estado. Sob esse viés, é de suma importância entender as visualidades que
constroem o espaço, absorvemos a paisagem como maior representante desse enquadramento
sendo um produto das confluências sociais com dimensões aparentes nos registros fotográficos.
Pensar as visualidades do Nordeste em concomitância com a política e a religião é
enveredar por um universo amplo e heterogêneo, parte de uma rede de relações socioculturais
travadas em diálogo constante com as concepções globais e as composições locais. Essa
complexidade nos fez optar por uma divisão onde os capítulos se cruzam, mas que priorizam
especificamente cada um dos elementos sugeridos, com eixo na apreensão dos discursos
enquadrados nas fotografias; e comprovação da hipótese, cujo direcionamento diz respeito às
paisagens nordestino-potiguares, relacionadas ao turismo religioso, produzidas no presente a
partir da espetacularização de um sintoma visual do passado, culturalmente engendrado por
discursos hegemônicos e específicos que favorecem a sua manutenção em detrimento dos
interesses plurais e democráticos. Uma vez que é a abertura ao social, ao heterogêneo o que
pretende as políticas em questão.
328
Trabalhar com um cenário regional amplo e pouco homogêneo, dificulta a realização de
diagnósticos precisos em relação às visualidades organizadas pelo turismo religioso. Por isso a
escolha do Estado do Rio Grande do Norte e das visualidades que o cinge moldadas pela ideia
da região. Nesse cenário os espaços mais significativos diante das regiões turísticas do Estado,
como representante do regime que dá a ver paisagens convergentes a perspectiva geral do
Nordeste em suas nuances identitárias. Nesse aspecto a sociologia contemporânea permite
trazer contribuições para além da criticidade, papel próprio do sociólogo, através de um olhar
mais amplo e menos engessado dos atores que permeiam o objeto de estudo.
Verificou-se neste estudo que as paisagens produzidas pelas fotografias com a temática
do turismo religioso podem ser identificadas de modo socioespacial sob três perspectivas: uma
de natureza geral, sociológica, do discurso político, através dos polos que congregam a região
turística, os quais recebem influências globais das políticas de fomento ao turismo, com ênfase
nas ideologias de desenvolvimento econômico e redução da pobreza na região Nordeste; outra,
que se dá a partir dos pressupostos do discurso oficial que recai sobre a região Nordeste cuja
visibilidade direciona o enquadramento do fotojornalista à cultura religiosa, mística, folclórica
e artesanal; terceiro, de natureza específica, pela vinculação das relações sociopolíticas à fé nas
localidades que integram as zonas turísticas no segmento do turismo religioso, inclusive, como
se essas fossem herança de um passado, sendo o turismo uma possibilidade de “resgate” e de
“preservação” dessas práticas.
Sob o argumento exposto instaura-se nas paisagens; espaços dinâmicos, transitórios,
efêmeros e produzidos por meio de discursos; a questão da regionalidade em acordo com o
interesse de cada grupo. Para os peregrinos as paisagens remetem a extensão dos atos de fé. De
outro modo disposto, para os moradores locais elas representam perspectivas de
desenvolvimento, uma vez que estão agregadas ao momento em que a cidade se transforma em
palco de espetáculo, suscitando visibilidade e atraindo visitantes que contribuem com as
atividades econômicas; mas que levantam muitos questionamentos. No olhar do turista a
paisagem remete a possibilidade de retornar a um tempo tradicional e festivo marcado pelos
valores e bons costumes. Para os políticos ou personalidades da sociedade, as paisagens festivas
registradas em fotografias se tornam o palco das representações, das ascensões sociais, um álibi
para os investimentos, muitas vezes tornando-se o lugar da disputa e do confronto.
As fotografias relacionadas ao turismo religioso no Estado do Rio Grande do Norte estão
atreladas aos ícones culturais de um tempo pretérito e organizam as visualidades paisagísticas
que surgem no presente a partir de um discurso ideológico hegemônico. Discurso esse que é
possível por meio de um sistema social de hierarquias que desenham a cidade em um panorama
329
de controles, ações e elementos culturais priorizados nas redes de poder que legitimam um
espetáculo de transformações simbólicas e imagéticas nos espaços, verificáveis nas paisagens
“nordestino-potiguares” onde findam como discursos empenhados em atender interesses
específicos e não uma realidade plural. Na imagem fotográfica é evidente a supremacia desse
modelo histórico operando nas subjetividades do tempo e do espaço atual margeando a rede de
relações que a constrói concernente às novas relações socioespaciais.
Diante de tal situação há a redução dos discursos que avançam no debate dos espaços,
consequentemente, das ações capazes de favorecer oportunidades mais justas a população de
modo geral. Do mesmo modo, o que ocorre, ao contrário do que se pensa, não tem a ver com a
valorização, com a “preservação” ou mesmo o “resgate” cultural; posto que a preservação parte
da ideia de se conservar a representação do que foi e não do que é, isso nega a cultura,
sufocando-a em um fragmento do passado. Há que se considerar que a imposição dos discursos
pretéritos nega a dinâmica cultural presente no cotidiano, reduz a sua produção e importância
social, política e econômica. No fim, margeiam artistas locais, educadores, esportistas, líderes
religiosos de variados credos, movimentos sociais, ativistas, entre outros que constroem
cotidianamente sensibilidades, estéticas, discursos, símbolos e novas paisagens culturais
interessantes a atividade turística.
Observamos os traços peculiares da atividade turística em termos do turismo religioso
que se constroem com versões e interesses ambíguos e conflituosos em relação às paisagens
destacadas. É inegável que o uso dessas paisagens através das festividades, principalmente, dos
santos padroeiros faz parte do imaginário produzido coletivamente. Entretanto, nem sempre
elas retornam em viabilidades ou em expansão de acessos, melhorias de qualidade de vida de
modo coletivo. Quanto mais se investe na visibilidade das práticas religiosas católicas como
um construto social e identitário, mais chances existem de incremento de um turismo religioso
restrito alimentado pelas mesmas instituições que usufruem dessa prática. O que supõe a
manutenção de práticas margeadoras.
Visando atender o desejo de uma clientela que busca prestígio e apoio político as
paisagens do turismo religioso transformam-se em mercadorias ressignificadas em seus
elementos à medida que passam a ser alvo da promoção das políticas públicas de governo
encenando um jogo de adesões entre as instituições que propõem o desenvolvimento. Esse
desenvolvimento deveria compreender os objetivos de bem-estar e a melhoria da qualidade de
vida da comunidade residente, a satisfação das necessidades e expectativas do turista e a
integração econômica local e regional. Ou seja, um sistema complexo, uma vez que o turismo
é uma atividade de tal porte e importância que só pode ser planejada como um sistema
330
integrado, considerando-se o conjunto das diversas variáveis envolvidas; culturais, sociais,
político-legais, econômicas e tecnológicas. Todavia, não há diálogo profícuo e produções
plurais quando o que se tem é o interesse restrito em uma expectativa ampla e plural.
Tal complexidade foi analisada em imagens produzidas pelo fotógrafo potiguar Canindé
Soares, objeto central desta tese, traçando a sua trajetória. Seu discurso denota uma
multiplicidade de variantes econômicas da sua vida privada, de campos de atuação, do
reconhecimento que tem em âmbito social e político, de dicotomias das imagens e da própria
inserção no cenário potiguar. Sua produção é de milhares de imagens, escolhemos uma
quantidade restrita vinculada a produção específica do segmento religioso católico que
recentemente foi abarcado diante dos interesses dos agentes que tratam do turismo em âmbito
nacional, levando essa influência ao regional. Não nos debruçamos a uma análise à arte de
Canindé Soares por si só, porém, a uma crítica aos discursos que articulados a vários elementos,
nesse caso do turismo, legitimam uma visualidade do Nordeste que o remete ao seu mito de
origem elaborado pela elite agrária em declínio econômico e político.
É preciso ressaltar que as fotografias de Canindé Soares abordam temáticas amplas. As
suas imagens, em termos gerais, suportam a transformação de uma identidade submersa à
política social e econômica que se materializa na experiência do consumo, na
contemporaneidade. Sob a égide do capitalismo neoliberal e a promessa do desenvolvimento
regional e local materializa em sua obra a paisagem da sociedade no espetáculo, transforma-a
em espaço de atração, de visitação e de contemplação. Ao tratarmos de um padrão comum das
visualidades do Nordeste o autor, em grande medida, é inovador, uma vez que vai de encontro
à estética padronizada, o que pode ser percebido em suas escolhas, como por exemplo, abrir
mão da dramaticidade encontrada nos tons Preto e Branco. Tal estratégia está atrelado ao fato
de que o fotógrafo busca articular nas imagens as paisagens ao moderno e ao tecnológico; dar
um colorido saturado a paisagem da caatinga; destacar açudes transbordando em águas e sendo
utilizados como espaço de lazer pela população, destacando o espaço vivenciado em seu contra-
uso; mostrar as pequenas cidades transformadas pela multidão, luz e tecnologia, por dar a ver
santas padroeiras em cidades do interior carregadas em caminhonetes importadas.
Canindé Soares foge do olhar clichê ao transformar elementos que emergiram no
discurso da dor em quadros alegres, de vida e de promoção do espaço. Apresenta a paisagem-
nordestino potiguar em sua arquitetura vertical e moderna, nas luzes da metrópole e dos eventos
de grande porte. Portanto, esse fotógrafo estendeu seu foco para o contemporâneo e
esteticamente valorizado nas cidades e conseguiu ampliar o seu horizonte de oportunidades.
Todavia, sendo alguns elementos parte do aspecto cultural responsável pela própria
331
construção da região, Canindé os representa em seu enquadramento. Esse é o sintoma que surge
como resquício de um passado que se apresenta na memória coletiva. Em sua latência os
sintomas expressos no arquivo mental do autor atuam no direcionamento do registro fotográfico
para a recriação de identidades que forjam novas paisagens a partir de celebração religiosa nos
moldes contemporâneos.
Sobre as análises da fotografia se fez necessário um estudo em relação aos discursos e
as suas ideologias; no qual tomamos a fotografia enquanto imagem crítica e reflexiva das
relações sociais a partir da sua potência epidérmica. Isto é, do seu alto nível de reprodução,
análise desenvolvida por Georges Didi-Huberman e que vigora por meio da arqueologia da
impressão; com o visível sendo interpretado por sua constante aparição a partir de um discurso
permeado por questões sociais, econômicas e estéticas enquadradas em seu recorte.
Acrescentamos a concepção de Didi-Huberman o conceito de espetáculo tal qual define Guy
Debord e construímos a ideia de se olhar a fotografia na busca do enquadramento
espetacularizado. O enquadramento espetacularizado aponta o discurso cúmplice dos sintomas
em relevo, que elaboram a representação ideológica do espaço.
Nesses termos, buscamos apreender o que nessa tese se chama enquadramento
espetacularizado a partir da confluência entre a fotografia a paisagem e o turismo. Tendo em
que conta que o turismo se faz a partir do consumo de paisagens. Nelas alguns elementos devem
chamar a atenção, apelar à impressão de condições pré-existentes que em relevo são
espetacularizadas a fim de determinado conteúdo cativar o campo da visão. Ficou bastante
explícito que a fotografia dialoga com os discursos cujo processo histórico serviu como
legitimador de ideologias; assim como se transforma a partir de novas leituras em um elemento
discursivo, que revela e diz sobre relações socioespaciais a partir do ponto de vista de seus
produtores que instituem a sua caracterização enquanto espetáculo para o turismo.
Exploramos os discursos que acenderam as ideologias para a construção da paisagem
nacional no turismo, o que propiciou na construção do regional, momento em que emergiu a
ideia do Nordeste e das suas paisagens. Enfatizamos as políticas que, juntamente, com outras
relações, imbricadas no cenário global/local, trouxeram a possibilidade do crescimento e d
desenvolvimento regional, porém a qual na prática ainda tem barreiras nas chamadas políticas
públicas de desenvolvimento do turismo, no caso específico, do turismo religioso - seja nas
esferas municipais, estaduais ou nacional.
As pesquisas de campo, a construção teórica sociológica, o desenvolvimento empírico
de gráficos e tabelas dialogam com a necessidade de um olhar mais apurado para esse campo
religioso de atuação do turismo. Isso porque a tese demonstrou que as políticas públicas, apesar
332
de priorizarem em seu escopo os aspectos plurais da realidade social, com referência a política
escolhida: o PRT, que tem como estratégia basilar facilitar a coordenação de esforços na
implementação do turismo articulando o poder público, a iniciativa privada e a sociedade civil.
Contudo, na prática a apresentação de resultados não surte o efeito desejável para fomento da
atividade em prol das expectativas almejadas diante das realidades locais.
As transformações que envolvem os moradores locais são ínfimas; a multiplicidade
religiosa esbarra no catolicismo; os discursos em prol do turismo cultiva os mitos passados de
uma oligarquia agrária que teve seus símbolos ampliados no plano político e econômico e
incorporados nos mais variados campos das produções culturais. O tom desses discursos,
muitos preservados até os dias atuais, obstruem a emergência de formas criativas de se pensar
e recortar visualidades a partir de novas paisagens turísticas para a região. Impossibilita ações
criativas nos espaços, alimentam o privilégio e o interesse restrito a poucos grupos. A própria
academia, em muitos casos, se restringe as questões culturais submetidas e distribuídas diante
da lógica do turismo.
Não se pode considerar os conceitos de religião/religiosidade dissociados da dimensão
local que a caracteriza quando conformada ao sistema territorial do turismo. Em verdade
podemos dizer que o turismo religioso constitui uma atividade econômica territorializada
quando os seus ativos fundamentais; os atrativos paisagísticos; a história e a cultura marcam
em seu conjunto uma identidade social e territorial, com o poder de atrair investimentos
públicos e privados, nacionais e internacionais.
Ao abordarmos a relação turismo e religião e religiosidade, um aspecto relevante é o da
debilidade econômica do local considerado turístico. Pois quanto mais ou menos deprimido
economicamente for o turismo irá se inserir no contexto socioeconômico cumprindo funções
de distintos matizes e alcances: como atividade dominante; como atividade estruturante; como
atividade complementar; ou como atividade residual, dependendo de onde se localizem as
atividades turísticas e da importância que elas assumem na economia verificada.
Em termos econômicos o turismo religioso é referenciado como uma atividade detentora
de relevante potencial de propulsão do desenvolvimento, porém, ocupa números ínfimos em
relação a outras possibilidades turísticas, mais consome do poder público do que destina a
população, como observado em campo. A concepção do turismo religioso se sustenta e abrange
sua espacialidade acessando os enunciados clichês do Nordeste, assim se insere diante das festas
católicas interpretadas no discurso de vários agentes políticos como possibilidade de
preservação da tradição, divulgação da cultura popular; dando a ver a cultura Nordestina como
333
fora da urbanidade contemporânea; mas arraigada ao culto religioso, místico, popular,
folclórico e artesanal.
Para se ter uma noção mais clara, em termos econômicos pode-se observar o
dimensionamento da atividade em âmbito local, isso permitirá comprovar ou não tal potencial,
possibilitando que se qualifique melhor o escopo das políticas públicas e de investimentos
setoriais e infraestruturais. Esse é um exercício importante, visto a simplicidade dos discursos
em prol da aquisição de verbas públicas para a construção de estátuas e templos católicos, ao
mesmo tempo em que tem sido difícil o investimento em ações plurais com privilégio a bens
simbólicos diversos que localizam-se a margem dos discursos dominantes. Esses últimos, ao
contrário do que é suposto, tolhem e retardam o desenvolvimento econômico de modo justo e
equilibrado.
Nos dias atuais, embora os discursos priorizem o turismo religioso e o direcionamento
de verbas para esse fim, essa tese constatou que não existe turismo religioso efetivo em termos
de desenvolvimento no Rio Grande do Norte. O que se tem é um movimento, basicamente
municipal, de excursionistas e peregrinos ligados à fé católica. Isso nutre um movimento
estadual entre as paisagens católicas oferecidas.
Percebemos então que se molda o espaço em torno de um turismo desviado da cultura
imaterial plural e dedicado a megaprojetos de benefícios econômicos questionáveis. Os templos
já foram erguidos e somas suntuosas investidas, mesmo que haja algum tipo de indicador
positivo em termos econômicos, esse não atinge a população de modo amplo por manter ausente
o debate cultural imaterial e a economia interpretativa. Não queremos dizer que o que foi
implantado não deve servir, ou é inválido, mas manteve ausente o debate e o planejamento com
viés democrático. Com isso fica claro que continuar a transformar espaços para o turismo sem
a implantação do processo de planejamento que leve em conta as especificidades e a pluralidade
existente nos locais é simplista e reducionista. Deve-se ampliar os propósitos em termos de
cultura, das suas visualidades e dos agentes envolvidos, abarcando outros olhares, outros
credos. Mesmo no credo hegemônico há novas possibilidades de articulação capazes de
desconstruir preconceitos.
Debater a cultura em sua diversidade e diante da organização espacial que se quer atuar
é uma questão ética que, antes de tudo, deve passar pela transformação dos discursos visuais.
É importante que o planejamento não ajude a fomentar discursos como os atuais onde a
comunicação é sistematicamente distorcida e confunde a realidade linguística com a realidade
fenomenal; como por exemplo o prefeito da cidade de Santa Cruz afirmar que conseguiu
realizar o sonho de construir uma estátua gigante pela “graça de Deus”; negando as mediações
334
políticas e religiosas em torno da obra. Esse tipo de estrutura retira a responsabilidade prática
dos representantes públicos com as questões socioespaciais, desvia o foco das questões
estruturais mais urgentes nas localidades e as insere em um vácuo cultural. Levar a cultura a
sério em seus discursos, produções e visualidades é priorizar o desenvolvimento do capital
humano e social.
Nesses termos para o turismo religioso ser inserido no processo de desenvolvimento
econômico dos municípios da região necessita de maior cuidado dos poderes públicos,
investimento do setor privado, fomento científico das universidades e reconhecimento da
heterogeneidade brasileira.
Por apresentar um caráter múltiplo e abraçar a cultura imaterial o turismo religioso pode
ser um grande dinamizador no processo de desenvolvimento econômico, social e cultural, haja
vista a sua capacidade ampla de inserção de aspectos concretos e de fé. Ele envolve questões
materiais e imateriais, objetivas e subjetivas. E aquilo que é concreto, objetivo e material está
no plano econômico e no político, também, no aspecto sólido do turismo com suas estratégias
e aparatos estruturais tais como a hotelaria, alimentação, transporte, espaços de fruição, etc.,
por outro lado, se agrega valores culturais, imateriais, subjetivos, simbólicos e sustentáveis que
remetem à fé, ao sagrado e profano, a solidariedade, a heterogeneidade; ainda, alimentam a
esperança e dão sentido a vida de muitos. Sociologicamente por mais complexas ou arcaicas
que as sociedades sejam, a instituição religiosa é extremamente relevante em suas estruturas.
Para além da fé, dos aspectos transcendentais, ela possui raízes nas mais diversas estruturas
sociais fazendo parte da cultura imaterial de um povo.
335
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355
APÊNDICES
356
APÊNDICE A- CARTA DE APRESENTAÇÃO A CANINDÉ SOARES
357
APÊNDICE B- CESSÃO DE DIREITOS SOBRE IMAGENS PARA A
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE
358
APÊNDICE C-ROTEIRO DE ENTREVISTA E AUTORIZAÇÃO DE PUBLICAÇÃO -
CANINDÉ SOARES
359
360
APÊNDICE D-TRANSCRIÇÃO DA ENTREVISTA DE CANINDÉ SOARES -
FOLHA COM AS RESPOSTAS DA ENTREVISTA TRANSCRITAS
Informações básicas sobre Canindé Soares
1) Minha família é muito humilde, meus avós também são, paternos e maternos. Não
tive amizade com meu avô paterno porque quando ele morreu eu era muito novo, quem
frequentava muito a minha casa eram meus avós maternos. Depois que nos mudamos para
cidade meus avós maternos vieram juntos. Existia uma tia que era muito próxima e morava
vizinho, era a tia Cristina. Eu tenho outros familiares, mas não somos aquela família de se
reunir, é cada um no seu lugar. Essa tia era a tia que eu gostava mais. Porém aconteceram alguns
desentendimentos familiares, problemas... E houve um afastamento.
Eu casei e fui morar na Zona Norte de Natal, como eu gostava de estar junto da família
vendi a casa do meu pai que se localizava no bairro de Dix-Sept Rosado e comprei para ele uma
casa próxima a minha. Comprei uma casa perto da minha para a gente ficar juntos. Sabe essa
coisa de gostar de ficar junto, então, éramos vizinhos: eu, meu pai e minha irmã e ficamos muito
tempo morando vizinhos até que meu pai decidiu voltar para o interior. Ele queria voltar para
as origens, aí nós nos afastamos um pouco, aí para visitá-lo ficou mais difícil, eu não ia sempre,
apesar de ser perto, é uma distância de 210 a 220 km, mas eu só ia visitá-lo uma vez por mês,
as vezes de dois em dois meses, ficou mais difícil o contato. E depois que a minha mãe faleceu
eu estive lá só duas vezes, mas me senti muito mal, fiquei muito mal quando chegava em casa,
então depois que a minha mãe morreu eu me afastei do meu pai, mas este afastamento se deu
também por questões financeiras.
Minha mãe morreu em 2014, nesse período eu fiquei afastado do meu pai, a questão
financeira tem pesado, preciso realmente cortar as viagens, cortar as despesas. Eu tinha
planejado ir agora em fevereiro visitá-lo, eu acho que agora já da pra eu suportar ausência da
minha. Essa é a relação que a gente sempre teve, de gostar de ficar juntos, sempre perto e hoje
eu moro vizinho a minha irmã, olha que coisa boa! Eu só tenho duas irmãs, uma é deficiente e
ficou no interior e a outra é essa, que é casada e que eu tive a felicidade de comprar uma casa
vizinha dela. Isso pra mim é muito bom, eu me sinto feliz em estar perto dela, o nome da minha
irmã é Marluce, mas a minha mãe chamava ela de Eliene. Essa é uma história engraçada, depois
que ela foi registrada alguém próximo colocou nome da filha, também, de Marluce, uma outra
criança, minha mãe não gostou nada de outra criança se chamar Marluce e passou a chamar a
minha irmã de Eliene.
361
Já sobre a minha avó lembro (a materna) que ela era muito próxima, muito brincalhona,
muito gaiata, eu sinto muita falta dela. O terreno do meu pai em Dix-Sept Rosado era muito
grande e ele deu uma parte para a minha avó construir.
Sabe que eu talvez seja único da família, de todos, eu sou o único que costuma visitar
os parentes, eles nunca vão na minha casa, ninguém vai na minha casa, eu que vou na casa dos
meus tios, irmãos da minha mãe, tem um irmão e tem uma tia da minha mãe que faleceu
recentemente. Sou sempre eu que vou lá, talvez seja algo de família ou cultural da cidade, eles
não gostam de visitar, mas eu sempre vou na casa deles.
Sobre o meu nome foi uma promessa e eu tenho uma promessa pra pagar que eu não
paguei lá em São Francisco do Canindé, minha mãe fez uma promessa que eu deveria ir vestido
de Canindé lá para o Ceará, mas eu nunca vou fazer isso, realmente eu nunca vou fazer isso.
Em termos de religião eu sou católico, mas eu tenho alguns questionamentos, eu sempre
pensei assim de não me apegar a religião, as vezes até eu falo brincando: graças a Deus eu não
tenho religião. Eu acredito em Deus e eu me denomino da religião católica (risos), eu acredito
em Deus, mas eu não aceito muitas coisas... Tem coisas que realmente eu não sei... Eu já pensei
até em ser crente, mas lá também encontro coisas parecidas, são coisas que acho um absurdo.
Eu não gosto de religião, na realidade da mesma forma que tem coisas erradas na igreja
de crente, tem na igreja católica. Como eu quero falar? Bem, são coisas que fogem das coisas
normais. São atitudes que fogem das coisas normais da razão, do pensamento, da solidariedade,
da amizade, de sentimentos. Esses sentimentos muitas vezes faltam dentro da religião, eu acho.
A religião da gente é o amor, o respeito. Isso as vezes falta dentro da religião, falta o sentimento
de respeito e de amor verdadeiro, nós vemos muito inveja e uma série de coisas que eu não
aceito. O meu pai é muito católico, ele vai para a igreja todos os dias, ele assiste à missa na
televisão ele escuta a missa pelo rádio, são todos os dias.
Ele briga porque a gente não reza. Ah, tem dia que eu sinto muita saudade dele, eu estou
louco de saudade dele, preciso visitá-lo. Meu pai é muito ranzinza, ele parece com o seu Lunga.
Você conhece o seu Lunga? O seu Lunga é um senhor que mora no Ceará, em Juazeiro, uma
pessoa muito ranzinza, ele inclusive ficou famoso por causa disso, o meu pai parece com ele.
Já a minha mãe é uma pessoa muito simples, muito humilde, ela tinha um orgulho de mim
imenso.
2) Sobre os estudos eu tinha muita vontade de fazer uma Escola Técnica, os meus filhos
fizeram a Escola Técnica, um deles hoje é funcionário do IFRN. O meu outro filho faz faculdade
de tecnologia da Informação no IFRN, os meus filhos realizam hoje o que eu não realizei.
362
Eu estudei até o terceiro ano do segundo grau, naquela época chamava de segundo grau,
mas eu não terminei o terceiro ano porque eu fui ser militar trabalhava, nossa, eu trabalhava
muito. Eu fiquei impossibilitado de estudar devido à alta carga de trabalho e, é claro, teve
também a minha comodidade, eu me acomodei. Eu fiz até o supletivo lá no Rio de Janeiro e
nesse supletivo eu terminei, mas perdi os documentos e depois fiquei desmotivado.
Eu sempre tive vontade de fazer faculdade, mas pelo menos eu concluí o segundo grau.
Sei que por vários fatores eu terminei não fazendo a faculdade e hoje eu nem me interesso mais
em fazer, porque eu não tenho mais saco de ficar numa sala de aula. Hoje eu tenho outros
objetivos e uma faculdade tomaria muito meu tempo, o meu objetivo principal hoje é fotografar.
Mas, sobre a faculdade, hoje eu tenho até inveja de colegas, puxa, eu tenho um amigo que se
chama Valmir que voltou estudar depois dos 60 anos e terminou faculdade, ele fez Marketing.
E, sabe? Agora está fazendo o mestrado (risos), ele é um amigão de infância e eu falo pra ele:
eu tenho 100% de inveja de você. Digo isso porque hoje eu não tenho coragem de enfrentar a
rotina da sala de aula.
Quando eu era jovem, eu acho que já te falei isso em outras conversas, eu pensava que
teria que trabalhar 30 anos de trabalho em uma rotina de 30 horas, cumprindo uma rotina igual
de trabalho, isso era muito ruim. E graças a deus eu não preciso ter essas profissões que tem
que cumprir 30 horas de trabalho direto, com rotina, hoje eu tenho uma profissão que eu amo,
ela não tem rotina.
Eu não fiz faculdade, mas hoje eu dou palestras, dou palestras tanto na UNP
(Universidade Potiguar), quanto na Universidade Federal, eu dou dezenas de palestras. É
interessante isso, mas a nível do curso de jornalismo eu digo que a maior escola é a redação do
jornal diário e eu passei pela redação da Tribuna do Norte. Eu coloco isso sempre nas minhas
palestras: um jornalista só é completo quando ele passa pela redação de um jornal diário, essa
é a grande prática; você está lá dentro e você sai pra pauta e você tem que voltar com um
resultado, não é só esse procedimento, existem outros ensinamentos da redação, ela te ensina a
construir o texto, te ensina a deadline, o tempo limite. O próprio repórter fotográfico tem que ir
pra rua, ele tem que produzir imagens e isso te ensina a informar e a produzir a notícia para
informar bem através daquela imagem. Isso tudo eu tenho, isso tudo eu construí, eu não tenho
uma teoria acadêmica e se eu tivesse essa teoria acadêmica seria muito bom pra mim. A prática
eu sei que eu tenho, mas realmente eu sinto que falta a teoria acadêmica e a falta da teoria
acadêmica me deixa limitado, se eu tivesse passado pela academia, pela universidade seria uma
coisa muito mais bacana.
363
Ah! Tem o Sandro Fortunato que me ajuda muito ele me deu muito incentivo nesse
lance de estudo, inclusive foi ele o cara que me chamou atenção para a importância das minhas
fotografias com um documento histórico, ele me ajudou muito, me incentivou muito a produzir,
ele também chegou a me incentivar a ler, porque eu não leio, eu leio muitas revistas, mas livros
eu não leio e pelo incentivo dele eu comecei a ler alguns.
Tem alguns autores que eu tenho que ler, eu me cobro, eu sempre estou dizendo isso,
mas eu não consigo colocar em prática, mas eu vou colocar qualquer hora. Eu acho que ler seria
até mais importante ou tão importante quanto à faculdade. É eu sei que tenho que fazer isso, a
faculdade talvez não, mas eu sei que eu preciso ler.
Eu encontrei com o Sandro há uns três meses atrás e eu dei um carão nele, eu disse: -
cara você me incentivou a ler, você me deu livros e depois me abandonou. E esse cara, ele lê
pelo menos um livro por dia, ele é um intelectual e olha, é um cara novo, é um cara que deve
ter entre 45 ou 48 anos.
Sobre o período no Rio de Janeiro, eu fui para o Rio de Janeiro em 1981, voltei no final
de 1987, e nesse momento já havia a influência da fotografia na minha vida porque quando eu
fui ser militar eu já levei a câmera do lado e antes de ser militar eu já fotografava os militares
comercialmente, eu comecei inicialmente vendendo as fotos, foi uma continuação de um
trabalho que eu já tinha iniciado, não era a fotografia documental era um registro para
sobreviver eu precisava vender a foto, era uma profissão, a fotografia era um produto para eu
poder conquistar alguma coisa essa fotografia que tem a importância documental, o documento
histórico, eu acho que eu comecei no início da década de 1990, mas no final dos anos noventa
e na década de dois mil foi quando eu despertei para essa vontade de fotografar o documental,
o próprio jornalismo me deu esse direcionamento, o jornalismo foi me motivando e o Sandro
me incentivou muito, o Sandro sempre falou: Canindé sobre o seu trabalho no futuro ninguém
vai poder pesquisar Natal sem passar pela sua fotografia ele sempre me falou muito isso.
3) Voltando para infância parece que eu não tenho memória, eu tenho uma vaga
lembrança, minha memória é muito curta, tenho problemas de memória (risos), eu consigo
lembrar de coisas pontuais, eu morava naquela casinha, eu lembro da janela pra rua, eu lembro
de algumas brincadeiras de bola com as poucas crianças, pois ali era um sítio e eu tenho flashes
do campo de futebol que nós fizemos. Eu tenho muita lembrança de injeção, por isso o meu
medo de injeção, sabe eu tenho medo mesmo de injeção e naquela época era diferente, eu ficava
doente e chegava o cara lá, levava aquele troço e colocava aqui, passava o álcool... Eu lembro
de doenças, de febres, eu lembro que meu pai me levava para Santa Cruz mas eu cheguei em
364
Natal ainda criança eu cheguei em Natal com 7 anos, eu tenho que confirmar com meu pai o
ano que nós viemos para o Natal mas eu acho que foi em 1967, acho que eu tinha uns sete anos,
o que eu lembro na verdade é que nós mudamos muito e na segunda ou terceira morada nossa
casa era em frente ao campo de futebol e eu nunca chutei uma bola porque o meu pai usava a
gente pra trabalhar, ele matava a criação, se não me engano três vezes por semana, ele matava
dois bodes e duas ovelhas e a minha mãe fazia o tratamento da buchada e eu levava em uma
bacia na cabeça lá para Ribeira, meu comprou um cesto para eu ajudar, eu tinha entre nove e
dez anos e trabalhava para ajudar na renda. Na rua onde eu morava também tinham feirantes
nos dias de sábado, eu ia também para ajudar os feirantes e as minhas irmãs ajudavam em casa,
apenas uma porque a outra é deficiente.
4) Eu não tenho mágoa de ninguém, minha mãe sempre colocou na cabeça da gente uma
certa inocência, talvez a única magoa seja de um familiar muito próximo, mas são questões que
não cabem aqui.
5) Uma coisa que me marcou muito foi a perda da minha mãe eu ficava até preocupado
imaginando como ia suportar, a gente sente muita falta... Eu consegui muita força para suportar
sabe quando eu estive em São Bento, depois que ela faleceu, eu não aguentei ficar lá. A minha
mãe foi muito amiga, eu era tudo pra ela e vice-versa, ela tinha muito orgulho de tudo que eu
fazia.
6) Sempre quem me apoiou foi a minha mãe, inclusive ela foi a única pessoa que soube
que eu pedi baixa no quartel, meu pai não sabe até hoje que fui eu, não imagina que eu pedi
baixa. Eu queria levar uma vida de artista a minha mãe me apoiava em tudo (risos), meu pai até
hoje acho que a Marinha me deu a baixa. Na cabeça do meu pai sair de um emprego era ser
vagabundo (risos), ele falava: “isso é coisa de vagabundo...” Eu tive muitos empregos, trabalhei
no alecrim em comércio e aquilo me aborrecia e com pouco tempo e já não aguentava e pedia
para sair. O pensamento do meu pai é bem de pessoas do interior, são as coisas do interior, o
cara lá no interior, sem nenhuma cultura... Sobre a fotografia ela me deu todo o apoio, a minha
mãe era uma pessoa humilde, simples, ela era praticamente semianalfabeta, mas ela gostava de
ler, ela lia o básico, mas gostava de ler e ela tinha orgulho de tudo que eu fazia, qualquer coisa
que eu fizesse pra ela era o máximo. Sempre que eu ia pra São Bento a galera vinha me contar
que quando via uma reportagem minha na TV falava pra ela, ela achava o máximo. Lá em São
Bento na nossa casa para assistir TV tinha parabólica e na parabólica não pegava o sinal local,
as pessoas que me viam nos programas locais falavam pra ela: eu vi o Canindé. Era o orgulho
dela.
365
7) A relação que eu tenho com o estado do Rio Grande do Norte é uma relação de paixão,
tanto que eu fui pro Rio de Janeiro, uma cidade grande, e eu voltei pra cá. Voltei pra desenvolver
o meu trabalho, é uma cidade bonita, talvez a mais linda e eu voltei por essa paixão que eu
tenho. Essa paixão pelo Rio Grande do Norte eu tenho desde criança, veja na minha infância
nós fizemos algumas mudanças de lugares e eu lembro que eu sentia muita saudade, eu sentia
saudade do local. Tem a ver com a falta que eu sinto dos amigos, dos conhecidos, saudade da
relação de convivência, tudo isso é muito forte, é uma questão de paixão; é um sentimento que
muda de pessoa para pessoa, tem gente que é diferente que vai embora e esquece. Eu não, eu
lembro do sítio, eu tenho uns flashes do sítio, lembro do roçado que o meu pai plantava algodão,
lembro que lá foi onde levei uma queda de jumento quando eu tinha seis anos e eu fiquei com
trauma de montar em jumento e o restante das lembranças são aqui em Natal, em Dix-Sept
Rosado, ali é aonde terminava a cidade de Natal, era saindo de lá que nós íamos para o alecrim,
para feira, para a Ribeira, para vender as carnes. Eu não tinha muitos amigos, eu era uma criança
tímida e afastada. A minha timidez era talvez pela simplicidade, por eu ser uma pessoa pobre,
por eu ser uma pessoa discriminada, eu não tinha muitos amigos, eu me lembro de um amigo
que a gente estudou, fiz a oitava série, fiz o primeiro ano, fiz o segundo ano com ele. Ele era
muito meu amigo, era de uma família classe média e me tinha muita atenção, o nome dele era
Eduardo. E depois o Eduardo desapareceu, quando nós terminamos o estudo nós nos
encontrávamos sempre, depois que ele desapareceu ficamos muito tempo sem nos ver e eu
consegui encontrar ele muito tempo depois em Guamaré.
Lá em Guamaré ele estava trabalhando em um posto de gasolina, ele era gerente e está
muito rico, porque casou com uma pessoa muito rica de lá, hoje ele é crente me levou lá, me
apresentou a família toda. Sabe ele é único dessa minha época de infância que eu lembro, que
ficou a lembrança, já os outros eu não tenho contato.
8) Eu tenho orgulho de ser do Nordeste, se eu estou aqui eu tenho que me orgulha disso
aqui, se eu fosse nascer de novo eu não queria nascer no Rio de Janeiro ou nos Estados Unidos
eu queria nascer aqui, queria nascer aqui no nordeste eu sou daqui. E eu tenho também uma
relação de bairrismo com o nordeste eu gosto do Nordeste e pt saudações, eu tenho orgulho eu
acho muito bacana eu não escolheria outro lugar pra nascer. Se me falassem que iria nascer de
novo e me pedissem para escolher aonde eu diria que quero nascer lá naquela casinha, lá naquele
sítio na roça, aquele que você viu na foto.
Trajetória Profissional do Canindé Soares
366
A trajetória na fotografia começou mais ou menos, eu acho que você já sabe, mas eu
vou repetir, eu fui trabalhar numa loja de carros e eu trabalhava como uma espécie de vigia,
não era um contínuo eu era um tipo de zelador lá. Eu zelava os carros, mantinha-os limpos. E
o Alecrim ali era um bairro residencial, isso era no ano de 1977 e eu vi um cara passando com
uma caixinha para entregar fotos, fiquei curioso e procurei saber o que era. Ele me disse que
entregava fotos para um estúdio daqui, o estúdio do filho do Jaeci Galvão, era o Fred Galvão.
E, o cara me disse eu entrego fotos pra eles, pro filho do Jaeci, Fred Galvão, para o Lauro
Maranhão e Gildésio que era um conhecido jornalista aqui. E depois de ver esse rapaz
entregando essa caixinha eu decidi, também que queria entregar esse material. Foi aí a minha
primeira aproximação com a fotografia.
E foi aí que eu comecei; eu sempre ficava olhando os caras trabalhando eles entrando
no estúdio fazendo a três por quatro eu perguntava: - meu Deus o que é que esses caras fazem
lá dentro, era curiosidade de menino... Eu não entendia, o cara vai lá pra dentro se esconde e
quando volta, volta com essas imagens e lá dentro é tão escuro. E essas perguntas são perguntas
de menino! É uma curiosidade eu ficava muito curioso eu achava que aquilo ali era uma mágica,
Foi assim que eu me aproximei do estúdio, aí eu comprei uma Kodakezinha e comecei a
fotografar. Poxa, mas eles não davam oportunidades eles não mostravam a técnica eu acredito
que o pensamento deles naquele momento era de não criar concorrência. Por isso eles não
deixavam ninguém ver o trabalho. Na cabeça deles fazer isso seria criar um concorrente. Então
eu tive que ir olhando, ver como se fazia, fui buscando... Então foi esse o meu primeiro encontro
com o mercado profissional e depois daí eu caí dentro lá na periferia. Peguei a minha
maquinazinha e fui fazer a minhas fotos na periferia.
Aquele mundo da fotografia era o mundo misterioso e me fascinava, mas na realidade
o que eu busquei nesse mundo foi uma forma de sobrevivência essa é a verdade. Eu comecei a
fotografar crianças filhos de vizinhas não teve ninguém pra me ensinar, não teve ninguém pra
me dar a mão, esse início foi um caminho árduo, sozinho, sozinho mesmo.
Sobre os mestres eu posso falar que o meu grande mestre foi o curso que eu fiz por
correspondência nas Escolas Associadas que era um curso mais barato, que pertencia ao
Instituto Universal brasileiro. Sabe e eu nem cheguei a terminar esse curso, não tive condições
de terminar esse curso, mas ele foi o meu mestre e quando eu podia a minha referência era a
revista Irís foto. A revista íris foto era realmente uma grande referência na fotografia, era uma
revista mensal e quando eu podia eu comprava, mas não era todo mês que eu podia comprar.
Ah, na revista, eles tinham muitos artigos, os que mais apareciam eram os do Clício
Barroso, fotografo bem conhecido. Naquela época o Clício escrevia artigos e fazia ensaios de
367
moda e publicidade e o Clício tornou-se meu amigo depois. E a nossa amizade começou assim:
eu fui para um congresso em São Paulo e o Clício estava lá e nós começamos a trocar ideia por
e-mail; me parece que foi criado um grupo de discussão e foi a partir desse grupo que nos
aproximamos, mas era um grupo de discussão de e-mail isso foi em meados dos anos 90, foi
quando eu tive acesso ao computador e a internet. E nessa época não eram as redes sociais,
eram grupos de discussão em e-mail e foi aí que eu conheci o Clício e depois disso eu comecei
a criar eventos em Natal, eventos para ensinar a fotografia, e eu convidei o Clício várias vezes
para vir falar aqui em Natal.
Olha fizemos muitos cursos bacanas; curso de moda; curso de software; curso de
Adobe... O Clício sempre vinha e hoje ele é um consultor da Adobe, né? A empresa que criou
Photoshop e o Lightroom. Eu estou até pensando em organizar um novo evento e trazê-lo. Vou
trazer ele esses dias por aqui. Ele foi um dos meus mestres, ele foi o meu ensinamento, ele é
um nome muito forte na minha vida. Fora isso os ensinamentos que eu tive foi eu mesmo
organizando... Seminários de fotografia, o seminário do Photoshop, workshops... Eu lembro
que eu fui convidado para dar um curso de fotografia no Sesc, nossa e eu lembro que eu não
sabia nada... Eu não entendia nada, tudo que eu tinha era só a vontade de realizar algo. Eu me
tremia, eu ficava tremendo pra falar só pra trinta e quatro pessoas mas eu fui lá e formei uma
turma; eu montava turmas e também montei o meu laboratório em preto e branco.
Sylvana a minha vontade de aprender as fotografias é tão grande que eu fiz um jornal,
eu já te falei, também, sobre isso, eu fiz um jornal e eu datilografava a matéria e sobre ela eu
tirava uma foto, ia pro quartinho, que era um banheiro e revelava a foto. Daí eu colava na folha,
reproduzia e distribuía tudo que eu tinha era somente à vontade eu acho que eu nome do jornal
era em Foco. Nessa época eu procurava fazer muita coisa, queria aprender a montar esse
laboratório, inventava esses cursos e foi justamente inventando esses cursos, dando aula, me
disponibilizando pra ensinar que eu aprendi, foi assim que eu fui aprendendo e com tempo eu
fui aperfeiçoando. Com isso de ensinar eu aprendi...
Eu fiz um evento aqui tão bacana que eu chamei de maratona fotográfica, foi naquela
época do filme de 36 poses, nós dividíamos esse evento em cinco pautas, as pautas eram assim:
10 minutos fotografando aqui que deveria dar tantos fotogramas, aí já corríamos pra outro lugar,
tudo era cronometrado. Olha, veio gente de Recife, de João Pessoa, veio muita gente participar
desse evento. Foi uma coisa bacana que eu elaborei sozinho na minha cabeça e deu certo. 150
pessoas vieram participar desse evento.
Eu também participei de algumas coisas, fui pra São Paulo e agora vai ter um congresso
em Recife que me fez lembrar de uma coisa que aconteceu lá no início dos anos 90, no
368
comecinho da minha carreira, eu participei desse congresso que eu vou agora, mas, na época
era uma coisa tão falada, tão falada no início dos anos 90, que eu nem sei como e nem porque
eu participei...
No início como eu não tive apoio, eu peguei essa Kodak simples e com ela eu comecei
a estudar os princípios da fotografia. Eu estou lembrando agora que no começo eu tive o apoio
sim, contei com apoio de uma amiga minha, ela tinha uma câmera e ela me emprestou essa
câmera bem simplezinha. E eu fiquei fazendo foto com essa câmara e depois eu comprei uma
também bem simples e fiquei fazendo a foto, mas isso tudo era o início era aquela vontade de
aprender. Se eu não me engano essa câmera que a minha amiga me emprestou utilizava um
filme bem fora do comum era um filme 127 mm da Kodak. Eu lembro que a Kodak lançou o
filme 126mm e o filme 110mm e esse 127mm. Esse último praticamente não tinha no mercado,
lançaram algumas câmeras com esse filme de 127mm e depois viram que não dava certo essa
era o filme da câmera Kodak da minha amiga.
Então, depois eu comprei a minha Kodak comprei uma 126. E depois eu comprei outra,
era simples, pequenininha, era uma xereta de 110, o cartucho dela era 110. A primeira câmara
era muito sofisticada, uma semi- profissional, não era profissional até porque ela não trocava
de lente, eu consegui essa máquina trocando com um amigo, ela tava até quebrada, mas ela
funcionava e eu sozinho tirava as minhas fotos com ela, mas só funcionava durante o dia. Aí
depois eu comprei uma Canon, uma profissional que se chamava FTB. Só funcionava durante
o dia porque não tinha o flash. Depois comprei outra Canon FTB que parecia um trator: toda
de ferro. Era toda manual e tinha que saber fotografia, porque se não, não se mexia com ela. E
a semi-profissional era uma Yashika eletro 35. Aí, quando eu comecei a trabalhar mesmo com
a fotografia foi a Canon FTB, totalmente mecânica, manual... Eu me preocupava muito com a
exposição e essa tinha um fotômetro mecânico, me preocupava com essa meia luz, sabia
exposição, velocidade... E a coisa começou com essa câmara aí.
E se você pensa q existiu ajuda, não houve nada, eu fui sozinho mesmo. Eu fui
descobrindo o caminho das pedras, um caminho solitário e sem condições financeiras. O Clício
foi uma grande inspiração, mas tem outros nomes também.
Sobre o espaço de atuação: turismo e fotografia – Nordeste e Rio Grande do Norte
E sobre os fotógrafos do Rio Grande do Norte eu posso até ter sido injusto em algumas
entrevistas por não ter citado, mas pra mim não existe fotógrafo de paisagens como o Giovanni
Sérgio, com certeza eu estou hoje aqui, eu sou fotógrafo paisagista, agradeço também ao
Giovanni Sérgio.
369
O Giovanni Sérgio foi a grande inspiração porque ele é o cara que sempre fez fotografia
de paisagens, entre a publicidade, a gente trabalhava as referências paisagísticas. Então, o
Giovanni Sérgio me influenciou na paisagem, mas tem muita moda, por exemplo, tem muitas
pessoas que gostam do preto e branco, mas essa técnica eu não tenho agrado, não sei se é por
causa da paisagem que eu gosto muito, porque eu sou fotografo de paisagem e a paisagem ela
tem cor, né? Ela não é preto e branco.
A fotografia preto e branco eu acho que não é uma boa influencia para mostrar a
paisagem, eu nunca quis seguir pra esse lado, eu não faço preto e branco. Eu até costumo dizer
que o preto e branco é uma fotografia muito difícil de fazer e eu me identifico muito com a cor.
Sabe, uma vez o fotógrafo Marcelo Baunai que é um grande amigo meu, grande nome da
fotografia, um grande um ganhador de prêmios. E ele segue a linha Cartier Bresson, ele é um
dos que pega a minha foto e fala: - rapaz essa foto tem que ser preto e branco. Eu olho pra ele
e digo, não Marcelo, não tem não, não tem que ser preto branco, eu faço colorido. Quando eu
vejo fotógrafo fazendo colorido, preto e branco, colorido em preto e branco e vai lá e coloca no
ensaio dele tudo isso misturado, eu penso logo: aí, esse cara não está conseguindo se organizar;
é claro que você pode fazer os dois, mas você não pode misturar isso no mesmo ensaio. Você
tem que saber separar as coisas, esse ensaio eu vou fazer preto e branco, o outro ensaio eu vou
fazer colorido mas não pode misturar. Quando você mistura dá pra perceber que você é uma
pessoa que não se define, que não sabe o que quer, e você tem que recortar uma realidade, saber
o que você quer. Quando você faz isso no seu ensaio mistura preto e branco a gente vê que você
está perdido, que você não se define, que você não sabe o que você quer.
Eu tava vendo essa semana uma reportagem, na reportagem eles ficavam dando aqueles
flashs preto e branco no meio, eu penso: - cara não tem nada a ver fazer isso, em algumas
situações têm, mas o editor exagera, você tem que se definir na fotografia, principalmente, você
tem que escolher o que você quer; você até pode fazer os dois, mas as pessoas não podem ficar
na dúvida sobre o seu trabalho, mas elas tem que ver o que elas se identificam mais em cada
tipo de ensaio, não quer dizer que você tenha que ser fotógrafo só do colorido ou só do preto e
branco, mas isso é uma coisa que você tem que definir e você define a partir da temática: eu
vou fazer favela; eu vou fazer gente; eu vou fazer crianças pobres e humildes. Daí eu penso:
isso aqui tem que ser o que? Tem que ser preto e branco ou tem que ser colorido?
A minha opção pelo colorido é porque o colorido é o real e o preto e branco você tem
que transformar a informação no real, pra mim é bem mais difícil, porque você só tem duas
cores, então você tem que entender não só da questão da luz na influência daquelas cores, mas
da nuance do cinza, do preto no colorido, não é como o real do colorido, esse é muito mais fácil
370
e prático e eu gosto da praticidade. Fazer o colorido é mais prático e pra que eu vou fazer o
preto e branco se eu tenho dificuldade, pra que eu vou mexer no meu colorido se o resultado
está satisfatório?
Eu gosto da fotografia preto e branco, mas, não pra eu estar trabalhando com ela. É uma
fotografia importante, tanto é que os maiores nomes da fotografia, como o francês Henri Cartier
bresson e o brasileiro Sebastião Salgado escolheram o preto e branco.
Essa minha escolha tem também a ver com meu trabalho no jornal, me marcou bastante.
Engraçado, o que eu posso dizer que me marcou não foi um fato ou um personagem, mas o que
me marcou foi trabalhar na redação do jornal, trabalhar no jornal dois pontos que foi o começo
da minha aproximação com o jornalismo. O Flavio Rezende é um personagem do jornalismo é
uma pessoa que eu posso falar que é um ser humano excelente, ele só tem um defeito, o defeito
dele é que ele fica agora escrevendo matéria direto detonando o PT. Detornar o PT é o defeito
dele (risos). Eu já aconselhei, já mandei ele parar com isso, já falei: - homem para com isso,
não faz parte da sua índole, mas ele me responde: Não, não, não, eu vou detonar sim. Mas ele
é uma pessoa espetacular e no começo, no início da minha entrada para o jornalismo ele foi um
personagem importante, interessante que ele era repórter da tropical e a voz dele é muito chata
e eu tinha raiva daquilo e eu achava que ele era chato. Isso foi muito interessante porque me fez
aprender muita coisa a princípio você olha uma pessoa e cria uma antipatia, no caso dele depois
de conhecê-lo eu vi que era uma pessoa maravilhosa, eu entendi que primeiro a gente tem que
conhecer a pessoa pra depois poder julgar, pra não sair assim jogando preconceito.
371
ANEXOS
372
ANEXO A- TRIBUNA DO NORTE, 15/05/2009
Fonte:
373
ANEXO B- FOLDER DE PROMOÇÃO DAS FESTIVIDADES DOS PADROEIROS
DO ESTADO DO RN
Fonte: Emprotur, 2016.
374
ANEXO C- CAPA: A PONTE
Fonte: Arquivo do fotojornalista Canindé Soares, 2016.
375
ANEXO D- MIRANTES E COMPLEXO TURÍSTICO EM PATÚ
Imagem 1- Primeiro mirante construído no alto da serra
Fonte: Elaborada pela autora (2016).
Imagem 2 - Segundo mirante construído no alto da serra
Fonte: Elaborada pela autora (2016).
Imagem 3 - Terminal turístico em Patu. Obra inacabada.
Fonte: Elaborada pela autora (2016).
376
ANEXO E- REGISTROS DOS MOMENTOS DA PESQUISA DE CAMPO
Início do trabalho com a fotografia: aulas de
fotografia. Em Seattle-WA/ EUA. Registro:
Sylvana Marques.
Participação na Expotour Católica. Arena das Dunas
Natal-RN, Brasil. Registro: Sylvana Marques.
13 de novembro de 2014.
Expotour Católica. Estande de Canindé Soares, 13
de novembro 2014. Registro: Sylvana Marques.
Aulas de digital e analógica com o professor de
fotografia Von McKenelly. Em Seattle –WA/EUA.
Registro: Sylvana Marques.
.
Com Canindé Soares e Joaquim Tour. Expotour
Católica em estande de Canindé Soares, 13 de
novembro de 2014. Registro: Morgana Souza.
Pesquisa de campo: encontro com Canindé Soares e
fotojornalistas do Rio Grande do Norte em
Biblioteca Central Zila Mamede, UFRN. 26 de jul
de 2015. Acervo do autor.
377
Canindé fotografando o 2 Fórum Nacional de
Turismo Religioso, com políticos locais e
representantes do turismo. 19 de agosto de 2016.
Registro: Sylvana Marques.
Solimar Internacional - Empresa Norte Americana
contratada pelo estado para desenvolver o plano
estratégico e marketing para o turismo no Rio
Grande do Norte. Registro de Sylvana Marques
Reunião dos conselheiros da Região Serrana, Patú
30/08/2016. Registro de Sylvana Marques.
30/08/2016.
Reunião do plano estratégico de turismo para o
estado do Rio Grande do Norte com gestores
públicos, representantes da segurança pública e
sociedade civil. Organização da SETUR, em 25 de
agosto de 2016, auditório do Sebrae, em 25 de
agosto de 2016.
Reunião com conselheiros do Turismo. Areia
Branca, RN. 29 de agosto de 2016. Registro de
Sylvana Marques.
Sylvana Marques e Fany Carlos, ex secretário de
turismo e atual conselheiro do turismo em Patú. Em
30/08/2016. Registro de Sylvana Marques.
378
Repentista em apresentação para conselheiros na
reunião de sobre o turismo em Caicó, 31/08/2016.
Registro de Sylvana Marques.
.
Placa anunciando melhorias no complexo turístico
Ilha de Santana. Registro Sylvana Marques. 06 de
setembro de 2017.
Marcela Pessoa, Secretária de turismo de Santa
Cruz, ao lado secretária de turismo de São Bento,
da Diretora do Sebrae, entrevista: 06/09/2017.
Acervo Sylvana Marques.
Souvenirs oferecidos a convidados que
participaram da reunião em prol do
desenvolvimento do turismo em Caicó. 31/08/2016.
Registro de Sylvana Marques.
Placa de Inauguração do Complexo turístico Ilha de
Santana, 06 de setembro de 2017. Registro de
Sylvana
Estande de Canindé Soares em Feira de Turismo no
Centro de Convenções. 08/04/2015. Registro de
Sylvana Marques