UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS CURSO DE DIREITO LETÍCIA OLIVEIRA MESQUITA A EMENDATIO LIBELLI E O PRINCÍPIO DA AMPLA DEFESA NATAL/RN 2019 LETÍCIA OLIVEIRA MESQUITA A EMENDATIO LIBELLI E O PRINCÍPIO DA AMPLA DEFESA Monografia apresentada ao curso de graduação em Direito, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como requisito parcial à obtenção do título de Bacharel em Direito. Orientador: Prof. Dr. Walter Nunes da Silva Júnior. NATAL/RN 2019 Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN Sistema de Bibliotecas - SISBI Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Centro Ciências Sociais Aplicadas - CCSA Mesquita, Letícia Oliveira. A emendatio libelli e o princípio da ampla defesa / Letícia Oliveira Mesquita. - 2019. 112f.: il. Monografia (Graduação em Direito) - Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Centro de Ciências Sociais Aplicadas, Departamento de Direito. Natal, RN, 2019. Orientador: Prof. Dr. Walter Nunes da Silva Júnior. 1. Emendatio libelli - Monografia. 2. Sistema acusatório - Monografia. 3. Ampla defesa- Monografia. I. Júnior, Walter Nunes da Silva. II. Universidade Federal do Rio Grande do Norte. III. Título. RN/UF/Biblioteca do CCSA CDU 343.1 Elaborado por Eliane Leal Duarte - CRB-15/355 AGRADECIMENTOS Em primeiro lugar, agradeço à minha família, que sempre foi fortaleza, protegendo, ensinando e alegrando, e fez-se base para cada passo. Aos meus pais, sobretudo, dedico os triunfos até agora galgados, faço tudo por eles. Sou grata também aos amigos, aos de longa data e aos mais recentes, com os quais construí memórias inesquecíveis, em dias calmos ou agitados, felizes ou angustiantes, mas sempre juntos. Agradeço, igualmente, aos queridos estágios na 17ª Vara Cível da Comarca de Natal, na 15ª Procuradoria de Justiça e na Defensoria Pública da União, onde conheci, quando estagiária, a Def.ª Pub. Lorena Costa Dantas Melo, inspiração como profissional e ser humano. Da mesma forma, gratidão tenho pelo meu orientador, Prof. Dr. Walter Nunes da Silva Júnior, de quem, por tanto considerar, fui aluna, monitora e, finalmente, orientanda. Foram as pessoas que me introduziram na paixão pelo direito criminal. Graças a Deus, tenho muitos em quem me espelhar nestes cinco anos de grandes aprendizados – enquanto aluna, estagiária, pesquisadora, aplicadora do direito, amiga, filha, neta, sobrinha e, acima de tudo, pessoa – e ainda pretendo lhes orgulhar muito. RESUMO O predomínio de uma concepção acrítica no que diz respeito ao tratamento da emendatio libelli, posta ao artigo 383 do Código de Processo Penal, torna imprescindível e urgente seu estudo a partir das lentes da Constituição de 1988, em especial análise diante da escolha pelo sistema acusatório e do princípio da ampla defesa. Este trabalho vislumbra redimensionar o conceito e a operação do instituto, o que busca a partir de uma análise sempre crítica da doutrina, da jurisprudência e das construções legislativas atinentes à matéria. É contextualizada a problemática, com a imprescindível designação dos seus fundamentos constitucionais, e é evidenciada a necessidade de repensar-se a disciplina da emendatio libelli frente aos princípios informadores extraídos do texto constitucional. Na sequência, é feita uma digressão sobre a evolução legislativa no tema, demonstrando as frustradas reformas, em combinada enumeração das abordagens normativas no direito comparado. Ainda, são efetivamente recategorizadas as modalidades de emendatio libelli tradicionalmente reconhecidas e debatidos os momentos processuais para tal. Nessa edificação, conclui-se, definitivamente, pela atecnia jurisprudencial no enfrentamento do instituto, bem como são pormenorizadas as peculiares hipóteses a demandar novas alternativas procedimentais. Ao fim, são expostas algumas consequências da adoção ou não das alternativas procedimentais propostas. Palavras-chave: Emendatio libelli. Sistema acusatório. Ampla defesa. ABSTRACT The predominance of an uncritical conception regarding the treatment of the emendatio libelli, placed on article 383 of the Criminal Procedure Code, makes indispensable and urgent a study with the lens of the Constitution of 1988, especially considering the choice about the adversary system and the full defense principle. In this way, this work aims to review the concept and the operation about the institute, which seeks from an always critical analysis of doctrine, jurisprudence and legislative constructions related to the subject. The problem is contextualized, it puts the constitutional foundations and the need to rethink the discipline of the emendatio libelli in face of the informing principles extracted from the constitutional text. Following, a digression is made on legislative developments on the subject, demonstrating the frustrated reforms in combined enumeration of normative approaches in comparative law. In addition, it organizes the modalities of emendatio libelli traditionally recognized and the procedural moments for an effectively recategorization. In this building, it is definitively concluded that the jurisprudential technique is insufficient and are listed the peculiar hypotheses that demand new procedural alternatives. Exposed the propositions, finally, are punctuated some consequences of their choice or not. Keywords: Emendatio libelli. Adversary system. Full defense. SUMÁRIO 1. INTRODUÇÃO.....................................................................................................................8 2. A EMENDATIO LIBELLI NO SISTEMA ACUSATÓRIO E OS SEUS PRINCÍPIOS INFORMADORES...................................................................................................................10 2.1. O PRINCÍPIO DA CORRELAÇÃO NO PROCESSO PENAL........................................19 2.2. A PROBLEMÁTICA DA EMENDATIO LIBELLI............................................................24 3. A RELEITURA DA EMENDATIO LIBELLI...................................................................28 3.1. A TIPIFICAÇÃO DA CONDUTA COMO REQUISITO DA AÇÃO PENAL..................29 3.2. O PRINCÍPIO DA NÃO SURPRESA COMO DECORRÊNCIA DO CONTRADITÓRIO..................................................................................................................37 3.3. A DEFESA TÉCNICA COMO ELEMENTO DA AMPLA DEFESA..............................45 4. AS POSSIBILIDADES DE COMPATIBILIZAÇÃO DO ARTIGO 383 DO CÓDIGO PROCESSUAL PENAL À AMPLA DEFESA......................................................................54 4.1. A CRÍTICA SOBRE A EVOLUÇÃO LEGISLATIVA.....................................................55 4.2. O REDIMENSIONAMENTO DAS HIPÓTESES DE EMENDATIO LIBELLI.................67 4.3. AS ALTERNATIVAS INTERPRETATIVAS E PROCEDIMENTAIS AOS PROBLEMAS ENFRENTADOS.............................................................................................78 4.4. ALGUMAS CONSEQUÊNCIAS DAS ALTERNATIVAS PROCEDIMENTAIS ADOTADAS.............................................................................................................................97 5. CONCLUSÃO...................................................................................................................103 REFERÊNCIAS....................................................................................................................106 8 1. INTRODUÇÃO A utilidade do estudo da emendatio libelli funda-se na premissa de que não mais pode o processo penal contentar-se com os brocardos jura noviit curia e narra mihi factum dabo tibi ius, os quais ainda imperam na dicção do instituto. O velho reducionismo, presente tanto na doutrina, quanto na jurisprudência e, igualmente, negligenciado pelos legisladores, determina uma interpretação simplista do artigo 383 do Código de Processo Penal, aquele que, no sistema brasileiro, enuncia a emendatio libelli, com a possibilidade de mudança da tipificação, pelo juiz, em relação à atribuída na peça acusatória e frente aos mesmos fatos nela elencados. O interesse na problemática surge, então, pela imposição de uma releitura do instituto, sob os marcos de um estudo constitucional, tal qual determina um Estado Democrático e Constitucional de Direito, considerando os direitos e garantias do texto de 1988, sobretudo, o princípio da ampla defesa, de especial significação no processo penal. O trabalho, desse modo, a partir de análises doutrinárias, jurisprudenciais e legislativas, todas críticas e em intuito intervencionista, busca desenvolver uma leitura constitucional da emendatio libelli, tendo como objetivos específicos o redimensionamento e a devida categorização do instituto – considerando, particularmente, a importância da tipificação frente ao princípio da ampla defesa –, bem como a delimitação das possíveis alternativas procedimentais, nesse redimensionamento, cabíveis no ordenamento jurídico brasileiro. Ressalte-se que a metodologia embrenhada consiste em: pesquisas bibliográficas atinentes à temática em livros, revistas, monografias, dissertações, teses e artigos científicos, inclusive a partir da consulta ao acervo físico de dissertações e à Biblioteca Digital de Monografias da Universidade Federal do Rio Grande do Norte; pesquisas jurisprudenciais, procedidas a partir dos sites dos respectivos tribunais, especialmente, do Supremo Tribunal Federal, do Superior Tribunal de Justiça, do Tribunal Regional Federal da 5ª Região e do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte; e pesquisas a respeito dos dispositivos normativos importantes à matéria, inclusive pela utilização do direito comparado. Na continuidade destas considerações introdutórias, o segundo capítulo da exposição promoverá a contextualização necessária à compreensão do conteúdo da emendatio libelli, pontuando, em princípio, algumas circunstâncias históricas e explicando o que se entende por sistema acusatório. Na sequência, serão extraídos e examinados, construtivamente, a partir da constatação da escolha constitucional pelo sistema acusatório, os princípios da inércia da jurisdição, do contraditório e da ampla defesa, os quais, por outra via, resultam na conclusão pela necessidade de manutenção, no processo penal, da correlação entre acusação e sentença. 9 Nessa toada, será dimensionado o princípio da correlação no ambiente criminal, renunciando aos institutos da processualística civil e arquitetando que sobreleva, na específica seara criminal, o conceito de imputação. Logo, será articulado que o objeto do processo penal, aquilo lançado pela imputação, deve ser mantido desde a acusação até a sentença, sendo esse o conteúdo do princípio da correlação. Em continuidade, resultará a emendatio libelli justamente como uma exceção a essa regra, de maneira a se pontuar a sua definição e as tradicionais classificações doutrinárias. E, com isso, estarão postas as bases conceituais do tema. Ao terceiro capítulo, será promovida uma releitura da emendatio libelli. Em primeiro lugar, haverá de se descrever as atuais concepções sobre a matéria, quando se manifestam as interpretações fundadas nas acríticas compreensões dos brocardos jura noviit curia e narra mihi factum dabo tibi ius. Depois, tenciona-se demonstrar a relevância da tipificação – aquela que é alterada pela operação da emendatio libelli – frente ao princípio da correlação. Será evidenciado que os mesmos princípios que pautam a correlação, colocados ao segundo capítulo, similarmente impõem uma ressignificação da importância da tipificação. Com isso, particularmente se prosseguirá para abordar a inércia da jurisdição, cuidando da imperatividade da capitulação dos fatos já na inicial acusatória, bem como o contraditório em sua decorrência da não surpresa, apreciando essa noção dentro de um modelo democrático, sua aplicação também às matérias jurídicas e a combinada submissão pelo juiz. Colocar-se-á a grande novidade do sistema brasileiro em sedimentar o princípio da não surpresa, princípio que remete a toda uma ressignificação da tradicional visão do contraditório, no que, consequentemente e em sintonia, será vista a ampla defesa, de leitura diferenciada no processo penal, donde emerge a especificação da defesa técnica, a definitivamente determinar o relevo da tipificação dos fatos. O quarto capítulo ambiciona elencar as possibilidades de compatibilização do artigo 383 do Código de Processo Penal aos princípios informadores mencionados, sob a ótica principal da ampla defesa. Nessa pretensão, será feita análise das construções legislativas brasileiras e das suas sucessivas e frustradas tentativas de reformas, ao que se comparará a legislação a dispositivos normativos de diversos países, sobretudo dos vizinhos da América Latina. Ficará patente que o texto brasileiro se mostra completamente antagônico, consentâneo, sim, com a concepção inquisitória haurida em 1941, quando da edição do Código de Processo Penal, mas não com o espírito da Constituição de 1988. Convictos de que o processo legislativo brasileiro é falho e tardio, no entanto, restará, indubitavelmente, uma interpretação constitucional da emendatio libelli. Assim sendo, será 10 redimensionado o instituto, explicando-se cada tipo tradicionalmente reconhecido e os categorizando da maneira que se entende mais correta. Ocorre que, em que pese a apuração da possibilidade de compatibilização constitucional da matéria por meio dos aplicadores do direito – pelo menos por uma edificação dogmática melhor delimitada de quais as situações a, realmente, enquadrar-se como emendatio libelli e suas implicâncias – será visto que não há qualquer esforço nesse sentido. Assim, há de se catalogar algumas amostras jurisprudenciais, revelando a completa atecnia e generalização do tratamento das ocasiões de emendatio libelli. A despeito disso, serão enumeradas as diversas disposições integrantes do ordenamento jurídico aptas a fundamentar um novo cuidado na temática, oportunidade em que se erguerá a imprescindível alternativa procedimental aos peculiares casos de emendatio libelli que, visivelmente, ferem o princípio da ampla defesa, pautada, sobretudo, no rito traçado pelo princípio da não surpresa. Por fim, serão pinceladas algumas consequências da adoção ou não dessa alternativa, esclarecendo que umas ensejariam outras profundas discussões, pelo que se lançará a centelha para tal, e, primordialmente, que, em não sendo procedida a alternativa ventilada, cabe ao Estado a designação de que o procedimento em questão não macula a ampla defesa. É dessa forma que pretende o presente trabalho contribuir ao incremento do debate acerca da emendatio libelli e do seu correspondente artigo 383 do Código de Processo Penal, traçando uma análise a partir da perspectiva constitucional do tema, em exame teórico e jurisprudencial, reconstrução dogmática e proposição de soluções aos problemas diagnosticados. 2. A EMENDATIO LIBELLI NO SISTEMA ACUSATÓRIO E OS SEUS PRINCÍPIOS INFORMADORES A fim de desvelar o instituto da emendatio libelli sob a imperiosa consideração da ampla defesa, faz-se mister tecer breves comentários a respeito da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, bem como do sistema processual penal por ela adotado. É que todo o estudo que pretenda debruçar-se sobre o direito processual penal deve partir de uma perspectiva constitucional, em especial quando se ambiciona considerar vertentes do princípio (constitucionalmente positivado) da ampla defesa. Além do mais, no que tange especificamente à correlação entre acusação e sentença, essencial ao entendimento da emendatio libelli, o Código Processual Penal foi extremamente 11 simplista, existindo somente dois artigos a esse respeito, conforme se verá. Com efeito, em face da complexidade do tema – que supera a insuficiente criatividade do legislador – ganha ainda mais relevo a colmatação da sua disciplina legal com as disposições e a releitura constitucionais. Assim sendo, com fins de explicar o pressuposto teórico introduzido, impõe-se expor o fato de ser a história do processo penal marcada, como diz Antonio Scarance Fernandes1, por movimentos pendulares, numa variação do confronto entre eficiência e garantismo. Quer-se dizer que, nessa dicotomia, prevaleceram, no desdobrar histórico, ora os ideais de segurança social e de repressão, ora as convicções de proteção ao acusado, com preservação de seus direitos e garantias. Numa concepção moderna, contudo, esses dois vetores, como há de se demonstrar, não podem opor-se, não se visualizando um processo eficiente sem garantismo. Retrocedendo, de maneira sintética, na trajetória do desenvolvimento da persecução penal2, tinha-se, nos primórdios, a resolução dos conflitos interpessoais pelo uso da força, o que gerava um permanente estado de beligerância privada. Em substituição a essa etapa, os indivíduos delegaram ao Estado o dever de intervir, pelo que se abandonou a ação material e se adotou a ação processual (princípio da jurisdicionalidade). O Estado, com isso, de modo amplo, passou a tutelar os bens jurídicos penais, possuindo o poder sancionatório, que é, por outras vias, um dever de punir aquele que provoca uma lesão jurídica reprovável. Aqui, é de se indagar o porquê de necessitar o Estado da submissão a um processo se a ele pertence o poder de penar. E a resposta passa pela mencionada leitura constitucional do processo3. A punição aos faltosos, regulada pelo direito penal, e sua forma de aplicação, regulada pelo processo penal, por vezes, sob o argumento de maior proteção da sociedade, acentuaram o rigor do direito penal e diminuíram a força protetiva do processo penal. O processo penal, por lidar com o bem fundamental do ser humano consistente na liberdade, acaba por refletir o modo com que os Estados trataram, ao longo dos anos, os direitos fundamentais. Os modelos de persecução penal verificados historicamente são traduções das orientações políticas e ideológicas dos Estados. É que o processo penal objetiva, concomitantemente, a tutela da liberdade do indivíduo, jus libertatis (perspectiva subjetiva dos direitos fundamentais) e, por outro lado, a garantia da sociedade contra a prática de ilícitos, 1 FERNANDES, Antonio Scarance. Processo penal constitucional. 7. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. p. 23. 2 POZZER, Benedito Roberto Garcia. Correlação entre acusação e sentença no processo penal brasileiro. 1. ed. São Paulo: IBCCrim, 2001. p. 27-29. 3 LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal e sua conformidade constitucional. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 70. 12 sedimentada no dever-poder de punir, jus puniendi (perspectiva objetiva dos direitos fundamentais), pelo que a ambivalência do processo vai prevalecer num ou noutro sentido conforme os ditos vetores políticos do Estado. Nessa evolução do relacionamento do indivíduo com o Estado, surgiu a necessidade de normas que garantissem com maior força os direitos fundamentais dos seres humanos contra o poder estatal intervencionista, ao que os Estados colocaram, em suas Constituições, normas de garantia desses direitos. No Brasil, a mudança da cultura política e jurídica do Estado de Direito, em que a força normativa dos preceitos constitucionais limitava-se à complementariedade da legislação ordinária – essa, sim, até então considerada como fonte primária do intérprete – só veio a ocorrer com o advento da redemocratização do país e a promulgação da Constituição de 1988, a qual instituiu um Estado Democrático de Direito. Esse regime de governo, a seu turno, qual seja, a democracia, ao contrário do que possa dar a entender, não significa a tirania da maioria, mas a imposição do contínuo respeito aos direitos fundamentais de todos os indivíduos4, oportunizando sua participação na construção de todo ato de poder que potencialmente lhes afete, incluídas suas individualidades e contextos. É nessa toada que Walter Nunes da Silva Júnior5, corriqueiramente, afirma poder a teoria do processo penal ser confundida com a própria teoria dos direitos fundamentais. A adoção desse modelo (democrático) de estado tem como consequência lógica a constitucionalização de todo o sistema jurídico, o que lhe aproxima da ideia do processo penal como garantia, como contenção ao poder estatal. Quando não era reconhecida a força normativa dos direitos fundamentais, não se impunha ao Estado a contínua justificação de seus atos. Noutro pórtico, o autêntico processo, como agente legitimador da imposição de uma pena, portanto, habita apenas o Estado Democrático, um estado que constantemente é limitado – sobretudo pelos direitos fundamentais – e deve justificar-se, aí se respondendo a indagação do porquê necessitar o Estado do processo se é dele o poder de punir. Em continuidade a este raciocínio, o processo, num Estado Democrático, revela-se um “conjunto de relações jurídicas entre pelo menos três sujeitos – processos est actum trium personarum – sem subordinação entre eles, mas vinculações recíprocas em termos de direitos 4 KELSEN, Hans. A democracia. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000. p. 66-78. 5 SILVA JR., Walter Nunes da. Curso de direito processual penal: Teoria (constitucional) do processo penal. 2. ed. Natal: OWL, 2015. p. 196. 13 e deveres”6. Ou seja, só se pode conceber um processo, nesse sistema constitucional, quando dialético, de partes contrapostas, com autor, réu e juiz imparcial, tal qual o processo acusatório. A construção desse modelo dito acusatório – passando ao seu exame –, conforme leciona igualmente Geraldo Prado7, consumou-se, pouco a pouco, mediante o reflexo antagônico ao sistema inquisitivo. A forma inquisitiva era aquela que determinava ao juiz estritamente o cumprimento de uma função de segurança pública, prestigiando a ideia de punição, que não pressupunha um autor da ação penal independente, nem limitações à acusação. Aury Lopes Jr.8, a esse respeito, assevera que se trata de um sistema encontrado, na sua pureza, apenas historicamente. De fato, até o século XII, predominava o sistema acusatório, mas, paulatinamente, foi ele sendo substituído pelo inquisitório, que persistiu até o século XVIII e, em alguns países, até o século XIX, diante da emergência dos ideais da Revolução Francesa e do Iluminismo, com o proeminente nome de Cesare Beccaria. Realmente, é inimaginável um sistema, na atualidade, na pureza inquisitória, contudo, não se pode conceber o estudo dos sistemas processuais como interesse meramente histórico. Nossa legislação processual penal ainda abriga inúmeros dispositivos de feição inquisitiva, inclusive no que tange ao objeto deste trabalho, perfazendo-se a afirmação do sistema acusatório numa constante antítese ao modelo inquisitório, com importância, sim, atual9. Frente a essa premissa, sabe-se que o sistema inquisitivo identificava-se, sobretudo, com o Estado Absoluto, bem como com o Tribunal da Inquisição ou Santo Ofício, sendo marcado pela reunião das funções de acusar e julgar nas mãos do juiz-inquisidor10, que atuava de ofício, em segredo e, por isso, de forma escrita, enxergando o acusado como mero objeto de prova – que ele próprio (o juiz) poderia explorar e tarifar, afora comandar toda a instrução probatória – e jamais como sujeito de direitos. A prisão, por sua vez, era a regra durante o 6 PRADO, Geraldo. Sistema acusatório: a conformidade constitucional das leis penais. 3. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005. p. 69. Disponível em: . Acesso em: 19 out. 2019. 7 Ibid., p. 172-174. 8 LOPES JR, Aury. Direito Processual Penal. 14. ed. São Paulo: Saraiva, 2017. p. 41. 9 MALAN, Diogo Rudge. A sentença incongruente no processo penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003. p. 61. 10 Por esse motivo, como nota distintiva do sistema acusatório, Diogo Rudge Malan explica que, por si só, a expressão “processo inquisitivo encerra uma contradição, pois prescinde de alguns pressupostos indispensáveis à caracterização de um autêntico processo, a começar pela existência de uma relação processual triangular, formada por partes titulares de direitos e obrigações recíprocas e um julgador imparcial. Constitui, então, muito mais uma forma autodefensiva de administração da justiça do que um genuíno processo judicial” (MALAN, Diogo Rudge. A sentença incongruente no processo penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003. p. 81-82). 14 desenrolar do processo, baseando-se em mera suspeita ou na íntima convicção dos magistrados sobre a participação do réu no delito. Esse modelo político autoritário, norteado pelo princípio de que a salvação do povo era a suprema lei (salus publica suprema lex est) pressupunha, nas lições de José Cafferata Nores11, não só a noção de honestidade, mas também a de aparência de honestidade, pois a qualquer aparência de culpabilidade já se legitimava um castigo. Por esses traços, esse sistema não se conforma à experiência democrática, é incompatível com o os direitos e garantias fundamentais e, em última instância, inconciliável com a Constituição de 1988. Afora permitir até que o acusado fosse torturado para a obtenção da confissão (rainha das provas ou regina probatorum), em nítida violação aos mais basilares direitos do homem, suas características culminam numa contaminação do juiz pela tese da acusação. Instaurando o processo por iniciativa própria e comandando a colheita de provas, o magistrado acaba “ligado psicologicamente à pretensão, colocando-se em posição propensa a julgar favoravelmente a ela”12, o que lhe quebra a imparcialidade e fere elementares princípios processuais modernos. Em que pese alguns resquícios inquisitivos no ordenamento jurídico13, até porque editado o Código de Processo Penal de 1941 na regência da Constituição de 1937 – 11 Cafferata Nores apud MALAN, Diogo Rudge. A sentença incongruente no processo penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003. p. 64. 12 FERNANDES, Antônio Scarance; GOMES FILHO, Antônio Magalhães; GRINOVER, Ada Pellegrini. Teoria geral do processo. 8. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1991. p. 57. 13 Walter Nunes elenca, como resquícios, a prerrogativa funcional de o representante do Ministério Público sentar-se à direita do juiz ou presidente do órgão judicial colegiado (artigo 18, inciso I, alínea “a”, da Lei Complementar Federal nº 75, de 20 de maio de 1993); a atribuição dada ao juiz, no artigo 5º, inciso II, do Código de Processo Penal, para representar à autoridade policial a instauração de inquérito; e a iniciativa de persecução penal por parte do juiz prevista no artigo 28 do Código de Processo Penal, quando o magistrado considera improcedentes as razões invocadas pelo Ministério Público para requerer o arquivamento do inquérito (SILVA JR., Walter Nunes da. Curso de direito processual penal: Teoria (constitucional) do processo penal. 2. ed. Natal: OWL, 2015. p. 392-396). Sobre essa questão de ter o Código Processual Penal adotado um sistema misto, Aury Lopes Jr. afirma que se trata de classificação absolutamente insuficiente, de reducionismo ilusório, até porque não existem mais sistemas puros, mas apenas mistos. Ocorre que, para o autor, com o que há de se concordar, a questão é identificar o princípio informador de cada sistema, para então classificá-lo como misto ou inquisitório (LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. 14. ed. São Paulo: Saraiva, 2017. p. 41). Afinal, nas palavras de Afrânio da Silva Jardim, a tendência e a busca deve ser, agora, por purificar ao máximo o sistema acusatório (esse de escolha soberana constitucional), entregando a cada sujeito processual funções exclusivas, na ambição de se construir um modelo mais democrático (JARDIM, Afrânio Silva. Reflexão teórica sobre o processo penal. Justitia, São Paulo, n. 46, p. 94, out.-dez.1984. Trimestral). Admitir a existência de um sistema misto, por outro lado, consoante Diogo Rudge Malan, poderia mitigar essa busca pela sedimentação do sistema acusatório, com a construtiva eliminação das impurezas inquisitivas, uma vez que a expressão pode refletir uma indisfarçável conotação eufêmica a fim de esconder uma certa dose de saudosismo do sistema inquisitivo (MALAN, Diogo Rudge. A sentença incongruente no processo penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003. p. 91-92). 15 “Constituição Polaca”, inspirada na polonesa, de influências fascistas, assinalada pelo golpe de Getúlio Vargas e pela demasiada ampliação dos poderes do Executivo federal – há de se concluir que o constituinte de 1988 optou por assentar o sistema acusatório, a ser, por óbvio, espraiado a toda a legislação infraconstitucional. Embora assim não tenha disposto expressamente, tal escolha resta evidente tendo em vista, particularmente, as redações dos artigos 129, inciso I (que atribui privativamente ao Ministério Público a propositura das ações penais de iniciativa pública, separando, portanto, as funções de acusar e julgar)14; 5º, incisos LIII, LIV, LV e LVII (que consagram os princípios do juiz natural, do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa, e da presunção de não culpabilidade); e 5º, inciso LX, associado ao 93, inciso IX (que consagra publicidade dos atos processuais), todos da Constituição – dentre outras diversas normas que se agregam ao texto constitucional, por força do § 2º do artigo 5º, como as previstas em tratados internacionais. De maneira sintética, aponta Aury Lopes15 que a forma acusatória, à luz do sistema constitucional, caracteriza-se por denotar: (a) uma clara distinção entre as atividades de acusar e julgar; (b) a iniciativa probatória como dever das partes (decorrência lógica da distinção entre as atividades); (c) a manutenção do juiz como um terceiro imparcial, alheio ao labor de investigação; (d) o tratamento igualitário das partes (igualdade de oportunidades no processo); (e) um procedimento, em regra, oral (ou predominantemente); (f) a plena publicidade de todo o procedimento (ou de sua maior parte); (g) o contraditório e a possibilidade de resistência (defesa); (h) a ausência de uma tarifa probatória, sustentando-se a sentença pelo livre convencimento motivado do órgão jurisdicional; (i) a instituição, atendendo a critérios de segurança jurídica (e social), da coisa julgada; e (j) a possibilidade de impugnar as decisões, inclusive, com o duplo grau de jurisdição. A importância da discussão está no entendimento de que somente num sistema em que a função de acusar cabe exclusivamente ao Ministério Público ou ao querelante; a de julgar, apenas ao juiz; e a de defender-se, naturalmente, ao réu e a sua defesa técnica, marcado pela publicidade e pela oralidade, faz sentido falar-se do princípio da correlação entre acusação e 14 O constituinte organizou o Ministério Público com autonomia administrativa e orçamentária, conferindo aos seus membros as mesmas prerrogativas e vantagens da magistratura, tudo a fim de que pudesse atribuir ao juiz um posicionamento mais isento e equidistante. Assim, não obstante afetas ao Estado, as funções de acusar e julgar exercem-se por órgãos distintos e independentes, “verdadeira essência do sistema acusatório, decorrente da regra nullum indicium sine accusatione, uma das maiores garantias do julgamento imparcial, pois o julgador ne procedat ex officio” (POZZER, Benedito Roberto Garcia. Correlação entre acusação e sentença no processo penal brasileiro. São Paulo: IBCCrim, 2001, p. 31). 15 LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. 14. ed. São Paulo: Saraiva, 2017. p. 43. 16 sentença, intrínseco ao debate em torno da emendatio libelli. Se aglutinadas todas essas funções numa só pessoa, evidentemente, não teria ela quaisquer limites a seguir, incluído aí o limite do dever de correlação, pois ela mesma faria de tudo. Sedimentadas, então, a constitucionalização do ordenamento jurídico e a fixação do sistema processual penal acusatório, delas emanam vários outros princípios – como o elenco acima deixa antever –, especialmente o da inércia da jurisdição, o da ampla defesa e o do contraditório, que desembocam num processo penal mais democrático, a privilegiar os direitos fundamentais do acusado, sendo esse – e apenas esse, repita-se – o ambiente propício para o desenvolvimento dessas normas. O princípio da inércia da jurisdição (ne procedat iudex ex officio) só ganha claros contornos, no processo penal, quando se supera o modelo inquisitivo e se atribui ao Ministério Público, órgão distinto do Judiciário, a função de acusar. Ao juiz, então, restou vedado o exercício do direito de ação, que, desse modo, reservou-se, de regra, ao Ministério Público. Desse preceito, por sinal, deriva não só a ideia de que o juiz não pode iniciar um processo, mas também a de que ele não pode prover sem que haja pedido (nullum iudicium sine accusatione) nem diversamente do que foi pedido (ne eat judex ultra petita partium), que não é outra coisa senão a correlação entre acusação e sentença. A ampla defesa, nessa linha, alcança enorme relevo. Se é verdade que a jurisdição é inerte, e compõe-se, do outro lado da moeda, pelo direito à ação como exclusividade do Ministério Público – in casu, a ação penal pública –, esse último encontra como contraponto a defesa. Gustavo Henrique Badaró16 é de extrema felicidade ao elucidar o tema, expondo que “No plano dialético, a acusação apresenta-se como a tese e a defesa como antítese, sendo o julgamento a síntese. A defesa é uma das premissas do silogismo que representa o mecanismo básico de correlação entre acusação e sentença”. Em outros termos, não há de se falar de correlação sem também falar da defesa, daí a construção mais extensa do brocardo nullum iudicium sine accusatione, sine probatione e sine defensione. A Constituição de 1988 cuidou da defesa, no processo penal, ao artigo 5º, inciso LV, dispondo que “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral, são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”. Repare-se, por ora em poucas linhas, que não só foi assegurada a ampla defesa, mas os meios e recursos a ela inerentes, o que se concretiza, por exemplo, por meio da dicção do 16 BADARÓ, Gustavo Henrique. Correlação entre acusação e sentença. 4. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019. p. 44. 17 inciso LXIII do mesmo artigo constitucional, pelo qual “o preso [leia-se: o acusado] será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado”, bem como do inciso LXXIV, determinando que “o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos”, daí emergindo a importância da Defensoria Pública. Uma particularidade da redação posta é a de que, no âmbito do processo penal, o constituinte assegurou essa ampla defesa apenas ao acusado, enquanto, no processo civil, o fez a ambos os litigantes. Trata-se de mais uma evidência da peculiaridade relativa à visão dos direitos fundamentais, na seara criminal, como limitações ao dever-poder de punir do Estado. No processo civil, deve haver tratamento igualitário das partes, porém, no processo penal, há claro prestígio à defesa, em razão da supremacia do direito à liberdade – conforme será retomado ao terceiro capítulo –, o que implica, em outras vias, no princípio da presunção da não culpabilidade (artigo 5º, inciso LVII, da Constituição). Destaque-se que, justamente tendo em vista os valores em jogo, quando a persecução penal se transmudou de um mero exercício administrativo e autoexecutável para a consideração de um órgão competente exclusivamente para postular frente ao Judiciário, o fez a partir de um processo, e não abre mão, sob qualquer pretexto, dessa regra. Antes mero ritual, hoje, esse é entendido como o único ambiente propício ao desenvolvimento pleno da ampla defesa17, como resistência à pretensão acusatória do Estado-poder, o qual não pode insistir na utilização de qualquer outro meio que não seja esse. Aí está mais uma diferenciação em relação ao tratamento cível, em que as partes livremente podem transigir no âmbito extraprocessual. Assim, o princípio da ampla defesa liga- se intimamente ao do devido processo legal, que, em verdade, é permeado por todos os demais princípios, orientando só ser válida a persecução penal quando plasmada em um processo que observe todos os direitos e garantias18. A sua ligação com a ampla defesa, no entanto, notabiliza- 17 Que, na sequência, demonstrar-se-á igualmente irrenunciável. 18 Diogo Rudge Malan assevera que o devido processo legal, muitas vezes, é visto como um simples amálgama de outras garantias. Malgrado essas outras garantias sejam importantes, destaca que, se apenas a elas se reduzisse o devido processo legal, não se justificaria a sua enunciação expressa no artigo 5º da Constituição, possuindo, além de dignidade constitucional, condição elevada a cláusula pétrea. Assim, conclui que o princípio em questão abrange, quer as garantias postas no texto constitucional, quer em dispositivos de origem transnacional, como o Pacto de São José da Costa Rica, quer em demais diplomas, ou seja, apresenta relevante função residual, abrangendo garantias para além daquelas previstas em lei. Desse modo, ninguém pode ser privado de sua liberdade sem um processo que atrele as preceituações constitucionais e as normas penais, sejam de natureza substancial ou instrumental (MALAN, Diogo Rudge. A sentença incongruente no processo penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003. p. 33-35). Ainda, segundo Benedito Roberto Garcia Pozzer “De nada servem as leis processuais estipularem as etapas a serem seguidas até atingir o término do processo, se o acusado – desamparado, 18 se pela singularidade de entender-se que essa só pode ser efetivamente exercida, em meio à persecução penal – na qual apresenta-se com titularidade da ampla defesa apenas o acusado –, mediante o processo (nulla poena, nullum crimen, nulla culpa sine iudicio ou princípio da necessidade). Eis a particularidade do devido processo penal, espécie do gênero devido processo legal. No processo penal, pontue-se, brevemente, além de o Estado não poder punir direta e imediatamente, o que provocaria inúmeras restrições à liberdade do acusado (gravames ao status libertatis), há ainda a exigência de uma fase preliminar de investigações acerca dos acontecimentos e da autoria, em razão de o processo, por si só, punir, pelo constrangimento de se ter uma ação penal em seu desfavor (gravames ao status dignitatis). Não se concebe uma ação penal desprovida de qualquer lastro fático, a causar constrangimento gratuito ao acusado. Essa fase preliminar, preparatória e informativa é o que habitualmente se chama de inquérito, a recolher elementos para formar a justa causa da ação penal, a qual será submetida à cognição sumária do juiz para confirmar o recebimento da ação penal. É apenas mais uma evidência da força da ampla defesa no ambiente criminal. Feita a ressalva, tem-se que, nesse meio processual, o comentado antagonismo entre o direito de ação e a ampla defesa dinamiza-se, notadamente, pelo contraditório (audiatur et altera pars), que se dirige, sobretudo, ao juiz, importando num verdadeiro dever de lhe dar efetividade e plenitude, o proporcionando a ambas as partes. Quer-se dizer que, a todo tempo, deve ser viabilizada a ampla comunicabilidade no processo – pelo que muitos chamam do binômio informação-reação –, para que as partes possam participar ativamente, influenciando e provando suas alegações. Ao contrário do que ocorre com a ampla defesa, a titularidade do contraditório também cabe à acusação, pois tem ela, do mesmo modo, legítimo interesse em ser informada dos atos processuais praticados pela parte adversária e pelo juiz. O direito de defesa, nessa perspectiva, é análogo ao direito de ação, e, embora evidentemente ação e defesa não se esgotem nesse binômio informação-reação – devendo ter-se extremo cuidado, em especial, no tratamento da defesa como mera face oposta da ação – é inegável que o certo paralelismo entre ambos desdobra-se em todo o processo, assegurando às partes a possibilidade de produzir provas, sem garantias mínimas e transformado em objeto – ficar à mercê do Estado. Cada ato processual que se cumpra e cada fase superada devem ser regidos pelas garantias previstas. Somente existe devido processo penal quando, além da sujeição às formalidades estipuladas em lei, cada ato processual for realizado com o acatamento aos direitos fundamentais, única maneira de haver o processo penal como limite material à função punitiva do Estado” (POZZER, Benedito Roberto Garcia. Correlação entre acusação e sentença no processo penal brasileiro. São Paulo: IBCCrim, 2001, p. 24). 19 aduzir suas razões, recorrer de decisões, e agir, de maneira geral, para a tutela de seus interesses19. Dessa forma, a par do exposto quanto à inércia da jurisdição (e ao direito à ação), à ampla defesa (e ao devido processo legal) e ao contraditório, residentes do sistema acusatório, pode-se, enfim, perquirir o princípio da correlação20 entre acusação e sentença no processo penal. 2.1. O PRINCÍPIO DA CORRELAÇÃO NO PROCESSO PENAL Conforme se esclareceu, a regra da correlação advém da inércia da jurisdição, só podendo ser provido aquilo que foi pedido, e, no seu desdobrar-se, engloba, inexoravelmente, a defesa, pois, somente nesse dialogar do direito de ação com a defesa, moldados pelo contraditório, chega-se à fase decisória. Então, são esses os diversos princípios informadores da correlação entre acusação e sentença. Como desvenda Benedito Roberto Garcia Pozzer21, “corolário do devido processo penal, a correlação entre acusação e sentença aglutina inúmeras garantias constitucionais e processuais, colocadas ao dispor do acusado, em limitação à atuação do Estado no exercício do jus puniendi”. No momento, sucede-se, aos poucos, à superação do ranço do estado policial, para o ganho de força aos direitos individuais, os quais, se antes precisavam de reconhecimento, hoje buscam a materialização, no que não difere o progresso em torno do conteúdo em exame, em que ainda é premente a materialização dos sobreditos princípios informadores. No entanto, na abordagem tencionada, é importante saber sobre exatamente o que recai essa correlação, o que deve manter identidade desde a propositura da ação penal até a sentença, 19 GRINOVER, Ada Pellegrini. Novas tendências do direito processual. 2. ed. São Paulo: Forense. p. 5. 20 Ou princípio da congruência, ou da inalterabilidade da demanda, ou da correspondência do objeto da ação com o objeto da sentença, termos, sobremaneira, utilizados no processo civil. A propósito, no âmbito processual civil – é importante que se esclareça, a fim de deixar nítida a espécie aqui tratada – Fredie Didier Jr. costuma dividir a congruência em interna e externa, sendo essa última subdividida em subjetiva e objetiva. Para ele: “A congruência externa da decisão diz respeito à necessidade de que ela seja correlacionada, em regra, com os sujeitos envolvidos no processo (congruência subjetiva) e com os elementos objetivos da demanda que lhe deu ensejo e da resposta ao demandado (congruência objetiva). A congruência interna diz respeito aos requisitos para a sua inteligência como ato processual. Neste sentido, a decisão precisa revestir-se dos atributos da clareza, certeza e liquidez” (DIDIER JR., Fredie; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA; Rafael Alexandria de. Curso de direito processual civil. 11. ed. Salvador: Juspodivm, 2016. v. 2. p. 247). A congruência então explorada, nesse comparativo, seria a externa objetiva. 21 POZZER, op. cit., p. 24-25. 20 isto é, definir o objeto do processo penal. Nessa sede, ainda há grande embate doutrinário, donde há de se explorar a questão desviando dos entraves inócuos. É certo que, quando do início desses debates por parte da doutrina, tinha-se, como ponto de partida, o processo civil, que, com algumas adaptações, foi transportado para o campo processual penal. Por muito tempo, então, questionou-se se o objeto do processo civil seriam as afirmações de direito material e de fato que fundamentam o pedido ou seria o próprio pedido, quando, majoritariamente, concluem que, em verdade, pedido e causa de pedir compõem a pretensão do autor. Fugindo às polêmicas, um ponto incontroverso parece ser o de que o objeto do processo se relaciona à pretensão, ou seja, àquilo que o autor pretende. Verdade é que, em algumas ocasiões, a discussão esvazia-se, sendo, em dado momento, comum satisfazer-se com a conclusão quanto à pretensão processual como objeto do processo, excluídas as demais incertezas22. E é justamente esse estágio do raciocínio que interessa transpor ao processo penal. Nesse ponto, cientes de que o objeto do processo penal se identifica com o objeto da pretensão, cumpre salientar o que Badaró23 vigorosamente adverte: essa pretensão, entretanto, não se trata da pretensão punitiva. No linguajar civilista, é comum dizer que, com o preenchimento de um suporte fático, surge para alguém uma “peculiar situação de vantagem”24, designada de direito subjetivo. Sabe-se que esse direito subjetivo25, porém, é um componente estático, que independe do processo, mas pode (no caso do direito processual penal, deve) ser levado, posteriormente, à sede do processo. Cuida-se esse direito inicial da pretensão material26. A pretensão material equivale, no âmbito criminal, à pretensão punitiva – ou intenção punitiva, visto que não há como visualizar o conceito de pretensão como uma exigência de subordinação de interesse alheio ao próprio no processo penal –, surgindo sempre que alguém 22 Cita Badaró que foi a decisão outrora atingida por Cândido Rangel Dinamarco em estudos sobre o mérito do processo civil (BADARÓ, Gustavo Henrique. Correlação entre acusação e sentença. 4. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019. p. 68). 23 Ibid., p. 68-79. 24 Ibid., p. 69-70. 25 É lógico que essa expressão não pode ser utilizada acriticamente no processo penal, mas, no caso, serviu à construção do raciocínio a que se pretendia demonstrar. 26 Pozzer, comentando lições de Rogério Lauria Tucci, sublinha que o conceito de pretensão, como geralmente formulado pela doutrina processual, no sentido de exigência de subordinação do interesse alheio ao próprio, dificilmente encontra guarida no processo penal, em que há, somente, interesse em punir e, uma vez concretizada a relação jurídica penal, o exercício do poder-dever de punir e a correlata manifestação da intenção punitiva perante o órgão jurisdicional (POZZER, Benedito Roberto Garcia. Correlação entre acusação e sentença no processo penal brasileiro. São Paulo: IBCCrim, 2001, p. 73). 21 pratica determinado delito, podendo (e devendo) o Estado-poder exigir o sacrifício da liberdade daquela pessoa para que prevaleça a punição estatal. O jus puniendi, de início, abstrato, aparece concreto no jus persequendi, mas, no exercício desse dever-poder, o Estado, face às conquistas dos estados democráticos no embate contra as tiranias do poder, concebe, como posto, um órgão acusador. Então, a pretensão processual, no que lhe concerne, já é aquela veiculada em juízo, por meio do direito da ação, exercido por um órgão acusador, tendo como destinatário o Estado-Judiciário, que deve atuar a vontade concreta do direito, objetivando levar “à justa composição da lide”27. E, por, no âmbito criminal, ser sempre necessária a conversão da pretensão material em processual, diz-se que a pretensão material é sempre insatisfeita, ou opta-se por chamá-la de intenção punitiva. Aury Lopes Jr28, embora com outros termos, explica bem a problemática. Aduz o autor que o erro da visão tradicional está em, considerando que o objeto do processo é a pretensão punitiva, por outras vias, admitir que o Ministério Público atua, no processo penal, da mesma forma que o credor no processo civil. O dever-poder de punir pertence ao Estado, o qual, contudo, não pode autoexecutá-lo, diante das escolhas constitucionais já tratadas, o que lhe determina o acionamento do Estado-Juiz imparcial, por meio da específica instituição do Ministério Público. Completa que “a premissa equivocada está em desconsiderar que o Ministério Público não exerce pretensão punitiva, porque não detém o poder de punir [...]. No processo penal, quem detém o poder de punir é o juiz [...]” – juiz esse que exerce o poder punitivo estatal. Explica, utilizando-se de ensinamentos de Binding, que o Estado é titular de um triplo direito29: direito punitivo, direito de ação penal (exercido pelo Ministério Público) e direito ao pronunciamento da sentença penal (exercido pelo Estado-Juiz)30. Assim, se o Ministério Público exerce uma pretensão, no processo, que não é a punitiva, há de se nomeá-la diversamente, sendo, para o autor, a pretensão acusatória ou, pode-se dizer também, a pretensão processual penal. Adiciona, nessa toada, que, não há de se falar, diferentemente do processo civil, em direito subjetivo, mas sim em direito potestativo, ou seja, em poder que tem o acusador de, com o nascimento do delito, dirigir-se ao tribunal. E, de outro lado, existe o poder de punir 27 Expressão usada em DINAMARCO, Cândido Rangel. Instrumentalidade do processo. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 1994. p. 189. 28 LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. 14. ed. São Paulo: Saraiva, 2017. p. 50-51. 29 Ao quarto capítulo, ocasião que se entendeu mais propícia, será visto que, mais que um direito, trata- se o exposto de um dever do Estado. 30 LOPES JR., Aury. Fundamentos do processo penal. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2016. p. 252. 22 do tribunal, pois o Estado exerce seu direito de penar no processo não como parte, mas como juiz31. A independência entre essas distintas pretensões evidencia-se, a título de exemplo, no trato da prescrição. A pretensão punitiva (material) prescreve pelo decurso de um lapso temporal sem que seja iniciado o processo (em que se veicula a pretensão processual penal). Dessa forma, o objeto do processo penal é a pretensão processual penal, discrepante da pretensão punitiva. Acerca do conteúdo dessa pretensão processual penal, mais uma vez, diferentemente do processo civil, é consenso que o pedido não se mostra com demasiada importância. É que ele é, de certa forma, genérico, pleiteando a condenação de alguém dentro dos limites legais, com fins de privação da liberdade desse alguém. Não se nega que há pedido, porém, ainda que a denúncia o descreva de forma particularizada, é sempre um pedido de responsabilização penal, de condenação, apenas cabendo ao juiz graduar as exatas medidas da pena e impor as demais sanções que dali possam advir. Com isso, destituído de relevância para identificar ou individualizar a ação penal é o pedido. Sob outra perspectiva, surge com grande empatia, no âmbito criminal, a noção de imputação, que é dita como sendo o meio pelo qual se formula a pretensão. Imputar, nessa via, seria atribuir a alguém um fato penalmente relevante, no que segue o pedido pela condenação de referido indivíduo. Significa, então, que a imputação é o veículo da pretensão, e, nesse sentido, aquilo que foi imputado, o objeto da imputação, é englobado também pelo objeto do processo penal. A imputação, por seu lado, inclui a descrição dos fatos, a qualificação jurídico-penal desses fatos32 e a atribuição deles como tipos penais a alguém33. Em síntese, é, como já dito, o fato penalmente relevante atribuído a alguém – em cautelosa identificação com o que se chama, na processualística civil, de causa pretendi34. Em face desse conceito, diz-se que é o afirmado 31 Ibid., p. 101. 32 Nesse sentido, pontue-se, desde já, uma certa discordância com relação àqueles que, de modo mais restrito, entendem a imputação como sendo apenas a atribuição de fatos. É clarividente que tais fatos devem ser relevantes do ponto de vista penal, o que há de ser visto em seus pormenores adiante. 33 BADARÓ, op. cit., p. 79 e 83. 34 Nessa etapa, sem adentrar na controvérsia que aqui não interessa, também cabe explicar que não se nega a identificação do fato naturalístico juridicamente qualificado como delito com o que se chama de causa pretendi. A despeito disso, a expressão em referência traz à tona as divergências da processualística civil em torno do objeto (se é ele o pedido ou a causa de pedir ou ambos), do que compõe a causa de pedir (teorias da individuação – o estado jurídico afirmado pelo autor compõe a pretensão – e da substanciação – as alegações de fato identificam a pretensão) etc., inaplicáveis e, logo, desimportantes ao processo penal. 23 na imputação o objeto do processo penal. Isso porque é essa afirmação de fato punível que sofre uma constante valoração ao longo de toda a persecução penal. Utilizando-se dos ensinamentos de José Frederico Marques35, no inquérito policial, há a suspeita de um fato enquadrável em um tipo penal atribuível a alguém, ou seja, um grau de mera possibilidade; na denúncia, o fato descrito já se transforma em provável, com razoáveis indícios de autoria e materialidade; após, realizada a instrução, fase destinada justamente à colheita de provas para a verificação da veracidade dos fatos imputados, esses emergem com grau máximo de certeza. É o que o autor chama de princípio da formulação progressiva, porquanto ser um juízo sucessivo, construído de modo ascendente ao correr do processo, avançando da dúvida para a confirmação. Nesse caminhar, todavia, o que muda é o grau de certeza aferido sobre o conteúdo da imputação, ao passo que ela, de regra, mantém-se íntegra. Trocando em miúdos e já antecipando o significado da correlação, “o objeto da sentença tem de ser o mesmo objeto da imputação, lá baseado em um juízo de certeza, aqui em uma probabilidade”36, ficando claro que o desenvolver-se do processo orienta-se à confirmação ou não do fato imputado. Pozzer37, em visão particular do tema e com a qual há certa simpatia, iniciando as tratativas a respeito, expõe que, genericamente, a acusação pode ser definida como o apontamento do provável autor do fato penal relevante, passível de reprimenda. Da definição atingida, descreve a percepção de três elementos que compõem a acusação: fato de relevância penal, indicação de autoria e responsabilização penal, sendo que os dois primeiros elementos (fato penal relevante e indicação de autoria) constituem a imputação, ou seja, a atribuição do fato considerado delituoso a alguém, e o terceiro (responsabilização) precisa ser adicionado ao conceito de acusação. Portanto, realça o autor que não concorda com a afirmação de que acusação e imputação são sinônimas, incluindo, como componente da pretensão acusatória, além da imputação, o que chama de responsabilização, a ser posta no pedido. Põe que o acusador não se limita a imputar ao réu a ação ou omissão criminosa, pois assim estaria equiparado, grosso modo, à testemunha, com a única diferença de dar o acusador um conceito jurídico-legal. Descabido seria invocar alguém como possível autor de conduta reprovável e não lhe desejar uma consequência socialmente proveitosa. É apenas da 35 MARQUES, José Frederico. Elementos de Direito Processual Penal. 3. ed. Campinas: Millennium, 2009. v. 2. p. 236. 36 BADARÓ, op. cit., p. 85. 37 POZZER, op. cit., p. 63-65. 24 responsabilidade jurídico-penal e de sua indicação que nasce o direito de castigar, concretizado na pena ou medida de segurança. Concorda, ao fim, com o uso da expressão “correlação entre acusação e sentença”, pois exige a simetria não só da imputação, subjetiva e objetiva, fática e legal, mas também da responsabilização, ambas componentes da acusação, com a sentença – construção que será melhor explorada ao terceiro capítulo. Dito isso e para finalizar, a sentença, na linguagem clássica, não pode ser extra petita, como num eventual caso em que ao acusado imputa-se a conduta prevista no crime de estelionato e a responsabilização sobrevém por apropriação indébita; também não pode ser ultra petita, quando, em mais um exemplo, há denúncia pela prática de lesão corporal leve e condenação por lesão corporal grave; nem citra petita, deixando o juiz de se pronunciar sobre um fato imputado ao acusado – roubo e resistência (artigos 157 e 329 do Código Penal), como amostra, tendo a sentença apenas o roubo como objeto. No último caso, além da ofensa aos princípios informadores aqui já qualificados, há também violação ao princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional (artigo 5º, inciso XXXV, da Constituição). A regra, nessa esteira, é que o fato processual penal imputado permaneça imutável até a sentença, que poderá impor a correspondente responsabilização. Todavia, como toda regra, essa igualmente não deixa de apresentar exceções, que encontram guarida nos institutos da emendatio libelli e da mutatio libelli, previstos, respectivamente, nos artigos 383 e 384 do Código de Processo Penal. 2.2. A PROBLEMÁTICA DA EMENDATIO LIBELLI O instituto da emendatio libelli, foco deste trabalho, está descrito, no nosso ordenamento jurídico, através da redação não muito feliz do artigo 383 do Código Processual Penal38. Primeiramente, há de se examinar esse dispositivo, com as correspondentes interpretações doutrinárias a seu respeito, para, em seguida, logo na instância do terceiro capítulo, com a devida evolução no quarto capítulo, analisar a compatibilidade do instituto e de suas interpretações a tudo o quanto já em parte exposto. 38 Não raro, no trato da emendatio libelli, os livros de doutrina referem-se ao artigo 418 do Código Processual Penal, pois é ele, no âmbito do procedimento relativo aos processos de competência do Tribunal do Júri, que pontua a viabilidade de emendatio libelli, quando, na decisão de pronúncia, “O juiz poderá dar ao fato definição jurídica diversa da constante da acusação, embora o acusado fique sujeito a pena mais grave”. 25 A regra do supramencionado artigo é a de que “O juiz, sem modificar a descrição do fato contida na denúncia ou queixa, poderá atribuir-lhe definição jurídica diversa, ainda que, em consequência, tenha que aplicar pena mais grave”. Denota que, não obstante frente ao mesmo substrato fático da imputação deduzida na exordial acusatória (denúncia ou queixa-crime), pode o juiz condenar o acusado em delito de tipificação diversa da apontada, de início, pela acusação, até mesmo nas situações em que lhe seja agravada a pena. Assim, tendo em vista que, como observado, a imputação é o fato penalmente relevante – portanto, qualificado juridicamente – atribuível a alguém, deve-se, realmente, reputar que o preceito em apreço, ao permitir a alteração da tipificação dos fatos, implica em certa relativização da regra da correlação entre acusação e sentença, uma vez que autoriza a mutação de elemento constituinte da pretensão acusatória. Trata o texto legal de raciocínio decorrente dos velhos brocardos iura novit cúria e narra mini factum, dabo tibi ius. Em suma, traduzem eles que o acusado, no processo penal, defende-se de fatos e não do direito (princípio da consubstanciação), uma vez que não tem o conhecimento técnico para tal. Isso posto, dando os fatos ao juiz, “supremo sabedor técnico”, daria esse último o direito, que pode ser, inclusive, diferente daquele indicado, geralmente, pelo Ministério Público. É o que também se chama de princípio da livre dicção do direito. Na abordagem da problemática, Renato Brasileiro de Lima39 acredita na possibilidade de aplicação de 03 (três) formas de emendatio libelli pelo juiz, são elas: emendatio libelli por defeito de capitulação; emendatio libelli por interpretação diferente; e emendatio libelli por supressão de elementar e/ou circunstância. Veja-se como a doutrina descreve cada uma. Norberto Cláudio Pâncaro Avena40 retrata que a emendatio libelli por defeito de capitulação concerne à situação na qual o juiz profere sentença condenatória ou decisão de pronúncia em conformidade exata com o fato descrito na denúncia ou na queixa, contudo reconhece que tal fato se amolda a dispositivo penal distinto daquele que constou na inicial. Exemplifica que, denunciado o acusado por roubo, mas, por equívoco, capitulada essa infração, na denúncia, como o artigo 147 do Código Penal (crime de ameaça), na sentença, o juiz poderia condenar o réu pelo crime descrito (roubo), esclarecendo, porém, que se trata de conduta que tem enquadramento no artigo 157 do Código, cuja pena, evidentemente, é maior do que a relativa ao artigo equivocadamente atribuído na denúncia. 39 LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de processo penal. 1. ed. Niterói: Impetus, 2012. p. 701-702. v. 2. 40 AVENA, Norberto Cláudio Pâncaro. Processo penal: esquematizado. 3. ed. São Paulo: Método, 2011. p. 1033. 26 Renato Brasileiro41, em sua vez, retrata a situação sob ângulo distinto, destrinchando exemplo em que o Ministério Público oferece denúncia contra alguém pela prática de crime contra a ordem tributária, do qual tenha resultado prejuízo superior a R$ 3.000.000,00 (três milhões de reais), entretanto, por ocasião da classificação constante da denúncia, pede expressamente apenas para que o acusado seja condenado pela prática do crime previsto no artigo 1º, incisos I e II, da Lei nº 8.137, de 1990. No caso hipotético, o órgão ministerial acabou por não incluir a majorante do artigo 12, inciso I, do referido diploma legal, que prevê um aumento de pena de 1/3 (um terço) até 1/2 (metade) quando o crime ocasiona grave dano à coletividade. Nessa narrativa, comenta o autor que: [...] como o acusado defende-se dos fatos que lhe são imputados na denúncia e não da classificação jurídica nela estabelecida, por mais que a causa de aumento de pena sob comento não tenha sido expressamente mencionada por ocasião da classificação constante da peça acusatória, como ela foi descrita na denúncia – não se pode negar a eloquência da quantia sonegada de R$ 3.000.000,00 (três milhões de reais), indubitavelmente capaz de provocar grave dano à coletividade –, é perfeitamente possível a aplicação da referida pelo magistrado sentenciante, sem que se possa objetar eventual violação ao princípio da congruência. Com relação à emendatio libelli por interpretação diferente, diz-se ser aquela na qual, similarmente, não se altera a imputação fática constante da peça acusatória, porém, em sede de sentença, o juiz interpreta tal substrato fático de maneira a conferir tipificação diversa da atribuída pelo Ministério Público ou pelo querelante. Aconteceria quando, discriminando a acusação um crime de roubo consumado (artigo 157 associado ao artigo 14, inciso I, do Código Penal), mas, entendendo o juiz por não se ter concretizado a inversão da posse do bem, condena o acusado nas penas do roubo tentado (inciso II do citado artigo 14). Ou, quando o Ministério Público denuncia um indivíduo por homicídio qualificado por meio cruel (artigo 121, § 2º, inciso III, do Código Penal), ao passo que o magistrado interpreta configurar o mesmo meio descrito, em verdade, a qualificadora de uso de recurso que impossibilitou a defesa do ofendido (inciso IV do mencionado § 2º). Por fim, no caso de emendatio libelli por supressão de elementar e/ou circunstância, no entendimento majoritário, tem-se uma nova capitulação do fato em função da não comprovação, durante a fase de instrução processual, de todas as circunstâncias ou elementares 41 LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de processo penal [versão ePUB]. 4. ed. Salvador: Juspodivm, 2016. 27 enunciadas à peça acusatória. A valer, deve-se aceitar que, in casu, há uma supressão fática, que acaba por resultar na mudança da tipificação. O exemplo usualmente exposto pela doutrina é o referente à denúncia por roubo, sendo que, frente às provas angariadas na instrução, não se demonstra a ocorrência de violência ou grave ameaça (elementares do delito de roubo), do que segue uma condenação por furto (artigo 155 do Código Penal). Nesse último cenário, como dito, há alteração fática, enquanto o Código de Processo Penal reclama pelo procedimento da emendatio libelli apenas “sem modificar a descrição do fato contida na denúncia ou queixa”. Seria, dessa sorte, caracterizada a mutatio libelli? Diz-se que não, pois essa só aconteceria por meio de acréscimo – e não supressão – de elementar ou circunstância não contida na acusação42, o que, ao quarto capítulo, será revisitado e dimensionado. Há de se comparar, por fim, nestas primeiras considerações, ambos os institutos, pontuando-se, definitivamente, o que cada um engloba. Pois bem, a mutatio libelli está no artigo 384 do Código Processual Penal, dispondo seu caput: Art. 384. Encerrada a instrução probatória, se entender cabível nova definição jurídica do fato, em consequência de prova existente nos autos de elemento ou circunstância da infração penal não contida na acusação, o Ministério Público deverá aditar a denúncia ou queixa, no prazo de 5 (cinco) dias, se em virtude desta houver sido instaurado o processo em crime de ação pública, reduzindo- se a termo o aditamento, quando feito oralmente. Ora, no curso da instrução processual penal, podem surgir novas provas quanto a elementares ou circunstâncias de crimes, as quais podem não estar contidas na denúncia, mas importem na alteração do substrato fático da imputação. Nesse desenrolar, o Código prevê a necessidade de aditamento da inicial, com posterior oitiva da defesa e renovação da instrução (§ 2º do artigo 384). Entende-se, na mutatio libelli, que outro procedimento, que não esse aditamento, implicaria num claro prejuízo ao acusado, mais uma vez pelo raciocínio de que ele se defende de fatos, e, sendo alterados os fatos para a inclusão de elementos não descritos na exordial, não teria a oportunidade de rebatê-los. Exemplo banal é a mera inversão da situação de chamada emendatio libelli por supressão de elementar e/ou circunstância, ou seja, quando há denúncia pelo crime de furto, mas, no correr da instrução, o ofendido e as testemunhas declaram-se no sentido da ocorrência 42 Exempli gratia, Renato Brasileiro (LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de Processo Penal. 1. ed. Niterói: Impetus, 2012. p. 702. v. 2). 28 de violência ou grave ameaça, elementares do delito de roubo, havendo acréscimo dessas elementares em relação à imputação inicial. Por último, impõe fazer a ressalva de que os fatos surgidos em questão não podem ser propriamente fatos novos, mas devem guardar alguma relação com a imputação inicial, acrescentando-lhe algo que a modifique. O surgimento de fato novo, totalmente distinto do inicialmente imputado, deve orientar uma nova e diversa denúncia. 3. A RELEITURA DA EMENDATIO LIBELLI Pontuadas as questões preliminares a respeito da temática em abordagem, isto é, os princípios informadores da correlação entre acusação e sentença e o entendimento majoritário a respeito da emendatio libelli, é hora de adentrar no seu exame em maior grau de criticidade. Será realizada interpelação relativa aos basilares princípios aduzidos, os quais, em tese, entabularam a formação da regra da correlação, verificando-se, no trato da emendatio libelli, posta, em princípio, como exceção à regra, se devem ou não ser observados. Para isso, interessante trazer à baila uma citação de Fernando da Costa Tourinho Filho, referente aos velhos brocardos iura novit cúria e narra mini factum, dabo tibi ius, que determinam a maioria das interpretações a respeito da emendatio libelli. A análise, a partir de então, dar-se-á, ultrapassado o momento da dedicação expositiva, de maneira efetivamente crítica. Veja-se o afirmado por Tourinho Filho43, que aparenta ser o entendimento dominante sobre o tema: [...] se o Juiz conhece o direito, evidente que a errada classificação do crime feita na denúncia ou queixa não constitui obstáculo à prolação de sentença condenatória, ainda que a pena a ser imposta seja mais grave. Afinal de contas o réu não se defende da capitulação do fato, mas do próprio fato. Na denúncia ou queixa o acusador expõe o fato. Se estiver errada sua capitulação, nem por isso deve o Juiz anular o processo, tal como acontecia anteriormente, mesmo porque o que se exige é a correlação entre o fato contestado e a sentença. A parte pergunta, o Juiz responde. A parte narra o fato, o Juiz diz qual a lei a ser aplicada. Narra mihi factum, dabo tibi jus (narra-me o fato e te darei o direito). [...] Citado, o réu vai defender-se da imputação que lhe é feita, e não da sua capitulação (grifos nossos). Tal como posto pelo autor, parece óbvia a questão, no entanto, algumas perguntas hão de ser feitas. Será que “Na denúncia ou queixa o acusador expõe o fato” e só? Será que 43 TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Código de processo penal comentado. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 869-870. 29 realmente “A parte pergunta” e simplesmente “o Juiz responde”? Será que, de fato, “o réu vai defender-se da imputação que lhe é feita, e não da sua capitulação”? Na sequência, então, serão desconstruídas as premissas nas quais se firma o posicionamento em apreço. 3.1. A TIPIFICAÇÃO DA CONDUTA COMO REQUISITO DA AÇÃO PENAL Para a primeira pergunta a resposta vem do próprio texto da codificação processual penal, dizendo seu artigo 41 que “A denúncia ou queixa conterá a exposição do fato criminoso, com todas as suas circunstâncias, a qualificação do acusado ou esclarecimentos pelos quais se possa identificá-lo, a classificação do crime e, quando necessário, o rol das testemunhas”. A redação do dispositivo legal, assim, é expressa em mencionar que a exordial acusatória, seja ela uma denúncia ou uma queixa, deve conter, dentre outros elementos, a “classificação do crime”. A classificação do crime mencionada nada mais é do que a estipulação do dispositivo legal que descreve o fato criminoso, isto é, o tipo, sendo mais adequado, no trato do direito penal, o uso do termo “tipificação”. Portanto, replicando o questionamento feito, a peça acusatória não se limita a expor os fatos44. Indubitavelmente, algum relevo há em atribuir-se ao acusador a obrigatoriedade de delinear também a tipificação que ele entende devida. A exigência, é claro, não seria desprovida de finalidade, podendo-se, em princípio, eleger, como alguns exemplos, a utilidade para fins de verificação (a) da competência, tendo em vista que aos Juizados Especiais, verbi gratia, compete o julgamento dos crimes de menor potencial ofensivo, com pena máxima cominada não superior a 02 (dois) anos (artigos 60 e 61 da Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995); (b) do cabimento de possíveis cautelares, só sendo admitida a prisão preventiva para os crimes dolosos punidos com pena privativa de liberdade máxima superior a 04 (quatro) anos (artigo 313, inciso I, do Código Penal), devendo, em caso diverso, aplicar-se as cautelares do artigo 319; (c) da possibilidade de sursis processual, cabível nos crimes em que a pena mínima for igual ou inferior a 01 (um) ano (artigo 89 da Lei nº 9.099, de 1995) etc. Em todos os exemplos, somente a partir do tipo penal seria possível intentar a pena abstratamente cominada no preceito secundário. 44 Trata-se de mais uma evidência de que os pensamentos da processualística civil não podem ser meramente transpostos ao direito criminal. A regra seria uma clara mitigação da teoria da substanciação, tida, na tradição, como a mais adequada ao processo penal, frente à importância dos fatos. 30 Avançando no tema, Aury Lopes Jr.45, num estudo próprio sobre as “condições da ação penal segundo as categorias próprias do processo penal”, expõe que, com a revogação do artigo 43 do Código Processual Penal, visualiza como condições da ação penal a prática de fato aparentemente criminoso (fumus commissi delicti), a punibilidade concreta, a legitimidade da parte e a justa causa. Nesse passo, ainda que indicado formalmente o tipo, em obediência ao artigo 41, se, da narração da conduta, não houver ao menos um aparente enquadramento dos fatos, na essência, como um delito, faltaria o fumus commissi delicti, a ensejar a absolvição sumária do agente (artigo 397, inciso III, do Código Processual Penal)46. Frederico Marques47, por sua vez, aduz, embora em menor aprofundamento e ainda apegado aos conceitos da processualística civil, que, se a alguém é atribuída a prática de fato que evidentemente não constitui crime, a denúncia deverá ser rejeitada, sendo o Estado, no caso, carecedor das condições da ação penal, por impossibilidade jurídica do pedido. Badaró48, na mesma toada, em que pese explorando também a obsoleta “impossibilidade jurídica do pedido”, leciona que “Não é por outra razão que se exige para o recebimento da denúncia ou queixa, como condição da ação penal enquadrável na categoria da possibilidade jurídica do pedido, a tipicidade da conduta narrada”. Malan49, por fim, sintetiza bem a questão, indicando as duas situações relativas à importância da tipificação, na denúncia, que se confundem. Primeiramente, estão os casos de inépcia da inicial, a ensejar a rejeição liminar da denúncia (artigo 395, inciso I, do Código de Processo Penal), quando ela não é formalmente perfeita, aí se exigindo os requisitos do artigo 41 do Código Processual Penal, com a indicação da “classificação do crime”, sem a qual se dificultariam as determinações procedimentais já exemplificadas. E, segundamente, há os casos de abuso do direito da ação (questão material), onde estariam as situações hipotéticas de o fato imputado não ser tipificado, no sentindo de não ser penalmente relevante, embora possa até aparecer formalmente como indicação de algum tipo – o que, para Aury Lopes Jr., posição com a qual se concorda, consoante posto, designaria a falta 45 LOPES JR., Aury. Fundamentos do processo penal. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2016. p. 121. 46 O que se confunde com o próprio mérito, conforme se verá ao item “3.3. A defesa técnica como elemento da ampla defesa”. 47 MARQUES, José Frederico. Elementos de Direito Processual Penal. 3. ed. Campinas: Millennium, 2009. v. 2. p. 161. 48 BADARÓ, Gustavo Henrique. Correlação entre acusação e sentença. 4. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019. p. 82-83. 49 MALAN, Diogo Rudge. A sentença incongruente no processo penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003. p. 183-184. 31 de fumus commissi delicti, a gerar, na fase de confirmação do recebimento da exordial, a absolvição sumária (artigo 397, inciso III, do Código Processual Penal). Dessa forma, se não é possível dizer que o juiz se vincula inflexivelmente à tipificação proposta pelo acusador, de igual modo não é possível destituir de qualquer importância a qualificação jurídica atribuída na exordial acusatória, se assim fosse, não constaria dos seus requisitos – formalmente e materialmente. De certo, ainda, os requisitos elencados pelo artigo 41 do Código de Processo Penal coincidem com o conceito de objeto da imputação projetado neste trabalho. A imputação, como se concluiu, compõe-se da descrição dos fatos, da qualificação jurídico-penal desses fatos e da atribuição deles como tipos penais a alguém, em correspondência às exigências do artigo supramencionado – equivalente à exposição do fato criminoso com todas as suas circunstâncias, conjugada com a qualificação do acusado e com a classificação do crime. Nesse raciocínio, se a imputação é o veículo da pretensão, igualmente se pode dizer que a peça inicial acusatória é o veículo da imputação. Ocorre que – trazendo o debate para o foco do trabalho, a emendatio libelli – o objeto da imputação (e do processo) pode apresentar um caráter dinâmico, suscetível, em função do contraditório, a alterações, num contínuo desenvolvimento. Disso resulta, em certa medida, que algumas dessas mudanças em relação ao exatamente apontado na denúncia, na estrada desse desenvolvimento, implicam nos casos de emendatio libelli e mutatio libelli, sendo ou não, admitidas pelo Código de Processo Penal, ou melhor, implicando ou não, na adoção de critérios para a sua admissão, os quais serão vistos e revisitados. O problema exige a explicação do que se entende por fato processual penal e por fato penal, tidos, unanimemente, como diferentes, e que, conforme se verá, desembocam numa necessária aceitação de que o fato processual, em verdade, abarca o fato penal. Isso, por outro lado, aquiesce com a ideia de que, na medida em que alterado o fato penal, o objeto do processo, ou seja, o chamado fato processual penal, também é mudado, numa demonstração de que, modificado o tipo penal condenatório, ainda que inalterados os fatos naturalísticos – isto é, aplicada a emendatio libelli –, sérios critérios hão de ser adotados a fim de manter a regra da correlação e todos os seu princípios informadores dissertados, em especial o por ora enfrentado, veiculado por meio da denúncia, qual seja, o princípio da ação, competente ao acusador. O fato penal decorre do mandamento do artigo 5º, inciso XXXIX, da Constituição, de que “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”, repetido no artigo 1º do Código Penal. Só pode ser punido aquele que tenha cometido um fato de relevância penal, isto é, uma conduta que possa subsumir-se a um tipo previsto no 32 ordenamento jurídico positivo, fazendo prevalecer o importante princípio da legalidade (nullum crimen, nulla poena sine praevia lege), ou, especificamente, da tipicidade. Passando ao exame da diferenciação, Badaró50 explica que o fato processual é um acontecimento histórico, com todas as suas circunstâncias de tempo, espaço etc., enquanto o fato penal é uma entidade extraída de uma situação hipotética, uma abstração, um modelo. Nessa senda, provando as diferenças aludidas, explica e, em seguida, exemplifica ser possível a existência de mudanças fáticas relevantes, do ponto de vista processual, sem que haja a mesma relevância na perspectiva do tipo penal invocado. Retrata o processualista penal51 que o fato processual é resultado de um complexo formado pelo fato principal e por circunstâncias modificativas, de sorte que o que é acidental em relação a um tipo penal pode modificar o fato processual. Como exemplo, traz a impossibilidade de o juiz condenar alguém por um homicídio ocorrido com o uso de fuzil, quando, em verdade, fora imputado que ocorreu tal crime com o uso de revólver, ou mesmo dizer que a morte ocorreu no dia 18 de dezembro, em Veneza, quando, na realidade, a acusação aduzia o acontecido em 10 de janeiro, em Palermo. À evidência, são contornos que, em face do tipo penal imputado, não se mostram determinantes, configurando, em todos os casos, um homicídio (artigo 121 do Código Penal), mas que, sob o ângulo do fato processual, modificam o objeto processual inicialmente projetado no exercício do direito de ação. Com isso, é oportuno arrematar, por enquanto, que o fato processual penal conversa harmonicamente com o fato naturalístico, aquele fato concreto ocorrido e observado em todas as suas circunstâncias. Isso porque a modificação do fato naturalístico influencia na mudança do fato processual. Entrementes, não obstante o fato penal tenha permanecido o mesmo no exemplo apresentado, não quer isso dizer que alterações no fato penal também não se mostrem notáveis para o processo penal. Pelo contrário, sempre que haja uma modificação essencialmente penal, ela refletirá no processo, visto que não é possível condenar alguém sem que o fato concreto imputado apresente todos os elementos que abstratamente integram o tipo penal, tal qual o próprio Badaró alega e similarmente exemplifica52. São as ocasiões em que, no curso da instrução, são descobertas elementares que trocam o tipo penal, resultando na mutação, claro, do fato processual. 50 BADARÓ, op. cit., p. 105-111. 51 Ibid., p. 118-119. 52 Ibid., p.122-123. 33 Por sinal, subsistem hipóteses em que, isoladamente, o fato penal é capaz de definir o fato processual, sem alteração naturalística. Badaró53 cita que se trata da tênue distinção entre dolo eventual e culpa consciente, havendo, em ambas, a previsão do resultado antijurídico, o qual é aceito pelo agente na primeira modalidade, e é desacreditado na segunda, quando piamente crê o indivíduo que não o atingirá. A distinção é relevante ao tipo penal, mas se encontra apenas no plano volitivo do agente, mostrando-se o fato, no seu aspecto exterior, exatamente o mesmo. E mais, existem as próprias situações em que a mera interpretação que se dá ao tipo definirá tal mutação. Assim, pode-se concluir que o fato processual também está intimamente relacionado ao fato penal, de modo que esse primeiro, tal qual assevera Aury Lopes Junior54, é a soma do fato penal com o fato naturalístico, pois ambos alteram o fato processual. Nessa perspectiva, é difícil corroborar a posicionamentos pelos quais a identidade do objeto do processo deve ser observada, para fins de correlação entre acusação e sentença, apenas em função da inalterabilidade do substrato fático da imputação. Pode-se até elegê-la como precipuamente determinante, bem como consentir que não necessariamente a mudança de qualificação jurídica implica numa quebra da correlatividade – pela utilização dos artifícios abalizados na sequência, ao quarto capítulo –, porém, jamais, afirmar, acriticamente, que o princípio da correlação diz respeito apenas aos fatos. Uma condenação em delito diverso do capitulado pela acusação não deixa de ser diversa em relação à imputação por ela projetada. A questão desemboca no velho debate acerca do objeto do processo e, embora não se pretenda, nesta sede, dar novos contornos dogmáticos ao objeto do processo penal – assim não se ambiciona, não há suficiente bagagem, nem se tem como finalidade –, convém aprofundar um pouco mais o estudo. Outrora, chegou-se à conclusão de que o objeto do processo penal era, conforme entendimento geral, o da pretensão processual penal, emergindo, com relevo, o conceito de imputação. Mas, nesse ponto, reside uma enorme controvérsia: a imputação resume-se a fatos ou compreende também a sua qualificação jurídica? De antemão, registre-se ser bastante atraente a ideia de que integra ela também a qualificação jurídica dos fatos, até pelo acima apreciado, porém a compreensão do mote demanda levantamento de amplitude muito maior. 53 Ibid., p. 233. 54 LOPES JR., op. cit., p. 893. 34 Pincelando a questão, Frederico Marques55, começando suas lições sobre o assunto pelo detalhamento da denúncia, assim como aqui se fez, ensina ser tal peça o ato processual que formaliza a ação ou o ato instrumental para o início da actio poenalis de caráter público. Para ele, a acusação seria a dedução da pretensão punitiva em juízo e a denúncia precisaria trazer, além dela (a acusação), mas de par a ela, o pedido de prestação jurisdicional – na leitura de Pozzer, exposta ao capítulo anterior, a denúncia deveria trazer a imputação e a responsabilização (elementos da acusação), sendo essa última posta no pedido, agora conforme Frederico Marques. Descrevendo a parte que Pozzer vislumbra como responsabilização, explica Frederico Marques que o pedido deve conter as sanções cabíveis, com suas penas principais e acessórias, conquanto não seja específico no que tange à graduação da pena. Resume, então, que a denúncia pugna pela aplicação da sanctio juris devida e adequada, ao passo que o juiz determina o quantum debeatur penal. Da exposição, depreende-se, de plano, que não resume o autor a pretensão processual a fatos, apontando, na verdade, sua constituição pela imputação e pelo pedido de aplicação da sanção (ou de responsabilização). Assinala, no raciocínio, como limite dessa acusação, a imputação, por ser ela quem traça o res in judicium deducta. Por sua vez, a decompõe em três elementos: a) a descrição dos fatos; b) a qualificação jurídico-penal dos fatos; e c) a atribuição dos fatos descritos a alguém56. Malgrado apegado às nomenclaturas cíveis e em abordagem não específica sobre a problemática da correlação, Frederico Marques não restringe, definitivamente, a pretensão acusatória (objeto do processo penal) a fatos e, de outro modo, acaba por admitir que a qualificação jurídico-penal desses fatos compõe a imputação. Afinal – diga-se de passagem – o próprio nomen iuris “emendatio libelli” sugere que a imputação envolve esse elemento jurídico, pois, se libelo é o nome dado à peça que veicula a acusação, quando se chama de emenda ao libelo o procedimento do juiz de simples alteração da tipificação, está-se a admitir que é componente primordial do libelo e da sentença, ou, em outros termos, do objeto do processo, tal elemento jurídico. Badaró, embora depois disponha que alterações do fato penal não modificam o objeto57, chega a afirmar, designando existirem posições que concebem a imputação apenas como a atribuição de um fato a alguém, que “Tal posição não parece correta. O fato a ser objeto do processo penal deve ser relevante do ponto de vista do direito penal e, assim sendo, 55 MARQUES, op. cit., p. 145-152. 56 Ibid., p. 236. 57 BADARÓ, op. cit., p. 125. 35 enquadrável em um modelo penal [...]”58. Adiante, ainda firma que “O objeto do processo, portanto, envolve matéria fática e matéria jurídica”59. Aury Lopes Jr.60, de forma assemelhada, como dantes já se asseverou, designa a pretensão acusatória como objeto do processo penal. Entende que essa pretensão, a sua vez, estrutura-se por elementos subjetivos, com aquele que pretende e aquele contra quem se pretende fazer valer a pretensão; por elementos objetivos, com o fato aparentemente punível – destacando o autor seu não exaurimento no fato, mas também na sua tipificação, e que, similarmente, não é o fato exclusivamente o objeto do processo, senão elemento integrante da pretensão61; e pela declaração petitória, a declaração de vontade que pede a realização da pretensão, a qual solicitará ao órgão jurisdicional, inclusive, a responsabilização. Abordando a questão em inigualável semblante didático, Pozzer situa o que pode ser a causa da grande prevalência pela consideração dos fatos, dentro da imputação, em detrimento da consideração da tipificação (e igualmente dos demais elementos). Deslinda que o fato pode ser visto como elemento de mediação entre a previsão que há em um tipo e o efeito atribuído à ocorrência ou não do fato genericamente previsto, isto é, a responsabilização – que, para o autor, repita-se, é o segundo elemento da acusação62. Sendo assim, refere que, no momento em que se fala da identidade dos fatos, está-se falando na porção de atividade que corresponde aos atos de execução do tipo que haja sido afirmada na acusação e na sentença63, com fins de atribuir responsabilização a alguém. Repare-se, assim, que o tipo aparece constantemente como importante dimensão do deduzido em juízo, sendo sempre confrontados os fatos a fim de conformá-los a um determinado conceito abstrato, pois, como dito, os princípios da legalidade e da tipicidade impõem não haver crime sem lei anterior que o defina, sem tipo. É, sim, primordial sua indicação, pois aqueles fatos da vida real apontados devem, inequivocamente, despontar num específico modelo legal, ao que a tipicidade se mostra como instrumento de viabilização do princípio da legalidade. 58 Ibid., p. 82. 59 Ibid., p. 145. 60 LOPES JR., op. cit., p. 243-251. 61 Reverbera o autor que “O problema da visão ingênua do elemento objetivo cobra seu preço no momento em que lida com a correlação entre acusação e sentença [...]” (LOPES JR, Aury. Fundamentos do processo penal. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2016. p. 248). 62 POZZER, Benedito Roberto Garcia. Correlação entre acusação e sentença no processo penal brasileiro. São Paulo: IBCCrim, 2001, p. 67. 63 Ibid., p. 71. 36 Sem essa confrontação, é inegável que os fatos não seriam relevantes ao direito processual penal. Não se está diante da processualística civil, em que há interpretações ampliadas, modelos genéricos, analogias etc., o processo penal exige a estrita adequação do fato abstrato ao fato concreto, caminhando, gradativamente, conforme os elementos e as circunstâncias do fato penal se coadunem ou não com a evolução da apuração do fato acusado. A denúncia, segundo Pozzer64, é uma exposição narrativa e demonstrativa. Narrativa, porque deve revelar não só a ação, mas a pessoa que a praticou (quis), os meios que empregou (quibus auxiliis), o malefício que produziu (quid), os motivos que lhe determinaram a isso (cur), a maneira como a praticou (quomodo), o lugar onde a praticou (ubi), o tempo etc. E demonstrativa, porque deve reportar-se à conduta abstratamente descrita no tipo penal, pelo que irá angariar provas a evidenciar cada elemento típico. Logo, para a comprovação da tipicidade, deve-se indicar o ânimo (elemento subjetivo) do agente, no caso de imputação de furto; nos crimes de perigo concreto, em que ele se traduz, diferentemente das situações nas quais a lei presume o perigo; no caso exemplificado de violação de correspondência, designar em que consiste o “indevidamente” (elemento normativo de conotação cultural); nos crimes materiais, expor o resultado; nas situações de tentativa, evidenciar as circunstâncias alheias à vontade do agente que lhe impediram a consumação; nos crimes culposos, especificar a negligência, a imprudência ou a imperícia; e, nos casos de concurso, especialmente crime continuado, apreciar o tempo, a forma de execução e lugar de cada crime65. É certo que o objeto do processo não é um fato hipotético, uma abstração, como o fato penal, mas, da mesma maneira, o fato naturalístico apontado na peça acusatória é somente um fato afirmado, um fato que, paradoxalmente, não deixa de ser incerto, sendo, construtivamente, sopesado, no curso processual, frente ao direito. Dizer que o pedido, no processo penal, é genérico, significa que não é obrigado o acusador, na peça exordial, a ter o trabalho de individualização da pena ou de determinação do regime inicial de cumprimento de pena privativa de liberdade, por exemplo, e não que à peça acusatória é suficiente a exposição de fatos e não do direito, quanto mais à tipificação, diante do elementar princípio da legalidade, e, especificamente, do princípio da tipicidade. Nesse raciocínio, a colocação do conceito de responsabilização dá a dimensão de que há, sim, um pedido – de atribuição de consequências sancionatórias frente à imputação (fática e jurídica). 64 POZZER, op. cit., p. 104. 65 Ibid., p. 111. 37 Portanto, só a completa ciência dos elementos que compõem a acusação, dentre eles a tipificação da conduta, é capaz de entregar uma prestação jurisdicional específica e adequada ao caso, bem como de viabilizar o exercício constitucional do direito ao contraditório e à ampla defesa. A intenção da breve exposição é justamente delimitar que, de regra, não se reduz mais o objeto da imputação ao fato naturalístico, porquanto identifica-se o objeto com a pretensão processual ou acusatória, a qual, na mais sensata doutrina, não se exaure na simplista dicção dos fatos. Com isso, dando cabo à primeira indagação surgida a partir do debate sobre o trecho escrito por Tourinho Filho, a denúncia e a queixa não enunciam (ou não devem enunciar) apenas fatos, mas dão as balizas do fato processual penal imputado, até porque “a petição inicial é um projeto da sentença que se pretende obter”66. 3.2. O PRINCÍPIO DA NÃO SURPRESA COMO DECORRÊNCIA DO CONTRADITÓRIO A segunda questão, então, interpela se apenas a parte pergunta e simplesmente o juiz responde. Por óbvio, a resposta só pode ser negativa. A esse raciocínio, pertinente o rebate de Aury Lopes67, para o qual “é reducionismo pensar o princípio da correlação (ou congruência) no binômio acusação-sentença, pois não se pode admitir a decisão acerca de matéria não submetida ao contraditório”. O contraditório, como visto, determina a construção dialética do processo. E, nessa via, trazendo novamente a discussão para o cerne deste trabalho – qual seja, a mudança na tipificação penal com a manutenção da situação fática, em razão da emendatio libelli –, impõe- se, também, às questões de direito. Necessário o realce, porque, tradicionalmente, é ele aplicado unicamente às questões fáticas, ou seja, apenas diante da colheita do material probatório, certamente devido aos mencionados velhos brocardos iura novit cúria e narra mini factum, dabo tibi ius. Por essa mesma razão, diga-se de passagem, nas costumeiras abordagens do princípio do contraditório, a visualização fixa-se nas partes, sem alcançar a figura do juiz. 66 PASSOS, José Joaquim Calmon de. Comentários ao Código de Processo Civil. Rio de Janeiro: Forense, 1988. v. 3. p. 155. 67 LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal e sua conformidade constitucional. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 889. 38 Sucede que, em conformidade com o, há tempos, alertado por Carlos Alberto Álvaro de Oliveira68, proposta a demanda e delimitados os seus contornos essenciais, constitui dever do juiz controlar o rápido, regular e leal desenvolvimento do processo. E, nesse desígnio, sua vontade nunca pode ser totalmente soberana, pois, de um ou outro modo, condiciona-se à vontade das partes, no que representam de estímulo, resistência ou concordância, uma vez que o monólogo consigo mesmo limita a perspectiva do observador, enquanto o diálogo, em compensação, favorece à formação de um juízo mais aberto e ponderado. Faz-se, assim, palpável a insuficiência do conceito do contraditório, tal qual geralmente previsto na doutrina brasileira, como mera ciência bilateral dos atos do processo e possibilidade de contraditá-los, tornando-se dever de obediência também pelo juiz, cuja posição incumbe zelar pelo contraditório pleno e efetivo. Se o processo passa a ser um procedimento em contraditório – núcleo dos estudos de Elio Fazzalari69 –, o protagonismo é, sim, das partes, mas o juiz deve se reservar ao papel de garantidor do contraditório. Ficou para trás a ideia de parte como mero objeto do pronunciamento judicial, exibindo poder de atuar criticamente e construtivamente no andamento do processo70. O magistrado pode até fazer valer seu entendimento jurídico, mas não sem antes ouvir e, sobretudo, considerar o aduzido pelas partes. E essa prévia oitiva das partes, como dito, não é dispensada quando se lida com questões de direito, pois, não raro, elas ultrapassam uma simples subsunção. Podem surgir ao aplicador problemas não solucionáveis com facilidade, tais como, o concurso aparente ou real de normas, os conflitos de lei no tempo e no espaço, a necessidade de compatibilidade entre a norma e a Constituição, a variedade de interpretações a respeito de um mesmo texto de lei etc., pelo que, no exercício provocativo do (dever do) contraditório, o juiz mitiga o empecilho encontrado, angariando elementos que lhe convençam e desprendam de eventuais preconceitos, apercebendo-se que, muitas vezes, eles só são satisfatoriamente informados pelas partes. O consignado dever, além do mais, não está ligado apenas ao interesse processual e individual das partes, mas encontra uma íntima conexão com o interesse público. No campo decisório, inegavelmente, incide o contraditório, só sendo legítimo admitir decisões pautadas pelo binômio informação-reação, isto é, decisões sujeitas a prévio debate. A lógica, por outro caminho, refere-se a decorrência fidedigna do já discorrido Estado Democrático de Direito, o 68 OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro de. O Juiz e o princípio do contraditório. R. Fac. Direito UFRGS, Porto Alegre, n. 9, p. 178-184, nov. 1993. Disponível em: . Acesso em: 19 out. 2019. 69 FAZZALARI, Elio. Instituições de direito processual. Tradução de Elaine Nassif. 1. ed. Campinas: Bookseller, 2006. p. 121-125. 70 O que equivale, no âmbito processual penal, ao sistema acusatório. 39 qual pressupõe a participação efetiva dos indivíduos em todos os atos de poder que potencialmente lhes afetem, e que, no processo, corresponde à oportunização do contraditório. A prevalência dos ultrapassados iura novit cúria e narra mini factum, dabo tibi ius, noutra banda, pode vir a transformar o processo em instrumento de opressão e autoritarismo. O clamado livre convencimento do juiz não é ilimitado. Valora as provas e escolhe a regra jurídica aplicável, mas sempre vinculado à fundamentação, daí falar-se em livre convencimento racional e motivado. Trata-se de exigência, aliás, positivada constitucionalmente ao artigo 93, inciso IX, e constante do artigo 155 do Código de Processo Penal71, impondo a progressiva consignação das justificações de escolhas pelo juiz. No Estado Democrático, só se concebe a intromissão do Estado na vida das pessoas se com fundamentos demonstrados e pautados na ordem jurídica a qual o próprio Estado submete-se72. É o grande desafio retórico do juiz: evidenciar que decide de forma legítima. Esse estudo da motivação do juiz é o que permite perceber o afastamento da questão processual penal – fática ou jurídica – levada a julgamento, sendo incabível acolher questões que não foram objeto da acusação formal ou que foram ignoradas pela defesa do acusado73. É por esses motivos que alguns doutrinadores, sem qualquer embargo, são pela aplicação do contraditório aos casos de emendatio libelli. Quer-se dizer que, previamente ao ato decisório que profere a nova tipificação atribuída aos fatos inicialmente imputados, considera-se imperioso provocar as partes a respeito da definição jurídica assemelhada ou confundida com a pretendida. Exempli gratia, Renato Brasileiro74 afirma que se impõe a manifestação das partes na hipótese de possível alteração da capitulação jurídica atribuída aos fatos. Completa argumentando que “Se é verdade que o princípio do iuria novit curia confere ao juiz a possibilidade de alterar a classificação dos fatos constantes da peça acusatória, também não é menos verdade que o princípio do contraditório lhe impõe a comunicação prévia às partes”, inclusive nas ocasiões de tomadas de decisão de ofício, sempre evitando que sejam elas indevidamente surpreendidas no momento da sentença. 71 Art. 155. O juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial, não podendo fundamentar sua decisão exclusivamente nos elementos informativos colhidos na investigação, ressalvadas as provas cautelares, não repetíveis e antecipadas. 72 WAMBIER, Teresa Arruda Alvim, Nulidades do processo e da sentença. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997. p. 249. (Coleção estudos de direito de processo Enrico Tullio Liebman; 16). 73 POZZER, op. cit., p. 136. 74 LIMA, Renato Brasileiro de. Código de Processo Penal comentado. 2. ed. Salvador: Juspodivm, 2017. p. 1033. 40 Walter Nunes75 acresce e reforça não se poder perder de vista que a emendatio libelli acaba por permitir ao juiz a prolação de sentença com argumento novo, pautado na nova tipificação da conduta, que não foi objeto de debate pelas partes. Sustenta, na sequência, não parecer razoável ser o acusado surpreendido com fundamento de parte substancial da sentença, relembrando cuidar-se, outrora, de ponto extremamente controvertido também no processo civil, motivação pela qual emergiu o artigo 10 do Código Processual Civil de 2015. Citado artigo preceitua que “O juiz não pode decidir, em grau algum de jurisdição, com base em fundamento a respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar, ainda que se trate de matéria sobre a qual deva decidir de ofício”. O exarado princípio da não surpresa, nesse modo de pensar, com ainda mais razão incidiria no processo penal, frente à mais larga dicção do princípio da ampla defesa no âmbito criminal. Para o autor, com quem há de se concordar, a compatibilização do artigo 383 do Código Processual Penal, justamente aquele que cuida da emendatio libelli, ao sistema constitucional estaria garantida pela aplicação do princípio da não surpresa. De fato, merece grande atenção o estudo do princípio da não surpresa. É que ele consagra tudo o quanto até agora elaborado e trata-se de novidade reconhecida pelo sistema brasileiro. Como pontuado, o artigo 10 do Código de Processo Civil formulou a vedação à decisão surpresa – ou decisão de terceira via (terza via). Diz-se que o novo princípio redefiniu o modelo do processo civil brasileiro, que passou a ser cooperativo76. Ademais, o artigo 9º da mesma codificação, em seu caput, descreve que “Não se proferirá decisão contra uma das partes sem que ela seja previamente ouvida”. A aplicabilidade da disciplina no âmbito criminal, por sua vez, dá-se em razão do artigo 3º do Código de Processo Penal, pelo qual “A lei processual penal admitirá interpretação extensiva e aplicação analógica, bem como o suplemento dos princípios gerais de direito”. Foi dito que o princípio da não surpresa concretiza tudo o ora discutido, especialmente, porque ele sedimenta a dimensão substancial do contraditório, isto é, sua face relativa ao poder de influência. No Estado Democrático de Direito, concebe-se o contraditório como garantia de participação (audiência, comunicação, ciência) e poder de influência. A visão tradicional consubstancia-se na participação (dimensão formal), mas esse é o conteúdo mínimo do contraditório, uma vez que, como dito, hoje, não basta assegurar a oitiva da parte, mas que ela 75 SILVA JÚNIOR, Walter Nunes da. Reforma Tópica do Processo Penal: Inovações aos procedimentos ordinário e sumário, com o novo regime das provas, principais modificações do júri e as medidas cautelares pessoais [versão Kindle]. 3. ed. Natal: OWL, 2019. 76 DIDIER JR., Fredie. Curso de Direito Processual Civil: Introdução ao Direito Processual Civil, Parte Geral e Processo de Conhecimento. 18. ed. Salvador: Juspodivm, 2016. p. 85. v. 1. 41 realmente tenha condições de influenciar na decisão77, não basta conhecer, mas influir nos rumos78, daí, inclusive, sua acepção como dever do juiz e sua aplicação a questões de direito. Na atual ideia do contraditório, tendo em vista a determinação da não surpresa, por conseguinte, “as partes têm o direito de confiar que o resultado do processo será alcançado mediante material previamente conhecido e debatido”79, possuindo elas o direito de pronunciar- se sobre qualquer ponto de apoio à decisão da causa, inclusive questões apreciáveis de ofício. Com isso, o princípio da não surpresa condiciona a máxima iura novit cúria ao prévio diálogo. O juiz continua com o poder de aplicar o direito, mas a validade dessa aplicação do direito ao caso concreto é condicionada ao diálogo – aplicação essa que inclui, no processo penal, a tipificação dos fatos80. Assim, no quadro histórico, o contraditório realizava-se apenas pela observância do binômio informação-reação, faculdade estendida à produção de provas, feição própria da cultura do Estado Legislativo – em que as partes eram confinadas ao terreno das alegações de fato e da respectiva prova, e em que o órgão jurisdicional nada tinha a ver com a realização do contraditório, sendo os litigantes seus únicos destinatários. A positivação do princípio da não surpresa, então, rompe, definitivamente, com essa lógica e marca o estabelecimento do contraditório como poder de influência, cabendo ao julgador não só velar pela sua oportunização às partes, mas, fundamentalmente, a ele também se submeter81. Aclarada, portanto, ficou a segunda indagação formulada. O processo não envolve só uma pergunta da parte autora seguida de uma resposta do juiz. E, reformulando a resposta com o acréscimo das conclusões atingidas com o primeiro questionamento, o processo não se resume a uma pergunta englobando fatos acompanhada por uma resposta do direito pelo juiz. Em síntese, a parte acusadora apresenta fatos com relevância jurídica (penal), que são correspondentemente contraditados na medida em que ofertados e, inclusive, na sua significação jurídica – e consequente tipificação penal. Apenas aí, em descrição simplificada, pode sobrevir a síntese refletida na sentença. Além do mais, o direito de contraditar pressupõe a determinação precisa da imputação, pois ninguém pode defender-se de generalidades e, de modo parelho, não pode o juiz ir além 77 Ibid., p. 81-86. 78 MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Novo Código de Processo Civil Comentado. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017. p. 171. 79 Ibid., p. 172. 80 Ibid., p. 173. 81 Ibid., p. 171. 42 do perímetro traçado pela acusação (res in judicium deducta)82, o que equivaleria a uma verdadeira iniciativa de persecução penal. Aí está, portanto, a imposição de que os fatos e sua relevância penal sejam especificados, ou seja, tipificados desde a denúncia. Posto isso, conveniente reproduzir trecho de singular precisão de Ada Pellegrini Grinover, Antônio Scarance Fernandes e Antônio Magalhães Filho83, reportando-se que: Defesa e contraditório estão indissoluvelmente ligados, porquanto é do contraditório (visto em seu primeiro momento, da informação) que brota o exercício da defesa; mas é essa – como poder correlato ao de ação – que garante o contraditório. A defesa, assim, garante o contraditório, mas também por este se manifesta e é garantida. Eis a íntima relação e interação da defesa e do contraditório Nesse viés, já se encaminha, em sintonia, à terceira interrogação realizada. Isso porque, no processo penal, o princípio do contraditório compreende uma espécie de “relevância compensatória” – usando termo e argumentação despendidos por Felipe Martins Pinto e Paula Brener84 – para a democratização do processo e para a legitimação das decisões judiciais. Explica-se: de acordo com o reiteradamente colocado, o modelo democrático impõe a participação do indivíduo no processo em questão sempre que um ato de poder seja capaz de lhe afetar os interesses. Participação que, no ambiente judicial, sedimenta-se pelo contraditório, sendo que, no que tange especificamente ao âmbito criminal, sobre o acusado pende o risco de um provimento final que lhe restringirá a liberdade, direito fundamental presumido na mais elementar das Constituições, pressuposto para o exercício dos demais direitos. Aí está uma peculiaridade que não pode ser deixada de lado. Ademais, o processo penal desenvolve-se entre desiguais. É fácil entender sabendo que, no processo civil, antagonicamente, contradizem-se indivíduos, a priori, iguais, de forma parelha, titulares de direitos, sejam patrimoniais ou extrapatrimoniais, equivalentes. De maneira oposta, o processo penal, como brevemente introduzido ao segundo capítulo, confronta o indivíduo frente ao Estado-poder. O Ministério Público, apesar de, no modelo democrático, abandonar a função de instituição meramente acusadora para se tornar representante da 82 MARQUES, José Frederico. Elementos de direito processual penal. 3. ed. Campinas: Millennium, 2009. p. 50. 83 GRINOVER, Ada Pellegrini; FERNANDES, Antonio Scarance; GOMES FIHO, Antonio Magalhães. As nulidades no processo penal. 6.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 69. 84 PINTO, Felipe Martins; BRENER, Paula. A eficácia do contraditório no processo penal: atuação e legitimação para além da legalidade. e-Revista CNJ, Brasília, v. 3, n. 1, p. 37-50, jan.-jun. 2019. Semestral. Disponível em: . Acesso em: 19 out. 2019. 43 sociedade, não deixa de dispor do aparato estatal em seu favor, podendo requerer o cerceamento da liberdade do acusado para coleta de provas (prisão temporária); a quebra de sigilo de dados ou bancária; a interceptação telefônica etc. Dessa maneira, ainda acompanhando o raciocínio delineado pelos autores suprarreferidos, o processo penal transcorre-se entre desiguais e tem como provimento final possível a mais gravosa sanção do ordenamento, a pena privativa de liberdade. Trata-se de debilidade estrutural, que sempre existirá e sem nenhuma relação com as condições econômicas ou sociopolíticas do acusado, decorrendo apenas do lugar para o qual ele é chamado a ocupar, o de “réu”85. Na outra banda da moeda, os direitos e garantias do indivíduo, assegurados constitucionalmente, impedem a contraposição simétrica dos interesses neste modelo de processo. A preferência da sociedade em manter a liberdade de sujeitos culpados para certificar que não se prenda um inocente afasta a possibilidade de contraste paritário entre as políticas do Estado e os direitos do acusado no processo. Nesse mesmo sentido, Francesco Carrara86 já ministrava que à sociedade é mais prudente absolver um culpado do que condenar um inocente, visto que a condenação de um inocente representa um mal concreto e real, afora, claro, a combinada impunidade do culpado, ao passo que a absolvição do culpado apenas tem a potencialidade de causar outra lesão social. É séria a lição. À sociedade só é garantido o direito de punir o “verdadeiro réu”. A valer, existindo dúvida razoável, há de se absolver o acusado, sob pena de perturbar profundamente o convívio social ao punir-se um inocente, porquanto todos os indivíduos ver- se-iam como potenciais alvos de erro judiciário, deixando o processo de ser via de proteção aos que atuam nos conformes da ordem jurídica. Diogo Rudge Malan87 é firme ao salientar que o processo penal é campo de imanente tensão entre o dever-poder de punir do Estado e o direito individual à liberdade, havendo solo fértil para situações de conflito entre direitos de primeira e segunda geração, mas destaca que “é indiscutível que, em sede de persecução penal, os direitos de primeira geração devem ter primazia sobre todos os demais, pois o processo penal é, em si mesmo, um importantíssimo instrumento de inibição da ingerência estatal excessiva na vida dos cidadãos”. 85 LOPES JR, Aury. Fundamentos do processo penal. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2016. p. 70. 86 Francesco Carrara apud SILVA JR., Walter Nunes da. Curso de direito processual penal: Teoria (constitucional) do processo penal. 2. ed. Natal: OWL, 2015. p. 380. 87 MALAN, op. cit., p. 15. 44 Diante dessas premissas, não se distribui – e não podia ser de outro modo – igualmente a propriedade do contraditório no processo penal. Ao acusado, titular do direito fundamental da liberdade, devem ser propiciadas condições reais de participação no processo, limitando o Estado, e vinculando o Ministério Público e o juiz. Essa “geometria única” do processo penal designa que o Ministério Público atua legitimamente no processo quando subordinado à estrita legalidade. Tendo assumido o papel de defensor da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis (segundo a redação do caput do artigo 127 da Constituição), o parquet só age validamente quando manifestando o contraditório nos termos da lei. Por isso, quando existentes os pressupostos necessários, deve promover a ação penal, no entanto, quando ausentes, deve requerer a absolvição88. Em feição correlata, o contraditório, para o acusado, deve ir além da mera legalidade, porque, só desse jeito, ameniza-se a disparidade natural do processo penal. Deve ele assegurar o exercício da ampla defesa, com todos os meios e recursos a ela inerentes, tanto é assim que, consoante outrora dito, só existe previsão do princípio da ampla defesa, em sede constitucional, para a titularidade do acusado. No ambiente criminal, esse contraditório substancial, que equipara os desiguais pelo exercício da ampla defesa, é exclusivamente aquele considerado pleno e efetivo, o que – é óbvio – não significa atribuir ao acusado a licitude de proceder com comportamentos ilegais. Não por outra razão, as próprias normas processuais, no plano da legalidade, buscam reduzir, por alguns aspectos, a assimetria comentada, com artifícios como a colocação à defesa da última palavra do processo. Todavia, essas estruturas formais e legais nem sempre são suficientes, daí o papel do juiz, numa hermenêutica conforme a Constituição, em perpetuar a compensação intrínseca e imprescindível ao processo penal. Exemplo prático trazido por Felipe Martins Pinto e Paula Brener89 é o caso hipotético de instauração de investigação por crime de corrupção ativa (artigo 333 do Código Penal), cometido por uma organização criminosa (artigo 2º da Lei nº 12.850, de 2013), em que houve regular interceptação telefônica por 15 (quinze) dias, prorrogados por mais 15 (quinze), como dispõe o artigo 5º da Lei nº 9.296, de 24 de julho de 1996, tendo as investigações policiais findado apenas após 2 (dois) anos, e existindo vários corréus. 88 PINTO; BRENER, op. cit., p. 42. 89 Ibid., p. 44-47. 45 Pergunta-se, in casu, se seria razoável permitir à defesa, na estrita forma do artigo 396- A do Código Processual Penal, apenas o prazo de 10 (dez) dias para compreender todos os elementos de informação obtidos ao longo de anos de investigações e 30 (trinta) dias de interceptações, afora selecionar as questões atinentes somente ao seu cliente. Ainda, após tudo isso, sabe-se que ao indivíduo caberia apresentar todas as provas e meios admitidos em direito para a construção da negativa da acusação, mas, na situação, pode o único meio de prova que o acusado possua ser o testemunhal, quando o artigo 401 do Código de Processo Penal limita a 8 (oito) o número de testemunhas a serem arroladas, “impedindo”, eventualmente, que o denunciado traga ao processo depoimentos que lhe seriam essenciais à defesa. Feitas essas reflexões, justifica-se a afirmação de que a ampla defesa vai além da mera legalidade. Assim, chega-se ao ponto de exame da terceira indagação aqui deduzida, qual seja, “o réu vai defender-se da imputação que lhe é feita, e não da sua capitulação?”. 3.3. A DEFESA TÉCNICA COMO ELEMENTO DA AMPLA DEFESA A conclusão outrora atingida, de que o acusador apresenta fatos com relevância jurídica (penal), que são correspondentemente contraditados na medida em que ofertados e na sua significação jurídica – e consequente tipificação penal –, já ajuda bastante na argumentação em questão. Todavia, faltou expor aspecto importantíssimo da introduzida dimensão da ampla defesa, sua extensão a envolver a autodefesa (ou defesa privada) e a defesa técnica (ou defesa pública), ratificando a ilação de que vai ela (a ampla defesa) para além da mera paridade comum ao contraditório. É fato que, na esfera criminal, aponta com enorme relevo a autodefesa, contrariamente ao ambiente cível, em que as manifestações das partes se dão por meio exclusivamente do advogado, sendo todas as comunicações processuais, após habilitado nos autos, realizadas em seu nome. No campo processual penal, usando termos de Walter Nunes90, o direito à autodefesa, derivado da compreensão da ampla defesa, envolve, em significação muito mais abrangente, três ordens, quais sejam, (1) o direito de o acusado ser cientificado dos atos processuais; (2) o de estar presente às audiências; (3) e o de falar nos autos, concretizado, majoritariamente, pelo direito ao interrogatório ou direito de audiência. 90 SILVA JR., Walter Nunes da. Curso de direito processual penal: Teoria (constitucional) do processo penal. 2. ed. Natal: OWL, 2015. p. 490-497. 46 Explicando cada um, é consabido que o acusado tem o direito de ser intimado pessoalmente das decisões interlocutórias, das datas de realização das audiências e da sentença. Não basta a intimação de seu advogado ou defensor dativo, de sorte que resulta em nulidade relativa a ausência de intimação das audiências e em impedimento da preclusão para a interposição de eventuais recursos a irregularidade de comunicação sobre as decisões interlocutórias e sobre a sentença, pois os prazos em questão só começam a correr da última intimação constante dos autos, seja do advogado ou do acusado. Sobre o segundo direito, em síntese, pois não é esse o objeto a que se atém o trabalho, refere-se à faculdade do acusado de, estando presente à audiência, ter conhecimento das afirmações do ofendido e das declarações das testemunhas, o que implica, inclusive, no direito de sentar-se ao lado de seu advogado e com ele conversar, realizando notas e lembretes que podem ser importantes à defesa91. A terceira decorrência da autodefesa, por sua vez, concretiza-se no direito de o acusado, em algumas vezes, no processo penal, poder falar por si, ainda que tendo advogado ou defensor dativo. O principal cenário em que isso ocorre é na sede do interrogatório, que deixou, com a reforma operada pela Lei nº 11.790, de 02 de outubro de 2008, de ser mero ato de instrução – o primeiro por sinal – para ser instrumento de defesa, apresentando-se por último (artigo 400, caput, do Código Processual Penal). O acusado, também, ao fim da instrução, pode requerer diligências originárias dos fatos apurados (artigo 402 do Código Processual Penal); na fase recursal, tem jus postulandi para interpor recurso (artigos 577 e 578 do Código Processual Penal); na execução da pena, da mesma forma, tem legitimidade para postular (artigo 195 da Lei nº 7.210, 11 de julho de 1984, ou Lei de Execução Penal); possui, ainda, capacidade postulatória em algumas ações autônomas, como o habeas corpus (artigo 5º, inciso LXVIII, da Constituição, e artigo 654, caput, do Código Processual Penal); e, dando fim ao cabedal de exemplos, pode invocar a revisão criminal (artigo 623 do Código Processual Penal). Acontece que, não obstante a enorme acepção da autodefesa no processo penal, como dá a entender as decorrências supracitadas, a ampla defesa não se exaure nela. Pelo contrário, é certo que, como tradicionalmente defende a doutrina, a autodefesa é muitíssimo importante e, por meio dela, o acusado contrapõe-se a variadas situações, mas tais situações são, de regra, de conotação fática, pois desprovido dos conhecimentos jurídicos para argumentar no sentido 91 Na prática o que ocorre, entretanto, é o constante desrespeito a essa prerrogativa, em especial no ambiente do Tribunal do Júri, em que o acusado é posto em local isolado, à frente do juiz e rodeado de policiais. 47 dessa ou daquela tipificação ou de demais aspectos do direito. Assim, igualmente valiosa é a defesa técnica92. Com isso, contrariamente ao deduzido por Tourinho Filho93 na continuidade da citação construtivamente rebatida, “se o Promotor, na denúncia, afirma que Mévio adentrou a casa de Caio, e de lá subtraiu [...] coisa alheia móvel, e capitula esse fato no art. 217 do CP, evidente que o Juiz [...], não vai perguntar a Mévio: ‘O sr. cometeu a infração definida no art. 217?’”, porém não porque o “réu” não se defende da capitulação jurídica, e sim de fatos, mas porque quem disso se encarrega é a defesa técnica. Assim, tem tratamento singular, no processo penal, esse desdobramento da ampla defesa, sendo ele indisponível – ao contrário da autodefesa, “renunciável” quando o acusado confessa os fatos. É o que consagra o artigo 261 do Código Processual Penal, dispondo, ipsis litteris, que “nenhum acusado, ainda que ausente ou foragido, será processado ou julgado sem defensor”. Diferente, como sabido, é no processo civil, em que o réu pode mostrar-se revel e, na maioria das vezes, ter a presunção de veracidade dos fatos alegados pelo autor em seu desfavor (artigo 344 do Código Processual Civil), ao passo que, no processo criminal, não sendo apresentada a resposta à acusação no prazo legal, “[...] o juiz nomeará defensor para oferecê-la, concedendo-lhe vista dos autos por 10 (dez) dias” (artigo 396-A, § 2º, do Código de Processo Penal)94. Essa indisponibilidade dá-se, justamente, em função da presunção de hipossuficiência do sujeito ocupante do polo passivo, devendo o Estado organizar-se para, da mesma maneira que garante um Ministério Público, ocupante do polo ativo do processo, tão bem estruturado, prestar um serviço equivalente de tutela do acusado que não tem condições de constituir 92 No sistema jurídico brasileiro, como regra, o advogado é essencial à administração da justiça (artigo 133, primeira parte, da Constituição Federal), querendo isso dizer que a defesa dos interesses das partes perante o Judiciário tem de ser manifestada por profissional habilitado para o exercício da advocacia. De modo mais cogente, o Estatuto da Advocacia (Lei nº 8.906, de 7 de julho de 1994) impõe que a representação judicial das partes seja feita por meio de advogado devidamente habilitado perante a Ordem dos Advogados do Brasil – OAB. 93 TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Código de processo penal comentado. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 869-870. 94 Muitos confundem a situação de “revelia” no processo penal com a cível. No ambiente criminal, ainda que regularmente citado e não apresentando defesa, assim como explicado, o acusado tem ela garantida e, quando citado por meio ficto, o processo é suspenso, agora na dicção do artigo 366 do Código de Processo Penal, pelo qual, “se o acusado, citado por edital, não comparecer, nem constituir advogado, ficarão suspensos o processo e o curso do prazo prescricional, podendo o juiz determinar a produção antecipada das provas consideradas urgentes e, se for o caso, decretar prisão preventiva, nos termos do disposto no art. 312”. Ocorrendo tal hipótese no processo civil, o processo segue, havendo a nomeação de curador especial (artigo 72 do Código Processual Civil), afora a dita presunção de veracidade dos fatos na hipótese de revelia, quando o acusado é, sim, citado, mas não apresenta defesa. 48 advogado. Trata-se, como já se deixou antever, de tentativa de concretizar a paridade de armas, sendo não só direito do sujeito passivo, mas, também, interesse de toda a coletividade. Nessa toada, é insuficiente ao respeito da exigência da ampla defesa por uma defesa técnica a mera oportunização de defesa (defesa formal), devendo ela ser efetiva e, ainda, eficiente (defesa substancial). A efetividade materializa-se, primordialmente, quando se nomeia defensor dativo ou defensor público, pois não pode o acusado, em absolutamente nenhuma hipótese, ficar sem defesa. É o que garante a Constituição ao artigo 5º, inciso LXXIV, preceituando que “o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos” e o artigo 133, caput, quando cuida da Defensoria Pública como instituição essencial à função jurisdicional do Estado. Já a eficiência impõe que essa defesa realmente mostre serviço no processo, não sendo garantida somente pro forma, daí a Súmula nº 523 do Supremo Tribunal Federal, pela qual a falta de defesa, no processo criminal, gera nulidade absoluta, e a defesa deficiente gera nulidade relativa. É notável a consideração da defesa técnica, podendo-se inferir que, malgrado tenha garantido-se ao acusado todas as condições possíveis de participação no processo, é reconhecida a premência de viabilização também de oportunidades técnicas para resistir à pretensão acusatória. Ora, se bastasse ao acusado rebater matérias fáticas, ninguém seria melhor do que ele mesmo para tal, no entanto, é primordial, no ambiente criminal, a defesa técnica. Logo, questões como a capitulação jurídica, passíveis de refutação com excelência apenas pelo defensor, emergem, sim, com grande relevo. E é só com o prévio e completo conhecimento dos elementos acusatórios que será possível contraditá-los tecnicamente, fazendo a defesa ser exercida em sua amplitude máxima e devida no processo penal. Em outras palavras, a completude e clareza da acusação – já estudada – constitui, além de dever da acusação, direito do acusado, por ser pressuposto do exercício dos direitos constitucionais ao contraditório e à ampla defesa, em especial nas linhagens da não surpresa e da defesa técnica, só existindo devido processo penal quando assentada uma acusação bem delimitada em seus aspectos não apenas fáticos, mas também jurídicos. Sabe-se que toda a atividade processual gira em torno da acusação inicial, seja com o acusador tentando comprovar sua procedência; o acusado e seu defensor – ou, ao menos, esse último –, ao contrário, tentando demonstrar sua improcedência, ainda que apenas parcial; e o juiz debruçando-se sobre o apurado para extrair o que de mais verossimilhante pode chegar. Ora, como já se disse, reunindo todos os conceitos desenvolvidos, a acusação fixa o objeto do 49 processo, o qual limita a atividade cognitória e decisória do tribunal, bitola a acusação e é pressuposto para que o acusado exerça a ampla defesa. Com isso, a primeira exigência para alguém defender-se é o entendimento da acusação, motivo pelo qual não há espaço para acusações genéricas, imprecisas ou implícitas (princípio da acusação explícita). E é por esse mesmo motivo que não se admitem acusações imprecisas ou “incorretas” quanto à tipificação, uma vez que ela é igualmente objeto de defesa. É por motivo semelhante que se exaspera a inadmissibilidade de imputações alternativas. Afrânio Silva Jardim95 é um dos maiores estudioso do tema, e, apesar de em abordagem diversa, diz serem as imputações alternativas as ocasiões em que a peça acusatória vestibular atribui ao réu mais de uma conduta penalmente relevante, mas asseverando que apenas uma delas pode ter sido a efetivamente praticada pelo acusado, em que pese sejam todas prováveis ao que desponta do inquérito. Então, a pretensão baseia-se nesta ou naquela conduta narrada. Seria o exemplo de alguém que é acusado por furto ou receptação (artigos 155 e 180 do Código Penal), apenas porque fora encontrado na posse de um bem furtado. Mas, em primeiro lugar, como um inquérito poderia informar a justa causa para a ocorrência de um ou outro delito?96 Trata-se de possibilidade vista negativamente, em razão das dificuldades ao exercício do direito de defesa e às repercussões no desenvolvimento do processo, como o cabimento de sursis processual quanto a um crime e ao outro não; ou sendo um crime de menor potencial ofensivo, com possibilidade de transação penal, e outro não etc. Intrigante é a doutrina e a jurisprudência, majoritariamente, não aceitarem a imputação alternativa, mas não enxergarem problemas nas situações de emendatio libelli97. Isso porque, em certos casos de emendatio, há uma alternatividade superveniente, de modo que a acusação, ao promover determinada tipificação, possibilita meios defensivos não previstos para o eventual tipo considerado ao final, na sentença. Assim, seria dada ao acusado a obrigação de defender- se, analogamente ao caso das imputações alternativas, de duas possíveis pretensões processuais, sendo que apenas uma delas basearia o decreto condenatório. E pior: a segunda pretensão seria inimaginável, implícita e determinada apenas pela cabeça do julgador, ou seja, além de imprevisível, teria retalhos inquisitórios. 95 JARDIM, Afrânio Silva. Direito processual penal. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1995. p. 221. 96 GRINOVER, Ada Pellegrini; FERNANDES, Antonio Scarance; GOMES FIHO, Antonio Magalhães. As nulidades no processo penal. 6.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 91-92. 97 Como ficará patente com as amostras jurisprudenciais trazidas ao quarto capítulo. 50 É verdade que, como afirma Guilherme de Souza Nucci98, “A defesa técnica, tão capacitada quanto o promotor e o juiz, avalia o teor da imputação à luz da definição jurídica do fato”. Mas é absurdo pensar que deve a defesa debruçar-se sobre absolutamente todas as possibilidades de tipificação daqueles fatos, de diferenças, sobretudo, interpretativas e jurisprudenciais. Afora ser possível que, em dadas situações, seja atribuída, pelo parquet, a melhor tipificação, sendo claro que a defesa não vai se contrapor à classificação feita pelo Ministério Público. Como diz Walter Nunes99, em verdade, a defesa fica em uma situação extremamente delicada, pois “Se abordar a questão, pode chamar a atenção do juiz para a erronia na classificação do crime. Se ficar em silêncio, pode ser surpreendida com a emendatio libelli feita pelo juiz, na sentença, de modo que não terá a oportunidade de debater o tema”. Pozzer100 exemplifica os enormes prejuízos trazidos à defesa com a situação de uma acusação de cometimento do crime de injúria (artigo 140 do Código Penal), ao passo que a condenação sobrevém pelos crimes de calúnia ou difamação (artigos 138 e 139 do Código Penal). Se correta fosse a capitulação inicial, o acusado poderia valer-se da exceção da verdade, com possibilidades de absolvição, ou da retratação, a qual viabilizaria a isenção de pena (artigos 138, § 3º; 139, parágrafo único; e 143, todos do Código Penal). Há, ainda, os exemplos de denúncia por furto, em hipótese na qual os acusados dão tranco na vítima, ao que alguns de seus objetos caem ao chão e eles aproveitam para realizar a subtração, calhando em sentença por roubo; ou, encerrando o ligeiro rol, de acusação inicial por falso (artigos 289 a 307 do Código Penal), quando o denunciado é condenado por estelionato (artigo 171 do Código Penal). Ora, são nítidas as situações de prejuízo à defesa. Se, por um lado, não há dúvidas de que o acusado se defende de fatos e não de números de artigo, por outro, também é verdade que a tipificação incorreta dos fatos lhe prejudica a defesa, pois não pode ser ela uma simples defesa, mas uma ampla defesa, que engloba, inexoravelmente, a defesa técnica. Além do mais, não se pode deixar passar que, neste trabalho, se visualiza um peculiar e inexplorado aspecto de semelhança entre a mutatio e a emendatio libelli. É indiscutível que episódios de mutatio libelli, em que se alteram os fatos inicialmente narrados no decorrer do processo, ensejam a “continuação da audiência, com inquirição de testemunhas, novo 98 NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Processo Penal e Execução Penal [versão ePUB]. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014. 99 SILVA JÚNIOR, Walter Nunes da. Reforma Tópica do Processo Penal: Inovações aos procedimentos ordinário e sumário, com o novo regime das provas, principais modificações do júri e as medidas cautelares pessoais [versão Kindle]. 3. ed. Natal: OWL, 2019. 100 POZZER, op. cit., p. 152-153. 51 interrogatório do acusado, realização de debates e julgamento” (artigo 384, § 2º, do Código Processual Penal). No entanto, não se observa que, nos casos de emendatio libelli, em que pese realmente narrados os fatos com todas as suas circunstâncias desde o princípio, a mudança de tipificação altera a lente com que são vistos, o que pode ser encarado analogamente à mutatio libelli101. A revisitação do tema perpassa pelo redimensionamento de alguns conceitos do processo penal. Em primeiro plano, frise-se que, tal qual leciona Aury Lopes Jr.102, o conhecimento é datado e a autonomia extrema do processo com relação ao direito material foi importante no seu momento, porém é chegada a hora de relativizar o binômio direito-processo, que impede ao processo o alcance de outros objetivos. Diante disso, não podem mais existir pudores em afirmar que o processo é um instrumento, estando o grande problema em advertir a serviço de quem está essa instrumentalidade, ao que só é legítimo concluir que está ela em serviço da realização do projeto democrático, com a máxima eficácia dos direitos e garantias fundamentais da Constituição. Feita a advertência, sabe-se que, de fato, o direito penal carece de eficácia sem a pena e essa, por sua vez, sem processo, é inconcebível. Retome-se que não há aplicação de reprovação sem o prévio processo, nem que haja o consentimento do acusado, pois a ele não é dado submeter-se voluntariamente à pena sem a precedência do processo, ao contrário do processo civil, que se realiza a todo momento, com a prática de atos e negócios jurídicos que prescindem da judicialização. Portanto, direto penal e processo penal estão, sim, umbilicalmente ligados. Nesse viés, há de ser superada a visão do caráter autônomo e abstrato da ação. Não se nega que, ainda que julgada improcedente a pretensão, existiu o processo, daí sua propriedade da abstração. Realmente, o direito ao processo é visto como abstrato porquanto existente sem qualquer vinculação com a sentença favorável de mérito. Ademais, a autonomia efetivamente se verifica na inaceitável confusão da pretensão punitiva (direito material) com a pretensão acusatória ou pretensão processual penal. No entanto, não se pode esquecer que essas categorias foram moldadas em torno do processo civil e, no processo penal, não se lida com o “bem da 101 Ambos os institutos, inegavelmente, possuem íntima relação com a ampla defesa. Se adotado o pensamento tradicional de que o acusado se defende de fatos, a mutatio libelli, ao alterar o substrato fático da acusação, interferiria na autodefesa. A emendatio libelli, por sua vez, iria ingerir-se na defesa técnica, a outra dimensão da ampla defesa, por lidar, sobretudo, com a qualificação jurídica colocada à acusação. 102 LOPES JR., Aury. Fundamentos do processo penal. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2016. p. 66-70. 52 vida”, como os civilistas gostam de chamar, mas com a vida em si, como amplamente já discorrido. Assim, a abstração é muito mais patente no processo civil, em que, a bem dizer, o início e o desenvolvimento do processo dependem, basicamente, de critérios formais, estando a questão de fundo reservada à sentença. Até ela, então, o juiz cível aplica apenas normas processuais. No âmbito criminal, em descompasso, é essencial que fique demonstrado o fumus commissi delicti e seja evidenciada a justa causa. Não existe a possibilidade de deixar o julgamento de mérito exclusivamente à sentença, pois, já na admissibilidade da ação, o juiz deve observar essa verossimilhança de cometimento do delito. Ainda, em que pese realmente independente a pretensão processual da pretensão punitiva, o poder de penar do Estado-Juiz, que aparece unicamente no processo, está condicionado a sua postulação de exercício por meio da pretensão acusatória, ou processual penal103. As noções de abstração e autonomia, portanto, são atenuadas, tendo em vista que sempre haverá ação processual e sempre com ela será necessário demonstrar uma certa conexão instrumental em relação ao concreto caso penal. Ora, posto isso, já se viu que o direito penal só se aplica se houver processo, existindo, sim, instrumentalidade, e que o processo não pode prescindir da demonstração do caso penal, sendo mitigadas a abstração e a autonomia, faltando sublinhar que, ante à legalidade e à dela decorrente tipicidade, esse caso penal precisa minimamente estar descrito em um tipo. Aí está a íntima relação do direito material com o processual no ambiente criminal. Repita-se que o conhecimento é datado e foi passada a hora de ficar reafirmando os conceitos ora desconstruídos. O estudo do processo penal, agora, perpassa pelo entendimento sobretudo do que não se adapta a ele, sendo primordial a assimilação de que as categorias do processo civil são inservíveis. Em suma, abreviando as discussões e pontuando o que parece ser a novidade na forma de exploração do conteúdo, a percepção da problemática exige o entendimento de que as alegações de fato, no processo penal, não conseguem dissociar-se da sua tipificação. E, se outrora foi reconhecida a importância dos fatos, não podendo eles serem modificados, porque imprescindíveis à defesa do acusado, neste momento há de se mensurar também a relevância da tipificação. 103 Ibid., p. 109-115. 53 Dessa maneira, na medida em que se muda o tipo, muda-se, correspondentemente, o enfoque dado aos fatos, mesmo que eles tenham até sido (secundariamente) alegados. O foco dado pela acusação aos fatos é o que define a extensão sobre a qual o processo penal irá debruçar-se. E esse foco, geralmente, tem sua abrangência determinada conforme a acusação escolha o tipo. Se assentado dado tipo, a acusação irá demonstrar a ocorrência dos caracteres fáticos aptos a ensejar a responsabilização por aquele tipo. E, ainda que, circunstancialmente, descreva outros fatos, eles não serão o foco e, portanto, o real objeto sobre o qual se debruçará o processo penal. Não obstante não alterados, na sua mera narração, os fatos, mas revistos completamente em sua leitura jurídica, há uma correspondente mudança no enfoque da exposição dos fatos, que deve justificar um tratamento, senão igual, de algum modo parelho ao dado à mutatio libelli, ou, usando tons de eufemismo, ao menos mais cuidadoso. E ressalte-se que, conjugando ambos os conteúdos (imputações alternativas e mutatio libelli), o Código Processual Penal expressamente proíbe a alternatividade das imputações em caso de se proceder à mutatio libelli. O artigo, 384, § 4º, inserido pela Lei nº 11.719, de 2008, determina que “Havendo aditamento, cada parte poderá arrolar até 3 (três) testemunhas, no prazo de 5 (cinco) dias, ficando o juiz, na sentença, adstrito aos termos do aditamento” (essa última parte expressa o esposado). Ora, sequer nos casos de mutatio, em que o acusado tem até um início de defesa pelo primeiro tipo e nova instrução em razão do segundo, admite-se que, ao final, seja ele obrigado a defender-se do primeiro e do segundo tipo atribuídos. Por todos esses motivos, deve ser estabelecido rigoroso e completo controle sobre a acusação, em todos os seus elementos e em todas as fases da persecução penal, independentemente de serem eles remodelados em aspectos sobremaneira fáticos ou jurídicos. Apenas esse controle garante uma efetiva e eficiente ampla defesa, ao que se finalizam as divagações sobre o terceiro questionamento feito. A título de parcial conclusão, para associar todas as respostas entregues, resta claro que o acusador não entrega fatos, que o réu não se defende somente desses fatos e que o juiz apenas responde. Como se disse, o acusador apresenta fatos com relevância jurídica (penal), que são correspondentemente contraditados na medida em que ofertados e na sua significação jurídica – e consequente tipificação penal, ocorrendo tudo isso em função da magnitude da ampla defesa. Não por outro motivo prescreve o artigo 381 do Código de Processo Penal que a sentença conterá “II - a exposição sucinta da acusação e da defesa”, dada a síntese que ela representa de ambas as construções, não bastando a acusação; “III – a indicação dos motivos 54 de fato e de direito em que se fundar a decisão”, daí serem, igualmente, importantes as questões jurídicas e fáticas; e “IV – a indicação dos artigos de lei aplicados”, em mais uma demonstração de relevância do tipo penal. A acusação deve ser jurídica, porque assim calcula-se que seja a defesa, e essa, no processo penal, possui inegável supremacia diante de tudo quanto o exposto em relação à “geometria única” deste tipo de processo. À evidência, exige-se ao acusador a indicação da classificação jurídica não somente por motivos de competência ou de verificação de possíveis cautelares, de possibilidade de sursis processual, nem do procedimento a ser adotado, mas também e, precipuamente, para que o acusado prepare sua defesa, pois ela não versa apenas sobre fatos, e sim sobre fatos e seus aspectos jurídicos. Logo, a correlação não é apenas sobre fatos, mas também sobre a responsabilização – utilizando a linguagem de Pozzer – por aqueles fatos. Daí não poder o juiz, de plano, modificar repentinamente a tipificação sobre a qual se debruçou todo esse maquinário, pelo que, agora, se verá o que, de fato, pode ser visto como emendatio libelli – desfazendo-se das reproduções acríticas costumeiras – , e qual o tratamento que lhe é adequado. 4. AS POSSIBILIDADES DE COMPATIBILIZAÇÃO DO ARTIGO 383 DO CÓDIGO PROCESSUAL PENAL À AMPLA DEFESA Do exposto, aglutina-se que o sistema acusatório e os seus decorrentes princípios de sedimento constitucional abordados são informadores da correlação entre acusação e sentença, de sorte que somente serão legítimas as manipulações a essa regra na medida em que, minimamente, sejam respeitados os seus princípios informadores, os quais importam também na revalorização da tipificação dos fatos. Dessa forma, similarmente, é possível concluir, como resumiu Diogo Rudge Malan104, que, quanto mais for prestigiado o dever-poder de punir do Estado, maior será o grau de mutabilidade do objeto processual. E, ao inverso, quanto mais prestigiadas forem as garantias do indivíduo, maiores serão os óbices para a alteração da acusação. Assim, proceder-se-á, nesta etapa, ao progressivo confronto do atual ordenamento jurídico brasileiro com as suas diversas tentativas de renovação, bem como com o direito 104 MALAN, Diogo Rudge. A sentença incongruente no processo penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003. p. 216. 55 comparado e a jurisprudência, destrinchando, brevemente e em consonância com o exaustivamente desenvolvido, ao que se caminha e, sobretudo – donde emerge a contribuição deste trabalho –, o que pode ser aproveitado e acrescido nesta caminhada, na tentativa de conciliação do instituto da emendatio libelli aos preceitos constitucionais. 4.1. A CRÍTICA À EVOLUÇÃO LEGISLATIVA De antemão, é premente fixar, no aprofundamento do estudo da evolução (ou propriamente da não evolução) do tratamento legislativo sobre o tema, que, no Brasil, claramente, o legislador da década de quarenta, aquele que editou o Código de Processo Penal, adotou o discurso da defesa social, sustentando o primordial interesse social na punição em detrimento dos direitos fundamentais do acusado. Ou seja, na tênue balança delineada já ao segundo capítulo desta construção, pendeu o legislador para o lado do jus puniendi e não do jus libertatis, ou, nos termos citados por Malan, prestigiou o dever-poder de punir do Estado, que acarreta a dita maior mutabilidade do objeto do processo. Não se trata tal conclusão de difícil constatação, em contrário, a Exposição de Motivos do Código de Processo Penal105, redigida pelo então Ministro Francisco Campos, em 08 de setembro de 1941, era expressa em assim consolidar. Imprescindível é a transcrição de alguns de seus trechos para que se perceba o quão manifesta era a intenção nesse sentido: De par com a necessidade de coordenação sistemática das regras do processo penal num Código único para todo o Brasil, impunha-se o seu ajustamento ao objetivo de maior eficiência e energia da ação repressiva do Estado contra os que delinquem. As nossas vigentes leis de processo penal asseguram aos réus [...] um tão extenso catálogo de garantias e favores, que a repressão se torna, necessariamente, defeituosa e retardatária, decorrendo daí um indireto estímulo à expansão da criminalidade. Urge que seja abolida a injustificável primazia do interesse do indivíduo sobre o da tutela social. Não se pode continuar a contemporizar com pseudodireitos individuais em prejuízo do bem comum [...]. No seu texto, não são reproduzidas as fórmulas tradicionais de um mal-avisado favorecimento legal aos criminosos [...]. É restringida a aplicação do in dubio pro reo. Não é consagrada a irrestrita proibição do julgamento ultra petitum. (grifos nossos) As expressões grifadas não podem ser mais claras, havia uma verdadeira repulsa aos direitos fundamentais do acusado em contraste a um exacerbado privilégio repressivo. No mais, 105 BRASIL. Exposição de Motivos do Código de Processo Penal. Rio de Janeiro, 21 nov. 1941. Disponível em: . Acesso em: 12 nov. 2019. 56 há destaque que atine especificamente ao objeto de estudo referente à regra da correlação, uma vez que consta, no trecho, afirmação pela não irrestrita proibição ao julgamento ultra petitum. O contexto histórico do momento em referência era marcado pela mentalidade policialesca, em razão do golpe de Estado de 1937, operado por Getúlio Vargas, tendo a Constituição de 1937 – conhecida como “Polaca”, por ser inspirada no modelo semifascista polonês – servido de paradigma para a elaboração do Código Processual Penal vigente. Como se não bastasse, a mesma Exposição de Motivos em questão pronunciava-se de encontro ao chamado “Código Rocco”, de 1930, italiano e sabidamente fascista. O Código Processual Penal de 1941, fruto dessa lógica, portanto, reforçava a autoridade, a nacionalidade e o vigor do Executivo, tudo em nome de uma suposta ordem pública. O terreno da lei, naturalmente, surgiu como espaço privilegiado para a racionalização do discurso impregnado à época. Até porque, como se sabe, o processo penal, queira-se ou não, é também braço armado do sistema de controle social do Estado. E o Brasil, não se pode negar, tem uma arraigada cultura de arbítrio estatal e desmoronamento dos direitos fundamentais, haurida de longevos regimes ditatoriais106. A par disso, na resistência em alterar as disposições impregnadas por esse discurso e depositadas no Código de 1941, fracassaram as tentativas de reforma no que tange à emendatio libelli, retratada ao artigo 383 do Código Processual Penal. É certo que alguns dos projetos de reforma não representavam significativa mudança, como o Anteprojeto José Frederico Marques, de 1967, mas outros existiram, como o Projeto de Código de Processo Penal nº 1.655, de 1983, e os projetos de reforma parcial das Comissões de 1994 e de 2000, que, em que pese aperfeiçoarem o tratamento do tema, não lograram êxito em sua aprovação. O chamado Anteprojeto José Frederico Marques disciplinava a questão em tons semelhantes aos do atual artigo 383. Do mesmo modo, afirmava que o juiz poderia dar ao fato definição jurídica diversa da que constasse na queixa ou na denúncia, ainda que, em consequência, tivesse de aplicar pena mais grave ao acusado (artigo 418, caput). O acréscimo no tratamento do tema referia-se à regulação das situações de transmudação de crime de ação penal de iniciativa pública para crime de ação penal de iniciativa privada e vice-versa107. O anteprojeto converteu-se no Projeto de Lei nº 633, de 1975, mas, constituída uma Comissão Especial na Câmara dos Deputados, foram-lhe apresentadas 784 (setecentas e oitenta 106 MALAN, op. cit., p. 3-4. 107 BADARÓ, Gustavo Henrique. Correlação entre acusação e sentença. 4. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019. p. 219. 57 e quatro) emendas108. Enviada ao Senado Federal, em 1978, a proposição foi retirada pelo autor109, tendo em vista que as inúmeras emendas da Câmara lhe alteraram a estrutura sistemática. O Projeto de Código de Processo Penal nº 1.655, de 1983, a seu turno, disciplinava a emendatio libelli em articulação bem mais preocupada. Para além da regulação atinente à correlação entre acusação e sentença nas ações penais de iniciativa privada e de iniciativa pública, entabulava que o juiz não poderia dar ao fato definição legal diversa da que constasse no despacho saneador, salvo se fosse para beneficiar o acusado ou quando tivesse havido o aditamento da acusação (artigo 356, caput)110. Chegando ao Senado, no entanto, o Projeto de Lei Complementar de nº 175, de 1984 (numeração do Senado), foi também retirado pelo autor111. Em breve pausa para reflexão, a historiação feita enuncia que, antes mesmo da promulgação da Constituição de 1988, já era reconhecida a necessidade de uma reforma global do Código de Processo Penal. Contudo, o insucesso das duas propostas citadas faz pressentir que as dificuldades de tramitação eram (e são) gigantescas. Desse modo, tal qual põe Walter Nunes da Silva Júnior112, “A escolha pela reforma tópica não foi técnica, mas pragmática, dentro da ótica da política do possível, que permeia, em regra, as grandes questões que são submetidas ao crivo do Parlamento”. A morosidade própria da tramitação legislativa dos códigos e a dificuldade do Congresso Nacional em aprovar um estatuto inteiramente novo, ante os diversos obstáculos à atividade legislativa, terminam por erigir uma inexequibilidade operacional a afastar a ideia de reforma global do Código de Processo Penal. Com efeito, o Código acabou sendo objeto de reformas pontuais, podendo-se citar, em linhas gerais, as iniciativas da Comissão de Reforma de 1994 e da Comissão de Reforma de 2000. A Comissão de 1994 elaborou 16 (dezesseis) anteprojetos de lei, os quais, encaminhados pelo Ministério da Justiça ao Congresso Nacional, transformaram-se nos 108 MIGALHAS. Disponível em: . Acesso em: 13. nov. 2019. 109 CÂMARA. Disponível em: . Acesso em: 13. nov 2019. 110 BADARO, op. cit., p. 219. 111 SENADO. Disponível em: . Acesso em: 13. nov. 2019. 112 SILVA JÚNIOR, Walter Nunes da. Reforma do Código de Processo Penal: Leis n. 11.689, n. 11.690 e n. 11.719, de 2008. Revista CEJ, Brasília, v. XII, n. 44, p. 23. jan.-mar. 2009. 58 Projetos de Lei nº 4.895 a 4.900, de 1995. Posteriormente, todavia, tais projetos foram retirados pelo Poder Executivo, com exceção daquele que transformou a atual redação do artigo 366 do Código de Processo Penal, originando a Lei nº 9.271, de 17 de abril de 1996113. A Comissão de 2000, então, inspirada na anterior e presidida por Ada Pellegrini Grinover, preparou 07 (sete) novos anteprojetos, dos quais 04 (quatro) acabaram sendo convertidos em lei, no que se conhece como a Reforma Tópica de 2008. Deles, o que cuidava do tema da correlação entre acusação e sentença foi disciplinado no anteprojeto sobre os procedimentos, que redundou no Projeto de Lei nº 4.207, de 2001, referente ao procedimento comum, e que corresponde, basicamente, ao texto aprovado pela Lei nº 11.719, de 20 de junho de 2008. Ocorre que as mais importantes inovações previstas pelo Projeto de Lei nº 4.207, de 2001, ao artigo 383 do Código Processual Penal não foram convertidas em lei. A proposta era de mudança do § 1º do mencionado artigo para constar a seguinte redação: “As partes, todavia, deverão ser intimadas da nova definição jurídica do fato antes de prolatada a sentença”. A partir disso, era instituído o contraditório prévio, ou melhor, o abordado princípio da não surpresa. A outra novidade não aprovada referia-se à possibilidade de adoção da providência relativa à emendatio libelli já no recebimento da denúncia ou da queixa (§ 2º do artigo 383)114. Na Câmara, a Emenda Substitutiva ao Plenário nº 1 retirou, dentre outras alterações, esses anteriores §§ 1º e 2º do texto, pelo que os §§ 3º e 4º, relativos à possibilidade de suspensão condicional do processo e à mudança de competência em razão da nova definição jurídica do fato, ocuparam seus lugares115. O Parecer da Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania, que concluiu pela constitucionalidade, juridicidade e técnica legislativa, e, no mérito, pela aprovação da emenda, asseverava que a mudança se inseria “na lógica da simplificação de concentração dos atos processuais e de diminuição de formalidades, a fim de agilizar a ação do Poder Judiciário”116. O texto substitutivo, pois, foi encaminhado ao Senado Federal (Projeto de Lei da Câmara nº 36, de 2007) e aprovado na forma que hoje está. Identifica-se, na justificação posta, a herança policialesca de visão das garantias como meras formalidades, as quais só atrasam o andamento do processo, olvidando-se que, em 113 BADARÓ, op. cit., p. 220. 114 CÂMARA. Disponível em: . Acesso em: 13. nov. 2019. 115 CÂMARA. Disponível em: . Acesso em: 13. nov. 2019 116 CÂMARA. Disponível em: . Acesso em: 13. nov. 2019. 59 verdade, são elas estruturas assecuratórias de direitos fundamentais, em detrimento do arbítrio estatal. À evidência, a evolução legislativa no trato da emendatio libelli, quer dizer, a estagnação legislativa, denota persistir o discurso de autoridade haurido em 1941. A atualidade ainda envolve o fato de que a sociedade, acostumada com a velocidade da virtualidade e aterrorizada pelos índices de violência, não quer esperar o processo, daí a paixão pela visibilidade de uma imediata punição. A situação agrava-se, então, porque a sociedade acostumou-se ao instantâneo. O que não se entende é que o tempo do direito é outro e sempre será, porque o tempo de maturação para o julgamento não pode ser abreviado de maneira a atropelar direitos e garantias do acusado. Da mesma forma com que o tempo não volta, não voltam a dignidade e intimidade violentadas no cárcere – ou mesmo apenas pelo processo. Aliás, esquece-se que o processo nasceu justamente para que as providências não fossem tomadas no “calor da emoção”. A aceleração até pode e deve, sim, ocorrer, mas em outras esferas117. Em rápida digressão, salta aos olhos, como assinala Aury Lopes Jr.118, que os socialmente etiquetados terminam sendo os clientes preferenciais dessa política, torturando-se negros, pobres e latinos. O eficientismo da máquina estatal, evidenciando a completa imperfeição dessa lógica, de regra, volta-se aos hipossuficientes – agora em conotação econômica e sociopolítica. Retomando o desenvolvimento teórico, fica claro que as condutas de simplificar procedimentos, abreviar prazos e contornar formas manifestam-se, também, no processo legislativo, tal qual foi revelado nesta exposição. O ataque da urgência, similarmente, age impedindo quaisquer reformas sérias. E, por essa perpetuação paradoxalmente anacrônica do eficientismo, a atual redação do artigo 383 do Código de Processo Penal em quase nada difere de sua redação originária. Na origem, o artigo tratado possuía os seguintes termos: “O juiz poderá dar ao fato definição jurídica diversa da que constar da queixa ou da denúncia, ainda que, em consequência, tenha de aplicar pena mais grave”. A Lei nº 11.719, de 2008, portanto, alterou o texto apenas para melhorar a redação quanto ao esclarecimento da inalterabilidade do substrato fático, prescrevendo, no caput do artigo 383, que “O juiz, sem modificar a descrição do fato contida na denúncia ou queixa, poderá atribuir-lhe definição jurídica diversa, ainda que, em consequência, tenha de aplicar pena mais grave”. 117 LOPES JR, Aury. Fundamentos do processo penal. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2016. p. 53-55. 118 Ibid., p. 45. 60 Nessa toada, apesar da relutância na aprovação de mudanças legislativas acerca da emendatio libelli, não se pode negar que ocorreu, pela mesma Lei nº 11.719, de 2008, o aperfeiçoamento do instituto da mutatio libelli, indicando que, embora remansosa, a perspectiva de evolução no trato da correlação é em direção a sua progressiva compatibilização ao sistema acusatório e aos princípios da inércia da jurisdição, do contraditório (e da não surpresa) e, sobretudo, da ampla defesa, em sintonia com o aqui esposado. As mudanças em questão retiraram as possibilidades de acusação implícita e de mutatio por parte do próprio juiz, bem como de aditamento provocado119, adequando aos termos constitucionais e democráticos a problemática, como não podia ser diferente. Em suma, existiam, anteriormente à Lei nº 11.719, de 2008, duas hipóteses de mutatio libelli: sem aditamento e com aditamento. A primeira era prevista no caput do artigo 384, quando a pena pelo crime emergente dos novos fatos era igual ou menor que a resultante dos fatos inicialmente imputados. Nessa situação, o magistrado, por si só, teria a faculdade de baixar o processo para que a defesa, em 08 (oito) dias, apresentasse manifestação, podendo produzir provas e arrolar até 03 (três) testemunhas. A segunda hipótese, a de mutatio com aditamento, contemplada ao antigo parágrafo único, acontecia quando as mudanças fáticas importavam em delito de maior sanção, pelo que o juiz podia baixar o processo para o aditamento pela acusação. Repare-se que demasiado protagonismo era conferido ao juiz, sendo ambos os casos apontados decorrentes de sua conduta, ora determinando diretamente à defesa que renovasse seus termos diante da nova acusação deduzida de per si, ora induzindo o parquet a efetivar o aditamento. É claro que atraía o magistrado função que, no sistema acusatório constitucional, não é dele, a de acusar, lhe comprometendo a imparcialidade de julgar, essa, sim, sua atribuição. Ao designar uma elementar ou uma circunstância não contida na exordial, o magistrado assumia a posição inerente à do titular da ação penal, usurpando o que a Constituição reservou ao Promotor de Justiça. Hoje, consoante a nova redação do artigo 384 do Código de Processo Penal – antecipada ao segundo capítulo deste trabalho –, qualquer alteração fática na imputação pode e deve ser promovida apenas pelo Ministério Público, o que se chama de aditamento espontâneo. 119 Veja-se a antiga redação: “Art. 384. Se o juiz reconhecer a possibilidade de nova definição jurídica do fato, em consequência de prova existente nos autos de circunstância elementar, não contida, explícita ou implicitamente, na denúncia ou na queixa, baixará o processo, a fim de que a defesa, no prazo de oito dias, fale e, se quiser, produza prova, podendo ser ouvidas até três testemunhas. Parágrafo único. Se houver possibilidade de nova definição jurídica que importe aplicação de pena mais grave, o juiz baixará o processo, a fim de que o Ministério Público possa aditar a denúncia ou a queixa, se em virtude desta houver sido instaurado o processo em crime de ação pública, abrindo-se, em seguida, o prazo de três dias à defesa, que poderá oferecer prova, arrolando até três testemunhas”. 61 Ademais, preceituavam as antigas disposições que a nova definição jurídica poderia ser consequência de prova existente nos autos a respeito de circunstância elementar “explícita ou implicitamente” não contida na denúncia ou queixa. Cuidava-se de disposição perfeitamente compreensível sob a égide de um código que considera a defesa um interesse unilateral dos criminosos, repudiando a proibição de sentença ultra petita120. No entanto, por óbvio, foi excluída a referência a imputações implícitas, pois, em um Estado Constitucional e Democrático de Direito, o que não está descrito, não é imputado, só podendo haver condenação quanto àquilo que foi expressamente e especificamente objeto de imputação. É o que ordena o modelo democrático. Nessa tendência, não se pode deixar de falar do Novo Projeto de Código de Processo Penal, atualmente na Câmara dos Deputados (Projeto de Lei nº 8.045, de 2010), iniciado no Senado Federal (Projeto de Lei do Senado nº 156, de 2009), e que não prevê muitas mudanças à matéria. O seu artigo 407 repete a redação dada pela Lei nº 11.719, de 2008, ao artigo 383 da atual codificação. Por outro lado, foi significativamente alterada a redação do artigo 385, para fazer valer, no equivalente artigo 409, que o juiz não poderá reconhecer qualquer agravante não alegada ou causa de aumento não imputada. Evolução essa, sim, substancial na tratativa do tema, retirando o que, ao primeiro capítulo, retratou-se ser chamado por Renato Brasileiro de Lima de mera emendatio libelli por defeito de capitulação, a ser plenamente “corrigível” por sentença, a qual ainda será detidamente examinada a seguir. Consigne-se, contudo, a expectativa de eventual acolhida das sugestões ofertadas pelo Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM) ao projeto em questão, aprimorando-o. Conforme noticiado pelo instituto, o IBCCRIM entregou à Câmara, no dia 2 de junho de 2017, em Brasília, um caderno com contribuições ao Projeto de Lei nº 8.045, de 2010, tendo sido o documento recebido pelos gabinetes dos deputados Paulo Teixeira (PT-SP) e Rubens Pereira Jr. (PCdoB-MA)121. A primeira parte do documento aludido122 enfoca diversas propostas de emendas ao projeto em tramitação, dentre elas a de adição do § 1º ao artigo 418 do texto sugerido. Assim, constaria a determinação de que “Antes de proferir a sentença, o juiz intimará o Ministério 120 MALAN. op. cit., p. 197. 121 IBCCRIM. Disponível em: . Acesso em: 13. nov. 2019. 122 IBCCRIM. Disponível em: . Acesso em: 13. nov. 2019. 62 Público e a defesa, sucessivamente, no prazo de 5 (cinco) dias cada, para que se manifestem sobre a possibilidade de uma nova classificação jurídica dos fatos”. A justificação é a seguinte: A inclusão do § 1º visa garantir a incidência do princípio constitucional do contraditório (art. 5º, LV) nessa hipótese de emendatio libelli. Isso porque, ainda que os fatos permaneçam inalterados, é importante que as partes possam se manifestar sobre a eventual mudança da capitulação jurídica dos fatos, uma vez que ela pode gerar consequências para as partes e para a persecução penal. Engraçado é que até o Código de Processo Penal Militar delimita melhores contornos à emendatio libelli do que a atual redação do Código de Processo Penal, sendo o grau de mutabilidade do objeto do processo militar muito menor. Nele, cabe ao Conselho de Justiça dar ao fato definição jurídica diversa da que constar na denúncia “desde que aquela definição haja sido formulada pelo Ministério Público em alegações escritas e a outra parte tenha tido a oportunidade de respondê-la” (artigo 437, alínea “a”, do Decreto-lei nº 1.002, de 21 de outubro de 1969). A conclusão é a de que, somente se aquela nova tipificação houver sido formulada pelo Ministério Público (em alegações escritas) é lícita a emendatio libelli, não cabendo ao juiz tomá-la de ofício. Ademais, é garantido o contraditório prévio, ou seja, efetivado o princípio da não surpresa, uma vez que tem a parte adversa a oportunidade de responder às alegações da acusação que lhe modifiquem a tipificação. Em linhas surpreendentes, assim, o Código de Processo Penal Militar mostra, nessa matéria, peculiar pureza acusatória, afora garantir o contraditório na vertente da não surpresa. A contextualização procedida descortina a indolente abordagem da emendatio libelli pelo Congresso Nacional e traz à tona tal desprezo, focando luzes na problemática, que parece não ser visualizada, criticada e cobrada. O completo atraso das reformas torna urgente a obrigação de mudanças. Ao cabo deste tópico, resta, finalmente, exibir, escancarando ainda mais o desleixo do Brasil no trato do tema, de maneira sintética123, seu enfrentamento no direito comparado, mencionando o interessante cuidado com a emendatio libelli providenciado por diferentes jurisdições. Afinal, se é certo que não se deve proceder a uma simples importação mecanicista dos institutos havidos em outros ambientes culturais, não menos certa é a utilidade do comparativo – embora reconhecidamente não aprofundado, pois descuidando da análise 123 Saliente-se que o exaustivo exame em questão não é o objetivo deste trabalho, mas a simples demonstração de exemplos a servirem de eventuais sugestões. 63 pormenorizada da construção de cada sistema processual destacado – da legislação nacional às demais, numa busca de virtudes e defeitos. Preliminarmente, interessante assinalar a iniciativa do Código de Processo Penal Modelo para a América Latina, aprovada em 1998. As pretensões, à época, eram de estímulo à reforma e à uniformização dos sistemas jurídicos da comunidade hispano-americana, ainda atrelados ao processo penal antigo124. Sobre o particular conteúdo da emendatio libelli, o artigo 322 do projeto encampava a necessidade de prévia advertência às partes. Além do mais, o artigo 310 proporcionava, à espécie, o mesmo direito resguardado ao artigo 309, qual seja, a suspensão dos debates, pelo prazo máximo de 10 (dez) dias, para produção de provas e para apresentação da intervenção defensiva125. Pois bem, analisando propriamente o direito comparado, sabe-se que, em cerca de duas décadas, diversos países latino-americanos introduziram, em seus ordenamentos, novos códigos de processo penal, certamente as maiores reformas (no âmbito criminal, lógico) às quais submeteram-se esses países em quase dois séculos. Em regra, as transições democráticas ocorridas nas décadas de 1980 e 1990 são apontadas como os principais fatores para tal126. O caso do Brasil, entretanto, tem características próprias e, como demonstrado, enfrenta sérias dificuldades em ajustar, de modo integral, o seu sistema processual penal aos cânones da sua Constituição, como a maioria de seus vizinhos já o fez127. O fato é intrigante justamente face à constatação de que, majoritariamente, a América Latina logrou êxito no emprego de sérias reformas, em países vizinhos e de contexto relativamente homogêneo ao brasileiro128. 124 GRINOVER. Ada Pellegrini. O código modelo de processo penal para Ibero-América 10 anos depois. 2008. Disponível em: . Acesso em: 13. nov. 2019. 125 MALAN. op. cit., p. 169 – 173. 126 LANGER, Máximo. Revolução no processo penal latino-americano: difusão de ideias jurídicas a partir da periferia, Porto Alegre, n. 37, p. 5-50, dez. 2017 127 BINDER, Alberto M. et. al. La Justicia Penal Adversarial en América Latina: hacia la gestión del conflito y la fortaleza de la ley. 2018. Disponível em: . Acesso em: 13. nov. 2019. 128 No livro “La Justicia Penal Adversarial en América Latina”, há extenso estudo histórico e demonstração das reformas em cada país. Tendo ocorrido, em 2014, na Argentina (modelo federal); em 1999, na Bolívia; em 2000, no Chile; em 2004, na Colômbia; em 1996, na Costa Rica; em 2009, no Equador; em 2008, em El Salvador; em 1992, na Guatemala; em 1999, em Honduras; em 2014, no México (modelo federal); em 2001, na Nicarágua; em 2008, no Panamá; em 1998, no Paraguai; em 2004, no Peru; em 2002, na República Dominicana; em 2014, no Uruguai; e em 1998, na Venezuela. O livro aduz que “Los procesos penales latinoamericanos se rigen por un modelo acusatorio y adversarial, a excepción de la justicia federal de Argentina y el sistema judicial de Brasil que aún se administran bajo la lógica de un sistema mixto o inquisitivo morigerado. En Argentina se encuentra suspendida la entrada en vigencia del nuevo Código Procesal Penal Federal promulgado en diciembre 64 No Chile, em reforma implantada paulatinamente desde 2000, o artigo 341 do Codigo Procesal Penal129 adverte que, nos casos em que um ou mais juízes considerem a possibilidade de outorgar aos fatos qualificação jurídica distinta da estabelecida pela acusação, dever-se-á, se não tiver sido a questão objeto de discussão, reabri-la, a fim de permitir o debate das partes. O sistema argentino – sem descuidar do fato de que, afora a legislação federal, cada província tem a sua própria legislação penal processual – trazia a emendatio libelli em regulação semelhante à brasileira (artigo 401 do antigo Código Procesal Penal de la Nacion130). Contudo, o Congresso Nacional, em 2014, sancionou o novo Código Procesal Penal Federal131, o qual, no âmbito da correlação entre acusação e sentença (artigo 273), passou a descrever expressamente a proibição de a sentença considerar circunstâncias não descritas pela acusação, em divergência ao preceituado pelo artigo 385 da legislação brasileira – a ser abordada –, nem poder ela, sob qualquer hipótese, ampliar a acusação, onde insere a mudança da qualificação jurídica, a permitindo tão só “em benefício do imputado e sempre que haja sido objeto de debate” (tradução nossa). O controle do objeto do processo dá-se, por conseguinte, em rígidos limites, conforme o princípio acusatório, chegando o mesmo artigo a impedir que o juiz fixe pena maior que a solicitada pelos acusadores ou condene quando eles requeiram a absolvição. Ademais, a restrita situação de emendatio libelli – relativa à situação de benefício do réu – é permitida somente quando imposto o prévio contraditório. del 2014 y en Brasil aún funciona un ordenamiento cuya estructura es del año 1941 y fue sancionado durante el gobierno autoritario de Getúlio Vargas en el marco del Estado Nuevo que inició a fines de 1937. Sin perjuicio de que en 1988 se reformó la Constitución brasilera y se establecieron lineamientos muy claros en favor de un sistema penal adversarial, todas las reformas posteriores a ella fueron ajustes puntuales que no modificaron la estructura de la justicia penal autoritaria que ya ha cumplido setenta y cinco años de antigüedad” (BINDER, Alberto M. et. al. La Justicia Penal Adversarial en América Latina: hacia la gestión del conflito y la fortaleza de la ley. 2018. Disponível em: . Acesso em: 13. nov. 2019. p. 502-505). Importante citar que, se escrito em 2019, estaria o Brasil isolado na listagem dos ditos sistemas mistos, pois, na Argentina, em 07 de janeiro de 2019, foi promulgada a Ley nº 27.482, o novo Código Procesal Penal Federal, que se encontrava com implementação suspensa (FISCALES. Disponível em: . Acesso em: 13. nov. 2019). 129 BIBLIOTECA DEL CONGRESSO NACIONAL DE CHILE. Disponível em: . Acesso em: 13. nov. 2019. 130 INFOLEG. Disponível em: . Acesso em: 13. nov. 2019. 131 INFOLEG. Disponível em: . Acesso em: 13. nov. 2019. 65 Em El Salvador, com a codificação aprovada em 2008132, o juiz penal passou a comunicar as partes, ainda na fase de instrução, sobre a mudança de tipificação, pelo que elas devem pronunciar-se sobre a tese e, a depender do caso, poderão propor as provas necessárias e correspondentes (artigo 374). Do mesmo modo ocorre na Venezuela (artigo 333)133. Na Colômbia, em disciplina ainda mais restrita, o artigo 448 do Código de Procedimiento Penal da Colômbia134, de 2004, põe que “o acusado não poderá ser declarado culpado por fatos que não constem na acusação, nem por delitos pelos quais não se haja solicitado a condenação” (tradução nossa). Como se vê, na última parte, é vedado ao tribunal, em tese, a modificação da tipificação. O modelo português, por sua vez, saindo do continente americano, traz o conhecido “caso julgado de consenso”. A grande controvérsia, lá, decorre dos conceitos de alteração substancial e não substancial dos fatos, existindo cuidados diferenciados para cada um. Em caso de transmudação da tipificação, ou seja, de emendatio libelli, contudo, tem- se, nos termos empregados no país, apenas alteração não substancial. Assim, a regra é a de comunicação da modificação ao arguido e de sucessiva concessão, a seu requerimento, de tempo para a preparação da defesa, nos moldes determinados pelo artigo 358 do Código de Processo Penal lusitano135. O diferencial do sistema se encontra, em verdade, quando se identifica uma alteração substancial dos fatos, prevendo o código inovador mecanismo, inspirado na legislação alemã. Diz o texto português que são substanciais as alterações fáticas que impliquem em crime diverso ou na agravação dos limites máximos de pena abstratamente cominados (artigo 1º, alínea “f”) – pelo que, aparentemente, não se visualiza empecilho para a consideração dos casos de emendatio libelli como tal. Sem adentrar no mérito do que é, para os portugueses, alteração substancial ou não, fato é que, nesses cenários, a mudança fática substancial não pode ser tomada em conta pelo tribunal, a exceção da hipótese em que “o Ministério Público, o arguido e o assistente estiverem de acordo com a continuação do julgamento pelos novos factos, se estes não determinarem a incompetência do tribunal”, daí a necessidade do dito “consenso”. 132 OAS. Disponível em: . Acesso em: 13. nov. 2019. 133 UNODC. Disponível em: . Acesso em: 13. nov. 2019. 134 OAS. Disponível em: . Acesso em: 13. nov. 2019. 135 MINISTÉRIO PÚBLICO PORTUGAL. Disponível em: . Acesso em: 13. nov. 2019. 66 Quando inexistente o consenso, então, algumas são as alternativas ventiladas. Não possuindo os fatos recém descobertos autonomia típica em relação aos originais, deve-se instaurar, a luz do princípio da obrigatoriedade, um novo inquérito para a sua apuração, não sendo abrangidos pelos efeitos da decisão transitada em julgado, no processo original, os fatos descobertos a posteriori. Já se insuscetíveis de acusação autônoma, ora defende-se a extinção do processo sem julgamento do mérito, instaurando-se novo inquérito para a apuração dos fatos na sua totalidade, donde a principal crítica provém da inexistência de previsão legal nesse sentido; ora se agita pela impossibilidade de persecução penal quanto a tais novas circunstâncias; e, noutras vezes, as opiniões caminham para a exasperação da pena fixada, sempre dentro dos limites da pena abstratamente prevista. Na Espanha, ocorre o chamado planteamiento de la tesis. É a viabilidade de o tribunal, frente à possibilidade de os fatos imputados constituírem outro delito, diverso do apontado pela acusação, intentar a provocação das partes para ilustrarem tal possibilidade (artigo 733 da Ley de Enjuiciamiento Criminal136). Nesse caso, ainda ordena a legislação que, se o acusador ou qualquer defensor indicarem que não estão suficientemente preparados para discutir a questão proposta, deve a sessão de julgamento ser suspensa. Utilizando-se do estudado por Malan137, a posição majoritária na doutrina espanhola é a de que a garantia da congruência abrange também a imutabilidade da qualificação jurídica do fato feita pela parte acusadora. Em regra, portanto, entende a doutrina que os limites da condenação penal devem estabelecer relação com o direito, a saber, com o delito que se acusa, pois só por esse ângulo a acusação equaliza possibilidades de defesa. A faculdade posta ao tribunal, nessa via, tem a finalidade de estender a correlação e ampliar seu âmbito de cognição para a nova classificação jurídica. É tão pormenorizado o estudo que alguns levantam a necessidade de submissão da nova tipificação pensada pelo tribunal à concordância do acusador, num privilégio ainda maior ao sistema acusatório, pois a conduta de “plantar uma nova tese”, a nova tipificação, poderia fazer perder a imparcialidade do julgador. Dizem que não basta a garantia do contraditório, mas que haja a participação do acusador na nova tipificação138. A Exposição de Motivos139 da citada 136 BOLETÍN OFICIAL DEL ESTADO. Disponível em: . Acesso em: 13. nov. 2019. 137 MALAN, op. cit., p. 143-145. 138 MALAN, op. cit., p. 147. 139 PALLADINO PELLÓN & ASOCIADOS. Disponível em: . Acesso em: 13. nov. 2019. 67 lei, aliás, justifica o procedimento, em certa mitigação do sistema acusatório, para que o erro de tipificação da acusação não produza a impunidade140. Porém, o regramento apresenta alguns defeitos, como a aplicação restrita às situações em que seja aumentada a pena do crime, o que quer dizer a plena viabilidade de emendatio libelli, sem quaisquer cautelas, quando a pena for diminuída, e a admissibilidade da imputação alternativa superveniente. Do exposto, é interessante observar que os dois países de maior influência na América Latina também traçam contornos bem mais democráticos que os brasileiros. Na Espanha, há uma séria discussão, indagando-se a obrigatoriedade de concretização do contraditório e as exigências do sistema acusatório. E, em Portugal, similarmente, exige-se, ao mudar-se a tipificação, a comunicação ao acusado e a sua oportunização de defesa, assim como traz-se diferente regramento para o que se entende por mutatio libelli, em conotações que, até certo ponto, podem ser transportas à emendatio libelli. Igualmente, os países da América Latina amoldaram suas codificações ao sistema acusatório (ou adversarial, como majoritariamente chamam). Inadmissível é o Brasil não ter o feito, caminhando, lentamente, como se viu, na direção, conjuntura merecedora de ferrenha crítica, pois indiscutível é a negligência das casas legislativas na temática. 4.2. O REDIMENSIONAMENTO DAS HIPÓTESES DE EMENDATIO LIBELLI A longo prazo – muito longo, no Brasil – é certo que o problema pode ser equacionado por reformas legislativas, como países vizinhos já o fizeram, mas cumpre, desde já, buscar parâmetros exegéticos que viabilizem a imediata aplicabilidade dos preceitos trazidos pela ainda dita nova ordem constitucional de 1988 à emendatio libelli. O perímetro traçado pela Constituição, embora o quase unânime consenso dos aplicadores do direito no sentido da acomodação – como à frente se comprovará –, não pode ser transposto, visto que indisponível141. Para enfrenar as alternativas à constitucionalização do tema, num tensionamento de adaptação, sobretudo, ao sistema acusatório e à ampla defesa, impende explicar exatamente como está a disciplina legal constante do artigo 383 do Código de Processo Penal, e, também, na sequência, determinar o relevo e as implicações de cada uma das formas de emendatio libelli 140 O equilíbrio entre essas duas perspectivas será abordado ao item “4.3. As alternativas interpretativas e procedimentais aos problemas enfrentados”. 141 Ibid., p. xxi-xxiii. 68 tradicionalmente reconhecidas, dando novas significações às categorias, oportunidade em que, continuamente, será perscrutada a possibilidade de utilização das elencadas alternativas do direito comparado e das frustradas reformas do sistema brasileiro. Sobre o conceito da emendatio libelli, tem-se que já foi exaustivamente abordado, inclusive, tendo sido citada a sua positivação no artigo 383. Contudo – repetindo-se, brevemente –, a definição localizada no caput do redito artigo 383 do Código de Processo Penal descreve que: “O juiz, sem modificar a descrição do fato contida na denúncia ou queixa, poderá atribuir- lhe definição jurídica diversa, ainda que, em consequência, tenha de aplicar pena mais grave”. O artigo 617 da codificação ainda permite aos tribunais a adoção do procedimento, pois determina a aplicação, na instância recursal, dentre outras disposições, do artigo 383. Até esse ponto, nenhuma novidade. O que ainda não se apurou detidamente foram os §§ 1º e 2º do artigo em referência. Como mencionado no exame da evolução legislativa da problemática, foram eles inseridos pela Lei nº 11.719, de 2008, relatando o § 1º que “Se, em consequência de definição jurídica diversa, houver possibilidade de proposta de suspensão condicional do processo, o juiz procederá de acordo com o disposto na lei”, e o § 2º que “Tratando-se de infração da competência de outro juízo, a este serão encaminhados os autos”. Em síntese, autorizam a emendatio libelli antecipada, ao primeiro contato do juiz com os autos, nos casos em que a nova definição jurídica atribuível aos fatos puder resultar em proposta de suspensão condicional do processo ou em mudança de competência para processamento e julgamento daquele caso. A esse respeito, já é pertinente abordar a polêmica acerca do momento de manipulação da emendatio libelli, ou seja, o primeiro conceito repensado ora posto, o da emendatio libelli antecipada. É que o artigo 383 está topograficamente situado no “Título XII – Da sentença” do Código de Processo Penal, fazendo com que, de maneira absolutamente acrítica, grande parte da jurisprudência142 levante a operabilidade do instituto somente na sede da sentença. O 142 Verbi gratia: “O momento do recebimento da denúncia, no qual o Magistrado faz apenas um juízo de admissibilidade da acusação, não é adequado para a desclassificação da conduta descrita para adequação da capitulação do delito, sendo na prolação da sentença o momento mais apropriado para tal medida, por meio dos institutos da emendatio libelli e da mutatio libelli. - Nesse contexto, não há falar em inépcia da denúncia ou prejuízo à defesa, na medida em que o réu se defende dos fatos narrados e não da capitulação jurídica, podendo o Juízo, após a instrução probatória, atribuir aos fatos descritos na exordial acusatória, definição jurídica diversa nos termos dos arts. 383 e 384 do Código de Processo Penal. - In casu, os fatos narrados na denúncia, não autorizam, neste momento processual, concluir pela existência de erro grosseiro na capitulação jurídica do delito, razão pela qual mostra-se inadmissível o encerramento prematuro da ação penal, reconhecendo, ainda, a prescrição da pretensão punitiva estatal, tendo em vista o claro adiantamento do juízo de mérito da ação penal, a suprimir das instâncias 69 inconcebível é empreender argumentações em função da situação topográfica deste ou daquele artigo quando se tem um código completamente remendado, em que vários institutos sequer se localizam conforme a sua organização temática em títulos, capítulos ou seções. Mas, abstraída essa constatação, fato é que não existe nenhum outro raciocínio jurídico ou, ao menos, qualquer justificativa razoável à admissão da emendatio libelli apenas em sede de sentença. Sabe-se que, realmente, o legislador de 1941 colocou a emendatio libelli no título que trata da sentença, e o reformador de 2008, ao expressamente excepcionar as possibilidades de emendatio libelli antecipada, em apartados parágrafos, deu a entender que visualizava o procedimento, de regra, em sentença. Mas, se, nas reconhecidas hipóteses de possibilidade de suspensão condicional do processo e de mudança de competência, é acolhida a prévia emendatio, por que não também o seria em demais situações? A justificação para o aceite das primeiras hipóteses é justamente o adiantado saneamento do feito, com a prévia correção do rito e a consequente economia processual. Isso também não seria perfeitamente bem recebido em todos os outros episódios de emendatio libelli? Era o que pretendia o Projeto de Lei nº 4.207, de 2001, que, conforme narrado, não teve o parágrafo nesse sentido aprovado no Congresso Nacional. E, com ainda mais razão, frente ao exaustivamente aqui desenvolvido, deveria o procedimento poder ser levado a cabo no princípio, uma vez que seria proporcionada a ampla defesa, devidamente, desde o recebimento da denúncia. Assim, o anúncio da possível diferente tipificação poderia ser feito tão logo se desse conta o magistrado de tal possibilidade, podendo ser, também, no saneador ou, pelo menos, antes da audiência de instrução e julgamento, como visto na Venezuela e em El Salvador. A esposada antecipação, no entanto, não se pode negar, merece, sim, cautela, porque, da mesma maneira com que se deve ter o cuidado de não aguardar apenas o momento da sentença, porque passada estaria a instrução, sem a viabilidade de as partes explorarem as provas no confronto com o novo tipo penal, é preciso ter a prudência de entender que, justamente por ainda não ter sido realizada a instrução, em especial a audiência de instrução, pode a acusação não lograr êxito em inequivocamente firmar os fatos conforme a sua narrativa ordinárias o conhecimento da causa. Recurso ordinário a que se nega provimento” (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Sexta Turma. Recurso Ordinário em Habeas Corpus nº 34.831. Relatora: Ministra Marilza Maynard (convocada). Julgamento em: 20. mar. 2014. Publicação em: DJe 28 abr. 2014. Disponível em: . Acesso em: 12. nov. 2019). 70 jurídica empregada na denúncia. Além do mais, a emendatio, nessas circunstâncias, deve cuidar para não resultar em prejulgamento. Exatamente por isso, Antônio Scarance Fernandes143 é pela antecipação em situações manifestas, como a classificação atípica, a classificação excessiva e a classificação errônea. Aprecie-se, então, cada uma, no que, incontinentemente, adentra-se nas considerações sobre os clássicos tipos de emendatio libelli nomeados pela doutrina. A classificação atípica seria aquela improvável invenção do tipo, ou atribuição de um tipo apenas previsto em projeto de lei não sancionado, em medida provisória não convertida em lei, ou, de qualquer forma, banido ou inexistente no sistema normativo. A situação, em verdade, é de rejeição liminar da denúncia ou da queixa, uma vez que inexistente a prática de fato aparentemente criminoso (fumus commissi delicti), exigência que – diga-se novamente –, na doutrina de Aury Lopes Jr.144, constitui, modernamente, uma das condições da ação penal (artigo 395, inciso II, do Código de Processo Penal), abandonando os conceitos cíveis. A propósito, ainda que não se filie a essa doutrina, poder-se-ia considerar a inépcia da exordial (artigo 395, inciso I, do Código de Processo Penal), a ensejar, semelhantemente, sua rejeição; ou até que o fato, evidentemente, não constitui crime (artigo 397, inciso III, do Código de Processo Penal), resultando na absolvição sumária do agente. Portanto, não se trata, propriamente, de emendatio libelli antecipada. A classificação excessiva, passando a essa segunda definição, seria aquela na qual o acusador acaba imputando crime mais grave, quando patente era outra classificação, apenas para que não sejam aplicadas medidas despenalizadoras como a transação penal e a suspensão condicional do processo, ou reconhecida a prescrição, ou mesmo aplicadas cautelares diversas da prisão. Seria o chamado princípio da correção do excesso, em que, desde o início, haveria evidente prejuízo ao acusado – assim como introduzido ao terceiro capítulo145 –, prejuízo esse 143 FERNANDES, Antonio Scarance. A reação defensiva à imputação. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 220. 144 Entende Aury Lopes Jr. que, segundo as categorias próprias do processo penal, seriam condições da ação: (a) a prática de fato aparentemente criminoso (fumus commissi delicti); (b) a punibilidade concreta; (c) a legitimidade da parte; (d) a justa causa (LOPES JR, Aury. Fundamentos do processo penal. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2016. p. 121). 145 Retomando, foi dito que o tipo imputado determinava certas questões procedimentais, como (a) a competência, pois aos Juizados Especiais, verbi gratia, compete o julgamento dos crimes de menor potencial ofensivo, com pena máxima cominada não superior a 02 (dois) anos (artigos 60 e 61 da Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995); (b) o cabimento de possíveis cautelares, só sendo admitida a prisão preventiva para os crimes dolosos punidos com pena privativa de liberdade máxima superior a 04 (quatro) anos (artigo 313, inciso I, do Código Penal), devendo, em caso diverso, aplicar-se as cautelares do artigo 319; (c) a possibilidade de sursis processual, cabível nos crimes em que a pena mínima for igual ou inferior a 01 (um) ano (artigo 89 da Lei nº 9.099, de 1995) etc. 71 sentido antecipadamente, por envolver questões procedimentais, e não só quando do eventual julgamento condenatório146. Aí sim, cuida-se de emendatio libelli antecipada, sendo notório o relevo da discussão do momento de operação do instituto. Tais situações, via de regra, sendo alterações procedimentais, inserem-se na mesma lógica dos §§ 1º e 2º do artigo 383 – que, aliás, menciona a suspensão condicional processo e a mudança de competência –, sendo viável e recomendável a pronta correção, a evitar a caracterização de nulidades. Nessa mesma lógica, por sinal, para citar mais dois exemplos, podem ser colocadas as mudanças procedimentais relativas à alteração de ação penal de iniciativa pública incondicionada para ação penal de iniciativa privada ou pública condicionada à representação e aos crimes funcionais. Isso porque, no primeiro caso, se muito posterior for a emendatio libelli, provavelmente já terá decorrido o prazo decadencial e legal de 06 (meses) para o ajuizamento da ação de iniciativa privada ou para a representação (artigo 103 do Código Penal), no que deverá ser declarada a extinção de punibilidade do acusado (artigo 107, inciso IV, do Código Penal). Na outra, se não se observa, logo, que o delito amoldável é funcional, não é garantida a notificação para a prévia resposta constante do artigo 514 do Código de Processo Penal, donde seria anulado o processo desde o recebimento da denúncia. A classificação errônea, última das três construções costumeiramente catalogadas como emendatio libelli antecipada, é o erro propriamente dito, aquela que, neste trabalho, pode ser a única acepção da “emendatio libelli por defeito de capitulação” – a qual será velada na exposição dos clássicos tipos de emendatio. Assim, face à pobre e efêmera definição legal, para fixar novas linhas mestras à operação do instituto, cabe retomar os clássicos tipos de emendatio libelli trazidos no segundo capítulo desta exposição, para que se entenda quais deles, de fato, são enquadráveis nos conceitos pretendidos e, finalmente, quais apresentam relevância frente às premissas aqui traçadas, de imperatividade de respeito à inércia da jurisdição, ao contraditório, à ampla defesa, 146 Exemplo animador, mas que aparentemente não repercutiu é o fragmento de ementa a seguir: “4. Válido é o reconhecimento do direito à transação penal, por fatos denunciados que compreende o magistrado claramente configurarem crime de pequeno potencial ofensivo. 5. Inválido o acórdão que em habeas corpus anula essa decisão de primeiro grau, explicitando o efeito de prosseguimento da persecução criminal pelo crime comum originalmente tipificado na denúncia, já que prejudica condição processual assegurada ao acusado em impugnação exclusiva da defesa” (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Sexta Turma. Habeas Corpus nº 241.206. Relator: Ministro Nefi Cordeiro. Julgamento em: 11. nov. 2014. Publicação em: DJe 11. dez. 2014. Disponível em: . 11. nov. 2019). 72 ao sistema acusatório etc. – informadores da correlação, regra na qual há importante dimensionamento da tipificação, de acordo com o dedicado aos segundo e terceiro capítulos. O desenvolvimento doutrinário – embora também insuficiente – desdobra a emendatio libelli em três tipos, sendo eles a emendatio libelli por defeito de capitulação, a emendatio libelli por supressão de elementar e/ou circunstância e a emendatio libelli por interpretação diferente, não registrando, na tradição, qualquer formalidade para a aplicação de nenhuma delas. Cientes de que nenhum instituto ou fenômeno surge por si só, mas muitos são os fatores determinantes ao seu nascimento e à sua correspondente evolução (ou involução)147, tem-se que são particulares cada uma das hipóteses em questão, não podendo ser seu tratamento acriticamente idêntico. Devem ser examinadas, por conseguinte, as características e possibilidades de cada tipo, e indicadas as predileções de evolução. Nesse intento, sabe-se que a emendatio libelli por defeito de capitulação (ou a dita, por Antonio Scarance, capitulação errônea), na essência, cuida-se da única modalidade que, efetivamente, representa mera correção de um erro. Sua verdadeira interpretação exemplifica- se no cenário de o acusador, durante toda a peça exordial, debruçar-se sobre um tipo, discriminando todas as suas elementares e, ao cabo, pronunciar-se a respeito de artigo que, de modo patente, não corresponde ao delito pretendido, num visível equívoco. A única operação inteligível é a plena correção do erro, sem maiores problemas, conduta que deve, necessariamente, ser providenciada, de pronto, pelo magistrado, ao seu primeiro contato com os autos, evitando futuros maiores entraves e otimizando o desenvolvimento processual. A conclusão é óbvia. Na soma das categorias apresentadas, essa é a segunda conjuntura, unida à capitulação excessiva e suas decorrências, de premente necessidade de emendatio libelli antecipada – lembrando-se que a espécie da capitulação atípica foi rechaçada do enquadramento da emendatio libelli. Outra situação, também, dentre os conhecidos tipos de emendatio, não merece enquadramento no conceito do instituto apreciado. É que não se subsome à emendatio libelli por erro de capitulação a eventualidade de o juiz, por si só, malgrado não tenha o acusador as indicado, imputar circunstância agravante, ou causa de aumento, ou qualificadora, ou até outro crime que, porventura, possa também decorrer dos fatos narrados, ao acusado. Nesses casos, há nítida ampliação da acusação, reunindo o magistrado elementos jurídicos não empregados pelo 147 POZZER, Benedito Roberto Garcia. Correlação entre acusação e sentença no processo penal brasileiro. São Paulo: IBCCrim, 2001, p. 15. 73 acusador, em que pese ciente ele da sua ocorrência fática, em inconteste violação ao sistema acusatório, donde emerge um amálgama de diversas outras disposições constitucionais já extensamente verificadas. Se assim se proceder, apenas para citar duas violações, será usurpada a função constitucionalmente atribuída ao Ministério Público (artigo 129, inciso I, da Constituição) e maculada a imparcialidade do julgador (consectária dos artigos 5º, inciso XXXVII, com a vedação de juízo ou tribunal de exceção, e inciso LIII, com a garantia do juiz natural; 93, inciso IX, com a obrigatoriedade de pública motivação dos atos judiciais; e 95, com as várias garantias e prerrogativas do juiz para lhe assegurar independência e inexistência de influências externas, todos da Constituição). Portanto, andou mal Renato Brasileiro148, em exemplo já citado, ao aludir como emendatio libelli por erro de capitulação o fato de o juiz incluir a majorante do artigo 12, inciso I, da Lei nº 8.137, de 1990, a qual prevê um aumento de pena de 1/3 (um terço) até 1/2 (metade) para delito que ocasiona grave dano à coletividade, quando o Ministério Público oferece denúncia contra alguém pela prática de crime contra a ordem tributária, do qual tenha resultado prejuízo superior a R$ 3.000.000,00 (três milhões de reais), tendo pugnado apenas pela condenação do acusado nas previsões do artigo 1º, incisos I e II, do mesmo diploma. In casu, o julgador, tomando as vezes do acusador, num raciocínio que cabe apenas àquele que indistintamente desejar incriminar, interpreta o que seria “grave dano à coletividade” em desfavor do acusado e lhe amplia a acusação. Ora, o que pensaria o denunciado ao perceber que a pessoa a lhe julgar, a qual deveria ser completamente isenta, foi além do seu próprio adversário e ampliou, em seu desfavor, a conotação jurídica empregada aos fatos? E não se deixe passar que, pior ainda, por sinal, andou o legislador, o qual deliberadamente permitiu ao juiz “reconhecer agravantes, embora nenhuma tenha sido alegada” (artigo 385, segunda parte, do Código de Processo Penal). O artigo, por óbvio, não foi recepcionado pela ordem constitucional de 1988, além de estar em dissonância com o próprio espírito de evolução da Reforma Tópica de 2008, a qual retirou, no trato da mutatio libelli, as possibilidades de imputação implícita e de mutatio pelo próprio juiz ou de aditamento provocado, quando resultante pena mais grave. O próprio Renato Brasileiro, em outra obra149, menciona que o cenário se classifica como um aditamento próprio (substancial, não corrige simples falhas), real (não diz respeito à 148 LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de processo penal [versão ePUB]. 4. ed. Salvador: Juspodivm, 2016. 149 Id., Curso de Processo Penal. Niterói: Impetus, 2013. p. 272. 74 inclusão de novos sujeitos) e legal (representa acréscimo de dispositivos legais penais ou processuais substantivo ou adjetivo). Com efeito, se reconhece que seria hipótese de aditamento, a conclusão que se chega é a de que não há de ser procedido pelo próprio juiz. No mais, nessa espécie de ação penal de ofício, há clara violação ao contraditório e à ampla defesa (artigo 5º, inciso LV, da Constituição), causando surpresa ao acusado (artigo 10 do Código de Processo Civil). Como comprovação disso, pode-se exibir o caso da reincidência. Se aplicada, de ofício em sentença, a circunstância agravante da reincidência (artigo 61 do Código Penal), não seria dado ao acusado provar que a pena imposta na decisão anterior foi cumprida há mais de 05 (cinco) anos (artigo 64, inciso I, do Código Penal); que o crime pelo qual foi condenado era de natureza política ou propriamente militar (artigo 64, inciso II, do Código Penal); que o documento acostado aos autos é inidôneo, falso, ou diz respeito a homônomo; que a decisão anterior foi desconstituída em impugnação autônoma por habeas corpus ou revisão criminal etc150. Ademais, poderia a hipótese identificar-se com o quadro de o juiz aconselhar a parte, o que, conforme o artigo 254, inciso IV, do Código de Processo Penal, configura a suspeição do magistrado. Dessa forma, definitivamente incompatível com a Constituição de 1988 é o artigo 385 do Código de Processo Penal, em especial na parte abordada, não tendo sido ele recepcionado151. E, com efeito, não constituem emendatio libelli por erro de capitulação esses casos de clara ampliação da acusação. Por erro só pode ser entendido aquilo que, verdadeiramente, encaixa-se na acepção da palavra, e ampliação não é mera correção. Passada essa primeira etapa e tendo sido devidamente captado o conceito da emendatio libelli por erro de capitulação, algumas conclusões, para que não se esqueçam as edificações no tema, hão de ser feitas. Nessa ambição, apreendeu-se que, sobre o momento da emendatio libelli, não se acham justificativas para lhe impedir a antecipação em relação ao instante da sentença, em especial nas situações de capitulação excessiva e de capitulação errônea ou emendatio libelli por erro de capitulação. Além disso, viu-se que o desenvolvimento de um conceito de classificação atípica, em verdade, não condiz com o de emendatio libelli, não 150 Trata-se de exemplo trazido por Malan (MALAN, Diogo Rudge. A sentença incongruente no processo penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003. p. 233). 151 O que poderia ser declarado pelo Supremo Tribunal Federal por Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (artigo 102, § 1º, da Constituição Federal, e Lei nº 9.882, de 03 de dezembro de 1999), uma vez que se cuida de norma pré-constitucional não recepcionada. Referida decisão teria eficácia contra todos e efeito vinculante relativamente aos demais órgãos do Poder Público (artigo 10, § 3º, do mesmo diploma), sem a necessidade de suspensão da execução da norma pelo Senado Federal (artigo 52, inciso X, da Constituição). 75 havendo razão para incluí-la como uma forma antecipada do instituto. Ainda, excluiu-se da delimitação da emendatio libelli por erro de classificação a hipótese de ampliação da acusação. Pois bem, até então, não existem grandes problemas ou demais providências processuais alternativas a serem tomadas, cabendo apenas observar a real subsunção a cada categoria mencionada, as quais, por ora, podem e devem ser providenciadas no primeiro momento viável ao magistrado. Repare-se, agora, na emendatio libelli por supressão de elementar e/ou circunstância, segunda dos clássicos tipos de emendatio libelli descritos pela doutrina. A emendatio libelli por supressão de elementar e/ou circunstância, resumidamente, é a conjuntura em que a denúncia ou a queixa atribuem fatos ao acusado, os quais, após a instrução, não são provados na sua totalidade. Ou seja, a inicial atribui coisas que não existiram e coisas que existiram, e essas últimas, em que pese não no mesmo tipo penal inicial, continuam sendo alvo do direito penal. A posterior exclusão de circunstâncias ou elementos, porém, não traz, de regra, nenhum prejuízo ao acusado. É que os fatos residuais puníveis, na sua generalidade, são decomposições de tipos mais abrangentes, de sorte que a defesa pelo tipo maior, necessariamente, engloba a defesa pelo tipo menor. Nesse contexto, cuida-se de possibilidade factível somente após a instrução, pois só nesse momento pode-se taxar como inexistente certa condição fática. Por outro lado, como não se enxergam, na generalidade, máculas à ampla defesa, é possível a emendatio libelli só na sentença, cabendo ao juiz explicar a hipótese. É o que sucede nos casos de (a) crimes complexos, isto é, aqueles compostos pela junção de dois ou mais crimes – como o crime de roubo (artigo 157 do Código Penal), que pode ser a junção de um crime de ameaça (artigo 147 do Código Penal) com o de furto (artigo 155 do Código Penal), contendo a defesa por roubo as demais; (b) nas situações de incidência do princípio da especialidade, em que há um tipo genérico a, impreterivelmente, albergar a situação descrita em tipos específicos – como quando o sujeito tem uma particular condição pessoal, a exemplo do funcionário público no peculato-furto (artigo 312, § 1º, do Código Penal), e a conduta, querendo ou não, também se subsome ao próprio furto (artigo 155 do Código Penal), bem como nos tipos qualificados ou privilegiados, ou em outras situações de leis extravagantes ao Código Penal, mais específicas, como o Código Penal Militar; (c) ou quando se veem casos de crime fim e crime meio, onde calha a aplicação do princípio da consunção, tal qual com o estelionato (artigo 171 do Código Penal) e o uso de documento falso (artigo 304 do Código Penal), sendo absorvido o último pelo primeiro, o que também dá-se nas suas respectivas defesas. 76 É lógico que as possibilidades de defesa pelos crimes mais complexos, especiais ou fim abarcam as de defesa pelos crimes menos complexos, menos especiais ou meio. Daí ser lícito concluir pela ausência de expectativas de prejuízo à defesa. É plenamente plausível que, com o fim da instrução, não restem demonstradas todas as elementares ou circunstâncias demandadas pelo primeiro tipo, mas configurem os fatos residuais um novo delito (menos complexo, menos especial ou meio). Aury Lopes Jr.152 chama a espécie de “redução da imputação por ausência de provas”, explicando que ocorre em tipos penais decomponíveis, de modo que, sendo afastada uma elementar por ausência de provas, há mera condução para a atipicidade relativa, por ainda ser possível a condenação por outro delito. Todavia, outras situações há em que a mudança da tipificação não é tão fácil, não se tratando de simples erro ou de mera decomposição do tipo inicial, sendo vastas, principalmente, as ocorrências de emendatio libelli em razão apenas da interpretação jurídica sobre os fatos, ou seja, os casos de emendatio libelli por interpretação diferente, o último tipo a ser visto dentre aqueles que, tradicionalmente, a doutrina elenca – e o mais incidente. É que, nessas situações, não raro, há possibilidades de prejuízo à defesa, sendo inúmeros os exemplos, o que faz com que devam os procedimentos rotineiramente aplicados ser reanalisados. Algumas das situações já foram trazidas ao terceiro capítulo, como no exemplo em que os acusados dão um “tranco” na vítima, ao que alguns de seus objetos caem ao chão e eles aproveitam para realizar a subtração, calhando a sentença por roubo (artigo 157 do Código Penal), quando a inicial atribuía o crime de furto (artigo 155 do Código Penal). Também já se levantou a hipótese em que há tênue distinção entre os delitos de calúnia, injúria e difamação (artigos 138 a 145 do Código Penal). É clarevidente que a defesa desenvolvida durante o processo em face apenas da conduta de “Subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia móvel” não engloba a de “Subtrair coisa móvel alheia, para si ou para outrem, mediante grave ameaça ou violência a pessoa, ou depois de havê-la, por qualquer meio, reduzido à impossibilidade de resistência”. E, no segundo caso, uma acusação de cometimento do crime de injúria e uma combinada condenação pelos crimes de calúnia ou difamação fazem o acusado deixar de valer-se da exceção da verdade, com possibilidades de absolvição, ou da retratação, a qual viabilizaria a isenção de pena. Há, também, o exemplo da situação em que o Ministério Público imputa ao acusado a ocorrência de crime continuado (artigo 71 do Código Penal), quando a jurisprudência entende 152 LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. 14. ed. São Paulo: Saraiva, 2017. p. 896. 77 que as dadas circunstâncias, em verdade, não configuram as mesmas condições de tempo, lugar, maneira de execução etc., sendo aplicável, na espécie, o cúmulo do concurso material (artigo 69 do Código Penal), mais gravoso ao acusado e ao qual ele não impugnou153. Corriqueira, ainda, é a confusão entre os crimes de tráfico de drogas (artigo 33 da Lei nº 11.343, de 23 de agosto de 2006, Lei de Drogas) e de uso (artigo 28 da mesma Lei de Drogas). Assim, perfeitamente imáginável é que o Ministério Público denuncie os fatos pelo artigo 28, mas que, face aos mesmos fatos narrados pelo parquet, conceba o juiz o crime de tráfico, uma vez que, ocasionalmente, pode o magistrado dar maior relevância à existência de uma balança de precisão, enquanto o Ministério Público atriuiu maior valor à pequena quantidade de drogas encontrada e à primariedade. Por fim, alguns quadros de mera inversão da chamada emendatio libelli por supressão de elementar e/ou circunstância são, igualmente, expressões dessa afirmação. O Promotor de Justiça, diante de um crime de estelionato, pode, eventualmente – apesar do mais comum ser a situação inversa –, apenas o capitular como um falsum (inversão do princípio da consunção), da mesma forma com que crimes gerais podem ser a imputação do acusador em detrimento de crime mais específico (inversão do princípio da especialidade). Nessas, obviamente, não se aplicam as digressões de outrora, visto que a situação é oposta, de sorte que a defesa pelos crimes menos complexos, mais genéricos e meio não abarca a dos crimes mais complexos, especiais e fim. Deve-se advertir, nesse aspecto, que não se trata da ocorrência já retratada como exceção ao enquadramento como emendatio libelli por erro de capitulação, que, na verdade, configura ampliação da acusação e infringe ao sistema acusatório e às suas derivações. Nessas situações de ampliação, embora efetivamente narrados os fatos, o acusador escolhe não valorar juridicamente de modo negativo alguns, os quais poderiam constituir agravantes, majorantes, qualificadores ou até crimes adicionais, procedendo o juiz, quando não deveria, a essa valoração. Nos casos de emendatio libelli por interpretação diferente, a acusação narra os fatos e os valora na sua completude, mas assimila a subsunção a um tipo diverso do que visualiza o julgador. Despiciendo continuar o rol de exemplos. É evidente que, em função dessas divergências de interpretação, quando repentinamente alterada pelo juiz a tipificação e, 153 Trata-se de exemplo trazido por Walter Nunes (SILVA JÚNIOR, Walter Nunes da. Reforma Tópica do Processo Penal: Inovações aos procedimentos ordinário e sumário, com o novo regime das provas, principais modificações do júri e as medidas cautelares pessoais [versão Kindle]. 3. ed. Natal: OWL, 2019). 78 geralmente, somente em sede da sentença condenatória, há prejuízos à defesa. E não são raras as vezes que assim ocorre apenas em sentença, pois são tênues as diferenças dos tipos e, muitas vezes, interpretativas, de modo que se aguarda o passar da instrução. Quanto aos prejuízos à defesa, sabe-se que a defesa técnica do acusado, constantemente, é voltada, exclusivamente, ao combate da adequação típica feita à inicial acusatória (alegação de atipicidade do fato por ausência de elemento normativo do tipo; ausência de norma complementar à norma penal em branco; absoluta impropriedade do objeto material do crime etc.)154. Ademais, a subsunção jurídica dos fatos narrados na inicial pode vir a determinar repercussões no rito a ser seguido, como já descrito. Por isso, não se pode coadunar à indiscriminada operação desse tipo de emendatio libelli apenas em sentença, nem que “em benefício do réu” – tal qual, alternativamente com a possibilidade de aditamento pela acusação, previa o Projeto de Lei nº 1.655, de 1983, bem como, alternativamente com a necessidade de garantia do contraditório, é reconhecido na Argentina e na Espanha. Em que pese poder a nova tipificação determinar menor pena, a tese defensiva quanto àquele tipo, cosoante dito, pode direcionar-se, exempli gratia, à atipicidade, de forma que a efetiva defesa frente ao novo tipo seria capaz de resultar em absolvição e não em mera redução do quantum de pena. É, nesses casos, portanto, que incidem, sobremaneira, todos os preceitos esposados ao longo dos segundo e terceiro capítulos, devendo, para eles, ser o procedimento da emendatio libelli repensado. 4.3. AS ALTERNATIVAS INTERPRETATIVAS E PROCEDIMENTAIS AOS PROBLEMAS ENFRENTADOS Tudo o quanto dogmaticamente desenvolvido aos capítulos antecedentes, logo acima categorizado e até por vezes cogitado em reformas legislativas, bem como aplicado em países vizinhos, no entanto, apesar de valiosos subsídios, não influenciam tanto o quanto deveriam na exegese das normas processuais penais feita pelos operadores do direito brasileiros. O quadro nefasto é de predomínio de normas infraconstitucionais, anteriores e não consentâneas ao espírito garantista, em detrimento dos direitos fundamentais corporificados no texto constitucional. 154 MALAN, op. cit., p. 180. 79 A prática dos magistrados e tribunais, com raras exceções, é firme no paradigma positivista de aplicação do direito tal qual se encontra no Código de Processo Penal, da mesma forma que faziam antes da promulgação da Constituição de 1988, como se, com esse advento, absolutamente nada tivesse mudado, ignorando o que Walter Nunes da Silva Júnior reiteradamente designa como uma completa releitura de toda a ordem jurídica155. O Supremo Tribunal Federal, pretenso guardião da Constituição, a exemplo do relatado, tangencia as problemáticas constitucionais na temática. Apenas para citar alguns dos mais recentes exemplos, em julgamento de junho de 2019, reiterou que, em se tratando do instituto da emendatio libelli, não há de se falar em nulidade ou afronta ao princípio da correlação156. Do mesmo modo, em julgamento um pouco anterior, de março de 2018, a Corte restringiu-se a definir a emendatio e a afirmar que, não transbordando os fatos utilizados à imputação deduzida na denúncia, o Supremo possui entendimento pela possibilidade de realização de emendatio libelli157. Na sede do Superior Tribunal de Justiça, é comum a repetição do conteúdo do brocardo narra mini factum, dabo tibi ius, pondo-se que “nos moldes da orientação desta Casa, o réu se defende dos fatos descritos [...] e não da capitulação jurídica apresentada pelo Ministério Público, sendo possível a adequação típica tanto em primeira instância como em segundo grau”. A alegação de surpresa, da mesma forma, não prospera, como em trecho complementar no qual o relator assevera: “não observo, na espécie, surpresa ou desrespeito ao princípio do contraditório, pois o sentenciante limitou-se, vimos, a atribuir definição jurídica diversa aos fatos delineados na peça acusatória”158. É recorrente a abominação do contraditório: Não houve qualquer alteração da descrição fática contida na denúncia, mas tão somente da definição jurídica do fato imputado. Desse modo, de rigor a aplicação do instituto da emendatio libelli, prevista no art. 383 do Código de 155 SILVA JR., Walter Nunes da. Curso de direito processual penal: Teoria (constitucional) do processo penal. 2. ed. Natal: OWL, 2015. 156 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Segunda Turma. Habeas Corpus nº 1.565.333. Relator: Ministro Edson Fachin. Julgamento em: 28. jun. 2019. Publicação em: DJe 31. jul. 2019. Disponível em: . Acesso em: 30. out. 2019 157 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Segunda Turma. Habeas Corpus nº 1.34.872. Relator: Ministro Dias Toffoli. Julgamento em: 27. maio. 2019. Publicação em: 08. out. 2019. Disponível em: . Acesso em: 30. out. 2019. 158 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Sexta Turma. Habeas Corpus nº 434.476. Relator: Ministro Antonio Saldanha Palheiro. Julgamento em: 15. maio. 2018. Publicação em: DJe 29. maio. 2018. Disponível em: < https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/inteiroteor/?num_registro=201800165685&dt _publicacao=29/05/2018>. Acesso em: 11. nov. 2019. 80 Processo Penal - CPP, não havendo falar em aditamento da denúncia ou abertura de vista à defesa para integração do contraditório159. Por entender que o réu se defende apenas de fatos, a Corte fala em mera correção, aduzindo que, quando a denúncia descreve todas as elementares do tipo, o juiz pode corrigir eventual equívoco160 – quando, aqui, foram salientadas as verdadeiras condições de “mera correção”. Como não se podia imaginar diferente, referenda o Superior Tribunal de Justiça a inclusão de majorantes, de ofício, pelo magistrado161, em divergência à situação aqui já tratada de não recepção do artigo 385 do Código de Processo Penal. O Tribunal Regional Federal da 5ª Região, da mesma forma, não discute a constitucionalidade da questão. Em julgamento de preliminar de nulidade levantada em função de denúncia pelo tipo penal embrenhado no artigo 171, § 3º, do Código Penal (estelionato), que resultou na condenação pela prática da conduta estampada no artigo 313-A (inserção de dados falsos em sistema de informações), crime bem mais específico, em inversão à hipótese de emendatio libelli por supressão de elementar e/ou circunstância aqui aludida, reverberou que: O fato, aliás, é corriqueiro, não ocorrendo nenhuma nulidade por não ter o acusado sido ouvido, cuidando-se a possibilidade de enquadramento no art. 383, do Código de Processo Penal. O importante e fundamental é que o fato é um só, este sim, o fator importante, que não sofreu alteração alguma, de modo a não causar nenhum prejuízo à defesa desse acusado. Ademais, o enquadramento, adotado na r. sentença, se constitui em matéria a ser enfrentada no final, acaso os apelos não sejam providos.162 Em decisum da 2º Vara Federal da Seção Judiciária do Rio Grande do Norte, todavia, é possível ver uma centelha de esperança à temática. Nele, como amostra, a capitulação dada, 159 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Quinta Turma. Habeas Corpus nº 482.106. Relator: Ministro Joel Ilan Paciornik. Julgamento em: 21. maio. 2019. Publicação em: DJe 03. jun. 2019. Disponível em: . Acesso em: 30. out. 2019 160 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Quinta Turma. AgRg no AREsp nº 1.464.770. Relator: Ministro Ribeiro Dantas. Julgamento em: 14. maio. 2019. Publicação em: DJe 20. maio. 2019. Disponível em: . Acesso em: 30. out. 2019. 161 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Quinta Turma. AgRg no AREsp nº 1.330.731. Relator: Ministro Reynaldo Soares da Fonseca. Julgamento em: 04. jun. 2019. Publicação em: DJe 14. jun. 2019. Disponível em: . Acesso em: 30. out. 2019. 162 BRASIL. Tribunal Regional Federal da 5ª Região. Segunda Turma. Apelação Criminal nº 15.031. Relator: Desembargador Federal Vladimir Carvalho. Julgamento em: 08. jan. 2019. Publicação em: DJe 25. jan. 2019. Disponível em: . Acesso em: 30. out. 2019. 81 em princípio, aos fatos, correspondia ao delito de organização criminosa (artigo 2º, §§ 2º e 3º, da Lei nº 12.850, de 2013), e, ao cabo da instrução, concluiu-se que os fatos mais amoldavam- se ao tipo de associação criminosa (artigo 288 do Código Penal). Na espécie, o juízo ressaltou a aplicabilidade do artigo 10 do Código de Processo Civil, mas cumpriu seu ônus – o que será melhor visto ao último tópico – de demonstrar que, naquele caso concreto, a alteração da capitulação, de ofício, não implicaria em grande surpresa, visto que “a diferença entre o delito de organização criminosa e o crime de associação criminosa (art. 288, do Código Penal) é basicamente gradual, sendo aquele primeiro crime mais complexo do que este último”163, de maneira tal que a defesa em relação à ocorrência de organização criminosa necessariamente englobaria as possibilidades de defesa relativas ao crime de associação criminosa, numa semelhança à emendatio libelli por supressão de elementar e/ou circunstância aqui categorizada. Por fim, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte, em argumento de autoridade, reportando-se à posição do Superior Tribunal de Justiça, reproduz seus dizeres. Observando-se julgado de setembro de 2019, sancionou o tribunal situação em que o Ministério Público havia requerido a condenação do acusado pelo crime de roubo tentado (artigo 157, associado ao artigo 12, inciso II, do Código Penal) e o magistrado proferiu condenação pela modalidade consumada. O que mais assusta é o não enfrentamento das alegações do recorrente, o qual descreveu a violação dos princípios do contraditório e da ampla defesa, bem como acusatório, tendo ocorrido “prejuízo imensurável”, por "não haver tido a oportunidade de se defender da nova rotulação dada ao caso pelo magistrado e pela condenação em proporções muito mais graves do que aquelas requeridas em todas as manifestações do órgão acusador"164. São, no geral, interpretações – repita-se – consentâneas a um código que enxergava a defesa como mero interesse pessoal e unilateral dos criminosos. Restrições como essas aos preceitos constitucionais são características de estados autoritários, e não de um Estado Democrático e Constitucional de Direito. Além de fazerem autêntica tábula rasa da 163 BRASIL. Justiça Federal no Rio Grande do Norte. 2ª Vara Federal da Seção Judiciária do Rio Grande do Norte. Processo nº 0806608-92.2018.4.05.8400. Julgamento em: 05. out. 2018. Disponível em: . Acesso em: 30. out. 2019. 164 BRASIL. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte. Câmara Criminal. Apelação Criminal nº 2019.000514-9. Relator: Desembargador Saraiva Sobrinho. Julgamento em: 17. set. 2019. Publicação em: 20. set.2019. Disponível em: . Acesso em: 11. nov. 2019. 82 Constituição, percebe-se que não há uma construção dogmática sobre o tema, com a divisão das possibilidades de emendatio em específicas categorias, sendo as exposições generalizantes e desordenadas. Em contida reflexão, a inércia jurisprudencial faz transparecer o que Winfried Hassemer165 nomeia de “programas informais”. Para ele, todos que atuam profissionalmente em questões jurídicas são gerenciados por esses programas, e as infrações às regras informais, igualmente, manifestam-se em penalidades. Ou seja, por trás das concretizações da jurisprudência e da teoria do direito processual penal, assim como dos programas formais, estão programas informais, os quais não são escritos, não são formulados, nem transmissíveis como forma de ensino, mas determinam, de maneira intensa e rica em consequências, a realidade dos procedimentos. O destinatário de uma cultura político-ideológica de eficientismo é, sobretudo, o direito criminal, nele incluso o processo penal. A exigência da legalidade e da tipicidade, bem como o temor pela analogia, no direito penal, são exatamente decorrências do medo de que os subjetivismos imprevisíveis e indomináveis dos juízes afetem o acusado. Mas, trazendo o embate ao contexto brasileiro e à própria temática objeto do trabalho, a jurisprudência ainda é habitada, como observa-se na indolência no trato da emendatio libelli, por subterfúgios para fazer valer a opinião dominante. É que ela própria – a jurisprudência –, mais do que à lei, está sujeita a si mesma, à decisão das mais altas instâncias, às tradições dos tribunais, vínculos esses informais, porém não menos efetivos e que, por regra geral, evitam modificações espontâneas166. Como bem aduz Roberto Damatta167, apesar de o texto constitucional ser universalizante, a realidade é permeada por valores sociais hierarquizantes, de modo que as influências sociais implicam no desmoronamento do modo de aplicação de lei, “sistematicamente deformado pela moralidade pessoal, de modo que sua aplicação não se faz num vazio, mas num verdadeiro cadinho de valores e ideologias”. Aliada a esses fatores, ainda há a imensa pressão midiática e demonizadora, em casos mais rumorosos, pela punição, clima propício às práticas inquisitórias e à expansão do conhecido processo penal do inimigo, 165 HASSEMER, Winfried. Crítica al Derecho Penal de Hoy. Tradução de Patrícia S. Ziffer. 2. ed. Buenos Aires: Ad-Hoc, 2003. p. 73-74. 166 Ibid., p. 43. 167 DAMATTA, Roberto. Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro. Rio de Janeiro: Guanabara, 1990. p. 247 e 248. 83 defendido por Günter Jakobs, sendo comum o sentimento de fracasso diante, por exemplo, de uma imperiosa necessidade de absolver168. Esgotada a digressão, fato é que a vocação ideológica da Constituição é completamente diversa da impregnada no Código Processual Penal de 1941, perpetuada pela letargia legislativa e pela indiferença jurisprudencial, devendo o avanço da abordagem direcionar-se à compatibilização dos procedimentos aos valores constitucionais. A circunstância do desinteresse legislativo pode tornar-se menos grave por meio da interpretação lógico-sistemática da Carta de 1988, o que não é um novo e perspicaz artifício, mas um simples dever do aplicador do direito. A elementar saída para pensar-se na readequação do procedimento, em especial nos difíceis casos de emendatio libelli por interpretação diferente, é verificar como, no direito positivo, é o tratamento do tema, a partir do que podem sobrevir alternativas interpretativas. Como já posto, entretanto, o Código de Processo Penal não possui disposição em que faz transparecer a regra da correlação – conforme alguns países vizinhos o fizeram, alicerçando a impossibilidade de a sentença, de qualquer modo, ampliar a acusação –, decorrendo a máxima, no Brasil, primordialmente, do modelo escolhido pela Constituição de 1988. Com esse alicerce, é possível citar alguns dispositivos a, inequivocamente, atestar a imperatividade do respeito à correlação entre acusação e sentença no sistema brasileiro. Retomando dispositivos já abordados, o artigo 129, inciso I, da Constituição, é o primeiro a ser indicado. Desponta, dessa redação, ser função institucional do Ministério Público a promoção privativa da ação penal pública – preceito também sedimentado ao artigo 24 do Código de Processo Penal. Assim, é consagrado o princípio da ação, de modo que só cabe às partes, in casu, ao Ministério Público a provocação da atividade jurisdicional do Estado, determinação que, conjugada às que impõem a imparcialidade ao julgador169, ratificam o princípio da inércia da jurisdição. A inércia é fundante da jurisdição e o direito de ação170 cabe a uma parte criada exclusivamente para esse fim. Em outras linhas, cabe a um sujeito acusar e ao sujeito imparcial julgar exatamente nos limites impostos pelo acusador. São as basilares imposições do sistema 168 LOPES JR, Aury. Direito Processual Penal. 14. ed. São Paulo: Saraiva, 2017. p. 348-349. 169 Retome-se: artigo 5º, inciso XXXVII, com a vedação de juízo ou tribunal de exceção; inciso LIII, com a garantia do juiz natural; inciso LX, associado ao artigo 93, inciso IX, com a obrigatoriedade de pública motivação dos atos judiciais; e artigo 95, com as várias garantias e prerrogativas do juiz para lhe assegurar independência e inexistência de influências externas, todos da Constituição. 170 É necessário advertir que, no ambiente criminal, o direito de ação trata-se mais de um dever, introduzindo o que será mais bem elaborado na sequência. 84 acusatório e que deságuam na correlação entre acusação e sentença. Mas elas não se esgotam nisso. Os direitos ao contraditório e à ampla defesa (artigo 5º, inciso LV, da Constituição), com toda a especialidade da ampla defesa no processo penal, assim como presunção de não culpabilidade (artigo 5º, inciso LVII, da Constituição), do mesmo modo, notabilizam um sistema de privilégio à defesa. Sabe-se que razão outra não há para a regra da correlação que não o privilégio à defesa, exatamente para que o acusado não seja condenado por questões sobre as quais não pôde se defender, por não existirem na peça acusatória. Derivação especial desses preceitos é o que, modernamente, alguns chamam de direito fundamental processual de ser informado da acusação. Seria um meio inerente à ampla defesa e um expresso reconhecimento do artigo 8º, inciso 2, alínea “b”, do Pacto de São José da Costa Rica, do qual o Brasil é signatário e pelo qual toda pessoa tem direito a mínima garantia de “comunicação prévia e pormenorizada ao acusado da acusação formulada”. Além do aspecto subjetivo, por ser direcionado aos sujeitos do processo, haveria o aspecto objetivo, uma vez que a imputação deve ser explícita e específica – já tendo sido, inclusive, rechaçadas, aqui, as imputações implícitas e alternativas –, e, por último, o aspecto temporal, visto que a informação deve ser prestada em momento apto a permitir um efetivo remanejamento da defesa171. Demais disso, sabe-se que o artigo 3º do Código de Processo Penal prescreve que “A lei processual penal admitirá interpretação extensiva e aplicação analógica, bem como o suplemento dos princípios gerais de direito”. Dessa forma, aplicáveis algumas disposições do Código de Processo Civil, suplementando a insuficiente disposição da codificação criminal. Nessa linha, o artigo 141 do Código de Processo Civil reproduz regra semelhante à da correlação, pondo que “O juiz decidirá o mérito nos limites propostos pelas partes, sendo-lhe vedado conhecer de questões não suscitadas a cujo respeito a lei exige iniciativa da parte”. E mais, o artigo 10 da mesma codificação processual compõe o exarado princípio da não surpresa, pelo qual “O juiz não pode decidir, em grau algum de jurisdição, com base em fundamento a respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar, ainda que se trate de matéria sobre a qual deva decidir de ofício”. Não bastando isso, o Código de Processo Civil ainda proíbe ao julgador proferir decisão contra uma das partes sem que ela seja previamente ouvida (artigo 9º). Dentro desse contexto, o próprio legislador de 1941 reconheceu a importância da tipificação, da defesa, e de seus aspectos jurídicos (artigos 41 e 381 do Código de Processo 171 MALAN, op. cit., p. 55-57. 85 Penal), afora todas as evidências aqui trazidas nesse sentido – da importância da tipificação à defesa. Dessarte, todos esses expedientes agregam-se ao texto constitucional, por força § 2º do artigo 5º, até mesmo as previsões dos tratados internacionais, por remissão expressa desse § 2º, fazendo crer que, cabalmente, sim, o ordenamento jurídico brasileiro exige a correlação entre acusação e sentença. Aliás, inclui-se ela na dimensão material do devido processo legal (ou devido processo penal), pela qual a garantia não engloba apenas a sujeição do processo a aspectos formais, mas à justiça, à liberdade, à dignidade humana, à segurança jurídica, enfim, aos direitos fundamentais. Posto isso, tendo os capítulos segundo e terceiro dedicado-se exclusivamente à construção da importância da tipificação no contexto da correlação, e, agora, ficado evidente que o sistema brasileiro alberga essa regra, há suficiente bagagem para a revisão do tratamento das particulares situações enquadradas como emendatio libelli, nas quais há clarividente prejuízo à defesa e em que não foi realizada a emendatio em momento prévio à sentença. Nesses cenários, se não usados os artifícios abalizados na sequência, haverá sentença incongruente – oposta ao espírito das disposições compiladas. Cientes de que é conjecturável a revisão da questão, compete, então, proceder a essa própria revisão. Nesse viés, incumbe levantar todas as soluções sucintamente descritas, para analisar quais delas são aproveitáveis no sistema brasileiro, considerando, claro, a Constituição como eixo e suporte, numa interpretação lógico-sistemática do ordenamento. Embutindo-se nessa pretensão, consigne-se que alguns autores são, na doutrina brasileira, nessas específicas situações, pela aplicação postergada do princípio do contraditório, isto é, defendem a intimação das partes para manifestarem-se após a aplicação da emendatio libelli172. Quanto a isso, porém, não se visualiza qualquer justificativa razoável. Se o magistrado percebe e conclui, somente no momento de prolação da sentença, que os fatos aludidos mais amoldam-se a outro tipo penal, deve intimar, de plano, as partes a respeito de tal intento. Ora, se a função da providência é justamente a de que o juiz considere, no seu posicionamento, o 172 Nesse sentido, por exemplo, Malan (MALAN, Diogo Rudge. A sentença incongruente no processo penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003. p. 179) e Aury Lopes Jr., numa visão particular, defendendo que dois caminhos podem ser adotados: (a) a consulta prévia às partes em nome do princípio constitucional do contraditório, em que seriam elas convidadas a esclarecer o juiz sobre a possível reclassificação do fato; ou (b) se não houver consulta prévia, a intimação das partes após a emendatio libelli, para que, em nome do contraditório, conheçam e se manifestem sobre a nova classificação jurídica do fato (LOPES JR, Aury. Direito Processual Penal. 14. ed. São Paulo: Saraiva, 2017. p. 898). 86 aduzido pelas partes e, em especial, pela defesa, que pode apontar novas teses frente ao tipo penal invocado, proceder a tal medida após eventual condenação mostra-se completamente descabido. Aliás, cabe ao juiz demonstrar que agiu na estreita dicção da lei e não ao acusado evidenciar que sofreu este ou aquele prejuízo – sobre o que melhor se debruçará ao fim do capítulo. Sabe-se que a tradicional visão do contraditório como a ciência bilateral dos atos do processo e a possibilidade de contraditá-los, hoje, é tida em contornos muito mais críticos. A parte não mais é objeto do pronunciamento judicial e não tem a ingênua oportunidade de contraditá-los. Ela deve, de fato, intervir construtivamente no processo e o juiz deve propiciar essas condições, aliás, assim concretiza a grande novidade do sistema brasileiro referente ao princípio da não surpresa, como já abundantemente aduzido. É elementar que as partes possam influir na decisão previamente, conforme o reiterado artigo 10 do Código de Processo Civil. No mais, viu-se que com ainda mais força emerge a não surpresa no processo penal, pois o contraditório está a serviço da ampla defesa. Portanto, a primeira conclusão a que se chega é pela não concepção, como solução, da intimação das partes após a prolação da sentença em que já se tenha realizada a emendatio libelli. Seguindo, viu-se que outros mais são pela lógica intimação prévia das partes para a comunicação a respeito da eventual mudança da capitulação jurídica atribuída aos fatos, e o consequente convite para que elas se manifestem e requeiram o que lhe for de direito173, num rito consentâneo ao determinado pelo princípio da não surpresa. De fato, mostra-se sedutora a tese, podendo as partes complementarem as suas razões antes da prolação da sentença que, porventura, promova a emendatio libelli. Por sinal, cuida-se 173 Nesse sentido, por exemplo, Renato Brasileiro (LIMA, Renato Brasileiro de. Código de Processo Penal comentado. 2. ed. Salvador: Juspodivm, 2017. p. 1033), Badaró (BADARÓ, Gustavo Henrique. Correlação entre acusação e sentença. 4. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019. p. 147) e Antonio Scarance Fernandes, Antônio Magalhães Gomes Filho e Ada Pellegrini Grinover, (FERNANDES, Antonio Scarance; GOMES FILHO, Antônio Magalhães; GRINOVER, Ada Pellegrini. Teoria geral do processo. 8. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1991. p. 208). Aury Lopes Jr., como dito na nota anterior, numa visão particular, elenca tal possibilidade como primeira alternativa (LOPES JR, Aury. Direito Processual Penal. 14. ed. São Paulo: Saraiva, 2017. p. 898) e Walter Nunes, também numa visão particular, adverte que as alternativas propostas ao juiz são: (a) a de determinar as intimações sucessivas do Ministério Público e da defesa, para que complementem as suas razões finais, tendo em vista a possibilidade de desclassificação da conduta pela aplicação da emendatio libelli; ou (b) o julgamento do processo sem a aplicação da emendatio, especialmente quando se tratar de acusação pelo cometimento de mais de um delito, com a consequente absolvição em relação ao crime capitulado de forma equivocada (SILVA JÚNIOR, Walter Nunes da. Reforma Tópica do Processo Penal: Inovações aos procedimentos ordinário e sumário, com o novo regime das provas, principais modificações do júri e as medidas cautelares pessoais [versão Kindle]. 3. ed. Natal: OWL, 2019). 87 da disciplina escolhida pelas novas codificações processuais da Argentina e do Chile, como observado, bem como da adotada em Portugal e na Espanha. Ainda, no Brasil, foi a referida sugestão do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM) de emenda ao projeto de Novo Código de Processo Penal, hoje em tramitação na Câmara dos Deputados (Projeto de Lei nº 8.045, de 2010). As críticas, todavia, são em razão do sistema acusatório, tendo em vista que a alteração da tipificação equivale à alteração da acusação, elemento capital da ação, direito do autor, ou seja, do Ministério Público. O juiz, com isso, ao anunciar que pretende alterar e, depois, ao propriamente alterar o teor da acusação, estaria mudando substância do direito da parte que não lhe pertence. Deveria haver, então, tal qual no aditamento da acusação após a mutatio libelli, uma espécie de preclusão consumativa do direito de alterar a denúncia (artigo 384, § 4º, do Código de Processo Penal)? Só a acusação poderia proceder ao aditamento? Deveriam ser unificados os tratamentos da mutatio libelli e da emendatio libelli, pois ambas demandariam o aditamento174? Não há como concordar, mas argumentos existem para todos os lados, cabendo seu exame. Em princípio, já se observou que a necessidade de provocação da emendatio libelli apenas pela acusação é a estipulação do revelado Código de Processo Penal Militar. Ademais, pretendia o comentado Projeto de Lei nº 1.655, de 1983, impor a premência de aditamento pela acusação ou, ao menos, quando operada pelo juiz, a exigência de benefício ao réu (artigo 356, caput). No direito comparado, visualizou-se que o código colombiano veda, expressamente, a prolação de sentença por delitos pelos quais não se haja solicitado a condenação. Portugal, por sua vez, exige, apesar de ser para o conceito lá desenvolvido de “alteração substancial dos fatos”, o consenso entre as partes do processo. Por fim, na Espanha, a doutrinha debate se não seria necessária a concordância do acusador sobre a nova tipificação. Tendo isso em vista, não são levianas as argumentações na perspectiva de que, em respeito ao sistema acusatório, na sua pureza, ideal seria que a iniciativa de emendatio libelli nunca fosse do juiz, mas sim do acusador175. 174 Segundo Pozzer, “Melhor seria a adoção de único procedimento, como temos defendido. Em caso de alteração da acusação – fática ou legal –, quando possível, permite-se o aditamento da acusação, renovando-se a defesa” (POZZER, Benedito Roberto Garcia. Correlação entre acusação e sentença no processo penal brasileiro. 1. ed. São Paulo: IBCCrim, 2001. p. 155). 175 É claro que não se olvida que o próprio acusador pode proceder à emendatio libelli, mas o debate foca-se nos casos em que o julgador é quem apercebe-se da possibilidade. Realizando o parquet a emendatio, deve ser tomado o mesmo cuidado procedimental que vem sendo exposto, quanto à necessidade de intimação para manifestação e requerimentos da defesa. 88 Sem olvidar dessas observações, no entanto, igualmente, não há como descuidar do fato de ser a emendatio libelli uma das expressões mais eloquentes do compromisso do processo penal com a preservação da ordem jurídica176, dado que representa a perspectiva objetiva dos direitos fundamentais, isto é, o dever de proteção eficiente desses direitos, “de modo que a persecução criminal, conquanto limitada, há de possuir instrumentos hábeis em prol da defesa da sociedade”177. É o constante embate enfrentado no ambiente criminal. Embora se reconheça o maior prestígio da defesa, isto é, da perspectiva subjetiva dos direitos fundamentais, não se pode ignorar completamente que a tutela desses direitos inclui também a face objetiva. É que os bens jurídicos tutelados pela norma penal material são também ratio essendi de direitos fundamentais, porquanto garantam a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança, à propriedade, à integridade física, à honra, à intimidade, à vida privada, à inviolabilidade das comunicações etc., todos, semelhantemente, previstos ao artigo 5º da Constituição. Consequentemente, se é defeso ao Estado desrespeitar os direitos fundamentais, da mesma forma, na qualidade de ente incumbido de promover a segurança pública, tem o dever de zelar pela responsabilização à violação dessas normas. Daí Walter Nunes exarar que, muito mais do que poder, o Estado tem o dever-poder de punir178. No mesmo raciocínio, tem-se que os direitos fundamentais podem ser considerados proibições de excesso (Übermassverbote), mas também proibições de proteção insuficiente ou imperativos de tutela (Untermassverbote)179. Logo, conquanto tenha surgido o processo penal a partir da visão dos direitos fundamentais como limitadores ao dever-poder de punir do Estado, uma visão moderna impõe a consideração da persecução penal também como decorrência dos direitos fundamentais, donde emerge o empenho pela operação da emendatio libelli. O instituto preza para que a pretensão acusatória já deduzida em juízo, com todo o movimento da máquina estatal, e diante de fatos puníveis, mas por outro tipo penal, não seja extinta. 176 Expressão semelhante usa Eugênio Pacelli de Oliveira (OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de Processo Penal. São Paulo: Atlas, 2013. p. 648-651). 177 SILVA JR., Walter Nunes da. Curso de direito processual penal: Teoria (constitucional) do processo penal. 2. ed. Natal: OWL, 2015. p. 487. 178 SILVA JR., Walter Nunes da. Curso de direito processual penal: Teoria (constitucional) do processo penal. 2. ed. Natal: OWL, 2015. 179 Foi em compasso com a apreciada doutrina, originária e sedimentada na Corte Constitucional Alemã, que, na Ação Direita de Inconstitucionalidade de nº 3.112/DF, no voto do Ministro Gilmar Mendes, o Supremo Tribunal Federal asseverou essa dupla dimensão dos direitos fundamentais (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Tribunal Pleno. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3.112. Relator: Ministro Ricardo Lewandowski. Julgamento em: 02. maio. 2007. Publicado em: 26. out. 2007. Disponível em: . Acesso em: 14. nov. 2019). 89 É nessa ambição que, similarmente, enveredam os princípios da economia e da celeridade processual, bem como da obrigatoriedade do exercício da ação penal de iniciativa pública. A economia e a celeridade aconselham uma rápida e eficiente resposta jurisdicional, o que não ocorreria no caso de não se admitir a emendatio libelli, uma vez que, eventualmente, como alternativa, poderia ser necessário outro processo a fim de negativamente valorar aqueles fatos na correta capitulação jurídica. Já a obrigatoriedade preconiza que o Ministério Público deve agir tendo em conta o suporte probatório mínimo que exala do inquérito policial, para, no processo, enfrentando a ampla defesa garantida ao acusado, talvez, ter a sua pretensão processual ou acusatória atendida. Não deve o parquet direcionar-se discricionariamente. Só, excepcionalmente, é admitido que tergiverse quanto à oportunidade e conveniência da interposição de recurso, quando, prolatada a sentença absolutória, arrefece o princípio180, pois não é o órgão mero acusador, mas defensor do interesse social, que, consoante outrora firmado, não se resume à condenação. Por outro lado, também é inegável que o juiz, em que pese antiquado o brocardo iura novit cúria, naturalmente, conhece o direito. Trata-se de seu dever e assim se presume. Irreal é projetar um magistrado que, em desleixada postura, frente a fatos amplamente comprovados, após todo o burocrático trâmite processual, ignore a movimentação da máquina judiciária, procedendo a absolvição quanto a um tipo penal quando lhe era possível corrigir eventual prejuízo à defesa e viabilizar a correta responsabilização do acusado. Isso posto, sem dúvidas, é caminho razoável, em face das considerações expostas e, de outra banda, dos princípios informadores da regra da correlação, em especial da necessidade de garantia da ampla defesa, o procedimento de intimar as partes a fim de que se manifestem sobre a possível nova tipificação dos fatos, bem como para requererem o que daí for necessário. Ao tempo em que é proporcionada a correta responsabilização, abre-se a oportunidade de a defesa deduzir as suas razões diante daquele novo tipo penal, pois novas teses defensivas são viáveis, sendo solução equilibrada. A diligência deve ser tomada de maneira completamente imparcial, desapaixonada, apenas comunicando, nos moldes democráticos, a possibilidade de os fatos virem a ser subsumidos a tipo penal diverso, em grau de possibilidade e não de certeza, evitando prejulgamentos, até porque pode o próprio magistrado estar em dúvida. 180 SILVA JR., Walter Nunes da. Curso de direito processual penal: Teoria (constitucional) do processo penal. 2. ed. Natal: OWL, 2015. p. 383. 90 É verdade que acaba sendo alterado o âmbito de cognição do juízo, contudo, sabe-se que essa alteração não se dá por iniciativa inquisitiva do juiz, mas por ter ele conhecimentos técnicos e interpretações jurídicas a orientar diferente solução processual, qualidades inerentes à função jurisdicional e das quais não pode o magistrado furtar-se. Afinal, “Ao juiz incumbirá prover à regularidade do processo [...]” (artigo 251 do Código Processual Penal). A esse respeito, Aury Lopes Jr.181 descreve que: A preocupação é no sentido de que as partes possam trazer suas alegações para melhor ilustrar o julgador da situação jurídica, pois o que aqui se discute é exatamente a possibilidade de alteração na tipificação legal. Não há perda da imparcialidade por parte do juiz quando faz o questionamento (planteamiento), pois não há prejulgamento, senão apenas uma possibilidade ventilada, ou seja, um horizonte decisório desvelado e compartilhado honestamente com as partes através do contraditório. Pensamos que, na essência (não na plenitude), esse é um procedimento perfeitamente utilizável no sistema brasileiro, sem a necessidade de qualquer alteração legislativa. Entretanto, nunca é recomendável a lógica do tudo ou nada, sendo certo que, mesmo que apenas modificada a tipificação dos fatos, ou seja, sua leitura jurídica e não a narrativa fática em si, ocasiões podem surgir a demandar a produção de provas. Pode ser necessária a dilação probatória exclusivamente para fins de melhor esclarecer a tipificação dos fatos. Nessa hipótese, outra já deve ser a providência pensada. Então, num resumo do até então traçado, em primeiro lugar, não se deve pensar nos moldes de autores como Guilherme de Souza Nucci182, ao descrever que não enxerga “praticidade na conduta do magistrado que, estando com o processo em seu gabinete para sentenciar, paralisa seu processo de fundamentação, interrompe a prolação da sentença e determina a conversão do julgamento em diligência para o fim de ouvir as partes [...]”. Diversamente, já se demonstrou que não se trata de “burocrático e emperrado procedimento, sob o prisma de uma Justiça já considerada extremamente lenta”, como sustenta. A valer, mais é o procedimento um investimento, do que perda de tempo, pois, garantindo a ampla defesa, evita posteriores arguições de nulidade em razão do desrespeito aos constantes princípios informadores referidos. Depois, deve-se ter em mente que é, sim, viável e adequada ao ordenamento jurídico a solução de intimação das partes para comunicação, manisfestação e eventuais requerimentos 181 LOPES JR, Aury. Direito Processual Penal. 14. ed. São Paulo: Saraiva, 2017. p. 895. 182 NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Processo Penal e Execução Penal [versão ePUB]. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014. 91 frente à expectativa de nova tipificação, sendo, sempre, providência prévia à sentença, pois descartado o contraditório postergado. Mas, como última conclusão, também há de se assimilar que, nem sempre, ainda que efetuada a diligência em questão, será plausível o imediato julgamento condenatório. Conforme se introduziu, é palatável que a nova tipificação dos fatos reinvindique uma nova dilação probatória, é o que reconhece o citado Código Modelo para a América Latina, com a suspensão do julgamento caso seja necessária a produção de provas183. Imagine-se o caso de uma denúncia pelo crime de peculato (artigo 312 do Código Penal), à jutificação de que o denunciado, jornalista, era “funcionário fantasma” de determinada autarquia estadual, tendo realizado apenas duas publicações simuladas, somadas a algumas ligações telefônicas à autarquia, e, portanto, dolosamente teria concorrido, como beneficiário, para o desvio de dinheiro público operado pelo diretor da autarquia – dinheiro que teria ele a posse em razão do cargo comissionado na autarquia estadual. A jurisprudência, todavia, in casu, é pela atipicidade dos fatos ao crime de peculato, pois entende que os valores do funcionário sempre lhe pertenceram, embora não tenha ele prestado os serviços, admitindo a responsabilização administrativa por tal conduta184. O juiz, ciente disso, poderia visualizar a subsunção dos fatos, proventura, no artigo 171 do Código Penal (estelionato), pois, em coluio, teriam o funcionário comissionado e o diretor da autarquia, mantido em erro, para obter vantagem ilícita, mediante ardil ou meio fraudulento, a entidade. O fato é que a finalizada instrução, na hipótese, só teria focado-se na 183 E até, implicitamente, reconhecem as codificações da Venezuela e de El Salvador, ao regular a comunicação da alteração da tipificação antes da instrução. 184 Nesse sentido, a jurisprudência do Tribunal Regional Federal da 5ª Região (BRASIL. Tribunal Regional Federal da 5ª Região. Segunda Turma. Habeas Corpus nº 6.082. Relator: Desembargador Federal Vladimir Carvalho. Julgamento em: 15. dez. 2015. Publicação em: DJe 17. dez. 2015. Disponível em: . Acesso em: 14. nov. 2019), do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, exemplificada no trecho: “Entende essa Corte que servidor público que se apropria dos salários que lhe foram pagos e não presta os serviços, não comete peculato, porquanto o crime de peculato exige, para sua configuração em qualquer das modalidades (peculato furto, peculato apropriação ou peculato desvio), a apropriação, desvio ou furto de valor, dinheiro ou outro bem móvel. 3. O recorrente, embora recebesse licitamente o salário que lhe era endereçado, não cumpriu o dever de contraprestar os serviços para os quais foi contratado. 4. Atipicidade dos fatos. Configuração, em tese, de falta disciplinar ou ato de improbidade administrativa” (BRASIL. Tribunal Regional Federal da 1ª Região. Quarta Turma. Apelação Criminal nº 0001593-18.2003.4.01.3000. Relator: Desembargador Federal Hilton Queiroz. Julgamento em: 04. dez. 2007. Publicação em: DJe 18. dez. 2007. Disponível em: . Acesso em: 14. nov. 2019), e o Superior Tribunal de Justiça (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Sexta Turma. Recurso em Habeas Corpus nº 60.601. Relator: Ministro Nefi Cordeiro. Julgamento em: 09. ago. 2016. Publicação em: DJe 19. ago. 2016. Disponível em: . Acesso em: 14. nov. 2019). 92 prestação ou não do serviço, tendo comprovado que não ocorreu, mas não desenvolvido atividade probatória quanto aos eventuais meios de manutenção da autarquia em erro, como as publicações simuladas, sem qualquer prova nesse sentido, bem como às ligações, sem enunciar quem manteve o contato e se fora ludibriado pelo acusado. Nesse quadro, se, ante a atipicidade do peculato, a iniciativa probatória relativa ao estelionato não for requerida pelo acusador, considera-se inaceitável que o magistrado faça as suas vezes, pois, aí sim, atuaria em inegável postura inquisitiva. E, nesse ponto, discorda-se, inteiramente, de Benedito Roberto Garcia Pozzer185, pois não se concebe que “impulsionado pela inquisitividade necessária ao conhecimento da verdade dos fatos”, possa o juiz, mesmo que para evitar “futura recidiva acusatória, por fatos antes submetidos à apreciação judicial”, proceder à apuração dos fatos. Nesse cenário, a celeridade, a economia, a perspectiva objetiva dos direitos fundamentias, a obrigatoriedade da ação penal e o inegável conhecimento técnico do juiz não podem determinar atividade inquisitiva. O andamento do tema culmina na discussão a respeito da verdade real (ou material, ou absoluta) e do sistema processual adotado, os quais têm íntima relação com o regime legal das provas. Enquanto o sistema acusatório orienta-se pelo princípio dispositivo, pelo qual a gestão das provas está na mão das partes, os processos inquisitórios são “máquinas analíticas movidas por inesgotáveis curiosidades experimentais”186, pois o juiz instrutor trabalha solitário e obstinado: ele elabora as hipóteses, as cultiva, busca provas, e as colhe187. E o que está por trás dessa ausência de limites é a busca mitológica da verdade real. O problema desse sistema, portanto, é que o juiz, na procura da prova, primeiro, decide e, depois, vai atrás das provas que justificam a decisão, ou seja, passa a fazer “quadro mentais paranoicos”188, legitimando a perigosa possibilidade de crença no imaginário189. Explicando melhor, o juiz, ao determinar diligências probatórias, logicamente, está desconfiado da culpa do acusado, no que investe na instrução, sendo ciente das consequências que aquilo trará, pois “quem procura sabe ao certo o que pretende encontrar e isso, em termos de processo penal condenatório, representa uma inclinação ou tendência perigosamente 185 POZZER, op. cit., p. 21. 186 Expressões empregadas por Aury Lopes Jr., utilizando-se dos ensinamentos de Franco Cordero (LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. 14. ed. São Paulo: Saraiva, 2017. p. 346). 187 Ibid., p. 350. 188 Id., Fundamentos do processo penal. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2016. p. 172. 189 COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Introdução aos Princípios Gerais do Processo Penal Brasileiro. Revista da Faculdade de Direito da UFPR, Curitiba, n. 30, p. 178, 1998. 93 comprometedora da imparcialidade do julgador”190. E, aí, residem as ameaças colocadas quando lançadas as problemáticas acerca da jurisprudência tocante à emendatio libelli. Por esses motivos, historicamente, sempre que o processo penal buscou uma verdade real, conseguiu uma verdade de menor qualidade, com pior trato do acusado, inexistência de limites, legitimação até da tortura, confissões por crimes não cometidos etc.191 Essa lógica inquisitorial de busca da verdade real, na qual os fins justificam os meios, não se amolda ao sistema acusatório constitucional. Com isso, não se está a negar a verdade, isso seria abrir mão de uma decisão justa192, mas a propor o deslocamento da sua discussão, posicionando-a, assim como defende Auy Lopes Jr.193, não como fundante da jurisdição – fundante da jurisdição é a inércia –, mas como contingencial. Desconsiderando as inúmeras particularidades semânticas, é claro que a verdade é uma só, um dado da realidade que não pode ser reconstruído totalmente no plano sensível, pois o conhecimento é sempre parcial (existem as falsas memórias, a relação testemunha- autoridade, a falta de estrutura da polícia técnica etc.), mas, no contexto processual, é possível admitir uma verdade aproximativa194. Essa verdade aproximativa, a sua vez, é um encadeamente de significantes vertido, inexoravelmente, pela linguagem. A sentença, a certo modo, é uma congruência narrativa, sendo que a informação apta à formação da decisão judicial adentra, no processo, por meio da prova. Eis a grande relação da disciplina das provas com os sistemas inquisitivo e acusatório, bem como com a busca da verdade real. Inexistindo essa verdade, cabe apenas ao juiz o debate em contraditório, considerando as cargas probatórias e a ampla defesa, na produção do evento semântico da sentença195. Trazendo elementos mais concretos, tem-se, por exemplo, que a verdade que autoriza a absolvição pode ser meramente formal, quando o acusado é absolvido por insuficiência de provas. Ainda, há a verdade consensuada, nas hipóteses de transação e suspensão condicional 190 PRADO, Geraldo. Sistema acusatório: a conformidade constitucional das leis penais. 3. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005. p. 218. Disponível em: . Acesso em: 19 out. 2019 191 LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. 14. ed. São Paulo: Saraiva, 2017. p. 372. 192 BADARÓ, Gustavo Henrique. Ônus da prova no processo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. p. 24. 193 LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. 14. ed. São Paulo: Saraiva, 2017. p. 376-377. 194 CASARA, Rubens Roberto Rebello. Mitologia Processual Penal. São Paulo: Saraiva, 2015. p. 177- 179. 195 ROSA, Alexandre Morais da. Guia Compacto do Processo Penal conforme a Teoria dos Jogos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013. 94 do processo196. Malgrado possa-se, com extremo cuidade, dizer que o Ministério Público, parte que é, busca a verdade real, é fato que ela não satisfaz o processo, confirmando a impropriedade de o magistrado dever buscá-la. Em plano ainda mais prático, a questão culmina em outro enfrentamento, sobre os poderes instrutórios do juiz. Reconhecendo que não se pode buscar a verdade real, não teria o juiz absolutamente nenhum poder instrutório? Podem existir poderes instrutórios que não sejam inquisitórios? Abreviando o debate, que ensejaria apartado e complexo trabalho, certo é que a ingerência do juiz deve ser mínima. Gustavo Henrique Badaró197 chega a afirmar que a categoria é bastante heterogênea, incluindo poderes que vão desde a busca da fonte das provas, o que, para ele, trata-se de atividade propriamente investigativa, até a introdução em juízo de provas de cuja existência o julgador já tenha conhecimento, defronte, por exemplo, a uma informação, nos autos, de que certa pessoa visualizou os fatos, pelo que é chamada a testemunhar. Geraldo Prado198 já vislumbra que a concepção de Badaró desse modelo acusatório oposto a um adversarial, em que efetivamente a inércia probatória do juiz seria a regra, serve apenas a prolongar a vida do Código de Processo Penal de 1941 e de sua filosofia autoritária. A reflexão histórica e técnica do autor rebate o exemplo de Badaró afirmando que o juiz que, ante à informação, já posta nos autos, de que certa pessoa visualizou os fatos, a intima de ofício, já está determinado pela honesta convicção de que ela confirmará os fatos, e, se assim fizer, mesmo frente a outras testemunhas da defesa em sentido contrário, inequivocamente não as dará crédito, quebrando o frágil equilíbrio da imparcialidade. Realmente, se o Ministério Público poderia arrolar a testemunha, parte incumbida de tal mister, e não o fez, não compete ao juiz apurar o porquê. Daí Walter Nunes199 descrever, numa posição restrita, que até quanto à requisição de certos documentos e informações, só é dado às partes assim pleitear ao Judiciário quando tenham obtido a negativa na sua própria solicitação, ou quando é exigida prévia decisão judicial, em razão de a diligência demandar a flexibilização de garantia constitucional ou legal. Ainda fala que, não por outro motivo, a 196 SILVA JR., Walter Nunes da. Curso de direito processual penal: Teoria (constitucional) do processo penal. 2. ed. Natal: OWL, 2015. p. 381. 197 BADARÓ, Gustavo Henrique. Ônus da prova no processo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. p. 119-120. 198 PRADO, Geraldo. Sistema acusatório: a conformidade constitucional das leis penais. 3. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005. p. 216. Disponível em: . Acesso em: 19 out. 2019. 199 SILVA JÚNIOR, Walter Nunes da. Reforma Tópica do Processo Penal: Inovações aos procedimentos ordinário e sumário, com o novo regime das provas, principais modificações do júri e as medidas cautelares pessoais [versão Kindle]. 3. ed. Natal: OWL, 2019. 95 comunicação das testemunhas arroladas sobre a data da audiência fica a cargo das partes, a não ser que apresentem justificado pedido nesse sentido. São amostras da necessidade de isenção do juiz. Mais uma vez, no entanto, a cautela é a melhor medida. Isso porque podem existir as mencionadas ocasiões em que o juiz precisará determinar diligências em função de negativas recebidas pelas partes ou da necessidade de decisão judicial para aquele fim, bem como em que imprescindível se fará a intimação judicial da testemunha para comparecimento à audiência por alguma impossibilidade de a própria parte assim providenciar. No mais, também não é impróprio concluir que, quando para o estabelecimento da dúvida razoável, aquela que permitirá a absolvição, é possível ao juiz promover certo esclarecimento, por tudo o quanto já aqui desenvolvido, mormente pela alusão à preferência da sociedade pela absolvição de um culpado em lugar da condenação de um inocente. Nesse tênue limite, evidente é que, no sistema acusatório, a regra é a de que as partes produzam as provas, não podendo o juiz substituí-las. Entende-se que, por efeito do impulso oficial, característica da missão judicante, em compatibilização com o sistema acusatório, deve ser estrita a interpretação do artigo 156, inciso II, do Código de Processo Penal, ao facultar ao juiz, de ofício, “determinar, no curso da instrução, ou antes de proferir sentença, a realização de diligências para dirimir dúvida sobre ponto relevante”. O poder é excepcional, subsidiário e supletivo. Uma eventual intervenção em audiência, por exemplo, ao final, somente a respeito de questão já debatida, mas que não ficou suficientemente clara, pode até ser aceita, mas muito mais que isso não. Pois bem, na conjuntura da emendatio libelli, sintetizando a construção, o ajustado é que, em dadas hipóteses, há nítida possibilidade de prejuízo à defesa. Nelas, deve o juiz, quando se der conta da nova capitulação apenas em sentença, irremediavelmente, intimar previamente as partes para a imparcial comunicação a respeito da eventual nova tipificação dos fatos, permitindo-lhes as manifestações e requerimentos de direito. Conclusos, novamente, os autos para o magistrado, se, no estado que se encontram, não existir acervo probatório para a condenação pelo novo tipo penal, saída outra não há que não a absolvição por insuficiência de provas. Se o Ministério Público, tendo recebido a oportunidade, não acostou demais elementos de prova ou fez requerimentos para que, na sua impossibilidade, o juiz determinasse alguma diligência, como até a oitiva de certa testemunha ou a renovação do interrogatório – num semelhante procedimento ao do próprio aditamento ocorrido na mutatio libelli –, não pertine ao 96 juiz fazer as suas vezes. Se a tipificação é, sim, matéria sobre a qual pode o juiz decidir de ofício – embora tenha que intimar previamente as partes – as medidas probatórias não o são. Registre-se que a regra deve ser, nesses casos em que o juízo não corrige, de pronto, a tipificação (seja por cuidar-se de emendatio libelli por erro de interpretação ou outra situação na qual, por qualquer outro motivo, não lhe foi possível, de pronto, o fazer), o procedimento de intimação prévia então exposto. Se deseja, por outro lado, não aplicar o procedimento, cabe ao julgador excepcionar a regra e assim se justificar, enquadrando o caso na hipótese de emendatio libelli por supressão de elementar e/ou circunstância, por exemplo, ônus que, na sequência, será visto. Ainda, situações podem existir em que o rito procedimental tinha de ser diverso, as quais, quando não operadas as alterações desde o princípio, no que se convencionou nomear de emendatio libelli antecipada, são incorrigíveis. Retomando, são casos de mudança de competência200; o exemplo de crimes envolvendo a responsabilização de funcionários públicos, nos quais há a notificação prévia do acusado para oferecer uma resposta preliminar; quando o novo delito importa em crime de ação penal de iniciativa privada ou pública condicionada à representação e se passam os 06 (seis) meses legais sem que o juízo se dê conta de que não correspondem os fatos à eventual ação penal pública ja proposta201 etc. E são essas as últimas soluções procedimentais apontadas neste trabalho, técnicas hermenêuticas de interpretação do artigo 383 do Código de Processo Penal conforme a Constituição, mormente seus mandamentos do contraditório e da ampla defesa – artifício, inclusive, reconhecido pelo parágrafo único do artigo 28 da Lei nº 9.868, de 10 de novembro de 1999, que dipõe sobre o processo e o julgamento da ação direta de inconstitucionalidade e da ação declaratória de constitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal202. 200 De crime doloso contra a vida, de competência para julgamento pelo Tribunal do Júri (artigo 5º, inciso XXXVIII, da Constituição), ao invés de lesão corporal seguida de morte, assim como nos casos trazidos em que não se imputa, de início, crime de menor potencial ofensivo, de competência dos Juizados Especiais, com possibilidade de transação penal (artigos 60, 61, 72 e 76 da Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995). 201 Pontue-se, no entanto, que, se a transmutação for de ação penal de iniciativa privada para ação penal de iniciativa pública, condicionada ou não, em que pese o processo deva ser extinto por manifesta ilegitimidade ativa da parte, não há impedimento para que o Ministério Público ofereça nova denúncia, a não ser que ocorrida a prescrição, pois, até nos casos em que fosse necessária a representação da vítima, o oferecimento da queixa-crime, com muito mais razão, a supriria. 202 O artigo determina que, assim decidindo o Supremo Tribunal Federal, haveria eficácia contra todos e efeito vinculante em relação aos órgãos do Poder Judiciário e à Administração Pública federal, estadual e municipal, prescindido da suspensão da execução da norma pelo Senado Federal (artigo 52, inciso X, da Constituição). 97 4.4. ALGUMAS CONSEQUÊNCIAS DAS ALTERNATIVAS PROCEDIMENTAIS ADOTADAS Por derradeiro, no que tange às consequências da adoção ou não dos procedimentos em questão, algumas coisas hão de ser ditas. Quis-se introduzir, ao tópico anterior, que é ônus do julgador a demonstração de que não está acarretando prejuízo à defesa, tal qual na explicada emendatio libelli por supressão de elementar e/ou circunstância, em que as possibilidades de defesa pelos crimes mais abrangentes, especiais ou fim abarcam necessariamente as de defesa pelos crimes menos complexos, menos especiais e ou meio. É certo que, como diz Badaró203, a relevância jurídica ou não de um estabelecido aspecto do fato é determinada pela defesa. Sem dúvidas, são as teses trazidas pela defesa que delimitam ou não a relevância da alteração do objeto do processo. Sem embargo, esquece o autor que, é frente a uma acusação com enfoque sobre determinados fatos, os tipificando de dada maneira, que a defesa comportar-se-á. A defesa trabalha com menor ou maior intensidade nos limites da definição jurídica atribuída pelo acusador aos fatos e não é a ela possível antever, na emendatio libelli, o tipo para o qual será desclassificada a conduta e as teses dali provenientes. Ou seja, os princípios informadores da regra da correlação militam em favor da defesa. Consoante aqui descrito, não é lícito ao juiz, inardivertidamente, operar, de pronto, a emendatio libelli só em sentença, justamente tendo em vista que, antes de fixar a defesa a importância de certo dado típico, a relevância jurídica dos fatos atribuída pela acusação determina a medida da defesa, pelo que deve, sempre, ser ela comunicada das mudanças, sob prejuízo de impedir a arguição desta ou daquela tese. Por esse motivo, a presunção de prejuízo no caso de violação à correlação, pela não utilização dos artifícios abalizados, está em favor da defesa. Se ao juiz é impossível precisar, com a máxima certeza, a relevância daquela alteração típica para a defesa, pois é ela quem sabe as teses as quais vai aduzir, cabe a ele a demonstração de que a operação da emendatio libelli, dispensando a intimação das partes ora esposada, inequivocamente, naquele caso concreto, não tem a aptidão de lesar o acusado. 203 BADARÓ, Gustavo Henrique. Correlação entre acusação e sentença. 4. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019. p. 120. 98 Assim, em semelhante posicionamento ao de Gabriel Lucas Moura de Souza204, é ônus do Estado a demonstração da incolumidade das garantias subjacentes à regra da correlação, in casu, da própria tipicidade constitucional do ato, uma vez que, mais do que um modelo legal, ocasiona-se o descumprimento de um modelo processual imposto pela Constituição. A violação à regra da correlação, nessa toada, implica em nulidade absoluta205, pois, no mínimo, são desrespeitados, sempre, os princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa (artigo 5º, inciso LV, da Constituição). Quanto às normas constitucionais processuais, não há espaço para meras irregularidade sem sanção ou nulidade relativa. A atipicidade constitucional importa, inexoravelmente, em violações a preceitos maiores, relativos à observância de direitos fundamentias e das normas de ordem pública206. O Código de Processo Penal, como não se poderia imaginar diversamente, não elencou dentre as possibilidades de nulidade a ofensa à correlação. No entanto, no cenário do inconstitucional artigo 385 do Código de Processo Penal, em que há acréscimo de circunstância agravante na condenação, por exemplo, tem-se sentença ultra petita, apta a enquadrar-se no artigo 564, inciso III, alínea “a”, do Código de Processo Penal, o qual preceitua a nulidade nos casos de falta, dentres outras coisas, da denúncia. Interpretando extensivamente o dispositivo, poder-se-ia entender que, nas decisões ultra petita, existiria ação penal ex officio, com a observação de que pode a nulidade ser apenas parcial, quanto ao capítulo que ultrapassou o objeto. 204 SOUZA, Gabriel Lucas Moura de. As nulidades do processo penal a partir da sua instrumentalidade constitucional: (re)análise dos princípios informadores. p. 29-32. TCC (Graduação). Curso de Direito, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2016. 205 Nesse sentido Badaró (BADARÓ, Gustavo Henrique. Correlação entre acusação e sentença. 4. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019. p. 131) e Aury Lopes Jr. (LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. 14. ed. São Paulo: Saraiva, 2017. p. 908-910). Ainda sobre isso, sabe-se que, tradicionalmente, a doutrina divide as nulidades em relativas e absolutas. Nas absolutas, a gravidade do ato viciado seria flagrante e manifesto o prejuízo da sua permanência. Nas relativas, o legislador deixaria às partes prejudicadas a faculdade de requerer a invalidade, desde que demonstrasse o prejuízo. Contudo, também se sabe que a jurisprudência que recrudesce no Supremo Tribunal Federal é pela necessidade de demonstração de prejuízo, seja em hipótese de nulidade absoluta ou relativa, por parte de quem suscita o vício (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Segunda Turma. Recurso em Habeas Corpus nº 126.885. Relatora: Ministra Cármem Lúcia. Julgamento em: 15. dez. 2005. Publicação em: DJe 01. fev. 2016. Disponível em: . Acesso em: 14. nov. 2019), jurisprudência decorrente do inquisitivo artigo 563 do Código de Processo Penal, na repulsa por formalidades do legislador de 1941 (“Nenhum ato será declarado nulo, se da nulidade não resultar prejuízo para a acusação ou para a defesa”). Contudo, aqui, concorda-se com a ideia de que, violada uma garantia, há nulidade absoluta e, se é que se discute prejuízo, ele deve ser provado pelo Estado, uma vez que a violação gera presunção em favor do acusado. 206 FERNANDES, Antônio Scarance; GOMES FILHO, Antônio Magalhães; GRINOVER, Ada Pellegrini. Teoria geral do processo. 8. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1991. p. 22. 99 Os demais casos, de mera aplicação da emendatio libelli só em sentença e sem obediência ao procedimento prescrito, inclusive quando age o juiz de maneira inquisitiva, configurariam decisão extra petita, pois englobariam tipo diverso do apontado na peça exordial, sem que, em nenhum momento, tenha sido dado as partes discutí-lo. De outro modo, corretos os procedimentos, se notada a situação peculiar de possibilidade de prejuízo à defesa e acertadamente intimadas as partes, sendo despicienda a produção de provas; ou mesmo, se operada a emendatio libelli com a devida justificativa de prescindibildade de intimações, como no caso de emendatio libelli por supressão de elementar e/ou circunstância, não se visualizam grandes problemas. Mas, se for necessária a produção de provas e assim não comandar o Ministério Público, ainda que proceda o juiz conforme o procedimento esposado, absolvendo o acusado, surge outra consequência a ser examinada, o problema da coisa julgada. Haveria coisa julgada formal ou material? Seria justa a absolvição diante de um tipo penal quando aqueles mesmos fatos, se devidamente comprovados, culminariam em condenação por outro tipo penal? À evidêcia, a questão é complexa e exige um novo e amplo estudo sobre a coisa julgada no processo penal, o que não mais cabe nesta sede. Contudo, algumas pontuações podem ser feitas. Primeiramente, há de se referir que a coisa julgada, por si só, no que toca à definição do que seria “fato principal” – que já tenha sido objeto de sentença (artigo 110, § 2º, do Código de Processo Penal) –, é controversa. Sobre isso, impende destacar os estudos de Keity Saboya, para quem o conteúdo é melhor dimensionado quando assemelhado à noção do objeto do processo, não excluindo os aportes do direito material na delimitação do conceito de idem facta, num similar raciocínio ao aqui anteriormente empregado. Em que pese reconhecer a importância de elementos nucleares em sua expressão material mais simples, tal qual a teoria naturalista, não deixa a autora de observar que dado acontecimento histórico só é relevante enquanto, ainda que hipoteticamente, violador dos valores protegidos pelas normas jurídico-penais, assentindo à notoriedade da perspectiva normativa do objeto do processo207. Nessa linha, verifica a identidade necessária à aplicação do ne bis in idem quando o acontecimento exterior – que corresponde a uma conduta típica – é idêntico ao acontecimento histórico imputado anteriormente ou seus elementos são substancialmente coincidentes. Assim, 207 SABOYA, Keity M. F. S. Ne bis in idem: história, teoria e perspectivas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014. p. 180-181. 100 “Também se inclui no significado de ‘mesmos fatos’ a existência, ao menos parcial, de identidade dos atos concretos de realização dos tipos concorrentes”208, sendo a similitude do fundamento jurídico subjacente aos “mesmos fatos” entendida como a proteção do mesmo bem jurídico ou do mesmo interesse jurídico concretamente considerado209. Dessa forma, não aceita a autora que, em face de único fato, haja uma imputação de homicídio doloso e, após a absolvição com sentença transitada em julgado, seja ajuizada uma ação penal por homicídio culposo. São consideradas igualmente irrelevantes na construção do conceito de “mesmos fatos” as circunstâncias de uma infração exigir a ocorrência de dano e outra de perigo, de diferenças no grau de gravidade das infrações, da realização do tipo delitivo na qualidade de autor, coautor ou partícipe, do resultado do delito e do valor do objeto material da infração210, embora destacando posições contrárias dos tribunais superiores brasileiros211. Nesse raciocínio, parece patente que uma mera mudança da tipificação não autorizaria, frente aos mesmos fatos, o ajuizamento de um segundo processo. Mas e se a extinção do primeiro processo tiver decorrido exclusivamente da impossibilidade de operação da emendatio libelli? Seria o caso de ter sido privilegiado o sistema acusatório, de modo a não poder o juiz comandar uma necessária instrução probatória para a condenação face a outro tipo, ou de qualquer outra situação em que tenham sido justificadas as possibilidades de prejuízo à defesa. Para Walter Nunes212, seria: [...] suficiente para evitar a formação da coisa julgada, a consideração na sentença de que a absolvição quanto a um dos crimes foi pela impossibilidade de aplicação da emendatio libelli de ofício, pelo que não fica vedada a possibilidade de nova imputação com suporte nos mesmos fatos, desde que corrigida a classificação do tipo penal. Já Aury Lopes Jr.213 aparenta entender que, quanto à coisa julgada, a situação é diversa da correlação, pois “Lá, importava o conceito de fato processual, englobando o fato penal e o natural. Aqui, a situação é distinta, pois ainda que se possa falar em fato processual, o que realmente importa é o fato natural”. Explica que, para os limites da coisa julgada, o que importa 208 Ibid., p. 182. 209 Ibid., p. 187. 210 Ibid., p. 183-184. 211 SABOYA, Keity M. F. S. Ne bis in idem: limites jurídico-constitucionais à persecução penal. p. 175. Dissertação (Mestrado). Curso de Mestrado em Direito, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2006. 212 SILVA JÚNIOR, Walter Nunes da. Reforma Tópica do Processo Penal: Inovações aos procedimentos ordinário e sumário, com o novo regime das provas, principais modificações do júri e as medidas cautelares pessoais [versão Kindle]. 3. ed. Natal: OWL, 2019. 213 LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. 14. ed. São Paulo: Saraiva, 2017. p. 917-919. 101 é a complexidade fática decidida, independentemente da definição jurídica que receba. Diante disso, defende que não pode o acusador deduzir nova ação com diferente tipificação, pois “Evidencia-se, uma vez mais, a responsabilidade que deve ter o acusador ao formular a imputação e fazer ou omitir o aditamento necessário”. A esse respeito, todavia, afigura-se que o instituto realmente deve ser também repensado. Se é comum falar-se que o efeito negativo da coisa julgada, a impedir uma nova acusação por aqueles mesmos fatos, está intimamente ligado ao objeto do processo penal, representando uma extensão da imutabilidade do objeto do processo, tal qual a correlação o faz214, é lógica a defluência de que as conclusões não podem ser simplistas. Assim como foram repensadas a correlação e a emendatio libelli, de modo a atribuir maior relevância à tipificação dos fatos, há de ser reestudado o institito da coisa julgada215. Aliás, o entendimento de que a imutabilidade do objeto do processo penal – assegurada, no trâmite processual, pela correlação entre acusação e sentença, e prolongada, quando definitivamente decidida a pretensão, pela coisa julgada – evita o bis in idem decorre do pressuposto de que, a qualquer tempo, pode ser mudada a tipificação dos fatos, o que, neste trabalho, desconstruiu-se. Aqui, porém, a melhor solução, aparentemente, seria no âmbito de lege ferenda. É que não há dispositivo específico que permita a extinção do processo, sem resolução do mérito, por impossibilidade de operação da emendatio libelli. Diversamente, a situação de absolvição por ausência de provas suficientes à condenação (artigo 386, inciso VII, do Código de Processo Penal) é sentença absolutória e definitiva de mérito, que sequer ensejaria revisão criminal, com coisa soberanamente julgada, pois somente são revisadas as sentenças condenatórias (artigo 621 do Código de Processo Penal). Deveria ser estipulada uma decisão interlocutória mista terminativa – de natureza meramente processual e com coisa julgada apenas formal – como as decisões de rejeição da denúncia e de impronúncia? Seria o caso propriamente de uma rejeição da denúncia, interpretando-a extensivamente? Incidiria uma hipótese sui generis de coisa julgada, a exemplo da sentença absolutória que não reconhece a inexistência material do fato e não faz coisa julgada no ambiente cível (artigo 66 do Código de Processo Penal)? Por outro lado, não se causaria uma sucessão de processos com o mesmo objeto parcial sem resolução do mérito, eternizando a 214 Assim referem-se Badaró (BADARÓ, Gustavo Henrique. Correlação entre acusação e sentença. 4. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019. p. 137) e Aury Lopes Jr. (LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. 14. ed. São Paulo: Saraiva, 2017. p. 918). 215 O que – repita-se – não mais cabe neste trabalho, nem é o seu propósito, sendo válida apenas a ressalva. 102 situação dos acusados? Não seria dever do acusador promover a correta tipificação e, depois, tendo a chance de manifestar-se, requerer tudo o quanto pertinente? São questões a se refletir. Pontue-se, por fim, que, em que pese as constantes menções ao juiz singular, o mesmo procedimento deve aplicar-se aos tribunais. A valer, nessa instância, o Código de Processo Civil, igualmente, designa que “Se o relator constatar a ocorrência de fato superveniente à decisão recorrida ou a existência de questão apreciável de ofício ainda não examinada que devam ser considerados no julgamento do recurso, intimará as partes para que se manifestem no prazo de 5 (cinco) dias” (artigo 933). Consagra, então, igualmente o princípio da não surpresa. Além do mais, incidem todas as outras disposições aqui elencadas, sendo fundamental a intimação das partes. De resto, deve ser interpretada com temperamento a regra do artigo 616 do Código de Processo Penal, ao permitir que os tribunais procedam a novo interrogatório do acusado, reinquirição de testemunhas ou determinação de outras diligências, pois não podem essas medidas, do mesmo modo, configurar conotação inquisitória e, no especial caso dos tribunais, consubstanciar supressão de instâncias ou mesmo reformatio in pejus, observação final do artigo 617, aquele que determina a aplicação, dentre outros, do artigo 383 aos tribunais, mas coloca que não pode ser agravada a pena quando somente o réu tiver apelado. E é exatamente sobre a reformatio in pejus que deve ser feita a última ponderação. Na verdade, trata-se de mais uma polêmica que ensejaria assunto para outras maiores digressões. Mas, para que não se esqueça da ressalva, alguns216 indicam que, para não desobedecer à regra, poderia até admitir-se o caso de o acusado ser condenado por um crime de nova capitulação jurídica, mas se mantendo a pena anteriormente fixada, ainda que menor que a pena mínima cominada no preceito sancionador do novo tipo penal. Outros217 são pela impossibilidade de piora da situação do acusado sob qualquer ponto de vista, seja ele quantitativo ou qualitativo, tendo em vista que não é a pena o único efeito de uma sentença condenatória. Os crimes contra a Administração Pública, por exemplo, têm a progressão de regime condicionada à reparação do dano (artigo 33, § 4º, do Código Penal), donde uma desclassificação para esse tipo geraria piora da situação do recorrente. Nesses casos, argumenta-se pela manutenção da condenação do juízo a quo. De fato, parece ser a solução menos aberrante, até porque o Tribunal submete-se ao tantum devolutum quantum appelatum, 216 BADARÓ, Gustavo Henrique. Correlação entre acusação e sentença. 4. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019. p. 155. 217 LIMA, Renato Brasileiro de. Código de Processo Penal comentado. 2. ed. Salvador: Juspodivm, 2017. p. 1035. 103 e, certamente, não teria o acusado apelado nesse sentido – de alteração, para pior, qualitativa ou quantitativa, da tipificação da sua conduta. 5. CONCLUSÃO O instituto da emendatio libelli representa bem a ambivalência do processo penal, a ora privilegiar a tutela da liberdade do indivíduo, jus libertatis (perspectiva subjetiva dos direitos fundamentais), e a ora preferir a defesa da sociedade contra a prática de ilícitos, garantida pelo dever-poder de punir, jus puniendi (perspectiva objetiva dos direitos fundamentais). Frente às concepções autoritárias do processo penal, construídas ao longo de duradouros regimes ditatoriais, bem como diante da paradoxal anacrônica inquisitividade emergente do eficientismo e da vigente exigência pela imediata punição, predominam, na jurisprudência e no processo legislativo, a acomodação no tratamento do instituto estudado. Assim, são constantes as referências aos antigos brocardos iura novit cúria e narra mini factum, dabo tibi ius quando das abordagens e da operação da emendatio libelli. Ocorre que, partindo da constatação de que a ordem constitucional de 1988 instaurou um Estado Democrático e Constitucional de Direito, há de se fazer um completo redimensionamento dos brocardos em questão. A interpretação simplista deve ser revista pelas lentes da Constituição de 1988 e não pelo espírito inquisitorial do Código de Processo Penal de 1941, no qual a defesa era sinônimo de interesse pessoal e unilateral dos criminosos. O sistema acusatório constitucional implica nos princípios da inércia da jurisdição, do contraditório e da ampla defesa, os quais, inexoravelmente, culminam na determinação de manutenção da identidade entre o afirmado na acusação e o reconhecido na sentença, ou seja, na correlação entre acusação e sentença. Nesse âmbito da correlação, os mesmos princípios impõem a ressignificação da importância atribuída à tipificação, aquela que é diminuída pelo reducionismo dos brocardos iura novit cúria e narra mini factum, dabo tibi ius, e é o objeto da emendatio libelli. O princípio da inércia da jurisdição importa na existência de uma parte específica para a promoção da ação, o Ministério Público, independente do Judiciário e com a exclusiva função de acusar, para que isento seja o julgador. A denúncia, peça que deduz esse direito de ação, é a primeira evidência da importância da tipificação, na medida em que o Código de Processo Penal exige, dentre os seus requisitos, a classificação do crime. 104 Pela estreita relação da teoria dos direitos fundamentais com o processo penal, o modelo democrático, consolidado, no processo, pelo contraditório, evidencia-se de maneira ainda mais cristalina nesse ambiente, e o interesse da sociedade na punição somente do verdadeiro culpado aponta a afirmação do contraditório não como simples ciência bilateral dos atos processuais, mas pela ótica da não surpresa, impondo a participação construtiva das partes no processo. A aplicação da decorrência do contraditório relativa ao princípio da não surpresa a questões jurídicas e não apenas fáticas é mais um indicativo do valor da tipificação. A definitiva comprovação da imprescindibilidade da tipificação dos fatos sobrevém pela constatação de que o princípio da ampla defesa – garantido, no processo penal, apenas aos acusados – abrange a importante dimensão da defesa técnica. A autodefesa é parte da defesa e igualmente o é a defesa técnica, indisponível no ambiente criminal. Em que pese o acusado não tenha conhecimento técnico para defender-se de números de artigo, a indisponibilidade da defesa técnica indica o realce também das questões jurídicas, em especial, da tipificação. Nessa linha, a mudança da tipificação atribuída, de início, pela acusação gera a alteração das possibilidades de defesa, de sorte que a inadvertida aplicação da emendatio libelli, de regra em sentença e sem qualquer ciência das partes, inegavelmente, é capaz de produzir prejuízos ao acusado, resultando em subversão da tipicidade constitucional prescrita pelo contraditório e pela ampla defesa, o que gera nulidade absoluta. O exame constitucional do tema, a análise das tentativas de reforma legislativa e o direito comparado obrigam a revisão do que se enquadra como emendatio libelli, do momento para a sua manipulação e dos procedimentos mais adequados em cada hipótese. Na temática, a saída, frente à inércia do legislador, é a interpretação constitucional da emendatio libelli pelos aplicadores do direito. Não se encontram argumentos razoáveis à vedação da chamada emendatio libelli antecipada, a qual ainda enfrenta resistência na jurisprudência brasileira, mas é imprescindível nas situações conhecidas como capitulação excessiva e em suas analógicas decorrências procedimentais, a demandar a imediata adequação do tipo penal. Ainda, são excluídos da caracterização da emendatio libelli antecipada os casos de capitulação atípica, pois, em verdade, constituem hipótese de ausência de condições da ação, por inexistir a prática de fato aparentemente criminoso. A capitulação errônea ou emendatio libelli por erro de capitulação tem como única acepção correta a restrita significação do que é, essencialmente, erro, sendo também certa a necessidade de sua prévia operação. Face a isso, o artigo 385 do Código de Processo Penal não 105 retrata uma mera correção de erro, mas exibe uma autêntica ampliação da acusação, conduta que não cabe ao julgador, não tendo sido o artigo recebido pela Constituição de 1988. A emendatio libelli por supressão de elementar e/ou circunstância é hipótese que só pode ser visualizada após a instrução e, como regra, não se desdobra em prejuízos à defesa, visto que as teses empregadas em relação aos tipos mais complexos, mais específicos e fim, geralmente, abrangem as da nova tipificação. O ônus de assim comprovar, entretanto, é atribuído ao Estado, pois é ele quem deseja corromper a tipicidade constitucional derivada dos princípios da ampla defesa e do contraditório. A emendatio libelli por interpretação diferente é a genitora das maiores controvérsias, pois é comumente operada somente na fase da sentença e sem a devida manifestação das partes, o que enseja sérias possibilidades de prejuízo à defesa. Nessa peculiar situação, é medida equilibrada a prévia intimação das partes para comunicação, manifestação e demais requerimentos a respeito da eventual nova tipificação, num rito determinado pelo princípio da não surpresa. A perspectiva objetiva dos direitos fundamentais, a obrigatoriedade da ação penal, a celeridade e a economia processuais, assim como o irrefutável e imprescindível conhecimento técnico do magistrado tornam irrazoável a simples extinção do processo quando era corrigível a outorga da devida tipificação aos fatos já provados. Por outro lado, nos cenários em que não cabalmente demonstrada a possibilidade de subsunção daqueles fatos narrados a outro tipo penal, de regra, não pode o juiz comandar a instrução probatória, pois, assim agindo, atua em conduta inegavelmente inquisitiva, completamente rechaçada neste trabalho. Aí, surge o problema da coisa julgada, a qual demanda um reestudo nas ocasiões em que é extinto o processo somente por não ter sido possível a operação da emendatio libelli. 106 REFERÊNCIAS AVENA, Norberto Cláudio Pâncaro. Processo penal: esquematizado. 3. ed. São Paulo: Método, 2011. BADARÓ, Gustavo Henrique. Correlação entre acusação e sentença. 4. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019. ______. Ônus da prova no processo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. BIBLIOTECA DEL CONGRESSO NACIONAL DE CHILE. Disponível em: . Acesso em: 13. nov. 2019. BINDER, Alberto M. et. al. 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