UNIVERSIDADEFEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS
LINHA DE PESQUISA: ESPAÇO DE TERRITORIALIDADE
Doutorando:
Orientador:
Francisco de Assis Duarte Guimarães
Márcio Moraes ValençaProf. Dr.
Natal - RN
Out / 10
Comunicação e Cidades
I I C SNTERLOCUÇÕES PARA UMA NTERDISCIPLINARIDADE NAS IÊNCIAS OCIAIS
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS
LINHA DE PESQUISA: ESPAÇO E TERRITORIALIDADE
Comunicação e Cidades
INTERLOCUÇÕES PARA UMA INTERDISCIPLINARIDADE NAS CIÊNCIAS SOCIAIS
Doutorando: Francisco de Assis Duarte Guimarães
Orientador: Prof. Dr. Márcio Moraes Valença
Natal – RN
Nov / 10
2
FRANCISCO DE ASSIS DUARTE GUIMARÃES
Comunicação e Cidades
INTERLOCUÇÕES PARA UMA INTERDISCIPLINARIDADE NAS CIÊNCIAS SOCIAIS
Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em
Ciências Sociais (PPGCS) da Universidade Federal do Rio
Grande do Norte (UFRN), para obtenção do título de Doutor,
sob a orientação do Prof. Dr. Márcio Moraes Valença.
Natal – 2010
3
Catalogação da Publicação na Fonte.
Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes (CCHLA).
Guimarães, Francisco de Assis Duarte.
Comunicação e cidades : interlocuções para uma interdisciplinaridade nas
ciências sociais / Francisco de Assis Duarte Guimarães. – 2010.
360 f. : il.
Tese (Doutorado em Ciências Sociais) – Universidade Federal do Rio
Grande do Norte. Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes. Programa de
Pós-graduação em Ciências Sociais, Natal, 2010.
Orientador: Prof. Dr. Márcio Morais Valença.
1. Comunicação. 2. Cidades e vilas. 3. Abordagem interdisciplinar do
conhecimento. 4. Ciências sociais. I. Valença, Márcio Morais. II.
Universidade Federal do Rio Grande do Norte. III. Título.
RN/BSE-CCHLA CDU 316.77
4
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS
LINHA DE PESQUISA: ESPAÇO E TERRITORIALIDADE
BANCA EXAMINADORA
____________________________
Profa. Dra. Ângela Prysthon – PPGC-UFPE
____________________________
Prof. Dr. Eustógio Wanderley Correia Dantas – PPGG-UFC
____________________________
Profa. Dra. Josimey Costa da Silva – PPGCS-UFRN
____________________________
Profa. Dra. Lisabete Coradini – PPGCS-UFRN
____________________________
Profa. Dra. Maria Bernadete Fernandes de Oliveira – PPGL-UFRN
____________________________
Prof. Dr. Márcio Moraes Valença – PPGCS-UFRN – Orientador
Tese defendida em: ___ / ___ / ______
5
Para Rafael e
Danielle (in memorian).
6
AGRADECIMENTOS
gradeço ao meu orientador Prof. Dr. Márcio Moraes Valença pelas sempre
sinceras e corretas palavras de orientação e incentivo, bem como pela
firme confiança depositada em mim e neste trabalho.
Agradeço aos professores do PPGCS/CCHLA/UFRN que de maneira direta
ou indireta me ajudaram nesta empreitada, e de forma especial à Profa. Dra. Maria
Bernadete Fernandes de Oliveira, do PPGL/CCHLA/UFRN, pela generosidade,
ponderações e equilibradas palavras, principalmente acerca do Capítulo 1.
Agradeço a todos os colegas da Unidade Interdisciplinar de Estudos sobre a
Habitação e o Espaço Construído pelas contribuições pessoais e coletivas, quando
de nossos encontros diários e em nossas reuniões mensais na Base de Pesquisa.
Agradeço ao Departamento de Comunicação Social (DECOM) pela licença
concedida, sem a qual tornaria muito mais difícil a conclusão da presente tese.
Agradeço aos colegas jornalistas e publicitários que me repassaram as
logomarcas municipais aqui expostas no Capítulo 4, principalmente ao ex-
Secretário de Comunicação Social da Prefeitura de Natal, Walter Medeiros.
Agradeço, por fim, à minha família, pela paciência, compreensão e
incentivos. Sem eles, esta tese seria praticamente impossível.
A
7
SUMÁRIO
Resumo/Abstract, 8
Apresentação, 9
Comunicação, Ciência e Cidade: um balanço, uma contribuição, 10
Comunicação e Literatura: vozes de uma mesma cidade e seus personagens, 27
Comunicação e Arquitetura: encontros empíricos nas esquinas da urbanidade
contemporânea, 102
Comunicação e História: sangue de papel e suor de concreto na São Paulo
revolucionária, 184
Comunicação e Geografia: uma interpretação da cidade a partir da heráldica
dos prefeitos de Natal entre 1985 e 2004, 301
Comunicação nos limites do social: integrando no urbano as fagulhas do saber
universal, 337
Bibliografia, 350
8
RESUMO
A presente tese busca a produção de conhecimento através de uma
aproximação de diversas teorias e análises empíricas. Ou seja: a partir de um
encontro interdisciplinar, no âmbito das Ciências Sociais, este trabalho, tendo
como base a Comunicação e a Cidade, apresenta, em cada capítulo, um campo
disciplinar diferente – Literatura, Arquitetura, História e Geografia –, com os
quais aquelas se relacionam, expõe seus pilares teóricos e realiza um estudo de
caso, como uma contribuição fática e crítica, considerando, respectivamente, os
espaços urbanos do Rio de Janeiro, Brasília, São Paulo e Natal. O debate vai do
final do século XIX ao início do XXI. No geral, a tese é um conjunto
interconectado e dialógico que aponta para uma maior cosmologia do saber
plural.
Palavras-chaves
Comunicação – Cidade – Interdisciplinaridade – Ciências Sociais
ABSTRACT
This thesis aims at producing knowledge by putting together various theories
and empirical analyses. In other words, from an interdisciplinary approach
within the Social Sciences and having as background Communication and the
City, this work presents, in each chapter, a disciplinary field – Literature,
Architecture, History and Geography –, with which they relate, exhibits its
theoretical pillars and performs a case study as a factual and critical
contribution, considering the urban spaces of Rio de Janeiro, Brasília, São
Paulo and Natal. By so doing, the thesis covers the period from the end of the
XIX to the beginning of the XXI Century. Overall, the thesis is an
interconnected and dialogic set that points to a cosmology of plural knowledge.
Keywords
Communication – City – Interdisciplinarity – Social Science
9
APRESENTAÇÃO
ossa tese pretende mostrar que é possível construir conhecimento a partir
de interlocuções entre vários saberes específicos tendo como esteio
conceitual e empírico a cidade contemporânea.
As interlocuções, no caso, entre Comunicação e Literatura; Comunicação e
Arquitetura; Comunicação e História; e Comunicação e Geografia Cultural Urbana,
nesta ordem.
As cidades, também pela ordem, são: Rio de Janeiro, Brasília, São Paulo e
Natal.
A linha principal que sedimenta e interliga a obra, assim, é a Comunicação
Social e a cidade capitalista, com suas características epistêmicas e práticas
cotidianas.
O período coberto pela pesquisa vai do final do século XIX ao início do
XX, mais de 100 anos, portanto.
O debate procura ocorrer no âmbito das Ciências Sociais.
Busca-se provar que é possível fazer esses saberes dialogarem entre si
através de teorias específicas e de nossas contribuições críticas e empíricas,
construindo um conhecimento mais amplo, inédito e interconectado.
A tese, como síntese de um encontro de teorias e de experiências, se
constitui assim em um conjunto em que cada capítulo pode ser considerado uma
tese particular.
Não é, desta forma, por sua própria natureza, uma tese excludente de
análises e avanços. Ao contrário: as interconexões se apresentam, no âmbito das
Ciências Sociais, como um fluxo rumo a uma interdisciplinaridade mais
polissêmica e universal.
N
10
INTRODUÇÃO
Comunicação, Ciência e Cidade nas
fronteiras: um balanço, uma contribuição
os últimos anos parece haver uma convergência entre os diversos saberes
alcançados até o presente pela civilização humana. Um solapamento na
antiga forma de separação campal do conhecimento, enquadrado em áreas
denominadas, não sem certa dose de autoritarismo, de disciplinas, aponta para um
florescimento de uma nova ilustração da sabedoria – sem estrabismos, espera-se.
Há várias explicações para esse fenômeno. Desde as mudanças provocadas pela
nova remodelação na economia, ocorrida através de uma pós-estruturação do
capital, até clivagens culturais se dando por conta pura e simples das cada vez mais
imediatas e permanentes novas realidades tecnológicas e midiáticas. Não deixam
cada uma dessas explicações de ter suas razões de fundo – algo que faz parte
justamente de tal realidade entrecruzada. A Comunicação Social, área que vem
buscando se afirmar nas últimas décadas como saber científico, acompanhando em
vários aspectos o desenvolvimento imediato e técnico das mídias, e ao mesmo
tempo os fenômenos sociais com e decorrentes desse progresso, como as novas
relações sociais e de produção que desse campo emergem, também converge para
essa espécie de ultramoderna interação multidisciplinar. E, ao que tudo indica, com
mais força ainda, dado a sua própria natureza de aproximação e interatividade.
O presente trabalho se insere nesse fenômeno. Mas não somente para
contribuir para o seu deslinde – isso seria por demais pretensioso num momento
N
11
em que muitos ainda não o observaram e outros sequer se deram conta de sua
manifestação. Mas também para, talvez como retrato próprio de uma época, porém
de forma deliberada, contribuir para essa interconexão conscienciosa, mais
produtiva e quem sabe sem tantos enviesamentos e desvãos – naturalmente vieses e
desvãos no sentido pejorativo, dado a própria obliquidade e angularidades,
aparentemente díspares e antagônicas ao saber, integrar esse quadro fenomênico da
realidade contemporânea. Aliás, é exatamente por isso que, primeiro, cada uma das
tentativas de aproximações aqui trazidas tem uma base epistemológica
reconhecidamente sólida, a qual por si somente, rebuscada e assim narrativa e
necessariamente reinterpretada, já seria uma contribuição desse campo específico
ao fenômeno relacional dos saberes; e, segundo, cada uma também das
contribuições deste trabalho tem uma tentativa de interpretação histórica
fortemente empírica, com elementos mensuráveis e concretos, sendo esta talvez a
sua parte mais contributivamente importante. Não seria assim sem fundamentação
um laboratório tributário do saber convergente.
A Comunicação Social nasce exatamente das três vertentes genéticas das
Ciências Sociais e Humanas, abeberando-se, no entanto, e também, a partir das
inúmeras pesquisas e contribuições destas. Assim, a Comunicação estrutura-se
sobre os paradigmas do pensamento do funcionalismo, do weberianismo e do
marxismo, correntes personificadas em Durkheim, Weber e Marx, matrizes
epistemológicas clássicas de áreas disciplinares como, por exemplo, a Sociologia, a
Antropologia, a Semiologia, a Psicologia etc. Esses três modelos legitimam todas
essas áreas, inclusive a Comunicação, das Ciências Humanas apresentando
características paradigmáticas particulares e diversas quanto à objetividade
12
científica, à interpretação da realidade social e histórica e à apresentação de
soluções societárias (coletivas e individuais), a partir do século XIX. Destaquemos
nesse avanço das pesquisas na área particular da Comunicação Social as
contribuições importantes, como as protagonizadas pela Escola de Frankfurt
(através especialmente de pensadores como Adorno, Benjamim, Fromm e
Marcuse), além de estudiosos como Wright, Pierce, Eco, Barthes, McLuhan,
Debord, Foucault, Jameson, Bourdieu, Castells, Morin etc. e, no Brasil, dentre
vários outros, Luiz Beltrão, Adelmo Genro, José Marques de Melo, Maria
Immacolata, Cremilda Medina, Lúcia Santaella etc.
Com efeito, como nos mostra Lopes (2003), a Comunicação se autonomiza
nessa grade das Ciências Sociais e Humanas, afirmando-se como disciplina, agora
dotada de veios paradigmáticos e objetos relativos e próprios do fenômeno
comunicacional, como, por exemplo, na sociedade capitalista contemporânea, a
cultura de massa e nesta os Meios de Comunicação de Massa, todos com suas
constituições, implicações e consequências. Lopes aponta três pontos fundamentais
para essa mudança rumo às leis próprias do saber específico da Comunicação.
“Verifica-se que nesse processo de autonomização do campo da Comunicação
interagem fatores de diversas ordens que são histórico-sociais (a organização
capitalista da cultura), institucionais (os cursos de Comunicação) e científicos
(especialidade dos fenômenos de massa)”. E complementa:
Como partimos do pressuposto de que a Comunicação se
constitui historicamente como campo autônomo de estudos (aliás,
o que ocorreu na história de cada ciência), ela não pode ser
investigada fora dos marcos do contexto econômico, social,
político e cultural que a envolve. As condições de produção dessa
pesquisa são as condições concretas impostas pela realidade do
país onde ela se faz (LOPES, 2003, p. 14).
13
Nesse sentido, Lopes vai identificar no mercado cultural brasileiro o campo
de afirmação da Comunicação Social como ciência, a partir da instalação das bases
industriais nos anos 1960 que se consolida nos anos 1970 e detona o fenômeno da
produção e do consumo de bens simbólicos na chamada Comunicação de Massa.
Ou seja: é exatamente na organização capitalista da cultura, através da formação do
campo simbólico como sistema; no aumento da diferenciação e da
profissionalização de produtores e empresários; quando as agências e legitimação e
difusão passam a ser regidas pelas leis do mercado; e quando surge um público
extenso e diversificado socialmente que a ciência dá uma resposta racional e mais
precisa à sociedade através de um campo específico acerca da Comunicação de
Massa. O fenômeno da comunicação societária assim é objeto próprio da
Comunicação que, ao se debruçar com propriedade sobre ele, ajuda a constituí-la.
Lopes, contudo, vai além. Identifica as raízes desse fenômeno cultural (a
Comunicação de Massa), do qual emerge com força a Comunicação Social, nos
anos 1930 até meados dos anos 1950. Nesse período, assinalada a autora, “é
quando ganham realce os processos socioeconômicos da urbanização e da
industrialização e os processos político-culturais do nacionalismo e do populismo”.
Isto mesmo: Lopes considera que a partir da década de 1930 o processo de
desenvolvimento social no país, com a proeminência da urbanização sobre o
desenvolvimento econômico, tendo como base a interferência do Estado em busca
da resolução da hegemonia entre o agrário e o industrial, criam um ethos urbano.
Ou seja: resulta numa grande concentração urbana que por sua vez se manifesta
“por estilo de vida específico (conjunto de práticas e ideias) e por um “clima
mental” distinto do predominante em áreas não-urbanas”. Portanto, conclui a
14
autora, o desenvolvimento da urbanização implica a assimilação desse “clima” por
populações rurais que se deslocam para a cidade. “E aqui os Meios de
Comunicação de Massa (MCM) desempenham dois papéis centrais: na formação
de difusores do efeito-demonstração do estilo de vida urbano e na forma de
agências de socialização antecipada” (LOPES, 2003, p. 20-21). Essa comunicação,
assim compreendida como fenômeno midiático e essencialmente do capitalismo
urbano (cidade contemporânea), bem como a Comunicação Social, que se
consolida e tem aquela como objeto de análises, criando-se assim ambas
produtivamente numa relação dialética, são aquelas que no presente trabalho tanto
apresentamos contributivamente à reflexão e à interdisciplinaridade quanto
buscamos compreender nesses próprios fundamentos.
Neste aspecto, a cidade, que muitos estudiosos, conforme suas pesquisas
particulares, ao longo da história recente e de acordo com seus respectivos objetos
e epistemologias, entendem como Suburbia, Sprawling, City Metrópole, Edge City,
Cidade Dispersa, Cidade Global, Cidade Mundial, Cidade-Região, Cidade-Mundo,
Cidade Informacional, Cidade-Fluxo, Cidade-Mosaico, Cidade Caleidoscópica,
Cidade Fractal, Cidade Fragmentada, Cidade Neobarroca, Cidade Neogótica,
Cidade-Tela, Cidade-Partida, Cidade Fechada, Cidade Fortaleza, Cidade Sitiada,
Cidade Vertical, Cidade Pós-Moderna, Cidade Mutante, Generic City, Cidade
Congestão, Cidade-Estado (ROLNIK, 2009, p. 74) é para nós aqui aquela polis que
todas essas expressões encerram e que nós a entendemos numa só: aquela que
comunica/ação. Ou seja: mais que somente a cidade do capital, como designa
Lefebvre (2001), posto ser a cidade aqui muito fortemente a contemporânea, em
função do avanço em todos os aspectos a que se chegou, é também e ao mesmo
15
tempo a cidade palimpsesto, a cidade texto, a cidade que se anuncia, se emite, se
jacta e se impacta, se inscreve e se reescreve em seus entes e na história; a cidade
que se sente, se interpreta, se interage e se escreve pelo citadino e cidadão em todas
as suas formas de construção/relação, enfim, de sua comunicação social. É, em
resumo, a cidade midiática: aquela que se expressa como obra social em todos os
seus afazeres e construtos cotidianos e históricos, desde os mais recônditos, como
aqueles imiscuídos nas frestas das esquinas subjetivas mais esquecidas, íntimas,
ficcionais, noturnas, soturnas, virtuais, àqueles outros mais expostos no espaço-
tempo, expressivos e gritantes de uma realidade clara, explosiva, imensa,
portentosa, fantástica. Numa palavra: a cidade-mídia.
Tal cidade é aquela que, como explica Prysthon (2006, p. 7-9), possui a
construção imaginária de si mesma feita pelas indústrias culturais e que é
constituída e constitui-se a partir de um diálogo com o cidadão, que contrasta sua
experiência real e cotidiana com a versão midiática. “A cidade que é o grande
cenário de imagens e linguagens, uma esfera intercambiante de fronteiras e
sentidos”, afirma. A cidade, continua Prysthon, que é um sistema de interação
comunicativa entre atores sociais, responsáveis pela produção de uma cultura e
simbologias urbanas. Assim, conclui a autora, “estudá-la sob o ponto de vista
comunicativo é descrever e interpretar a história e os cenários urbano e periférico,
é pensar o papel da cidade através da leitura do espaço e das suas representações
como parte integrante de um sistema comunicacional”. Esta é a cidade que assim
entendida, muito além do somente valor estético, mas justamente por isso
fortemente amparada no caráter morfológico, é aquela que buscamos aqui fincar e
focar as nossas contribuições e análises. Bem entendido: a cidade que assim
16
conceitualmente compreendida e apresentada torna-se também um meio a
perpassar e a sedimentar como comunicação todos os capítulos do presente
trabalho. A cidade-mídia que na presente tese também é, justamente por isso, como
diria McLuhan (1995), além do meio, a própria mensagem.
Dito isso, cabe-nos agora abordar o porquê da interdisciplinaridade que,
como a queremos aqui, tem a proposta de avançar ainda mais: apontar para o
transdisciplinar. Isso porque esta tese se reintrojeta sobre si mesma,
intercambiando pontos em comuns e verificáveis ao leitor mais atento em cada
proposta de apresentação teórica e de análise. Não se trata de meras citações, posto
não haver redes sem nós. Mas, principalmente, por ser um tema que
necessariamente apresenta um fenômeno indubitável da contemporaneidade e
passível à aferição e precisamente por isso de maiores e posteriores
aprofundamentos: a aproximação socialmente magnética da Comunicação Social
com outras áreas, ao mesmo tempo em que se dá a sua afirmação enquanto saber
específico. Além: há aproximações até mesmo com disciplinas que algumas
academias consideram como próprias das Ciências da Tecnologia, como
Arquitetura, e da Terra, como Geografia – ambas aqui também contempladas.
Uma rica bibliografia já surgiu refletindo o que vem se propondo ou já se
fazendo (em várias bases de pesquisas) nesse sentido, o sentido da interação entre a
Comunicação Social e outros campos do saber. Destaquemos aqui apenas algumas
obras mais recentes e que nos remetem a alguns temas específicos do presente
trabalho. Sobre Comunicação e Literatura: Jornalismo e Literatura em
Convergência, de Marcelo Bulhões (2007). Sobre Comunicação e História:
Comunicação e História: interfaces e novas abordagens, organizado por Ana
17
Paula Goulart Ribeiro e Micael Herschmann (2008). Sobre Comunicação e
Materialismo Dialético e Histórico em: Vertentes da Economia Política da
Comunicação e Jornalismo de Sônia Serra (2007) – esta, aliás, inclusa na obra
organizada por Cláudia Lago e Márcia Benetti (2007), onde há várias outras
reflexões propondo interconexões com várias outras disciplinas, como história,
antropologia, literatura... –; Informação e Trabalho no Capitalismo
Contemporâneo de Marcos Dantas (2003); e a monumental e clássica obra A
História da Imprensa no Brasil de Nelson Werneck Sodré (1966). Sobre
Comunicação e Cidade: Imprensa e Cidade, de Ana Luíza Martins e Tânia de Luca
(2006); e os mais recentes Imagens da Cidade: Espaços Urbanos na Comunicação
e Cultura Contemporâneas, organizado por Ângela Pryston (2006), a partir do
Primeiro Simpósio Espaços Urbanos na Comunicação Contemporânea,
promovido em agosto de 2006 pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação
Social da Universidade Federal de Pernambuco, e Redes Urbanas: Comunicação,
Arte e Tecnologia organizado por Ricardo Freitas e Rafael Nacif (2007). Dentre
vários outros.
Com efeito, convém agora explicitarmos melhor o conceito de
interdisciplinaridade aqui utilizado. Segundo Sommerman (2006), no século XII
ocorre uma grande e primeira ruptura no pensamento intelectual da elite ocidental,
quer dizer, européia. Uma ruptura na visão antropológica, cosmológica e
epistemológica. Qual seja: aquela baseada na crença judaico-cristã apoiada na
filosofia platônica. A partir dessa cisão, o saber vai se estruturando numa
perspectiva e numa teoria do conhecimento cada vez mais racionais e empíricas.
As causas dela Sommerman identifica como sendo a entrada definitiva da razão
18
aristotélica, a criação de grandes universidades e a tradução para o latim de textos,
além de gregos, como o próprio corpus do saber aristotélico, de pensadores árabes.
“Se a razão platônica e neoplatônica se harmonizavam com a teogonia, a
cosmologia, a antropologia e a escatologia judaico-cristã, o mesmo não ocorria
com a razão aristotélica”, afirma Sommerman (2006, p. 11-15) que, mais adiante
nesse mesmo sentido complementa: “Enquanto Platão faz das matemáticas um
meio de purificação para a alma que se distancia do mundo sensível, Aristóteles
constrói uma ciência sistemática, mas puramente qualitativa”.
A adoção desse outro entendimento do homem, do mundo (natureza) e de
como se conquistar o saber, mina a contemplação e o raciocínio teosófico como a
busca do conhecimento verdadeiro. E assim a partir do século XIV aponta para
uma racionalidade em que posteriormente os sentidos humanos e também a
experiência da vida prática vieram a ser considerados como aportes necessários e
até imprescindíveis à aplicação da razão pela busca da verdade mais exata e
indubitável. Dito de outra forma: essa primeira ruptura leva ao aprofundamento da
separação entre fé e razão com a predominância da sistematização metodológica do
saber real sobre a expectativa suprarreal. Alguns nomes contribuíram
decisivamente para a demarcação histórica desse saber moderno. Alguns dos
principais são Nicolau Copérnico (1473-1543), Galileu Galilei (1564-1642), Isaac
Newton (1643-1727), René Descartes (1596-1650), sendo este considerado o pai
do racionalismo moderno. Estamos aqui, como se pode verificar, mais centrados
nos séculos XV, XVI e XVII. Mas o conhecimento avança e desemboca numa
segunda grande ruptura epistemológica. Primeiro no século XIX, com o
positivismo de Auguste Comte (1798-1857) e depois segue adiante com a
19
valoração da experiência como fonte privilegiada do saber defendida um século
antes por nomes como John Locke (1632-1704) e David Hume (1711-1776),
ambos considerados fundadores do empirismo moderno. Temos aqui então dois
caminhos partidários percorridos: enquanto a história do racionalismo (que vê no
pensamento, na razão a fonte principal do conhecimento humano) revela que
alguns dos seus defensores provêm campo da matemática, a história do empirismo
(que vê na experiência a fonte do conhecimento humano) mostra que alguns de
seus defensores vêm das ciências naturais. Essa evolução em seu conjunto desde a
primeira grande cisão até os tempos atuais levou a uma fragmentação radical do
saber, reduzindo-o a apenas um nível da realidade, o do sensível. Correntes nesse
sentido (re)surgiram com força, como o reducionismo, o ceticismo, o subjetivismo,
o mecanicismo e o criticismo. Resume-nos neste sentido Sommerman (2006, p.
19):
Vemos com isso que as posições epistemológicas predominantes
foram reduzindo o campo do conhecimento considerado
verdadeiro. A hegemonia da epistemologia tradicional
(multidimensional), até o século XIII, deu lugar ao racionalismo
(bidimensional: matéria e espírito), no século XVII, e gerou
posições ainda mais estreitas: mecanicismos, reducionismo e
materialismo.
Porém, acrescenta o autor, essa fragmentação sempre crescente do
conhecimento humano, incluindo aí a “fratura” entre ciência e filosofia ocorrida no
século XVIII com a separação entre as ciências exatas (quadrivium) e humanas
(trivium), e depois a organização positivista realizada no século XIX classificando
as ciências em disciplinas fundamentais (matemáticas, astronomia, física, química,
biologia e sociologia), descritivas (zoologia, botânica, mineralogia, psicologia) e
aplicadas (engenharia, agricultura e educação), leva a uma “hiperespecialização
disciplinar” que irá ocorrer na metade do século XX. Além desse histórico
20
evolutivo, segundo Sommerman (2006, p. 24), essa especialização extremada foi
causada também pelo “crescimento exponencial do volume e da complexidade dos
conhecimentos, e pela multiplicação e sofisticação das tecnologias” ocorridas nos
anos do pós-guerra.
Isso quer dizer que até o início do século XX a divisão do saber era circular,
ou seja, as ciências ainda dialogavam entre si, apesar de, segundo chama a atenção
Sommerman, desde o século XIV a sua circularidade constituir “círculos cada vez
menores”, por conta da sistemática exclusão de campos do saber, com a eliminação
primeiro da gnose ou teologia mística do século XIII, seguida da religião no século
XVII e depois da filosofia ou da metafísica no século XIX. A disciplina, então,
conceitualmente, se tronou, conforme também a entendemos aqui, naquele
“conjunto específico de conhecimentos que tem suas características próprias no
plano do ensino, da formação, dos mecanismos, dos métodos e das matérias”
(SIMMERMAN, 2006, p. 25).
Mas se o século XX acirrou a fragmentação do saber em campos estanques,
nele cientistas do mundo todo e de diversas áreas também viram a necessidade de
se tentar reaproximar os saberes. Isso tendo em vista a necessidade de somente se
conhecer o universal através da aproximação e do diálogo entre vários métodos,
perspectivas, acerca muitas vezes de um mesmo objeto. Mais que isso: sujeitos
também deveriam se aproximar. Vários congressos, seminários e encontros
importantes foram realizados nesse sentido, alguns dos quais inclusive
patrocinados por universidades tradicionais e grandes agências, como a
Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura
(UNESCO) e a Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico
21
(OCDE), especialmente a partir dos anos 1970. Desses encontros foram criadas
associações de cientistas de diversas áreas com o intuito de estudar e promover a
interdisciplinaridade, afora a criação de um significativo documento, a Carta da
Transdisciplinaridade, elaborada no Primeiro Congresso Mundial da
Transdisciplinaridade, ocorrida em Portugal, de 2 a 6 de novembro de 1994.
Mas não foram somente iniciativas voluntárias de cientistas, universidades e
agências de fomento que promoveram um impulso histórico à necessidade da
busca de um diálogo entre as várias ciências. Pesquisas mostraram também que a
natureza é constituída de outras dimensões que refutam senão colocam em xeque
os primados da ciência moderna, aquela nascida nos anos 1400-1600 com Galileu,
Descartes etc. e reforçada nos séculos posteriores. A ciência viu-se de novo diante
de novas fronteiras e desafios: três paradigmas estavam sendo quebrados.
Primeiro com a descoberta de Max Plack, no início do século XX, que
comprovou que no mundo subatômico as entidades físicas (os quanta) continuam a
interagir qualquer que seja o seu afastamento. Isso, de acordo com Sommerman
(2006, p. 54-55), coloca por terra o paradigma da casualidade local, qual seja,
aquele que estabelece como irrefutável o fato de que não poderia haver efeito sem
causa. Mais que isso. Como Plack descobriu que a energia subatômica tem uma
estrutura descontínua, quer dizer, que “ela se move por saltos, sem passar por
nenhum ponto intermediário”, então outra convenção científica irrefutável, a da
continuidade, ou melhor, a de que nada pode transcorrer no tempo e no espaço sem
que passe por todos os pontos intermediários, também caiu por terra.
Algumas décadas depois da descoberta de Planck, continua Sommerman,
outro dos pais da física quântica, Werner Heisenberg, derrubou o terceiro pilar da
22
física clássica (os dois primeiros são exatamente a casualidade e a continuidade), a
ideia de determinismo. Porque suas equações mostraram que as entidades quânticas
encontradas por Plack não poderiam ser localizadas num ponto preciso do espaço e
do tempo. Assim, seria impossível aplicar o princípio de que se sabendo as
velocidades e localizações de objetos físicos num dado instante, pode-se prever
suas velocidades e posições no espaço e em qualquer outro momento do tempo.
Desta maneira se descobriu duas realidades na natureza, aquela relativa ao
mundo macrofísico (escalas supra-atômicas), em que as leis simples da física ainda
continuam valendo, e a da dimensão microfísica (escalas subatômica), esta por sua
vez regida por leis diferentes e que inclusive negam àquela.
Baseados em todos esses eventos e acontecimentos científicos, promovidos
pela inteligência e pelo avanço tecnológico, Sommerman chega a estabelecer o
conceito de interdisciplinaridade, que é o que adotaremos no presente trabalho.
Segundo ele, a interdisciplinaridade se encontra num nível superior ao da
multidisciplinaridade. Esta seria uma integração apenas quantitativa de disciplinas
ou profissionais, quer dizer, vários campos do saber especializado poderiam se
justapor, tocar as suas fronteiras, mas não chegar a interagir de maneira a modificar
ou enriquecer um ao outro.
A definição de interdisciplinar, por sua vez, ao contrário de multidisciplinar,
supõe um aprofundamento nas relações, ou seja, evoca a existência da interação
entre duas ou mais disciplinas. Sommerman, inclusive, se apóia em vários outros
autores. “Essas interações podem implicar a transferência de leis de uma disciplina
para outra, originando, em alguns casos, um novo corpo disciplinar, como, por
exemplo, a bioquímica ou a psicolinguística”, afirma Antoni Zabala, conforme
23
Sommerman (2006, p. 29-30). “A interdisciplinaridade é um método de pesquisa e
de ensino suscetível de fazer com que duas ou mais disciplinas interajam entre si,
esta interação podendo ir da simples comunicação das ideias até a integração
mútua dos conceitos, da epistemologia, da terminologia, da metodologia, dos
procedimentos, dos dados e da organização da pesquisa”, afirma Hilton Japiassu,
segundo Sommerman (2006, p. 30). “O interdisciplinar consiste num tema, objeto
ou abordagem em que duas ou mais disciplinas intencionalmente estabelecem
nexos e vínculos entre si para alcançar um conhecimento mais abrangente, ao
mesmo tempo diversificado e unificado”, diz José Aguiar Coimbra, de acordo com
Sommerman (2006, p. 30).
A transdisciplinaridade, por sua vez, seguindo esse entendimento, seria
algo muito mais profundo e complexo, daí tentativas como a Teoria da
Complexidade ou a Teoria dos Sistemas para dar conta. Através deste conceito
entende-se uma etapa superior – e provavelmente a última – de interação, através
da qual se daria inclusive algo mais que isso – se daria a integração. “Trata-se da
construção de um sistema total, sem fronteiras sólidas entre as disciplinas”, afirma
Sommerman (2006, p. 34). Por esse paradigma, os sentimentos, a subjetividade, as
crenças, os mitos e o suprarreal também não deixariam de ser considerados,
criteriosamente, à interatividade transdisciplinar, posto já serem muitos dos
elementos dessas áreas da experiência da vida e da realidade objetiva objetos de
consideração de diversas ciências, quais sejam, especificamente, os saberes não-
científicos de um modo em geral, a arte, a metafísica, as tradições de sabedoria. “O
reconhecimento da existência de diferentes níveis de realidade, regidos por lógicas
diferentes é inerente à atitude transdisciplinar. Qualquer tentativa de reduzir a
24
realidade a um único nível regido por uma única lógica não se situa no campo da
transdisciplinaridade”, afirma a Carta da Transdisciplinaridade, aprovada em 1994
no Primeiro Congresso Mundial da Transdisciplinaridade, segundo Sommerman
(2006, p. 72) e acessível também na internet através do site da Rede Brasileira da
Transdisciplinaridade (2010).
Nosso trabalho não pretende chegar a tanto. Seria por demais pretensioso.
Afora incoerente e impróprio ao que aqui propomos – o que nem por isso deixa de
ser o presente trabalho desafiador e, conforme também pretendemos, tributário
para as ciências humanas. Aqui, portanto, ficaremos apenas no nível da
interdisciplinaridade: consideramos o mais adequado aos nossos objetivos. Assim,
com base em Sommerman e nas referências que ele nos traz acerca da
interdisciplinaridade, inclusive noutras que acima não foram transcritas, mas que
revelam um cabedal teórico que apontam para um mesmo sentido do entendimento
do fenômeno da interdisciplinaridade na sociedade contemporânea, poderíamos
concluir conceitualmente que: a interdisciplinaridade é um convite histórico para
se (re)buscar manter relações interdependentes e multidimensionais entre os
diversos saberes e experiências, das diversas ordens e processos, hoje tão dispersos
e estanques, depois de fraturados ao longo de tanto tempo, resguardando, no
entanto, qualidades e valores já conquistados por cada um desses campos, com o
intuito de se alçar e até mesmo alcançar, através da abertura ao desconhecido, do
reconhecimento às ideias, práticas e verdades, e do rigor na apuração e na
argumentação, um conhecimento mais amplo, global, eficiente, completo. É,
inclusive, o que também pretendemos contributivamente aqui a partir dos próximos
capítulos.
25
Para tanto, estes capítulos serão estratificados, mas guardando, como já
dissemos, e aqui queremos enfatizar, relações, interligações e interações dialógicas,
inclusive com o leitor. O primeiro traz à discussão com a Comunicação, através do
desenvolvimento da imprensa e de uma urbanidade típica do início do século XX, a
Literatura e a cidade do Rio de Janeiro, quando é apresentado, como elemento de
análise, a ser feita através de conceitos do pensador russo Mikhail Bakhtin, a obra
do escritor e jornalista Lima Barreto, Memórias do Escrivão Isaías Caminha. Nele
o período está delimitado entre 1881 a 1922.
O segundo capítulo, cujo período vai de 1922 a 1960, discute, conjunto à
Comunicação, tendo como contribuição desta a arte e a técnica de diagramar
jornais, mais especificamente a reforma gráfico/editorial protagonizada por
Amílcar de Castro, Josias de Souza, Ferreira Goulart e outros no Jornal do Brasil,
a Arquitetura/Urbanismo de Oscar Niemayer e Lúcio Costa, no âmbito da cidade
de Brasília. No estudo de caso utiliza-se a Teoria do Conhecimento Indiciário, do
pensador italiano Carlo Ginzburg.
No terceiro capítulo, procede-se uma aproximação da Comunicação com a
História, através de um rebuscamento histórico do desenvolvimento do jornalismo
e do pensamento da Teoria do Materialismo Histórico e Dialético, dos estudiosos
alemães Karl Marx e Friedrich Engels. Com esta, analisamos, no período de 1960 a
1985, na cidade de São Paulo, a relação conflituosa/contraditória de produção
social com a sua mão-de-obra, com a política etc. do jornal Folha de São Paulo.
No quarto e último capítulo, utilizando-se da Geografia Cultural, do
pensador inglês Denis Cosgrove, dentre outros, que permite uma interpretação da
cidade e seus construtos culturais/sociais, imagéticos e urbanos, analisa-se o que
26
denominamos de “heráldica moderna” dos gestores públicos, quais sejam, as
logomarcas dos prefeitos de Natal de 1985 a 2004. Tal estudo leva em
consideração o espaço e os elementos da política e da economia desta cidade.
Finalmente, apresentamos a nossa Conclusão, que busca “costurar” o que
parece fracionado e disperso, revelando uma interconexão polissêmica do saber e
trazendo, desta forma, uma contribuição geral para um conhecimento que se
pretende mais amplo e cosmológico. Mas tendo o cuidado de deixar em aberto –
inclusive para, além do objetivo, o subjetivo e o intersubjetivo, como é próprio da
presente proposta –, pontas e fios de uma epistéme do particular e do universal,
ainda a ser devidamente absolvida e absorvida por todos, e para a qual se espera,
assim, ser justa e afortunadamente tributária.
27
CAPÍTULO 1
Comunicação e Literatura: vozes de uma
mesma cidade e seus personagens
1. Delimitação temática: aproximando pensares
objetivo específico do presente capítulo é – como tema introdutório e ao
mesmo tempo subtemático de nossa tese – tentar mostrar que é possível
construir um saber através de uma convergência entre a Comunicação Social e a
Literatura, tendo como pano de fundo a cidade e seu desenvolvimento urbano.
Personagens fictícios e reais, autores e leitores, desempenham, no plano urbano,
papéis específicos, mas que se entrelaçam no tablado da história, refletindo e ao
mesmo tempo ajudando a construir épocas, tramas e dramas de uma sociedade
extremamente emaranhada e inextrincável ao deslinde do senso comum.
Buscaremos, para tanto, compreender os diversos papéis e linguagens no palco
vivo da história, lançando mão do Jornalismo e da Literatura, campos que, no
nosso entender, ao contrário do que comumente se defende, não estão tão apartados
assim, conforme já começa a compreender uma forte corrente do pensamento
científico contemporâneo.
O
28
De maneira mais específica, vamos analisar aqui as vozes sociais da arte e
da práxis jornalística e literária na cidade capitalista do início do século passado.
Escolhemos para isto a obra de um dos autores tanto mais urbano quanto
demonstrativo de sua época, Afonso Henriques de Lima Barreto (1881-1922), ou
simplesmente Lima Barreto, como ficou mais conhecido do grande público, e o seu
livro Recordações do Escrivão Isaías Caminha, publicado originalmente em 1909.
Trata-se de uma obra que conta a história, na primeira pessoa, do jovem
interiorano Isaías Caminha, de condição modesta, que parte de sua pequena cidade
rumo ao Rio de Janeiro, capital da então nascente República, onde pretende
realizar, através dos estudos, um grande sonho: ser doutor. As dificuldades de toda
a saga para conseguir realizar seu principal desejo terminam por frustrá-lo anos
depois, quando o entorpecimento e a acomodação social enfim parece ser a única
saída para continuar vivendo sem traumas na cidade grande.
O livro Isaías Caminha assim, com tons autobiográficos, faz uma forte
crítica à sociedade hipócrita e preconceituosa da época, a começar pelo desnível
mental entre seu pai, um ilustre vigário, e sua mãe, uma simples e sofredora dona-
de-casa, passando em seguida para um questionamento vigoroso e ácido da política
e da imprensa contemporâneas, dadas no plano social-urbano da incipiente, mas
avassaladora, cidade moderna, o Rio de Janeiro.
Neste aspecto sobressai-se mais um dos nossos objetivos: provar a
importância desse autor para a formação de um Jornalismo compromissado com a
realidade objetiva e com a sociedade na qual esteve inserido. Ou seja: com a
prática de informar com um éthos e uma moral ideologicamente voltados para o
resgate da dignidade dos indivíduos e da própria sociedade, caracterizado pela
29
defesa das classes subalternas e marginais (as mais excluídas, que teimam em
subsistir nas urbes modernas até os dias atuais), através de uma escrita literária
metafórica, estética, mas, ao mesmo tempo, inquieta, viva, clara e direta que, na
imprensa, torna-se elemento tácito do processo de amadurecimento do Jornalismo
Moderno, ao longo do tempo e de sua permanente construção profissional e
deontológica até o presente.
O cenário tanto real (do autor) quanto fictício (da obra), isto é, o continnum
(tempo-espaço) válido para o presente estudo, portanto, é a cidade do Rio de
Janeiro do final do século XIX e início do século XX, onde e quando o escritor
viveu e a descreveu. E assim o fez não só como literato, mas também como
jornalista e amanuense, funcionário público de condição modesta, que fazia a
correspondência, copiava ou registrava dados oficiais em documentos, equivalente
aos posteriores escrevente, datilógrafo e ao atual digitador do serviço público.
Uma vida real e uma descrição ficcional, de Lima Barreto, por muitas vezes
ativa, narrativa e dissertativa, que reflete não somente a sua própria condição, mas
o caráter societário e a natureza de uma época de mudanças profundamente
marcantes até os tempos atuais. Produto e produtor, assim, com suas vidas e
vivências, timbres e nuanças, conteúdos e formas, desempenhando um papel ativo
e prepositivo em sua sociedade corrente e, por isso mesmo, com profundos reflexos
nos tempos subseqüentes.
Para tanto, utilizaremos os conceitos bakhtinianos de polifonia, dialogismo
e gêneros do discurso. Este último menos do que os dois primeiros. E aquele
primeiro – polifonia – apenas em seu aspecto tipificador, superficial, ou seja, em
parte, no que diz respeito à caracterização da voz enquanto ente social. E por um
30
motivo axiomático: estaremos aqui mais preocupados em “ouvir” o que tem a nos
dizer o autor e seus personagens, inclusive o próprio Lima Barreto enquanto ser
social de uma sociedade capitalista remodelada pelas novas tecnologias, do que
avaliar questões estilísticas ou mesmo elementos gramaticais e movimentos
literários – que, contudo, não serão de todo desprezados. Quais as imbricações
entre o Jornalismo e a Literatura praticadas pelo escritor Lima Barreto? O que tem
a nos dizer de sua época seus escritos jornalísticos e literários? Quais as condições
históricas que nos revelam sua obra e a sua vida? Que projeções fizeram para o
presente e o futuro as vozes de sua produção e as suas próprias venturas, aventuras
e desventuras pessoais e intelectuais?
Para responder a estas e outras questões precisamos antes de tudo conhecer
Lima Barreto como escritor e em seu próprio tempo. Buscaremos, assim,
inicialmente, entender o produtor intelectual e sua época. Depois explicitar a teoria
de Mikhail Mikhailovitch Bakhtin. Em seguida vamos definir quais os elementos
constitutivos dessa teoria que aqui vão prioritariamente nos interessar, inclusive no
aspecto em que defendia o próprio Bakhtin – o de darmos a nossa contribuição,
justapondo-se esta contribuição subsidiariamente à teoria dele para a construção e
consecução interpretativa da realidade objetiva através das várias linguagens,
línguas e demais práticas socialmente comunicativas, fato este que também é um
dos objetivos principais do presente capítulo.
Para tanto, contaremos com o suporte de outros importantes autores, como
Márcia Benetti (2007), Fabiana Galindo (2007), Robert Stam (2000), José Luiz
Fiorin (2006), Francisco de Assis Barbosa (1960), Alfredo Bosi (1996), Zélia-
Nolasco Freire (2005), Ivanaldo Santos (2006), Maria Isabel Edom Pires (2006),
31
Antonio Arnoni Prado (1980) entre outros. Para finalizar, então, analisaremos,
conclusivamente, tendo como base os conceitos bakhtinianos e o suporte desses
autores, a obra limo-barreteana Recordações do Escrivão Isaías Caminha.
2. Sociedade Brasileira, Literatura e Jornalismo na virada do século
A virada do século XIX para o XX é saudada em todo mundo ocidental,
especialmente na Europa, como um grande acontecimento. Mais pelas novidades e
promessas capitalistas redentoras do que pela passagem temporal do calendário. As
invenções e as novidades rumo à modernidade, ao bem-estar e à prosperidade em
praticamente todos os campos da vida humana, especialmente aqueles centrados
nas cidades, pareciam agora apontar para resoluções definitivas dos grandes
desafios que afligiam a humanidade durante todo o seu processo civilizatório,
desde o início dos tempos, em particular o histórico. O que passa a ocorrer então
pode ser sintetizado em duas expressões paradigmáticas: Fin de Siècle e Belle
Époque. Um mundo de novidades mercantis e de utilização prática prenunciava
uma mudança cultural profunda nos costumes que soterrariam de vez centênios de
escuridão e dor e levariam enfim todos a uma existência prolongada, agradável e
de grandes facilidades. Os veículos automotores, os transatlânticos, os aviões, o
telégrafo, o telefone, a iluminação elétrica, a água tratada e encanada, inúmeros
utensílios domésticos, a fotografia, o cinema, o rádio, arranha-céus e elevadores,
remédios de toda espécie e de eficácia cientificamente garantida contra vários
males, a imprensa e a indústria gráfica cada vez mais rápida e de qualidade sem
paralelo, reformas urbanas e a TV somam apenas alguns exemplos desse reino de
32
prosperidade e de promessas de uma realidade melhor, mais bela, eficiente e
aprazível. Se antes era o carvão, a máquina a vapor e o ferro que caracterizariam o
primeiro momento da Revolução Industrial, tendo como símbolo máximo o tear e a
locomotiva, agora ela se aprofundaria ainda mais, num segundo momento de seu
desenvolvimento, com a chegada da eletricidade e da velocidade na produção e na
superação das distâncias, tendo a lâmpada e o automóvel como os seus maiores
símbolos.
Por outro lado, no entanto, tais mudanças eram vistas também pelas
conseqüências socialmente funestas que traziam, principalmente no cenário
urbano, onde se davam talvez as maiores degradações humanas que se têm notícia.
Isso não passou desapercebido de vários pensadores, como Engels, que já em 1845
chegou a descrever sobre a triste e aviltante situação da classe trabalhadora na
Inglaterra. O que Engels vira e criticamente registrara naquele primeiro momento
(meados do século XVII), terminaria por se aprofundar, inclusive no Brasil, na
virada do século XIX e início do XX: o desemprego massivo; o inchaço das
cidades; a moradia degradante; o alastramento de doenças seculares e o surgimento
de outras novas, típicas da modernidade, como as psicossomáticas e as
psicossociais, decorrentes da solidão, dos medos (fobias), da violência urbana e da
desesperança (com particular destaque aqui para a loucura e o alcoolismo, das
quais Lima Barreto seria portador e vítima, o que terminaria por agravar o seu
quadro de discriminação e preconceito, fato sobre o qual falaremos de forma mais
detida subseqüencialmente); o aumento e refinamento da exploração social do
trabalhador em favor do capital; etc. Tudo isso, assim, condicionando sucessivas
crises políticas, econômicas e sociais características da época.
33
Tal processo contraditório do capitalismo, portanto, chega ao Brasil de
forma tardia. Suas influências, em todos os recônditos da vida política, social,
cultural e econômica são marcantes. O epicentro de tais acontecimentos passa a ser
a região Sudeste, mais especificamente o Rio de Janeiro e São Paulo, de tal
maneira que a cidade do RJ, então capital da República, no final do século XIX, e
especialmente no início do século XX, além da industrialização, passa por um
processo de saneamento (higienização) e embelezamento sem par, com as medidas
drásticas de “melhoramentos urbanos”, protagonizadas principalmente pelos
prefeitos Barata Ribeiro e Pereira Passos, conhecidas como “bota-abaixo”, ou “era
das demolições”, segundo Valladares (2000), que não se restringia somente a
intervenções urbanas como a abertura de ruas e o desmoronamento do casario
colonial, mas também, e de forma mais premente, na destruição de habitações
degradantes no centro e nos morros, como a derribada ocorrida contra o primeiro
grande cortiço do Rio que se tem notícia, o “Cabeça-de-Porco”, então situado no
Morro da Favela, hoje Morro da Providência – fatos que provavelmente serviram
de inspiração para o livro de Aluísio Azevedo, O Cortiço, conforme se pode ler
neste trecho que, por oportuno, destacamos: “Agora, na mesma rua, germinava
outro cortiço ali perto, o “Cabeça-de-Gato”...”. Na cidade de São Paulo, por sua
vez, igualmente se processavam intervenções infra-estruturais importantes para
prestar o suporte necessário à modernidade industrial então ascendente: a cidade
urbanizava-se rapidamente, sob as exigências e os recursos da elite do café, como a
busca de mão-de-obra mais barata e melhor preparada; a dos imigrantes. Ambas,
RJ e SP, assim, traziam a sensação nacional de sintonia com o progresso e a
evolução mundial. Nelas, a classe dominante lutava por manter seus privilégios e
34
ao mesmo tempo seguir à risca a moda européia através de um consumo exclusivo
e por vezes espetaculoso e exacerbado.
Com efeito, nasce, paradoxalmente, em particular nesse novo ambiente
citadino do Rio de Janeiro e de São Paulo, uma nova classe social, composta por
pessoas dotadas de conhecimentos, um certo capital financeiro e habilidades
específicas, necessárias ao funcionamento e aprofundamento do processo urbano,
com força suficiente para intervir conforme seus interesses pessoais e de grupos.
São os intelectuais e trabalhadores especializados, como advogados e jornalistas,
conforme também nos informa em suas reflexões Nolasco-Freire (2005, p.30):
“Surge nos centros urbanos uma classe média constituída de burocratas,
comerciantes e profissionais liberais que exige uma maior participação no processo
econômico e político”.
No campo, por outro lado, devido ao desenvolvimento capitalista agrícola –
prossegue a mesma autora, e também como já nos mostra uma ampla literatura
social a respeito – intensifica-se a imigração, em particular em SP, fazendo crescer
os setores operários, através de organizações sindicais, que unem brancos (muitos
destes vindos de países europeus em crise, como os italianos e alemães), mulatos e
negros (estes brasileiros natos, os hoje denominados afro-descendentes). Não
obstante, esses trabalhadores buscam nas cidades, em especial na capital paulista,
melhores condições de vida, aumentando o contingente populacional e os
problemas sócio-urbanos.
Os brasileiros pobres e ex-escravos representam uma minoria nas
fábricas e vagam pela cidade atrás de biscates: são carregadores,
carroceiros, vendedores ambulantes, lavadores de roupas (Costa,
2000, p. 37).
Esses brasileiros foram duas vezes excluídos: primeiro do
35
trabalho de assalariado nas indústrias; segundo são enxotados de
suas casas para os subúrbios. Isto por causa do processo de
urbanização que leva à especulação imobiliária e os força a se
mudarem (Nolasco-Freire, 2005, p. 31).
Não seria à toa, portanto, que justamente nessas cidades, e com mais
intensidade no Rio de Janeiro, então capital da República, com seus graves
desafios e cíclicas crises que perduram até os dias atuais, surjam os primeiros
conglomerados de habitações degradantes para uma população crescente e
paupérrima – o proletariado urbano. São os cortiços e as favelas, edificados
espontaneamente em espaços onde o capital não tinha tanto interesse, como os
morros e outros distantes e desprezíveis lugares suburbanos, conforme tão bem nos
mostra Nabil Bonduki (1998) em uma importante obra sobre os primórdios da
habitação social no Brasil.
Assim como a literatura especializada com seus dados oficiais e dentro de
critérios científicos nos faz compreender melhor e mais precisamente esse passado
aqui em questão, também assim nos mostra, embora de maneira supra-real, posto
ser ficção, aquilo que sem dúvida poderia vir a ser considerado – e assim o
consideramos para todos os efeitos da presente tese – um dos primeiros registros
históricos de uma identidade nacional, a Literatura Brasileira, através de obras
clássicas, como, retratando o ambiente citadino, O Cortiço e Casa de Pensão, de
Aluísio Azevedo, e Memórias de um Sargento de Milícia, de Manoel de Almeida;
e retratando o espaço rural Os Sertões, de Euclides da Cunha, e Cidades Mortas e
Negrinha, de Monteiro Lobato, dentre outros. Aqui, e somente para nos situarmos
melhor, e rapidamente, os especificaremos.
O Cortiço, por exemplo, é uma obra que nos retrata a luta pela
sobrevivência de uma classe subalterna sem condições existenciais, principalmente
36
a de moradia digna, e submetida a uma permanente conflituosidade com o capital
particular e especulativo do rentista urbano. No dizer de Bulhões (2007, p. 21):
“revela laços evidentes com o que se pode reconhecer como real empírico, uma vez
que se depreendem da narrativa desse romance de Aluísio Azevedo aspectos de
uma circunstância espacial e histórica comprovável, com sinais de evidência
histórica no Rio de Janeiro de fins do século XIX”.
Casa de Pensão, por sua vez, tem uma relação direta com as folhas dos
jornais e a realidade objetiva e urbana da época, trazendo, com efeito, referência à
classe social emergente de pessoas que se impunham pelo conhecimento e serviços
necessários que ofereciam, da qual falamos acima. Isso porque, segundo nos
informa minuciosamente em sua obra Marcelo Bulhões (2007, p. 72-82), “um
crime sangrento agitava as folhas dos principais jornais do Rio de Janeiro”, em
1876: foi quando o jovem estudante João Capistrano da Cunha, “moço rico e
recém-chegado do Paraná”, fora assassinado com cinco tiros pelo ex-colega
Antônio Alexandre, à Rua da Quitanda, centro da cidade, por volta das 10 horas da
manhã. Fazia meses que a querela entre os dois estudantes ocupava as páginas dos
jornais. Isso porque Capistrano depois de chegar ao Rio ficou hospedado na pensão
da mãe de Antônio Alexandre (quando foi por este captado à acomodação, que vira
nele um bom cliente, ou, no dizer da época, “um bom partido” para fomentar o
negócio), e, por conta da convivência que passara a ter na pensão, mantivera
relações sexuais com a irmã de Alexandre, Julia, que reclamara desse fato à mãe, a
dona da pensão, inclusive com a acusação de ter sido violentada, dando assim
apenas sua versão dos fatos. A questão foi levada à polícia por Capistrano que
exigia pela reparação pelos “danos morais causados” uma quantia de 50 contos. O
37
caso vai a julgamento em 18 de novembro de 1876 e, para o fervor da opinião
pública que torcia por João Capistrano, o estudante paranaense é absolvido e em
seguida é “carregado nos braços como heróis pelas ruas da cidade”. No dia
seguinte, contudo, inconformado, Antonio Alexandre se vingaria com os tiros na
Rua da Quitanda. Passado alguns anos, segundo Bulhões, a “Questão Capistrano”,
como ficou conhecido à época o caso, parecia esquecida. Mas, em 1883, continua
Bulhões, o escritor Aluísio Azevedo, “já conhecido pela polêmica em torno de um
romance de 1881, O Mulato, lançava no periódico Folha Nova uma história
espantosamente semelhante à do jovem João Capistrano”. O eixo do enredo e os
personagens estão numa mesma linha de correspondência: Amâncio é João
Capistrano, João Coqueiro é Antônio Alexandre, Madame Brizard é D. Júlia e
Amélia é a jovem Júlia. Aqui sobressai-se, portanto, além de uma apropriação
direta de uma realidade factual no âmbito do espaço urbano de uma época
determinada com suas características sócio-culturais, e a sua posterior re-
elaboração ficcional por força da criação imaginativa no plano supra-real, também
uma aproximação da linguagem jornalística com a linguagem da Literatura, o que
nos leva a crer em outras estreitezas intelectuais tendo como base a realidade
vivida pelos literatos de então, que, não raro, também eram jornalistas.
Este parece ser o caso do romance Memórias de um Sargento de Milícias,
do médico Manoel de Azevedo, também ambientado no plano urbano do Rio de
Janeiro: embora não haja até hoje nenhuma comprovação de que tenha uma relação
efetiva com determinados fatos objetivos da realidade citadina à qual se refere
(mesmo havendo a afirmação de que se baseia nas memórias verdadeiras do
português Antônio César Ramos, que teria sido “um sargento de milícias”), a obra
38
em determinados momentos nos fala da existência social de morros que eram
ocupados por uma população pobre, desempregada, sofrida e perseguida pela
polícia que, assim como hoje, subia morro acima para caçar bandidos e derrubar
casebres feitos com materiais de refugo. Ou seja, antes mesmo da comprovação
científica (sociológica) do nascimento da favela nos morros daquela cidade,
conforme nos mostra (com base nos jornais da época) importantes pesquisadores
sociais como Abreu (1994) e Valladares (2000), que identificam a gênese dos
primeiros núcleos favelares em fins do século XIX e início do XX, Manoel
Antônio de Almeida, que também era jornalista, já nos fala, em meados do século
XIX, data de publicação do romance (o autor viveu entre 1831 e 1861), de
construtos e relações sociais existentes no início do século XIX com características
do que hoje conhecemos por favela, contribuindo assim já àquela época da
publicação para a construção imaginária da cidade legal e ilegal, reforçando, por
conseguinte, aqui, a nossa tese de que a Literatura promove a construção (e por
vezes a própria reconstrução) identitária do real através do supra-real.
Os Sertões, de Euclides da Cunha, por sua vez, deslocando-nos da cidade
para o campo, segundo Proença (2000, p. 220), “retrata um grande contingente de
brasileiros que vivia na miséria e procurava solução para seus problemas na
religiosidade popular”. Euclides da Cunha, que originariamente publica seu
trabalho no jornal O Estado de São Paulo, reporta-se em sua obra à Guerra de
Canudos (1896-1897), ocorrida no sertão da Bahia, para onde fora mandado como
enviado especial (repórter) por aquele órgão de imprensa. O autor revela para uma
ascendente sociedade republicana que no “Brasil Moderno” havia no plano
campesino o pulsar de vida degradada e esquecida do aparato legal e da atenção
39
estatal, e que justamente por isso buscava na força do idealismo ascético a reação
necessária para a satisfação de suas necessidades existenciais de toda ordem. A
atitude de Euclides da Cunha, em correspondência aos anseios imediatos do jornal,
ajuda a inaugurar, assim, na história do Jornalismo brasileiro, e de forma mais
decisiva do que outros possíveis casos anteriores, um traço essencial do
contemporâneo – a necessidade da presença do jornalista no palco dos
acontecimentos mais importantes da história, vivendo diretamente os fatos,
testemunhando as ações conflituosas e ouvindo as vozes dos que titulam gestos
e/ou daqueles que sofrem suas conseqüências; enfim, revelando direto do centro
das ocorrências para o público mais amplo possível todas as possíveis faces dos
acontecimentos históricos mais significativos de uma nação, de um povo. Trata-se
também de uma importante contribuição dada – senão a mais importante – para o
nascimento nacional da chamada grande reportagem, este como gênero jornalístico
contemporâneo, com ecos a ocorrer, como sua característica principal, somente nas
metrópoles. Da mesma forma, ainda relativamente ao campo, obras como Cidade
Morta e Negrinha, de Monteiro Lobato, descrevem “aquela população subnutrida,
socialmente marginalizada, sem acesso à cultura, acometida de toda a sorte de
doenças endêmicas”, e tratam também de “temas como o preconceito racial e a
situação do negro após a Abolição”, conforme Nolasco-Freire (2005, p.87). Ambos
os escritores desta forma manteriam relações criativas e de produção com Lima
Barreto, direta ou indiretamente, conhecendo-o pessoalmente ou não, concordando
acerca da realidade social ou sendo diametralmente opostos, mas à mesma época
todos protagonizando um Jornalismo e uma Literatura de militância, de denúncia e
de contestação, cada qual ao seu modo. Lima Barreto, por exemplo, nesse aspecto,
foi essencialmente urbano, conforme veremos a seguir.
40
3. Lima Barreto e o seu tempo
Afonso Henriques de Lima Barreto nasceu mulato e humilde no dia 13 de
maio de 1881. Exatamente sete anos depois, no dia 13 de maio de 1888, a Princesa
do Brasil, primeira chefe de Estado da América Latina, Isabel Cristina Leopoldina
de Bragança, filha do Imperador D. Pedro II, assinava a Lei Áurea, como ficou
mais conhecida a Lei nº 3.353, estabelecendo a Abolição da Escravatura no país.
Como presente, o pai do futuro escritor, João Henriques de Lima Barreto, também
mulato, “um quase negro”, figura sofrida e justamente por isso também marcante
em sua formação e desígnios, o levou ao Paço Imperial para assistir aos festejos
comemorativos. Desse momento se recordaria depois da imagem da princesa vindo
à janela saudar o povo – “loura, muito loura, maternal, com um olhar doce e
apiedado”, segundo Prado (1980, p. 96) – bem como, influenciado pelo que
representava aquele acontecimento histórico, perseguiria um objetivo sociológico
como escritor que jamais iria cumprir: escrever sobre o passado e o presente
histórico dos negros no Brasil, conforme ele mesmo, aos vinte e dois anos, relatou:
“No futuro, escreverei a História da Escravidão Negra no Brasil e sua influência na
nossa nacionalidade” (BARRETO apud NOLASCO-FREIRE, p. 47).
A decisão imperial, no entanto, não livrou Afonso Henriques de Lima
Barreto da pobreza nem do preconceito, dois desafios que iriam persegui-lo
cruelmente até o fim de seus dias. Mas, se sofreu a dor provocada pelas
dificuldades financeiras e pela intolerância, não foi, contudo, condescendente com
essa realidade. Ao contrário: ao seu modo, tornou-se um resistente. De tal forma
41
que morre nove meses depois da realização da Semana de Arte Moderna, no dia 1º
de novembro de 1922, quando o mundo em sua volta passara por transformações
importantes para as quais, com a sua arte, ajudara a construir.
O ano do nascimento do escritor seria também marcante para a Literatura
Brasileira. Naquele 1881, no mesmo Rio de Janeiro, o também mulato Machado de
Assis publicaria Memórias Póstumas de Brás Cubas, e Aluísio de Azevedo
publicaria O Mulato. Ambas as obras, como os próprios títulos já encerram, seriam
marcos de uma nova época literária, o Realismo/Naturalismo, de cujos
prosseguimentos em transição para a Modernidade no seio urbano Lima Barreto
viria a ser o seu maior representante, a começar exatamente com a publicação do
livro aqui escolhido para análise, Recordações do Escrivão Isaias Caminha.
Outro acontecimento significativo de época e que iria marcar para sempre a
vida e a arte do escritor, pelas transformações políticas, econômicas e sociais que
representariam daí por diante, foi a Proclamação da República. Realizada no ano
seguinte à promulgação da Lei Áurea, a instalação do regime republicano, ocorrida
mais exatamente no dia 15 de novembro de 1889, e executada impositivamente
através de um golpe militar, trouxe, como novo estatuto de governo e sistema
social, mudanças importantes em todos os campos da sociedade brasileira. As
sucessivas crises daí decorrentes revelam um país em transição, mas sem grandes
avanços, que buscava inserir-se no sistema capitalista mundial. Uma luta externa
que era ao mesmo tempo auto-excludente na maioria dos setores societários de seu
domínio interno – elementos contraditórios que aguçaram uma permanente e
crescente crítica social de Lima Barreto, que assim tornar-se-ia mais monarquista
que propriamente republicano. Seria um crítico militante e intransigente em relação
42
à chamada Primeira República, ou República Velha, que viveu até o início dos
anos 1920, denunciando o descaso dos governos e, não sem algum equívoco,
questões sociais importantes.
As lutas, tensões e conflitos, próprios da crise capitalista nacional ocorridos
no período que vai do final do século XIX e início do século XX, cuja bandeira
ideológica dos grupos oligárquicos estaduais e segmentos militares, cada vez mais
fortes e atrelados ao poder, se revestia da idéia de progresso e modernidade, eram
questionados e até combatidos duramente pelo escritor Lima Barreto,
condicionando-o assim a uma obra representativa dele e do período. Recordações
do Escrivão Isaias Caminha, lançado originalmente em 1909, possui, assim, em
grande medida, particularmente nos planos urbano e jornalístico, estas
características.
Lima Barreto veio ao mundo, como se disse, no final do Império e ao nascer
da República. O seu pai, João Henriques de Lima Barreto, era tipógrafo, e, sua
mãe, Amália Augusta Barreto, professora primária, tendo dirigido, em seu próprio
lar, para ajudar na manutenção da casa, um pequeno colégio para meninas, o Santa
Rosa. Aos sete anos, porém, fica órfão da mãe, que morre de tuberculose depois de
ter ficado com a saúde já abalada pelo primeiro parto. O pai, que já trabalhara em
publicações como Jornal do Commercio e A Reforma, e que na esperança de
recuperar a saúde da esposa torna a vida quase itinerante, desorganizada, com a
Proclamação da República é demitido da Imprensa Nacional por ter participado do
movimento da Resistência Liberal (dirigia, à noite, as oficinas da Tribuna Liberal)
e por ter sido indicado para o emprego pelo senador monárquico Affonso Celso de
Assis Figueiredo (1836-1912), o Visconde de Ouro Preto – homenagem a quem o
43
pai de Lima Barreto havia lhe colocado o prenome Afonso. “Da tal história da
República só me lembro eu as patrulhas andavam, nas ruas, armadas de carabina e
meu pai foi, alguns dias depois, demitido do lugar que tinha” – lamentou tempos
depois Lima Barreto, segundo Barbosa (1960, p. 8).
Lima Barreto, contudo, segundo Prado (1980), demonstra ser desde cedo
um aluno esforçado e passa com brilho pelo curso primário e pelos exames da
Instrução Pública, fato que o credenciaria a fazer os primeiros preparatórios no
Liceu Popular Niteroiense, instituição de ensino freqüentada pela alta sociedade.
De acordo com Alfredo Bosi (1996, p. 316), porém, depois desses episódios (a
morte da mãe, a demissão do pai e a situação precária da família), vão, pai e filho,
morar na Ilha do Governador, em cuja Colônia de Alienados o ex-tipógrafo
trabalhará como almoxarife. “Assim, o menino só vê a família aos sábados.
Deprimido e solitário, com a vida dividida entre o internato e o asilo de loucos,
Lima Barreto, com 15 anos, chega a pensar em suicídio” (PRADO, 1980, p. 3).
Graças ainda à proteção de seu padrinho, o Visconde de Ouro Preto, Lima
Barreto consegue, segundo Bosi (1996, p. 316), terminar o curso secundário e
matricular-se na Escola Politécnica, em 1897, quando, de acordo com Prado (1980,
p.3), passa “então a viver numa pensão da rua do Ouvir”, centro boêmio do Rio de
Janeiro. Com o Visconde, no entanto, não tem um bom relacionamento. Logo no
primeiro contato, segundo Nolasco-Freire (2005, p. 48), “Lima Barreto sente forte
antipatia pelo padrinho e isto o leva a romper definitivamente um relacionamento
que mal havia começado”, pois teria havido aspereza e pouco-caso por parte do
Visconde, que também chega a destinar-lhe 10 mil-réis como pagamento pelo
desapego emocional. Tais fatos iriam se refletir em personagens e enredos de
44
algumas de suas obras de ficção e de memórias. Em Triste Fim de Policarpo
Quaresma o personagem principal, Policarpo Quaresma, é o padrinho de Olga, por
quem devota os mais sinceros carinhos e atenção; em M. J. Gonzaga de Sá criou a
figura de um padrinho, Gonzaga de Sá, que investe com denodo e desvelo na
educação do afilhado Aleixo Manuel; e em Diário Íntimo chega a dizer: “E os
10$000 do tal Visconde! Idiota. Os protetores são os maiores tiranos” (BARRETO,
1956, apud NOLASCO-FEIRE, 2005, p. 48).
O escritor, porém, não freqüentaria com assiduidade a Escola Politécnica.
Chega a abandoná-la definitivamente em 1903. Nesse mesmo ano, no dia 23 de
outubro, então com 22 anos de idade, é nomeado, por concurso, para o cargo de
amanuense na Secretaria da Guerra. Entrementes, seu pai enlouquece e é recolhido
à Colônia de Alienados onde ele próprio trabalhava. Isso afeta sobremaneira a vida
de Lima Barreto, que, com o mísero salário, passa a cuidar do pai demente e a
arcar com as despesas da casa, além de alimentar e vestir oito pessoas: três irmãos,
a irmã Prisciliana, os três filhos desta e o Sr. Manuel de Oliveira, um preto velho
agregado da família. Lima Barreto divide seu tempo também com artistas,
escritores, jornalistas, freqüenta bibliotecas e cafés, experimentando intensamente
também os meandros da vida urbana, até entregar-se completamente, após saber da
loucura do pai – doença da qual também seria vítima –, ao alcoolismo. Segundo
Bosi (1996, p. 316), é nesse tempo em que vira funcionário que passa a ler
avidamente a Literatura de ficção européia do século XIX e desta forma se
familiariza com a melhor tradição realista e social, além de ter sido um dos “raros
intelectuais brasileiros que conheceram, na época, os grandes romancistas russos”.
Romancistas que se juntavam à revolta contra as injustiças sociais e os
45
preconceitos dos quais se sabiam vítimas. Assim, conhece as obras de Fiódor
Dostoievski (1821-1881), cuja vida guardaria incríveis semelhanças com a de Lima
Barreto (a mãe do escritor russo morreu quando ele era ainda muito jovem e seu
pai, o médico Mikhail Dostoievski, foi assassinato, fato que exerceu enorme
influência sobre o futuro do jovem autor que, epiléptico, teve a sua primeira crise
depois de saber do assassinato do pai) e cuja obra viria ser posteriormente objeto
dos estudos e a principal base para o pensamento de Mikhail Bakhtin, teórico que,
como já se disse, adotaremos aqui para a análise da obra do escritor brasileiro.
É ainda por esse período que Lima Barreto, para aumentar a renda e
exprimir suas idéias, passa a colaborar, como jornalista, em praticamente todos os
jornais do Rio de Janeiro, o que lhe daria também uma posição privilegiada para
acompanhar o desenvolvimento da urbe moderna, os problemas enfrentados pela
população e as soluções apresentadas pelos gestores públicos. Sobre este assunto,
nos fala Francisco de Assis Barbosa (1995, p. 16), um dos mais abalizados
biógrafos do escritor carioca:
Quanto à modernização do Rio de Janeiro, Lima Barreto sempre
se colocou como uma voz solitária em posição radicalmente
contra a forma como se processava. Para ele, os homens ricos, os
agentes imobiliários, os pseudo-urbanistas, que se empenhavam
em loteamentos para valorizar e especular os terrenos pantanosos
de Copacabana, Ipanema e Leblon, não estavam preocupados
com a natureza. Só se pensava mesmo em ganhar dinheiro, à
custa dos favores da Prefeitura. (...) O escritor achava absurdo
todo aquele sonho de grandeza que vinha acentuar ainda mais o
desequilíbrio entre o litoral e o sertão, a área metropolitana
sempre beneficiada e o interior desamparado, o crescimento
desmedido dos centros urbanos e o abandono sistemático das
populações rurais. E atacou sem rebuços, nos seus artigos, como
se fosse um cientista social, a “megalomania dos melhoramentos
apressados, dos palácios e das avenidas”, apontando-lhes as
conseqüências inevitáveis que já se tornavam evidentes com as
migrações internas, o deslocamento em massa de camponeses
para os grandes centros metropolitanos, à procura de trabalho.
46
Mas não só com artigos de opinião – um dos trabalhos intelectuais nascidos
nas redações que viria se transformar num dos gêneros do Jornalismo Moderno –,
Lima Barreto aborda a questão urbana então vivenciada. No jornal Correio da
Manhã, por exemplo, produz uma série de matérias, como repórter, sobre as
transformações urbanas feitas a partir das intervenções urbanísticas protagonizadas
pelo prefeito Pereira Passos, mas com uma pintada do fantástico, própria do
escritor, aproximando assim, tendo a cidade como cenário, as linguagens da
Literatura e a do Jornalismo. Essas reportagens de Lima Barreto, agora então com
24 anos de idade, foram sobre as escavações feitas pela prefeitura no Morro do
Castelo, “espécie de marco inicial da cidade”, segundo Bulhões (2007, p. 88), e
que, de acordo com Nolasco-Freire (2005, p. 50), foram publicadas entre 28 de
abril e 3 de junho de 1905 e vinham assim anunciadas: “farta messe de assunto
para os amadores da literatura fantástica e para os megalômanos, candidatos a um
aposento na Praia das Saudades”. Detalhe: a Praia das Saudades era o lugar onde
ficava o hospício que Lima Barreto conhecia tão bem. As reportagens versavam
sobre as obras que estavam sendo executadas, reportando-se a entrevistas com
engenheiros e possivelmente outros agentes públicos, mas também sobre a aura de
mistério que envolvia o Morro do Castelo, onde se acreditava existir nos
subterrâneos grandes tesouros escondidos. Dentre esses tesouros, de acordo com o
texto especulativo, segundo Nolasco-Freire (2005, p. 51), haveria imagens em ouro
e em tamanho natural de Santo Inácio de Loiola, São Sebastião, São José e da
Virgem, deixados pelos padres da Companhia de Jesus quando foram expulsos do
Brasil pelo Marquês de Pombal em 1759.
47
Acerca dessa relação entre o trabalho preciso e correspondente ao real do
jornalista Lima Barreto – levando dados, opiniões e revelando fatos próximos,
verdadeiros e significativos para a população em geral – mesclado com o trabalho
criativo e supra-real do escritor Lima Barreto – que chega aprofundar a curiosidade
do público em suas “reportagens” com uma movimentada, trágica e passional
história do comissário francês Jean-François Duclerc, que comanda uma destemida
invasão pirata à cidade de São Sebastião (atual RJ), conquista a cidade e a
condessa italiana Alda, mas é apunhalado pelas costas, junto com a amada, pelo
jesuíta João de Jouquières, com quem disputava o amor da bela jovem, tendo em
seguida o assassino cometido suicídio, segundo relatos de “preciosos códices” do
século XVIII, manuscritos em italiano e que teriam sido encontrados, porém
mantidos em segredo, nas galerias então reviradas pela prefeitura –, tendo as
transformações urbanas da cidade e especificamente as escavações no Morro do
Castelo do Rio de Janeiro como objetos primordiais de suas reportagens, assim
analisa Marcelo Bulhões (2007, p. 88-96):
Em 1905 o Rio de Janeiro vivia os tempos da grande remodelação
urbanística comandada pelo prefeito Pereira Passos, que
transformou drasticamente a fisionomia da cidade: abriu a
Avenida Central, destruiu cortiços coloniais, expulsou populações
pobres, abriu palacetes e deu um certo ar de Paris à nossa precária
e escaldante capital da República. A cidade foi escavada,
perfurada, mexida por fora e por dentro, o que deixou um saldo
de entulho, caco e poeira. (...) A máxima jornalística, segundo a
qual o lugar do repórter é a rua, funciona como elemento
estrutural da narrativa de O subterrâneo do Morro do Castelo,
pois as reportagens narram o percurso transitivo do repórter em
busca das revelações decisivas. (...) Estranhamente, o repórter
Lima Barreto lança um produto de ficção. E, ao forjá-lo, o
escritor promoveu a passagem do universo jornalístico para o
romanesco, por meio de uma trapaça que consiste em se valer do
efeito de credibilidade jornalística para mergulhar, sem freios, no
território da aventura fantasiosa. Lima Barreto atua, pois, como
um repórter ilusionista, um anti-repórter. (...) Lima Barreto
transfigurou um material histórico. Duclerc, por exemplo, foi
mesmo um pirata francês que invadiu o Rio de Janeiro em 1710.
48
(...) Mas não se imagine que o lado externo do Morro desaparece
da mira do repórter Lima Barreto uma vez brotada a intriga
folhetinesca. A inacreditável trama que envolve pirata, jesuíta e
condessa é intercalada com abordagens noticiosas que
comunicam o mundo externo atual do Morro do Castelo. Há um
movimento de luz e sombras, interior e exterior, presente e
passado... tais são os níveis que se alimentam um do outro, e o
suspense se atualiza em ambos.
Mas fazer o contrário disso, ou seja, inserir em seus romances, crônicas,
contos, memórias e epistolografia, elementos da realidade social e urbana do Rio
de Janeiro, numa evidente utilização de recursos da reportagem jornalística, o que
sem dúvida nos traz uma certa precisão historiográfica, também pode ser
encontrado em várias obras do escritor Lima Barreto, com aquela indisfarçável
tendência para a crítica sociológica e uma conseqüente denúncia social contra os
governos, a classe dominante e em favor dos menos favorecidos, dos
discriminados, dos suburbanos. Segundo Bulhões (2007, p. 97-98), “Clara dos
Anjos, por exemplo, romance publicado postumamente em folhetim entre 1923 e
1924, dispõe de capítulos que inserem quadros da vida urbana, ou melhor,
suburbana, que funcionam como autênticas retratações desse gênero jornalístico [a
reportagem]”. Acrescentaríamos aqui, dentre outras, publicações como Vida
Urbana, Feiras e Mafuás, Os Bruzundangas, Bagatelas, Marginália, Diário
Íntimo, Cemitério dos Vivos e aquela obra que será aqui ao final analisada,
Recordações do Escrivão Isaias Caminha (1909).
Talvez por isso Lima Barreto seja considerado um autor quase representante
do Realismo, como o foi um dos precursores na Rússia aquele a quem ele tanto
admirava, Dostoievski, e também quase Naturalista, como o foi Zola e Flaubert na
França, justamente por ambas terem a realidade objetiva e nela o ser humano em
atividade social como algo em comum – e exatamente por isso as duas terem sido
49
tão importantes para o desenvolvimento da História do Jornalismo –, embora as
aplicações sobre tal base, a realidade societária, notadamente urbana, se dessem
nelas de modo diferenciado. Daí, talvez, tenhamos obras brasileiras, que marcam o
início desses dois movimentos literários, tendo em comum a vida citadina através
da crítica social e da retratação de um existencial desafiador (psicológico) e de uma
existência insalubre (suburbana), como, respectivamente, Memórias Póstumas de
Brás Cubas, de Machado de Assis, e O Cortiço, de Aluísio de Azevedo. Mas, dado
o seu próprio tempo e sua obra, afere-se ser Lima Barreto na verdade um Pré-
Modernista, fazendo assim o que poderia se chamar de “uma autêntica literatura
brasileira”, conforme afirma Arnoni Prado (1980, p. 5), pois voltava-se, em sua
essência, para o cotidiano e para o povo, através de uma linguagem simples e
comunicativa – como viria se aperfeiçoando o Jornalismo Moderno até os dias de
hoje. Ou seja, produziu uma literatura memorialística e sociológica que se
inclinava fundamentalmente para os problemas existenciais do indivíduo no
interior da sociedade então existente, assim como foram, à mesma época,
evidentemente guardadas as devidas características pessoais e estilísticas, os
escritores Monteiro Lobato, Graça Aranha e principalmente Euclides da Cunha.
Sobre essas possíveis sintonias (e também antinomias) em relação a Lima
Barreto e Euclides da Cunha, por exemplo, Nicolau Sevcenko (1997) desenvolve
um belíssimo e definidor trabalho, no qual mostra que, “apesar de viverem na
mesma cidade e circularem nos seus poucos núcleos literários”, onde
“provavelmente nunca se defrontaram” e “certamente jamais trocaram uma
palavra”, patentearam-se, contudo, entre vidas e obras, “paralelismos e similitudes
que chegaram ao rigor do pormenor”.
50
Após mostrar algumas semelhanças de vida (ambos nasceram no Rio de
Janeiro; eram mestiços – Euclides apresentava traços indígenas; foram órfãos
desde cedo; estudaram na Politécnica; saíram desta escola antes de terminar o
curso; possuíam um “credo inabalável” num humanitarismo cosmopolita; tiveram
uma formação positivista; acompanharam de maneira “próxima e comprometida” a
expansão do comtismo no Brasil, tendo Euclides sido aluno de Benjamin Constant
e Barreto freqüentador da Igreja Positivista do Brasil), e depois de mostrar algumas
oposições fundamentais em relação à produção intelectual dos dois escritores
(“suas obras se contrapõem em sentido simetricamente inverso”), assim também
como algumas diferenças sobre o modo de viver e encarar alguns desafios culturais
de seu tempo, Sevcenko nos fala, dentre outros, de um importante ponto em
comum entre ambos que aqui, dado o seu caráter político, nos interessa
sobremaneira. Trata-se da abominação que tinham pelo cosmopolitanismo tal como
era interpretado pela elite social da capital da República, e que Lima Barreto
chamava de “burguesia panurgiana”. Uma interpretação caracterizada como “pura
e incondicional assimilação de todos os usos, costumes e idéias” em prática e
oriundas da Europa. Para ambos, diz Sevcenko, “somente a descoberta e o
desenvolvimento de uma originalidade nacional daria condições ao país de
compartilhar em igualdade de condições de um regime de equiparação universal
das sociedades, envolvendo influências e assimilações recíprocas”. Continua
Sevcenko (1997, p. 122-3) ainda sobre este ponto em comum entre os dois
escritores, a repulsa à vida avassaladora e inescrupulosa das elites em detrimento
das classes subalternas:
Assim, vemo-los revesarem-se em suas críticas abertas ao
cosmopolitanismo e ao esnobismo arrivista da rua do Ouvidor, ou
à agitação destrutiva e inconseqüente do jacobinismo e do
51
florianismo no rio de Janeiro. Ouvimo-lhes a declaração ardorosa
de entusiasmo pelos mesmos autores russos, vanguarda
internacional do humanitarismo na passagem do século. Mas,
sobretudo, revelava-se nas suas obras mesmo empenho em forçar
as elites a executar um meio giro sobre seus próprios pés e voltar
o seu olhar do Atlântico para o interior da nação, quer que seja
para o sertão, para o subúrbio ou para o seu semelhante nativo,
mas de qualquer forma para o Brasil e não para a Europa.
Desta maneira, acrescentaríamos, não seria sem motivo que ambos os
escritores se encontrassem também no mesmo espaço-tempo em duas outras
categorias societárias, a polis e a diurnalle, estas enquanto instâncias culturais
capitalistas e, por conseguinte, dotadas de natureza sociológica (e todos os demais
conceitos daí decorrentes, como: city, citizen, trabalho, jornada diária, jornalismo
diário, crônicas, cronistas, jornalistas, escritores), que caracterizariam a
importância do objeto comum entre ambos no que diz respeito à cidade e à prática
cotidiana do ato de escrever, ou seja, constantes sociais tanto das reflexivas
condições da época como da vivência diária, que de forma por vezes invariável se
impregnavam nas folhas imprensas de todas as obras jornalísticas e literárias
desses dois intelectuais brasileiros. O romance Os Sertões traria assim não somente
uma denúncia (invariabilidade na prática) de uma situação existencial precária,
messiânica, carente de uma compreensão maior pela informação dos citadinos
envoltos na rotina da polis central, e de certa forma uma cobrança de atitudes
propositivas, como deveria ser de seu ofício, por parte dos gestores do poder
capital também centrado nessa mesma polis moderna, mas, e justamente por isso,
se caracterizaria como parte de um ethos, capitalista, ou seja, de um gênero típico
de um dos braços mais poderosos e lucrativos da indústria gráfica moderna e então
nascente, o Jornalismo Impresso. Compreende-se assim melhor o porquê de
Euclides da Cunha ter sido enviado para o longínquo interior da Bahia pelo jornal
O Estado de São Paulo para acompanhar a saga e a déblâcle de Antônio
52
Conselheiro num ínfimo e remoto arraial, Canudos, enfim arruinada pelas tropas
federais, como também um pouco mais a razão pretensamente redentora que
inspirava um suposto santo e seus famintos e flagelados seguidores que
perambularam por uma região seca e desvalida, e que também foram enfim mortos,
assassinados. Não seria à toa, portanto, que os escritos, como produto, de um
“enviado especial”, repórter-escritor, fossem publicados como reportagem
mercadológica pelo OESP, posteriormente transformado em livro e assim ajudado
a reconfigurar, pela força do lucro midiático, tanto a mentalidade histórica de um
povo quanto o seu próprio destino. Em suma: havia em Euclides da Cunha muito
da essência do Jornalismo Moderno, este enquanto missão, assim como igualmente
também havia em Lima Barreto, bastando para isso ver, no caso deste, o
sentimento de brasilidade e realidade social em todas suas prosas e idéias (chegou
a ser um defensor do maximalismo). Lima Barreto, assim,
ao mesmo tempo em que confere audição, possibilita voz
amplificada aos “desprovidos”, por intermédio de um exercício
lingüístico completamente coerente e concernente ao fim a que se
destina: pousa-a em solo de ruas e vielas dos subúrbios cariocas,
dando conhecimento do Brasil, um Brasil abafado pelo julgo do
interesse e do poder (ROSSONI, 2005).
Se era um ativista literário, um propugnador social, um jornalista
questionador e propositivo, Lima Barreto também era em si, no domínio de suas
atividades psíquicas, e em sua existência, no campo de suas realidades social e
material, um representante inferior dos rebelados. Por isso mesmo sentia
profundamente a dor da pobreza, da degradação pública, do preconceito e da
perseguição. Não consta que tenha se casado, que tenha tido um amor romântico
ou mesmo fugaz. Foi-lhe impingido pelo jornal mais poderoso da época a
decretação de silêncio em suas páginas quanto à publicação de escritos ou de
53
qualquer referência àquela figura incômoda (proibição que duraria meio século, ou
seja, vigorou até mesmo depois de sua morte), fato que fez Lima Barreto à certa
altura desabafar: “A única crítica que me aborrece é a do silêncio”. A crítica
escrita, contudo, representando a elite social e econômica da época, salvo
raríssimas exceções, também não poupou em preconceito e perseguição contra
Lima Barreto, como a feita, por exemplo, no jornal A Notícia, pelo literato
Medeiros de Albuquerque (pseudônimo de J. Santos), em 15 de dezembro de 1909,
ano de publicação do livro Recordações do Escrivão Isaías Caminha. Já no
começo, Medeiros de Albuquerque chama o livro de “venenoso, venenosíssimo” e
afirma que não possui “o senhor Lima Barreto o mínimo de conhecimento pessoal
ou literário”. Esta crítica Medeiros de Albuquerque levou a pesquisadora limo-
barreteana Alice Áurea Penteado Martha (2008, p. 3), após uma interessante
análise sobre leitura e percepção estética da crítica de 1909 acerca da obra
Recordações do Escrivão Isaías Caminha, a concluir que:
Ao enfatizar semelhante desconhecimento, Medeiros e
Albuquerque parece confirmar a discriminação social e literária a
que era submetido o escritor carioca em seu campo intelectual.
Em outras palavras, pode estar dizendo: quem é Lima Barreto, em
termos literários e posição social, para levantar a voz em direção
à elite intelectual do país? A questão se torna mais significativa
quando se sabe que Medeiros e Albuquerque era divulgador da
idéia, bastante comum à época, que os negros não tinham [têm]
nenhuma capacidade literária.
Tomado pelo alcoolismo, após anos, desde a infância, sofrendo a dor da
discriminação por ser mulato, e passando pelo sofrimento dos desprovidos por ser
pobre, além de graves desgostos familiares, sendo o pior deles o fato de ter que
enfrentar a doença e ajudar ao pai, que ficara louco, Lima Barreto andava roto,
descuidado com a aparência, e dormia bêbado em lugares inusitados, como o vagão
de um trem, onde se encontrava “cambaleante, sujo, cheirando a cachaça (...)
54
espichando-se no banco e caindo num torpor barulhento, entre arrotos e uivos”, à
frente de todos os passageiros que “olhavam com desdém aquele mulato triste”, ou
ainda no chão de uma livraria, sobre livros, retirados da estante por
compadecimento de um amigo em comum, o proprietário Schettino, que ficava, ao
ver a cena, “com os olhos rasos d’água” e “eu com um nó na garganta”, como
relembra consternado o “enamorado das ruas”, conforme chamou o poeta Vinícius
de Moraes ao pintor da vanguarda modernista Di Cavalcanti (1997, p. 434-436),
porque, assim como Lima Barreto, Di retratou elementos da realidade citadina
carioca, como favelas, operários, soldados, marinheiros, festas populares. O
alcoolismo de Lima Barreto, ademais, minava até mesmo suas amizades mais
sinceras. “Certa vez, seu amigo Monteiro Lobato, que havia ido ao Rio
especialmente para visitá-lo, encontra-o bêbado numa mesa de bar. Constrangido,
evita apresentar-se, para não fazê-lo sofrer”, diz Prado (1980, p. 5).
O pior, para Lima Barreto, também no campo existencial, contudo, ainda
estava por vir – mesmo mantendo no campo intelectual uma intensa produção
jornalística e literária. Um ano após fundar a Revista Floreal, em 1907, e depois de
ter colaborado com o jornal Correio da Manhã, em 1905, lança, em 1909,
Recordações do Escrivão Isaías Caminha, cuja publicação, inspirada muito
provavelmente no funcionamento e em personagens reais do Correio da Manhã,
deu-se somente na Europa, com a ajuda de um dileto amigo, Noronha Santos, com
quem fundara, naquele mesmo ano, o panfleto O Papão, para combater a
candidatura de Hermes da Fonseca à presidência da República. A publicação de
Recordações ocorre em Lisboa justamente porque, em decorrência de seus escritos
questionadores e relacionados à realidade objetiva – ou seja, por fazer "não apenas
55
o retrato implacável das mazelas da imprensa mas, também, uma crítica radical da
hipocrisia e do preconceito reinantes na sociedade brasileira" (NOLASCO-
FREIRE, 2005, p. 56) –, conseguiu amealhar alguns inimigos ocultos, que “agiam
de forma camuflada, velada, sem rosto” e que, “não podendo atingir o homem,
atingiam o intelectual”, segundo Nolasco-Freire (2005, p. 52). Em 1911, conforme
nos revela Prado (1980, p. 3-5), lança, em folhetins, no Jornal do Commercio, o
romance Triste Fim de Policarpo Quaresma, também aproximando Jornalismo e
Literatura via retratação de um personagem individual que, assim como em
Recordações, luta contra o status quo então vigente, vergastando costumes e, o
autor, utilizando-se de uma linguagem despojada, questionadora, própria da
imprensa, revela todo um inconformismo. Colabora depois com vários outros
jornais, como a Gazeta da Tarde, Gazeta de Notícias e O Correio da Noite; e
revistas, como Careta; publica relatos contundentes como O Chamisco, As
Aventuras do Dr. Bogóloff e Entra Senhor; e, em 1912, publica mais um romance,
Numa e a Ninfa, dentre outras produções e participações, inclusive político-
literárias. Alcança por essa fase de intenso trabalho muita popularidade, mas nada
disso evitou-lhe, como se disse, o pior. O escritor passa a ter crises de loucura,
assim como o pai, e por duas vezes chega a ser internado no Hospital Nacional dos
Alienados. A primeira, justamente dois anos após a publicação de Numa e a Ninfa,
em 1914. “Ao sair, completamente dominado pelo álcool – que nunca deixara por
completo – passa a perambular pelas ruas”, afirma Prado (1980, p. 3-5). Em 1916,
pára de trabalhar para fazer o tratamento de uma anemia profunda. Mas, em
seguida, novamente volta a produzir, fase em que publica, em 1917, o Manifesto
Maximalista, época da Revolução Russa e da ocorrência em São Paulo de uma das
maiores greves da história operária brasileira, e mais um romance, Os
56
Bruzundangas, em que traça “um perfil tragicômico das mazelas nacionais”. No
ano seguinte, 1918, porém, é aposentado de seu cargo na Secretaria da Guerra por
ser considerado “inválido para o serviço público”, e recebe, pouco tempo depois, o
diagnóstico de ser portador de “epilepsia tóxica”, sendo internado para tratamento.
Em 1919, ano de publicação de mais um romance, Vida e Morte de M. J. Gonzaga
de Sá, considerado por muitos como o seu melhor romance – “a mais curiosa
síntese de documentário e ideologia que conheceu o romance brasileiro antes do
Modernismo”, diz Alfredo Bosi (1996, p. 320) – é internado, no Natal daquele ano,
pela segunda vez no hospício da Praia Vermelha, como também era conhecido o
Hospital Nacional dos Alienados, de onde só sai em 2 de fevereiro de 1920.
É nesse confinamento que escreve sobre o que vê, o que sente, no que
acredita, de maneira tão rica e pungente, nos aspectos testemunhal, criativo e
ideológico, que após sua morte esses escritos foram reunidos e transformados no
livro Cemitério dos Vivos. Consta dessa obra – que em alguns momentos lembra
Recordações da Casa dos Mortos, de Dostoievski, "pela sinceridade ardente do
documento humano", como diz Bosi (1996, p. 322) – as suas memórias do
hospício, em cujos textos se encontra um romance inacabado, documentos oficiais
de internação, uma relação de livros do escritor, uma entrevista concedida pelo
escritor ao jornal A Folha e um registro cotidiano, o Diário do Hospício, no qual
faz um relato habitual e pormenorizado da internação, do ambiente, de seus
sentimentos (como o desejo de suicídio e a consciência sobre seu próprio estado
mental), e das características e do movimento dos outros reclusos, chegando quase
a estabelecer uma tipologia da loucura. Nesse sentido, a pesquisadora Maria Isabel
Edom Pires (2006, p. 67-73) faz um esclarecedor trabalho em que ressalta a
57
resistência à exclusão social e a contribuição intelectual do escritor encarcerado
através da palavra escrita, que seja de forma objetiva, retratando o real, ou
subjetiva, entrelaçando-a com o ficcional. Para a pesquisadora, o ideal de Lima
Barreto, qual seja, o de tentar inserir-se no campo intelectual sem apadrinhamentos
e buscando uma literatura sem rebuscamentos, voltada para o grande público,
explicitado em Recordações do Escrivão Isaias Caminha, se amplia em Cemitério
dos Vivos, de tal forma que é somente através dessa escrita, “à custa da sua
infâmia”, posto que “o encarceramento forjou o narrador”, que pode-se conhecer o
interior da instituição, os internos e suas queixas – condições, denúncia e dados
históricos que fazem sobressair o valor documental do diário. Em suma:
Atingido pela fama às avessas, fomentadas pelos excessos do
corpo, Lima Barreto, experimentando o encerramento no cárcere,
instilou no seu diário a memória dos infames, esses anônimos,
doentes, assassinos, vagabundo, velhos e aleijados, de quem, em
muitos momentos, nutria ressentimento pela convivência
tumultuada, mas a quem se irmanava naquele sentido mais amplo
que pode ser colhido em toda sua obra, qual seja o de reconhecer
em cada excluído socialmente um igual, parceiro da mesma
embarcação (PIRES, 2003, p. 73).
Dito de outra forma: Lima Barreto, ao ser encarcerado como louco, vítima
de seu tempo, das condições que lhe foram impostas pela sociedade e amargando o
dissabor genético-familiar (“De mim para mim, tenho certeza de que não sou
louco; mas, devido ao álcool, misturado com toda a espécie de apreensões que as
dificuldades de minha vida material, há seis anos, me assoberbam, de quando em
quando dou sinais de loucura: deliro”, chegou a afirmar, dentre outros desabafos
reveladores dessa natureza inquieta, denunciadora, humana), aproxima ainda mais
o artífice do intelectual; a experiência do relato, o mimética do empírico, o
proverbial do poético, o metonímico da metáfora, enfim, o Jornalismo da
Literatura, tendo como cenário o mais moderno ambiente citadino da exclusão
58
social, lócus da urbanidade perdida. Deste cemitério, Barreto deu, inclusive a si
próprio, vida e vozes aos insepultos e afônicos, sobreviventes sociais, náufragos de
uma mesma embarcação. Fez, de maneira inaugural, o que faria evolutivamente
para a imprensa e para a Literatura nacional mais tarde Graciliano Ramos com
Memórias do Cárcere, livro igualmente memorialístico e póstumo, e faria hoje
qualquer jornalista mediano com ares literários, e minimamente conhecedor do
New Journalism, através do que apropriadamente já se convencionou chamar de
Livro-Reportagem.
4. Os conceitos de Mikhail Bahktin
As teses de Mikhail Bakhtin sobre polifonia, dialogismo, gêneros do
discurso e carnavalização são revolucionárias no âmbito da análise da produção
literária mundial. Espraiam-se também para outras áreas da produção intelectual,
especialmente a crítica, que se utilizam delas para o desanuvio de mensagens
oriundas das mais diversas linguagens culturais e artísticas, como o cinema, a
música, o teatro, as manifestações eruditas e principalmente as populares, bem
como para ajudar na decifração de produções estilísticas individuais e/ou artísticas
coletivas, características de correntes ou movimentos culturais, assim como, mais
recentemente, em campos culturais bem específicos, como o Jornalismo. Os
conceitos bakhtinianos, porém, não são revolucionários somente por isso. São
refundantes à análise, bem como originais em suas premissas para os estudos
literários, e por conseguintes em outros campos, como dissemos, justamente
porque, no caso específico da polifonia e do dialogismo (só estes dois vai nos
59
interessar daqui por diante, conforme explicitamos no início), além de inaugurar
um novo olhar e obter um mais conciso e atualizado entendimento acerca da
produção intelectual literária, origina-se a partir da identificação de um escritor e
de uma obra também tão originais quanto revolucionários: Fiodor Dostoievski e a
sua poética – esta considerada já tão universal quanto o seu próprio autor.
Este preâmbulo fez-se necessário porque, justamente destacando a
importância de Dostoievski para a teoria bakhtiniana, pode-se inferir melhor o
quanto é necessário fazê-lo para aqui demonstrar, antes de ingressarmos nos
conceitos propriamente ditos, as importantes ligações que possuem Dostoievski
com o outro autor aqui pesquisado, Lima Barreto, além daquelas outras conexões
temporais e literárias que já destacamos no item anterior, bem como – e isso é o
mais importante – com a própria fortuna teórica e os parâmetros conceituais de
Mikhail Bakhtin. Com efeito, o próprio Bakhtin destaca essas características de
Dostoievski para a consecução de seu pensamento teórico – e por conseguinte nós
a convergimos naturalmente, pela obviedade, para o nosso objeto de estudo, o
produtor intelectual Lima Barreto e o seu produto, a obra Recordações do Escrivão
Isaias Caminha. Em primeiro lugar, Bakhtin afirma que só foi possível
Dostoievski criar uma poética definidamente com elementos polifônicos e
dialógicos, algo nunca antes produzido e que escapou à percepção até mesmo dos
críticos de sua obra, precisamente porque, subordinado à sua visão artística, aquilo
que dentre outras coisas lhe daria um certo e especial dom de ouvir e entender
todas as vozes simultaneamente, Dostoievski era jornalista, praticava o Jornalismo
e amava ao jornal como poucos de sua época – condição que lhe daria a habilidade
e o destemor necessários para fazer emergir ao plano da realidade objetiva e ao
60
nível da atualidade da época a problemática e as contradições sociais e políticas de
seu tempo, compondo assim um sentido aistórico aos personagens e
acontecimentos reais ou criados. Em suma: Dostoievski produzia arte inovadora e
em essência à qual subordinava até mesmo o Jornalismo. Nas palavras do próprio
Bakhtin (1997, p. 30):
Ele polemiza constantemente, e polemiza com certa hostilidade
orgânica, com a teoria do meio independentemente da forma
como esta ou aquela se manifeste (por exemplo, nas justificações
dos fatos pelo meio alegadas pelos advogados); ele quase nunca
apela para a história como tal e trata qualquer problema social e
político no plano da atualidade. Isso não se deve apenas à sua
condição de jornalista, que requer tratamento de tudo num corte
da atualidade; ao contrário, achamos que a sua propensão pelo
jornalismo e seu amor pelo jornal, a compreensão profunda e sutil
da página do jornal como reflexo vivo das contradições da
atualidade social no corte de um dia, onde se desenvolvem
extensivamente, em contigüidade e conflito, as matérias mais
diversas e mais contraditórias, devem-se precisamente à
particularidade fundamental de sua visão artística (BAKHTIN,
1997, p. 30).
Neste aspecto, Bakhtin aprofunda a propensão fundamental de Dostoievski
para a prática do Jornalismo e a sua inegável e decisiva inclinação afetiva para com
o jornal ao referir-se a Leonid Grossman, que escreveu: “Dostoievski nunca sentiu
pela página de jornal aquela aversão característica de pessoas de sua formação
intelectual, aquela repugnância desdenhosa pela imprensa diária expressa
abertamente por Hoffmann, Schopenhauer ou Flaubert”. De fato, Schopenhauer,
como sabemos, condenava até mesmo os eruditos, pois defendia a originalidade e o
ineditismo do pensamento: repetir o que já foi dito é pensar pelos outros; é pensar
o que os outros já pensaram, dizia. E Grossman acrescenta, ainda segundo Bakhtin
(1997, p. 30):
Diferentemente deles [Hoffmann, Schopenhauer ou Flaubert],
Dostoievski gostava de mergulhar nas informações jornalísticas,
censurava os escritores contemporâneos pela diferença ante esses
“fatos mais reais e mais complicados” e com o senso do jornalista
61
autêntico conseguia reconstituir a visão integral de um minuto
histórico da atualidade a partir de fragmentos esparsos do dia
passado. “Você recebeu algum jornal? – pergunta ele em 1867 a
um de seus correspondentes. – Leia, pelo amor de Deus, não por
uma questão de moda mas para que a relação visível entre todos
os assuntos gerais e particulares se torne cada vez mais forte e
mais clara...”
Bakhtin destaca outros elementos literários inéditos ou quase exclusivos até
então em Dostoievski e que são próprios do Jornalismo Moderno, embora não fale
disso explicita e diretamente. Elementos que foram fundamentais para possibilitar
que somente a obra do escritor russo fosse capaz de criar a verdadeira polifonia, ou
seja, aquilo que fez Bakhtin (1997, p. 35) à certa altura tão decisivamente afirmar:
“Estamos convencidos de que só Dostoievski pode ser reconhecido como o criador
da autêntica polifonia”. Senão vejamos. Quando analisa a crítica de Otto Kaus à
obra de Dostoievski, por exemplo, Bakhtin (1997, p. 17-33) afirma que, no que diz
respeito a causas e fatores extra-artísticos que tornaram possível a construção do
romance polifônico, “o que aqui menos teremos de fazer é recorrer a fatos de
ordem subjetiva, por mais profundos que seja”, pois do contrário o escritor teria
feito apenas mais uma obra monológica. Ou seja: se Dostoievski tivesse levado em
consideração apenas as questões relativas à vida pessoal de suas personagens,
ressaltando unicamente as contradições do espírito, sem suas imbricações
dramáticas e relações efetivas com as diversas camadas da realidade social, não
teria produzido uma obra tão inédita quanto inovadora, mas seria apenas mais um
romântico a corresponder com a concepção hegeliana da existência. “Em realidade,
porém, o romancista encontrou a multiplicidade de planos e contrariedade e foi
capaz de percebê-lo não no espírito mas em seu universo social objetivo”, afirma
Bakhtin (1997, p. 27). Ora, a realidade objetiva com suas contradições sociais
intrínsecas é a mais pura e verdadeira matéria do Jornalismo – assim como também
62
era o corpus do trabalho do jornalista e a principal fonte do escritor Lima Barreto.
Quando Bakhtin examina o processo de criação do herói em Dostoievski, também
nos fala de outro elemento próprio do campo teórico-prático do Jornalismo
avançado, ou seja, aquele sem o qual não poderia, nas condições atuais, subsistir.
Trata-se do relativo distanciamento do autor em relação às suas personagens, o que
daria a estes a liberdade necessária para que pudessem se movimentar e falar o que
bem quisessem, mostrarem-se articulados em idéias, valores, opiniões, crenças, ou
entrarem inclusive em conflitos ou ainda em entendimentos uns com os outros,
sem a interferência ideológica ou até mesmo diretamente subjetiva do autor – que
seria, por conseguinte, apenas mais uma voz destoante (ou por vezes não) num
universo de criação dialógica, glossárico, polifônico. Este é sem dúvida um
posicionamento objetivo, como objetivo é, ou pelo menos deve ser, derivado de
uma visão moderna e acadêmica, por sua vez oriunda da visão iluminista e
cartesiana, o posicionamento de todos os profissionais de imprensa, especialmente
o repórter, em relação às suas fontes, entrevistados, outros colegas e às ocorrências
meramente factuais ou significativamente históricas – algo tão forte que se afigura,
inclusive, em seu código deontológico e que poderá fazê-lo se tornar um rejeitado
entre seus pares se assim minimamente não pensar e agir. Nesse aspecto, ainda
sobre a Literatura de Dostoievski, e que também foi um fator decisivo, segundo a
teoria bakhtiniana, para a consecução do romance polifônico, nos diz Mikhail
Bakhtin (1997, p. 67):
Essa nova posição “objetiva” do autor (só em Shakespeare
Tchernishevsk encontra a aplicação dessa posição) permite que os
pontos de vista dos personagens se revelem com toda a plenitude
e autonomia. Cada personagem revela e fundamenta livremente
(sem interferência do autor) a sua razão: “cada uma fala por si
mesma: “o pleno direito está comigo” – julguem essas pretensões
que se chocam entre si. Eu não as julgo”.
63
Após este breve introdutório, cujo objetivo foi apenas ressaltar a
importância do Jornalismo para Dostoievski e, por conseguinte, para a teoria
bakhtiniana, algo inevitavelmente correlacionado com o escritor brasileiro Lima
Barreto e a sua obra Recordações do Escrivão Isaías Caminhas, como já dissemos
e veremos mais aprofundadamente adiante quando de sua análise, passemos agora
a explicitar mais detidamente o pensamento de Mikhail Bakhtin naquilo que
fundamentalmente vai abalizar a nossa compreensão da obra barreteana e sua
relação com o Jornalismo e a cidade do Rio de Janeiro do final do século XIX e
início do século XX – as suas teses. É preciso dizer, porém, inclusive para permitir
uma melhor interpretação dos conceitos de dialogismo e polifonia, que o próprio
Mikhail Bakhtin, ao estabelecer sua teoria com base em Dostoievski, classificando-
o de criador do romance polifônico, como vimos, foi, ele próprio, ao assim
proceder, também polifônico – algo que certamente escapou à observação de
muitos de seus críticos ou seguidores. Isso porque, em sua obra “Problemas da
poética de Dostoievski”, o pensador russo, ao já adentrar naquilo que queria dizer –
os seus conceitos – fez exatamente aquilo que é característico da prática polifônica,
da consciência dialógica e do gênero do discurso, em suma, realizou aquilo que
entendia por tudo isso: um processo e não um produto; uma criação da ação
comunicativa social e não um catálogo descritivo invariável; algo que se cria na
interação e produção do sentido e não um dado posto de maneira fechada à mera
erudição ou à Literatura didática de uns poucos. Um dos que percebeu com essa
característica intrínseca à obra de Bakhtin foi Robert Stam (2000, p. 41), que sobre
o Bakhtin polifônico assim se pronunciou:
Finalmente, vale a pena notar que o próprio Bakhtin pratica a
polifonia discursiva em suas críticas. Em Problemas da poética
de Dostoievski, ele cita toda uma galeria de críticos, mas não o
64
faz para sobrepujar as vozes dos outros, e sim para utilizá-las no
âmbito de sua própria orquestração. Cita esses críticos
longamente, permitindo-nos ouvir suas vozes com ressonância
plena. Não vê os outros como oponentes a serem aniquilados, mas
como colaboradores potenciais para um discurso polifônico.
Neste sentido, a prática crítica do próprio Bakhtin exemplifica o
dialogismo de que fala (grifos mantidos).
Assim, em “Problemas da poética de Dostoievski”, Bakhtin permitiu,
inicialmente, que falassem as vozes dos críticos de Dostoievski e ao mesmo tempo
com elas dialogou, ora concordando, ora discordando, e ao fim chegou, após o
choque de teses aparentemente díspares – a sua e a de seus interlocutores –, a uma
conclusão axiomática que, em suma, é uma construção teórica fundamentada no
modelo hegeliano de produção do conhecimento – e Bakhtin, como todo bom
marxista, não rejeitava as teses de Hegel, apenas as considerava passível de melhor
entendimento e aplicação. Trata-se esse de um processo que Bakhtin viu também,
como conseqüente ao conhecimento teórico, na obra intelectual de Dostoievski.
Qual seja, através da contradição, e não de sua supressão, se chegar à síntese, à
verdade, à essência das coisas, em suma, ao Absoluto. Desta forma, constituem-se
os modelos teóricos de Bakhtin – e o que se pode depreender da narrativa de
Dostoievski, de acordo com o pensamento do próprio Bakhtin – em postulados
filosóficos válidos, pelas suas próprias premissas, à compreensão da realidade à
qual veio debruçar o seu pensar, o seu refletir.
É desta forma que logo no primeiro capítulo, O romance polifônico de
Dostoievski e seu enfoque na crítica literária, do livro Problemas da Poética de
Dostoievski (1997), Bakhtin vai apresentar o pensamento monológico – e
justamente por ser monológico, inclusive em seu conjunto, é incapaz de desvendar
a obra de Dostoievski – de cada um dos críticos da Literatura do escritor russo
Dostoievski e que ele, Bakhtin, amealhou à consubstanciação de suas idéias.
65
Amealhou às suas idéias mas selecionando partes dessas consciências, ou seja,
claramente direcionando essas vozes críticas para a consecução de um discurso
secundário, como é próprio de uma teoria, incluindo a sua própria, segundo
categoriza Fiorin (2006, p. 70), utilizando-se por vezes do gênero direto (posto
fazer uso de dois-pontos, verbos dicendi, aspas etc.) e (provavelmente) mesclando-
o com os gêneros indireto e indireto livre, ao mesmo tempo em que faz algumas
considerações que lhes permitem esclarecer à consciência do leitor a sua tese, ou
seja, a mais uma voz. Dito, de outro modo, e sem estes esclarecimentos, nas
palavras do próprio Bakhtin:
Antes de desenvolvê-la [a tese] com base nas obras de
Dostoievski, veremos como a crítica literária tem interpretado a
peculiaridade fundamental que apontamos em sua obra. Não é
nossa intenção apresentar nenhum ensaio com a plenitude mínima
sequer da literatura sobre Dostoievski. Dos trabalhos sobre ele
publicados no século XX, abordaremos apenas aqueles que, em
primeiro lugar referem-se ao problema da sua poética e, em
segundo, mais se aproximam das peculiaridades fundamentais
dessa poética como as entendemos. Desse modo, a escolha se faz
do ponto de vista da nossa tese, sendo, por conseguinte, subjetiva.
Mas no caso dado essa subjetividade da escolha é inevitável e
legítima, pois não estamos fazendo ensaio histórico nem muito
menos uma resenha. Importa-nos apenas orientar a nossa tese, o
nosso ponto de vista entre aqueles já existentes sobre a poética de
Dostoievski. No processo dessa orientação, esclarecemos
momentos isolados de nossa tese (BAKHTIN, 1997, p. 6).
Sobre essas “vozes” da crítica literária na exposição de Bakhtin, que irão
nos permitir melhor compreender o fenômeno e o conceito de polifonia, em sua
particular aplicabilidade realizada pelo próprio pensador no processo de construção
de sua teoria, o professor de Filosofia Ivanaldo Santos (2006), com a colaboração
dos professores Glenn Walter Erickson (Filosofia) e Maria Fernandes de Oliveira
(Letras), fez um interessante resumo dessas críticas que, pelo seu caráter breviário
e preciso, iremos aqui aproveitar, mas considerando essas críticas como “vozes” e
não como fez Santos, que basicamente resumiu o pensamento de cada um dos
66
críticos sob a abordagem de Bakhtin. Assim, o primeiro dos “comentadores”, como
os chama Santos (2006, p. 119), analisados por Bakhtin, é Ivanov, filósofo
marxista que pertenceu ao Estado stalinista, portanto, “um filósofo oficial do
aparato burocrático estatal”. Desta forma, a interpretação feita por esse crítico da
obra dostoievskiana é apenas monológica, pois refletiria unicamente um modelo
político e revolucionário que serve ao Estado marxista russo pós-revolução de
1917, a partir da ótica de “um simples escritor proletário”. O segundo
“comentador”, também conforme Santos (2006, p. 120), é Engelgardt, que buscou
fazer da obra de Dostoievski apenas uma interpretação hegeliana, qual seja, o
caminhar do espírito absoluto rumo à uma certa plenitude. “Os personagens de
Dostoievski, ao invés de serem consciências autônomas e livres, seriam partes
menores da grande consciência que é a consciência do autor”, explica Santos.
Assim, conclui Bakhtin (1997, p. 27), “Engelgardt acaba tornando monológico o
universo de Dostoievski, reduzindo-o a um monólogo filosófico que se desenvolve
dialeticamente”. O terceiro “comentador”, ainda de acordo com Santos (2006, p.
120), é Askóldov, que por sua vez interpreta a obra de Dostoievski unicamente sob
o ponto de vista psicológico de seus personagens, ressaltando seus dramas e
conflitos internos. Santos alerta que Bakhtin não descarta essas características dos
personagens na poética de Dostoievski, mas que vê também na obra do escritor
russo, sobretudo, um microcosmo que espelha o grande cosmo, que é a sociedade,
“com seus desníveis de classes sociais, seus conflitos, suas relações de
dominação”. O quarto e último “comentador”, sintetizado por Santos (2006,
p.120), é Komaróvitch. Este, ao contrário de Askoldov, que se centrou nas
questões da interioridade das personagens, inclinou-se, em sua interpretação da
narrativa de Dostoievski, no caráter empírico das ações realizadas pelas
67
personagens, esquecendo-se deliberadamente das profusões ligadas ao psicológico.
“Bakhtin vê a interpretação de Komaróvitch como monológica, por ter reduzido a
obra de Dostoievski a uma única consciência: a consciência que pratica uma
determinada ação dentro da sociedade (roubar, assassinar, casar etc.)”, explica
Santos. O jogo de vozes em Bakhtin, desta forma, é uma afirmação, ou a própria
confirmação, de sua tese sobre Dostoievski – nada mau para um pensador que em
outras de suas obras usou também outros nomes, como se outros autores fora.
A partir de agora, então, é lícito perguntar: o que vem afinal a ser polifonia?
De acordo com Bakhtin, polifonia é um estilo literário novo que se
caracteriza por possuir em suas tramas personagens que detêm vozes próprias. E de
tal forma essas vozes são próprias que se estruturam sobre si mesmas. Possui assim
cada uma a independência necessária em relação umas às outras e quanto à voz do
próprio autor, não tendo, portanto, que obrigatoriamente segui-lo enquanto voz ou
mesmo no conjunto ideológico da obra, posto esta assim mesmo estar subvertida, e
nem concordarem entre si nas questões em que se envolvem durante a realidade da
narrativa e a realidade do mundo objetificado nela ou fora dela. Elas são assim
vozes tão auto-suficientes e ao mesmo tempo tão conjunturais que as disparidades,
constituições e as contradições intrínsecas dos indivíduos-personagens em suas
realidades interiores e exteriores, psicológicas e materiais, soam como um conjunto
tônico de vozes múltiplas e antitéticas. Trata-se, portanto, de uma orquestra de
vozes díspares, regida (não imposta) pelo autor, que por sua vez é apenas mais uma
voz que se estrutura sobre si mesma, paralelamente à narrativa e no âmbito da
poética, posto não criar escravos mudos, mas indivíduos livres, dotados da
capacidade de perfilar-se ao lado de seu criador, discordar dele ou até mesmo
68
contra ele rebelar-se. Isso quer dizer que todas são vozes de tal modo
particularizadas, independentes e plenas de si mesmas que Bakhtin chega a
denominá-las de “plenivalentes”.
A voz do herói sobre si mesmo e o mundo é tão plena como a
palavra comum do autor; não está subordinada à imagem
objetificada do herói como uma de suas características mas
tampouco serve de intérprete da voz do autor. Ela possui
independência excepcional na estrutura da obra, é como se soasse
ao lado da palavra do autor, coadunando-se de modo especial
com ela e com as vozes plenivalentes de outros heróis
(BAKHTIN, 1997, p. 5 – grifos mantidos).
Assim, a polifonia, como muito bem resume Santos (2006, p. 118), “são
consciências (vozes) que estão contidas dentro de uma obra literária e que são
plenivalentes, ou seja, são plenas de valor; que mantêm com as outras consciências
do discurso uma relação de absoluta igualdade, como participantes do grande
diálogo”. Aqui, portanto, encontramos dois outros novos elementos a definir as
vozes plenivalentes, características íntimas (delas) e intrínsecas (da obra) a torná-
las essencialmente como tal: a consciência (de si, do mundo, etc.) e a manutenção
dialógica (da e na obra) através do discurso multivocálico. Desta forma, já
adentramos no segundo conceito bakhtiniano que aqui queremos abordar – o do
dialogismo.
Para nos aprofundarmos no que seja dialogismo, voltemos à estruturação do
capítulo O romance polifônico de Dostoievski e seu enfoque na crítica literária,
que citamos imediatamente acima como uma espécie de “auto-exemplo” em
Bakhtin do que seria polifonia, e sigamos tendo-o ainda como este modelo para
buscarmos compreender o que seja dialogismo. Vejamos que ali Bakhtin não
permitiu que as vozes da crítica literária expressassem somente suas consciências
acerca da obra de Dostoievski: cada qual sendo uma consciência monofônica, pois
69
cada uma interpretava a obra de Dostoievski ao seu modo, e em sentido contrário
viam a poética apenas “como uma palavra”, “uma voz”, “uma ênfase”, de acordo
apenas com essa consciência única de cada uma, nisso residindo um erro
fundamental da crítica literária, pois desta forma, isoladas entre si e descoladas de
si, não perceberam que “a unidade do romance polifônico, que transcende a
palavra, a voz e a ênfase, permanece oculta” (BAKHTIN, 1997, p. 45). Elas
expressaram, assim, com efeito, e a despeito de serem monológicas, enunciados
que se relacionam com a época e a realidade social a que os críticos estavam
submetidos, fatores que os impediam de perceber, por exemplo, a dimensão
histórica da obra de Dostoievski quanto à criação de um novo modelo artístico do
mundo, no qual havia muito da dialética e do personalismo. A exegese da poética
de então, portanto, seguia modelos burgueses de um mundo que era próprio dos
críticos. Bakhtin, de acordo com Santos (2006, p. 118), chega a desenvolver dois
argumentos para defender essa tese.
O primeiro argumento é o de que no final do século XIX e início
do XX, a crítica literária não possuía uma metodologia de análise
conceitual adequada para compreender a polifonia de
Dostoievski; realizava uma exegese da obra de Dostoievski a
partir de dois modelos de análise de conceitos. O primeiro é o
modelo utilizado pela literatura burguesa da Europa (...) [que]
(...) dava ênfase à nova estrutura social surgida com as revoluções
do século XVIII – revolução francesa e revolução industrial. O
segundo tem relações com a forma e a estilística dominante na
literatura européia. Havia, naquele período, um estilo dominante
de escrever e argumentar tanto na literatura como na filosofia. Era
um estilo que pode ser classificado de “kantismo” (...). O segundo
argumento é a completa transgressão da vontade artística do autor
– nesse caso, Dostoievski. Para Bakhtin, a crítica literária não leu
a obra de Dostoievski procurando encontrar nela o que realmente
Dostoievski escreveu (...), isto é, leu a obra de Dostoievski a
partir de seus próprios valores sociais, culturais e filosóficos,
esquecendo-se de que ele construiu um pensamento filosófico
autônomo.
70
Isso quer dizer que, embora não esteja explícito nas vozes (consciências) de
cada crítico amealhado por Bakhtin que existiam tais condições históricas e fatores
societários por trás de cada um dos “comentadores” da obra de Dostoievski, de fato
eles estavam lá, como levanta em argumentos Bakhtin. Ou seja, por trás de cada
discurso há um enunciado que se reveste, em suas relações com outros enunciados,
de um caráter dialógico. Esses enunciados possuem assertivas que fazem sentido,
de outro modo não poderia ocorrer o dialogismo entre as diversas vozes carregadas
de consciências. Tais relações dialógicas ocorrem no campo lingüístico (langue),
através de suas unidades fonológicas, sintáticas, morfológicas, que são
indefinidamente repetidas, mas que por si somente não explicariam os sentidos e as
assertivas, por isso, segundo propõe Bakhtin, é necessário ir além e, através de uma
análise translinguística, verificar o campo das emissões concretas (parole)
possibilitadas por esse sistema de unidades básicas e suas combinações. O objeto,
pois, da translinguística, proposta por Bakhtin, segundo José Luiz Fiorin (2006, p.
21) “são os aspectos e as formas das relações dialógicas entre enunciados e entre as
formas tipológicas”.
Fiorin vai além e, de maneira didática, explica dois modelos conceituais de
dialogismo em Bakhtin. O primeiro, segundo ele, é aquele que se caracteriza por se
constituir de dois enunciados, sendo uma réplica a outro enunciado. “Portanto, nele
ouve-se sempre, ao menos, duas vozes”, diz Fiorin (2006, p.24). Mas o caso não é
tão simples como parece, ou ao menos como parece remeter o conceito comum de
“diálogo” (instância de resolução de conflitos). Para Bakhtin, as relações dialógicas
expressam exatamente as tensões societárias das vozes envolvidas. “Se a sociedade
é dividida em grupos sociais, com interesses divergentes, então os enunciados são
71
sempre espaço de luta entre vozes sociais, o que significa que são inevitavelmente
o lugar da contradição” (FIORIN, 2006, p. 26). Agora compreendemos melhor o
exemplo que quisermos dar a partir da obra do próprio Bakhtin para explicar o
conceito de dialogismo: as vozes dos críticos que se relacionam de maneira
deliberada pelo próprio autor (Bakhtin) no capítulo aqui posto em relevo possuem
sentido porque não só expressam enunciados em relação à obra de Dostoievski,
mas também porque atuam como consciências sociais tensionadas em relação ao
próprio Bakhtin que, com elas, também enquanto voz conscienciosa, promove a
réplica (hegeliana). As vozes, portanto, no dialogismo, não são só individuais e
soltas, mas sociais e carregadas de época e da persona que fala. O segundo modelo
conceitual de dialogismo em Bakhtin apresentado por Fiorin é aquele em que se
manifesta visivelmente nos discursos dos autores/narradores. São os enunciados de
terceiros que se apresentam de forma Direta (transcrição literal normalmente
colocada entre aspas, após travessão ou precedidas de dois pontos), Indireta
(quando a voz do enunciador se confunde com a do próprio transcritor), Aspas
(palavras ou expressões destacadas pontualmente pelo narrador entre aspas a
demarcar idéias alheias) e negação (em que a voz do outro é exposta de forma
direta ou indireta e ao final utilizada pelo transcritor como contra-argumentação
contra o próprio outrem). Em todos esses casos as fronteiras lingüísticas das vozes
ficam claramente demarcadas. Ao contrário, ou seja, com o discurso alheio não
claramente demarcado, segundo ainda Fiorin, há a forma Indireta Livre (quando as
duas vozes, a do narrador e a do personagem, se misturam, sem a fronteira do
visível a demarcá-las, existindo apenas certa tonalidade a identificá-las), Polêmica
Clara (quando duas vozes se confrontam aberta e claramente entre si, utilizando-se
o transcritor normalmente do discurso Direto, mas não ficando claro se uma refere-
72
se como resposta à outra), Polêmica Velada (quando o narrado utiliza-se de duas
vozes para expressar enunciados diferentes, mas de tal maneira é favorável apenas
a um deles que, de maneira hábil, demonstra existir apenas um desses enunciados,
como se existisse apenas um deles enquanto voz), Paródia (quando se imita um
enunciado com o objetivo de ridicularizá-lo, desqualificá-lo, mas sem referir-se
diretamente a ele e às vezes apenas trocando um termo, uma expressão, o que
muda ou inverte o sentido) e Estilização (quando não há a intenção de ridicularizar
o outro enunciado, mas apenas de, com repetições de termos ou expressões de uma
voz que não se revela diretamente, reforçar o mesmo sentido daquele).
O dialogismo também pode ocorrer entre os estilos – que também
funcionam, de acordo com Bakhtin, como vozes de discursos. Fiorin chama a
atenção para este fato e explica, inicialmente, aquilo que o pensador russo
considerava como estilo e em seguida mostra como se daria esse diálogo. “Para ele
[Bakhtin], estilo é o conjunto de procedimentos de acabamento de um enunciado”
(FIORIN, 2006, p. 46 – grifo mantido). Acrescentamos: tais procedimentos em
Bakhtin seriam aquilo que o enunciador lança mão da langue e da parole para
amoldar o seu discurso, ou seja, o modo como faz uso do sistema da linguagem
com suas unidades básicas e suas regras e combinações para criar uma voz, um
enunciado, uma fonética, uma narrativa ou até mesmo uma poética própria. “Isso
significa” – acrescente Fiorin à mesma página – “que o estilo é o conjunto de
traços fônicos, morfológicos, sintáticos, semânticos, lexicais, enunciativos,
discursivos etc., que definem a especificidade de um enunciado e, por isso, criam
um sentido de individualidade”. Isso quer dizer que, com a construção de uma
individualidade, sobressai-se uma especificação, uma característica, uma imagem
73
de certo autor, em suma, uma identidade prosaica do discurso e do próprio
narrador. Em outras palavras, segundo Fiorin: “O estilo é o conjunto de
particularidades discursivas e textuais que cria uma imagem do autor, que é o que
denominamos efeito de individualidade”.
Tal efeito da individualidade de estilo, acrescenta o estudioso da obra de
Bakhtin, poderá ser individual, como por exemplo a obra que Guimarães Rosa, que
vai criar a imagem de Rosa, ou coletiva, como o parnasianismo, que vai identificar
um outro Guimarães, o poeta parnasiano que viveu e criou praticamente no mesmo
período de Lima Barreto, Olavo dos Guimarães Bilac. Aqui, mesmo parecendo
paradoxal, é onde ocorre o dialogismo, pois para Bakhtin é exatamente na
controvérsia, no embate de estilos, que ocorre a construção dialógica. Ou seja, é no
atrito dos avessos dos construtos fônicos-lingüísticos das individualidades
características de cada corrente ou de cada autor que ocorre a relação dialógica. Do
contrário, todos falando a mesma, digamos, linguagem, e utilizando-se da mesma
tonalidade, ocorreria apenas o monologismo em vez de dialogismo; monofonia em
vez de polifonia.
5. Jornalismo e as vozes da cidade nas Recordações de Caminha
Ao nível que já chegamos podemos iniciar a análise daquilo que
inicialmente nos propomos. Ou seja: estudarmos a obra Recordações do Escrivão
Isaías Caminha utilizando-se da teoria bakhtiniana, segundo seus preceitos
metodológicos no qual se inserem, além de uma admissível contribuição de nossa
parte, os conceitos de polifonia (este apenas em parte e/ou em seu aspecto
74
superficial, tipificador), de dialogismo; e de gêneros do discurso. Tais conceitos
iremos utilizar, implícita ou explicitamente, na análise, ao fazermos emergir o
caráter social das vozes da narrativa e do discurso limo-barreteano, ressaltando
assim seus aspectos históricos, espaciais, econômicos etc. no âmbito urbano da
cidade do Rio de Janeiro retratada na obra.
O trabalho inédito e metodológico desenvolvido por Galindo (2007)
queremos aqui antes citar, mas muito mais pela temática escolhida – o cronista
Lima Barreto, afirma Galindo à certa altura, tem a cidade do Rio de Janeiro como o
seu principal tema de admiração, defesa, denúncia, preservação e registro
cotidiano... – e menos pela forma como estabeleceu: Galindo partiu dos conceitos
bakhtinianos e buscou na obra do autor aquilo que se “encaixava” neles. Faremos
diametralmente o contrário. Partiremos daquilo que aqui nos propusemos estudar, a
Cidade e o Jornalismo, como instâncias sociológicas, conforme explicitamos no
início, e daí buscarmos suas relações artístico-históricas nas vozes contidas na
narrativa dialógica e em parte polifônica do Isaías, de Barreto. Comecemos,
portanto, pela Cidade, relacionando-a com o Jornalismo e vice-versa, à medida que
assim a prosa avança e se desenvolve.
A cidade capitular da narrativa do escrivão Isaías Caminha é inicialmente
um lugar imaginado e inusitado, em seguida assombroso, ora decepcionante ora
surpreendente, próprio de uma percepção de quem migra de um lugar situado no
campo – este um lugar gravitacional em relação à cidade principal, carente e
subjugado aos caprichos de chefes políticos –, e que busca na cidade grande, cheio
de esperanças, uma vida melhor, mais satisfatória, com o intuito de um dia,
amealhado ganhos por méritos, ajudar aos entes queridos que ficaram e quem sabe
75
até voltar àquele lugar de origem – como de fato, ao final, decepcionado, como
milhares de outros da realidade nacional objetiva ao longo de décadas, volta. Trata-
se de uma cidade misteriosa, desafiadora, idealizada, por desvendar e, por isso
mesmo, reconstruída na dura realidade da experiência cotidiana quando dela tenta
se apoderar. Vejamos neste conjunto discursivo a voz do próprio narrador sobre a
cidade idealizada:
Então, durante horas, através das minhas ocupações quotidianas,
punha-me a medir as dificuldades, a considerar que o Rio era uma
cidade grande, cheia de riqueza, abarrotada de egoísmo, onde eu
não tinha conhecimentos, relações, protetores que me pudesse
valer... (BARRETO, 1997, p. 41).
Em comparação com outra voz, a de Felício, refletida por um jornal local
(Diário), que em notícia reproduzira a experiência bem-sucedida por aquela
enquanto consciência, no RJ – sendo essa curiosamente a primeira vez, e de forma
imediata, que a voz narrativa cita a imprensa –, a voz do narrador Isaías mostra-se
profundamente otimista quanto ao sucesso desafiador que se lhe apresenta a cidade
almejada, numa evidente conformação discursiva, recheada do mesmo sentido:
Ora o Felício! Pensei de mim para mim. O Felício! Tão burro!
Tinha vitórias no Rio! Por que não as havia eu de ter também – eu
que lhe ensinara, na aula de Português, de uma vez para sempre,
diferença entre o adjunto atributivo e o adverbial? Por quê!?
(BARRETO, 1997, p. 41).
A esperança e a certeza se acentuam quando, ao anunciar sua partida à
família e ao buscar ajuda junto ao coronel, chefe do poder político local, obtém
respostas de assente, positivas, de estímulos. As vozes – inclusive uma de sibila –
nessa seqüência narrativa são dos discursos direto, indireto e indireto livre,
revelando uma natureza diversa e perturbadora da voz espiritual do narrador, não
sem a presença já pela segunda vez imediata de jornais numa das cenas. Senão
vejamos:
76
— Amanhã, mamãe, vou para o Rio.
Minha mãe nada respondeu, limitou-se a olhar-me
enigmaticamente, sem aprovação nem reprovação; mas minha tia,
que costurava em uma ponta da mesa, ergueu um tanto a cabeça,
descansou a costura no colo e falou persuasiva:
— Veja lá o que vai fazer, rapaz! Acho que você deve
aconselhar-se com o Valentim!
(...)
Descansou alguns pacotes de jornais manchados de selos e
carimbos; tirou o boné com o emblema do Correio e pediu café.
— Você veio a propósito, Valentim. Isaías quer ir para o Rio e eu
acabo de recomendar que se aconselhasse com você.
— Quando você pretende ir, Isaías? indagou meu tio, sem
surpresa e imediatamente:
— Amanhã, disse eu cheio de resolução.
(...)
... Desse modo, eu ia vivendo uma doce e medíocre vida roceira,
sempre perturbada, porém, pelo estonteante propósito de me
largar para o Rio. Vai Isaías! Vai!
Meu tio ergueu a cabeça, passou o olhar demoradamente sobre
mim e disse:
— Fazes bem!
(...)
— E disso mesmo que vínhamos tratar. Isaías quer ir para o Rio e
eu vinha pedir a Vossa Senhoria...
— O que é que você quer que lhe peça?
(...)
— Vossa Senhoria podia dizer na carta que o Isaías ia ao Rio
estudar, tendo já todos os preparatórios, e precisava, por ser
pobre, que o doutor lhe arranjasse um emprego.
(...)
...E foi assim. Hoje, acrescentou o coronel imediatamente, não é
preciso, o Rio é muito grande, há muitos recursos... Vá menino!
(BARRETO, 1997, p. 42-45).
77
O sonho de se tornar “doutor” no Rio de Janeiro assim estava assegurado,
garantindo como conseqüência a materialização automática, na cidade moderna, de
outra grande aspiração pessoal do narrador: ascender socialmente à classe mais
abastada e respeitada da sociedade carioca, o que lhe daria, além de dignidade,
brilho, status, soberba, poder. O poder necessário para redimir pela altivez sua
condição de racialmente discriminado – momento em que a voz do narrador se
confunde com a do escritor, mas não necessariamente sendo uma mesma voz,
dado, em última análise, serem consciências distintas. “Ah, Seria doutor!
Resgataria o pecado original do meu nascimento humilde, amaciaria o suplício
premente, cruciante e onímodo de minha cor...” (BARRETO, 1997, p. 45).
A partida, porém, não se dá sem traumas psicológicos. A voz interna do
narrador machuca-o ao se referir à figura esquálida e sofrida da mãe, condenada a
maiores sofrimentos pela dor da perda, pelas dificuldades que lhe sobreviriam por
morar numa “cidade de terceira ordem” e pela distância que ficaria em relação a
uma outra cidade alcançável somente pelo esforço da imaginação.
Eu a cria, então, resignada a ficar ali, nas proximidades de uma
cidade de terceira ordem, tendo, de onde em onde, notícias
minhas naquela grande cidade que a sua imaginação a custo havia
de representar. E quem sabe se as notícias seriam de ordem a
provocar-lhe dúvidas sobre a sua maternidade?! Coitada! Pobre
de minha mãe! (BARRETO, 1997, p. 48).
Na voz do narrador, quando da viagem de Caminha para o Rio, na qual já
sofre as primeiras discriminações, no trem, por conta da cor de sua pele, a cidade
que se lhe descortina, pela primeira vez, agora num escaler, faz-se num desanuvio
à medida que vai se apagando a imagem do seu lugar que ficou para trás. A nova
cidade vista a partir da costa é um emaranhado estranho, misto de natureza e
artifício, aparentemente lógico, mas de certa forma fantástico e assustador. A visão
78
solene da chegada — “Na cidade longos riscos de fogo brilharam, juntos e
espaçados, retos e cursos, paralelos e emaranhados... Chegamos.” — transforma-se
em desilusão e desengano. Mas logo sua tristeza e contrariedade diminuem um
pouco, ao observar um lugar especial em que as pessoas se movimentam sob a luz
da eletricidade, prenunciando assim uma cidade dual, finalmente.
Quando saltei e me pus em plena cidade, na praça para onde dava
a estação, tive uma decepção. Aquela praça inesperadamente feia,
fechada em frente por um edifício sem gosto, ofendeu-me como
se levasse uma bofetada. Enganaram-me os que me
representavam a cidade bela e majestosa. Nas ruas, havia muito
pouca gente e do bonde em que as ia atravessando, pareciam-me
feias, estreitas, lamacentas, marginadas de casas sujas e sem
beleza alguma.
A Rua do Ouvidor, que vi de longe, iluminada e transitada, em
pouco diminuiu a má impressão que me fez a cidade (BARRETO,
1997, p. 51).
Um dos primeiros contatos, na cidade, de Caminha, é com um padeiro – que
viria ser na verdade o que chamaríamos hoje de lobista, conforme veremos – e com
um jornalista (Raul Gusmão), e dar-se de forma em que a voz do narrador
transcreve em discurso direto a voz do representante da imprensa. Trata-se de um
enunciado filosófico de caráter pessoal, consciencioso, mas não sem também
sublinhar que essa voz, no sentido fônico, ao ser pronunciada, seja fanhosa e dita
com grandes dificuldades físicas de seu locutor. “Essa sua voz de parto difícil, esse
espumar de sons ou gritos de um antropóide que há pouco tivesse adquirido a
palavra articulada, deu-me não sei que mal-estar, que não mais falei até à sua
despedida” (BARRETO, 1997, p. 55). Um jogo de vozes em que se sobressai a
metonímica. Uma crítica do narrador, talvez; uma metáfora, certamente. Tanto que
os olhos do homem da imprensa também falavam, diziam algo:
Falava e não nos olhava quase; errava os olhos — os olhos
pequeninos dentro de umas órbitas quase circulares a lembrar
79
vagamente uma raça qualquer de suíno — errava os olhos, dizia,
pelo pátio do teatro, e quando nos fixava trazia uma expressão de
escárnio que ele mantinha com um razoável dispêndio de energia
muscular (BARRETO, 1997, p. 55).
A voz de outro jornalista (Oliveira), que incontinenti ingressa no mesmo
discurso, é por sua vez de ostentação, uma voz orgulhosa, trapaceira, infiel e
macaqueada, segundo a voz de Caminha. A do padeiro (Laje da Silva) é de
admiração, respeito e interesses pessoais (estes vindo somente a se saber adiante)
para com a voz da imprensa. No dia seguinte, a conformação dialógica do discurso
continua, desta vez com a voz única do narrador em seus próprios botões, através
da qual analisa as demais vozes e, em seu íntimo, conclui aquilo que viria a
conhecer, ao menos naquele momento, como a imprensa da grande cidade – assim
como já prenuncia aquilo que seria a voz do interesseiro junto à imprensa, aquele
que tem mais de uma face, mais de uma voz, dentre as quais aquela que seria “a
mais tranqüila das vozes” e com a qual se apresentava “cheio de uma linda
ingenuidade”.
De manhã, pus-me a recapitular todos esses episódios; e sobre
todos pairava a figura inflada, mescla de suíno e de símio, do
célebre jornalista Raul Gusmão. O próprio Oliveira, tão parvo e
tão besta. Tinha alguma coisa dele, do seu fingimento de
superioridade, dos seus gestos fabricados, da sua procura de
frases de efeito, de seu galope para o espanto e para a surpresa.
Era já o genial, com quem viria travar conhecimento mais tarde,
que me assombrava com o seu maquinismo de pose e me colhia
nos alçapões de apanhar os simples. E senti também que o
espantoso Gusmão e o bobo Oliveira me tinham desviado da
observação meticulosa a que vinha submetendo o padeiro de
Itaporanga. Achava extraordinário que um varejista de um
vilarejo longínquo cultivasse e mantivesse amizades tão fora do
seu círculo; não se explicava bem aquele seu norteio para os
jornalistas, a especial admiração com que os cercava, o carinho
com que tratava todos (Barreto, 1997, 57).
Por vezes – e são tantas – o narrador lembra o flaneur do final do século
XIX e início do XX. A voz relata caminhadas e observações tanto de dia quanto à
80
noite pelas ruas e lugares da cidade. Figuras humanas são descritas com precisão
sociológica. Noutras revelam a triste vida do cotidiano de pessoas desconhecidas e,
inclusive, a própria, como esta em que busca pela primeira vez o emprego
prometido, de posse da carta do coronel de seu lugar, junto ao representante de seu
lugar, o deputado federal Hemenegildo de Castro Pedreira, na Câmara Federal, e a
partir daí passa a se decepcionar com a política e os políticos.
Soavam onze horas quando sai do hotel e vim vindo a pé até às
ruas centrais da cidade. Era cedo; não fui logo à Câmara. Fiquei
vagueando pelas ruas à espera da hora conveniente. Cansado de
andar pelo centro, aventurei-me tomar um daqueles bondes
pequenos; chegando ao termo, bebi um refresco num botequim
sórdido das proximidades e tomei outro bonde que, me
informaram, levava à Câmara (BARRETO, 1997, p. 59).
Ainda pouco familiarizado com o trânsito pesado da rua,
atravessei a Rua Direita cheio de susto, cercando-me de mil
cautelas, olhando para aqui e para ali, admirado que aquela
porção de gente trabalhasse sob sol tão ardente, sem examinar
que valor tinham as suas Câmaras e o seu Governo. E a facilidade
com que os aceitava, pareceu-me sentimento mais profundo, mais
espontâneo, mais natural que a minha ponta de crítica que já
começava a duvidar deles. Aventurei-me pela Rua do Ouvidor já
preso a outros pensamentos... (BARRETO, 1997, p. 65).
Na Câmara Federal, aliás, ao se ouvir a voz de um dos deputados discursar
em Plenário, o entrecruzamento com a voz da imprensa volta a ocorrer, agora com
da voz perceptiva do próprio narrador acompanhada com a voz clientelista da
política.
Em resumo: o seu discurso afirmava que o chefe de polícia de
Santa Catarina era um homem honesto e o jornalista que o
insultara, um verme asqueroso e um réptil nojento (BARRETO,
1997, p. 63).
Além disso, é interessante notar que, mesmo sendo um lócus (fórum, ágora)
de discussão dos problemas e desafios da cidade e do país (pólis), as vozes
parlamentares (parole) na Câmara dos Deputados (plenarium) algumas vezes são
desconsideradas pelos próprios parlamentares, representantes do povo, as vozes
81
outras das outras vozes, que ora se calam, fazendo silêncio, que é uma forma de
falar, de se expressar, ora ficam indiferentes ao que se diz, postando-se
desinteressados, ou ainda fazendo coisas sem-importância, inapropriadas, ou
alimentando um cotejante burburinho de interesses pessoais, indecifravelmente
particulares.
Um tímpano soou forte e rouco; fez-se um pouco de silêncio. O
presidente disse algumas palavras, das quais as últimas davam a
palavra ao Deputado Jerônimo Fagot. O miúdo deputado subiu à
tribuna, limpou o suor, arrumou os livros ao lado e preparou-se
para falar. Fez-se silêncio, depois de uma infernal contradança no
recinto. Fagot começou: “É sabido que a moeda boa expele a má.
Desde 1842, pela Lei n°. 1.425 de 30 de setembro, desse ano, que
o meio circulante nacional”...
Durante cinco minutos, a Câmara ouviu-o atenciosamente; dentro
em breve, porém, o zunzum recomeçou. Não havia o ruído do
começo, mas a desatenção era geral. Para a mesa da presidência
enxameava uma multidão; o presidente já não era o mesmo; era
um moço louro e magro.
Parecia que as palavras de Fagot lhe morriam nos lábios: movia a
boca e gesticulava como um doido furioso. Os colegas
desapegados da sua eloqüência dividiam-se em grupos. À
esquerda, lá ao longe, quase na minha frente, alguns viam
cartões-postais; um outro, sob os meus pés, isolado, no
burburinho, escrevia febrilmente, erguendo, de quando em
quando, a caneta para pensar; uma roda de três, à esquerda e ao
fundo, conversava sorrindo; ao fundo, ainda, mas um pouco à
direita, um deputado gordo, com o calor que com o correr do dia
se fizera forte, esquecido no sono, por detrás de um par de óculos
azuis, roncava perceptivelmente. Fagot falou cerca de meia hora;
e, quando deixou a tribuna, o presidente já era um terceiro
deputado, um velho com pince-nez de aros de ouro (BARRETO,
1997, p. 64).
As vozes da imprensa poderiam existir também em murmulho dialogal num
único ser, o jornalista Ivã Gregoróvitch Rostoloff, cujo nome já denota uma
translinguagem comunicacional, lembrando um dos principais inspiradores da
poética limo-barreteana (com todas as conseqüências artísticas daí decorrentes), o
escritor e jornalista russo Fiódor Dostoievski. Não parece também por acaso que a
voz do narrador tenha perguntado nesse seu próximo encontro na cidade se se
82
tratava de um representante (muito provavelmente um repórter, aquele que com sua
voz reporta, fala os acontecimentos) de um importante meio de comunicação
impressa da época (e hoje), o Jornal do Brasil. A negativa dialogal de
Gregoróvitch não diminui em nada a condição de ser possuidor de variados timbres
de vozes, posto já ter passado por diversos outros meios de comunicação em
diversas outras cidades do país (O Combate, de Belém; na Gazeta de Leopoldina;
no Deutsches Tageblatt, de Blumenau; no Al-Barid, de São Paulo, e no Harum Al-
Raxid, órgão da colônia Síria, no Rio de Janeiro); ter conhecido alguns dos
principais países do mundo (França, Índia, China, Japão); e almejar naquele
momento ir para o jornal O Globo, “onde vou fazer o artigo de fundo e tratarei da
política interna”. Tanto não diminui – muito pelo contrário – que, como bem
sublinha a voz de Isaías, como que querendo amplificar o nome à voz, trata-se de
“um jornalista brasileiro”. Ou seja, fica-se entendido que não é um jornalista
estrangeiro, apesar dos dotes etimológicos e das experiências de viandante
metropolitano, mas muito mais: é também vocabular, posto falar várias línguas,
dez delas para ser mais exato. Um jornalista, portanto, plural. De várias vozes e de
múltiplas vocalizações. Tanto que Caminha, ao caminhar por uma das ruas
movimentadas da cidade, como passante-pensativo, tem a sua voz interna voltada
para, também de forma agitada, impaciente, querer desvendar o que seria aquelas
vozes implexas numa única voz do Jornalismo.
Só, subindo a rua movimentada, pus-me a interrogar-me sobre o
tal Gregoróvitch. De que nacionalidade era? Que espécie de
moralidade seria a sua? Com aquele título burlesco de doutor em
Línguas Orientais e Exegese Bíblica, quem poderia ser ao certo?
Um bandido? Um aventureiro simplesmente? Ou um homem
honesto, de sensibilidade pronta a fatigar-se logo com o
espetáculo diário e que por isso corria o mundo? Quem seria? E
jornalista! Jornalista em dez línguas desencontradas! Mas era
simpático o diabo, de fisionomia inteligente... (BARRETO, 1997,
83
p. 67).
E tudo isso – como fica claro nos dois parágrafos logo a seguir – entre as
igualmente variadas, afluentes e dinâmicas vozes das ruas, como as jocosas, as
recheadas de pilhérias, de libido e, inclusive, as vozes que se estratificavam nas
vitrines, nos produtos da moda, postos à venda, aos olhos, ao desejo, à cobiça e
que, em discurso direto na voz do passante, lhe chamava repetida, urgente e
(im)pertinentemente à modernidade:
Subi a rua. Evitando os grupos parados no centro e nas calçadas,
eu ia caminhando como quem navegava entre escolhos,
recolhendo frases soltas, ditos, pilhérias e grossos palavrões
também. Cruzava com mulheres bonitas e feias, grandes e
pequenas, de plumas e laçarotes, farfalhantes de sedas; eram
como grandes e pequenas embarcações movidas por um vento
brando que lhes enfunasse igualmente o velame. Se uma roçava
por mim, eu ficava entontecido, agradavelmente entontecido
dentro da atmosfera de perfumes que exalava. Era um gozo olhá-
las, a elas e à rua com sombra protetora, marginada de altas
vitrinas atapetadas de jóias e de tecidos macios.
Parava diante de uma e de outra, fascinado por aquelas coisas
frágeis e caras. As botinas, os chapéus petulantes, o linho das
roupas brancas, as gravatas ligeiras, pareciam dizer-me: Veste-
me, ó idiota! nós somos a civilização, a honestidade, a
consideração, a beleza e o saber. Sem nós não há nada disso; nós
somos, além de tudo, a majestade e o domínio! (BARRETO,
1997, p. 67).
Em suas andanças pela cidade, além das vistas que ouve e das tipificações
que lhes falam, o Caminha, a voz do sentido em andrajos, revela-se um ser cortado
de angústias, entre as quais a solidão, agravada pela saudade, e o compadecimento
por seres semelhantes na dor, carências afetivas e necessidades existenciais de toda
ordem, principalmente a fome e a desesperança.
Sentia-me só, só naquele grande e imenso formigueiro humano,
só, sem parentes, sem amigos, sem conhecidos que uma desgraça
pudesse fazer amigos (BARRETO, 1997, p. 69).
Foram de imensa angústia esses meus primeiros dias no Rio de
Janeiro. Eu era como uma árvore cuja raiz não encontra mais terra
em que se apóie e donde tire vida; era como um molusco que
84
perdeu a concha protetora e que se vê a toda a hora esmagado
pela menor pressão (BARRETO, 1997, p. 70).
Uma noite, andando eu deambulando por umas ruas desertas do
interior da cidade, fui dar não sei a que praça, em que havia ao
fundo uma grande casa; ia distraído, completamente entregue às
minhas preocupações, cabisbaixo, quando alguém me tomou os
passos e me falou com uma voz de apiedar. Era uma mulher
andrajosa; parei e ouvi-a. Balbuciante, contou-me misérias, a
fome dos filhos, moléstias, por fim, não pôde mais falar —
prorrompeu em choro... Evoquei logo aquelas histórias de fadas e
gnomos, aquelas histórias morais em que os gênios misteriosos
vêm pela terra em disfarce, para experimentar os corações dos
mortais e eu... e eu dei uma nota de esmola, uma nota graúda que
me sangrou fortemente a algibeira linfática (BARRETO, 1997, p.
71).
A voz do narrador não consegue deixar de notar nesses e em outros
momentos subseqüentes essas e demais paisagens urbanas e humanas da cidade
carioca do passado em suas andanças notívagas ou diuturnas. São barracos, bondes,
quartéis, enterros, prédios, casas, escolas, jornais, hotéis, bairros, ruas, esquinas
onde fervilham o trânsito, caminhões, desfiles militares, lavadeiras, prostitutas
(mulheres maltrapilhas, negras, mulatas, brancas, “bamboleando as ancas”,
seguidas por soldados...), vendedores de peixe, quitandeiros, criadas, donas de
casa, estudantes, políticos, jornalistas. Tudo entrecortado pela doce e saudosa
lembrança do pai, um sábio, um santo.
Aliás, é pela voz de um dos jornais, comprado e lido no transcurso de um
bonde, que fica sabendo que o deputado Castro viajara para São Paulo, cidade na
qual o político iria se demorar. Fica sabendo disso depois de ter se encontrado
pouco antes com ele e este ter lhe assegurado arranjar algo em que trabalhar,
atendendo assim à carta do coronel de seu lugar, bastando para isso ir novamente
procurá-lo. A promessa fora feita numa casa distante em que o deputado mantinha
às escondidas uma amante. Agora, com a notícia, verdadeira, percebera que fora
enganado pela voz traidora do “patife!, patife!”, o que faz todas as suas esperanças
85
de ter um emprego, e realizar o sonho de se transformar num doutor, na cidade
grande, caírem por terra. Mas se foi através da voz da imprensa que descobriu a
verdade de uma farsa da qual era a principal vítima, é ainda pela mesma voz da
imprensa, através da leitura do mesmo jornal que comprara no bonde, que também
faz outra importante descoberta: agora era, ao contrário, uma notícia falsa que
escondia uma farsa da qual ele já tinha conhecimento. A notícia dava conta que
Laje da Silva, “um capitalista e industrial”, recebera “a benção papal até a décima
quinta geração”. Ou seja, uma notícia claramente plantada, mentirosa, fruto da
bajulação e do pernicioso relacionamento mercantil e incestuoso do Jornalismo
com as vozes ególatras. Tanto que a poética limo-barreteana, na voz irônica de
Caminha (as reticências o dizem), despreza: “A notícia vinha cheia de gabos à sua
atividade e à sua honestidade...” (BARRETO, 1997, p. 82).
É pela voz da imprensa, a voz mais plural e independente, conforme nos
revela várias seqüências dialógicas, que Caminha é conduzido à redação e passa a
trabalhar em um jornal – momento em que a voz limo-barreteana atinge o ápice de
sua retórica interlocutória dotada de sentidos ideológicos do período vivencial dos
personagens, e provavelmente o seu também, e faz uma de suas melhores
retratações sociológicas da imprensa da época, envolvendo outros campos culturais
importantes, como a política e a cidade, com os seus principais elementos
constitutivos, quais sejam, aqueles que promovem os acontecimentos históricos e
redimensionam a vida societária em direção a um futuro esperado mas incerto.
Falemos, portanto, inicialmente, do encontro da voz acabrunhada e carente do
migrante que perambula pelas ruas com aquela voz salvadora, destemida e
polissêmica do repórter. Trata-se, neste caso, do próprio Gregoróvitch, agora não
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somente “um jornalista brasileiro”, mas também um ser nascido na România (hoje
Romênia), filho de pai russo, mãe grega, que estudara no Cairo, e que além da
Europa e Ásia já percorrera também a América (BARRETO, 1997 p. 84). Na
delegacia, onde momentos depois acaba preso, sob a acusação infundada de roubo,
Caminha se lembra da voz decidida e cheia de motivação idealismos patrióticos de
Gregoróvitch:
A delegacia continuava silenciosa e as pessoas sentadas pelas
cadeiras não ousavam entreolhar-se. Não havia duas horas que eu,
no restaurant, me pusera a imaginar grandes coisas. Gregoróvitch
incitara-me a trabalhar pela grandeza do Brasil; fez-me notar que
era preciso difundir na consciência coletiva um ideal de força, de
vigor, de violência mesmo, destinado a corrigir a doçura nativa de
todos nós. Pela primeira vez de lábios humanos, ouvi dizer mal da
piedade e da caridade: sentimentos anti-sociais, enfraquecedores
dos indivíduos e das nações... Virtudes dos fracos e dos cobardes,
resumia ele (BARRETO, 1997, p. 85).
A mesma voz que, ao ser lembrada ao delegado de que era uma voz afinada
à do personagem principal, ou seja, de que era conhecida e talvez em decorrência
disso fosse protetora de Caminha, este passa a ganhar um outro status social dentro
do prédio público e por parte da autoridade policial, que sem cerimônia demonstra
todo o seu “respeito” pela voz ausente da meritória imprensa na voz afiançada
daquele que também era, portanto, de agora em diante, importante para o aparelho
oficial da segurança. “Pois não! Um jornalista é sempre um homem importante,
respeitado, e nós, da polícia, temo-lo sempre em grande conta...” (BARRETO,
1997, p. 98). Após ouvir novamente as vozes da cidade, com destaque para a Rua
do Ouvidor, Largo do Machado, Rua do Rosário, Tijuca, Andaraí, Vila Isabel,
Biblioteca Nacional, quando “descobri a cidade”, conforme suas próprias palavras,
uma cidade sociológica, cheia de significados humanos, culturais, modernos, como
aquela em que percebe que as pessoas se movem nela como se seguissem uma lei
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universal que acometem os seres das cidades – “grupos de passeantes moviam-se
de um lado para outro, isocronamente, lentamente, tristemente, como se
obedecessem a uma lei inflexível a cujo império não se pudessem furtar”
(BARRETO, 1997, p. 110) –, invariavelmente em passeios solitários e tristonhos, a
tal ponto de ouvir até mesmo a voz do mar que o chamava repetida e
convincentemente ao suicídio,
Só o mar me contemplava com piedade, sugestionando-me e
prometendo-me grandes satisfações no meio de sua imensa massa
líquida...
— Vem, dizia-me ele, vem comigo e, no meu seio, viverás
esquecido, livre e independente... Aqui, eu te abrirei perspectivas
infinitas à tua vida limitada e os conceitos, as noções e as idéias
nada valerão. Zombarás deles, não os sentirás, não terás
consciência, nem pensamento, nem vontade... (BARRETO, 1997,
p. 103),
o nosso personagem, triste, macambúzio, roto, confuso e já aos prantos,
finalmente ouve a voz de sua admiração e boa lembrança:
Oh! Caminha! Onde tens andado? Que tens, rapaz?
Era Gregoróvitch Rostóloff. Falei, contei-lhe a vida. Os seus
olhos de conta mais se arredondaram de desconfiança; mas,
depois de duas ou três perguntas, de examinar-se o vestuário e
algumas palavras de consolo, ao despedir-se, assim me convidou:
— Aparece-me logo, à noitinha, na redação do O Globo.
A partir daí, como dizíamos, a voz da personagem limo-barreteana nos traz
uma visão histórico-social da imprensa do início do século XX e sua relação com a
política no âmbito da cidade carioca de então, ou seja, a própria voz da imprensa e
suas vinculações de interesses com outras vozes societárias. Assim descreve
pormenores da redação; relata o trabalho ali desenvolvido; fala da estratificação
social que impera na empresa jornalística; demonstra as funções sociais de cada
um, afigurando quem é quem, sem esquecer de nos revelar detalhes das
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constituições ideológicas tanto no aspecto individual, quando se aproxima
deliberadamente dos caracteres psicológicos, internos, abstratos, ligando-o às
feições (por vezes metafóricas), aos gestos e aos traços aparentes de cada um,
como também no aspecto grupal, especialmente aqueles grupos políticos e
econômicos com seus interesses implícitos, sorrateiros e não publicáveis. O jornal,
ou melhor, a voz da impressa na qual passa a trabalhar como contínuo – ajudando,
portanto, na sua consecução imperativa junto ao público e por conseguinte na voz
enunciativa e anunciativa à cidade e seus habitantes – é de O Globo, sobre o qual,
tomando inicialmente o ambiente da redação, logo descreve:
Era uma sala pequena, mais comprida que larga, com duas filas
paralelas de minúsculas mesas, em que se sentavam os redatores e
repórteres, escrevendo em mangas de camisa. Pairava no ar um
forte cheiro de tabaco; os bicos de gás queimavam baixo e eram
muitos (BARRETO, 1997, p. 119).
Ricardo Loberant, o diretor e proprietário, é apresentado como poderoso,
autoritário, interesseiro e voz sem nenhum escrúpulo, que determina mandos ao
poder público com objetivos de aumento nas tiragens, nas vendas e nos lucros. “A
opinião salvou-o, e a cidade, agitada pela palavra do jornal, fez arruaças, pequenos
motins e obrigou o Governo a demitir esta e aquela autoridade. E O Globo vendeu-
se, vendeu-se, vendeu-se... (BARRETO, 1997, p. 121). Mais adiante, sobre o
mesmo diretor, assim a voz do narrador se expressa:
As conversas da redação tinham-me dado a convicção de que o
doutor Loberant era o homem mais poderoso do Brasil; fazia e
desfazia ministros, demitia diretores, julgava juízes e o
presidente, logo ao amanhecer, lia o seu jornal, para saber se tal
ou qual ato seu tinha tido o placet desejado do doutor Ricardo
(BARRETO, 1997, p. 139).
Aires D’Ávila, pseudônimo de Pacheco Rabelo, um homem gordo que se
movia com dificuldade, jogador contumaz, e “um monstro geológico com
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prematuros instintos de raposa”, era, como redator-chefe do jornal, o exemplo de
submissão e subserviência para com Loberant. Leporace, por sua vez, o secretário
gráfico (antiga função no Jornalismo que fazia a ligação entre a redação e a
gráfica), consegue unir, em sua mediocridade, a Literatura e o Jornalismo, sendo,
portanto, um juiz que consideraria o mérito ou o demérito, o talento ou a falta deste
em terceiros, e por isso, e por também “ser a cria” de Loberant, era respeitado em
toda a cidade. “Hoje, é quase uma celebridade e passeia de carro pelas ruas
asfaltadas do Rio de Janeiro, tendo ao lado a mulher e os pimpolhos (BARRETO,
1997, p. 123). Floc (redução do prenome e sobrenome próprios de Frederico
Lourenço do Couto), era aquele que escrevia as tiras literárias, comentando
lançamentos de livros, espetáculos encenados e outras apresentações culturais sem,
no entanto, ter o conhecimento suficiente para tal. Elegante, límpido, de olhar
lustroso e “com a sua linda barba perfumada e o seu grande queixo erguido e
atirado para adiante como um aríete de couraçado”, possuía apenas o conhecimento
de folhetins e almanaques, mas jogava com palavreados clássicos e misturava-o a
fatos históricos desconexos – uma aparência intelectual admirável correspondente
à sua fatuidade social notável. Outros, como Carlos Oliveira (admirador do diretor
e que se supunha um Deus), Meneses (estudioso, competente, mas indulgente,
submisso), Adelermo Caxias, Rolim, Costa, Lemos, Leiva (estes dois repórteres de
polícia), Losque, Lara, Antônio Galo e Matoso ora pertenciam ou pertenciam à voz
do “estandarte” ou à voz da “artilharia” na cavalaria que era aquela redação. Da
artilharia, por exemplo, faria parte, por sua independência e sua capacidade de
trabalho plural, pertencia Ivã Gregoróvitch Rostóloff, estrangeiro-brasileiro que
nada devia nem temia ao criticar e usar a linguagem violenta e ácida.
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Gregoróvitch era a artilharia. Com o seu estilo desconjuntado e a
sua violência injuriosa, abria brecha nas linhas adversárias e
dizimava-as de longe. Estrangeiro, nada sabendo da nossa
história, nem pelo estudo nem a sentindo pelo sangue, a sua
crítica e o seu ataque tinham uma violência desmedida. Não
poupava, não desculpava, não sentia até que ponto o homem era
culpado, até que ponto a marcha das coisas fazia o homem
culpado. Ligeiramente enfronhado nas causas da política do
momento, ele só via diante de si um aspecto do fato, não sentia
inconscientemente os outros que se ligavam com o passado que
ele não conhecia, nem os outros que o futuro pressentido
condicionava. Um brasileiro, educado e criado no meio das
tradições, dos usos, dos hábitos, das qualidades, dos defeitos do
seu meio, não teria a violência de sua linguagem, a sua força de
crítica, a brutalidade de seu ataque (BARRETO, 1997, p. 128-
129).
Outras vozes, em conjunto dialógico, compunham a voz do jornal, e de sua
prática social cotidiana, como fica explícito nas conformações dialógicas contidas
quase que exclusivamente nos capítulos oito ao quatorze, este o último da voz
memorialística de Caminha. Veiga Filho, Deodoro Ramalho, Pilar Giralda e Félix
da Costa são romancistas, poetas, colaboradores; Lobo é consultor gramatical;
Barros é o agente de anúncio (hoje equivalente ao diretor comercial ou ao contato);
Dona Inês é a esposa do diretor e a quem a redação presume ditar coisas ao jornal
através do marido; Charles de Foustangel é o cozinheiro particular do diretor do
jornal (cuja aparição se dá somente num momento trágico, vítima e herói ao
mesmo tempo do próprio jornal, como veremos); e, por fim, mas não sem fazermos
aqui um devido destaque, a voz do consultor gramatical Lobo, cujo nome já revela
sua estirpe e missão: representa a vigilância rígida e destemida da linguagem a ser
feita impositivamente sobre as vozes literárias e jornalísticas impressas que, por
sua vez, ficam tacitamente subsumidas às regras, aos conceitos e às correções
gramaticais de uma linguagem púdica, etérea e justamente por isso inalcançável em
sua essência. Uma linguagem perfeita, utópica e tão precisa que, quimérica, entra
em conflito com a linguagem belicista, rápida e prática de Gregoróvitch. Lobo,
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exigente com os outros e consigo mesmo, termina por ficar louco: é ao final do
romance internado, quando não diz coisa-com-coisa. A voz dele se embaralha,
torna-se incompreensível e assim, de forma desesperadora, sua expressão vocal
corretiva some na poeira da obra, cuja poética, por sua vez, é um eco prevalecente
de defeitos gramaticais, como o admite a voz do próprio escritor. Esse conjunto
dialógico, portanto, da redação de O Globo, e por conseguinte de todas as vozes de
todos os jornalistas, em suma, da imprensa, é de se concluir, pode ser resumido
numa única voz estilística: resulta quase que inútil o trato exacerbado e
grandiloqüente da aparência quando corresponde a uma mera e fugidia essência.
Numa palavra: a imprensa é superficial.
Apenas num momento Caminha chega a pôr em dúvida essa conclusão.
“Houve um caso que, por trágico, me ficou eternamente gravado e foi como a
demonstração de que ainda havia no fundo de alguns deles uma crença no Sério, no
Verdadeiro, na Perfeição”, diz, numa espécie também de autocrítica (BARRETO,
1997, p. 204). É quando Floc, o jornalista responsável pela cobertura dos
acontecimentos culturais da cidade, pressionado pelo imperativo do tempo, que lhe
cobra de imediato a produção intelectual, capacidade e produção que ao fim e ao
cabo não dispõe, ou seja, não consegue expressar com sua voz escrita aquilo que
sua vocalização interior sente, que quer dizer e fazer-se sentir, sobre aquilo que
momentos antes tinha tão emocional, verdadeira e profundamente assistido num
teatro da cidade, acaba, ali mesmo, na redação, por decidir a pôr fim à sua própria
vida, com um tiro na cabeça, apagando definitivamente assim com uma inaudível
voz que supunha existir e possuir – um fim trágico para o insuportável e o
impossível como foi também o caso do gramático Lobo. Assim, os momentos que
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antecedem ao suicídio demonstram o quanto é difícil o ato de escrever, o desafio
que impõe a folha de papel em branco, que recebe tudo, que tudo suporta, mas ao
mesmo tempo vigia para fazer revelar ao mundo quem é verdadeiramente o autor,
provando assim que escrever sem embaraços, rápido, com arte e precisão para que
se possa ler fácil, suave e com exatidão é, na verdade, algo muito, muito difícil.
Um exercício ardente, desafiador, mas também asfixiante, aflitivo e por vezes
demolidor, como no caso. Senão vejamos:
Quedou-se assim alguns minutos, três a cinco, e logo se pôs ao
trabalho. As duas primeiras tiras foram rapidamente escritas, no
começo da terceira, parou, escreveu, emendou, tornou a escrever,
emendou, parou, suspendeu a pena e ficou olhando perdido a
parede defronte. Voltou a ler o que tinha escrito... Leu duas vezes,
não gostou, rasgou... Recomeçou... A sua fisionomia estava
transtornada. Não tinha mais a impressão de satisfação, de
deslumbramento interior. A testa contraíra-se, enrugando-se; os
olhos estavam fixos e a boca, cerrada nervosamente, custava a
abrir-se para aspirar rapidamente o charuto. Toda a sua
fisionomia revelava uma contensão extraordinária, fora mesmo do
poder habitual da sua vontade. Escreveu de novo e gritou:
— Caminha! Vai buscar aí cachaça! Anda!
Quando voltei, ele discutia com o paginador. O operário vinha
apressá-lo. Esperavam o seu artigo. Floc, aparentando calma,
prometeu que o daria dentro de meia hora. Saído o paginador,
tomou a garrafa, e pelo gargalo sorveu um longo gole.
Aproximou a pena do papel e escreveu algumas palavras que
riscou imediatamente. Suspendeu o trabalho, tomou outro gole e a
sua fisionomia começou a adquirir uma expressão de desespero
indescritível. Eu estava inquieto, sentindo vagamente um drama.
Fumava agora um cigarro sobre outro; não ia até o fim, atirava-o
em meio ao chão, acendia um outro. Bebeu, foi à janela,
debruçou-se e o paginador voltou:
— “Seu” Couto!
— Homem! Já vai! Você pensa que isto é máquina!?...
Voltou a escrever. A pena estava emperrada; não deslizava no
papel. Floc fumava, mordia o bigode e a pena continuava a
resistir (BARRETO, 1997, p. 207).
Mas não é somente sobre as características das vozes e seus papéis sociais
que a voz do narrador faz relatos sociológicos. Revela também, ainda dentro da
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voz da imprensa, elementos típicos do fazer, isto é, relata sobre técnicas do
Jornalismo e da reportagem, específicas da época. Um desses momentos é quando,
na redação, chega a informação de que num lugar distante da cidade, em Santa
Cruz, mais precisamente nos campos de São Marcos, fora encontrado pela polícia
um homem e uma mulher mortos a facadas e decapitados. Não se sabia quem era o
assassino e o caso desafiava ainda mais à polícia porque os mortos “se vestiam
com luxo” e “pareciam pessoas de tratamento”. “Um mistério!” – proclama Lemos,
o repórter de polícia, num misto de satisfação e espanto. (BARRETO, 1997, p.
162). O que segue daí por diante é um alvoroço típico da redação quando, tomada
de assalto pelos acontecimentos da rua, sente-se desafiada a transformar sua
principal matéria-prima, as informações ainda por checar, elementos brutos, como
boatos, bizus, dicas, deixas, dados extra-oficiais, não-oficiais ou mesmo oficiais,
em notícias, ou seja, em informações precisas para o maior número de pessoas
possível. No caso, porém, o que se passa na redação de O Globo é uma inversão
ética dessa forma moral de trabalhar, numa demonstração típica de subversão dos
acontecimentos, ou de parte deles, para atiçar no público a curiosidade além da
dimensão que os acontecimentos em si já seriam capazes de naturalmente despertar
– visando, em última análise, apenas o aumento das vendas e lucro de toda ordem.
Depois de lançar, afixando à porta do jornal, para o público passante na rua, um
boletim do ocorrido como havia sido repassado pela polícia, quando “a notícia
espalhou-se rapidamente, com uma rapidez de telégrafo, com essa rapidez peculiar
às noticias sensacionais que, nas grandes cidades, se transmitem de homem a
homem quase com a velocidade espantosa da eletricidade” (BARRETO, 1997, p.
162-3), quase todos os repórteres e redatores passam a trabalhar em torno desses
acontecimentos visando a publicação do jornal. Nesse momento é quando se
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produz “a cabeça”, ou seja, a parte introdutória de uma notícia, conhecida também
como “nariz-de-cera”, muito comum nos primórdios do Jornalismo brasileiro mas
posteriormente abolida por conta de seu caráter discursivo, laudatório, pomposo,
tergiversante, às vezes anético e incongruente (e portanto, hoje, dispensado),
conforme explica num mesmo sentido discursivo-didático, a voz do próprio
narrador, tomando como exemplo um outro acontecimento, o caso de uma briga
entre amantes por causa de ciúmes que virou notícia.
Chama-se “cabeça” nos jornais às considerações que precedem
uma notícia. Feita com a moral de Simão de Nantua e a leitura
dos folhetins policiais, a “cabeça” é a pedra de toque da
inteligência dos pequenos repórteres e dos redatores anônimos.
Para dar um exemplo, vou reproduzir aqui trechos de uma
“cabeça”.
Tratava-se de uma briga entre amantes e o repórter, após intitular
a notícia — “o eterno ciúme” — começou a filosofar, com muita
lógica e inédita psicologia:
“O ciúme, esse sentimento daninho que embrutece a imaginação
humana e a arrasta à concepção de crimes, cada qual mais trágico
e horripilante, não cessa de produzir seus efeitos maléficos”.
Continuava, após um período intermediário:
“No caso de que nos vamos ocupar, trata-se da briga entre dois
amantes, motivada de uma parte pelo ciúme e da outra pela
repulsa natural de quem se sente ofendido e maltratado”.
São assim, com poucas variantes, as “cabeças” (BARRETO,
1997, p. 163).
A voz do narrador, ainda nessa Seqüência Discursivo-Didática, explica o
que vem a ser “tiras” (que, com o aprofundamento da modernização da imprensa,
viriam a se transformar em “laudas”, hoje em desuso), num momento em que a
máquina de escrever ainda não tinha chegado às redações, ou seja, os textos ainda
eram manuscritos antes de irem para a composição, montagem e impressão.
É preciso saber-se que as tiras no jornal são menores e levam
menos palavras que as redigidas por qualquer pessoa não afeita ao
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ofício. São escritas com grandes intervalos entre as linhas e
grandes espaços entre as palavras, para facilitar a composição
(BARRETO, 1997, p. 163).
A voz de Caminha explica ainda como se dava o processo de titulação,
quando, no caso da morte misteriosa do casal nos Campos de São Marcos, passou-
se da sugestão de “Crime no pampa” para “Bucolismo e tragédia”, em seguida para
“Ciúme e crime”, chegando-se finalmente ao que as vozes unânimes da redação
consideraram o mais apropriado, “Descampado da morte”, que hoje estaria mais
adequado para ser um antetítulo, posto o título ter adquirido até o presente outras
características técnico-linguísticas, como a explicitação direta do sujeito ativo, o
verbo dicendi a ressaltar a ação do acontecido, e o complemento da oração posto
de forma sintética e precisa, sem dubiedades e sinais de pontuação. Nessa mesma
seqüência do discurso, a voz do narrador explica, por fim, como eram distribuídas
as funções de cada um na empresa, como aqueles que ficavam a trabalhar na
feitura da notícia dentro da redação, como no caso da elaboração da “cabeça” e dos
sistemáticos boletins que sustentavam a curiosidade de um público cada vez maior;
aqueles que eram designados para cobrir o acontecimento in loco, na polícia e
sentir as reações nas ruas, os humores nos cafés, as opiniões da cidade; e aquele
que, por detrás de toda essa engrenagem, funcionava como um importante,
decisivo e motivador agente de sua dinâmica, desempenhando o papel de
especulador e inescrupuloso capitalista, o diretor Ricardo Loberant que, de sua
sala, espreitava o “poviléu” por “detrás da veneziana semicerrada”, vislumbrava os
números de sua lucratividade, acompanhava os passos da concorrência e incitava
as pessoas a se mobilizarem contra o poder constituído quando nisso tinha
interesses escusos.
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Um desses casos demonstra a relação direta da imprensa com a cidade. Ou
talvez seja melhor dizer: do jornal com o poder público municipal em que os citadinos
são transformados em meros coadjuvantes pró-ativos. Trata-se da instituição de um
projeto de lei do Conselho Municipal que estabelecia a obrigatoriedade de utilização
de sapatos por todos os transeuntes da cidade. Todos que saíssem às ruas estariam
obrigados a calçar sapatos. A lei nascera da idéia de que a cidade precisava se
modernizar e competir com outras que também ingressavam na urbanidade mais
avançada da época. No caso específico, conforme a voz do narrador, a concorrência
entre as cidades, na sociedade moderna, nascia com forte adversidade entre o Rio de
Janeiro e Buenos Aires, influindo nas leis e operando transformações urbanas no
sentido de produzir um certo refinamento da urbanidade, sentimento então nascente
com a República, provocando, com efeito, o dissenso popular, pelo preconceito e pela
imposição legal das elites, sob o argumento da antibarbárie.
Nós passávamos então por uma dessas crises de elegância, que,
de quando em quando, nos visita. Estávamos fatigados da nossa
mediania, do nosso relaxamento; a visão de Buenos Aires, muito
limpa, catita, elegante, provocava-nos e enchia-nos de loucos
desejos de igualá-la. Havia nisso uma grande questão de amor-
próprio nacional e um estulto desejo de não permitir que os
estrangeiros, ao voltarem, enchessem de críticas a nossa cidade e
a nossa civilização. Nós invejávamos Buenos Aires
imbecilmente. Era como se um literato tivesse inveja dos carros e
dos cavalos de um banqueiro. Era o argumento apresentado logo
contra os adversários das leis voluptuárias que aparecem pelo
tempo: “A Argentina não nos devia vencer; o Rio de Janeiro não
podia continuar a ser uma estação de carvão, enquanto Buenos
Aires era uma verdadeira capital européia. Como é que não
tínhamos largas avenidas, passeios de carruagens, hotéis de
casaca, clubes de jogo?” (BARRETO, 1997, p. 161).
Pode-se perceber, nas vozes favoráveis à lei dos sapatos, a questão do
turismo (não há na obra esta palavra) sendo convocada e aclamada como algo
possível, dado as belezas naturais existentes na cidade do Rio de Janeiro e que
precisavam ser vistas por visitantes estrangeiros que trariam recursos e assim
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compensariam os investimentos realizados. Era também ressaltada a necessidade
da existência de gastos na construção de ruas largas “para diminuir a prostituição e
o crime e desenvolver a inteligência nacional” (BARRETO, 1997, p. 161).
Por trás dessas idéias e defesas ardorosas, havia os interesses em propinas e
lucros, por parte de corretores, banqueiros, empresários, sindicatos, políticos,
jornalistas, tendo como objeto um empréstimo a ser contraído pela prefeitura
através de um outro projeto de lei. A lei dos sapatos obrigatórios, portanto, havia
precipitado os que eram a favor do empréstimo e aqueles que o desaprovavam pela
sua falta de necessidade. Uma das formações da voz do narrador, transcrita abaixo,
dá a exata dimensão dos interesses de um desses lados envolvidos (aqueles que
estavam “à frente”, “os cinco mil de cima” e os que ganhariam com a
supervalorização de seus imóveis), através da defesa, pela voz da imprensa (O
Globo), dos investimentos para que houvesse as transformações urbanas na cidade
sob o argumento de que era preciso fazer a cidade ingressar em definitivo na
modernidade tendo como parâmetros outras cidades do mundo – além de Buenos
Aires –, como a Paris, do prefeito Georges-Eugène Haussmann, que entre 1853 e
1870 foi o responsável pela reforma urbana de Paris e assim tornou-se uma
referência na história do urbanismo, e a nobreza da Inglaterra ditada pela voz do
modilhosa da imprensa da época.
E os da frente, os cinco mil de cima, esforçavam-se por obter as
medidas legislativas favoráveis à transformação da cidade e ao
enriquecimento dos patrimônios respectivos com indenizações
fabulosas e especulações sobre terrenos. Os Haussmanns
pululavam. Projetavam-se avenidas; abriam-se nas plantas
squares, delineavam-se palácios, e, como complemento, queriam
também uma população catita, limpinha, elegante e branca:
cocheiros irrepreensíveis, engraxates de libré, criadas louras, de
olhos azuis, com o uniforme como se viam nos jornais de moda
da Inglaterra. Foi esse estado de espírito que ditou o famoso
projeto dos sapatos (BARRETO, 1997, p. 161-2).
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Ao final de seu dialogismo, Caminha não deixa de relatar que se transforma,
enfim, senão num doutor, como inicialmente queria e para isso tinha tomado uma
das decisões mais importantes de sua vida – quando decidira partir de um
lugarzinho esquecido e distante, situado no interior do Rio de Janeiro, onde deixara
uma mãe triste e doente, para se bandear para a principal cidade do país, a capital
da nascente e esperançosa República, onde apostaria na sorte e em seus esforços
intelectuais –, se transforma ao menos num repórter de uma das publicações mais
influentes da época, o jornal O Globo, fato que ocorre meio que por acaso e em
condições para as quais concorreram menos a sua capacidade intelectual e
honestidade literária, a sua ambição e o seu ímpeto pessoal, e mais por aquilo que
veio involuntariamente saber e pessoalmente testemunhar acerca dos segredos
íntimos e atos inescrupulosos da voz-maior da redação, a voz-mor da empresa
jornalística, a voz corretiva dos desígnios públicos de terceiros e do país, a voz do
todo-poderoso Ricardo Loberant. Torna-se, assim, amigo do diretor, o que desperta
a inveja de seus iguais, sem, no entanto, por isso, perder a sua condição de classe
socialmente inferior, realidade que lhe assoma, mas sobre a qual tem, além de uma
profunda e inelutável melancolia, plena consciência. “Eu sentia bem o falso da
minha posição, a minha exceção naquele mundo”, diz, em voz confessional
(BARRETO, 1997, p. 219). Sobre esse revés de seu destino, e de sua prostração
social diante da muralha que são as condições adversas da sociedade, também não
estava inconsciente, como é próprio às vozes sociologicamente ricas e
literariamente dialógicas. “Não; eu não tinha sabido arrancar da minha natureza o
grande homem que desejara ser; abatera-me diante da sociedade; não soubera
revelar-me com força, com vontade e grandeza...” (BARRETO, 1997, p. 219). Mas
sabia que tinha que prosseguir, continuar, seguir em frente, rumo ao seu previsível,
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mais ainda não alcançado, destino. “Sentia bem a desproporção entre o meu
destino e os meus primeiros desejos; mas ia” (BARRETO, 1997, p. 220). Uma
retratação, portanto, de outras vozes, de outras épocas, de outros sentimentos e
experiências vividas ou ainda por viver num plano definido e intersubjetivamente
real.
Percebe-se, assim, nesse conjunto imenso de vozes da obra limo-barreteana,
que todas, de uma forma ou de outra, no sentido conceitual bakhtiniano mais
amplo, estão entrelaçadas e em fulgurante movimento. Um movimento dialético
que se dá através de Caminha, o narrador, este sendo, ao mesmo tempo, ou seja, e
vice-versa, uma voz conscienciosa, autônoma e independente em relação às
demais. Todas as vozes, dessa forma, compõem o dialogismo polifônico e
discursivo da poética barreteana nas Recordações do Escrivão Isaías Caminha.
Recordações que são também uma voz memorialística do autor, da cidade e de
todas as outras personagens que, conjuntivamente, compõem, com o leitor e a sua
voz igualmente conscienciosa e independente, um quadro dialogal que remonta,
num jogo polifônico de elevado sentimento artístico-cultural, o panorama de uma
época que passou por grandes transformações políticas, sociais e econômicas, que
por sua vez se refletiram sobre seu próprio meio e remodelaram todos os
recônditos da vida societária de então – no caso, os aspectos moral, ético e toda a
produção material. A cidade, nesse contexto real, à medida que se produz, é
imaginariamente reproduzida, também como voz em e de suas próprias bases
sócio-espaciais, e projeta-se indefinidamente para o futuro. O mesmo se dá com a
produção jornalística e seus principais atores em todos os níveis societários. Trata-
se da estratificação real e intersubjetiva de seu próprio ethos, práxis e meio. O que
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emerge daí, dessa colossal e complexa polissemia discursiva limo-barreteana, é
uma sociedade em transição, contraditória, excludente, com evidentes
conseqüências naquele pretérito que transcorrem até o presente. Com efeito, a voz
de Caminha, solitária, amargurada, triste, demonstra sofrer, impassível – salvo por
ser voz –, todo o peso dessas circunstâncias. Portanto, uma voz narrativa, aqui
ainda em amplo sentido bakhtiniano, que, a despeito de ser uma voz lamentosa,
inclusive daqueles que nem vozes têm, revela, em tom de denúncia e
desmascaramento, que a sociedade e todos os esforços envidados pelos indivíduos
para virtuosamente se alcançar o bem e o bom, motivados por um devir incutido e
socialmente alimentado como factível e acessível a todos, se mostra na verdade
falsa e inúteis. Numa palavra: revela e denuncia a luta em vão e frustrante do
indivíduo que busca realizar seus sonhos numa sociedade que assim não lhe
prometera e também nada cumprira.
101
Foto 1 - Escritor Lima Barreto em
1919: fotografado no Instituto de
Neuropatologia.
Foto 2 - Morro do Castelo, no Rio de Janeiro, sendo derrubado, em
1905, pelo poder público: objeto de reportagem real no Correio da
Manhã mesclada com literatura ficcional fantástica.
Foto 3 - Demolições na Avenida Central, Centro no Rio de Janeiro: tipo de modernização urbana que se
constituía em uma das principais preocupações do escritor e do jornalista Lima Barreto.
http://bussolaliteraria.blogspot.com/ http://cafehistoria.ning.com/
http://picasaweb.google.com/lh/photo/rWtBFFMTCC2Rpj3q_83y0w
102
CAPÍTULO 2
Comunicação e Arquitetura: encontros
empíricos nas esquinas da urbanidade
contemporânea
1. Delimitação temática: aproximando pensares
objetivo específico do presente capítulo é – como continuidade temática e
ao mesmo tempo subtemática de nossa tese – tentar mostrar que é possível
construir saber científico através de uma convergência entre a Comunicação e a
Arquitetura, ambas enquanto campos disciplinares produtoras de conhecimento e
de práticas cotidianas no espaço urbano da cidade contemporânea. Exatamente
neste sentido também pretendemos, ao final do presente capítulo, como estudo de
caso, trazer a nossa contribuição empírica, fomentando assim um debate que visa
consubstanciar a construção epistemológica via novos modelos paradigmáticos de
avaliação e síntese de teorias e realidades. Sujeito e objeto desta forma se
ampliarão ao invés de se fragmentar, pois aqui tentar-se-á costurar numa nova
trama o que está estilhaçado por princípios do saber moderno acerca desses dois
campos, considerados hoje, erradamente, por alguns, tão distantes quanto
incongruentes, tão estanques quanto incompatíveis. Assim, inevitavelmente, outros
elementos para a construção deste saber virão à baila; irão emergir à discussão.
O
103
Deve, portanto, o leitor estar preparado para uma outra interpretação, através da
qual que pretendemos fazer surgir, em desvelo, por conseguinte, uma outra
realidade, talvez nova, muito provavelmente inédita, reveladora de si mesma, mas
não exclusivista, posto pertencer – embora implicitamente, por se encontrar
subsumida – a ambos os campos do saber aqui escolhidos e já tão bem definidos
pelos critérios e inteligências da Modernidade.
Com efeito, as vias práticas pelas quais tentaremos aproximar esses campos
serão a diagramação jornalística, midiática e contemporânea, como elemento da
Comunicação Social, e a cidade moderna, igualmente midiática e contemporânea,
como elemento da Arquitetura. Para tanto, e de forma mais específica, escolhemos
para a nossa análise, como objetos concretos desses dois campos do saber, e como
elementos sociológicos da urbanidade avançada, respectivamente, a diagramação
do Jornal de Brasil, esta enquanto projeto pensado e implementado no final do
segundo quartel do século passado, e que se constitui numa das mais significativas
e influenciadoras reformas gráficas jamais feita no país, e a cidade de Brasília, esta
também como projeto elaborado e implementado no mesmo período do século XX,
e que da mesma forma se constitui até hoje como um dos marcos mais importantes
da Arquitetura Moderna Brasileira (sobre os detalhes históricos de ambos projetos
falaremos adiante). A análise irá privilegiar – como o faz Ginzburb em alguns de
seus estudos, conforme veremos – a questão morfológica materializada desses
projetos, tratando-a inclusive de modo relacional. Tomaremos, portanto, suas
produções como construtos visuais e artefatos espaciais, utilitários e concretos,
observando, naturalmente, outras categorias societárias, mais conhecidas e
condicionantes da história (sociológicas), como a política e a economia.
104
Para alcançarmos tais intentos, contudo, utilizaremos a Teoria do
Conhecimento Indiciário, conforme coligida historicamente, sistematizada e
aplicada, através de diversos trabalhos práticos, pelo pensador italiano Carlo
Ginzburg. Dela utilizaremos ora em maior ou menor grau, ora em transversalidade,
os conceitos de venatório, divinatório, semiótico e indiciário, estes dois muito mais
provavelmente que aqueles. Trata-se de um modus paradigmático de recolhimento
e análise de fragmentos "esquecidos" no tempo-espaço pela maioria dos
pesquisadores e algumas metodologias das ciências humanas, particularmente
aquelas que se utilizam de Metanarrativas, que por sua vez se ocupam mais da
historicidade e dos acontecimentos grandiloqüentes, necessariamente encadeados
num continnum, delimitado, sincrônico, e, quase sempre, invariável, do que dos
detalhes esparsos, perdidos ou quase perdidos, por vezes diacrônicos, na maioria
das vezes imperceptíveis, que, contudo, podem ser reconstruídos numa nova
tecitura lógica e histórica.
O Saber Indiciário, como também é chamado, assim, preocupa-se mais com
os microfatos e elementos particulares ou residuais passados, que foram
desprezados e/ou não encadeados, num novo plano, pelos saberes, digamos, mais
tradicionais, e o reconstrói num outro painel sócio-histórico. Tal empreendimento,
contudo, não vem a ser a negação, na acepção mais radical da palavra, desses
saberes mais conhecidos e utilizados. Muito pelo contrário: apresenta-se como um
paradigma que possibilita o resgate e a interpretação histórica, inclusive a geral,
com bases em microelementos, além de lógicos e concretos, como dissemos acima,
em premissas e conceitos passíveis à aferição e à validação por outras concepções
de verdade. A própria delimitação de nossos objetos de estudos – os projetos de
105
diagramação do Jornal do Brasil e arquitetônico-urbanístico de Brasília, situados
num mesmo período histórico-nacional – já provam isso, sem contar com alguns
trabalhos do próprio Ginzburg, como A micro-história e outros ensaios (1989), no
qual, utilizando-se daquilo que chama de micro-história, resgata a história da arte
italiana, entre outros vários estudos exemplares nesta e em outras variadas obras.
O que tem de tão importante e como se constitui afinal esse Saber
Indiciário sistematizado por Ginzburg? Como ele poderá nos ajudar a tentar
relacionar Comunicação e Arquitetura e fundamentar uma análise de base
empírico-morfológica sem que caiamos numa mera pareidolia ou mesmo numa
vulgar apofenia? Como, a partir desta análise, o Saber Indiciário poderá
possibilitar a emersão de uma outra possível forma (perspectiva) de conhecimento?
E como poderá nos ajudar a se debruçar sobre uma simples realidade objetiva e
fazer surgir daí alguma verdade? São respostas para estas e outras perguntas que
tentaremos dar no tópico a seguir e pretendemos demonstrar no tópico posterior.
2. Saber Indiciário: metafragmentos de e para outra versão histórica
Talvez a obra do historiador italiano que resuma mais apropriadamente, em
termos explicativos, a concepção do indiciarismo, como afirmação de ciência, seja
Sinais: raízes de um paradigma indiciário, ensaio que faz parte de seu interessante
livro Mitos, emblemas, sinais: morfologia e história (1989); e a que melhor mostre
a aplicação prática desse método seja aquele trabalho do mesmo autor que é
mundialmente, segundo Rojas (2003), o mais conhecido, o livro O queijo e os
vermes: o cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pela Inquisição (1989).
106
Com base nessas e demais não menos importantes reflexões e pesquisas do
pensador e historiador italiano, buscaremos mostrar a fundamentação
paradigmática do indiciarismo histórico, que aqui vamos utilizar para cimentar
nossas tentativas de aproximação científica e de análise, já apontando,
condicionalmente, para os nossos objetos de estudo.
Segundo Ginzburg (1989, p. 143), foi por volta do final do século XIX que
“emergiu, silenciosamente no âmbito das ciências humanas, um modelo
epistemológico (caso se prefira, um paradigma)” sobre o qual, apesar de operante,
“não se prestou suficiente atenção”. A análise desse paradigma, continua Ginzburg,
“talvez possa ajudar a sair dos incômodos da contraposição entre racionalismo e
irracionalismo”, ou seja, daquilo que poderia ser considerado como ciência e não-
ciência, diante de tanta diversidade descartada e de tantos detalhes não mesurados.
Ginzburg revela inicialmente uma história tão interessante quanto aquilo que o
próprio Saber Indiciário se propõe a fazer: desvendar o enigmático, o misterioso. E
dentro de uma característica que também é própria do método: a narrativa
pormenorizada, o relato minucioso. Nessa história, Ginzburg junta um monte de
peças, dentre as quais elementos de estudos de um italiano chamado Giovanni
Morelli; da psicanálise de Sigmund Freud; e da forma lógico-dedutiva de Sherlock
Holmes, figura criada (e um dos três personagens mais famosos da literatura,
segundo Peter Haining, ao lado de Hamlet e Robinson Crusoé) por Sir Arthur
Conan Doyle, formando, ao final, um belo e surpreendente quebra-cabeças. Senão
vejamos.
Entre 1874 e 1876, diz Ginzburg, apareceu na Alemanha uma série de
artigos sobre a arte italiana, assinados pelo desconhecido estudioso russo Ivan
107
Lermolieff, e que foram traduzidos para o alemão pelo igualmente desconhecido
Johannes Schwarze. Somente alguns anos depois é que o autor dos escritos “tirou a
dupla máscara”: tratava-se da mesma pessoa, o italiano Giovanni Morelli,
“sobrenome do qual Schwarze é uma cópia e Lermolieff o anagrama” (e de cujo
prenome Johannes seria uma aproximação e Ivan uma derivação,
acrescentaríamos). O que Morelli apresentava, porém, em seus escritos, seria o
algo muito mais importante: aquilo que também pelos anos seguintes viria a ser
conhecido pelos especialistas em arte como o “método morelliano”. Tal método
consistia em não negligenciar, ao exame de obras de autores desconhecidos,
repintadas ou possivelmente falsificadas, os detalhes, os pormenores que são
próprios de cada pintor e menos característicos das escolas às quais pertence, posto
estes serem mais vistosos, evidentes e, portanto, mais passíveis de imitação do que
aqueles. Assim, ao invés do que normalmente se faz ao examinar um quadro,
dever-se-ia, por exemplo, observar pormenores como os lóbulos das orelhas, as
unhas, as formas dos dedos das mãos e dos pés. “Dessa maneira, Morelli
descobriu, e escrupulosamente catalogou, a forma de orelha própria de Botticelli, a
de Cosmè Tura e assim por diante: traços presentes nos originais, mas não nas
cópias”, afirma Ginzburg (1989, p. 144).
O método de Morelli, continua Ginzburg, cujas obras se encontram
recheadas de ilustrações de orelhas, dedos e outras minúcias que podem fazer
qualquer museu estudado por ele parecer mais um “museu criminal”, pois pode
levar um artista a ser descoberto por detalhes de sua obra assim como um
criminoso pode ser “traído” por suas impressões digitais, se aproxima, dessa
maneira, do método de investigação utilizado “quase nos mesmos anos” pelo
108
personagem Sherlock Holmes e seu criador, o escritor inglês Arthur Conan Doyle.
Ginzburg lembra que num dos contos de Doyle, “A caixa de papelão”, Holmes
literalmente “dá uma de Morelli”. “O caso começa exatamente com duas orelhas
cortadas e enviadas pelo correio a uma inocente senhorita”, informa Ginzburg,
acrescentando que, ao final, Holmes descobre o mistério por ter estudado e até
publicado na Revista Antropológica um artigo exatamente sobre a complexidade
identitária dessa parte do corpo que em cada pessoa se difere em particularidades
das demais.
Não se trata, porém, afirma Ginzburg, de um mero paralelismo entre o
método de Morelli e o utilizado pelo detetive inglês em dezenas de aventuras
criadas por Doyle – com o que concordamos. Isso porque o método de Holmes –
acrescentaríamos – é lógico-dedutivo, ou seja, semicientífico, e deriva, suas
observações e conclusões, da realidade objetiva, das evidências microcósmicas,
esparsas, mas contidas de grandes verdades.
Segundo um texto inédito escrito pelo próprio Doyle, intitulado A verdade
sobre Sherlock Holmes, publicado recentemente no Brasil junto com algumas
aventuras também inéditas de Holmes (DOYLE, 2006), sua inspiração para o
detetive e o método de descobertas utilizado por ele no personagem teve início em
1876, quando começou seu curso de medicina na Universidade de Edinburg, e
manteve contato com “a personalidade mais notável que conheci”, o professor e
cirurgião Joseph Bell. “Era um cirurgião muito capaz, mas o seu ponto forte era a
diagnose, não só de doenças, mas de caráteres”, diz Doyle (2006, p. 32). E explica:
ao receber os pacientes, o médico/professor já adiantava para os próprios
consultados e à platéia de alunos as características pessoais e de vida que só os
109
doentes sabiam e tinham vivenciado. Depois informava, em encadeamento, os
dados minuciosos que o levavam àquelas conclusões lógicas, inclusive sobre a
origem e os lugares onde ocorreram os contágios de certas doenças, com base
apenas nos gestos, roupas, formas de se comportar, de falar e de se portar dos
pacientes.
“Não admira que depois de estudar uma personalidade dessas eu usasse e
ampliasse seus métodos quando, mais tarde na vida, tentei criar um detetive
científico que elucidasse casos em função de seus méritos e não da loucura do
criminoso”, revela Doyle (2006, p. 33).
De fato, se observamos as histórias de Doyle vamos encontrar nelas várias
referências que ele faz a respeito de seu método de descoberta da verdade criminal,
com base em uma diagnose que poderíamos chamar de social, e às vezes até
mesmo com alguma prognose sobre decisivos acontecimentos acerca da questão
que se tem por desvendar.
Pinçamos alguns trechos de algumas dessas histórias inéditas de Doyle
(2006) a título apenas de ilustração da prática sherlokiana, ou talvez seja melhor
dizer do método Bell-Doyleano. São trechos que reforçam a tese de que não se
trata de uma forma vulgar e totalmente comum de observação, análise e conclusão,
mas de um modelo racional que utiliza parâmetros de cientificidade. Passemos aos
trechos. 1) Sobre a qualidade do particular na persona: “sempre tive uma fraqueza
pelo estudo e a análise do caráter humano, e encontrava muita coisa interessante no
microcosmo em que vivia” (O mistério da casa do tio Jeremy); 2) Sobre um dos
recursos técnicos, a imaginação, à qual devem se encaixar as evidências dos fatos
(lembramo-nos aqui do nobel Stephen W. Hawking com seus livros de física que
110
nos remetem à imaginação lógica da fantástica possibilidade de viagem no tempo):
“ao invés de deduzir o que aconteceu dos dados conhecidos, devemos construir
uma explicação fantasiosa que seja coerente com os acontecimentos conhecidos.
Podemos então testar essa explicação em face de qualquer dado novo que possa
surgir. Se tudo se encaixar, a probabilidade é de que estejamos no caminho certo, e
a cada fato novo essa probabilidade aumentará em progressão geométrica até que a
evidência se torne definitiva e convincente” (O caso do homem dos relógios); 3)
Sobre um dos princípios do método, buscar a verdade no fragmento, tentando,
conforme ele mesmo diz, esclarecer a questão de forma crítica e semicientífica,
usando a dedução lógica: “um dos princípios elementares do raciocínio prático é
que, quando o impossível foi eliminado, o resíduo, por mais improvável que seja,
deve conter a verdade” (O caso do trem desaparecido); 4) Sobre a importância dos
detalhes: “conforme já tentei lhe incutir muitas vezes, Watson, os detalhes são os
dados de maior importância” (O caso do homem procurado); 5) Sobre um dos
princípios do método: “a primeira coisa a se fazer é avaliar a inteligência e a
astúcia do criminoso” (O caso do homem procurado); 6) Sobre, por fim, os
detalhes de sua criação e de seu método, Doyle revela, numa entrevista, que se
inspirara também em Poe para aperfeiçoar o que absorvera de seu antigo professor
em Edinburg: “comecei a arquitetar uma história dotando meu detetive de um
sistema científico, de modo a fazê-lo deduzir tudo logicamente. Intelectualmente
isso já fora feito antes por Edgar Alan Poe com M. Dupin, mas o ponto em que
Holmes diferia de Dupin era que possuía uma enorme base de conhecimento exato
a que recorrer em conseqüência de sua educação científica” (Conan Doyle conta a
verdadeira história do fim de Sherlock Holmes).
111
Não seria à toa, portanto, conforme o próprio Doyle (2006, p. 188-197)
revela num outro artigo de sua autoria (Alguns dados pessoais sobre Sherlock
Holmes), que tivessem lhe chegado às mãos casos da vida real semelhantes aos
“que inventei para demonstrar o raciocínio do Sr. Holmes” e nos quais “o método
de raciocínio daquele cavalheiro foi copiado com pleno êxito”. Ou seja: a vida não
só imitou, mas se utilizou da arte.
Tudo isso demonstra, como dizíamos, que a relação entre Morelli e Doyle
não é um mero paralelismo, como defende o próprio Ginzburg e que, em sua
narrativa da interessante história sobre Morelli-Doyle-Freud, que aqui retomamos,
avança ainda mais para demonstrar essa sua tese. Ginzburg cita que o grande
responsável pelo resgate do método de Morelli foi E. Wind, que viu nele um
exemplo da “atitude moderna”, pois demonstrava ter um alto grau de observação e
análise do gênio criador através da arte. Quando Wind fala que Morelli se
aproximaria da psicologia moderna por definir que “os nossos pequenos gestos
inconscientes revelam o nosso caráter mais do que qualquer atitude formal,
cuidadosamente preparada por nós”, tal expressão, “psicologia moderna”, segundo
Ginzburg (1989, p. 145-146), poderia ser “diretamente substituída pelo nome de
Freud”. Isso porque, com o resgate feito por Wind do método de Morelli, muitos
pesquisadores voltaram suas atenções para uma passagem que por muito tempo foi
negligenciada de um ensaio de Sigmund Freud, Moisés de Michelangelo, publicado
originalmente em 1914.
Nessa passagem Freud, segundo Ginzburg, cita que antes de ouvir falar em
Psicanálise conhecera um método, que provocara “uma revolução nas galerias da
Europa”, através dos ensaios de um certo especialista russo chamado Ivan
112
Lermolieff. Tal método, continua Freud conforme Ginzburg, ensinava a distinguir
com segurança entre as imitações dos originais a partir dos “detalhes secundários,
das particularidades insignificantes, como a conformação das unhas, dos lobos
auriculares, da auréola”, que comumente passavam desapercebidos, inclusive do
falsificador, que assim deixa de imitar, mas que eram próprios de cada artista.
Foi depois muito interessante para mim saber que sob o
pseudônimo russo escondia-se um médico italiano de nome
Morelli. Tendo se tornado senador do reino da Itália, Morelli
morreu em 1891. Creio que seu método está estreitamente
aparentado à técnica da psicanálise médica. Esta também tem por
hábito penetrar em coisas concretas e ocultas através de
elementos pouco notados ou desapercebidos, dos detritos ou
“refugos” da nossa observação (FREUD apud GINZBURG,
1989, p. 147).
A citação de Freud feita por Ginzburg não é gratuita. Além de Freud ter
publicado o artigo anonimamente em 1914, na Imago, sob um pseudônimo
enigmático (‘de***’), e somente em 1924 revelar o seu disfarce quando decidiu
incluí-lo na publicação de suas Obras Completas – o que levou muitos a defender a
hipótese de que Freud foi motivado pelo próprio Morelli para esconder tão
deliberada e enigmaticamente a sua identidade –, o “pai da Psicanálise”, como
popularmente Freud é mais conhecido, também foi, seguramente, segundo garante
Ginzburg (1989a, p. 148), influenciado intelectualmente pelo senador e estudioso
da arte italiano, o que garantiria assim a Morelli “um lugar de destaque na
fundação da psicanálise”. Posição importante diante do que hoje sabemos em que
se transformou a Psicanálise, modelo imprescindível não só para a ciência médica
avaliar e conduzir as pessoas na busca pelo autoconhecimento e até a cura de certas
neuroses e psicopatologias, mas também para a análise de outras instâncias
produtivas da vida societária, incluindo a própria arte.
113
Antes de prosseguirmos, porém, com o relato de Ginzburg sobre os
encontros de Freud com os textos de Morelli e as conseqüências daí decorrentes,
vamos nos deter um pouco no ensaio dele acerca da escultura de Michelangelo
(obra em mármore que se encontra na Igreja de San Pietro in Vincoli, em Roma,
como parte da gigantesca tumba que o artista deveria erguer para o poderoso Papa
Júlio II), algo não analisado pelo historiador italiano, para nos cientificarmos de
sua utilização e aplicação do método morelliano. Na edição brasileira das obras
psicológicas completas de Sigmund Freud, (FREUD, 1974), o diretor geral da
tradução informa que Freud foi vê-la pela primeira vez em 1901 e por diversas
vezes posteriores, tamanho o seu interesse pela obra. De fato, no próprio artigo
Freud (1974, p. 255) confessa que “nunca uma peça de estatuária me causou
impressão mais forte do que ela”. E arremata: “quantas vezes subi os íngremes
degraus que levam do desgracioso Corso Cavour à solitária piazza em que se ergue
a igreja e tentei suportar o irado desprezo do olhar do herói! Às vezes saí tímida e
cuidadosamente da semi-obscuridade do interior como se eu próprio pertencesse à
tumba sobre a qual seus olhos estão voltados”.
Freud (1974, p. 253) começa defendendo a tese, paradoxal, de que “algumas
das maiores e mais poderosas criações da arte constituem enigmas ainda não
resolvidos pela nossa compreensão”. Há um encantamento tão forte, que só pode
ser decorrente das intenções intelectuais e emocionais do artista, que as tornam ao
mesmo tempo maravilhosas e inescrutáveis. Existem várias dessas obras-primas da
arte universal que provocam esse deslumbramento até hoje, como Hamlet, de
Shakespeare, hoje com mais de quatro séculos, e aquela que sobre ele exercia ainda
114
mais e decisivamente esse fascínio, a estátua do Legislador dos Judeus, segurando
os Dez mandamentos, produzida por Michelangelo.
A seguir, Freud apresenta algumas dentre aquelas interpretações que
considerava como as mais relevantes dentre as inúmeras realizadas sobre a obra e
que ele vinha amealhando, silenciosa e apaixonadamente, ao longo de anos.
Praticamente todas se concentram num ponto: interpretar o instante em que a
estátua, produzida entre 1512 e 1516, com seu semblante, expressões faciais,
gestos, modo de estar sentada, direção do olhar, intenções subjacentes etc., remete-
se correspondentemente ao momento bíblico em que o profeta se encontrava, o que
sentia, o que fez, o que faria dali por diante etc. Assim, há uma espécie de
entendimento tácito nessas análises: o instante eternizado da estátua remete ao
ínterim em que Moisés, ao descer o Monte Sinai, onde recebera de Deus as Tábuas,
percebera que o povo havia feito para si um bezerro de ouro e dançava ao redor
dele, e exatamente nessa ocasião reage com expressões que correspondem a todos
os estados congelados de seu corpo e, poder-se-ia dizer, da alma. Freud concorda
que o status da obra corresponde em sua plenitude a esse instante temporal do
patriarca, mas acha as interpretações, apesar de algumas com profunda agudeza,
insuficientes para dar cabo de toda grandiosidade e encantamento que ela encerra,
por negligenciar exatamente os detalhes. “Ora, em dois lugares da figura de Moisés
há dois pormenores que até aqui não apenas escaparam à observação, mas, na
realidade, nem mesmo foram corretamente descritos. São a postura da mão direita
e a posição das duas Tábuas da Lei” – afirma Freud (1974, p. 265) logo após ter
citado Morelli e o seu método de observação minuscular da arte. A partir daí, e
desses dois elementos, Freud faz uma análise pormenorizada e descritiva da
115
estátua, em que não passam desapercebidos protuberâncias das Tábuas; posição
dos dedos do pé direito; pressão do braço direito sobre as Tábuas; curvatura do
dedo indicador da mão direita sobre as madeixas que descem obliquamente no
canto inferior esquerdo do rosto; redemoinhos de pelos flexionados; cavas em
mechas da barba; e elementos fisionômicos que remetem a estados psíquicos. Para
isso Freud conta, inclusive, com a ajuda de quatro desenhos (além de fotografias)
que mandara elaborar para explicar melhor seu raciocínio e descobertas. As figuras
de Freud nos remetem aos instantes anteriores e posteriores ao representado pelo
meio-tempo da estátua, ou seja, sua análise alcança até imagética e
imaginativamente os momentos instantâneos e fracionais do antes e do depois
daquele estratificado por Michelangelo em sua obra. Apenas num breve período
(agora ‘período’ como uma reunião de orações que formam um sentido completo
de um enunciado) Freud narra, elucidativamente (como defende Ginzburg em seu
conceito de micro-história e também o faz em alguns de seus trabalhos), o que teria
ocorrido terminus ante quem e terminus post quem (para utilizamos também duas
expressões de Ginzburg) ao instante de cristalização da estátua. Conta, em síntese,
Freud (1974, p. 268): “Presumimos que a mão direita se achava, de início, afastada
da barba; que depois ela se estendeu para a esquerda da figura num momento de
grande tensão emocional, agarrou a barba, e que finalmente foi retirada de novo,
levando consigo uma parte da barba”. Dentre as demais conclusões, ao final, não
escaparam, como já dissemos, nem os aspectos psicológicos, que Freud coloca em
uma suma psicanalítica:
O que vemos diante de nós não é o início de uma ação violenta,
mas os restos de um movimento já efetivado. Em seu primeiro
transporte de fúria, Moisés desejou agir, levantar-se, vingar-se e
esquecer as Tábuas, mas dominou a tentação e permanecerá
sentado e quieto, com sua ira congelada e seu sofrimento
116
mesclado de desprezo... Ao dar expressão à sua cólera e
indignação, teve de abandonar as Tábuas e a mão que as retinha
foi afastada. Elas começaram a deslizar e ficaram em perigo de se
quebrarem. Isso o trouxe a si. Lembrou-se de sua missão e, por
causa dela, renunciou à satisfação de seus sentimentos. Sua mão
retornou e salvou as Tábuas antes que caíssem no solo. Nessa
atitude permaneceu imobilizado e foi nela que Michelangelo o
retratou como guardião do túmulo... À medida que nossos olhos
percorrem a figura de cima para baixo, a figura apresenta três
estados emocionais distintos. As linhas do rosto refletem os
sentimentos que predominaram; o meio da figura mostra traços
do movimento reprimido; e o pé ainda permanece na atitude da
ação projetada. (FREUD, 1974, p. 272).
Voltemos agora à importância do encontro Freud-Morelli. Segundo
Ginzburg, foi exatamente a proposta de um método interpretativo baseado em
resíduos, elementos marginais, pormenores normalmente desprezados pela
grandiosa maioria dos estudiosos da arte, por considerá-los triviais, mas que podem
ser decisivamente reveladores sobre o que se quer interpretar, aquilo que
possibilitou ao jovem Freud construir a sua monumental obra, de tal forma que
poderia muito bem fazer Morelli se apropriar adequadamente do lema virgiliano
(Flectere si naqueo Supero, Acheronta movebo, ou seja, “Se não posso dobrar os
poderes superiores, moverei o Aqueronte”), que anos depois fora escolhido por
Freud como epígrafe de seu livro A interpretação dos sonhos, sintetizando assim e
de certa forma todo um esforço intelectual e investigativo por toda sua vida.
O ciclo parece se fechar no momento em que se percebe que na relação
Morelli-Holmes-Freud há também uma relação Freud-Holmes-Morelli, quando,
segundo Ginzburg (1989a, p. 150), o próprio Freud manifestou, em O homem dos
lobos, “o seu interesse pelas aventuras de Sherlock Holmes” e, a um colega, T.
Reick, que por sua vez “aproximara o método psicanalítico ao de Holmes”, falara
com “admiração, na primavera de 1913, das técnicas atributivas a Morelli”. Dessa
tripla relação, cada qual com procedimentos semelhantes para casos e objetos
117
distintos, Ginzburg consegue resumir na palavra pistas aquilo que em cada um dos
três se ampliam em possibilidades infinitesimais de descoberta e que de outra
forma não alcançariam algum resultado tangível e provável. “Pistas: mais
precisamente, sintomas (no caso de Freud), indícios (no caso de Sherlock Holmes),
signos pictóricos (no caso de Morelli)”, diz Ginzburg (1989a, p. 150) que, baseado
nisso, em seguida questiona: “Como se explica essa tripla relação?”. O próprio
pensador italiano responde: “Freud era médico; Morelli formou-se em medicina;
Conan Doyle havia sido médico antes de dedicar-se à literatura”.
Ora, essa coincidência por si somente nada explica, por isso Ginzburg
destaca que nos três casos há um algo mais, um modelo paradigmático que ele
chama de “semiótica médica”, qual seja: “a disciplina que permite diagnosticar as
doenças inacessíveis à observação direta na base de sintomas superficiais, às vezes
irrelevantes aos olhos do leigo”. As três coincidências, assim, se dão no mesmo
instante em que “começou a se afirmar nas ciências humanas um paradigma
indiciário baseado justamente na semiótica”, e que, a despeito de emergir no final
do século XIX, mais precisamente na década de 1870-80, tem as suas raízes
históricas fincadas num passado tão remoto quanto profundo, que Ginzburg a partir
daí vai tentar entender, destrinçar e estabelecer os conceitos de venatório,
divinatório, semiótico e indiciário.
O primeiro conceito – venatório – tem a ver com a arte da caça. Ginzburg
(1989a, p. 151) explica que por milênios o homem foi caçador. Nesse período
amealhou um saber inestimável. Aprendeu a reconstruir narrativamente, a partir de
pegadas na lama, ramos quebrados, tufos de pêlos, bolotas de esterco, plumas
emaranhadas, odores estagnados, os passos das presas invisíveis. “Aprendeu a
118
fazer operações mentais complexas com rapidez fulminante, no interior de um
denso bosque ou numa clareira cheia de ciladas”. Nada documental, entretanto, a
esse respeito, ficou registrado, para colocá-los ao lado das pinturas rupestres e
outros artefatos, por isso há de se recorrer ao mito, às fábulas, onde se pode
encontrar algum eco dessa atividade cognoscitiva. Um dos exemplos é aquela
história, existente em vários povos, como os quirquizes, tártaros, hebreus e turcos,
de três irmãos que, ao serem questionados se viram um determinado animal
fugidio, mesmo sem terem visto, relataram dados precisos sobre a passagem e a
existência dele, sendo por isso presos e acusados de roubo, pelo simples fato de
conseguirem enxergar dados irrefutáveis onde os outros nada viam. “O que
caracteriza esse saber é a capacidade de, a partir de dados aparentemente
negligenciáveis, remontar a uma realidade complexa não experimentável
diretamente”, explica Ginzburg (1989a, p. 152).
Ginzburg, entretanto, chama atenção para o fato de que “decifrar” e “ler”
pistas de animais são apenas metáforas, as mesmas que, sob a explicação
mitológica do surgimento da escrita, na China, levaria a crer que os caracteres
foram criados a partir da observação das pegadas de um pássaro impregnadas nas
margens de um rio – mesmo sabendo-se que os pictogramas foram um excelente
passo da humanidade rumo à abstração em comparação com possíveis pegadas
concretas (pistas, materialmente) registradas de fato nalguma areia. No entanto, se
abandonarmos essas concepções etiológicas baseadas apenas na formulação
mitológica, e nos concentrarmos em dados concretos, como os documentos
mesopotâmicos escritos 3 mil anos antes de Cristo, veremos algo impressionante:
119
uma inegável analogia entre aquilo que caracterizaria o que agora entendemos
como venatório e o que Ginzburg chama de divinatório.
Se de um lado temos elementos ínfimos dos animais deixados para trás
caracterizando sua passagem, compleição e até dados sobre a sua existência
anterior à passagem, de outro, no campo do divinatório, temos outro sem-número
de dados particulares, também minusculares, como entranhas de animais, gotas de
óleo na água, astros, movimentos involuntários do corpo etc. que exigiriam uma
observação minuciosa, uma decifração acurada, além do comum. Se a diferença
entre essas artes de decifrar estaria em se saber o passado, na maioria das vezes um
passado recentíssimo, no caso do venatório, e o futuro, muito breve ou mesmo
muito distante, no caso do divinatório, em ambos a atitude cognoscitiva, segundo
Ginzburg (1989a, p. 153), era muito parecida, ou seja: “as operações intelectuais
envolvidas – análises, comparações, classificações – eram formalmente idênticas”.
Sobre a semiótica, é preciso dizer que, como rebusca o passado à cata de
pistas, o termo para Ginzburg não tem a concepção quase única como
majoritariamente a entendemos hoje, ou seja, como a ciência do signo, de raízes
norte-americanas. Mais que sua gênese, o saber baseado nessa premissa erigida por
Ginzburg está também, e intrinsecamente, ligado a uma constelação de outros
saberes particulares, inclusive relacionando-se àqueles sobre os quais discutimos
até agora, o venatório e o divinatório. Por isso, o termo disciplinas para essa
constelação de saberes, a princípio, conforme ele mesmo afirma, é “anacrônico”.
Poderíamos até relacionar as artísticas ou pseudocientíficas, como a fisiognomonia
e a arte divinatória, com as científicas, como o direito e a medicina, cada qual com
suas particularidades indiciárias, ou seja, com a utilização em maior ou menor grau
120
cada uma de pistas, sintomas e indícios, que ainda assim iríamos encontrar nelas
geneticamente elementos semióticos. Desta forma, semiótico, em Ginzburg, parece
nos remeter àquilo que a própria expressão etimologicamente encerra: algo que
pode ser semivisto, semiacabado, semidefinido e assim ser deslindado por uns
poucos experts. No entanto, se nos aprofundarmos nessa transversalidade
indiciária, com a semiótica inserindo-se nessa constelação de disciplinas, vamos
encontrá-la originariamente mais evidenciada no que Ginzburg chama de semiótica
médica, cuja principal característica é a diagnose e a prognose. Os próprios textos
mesopotâmicos de jurisprudência centenas de anos a.C. não se constituíam
somente em tratados de leis, mas também em registros de casos clínicos e/ou
cirúrgicos concretos. A semiótica médica aponta assim para o passado, o presente e
o futuro, da mesma forma que os outros campos do Saber Indiciários ora apontam
para o passado (venatório) e para o futuro (divinatório). Como se vê, o termo
indiciário é amplo e perpassa todas as esferas disciplinares em Ginzburg.
Mas Ginzburg vai estabelecer historicamente dois momentos
significativamente importantes para remontar ao desenvolvimento do Saber
Indiciário até a sua formação paradigmática no final do século XIX. O primeiro
ocorre na Grécia antiga, cerca de 500-400 anos antes de Cristo, quando,
inicialmente, numa sociedade mergulhada no divinal, faz surgir o paradigma da
conjetura (tekmon), ou o saber conjetural, que opera em todos os campos da
atividade humana (política, caça, pesca, história) e, em seguida, apartando-se desse
saber conjetural (“esmagado” pelo modelo platônico), à luz de novas disciplinas,
como a historiografia e a filologia, conquista-se uma nova autonomia social e
epistemológica através de antigas disciplinas, como a medicina, cuja nova relação
121
entre médico e paciente implantada, uma relação de saber e poder, permanece até
os dias hoje. “O corpo, a linguagem e a história dos homens foram submetidos pela
primeira vez a uma investigação sem preconceitos, que por princípio excluía a
intervenção divina”, diz Ginzburg (1989a, p. 155).
Isso ocorreu porque, com a medicina hipocrática, nascia um maior rigor
racional na observação dos sintomas (semeion), na definição dos males e
conseqüentemente na busca pela cura. “Apenas observando atentamente e
registrando com extrema minúcia todos os sintomas – afirmavam os hipocráticos –
é possível elaborar “histórias” precisas de cada doença”, diz Ginzburg.
O segundo momento dá-se após um transcurso de cerca de 2.500 anos, ou
aproximadamente 1.200 anos depois da morte de Hipócrates (460-377 a.C.),
quando, cerzindo afinal um processo ocorrido nesse período, em que houve um
aprofundamento contra a incerteza na busca cada vez mais precisa pelo saber,
através da peleja humana para se alcançar um maior rigor na forma de apuração e
observação dos fenômenos, Galileu Galilei (1564-1642) faz surgir, através da
física, remodelando as idéias aristotélicas, um novo paradigma em que se
cristalizam atividades abstratas e concretas, incluindo nele novos termos e
conceitos, relativamente àquilo que inaugurou e entendemos desde então por
ciência moderna.
O modus galileano, eminentemente quantitativo, porém, a despeito de seu
grande avanço e contribuições, exclui as disciplinas indiciárias, por sua vez
eminentemente qualitativas (hoje acomodadas no âmbito das ciências humanas),
como aquelas praticadas e desenvolvidas pelos médicos e pelos historiadores, pelos
literatos e pelos críticos literários. Estas duas, aliás, emergiram com mais força
122
exatamente à época de Galileu, por conta do aparecimento da imprensa,
engendrada afinal por Johann Gutenberg (1398-1468), após terem surgido com a
invenção da escrita cerca de 5.000 anos a.C. É preciso dizer aqui que o sentido de
crítico literário para Ginzburg refere-se a todo aquele que lê uma obra, uma
pesquisa etc. de maneira crítica, prospectiva, reflexiva, como o faz o pesquisador, o
docente, o cientista, ou seja, é uma atividade disciplinar de amplos saberes e atores.
O método e as idéias propugnados pelo físico italiano, assim, exclui da ciência da
natureza a possibilidade do homem ser sujeito-objeto central das coisas,
descartando peremptoriamente, por conseguinte, suas constituições e valores
antropomórficos e antropocêntricos, mesmo metaforicamente Galileu tendo
recorrido à imagem do livro para se dizer que a natureza se encontra escrita com
caracteres geométricos e que está aberta à decifração de todos que saibam dessa
linguagem e assim queiram interpretá-la. Por conta dessas idéias decisivas e
inaugurais de Galileu, Ginzburg (1989, p, 158) afirma que:
No mapa do saber abria-se um rasgo destinado a se alargar
continuamente. E certamente entre o físico galileano,
profissionalmente surdo aos sons e insensível aos sabores e
odores, e o médico contemporâneo seu, que arriscava
diagnósticos pondo o ouvido em peitos estertorantes, cheirando
fezes e provando urinas, o contraste não podia ser maior.
O médico a quem se refere Ginzburg é Giulio Mancini, de Siena, que viria a
ser o prestigioso, o principal, ou o “médico-mor”, como diz Ginzburg, do papa
Urbano VIII. Mancini era vulgarmente conhecido pela sua capacidade
extraordinária de diagnosticar doenças, bastando para isso um rápido, mas acurado
olhar sobre o paciente. Sobre a vida e a obra de Mancini, aliás, informa Ginzburg,
chegou-se em seu contexto a escrever um “léxico divinatório” dado a capacidade
dele de identificação dos males. Mas Mancini era também conhecedor
123
inteligentissimus da pintura. Escreveu um livro que foi amplamente conhecido
sobre o assunto, cujo longo título, Algumas considerações referentes à pintura
como deleite de um gentil-homem e como introdução ao que se deve dizer, séculos
depois inspirou a expressão cronnoisseurship, ou seja, o método defendido por ele
mesmo e através do qual poderia se reconhecer, levando-se em conta as
características do tempo e o caráter de unicum da arte, aquela que seria uma obra
verdadeira de um determinado artista em contraposição àquela que seria uma
fraude de um impostor.
Ginzburg traça um paralelo entre esse método e outros dois saberes
indiciários. O primeiro surgido mais ou menos no mesmo período de Mancini e
que foi desenvolvido pelo bibliotecário da biblioteca do Vaticano Leone Allaci,
que consistia em descobrir através da consideração temporal quais as datas dos
antigos textos gregos e latinos, método que foi meio século mais tarde retomado e
desenvolvido por Mabillon, fundador da ciência paleográfica. O outro é a
grafologia, cujas origens apontam para o médico bolonhês Camilo Baldi e o seu
Tratado sobre como de uma carta missiva se conhece a natureza e a qualidade do
escritor, no qual figura um capítulo que, segundo Ginzburg (1989a, p. 161), “pode-
se considerar o mais antigo texto de grafologia aparecido na Europa”. Ambos
saberes alimentaram o método de Mancini que, no entanto, não levou tanto em
consideração a contribuição que os valores consecutivos da grafologia, então
nascente, poderia lhe dar no campo da pintura. Tal fato faz Ginzburg chegar a uma
interessante – e perspicaz – conclusão:
Mas, não obstante as palavras elogiosas que lembramos, Mancini
desinteressou-se quanto ao objetivo declarado da nascente
grafologia, isto é, a reconstrução da personalidade dos
escreventes remontando-se do “caráter” escrito ao “caráter”
124
psicológico (sinonímia esta que remete, uma vez mais, a uma
mesma remota matriz disciplinar) (GINZBURG, 1989, p. 161).
Aliás, é sob o mesmo termo e o seu sentido sinonímico que Ginzburg
resume a confluência, por volta do ano 1620, dos caracteres imateriais de Galileu,
“lidos pelo cérebro”, de um lado, e, de outro, “os que Aladi, Baldi ou Mancini
decifravam materialmente em papéis, pergaminhos, telas ou quadros”, ambas as
formas dando-se em escalas e sentidos diferentes: a primeira indo em direção ao
universal, ao secular, e a segunda no caminho do particular, do individual. Sentidos
que, quanto mais se percorriam, mais se faziam distanciar. Inclusive no aspecto da
excludência do cientificismo.
Nesse ponto, abriam-se duas vias: ou sacrificar o conhecimento
do elemento individual à generalização (mais ou menos rigorosa,
mais ou menos formulável em linguagem matemática), ou
procurar elaborar, talvez às palpadelas, um paradigma diferente,
fundado no conhecimento científico (mas toda uma cientificidade
por se definir) do individual. A primeira via foi percorrida pelas
ciências naturais, e só muito tempo depois pelas ciências humanas
(GINZBURG, 1989a, p. 163).
Isso quer dizer que se houve um afastamento também houve ainda alguns
elos a interligar as esferas matemáticas/quantitativas e indiciárias/quantitativas,
como a estatística, apesar do dito inicialmente o contrário, até chegar-se aos dois
grandes campos epistemológicos atuais, relativamente às ciências da natureza e
humanas, ambos com seus estritos e considerados modelos paradigmáticos de
precisão e variação do saber. Neste sentido, Ginzburg destaca, por exemplo, que a
medicina continua a avançar com duas identidades inalienáveis, já que não
conseguiu se desvencilhar do caráter do individual, próprio do indiciarismo, e da
necessidade do generalizante, própria do galileanismo. Tanto que, a despeito da
evidente tendência para o rigor e para a norma, também permaneceu pendente para
a acuidade e a qualificação.
125
Depois de retomar as origens do paradigma indiciário no campo venatório,
na história dos três irmãos, filhos do rei de Serendip, que foram presos e julgados
por terem revelado o paradeiro e características de um animal, que nunca viram,
apenas com base em indícios a eles relatados, um conto tantas vezes reeditado e de
diversas formas recontado, inclusive por Voltaire (2001), no terceiro capítulo, “O
cão e o cavalo”, de sua obra Zadig, publicada pela primeira vez em 1748, Ginzburg
chega agora talvez ao ponto mais alto de sua exposição epistemológica do
paradigma indiciário. É quando apresenta o paradigma como metáfora. Faz uma
analogia do modelo com um tapete, cujos fios são, cada um e em cada sentido da
trama, o remontar de uma imagem do saber/real/histórico e fundante das artes e das
práticas cotidianas e/ou reflexivas dos campos venatório, divinatório, indiciário e
semiótico. Apesar de longa, preferimos aqui transcrever a explicação de Ginzburg,
pela sua importância e os aspectos denotativos que encerram:
Poderíamos comparar os fios que compõem esta pesquisa aos fios
de um tapete. Chegados a este ponto, vemo-los a compor-se numa
trama densa e homogênea. A coerência do desenho é verificável
percorrendo o tapete com os olhos em várias direções.
Verticalmente, e teremos uma seqüência do tipo Seredip-Zadig-
Poe-Gaboriau-Doyle. Horizontalmente, e teremos no início do
século XVIII um Dubos que classifica, uma ao lado da outra, em
ordem decrescente de inconfiabilidade, a medicina, a
connoisseurship e a identificação das escritas. Até mesmo
diagonalmente – saltando de um contexto histórico para outro –,
e, às costas de monsieur Lecoq, que percorreu febrilmente um
“terreno inculto, coberto de neve”, pontilhado de pistas de
criminosos, comparando-o à “imensa pagina branca onde as
pessoas que procuramos deixaram escritos não só os seus
movimentos e seus passos, mas também seus pensamentos
secretos, as esperanças e angústia que as agitavam”, veremos
perfilarem-se autores de tratados sobre a fisiognomonia,
adivinhos babilônicos empenhados em ler as mensagens escritas
pelos deuses nas pedras e nos céus, caçadores de Neolítico. (...) O
tapete é o paradigma que chamamos a cada vez, conforme os
contextos, de venatório, divinatório, indiciário ou semiótico.
Trata-se, como é claro, de adjetivos não-sinônimos, que no
entanto remetem a um modelo epistemológico comum, articulado
em disciplinas diferentes, muitas vezes ligadas entre si pelo
126
empréstimo de métodos ou termos-chaves (GINZBURG, 1989a,
p. 170).
O tapete metafórico de Ginzburg, no entanto, ainda está incompleto. Acima,
ele nos mostra a sua afiguração num tempo que antecede aos séculos XVIII e XIX.
Exatamente nestes, porém, especialmente a partir de meados do século XIX, outras
analogias de novos saberes científicos ou semicientíficos, inseridos numa outra
sociedade, a industrial, surgem e vêm se juntar, no campo das humanas, à trama do
tapete. Isso se dá através de um alternativo modelo semiótico, de um lado, e um
também alternativo entendimento orgânico da sociedade, de outro. Um exemplo do
modelo orgânico, segundo Ginzburg, é aquele expresso por Marx, em seu livro
Para a Crítica da Economia Política, que dizia comparativamente que “a anatomia
da sociedade civil deve ser buscada na economia política”, apontando, assim, pela
metáfora da “sociedade anatômica”, para o desmoronamento do último sistema
filosófico, o hegeliano. As ciências humanas, porém, segundo Gizburg, apesar da
grande contribuição do marxismo, acabaram por assumir muito mais o paradigma
alternativo da semiótica, que se centrava, cada vez mais, por derivação e evolução
histórica, nos interstícios do médico-artístico. “E aqui reencontramos a tríade
Morelli-Freud-Conan Doyle da qual partimos”, afirma Ginzburg (1989a, p. 171).
A partir da confecção desse paradigma, é hora, agora, diz Ginzburg (1989a,
p. 171), “de desarticulá-lo”. Faz isso através da distinção entre natureza e cultura.
Isso porque uma coisa é aquilo que compõe o conjunto deixado residualmente
pelos seres e coisas que independem da intervenção humana, refletida ou
consciente, e que já estão postos, dados, como as fezes, os rastros etc., e uma outra
coisa são, no indiciarismo, o debruçar-se percucientemente, as análises, como as da
escrita, do discurso, das pinturas etc.
127
Com efeito, no campo cultural, via somente por onde se pode compreender
o paradigma indiciário, o que sociologicamente também quer dizer societário, é
que Ginzburg vai encontrar as devidas explicações. Assim, ele identifica que é
precisamente entre os séculos XVII e XVIII, na Europa, que surge a necessidade
da sociedade burguesa, então nascente, de impor um controle social destinado aos
delinqüentes e, principalmente, aos reincidentes criminais. Isso se dá primeiro na
Inglaterra, em 1720, aproximadamente, com o aparecimento das relações de
produção capitalista; depois, no resto da Europa, com o Código Napoleônico,
instituído quase um século depois. Desta forma, a questão da identificação
individual, ou seja, dos indivíduos que compõem a massa populacional, torna-se
um desafio para as elites, pois deveria se romper com a tradição identificatória
anterior, que variava de sociedade para sociedade e o tempo, indo do simples
registro do nome ao sumário dos dados físicos. Nem mesmo a grande indústria, a
mobilidade geográfica e social a ela ligada, e nem mesmo as gigantescas
concentrações urbanas, afirma Ginzburg, conseguiram modificar completamente
essa forma variável e anterior.
Somente a partir dos novos fatos contemporâneos decorrentes da luta de
classes, como a criação da uma Associação Internacional de Trabalhadores; da
repressão da oposição operária depois da Comuna; e das modificações da
criminalidade, explica Ginzburb, é que se constituiu, a identificação dos
indivíduos, na “cabeça-de-ponte” de um projeto mais ou menos deliberado de
controle total e ao mesmo tempo sutil sobre a sociedade. “A respeitabilidade
burguesa” – afirma Ginzburg (1989ª, p. 173) – “precisava de sinais de
128
reconhecimento igualmente indeléveis, mas menos sanguinários e humilhantes do
que os impostos sob o ancien régime”.
Ginzburg registra narrativamente aquilo que poderíamos chamar aqui de
quatro importantes momentos do desenvolvimento do processo de identificação
elementar da massa populacional ameaçadora ao stableshiment, ocorrido sob a
necessidade social do controle por parte da sociedade burguesa, destacando nesse
processo o surgimento de outras ciências que, assim como ocorreu no tempo
anterior, a partir de Galileu, vingaram por se sustentar em bases mais sólidas, na
concepção de ciência moderna, ou simplesmente não vingaram por não conseguir
compatibilizar cientificamente o particular como o universal, como é próprio do
indiciarismo e como o fez e se constitui até hoje a medicina.
O primeiro desses momentos dá-se fundamentalmente com Purkyne,
fundador da histologia, em 1823, que identifica nove tipos fundamentais das linhas
papilares datiloscópicas e afirma, com base em seus estudos, não existir dois
indivíduos com impressões digitais idênticas. Purkyne tinha também formação
filosófica e, nesse campo, seguia o pensamento de Leibniz (1646-1716), que
metafisicamente defendia que todos os indivíduos possuem características
imperceptíveis e infinitesimais que compõem a sua singularidade, que podem
assim identificá-lo particularmente.
O segundo momento identificado por Ginzburg é quando, em 1880, agora
na China, William Herschel, administrador inglês do distrito de Hooghly, em
Bengala, conforme artigo publicado por ele mesmo na revista Nature, passa a
adotar oficialmente um sistema de identificação dos nativos a partir da própria
experiência prática dos bangaleses com impressões digitais depois de 16 anos de
129
testes. “Os funcionários imperiais tinham-se apropriado do Saber Indiciário dos
bengaleses e viraram-no contra eles”, afirma Ginzburg (1989a, p. 176).
Em 1879, um servidor da prefeitura de Paris, Aphonse Bertillon, cria um
método antropométrico “baseado em minuciosas medições do corpo, que
convergiam para uma ficha pessoal”, conforme destaca Ginzburg (1979a, p. 173)
no que denominamos de terceiro momento da identificação ordinária da massa
populacional ameaçadora. Ginzburg fala das dificuldades encontradas por esse
método devido “à irredutível elusividade do indivíduo”, ou seja, por conta da
impossibilidade de precisão de que as características particulares de uma pessoa se
refere exclusivamente a ela e não à outra ou a outras pessoas. Por isso, acrescenta
Ginzburg, Bertillon propôs a associação do método antropométrico com o “retrato
falado”. Este, por sua vez, possuía estudos fisionômicos, relativamente a orelhas,
por exemplo, que lembravam os ensaios de Giovanni Morelli, realizados nos
mesmos anos, ressalta Ginzburg.
O quarto e último momento é quando, em 1888, através de uma dissertação
que foi posteriormente aprofundando, F. Galton propõe o uso de um sistema de
identificação mais simples e que já tivera uma experiência anterior, qual seja, o das
impressões digitais, ou fingers prints. Galton houvera se abeberado dos trabalhos
de Purkyne e do artigo de Herschel. Tentou, sem sucesso, associar as impressões
digitais às particularidades raciais, além de buscar nelas, em algumas tribos
indianas, características próximas às dos macacos. De qualquer forma, a partir de
suas proposições, “em pouquíssimo tempo o método foi introduzido na Inglaterra,
e dali gradualmente no mundo todo”, diz Ginzburg, (1989a, p. 177), que à mesma
página acrescenta:
130
Essa prodigiosa extensão da noção de individualidade ocorria de
fato através da relação com o Estado e seus órgãos burocráticos e
policiais. Até o último habitante do mais miserável vilarejo da
Ásia ou da Europa tornava-se, graças às impressões digitais,
reconhecível e controlável”.
Aqui chegamos num ponto fundamental do paradigma indiciário, ressalta
Ginzburg: a mesma sistematização científica desse saber que poderia ser utilizada
pelas camadas superiores da sociedade para promover o controle dos indivíduos
que lhe punham sob ameaça, também poderia, em sua dimensão de representar e
tentar explicar o que aparentemente é superficial, ou desprezível para o
conhecimento moderno, ser útil para esclarecer os vazios, aquilo que é opaco, da
realidade. Foi exatamente essa idéia – acrescenta o historiador – que penetrou
profundamente nos mais variados âmbitos das ciências humanas (e aqui pensamos
o quão de sinais e de indícios como objetos de estudos possuem campos de saberes
como a antropologia, a história, a geografia, a paleontologia, a filologia, a
psicologia que se afirmaram como ciências e outras como a frenologia, a
fisiognomonia, a pelografia, a grafologia, a alveitaria, a teratologia que ou se
perderam, ou ficaram no meio do caminho ou delas se originaram outras).
Com efeito, questiona Ginzburg: o paradigma indiciário pode ser rigoroso?
Aqui se chega num ponto nevrálgico da questão. Até porque diz respeito a todos os
outros campos disciplinares das ciências humanas. Polemiza-se, assim, com os
respectivos estatutos mais ou menos estáveis dessas ciências. E esse xeque
começou a ser colocado, segundo explica o autor, pela instituição galileana de
ciência moderna. A escolha foi, para as ciências humanas, como não poderia deixar
de ser, assumir a sua própria natureza que, embora possuidora de preceitos pouco
vigorosos, poderia proporcionar resultados relevantes, posto levar em conta dados
do imponderável, do sensível, do subjetivo, da experiência.
131
O contrário disso, ou seja, se assumisse uma postura de rigidez e
desprezasse os fatores do intangível, do imprescutável, da elusividade, chegaria
invariavelmente a resultados pouco significativos. Isso porque, nesse tipo de
conhecimento, acrescenta Ginzburg, não entram em jogo somente elementos que se
podem pragmaticamente medir, pesar, estabelecer. Entram em jogo outros ainda
mais arraigados, que são essenciais aos sentidos, ao discernimento e à sagacidade,
como o faro, o golpe de vista, a intuição – levando o paradigma indiciário assim a
possuir um aparentemente contraditório, mas na verdade um ineliminável “rigor
flexível”.
3. Linhas de Brasília e traços do JB: riscos de uma mesma trama
As linhas que inspiram e compõem Brasília e os traços que afiguram e se
justapõem no design gráfico do Jornal de Brasil, em todos os aspectos sócio-
espaciais, inclusive o morfológico-metafórico e o cultural-simbólico, incluindo as
esferas política e econômica, se entrecruzam e se entremeiam muito mais do que se
possa inicialmente observar e imaginar. São fios que, ao se tocar, ao se encontrar,
formam nós, uma rede, uma trama, textura, texto e contexto de uma realidade
histórica por muitas vezes negligenciada em seu conjunto. Trata-se de uma forma
de riscos e com os riscos de uma linguagem que somente pela vazão empírica e
pela razão epistemológica, possibilitada pelo paradigma indiciário, pode ser
decupada e decodificada, decifrada e interpretada; enfim: lida. Acreditamos, por
isso, e neste aspecto, que o Saber Indiciário, o que quer dizer a consecução de um
paradigma indiciário próprio para o caso, ou seja, erigido a partir do próprio caso,
132
conforme apontado substantivamente a fortiori no item anterior, é o que vai nos
permitir alcançar tal objetivo. Para tanto, lembrarmos aqui, por oportuno, duas
importantes pesquisas indiciárias que guardam em si relação paradigmática direta
com os nossos objetos de estudo.
A primeira delas é um dos mais importantes trabalhados de Ginzburg neste
sentido – entre vários outros, como Fios e rastros (2007), Nenhuma ilha é uma ilha
(2004), Olhos de madeira (2001) e História noturna (1991). Trata-se do livro
Queijos e vermes (1987), que traz uma rica interpretação a partir de dados
minusculares de uma classe social superior e que foram impostos sobre outra,
subalterna, num determinado lócus social (ROJAS, 2004), ou melhor, indícios
microscópicos contidos num processo inquisitorial manuscrito e que fora movido
pela Igreja Católica contra um humilde moleiro italiano, Domenico Scandella, mais
conhecido por Menocchio, nascido em 1532, em Montereale, uma pequena aldeia
nas colinas do Friuli, a 25 km de Pordedone, Itália, onde é preso e sofre o primeiro
interrogatório a 7 de fevereiro de 1584, sob acusação de heresias e blasfêmias
contra Deus e contra a Igreja Católica, e depois de uma seqüência dolorosa de
humilhações, admoestações, torturas, é finalmente morto por sentença entre 1599 e
1601, num lugar não registrado no processo. Cuida, assim, de uma realidade que
emerge daquilo que está afigurado num suporte, o papel; daquilo que está
escriturado, desenhado, formatado nos autos de um processo relativo a um caso
real.
A segunda obra é o livro de Giancarllo Ricci, As cidades de Freud (2005),
no qual o autor, curiosamente utilizando (poderíamos dizer) o método indiciário,
narrativo da micro-história ginzburgiana, remonta com estilo e inteligência os
133
caminhos percorridos por Freud na consecução, por toda sua vida de médico,
intelectual e pesquisador, da cidade almejada, a cidade ideal, qual seja, a “cidade
psicanalítica”, ou seja, a própria Psicanálise. Trata assim de uma seqüência
geográfica, cronológica e evolutiva na qual cada cidade percorrida, em vários e
(in)definidos itinerários, ou seja, cada uma delas sendo representada e
experimentada caracteristicamente em e por suas próprias vidas, virtudes, vícios,
pessoas, pacientes, amigos, arte, beleza, passado, presente, casos, lugares. Cidades
que exercem emblematicamente influências decisivas nessa construção do saber e
da prática da Análise, a partir de indícios internos e pessoais, codificadamente
aflorados, mas normalmente desprezados – aqueles mesmos que ajudam na
construção do paradigma indiciário semiótico, conforme vimos. São quarenta
cidades, desde a pequena Freiberg, onde Freud nasce em 1856, até a grandiosa
Londres, onde morre em 1939, depois de ter passado, entre outras, por cidades
como Leipzig, Viena, Paris, Berlim, Munique, Nova York, Veneza, Praga e Milão.
É em Milão, aliás, onde, em 14 de setembro de 1898 (Ricci cita diretamente
Ginzburg como uma de suas fontes), Freud compra o livro de Giovanni Morelli,
Da pintura italiana. As galerias Borghese e Doria-Pamphili em Roma (até hoje
ainda conservado na biblioteca dele), que lhe ajuda não só na interpretação das
obras de artes, como aquela realizada no ensaio O Moisés de Michelangelo,
conforme vimos no item anterior, mas também, segundo o próprio Ricci, na
construção de uma de suas mais importantes e revolucionárias teorias freudianas, a
que cuida de entender algo essencialmente imagético, os sonhos:
De fato, as teses de Morelli o levarão a dedicar-se à arte e à
biografia de grandes artistas, como no ensaio Uma recordação de
infância de Leonardo da Vinci, de 1910, ou a análise de obras de
arte, como no Moisés de Michelangelo, de 1914. Com efeito, a
teoria freudiana do sonho pode ser considerada uma teoria da
134
representação, visto que o trabalho onírico se exprime através de
uma língua de imagens (RICCI, 2005, p. 98).
Essas duas obras foram citadas – juntamente com O Moisés de
Michelangelo e o livro de Morelli – por julgarmos que exatamente na confluência
daquilo que elas expressam (relato manuscrito, afigurado e configurado no papel;
itinerários e cidades como emblemas e símbolos de uma construção; e em ambos a
existência de elementos indiciários passíveis de interpretação, com a arte
subjacente e entrelaçada aos aspectos sociais, políticos e econômicos) reside o
nosso ponto de partida e ao mesmo tempo o de chegada. Ou seja, na planificação
artística e morfológica do JB e no traçado emblemático da cidade de Brasília, e
assim vice-versa, inserido na cultura, como ocorre numa textura qualquer posta
racionalmente sobre um também qualquer suporte e na consolidação lingüística
deliberadamente erguida em algum lugar. Numa palavra: aquilo que expressam o
que está planificado num papel e narrativas sobre cidades. Partamos, pois,
relativamente aos nossos objetos, destas aparentemente tênues, mas na verdade
fortes fibras indiciárias.
Como se sabe, Brasília resulta de um projeto ansiado pela classe intelectual
e política nacional desde a Colonização, passando pela Independência e chegando à
República. Inicialmente com o Marquês de Pombal, que aventou, em 1716, no
início portanto do século XVIII, sobre a necessidade de transferência da capital
para o interior da Colônia por ser o litoral mais exposto a invasões e outras
ameaças externas. Depois com a apresentação à Assembléia Constituinte de 1823,
pelo patriarca José Bonifácio, da proposta de transferência da Capital do Império
do Rio de Janeiro para o interior do país, sob o argumento de que a nação precisava
avançar em terras fora de sua costa e ali abrir novas frentes de ocupação territorial
135
e de desenvolvimento. A idéia de Bonifácio, acompanhada por muitos políticos,
jornalistas e intelectuais da época, e na qual já se sugeria o nome “Brasília”,
contudo, restou frustrada: a Assembléia foi dissolvida pelo Imperador D. Pedro I
por questões políticas. Somente 62 anos depois, já no final do século XIX, esse
desejo enfim se registra na Constituição Republicana de 1891. Realiza-se,
concretamente, porém, somente com o estabelecimento de um Distrito Federal no
qual é erguida a nova Capital da República. A construção ocorre a partir de 1956,
durante pouco mais de três anos do governo do presidente Juscelino Kubitschek de
Oliveira, que, a despeito das críticas a favor e contra, finalmente a inaugura em 21
de abril de 1960. Uma data não-aleatória: 21 de abril é o Dia de Tiradentes, o
mártir da Inconfidência Mineira, movimento, por sua vez, que surgiu no final do
século XVIII, exatamente no Estado natal do então presidente JK e que, entre
Pombal e Bonifácio, mais precisamente nos anos 1780, também defendeu a criação
de uma nova capital para o Brasil no interior do país.
Trata-se, a consecução de Brasília, como se vê, de uma vontade estratégica
política que resulta historicamente de várias mãos, como também o foi das mãos do
geógrafo belga Luís Cruls, que demarcou o Distrito Federal em 1892; das do
geógrafo francês Francis Ruellan, que fez a escolha dos sítios em 1947; das de suas
respectivas equipes expedicionárias; e das calosas dos candangos, como ficaram
conhecidos os milhares de operários anônimos que de forma destemida ergueram a
obra monumental, e cuja maioria era constituída por migrantes nordestinos que
buscava na cidade prometida melhores expectativas de vida. Uma vontade
estratégica que aponta, portanto, em vários sentidos à interpretação.
136
Um desses sentidos, e aquele que mais chama a atenção, é o da centralidade
geomorfológica, sem dúvida decorrente de um ato geopolítico de objetivo
concreto: a nova capital brasileira ao se localizar no Centro-Oeste do país,
encravada no Estado de Goiás, ficaria eqüitativamente mais próxima de todas as
demais regiões e de seus respectivos Estados, e estes, por sua vez, como unidades
federadas, igualmente mais próximos do poder central da União, concentrado em
Brasília. Ou seja: ao menos no campo geodésico o primado da política como
instrumento, que utiliza a eqüidistância territorial como peso distributivo das forças
societárias para todos os seus membros, estaria assim resolvido. Vontade, dessa
forma, realizada. Vontade triunfal. Sobre esse aspecto, aliás, nos fala o próprio
Kubitschek: “Cumpre-nos apagar esses ressentimentos e amarguras [da vida] com
os nossos triunfos”. E no parágrafo seguinte completa:
Dando um balanço no que realizei, ao longo do caminho que me
levou ao Palácio Central para ali edificar a Capital de meu país,
quero ser o primeiro a reconhecer que só esse triunfo, que a
História recolheu nas suas páginas imperecíveis, bastaria para
atenuar na minha natureza qualquer impulso de cólera ou revolta
(KUBITSCHEK 1974, p. 7 – destaques nossos).
Inevitável não nos lembrarmos aqui do documentário “Arquitetura da
destruição”, de Peter Cohen (1992) e do original e realíssimo documentário “O
triunfo da vontade”, de Leni Riefenstahl (1935). Ambos mostram – mais este do
que aquele – a arquitetura na Alemanha nazista sendo utilizada como instrumento
político e símbolo máximo de um sonho: o desejo do soerguimento do terceiro
maior império do mundo, o III Reich, depois do grego e do romano, que reviveria e
reaproveitava assim aquilo que historicamente de “melhor” esses dois teriam
produzido. Qual seja: a beleza, a pureza e a fortaleza, estratificadas respectiva e
principalmente através da arte (incluindo de forma especial a arquitetura), da raça e
137
do poderio territorial e militar, centrados numa cidade, depois de Atenas e Roma,
no caso, Berlim.
Uma vontade de triunfo que nos lembra também, sob o aspecto centro-
religioso, Jerusalém, com sua convergência e radiações cêntricas ao longo dos
tempos: tão desejada quanto possuída; tão amada quanto destruída. A cidade
secular nos mapas da Idade Média já figurava como o centro do mundo moderno.
De lá nasceram, se expandiram e para lá confluíram e hoje se encontram e se
acotovelam as três maiores religiões do mundo, o judaísmo, o islamismo e o
cristianismo. Em nome dessa tríade profissão de fé, conquistaram, destruíram e a
reconquistaram a ferro e fogo mais de vinte vezes em trinta séculos. Hoje
Jerusalém reúne em suas ruas provavelmente o maior número de judeus, cristãos e
muçulmanos do que qualquer outra cidade do planeta. É no meio dessa maior
densidade dogmática populacional da fé secular que se concentram também os três
maiores símbolos arquitetônicos em terra das respectivas religiões. São construções
localizadas tão próximas fisicamente como tão distantes socialmente: o Muro
Ocidental ou Muro das Lamentações (localizado aos pés do Monte Moriá, no qual
haveria uma certa presença deífica, pois teria sido ali que Abraão depositara a arca
e se encontrara com Deus através de um acontecimento divino); a Mesquita da
Rocha ou Domo da Rocha (localizada no cimo do mesmo Monte Moriá, onde
Maomé teria partido aos céus para o seu encontro com Alá também através do
divino); e, a menos de 100 metros dali, a Igreja do Santo Sepulcro (no interior da
qual estaria o gólgota, local onde Jesus teria sido crucificado e morto). Apesar
dessa divisão política de lugares para cada religião, este um forçoso e difícil acordo
para apascentar os ânimos, o estado de tensão, por esses e nesses lugares, reflexo
138
da tensão político-religiosa pelo resto do mundo, é permanente. A “Cidade da
Paz”, também por isso, ou seja, por concentrar ao mesmo tempo tanta devoção e
repulsa, tanta paixão e intolerância, tanto amor e ódio – um paradoxo certamente
intransponível –, com suas obras arquiteturais estruturadas sobre crenças universais
que apontam para um certo infinito, um certo eterno, se transformou igualmente
desde os tempos remotos até o presente, principalmente no presente, no centro das
colisões mundiais, ou seja, também em seu contrário: na “Cidade dos Conflitos”.
Se Jerusalém anuncia a vida e a paz eternas, também em função dela ocorre a
morte e a intranqüilidade permanentes. Justamente por isso, e ao lado dessa
centralização da arquitetura religiosa, algo curioso acontece no campo da
Comunicação Social: por ter se transformado num referencial da vontade do
triunfo geopolítico, palco de um hostil triatlo religioso, aparentemente sem-fim,
Jerusalém também se transformou na cidade que recebe certamente hoje o maior
número de correspondentes da imprensa do mundo inteiro. Centenas de jornalistas
internacionais não só se concentram, mas também a partir dali ecoam para o resto
do planeta aquilo que a cidade absorve, expressa, protagoniza. Trata-se de algo que
também acontece na Capital Federal brasileira: Brasília possui hoje o maior
número de repórteres nacionais e internacionais do país, muito embora em escalas
– de dimensão e de interesses – diferentes em relação à Terra Prometida.
Em todo caso, na Capital Federal brasileira a vontade caracterizada pela
centralização geodésica, sob o aspecto político-econômico, bem como geométrica,
sob o aspecto morfológico, também tem seu sentido de verdade cronológica,
especialmente através de suas medidas particulares, tanto remotamente quanto
contemporaneamente. Remotamente: no século XVI, quando da divisão da Colônia
139
em Capitanias Hereditárias, primeira forma de predomínio e de governo a partir da
Coroa, a centralização do poder donatário, exercida pelo Governo Geral, se
localizaria equidistantemente das demais capitanias, concentrando-se mais
precisamente na Capitania da Bahia, lugar tão mais próximo do Norte quanto do
Sul e do Oeste, de onde irradiavam as determinações de toda ordem e níveis, e
inversamente para onde convergiam todos os recursos, pleitos e demandas.
Contemporaneamente: quatrocentos anos depois, em meados do século XX, após
se tornar pronta, a centralização do poder capital, agora federal, concentrada numa
cidade construída artificialmente, viraria, além de um pólo de poder centrípeto e
centrífugo que se dista igualmente em relação às demais unidades, conforme
vimos, também sob o aspecto cronológico, num ponto no qual se infeririam
elementos políticos, econômicos e sociais decisivos para os novos rumos da
história recente do país. Naquele exato momento da construção de Brasília, por
exemplo, começa a acorrer um forte processo de urbanização; surgem a Bossa
Nova, a televisão, vacinas; o Brasil ganha a Copa do Mundo de Futebol; crescem
os empregos, a indústria de bens de consumo duráveis, sobretudo eletrodomésticos
e carros, a produção de insumos, máquinas e equipamentos pesados para
mecanização agrícola, transporte ferroviário e construção naval; e há uma queda na
taxa de fecundidade e no índice de mortalidade (que despenca de 20,9 % para 9,8
%), fazendo crescer a qualidade de vida. Ou seja, há um antes e um depois do final
dos anos 1950 para o início dos anos 1960, sendo tal momento o ponto central
exato de certas incidências e refletâncias sócio-culturais da época. Tanto que tal
período se tornou o emblema máximo do chamado Brasil Grande. Localiza-se
precisamente na chamada Era JK. Ou, em outras palavras, na era
desenvolvimentista do país, tempo que se liga e se sedimenta na figura do
140
presidente da República, Juscelino Kubistchek de Oliveira, cujos preceitos
sociológicos de governo e de país se identificam e se encontram, com a
consolidação da liberdade e da democracia, exatamente entre duas ditaduras, a do
Estado Novo e a do Regime Militar (PEREIRA, 1997). As centralidades
geopolítica e geomorfológica, assim, no plano sócio-histórico, in tempore, se
repete, e se repete em clima de pós-guerra, atiçando a satisfação, a criatividade e a
imaginação.
A imagem de um avião, como lembra o partido de Lúcio Costa para
Brasília, torna-se, dessa maneira, para o capitalismo tardio brasileiro, o mais
adequado símbolo. Está pousado num plano alto, eqüidistante, central, o Planalto
Central, de onde fará um vôo certo e seguro rumo ao seu futuro, o futuro da nação,
e que justamente por isso deverá ser, tal futuro, urgentemente abreviado, repatriado
e repartido à velocidade máxima do poder político e econômico. O Plano Piloto, o
plano de vôo, exposto ao céu de Brasília, desta forma, representa a modernização
rápida de um país que se quer alcançar via o alçar, ou seja, a elevação de um
ambicioso plano moderno de metas desenvolvimentistas no qual se incluiu o
translado da própria Capital Federal do Rio para Brasília. Até hoje essas visões
povoam o imaginário nacional. Uma recente minissérie da TV Globo, denominada
simplesmente “JK”, escrita por Amaral; Carneiro; Nogueira (2006), com toda
carga tempo-sócio-espacial que esta sigla carrega, retrata muito bem, através da
teledramaturgia, esse algo simbólico, esse período nacional-desenvolvimentista,
que desde à época também passou a ocorrer nos outros campos da Arte (música,
dança, cinema, literatura, esportes etc., daí o retrato dos profícuos anos 1950 para a
cultura brasileira). O mais recente filme de Zelito Viana (2009) é bem mais
141
explícito. Chega, ao final da exibição, a informar textualmente ao telespectador que
durante o governo de JK foi inaugurada a nova capital do Brasil, foram criadas as
indústrias automobilística e naval, foi construída a Hidrelétrica de Furnas, a
Estrada Belém-Brasília e a Ponte da Amizade entre o Brasil e o Paraguai. E
arremata: “Fomos campeões do mundo de futebol pela primeira vez, foi inventada
a Bossa Nova, o Teatro de Arena de São Paulo, a Bienal de Artes Plásticas e o
Cinema Novo. A produção de Petróleo passou de 6.800 para 100 mil barris diários
e a taxa de crescimento atingiu um recorde até hoje não batido de 10,8% ao ano”.
A explicitação fica mais evidenciada quando se descobre que o título do filme,
Bela Noite para Voar, baseado no livro homônimo de Pedro Rogério Moreira, é
uma evocação à imagem do avião e à possibilidade segura de se voar, mesmo que à
noite, só com as luzes das estrelas. Trata-se de uma frase dita por Juscelino quando
ia embarcar na então moderna e recém-adquirida aeronave presidencial rumo ao
seu destino e a um sonho de País. Em suma: são fatos e coisas próprias do
desenvolvimento brasileiro, vivenciado e protagonizado também pela capacidade
criadora e imaginativa do povo, dos artistas, dos políticos, com ressonância na
própria Arte, e sobre o qual já trata, com o necessário rigor e acuidade, as ciências
humanas.
Com Juscelino Kubitschek, o sentimento desenvolvimentista
toma conta do país, traduzido pela expressão “fazer o país saltar
cinquenta anos em cinco”, durante o seu governo. Se não o
conseguiu, pelo menos consolidou a democracia e promoveu o
progresso econômico (PEREIRA, 1997, p. 88).
Tal ideário nacional-desenvolvimentista possui suas raízes estéticas no pré-
realismo e mais visíveis ainda no modernismo, que nasce, ao menos de forma
oficial, no Brasil, no início do século XX, mais precisamente quando da realização
da Semana de Arte Moderna, ocorrida de 11 a 18 de fevereiro de 1922, em São
142
Paulo, de quando, até os dias atuais, e de onde, até o presente, se espalhou pelo
resto do país. Numa época cheia de turbulências políticas, econômicas, culturais e
sociais, os vanguardistas da arte moderna brasileira defendiam, em síntese, uma
nacionalidade para o país, ou seja, uma estética de viver e produzir que se
fundamentasse num caráter nacional próprio, valorizando, para isso, a liberdade, o
regionalismo, a brasilidade. Não desprezariam, porém, as influências externas,
especialmente vindas da Europa, que deveriam, no entanto, ser digeridas e
reprocessadas por esse e em favor desse novo caráter nacional – mesmo que fosse
caráter nenhum.
A arquitetura da capital Brasília, síntese do modernismo à brasileira, retrata
bem esse novo modo de fazer arte concreta no mais íntimo e puro espaço nacional,
o espaço da anima brasilis, o espaço do longínquo e desabitado cerrado, que
processa e reapresenta o extemporâneo deliberadamente apreendido: a
modernidade da arquitetura européia trazida para o Brasil no início do século XX,
principalmente pelo arquiteto franco-suíço Le Corbusier, pseudônimo de Charles
Édouard Jeannneret, em sua primeira viagem ao Brasil, em 1929, e depois em
1934, quando de sua segunda visita. Uma modernidade traduzida e retroalimentada
especialmente pelo arquiteto Oscar Niemeyer, que assim mantém e/ou amplia os
objetivos originais da arquitetura moderna e cujo ideário fora consolidado na
famosa Carta de Atenas (CIAM, 1933), escrita pelo próprio Le Corbusier.
Faz-se necessário destacar aqui, portanto, que, quando da primeira visita de
Le Corbusier ao país, Lúcio Costa e Oscar Niemeyer, os autores do projeto
urbanístico e arquitetônico da nova Capital Federal, que viria a ser escolhido
através de um concurso nacional realizado pelo governo JK, mantêm com ele um
143
profícuo contato ao mesmo tempo em que aprofundam as influências anteriores,
obtidas através das idéias e das obras dele. Lúcio Costa, por exemplo, que chegara
a ser diretor da Escola Nacional de Belas-Artes, quando reformula e redireciona o
ensino da arquitetura tradicional para uma tônica mais moderna, e que fora
professor de Niemeyer, em uma carta ao ministro da Educação e Saúde do governo
Getúlio Vargas, Gustavo Capanema, relata, segundo Pereira (1997, p. 80-81): “Foi
graças a esse convívio [com Le Corbusier] de três meses que o excepcional talento
do arquiteto Oscar Niemeyer, até então inexplicavelmente incubado, revelou-se em
toda a sua plenitude”. E, sobre a absorção das influências externas, inclusive da
Bauhaus, e o seu reprocessamento por Niemeyer, nos fala Lauro Cavalcanti (2008),
arquiteto e antropólogo, quando das comemorações pelos cem anos do mestre em
2007: “De certa forma, o Oscar realiza o projeto dos Andrade [Osvald e Mário], de
antropofagia; ele devolve o Le Corbusier; ele retransforma e faz a sua própria
arquitetura”. Com certeza: o desenho de Oscar, por exemplo, quebra, através o uso
audacioso da suavidade sensual e desafiadora das curvas, o rigor métrico e duro
das linhas retas e, na intersecção de ambas, faz conviver uma surpreendente
harmonia concreta, proporcionada somente pela utilização de novas tecnologias
estruturais de engenharia e dos novos materiais de sustentação de cargas – como o
próprio concreto armado.
Parece-nos que somente essa modernidade da arte arquitetural brasileira
poderia proporcionar, em sua regurgitação modernista, retrato de uma época, a
centralidade morfológica no partido da nova capital federal. Lúcio Costa, ao iniciar
a idéia de Brasília, no papel, traçou duas pequenas linhas que se tocavam,
formando um ponto único entre dois rumos. Esses foram seus primeiros gestos. Fez
144
uma cruz. Os riscos passavam assim a demonstrar não só um encontro focal de
uma época democrática, desenvolvimentista e situada entre duas ditaduras, mas um
momento a partir do qual se queria um outro projeto de país, mais avançado, mais
desenvolvido. Exprimia também o ideário social, político e estratégico,
remotamente ansiado, contemporaneamente possível, de se configurar uma vontade
triunfal, ou, simplesmente, como já chamamos aqui, os sentidos geopolítico e
geomorfológico, traduzidos concretamente por equidade, eqüidistância, equilíbrio,
em suma, partilha igualitária do poder focal entre pares sobre o traçado de um
território. Um ponto central, assim, estaria a demarcar, por uma cruz (ou mesmo
um xis, se mudarmos a posição do olhar), o coração do Brasil, o que quer dizer,
emblema e prenúncio daquele mesmo desejo visceral de vitória, de realização, de
triunfo, como o fora também a cruz dos bandeirantes. Um ponto central que, como
nos diz Arnheim (2000), não é visualmente gratuito nem estático: possui a atuação
de forças perceptivas, contidas na ação dos próprios objetos percebidos, que se
relacionam em tensão com todos os elementos contidos do campo visual ao seu
redor e ao redor do campo físico do observador, de modo que se anulam e se
equilibram mutuamente quando relativamente se equidistanciam e interagem no
tempo e no espaço. Em suma: o olhar vê a ação. Uma ação com “tensões
dirigidas”. Com sentido. Sentido inclusive histórico, acumulado, no tempo e no
espaço. Uma ação que envolve o sujeito perceptivo e que também por isso que não
deixa de ser considerada por artistas, arquitetos, designers e ao mesmo tempo de
ser notada pelo observador, mesmo que ocorra em ambos os casos respectivamente
pela simples intuição e pela mera indução. Uma centralidade mais pura e uma ação
mais cabal que remontam à busca na Renascença pela integração mais perfeita do
espaço pictórico e pela aferição e definição mais correta possível da natureza
145
física. Aventura renascentista que mobilizou a sensibilidade e a ciência e levou a
novas e importantes descobertas de exatidão e verdades do mundo perceptivo.
Vejamos, em resumo, o que nos diz a respeito Arnheim naquela sua obra que é
considerada como a maior expressão da gestalt:
A experiência visual é dinâmica. (...) O que a pessoa ou animal
percebe não é apenas um arranjo de objetos, cores e formas,
movimento e tamanhos. É, talvez, antes de tudo, uma interação de
tensões dirigidas (ARNHEIM, 2000, p. 4).
Para qualquer relação espacial entre objetos há uma distância
“correta”, que o olho estabelece intuitivamente. Os artistas são
sensíveis a esta exigência quando organizam os objetos pictóricos
numa pintura ou os elementos numa peça escultórica. Os
“designers” e arquitetos buscam constantemente a distância
apropriada entre os edifícios, janelas, móveis (ARNHEIM, 2000,
p. 5).
Qualquer linha desenhada numa folha de papel, a forma mais
simples modelada num pedaço de argila, é como uma pedra
arremessada a um poço. Perturba o repouso, mobiliza o espaço. O
ver é a percepção da ação (ARNHEIM, 2000, p. 9).
O observador vê as atrações e repulsões nos padrões visuais como
propriedades genuínas dos próprios objetos percebidos.
(ARNHEIM, 2000, p. 10).
Toda experiência visual é inserida num contexto de espaço e
tempo (ARNHEIM, 2000, p. 41).
Esta natureza paradoxal da perspectiva central manifesta-se nas
suas raízes radicalmente diferentes das quais surge
historicamente. Por outro lado ela é, como já mencionei, a
solução final para uma longa luta por uma nova integração do
espaço pictórico (ARNHEIM, 2000, p. 271).
A perspectiva central ocorreu como um aspecto da busca de
definições objetivas corretas da natureza física – uma pesquisa
que surgiu durante a Renascença, a partir de um novo interesse
pelas maravilhas do mundo sensório, e levou às grandes viagens
de exploração bem como ao desenvolvimento da pesquisa
experimental e a padrões científicos de exatidão e verdades
(ARNHEIM, 2000, p. 271).
E aqui abrimos um elucidativo parêntese para depois voltarmos a essa
questão: não seria, portanto, à toa que Brasília viesse a ser notada também pelos
místicos como um lugar especial e central no mundo atual e futuro, estando isso
146
inclusive nas previsões religiosas e videnciais esotéricas que lhe dariam uma cada
vez mais forte mística e religiosidade. Assim como ocorre em Jerusalém, ao nível
tenso-triádico da religiosidade judaico-cristã, no Distrito Federal, ao nível do
pacífico-ecumênico, seitas e outras denominações de variadas crenças, desde as
mais tradicionais às mais esotéricas, como a católica, a protestante, as
neoprotestantes e as holísticas, teofísicas e xamânticas, reforçariam na capital
brasileira, com o translado, povoamento e afirmações templárias, o seu caráter de
também ser uma terra prometida. De acordo com uma dessas profecias, já por
demais conhecida, mas relatada de maneira fervorosa e mística por uma taróloga
numa interessante história urbana contada pelo jornalista Francisco de Moura
Pinheiro (1998, p. 147-157), num dia quando resolveu sair a flanar pela cidade. A
história dá conta que o santo da Igreja Católica Giovanni Melchior Bosco, ou
simplesmente Dom Bosco (1815-1888), em 1882 teria tido a visão, através de um
sonho, de que entre os paralelos 15º e 20º do Hemisfério Sul haveria um leito
muito largo e extenso que partia de um ponto, onde se formava um lago. “No
momento da visão, uma voz se fez ouvir repetidamente, afirmando que quando
escavassem as minas escondidas no meio dos montes do lugar apareceria ali a
Terra Prometida, onde jorraria leite e mel, surgindo uma riqueza inconcebível” –
disse a taróloga, segundo Pinheiro, confirmando assim uma história que fez desde
o seu princípio Brasília ter como padroeiro Dom Bosco, em memória de quem
Niemeyer projetou a Ermida Dom Bosco, uma pequena capela em forma de
pirâmide egípcia, revestida de mármore branco. A Ermida foi construída em 1957,
sobre uma plataforma de lajes, às margens do Lago Paranoá, exatamente no ponto
de passagem do paralelo 15º. Além de um marco da cidade, é um marco da
profecia.
147
Outros relatos de fé, reais e imaginários, tendo Brasília como o ponto
central dos construtos sociais, também levariam seitas e religiões a aumentar sua
crença exotérica e principalmente esotérica na cidade mística, predestinada,
dividindo assim a cidade entre a cidade dos burocratas, para a qual foi criada, e a
cidade dos místicos, que voluntariamente a ocuparam, como nos mostra o
interessante documentário de LeBrun (2001). Alguns desses relatos, segundo
Pinheiro (2006, p. 157), são: a coincidência de vida e morte entre Akaton, faraó
egípcio da XVIII dinastia, que fez a primeira cidade planejada do mundo, Aton, e
Juscelino Kubitschek, que como Akaton viveu apenas dezesseis anos após a
construção da cidade e igualmente sofreu uma morte violenta; a simbologia da
catedral da cidade, que possui profetas postados à sua frente da mesma forma que
os deuses do Set I do Antigo Egito em frente de um templo; a visão do Sol
nascente no dia 21 de abril dentro do Congresso Nacional que ocorre da mesma
forma que dentro do sarcófago de Juscelino no Memorial JK; a semelhança de
forma entre a pirâmide de Queóps e o Teatro Municipal; a posição geométrica das
grandes construções da cidade, em forma de triângulo e que lembra a estrela de
Davi, ou seja, todos os poderes constituídos de Brasília estão dentro de uma
triangulação, o que criaria “uma alusão direta com o macrocosmo”; uma
semelhança entre o prédio do CNPq e o Ramsium de Ramsés XIX; e o traçado da
cidade que, além de ser uma cruz, símbolo máximo das religiões cristãs, lembra um
pássaro “voando para algum lugar e servindo de transição para uma nova era”.
Dentre estas, destaquemos apenas uma: a que diz respeito à coincidência
entre Juscelino Kubitschek e o faraó Akaton. No primeiro volume de seu livro
autobiográfico Meu caminho para Brasília, o ex-presidente fala de uma importante
148
e decisiva viagem, muito antes de ser presidente, que fez à Europa e ao Oriente
Médio. O relato é curioso. JK tinha 27 anos e era recém-formado em medicina.
Precisava se especializar em urologia em Paris. Amealhou dinheiro e partiu para a
“cidade luz”. Depois do curso, resolveu conhecer outras cidades do Mediterrâneo.
Ao chegar ao Egito, a visão se constituiu num “espetáculo inesquecível”. Juscelino
diz que se lembrou de Amenófis IV, ou Akhenaton (e não Akaton), o faraó
visionário que aprendera a admirar desde suas primeiras leituras quando ainda
tinha uma vida muito humilde em Diamantina. “Apesar da minha formação
religiosa, não escapei ao fascínio daquela estranha personalidade, misto de sonho e
audácia, cuja obra de reformador constituiu, durante algum tempo, uma das
preocupações do meu espírito”, diz Kubistchek (1974, p. 111). JK se detém a
explicar outros detalhes do monarca, demonstrando bastante conhecimento sobre o
personagem. Diz que Akhenaton foi considerado pelo egiptólogo J. H. Breastead
como “a primeira personalidade da história da Humanidade”, governou entre 1375
e 1358 a.C., que foi o responsável pelo fim do culto de Amon e que acabou com o
politeísmo confuso da religião tradicional. O faraó compreendera também,
prossegue Juscelino, que só subverteria a tutela milenar dos sacerdotes se
transferisse a capital do Egito de Tebas para um lugar mais estratégico. O nome
dessa nova cidade seria Ekhenaton, a “Cidade do Horizonte de Aton”. Reparemos
como JK descreve o processo de construção da nova cidade egípcia e veremos
porque os místicos de Brasília hoje têm suas razões para acreditar mais em
inspiração, desígnios e coincidências e menos em determinação das condições
históricas.
O plano de transferência, apesar de tão recuado no tempo – quase
quatro mil anos atrás –, foi levado a efeito com uma técnica e
planejamento dignos do século XX. Arquitetos foram
149
mobilizados. Artífices vieram de todas as partes do Império.
Engenheiros, astrônomos, técnicos em hidráulica, britadores,
escultores, pedreiros especializados foram mobilizados. O local
escolhido foi Tell Al-Amarna, um vale situado entre o Nilo e as
encostas rochosas do deserto. A mudança da Capital coincidiu,
também, com a mudança do próprio nome do monarca. Amenófis
IV foi substituído pelo de Akheton, “Aquele que agrada a Aton”
(KUBITSCHEK, 1974, p. 111).
Voltemos agora à questão da importância morfológica da cruz com suas
linhas gráfico-territoriais: como elemento demarcador da centralização nacional de
Brasília, configurando como gesto inicial e basilar o partido de Lúcio Costa, assim
como de todo o traço arquitetônico de Niemeyer, ganha um sentido mais amplo se
analisarmos a sua concepção primária do ponto de vista perceptivo, morfológico.
Trata-se de um encontro simples de dois segmentos de retas, um na vertical e outro
na horizontal, que, no entanto, nos dizem mais. Mais do que o resultado de dois
impulsos manuais. Segundo Frutiger (1999, p. 11), “a facilidade com que se
desenha uma cruz fez com que esta se tornasse o sinal mais empregado
universalmente. É usada para marcar, contar, assinar e até jurar”. Por isso, continua
autor, vem a ser o sinal mais abstrato e mais simétrico que existe, e a partir do qual
se criou e pode criar inúmeros outros sinais, emblemas, símbolos e projetos, como
o foi, por exemplo, a suástica (existente desde a pré-história e da qual se apropriou
a doutrina nazista), e, acrescentaríamos, os dois simples riscos do partido de Lúcio
Costa para Brasília.
A cruz poderia ser nomeada como o “sinal dos sinais”. Como dito
anteriormente, o ponto de intersecção entre as duas linhas traz
algo de abstrato, na verdade invisível, porém tão preciso, que
matemáticos, arquitetos, geógrafos, geólogos, entre outros,
utilizam-no freqüentemente para designar a posição exata de um
ponto (FRUTIGER, 1999, p. 29).
Frutiger ressalta, como se vê, o caráter demarcador do centro pela cruz.
Algo que está presente nas culturas, mitologias e crenças de várias civilizações,
150
como ele mesmo demonstra através de uma diversidade de desenhos feitos em
inúmeros tipos de suportes ao longo da história por vários povos. São desenhos que
invariavelmente possuem como característica principal o encontro das linhas
vertical e horizontal, refletindo assim um equilíbrio máximo através do encontro
dual entre os sentidos do ativo e do passivo. Possuem, desta forma, a base sígnica
essencial da centralização que reflete, em praticamente todas as culturas – a
despeito da variedade –, a identidade, o cosmos, o espaço vital, a vida. “Para
indicar o centro”, diz Frutiger (1999, p. 241), “tornou-se [a cruz] o símbolo das
mais diversas mitologias”. E acrescenta: “A extrema simplicidade de sua estrutura
é certamente a razão de sua disseminação pelo mundo”. Não seria difícil, assim,
imaginar que a cruz, como símbolo da fé cristã, incorporasse também as dimensões
do plano (Terra) e do infinito (Céu), dispostos num religare simbólico entre os
indivíduos e Deus. Tanto que, conforme podemos ver as imagens e saber ainda em
Frutiger (1999, p. 243), “desde a Idade Média, o cristianismo apoderou-se desse
símbolo, que acabou sendo transformado num signo básico em todos os campos de
aplicação, como na decoração, na heráldica, na sinalização etc.”.
Apesar da percuciência e do alcance dessa análise, a morfologia do projeto
urbano de Brasília aprofunda à análise essas premissas frutigerianas. Lúcio Costa
conseguiu imprimir em seu partido algo mais que o simples cruzar retilíneo de
linhas. Foi além do milimétrico que na escala do real chega ao quilométrico – com
todas as implicações daí decorrentes, posto, como é óbvio, no concreto os
indivíduos viverem e se relacionarem. Tal atitude teve, assim, como não poderia
deixar de ser, reflexos sociais significativos. Essa diferença reside no fato de que a
linha horizontal do desenho após se cruzar exatamente no centro da linha vertical
151
sofre uma ligeira inclinação para trás em ambos os lados a partir do vórtice. Isso dá
a sensação de movimento no partido; de que há uma forte impulsão para frente em
todo o projeto. Em outras palavras: o eixo horizontal na verdade é uma linha curva
que, ao cortar o eixo principal, o chamado pelo próprio Lúcio Costa de “Eixo
Monumental”, exatamente em seu centro, formando a escala gregária de Brasília (a
rodoviária é o seu símbolo máximo e fica exatamente nesse ponto), sem deixar,
portanto, de ser uma cruz, em sua pureza e primariedade, faz emergir toda
dinâmica do projeto, inclusive naquilo que lhe é o mais esplendoroso, monumental.
O eixo horizontal cria assim as denominadas – talvez por isso mesmo – Asa Norte
e Asa Sul, onde estão as residências dispostas em superquadras. O sentido de que a
impulsão é para frente (Leste) reside no fato de que o deslocamento curvilíneo do
eixo horizontal está em sentido oposto à parte superior do Eixo Monumental,
também conhecida popularmente como “cabine do avião”, ou seja, onde se localiza
tudo aquilo que lhe dá a qualidade de grandioso, extraordinário: os Ministérios, a
Praça dos Três Poderes e ao redor desta os edifícios-sede dos três poderes
nacionais republicanos, o Palácio do Planalto (Executivo), o Congresso Nacional
(Legislativo) e o Tribunal de Justiça (Judiciário). Na cruz e no modo de
centralização de Costa temos assim não só o princípio do ativo e do passivo juntos.
Isto por si só já lhe conferiria um inevitável equilibro, uma tranqüila harmonia e a
mais perfeita simetria, através de toda carga de pureza que esse símbolo por si
somente já proporcionaria. Mas temos também o encontro igualmente dual dos
princípios do fixo e do flexível, do retilíneo e do semicircular, o que lhe acrescenta
um maior e mais forte dinamismo, algo praticamente impossível de ocorrer nas
cidades somente enxadrezadas ou só concêntricas e circulares, como a aquela que
seria rodeada por indústrias, pela a natureza etc. e entrecortada por vias de
152
circulação, como a Cidade-Jardim, proposta pelo jornalista inglês Ebenezer
Howard, implantada na Inglaterra, e sobre a qual nos fala, ao mesmo tempo em que
faz uma crítica ácida aos seus fundamentos, a também jornalista Jane Jacobs (2001,
p. 1-26). Trata-se, desta forma, do mesmo dinamismo que vamos encontrar quando
da junção das linhas retas e curvas nos desenhos, artefatos e outros construtos de
Niemeyer no interior do projeto do próprio Lúcio Costa. Uma coerência dialógica e
evidente, portanto.
O que tudo isso tem a ver, porém, com a diagramação jornalística do Jornal
do Brasil?
Tal relação é o que pretendemos demonstrar daqui para frente, incluindo,
além daquilo que se relaciona com o já visto até agora, outros elementos e dados
sócio-morfológicos que fazem nossos objetos se entrelaçarem ainda mais no tempo
e no espaço. Comecemos, portanto, pelo que foi exposto até agora.
O projeto de planificação de textos e imagens do JB foi elaborado e
implementado na mesma data e, portanto, dentro das mesmas condições sócio-
históricas do projeto urbano/arquitetônico de Brasília. Possui, por isso, em comum,
muito das mesmas características ideológicas, culturais e morfológicas. Trata-se,
por exemplo, o projeto do JB, de um dos marcos mais importantes na história do
Jornalismo Moderno brasileiro, assim como Brasília se constitui em um dos
marcos mais importantes da moderna arquitetura brasileira. Nesse aspecto, quanto
ao projeto do Jornal do Brasil, vejamos o que diz Washington Dias Lessa,
professor da Escola Superior de Desenho Industrial e um dos pesquisadores que
melhor estudou o projeto do JB.
A reforma do Jornal do Brasil, iniciada em 1956 e consolidada
153
nos primeiros anos da década de 60, faz parte do conjunto de
iniciativas que resultam na implantação do jornalismo moderno
no Brasil do pós-guerra. Possui, historicamente, caráter exemplar,
não só pela qualidade do jornalismo desenvolvido, como também
pela eficácia mercadológica das mudanças, medida pelos
significativos aumentos de tiragem. Do ponto de vista da história
do design no Brasil, também é um marco importante. A força e a
consistência da nova caracterização visual do jornal evidenciam o
papel estruturador que o raciocínio gráfico teve dentro da
iniciativa propriamente jornalística (LESSA, 1995, p. 17).
Segundo Lessa, os dois principais pensadores e implementadores do projeto
de reforma gráfica do Jornal do Brasil – assim como foram em número dois os
principais de Brasília – foram o artista plástico e escultor Amílcar de Castro e o
jornalista e editor Jânio de Freitas. E da mesma forma que também há no projeto
da Capital Federal precedentes sócio-culturais, “o Jornal do Brasil dos anos 1950 é
o resultado de uma política empresarial iniciada em 1921”. Por volta desta última
data citada por Lessa (1995), encontramos, no campo estético, assim como
encontramos nos antecedentes de Brasília, a Semana de Arte Moderna de 1922 a
produzir um divisor de águas na cultura brasileira, com reflexos futuros no campo
plástico do jornalismo brasileiro. Trata-se de algo que por sua vez foi precedido
pelas mudanças que se operaram na esfera do político-industrial e que repercutiram
na postura da imprensa, em seu modo de fazer jornalismo (função) e em seu modo
de produzir jornal (mercadoria), assim como ocorreu na arquitetura e no
urbanismo, e possui suas raízes fincadas no fim do século XIX e início do XX.
Vejamos no que diz respeito ao JB dessa virada do século até o início dos anos
1920: em 1891 o Jornal do Brasil é fundado por Rodolfo Dantas; em 1893 é o
pioneiro na publicação de caricaturas e história em quadrinhos; em 1912 publica
pela primeira vez uma página de esportes; em 1916 é um dos primeiros a usar
máquina de escrever na redação; por volta deste mesmo ano já possui o maior
parque gráfico da imprensa brasileira; em 1918 é adquirido pelo Conde Papalino
154
Ernesto Pereira Carneiro; em 1921 passa a publicar de maneira inédita na imprensa
brasileira aquilo que iria lhe marcar pelas décadas seguintes, os anúncios
classificados na primeira página.
Assim, a trajetória do JB reflete o percurso da modernidade brasileira desde
o final do século XIX até meados do século XX (época da inauguração de
Brasília), quando se verifica a transição da pequena para a grande imprensa. E isso
ocorre porque desde então os jornais se organizaram como empresas capitalistas de
pequeno ou médio porte, período em que incorporaram as mais novas e
revolucionárias tecnologias na história da imprensa mundial, como as máquinas de
escrever, de composição, de transmissão, de fotografar e de impressão – algo
similar ao ocorrido na construção civil, que passou a inserir as mais novas
tecnologias de cálculos e de materiais de suporte, de estrutura e de textura, com
possibilidades diretas para a ousadia, a inovação e o arrojo da arquitetura e do
urbanismo. Em ambos os casos foram exigidos mais profissionalismo e
responsabilidade. Os jornalistas, mesmo famosos e reconhecidos, deixaram de ser
meros diletantes e apaixonados, ou seja, apenas autodidatas com grande ou
pequena vocação, assim como o foram muitos dos arquitetos nesta atividade,
dentre os quais o próprio Le Corbusier, para se tornarem especialistas formados
através de cursos que foram oficialmente se afirmando e sendo oferecidos pelo
Estado.
Em tal processo de modernização da imprensa (e da arquitetura brasileira),
mais exatamente no ano de 1954, com a morte do Conde Ernesto Pereira Carneiro,
assume o Jornal do Brasil a esposa deste, a Condessa Pereira Carneiro que, a partir
de uns primeiros passos já iniciados um ano antes, em 1953, no sentido de
155
aprofundar a modernização no campo estético-cultural do JB, como, por exemplo,
com a criação de uma página feminina que também tratava de assuntos culturais, a
empresa abre enfim caminho para a implementação definitiva de uma reforma que
espelharia a modernidade estética dos novos tempos. Isso se dá principalmente
através da criação, em 1956, do Suplemento Dominical do Jornal do Brasil
(SDJB), cujo enorme sucesso editorial e de público, como diz Lessa (1995, p. 20),
foi provavelmente o “que inspirou a Condessa a tentar mudar inteiramente as
feições do jornal” pelos anos seguintes.
Para tanto, contrata o jornalista Odylo Costa, filho, que busca implementar a
reforma gráfica e ao mesmo tempo iniciar os primeiros passos de um jornalismo
moderno que, no que diz respeito à feitura do texto, já vinha sendo implantado no
Diário Carioca por Pompeu de Souza. Tratava-se de um estilo novo de se produzir
e se publicar notícias, inspirado no modelo norte-americano. Tal modelo consiste
basicamente em dispensar dos títulos e principalmente dos textos os floreios, o tom
laudatório, o rodeio enciclopédico, enfim, o nariz-de-cera tão comum na imprensa
do início do século, e a partir do lead (primeiro parágrafo de uma notícia de
jornal), construir uma “pirâmide invertida”, ou seja, seguindo os critérios de
importância, proximidade, imparcialidade, precisão, clareza e objetividade,
responder logo, de pronto, no lead, de forma inteligente e atraente, às seis
perguntas básicas de quaisquer modalidades de notícias ou gêneros de reportagens
jornalísticas, quais sejam: o quê?, quem?, quando?, onde?, como? e por quê? A
notícia ganharia assim a dimensão da expressão das iniciais em inglês de news:
north, east, west e south. A partir do lead, então, ainda seguindo a “pirâmide
invertida”, poder-se-ia ir descendo aos detalhes da notícia ou da reportagem
156
escolhidos pelo grau de interesse público. Desnecessário dizer que, por esses
critérios, no interior dos textos, as instâncias de verdade, do contraditório, da ética,
da linguagem e da rapidez estariam sendo melhores cultivados e observados, afora
a subversão à cronologia dos acontecimentos noticiados, que agora ficaria
subordinada ao êxtase dos fatos e não somente ao seu desenrolar temporal.
No design dos jornais de então, o impacto de tal modernidade, voltada para
o conteúdo dos textos e para os aspectos éticos, morais e comportamentais dos
profissionais envolvidos, também foi muito grande, especialmente a partir da
reforma gráfica pioneira do Jornal do Brasil. O mesmo princípio da “pirâmide
invertida”, por exemplo, se aplicaria ao layout das páginas internas, onde as
matérias mais importantes ficariam na parte superior e as de menor importância na
parte inferior até à base. Jornal é “da esquerda para a direita e de cima para baixo”,
diz Amílcar, segundo Lessa (1995, p. 21). Aplicar-se-ia também esse princípio na
capa, que seria a síntese de toda a hierarquia da informação disposta na vertical das
páginas internas e nas respectivas editorias e cadernos: a manchete deveria se
referir à matéria mais importante de todo o conjunto chamado jornal e as demais
chamadas de capa se refeririam às melhores matérias de cada editoria ou caderno.
Vale dizer que as editorias e os cadernos surgiram com a divisão no trabalho das
redações com a chegada da modernidade. Isso fez repórteres passarem a atuar por
áreas segmentadas, como as de política, economia, cidades, geral, internacional,
esportes e sociedade. Daí a seqüência lógica dessas editorias dispostas no interior
dos jornais também seguirem esse mesmo princípio hierárquico: ao folhear o
exemplar o leitor verá aquilo que editorialmente o jornal consideraria como
seqüencialmente os fatos mais importantes. Os editoriais, opinião e as notícias de
157
política, por exemplo, consideradas como de maior prestígio, muito comumente
estariam nas primeiras páginas internas logo após a capa. A diagramação
representava assim a organização e a economia de tempo e de espaços.
Esse impacto da modernidade através da diagramação, e que teve seu auge
no JB, começara lentamente da imprensa brasileira no século XX, entretanto, no
jornal Última Hora, do jornalista Samuel Wainer (1993), fundado em 1951 para
defender Getúlio Vargas, passando a ter edições impressas em várias cidades
brasileiras, pode-se identificar uma das suas mais importantes raízes. Wainer foi
quem trouxe da Argentina para o Brasil alguns dos primeiros diagramadores do
país, segundo ele mesmo explica em seu livro Minha razão de viver, obra em que
relata de forma surpreendente e apaixonante a ousadia de um jornalista
empreendedor, próximo ao poder e ligado aos principais acontecimentos da época.
Esse fato é confirmado tanto por Lessa (1995, p. 38) quanto pelo próprio Amílcar
de Castro numa entrevista inédita concedida em 1977 ao jornalista Eustáquio
Augusto dos Santos e que ficara adormecida nos arquivos Centro de Pesquisa e
Memória do Jornalismo Brasileiro da Associação Brasileira de Imprensa e que veio
a público pela primeira vez graças ao resgate dos pesquisadores e designers Trench
e Stolarski (2007). Ana Maria de Abreu Laurenza, que escreveu sobre o embate
jornalístico entre Wainer e Carlos Lacerda, da Tribuna da Imprensa, também
destaca a importância da contribuição da diagramação do jornal Última Hora:
Nesse ponto, a Última Hora destacava-se, em termos qualitativos,
em relação à Tribuna da Imprensa. Ao adotar uma evolução
técnica, por meio de uma diagramação planejada que
representava um maior aproveitamento dos recursos humanos e
economia de ativos, conseguia oferecer ao leitor um jornal com
visual atraente, mais fácil de ler do que a Tribuna, que abrangia
vários editoriais e oferecia informação diversificada à população
alfabetizada urbana (LAURENZA, 1988, p. 77).
158
No entanto, nesse processo lento de avanço estético no qual se insere a
contribuição do UH, dentre outros, muito especialmente a partir dos anos 1920,
somente no JB é que o design do jornalismo brasileiro encontraria a sua mais
revolucionária transformação. Uma transformação que se daria através da arte da
diagramação moderna e seria dela a sua maior expressão – assim como foi a maior
expressão da arquitetura brasileira moderna o projeto e a construção de Brasília,
cujas raízes igualmente se encontrariam fincadas nos anos 1920, conforme vimos.
Outros caminhos fariam a diagramação e a arquitetura se encontrarem como arte
perceptiva e de criação de espaços regularmente aprazíveis. O Modulor, criado por
Le Corbusier em 1946, por exemplo, tenderia a aproximar ainda mais a página
impressa da arquitetura. Pelo sistema do arquiteto suíço, a divisão áurea se
aplicaria às escalas e proporções humanas. A divisão áurea é aquela utilizada pelos
antigos, através da qual se chegaria às formas mais perfeitas possíveis, como, por
exemplo, a do retângulo áureo – o mesmo método aplicado para se obter o melhor
formato de algumas folhas de papel destinadas à impressão de jornais. A divisão
áurea, ou a Divina Proporção, utiliza princípios matemáticos e geométricos e pode
ser identificada com relativa facilidade em importantes construções gregas, como o
Parthenon e a Acrópole. As escalas e proporções de Le Corbusier, por sua vez,
absorveu o método áureo e se fundam, segundo Hurlburt (1986, p. 81), em três
pontos principais da anatomia de um homem de 1,90 m: o plexo solar, o alto da
cabeça e a ponta dos dedos da mão erguida. Outros métodos foram aplicados para a
melhor divisão das proporções no design, como aquele alcançado através da
utilização da Série de Fibonacci (Bonacci descobriu que vários objetos da
Natureza seguiam uma mesma seqüência lógica: 0:1:1:2:3:5:8:13:21:34...) e do
Princípio de Vitrúvio, que partem, respectivamente, do traçado e do quadrado e
159
estabelecem proporções regulares às massas e ao retângulo através dos chamados
“traçados reguladores”, segundo nos mostra Ribeiro (1993, p. 143-181). Ambos
podem ser vistos aplicados à geometria do Palácio do Planalto, do Supremo
Tribunal Federal, dos prédios dos ministérios desenhados por Niemeyer. Mas o
Modulor de Le Corbusier, originalmente destinado à arquitetura e que muito
provavelmente se encontra também aplicado à criação de Niemeyer em Brasília,
foi para o design gráfico uma contribuição ainda mais incontestável “num período
de grande desenvolvimento científico e tecnológico”, como nos diz o próprio
Hurlburt.
De dois modos principais o Modulor tem contribuído para o
design gráfico contemporâneo. Em primeiro lugar o sistema tem
aplicação direta no design da página, embora seja de tal forma
complicado e tenha tantas e inumeráveis variações que tornam
seu uso extremamente reduzido. Em segundo lugar – e esta é
provavelmente sua importância maior –, a maneira como o
Modulor pode desenvolver designs assimétricos a partir de um
meio simétrico tem inspirado designers gráficos na criação de
diagramas e sistemas de design da página impressa
(HURLBURT, 1986, p. 81).
Faz-se necessário, agora, esclarecermos alguns pontos da diagramação
moderna, ressaltando os seus aspectos técnicos – além de arte plástica, conforme
vimos tratando até agora – para melhor entendermos a sua relação com a
arquitetura e o urbanismo, inclusive quanto à questão da centralidade, já discutida
acima.
Diagramação é uma atividade intelectual que decorre das exigências
perpetradas pelas novas tecnologias de composição e impressão de textos e
imagens. Por isso a feitura da página deixou de ser feita pelos próprios
compositores manuais nas oficinas gráficas, os armadores, como ocorrida desde
Gutenberg no século XV, e ascende às redações, em meados do segundo quartel do
160
século XX. Com a profissão de diagramador assim estabelecida poder-se-ia agora
calcular matematicamente os textos originais feitos pelos repórteres, colunistas,
editorialistas e demais jornalistas e colaboradores das redações, além de outros
elementos da diagramação, como a fotografia. E em seguida programá-los para
serem compostos e depois colados pelos paginadores, arte-finalistas ou pestapeiros.
Somente a partir daí é que seriam impressos, conforme os vemos nos jornais,
revistas e livros. Expliquemos de forma mais detalhada, baseados em vários
autores, como Amaral (1982), Amaral (1982ª), Collaro (1987), Craig (1987),
Ribeiro (1993), Silva (1985) etc. e em nossa própria vivência profissional nas
redações.
A composição de textos, depois de ser feita por mais de quatro séculos
manualmente, utilizando-se dos tipos móveis de madeira e depois de ligas
metálicas, passou a ser feita a quente, ou seja, através da linotipo. A linotipo foi
inventada em 1886 nos EUA e amplamente usada no Brasil até décadas atrás,
quando da chegada definitiva dos computadores. Chamava-se a quente porque a
linotipo utilizava uma pequena fundição. Depois a composição passou a ser feita a
frio, quando da introdução da fotocomposição, que combinou o processamento
datilográfico e o fotográfico. A fotocomposição acabou também com a chegada
definitiva dos computadores e com estes a composição e posteriormente a
diagramação virtual. Todo esse avanço tecnológico sofreu outra grande revolução
com a invenção da impressão offset. As primeiras máquinas desse processo
surgiram em 1959 nos EUA. Baseava-se no princípio de que água e gordura não se
misturam. Também continha outra inovação. Se antes todas as formas de
impressão de uma matriz em um suporte era objetivamente direta, com a invenção
161
da impressão que utilizava um sistema de cilindros de pressão, contra-pressão e de
impressão de uma matriz sensibilizada com tinta para uma blanqueta (cilindro
revestido de borracha, o caucho), a impressão agora seria indireta, fora de contato,
ou seja, a matriz não imprimia diretamente sobre o suporte, no caso, o papel – daí o
nome offset. A rapidez desse sistema, porém, proporcionada pela velocidade dos
cilindros, bobinas e os conjuntos de molhas e de tinteiros automáticos, era
incrivelmente alta, especialmente em comparação às formas anteriores de
impressão, sendo até os dias de hoje a mais utilizada pela indústria gráfica. O
impacto da impressão offset nas Artes Gráficas, assim, foi enorme, alcançando,
inclusive com a qualidade e aplicação de cores, o design e a diagramação.
Paralelamente a esses avanços, os textos originais passaram também a ser
redigidos em laudas e com máquinas de escrever ao invés de serem manuscritos
nas antigas “tiras”. Isso proporcionava uma melhor contagem de toques. Uma
lauda padrão possui normalmente 30 linhas e 70 caracteres tipográficos em cada
linha, contando com os espaços em branco, totalizando assim cerca de 2.100
toques. Caso um texto fosse de 3 laudas, por exemplo, facilmente o diagramador
chegaria a um resultado mais ou menos preciso: 6.300 toques.
Tais textos originais seriam dessa forma projetados como massas de textos
virtuais no diagrama. O diagrama é uma folha de papel do mesmo tamanho da
página do jornal, numerada de forma crescente e decrescente nas laterais e
entrecortada por linhas verticais, formando as colunas e os espaços entre elas, e por
linhas horizontais, formando as guias. Essas linhas, levemente impressas, definem
assim, em módulos, os espaços em branco, os espaços dos textos, das fotos etc.,
simulando desta forma como deverá ficar a área de impressão da página do jornal.
162
E este é o trabalho do diagramador: projetar como esses elementos irão ficar depois
de impressos.
Para fazer tal projeção, que seria representada no diagrama por rascunhos e
retrancas, referentes aos elementos da diagramação (textos, fotos, antetítulos,
títulos, subtítulos, legendas, vinhetas, fios ou linhas, adornos, anúncios etc.), o
diagramador utilizava-se de régua de centímetros, régua de toques, tipômetro,
catálogo e réguas de fontes, tabelas de conversão, lápis de cores e papel para os
cálculos matemáticos. Os cálculos vieram a ser facilitados depois com a inserção
da máquina de calcular. Em algumas redações os diagramadores, os arte-finalistas
e paginadores faziam uso da mesma prancheta utilizada pelos arquitetos. Sobre a
seqüência desse processo, Collaro (1987, p. 9) chega a dizer: “A diferença entre
diagramação e paginação pode ser comparada à diferença entre construção e
arquitetura; resumindo, diagramação é um estágio anterior à paginação”
Assim, para os cálculos, o diagramador levava em conta as larguras das
colunas, os tamanhos dos tipos (corpos), o entrelinhado das fontes em que os
originais iriam ficar e a quantidade de toques dos textos originais. Para isso
utilizava-se de uma das duas unidades gráficas de medidas, o milímetro e o ponto
tipográfico americano ou o ponto tipográfico anglo-saxão. Uma paica são doze
pontos americanos, um cícero são doze pontos anglos-saxões assim como um
centímetro são dez milímetros – e assim eram mais conhecidos e aplicados. Uma
pica ou um cícero equivale a 0,4512 do centímetro (ou 4,512 milímetros). O
diagramador aqui se equivaleria na arquitetura ao engenheiro calculista? Estaria
para o editor assim como o calculista estava para o arquiteto?
163
Talvez sim, talvez não. O fato é que toda a projeção, calculada, era feita no
sentido de estabelecer como iriam ficar em estruturas visuais todos os elementos da
diagramação. Com o uso do fotolito para o sistema offset na oficina gráfica foi
possível ampliar ou reduzir proporcionalmente as fotos, ou utilizar-se de outros
recursos, como a inversão e a solarização (negativo), todos agora à disposição da
decisão intelectual do diagramador e do editor na redação. Assim ampliava-se a
linguagem da mancha gráfica, ou seja, tudo aquilo que o leitor finalmente vê
impresso e que assim só é possível de ocorrer pelo contraste dado pelo papel em
branco com a oposição da tinta escura. E aqui um detalhe: o que o leitor vê
impresso, a mancha gráfica, vê como uma arquitetura. Literalmente: uma
arquitetura da informação, como já discutimos acima. Uma arquitetura que é vista
antes mesmo do leitor descer ao conteúdo da mensagem, ou seja, antes de decifrar
os códigos signo-venaculares e/ou texto-gramaticais ali dispostos e disponíveis e
saber do seu conteúdo em permanente transmissão. A leitura visual, assim, como
diz Dondis (1997), precede a leitura textual. Uma leitura na qual está contido todo
um processo racional, codificado e inteligível de confecção, diagramação,
composição, impressão, enfim, de edição em que tudo fora construído, destruído e
reconstruído por inúmeras vezes até se chegar àquele produto final, como nos
lembra Parente et alii (1993). A mesma leitura visual que se faz ao se mirar e se
delinear uma cidade, cidade tida como texto, texto histórico e reescrito por várias
vezes no tempo e no espaço, como nos explica didaticamente Rolnik (1988), ou a
cidade midiática, a cidade literária, de espaços de comunicação, como nos mostra
Pryston et alii (2006). Neste caso, a imagem do palimpsesto, pergaminho próprio
dos primórdios das Artes Gráficas, não poderia deixar de ser a melhor analogia
para a história das cidades.
164
Mesmo superadas hoje muitas coisas desse processo evolutivo do design da
diagramação, algumas das que permaneceram ou se aperfeiçoaram ainda se
mantêm ou voltaram a se manter de outras formas imbricadas com a arquitetura.
Note-se, por exemplo, que a diagramação deixou de ser feita materialmente, ou
seja, diretamente na folha de diagrama, e passou a ser feita no computador. Isso
também ocorreu com a arquitetura. Deixou a prancha e foi para o virtual. Assim,
ambos são feitos por programas de computador, sendo os mais utilizados,
respectivamente, o IndDesign e o AutoCad – ambos produzidos por uma mesma
corporação, a Adobe Systems Incorporated, que também produz o Photoshop,
programa utilizado também tanto pela diagramação como pela arquitetura para o
tratamento de imagens.
Não seria de estranhar, portanto, que nas páginas de jornais esses dois
campos, aparentemente tão díspares, voltassem novamente a se encontrar, através
da diagramação jornalística cotidiana e dos anúncios também cotidianos de vendas
de casas e apartamentos, em cujos reclames classificados ou em páginas inteiras e
coloridas de propaganda se afigurem prédios, condomínios, paisagens, ambientes,
cômodos etc. feitos pela arquitetura para o setor imobiliário das cidades – sendo
este último, ou seja, a publicidade imobiliária, um importante fenômeno do
capitalismo avançado, constituindo-se inclusive num significativo objeto de estudo
de pesquisadores que buscam compreender relações, causas, tendências, ocupações
e exclusões perpetradas pelo mercado imobiliário urbano, como o faz Loureiro;
Amorim (2006) num interessante trabalho. Um fenômeno, portanto, aperfeiçoado e
que une Comunicação e Arquitetura, mas que se funda num passado, no presente
caso, não muito distante. Quando da inauguração de Brasília, por exemplo, foi a
165
diagramação moderna que afigurou na primeira página do Jornal do Brasil, no dia
21 de abril de 1960, sob o título “Brasília é feita Capital”, com todas as outras
informações sobre talvez o mais marcante acontecimento para a Arquitetura
Moderna brasileira (LESSA, 1995, p. 32).
Dadas estas explicações panorâmicas sobre as funções e as ferramentas
técnicas da diagramação jornalística, alinhando-as em alguns nós à cidade e à
arquitetura moderna, aprofundemos agora, com este mesmo propósito, a questão da
centralidade. Aquela mesma que nos faz dizer que se Brasília “não tem nem nunca
teve um centro”, o chamado “Centro da Cidade”, aquele que possibilitaria
sociabilidades, o burburinho e o footing, e que tem apenas algumas centralidades
sociais localizadas mais nos Centros Comerciais Norte e Sul, como defende Silva
(2008) – e como defende também Castells (2000), baseado em seus estudos sobre
algumas cidades da Europa e dos EUA, quando afirma que o “centro da cidade não
é o geográfico”, mas onde se concentra o poder financeiro, comercial, enfim, do
capital –, ou seja, se não existe um centro no sentido tradicional, existe de fato um
centro geomorfológico revestido com toda sua indumentária de realidade, da
história, imaginação e contemporaneidade. Um centro com um sentido
deliberadamente moderno, algo inclusive reconhecido por Silva, Castells e outros
autores, e que deriva de uma promoção estético-estratégica. Trata-se de um centro
interseccional, carregado de significado gráfico-histórico, conforme vimos, e que,
de maneira prática, o faz distar, no caso de Brasília, a partir da Rodoviária do Plano
Piloto, 7 km da extremidade da Asa Norte, 7 km da extremidade da Asa Sul, 7 km
do Terminal Rodoviário do Cruzeiro Velho, 20 km do Lago Sul e 30 km do Lago
Norte – medidas, dentre outras, infinitas e variadas, algumas das quais estudadas
166
por pesquisadores como Holanda (2007), que faz comparações escalares inclusive
com obras da tradição do “grande desenho”, como Teotihuacán e Zócalo (México),
San Pietro (Roma) e Champs Élysées (Paris). Um centro, como se vê, mais que
matemático; um centro morfológico, sintático-visual, geográfico-cultural.
Essa qualidade de Brasília também se expressa no design. E se funda na
diagramação brasileira mais ou menos na mesma época da consecução da Capital
Federal. Embora com características e finalidades próprias, segue visualmente o
mesmo princípio e o mesmo sentido morfológico: a atração visual e a facilitação
social em vários níveis. No diagrama, há o centro da página demarcado por uma
cruz abstrata que ao mesmo tempo define os Quadrantes. “Uma forma simples de
diagramar e atingir um resultado satisfatório é dividir a página em quatro módulos,
ocupando os espaços simetricamente” – explica Collaro (1987, p. 75). Collaro, sem
saber, faz referência ao mesmo gesto primário de Lúcio Costa quando desenhou
Brasília. Essa cruz do diagrama também define as chamadas Zonas Ópticas (ZOs)
Primária (canto superior esquerdo), Secundária (canto inferior direito) e as Mortas
(cantos superior direito e inferior esquerdo). Ou, como chama Silva (1985, p. 46-
49) e Erbolato (1981, p. 63-65), Zonas de Visualização. Nelas aconselha-se a
distribuir, pelo grau de importância, e respeitando os módulos, os elementos da
diagramação, de forma que sigam o processo de leitura da esquerda para direita e
de cima para baixo, evitando as linhas que coincidem com as dobras do jornal.
Estas linhas são as mesmas da cruz que demarcam os módulos. Assim, ficaria
inapropriado, por exemplo, colocar um título exatamente por sobre a linha
horizontal, pois a dobra não o deixaria ser totalmente visto. Tal princípio também
vale para a publicidade – daí vermos anúncios ocupando ora um, ora outro módulo
167
(1/4 de página), ora dois combinados (2/4), que é o mesmo que meia página (½),
ora os quatro módulos (4/4), que por sua vez é a página inteira (1 p.). O mesmo
procedimento vale para o processo decrescente. Ou seja: os módulos podem ser
igualmente subdivididos em pequenas partes até se chegar ao menor tamanho
possível. Isso quer dizer toda a página ser dividida em pequenas partes
proporcionalmente iguais. Neste caso teremos variadas frações como rodapé, meio
rodapé etc. Todos medidos por centímetro por coluna (cm x col.), sendo a largura
da coluna, como já dissemos, medida em paica ou cícero. A página, assim, adquire
a trama de um grande e fracionado módulo. Curiosamente, este é o mesmo nome –
Módulo – de uma revista lançada por Niemeyer em 1955 para se discutir a
arquitetura brasileira, o que, de certa forma, o aproxima do jornalismo, tendo em
vista que, segundo Pereira (1997, p. 116-117), ele adorava ler e escrever, e também
da própria diagramação jornalística, já que o design de sua revista seguia a mesma
tendência de modernidade verificada no jornalismo de então.
A cruz, assim, como elemento definidor de módulos, serve também para
demarcar, como nos mostra Oliveira (apud Ribeiro, 1993, p. 167-170), o Centro
Geométrico (exatamente o ponto de interseção das linhas, ou seja, o centro da
página), o Centro Ótico (sempre um pouco acima do Centro Geométrico e que
parece seguir o princípio proporcional da divisão áurea) e os chamados Pontos
Fortes (que se situam exatamente na interseção das quatro linhas quando postas
para dividir proporcionalmente a página em pequenos retângulos tanto na vertical
quanto na horizontal. Pode-se ver, como já dissemos, que está presente na
consecução de Brasília aquela cruz inicial, primária, e que fez Lúcio Costa assim
se expressar, quando se referiu ao Plano Piloto, segundo Pereira (1997, p. 153):
168
“Nasceu de um gesto primário de quem assinala um lugar ou dele toma posse: dois
eixos cruzando-se em ângulo reto, ou seja, o próprio sinal da cruz...” Baseado
nisso, poderíamos pensar também que o centro de Brasília definido pelos dois
eixos de Lúcio Costa é o Centro Geométrico e que a Praça dos Três Poderes com
seus edifícios magnânimos em volta, o “cockpit”, é o Centro Óptico. Além desse
fundamento primário, contudo, pode se ver também que outros eixos cruzados, em
menor escala, assim como ocorre na subdivisão em módulos dos Quadrantes das
páginas dos jornais, subdividem também alguns traços de Lúcio Costa, como as
Superquadras, e algumas obras e ambientes de Oscar Niemeyer, como os prédios
simétricos e repetitivos da Esplanada dos Ministérios.
Aqui ingressamos noutras características símiles entre a arquitetura e a
diagramação modernas aplicadas em Brasília e no Jornal do Brasil. Se aquela
utiliza preceitos como harmonia, equilíbrio e ritmo, que podem ser verificados
através de instâncias como a repetitividade, distribuição equitativa dos “pesos
visuais” e a disposição simétrica dos elementos e artefatos arquiteturais sobre e no
espaço, como ocorre com a Esplanada dos Ministérios, Palácio do Planalto,
Itamaraty, Congresso Nacional e Catedral de Brasília, no Jornal do Brasil de
Amílcar de Castro essa aplicação não seria diferente. Colunas, fotos e outros
elementos se disporiam seguindo relativamente os mesmos critérios, de tal modo
que poderiam permitir, segundo Lessa (1995, p. 50), a “intercambialidade ou
substituição de textos”. Isso quer dizer, por exemplo, que uma massa de texto, ou
seja, um fragmento de coluna tinha a mesma largura e o mesmo número de linhas
que outras perfiladas simetricamente. De tal forma que poderiam vacilar, serem
modificadas, aumentadas, transpostas, sem perderem essa característica, pois todas
169
seguiam o mesmo sentido de modificação, guardando a leiturabilidade e a
percepção de texto corrido.
Os longos espaços de Brasília também guardam correspondência com o JB.
Os grandes vazios da Capital Federal, que se sobressaem, inclusive como
linguagem, e ajudam a escrever a história da nova cidade moderna, posto se
apresentarem imensamente dispostos ao valor de uso, se apresentam também como
recursos àquela sensação de equilíbrio social imbricada com o visual. Neste
sentido, a intervolumetria fica bastante evidente. A Praça dos Três Poderes, por
exemplo, é um espaço amplo e aberto, medindo 120 x 220 metros, de maneira que
os prédios que compõem o entorno e representam a instância nuclear e máxima dos
três poderes republicanos do país, não se sobressaem um diante dos outros. Isso em
respeito ao princípio de que são harmônicos e independentes e, portanto, têm o
mesmo peso. No projeto do JB, o espaço em branco se apresenta igualmente como
útil e venacular. Isso quer dizer que aquilo que suporta e possibilita, à composição
de massas, uma distribuição equilibrada e diametral, portanto, harmônica, rítmica,
passa também a ter um novo e mais valorizado papel: ser um elemento mais ativo
no conjunto estético da imprensa moderna brasileira. Senão vejamos:
O espaço em branco, que tendia a se confundir com o suporte – a
folha antes de ser impressa – e funcionar como fundo das
“figuras” jornalísticas ou moldura da informação, passa a reagir
dinamicamente à colocação dos outros elementos,
potencializando plasticamente as massas de texto, fotos e títulos
(LESSA, 1995, p. 48).
Em algumas obras de Oscar Niemeyer para Brasília – o Palácio do Planalto, o
Palácio da Alvorada, o Palácio da Justiça e a Catedral de Brasília – as colunas são
mais que a base de sustentação tradicional de arquitraves, lajes, paredes, abóbadas,
arcos, edifícios. São objetos frutos de uma revolucionária ousadia artística e funcional
170
desde as dóricas, jônicas e coríntias gregas. Destas, clássicas, Niemeyer subverteu
todas as linhas verticais e horizontais. Retirou volutas, arremates, adornos, frisos,
caneluras. Transformou ou simplesmente aboliu a base, que passaria agora a ser
somente pontiaguda, pousando sobre o solo; o capitel, que seria apenas a ponta de um
arco superior, apontando para o cimo; e o fuste, que deixaria de ser cilíndrico, com a
esperteza das entasis, para adquirir outra forma, tão inusitada e surpreendente quanto
leve e delicada. Nas colunas tradicionais, alcançando as romanas e as islâmicas, entre
o capitel e a base seguiam-se sempre no mesmo sentido – com as variações sendo no
decorativo-estrutural, ou seja, apenas de natureza estilística. Em Niemeyer, no entanto,
essa nova forma, inclusive de colunata, faz surgir um novo códice para a arquitetura
universal. A coluna do Palácio da Alvorada, por exemplo, adquire a imagem de uma
estrela de quatro pontas, sendo a ponta superior mais alongada que a inferior, e as
laterais apresentando-se exatamente iguais, mas se unindo umas às outras por esses
prolongamentos. As linhas, ao invés de retilíneas, passaram assim a ser curvas e
delgadas. O centro da “estrela” também se projeta para fora, mas muito pouco, dando
a impressão de ser apenas uma ponta em prenúncio de saliência. “O espanto é
característica primordial da obra de arte, de modo que aqui fiz as colunas no chão,
como as colunas do Alvorada, e depois as suspendi, ancoradas”, diz Niemeyer em
entrevista a Zubaran (2002, p. 22). A coluna utilizada no Palácio do Planalto, por sua
vez, foi a mesma utilizada no Palácio da Justiça. O próprio Niemeyer explica que quis
dar a mesma identidade a ambas as construções e representações do poder.
Quando eu fiz as colunas do Palácio do Planalto, eu fiz uma
arquitetura mais leve. Eu queria que as pessoas passassem por
baixo. Eu quis que no outro Palácio, do Supremo Tribunal
Federal, acontecesse o mesmo, que o mesmo tipo de exigência
ocorresse. Por uma questão de unidade, que as coisas se
parecessem. E que tivesse, no conjunto, um denominador comum
criado através da disposição dos prédios (ZUBARAN, 2002, p.
22).
171
O fato é que as colunas utilizadas identicamente no Palácio do Planalto e no
Palácio da Justiça têm a mesma característica de inovação e lembra as do Palácio da
Alvorada. Ao caráter visual novamente se faz acompanhar o político. A diferença é
que, se aquelas parecem como estrelas enfileiradas (falam também em semelhança
com uma árvore existente na região), chegando a ser o símbolo de Brasília, aqui
parecem mais velas ao mar. Não seria assim tão gratuito o espelho de água existente
em volta do prédio do Supremo Tribunal Federal que as refletem ao observador. Outra
característica em comum, inclusive nas também tão inovadoras colunas da Catedral de
Brasília, são as curvas, sinuosas, ousadas, belas. Aquelas mesmas curvas sobre as
quais já comentamos acima e que nos fazem lembrar o texto, transformado em O
Poema da Curva, já tão conhecido quanto auto-explicativo, do próprio Niemeyer:
Não é o ângulo reto que me atrai. Nem a linha reta, dura,
inflexível criada pelo homem. O que me atrai é a curva livre e
sensual. A curva que encontro nas montanhas do meu país, no
curso sinuoso dos nossos rios, nas nuvens do céu, no corpo da
mulher amada. De curvas é feito todo o universo. O universo
curvo de Einstein (NIEMEYER apud PEREIRA, 1997, p. 126).
As colunas do projeto gráfico-editorial do Jornal do Brasil não chegaram a
tanto em ousadia. Em grande parte porque as formas de composição de texto à época,
ao contrário do que aconteceu com o concreto armado, não possibilitaram que as
curvas fossem possíveis. Algo que só veio a ocorrer mais recentemente, quando a
diagramação passou a ser feita através de programas específicos de computador. Isso,
porém, não tira o mérito das formatações executadas no design das colunas do JB. A
principal delas é que as linhas retas da modernidade foram empregadas com mais
racionalidade e equilíbrio. De tal forma que as massas e os blocos de composições
seguiam um padrão visual lógico. Essa mudança, porém, é lenta e complexa, pois
segue a combinação de dois grids, que utilizam, inclusive, e também de forma
inovadora, as chamadas falsas colunas, como nos mostra detalhadamente Lessa (1995,
172
p. 50-54). O auge dessa transformação, contudo, vem ocorrer somente em 1959, com a
combinação dos padrões internos e externos.
A interpenetração simultânea de diagramas diferentes –
desdobramento lógico da medida de falsa coluna – também já
havia ocorrido no SDJB. Desde meados de 1957 havia sido
estabelecido um padrão que combinava um diagrama de cinco
colunas de quinze cíceros com um diagrama de sete colunas de
nove cíceros. Mas esta solução só vai efetivamente se destacar ao
ser utilizada para o redesenho da primeira página, no dia 2 de
junho de 1959 (LESSA, 1995, p. 52).
Esse novo padrão de colunas também ocorre com a introdução de um novo e
exclusivo tipo (letra), escolhido por Amílcar para ser utilizado nos títulos e textos. O
JB deixa definitivamente de mesclar caracteres tipográficos, o que impossibilitava a
construção de uma identidade visual – a não ser pela própria negação do
empastelamento. “O uso de uma única família tipográfica não apenas confirma a
intenção de simplificar os elementos formais do jornal, mas também evidencia a
preocupação em hierarquizar as informações impressas”, dizem Trench e Stolarski
(2007, p. 133), que complementam: “A sistematização garante a uniformidade visual –
é gritante aqui o contraste em relação ao uso indiscriminado de diferentes tipos do JB
pré-reforma”. A fonte Bodoni – hoje tão acessível – foi adquirida nos Estados Unidos
pelo Jornal do Brasil a pedido do artista-diagramador (LESSA, 1995, p. 21). Sua
característica é, dentro da classificação universal de tipos gráficos, a que se alinha,
entre inúmeras outras, às fontes Quirinus, Mondial, Onix e Didot (RIBEIRO, 1993, p.
62). Ou seja, àquelas que combinam traços finos e grossos em suas hastes e possuem
serifas extremamente finas. Um alto contraste. Isso produz refinamento e um mais
acentuado equilíbrio e harmonia visuais. São as mesmas fontes que, dentro da
classificação feita por Collaro (1987, p. 26), são chamadas de Romanas Modernas.
Trata-se de um tipo ideal para publicações voltadas para a vida moderna. Daí serem
utilizadas em jornais como Folha da Tarde e revistas como Cláudia, que oferecem em
173
seu conteúdo soluções práticas para a vida cotidiana, ou querem se apresentar em si
como impressos refinados. São utilizadas também em publicidades que anunciam
produtos novos no mercado e que prometem soluções rápidas e eficientes para o bem-
estar e a elegância no dia-a-dia. A Bodoni, contudo, ao pertencer à família da Romana
Moderna, descende da família da Romana Antiga. Desta fazem parte a Caslon,
Garamond, Baskerville e a Times. São consideradas fontes clássicas, pois se inspiram
nos escritos greco-romanos feitos nas lápides e fachadas dos edifícios da Antiguidade.
Tanto que hoje são as mais utilizadas para textos na maioria dos jornais e revistas de
informação do mundo. A fonte Times, por exemplo, foi criada exclusivamente para a
revista Times. Assim, a Bodoni possui não só o espírito da modernidade, mas também
a aura do mundo clássico.
Com efeito, aqui encontramos outro ponto de convergência entre a arquitetura
e o jornalismo. E, por conseguinte, entre Brasília e o JB. As fontes tipográficas
derivam do desenvolvimento da escrita, que nasce entre 3 mil e 5 mil anos antes de
Cristo, segundo Giovannini (1987), e acompanham a evolução da arte, dentre as quais
a arquitetura. Os primeiros registros mostram que os fenícios escreviam sem adornos,
arremates e o faziam em desenhos cuneiformes e utilizando bastões – daí a
classificação, segundo Ribeiro (1993), de Bastão às fontes desprovidas de quaisquer
enfeites e serifas em suas hastes, resgatadas posteriormente pela Bauhaus, conforme
nos mostra, dentre outros, Hurlburt (1986). Outros autores, como Erbolato (1981),
seguindo o mesmo raciocínio, classificam-nas de Lapidárias, Etruscas ou Grotescas.
Descendem dessa prática e integram essas famílias as atuais Arial, Helvética,
Grotesca, Univers e Impact, dentre inúmeras outras. São fontes práticas e vigorosas,
principalmente quando negritadas. Por isso mesmo muito utilizadas em títulos e de
forma garrafal por jornais sensacionalistas. Foram os gregos e os romanos que deram a
174
beleza estética às letras, modificando assim o uso dos simples bastões e
consequentemente a singeleza das hastes das letras. Utilizaram para isso o stylus – daí
o sentido amplo da palavra estilo e da decorrente expressão “estilo de escrever”.
Criaram, além de outras letras e sinais gráficos, um padrão nos desenhos e os
arremates nas pontas das hastes, ou seja, as serifas. Isso faz com que, se ampliarmos e
observarmos hoje detidamente a letra “I”, grafada em maiúsculo e em fonte clássica,
identifiquemos ali a imagem semelhante à de uma coluna grega ou romana. Ao
observarmos da mesma forma a configuração das demais letras do alfabeto, sempre
em maiúsculas (as minúsculas só foram inventadas na Idade Média), perceberemos a
repetição das mesmas hastes que por sua vez lembram várias colunas em combinação
– que os arquitetos chamam na arquitetura de colunato. A letra X, por exemplo, seria o
resultado de duas colunas cruzadas, a T de uma coluna vertical encimada por meia
coluna horizontal e assim por diante. Poderíamos assim dizer que o capitel e o fuste da
coluna correspondem à serifa e à haste das letras em maiúsculas clássicas,
respectivamente. Pois bem: é exatamente esse tipo de letra clássica que se encontra
gravada em vários prédios e monumentos de Brasília. Ou seja: pela tipografia, a
arquitetura também se funde, na cidade moderna, ao ideário modernista da imprensa,
como aquele implementado pela reforma gráfica do Jornal do Brasil desde a data de
fundação da Capital Federal.
Se as colunas propriamente ditas do Jornal do Brasil não avançaram tanto
quanto as protagonizadas pela arte de Niemeyer em Brasília, a sua configuração na
página, porém, guarda uma relação muito provavelmente direta com as colunas
clássicas e parte do conjunto que estrutura fisicamente as obras da Grécia Antiga. Não
há dados precisos, mas é possível que o nome “colunas” dado àquelas massas de
textos, que compõem os materiais impressos, descendam exatamente daquilo que
175
designam aquelas massas concretas de construções do mundo antigo, as colunas.
Quando Gutenberg inventou a imprensa para o Ocidente e imprimiu o seu primeiro
trabalho – cem Bíblias em dois tomos cada uma –, o fez utilizando duas colunas em
cada página. As fontes de caracteres utilizadas para tanto, obtidas a partir dos inéditos
tipos móveis, foram góticas. O objetivo era conceber uma aparência mais que
adequada à época, posto estarmos na Idade Média e era muitíssimo mais comum, em
vez do stylus em pedras e madeiras etc., o uso da pena e da tinta em pergaminhos e
outros tipos de folhas de papéis. As letras minúsculas nascem assim da necessidade de
ser o mais rápida possível essa forma de escritura: fazer uma letra “a” manuscrita era
muito mais fácil do que a letra “A”. O estilo gótico, com seus desenhos flamejantes,
linhas lanceoladas, resulta também dessa prática eminentemente manual. A
performance artesanal gótica assim se diversifica e encampa de tal forma que chega a
ser utilizada oficialmente por alguns estados. Isso explica o porquê dos alemães até
hoje serem associados, em produções midiáticas de toda ordem, especialmente quando
se remetem ao passado dessa nação, às letras góticas, assim como ocorre de um modo
em geral com a cultura da Idade Média. Tanto que hoje essa modalidade de letras, com
todas suas diversificações, faz parte de uma classificação universal como uma família
de tipos, a das letras Góticas, ao lado das famílias Bastão, Romana Antiga, Romana
Moderna, Egípcia e Fantasia. A motivação de Gutenberg, quanto à tipologia,
portanto, era óbvia. Mas, quanto às colunas? Onde ele buscou inspiração para o feitio
e a nomenclatura? Muitas respostas podem ser dadas, mas uma, igualmente óbvia
como a dada acima para a tipologia gótica, aponta para aquilo que lhe deu o nome: as
colunas greco-romanas.
De fato, as colunas dos livros, e principalmente dos jornais, nos fazem lembrar
as colunas da Idade Antiga, especialmente as gregas. Recordemos que Gutenberg
176
imprimiu cada página em duas colunas de texto e, no início do primeiro parágrafo de
cada livro de sua Bíblia, destacou a primeira letra, belamente adornada, cujo nome a
tipografia chama de capital. A semelhança com as colunas gregas talvez não seja
assim tão por acaso: ali também temos belamente adornadas por espirais e volutas o
que a arquitetura chama de capitel. Assim também como os espaços entre as colunas
dos jornais são interculunas, na arquitetura são intercolúnios. E assim como as colunas
dos jornais são encimadas por subtítulos, títulos e antetítulos, que se estendem
horizontalmente, como a se sustentar pelas massas de textos das colunas logo abaixo,
as colunas gregas sustentam arquitraves, frisos e cornijas, que igualmente se estendem
horizontalmente e efetivamente são sustentadas pelas colunas logo abaixo.
Tal relação se acentua quando percebemos que, se as colunas dos jornais
podem derivar das colunas tradicionais, estas também podem conter características
que hoje consideramos próprias da imprensa moderna. Na Coluna de Trajano,
construída em Roma pelo arquiteto Apolloro de Damasco, 114 anos d.C., ao longo de
seus trinta metros de altura encontramos o relato minucioso de um acontecimento, o
desenrolar de um fato histórico, acerca de uma guerra de conquista, escrito através de
imagens em relevo na parede do próprio mármore. “O imenso fuste da Coluna de
Trajano está percorrido por um friso de relevos em extensão helicoidal, a modo de
crônica jornalística, sobre as façanhas do imperador na conquista da guerra”, diz
Correia Neto (S/D – destaques nossos) num interessante documentário sobre a
“História da Arte”. Assim, as colunas do JB podem não ter ousado tanto como as de
Niemeyer, mas certamente que, ao serem mais bem definidas, através de uma maior
afirmação dos espaços em branco, como já vimos, ganharam um pouco mais de
qualidade, equilíbrio e padronização gráfica, como as de Brasília, e possui com estas
177
uma relação histórica, inclusive em sentido inverso: as colunas da Capital Federal
falam sobre um acontecimento factual extremamente importante da vida nacional.
Paralelamente, no JB, Amílcar de Castro colocava em prática a assertiva de que
“menos é mais”, da qual nos fala Francisco Homem de Melo (2004). Isso quer dizer
que despojou das páginas todos os tipos de adornos, filetes, frisos, grifos, molduras.
No dizer duplamente axiomático do próprio Amílcar, segundo Lessa (1995, p. 21),
“fio não se lê” e “jornal é preto do branco”. Ao clarear o jornal, a reforma gráfica do
JB segue o princípio lecorbusiano de deixar entrar a luz nas habitações, na cidade – daí
a sua concepção de La ville radiuse. “A arquitetura é o jogo sábio, correto e magnífico
dos volumes unidos sob a luz”, ensinava Le Corbusier (2006, p. 29). Este princípio
parece ter sido seguido com inventividade antropofágica por Niemeyer, quando
estabelece, por exemplo, como ambientes escuros as passagens que levam unicamente
a outros recintos de forte claridade natural e/ou artificial. A distinção do claro-escuro,
como o preto-branco em Amílcar, fica desta forma bem evidenciada em Niemeyer. Na
Catedral Metropolitana de Brasília, com sua forma de Coroa de Espinhos, por
exemplo, o caminho da entrada lembra o purgatório, dado a escuridão. Uma vez se
chegando ao seu interior, pode-se verificar, de súbito, além de arcanjos pendurados ao
teto, pairando sobre os fiéis, como a voar (ao invés dos tradicionais postos à parede),
vitrais em cores e motivos celestiais que deixam a luz natural entrar com um certo
vigor e ao mesmo tempo uma grande sobriedade. Outras obras seguem o mesmo
princípio. Assim como também toda a cidade: de qualquer lugar é possível divisar o
“céu de Brasília, traço do arquiteto”, como canta Djavan (1992) em homenagem à
cidade na música “Linha do equador” e, no mesmo tom, assim explica o historiador
Celso Fonseca (2009): “Você tem construções, propostas de edificações, que têm essa
grandeza, que têm o horizonte. Você tem, em todas as dimensões, de todos os ângulos,
178
um horizonte à vista, de Brasília”. Assim, ao “clarear” o JB, Amílcar de Castro
também valoriza a impressão. “A impressão do jornal era péssima. Então, uma das
providências que eu tomei foi tirar tudo que é negativo e fio. Tudo o que não era
essencial à leitura, tirava para clarear um pouco o jornal, para dar mais força à matéria
escrita”, diz, segundo Trench e Stolarski (2007, p. 138 – destaque nosso).
A inserção lenta de fotografias com dimensões ousadas na primeira página do
Jornal do Brasil, assim como, de forma assimétrica, nas páginas do Caderno de
Domingo – este tendo ocorrido logo nos primeiros anos das mudanças –, com a
participação do poeta Ferreira Gullar e dos jornalistas Jânio de Freitas e Reynaldo
Jardim, também faz parte da grande reforma que se operou no JB. A tríade de imagens
fotojornalísticas que se instalou a partir daí ainda hoje repercute na imprensa diária,
posto o projeto ter sido seguido logo depois por outros jornais e Amílcar ter se tornado
a referência para fazê-los. “A radicalidade da reforma, sobretudo a do período 59/61,
transforma-se em símbolo de renovação do jornalismo e Amílcar em seu agente
autorizado”, afirma Lessa (1995, p. 36). Em Brasília, e com Niemeyer, parece não ter
ocorrido algo diferente quando se trata de radicalidade. O próprio Niemeyer afirma
que alguém pode até não gostar de Brasília, mas não poderá jamais dizer que viu coisa
parecida até então. Radicalismos, com suas indubitáveis razões, à parte, uma coisa é
certa: a diagramação paradigmática do JB reflete uma tendência de consolidação do
design do produto industrial brasileiro, dentro de uma atmosfera de modernidade que
expressa, por suas próprias características, o concretismo e o neoconcretismo; e a
arquitetura e o urbanismo modelares de Brasília seguem o mesmo caminho, embalados
pela aura desenvolvimentista, feita, por sua vez, essencialmente do moderno concreto
armado e outros neoelementos. São, assim, os nós de uma mesma textura social,
179
cingida pelas mesmas idéias contemporâneas e tecidas por muitos dos mesmos ideais
clássicos.
180
Foto 4 - Davi de Michelangelo: escultura enigmática se constituía por muito
tempo num objeto de grande fascinação para Freud, cuja ideia de movimentos
anteriores e posteriores a partir dos detalhes da obra foi a chave para que o...
Foto 5 - ...o "Pai da
Psicanálise" finalmente
desvendasse o seu mistério.
Foto 6 - Sherlock Holmes:
personagem da literatura
que usava o método
semicientífico
Fotos 7, 8 e 9: Colunas do
Jornal do Brasil, em seus
primórdios (à esq.), e
detalhes (acima) da Coluna
de Trajano: narrativas
históricas escritas em tinta e
relevo para a posteridade.
http://www.baixaki.com.br/papel-de-parede/6849-moises-de-michelangelo.htm http://www.revistavortice.com.
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181
Foto 10 – Os primeiros
passos do projeto de
Lúcio Costa começam
com dois segmentos de
reta se cortando,
remonta à cruz, evolui
com a curva e assim se
estabelece....
Foto 11 – ...como projeto
(partido), cujo diagrama
lembra o avião, símbolo
de uma época
capitalista, que “alça
vôo” e finalmente
termina por ser
concretizado...
Foto 11 – ...numa região
central do Brasil, como
a demarcar um ponto
equidistante na história,
na geografia e no poder
político do país,
realizando assim um
desejo ancestral, do
presente e para o futuro:
triunfo da vontade.
Fotos: arquivos de aula ministrada pelo prof. Frederico de Holanda (UnB)
182
Fotos 12 e 13 –
Concepção e
consecução do
Congresso Nacional:
modernidade das linhas
retas e das curvas
evocam o equilíbrio
político e lembram a
simetria da reforma
gráfica do JB: mesmas
ideias de uma mesma
época
Fotos 14, 15 e 16 – As
colunas revolucionárias
divergem das colunas
clássicas do jornalismo
moderno, mas a
modernidade anuncia-se
na reprodução dos
espaços, dos fatos e dos
acontecimentos
sincrônicos da realidade
arquitetural, artística,
política, econômica etc.
http://www.skyscrapercity.com/showthread.php?t=583353
http://www.arcoweb.com.br/arquitetura/oscar-niemeyer-
coletanea-de-11-02-2008.html
http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Palacio_do_Planalto.jpeg
http://www4.planalto.gov.br/restauracao/registros-
fotograficos/historia-do-palacio/croquis-do-palacio-do-
planalto-de-oscar-niemeyer-1958/view
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Fotos 17 e 18 (acima e à dir.) – Repetitividade modular de construtos
prediais e de composições gráficas; valorização dos espaços vazios e dos
espaços em branco: novo sentido à sociabilidade e à visibilidade.
Fotos 19 e 20 – Por vezes, junto com a valorização dos espaços, as colunas
da mancha gráfica também avançam na ousadia revolucionária das
colunatas curvas e apontam para um sentido ideológico/cultural: política,
religião etc. se refletem na criação/produção artística.
http://www.trekearth.com/gallery/South_America/Brazil/Center-
West/Distrito_Federal/Brasilia/photo971141.htm
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Foto: arquivo de aula ministrada pelo prof. Frederico de Holanda (UnB)
184
CAPÍTULO 3
Comunicação e História: sangue de papel
e suor de concreto na São Paulo
revolucionária
1. Delimitação temática: aproximando pensares
este capítulo pretendemos aproximar Comunicação e História. O objetivo,
seguindo o mesmo caminho já trilhado nos capítulos anteriores, é tentar
mostrar que é possível contribuir para um maior deslinde da realidade,
interconectando duas importantes áreas do conhecimento das ciências humanas.
Duas áreas tão próximas no cotidiano empírico quanto distantes foram sendo
tornadas pelas práticas reflexivas ao longo da construção histórica do saber, desde
o nascimento da ciência moderna. Não se fechará aqui – nem se poderia – um
círculo epistemológico acerca do tema. Muito pelo contrário. Pretende-se
contribuir para a construção de um aprofundamento paradigmático neste sentido,
qual seja: ampliar a rede de possibilidades de interdisciplinaridades ou mesmo de
transdisciplinaridades via o alargamento dos horizontes à observação de objetos
sociais relativamente novos, igualmente plurais, que exigem novas demandas
mentais e metodológicas, de maneira especial na esfera das Ciências Sociais.
Também como nos capítulos anteriores, nosso palco à empiria será a cidade
N
185
contemporânea. Nela nos debruçaremos sobre a realidade concreta com aquilo que
consideramos as suas multiformas midiáticas. Noutras palavras: pretendemos
analisar a cidade-mídia na particularidade de alguns de seus construtos
socioculturais imbricados e em relações dialéticas recorrentes, dinâmicas, próprias.
Levando a efeito, e falando de forma mais objetiva e didática, no presente
capítulo pretendemos estudar, como elemento tributário da Comunicação Social, o
jornal diário Folha de São Paulo e sua prática cotidiana nos campos jornalístico,
político, econômico, social etc. na cidade de São Paulo – e, por conseguinte, do
Brasil –, no período que se inicia no início da década de 1960 e termina em meados
da década de 1980. Algo que por si só já seria imanente do campo da História. Mas
desta buscaremos, ainda como contribuição disciplinar, algo também próprio das
Ciências Sociais: a linha teórica adotada por Marx para interpretar a História e os
fatos sociais, políticos, econômicos e culturais mais relevantes de seu tempo. Um
Marx e um pensamento marxista, portanto, em construção e diante de uma
realidade concreta – algo que aproxima, inclusive pela experiência pessoal e
narrativa existencial do pensador, ou seja, biográfica e historiográfica, a História e
o Jornalismo. De nossa parte, o ineditismo, por assim dizer, seria não se limitar a
aplicar, como um receituário ou uma fórmula pronta, estática e imutável, o método
do Materialismo Histórico e Dialético. Aquele que consideramos a essência do
materialismo moderno, factível em qualquer campo cultural em qualquer tempo de
qualquer sociedade capitalista, e nele o método tal como concebido por Marx e
Engels a partir das ideias de Hegel. Mas sim buscar alçá-lo para o hoje, em
processo, como lhe é próprio, a partir da reconstrução histórica do pensamento
marxista, retratada por ele mesmo através de suas proposições, suas análises e seus
186
relatos de fatos históricos proeminentes que estudou e/ou experimentou, como nos
revelam a sua própria história de vida e a sua obra.
Assim, “inspirados” pelos primeiros escritos filosóficos do jovem Marx,
seguidos pelos relatos críticos de um filósofo-jornalista (principalmente) que
amadurecia ao estudar e narrar acontecimentos significativos da história da
humanidade, em meio a tantas dificuldades existenciais de um mundo que
combatia, e depois imbuídos pelos escritos sociais de um “cientista da história”,
como ele mesmo preferia à afirmação de ser um dos integrantes e/ou fundadores da
então nascente Ciências Sociais, momento em que enfim se torna num
experimentado e decisivo pensador, um dos maiores, do nosso tempo, é que
pretendemos, nessa linha tempo-espacial, ressaltando lugares e acontecimentos de
sua vida pública e social, não desmerecidamente nem despropositadamente para o
presente trabalho, é que pretendemos nos debruçar sobre os nossos objetos de
estudos pinçados dos campos da Comunicação Social e da História.
Com efeito, acerca desses objetos, com o intuito de melhor delimitá-los,
poder-se-ia aqui questionar: quais as relações entre o jornal Folha de São Paulo e a
cidade de São Paulo no período estudado? Haveria algo mais que propriamente a
atividade jornalística de retratar o cotidiano político, econômico e social da cidade
e de seus personagens? Teriam isso implicações nacionais? Quais os interesses por
trás da “indústria” Folha de São Paulo no contexto industrial da cidade? O que tem
a nos dizer a história desse possível maior empreendimento editorial na maior
cidade industrial do país? Qual a relação entre o desenvolvimento urbano da
metrópole, uma das maiores do mundo, e o jornal Folha de São Paulo, um dos
periódicos mais importantes do país? Quais os interesses e ligações do jornal com
187
a ditadura militar, que se inicia em 1964 e termina em 1985, que poderiam se
caracterizar como mútuos, nesse período sombrio da vida nacional? A teoria
marxista da história, até onde pudemos alcançar em nossas pesquisas e reflexões –
em face de sua profundidade e complexidade – nos ajudaria a minimizar a conta
dessas preocupações?
Estas e outras questões nos fornecem com mais certeza e clareza os limites
das dimensões daquilo sobre o que pretendemos nos debruçar. O “como” faremos
isso, sem sermos ortodoxos e inflexíveis acerca do pensamento marxista, e menos
ainda sem o intuito de discuti-lo à exaustão e muito menos de se “apegar” a apenas
um de seus conceitos, mas ao mesmo tempo sem deixarmos de ser extremamente
criteriosos, zelosos e até reverentes, ressaltando as ideias marxistas numa linha
histórica crescente, ou seja, em construção, em processo, como exige a própria
dialética do pensamento do autor, conforme já dissemos e iremos nos aprofundar
adiante, é o que pretendemos abordar, com cuidado e atenção, na seção seguinte,
antes de ingressarmos, com mais propriedade e definição, no item posterior, o da
análise propriamente dita acerca dos nossos objetos de estudo.
2. Marx jornalista, Marx pensador: a construção histórica de um saber
Ideia. Sangue. Suor. A teoria marxista do Materialismo Histórico e
Dialético, segundo uma proposição pessoal, poderia ser resumida apenas nestas
três palavras, de acordo com uma concepção, digamos, jornalística da história do
marxismo, inspirada no próprio Marx, como intelectual e como homem de jornal,
ou seja, como ser real e ativo na sociedade, e para tal contando com o apoio de
188
autores marxistas contemporâneos que nos falam das ideias, da historiografia e da
biografia de Marx, como Leandro Konder (1981), Florestan Fernandes (1983), José
Arthur Giannotti (2009), dentre outros. Estas são mais que meramente três palavras
em si: são expressões. Expressões imagéticas e cheias de significados. Expressões
que nos remetem a lugares, relações sociais e momentos distintos, importantes e
decisivos (condições históricas, se quisermos usar uma terminologia do próprio
objeto estudado) para a criação do indivíduo e do pensamento do próprio Marx –
como ele mesmo sabia e assim parece que conscientemente agia em sua existência.
Numa concepção tradicional e cronológica dessa história individual, diríamos,
inicialmente, correspondentemente a lugares, que em primeiro lugar, relativamente
à primeira expressão, aparece Marx e os princípios iniciais de seu marxismo na
Alemanha, onde nasceu e se abeberou de uma filosofia revolucionária no campo da
história e própria de seu tempo; depois, respectivamente à segunda expressão,
aprofundando-se, na França, onde amadureceu através de estudos e de uma
vivência direta acerca de acontecimentos sociais revolucionários na história da
Humanidade; e em seguida e em referência à terceira expressão, por fim, inclusive
o existencial do autor-objeto, na Inglaterra, onde observou as profundas
transformações sociais protagonizadas pelo capitalismo nascente e avassalador e
onde também escreveu, em face disso e de todo cabedal intelectual e vivencial
anterior que amealhara, a sua maior obra, O Capital.
Comecemos, portanto, pelo começo. Mas não sem propósito: o pensamento
marxista também segue e defende uma linha seqüencial e racional (naturalismo) da
história. Para ele, as ações humanas só podem ocorrer na natureza, ou seja, os atos
históricos só podem evoluir num ambiente natural, portanto, nada mais coerente do
189
que traçar modelos a partir do mundo da natureza. Lembremos do modelo
naturalista mais conhecido do pensamento marxista: comunismo primitivo-
capitalismo-socialismo/comunismo. (Não confundamos a natureza, o ambiente
necessário aos atos humanos, com somente a Natureza, posta, dada, bucólica,
geodésica, cósmica, também necessária à existência.)
Dito isto, voltemos ao nosso “começo”. Foi nessa Alemanha, na cidade de
Trèves (hoje Trier, localizada no atual Estado da Renânia-Palatinado, este situado à
Sudoeste da Alemanha e cuja Capital é Mainz), onde Karl Heinrich Marx nasceu a
5 de maio de 1818. Foi nessa cidade onde manteve os seus primeiros contatos com
o pensamento de autores que iram marcá-lo profundamente para o resto de sua
vida. Nos primeiros anos de sua adolescência, era um Marx imaturo, porém aberto
às reflexões. Por influência do próprio pai, Heinrich Marx, um “livre pensador”,
manteve os seus contatos iniciais com Lessing, Voltaire e Rousseau. Depois o
jovem estudante aprendeu a admirar até os seus últimos dias de vida, através do
barão Ludwig von Westphalen, pai de sua futura esposa, Jenny Westphalen,
Homero e Shakespeare, este inclusive viria a ser recorrente em suas conversas,
conforme colhemos de alguns autores, e depois citado em algumas passagens de
sua principal obra, O Capital (MARX, 1983), conforme verificamos.
Entre o fim de 1835 e o começo de 1836, na Universidade de Bonn, estudou
direito, história, filosofia, arte e literatura. Mas é somente a partir de meados deste
mesmo ano de 1836, agora na Universidade de Berlim, portanto ainda na
Alemanha, que mantém contato com o pensamento daquele que iria fazê-lo se
definir por um modelo de interpretação histórica também para o resto de sua vida:
Georg Wilhelm Friedrich Hegel, que ali lecionara e morrera em 1831, além de
190
fazer leituras detidas das obras de Spinoza, Kant, Leibnitz, Aristóteles e Epicuro,
como nos mostra Konder (1981). Assim, entre 1838 e 1840, em Berlim, Marx
chega a fazer parte do “Clube dos Doutores”, liderado por Bruno Bauer, e de um
grupo denominado “Jovens Hegelianos”, divididos entre aqueles que procuravam
aplicar o método historicista do mestre Hegel à análise das questões sociais, os
chamados hegelianos de esquerda, e do qual Marx fez parte, e aqueles que se
prendiam aos elementos conservadores da filosofia idealista e à ordem constituída,
os chamados hegelianos de direita.
A filosofia de Hegel propõe ao mundo um novo tipo de história. Trata-se do
apogeu do que ficou denominado desde o final do século XVIII, com Voltaire, de
filosofia da história: a propositura de se entender a História através da crítica, do
pensamento, do saber, da ciência, em que o historiador dispensava-se das fontes
diretas, da pesquisa in situ, dos alfarrábios objetivos. Em Hegel, segundo
Collingwood (s/d), a filosofia da história passa a ter uma nova dimensão, a da
história universal da humanidade. Nela se sobressai, como narrativa, desde os
tempos primitivos à civilização contemporânea, a luta pela liberdade. O
desenvolvimento dessa liberdade é o desenvolvimento da consciência. Uma
consciência que passa por estágios necessários – um desenvolvimento lógico,
portanto – até alcançar o seu auge, o ponto máximo da história, a autoconsciência,
quando o mundo finalmente converte-se em espírito.
A história possui assim um espírito: o espírito da história, que se encontra a
si mesmo ao encontrar-se como consciência de si. Um encontro que só se dá
através da razão e que só acontece exclusivamente no presente, posto que para
Hegel não há o futuro, pois este é um tempo que (ainda) não existe, permanecendo
191
assim para o historiador como “um livro sempre fechado”, insujeito ao deslinde e
até mesmo à realização da Utopia. A história, dessa maneira, é a história do
pensamento, que se acaba e deve se acabar somente no presente. Hegel, no entanto,
ao contrário de outros pensadores anteriores da filosofia da história, não descarta a
empiria. Muito pelo contrário. O conhecimento acerca dos elementos reais da
experiência humana é necessário para se entender os desejos, as paixões, as
motivações, os projetos, o racional e o irracional, as ideias, enfim, o pensamento de
cada época, o espírito da história.
Hegel insiste, portanto, no fato de que o historiador deve começar
por um trabalho empírico, estudando documentos e outras provas,
pois só desse modo é que pode determinar aquilo que os fatos
são. Mas depois terá que observar, do interior, os fatos, dizendo-
nos o que é que estes representam, a partir daquele ponto de
vistas (COLLINGWOOD, s/d, p. 190-1).
Hegel, assim, como explica Abrão (2004, p. 347), buscava ardentemente a
compreensão do presente a partir da explicação do sentido do desenvolvimento
histórico. “A filosofia hegeliana caracterizava-se, nessa medida, por um intenso
compromisso com a realidade”, complementa Abrão. Tal compreensão do presente
histórico, Hegel identifica como passível de compreensão em sua mutabilidade
ininterrupta e contraditória somente através da dialética. “Hegel expôs e trouxe à
luz a importância, o papel, a multiplicidade das contradições do homem, na história
e até na natureza”, afirma Lefebvre (1979, p. 18). Propõe, para tanto, algo além da
maieutiké pedagógica de Sócrates, do diálogo platônico e dos movimentos dos
contrários concebidos pela lógica clássica e o meramente disputatio medieval.
Uma dialética que estrutura a própria realidade e que considera, no movimento
permanente do pensar as coisas e das próprias coisas pensadas, o choque entre os
contrários e, como resultado daí advindo, o surgimento de uma nova afirmação, em
192
que afinal o Estado surge como uma síntese que unifica a eternidade do
pensamento com a ordem do tempo percorrido.
Portanto, trata-se de um movimento que é ao mesmo tempo pensamento e
busca pela liberdade. Busca em si e para si. Ou seja, a dialética hegeliana é uma
teoria do ser, uma ontologia; fala-nos do espírito, o espírito da história. Um
silogismo do que conflui o passado, como por exemplo o despertar para o saber do
mundo clássico; a sua negação, decorrente daquele, e que portanto o contém ao
mesmo tempo que o nega, como por exemplo o mundo medievo, com a escolástica
e a submissão do saber à fé; e o presente, com propriedades daqueles dois mas
agora transmutado e em superação, ou seja, posta-se em uma nova afirmação,
como por exemplo o mundo moderno, que chega afinal a ser um algo absoluto no
qual se sobressai, como no exemplo da história universal em tela, o Estado
racional, conciliador, ordenador, ideal. Um movimento natural e um percurso
necessário em que o pensamento toma consciência em si ao sair de si e volta a se
encontrar agora como consciência de si e para si através da razão. Um processo
que conserva os opostos anteriores ao mesmo tempo em que os supera. Resume-
nos Abrão:
A lógica tradicional, binária, é a lógica da imobilidade, pois exige
a opção ou pela afirmação ou pela negação, excluindo uma
terceira possibilidade, isto é, a de considerá-las parte de um
processo. A lógica de Hegel, no entanto, contém três termos: a
afirmação (tese), a negação (a antítese) e a síntese, que resulta da
negação da negação. O último termo, uma dupla negação, é
também outra afirmação, mas engendrada pelo confronto dos dois
termos anteriores. Hegel chama essa estrutura lógica de dialética
(ABRÃO, 2004, p. 353).
É com esta ideia, complexa, ampla e que se destina a explicar a história,
tendo como ponto central o pensamento que se volta para a realidade e volta a se
reencontrar em si mesmo, agora em totalidade, como absoluto, aqui exposta de
193
maneira resumida, que o jovem Marx, então com 18 anos de idade, vai se defrontar
na Alemanha hegeliana. Dedica-se à sua tese de doutorado, A Diferença entre a
Filosofia da Natureza de Demócrito e Epicuro, entre os anos de 1838 e 1840. Nela,
Marx faz “uma análise original da filosofia epicurista”, na qual destaca a afirmação
de Epicuro da autoconsciência como princípio da liberdade, diferente de
Demócrito, “que introduz um terceiro elemento, o clinamen, ou seja, o da
declinação da linha reta, que corresponderia ao movimento de autodeterminação
dos átomos”, segundo resume Albinati (2000). No entanto, por questões políticas
sob um regime absolutista que se opôs na Prússia, que não via com bons olhos os
hegelianos de Berlim, especialmente os de esquerda, que passaram inclusive a ser
perseguidos, Marx decide ir para a Universidade de Iena, ainda na Alemanha, onde
defende brilhantemente a sua tese, em 15 de abril de 1841. Consegue o diploma,
mas não um emprego de professor, que tanto queria. Marx, então, mesmo já
bastante conhecido no meio intelectual, procura o jornalismo como fonte de renda
e como meio de exposição de suas ideias.
Vendo-se impossibilitado de exprimir as suas ideias através de
uma cátedra de professor universitário, o jovem filósofo resolveu
expô-las através dos jornais. Enviou, então, o seu primeiro artigo
para Anais Alemães, publicação dirigida por seu amigo Arnold
Ruge. Era a primeira intervenção de Marx na vida pública. E era
um artigo contra a censura. Infelizmente, Anais Alemães não pôde
publicá-lo, porque a publicação foi impedida... pela censura
(KONDER, 1981, p. 29-30).
A partir daí Marx passou a escrever para a Gazeta Renana (Rheinische
Zeitung), da província de Colônia. Em um de seus artigos voltou a tratar da
liberdade de imprensa. Marx fez tanto sucesso, segundo Konder, que em 11 de
outubro de 1842 se mudou para Colônia e assumiu a direção do jornal. “Frustradas
suas expectativas de fazer carreira universitária (...) não lhe resta outro caminho do
194
que ganhar a vida como jornalista político. Por isso aceita o convite para dirigir a
Gazeta Renana, para a política, o comércio e a indústria, fundada em Colônia por
líderes liberais”, informa Giannotti (2009, p. 33).
O jornal rapidamente aumentou a sua tiragem e de circulação. Foi nesse
posto que Marx sentiu-se cobrado a conhecer melhor o comunismo. Isso porque
considerava superficiais e demagógicos os artigos, salpicados de tiradas
comunistas, que lhes eram enviados de Berlim por jovens socialistas simpatizantes
do jornal. Chegou a dizer-lhes isso pessoalmente, o que causou rompimento da
Juventude Socialista de Berlim com Marx. Porém, foi na Gazeta Renana onde
Marx teve o seu primeiro encontro com Friedrich Engels, que, além de artigos que
enviara de Berlim, posto ser um dos simpatizantes na capital alemã dos hegelianos
de esquerda, decidira, em viagem para Inglaterra, passar por Colônia e conhecer a
redação do jornal e ao diretor Karl Marx. O encontro, contudo, não foi um dos
mais felizes, em função das desconfianças do diretor do jornal em relação à política
prussiana e consequentemente das visitas que recebia.
Foi ainda como diretor da Gazeta Renana que Marx promoveu pela
primeira vez a defesa da classe subalterna através de suas reflexões práticas.
Camponeses pobres da região do Reno eram acusados de roubar madeira. Por isso
respondiam perante o Estado, cujas autoridades, mancomunadas com grandes
proprietários, através do Poder Judiciário, aplicavam medidas punitivas. Marx os
defendeu, pois acreditava que os camponeses roubavam devido à sua condição de
miséria e as autoridades, por sua vez, não iam a fundo na resolução justa da
questão. Limitavam-se a aplicar penas e assim não solucionavam um problema
social grave.
195
A experiência ensinou ao jovem jornalista e recém-doutor em filosofia que
questões sociais práticas não podiam ser resolvidas por meios puramente jurídicos.
Ensinou também, junto com outras experiências, como aquela que teve com a
Juventude Socialista de Berlim, que precisava estudar ainda mais acerca da
realidade. “Assim, foi a atividade política, no exercício do jornalismo, que o
impeliu ao estudo em duas direções marcantes: as da Economia Política e das
teorias socialistas”, afirma Jacob Gorender (1983, p. X). Com esses e outros
embates, no entanto, o sucesso do jornal durou pouco. “Após um violento artigo
contra o absolutismo russo, publicado em janeiro de 1843, o czar Nicolau I
pressionou o governo prussiano e este fechou o jornal”, diz Konder (1981, p. 31).
Marx, porém, não desistiu do jornalismo. Mas concluiu que na Alemanha
era impossível prosseguir suas atividades intelectuais. Por isso, com um amigo,
Arnold Ruge, combinou a fundação de uma nova revista, na França, denominada
Anais Franco-Alemães. O objetivo era, segundo Giannotti (2009, p. 34), “aglutinar
revolucionários dos dois lados do Reno a fim de que a experiência política
francesa, associada ao pensamento alemão, pudesse chegar até as massas”. Em
1843, já casado com Jenny, muda-se para Paris – e aqui ingressamos na amplitude
do significado da segunda expressão na carreira jornalística e no amadurecimento
intelectual do pensador Karl Marx: a demonstração prática e revolucionária da
experiência histórica francesa.
Os Anais, no entanto, revelam-se um fracasso editorial. Nem franceses nem
alemães vivendo na França colaboraram com artigos. Nem mesmo Ludwig
Feuerbach, um dos integrantes mais ativos da “esquerda hegeliana”, conforme
prometera a pedido de Engels, encaminha seu artigo combatendo as ideias de
196
Friedrich Wilhelm Joseph Schelling, filósofo e representante da direita prussiana,
que contestava, a pedido do governo, no âmbito universitário de Berlim, as ideias
de Hegel e dos jovens hegelianos de esquerda. Para agravar a situação, cerca de
300 exemplares dos Anais foram apreendidos pela polícia nas fronteiras da Prússia
e da Bavária.
Mas, se os Anais foram um malogro editorial, Marx conseguira publicar
neles duas de suas principais obras de até então: Introdução à Crítica da Filosofia
do Direito de Hegel (MARX, 2002, p. 13-44) e A questão judaica (MARX, 2002,
p. 45-59). Paralelamente, vinha mantendo contatos com o socialismo francês e
desenvolvendo alguns estudos sobre a economia política, especialmente a inglesa,
lendo com afinco Adam Smith, David Ricardo, James Mill, dentre outros. Tendo
por base estes autores e a experiência francesa, aliados principalmente a suas
reflexões sobre a filosofia alemã, escreveu também algumas análises que
acabariam dando origem aos Manuscritos Econômicos e Filosóficos de 1844
(MARX, 2002, p. 61-196), trabalho somente depois recolhido e publicado
originalmente em 1939.
Nos artigos dos Anais, Marx critica a teoria filosófica de Hegel sobre o
Estado e reconhece que Feuerbach avança quase em definitivo na tarefa de criticar
a religião na Alemanha. Marx propõe, no entanto, a crítica do Estado (e não ainda a
sua superação) e da sociedade reais, a substituição da sensibilidade pela práxis
humana e a utilização da filosofia como instrumento radical da história, tendo o
homem como centro. Essa inversão e utilização da filosofia e da própria sociedade
histórica invertida no pensamento, continua Marx, só poderia ser feita à época e na
vida real por sua própria negação, ou seja, pelo seu avesso: aqueles que nada
197
tinham a perder, em face da concentração privada, constituindo-se assim nas armas
materiais da crítica agora invertida – o proletariado. “As armas da crítica não
podem, de fato, substituir a crítica das armas; a força material tem de ser deposta
por força material, mas a teoria também se converte em força material uma vez que
se apossa dos homens”, afirma Marx (2002, p. 53), acrescentando: “A teoria é
capaz de prender os homens desde que demonstre sua verdade face ao homem,
desde que se torne radical. Ser radical é atacar o problema em suas raízes. Para o
homem, porém, a raiz é o próprio homem”. E, mais adiante, à página 59, conclui:
“Assim como a filosofia encontra no proletariado suas armas materiais, o
proletariado encontra na filosofia suas armas espirituais”.
Nos seus Manuscritos Econômicos e Filosóficos (2002), por sua vez, Marx,
além de uma crítica da sociedade capitalista sustentada em várias teses filosóficas
acerca da economia política, envolvendo questões como salário do trabalho, lucro e
renda da terra, desenvolve também a sua teoria da alienação – uma das bases
fundamentais para o entendimento do pensamento marxista. Vejamos.
Para Marx, o homem é o único ser capaz de antes de realizar suas tarefas
projetá-la antes em seu pensamento, ou seja, planejar. E isso, acrescenta ele, é
exatamente aquilo que distingue os homens dos outros animais. Assim, o indíviduo
modifica a natureza conforme as suas vontades e necessidades, realizando-as
satisfatoriamente, contudo, somente em suas funções animais. O trabalho criador,
desse modo, para Marx, é emancipatório, pois aponta cada vez mais para a
liberdade humana. Na vida real da sociedade capitalista, porém, Marx identifica
que o trabalho adquire características que fogem à essa natureza do vir-a-ser do
homem, ou seja, das potencialidades humanas. Os trabalhadores na indústria
198
voltam à inumanidade pior do que eram os próprios primitivos, posto o trabalho
agora assumir formas desumanas e degradantes, inclusive no campo subjetivo. Tal
trabalho, ao mesmo tempo em que oprime, revolta, imbeciliza e reduz o
trabalhador à “besta de carga”, faz a riqueza, pela exploração e pela acumulação,
do proprietário da indústria ser cada vez maior.
Assim, o fruto do trabalho, para o trabalhador, escapa-lhe à propriedade, ao
usufruto e ao reconhecimento. Dessa maneira torna-se a criação do trabalho, o
produto, em algo estranho, inalcançável e hostil ao próprio criador, o operário. O
homem, assim, se torna estranho a si mesmo tornando-se estranho ao que lhe é
próprio. Mas, por outro lado, o tal produto que lhe é estranho pertence a “outro
homem” que dele se apropriou bem como se apropriou do próprio trabalho do
verdadeiro produtor e dessa maneira fica cada vez mais rico: o capitalista. A esse
fenômeno Marx chamou de alienação do trabalho. Algo que, no entanto, atinge
também aos capitalistas em geral, posto esses, apesar de se beneficiarem do
trabalho produtivo de terceiros, em sua inércia parasitária, ou seja, em sua
atividade improdutiva, alienam-se entre si e da nobre e humana atividade
produtiva.
A característica da alienação implica que cada esfera me propõe
normas diferentes e contraditórias, uma a moral, outra a economia
política, porque cada uma delas constitui uma determinada
alienação do homem: cada uma concentra-se num círculo
específico de atividade alienada e encontra-se alienada em relação
à outra alienação (MARX, 2002, p. 153).
Os Manuscritos são assim um marco fundamental no amadurecimento
intelectual do filósofo e revolucionário jovem Marx. “Quando se fala do “jovem
Marx”, em função dos manuscritos de 1844, o que está em jogo é o novo Marx,
que se movia no sentido de buscar uma ponte entre o seu recente passado radical e
199
o seu emergente futuro revolucionário” – afirma Florestan Fernandes (1983, p. 21),
em sua excelente obra e compilação. Giannotti também trata da questão. Afirma
que os Manuscritos alimentaram teses humanistas a partir de sua publicação e que
uma enorme polêmica se travou daí para diante no sentido de se saber se, ao
incorporar a economia política ao seu pensamento, Marx abandonara as suas
posições de jovem. O que o filósofo brasileiro (fundador da primeira faculdade de
filosofia do país) diz em seguida, tentando esclarecer este assunto, é extremamente
pertinente para compreendermos melhor essa obra não só como um ponto de
transição em Marx, mas também como uma complementação fundamental à teoria
hegeliana, agora revista e melhor aplicada à realidade social, através da
contribuição de economistas ingleses acerca da utilização (exploração) do trabalho
assalariado na Inglaterra, onde se processava a Revolução Industrial – referência
que põe mais sentido à segunda e singela expressão aqui proposta, Suor.
Haveria um corte epistemológico, como pretende Louis
Althusser? Ou o corte seria sobretudo político, como defende
Michel Löwit? Acredito que as duas teses são defensáveis, mas
tendo a pensar que a ruptura se dá sobretudo a partir do momento
em que Marx, afastando-se definitivamente de Feuerbach e
compreendendo o alcance da teoria do valor-trabalho, elaborada
por David Ricardo, formula sua noção de capital, cujo
desdobramento meramente conceitual substitui a lógica do
sensível. Em vista disso, o mundo invertido das relações sociais
adquire estatuto ontológico muito particular, que permite o
emprego sistemático da contradição no sentido heqeliano da
palavra, de sorte que todos os conceitos produzidos pela análise
do trabalho alienado são torcidos para adquirir novos significados
(GIANNOTTI, 2009, p. 40).
Mas se os Manuscritos se constituem numa base fenomenal e fundamental
do e para o pensamento de Marx, que iria culminar com sua obra máxima, O
Capital, em que analisa a sociedade capitalista com muito do que rascunhou
quando se encontrava na França, também se revelam como o último trabalho de
expressão de Marx antes de iniciar uma parceria fecunda com aquele que seria seu
200
grande amigo e parceiro até o fim de seus dias, Friedrich Engels. Pois foi em fins
daquele mesmo ano de 1844, na França, que Engels, depois do primeiro encontro
não muito feliz em Colônia, voltou a se encontrar pessoalmente com Marx. Queria
mostrar-lhe um estudo sobre A Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra que
havia realizado. Um trabalho que mostra a degradação da população operária
especialmente na cidade de Manchester. Analisa de forma inédita a Revolução
Industrial através de suas conseqüências nefastas na transformação destrutiva do
espaço urbano e de misérias e humilhações das famílias e da classe trabalhadora da
Inglaterra. Retrata assim as contradições sociais de uma sociedade central de uma
transformação radical no mundo e para a qual preconizava igualmente uma
transformação radical em sentido contrário, que muito provavelmente se daria,
segundo acreditava, através do comunismo.
A experiência e a pesquisa de Engels na Inglaterra, dessa forma,
interessavam vivamente a Marx. “A partir de então, estabeleceu-se entre os dois
uma amizade que durou enquanto eles viveram e deu origem a numerosos
trabalhos realizados em comum”, diz Konder (1981, p. 52).
Isso porque Marx tentara, em Paris, unir intelectuais e revolucionários,
especialmente os socialistas, sobre cujas obras e/ou práticas se debruçara com vivo
interesse, em torno das causas populares direcionadas, com as massas, para
transformar racional e radicalmente a sociedade capitalista, mas não conseguira.
Nem com os discípulos de Saint Simon; nem com os seguidores de Charles
Fourier; nem com Louis Blanc e seus liderados; nem com Mikhail Bakunin; nem
com Joseph Proudhon; e nem com Etienne Cabet. “O único vulto revolucionário
expressivo com o qual lhe foi possível encontrar uma autêntica afinidade de ideias,
201
em Paris, naquele ano de 1844, foi de fato com Engels”, complementa Leandro
Konder (1981, p. 55). Ademais, além de revolucionário, Engels era originário, na
Alemanha, da mesma região que Marx, a Renânia, e se abeberara das mesmas teses
de Hegel, dos hegelianos de esquerda e das mais importantes teses dos autores da
economia política.
Por isso, Marx convidou-o para redigirem um trabalho em conjunto. E
assim nasceu o primeiro livro da parceria, A Sagrada Família: ou a Crítica da
Crítica-Crítica (MARX; ENGELS, 1987), texto em que analisam as consequências
políticas do neo-hegelianismo. Trata-se, em síntese, de um posicionamento
vigoroso contra Bruno Bauer e seus irmãos Edgard e Egbert, os quais, como
editores da Gazeta Geral Literária, publicada em Charlottenburg (hoje distrito de
Berlim, Alemanha), defendiam uma política liberal considerada por muitos
pensadores marxistas de hoje como elitista. Em lugar do isolamento do espírito
diante das massas, Marx e Engels preconizavam um amplo entrosamento da teoria
com os proletários, pois, diziam, nada é mais ridículo do que uma ideia isolada de
interesses concretos. Tal livro, entretanto, não chegou a ser publicado na França.
Um novo acontecimento obrigaria Marx novamente se desterrar. Depois da
Alemanha, agora exilar-se de um país que não era o seu. E envolvendo mais uma
vez a sua condição de jornalista ativo e crítico. Vejamos como ocorreu.
Quando os Anais tornaram-se um fracasso editorial, momento em que o
amigo Arnold Ruge também desiste de continuar a revista, Marx estabelece
ligações com a publicação alemã Vorwaerts (Avante), publicada em Paris por
Einrich Bornstein, que circulava entre os emigrados alemães. Marx passa assim a
ganhar a vida modestamente como jornalista em Paris. Os artigos dele, na
202
Vorwaerts, contudo, incomodam o governo de Frederico Guilherme IV. Um desses
artigos, sobre a greve dos tecelões na Silésia (então província da Prússia que fora
anexada por Frederico II, O Grande, em 1740), foi usado como pretexto pelo
governo prussiano para pressionar o primeiro-ministro da França, François Pierre
Guillaume Guizot. O primeiro-ministro então, atendendo às reclamações,
determinou o fechamento da revista e a expulsão dos seus redatores, dentre os
quais Marx. A imprensa francesa de caráter liberal publicou alguns protestos contra
a medida do governo. Mas não houve recuo: Marx foi obrigado com a família a ir
para Bruxelas, sob a condição, por escrito, de que ali nada deveria escrever e
publicar, como jornalista e filósofo, acerca da realidade política e econômica
nacional e internacional.
Marx, no entanto, em Bruxelas, não cumpre o acordo com o governo Belga.
Questiona-se acerca do materialismo que aplicara contra Bruno Bauer e conclui
que essa doutrina, em Ludwig Feuerbach, que escrevera contra a religião na
Alemanha utilizando-se do materialismo tradicional, e com o qual Marx
concordara em seus Manuscritos, por considerá-lo adequado em sua oposição ao
idealismo de Hegel, continha alguns equívocos que precisavam ser devidamente
esclarecidos senão refutados. Assim, escreveu as chamadas onze Teses sobre
Feuerbach (MARX, 2009), através das quais, em resumo, identifica na ação
política prática a única forma de atuação da verdadeira filosofia em contraposição
ao idealismo, à contemplação e à imobilidade. “É na práxis que o homem deve
demonstrar a verdade, a saber, a efetividade e o poder, o caráter terreal de seu
pensamento”, afirma já na segunda tese. E conclui na décima-primeira: “Os
203
filósofos têm apenas interpretado o mundo de maneiras diferentes; a questão,
porém, é transformá-lo”.
Depois das Teses, que só foram publicadas por Engels em 1888 (na verdade
eram apenas rascunhos que Marx pretendia, ao que tudo indica, desenvolver
depois), Marx redigiu, em parceria com Engels, A Ideologia Alemã, entre setembro
de 1845 e maio de 1846. Mas essa obra só foi impressa postumamente, em 1932,
pois à época não encontraram editor disposto a publicá-la. Menos males para os
autores, segundo avaliaram, pois a consideravam apenas rascunhos esclarecedores
de suas próprias reflexões. "Abandonamos tanto mais prazerosamente o manuscrito
à crítica roedora dos ratos, na medida em que havíamos atingido nosso fim
principal: ver claro em nós mesmos", afirmara depois em Para uma Crítica da
Economia Política. Contudo é na A Ideologia Alemã e na A Sagrada Família,
também escrita em parceria com Engels, como vimos (as primeiras, portanto), que
Marx e Engels vão expressar “pela primeira vez a sua concepção de história”,
segundo Abrão (2004, p. 383).
De fato. Mesmo parecendo que o objetivo inicial do livro seja somente
confrontar e romper com os jovens hegelianos, especialmente com aqueles
considerados de esquerda, como Ludwig Feuerbach, Bruno Bauer e Max Stirner,
que dão títulos aos três capítulos, nessa obra Marx e Engels, ao mesmo tempo em
que os combatem, abordam sobre a relação dinâmica entre sujeito e objeto,
abolindo a especulação filosófica, e colocam a ciência da história (a História) como
a única ciência (e este é o ponto que mais nos interessa aqui) para a qual se deve
sempre partir da produção material da vida. Por isso nessa obra se acha, inclusive
204
para alguns marxianos importantes como Fernandes (1983, p. 21), “a única
sistematização que empreenderam em comum da história como ciência”.
Com efeito, fazem uma elaboração histórica da sociedade, desde alguns de
seus primórdios, colocando sempre o homem no centro desse desenvolvimento
societário, numa explicitação encadeada e naturalista (sequencial e evolutiva) da
história até alcançar a sociedade revolucionária burguesa. Mas tudo isso não sem
etapas, consequências, conceituando e categorizando tais etapas e consequências,
dentre as quais destacaríamos: classes sociais, divisão do trabalho, formas de
propriedade (tribal, estatal e comunal, feudal ou estamental), intercâmbio,
ideologia e alienação. Destaquemos aqui, an passant, apenas o que seria ideologia
para ambos. A produção de ideias e representações da consciência está entrelaçada,
dix Marx (1970), em dois campos: a atividade material e no intercâmbio material
(relações sociais) dos homens. Toda essa reprentação, assim, deriva do seu
comportamento material. “O mesmo vale para a produção intelectual tal como se
apresenta na linguagem da política, das leis, da moral, da religião, da metafísica
etc. de um povo”, acrescenta. A partir da divisão social do trabalho, os interesses
dos indivíduos pertencentes às classes sociais dominantes impuseram-se sobre as
classes subalternas, mas tal imposição acontece de maneira dissimulada, falsa,
ilusória ou, como diz o próprio Marx, apresenta-se de forma invertida. Assim,
todos os homens e suas relações aparecem “como numa câmera escura, virados de
cabeça para baixo”, acrescenta.
Tal é o processo e a própria ideologia. Isto é, a classe dominante apresenta
falsamente, principalmente através do Estado, que os seus interesses particulares
são naturais, humanos, universais e bons para todos os homens. E mais ainda: e
205
que todos os membros da sociedade são iguais em todos os níveis societários
materiais e imateriais. “A função principal da ideologia é ocultar e dissimular as
divisões sociais e políticas, dar-lhes a aparência de indivisão e de diferenças
naturais entre os seres humanos”, explica Chauí (2000, p. 174). Marx e Engels
demonstram assim que a realidade histórica até a sociedade presente (a deles), na
Alemanha e França especialmente, era fruto das relações contraditórias e sociais,
das condições de produção e da forma de propriedade, que determinavam, além da
produção material de toda ordem, também a produção das ideias – ambas, porém,
passíveis de serem modificadas, pois nasciam do próprio homem, vivo e ativo,
posto ser este mesmo o pressuposto da transformação histórica. Ambos, dessa
forma, além de inverterem a ideologia dos filósofos alemães, na qual os homens
apareciam desapartados da história, colocavam os homens no centro da história,
como resultados das circunstâncias, mas também como atores de suas próprias
condições materiais e espirituais.
Mas mais que isso: ao apresentarem a história como uma ciência inevitável
do próprio curso da história, e nela os indivíduos como criadores e criaturas
objetivas e subjetivas de si mesmos, apresentavam também a classe proletária e o
comunismo como o único sujeito, no âmago da sociedade burguesa, capaz de
interpretar tal processo histórico in flux e promoverem em conjunto a
transformação social necessária. Em suma: uniam a “ciência da história” e o
comunismo com as massas dos trabalhadores explorados a fim de compreendendo
o passado modificar o futuro num revolucionário presente. “O comunismo
científico caracteriza-se pelo movimento inteiro da história – pelo devir do homem
considerado na sua totalidade”, explica-nos Lefebvrre (1979, p. 41). Alcançar-se-ia
206
assim, para Marx e Engels, a consecução da hisória universal na qual nem mesmo
o comunismo, ao contrário do que ainda pensam muitos, não se constitui num
estado de coisas estáticas e idealizadas, mas em um processo em fluxo igualmente
dialético e material.
Para nós o comunismo não é um estado que deva ser implantado,
nem um ideal que a realidade deva obedecer. Chamamos
comunismo ao movimento real que acaba com o atual estado de
coisas. (...) O proletariado só pode existir à escala da história
universal, assim como o comunismo, que é o resultado de sua
ação, só pode concretizar-se enquanto existência “histórico-
universal”. Existência histórico-universal dos indivíduos
diretamente ligada à história universal (MARX; ENGELS, 1970,
vol. I, p. 42-43).
Entre 1844 e 1846, Marx envolveu-se em algumas polêmicas em
decorrência de suas atividades políticas práticas e reflexivas na imprensa. Dentre as
mais importantes, como a que travou com Joseph Proudhon, resultou no livro A
Miséria da Filosofia (MARX, 1976). Trata-se de uma resposta irônica ao livro de
Proudhon Sistemas das Contradições Econômicas que tinha como subtítulo
Filosofia da Miséria. De acordo com Konder (1981, p. 77), o alemão Marx redigiu
o texto diretamente em francês e “o ataque foi severo”. Isso porque Marx
considerou que o pensador francês reduziu à banalidade dualítica a complexidade
da dialética de Hegel ao analisar a economia burguesa – ou seja, acrescentou Marx,
analisou como o próprio burguês que era. Proudhon simplificou o processo
idealizado das contradições históricas de Hegel ao meramente “lado bom” e “lado
mau” das coisas, explica Konder. E diminuiu à ciência social apenas a busca por
esse “lado bom” e a sua incorporação aos estágios mais avançados do processo
histórico.
Pierre Proudhon, como representante da mentalidade da pequena burguesia,
continua Konder, destancando a diferenciação de história para Marx e Proudhon,
207
não compreendeu o caráter histórico das contradições que tinha procurado
examinar em seu livro e utilizou, em sua análise da economia capitalista, conceitos
e categorias que supunha estarem acima da história. “Ele falava, por exemplo, em
“natureza humana” como se essa natureza humana fosse algo imutável que não se
modificasse ao longo da história e não pudesse mudar no futuro”, esclarece Konder
(1981, p. 79), para por fim arrematar: “Marx retrucou-lhe: “O Sr. Proudhon ignora
que toda a história não tem sido outra coisa senão uma permanente trasformação da
natureza humana”.
Se Marx refuta a concepção de história e de algumas categorias sociais em
Proudhon, sinteticamente destacada por Konde acima, também esclarece de
maneira didática o pensamento dialético de Hegel, bem como a sua aplicação
histórica e prática, mas agora através do seu próprio pensamento (marxista),
conforme entendera por modificá-lo para melhor comprender a realidade
econômica que Proudhon não viu ou teimava em não ver. Quando esclarece, por
exemplo, sobre a concepção metodológica de Hegel, Marx explica que tudo e todas
as coisas que existem sobre a Terra e sob as águas não existem e não vivem senão
em virtude de um movimento qualquer. “Assim, o movimento da história cria
relações sociais, o movimento da indústria nos proporciona os produtos industriais
etc.”, acrescenta Marx (1976, p. 102), que continua:
Assim como, por meio da abstração, transformamos todas as
coisas em categoria lógica, de igual modo basta fazer abstração
de todo traço característico dos diferentes movimentos, para
chegar ao movimento em estado abstrato, ao movimento
puramente formal, à fórmula puramente lógica do movimento
julga-se ter encontrado o método absoluto, que não só explica
cada coisa, mas que implica além disso, o movimento das coisas
(MARX, 1976, P. 102).
208
Em seguida, Marx explica que, em Hegel o método é a força absoluta,
única, suprema, infinita, composta, através da lógica, por conjuntos de produtos e
de produção que não poderiam resultar noutra coisa a não ser em uma metafísica
aplicada, coisa que Hegel fez com a religião, o direito etc. Algo que Proudhon
gostaria de fazer para a economia política e redunda-se inevitavelmente também
numa metafísica da própria economia política. Para provar isso, Marx aprofunda-se
na explicação do método hegeliano, retomando a concepção universal de
movimento.
Em que consiste, pois, esse método absoluto? Na abstração do
movimento. Que é a abstração do movimento? O movimento em
estado abstrato. Que é o movimento em estado abstrato? A
fórmula puramente lógica do movimento ou o movimento da
razão pura. Em que consiste o movimento da razão pura? Em
situar-se em si mesma, opor-se a si mesma e combinar-se consigo
mesma, em formular-se como tese, antítese e síntese ou então, em
afirmar-se, negar-se e negar a negação (MARX, 1976, p. 103).
Após a razão afirmar-se agora como tese, tal pensamento, oposto de si
mesmo, se desdobra em dois pensamentos contraditórios: o positivo e o negativo, o
sim e o não. “A luta desses dois elementos antagônicos, compreendidos na antítese,
constitui o movimento dialético”, complementa Marx, acrescentando que, agora, o
sim se converte em não, o não em sim, de tal forma que ambos são a mesma coisa
de si mesmo e ao mesmo tempo do outro, equilibrando-se, neutralizando-se,
paralisando-se reciprocamente.
A fusão desses dois pensamentos contraditórios, constitui um
pensamento novo, que é a sua síntese. Este pensamento novo,
volta a desdobrar-se em dois pensamento s contraditórios. Desses
dois grupos de pensamentos nasce um novo grupo, assim
também, do movimento dialético dos grupos nasce a série do
movimento dialético das séries nasce o sistema. (...) Aplicai este
método às categorias da economia política e terei a lógica
metafísica da economia política... O Sr. Proudhon, pese a todo
seu zelo por escalar os píncaros do sistema das contradições, não
pode jamais passar dos dois primeiros escalões: da tese e da
antítese simples, e além disso não chegou a eles mais que duas
209
vezes e, dessas duas vezes, numa delas caiu de papo para o ar
(MARX, 1970, p. 103-104).
Assim, pois, mais na frente, Marx dá um exemplo claro de como Proudhon,
ao se utilizar do método dialético de Hegel, o faz de maneira equivocada, chegando
a um resultado que é, acreditamos, com base nas explicações do próprio Marx, uma
metafísica inversão da inversão, ou seja, uma confusão com uma conclusão lógica
inevitavelmente paradoxal, contraditória.
Isso porque Proudhon, ao aplicar o método dialético hegeliano – ainda mais
no sentido metafísico, conforme afirmado por Marx –, à análise do monopólio
moderno e da concorrência, parte desses elementos em si, esquecendo-se de que
ambos já são a inversão de um movimento anterior, ou seja, de que a concorrência
foi engendrada pelo monopólio feudal, sendo, portanto, inicialmente, ambos o
contrário um do outro. Neste momento Marx chega ao extremo de seu didatismo,
ao explicitar o que vem a ser tese, antítese e síntese, corrigindo Proudhon por
entrar em contradição com sua própria filosofia:
Portanto, o monopólio moderno não é uma simples antítese, mas
pelo contrário é a verdadeira síntese.
Tese: O monopólio feudal anterior à concorrência.
Antítese: A concorrência.
Síntese: O monopólio moderno, que é a negação do monopólio
feudal, porquanto pressupõe o regime da concorrência, e a
negação da concorrência, porquanto é monopólio. Assim, pois, o
monopólio moderno, o monopólio burgês, é o monopólio
sintético, a negação da negação, a unidade dos contrários
(MARX, 1976, p. 143).
Não foi à toa que Marx disse que na França Proudhon era conhecido
como filósofo e na Alemanha como economista. Polêmicas pessoais à parte, Marx
estava interressado mesmo era num projeto grandioso, mais, digamos, absoluto – o
da transformação da sociedade através da ação revolucionária. O ano de 1847, por
210
exemplo, ainda em Bruxelas, mas com entendimentos por outros países europeus,
especialmente Alemanha, França e Inglaterra, foi de intensa atividade para ele.
Além de várias conferências na sede da Associação dos Operários Alemães
sediada em Bruxelas, onde falava, segundo Konder (1981, p. 81), sempre do
trabalho assalariado, da exploração dos operários sob o regime capitalista, Marx
dialogava, de acordo com Giannotti (2009, p. 50), com a Sociedade dos
Democratas Fraternais, entidade que reunia artesãos ingleses, alemães e de outras
nações européias, e, finalmente, se inscreve na Liga dos Justos, sociedade secreta
cuja face pública era justamente a Associação dos Operários Alemães. Marx
ingressa na Liga dos Justos exatamente quando ela estava para se transformar na
Liga dos Comunistas.
Marx e Engels participam ativamente das mudanças internas na nova
entidade, de forma a depurá-la do socialismo utópico e implantarem um ideário
hegemônico e revolucionário baseado na ciência histórica. Conseguem mudar o
lema “Todos os homens são irmãos” para “Proletários do mundo, uni-vos”,
segundo Giannotti (2009, p. 51), e apóiam o novo estatuto cujo primeiro artigo
estabelece que a Liga visa derrubar a burguesia, instalar o reino do proletariado e
fundar uma nova sociedade sem classes e sem propriedade privada. Em novembro
de 1847, de acordo com Konder (1981, p. 82), eles vão para Londres onde
participam do II Congresso da Liga dos Comunistas (Giannotti informa ter sido o
I). “Lá, eles desenvolveram um infatigável trabalho de persuasão dos
representantes operários, convencendo-os das vantagens de seus pontos de vista.
Em consequência desse trabalho, foram ambos encarregados da redação de um
Manifesto Comunista”, revela Konder (1981, p. 82). “Em janeiro de 1848, Marx
211
envia a Londres o Manifesto do Partido Comunista, um dos textos mais
importantes do século”, complementa Giannotti (2009, p. 52).
O Manifesto do Partido Comunista (MARX; ENGELS, 2010) é
considerado um material impresso admirável por possuir importantes
características voltadas diretamente para as massas. Possui, realmente, um caráter
didático, uma linguagem acessível e um tamanho de texto extremamente curto para
os padrões que as explicitações sociais e filosóficas da época (e de ainda hoje)
exigiam. Ou seja, é extremamente sintético na exposição das bases mais
fundamentais do materialismo histórico e revolucionário. Por isso a objetividade, a
clareza e o vigor sobre a importância do que se diz é patente e impressionam –
talvez daí Giannotti ter dito acima, como vimos, ser “um dos mais importantes
textos do século”. A conclusão sobre esse trabalho nos parece óbvia: Marx e
Engels produziram uma peça máxima do jornalismo contemporâneo a eles (o
formato e o conteúdo de peças similares afeitas ao jornalismo viriam, ao longo do
tempo, até os dias atuais, sendo cada vez mais despojados, curtos e diretos). “O
Manifesto pode ser considerado, ainda hoje, a melhor introdução ao estudo do
pensamento de Marx. Apesar de trascorrido cerca de 120 anos desde que ele foi
escrito, é surpeendente como o documento resistiu à ação do tempo e continua a
provocar poderosa impressão nos que o leem” – afirma Konder (1981, p. 82).
Em o Manifesto, Marx e Engels, logo no início, são, como todos os
jornalistas devem ser na imprensa do dia-a-dia, titulares e impactantes: “Um
espectro ronda a Europa – o fantasma do comunismo”. E continuam, sem deixar de
serem menos surpreendentes: “Todas as potências da velha Europa unem-se numa
Santa Aliança para conjurá-lo: o Papa e o Czar, Metternich e Guizot, os radicais da
212
França e os policiais da Alemanha”. Mas se buscavam ser surpreendentes, os dois
filósofos-jornalistas não eram menos jornalistas-filósofos. Estavam utilizando-se
de uma das mais caras premissas da imprensa moderna, quer dizer, estavam
dizendo a verdade, uma verdade da época: de fato, a Europa vivia momentos de
apreensão sobre a iminência de movimentos, lutas e consecuções revolucionárias –
o que quer dizer abolição de privilégios, destruição de direitos exclusivos de uma
classe, mudança de regime, supressão de governos, derramamento de sangue. O
Manifesto, assim, mais que uma pregação, é consciencioso e esclarecedor sobre o
que estava por ocorrer – e realmente ocorre.
Finalmente explode a revolução esperada. Começa na Suíça em
novembro de 1847, penetra na Itália até o sul da Sicília, atinge
profundamente a Bélgica, agita a França e a Europa Central. Por
toda parte grupos operários se insurgem, reivindicando maior
igualdade social (Giannotti, 2009, p. 53).
Segundo o Manifesto, o mundo é dividido em classes sociais e o
crescimento da classe mais explorada, mais subalterna, mais humilhada, a classe
operária, faz parte do dinamismo do capitalismo que requer da mesma forma
crescente o aumento da produção e da acumulação das riquezas, enfim, do capital.
Em contraposição à classe trabalhadora está a burguesia. A condição para esta
supremacia da classe burguesa sobre a operária é a propriedade. De igual modo, a
condição para existência desse capital apropriado é o trabalho assalariado. Mas o
progresso industrial substituiu o isolamento dos operários por sua união
revolucionária. Essa união se dá através da associação. Assim, ao mesmo tempo
em que o desenvolvimento da grande indústria abriu o terreno sobre o qual
implantou tal regime de produção, exploração e acumulação, produziu “os
coveiros” que irão enterrá-lo. O eufemismo de Marx e Engels é para explicar o
seguinte: somente a classe operária poderá sepultar na história tal regime de
213
exploração. Mas isso se dará apenas através de uma atitude revolucionária de
conquista do poder político e da supressão da propriedade privada.
Dissemos supressão porque a propriedade privada não será totalmente
abolida. No comunismo, esclarecem, todos terão o direito de ter a sua parte dos
produtos sociais. O que verdadeiramente acaba é o poder de escravizar o trabalho
de outrem através da apropriação. Marx e Engels explicam que o capitalismo
universalizou-se e por isso essa mudança não pode restringir-se somente a um país,
mas também ser universal. A revolução deve ter assim um caráter internacional.
Por isso, conclamam Marx e Engels ao final do Manifesto, “os proletários nada têm
a perder (...) a não ser os seus grilhões. Têm um mundo a ganhar. Proletários de
todos os países, uni-vos!”.
Embalados pelas revoluções na Europa daquele ano de 1848, os emigrados
alemães participam intensamente desses movimentos, aproveitando a oportunidade
para se aproximarem dos operários locais. Marx está entre eles. Com a queda do rei
Luiz Felipe, da França, a 24 de fevereiro, o jornalista e pensador alemão chega a
ser convidado por Ferdinand Flocon, membro do governo provisório, democrata
pequeno-burguês e um dos redatores do jornal La Réforme, para voltar para Paris.
Marx já se preparava para partir, quando o rei Leopoldo, da Bélgica, desencadeia
uma onda de perseguição contra os políticos democratas, republicanos e
principalmente contra os integrantes do movimento operário. Leopoldo sentia-se
ameaçado, pois o rei deposto era seu sogro. A iminência da deposição do genro,
portanto, também lhe incomodava. Assim, Marx foi preso e em seguida a sua
esposa, Jenny Marx, que ficou numa cela por algumas horas junto com prostitutas.
“A imprensa protestou contra o tratamento dado ao casal Marx”, diz Konder (1981,
214
p. 88), que completa: “Mas as manifestações de solidariedade não impediram que
Marx e a mulher fossem expulsos da Bélgica". Realmente: segundo Giannotti
(2009, p. 53), Marx foi acusado pela polícia belga de financiar a compra de armas
para os trabalhadores de Bruxelas e, por isso, foi expulso, tendo recebido a ordem
de deixar o reino belga em 24 horas. “Conduzido à fronteira, encontra Paris ainda
revolta pelas lutas nas barricadas, festejando a queda do rei Luiz Felipe e a
proclamação da II República”.
Na França, Marx recusa-se a participar, sob um clima de euforia
revolucionária, de dois levantes alemães, por considerá-los inapropriados. O
primeiro de refugiados que, sob a liderança de Adalbert Von Bornstedt, com o
financiamento do governo provisório francês, pretendia invadir militarmente a
Alemanha. A invasão revelou-se um fiasco. O outro foi proposto pelo duque de
Brunswick, que se dispunha a financiar uma operação na Prússia desde que
voltasse a ter o seu antigo ducado. Dispensável dizer que Marx o recusou
prontamente. A revolução deve ter também seu bom senso.
Marx decide, então, junto com o amigo Engels, partir para a Alemanha.
Ambos preferem aproveitar as condições internas, agora mais favoráveis, dado o
rei Frederico Guilherme IV estar fazendo acordos com os constitucionalistas e os
liberais, por se encontrar numa posição vulnerável: Metternich, do Império
Austríaco, havia caído e ele também temia ser deposto. A decisão envolve
novamente a imprensa. Ambos voltam para Colônia, onde Marx havia dirigido a
Gazeta Renana, mas agora para dirigir e publicar a Nova Gazeta Renana (Neue
Rheinische Zeitung). O objetivo é promover as reformas necessárias à instauração
das mudanças radicais rumo ao comunismo. Para isso fazem também acordos
215
políticos com os democratas, dissolvem a Liga dos Comunistas, por considerá-la
ultrapassada e denunciam o oportunismo de revolucionários intempestivos e
inconseqüentes.
Na França, porém, o movimento revolucionário de fevereiro de 1848 reflui
e a burguesia reprime com violência um protesto operário em junho daquele
mesmo ano (Marx irá escrever sobre isso, tirando lições e explicações históricas,
como veremos mais adiante). Na Prússia, então, as forças reacionárias se
reorganizam. O governo fecha o Congresso e decreta estado de sítio em Colônia.
Em função disso, a Nova Gazeta Renana é fechada temporariamente. Após o
sufocamento de rebeliões internas, o governo esgota o prazo do estado de sítio e o
jornal volta a ser publicado. Marx também volta a escrever – e agora de forma mais
radical. O governo, então, decide processá-lo. Marx faz a sua própria defesa. Trata-
se de um belo discurso em favor da liberdade de imprensa. Esse discurso foi
publicado na Nova Gazeta Renana em 14 de fevereiro de 1849, uma semana após o
julgamento que o absolveu. No Brasil, em 1980, esse discurso também foi
publicado num livro junto com outros artigos igualmente ilustres de Marx (1980)
sobre a imprensa e acontecimentos imediatos, próprios da imprensa cotidiana.
Tal livro nos mostra um pouco do pensamento e do estilo jornalístico de
Marx quando o assunto é a liberdade ou o trabalho da imprensa. Trata-se de uma
amostra bastante pequena da produção jornalística de Marx, tendo em vista que ele
e Engels escreveram mais de 500 artigos e verbetes de enciclopédias só para os
EUA, segundo José Onofre na apresentação da própria obra brasileira.
Naquele discurso, proferido a 7 de fevereiro de 1849, Marx (1980, p. 70) é
enfático em sua opção por unir jornalismo e história e repudiar a prática da
216
advocacia burguesa: “Eu, de minha parte, asseguro-lhes, cavalheiros, eu prefiro
acompanhar os grandes acontecimentos mundiais, analisar o rumo da história, do
que pelejar ídolos locais, com policiais, com tribunais”. E finaliza mostrando, por
conclusão, qual deve ser exatamente a primeira grande missão da imprensa: “Mas,
de uma vez por todas, é o dever da imprensa tomar a palavra em favor dos
oprimidos à sua volta. (...) O primeiro dever da imprensa, portanto, é minar todas
as bases do sistema político existente (Aplausos no tribunal)” (MARX, 1980, p.
70 – destaque mantido). Marx foi absolvido. Saiu livre e aplaudido do Tribunal de
Colônia. Mas politicamente estava abatido. Vira a revolução recuar; os velhos
hábitos da clandestinidade “revolucionária” retornarem; a Nova Gazeta Renana
mais uma vez ser fechada pelo despotismo; o pedido de sua nacionalidade alemã
lhe ser negado pelo governo; e encontrar-se numa situação financeiramente
precária. “Nessas condições, não tem mais o que fazer em sua terra natal e termina
emigrando para a Inglaterra”, lamenta Giannotti (2009, p. 56).
Marx passa novamente por Paris antes de seguir viagem para Londres. Em
24 de agosto de 1849 se instala na capital londrina. Reorganiza a Nova Gazeta
Renana em forma de revista mensal. Ainda consegue publicar seis números. Todos
foram impressos em Hamburgo. O último número foi publicado em novembro de
1850. No campo da ação política, tenta soerguer a Liga dos Comunistas, mas sem
muito sucesso: as brigas internas o impedem de prosseguir. Chega mesmo a
escrever um panfleto sobre essas divergências: Os Grandes Homens do Exílio.
Entrega-o a um editor que se mostra interessado. O editor desaparece. Descobre-se
depois que se tratava de um agente policial disfarçado.
217
A vida pessoal de Marx, por outro lado, afunda na miséria. Segundo
Giannotti, três de seus filhos (Konder informa que foram dois) chegam a falecer
por falta de assistência médica, remédios, dinheiro, comida. “Há oito dias que
alimento minha família unicamente com pão e batatas. E não sei se ainda vou
poder comprar pão e batatas para hoje” – diz Marx numa de suas cartas para o
amigo Engels, que lhe ajuda financeiramente, em 8 de setembro de 1852, segundo
Konder (1981, p. 96).
Mas se a vida pessoal de Marx e de sua família ia aos frangalhos, na Nova
Gazeta Renana mantém sua crescente produção intelectual. Publica na própria
Gazeta em capítulos o livro As Lutas de Classe na França de 1848 a 1850 e no
jornal New York Tribune publica O Dezoito Brumário de Luís Bonaparte, segundo
Giannotti (Konder informa que foi na revista A Revolução, de Nova York). São
duas contribuições significativas para a concepção da história em Marx. Isso
porque ele analisa de maneira prática a história real, diretamente sob a perspectiva
da economia política, utilizando-se do pensamento dialético hegeliano, mas agora
invertido, ou seja, partindo da realidade para a abstração e voltando para a
realidade prática – conforme assim já compreendera e estabelecera.
Em ambas as obras vemos o Marx trabalhar a história como um processo,
conforme destaca Fernandes (1983), e tratá-la diretamente através de seus próprios
elementos definidos, dinâmicos e concretos: são os homens que produzem a
sociedade e os próprios homens e ao mesmo tempo são produzidos por essa mesma
sociedade de indivíduos produtores que também produzem a si mesmos. Isso quer
dizer que Marx analisa a história dos homens ativos e reais em dado momento
218
histórico definido e de maneira prática sob a ótica do Materialismo Histórico e
Dialético.
Os acontecimentos, personagens, tramas, dramas, movimentos e interesses
surgem assim como partes de uma sociedade dividida em classes sociais. Nela as
contradições afloram, em crises, revoltas, revoluções ou mesmo em contra-
revoluções (reacionarismo) de sorte a se configurar ora de uma forma num
momento, ora de outra noutro momento e até mesmo de se repetir neste mesmo
outro momento. Uma história em processo, mas que pode ser tomada e domada
oportunamente pelos seus próprios protagonistas mais explorados e apontar para
um futuro que se quer construir, enterrando as inspirações poéticas, românticas,
religiosas, metafísicas etc. do passado. Aqui vale transcrever, nesse aspecto, uma
das citações mais conhecidas de Marx em O Dezoito Brumário.
Os homens fazem a história, mas não a fazem arbitrariamente, nas
condições escolhidas por eles, mas nas condições dadas
diretamente e herdadas do passado. A tradição de todas as
gerações sobrecarrega o cérebro dos vivos. E mesmo quando eles
parecem ocupados em se transformar, a si próprios e às coisas,
em criar algo completamente novo, é precisamente nessa época
de crises revolucionárias que eles evocam receosamente os
espíritos do passado, dos quais eles tomam seus nomes, suas
palavras de ordem, seus costumes, para aparecer na nova cena da
história sob esse disfarce respeitável e com essa linguagem
emprestada. (...) A revolução social do século XIX não pode tirar
sua poesia do passado, mas somente do futuro. Ela não pode
começar como tal antes de ter liquidado completamente toda
superstição com referência ao passado. As revoluções anteriores
tiveram necessidade de reminiscências históricas para dissimular
para si mesmas seu próprio conteúdo. A revolução do século XIX
deve deixar os mortos enterrarem seus mortos para realizar o seu
próprio fim. Outrora, a frase excedia ao conteúdo, agora, é o
conteúdo que excede à frase (MARX, 1978, p. 17-18).
Parece-nos óbvio que aqui, ao final, mais exatamente nas duas últimas
frases do texto, Marx está se referido diretamente ao cristianismo: quem disse essa
sentença foi Jesus, segundo os evangelistas, quando pregava algo
219
revolucionariamente novo para a época, através de um novo ethos para a vida,
principalmente a vida espiritual, voltado para a salvação da alma, quando de uma
existência supra-real.
A crítica de Marx, contudo, parece ainda mais pertinente quando lembramos
que, além disso, os “novos hegelianos, principalmente aqueles objetos da crítica de
Marx em A Sagrada Família, enveredaram com a filosofia de Hegel pelos
caminhos da fé cristã. Impõe-se assim um novo posicionamento para os agentes
revolucionários (talvez também para os próprios historiadores de hoje) diante dos
acontecimentos contemporâneos e da própria historiografia: aquele que
desmistifique cientificamente a própria história.
Mas se deve-se desprezar o etéreo do passado através da ciência para evitar
a sua projeção a partir do presente, não se deve deixar de lado os fatos superficiais
e ao mesmo tempo os acontecimentos mais profundos do período quando se trata
de análise prática, corrente, dessa mesma narrativa. O objetivo pode ser, a par
deles, articulá-los dialeticamente entre si. Esclarece-nos, a propósito, Florestan
Fernandes, ao comentar sobre essa fase de Marx e nela o seu trabalho prático sobre
a história:
A história da vida cotidiana e do presente em processo, encarada
da perspectiva do materialismo histórico, propõe-se lidar,
simultaneamente, com os fatos históricos que permitem descrever
tanto o “superficial”, quanto o “profundo” na cena histórica. No
plano descritivo, ela busca a reconstrução da situação histórica
total. No plano interpretativo, ela se obriga a descobrir a rede (ou
as redes) da causação histórica, associando reciprocamente as
transformações das relações de produção às transformações da
sociedade e das superestruturas políticas, jurídicas, artísticas,
científicas, religiosas etc. (FERNANDES, 1981, p. 51).
O mesmo Fernandes (1981, p. 57) é quem nos explica sobre as qualidades
daquele outro trabalho de Marx do mesmo período em que se iniciara na Inglaterra:
220
As Lutas de Classe na França de 1848 a 1850 é “o mais vigoroso estudo histórico
produzido por K. Marx”. Fernandes acrescenta que este texto de Marx se encontra
na base da formação não somente do pensamento histórico, mas também das
Ciências Sociais. “Nele se destacam a precisão da descrição histórica, a
compreensão da situação histórica como totalidade e a introdução de um modelo
causal adequado aos fatos e processos históricos”, completa o pesquisador
Fernandes à mesma página.
Trata-se, portanto, de uma obra com as mesmas características analíticas e
metodológicas acerca de uma dada realidade histórica determinada como
encontramos em O Dezoito Brumário: a descrição, a narrativa, o encadeamento
lógico-temporal dos fatos, a nomeação e a retratação dos personagens, os interesses
ideológicos e políticos etc. em que se sobressaem as lutas de classes e fica
subsumido o economicismo do qual Marx é freqüentemente acusado. “Em ambas
as obras, o método do materialismo histórico recém-cirado foi posto à prova na
interpretação à quente de acontecimentos da atualidade imediata”, explica
Gorender (1983, p. XVII). “Nelas, são realçados não só fatores econômicos, mas
também fatores políticos, ideológicos, institucionais e até estritamente
concernentes às pessoas dos protagonistas dos eventos históricos”, completa.
Entretanto, elas possuem um algo mais, dentro das mesmas características
historiográficas e metodológicas explicitadas acima, que destacaríamos aqui.
Ambas nos falam, principalmente a primeira, dos processos sangrentos e
revolucionários da história. Algo que fez em igual timbre Engels ao escrever no
mesmo período (1848-1850) sobre As Guerras camponesas na Alemanha. Trata-se
de elementos de uma prática-prática do Materialismo Histórico e Dialético que nos
221
remete aqui, como o leitor já deve ter percebido, à nossa segunda palavra
metafórica: sangue. Expressão que associamos assim tanto ao socialismo francês,
que inspirou as propostas de mudanças radicais a partir da classe proletária, e à
construção do pensamento do próprio Marx naquele momento, quanto à reação
igualmente radical das classes burguesas a essas mudanças, assim como também, e
até com certo destaque, aos seus inevitáveis e por vezes terríveis resultados: os
choques violentos de ideias e de interesses, os levantes e os inúmeros embates
sangrentos que resultaram em milhares de mortes, muitas das quais torpes e cruéis.
Associamo-la, também e por conseguinte, aos levantes políticos e religiosos
radicais, e aos embates sangrentos da oposição reacionária e às milhares de mortes
resultantes, inclusive em outros países da Europa, de que nos fala Engels em seu
ensaio sobre As Guerras Camponesas na Alemanha, escrito sob a mesma
perspectiva teórica, mas com o seu próprio stylus. “Esta visão da história, a única
materialista, não parte de mim, mas de Marx, e encontra-se igualmente nos seus
trabalhos sobre a revolução francesa de 1848-1849, nessa mesma Revue, e no
Dezoito Brumário de Luís Bonaparte”, explica em seu prefácio o próprio Engels
(1981, p. 6 – tradução nossa).
Há outros textos igualmente importantes e com mais ou menos as mesmas
características de análise histórica de Marx e Engels. São aqueles que foram
escritos nesse período em que Marx se encontrava em situação muitíssimo precária
e precisava sobreviver. Marx assim escreveu para o People’s Paper, Neuer Oder
Zeitung, Ther Free e New York Daily Tribune. Neste jornal estadunidense, aliás, é
onde se encontra, para muitos, sua mais substanciosa colaboração jornalística sobre
a história. Citemos apenas alguns: Capital Punishment (Punição Capital),
222
Revolution in China and Europe (Revolução na China e na Europa), The British
Rule in India (O Domínio Britânico na Índia), War in Burma (Guerra na Birmânia)
e The Future Results of British Rule in India (Resultados Futuros do Domínio
Britânico na Índia) de 1853 e The Decay of Religious Authority (A Decadência da
Autoridade Religiosa) de 1854 e Revolution in Spain (Revolução na Espanha) de
1856. O período que cobre o conjunto desses textos marca, inclusive, entre 1852 a
1854, para alguns historiadores, a transição de Marx e Engels da filosofia para a
economia.
Com efeito, se Marx na França já mantivera contatos com as obras de
importantes economistas franceses e principalmente ingleses, na Inglaterra iria se
aproximar ainda mais da economia política. Leu e estudou em seu exílio londrino
os livros de Robert Torrens, Thomas Hodgskin, Thomas Robert Malthus, Andrew
Ure, J. G. Hubbard, Nassau Senior, William Hickling Prescott, Claude Frédéric
Bastiat, J. Gray, dentre outros. E aqui nos encontramos mais enfaticamente com
aquela nossa terceira expressão: Suor. O trabalho está no centro dos estudos da
economia política e Marx se encontra na Inglaterra, centro mundial produtor do
trabalho, do trabalhador assalariado e ao mesmo tempo de seus reveses – a
degradação, a miséria, o desemprego, a violência, a fome, as doenças; elementos
dos quais o próprio Marx padece. A economia política clássica – que Marx vai
criticar vigorosamente, acusando-a de representação intelectual e ideológica da
burguesia – preocupa-se somente com o primeiro, quer dizer, com a tecnologia, o
lucro, a exploração, a expropriação, a rentabilidade, a posse. Nesse aspecto, Marx
se debruçou sobre a teoria do valor-trabalho de Smith e Ricardo. Trata-se, como
explica Gorender (1983, p. XXX), da “idéia de que o trabalho exigido pela
223
produção das mercadorias mede o valor de troca entre elas e constitui o eixo em
torno do qual oscilam os preços expressos em dinheiro”.
O lucro, entretanto, nas acepções de Smith e Ricardo, continuava sem
explicação, por conta da sua equivalência entre o capital e a força de trabalho
quando relacionados na troca. A solução para essa questão fundamental da
economia foi resolvida por Marx com a teoria da mais-valia, cuja concepção
apresenta de forma mais refinada, junto com a sua teoria sobre o valor, em O
Capital – o que veremos resumidamente mais na frente. A esse conjunto de fatores
históricos e teóricos envolvendo a figura intelectual de Marx, imersos e ao mesmo
tempo expressando uma sociedade com todas as conformações, condições e
práticas sociais capitalistas avançadas, voltadas para a transformação da natureza,
com toda ordem de conseqüências daí advindas, para o bem e para o mal, é o que
buscamos enquadrar nesta expressividade metafórica e única, que nos remete ao
elemento desencadeador de tudo isso, o trabalho. Uma sociedade cuja
representação, por seu lado mais triste, também nos é apresentada por Engels ao
analisar a situação da classe trabalhadora na Inglaterra, assim como por ambos,
Marx e Engels, em toda Europa, seja por seus outros escritos, seja por suas práticas
políticas. Pois bem, foi com base nessas leituras sobre economia política, mesmo
contendo essa linha clássico-burguesa, especialmente em Adam Smith e David
Ricardo, e também como parte-integrante contestatória dessa sociedade, que Marx
escreveu, aprofundando-se no seu método, Introdução Geral à Crítica da
Economia e depois Fundamentos da Economia Política. Em seguida, baseado
nesses dois trabalhos, escreveu e publicou, em 1859, Contribuição à Crítica da
Economia Política, conhecido também como Grundisses. Nesta obra já antecipa
224
aqueles que viriam a ser os quatro primeiros capítulos de O Capital. Vale aqui
destacar duas passagens dessas obras. A primeira nos fala da importância decisiva
de sua atividade jornalística no Gazeta Renana para começar a voltar-se aos
estudos da realidade econômica e política, conforme já destacamos acima, mas
que, no prefácio de sua Contribuição, nos fala de modo ainda mais revelador.
Em 1842-43, na qualidade de redator da Rheinische Zeitung
(Gazeta Renana), encontrei-me, pela primeira vez, na embaraçosa
obrigação de opinar sobre os chamados interesses materiais. Os
debates da Dieta renana sobre os delitos florestais e o
parcelamento da propriedade fundiária, a polêmica oficial que o
Sr. Von Schaper, então governador da província renana, travou
com a Mosela, por último, das discussões sobre o livre-câmbio e
o protecionismo, proporcionaram-me os primeiros motivos para
que eu começasse a me ocupar das questões econômicas. Por
outro lado, nessa época, em que o afã de “avançar” sobrepujava
amiúde a verdadeira sabedoria, fez-se ouvir na Gazeta Renana
um eco entibiado, por assim dizer filosófico, do socialismo e do
comunismo francês (MARX, 1983, p. 23).
A segunda passagem se encontra na Introdução dos seus Grundisses, onde
Marx nos revela didaticamente o seu método de abordagem na economia política –
o que nos permite compreender melhor a sistematização de seu pensamento.
Mesmo que esse pensamento não seja “um modelo, pois o seu itinerário filosófico-
científico é a apreensão da lógica objetiva dos seres e processos, é a concreção
conceitual da regência imanente das existências”, como nos alerta Vaisman (2010),
Marx fala de maneira clara e ilustrativa:
Parece correto começar pelo real e o concreto, pelo que se supõe
efetivo; por exemplo, na economia, partir da população, que
constitui a base e o sujeito do ato social da produção no seu
conjunto. Contudo, a um exame mais atento, tal revela-se falso. A
população é uma abstração quando, por exemplo, deixamos de
lado as classes de que se compõe. Por sua vez, estas classes serão
uma palavra oca se ignorarmos os elementos em que se baseiam,
por exemplo, o trabalho assalariado, o capital, etc. Estes últimos
supõem a troca, a divisão do trabalho, os preços, etc. O capital,
por exemplo, não é nada sem o trabalho assalariado, sem o valor,
sem o dinheiro, sem os preços, etc. Por conseguinte, se
começássemos simplesmente pela população, teríamos uma visão
225
caótica do conjunto. Para uma análise cada vez mais precisa
chegaríamos a representações cada vez mais simples; do concreto
inicialmente representado passaríamos a abstrações
progressivamente mais sutis até alcançarmos as determinações
mais simples. Aqui chegados, teríamos que empreender a viagem
de regresso até encontrarmos de novo a população - desta vez não
teríamos uma ideia caótica de todo, mas uma rica totalidade com
múltiplas determinações e relações. (...) Eis, manifestamente, o
método científico correto. O concreto é concreto porque é a
síntese de múltiplas determinações e, por isso, é a unidade do
diverso. Aparece no pensamento como processo de síntese, como
resultado, e não como ponto de partida, embora seja o verdadeiro
ponto de partida, e, portanto, também, o ponto de partida da
intuição e da representação (MARX, 1983, p. 218)
Por essa época, dos Grundisses, Marx participou ativamente da política e
publicou mais artigos de interesse político e geral na imprensa, como Population,
Crime and Pauperism (População Crime e Pauperismo) no New York Daily
Tribune em 1859, Inaugural Address of the Working Men's International
Association (Manifesto de Lançamento da Primeira Internacional) em 1864, e
Value, Price and Profit (Salário, Preço e Lucro), em 1865. Mas nada comparado ao
que publicaria dois anos depois e em cuja produção já vinha trabalhando por anos a
fio, o livro O Capital.
O primeiro volume de O Capital: Crítica da Economia Política – o
Processo de Produção do Capital apareceu em 1867. A impressão ocorreu em
Hamburgo (Alemanha) e a tiragem foi de um mil exemplares. Nele Marx apresenta
ao mesmo tempo um estudo filosófico e político-econômico da sociedade
capitalista. Em suma: estuda o modo de produção da sociedade capitalista e suas
relações sociais. Justamente por isso, também é um estudo historiográfico,
antropológico, sociológico, demográfico; um estudo, como nos fala Gorender
(1983, p. XXIV), interdisciplinar e multilateral das ciências humanas. Isso quer
dizer que temos que observar O Capital por esses dois principais vieses, o da
filosofia e o da economia política, posto, como nos alerta Giannotti (2009, p. 64),
226
os filósofos tendem a desprezar o viés econômico e os cientistas tendem a
desprezar o viés o filosófico. “O marxismo é ao mesmo tempo uma ciência (a
sociologia científica, a economia racionalmente estudada etc.) e uma filosofia (uma
teoria do conhecimento, da razão, do método racional etc.)”, referenda Lefebvre
(1979, p. 20).
No aspecto filosófico, poderíamos destacar o método hegeliano presente por
toda a obra, porém, posto em prática da forma compreendida como a mais correta
por Marx. Desta forma, as categorias sociais apreendidas e determinadas de
maneira concreta são analisadas em processo dinâmico a partir da própria realidade
social da qual os homens são os seus principais protagonistas. Marx, para isso,
parte daquilo que compreende ser a unidade elementar da sociedade capitalista, a
mercadoria. Assim, analisa a mercadoria como objeto celular e ao mesmo tempo
imanente da sociedade. Ou seja, como ele mesmo diz acima, elemento concreto a
partir do qual se deve elevar a abstrações cada vez mais refinadas até reencontrá-lo
novamente em sua diversidade total e cheia de determinações. Assim, Marx
procede a análise da mercadoria cujo texto foi escrito e reescrito várias vezes. Ele
mesmo chama a atenção para as dificuldades de compreensão desse primeiro
capítulo no prefácio logo da primeira edição. “Todo começo é difícil; isso vale para
qualquer ciência. O entendimento do capítulo I, em especial a parte que contém a
análise da mercadoria, apresentará, portanto, a dificuldade maior” (MARX, 1983,
p. 11). Ao mesmo tempo em que avança, analisa a mercadoria como dotada de
valores intrínsecos. E a partir daí desenvolve a sua teoria de valor.
Aqui já ingressamos no campo da economia política, daí demonstrações
quantitativas serem muito mais utilizadas como suportes da explanação marxista.
227
Assim, conceitos como valor de uso, valor de troca, força de trabalho cristalizada,
tempo de trabalho socialmente necessário, caráter fetichista da mercadoria e
mais-valia, dentre outros, se constituírem como elementos esclarecedores da
sociedade capitalista irracional que Marx pretende desvendar – sim, porque no
fundo o projeto de Marx é científico/propositivo/revolucionário e aponta para uma
sociedade desvendada, racional, sem classes e humanamente dominada.
Destaquemos apenas alguns desses conceitos, sintética e exclusivamente de seu
livro primeiro (os dois outros volumes não foram publicados por Marx, mas, após a
sua morte, por Engels, que coligiu os escritos dispersos e até os complementou
para o livro terceiro), dado a complexidade de temas e aqui a carência de espaço.
A mercadoria, diz Marx, é antes de tudo um objeto exterior dotado da
capacidade de satisfazer as necessidades humanas. Ou seja: possui utilidades.
Assim, possui a capacidade de ser utilizada de múltiplas maneiras. Uma dessas
maneiras é aquela que satisfaz as necessidades subjetivas. Trata-se daquela
mercadoria que tem a propriedade de suprir o “gostar”, o “querer”, o “desejar” dos
indivíduos. Está ligada, portanto, às necessidades vitais, mas muito mais às
psicológicas dos consumidores. A essa propriedade, que se apresenta no próprio
corpo da mercadoria, Marx denomina de valor de uso. Tal valor se realiza no uso
ou no consumo, explica Marx, mas também pode ser quantificada material e
matematicamente – daí possui também um valor que denomina valor de troca.
O valor de troca, no entanto, ao contrário do valor de uso, não é subjetivo,
mas objetivo. Isso quer dizer que ele pode ser, como o valor de uso, não só
quantificado numericamente, mas também qualificado. Tal qualificação ocorre no
mercado das coisas produzidas, no grande leilão do mundo das mercadorias. Ou
228
seja: o valor de troca se manifestar objetivamente nas relações sociais, na troca, na
compra e na venda dos produtos, servindo inclusive de parâmetro valorativo para
outros produtos do trabalho humano no colossal reino das mercadorias. Uma
mercadoria pode ter um mesmo valor que outra. Serem equivalentes. E assim
serem trocadas entre si, equitativamente, no escambo. Para que tenha esse valor de
troca, no entanto, o objeto deve ter alguma utilidade para alguém, ou seja, deve
também possuir valor de uso. O contrário, porém, pode necessariamente não
ocorrer.
Marx, em seu processo de análise (abstração), retira do corpo da mercadoria
o valor de uso, por justamente considerá-lo que não poder ser medido
objetivamente. Isso implica dizer que nela não resta mais nada de sua utilidade
para uso subjetivo. Assim resta estratificado na mercadoria apenas a sua
propriedade quantitativa, ou seja, o seu valor de troca. Esse valor, conclui Marx, é
único e será o valor total do bem. De onde, contudo, provém tal valor? Percorrendo
o caminho de volta ao valor de troca Marx encontra em comum, na relação de
troca, o valor. Um valor que, segundo deduz, só pode ser fruto do trabalho
humano. Isso quer dizer logicamente trabalho humano corporificado na
mercadoria. Portanto, infere Marx, o valor de troca só possui valor porque nele
está cristalizado o trabalho humano abstrato.
Podemos avançar ainda mais nas deduções de Marx sobre sua teoria do
valor: no processo de fabricação dos produtos, é dispensado um grau de trabalho
tanto maior quanto for necessário para a sua fabricação. Assim, quanto mais tempo
exige a fabricação de uma mercadoria, maior valor tende a alcançar no mercado.
Ao período médio necessário para a fabricação dessa mercadoria Marx chama de
229
tempo socialmente necessário. Nesse período médio estão inclusas também as
condições e as habilidades igualmente médias e necessárias ao processo de
fabricação.
Caso esse tempo socialmente necessário fosse constante, diz Marx, a
grandeza de valor de uma mercadoria também seria constante. A mercadoria muda
seu valor, portanto, em decorrência da mudança do tempo social que a ela é
dispensado na fabricação. Mas, então, o que produz a inconstância no período das
equivalências sociais de tempo, habilidades e condições? Para Marx, esta decorre
das mudanças naquilo que chama de força produtiva do trabalho. E o próprio
Marx nos explica o que seja tal conceito:
A força produtiva do trabalho é determinada por meio de
circunstâncias diversas, entre outras pelo grau médio de
habilidade dos trabalhadores, o nível de desenvolvimento da
ciência e sua aplicabilidade tecnológica, a combinação social do
processo de produção, o volume e a eficácia dos meios de
produção e as condições naturais (MARX, 1983, p. 48).
Mais adiante, Marx analisa o caráter fetichista da mercadoria. Marx
explica que, assim que a matéria-prima é transformada em mercadoria, esta assume
uma natureza metafísica. Noutras palavras: produz uma espécie de encantamento.
Esse caráter místico da mercadoria permanece mesmo sabendo-se que a qualidade
natural e primária ainda lhe é inerente. Marx afirma que tal encantamento não
deriva do seu valor de uso nem tampouco do conteúdo daquilo que determinam o
valor da mercadoria. “De onde provém, então, o caráter enigmático do produto do
trabalho, tão logo ele assume a forma de mercadoria?
Marx explica, em outras palavras, que, a despeito da mercadoria possuir em
si mesma as características das relações sociais e produtivas dos homens em
sociedade, estas qualidades só se apresentam aos próprios indivíduos por reflexo.
230
A mercadoria, portanto, não é vista como a expressão do trabalho humano
concreto, apenas como um fantasma dessa realidade social objetiva. A sua
verdadeira identidade social e constituição econômica é ocultada. Apresenta-se
simplesmente como “coisa” que se relaciona com outras “coisas” no processo de
troca. “Assim, em lugar da mercadoria aparecer como resultado de relações sociais
enquanto relações de produção, ela aparece como um bem que se compra e se
consome”, explica Chauí (1984, p. 56).
Marx ainda vai mostrar no O Capital qual a fonte dos lucros dos capitalistas
a partir do valor da mercadoria produzida pelo assalariado, paradoxo do qual, como
vimos, Ricardo se meteu e não soube resolver. A solução desse problema Marx
demonstra quando irá falar sobre a transformação do dinheiro, também uma
mercadoria, em capital. A representação desse processo Marx descreve através da
conhecida expressão D – M – D’. Aqui D representa o dinheiro originalmente
investido, o M a mercadoria como produto transformado e posto no mercado de
consumo e efetivamente vendido e o D’ novamente o dinheiro só que agora
aparecendo como aquele dinheiro adiantado mais um incremento. “Esse
incremento, ou o excedente sobre o valor original, chamo de mais-valia (surplus
value)” – explica Marx (1983, p. 128). “O valor originalmente adiantado não só se
mantém na circulação, mas altera nela a sua grandeza de valor, acrescenta mais-
valia ou se valoriza. E esse movimento transforma-o em capital”, complementa
Marx.
A força e a aplicação da dialética hegeliana aqui são evidentes. Não só no
aspecto triádico, mas também no sentido do movimento e na constituição dos
segundo e terceiros elementos: a negação do dinheiro, a mercadoria, o contém ao
231
mesmo tempo em que está contida, assim como a própria afirmação, o dinheiro, no
“novo” dinheiro, posto ser este agora uma nova afirmação, ou seja, a despeito de
conter os dois primeiros, agora é uma outra coisa, a síntese, diferente das duas
anteriores – é capital. “Como portador consciente desse movimento, o possuidor do
dinheiro torna-se capitalista”, acrescenta Marx (1983, p. 129).
A mais-valia, para Marx, origina-se da fonte básica do valor, o valor-
trabalho, ou seja, do trabalho humano. Trata-se daquele mesmo valor que amplia o
valor da mercadoria no mercado quanto mais nele se debruça como força
intelectual e física. Para utilizar-se dessa força na produção, o capitalista tem que
adquiri-la enquanto mercadoria. E os trabalhadores assim a vendem, como
mercadoria, pois, destituídos dos meios de produção, é a única coisa que possuem
como tal no mundo das propriedades. No entanto, o capitalista não a compra de
forma justa dos trabalhadores. “Pelo contrato de trabalho, ele entrega ao capitalista
o valor de uso da sua força de trabalho e recebe em retribuição o salário, que
corresponde a seu valor de troca”, explica Konder (1981, p. 147).
Após a publicação de O Capital, no qual outros conceitos, enquanto
categorias lógicas, além das acima citadas, vão se ampliando na análise da
expansão do capital, Marx ainda publicou alguns escritos importantes, como A
Guerra Civil na França, em 1871, e Crítica ao Programa de Gotha, em 1875.
Pensou até mesmo em escrever, por essa época, sobre Balzac – e aqui vamos
encontrá-lo novamente numa interessante conexão com o jornalismo a qual só
poderíamos verificar melhor nos tempos de hoje. Isso porque Honoré de Balzac, ao
lado de outros escritores, filósofos e jornalistas franceses da época, como
Montaigne, Pascal, Voltaire, Moliére, Stendhall, Zola etc., é considerado um dos
232
precursores e/ou fundadores do Realismo-Naturalismo (BULHÕES, 2007). Prática
literária para a qual se acreditava que aquele que escreve deve se corresponder ao
máximo à realidade social em que vive ou experimenta – corrente que iria atingir
de cheio romancistas e jornalistas brasileiros, como Lima Barreto, objeto do
primeiro capítulo do presente trabalho, conforme vimos. “Marx achava que os
romances dele [Balzac] refletiam tão profundamente a realidade da época que
assumiam até uma significação revolucionária, pois mostravam a estrutura social
como uma coisa que estava sendo transformada e precisava mesmo ser submetida a
uma transformação”, diz Konder (1981, p. 119). “Marx gostava tanto da obra de
Balzac que, quando acabasse de escrever O Capital, pretendia se dedicar a um
estudo aprofundado dela. Infelizmente, a morte não lhe deu tempo para esse
trabalho”, complementa Konder.
De fato, Marx morreu em 1883. Nada, porém, do que escreveu e muito
provavelmente o que pretendia escrever se assemelha ou se assemelharia à análise
que procedeu naquela que é considerada a sua obra máxima. Porque é nela que nos
apresenta os processos históricos de produção, distribuição e trocas de mercadorias
da sociedade capitalista a partir da própria realidade social. E porque para ela,
como uma síntese de seu pensamento, confluíram em construção biográfico-
histórica num primeiro momento o idealismo da Alemanha, depois o socialismo e
as revoluções da França, em seguida a realidade da classe trabalhadora e as teorias
burguesas sobre a produção da Inglaterra. Ou simplesmente ideia, sangue e suor,
como elegoricamente aqui cognominamos desde o início. Uma obra, portanto,
histórica. Uma obra revolucionária.
233
3. Capital versus trabalho: constituições e construções na cidade
A cidade de São Paulo, hoje com mais de 11 milhões de habitantes, assim
como a Região Metropolitana de São Paulo, composta por 39 municípios e com
uma população de mais de 19 milhões de habitantes, segundo o IBGE (2010), é
onde historicamente os conflitos entre capital e trabalho mais se desenvolveram no
país. São os maiores, os mais graves e também os mais crescentes. Constitui-se
assim essa cidade num megacentro de contradições: se por um lado imprime a
maior riqueza concentrada e tudo que de bono daí decorre, especialmente e quase
que exclusivamente para as suas classes superiores, por outro expressa em
expansão permanente toda uma série de dificuldades, necessidades, misérias e
subumanidades que amargam a maioria daqueles que ali sobrevivem muito mais do
que vivem. “Entrar na cidade [em São Paulo] é estar permanentemente exposto à
sua imagem contraditória de grandeza, opulência e miséria, carroça e caminhonete
blindada, mansão e buraco, shopping center e barraca de camelô”, diz Rolnik
(2009, p. 10).
Isso não decorre simplesmente do fato dessa cidade possuir a maior
densidade demográfica e a maior quantidade de próprios urbanos que ao longo de
centenas de anos ali foi se formando desde a sua fundação, em 1554, pelos padres
jesuítas, até os dias atuais, quando a vila se transformou numa das maiores
economias do planeta. Mais por ser o maior pólo de concentração de capital, de
mão-de-obra e de produção de mercadorias do Brasil, das Américas e um dos
maiores do mundo, incrementado principalmente a partir de sua inserção no
capitalismo moderno e nas passagens pelos anos do chamado desenvolvimento e
234
pelo “milagre econômico” brasileiro. Assim, aquilo que faz São Paulo ser o
principal centro financeiro, corporativo e mercantil da América Latina também a
faz ser a cidade continental com maior volume de desigualdades, problemas e
desequilíbrios urbanos e, nesses aspectos, uma das maiores do mundo.
Trata-se de uma síntese da contradição capitalista mais exemplar. Vários
estudos comprovam essa realidade cujo desenrolar pode ser visto a olhos nus todos
os dias: se São Paulo possui as maiores vias expressas, indústrias pesadas e de
pontas, empresas de investimentos e de finanças e os principais centros decisórios
do poder do capital assentados sobre uma base tecnológica das mais avançadas do
país, interconectados com outros organismos congêneres e/ou similares das
principais cidades do mundo, tornando-se assim uma Cidade Global, da qual nos
fala Sassen (1998), possui também as maiores emissões de gases poluentes no ar,
os maiores volumes de congestionamentos de veículos, o maior número de
moradores de ruas, o mais alto índice de desempregados, a maior quantidade de
sem-tetos e uma das maiores e históricas crises da habitação social do Brasil, como
nos mostra, sobre este último caso, Bonduki (1999).
Tudo isso imerso ao mesmo tempo na maior diversidade cultural do país.
Uma realidade que, portanto, se expressa na dinâmica de seu próprio cotidiano.
Não seria à toa que aquilo que o senso comum diz sobre essa cidade, como “São
Paulo é a locomotiva do país”, numa referência desproposital ou mesmo proposital
ao seu passado de crescimento ligado às estradas de ferro, dentre outros ditos
populares que ressaltam o seu papel de condottiere da economia nacional, tenha
uma relação direta com o que lhe impingiram deliberadamente a classe dominante
235
em seu brasão, cujo lema é Non ducor, duco, ou seja, “Não sou conduzido,
conduzo”.
Aliás, este é um traço marcante da cidade desde o seu nascimento e que, se
por um lado ajudou a promover o seu desenvolvimento até os dias de hoje, ainda
faz promover o seu crescimento desigual e diverso, qual seja: mais do que um
“porto” é um ponto de confluência e expansão para todos os fins do capital, o que
quer dizer de todos os interesses políticos, econômicos, religiosos etc. Um traço,
inclusive, destacado por Rolnik (2009, 14-15): “São Paulo bandeirante: a marca
dessa cidade é a sua fronteira aberta, por onde entram os forasteiros do país e do
mundo e de onde se sai para conquistar territórios”.
Uma marca também, acrescentaríamos junto com a autora, quando a
posição econômica da cidade se transforma completamente com a expansão do
cultivo do café na então província de São Paulo, em 1850; quando torna-se um
“entroncamento ferroviário” atravessado por ferrovias, ligando Santos a Jundiaí, a
partir de 1867; quando transforma-se na sede de uma importante província em
franca expansão econômica no momento de instauração do regime de trabalho
assalariado e da República, em 1889; quando na virada do século XIX para o XX a
acumulação elevada e rápida de capitais atraía um intenso fluxo de mão-de-obra de
centenas de imigrantes europeus, principalmente italianos; e quando se seguem a
partir daí outros intensos fluxos imigratórios de mão-de-obra da Europa e outras
partes do mundo, como os italianos, portugueses, espanhóis, libaneses, sírios,
judeus e japoneses.
Foi exatamente nesse último momento, ou seja, na virada do século XIX
para o XX, aliás, segundo destaca Rolnik (2009, p. 17), que São Paulo teve o seu
236
grande surto de urbanidade, com a chegada de importantes bens e serviços
modernos, como água encanada, bondes elétricos, iluminação pública etc. e a
implantação de suas primeiras grandes reformas urbanas, através do projeto do
arquiteto inglês Barry Parker, “empregado do gigantesco holding City of São Paulo
Improvements and Freehold Land Co., responsável pelo empreendimento
imobiliário das cidades-jardins”, que vendeu a ideia do Parque da Paulista como o
“bairro mais moderno da cidade”, e do projeto do arquiteto francês Joseph
Bouvard, que transformou “as vertentes do Anhangabaú e os pântanos do Tietê
num panorama cenográfico dos mais elegantes”, conforme Sevcenko (1991, p.
115).
Mas todas essas transformações nos mundos do capital e do trabalho,
incluída a urbana, foram promovidas pelo modo de acumulação capitalista baseada
na cultura do café, com consequências sociais contraditórias que se fazem
presentes até os dias de hoje. Criou barões e todo um séquito familiar, econômico,
político e midiático de influências até então jamais vistas nos âmbitos urbano e
nacional, mas também segregou espacialmente grupos sociais, instaurou um
modelo de urbanização densa e concentrada e constituiu uma nova classe média
urbana a partir dos imigrantes.
Nesse contexto, já pelos anos 1920, a opção pela expansão horizontal
ilimitada da cidade, baseada no “modelo rodoviarista” de transporte, idealizada
pela gestão do prefeito Prestes Maia (em substituição aos bondes), em cujo projeto
se imprimem estadas concêntricas e cruzadas por outras radiais a partir de um
centro, ajudou não só a afigurar a cidade de hoje, como também a “empurrar” para
237
fora do seu núcleo urbano, pelo critério da exclusão, as classes sociais mais
subalternas.
A periferia funcional “sem regras” assim se expandiu e o centro urbano
paulista moderno ficou destinado exclusivamente às elites. Germinaram por
conseguinte num mesmo lócus as cidade legal e a ilegal. Nesta irão, a partir de
cortiços e outras formas de moradias precárias, das quais nos fala Bonduki (1999),
se desenvolver nas décadas seguintes, principalmente nos anos 1940, os
loteamentos clandestinos periféricos, longe de tudo e com todos os azares da vida.
“Em São Paulo, concomitantemente ao declínio dos cortiços, os loteamentos
ilegais tornaram-se a forma predominante de moradias dos trabalhadores, a partir
dos anos 40”, afirma Maricato (2003, p. 79), uma das defensoras do conceito
jurídico-social da cidade contraditória.
Nas décadas seguintes à de 1940, São Paulo passa por um novo e forte surto
de crescimento. Mas crescimento dual. Se nos anos anteriores o seu progresso
urbano foi no sentido de uma ilimitada e horizontal expansão territorial, ou seja, de
crescer “para fora” de seu núcleo urbano, na década de 1940 inicia-se um processo
vigoroso de verticalização das zonas centrais. Passa também a se afirmar a partir de
seu centro para o sudeste uma concentração de moradias de alto padrão de
consumo e o oferecimento de um comércio caro e serviços de luxo destinados a
pessoas de altas rendas, expandindo assim o seu centro urbano.
O crescimento rodoviarista, por seu turno, continuou inclemente em seu
sentido único para o transporte a motor-combustível sobre pneus. E com ele
irrompeu um novo desenvolvimento industrial baseado na indústria metalúrgica,
metal-mecânica e elétrica, segundo Rolnik (2009). Essa combinação fez gerar uma
238
nova expansão na região chamada Grande ABC ou ABC Paulista. Noutras
palavras: esse novo surto de crescimento amplia as funções capitalistas dos
vizinhos municípios de Santo André (A), São Bernardo (B) do Campo e São
Caetano (C) do Sul – hoje todos conurbados à Capital e integrados à Região
Metropolitana de São Paulo.
Nos anos 1950, esse processo de crescimento é fortemente intensificado,
através da instalação de plantas industriais de veículos automotores e da indústria
petroquímica, fato que irá representar, conforme nos mostra Rolnik (2009, p. 43),
“a inserção definitiva da cidade no circuito da grande produção industrial
multinacional”. A partir daí, nas décadas de 1950 e 1960, especialmente nos anos
do chamado “milagre econômico”, que vai do final dos anos 1960 ao início dos
anos 1970, e também na década 1970, a despeito de ocorrer em 1973 a primeira
grande crise econômica mundial baseada no consumo do petróleo e de seus
derivados, o crescimento da cidade continuou surpreendentemente excepcional –
mas novamente e sempre desigual.
“A cidade de São Paulo, que naquele momento já é o centro industrial mais
importante do país, passa a ser também o mais importante centro financeiro e a
maior cidade brasileira, suplantando o Rio de Janeiro”, afirma Rolnik (2009, p. 43)
sobre esse período (1950-70). O crescimento nessa época, décadas de 1950, 1960 e
1970, acrescenta a autora, é de mais de 5% ao ano e a população passa de 2
milhões para 6 milhões de habitantes. Nesse mesmo período, quando a imigração
da Europa e de outras partes do mundo para essa cidade diminuiu, São Paulo
passou a ter um forte incremento na migração de várias regiões brasileiras. Os
migrantes eram originários principalmente de Minas Gerais e do Nordeste. Em
239
1970, eles já compunham quase 20% da população da cidade enquanto que os 380
mil estrangeiros se dividiam em mais de 70 nacionalidades. “Esse movimento,
embora tenha diminuído de intensidade a partir dos anos 70 (em 1991 são “apenas”
2,5 milhões de migrantes e 200 mil estrangeiros entre 9,5 milhões de habitantes),
marca de forma muito evidente as transformações culturais da cidade”, acrescenta
Rolnik (2009, p. 44).
Mas se São Paulo cresceu economicamente, aumentando a concentração de
capitais, também experimentou nesse mesmo período o agravamento de suas
desigualdades sociais e incrementou um ataque descontrolado à natureza. E isso
ocorreu de tal forma que os problemas sociais, urbanos e ecológicos hoje se
apresentam difíceis de resolver. Com o crescimento de sua economia, por exemplo,
as leis de zoneamento do solo urbano apenas consagraram a concentração de
edifícios em apenas 10% do seu território e separou as periferias por “barreiras
industriais”, como diz Rolnik (2009).
A política habitacional no mesmo período também ajudou a segregar ainda
mais as populações residentes em sua periferia. Postas em conjuntos habitacionais
padronizados, estes tornaram-se “guetos” monstruosos, afastados cada vez mais da
centralidade dos poderes do capital, dos recursos e das possibilidades de
crescimento individual ou coletivo. Em conjuntos habitacionais como Itaquera, por
exemplo, no extremo leste da cidade, foram erguidas um contingente fabuloso de
35 mil moradias para abrigar uma população de 165 mil pessoas – o que acabou
gerando, além de demandas para os moradores, também em seu entorno formas de
ocupação ilegais, como os loteamentos clandestinos.
240
O exemplo se repete noutras regiões distantes, com um agravante comum a
todas elas: a falta de estrutura urbana de toda ordem leva à destruição de
mananciais ribeirinhos, de lagos, de reservas ambientais, de florestas e ao aumento
de calamidades públicas, especialmente em épocas de intempéries. “Porém, o
impacto mais devastador desse modelo é, sem dúvida, a radical exclusão territorial
a que foram condenados os moradores da extrema periferia – guetos de baixa
renda, educação precária, desemprego alto, serviços urbanos deficientes,
radicalmente fora dos locais onde funcionam as oportunidades” – afirma Rolnik
(2009, p. 51).
Neste aspecto, é importante destacar que, segundo a literatura por nós
consultada, com poucas variações dos dados, nos anos 1970 e chegando até os anos
1980 as favelas não se constituíam uma forma importante de moradia em São
Paulo. “No início dos anos 70, menos de 1% da população paulistana morava em
favelas. Essa situação evoluiu de tal modo que a cidade apresentava
aproximadamente 20% de moradores de favelas em meados dos anos 90”, diz
Maricato (2003, p. 2).
A cidade chega assim ainda mais fraturada aos anos 1980, e padecendo
daquilo que os especialistas chamam de “reconversão econômica” ou processo de
“desindustrialização”, fenômeno típico do pós-guerra, no qual se destacam, após
um período de industrialização e desenvolvimentismo, as crises do fordismo e do
taylorismo. Desta forma também atravessa os anos 1980 e ingressa nos anos 1990 e
2000 com a riqueza e a pobreza se aprofundando e convivendo lado a lado, como
registra até mesmo o Almanaque (1997) da Abril do final dos anos 1990. Em parte
pela estagnação e até mesmo o decréscimo econômico, com os investimentos
241
buscando oportunidades mais rentáveis em outras regiões do país. Em parte porque
a infraestrutura urbana e industrial está esgotada, sendo insuficiente para atender às
demandas sociais de transporte, saúde, moradia e educação – apesar de São Paulo
ainda ser até o presente (2010) a maior força capitalista, sempre em transformação,
do país e uma das maiores do mundo.
O que pretendemos até agora não foi examinar todos os ramais de
contradições que a cidade de São Paulo apresenta ao longo de sua história, mas
apenas destacar alguns traços deles no decorrer do tempo, sempre ligados direta ou
indiretamente à crise do capital e do trabalho. Crise que se expressa, como vimos,
no conjunto urbano/citadino da São Paulo, metrópole geradora de agudas
contradições do capitalismo avançado, por isso mesmo revolucionária. O prólogo
acima, portanto, embora já nos remetendo às contradições históricas sócio-
espaciais dessa cidade no período específico de nossa análise, foi apenas, como em
toda tragédia grega, o prenúncio para revelar esta empreitada: examinar o
empreendimento jornal Folha de São Paulo e a sua relação com a sua mão-de-obra
especializada e produtora de ideias dos jornalistas no contexto da cidade em
questão ao logo dos anos 1960 até os de 1980.
Desnecessário dizer que não pretendemos aqui aplicar a teoria de maneira
fechada – nem poderíamos –, nem estabelecer novas categorias sociológicas da
cidade capitalista, embora assim possa ocorrer. Mas, a partir das bases
fundamentais dessa teoria, compreendendo a sociedade-objeto como uma
sociedade de classes, expor suas contradições nesse particular, dentre as quais
algumas já palmilhadas por outros autores com vertentes marxistas, os quais
julgamos justamente por isso importantes para o aprofundamento destas questões.
242
Alguns desses autores/pesquisadores são: Kowarick, Campanário, Bonduki e
Abramo. Nesse sentido, passaremos agora a examinar melhor e de forma mais
delimitada o caráter contraditório do capital versus trabalho na conjuntura
sociourbana de São Paulo exatamente do período em que pretendemos nos
debruçar – entre os anos 1960 e 1980. Faremos isso para situarmos mais
adequadamente no tempo e no espaço social os nossos objetos de análise bem
como procedermos de maneira mais profícua e coerente o nosso estudo de caso.
Parece haver um consenso entre os pesquisadores sociais de que esse
período, que vai dos anos 1960 até os anos 1980, é um dos mais marcantes do país.
Não é para menos. Ele cobre um transcurso importante da vida nacional, nos
aspectos político, econômico e social, com suas conexões locais e internacionais.
Nele se inserem o golpe militar de 31 de abril de 1964, quando o país mergulha
num regime ditatorial e econômico típico, e o processo de redemocratização, que
culmina com uma nova Constituição da República, aprovada em 5 de outubro de
1988. A cidade de São Paulo, com todo seu decisivo arsenal infraestrutural e
superestrutural gerados pelo poder econômico, no qual se inserem atores políticos,
meios de comunicação, movimentos sociais, sistemas simbólicos e legais,
instituições públicas, privadas, sindicais, religiosas, desempenha um papel
significativo que denotam um rumo, um sentido histórico para si e para o país.
Nesse aspecto, Kowarick (1988, p. 25) ressalta historicamente a importância
“da cidade de São Paulo enquanto lócus de participação e conflitos sociais no
período populista e as radicais mudanças que ocorreram com o golpe de 1964” até
os anos 1980. No mesmo sentido, Kowarick; Campanário (1988, p. 29-46)
destacam o caráter metropolitano de sua área como punctu principal do
243
crescimento capitalista, com todas as suas contradições, a partir de 1960 até o final
dos anos 1980. “A Região Metropolitana de São Paulo é o principal centro
industrial da América Latina. Aí instalou-se uma enorme e complexa engrenagem
produtiva que dita o rimo da acumulação de capital no Brasil. Mais que isto, a
Grande São Paulo a partir de 1960, contituiu-se em importante mediação no
processo de integração entre a economia local e o mercado internacional”,
afirmam.
Os autores também ressaltam que no espaço urbano da Grande São Paulo,
forjado ao longo desse período, se assenta não somente os meios de produção e de
gerência das grandes empresas multinacionais, estatais e privadas, “mas também a
força de trabalho que impulsiona a vasta e complexa engrenagem econômica
instalada na Região”. Para eles, contudo, toda problemática urbana não só daí
decorre, mas também acaba por influenciar decisivamente as condições de
reprodução do capital. Para compreender tal fenômeno, qual seja, o papel da
Grande São Paulo no contexto econômico nacional e internacional desse período,
porém, ressaltam os autores, uma visão dialética faz-se necessária. E assim o
fazem.
Segundo Kowarick; Campanário, as condições econômicas internacionais
do pós-guerra, decorrente de uma nova divisão mundial do trabalho, possibilitou
vultosos investimentos internacionais diretos em São Paulo e região, especialmente
voltados para a produção de bens de consumo duráveis. Investimentos que foram
atraídos pelas condições estruturais bancadas pelo Estado, que investiu pesado em
energia, transporte e insumos básicos; por um mercado interno amplo; e por uma
mão-de-obra muito barata para o capital. “Cresce, assim, o peso relativo deste
244
núcleo urbano [da cidade de SP] não só enquanto receptor de investimentos diretos
estrangeiros, mas também como espaço construído capaz de fazer circular o valor
ali criado”, afirmam.
Com efeito, ao destacar São Paulo como a metrópole do capital e do
trabalho, Kowarick; Campanário apontam a Grande São Paulo como o “epicentro”
do crescimento econômico nacional, que sobe à taxa de 7,1% ao ano do Produto
Interno Bruto (PIB) entre o final dos anos 1950 e dos anos 1980. A Região
Metropolitana de São Paulo, ao término desse período, informam os autores, em
relação ao país, já dispunha de 36% do pessoal ocupado; 46% do total dos salários;
40% do valor de transformação industrial e dos investimentos de capital na
indústria, concentrando 70% do valor de transformação dos ramos de material de
transportes e elétrico; 60% dos produtos farmacêuticos e plásticos; 55% referente à
indústria mecânica, “além de presença significativa em quase todos os outros
ramos”. Para os autores, esse caráter atrativo do capital em São Paulo subordinou
as outras regiões do país aos pólos mais avançados de produção, estes por sua vez
liderados pela própria cidade de São Paulo e sua Região Metropolitana.
No campo do trabalho, no entanto, segundo Kowarick; Campanário, nesse
período, as consequências foram diametralmente outras. Todos os índices sociais,
como mortalidade infantil, analfabetismo, falta de saneamento e de rede de água
encanada e tratada para as populações trabalhadoras já eram nos anos 1980
extremamente muito superiores aos das duas décadas passadas. O salário mínimo
decresceu em termos reais entre 1959 e 1986 em cerca de 55%. “A acentuada
exploração da mão-de-obra torna-se evidente quando se tem em conta que quem
ganha, em 1986, 3,5 salários mínimos mensais dispendia um número de horas
245
equivalentes para adquirir a mesma cesta alimentar em relação ao poder compra de
um salário mínimo do final dos anos 50”, informam. Os dados sobre a força de
trabalho que não conseguia obter ocupação também eram surpreendentes e
crescentes. No final de 1983, já se chegava à casa de 1,5 milhão de desempregados
na Grande São Paulo, correspondendo a 20% do total da população
economicamente ativa, segundo os autores. “É conveniente relembrar: nestas
partes do globo é a própria classe trabalhadora – e não o Estado – quem precisa
sustentar aqueles que foram alijados do processo produtivo”, ironizam.
Se nos anos da industrialização de São Paulo da virada do século XIX para
o XX até os anos 1920 foram concomitantemente abertos espaços para a política
sindical frente ao poder patronal e do Estado, com destaque para movimentos
anarquistas dos imigrantes, como mostra Ronik (1988, p. 75-93), e em seguida
instaurado o populismo que promove a derrocada do poder das oligarquias rurais,
estando, portanto, este movimento associado à urbanização, em meados do século
XX, uma nova conformação histórica do capitalismo exige nova ordem política
para continuar a se desenvolver com seu caráter contraditório. São Paulo torna-se
então no lugar onde um novo pacto das elites irá acomodar economicamente tal
conformação e também fazer gerar posteriormente as mais fortes reações aos seus
desígnios.
O golpe de 1964 representou a emergência de um poder
autoritário que, ao controlar e reprimir as organizações populares,
transformou a Metrópole num lócus, mais do que nunca, ditado
pela lógica do lucro, investindo massivamente para acelerar a
acumulação do capital e privilegiando os estratos mais ricos da
população. Mais do que nunca, São Paulo tornou-se numa cidade
segregada, pois as políticas públicas foram canalizadas para uma
transformação urbana que beneficiou as camadas de médio e alto
poder aquisitivo, ao mesmo tempo que continuavam a se
reproduzir as múltiplas periferias desprovidas de serviços básicos
e em que as favelas, até então quantitativamente insignificantes
246
em São Paulo, passaram a crescer aceleradamente (KOWARICK;
BONDUKI, 1988, p. 134).
Os autores destacam que, nesse sentido, a partir do ano seguinte ao golpe
militar, São Paulo já passou a receber fortes investimentos que modificaram o seu
espaço urbano de maneira extremada. Um dos exemplos dessa política foi aquela
adotada pelo e a partir do prefeito Faria Lima. O conjunto dessas políticas públicas
gerou inúmeras vias expressas, pontes, viadutos alargamento e abertura de novas
avenidas “destinado a criar um sistema viário capaz de receber uma frota que
aumentou, num período de 20 anos, de 160 mil veículos na Capital em 1960 para
mais de 2 milhões” (KOWARICK; BONDUKI, 1988, p. 148).
Mas se os investimentos privilegiavam o capital, servindo para ele
promover o receptivo de insumos e o escoamento da produção, além de priorizar o
transporte particular, a classe trabalhadora amargava ter que conviver com o
desafio crescente de se deslocar de forma precária e igualmente insuficiente através
do transporte de massas. Essa forma se dava basicamente através de ônibus e de
trens de subúrbios superlotados, desconfortáveis, pingentes, atrasados. “Em 1968,
ocorriam 7 milhões de deslocamentos diários na RMSP, montante que, em 1982,
subia para 17,6 milhões, sendo que cerca de 60% das viagens eram realizadas em
ônibus e trens”, afirmam Kowarick; Bonduki (1988, p. 148). O ônibus, aliás,
permitiu também a periferização, em cujo processo, com a injeção do Estado em
benfeitorias, o valor da terra, mesmo distante, alcançou valores inacessíveis à
classe trabalhadora. “De fato,” – dizem Kowarick; Bonduki (1988, p. 149) –
“enquanto o valor dos salários se reduziu à metade entre 1959 e 1978, o preço do
metro quadrado de terreno, neste período, chegava quase triplicar” – completam.
247
Além desses problemas para a classe trabalhadora, outros que foram
surgindo e/ou se multiplicando no período, alguns aqui inclusive já citados,
elevaram o grau de reivindicação por melhores condições de vida, de trabalho e de
participação política. O Estado autoritário, por sua vez, no âmbito de São Paulo,
volta-se para atender algumas dessas demandas como forma de manter a sua
legitimação. Assim ocorre de tal forma que, nos anos 1970, quando alguns índices
sociais alcançam níveis mais agudos, como, por exemplo, relativamente à falta de
moradia, a Companhia de Habitação do Estado de São Paulo (Cohab/SP) mais
volta-se para o financiamento/construção de moradias para as camadas com renda
de até cinco salários mínimos. Isso ocorreu porque, na cidade de São Paulo, o
governo estadual, dizem Kowarick; Bonduki (1988, p. 152), “que permaneceu nas
mãos da Arena [Aliança Renovadora Nacional] depois transformada em PDS
[Partido Democrático Social], até 1982, não podia mais ignorar as reivindicações
da população (...), mesmo porque precisaria do voto popular para vencer as
eleições, e, para tanto precisavam alterar o caráter excludente das políticas
públicas”.
Ao nível federal também não foi diferente: quando se acirra a repressão do
poder estatal e a classe trabalhadora reage com alguma pressão sindical e popular,
aquiesce o poder em realizar eleições diretas para renovação das Assembléias
Legislativas, Câmara Federal e um terço do Senado. Chega a permitir a realização
de debates pela televisão. E em São Paulo ocorre um famoso: entre o candidato
governista Carvalho Pinto, tido como favorito, e o da oposição, Orestes Quércia,
que inverte o favoritismo e consegue vencer. Nessas eleições, entretanto, o governo
federal amarga uma derrota histórica. No Senado, das 22 cadeiras em disputa, o
248
Movimento Democrático Brasileiro (MDB) arrebatou 17. Na Câmara Federal, o
MDB conquistou 160 cadeiras, aproximando-se da Arena, que ficou com 204
vagas. Nas Assembléias Legislativas, fez um total de 330 cadeiras, contra 457 da
Arena.
O movimento popular e sindical pela redemocratização, assim, com apoio
da Igreja, Imprensa e outras entidades, iria evoluir desde então até desembocar
num movimento operário sem precedentes na história do país a partir de 1978 – e
para o qual São Paulo estará no centro dessa transformação.
Deve-se dizer que essas transformações não foram gratuitas: elas estão
ligadas à crise do capital internacional. Durante o chamado “milagre econômico”,
ocorrido entre 1969 e 1973, o país teve uma média de crescimento do Produto
Interno Bruto (PIB) de 11,2% e uma inflação média anual de 18%, segundo
Romancini; Lago (2007, p. 136). Sabemos que nesse período a disponibilidade
externa de capital e a determinação dos governos militares de investirem pesado
para fazer o país uma “potência emergente” viabilizaram, ao custo de um
endividamento sem lastro, pesados investimentos em infraestrutura, nas indústrias
de base e de transformação, de equipamentos, de bens duráveis e na agroindústria
de alimentos. Muitos desses investimentos se concentraram em São Paulo e Região
Metropolitana.
Em 1973, porém, o país sofreu um duro golpe em sua economia. A crise
mundial de petróleo e alta internacional nos juros desaceleram a expansão
industrial. Inicia-se uma conjuntura extremamente desfavorável que leva o país, na
década de 1980, a desequilíbrio do balanço de pagamentos e ao descontrole da
inflação. O Brasil nessa década, exatamente por isso também chamada de “A
249
década perdida”, mergulha numa longa recessão e em dias de dúvidas e de
incertezas que, se por um lado praticamente bloqueiam a sua produção industrial,
por outro produz uma grave crise política necessária à transformação democrática,
que levará o país a se inserir mais acentuada e traumaticamente nos circuitos de
produção e das finanças do mercado internacional. Umas das principais portas
dessas exigências de remodelação política e de inserção internacional pós-década
de 1980 é a cidade São Paulo. Cidade em cujo contexto e transcurso históricos,
analisaremos, a seguir, os nossos objetos de estudo: a Folha de São Paulo,
enquanto capital, e a sua relação com a sua mão-de-obra especializada, a categoria
dos jornalistas.
4. Folha versus jornalistas: (im)pressões e (ex)pressões na metrópole
Quem chega hoje à cidade de São Paulo dificilmente deixa de ver ou de
saber sobre o seu mais recente e fabuloso marco de concreto e aço. Uma ponte
inaugurada em 2008 tem três vias em níveis diferentes, sendo duas pistas estaiadas,
com 990 metros de comprimento cada uma, em curvas independentes de 60º,
cruzando o rio Pinheiros, no bairro do Brooklin, valorizando ainda mais um bairro
já voltado para o capital. A ponte, uma das cinco mais altas construções da cidade,
possui um mastro em forma de X, com 138 metros de altura, equivalente a um
prédio de 46 andares, de onde partem 144 estais, com 462 toneladas de aço
trançado que suportam as duas pistas. A torre do mastro poderá em breve ser
transformada num restaurante-mirante. A estrutura à noite é iluminada por um
sistema informatizado da empresa holandesa Philips, em que se misturam as cores
250
vermelho, azul e verde. A obra, do arquiteto João Valente Filho, construída pela
OAS, começou a ser erguida em 2003, consumiu 59 mil metros cúbicos de
concreto e envolveu cerca de 500 operários. Ela já foi cenário de alguns filmes
antes mesmo de ser concluída; em abril de 2010 serviu de palco para mais de 20
mil atletas que participaram da XVI Maratona Internacional de São Paulo,
transmitida ao vivo para todo mundo; e agora serve de cenário para alguns
telejornais locais e nacionais. O conjunto da obra é denominado Complexo Viário
do Parque e a ponte, que se liga à Avenida Jornalista Roberto Marinho, fundador
da Rede Globo, foi batizada de Ponte Jornalista Octavio Frias de Oliveira. Mas
quem foi o jornalista Octavio Frias de Oliveira para merecer tal comenda do capital
urbano? O que fez e representou ele que recebe também, quando ainda vivo
(faleceu em 2007), em 3 de maio de 2006, das mãos do governador Cláudio
Lembo, ou seja, do capital político, o Prêmio Personalidade do Ano da
Comunicação no Centro de Convenções Rebouças, em São Paulo? Quem é esse
cidadão que poucos dias após esse evento, mais exatamente no dia 28 do mesmo
mês de maio, recebe as felicitações pelo prêmio, em sua própria casa, e
pessoalmente, do presidente da República, Luís Inácio Lula da Silva, ex-torneiro
mecânico e ex-líder sindical forjado no ABC Paulista, ou seja, ex-representante da
mão-de-obra produtiva da cidade, da RMSP e hoje a mais alta autoridade do país?
O desenvolvimento político e urbano de São Paulo não iria colocar um
nome numa obra viária expressiva nem entregar um prêmio de tamanho
reconhecimento oficial e simbólico sem uma justificativa para o seu próprio
desenvolvimento econômico e social. É verdade: Octavio Frias de Oliveira foi mais
para o capital que um simples dono de jornal, a Folha de São Paulo – o que por si
251
somente já seria por demais importante em se tratando do que é hoje e aquilo que
representa historicamente esse empreendimento enquanto veículo de Comunicação
Social para São Paulo e para o país. Octavio foi um protagonista do crescimento
urbano da cidade e do capital financeiro/empresarial. Defensor da livre-iniciativa
nos moldes americano, era, também por isso, um dos mais finos representantes da
classe superior, da elite empresarial, política e burguesa de São Paulo. Pertencia,
portanto, à classe dominante brasileira, cuja função maior era produzir idéias
consumíveis nos mercados local, nacional (principalmente) e internacional.
Noutras palavras: produzir ideologia. Produzir ideologia para toda a sociedade
brasileira da classe dominante e do modo de produção capitalista, cujo objetivo não
deixaria de ser também a sua grande fonte de lucros e de riquezas – afinal, com o
seu conglomerado, era o que passou a se chamar exatamente a partir dos EUA, país
de sua admiração, de “magnata da comunicação” ou, à la brasileira, de “barão da
mídia”. E assim, como grande capitalista da mídia nacional, servia e representava a
classe dominante, mesmo se opondo humildemente a esse epíteto. Daí a sua
importância. Para o capital e para o urbanismo. Para a política e para a forma de
produção social e econômica de São Paulo e do Brasil. Uma importância, contudo,
não sem uma trajetória e um sentido históricos.
Paschoal (2007, p. 12), biógrafo autorizado de Octavio Frias de Oliveira e
um dos ex-integrantes da Folha de São Paulo, transcrevendo declaração do filho
do empresário, Otávio Frias Filho, hoje sucessor e presidente do Grupo Folha, no
qual figura como diretor da FSP, nos diz que Octavio Frias de Oliveira “pertence
(e graças à longevidade é um dos poucos remanescentes) a uma geração de
empresários modernizadores que se projetou no pós-guerra (1945)”. Esses
252
empresários, ainda segundo Paschoal, “foram pioneiros, self-made men, homens
dedicados a uma disciplina de trabalho, poupança e reinvestimento”. E continua:
“Foi a primeira geração de empresários brasileiros cuja inspiração eram os Estados
Unidos, não mais a Inglaterra. Foi também a primeira a empregar métodos
racionais de administração, tais como planejamento associado a metas
predefinidas, controle de custos, treinamento de pessoal, uso intensivo da
publicidade etc.”. Ainda de acordo com as declarações de “Otavinho”, sobre o
caráter empresarial do pai (e aqui temos uma revelação importante), transcritas por
Paschoal,
Nos anos 40 e 50, seu pai “esteve no âmago de duas atividades
modernizadoras. Uma delas foi a das grandes incorporações
imobiliárias, das quais o símbolo em São Paulo seria o Copan. O
país começava a contar com um sistema bancário integrado e
forte, apto a financiar projetos que se beneficiavam da
urbanização acelerada. Não discuto os efeitos positivos e
negativos dessa urbanização às vezes desenfreada, mas não tenho
dúvida de que ela teve função de relevo na modernização do
Brasil. A outra atividade inovadora foi a do então incipiente
mercado de títulos, a que meu pai se dedicou por meio de uma
pequena empresa chamada Transaco. Essa empresa foi uma
espécie de plataforma de empreendimentos posteriores, como a
estação rodoviária e a Folha (PASCHOAL, 2007, p. 12-13).
De fato. Octavio Frias de Oliveira, nascido em 5 de agosto de 1912 em
Copacabana, descendente por parte do pai dos barões de Itaboraí e Itambi, duas
grandes fortunas do Rio de Janeiro, políticos influentes do Segundo Reinado e
fundadores do Banco do Brasil, e por parte da mãe do industrial do setor têxtil
Jorge Street, teve que se mudar ainda criança com sua família do Rio de Janeiro
para o interior de São Paulo, em função do pai, magistrado, mas sem grandes
posses como os antecedentes, ter que ocupar subsequencialmente várias comarcas,
a partir de quando o garoto começou a trabalhar na cidade, depois o jovem a fazer
fortuna e por fim o adulto a influenciar no desenvolvimento urbano da São Paulo.
253
Inicialmente trabalhou na Companhia de Gás de São Paulo aos 14 anos de idade
graças à influência de um tio. Destacou-se como funcionário. Aos 19 já estava na
Recebedoria de Rendas, repartição da Secretaria da Fazenda do Estado. Aos 20
anos afasta-se do serviço público para participar da revolução Constitucionalista de
1932.
De volta ao emprego, transformava-se em alto funcionário público. Com
certo poder, habilidade e influência por trabalhar com numerários e um excelente
salário. Em função disso, foi convidado, através de Américo Portugal Gouvêa,
irmão do próprio diretor-geral da Secretaria da Fazenda, Sebastião Américo
Portugal Gouvêa, em 1946, quando já se encontrava com 34 anos de idade, para
fazer parte da direção de um banco que estava sendo fundado “por um grupo de
amigos”. Dentre esses amigos estavam o empresário e corretor de imóveis
Orozimbo Roxo Loureiro, o próprio diretor-geral da Secretaria da Fazenda
Sebastião Américo Portugal Gouvêa e aquele que seria o diretor-presidente do
banco, Aristides Castro Andrade. No Banco Nacional Imobiliário (BNI) Octavio
assume o cargo de diretor e passa a ter 10% das ações. O diretor Octávio pede
demissão do cargo público, ajuda na fundação do banco por dois anos, momento
em que conhece o então diretor-proprietário da Folha de São Paulo, José
Nabantino Ramos.
Aqui devemos abrir um parêntese para memoriar elementos históricos
antecedentes no sentido de compreender então o que representou esse encontro
inicial entre esses dois agentes econômicos, bem como as ações de ambos a partir
daí, tanto para eles próprios, como capitalistas em busca de ascensão, quanto para o
desenvolvimento urbano de São Paulo até o presente. O jornal Folha de São Paulo,
254
de acordo com os historiadores Mota; Capelato (1980), que escreveram História da
Folha de São Paulo (1921-1981), quando foi fundado em 19 de fevereiro de 1921
pelos jornalistas Olival Costa e Pedro Cunha, com o nome inicial de Folha da
Noite, o jornal, em meio às perturbações do fim da Primeira Guerra Mundial e da
agoniação da Primeira República, tinha o perfil cívico/crítico e se inclinava para os
trabalhadores assalariados urbanos. Voltava-se prioritariamente para os imigrantes
e para as classes populares, aí inclusos os operários, pequenos comerciantes,
artesãos etc. Nasce às vésperas da Semana de Arte Moderna, o que vai influenciar
valorativamente na cultura autóctone; quando o profissional da imprensa passava
por grandes questionamentos, inclusive do mundo literário, quanto ao seu papel
frente à realidade objetiva; e quando o jornalismo se modernizava através da busca
de implantação de novas tecnologias, habilidades e procedimentos profissionais.
Vem dessa época, em que o povo, e em particular o cidadão comum e
urbano de São Paulo, era retratado na Folha da Noite através do personagem Juca
Pato, criado pelo pintor, cronista, ilustrador e caricaturista Belmonte (Benedito
Carneiro Bastos Barreto) em 1925. Juca Pato era um pequeno burguês, vestia terno
e gravata, expressando um autêntico white-collar, não-massificado, porém
perplexo com o mundo e mordaz com os poderosos, conforme destaca Paschoal
(2007, p. 27). Juca Pato, careca “de tanto levar na cabeça”, cujo lema era “podia
ser pior” e encarnando assim a classe média paulistana, fez tanto sucesso junto à
população “que sua popularidade podia ser comprovada nas ruas: havia o nome
e/ou a imagem dele ilustrando bar e restaurante, marca de cigarro, graxa de sapato,
vinho, água sanitária, pacote de café, balas, aperitivo e até letra de samba (FOLHA,
2010). “A figura de Juca Pato, expressão de São Paulo na Primeira República,
255
traduzirá essa personagem irônica e indefinida, cheia de contradições (...)
imobilidade social e insegurança”, afirma Paschoal (2007, p. 27). O personagem
ainda hoje é reconhecido por aquele que foi talvez o último empréstimo de seu
nome, o Prêmio Intelectual do Ano Juca Pato, criado em 1962 pela União
Brasileira dos Escritores (UBE), um dos maiores prêmios literários do Brasil desde
então. A Folha da Noite exercia assim com Juca Pato um “fiscalismo” em relação
ao Estado sob uma visão urbana e em defesa do paulistano médio. “Com efeito, o
novo órgão de imprensa procurava expressar o ideário das classes médias urbanas
desse período, caracterizado por um pálido reformismo, pelo fiscalismo, pelo
urbanismo”, afirmam Mota; Capelato (1980, p. V).
O vespertino dessa forma cresce e em 1º de julho de 1925 lança uma outra
edição, agora matutina, denominada Folha da Manhã. Os dois jornais estruturam-
se como empresa que passa a se chamar Empresa Folha da Manhã Ltda. a partir de
20 de janeiro de 1931, exatamente quando do nascimento da Segunda República e
após a Revolução de 1930 (momento em que o jornal chega a ser empastelado).
Nasce assim com os novos tempos uma nova fase das Folhas, como viriam a ser
chamadas as duas edições. “Nessa segunda fase, que vai de 1931 a 1945,
coincidindo com a República Nova (1930-1937) e o Estado Novo (1937-1945), as
Folhas se definiram como um jornal de defesa de um certo setor da classe
dominante – os cafeicultores, tendo no agrarismo o seu traço mais definidor. Seus
dirigentes defendem “um projeto de desenvolvimento capitalista no campo”,
explicam Mota; Capelato (1980, p. VII). Nessa segunda fase do jornal, que os
historiadores chamam de “burguesia afazendada”, surge a figura de Octaviano
Alves de Lima. Ele adquirira o jornal em 1931 após o seu empastelamento e com
256
as dificuldades daí decorrentes. Após desistir do empreendimento, em 1945,
Octaviano Alves de Lima, filho de uma família tradicional e agrária, repassa o que
denominava de “a voz da lavoura” para novos sócios, dentre os quais José
Nabantino Ramos.
Com Nabantino, o jornal ingressa numa terceira fase, conforme classificam
Mota; Capelato. A linha editorial dos jornais aos poucos vai mudando. Volta-se
novamente para o seu papel de fiscalizador do Estado e de defensor das classes
sociais médias de São Paulo. A empresa passa a se chamar Empresa Folha da
Manhã S/A. Em 1º de janeiro é criado mais um jornal, a Folha da Tarde – que,
depois de fechado, viria a ser ressuscitado por Octavio Frias e escreveria uma
página triste durante o regime militar (1964-1985), como veremos. Mas em 1º de
janeiro de 1960 as três edições (manhã, tarde e noite) são unificadas sob um novo
nome, Folha de S.Paulo (escrito assim mesmo: com o esse abreviado (S.) e unido
ao pronome do santo (Paulo) que dá nome à cidade, forma preservada até hoje).
“Caracteriza-se também pelo urbanismo, mas a modernização, a racionalidade, a
eficiência no desenvolvimento, o planejamento são agora a tônica do jornal”,
asseguram Mota; Capelato (1980, p. VII). “As Folhas haviam se tornado uma
empresa moderna”, complementam os historiadores. E graças a José Nabantino
Ramos – exatamente aquele que Octavio Frias Filho viria conhecer quando da
fundação do seu banco, o BNI, em 1947-1948.
O diretor José Nabantino Ramos e o empreendimento Folha de São Paulo,
Frias conheceu pessoalmente através de um dos sócios de Nabantino, Clóvis
Queiroga, por sua vez cunhado de Frias. Ambos, Frias e Nabantino, a partir daí
passaram a fazer vários e importantes negócios envolvendo o banco e o jornal:
257
essencialmente relações de produção capitalista com impactos ideológicos e
urbanos. De tal forma que um dos endereços mais conhecidos da mídia nacional na
cidade de São Paulo, o do próprio jornal, à Rua Barão de Limeira, iria se marcar
física e morfologicamente no imaginário e na prática vivencial de inúmeros
jornalistas, políticos, cidadãos e leitores da Folha de São Paulo até o presente a
partir desse relacionamento e dos negócios comerciais que ambos realizaram,
quando Octavio, conforme garante, sequer suspeitava que um dia viria adquirir o
empreendimento: foi exatamente ele, Octavio frias, quem vendeu para Nabantino o
prédio da Barão de Limeira que até hoje abriga o jornal e que um dia iria comprar
de volta.
Depois que o BNI já estava funcionando, fizemos vários
negócios. Eu vendi para o Nabantino o prédio da Alameda
Cleveland, quase esquina da Alameda Nothmann, para onde se
mudaram, em 1950, a redação, administração, publicidade e
composição. Depois vendi para ele o prédio da Alameda Barão de
Limeira, que ia até a Barão de Campinas, para onde a Folha se
mudou em 1953. Assim, comecei a freqüentar a Folha, fiz
algumas operações de crédito para a empresa, que sempre pagou
tudo direitinho (FRIAS apud PASCHOAL, 2007, p. 69).
Foi também através do Banco Nacional de Investimentos que Octavio Frias
conheceu um dos mais importantes arquitetos do século XX, Oscar Niemeyer,
autor do projeto da Pampulha, em Belo Horizonte, e da primeira cidade moderna e
planejada do Brasil, Brasília. O BNI incorporava e/ou construíra vários prédios
importantes no centro de São Paulo, conforme afirma Eduardo Queiroga, filho do
sócio de José Nabantino Ramos, Clóvis Queiroga, e sobrinho de Octavio Frias
(PASCHOAL, 2007, p. 72-73), como um prédio grande no Largo do Arouche e o
Residencial Vila Normanda, situado na esquina da Rua São Luís com a famosa
Avenida Ipiranga. Porém, dentre essas várias obras, destaca-se aquela que hoje é
um dos emblemas do crescimento urbano, da dinâmica da verticalização citadina e
258
da modernidade em concreto de São Paulo, o edifício Copan (acrônimo de
Companhia Pan-Americana de Hotéis), concebido pelo arquiteto contratado por
Octavio através do BNI, Niemeyer. Tanto é importante que o Copan, com sua
imponência, geometria sinuosa, em formato de esse (S), elemento típico de um
arquiteto que preferia a curva à linha reta, tem um site na internet
(), figura na Wikipédia
() e sempre ilustra várias
referências à cidade de São Paulo, como, por exemplo, a capa de um dos livros
mais citados no presente trabalho, o de Rolnik, coincidentemente, ou não por
acaso, publicado por uma das empresas do hoje Grupo Folha, a Publifolha. Nesse
aspecto, afirma Paschoal:
Mas, sem dúvida, entre os prédios construídos na época o mais
famoso é o Copan, um dos maiores símbolos e cartões-postais de
São Paulo, localizado na Avenida Ipiranga. Foi aí que Frias, em
meados de 1950, resolveu trazer Oscar Niemeyer, que já era um
arquiteto de renome, para São Paulo. Niemeyer projetou a Galeria
Califórnia, na Rua Barão de Itapetininga, e o edifício Montreal,
entre 1950 e 51; o Copan e o Triângulo, em 1952; o Eiffel, na
Praça da República, entre 1952 e 53; e outro na Rua Direita, que
foi a antiga sede das Indústrias Matarazzo, quando a empresa saiu
da Rua Direita e foi para o viaduto do Chá. O prédio foi
comprado pelo BNI e ali foi feito um projeto do Niemeyer
(PASCHOAL, 2007, p. 73).
É importante dizer aqui como o BNI foi capitalizado. Revela-nos os
anseios e uma das formas de agir dos capitalistas urbanos na São Paulo em
desenvolvimento, ao qual iria continuar influenciando através de financiamentos,
incorporações e construções prediais e viárias, e somente através de tal forma iria
lhe ser permitido a aquisição do jornal Folha de São Paulo. Octavio revela a
Paschoal que, quando da fundação do banco, não tinha dinheiro para investir no
novo empreendimento. Entrou por conta de habilidades e conhecimento. Ao que
259
parece, os demais sócios também entraram com poucos recursos na empresa: o
dinheiro dos investimentos foi todo representado pelas garantias dadas pelos
próprios tomadores de empréstimos e o aporte foi feito pelos acionistas que
conseguiram amealhar através da venda de títulos de créditos que emitiram no
mercado financeiro tendo como base essas mesmas garantias dos clientes. Senão
vejamos, segundo as palavras do próprio Frias Paschoal (2007, p. 70): “a filosofia
do negócio era a seguinte: o cliente dava um imóvel em hipoteca ao banco. O
banco avaliava o imóvel e dava o dinheiro ao cliente. Mas como o banco obtinha
fundos para fazer essas hipotecas? Com base na hipoteca recebida, o banco emitia
debêntures garantidas pela hipoteca e colocava as debêntures na praça”. Atuando
também como agente imobiliário, o BNI chegou a ter 46 agências na capital
paulista – e continuava a decisivamente promover o desenvolvimento vertical e
urbano de são Paulo, inclusive com a construção de condomínios residenciais.
Paralelo ao banco, Frias abriu a Transaco, empresa de sua propriedade que
instituiu exatamente para atender a uma das propostas de Nabantino: vender
assinaturas perpétuas a leitores como títulos que iriam imobilizar 10% do capital da
empresa jornalística. A Transaco, favorecida pelo crescimento urbano e
empresarial em São Paulo, chegava a vender 300 assinaturas dessas por mês. E foi
exatamente através da Transaco, vendendo outras formas de títulos no mercado,
que Frias conheceu políticos importantes, como governadores e donos de jornais e
de bancos, como Carlos Lacerda, governador do Rio e dono do jornal Tribuna da
Imprensa; Jânio Quadro, prefeito e governador de São Paulo e depois presidente da
República; e Gastão Vidigal, dono do Banco Mercantil de São Paulo. Foi também
através da Transaco que ele se estruturou para realizar uma das maiores obras de
260
então em São Paulo, a Estação Rodoviária, e em seguida fazer uma das maiores
transações no mercado da mídia da cidade de São Paulo, a aquisição da Folha de
São Paulo. A esse respeito, nos diz Paschoal:
O país começava a contar com um sistema bancário integrado e
forte, apto a financiar projetos que se beneficiavam da
urbanização acelerada. Claro que podem ser levantados efeitos
positivos e negativos dessa urbanização às vezes desenfreada,
mas ela teve função de relevo na modernização do Brasil. A
segunda atividade inovadora de Frias foi a do então incipiente
mercado de títulos, à qual ele se dedicou por meio da Transaco. E
a empresa foi uma espécie de plataforma de seus
empreendimentos posteriores, como a estação rodoviária e a
própria Folha (PASCHOAL, 2007, p. 95).
Com a quebra do BNI, em função de desarranjos internos, e no qual por isso
interveio o governo, que posteriormente o vendeu ao banqueiro Amador Aguiar,
dono do Bradesco S/A – que de maneira ousada e inédita ampliou o número de
agências para o interior, sob a batuta de popularização dos serviços e produtos
bancários, um marco na história dos especuladores, financistas e banqueiros do
país –, Octavio Frias, depois de um período “quebrado”, começou a se reergue. O
seu soerguimento se deu, segundo diz, exatamente com a Transaco, fazendo
inclusive a especulação ilegal, comum aos capitalistas ao mesmo tempo inauditos e
sem escrúpulos, ou seja, os de natureza crematística. “Se o negócio é ganhar
dinheiro, eu vou mesmo. E eu era impiedoso. Aplicava dinheiro a juros, sim,
senhor. Era usurário, cobrava 3% ao mês [risos]. Esse crime de usura eu pratiquei
muito... Eu estava ficando rico mesmo, por cima da carne-seca. Para mim era
muito dinheiro, eu estava independente já”, afirmou em seu depoimento para
Paschoal (2007, p. 98).
Após este memorial, e fechando o parêntese acerca do desenvolvimento
histórico/urbano de São Paulo e daquilo que elevaram Octavio Frias de Oliveira à
261
qualidade de capitalista bem-sucedido na cidade, chegamos aqui mais bem
embasados ao início do período no qual pretendemos explicitar e entendermos
melhor a relação entre a classe produtiva jornalística e o empreendimento Folha de
São Paulo. O ano é de 1960. O jornal adota uma novidade logo em 1º de janeiro: a
Empresa Folha da Manhã passa a englobar sob um único nome – Folha de São
Paulo –, as Folha da Manhã, Folha da Tarde e Folha da Noite. Ocorre também
outro acontecimento que iria influenciar um setor da área urbana da cidade voltada
para o fluxo de pessoas, bem como marcar o destino ideológico da Folha no fazer
jornalismo em São Paulo para esta cidade e para o país. Ao mesmo tempo em que
investe no então incipiente agronegócio, chegando a ser proprietário de uma
empresa avícola com cerca de dois milhões de aves, Frias se associa a Carlos
Caldeira Filho – aquele com quem iria voltar-se em exploração da classe
trabalhadora citadina e do próprio jornal. Caldeira, descendente de uma tradicional
família da cidade de Santos/SP, havia sido cobrador e administrador de obras no
BNI. Com ele foram erguidos mais de dez prédios de condomínios em São Paulo
financiados pelo banco. Com a extinção do BNI, continuou no mercado imobiliário
e da construção civil. Com recursos públicos, emprestado através do Banco do
Estado, autorizado pelo governador Carvalho Pinto, a sociedade entre ambos se
firmou. Assim construíram a Estação Rodoviária de São Paulo para atender a uma
demanda crescente e de passageiros que vinham principalmente do interior. O
jornal O Estado de São Paulo questionou o envolvimento do governador Carvalho
Pinto, o empréstimo feito pelo governo, o terreno, a autorização para construção da
obra feita pelo prefeito Adhemar de Barros, a construção do empreendimento e a
posterior exploração da prestação de serviços e de uso da rodoviária feita pelos
sócios Frias/Caldeira. Uma enorme polêmica se instaurou. “O Estado de São Paulo
262
conseguiu convencer os leitores que nós tínhamos construído em terreno público,
através de uma negociata com o Adhemar”, reclamou Frias, segundo Paschoal
(2007, p. 106). Apesar disso, continuaram com a posse e a exploração do
empreendimento. Rios de dinheiro ganharam com a rodoviária.
A aquisição da Folha de São Paulo se deu após Nabantino enfrentar uma
forte greve em 1961 dos profissionais de imprensa. Não aceitou aquilo. Uma greve
que ficou na história da imprensa de São Paulo. Os jornalistas buscavam melhores
condições de trabalho e de níveis salariais. Ficou famosa nessa época a frase “a
nossa situação salarial é horrorosa”. A fama da greve também se deu pela reação
violenta da burguesia paulista através do poder de polícia do Estado, mas que
enfim se tornou vitoriosa, como relembra um dos diretores (secretário-geral) da
Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), João Antônio Mesplé:
Ainda em janeiro os jornalistas de São Paulo, sob o comando de
seu Sindicato, entram em greve e conseguem paralisar o setor. A
reação patronal e a repressão policial foram particularmente
violentas. O presidente da Federação [Marcelo Coimbra Tavares]
desloca-se para a capital paulista onde, com o apoio do vice-
presidente Nabor Cayres de Brito, formula veemente protesto
junto às autoridades estaduais contra a violência desencadeada. O
movimento terminou vitorioso com uma decisão do Tribunal
Regional do Trabalho que atendia os principais reclamos dos
jornalistas (Mesplé apud Sá, 1999, p. 294-5).
Assim, Nabantino, “desgostoso”, decidiu vender o jornal, pois para ele, na
verdade, segundo podemos inferir com base nas várias pesquisas literárias que
fizemos sobre o fato, um acirramento da contradição entre capital x trabalho era
inaceitável (exatamente o contrário de como pensava e agiria dali por diante contra
a mão-de-obra produtiva da empresa Octavio Frias de Oliveira sendo dono do
jornal). Há, porém, uma explicação histórica para esse embate e ao nível em que se
deu em 1961 em São Paulo e em particular no jornal Folha de São Paulo. O
263
sindicalismo de São Paulo nasceu, principalmente no início do século XX,
marcado pela influência e iniciativas dos trabalhadores imigrantes da Europa, sob
forte ascendência comunista e anarquista. Mas em seguida se estrutura sob o
controle pernicioso do Estado, por volta de 1921, com a criação do Conselho
Nacional do Trabalho (CNT), depois com a publicação da Lei da Sindicalização,
em 1931, e depois com a chegada do Estado Novo, que promulga a Consolidação
das Leis do Trabalho (CLT), em 1943, que também, para controlar a imprensa e
produzir uma imagem favorável do governo, cria em 1939 o Departamento de
Imprensa e Propaganda (DIP), conforme nos mostra Sá (1999, p. 29-64). Nesse
período, vários sindicatos de jornalistas são criados em diversos Estados do país,
dentre os quais, um dos mais importantes, o de São Paulo, em 1937. Com efeito,
em 20 de setembro de 1946 é criada, a despeito de várias lutas, percalços, embates,
inclusive internos, o órgão máximo da categoria, a Federação Nacional dos
Jornalistas (Fenaj), com o apoio decisivo de outras entidades, como a Associação
Brasileira de Imprensa (ABI). “A despeito desse tenebroso quadro e vítima
histórica do cerceamento à livre organização, o jornalista brasileiro superou essas
barreiras e criou, a partir de [19]35, seus sindicatos, culminando a luta em [19]46,
com a Federação”, resume Sá (1999, p. 63). É interessante ressaltar aqui que, nesta
data, ou seja, 1946, a entidade passa a se chamar Federação Nacional dos
Jornalistas Profissionais, elemento sintomático de uma época: com as exigências
das novas tecnologias que acarreta a busca pelas novas habilidades e
conhecimentos, afora os preceitos humanistas e éticos, como o comprometimento
individual e coletivo da responsabilidade para com a sociedade, incluindo a criação
dos cursos superiores de jornalismo em universidades e faculdades, afirma-se no
interior da categoria a busca não só pela regulamentação profissional, mas também
264
pelo reconhecimento do valor do seu trabalho no processo produtivo. Algo que se
confronta diretamente com os interesses do capital. Não seria, portanto, à toa, que
nos fins dos anos 1950 e começo dos anos 1960, quando houvera terminado o
Estado Novo e começara uma nova transmutação no capitalismo nacional, em que
se sobressaem maiores considerações pelas liberdades e formas de expressão da
classe trabalhadora, uma greve fira os brios dos capitalistas que têm seus interesses
na mais-valia ameaçados. Mesmo que levemente ameaçados, como ocorreu com a
Folha de Nabantino. Daí, vendê-la lhe resguardaria não só os dedos, mas também
todos os anéis. O jornal, assim, é repassado para novas mãos.
Com o seu sócio Carlos Caldeira, ou seja, com a união entre o capitalismo
financeiro e o capitalismo da construção civil, Octavio Frias adquire a Folha de
São Paulo em 13 de agosto de 1962. Terminava ali o ciclo que procurou dar uma
visão empresarial numa sociedade de capitalismo industrial então nascente.
Começava o ciclo que Mota; Capelato chamariam de “Reorganização financeiro-
administrativa” dentro de uma perspectiva que iria imprimir certa “autonomia
financeira à busca de um projeto político-cultural” para a Folha de São Paulo.
Entendemos, porém, que foi muito mais que isso. Ou melhor: aprofundando essa
afirmação de Mota; Capelato, mas agora sob uma perspectiva teórica apropriada,
podemos dizer que é exatamente a partir desse momento que a Folha ingressa num
modo de fazer jornalismo que reflete a visão eminentemente dos campos do
capitalismo financeiro e empresarial de Frias e Caldeira. Um jornalismo que se
volta ainda mais tanto para a produção do jornal como mercadoria quanto no
investimento do dinheiro para a produção e reprodução acumulativa de capital.
Tudo com um sentido histórico definido: confrontar ainda mais direta e
265
tempestivamente a sua mão-de-obra produtiva com o intuito de, mesmo não
declaradamente e sob um manto ideológico através de uma produção alienante,
promover sobre essa mesma mão-de-obra produtiva uma maior e mais refinada
exploração da mais-valia para a consecução daqueles agora seus mais acirrados
objetivos – expropriação e entesouramento. O argumento do discurso dominante
para isso é um só: o da modernização. Qual seja: no aspecto ideológico seria o
mesmo que, a partir das ações e dos interesses dos EUA, levaria o jornal a apoiar,
tendo São Paulo como suporte, o golpe de estado em 1964, dado pelos militares e
políticos conservadores, sobre um governo federal que se apresentava inclinado à
classe trabalhadora. Mesmo que para isso o novo jornal se apresentasse, como de
fato se apresentou, como o grande arauto da liberdade de expressão e da liberdade
de imprensa. E como pioneiro, até. Para palmilhar esse caminho até os anos 1980,
porém, a Folha de São Paulo investe ainda mais nas novas tecnologias que exigem
da categoria produtiva novas e maiores habilidades, incluindo em sua pauta a busca
pela aceitação da classe mediana de São Paulo. Associa-se à elite dominante que se
apodera do poder estatal através do golpe militar e abandona esse projeto quando
as classes burguesas necessitavam de nova reforma estruturante para a
sobrevivência do capital. Ao fim, implanta um projeto de exploração “cultural” da
mão-de-obra inspirada no capitalismo financista e bancário em que os
trabalhadores devem, ao incorporar o feito e o feitor, serem seres autômatos de
uma cadeia produtiva que associa a rapidez, a eficiência e a precisão que se
originam dos preceitos e aplicações do fordismo e do taylorismo.
No aspecto político-nacional, quando da aquisição da Folha de São Paulo, o
país vivia, antes do golpe perpetrado pelos militares, uma polarização ideológica
266
que se refletia na própria constituição mandatária do poder federal. Se depois da
saída de Juscelino Kubitschek aquele que viria ser o primeiro presidente eleito a
ocupar o cargo máximo do país na nova capital federal, Brasília (cidade que
Juscelino junto com Niemeyer e Costa idealizaram/planejaram/construíram;
promoveram uma verdadeira epopéia histórica em vários aspectos e jamais vista no
Brasil central), foi um político ligado às elites de São Paulo, o incontroverso Jânio
da Silva Quadros, do Partido Democrático Cristão (PDC), apoiado por uma
coligação de partidos igualmente de direita (PTN-UDN-PR-PL), o vice deste, João
Belchior Marques Goulart, o “Jango”, originário do geopoliticamente antagônico
Estado do Rio Grande do Sul, através de sua legenda, o Partido Trabalhista
Brasileiro (PTB), no qual a sombra de Getúlio Vargas ainda se mantinha firme,
tinha ideias e alguns atos voltados para a classe trabalhadora, ao menos no aspecto
associativista. Uma cobra de duas cabeças, portanto.
No aspecto conjuntural a realidade não se apresentava diferente: também
era contraditória, como nos mostram Richard Romancini; Cláudia Lago (2007, p.
115). À esquerda havia os movimentos sociais em ascensão, como as ligas
camponesas a estruturar-se no Nordeste; as manifestações estudantis radicais
lideradas pela União Nacional dos Estudantes (UNE); parte do clero ou de grupos
ligados à Igreja como a Juventude Universitária Católica (JUC); grupos de
trabalhadores, especialmente os ligados aos setores públicos, que promoviam uma
série de greves, muitas das quais sob a orientação do Comando Geral dos
Trabalhadores (CGT). À direita, por sua vez, se organizavam e se articulavam,
inclusive com os militares, as elites através da Escola Superior de Guerra (ESG),
que pregava a “segurança nacional” e o progresso do país sob parâmetros
267
estritamente capitalistas; o Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais (IPES), criado
por empresários cariocas e paulistas; e o Instituto Brasileiro de Ação Democrática
(IBAD), “órgão que obteve recursos da Agência Central de Inteligência norte-
americana (CIA) para financiar suas atividades”.
O movimento entre essas duas oposições iria desembocar no golpe que
recebeu o apoio da maioria dos jornais, dentre os quais a Folha de São Paulo, logo
após a renúncia de Jânio e a ascensão de Jango à presidência, cuja gestão também
encontrara oposição na imprensa ligada às elites, como a Folha. “A Folha de
S.Paulo clamava, em editorial datado de 14 de março, pela intervenção das forças
armadas”, afirmam Martins; Luca (2006, p. 98), para em seguida transcreverem
parte do texto em que o jornal pedia a intervenção militar no governo, por conta de
um comício feito pelo presidente em 13 de março na Central do Brasil (RJ) através
do qual buscava o apoio para reformas então polêmicas que Jango defendia, como
reforma agrária, contenção dos aluguéis e extensão do direito de voto aos
analfabetos e praças. Dois dias antes do golpe militar, ainda segundo Martins;
Luca, o jornal volta à carga: condenava o que classificou de “quebra de hierarquia”
nas forças armadas, quando durante uma crise envolvendo marinheiros, estes
exigiram e conseguiram a deposição do ministro da Marinha, tudo por culpa de um
presidente que queria modificar o panorama econômico.
O episódio foi considerado pela Folha, no dia 29 de março de 1964, “como
uma capitulação”, com uma provocante ironiza: “A indisciplina saiu vitoriosa, e
aos indisciplinados só falta conceder medalha de hora ao mérito”, incitou a Folha,
segundo Martins; Luca (2006, p. 99). A partir daí, com o apoio da chamada grande
imprensa, invariavelmente ligada às elites, especialmente do Rio de Janeiro e de
268
São Paulo, o golpe pareceu inevitável e necessário. Tanto que quando ocorreu foi
saldado por quase toda imprensa escrita, exceção apenas do Correio da Manhã e o
Última Hora. Frias por sua vez não perdeu tempo: fez publicar, exatamente no dia
do golpe, 31 de março de 1964, sob o manto discursivo-ideológico de que a
liberdade de imprensa é essencial, a sua ode à liberdade de empresa,
especificamente de sua empresa, e posiciona estrategicamente a partir daí esse seu
empreendimento, através das matérias e editoriais, como “liberal-oligárquico” e ao
mesmo tempo “populista”, pechas do período conjuntural-político anterior, mas
que, naquela nova realidade, mostrava-se, com essa oscilação, como equilibrado e
mediano, ou seja, sintetizava-se num jornal de centro, e assim se (auto)proclamava
como baluarte e núncio do “liberalismo-democrático”, conforme Mota; Capelato
(1981, p. 194-195), do moderno, do novo e do avanço, alcançando dessa forma,
além da simpatia e aquiescência do poder, também grossas fatias de leitores da
classe média paulistana e nacional.
Mais do que isso. Até a década anterior, como mostra Abreu (2002), a
imprensa sobrevivia de favores do Estado e dos pequenos anúncios populares ou
domésticos e da publicidade de lojas comerciais. “Com a maior diversificação da
atividade produtiva trazida pela indústria, começaram os investimentos de peso em
propaganda e surgiram as primeiras grandes agências de publicidade”, diz Abreu
(2002, p. 9), que complementa: “Era preciso agora anunciar produtos como
automóveis, e eletrodomésticos, além de produtos alimentícios e agrícolas. Em
pouco tempo, os jornais passaram a obter 80% de sua receita dos anúncios”. Com
esse avanço, os proprietários de jornais, em sua grande maioria, ainda segundo a
autora, no final dos anos 1950 e especialmente a partir dos anos 1960, passaram a
269
adotar o modelo de jornalismo norte-americano em detrimento do modelo francês;
encamparam as idéias do liberalismo econômico; se identificaram com o ideário da
UDN, partido que junto com os militares conspirou para a deposição do presidente
João Goulart; abdicaram de sua crença na liberdade individual e aceitaram a
centralização do poder nas mãos dos militares golpistas, postos estes se
apresentarem contrários à interferência nos lucros, ao “perigo dos comunistas” e à
subversão”. Exatamente como fez os empresários Frias e Caldeira ao adquirirem o
jornal. Mas, mais ainda do que isso: o novo regime, ao mesmo tempo em que
censurava e cometia crimes contra os direitos humanos, investiu pesado no setor de
comunicação (em 1965 criou o Ministério das Comunicações e a Empresa
Brasileira de Telecomunicações (Embratel), mesma data de inserção no mercado
da TV Globo; e em 1972 criou a Telecomunicações Brasileiras S/A (Telebrás)) e
financiou direta e indiretamente a modernização dos meios de comunicação, em
nome da integração, integridade, unidade e desenvolvimento nacional.
Isso explica porque, para eles, essa modernização era parte de
uma estratégia ligada à ideologia da segurança nacional. A
implantação de um sistema de informação capaz de “integrar” o
país era essencial dentro de um projeto em que o Estado era
entendido como o centro irradiador de todas as atividades
fundamentais em termos políticos (ABREU, 2002, p. 15).
Nesse momento, o jornal Folha de São Paulo, que adquirira, desde a sua
passagem para as mãos de Frias e Caldeira, novas e rápidas máquinas de imprimir
e de cortar, possibilitando a antecipação do fechamento, da impressão e do
despacho do produtor industrial para o mercado consumidor, e ampliara a sua frota
de veículos de 25 para 165 (na década de 1980 chega a 340 veículos, que
percorrem mais de 980 mil km/mês, empregando somente no setor de transportes
aproximadamente 570 funcionários), segundo Mota; Capelato (1980, p. 199),
270
destinada a reportagens e principalmente às entregas do jornal, além de
implementar um vigoroso método de distribuição na cidade, no interior e até fora
do Estado, alcança logo nas primeiras horas dos dias várias cidades de São Paulo e
de outros Estados do país, suplantando uma prática anterior e principalmente os
concorrentes – dentre os quais O Estado de São Paulo, nomeadamente por Frias
como o seu principal inimigo no mercado. A estratégia é obviamente inspirada na
tática de interiorização e popularização do setor bancário, especificamente do
Bradesco de Amador Aguiar, que comprara o BNI inclusive com esse fim,
conforme vimos.
O jornal assim avança sobre mercado, alcança novos leitores e chega à casa
dos 160 mil exemplares em dia da semana mais a edição de domingo. Passa para
183 mil em dia da semana mais o domingo na década de 1970, e para 240 mil
somente em dias da semana e para 325 mil somente aos domingos na década de
1980. Com isso, o número de assinantes responde: salta em 1969 de 94 mil para
125 mil nos anos 1980, ainda segundo Mota; Capelato (1980, p. 199). Trata-se,
como se vê, das mudanças provocadas em um modo de produção específico pelas
novas tecnologias que iriam alterar as relações de produção e as próprias relações
de trabalho. Relações que iriam se tornar ainda mais críticas e complexas com a
introdução inédita para grandes tiragens no Brasil no final dos anos 1960 de outras
e mais ainda modernas tecnologias, como o avançado sistema de imprimir offset.
“O sistema era composto de 3 máquinas, de 8 unidades cada uma, num total de 24
unidades, pesando 300 toneladas”, relatam Mota; Capelato (1980, p. 200). Estes
autores, para darem a dimensão da grandiosidade e da importância dos novos
equipamentos e máquinas, complementam: “Chegara do Exterior no mês de maio
271
de 1967, via Rio de Janeiro, em etapas sucessivas, por navio. Os componentes da
Fotomecânica, um conjunto de aparelhos foto-mecânicos ultra-sensíveis, vieram
por via aérea da Itália, da Alemanha, dos Estados Unidos e da Inglaterra”.
O avanço no parque gráfico do Grupo Folha, assim, se assoberba de tal
forma que encontra inevitáveis resistências junto aos gráficos e jornalistas, não
pelo avanço tecnológico em si, quer dizer, por haver uma mudança relativa no
campo infraestrutural, mas pelas mudanças no caráter e no refinamento da
exploração no campo estrutural que provocava. Mudanças que contrariavam
fortemente direitos trabalhistas das duas categorias, alguns dos quais duramente
adquiridos junto às próprias instituições superestruturais da sociedade e até no
próprio âmbito da então economicamente já principal cidade do país. De tal forma
que o Sindicato dos Gráficos, acusada por um dos diretores do jornal de ser uma
“forte corporação medieval”, entrava em confronto direto da Folha: acusava a
exploração e cobrava respeito às leis e aos direitos por parte do jornal e das
autoridades. Assim também ocorreu com o Sindicato dos Jornalistas. Através dele
a categoria “peitava” o jornal e divulgava memoriais denunciando o Grupo Folhas,
como este, sob o título “Sindicato dos Jornalistas denuncia o Grupo Folhas”,
publicado exatamente no veículo mais concorrente e mais detestado pela cúpula da
empresa, o jornal O Estado de São Paulo, a 3 de abril de 1969. Nessa denúncia
consta, segundo Mota; Capelato (1980, p. 207), o seguinte: “Arrolavam-se
infrações desde a não-obediência da lei de cinco horas para jornalistas até
pagamento adicional de insalubridade aos revisores”.
O avanço tecnológico da Folha, a despeito dessas resistências, algumas
históricas, continua da década de 1970, com a aquisição de novas máquinas e a
272
desativação definitiva de práticas consideradas superadas, como a composição a
quente, ocorrida em 15 de janeiro de 1974, e chega aos anos 1980 com o poder de
transformação ainda maior, de tal forma que invade até o campo privado do
profissional: nessa década atinge o campo psicológico, comportamental e
linguístico do jornalista, através da concentração, admoestação e da racionalização
exacerbadas, a ponto de transformá-lo num ser autômato, via a defensoria de novas
práticas trabalhistas inéditas no país e inspiradas ainda mais no jornalismo norte-
americano, como o Projeto Folha, apontando sempre para um mesmo sentido: o
aumento da tiragem, da vendagem, dos lucros, enfim, o aumento do capital.
O Projeto Folha representou um marco na história da imprensa brasileira.
Talvez comparado somente às mudanças implementadas, especialmente no campo
estético, pelo Jornal do Brasil no final dos anos 1950 e início dos anos 1960.
Cantado e decantado em verso e prosa pelos seus autores e partidários, sofreu por
parte da categoria severas críticas, não raro ocasionando rupturas que demandavam
novas realidades, mesmo diante da aparente imutabilidade empresarial da Folha
em defender o seu novo ideário ético e trabalhista. Tratava-se tal projeto da
implementação, sob inspiração do jornalismo norte-americano, de regras tidas
como perfeitas, claras e inflexíveis, “criteriosamente” definidas, a maioria
recorrentes e providencialmente estabelecidas por escrito, no Manual de Redação
da Folha (1984), posto à disposição tanto para consultas e o seu régio
cumprimento, parte dos jornalistas que compunham a mão-de-obra da redação,
quanto, como um modelo educativo e/ou paradidático, para o seu público externo,
através de sucessivas e cada vez mais volumosas edições. O projeto, inclusive
gráfico, com ênfase na precisão, objetividade e didatismo, recebeu, além de seus
273
proprietários/idealizadores, também o apoio de adesistas, estes oriundos do seio da
própria classe trabalhadora, sendo o mais notável deles o jornalista Carlos Eduardo
Lins da Silva, também um de seus implementadores. A inspiração norte-americana
no Brasil, por exemplo, rendeu um estudo comparativo de Silva (1991), que ao fim
e ao cabo é apenas um trabalho ideológico: faz sem peias uma ode daquilo que se
copiou no Brasil, destacadamente por parte da Folha de São Paulo, que elogia de
maneira especial. A sua crítica resume-se às Escolas de Jornalismo no Brasil, onde
existe uma “pretensa visão crítica” e um “antiamericanismo primário”, “baseado
em leituras apressadas e atrasadas das teorias da Escola de Frankfurt ou do grupo
latino-americano de Armand Mattelart e Ariel Doffman”, assim também como aos
pioneiros dessa escola, como Luiz Beltrão e Mário Erbolato, que apenas
“reproduziram acriticamente” os “autores americanos ingênuos das décadas de
1930 a 1950”. E conclui Silva (1991, p. 86-87), agora em campo oposto, quando se
trata da cópia norte-americana (sociedade inclusive que elogia por sua democracia
e liberdade) feita pela Folha de São Paulo:
Não há exemplo mais acabado dessa situação do que o da Folha
de São Paulo. A leitura do Manual de Redação desse jornal e dos
estudos científicos que vêm sendo feitos a seu respeito [aqui cita,
primeiro, dentre os de outros autores, um trabalho dele, Mil Dias],
mostram com clareza indiscutível que se tem ali um caso de
influência consciente, não-ocasional, do jornalismo americano
sobre o brasileiro. Uma diferença notável em relação ao que
acontecia quando os primeiros agentes começaram a atuar.
O mesmo Silva se encarregou de contar, na obra Mil Dias, e depois recontar
em Mil Dias: Seis Mil Dias Depois (SILVA, 2005), como e por que ocorreu a
implantação do Projeto Folha, entre 1984 a 1987, considerando a sua condição de
credenciado, já que no jornal fora repórter, editor, secretário de redação e mais
recentemente ombudsman. Este cargo, aliás, também foi criado no Brasil de forma
274
inédita pela Folha, dia 24 de setembro de 1989, acompanhando a transformação
nas relações de trabalho. Ele seria, como já ocorria nos países nórdicos e nos EUA,
uma espécie de ouvidor do público: recebia as reclamações dos leitores,
selecionava quais as mais importantes sob seus próprios critérios, pedia
explicações aos setores responsáveis e fazia sua explanação pessoal e crítica a
respeito do tema, tendo, para isso, um espaço certo aos domingos e a garantia no
emprego por dois anos. Ou seja: uma espécie de anteparo da própria Folha, já que
a sua liberdade era concedida e o jornal não deixaria de pagar os seus salários. O
cuidado em não macular a Folha e o zelo para com o seu projeto editorial eram
evidentes, funcionando assim o ombudsman como um de seus fiscais, senão,
conforme nos mostra Maia (2004), como regulador e modelizador do discurso. O
novo cargo, contudo, não é implantado sem resistências da classe trabalhadora, por
conta da sua unicidade e indiscutibilidade – mesmo daqueles funcionários
obedientes ao jornal e defensores do Projeto Folha.
Na Folha, a resistência de alguns jornalistas adiou a criação da
função por três anos após a idéia da direção do jornal. As quatro
primeiras pessoas que foram convidadas a assumir a função
recusaram. Somente em 1989, o jornalista Caio Túlio Costa
assumiu e se consagrou como o primeiro ombudsman de
imprensa do Brasil (MACHADO, 2007).
Da mesma forma, em seu livro sobre a implantação do projeto, Silva não
deixa de falar, não sem algum constrangimento, da forma impositiva e por vezes
antidemocrática, com que o Projeto Folha é implantado pela cúpula, tendo à frente
o filho de Octavio Frias de Oliveira, Otávio Frias Filho, que assume o comando do
jornal como diretor de redação em 1984. As demissões sistemáticas daqueles que
não se adequavam ao novo ideário, não seguiam todas as regras ou simplesmente
gostariam de colaborar com suas experiências, eram comuns, constrangedoras,
275
temerárias. Novamente a Folha batia de frente na sua mão-de-obra trabalhadora,
especificamente a da redação, mas obtendo reações contrárias da categoria,
algumas vigorosas, em sua maioria através do sindicato. Segundo Silva, no
entanto, havia entre os dirigentes quem considerasse essas demissões como fatores
necessários à impulsão das mudanças. O fato é que a taxa de turn-over
(rotatividade de pessoal) na redação da Folha era nos anos 1980 altíssima, mesmo
se considerando a rotatividade ter uma taxa muito alta na imprensa em geral: em
1984 chegou a 32%; em 1985 a 44%; e em 1986 a 55%, quando o ideal seria 10%,
segundo Silva, secretário de redação à época. “Em 1984 pediram ou foram
demitidos 116 jornalistas; em 1985, 142; e em 1986, 187; nos dois primeiros meses
de 1987, foram 29; num total de 474 em mil dias, o que dá a média de uma pessoa
deixando a Redação da Folha a cada 2,1 dias”, diz Silva (2005, p. 193). Também
pudera: além de arrogante, o Manual de Redação, do Projeto Folha, chegava ao
extremo de obrigar que toda informação produzida pelos repórteres, logo no lead
da notícia, tivesse registrado, após o nome do entrevistado, a idade dele, de
maneira que se chegava ao absurdo de se poder criar embaraços na informação e
constrangimentos desnecessários às fontes.
As pressões contra a classe trabalhadora não pararam. E mais uma vez sob
forte inspiração da ideologia norte-americana. Primeiro investe contra as Escolas
de Jornalismo, com o objetivo de atingir a categoria e uma de suas formas de
resistência e de obtenção de respeito. A Folha desencadeia uma campanha
destruidora contra a exigência do diploma. Afirma que nos EUA, a maior
democracia do mundo, ele não é necessário e que, portanto, no Brasil também não
deve sê-lo. A motivação para isso parte de um confronto, talvez o mais tenso e
276
grave, entre o Sindicato dos Jornalistas Profissionais de São Paulo e o diretor de
redação da Folha, Otavio Frias Filho. Mesmo depois de apresentar-se como
provisionado (registro profissional para quem não tem formação numa
universidade), amparado assim por uma das leis conquistada pela categoria e
contra a qual se insurgia, Frias Filho continua a sua campanha de convencimento
junto à opinião pública e às autoridades, de tal forma que consegue, conforme
determina o Projeto Folha, o apoio dos seus jornalistas subordinados, como Clóvis
Rossi e o próprio Carlos Eduardo Lins da Silva. Este, em seu livro, não deixa de
fazer uma defesa das ideias contraditórias do patrão. Frias defendia através do
jornal, segundo explica Silva, “uma posição anticorporativista na organização das
relações de trabalho e uma posição de total liberdade de expressão na organização
das relações sociais”. E arremata: “A obrigatoriedade do diploma, na opinião da
direção de Redação, choca-se com essas duas posições”. Ora, a empresa não seria
corporativa nas relações de produção? Como poderia exigir a não-corporação
daquilo que por sua própria natureza social é associativista, uma categoria
profissional? Quanto à total liberdade de expressão, como sabemos, esta é, no
sistema capitalista, uma espécie de mito ideológico – fabricado exatamente por
aquela que mais detém a liberdade verdadeiramente mais produz essa ideologia, a
classe dominante. Mais adiante Silva (2005, p. 200) revela a verdadeira causa do
embate envolvendo a questão do diploma. Com o Projeto Folha, Otavio Filho, em
junho de 1984, demite de uma só vez 27 jornalistas “por inadequação ao grau de
exigência técnica do projeto”. O Sindicato publica uma reportagem em seu órgão
de classe que Silva (2005, p. 201), como bom defensor da Folha, diz que foi
considerada “mentirosa, difamatória e tecnicamente comprometedora”. E não mede
esforços para defender ainda mais a empresa: “Apesar disso, a diretoria do
277
sindicato foi recebida em abril de 1985 pela direção de Redação para uma tentativa
de aproximação que resultou inútil”. A partir daí, o que se vê, é um embate
acirrado, com proibições, por parte daquele que defendem a liberdade de
expressão, de que representantes do sindicato conversem com os colegas na
redação; de que jornalistas utilizem até bottons no interior da empresa quando da
campanha eleitoral pela sucessão sindical; e com denúncias sistemáticas contra a
categoria através do jornal, como as publicadas revelando que jornalistas possuíam
empregos no serviço público e ao mesmo tempo nas redações, incluindo alguns da
Folha, o que seria contrário ao Código de Ética; e através das dezenas de outras
também publicadas na própria Folha em sentido substancialmente contrário – aí
sim se justifica a motivação – à necessidade de formação superior para o exercício
da profissão.
Outro embate histórico também chama a atenção nesse processo
conflituoso/contraditório entre a Folha de São Paulo vs. jornalistas da cidade de
São Paulo, em especial os seus próprios funcionários. A empresa, estabelecida na
principal cidade da Região Metropolitana de São Paulo, a que mais produzia no
país e na América Latina o símbolo máximo da vida moderna, o automóvel, busca
nas ideias de Lee Iacocca, alto executivo das indústrias de automóvel Ford e
Chrysler, o estímulo para lançar, no correr do Projeto Folha, o Plano de Metas
Trimestrais da Redação. “Houve uma grande influência do livro Iacocca: uma
Autobiografia, lançado nos Estados Unidos em 1984, que o Publisher Octavio
Frias de Oliveira leu naquele ano”, revela Silva (22005, p. 100). Por esse plano, o
qual também se baseia nas orientações no psicólogo norte-americano Robert
Mager, curiosamente classificado por Silva como “de esquerda”, cada jornalista
278
tinha que escrever quais eram os seus sonhos, ou seja, quais os seus objetivos,
planos, prioridades e expectativas para os próximos 90 dias, e de que forma
pretendia alcançá-los. Depois de escritos, como relatórios, num espaço de três
meses, entregá-los à cúpula da empresa, para avaliações e decisões. Ou seja:
exigia-se a exteriorização explícita da individuação pessoal e profissional e
portanto algo considerado pela categoria como totalmente fora do contexto
trabalhista, cujas tarefas diárias já eram previamente definidas, como pautas e
horários, se revelando assim como mais uma forma de se manter o controle, a
vigilância, a exploração e um além-trabalho sobre a categoria dos jornalistas, com
um único e privativo objetivo: a produção de mais lucro e de mais capital unilateral
e exclusivo para os proprietários do jornal. Noutras palavras: o burocratismo e o
gerenciamento da indústria do automóvel sob inspiração da ideologia norte-
americana era aplicado à Folha de São Paulo, que assim se exacerbava em
predomínio e exploração sobre os jornalistas, sofrendo, por isso, em sentido
contrário, a repulsa dos profissionais, de tal forma que até mesmo ocupantes de
cargos de direção, que chegaram a considerar a determinação como “um sintoma
de enlouquecimento”, se sentiam constrangidos tanto em fazer esse trabalho a mais
quanto para cobrá-lo de seus subordinados. E assim, apesar dos elogios sobre a sua
validade feita por Silva, o Plano de Metas minguou, reduzindo-se posteriormente à
busca pela diminuição do número de erros nas edições diárias do jornal – o que de
fato passou a ocorrer, mas em sua grandiosa maioria, como nos mostra Abramo
(1991, p. 9), sobre o dispensável e não nas questões fundamentais: “Imagina-se
que, com isso, o leitor médio reflita que o jornal deve ser muito bem feito, uma vez
que praticamente só erra em bobagens”.
279
É importante dizer aqui que o Projeto Folha revestia-se do discurso voltado
para o marketing com a busca prática daquilo que se chamou, e foi
sistematicamente se aprofundando na Folha, de jornalismo “crítico”, “pluralista”,
“apartidário” e “moderno”. Tais conceitos e práticas foram implementados num
momento em que a sociedade brasileira passava pela necessidade de uma nova
reestruturação política protagonizada pelo capital, em decorrências de um “milagre
econômico”, ocorrido sem poupança interna, e as sucessivas crises mundiais dos
anos 1970. As forças do capital exigiam tanto da esfera da produção, o que quer
dizer, das forças produtivas da sociedade quanto da própria produção material e
imaterial, o atendimento às novas demandas para continuar subsistindo e avançar
em seu desenvolvimento. Os anos da década de 1980 nesse aspecto foram
desafiadores – e extremamente instáveis. Tanto que aquela chegou a ser
classificada por muitos como “a década perdida”. A Folha, no entanto, como
agente do novo discurso ideológico, faturou em cima do que vendia e do que
propagandeava, ao contrário do que ocorrera duas décadas atrás, quando apoiou o
golpe, os militares e a sua política econômica: agora pedia a democracia, a
liberdade e a transparência ao mesmo tempo em que se posicionava como aberta e
diversificada ou ao menos se caracterizava de maneira oportuna no mercado como
um espaço aberto para as diversas vozes, inclusive às discordantes do
Establishment.
Nesse aspecto, é necessário voltarmos à cartografia dos primeiros
momentos, quando da aquisição da Folha, até alcançarmos novamente os
turbulentos anos 1980, quando esse jornal, ao contrário das dezenas de outros que
são abatidos ou simplesmente se afundiam pelo caminho, navega com um rumo
280
certeiro à ilha do tesouro: metáfora ao oportunismo e entesouramento. Isso porque
os traçados desses primeiros momentos, assim como os posteriores, definem bem
quanto, especialmente nos campos político e econômico, à participação da Folha
como órgão representante dos interesses da antiga/nova oligarquia paulista diante
de uma nova realidade capitalista, que também ajuda a moldar, e se utiliza, para
isso, inclusive, da mão-de-obra especializada dos jornalistas, alguns deles dos mais
notórios e respeitados na imprensa nacional. Senão vejamos.
A estratégia da Folha de São Paulo, a partir dos anos 1960, quando
adquirida por Frias e Caldeira, com suas providenciais mudanças pelo caminho até
os anos 1980, teve alguns fatores sintomáticos logo de início: o de aproximação,
senão o acocho, ao poder dos militares golpistas, além da “venda do peixe” para
um público ávido pelo discurso citadino e ao mesmo tempo acólito do avanço da
modernidade urbana. Discurso em que consta o veio ideológico – portanto não
explícito – da oscilação entre o popular e o oligárquico, ou seja, o meio-termo para
um público preferencialmente de classe média, sob o manto da oratória do
liberalismo econômico – este sim explícito – conforme vimos. De tal forma que a
Folha é um dos primeiros jornais a encampar o jornalismo econômico, no final da
década de 1960, abrindo um caderno exclusivo para esse tema e especializando
jornalistas na área. Ainda nesse projeto político de atendimento ao poder e ao
mesmo tempo de desenvoltura da atividade lucrativa pode-se citar outros
exemplos. Frias e Caldeira compraram, segundo Paschoal (2007, p. 134-136), em
1º de setembro de 1965, o jornal Última Hora, de São Paulo, fundado por Samuel
Wainer, então exilado em Paris, para onde Frias foi fazer negócio e saiu de lá dono
de mais uma empresa de comunicação. Mais tarde, em suas memórias, numa obra
281
póstuma, Wainer lembraria o episódio da venda num hotel em Paris, quando, após
a assinatura do contrato, Frias teria lhe revelado que o que acabara de fazer
alegraria a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP). “Sobretudo
entre 1952 e 1964, [o Última Hora] fora um grande jornal, muito influente entre os
trabalhadores urbanos [de São Paulo]”, diz Wainer (1993, p. 268), que acrescenta:
“A rigor, a FIESP não queria destruir-me – queria destruir o jornal, e o jornal
continuaria vivo.” Frias e Caldeira compraram também, ainda segundo Paschoal
(2007, p. 136-137), em 22 de outubro daquele mesmo ano (1965), o Notícias
Populares. Este jornal fora fundado pelo banqueiro Hérbert Levy, então presidente
da UDN (dono também do mais tradicional jornal de economia do país, o Gazeta
Mercantil), para fazer frente, no campo ideológico e junto à população de São
Paulo, justamente ao jornal de Samuel Wainer, o Última Hora, que defendia o PTB
de Getúlio Vargas, o getulismo, alguns anseios populares e até ideias da esquerda
brasileira. E finalmente fundaram, conforme ainda Paschoal (2007, p. 137), em 1º
de julho de 1967, o Cidade de Santos, na cidade de Santos, reduto eleitoral de
Caldeira e onde ele posteriormente viria se tornar prefeito. Assim, o Grupo Folha
apodera-se pelo assenhoreamento do capital ainda mais dos seus objetivos políticos
e mercantilistas. Apoderação que se daria barateando a distribuição pelo maior
número de títulos e de exemplares de jornais, alcançando mais eficientemente os
leitores medianos da Folha de São Paulo e agora também, com os jornais Última
Hora e Notícias Populares, o dúbio campo dos leitores considerados populares,
como os estudantes e os operários, simpáticos ou não, participantes ou não, dos
movimentos das esquerdas e da direita no poder.
282
É importante dizer, contudo, que com o Golpe de Estado, em 1964, a
esquerda brasileira foi excluída do processo político e assim o Última Hora,
agravado pelo boicote econômico, perdeu o seu sentido genético de existir, e
igualmente o Notícias Populares de o quê combater dali por diante, posto Goulart
ter se exilado e o empreendimento amargar nas baixas vendagens. É quando, com
um jornal nacionalista, mas economicamente desmantelado, dado à perseguição
política e econômica, Wainer decide vender; e com um jornal sem sentido político
de existir e igualmente com problemas de caixa, Levy também decide vender.
“Devido a dificuldades econômicas, resultantes de pressões políticas, Wainer irá
fechar ou vender algumas das redações regionais do Última Hora, caso da paulista,
comprada pelo Grupo Folha, em 1965”, afirmam Romancini; e Lago (2007, p.
124), que não deixam de destacar: “Assim, curiosamente, este grupo passaria a
editar dois jornais antagônicos, visto que comprara no mesmo ano o Notícias
Populares”. Desta forma, a incorporação tanto do UH quanto do NP ao Grupo
Folha feita por Frias e Caldeira se dá de maneira oportunista, com um único e
definido objetivo para os seus agora novos proprietários: enfatizar-se no mercado o
mais amplamente possível buscando ao fim e ao cabo a produção de mais capital.
Paschoal (2007, p. 136) e o próprio Frias, este em depoimento àquele, revelam o
plano: “A compra desses jornais foi feita de forma planejada, para ocupar nichos
em que a Folha não atuava, segundo Frias: “Quando compramos o Notícias
Populares, achamos que era uma faixa na qual a Folha não entrava e, portanto, não
iria colidir com a Folha, que era sempre o carro-chefe””. E o plano dá certo. Tanto
que, por exemplo, o Notícias Populares sobrevive até 2001, quando, numa outra
realidade, globalizada e multimidiática, é definitivamente fechado por Frias.
283
Mas se Frias e Caldeira compraram jornais que perderam originalmente o
seu sentido político de ora conjurar ora ser inconfidente com o poder, tanto de um
lado quanto de outro, dependendo de quem estivesse no poder, também não se
esqueceram de fazer seus próprios empreendimentos nesse mesmo sentido. Ou
seja, refundam e passaram a investir politicamente, mas também com um sentido
financeiro último e subjacente, num jornal que de maneira aberta voltara-se, antes
de seu fechamento, para as classes populares. Um jornal que, agora renascido, após
o golpe, passa a defender o governo, os torturadores e posiciona-se radicalmente
contra aqueles considerados pelos militares como “subversivos” – muitos dos quais
jornalistas, inclusive alguns trabalhadores da própria Folha de São Paulo e de
outros setores do Grupo Folha – ao mesmo tempo em que se posiciona como
popular, alcançando as classes dos trabalhadores urbanos. Trata-se do jornal Folha
da Tarde, que existira como edição vespertina antes da junção das “Folhas” em um
único jornal, a Folha de São Paulo.
A Folha da Tarde, fundada em 1º de julho 1949, quando a empresa ainda
pertencia a José Nabantino Ramos, fora fechado 31 de dezembro de 1959, ou seja,
antes da aquisição da empresa por Frias e Caldeira. O seu slogan fora “O
vespertino das multidões”, evidenciando o seu caráter popular. O jornal Folha da
Tarde, entretanto, foi ressuscitado pelos novos donos, Frias e Caldeira, em 19 de
outubro de 1967 – três anos após o golpe e dois após terem adquirido o Última
Hora e o Notícias Populares e extinto somente em março de 1999 –, para fazer
frente no mercado a um dos jornais, o Jornal da Tarde, daquele que consideravam
o principal concorrente da Folha, o jornal O Estado de São Paulo, dos Mesquita –
tradicional grupo oligárquico de São Paulo. A historiadora Beatriz Kushnir estudou
284
a Folha da Tarde de 1967 a 1984, ou seja, da data de seu renascimento feito por
Frias e Caldeira até o fim da ditadura militar – exatamente o mesmo período que
nos interessa no presente trabalho. “Nesses dezessete anos, entre 1967 e 1984, o
país foi dos “anos de chumbo” ao processo das Diretas Já e a Folha da Tarde teve
uma redação tanto de esquerda engajada como de partidários do autoritarismo que
reinava no país”, resume as suas pesquisas Kushnir (2004, p. 217) em sua
interessante obra Cães de Guarda: jornalistas e censores, do AI-5 à Constituição
de 1988. No início da análise, contudo, a autora já anuncia: “Como se poderá notar,
a trajetória da Folha da Tarde espelha tanto as rupturas e mudanças no panorama
brasileiro como os caminhos percorridos pelo Grupo Folha da Manhã para se
adaptar aos percalços e às efervescências políticas daquele período” (KUSHNIR,
2004, p. 218).
Com efeito: a autora mostra em minúcias que, quando refundado, a Folha
da Tarde tinha uma orientação e em sua redação jornalistas de esquerda, fato
corroborado, embora de maneira tênue, por Paschoal (2007, p. 153). Alguns desses
ativistas eram, por exemplo, membros da Aliança Libertadora Nacional (ALN) e
até padres dominicanos ligados ao famoso guerrilheiro Carlos Marighella, como
Frei Beto. Eles, àquela altura, passaram a dar voz aos movimentos sociais
organizados. Atendiam nesse aspecto aos anseios mercadológicos de Frias e
Caldeira, que era cobrir, por exemplo, as passeatas dos estudantes e outras
mobilizações similares, tendo em vista que estes viam na contestação social um
“filão econômico”. Ao mesmo tempo, tais membros da redação questionavam os
rumos que o regime militar estava dando ao país. Mas essa orientação editorial e a
composição da redação mudaram radicalmente a partir de 1968, segundo Kushnir,
285
quando ocorre uma forte ruptura legal, causada pela edição em 13 de dezembro
daquele ano do Ato Institucional Nº 5, dando poderes extraordinários ao presidente
da República, na ocasião o general Costa e Silva, como fechar o Congresso
Nacional – o que de fato ocorreu poucas horas depois, dando início ao chamado
“Anos de Chumbo”, conforme Romancini; Lago (2007, p. 126) –, além de cassar
mandatos, suspender direitos políticos, demitir funcionários públicos etc., fato
consubstanciado por uma série de acontecimentos neste mesmo sentido ocorridos
no ano anterior, 1967, como a instituição da Lei de Imprensa e a Lei de Segurança
Nacional, que prepararam o caminho para o endurecimento do regime militar com
o AI-5.
A Folha da Tarde a partir daí continuou voltada para o público popular,
mas apoiando a contra-reação dos militares aos movimentos de esquerdas. Para
isso, a FT incorporou aos seus quadros, principalmente depois de 1970 (o
presidente da República já era desde 1969 o general Emílio Garrastazu Médici,
considerado o mais “linha-dura” na galeria de todos os ex-presidentes militares do
período e em cujo governo houve os mais numerosos casos de censura à imprensa,
perseguições, torturas e assassinatos), jornalistas que Kushnir chama de “cães de
guarda” – repórteres com assento nos jornais e ao mesmo tempo com emprego nos
órgãos repressivos da ditadura, denominação também comum aos policiais e
censores do chamado “porões da ditadura”, que se imiscuíam nas redações ou eram
encarregados diretamente de censurar a imprensa. “O corpo de redação da Folha
da Tarde, de 1967 a 1984, é formado por dois grupos distintos: os de antes e os de
depois do AI-5”, resume Kushnir (2004, p. 229). Um desses repórteres, da editoria
de polícia, muito conhecido e respeitado pelos seus “furos”, era Antônio Aggio
286
Júnior, que tinha um emprego nos órgãos de segurança pública, onde atuou como
assessor dos delegados Romeu Tuma e Sérgio Paranhos Fleury no Departamento
de Ordem Política e Social (DOPS), e que teria posto os carros do jornal à
disposição da polícia e do Exército para ações camufladas de repressão, conforme
admite o próprio Frias em Paschoal (2007, p. 153-157).
Dois casos que ocorreram nesse segundo período do FT são emblemáticos e
revelam de forma cristalina o quanto o jornal estava atado ao regime militar,
conforme nos mostra detalhadamente Kushnir (2004, p. 213-353). Primeiro os
ataques aos carros do Grupo Folha da Manhã, por duas vezes, em 1971, feitos por
militantes de esquerda, que incendiaram os veículos em represália ao fato da
empresa ceder mascaradamente carros para o DOI-CODI (Destacamento de
Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna) montar
emboscadas, prender e matar ativistas. O segundo caso envolve dois militantes de
esquerda, Ivan Seixas, codinome Teobaldo, e o seu pai, Joaquim Seixas, o Roque.
Ambos foram presos, no dia 16 de abril de 1971, e seguidamente torturados, pela
Operação Bandeirantes (OBAN), sob acusação de terem participado do assassinato
de um industrial paulista, o presidente da Ultragás, Henning Boilesen, considerado
pelos ativistas como financiador da repressão política e instrutor de torturas. Ao ser
levado para dar “um passeio”, quando foi outras vezes barbaramente torturado,
Ivan Seixas, conforme revelou depois, conseguiu ler, de dentro do carro da polícia
onde se encontrava, na edição da tarde de 17 de abril de 1971 do jornal Folha da
Tarde, quando os policiais pararam numa padaria para tomar um café, por volta do
meio-dia, que o seu pai, “assassino do empresário”, havia “reagido violentamente à
prisão” e, “numa troca de tiros”, fora morto por policiais. O caso, assim, anunciava
287
o jornal em manchete, fora solucionado. Ocorre, porém, que, ao voltar do
“passeio”, Ivan Seixas encontrOU, nas instalações da OBAN, o seu pai ainda vivo
– mas que iria morrer na tarde daquele mesmo dia, pois a sua sentença de morte já
fora decidida e o jornal conseguira antecipar, inclusive a versão dada depois pela
polícia, nas falsas condições de reação à prisão. Tudo obtido e divulgado através de
jornalistas/policiais da Folha da Tarde imiscuídos nos porões da ditadura. Não
seria sem propósito que chamariam a FT de “o jornal de maior tiragem” – numa
alusão ao número volumoso de exemplares/dia e ao mesmo tempo aos “tiras” nele
infiltrados ou acomodados. Isso num período em que se foi o mais sangrento de
uma ditadura “escancarada”, com o fechamento de vários jornais vítimas da
arbitrariedade do poder, foi também, como nos mostram diversos autores, a época
do chamado “milagre econômico”, o mais fértil nas estatísticas de
desenvolvimento econômico nacional e de maior verticalização e concentração do
capital empresarial/industrial, especialmente de São Paulo e Região Metropolitana,
dentre os quais o da imprensa que ali se modernizava (ABREU, 2002). Ou seja: se
para a sociedade foram “anos de chumbo”, para Frias e Caldeira foram “anos de
ouro”.
A nova direção do Grupo Folha da Manhã, porém, não se daria por
satisfeita por comprar e lançar jornais que em sua diversificação alcançassem o
maior número de compradores possível no mercado da imprensa paulistana e
nacional. Afinal, como o próprio Frias revela em Paschoal (2007), aprendera com o
amigo Caldeira a, ao notar uma demanda qualquer no mercado, fazer de tudo para
satisfazê-la, fazer de tudo para saciar a sede de consumidores ávidos, pois esta
seria a fórmula mais rápida e eficiente de se ganhar muito dinheiro.
288
Assim, ambos, mas especialmente Frias, iriam também contratar, senão
cooptar, ao seu projeto, mão-de-obra simbólica, especializada e capacitada, ou seja,
jornalistas de renome e de grande credibilidade, que pudessem fazer avançar os
seus ideais neste sentido capitalista: o de ganhar dinheiro ilimitado, obter o
máximo de lucro possível, retransformar um investimento lucrativo em mais
capital ainda, através da exploração da mão-de-obra intelectual.
O mais notável caso, nesse aspecto, foi a contratação e o trabalho
desenvolvido pelo jornalista Cláudio Abramo. Famoso e respeitado, não só pela
sua capacidade intelectual, mas também por saber comandar redações de peso,
Abramo era a peça perfeita aos propósitos de Frias-Caldeira. Mais ainda porque ele
fora, bem-sucedido, diretor da redação do jornal de antigos desafetos e ainda o
principal concorrente de Frias-Caldeira, os Mesquita e O Estado de São Paulo.
“Cláudio tocava qualquer instrumento da orquestra [redação], mas sobretudo sabia
regê-la. Conhecia as esquinas do efêmero, mas não se perdia nas esquinas do
perene”, sintetiza Mino Carta, um dos outros nomes notáveis do jornalismo
brasileiro, e talvez o maior amigo dele, no prefácio do livro póstumo de Abramo
(1998, p. 8). Cláudio Abramo foi o grande responsável pela reforma de OESP a
partir de meados dos anos 1950. “No conjunto, ele foi o primeiro responsável pela
transformação de um jornal provinciano e um tanto excêntrico em um órgão digno
da contemporaneidade”, acrescenta Carta. Mas Abramo foi demitido em 1963 do
Estadão, como também é chamado o jornal. Carta credita isso à sobrevivência da
oligarquia dos Mesquita. A versão de Cláudio Abramo (1998) para essa demissão
segue nesse mesmo sentido: já empenhada na conspiração que culminaria com o
golpe de 1964, a família Mesquita queria se livrar dele.
289
Marxista, membro do Partido Socialista Brasileiro (PSB) até 1950, Abramo
era irmão de Fúvio e Lívio Abramo, destacados militantes do movimento trotskista
no Brasil e “pessoas de jornal com quem convivi”. Visitou, a convite dos governos,
a Alemanha, Inglaterra, Estados Unidos e Índia, fato inclusive destacados por
Paschoal. Conheceu jornais da Ásia, Europa e EUA, onde conheceu de perto o The
New York Times, Washington Post e Wall Strett Journal, além de ter participado de
vários eventos nas universidades de Stanford, Columbia e Berkeley. Através de um
banqueiro, Antonio de Pádua Rocha Diniz, do Banco Nacional, segundo relata
Paschoal (2007, p. 125), Frias conheceu Abramo, pessoa de cujo talento naquele
momento precisava para a Folha, ainda mais vindo do concorrente que tanto
considerava. “Não me lembro qual foi a primeira impressão que Cláudio me
causou, mas o que me atraía era o nome do Cláudio, o fato de ele ter sido do
Estado, porque o Estado era o máximo, era o Olimpo. Então ter na Folha um
homem que foi secretário do Estado era um ganho de status, de capacidade, muito
importante”, afirma Frias, ainda segundo Paschoal (2007, p. 126-127).
O diálogo que Frias e Abramo travaram quando do primeiro encontro, na
sede do Banco Nacional, de propriedade do amigo em comum a ambos, situado à
época na Avenida Ipiranga, quase esquina da Rua São João, coração da cidade de
São Paulo, ponto de várias confluências culturais da vida urbana paulista, é
sintomático. Não só pelo local em que se deu e pelo que revela do caráter
ideológico e da natureza psicológica de cada um, mas também pelo que nos
demonstra dos respectivos interesses materiais e sociais dos dois personagens
históricos. Quem narra o encontro é o próprio Abramo (1998, p. 83):
Por iniciativa de Roberto Gusmão, tivemos um encontro no
escritório de Rocha Diniz, do Banco Nacional, que é meu amigo.
290
Frias é muito franco, despachado, e foi logo me dizendo: “Dizem
que você é autoritário, comunista e tem freqüentes acessos de
loucura”. E eu respondi: “É tudo verdade, mas em outros termos.
Sou marxista, de formação desde menino, sou autoritário, mas
também disciplinado, e tenho meus acessos de raiva, como todo
secretário de redação, pois vivemos sob tensão”. Mas não
acertamos.
Pouco depois, contudo, Abramo acertou com Frias, sendo contratado. Foi
trabalhar primeiro na Transaco, empresa de corretagem de ações de Frias, fazendo
relatórios críticos e diários sobre a Folha, posto encontrar resistências dentro do
jornal que Frias precisava sanar. Em seguida assumiu a chefia de produção (ou
reportagem, como diz Frias) e depois a secretaria de redação. E iniciou uma
reforma. Foi uma das mais importantes reformas protagonizadas pela Folha no
período de mudanças políticas e econômicas do país e que culminaria com o
processo de redemocratização no final dos anos 1970 e principalmente na década
de 1980. Sem nenhum pejo, Frias e Paschoal (2007, p. 131) revelam: “Contratar
Cláudio Abramo, que tinha sido de O Estado de São Paulo, era o primeiro passo
para o objetivo maior de Frias: ‘Fazer um grande jornal. Um jornal que alcançasse
o Estado. Esse sempre foi o meu objetivo’”. Nas suas reflexões, publicadas
postumamente, Abramo, por duas vezes, em tom de autocrítica, considera que
ajudar a Folha da forma que ajudou, indispondo-se inclusive com colegas e a
própria categoria, através do Sindicado dos Jornalistas de São Paulo, foi um grande
erro de sua parte. “Apesar disso, às vezes acho que ter ido para a Folha foi um dos
maiores erros que cometi na vida, pois ajudei muito o jornal e hoje sou
marginalizado” (ABRAMO, 1998, p. 85). E mais na frente acrescenta: “Se tivesse
que repetir toda a experiência da Folha não o faria de novo, porque foi muito
frustrante profissionalmente. Mesmo considerando que contribuí para a
291
organização do jornalismo brasileiro e que, na Folha, ajudei um pouco a apressar o
processo democrático, a experiência não foi boa” (ABRAMO, 1998, p. 90).
Mas o que fez Abramo para se arrepender? Num período de ampliação das
telecomunicações e controle estatal e ao mesmo tempo concentração do capital e
de modernização rápida da imprensa brasileira (ABREU, 2002; Mota; Capelato
(1981), entre outros), pode-se dizer que, em etapas, o que Abramo fez foi buscar a
profissionalização da mão-de-obra da redação, demitindo alguns antigos cujas
práticas considerava atrasadas, exigindo maior empenho das atividades subjetivas e
objetivas dos jornalistas que ficaram ou contratou, bem como direcionando o jornal
para o sentido de se posicionar no mercado como mais crítico e defensor da
participação política. “A ele, Cláudio, se deverão várias iniciativas que deram à
‘Folha’ sua fisionomia crítica atual. Em primeiro lugar, a resistência num dos
períodos mais duros da vida do jornal, sob o AI-5”, afirmam Mota; Capelato (181,
p. 20). De 1965 até 1972, no entanto, as reformas de Abramo não avançaram tanto
como queria, apesar do caráter crítico subjacente. A censura e as perseguições
políticas não permitiam que o jornal ousasse tanto. Foi nessa época que Frias criou
uma Central de Notícias, depois Agência Folhas, e nesta um núcleo policial, para
autocensurar o próprio jornal de acordo com os desejos e caprichos dos militares,
sem mesmo consultá-los (MOTA; CAPELATO, 1981; ABRAMO, 1988). Eram os
“cães de guarda” chamados por Kushnir. Em seguida investiu na reativação e
guinada da Folha da Tarde e remanejou esse pessoal para lá, de tal forma que,
como se lembra o próprio Abramo (1988, p. 87), Frias transformou a FT “no jornal
mais sórdido do país”. O “terror policial” que marcaria o Grupo Folha como um
“low profile” coincidiria por todo o período do chamado “milagre econômico”
292
(1969-1974) do governo Médici, segundo informam Mota; Capelato (1981, p.
215). O fato é que abatido com toda essa situação, vendo todos os dias amigos
sendo presos, torturados, mortos, sem quase nada poder fazer com a política
antagônica da Folha, em 1972 Abramo é afastado da redação, mas sem perder o
emprego. Fica nessa situação por cerca de dois anos. Nesse período, mais
precisamente em 1974, viaja para Nova York, com, entre outros, o filho de Frias,
Otávio Frias Filho. O encontro das duas gerações, exatamente nos EUA, país
inspirador de Octávio, o pai, é politicamente instrutivo e iria mudar os rumos da
Folha. “Conversei muito com o Otavinho nos EUA. Era um momento de mudança
política no Brasil. O MDB elegera dezesseis senadores nas eleições daquele ano e
pressenti que o Brasil estava começando a mudar. O golpe estava esgotado... O
jornal também precisava mudar”, informa Abramo (1988, p. 88). O mesmo
assunto, ainda nos EUA, Abramo conversaria durante horas com os dois Frias, pai
e filho, aprofundando a análise sobre o momento e suas ideias para o jornal. “Ele
estava pensando da mesma forma... Frias percebeu então que seu jornal só poderia
prosperar num regime democrático, e por isso adotou uma linha combativa”.
Mas Frias “pensava da mesma forma” não por si somente, como deixa
transparecer Abramo. Na verdade, a sua aproximação com os militares o compelia
para isso. Pelo menos é o que deixa transparecer o seguinte episódio contado por
ele mesmo. Em 1964, quando participava de um almoço em homenagem ao
marechal Castelo Branco, primeiro presidente do golpe, no Conjunto Nacional, em
São Paulo, Júlio de Mesquita Filho, do jornal Estadão, escreveu num guardanapo
um bilhete para o presidente reclamando do crescimento da Folha e que isso
precisaria ser apurado pelo governo, pois havia informações de que os recursos
293
vinham de fora do país, dos EUA, da Rússia, os comunistas. Foi feita uma
apuração e descobriu-se que os recursos eram eminentemente dos bancos – o que
comprova mais uma vez a linhagem oligárquica da Folha dentro da classe
dominante de São Paulo que aqui tentamos expor. Dez anos depois, quando da
iminência da assunção de um novo presidente da República, general Ernesto
Geisel, considerado da linha “castelista”, ou seja, que pensava em fazer retornar o
poder aos políticos tradicionais, o general Golbery do Couto e Silva, chamado por
muitos de “o bruxo” da revolução, pelo seu método inteligente, sorrateiro e de
efeito acerca dos desígnios do país que planejava com e para o poder, mostrando o
bilhete para Frias, como fizera noutras ocasiões, “expôs ao dono da Folha o seu
plano de distensão lenta, gradual e segura do regime”, dando a entender que “o
novo governo veria com bons olhos a existência de um outro jornal paulista de
prestígio, além de O Estado” (PASCHOAL, 2007, p. 134). A própria elite segreda
seus pecados quando lhe tocam no bolso.
Quando retorna ao Brasil, no entanto, em 1975, Abramo, juntamente com a
esposa, é preso pelo DOI-CODI, já sob governo do novo presidente, acusado de
subversão. É importante dizer que, nesse mesmo ano, foi preso, dentre vários
outros, o jornalista Vladimir Herzog, diretor de jornalismo da TV
Cultura/Fundação Padre Anchieta, acusado de pertencer a uma célula do Partido
Comunista Brasileiro. Nas instalações da OBAN, “Vlado”, como era
carinhosamente chamado, morre horas depois sob tortura. Para despistar, foi
simulado um suicídio por enforcamento, e cuja foto, tirada pelos próprios algozes,
hoje é um símbolo ao mesmo tempo da tortura descontrolada e da resistência
daquela época: a imagem, chocante, retrata um suicídio tecnicamente improvável.
294
Abramo, no entanto, teve outra sorte: foi solto dias depois. É a partir daí que
começa a “virada” da Folha, conforme revela o próprio Abramo (1988, p. 89):
“Quando sai do DOI-CODI, comecei a formular os planos para a
Folha. A partir de junho comecei a mudar o jornal, a princípio
sem estar na redação, mas sempre de acordo com Frias.
Começamos a levar gente boa, como Paulo Francis, Newton
Rodrigues, Alberto Dines, cuja ida para a Folha eu já havia
negociado; aí começou a virada. A reforma da Folha representou
uma mudança completa de atitude, de comportamento, que até
hoje permanece.
Com efeito, por iniciativa de Abramo, o jornal abre as páginas dois e três
para a exposição e análises conjunturais da política e da economia nacional. O
espaço “Tendências/Debates”, na página três, abrigou políticos, empresários,
juristas, ativistas, mas mais especialmente professores e pesquisadores das
universidades, que expunham dados, análises etc. que discutiam, através de uma
maior liberdade, os avanços e recuos do regime, da economia, da política etc. Entre
alguns desses nomes constam os dos sociólogos Florestan Fernandes e Fernando
Henrique Cardoso (que viria se tornar presidente do Brasil), e depois Delfim Neto,
José Sarney (também ex-presidente) e Antônio Ermírio de Moraes, estes dois
mantendo até o presente suas colunas semanais.
O novo espaço proporcionado pelo jornal, inclusive nos temas das
reportagens, junto com o suplemento Folhetim, também da Folha, “abocanha” do
mercado, senão anula, os vários jornais de organizações de esquerda e de
movimentos da própria categoria (partidos políticos e cooperativas ou simples
grupos de jornalistas que com o fim do precário equilíbrio nas relações de trabalho
nas empresas ligadas à classe dominante não encontravam lugar na imprensa
tradicional), os quais àquela altura questionavam o regime militar e o modelo
econômico adotado, como o Pasquim, Movimento, Opinião, Em Tempo, e de tal
295
forma que finalmente estes desaparecem como por encanto. “Como se tivesse
ocorrido um cataclisma, quase todos os jornais alternativos que circulavam entre
1977 e 1979 deixaram de existir a partir de 1980-1981”, afirma Bernardo Kucinski
(1991, p. 117), em sua interessante e exaustiva obra a respeito da importância e da
participação da chamada “imprensa nanica” no período da ditadura militar dos
anos 1960 até o início da abertura política da década de 1980. “Navegando nos
ventos da abertura, a FOLHA DE SÃO PAULO disputava o leitor d’O ESTADO
DE SÃO PAULO através de uma linha editorial crítica. Atraiu a geração Libelu
[liberdade e luta] e adotou parte da linguagem alternativa. O projeto editorial da
FOLHA delineado primeiramente por Cláudio Abramo em 1978, inspirou-se na
experiência dos alternativos orgânicos, inclusive através da proposta de uma
plataforma política”, afirma acertadamente mais na frente Kucinski (1991, p. 125).
Mas em setembro daquele mesmo ano, 1977, em que a Folha lança, sob a
direção do jornalista Tarso de Castro, este vindo exatamente de O Pasquim,
Cláudio Abramo foi mais uma vez afastado da direção de redação da Folha de São
Paulo, num episódio que revela novamente a ligação, senão de subserviência ao
menos de obediência, comedida, cautelosa, é bem verdade, mas também
objetivamente tática, de Frias para com os militares, bem como revela também a
necessidade de se abrir espaços para outra e mais jovem mão-de-obra que viria
fazer parte da nova transmutada Folha, como acredita o próprio Abramo,
apontando para um maior predomínio e disciplinamento do sistema produtivo. O
episódio teve a participação direta do general Hugo de Abreu, chefe da Casa
Militar do presidente Ernesto Geisel. O incidente ficou conhecido como “O Caso
Diaféria”. Isso porque o Exército se irritou profundamente em seus brios com um
296
artigo publicado na Folha de São Paulo pelo jornalista da Lourenço Diaféria,
intitulado “Herói. Morto. Nós”, no dia 1º de setembro de 1977.
O artigo foi considerado ofensivo à memória do Patrono do Exército, Duque
de Caxias. Diaféria foi preso. No dia seguinte à prisão, o jornal publicou, em tom
de protesto, a coluna em branco, com uma nota de rodapé explicativa. Foi quando
o general Hugo de Abreu, outrora sempre cordato com o Grupo Folha, ligou para
Frias, por imposição do ministro do Exército, general Sylvio Frota, e exigiu dele a
demissão de Abramo, caso contrário também seria preso e o jornal deixaria de
circular por um mês, com base na Lei de Segurança Nacional (ABRAMO, 1988, p.
89-90; PASCHOAL, 2007, p. 161; KUSHNIR, p. 222; MOTA; CAPELATO,
1980, p. 235-236). Frias e o jornal obedeceram às ordens. Mais que isso: deu uma
guinada à direita – ou promoveu um retrocesso, como dizem alguns autores. Além
de substituir Abramo pelo jornalista Boris Casoy, conhecido por suas posições de
direita (foi assessor do ex-prefeito de São Paulo, José Carlos de Figueiredo Ferraz,
do ex-ministro Cirne Lima e dos ex-secretários Herbert Levy e Antônio
Rodrigues), retirou o seu nome como diretor-presidente da primeira página, as
colunas de Newton Rodrigues e Alberto Dines e suspendeu os editoriais. Trocou as
peças, fez mudanças, inclusive outras que agradariam aos militares e empresários
representantes da classe dominante, mas o objetivo mercantilista permaneceu o
mesmo, até porque este se afinava com a regência estatal. Na reunião que tinha tido
com os editores, por exemplo, quando do anúncio das mudanças, Frias informou
“que não havia pressões sobre ele – “o Frias empresário” – mas deixou claro que as
pressões eram dirigidas contra o jornal” (JORNAL DO BRAIL, 1977, apud
MOTA, CAPELATO, 1980, p. 350). Assim tanto a posição do jornal no mercado,
297
onde busca sua legitimidade, quanto em relação à sua mão-de-obra, não muda.
Neste último, ao contrário: aprofunda-se em predomínio e exploração. Confiramos.
Mesmo demitido, Abramo continuou como membro do Conselho Editorial,
onde participou da confecção de um documento em 1978 em que se faz uma
avaliação histórica e aponta as tendências que o jornal deve buscar e seguir. “O
documento é extremamente significativo, por traduzir a percepção da subordinação
da “Folha de S. Paulo” ao sistema capitalista”, afirmam Mota; Capelato (1980, p.
239), que em seguida fazem a longa transcrição literal. Tal documento reconhece,
naquele momento, no regime militar, a proposta capitalista de modernização do
país, que se esgota ao cumpri-la, e dirige o veículo para rumos ideológicos que
deve retomar e manter: ocupar espaço político, e não de tempo, aberto pela
sociedade. “A preservação e, secundariamente, a ampliação desse espaço é a
questão de maior importância no momento”, afirma o documento, segundo a
transcrição de Mota; Capelato (1981, p. 242). Abramo saiu do jornal quando se
indispôs com o Sindicato dos Jornalistas de São Paulo durante a greve de 1979.
Mais um embate a demonstrar a crise entre os jornalistas e a empresa Folha da
Manhã, algo que iria se repetir acirradamente nos anos 1980, como vimos. No
entanto, as bases da reforma estavam plantadas, que culminariam com a chegada
do Projeto Folha, em 1984, através do novo diretor de redação, Otavio Filho,
conforme foi dito acima. Projeto e sua consequente normatização explícita do
comportamento profissional e até de suas subjetividades em nome do imediato
sucesso ideológico de mercado do empreendimento. Numa década em que se
buscava uma saída sistêmica para uma crise política e econômica no país, a
normatização da linguagem, do comportamento (a Folha também exigia formas de
298
se vestir etc.) e a estandardização na apresentação final da principal mercadoria do
jornalismo, a informação impressa no jornal e nas cabeças das pessoas, assim, foi
uma maneira de, sobrepondo-se às características particulares e imanentes de cada
indivíduo jornalista, extrair-lhe a força de trabalho de forma mais eficiente, ao
mesmo tempo em isso asseguraria à corporação a produção de uma apartação mais
bem acabada daquele que efetivamente produz a mercadoria e ao mesmo tempo
desta daquele que efetivamente a produz, como intuito final de manter as
sobretaxas cumulativas de lucro, da produção indefinida de mais capital. A
homogeneização, também prevista nos seus próprios termos no Projeto Folha, do
qual se sobressai o Manual de Redação como uma de suas maiores expressões,
garantiria, por seu turno, uma mais eficiente alienação de repórteres,
correspondentes, diagramadores etc. que, mesmo tendo o registro de seus nomes
em algumas partes previa e mercadologicamente definidas, ficariam quase sem
rosto – todos eram qualquer um e vice-versa: a ameaça de desemprego aos que não
se enquadram é a maior prova disso – ao mesmo tempo em que o jornal, ao
contrário, a partir do epicentro econômico da principal cidade do país, cada vez
mais explorava, se sobrepunha, se legitimava, se expressava e vendia.
299
Fotos 25 e 26 – Empresário Octavio Frias de
Oliveira e jornalista Cláudio Abramo: as
duas faces de um mesmo empreendimento.
Fotos 21 – Folha de São Paulo,
ainda com Nabantino, noticia,
em 21 de abril de 1960, a
inauguração de Brasília.
Fotos 24 e 24 – Folha da Tarde anuncia, segundo Kushnir (2004), a morte de Joaquim Seixas em 17 de abril
de 1971, quando ele ainda se encontrava vivo e preso numa das celas da OBAN; veículos do Grupo Folha
utilizados em operações da polícia, segundo confirmou Paschoal (2007), foram queimados em 1971 por
ativistas políticos como represálias: imagens de uma contradição trágica.
Fotos 22 e 23 – Duas posições contrárias do jornal separadas pelo
tempo abordam dois momentos distintos da história: em 1º de abril de
1964, os movimentos dos militares após a tomada do poder; em 5 de
outubro de 1984, os movimentos populares pela retomada do poder.
http://congressoemfoco.uol.com.br/upload/co
ngresso/arquivo/folha_de_spaulo.pdf
http://www1.folha.uol.com.br/folha/circulo/
primeira_pagina_1_abr_1964.htm
http://www1.folha.uol.com.br/folha/circulo/
primeira_pagina_26_jan_1984.htm
http://www.aggio.jor.br/ampliacao1.htm http://www.aggio.jor.br/historia_folha.htm
http://noticias.uol.com.br/ultnot/especial/octaviofrias/
300
Fotos 27 e 28 –
Prédio do Copan
projetado por
Niemeyer e
construído por
Octávio Frias de
Oliveira através do
BNI; acima capa do
livro de Rolnik (2009)
publicado pela
Publifolha, empresa
do Grupo Folha,
sobre o crescimento
de São Paulo.
Fotos 29 e 30 –
Monumental e estaiada
ponte sobre o Rio
Pinheiros, no moderno
bairro do Brooklin:
homenagem do poder
político ao capital
simbólico e financeiro.
http://planhabdauufes.blogspot.com/2009/12/tipologias-
habitacionais.html
www.publifolha.com.br
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301
CAPÍTULO 4
Comunicação e Geografia: interpretação
da cidade a partir da heráldica dos
prefeitos de Natal entre 1985 e 2004
1. Delimitação temática: aproximando pensares
presente capítulo tem como objetivo principal contribuir para uma maior
aproximação, que consideramos, até onde pudemos alcançar, inédita, entre
as ciências da Comunicação e da Geografia Cultural Urbana, aprofundando assim o
objetivo geral desta tese, que é, como já sabemos, concorrer para a abertura de
novos saberes científicos, passíveis de serem interconectados,
interdisciplinarizados, ou mais precisamente, para a construção de um paradigma
mais amplo que revele novos conhecimentos e interpretações teóricas entre a
Comunicação Social e demais ciências da área das humanas, especialmente as
Ciências Sociais, tendo como campo epistemológico o paradigma do espaço
urbano e como lócus à observação empírica a cidade-mídia contemporânea.
Com efeito, no presente estudo buscaremos analisar as logomarcas, como
princípio heráldico – dotadas, portanto, das forças de persuasão e do simbólico que
visam a auferição, para seus titulares, via o assente citadino, de mais poderes nas
esferas do político e do eleitoral –, dos prefeitos de Natal, desde o primeiro a ser
O
302
eleito diretamente pelo povo, logo após o processo de redemocratização do Brasil
depois do período de 21 anos do regime militar (1964-1985), Garibaldi Alves Filho
(1985-1988), seguido subseqüencialmente pela prefeita Wilma Maria de Faria
(1989-1992), Aldo Tinôco Filho (1993-1996), Wilma Maria de Faria (1997-2000),
Wilma Maria de Faria (2001-2002) e Carlos Eduardo Alves (2003-2004), no
contexto sócio-espacial da cidade, in casu, Natal.
A análise pretende compreender, nesse período (1985-2004), qual a relação
de coerência das respectivas marcas, enquanto objetos de expressão administrativa
e do caráter público de seus representantes assim como fora na perspectiva
emblemática os antigos brasões para as famílias de nobres, com a realidade
conjuntural e urbana de Natal, ou seja, com as esferas do político, do econômico e
por vezes do ideológico da cidade, e, dialeticamente, desta com seus representantes
no poder máximo do Executivo Municipal.
Nesse processo, e sentido, as escolhas unilaterais por parte dos gestores
públicos de elementos patrimoniais e culturais da linguagem, obtidos, extraídos ou
inspirados, para ficarmos num eufemismo usual, do espaço urbano da cidade em
questão e do âmbito da afetividade identitária de seus habitantes, fato comum nas
sociedades capitalistas e midiáticas contemporâneas, parece demonstrar algo mais
que uma simples objetivação mercadológica da imagem da gestão desses políticos.
Sinaliza, ou mesmo já denota, conforme heuristicamente acreditamos, uma
subjetiva, unilateral e discriminatória tendência das políticas públicas municipais.
Poder-se-ia até dizer: torna visível o caráter público não-conjurado da
administração pública desses políticos, o corpo e o escopo de suas respectivas
303
gestões para com a cidade e, ao mesmo tempo, da trajetória cultural e do sentido e
desenvolvimento histórico desta mesma cidade, ao longo do período em questão.
Desvendar esse processo, a partir de uma perspectiva crítica, tendo como
pano de fundo a questão social, política e espacial no locus urbano da capital
potiguar, é, em outras palavras, o objetivo do presente capítulo, que adotará, como
metodologia, a decifração de elementos morfológicos da cidade, cujas bases
histórico-teóricas, do âmbito da Geografia Cultural Urbana, abordaremos na seção
a seguir (antes, portanto, da leitura propriamente dita da cidade a partir de seus
elementos patrimoniais/reais e do design gráfico/heráldico dos referidos prefeitos
que, subseqüencialmente, também iremos expor, como contribuição, por sua vez,
da Comunicação Social, do âmbito da Publicidade e Propaganda, para o construto
daquela visão mais ampla, paradigmática e interdisciplinar do conhecimento social
que inicialmente nos propusemos ajudar a erguer). Partamos, portanto, agora, da
gênese e do desenvolvimento da Geografia Cultural Urbana que contemplará a
análise do nosso objeto de estudo.
2. Geografia Cultural: um trajeto rumo à decifração urbana
A questão do espaço, em todas as áreas do conhecimento, particularmente
na Geografia, vem merecendo, principalmente a partir do início do século XX, e
que se acentua depois do terceiro quartel desse mesmo século (SOJA, 1993, p. 17-
55), uma atenção redobrada por parte de filósofos e dos pesquisadores sociais em
geral. Tal análise dá-se em mais profundidade no âmbito das cidades, estas com
suas significantes produções capitalistas/urbanas, coincidindo com o avanço da
304
Geografia Cultural, suas premissas teóricas e validações metodológicas a partir e
em interação com novos e velhos elementos de construtos sócio-espaciais do
urbano (CORRÊA; ROSENDAHL, 2003a).
Essa renovação na Geografia Cultural supera a idéia de espaço dado,
ecológico, dotado de elementos característicos, que pode ser definido por “um
conjunto de categorias do meio físico” no qual o homem, mero ser geodésico,
apenas compõe e sofre as conseqüências da natureza numa relação inelutavelmente
causal (SAUER, 2003, p. 19), que por muito tempo preencheu o imaginário da
ciência geográfica, assim denominada de humana.
Supera até mesmo uma visão que lembra uma certa assertiva antropológica
de práticas e costumes supra-orgânicos da qual, a partir de uma ontologia
determinante e superior, regida por leis próprias e pré-existentes, emanaria um
certo poder extemporâneo e portanto causativo da ordem e dos acontecimentos no
âmbito das relações sociais, entendimento esse defendido por muitos geógrafos
norte-americanos culturais importantes (DUNCAN, 2003).
Chega-se assim, hoje, a uma interpretação necessariamente histórica e
radical da produção societária, como explica Cosgrove (2003), porém mais afeita e
precisa, em que se somam elementos que ampliam o leque de um conjunto cultural
que, desta forma, torna-se válido, logo indispensável à decifração geográfica
cultural, principalmente urbana. Tais elementos derivam da produção, da arte
coletiva, tendo os seres humanos, pensantes e ativos, como transformadores e
criadores, intermediados pela comunicação.
Com efeito, tornam-se objetos primordiais de estudo dessa nova Geografia
as produções simbólicas, lingüísticas, os códigos de todas as formas de
305
comunicação, para as quais concorrem o sensório e o imagético, que servem não-
somente à interpretação do real como também dialeticamente o engendra, recria.
Essa Geografia, assim afeita, é também ativa e efetiva. Resume-nos Cosgrove
(2003, p. 103 e p. 129):
Essa apropriação simbólica do mundo produz estilos de vida
(genres de vie) distintos e paisagens distintas, que são histórica e
geograficamente específicos. A tarefa da geografia cultural é
apreender e compreender essa dimensão da interação humana
com a natureza e seu papel na ordenação do espaço. (...)
Finalmente, como prática revolucionária, a geografia cultural
pode não apenas revelar a contribuição simbólica da ação humana
na produção e manutenção das paisagens e o grau pelo qual essas
paisagens estruturam e mantêm a produção simbólica, mas pode
examinar criticamente formas emergentes de organização espacial
e da paisagem.
Para chegar a tal momento, ou estágio, a Geografia Cultural, em seu
processo construtivo, se abebera basicamente das filosofias do significado
(fenomenologia) e do materialismo cultural de Raymond William, conforme nos
informa Corrêa; Rosendahl (2003b, p. 12), assim como do materialismo histórico
de Marx e Engels, como defende Cosgrove (2003).
Por conseguinte, a partir daí, passa a não escapar mais à análise
interpretativa dessa ciência todos os componentes importantes da paisagem e/ou
intrínsecos ao indivíduo, como a significância das partes, a linguagem que nomeia
e intermedia, a (inter) subjetividade, a prática social, concorrendo para isso, além
da comunicação como um todo orientado para a ação (WAGNER; MIKESELL, p.
29), também o econômico, que, assim como o sensório, exerce um importante e
decisivo papel na consecução da materialidade e de sua interpretação geográfica
(COSGROVE, 2003).
306
Dessa forma, nem mesmo a imaginação ficaria de fora: trata-se de algo a ser
considerado quando da análise da tessitura de uma realidade em que o cultural é
considerado produção e ao mesmo tempo intermediação comunicativa humana a
ser decifrada (COSGROVE apud CORRÊA; ROSENDAHL, 2003b, p. 13).
Há, em realidade, inúmeros caminhos a serem trilhados pelos
geógrafos, visando contribuir para dar uma inteligibilidade à ação
humana sobre a superfície terrestre.
Nesses caminhos podem ser considerados tanto a dimensão
material da cultura como a sua dimensão não-material, tanto o
presente como o passado, tanto objetos e ações em escala global
como regional e local, tanto aspectos concebidos como
vivenciados, tanto espontâneos como planejados, tanto aspectos
objetivos como intersubjetivos (CORRÊA; ROSENDAHL,
2003b, p. 13).
Assim, o homem, enquanto ser universal, não é somente um algo
determinado, passivo, produto do seu meio, mas também um agente
geomorfológico dotado de psique, ethos e de uma moral determinantes na feitura
recíproca de uma realidade social e espacial construída por diversos matizes
culturais, que lhes são próprios, e intermediado pelas mais variadas formas de
linguagem intra e intersubjetivas. A paisagem, qualquer que seja ela, em qualquer
espaço ou dimensão que possa (ou pareça) se localizar, dessa maneira, ganha um
novo status enquanto objeto de estudo: possui a força de uma identidade que se
comunica, revela-se, se desnuda à interpretação geográfica cultural.
Nesse aspecto, o da espacialidade produzida socialmente, aliás, Soja (1993,
p. 24-30) destaca a contribuição de Micheal Foucault acerca da construção de uma
geografia em que o espaço não é um vazio a ser preenchido por pessoas e coisas,
mas um conjunto de relações sociais que definem localizações que, se na
modernidade não se superpõem, posto ser delimitado e estanque, na pós-
modernidade por vezes podem se sobrepor, se entrelaçar, gerando o que
307
denominou de heterotopia – lugar impossível das coisas possíveis; uma radical
incomensurabilidade, como nos explica Connor (2000, p. 16) também se referindo
a Foucault. Algumas dessas localizações, se sobrepondo ou não, seriam, por
exemplo, o cemitério, a igreja, o jardim, o museu, a biblioteca, a feira, o quartel, a
prisão. Foucault dessa maneira eleva a categoria da espacialidade a um nível
superior à da temporalidade, fenômeno teórico contrário ao entendimento de
pensadores e pesquisadores modernos (historicistas), ou seja, para quem o tempo
(dialético) era mais importante e decisivo à interpretação histórica que
propriamente o espaço (imóvel) e seus caracteres e artefatos. A leitura do espaço,
construído socialmente, assim, em Foucault, passa a ser central na crítica em
relação às formas de poder, à existência, às conjunturas políticas, à realidade
histórica.
Stuart Hall (2004) também destaca esse caráter identitário do espaço
socialmente construído na sociedade contemporânea. Segundo ele, o sujeito, agora
descentrado, contrapondo ao sujeito centrado do Iluminismo e do Sociológico,
localiza-se no presente em culturas nacionais basicamente imaginadas, em que os
sentidos passaram a construir as identidades comunais que por sua vez são híbridas
em qualquer lugar, mesmo as mais fechadas ou que tentam preservar em si
características de nacionalismo e de pureza étnica em contraponto aos inevitáveis
enclaves. A globalização, com o avanço dos transportes e dos meios de
comunicação, que comprimiu o espaço e o tempo, diz Hall referindo-se à
conceituação de Harvey (2001), acelerou esse processo de miscigenação espacial,
mantendo, por um lado, as raízes identitárias em determinados locais fixos e
também em qualquer lugar distinto, ao mesmo tempo em que promoveu, por outro
308
lado, justamente por isso, o seu cruzamento com o global, o extemporâneo, tendo
assim, aparentemente paradoxal, um caráter pluralizador, híbrido, de fragmentação
e manutenção da diversidade. O simbólico, dessa forma, passa a ser um elemento
importante na compreensão da identidade desse novo indivíduo e de seu lócus
cultural fixo/volátil, que, na relação local versus global (tradição/tradução),
dialeticamente se interpenetram e se preservam, gerando um outro algo, a
sociedade global.
3. A cidade como texto
Podemos dizer agora que vamos, no presente trabalho, utilizar o conceito
interpretativo da realidade material construída no espaço urbano proposto por
Corrêa (2003). Na base teórica da Geografia Cultural Urbana desse pesquisador, a
cidade passa a ser vista como uma marca, uma matriz cultural ou um texto no qual
“se lêem a sociedade e suas múltiplas interpretações da paisagem urbana” (p.168).
Nessa concepção, a cultura, produtora e ao mesmo tempo produto do espaço
construído (posto esse ser também um elemento social, como já vimos), tem a
dimensão do político – além do econômico e do social – como uma esfera
importante de poder, que dá direção e significado às coisas. Para sua interpretação,
ou seja, para uma hermenêutica dessa dimensão texto-sócio-espacial da cidade, o
metafórico, essencialmente crítico, se constitui ponto indispensável da Geografia
Cultural Urbana. O mapa, a imaginação, as crenças, os códigos, as marcas, por
exemplo, adquirem status de elementos interpretativos à elucidação e compreensão
do real, posto poderem ser ao mesmo tempo instrumentos e reflexos gerativos do
309
cultural urbano. O cultural e o urbano, assim, se entrelaçam num processo de
expressão do construto social citadino. “As relações profundas entre cultura e o
urbano são complexos e se relacionam de diferentes modos” – explica Corrêa
(2003, p. 175), que em seguida enumera três dimensões culturais que expressariam
essas manifestações da/na cidade: a) a toponímia e a identidade; b) a cidade e a
produção de formas simbólicas; d) a paisagem urbana e seus significados.
No primeiro caso, ou seja, no campo da “toponímia e a identidade”, Corrêa
(2003, p. 176-177) explica que os nomes próprios das coisas ou dos espaços
expressam uma “efetiva apropriação do espaço por um dado grupo cultural”, sendo
também “um poderoso elemento identitário”, articulando assim “linguagem,
política territorial e identidade”. O autor chega a citar, como um exemplo dessa
relação, o caso de um município do Rio Grande do Norte, estudado por Felipe
(2001). No “país de Mossoró”, prossegue Corrêa, “instituições, monumentos e
nomes de ruas revelam o poder do grupo familiar e contribuem para viabilizar o
imaginário social, recriando um lugar à imagem da família hegemônica”.
Acerca da dimensão de “a cidade e da produção das formas simbólicas”,
Corrêa (2003, p. 177-178) detalha que determinadas constituições espaciais
expressam certas culturas ao longo da história, aliando assim forma, função e
simbolismo, que exercem um papel central e transformador que podem variar ao
longo do tempo, como fora a catedral da cidade medieval e hoje representa o
arranha-céu na metrópole moderna. Ao serem transformadas em mercadorias, no
processo de acumulação capitalista, porém, as formas simbólicas, como (além dos
prédios, monumentos etc.), os filmes, as músicas, os móveis de arte e as roupas da
moda, passam a ser “bens e serviços” a serem vendidos e consumidos com “algum
310
conteúdo emocional ou intelectual”, constituindo-se desta maneira em
“instrumentos de entretenimento, comunicação, autovalorização, ornamentação” e
até de “posição social”.
Sobre “a paisagem urbana e seus significados”, Corrêa (2003, p. 179-182)
explica que a vista urbana considerada como um elemento da morfologia da
produção dos indivíduos é por um lado um meio de comunicação da identidade
social, ou seja, um conjunto de idéias, de expressão e de controle social da elite, e
por outro de manifestação étnica, memorial, de sentimentos e valores sociais que
unem uma população. A paisagem urbana também pode inferir contestação
política, mas igualmente ser um instrumento de resolução de conflitos sociais,
promovendo assim aquilo que os seus controladores desejam, isto é, “transformá-la
em produto espontâneo, natural, e fruto de uma tradição da qual a harmonia social
e o desejo de progresso são partes integrantes”.
4. Discriminação espacial: um possível significado
4.1. – Primeira visão: um jogo de escaramuças voltado para o mercado
Logomarcas e elementos do concreto aos quais essas logomarcas se
referem, isto é, referenciais e referências, significados e significantes, sinais e
símbolos, que são utilizados de forma massiva, através da mídia pelas
administrações públicas em geral, na sociedade capitalista contemporânea, a
exemplo dos objetos do presente estudo, deixam evidente a questão de um
311
marketing dirigido e laudatório que gestores públicos buscam desenvolver, através
de agências de Publicidade e Propaganda, sob a supervisão de assessores diretos de
Comunicação Social, enquanto estratégia comunicacional meticulosamente
planejada, portanto não-inocente, junto à população. Assim, do ponto de vista
político-ideológico, e por conseguinte extremamente fugidio para análise,
promovem a respectiva administração municipal e buscam criar, ao mesmo tempo,
uma empatia com o público, cujo sentido tático, em última instância, no aspecto
legal, seria prestar contas dos atos e tornar o cidadão satisfeito com a condução
“eficiente” dessa ou daquela gestão pública. Mas, sub-repticiamente, tratam
também de, por associação, engajamento ou agregação, como parece ser óbvio,
fazer a promoção pública e pessoal do administrador público, ou seja, de si próprio,
este enquanto gestor e também político e potencial candidato a qualquer outro
próximo cargo eletivo na esfera do público – mesmo sendo isso contrário, no caso
brasileiro, à legislação vigente desde o começo do processo de redemocratização
nacional a partir da Constituição Federal de 1988, que instaura os princípios
jurídicos da “impessoalidade, da moralidade e da publicidade” (art. 37),
alcançando desta forma a obrigatoriedade do apartidarismo das propagandas
públicas (BRASIL, 1988, p. 36). Não haveria, assim, tanta distância entre intenção
e gesto, como disse o poeta1, nem entre consumidor e eleitor, como observa a
normativa ordinária estabelecida pelo Poder Legislativo (leis eleitorais do período
aqui estudado: 7.493/86, 7.664/88, 8.214/91, 8.713/93, 9.100/95 e 9.504/97) e da
Justiça Eleitoral Brasileira (portarias, resoluções etc. daí decorrentes).
1
Refiro-me a Chico Buarque de Hollanda em sua música Fado Tropical, da peça Calabar, que
diz: “...Se trago as mãos distantes do peito / É que há distância entre intenção e gesto.” (BOLLE, 1980,
p. 50).
312
Apesar de essa realidade aparecer assim de maneira geral numa democracia,
isto é, explícita e implicitamente, num jogo dialético-sígnico, de escaramuças,
entrelaçando ora interpretante ora interpretado, muitos ainda não conseguem fazer
clara e distintivamente tal leitura, em particular no aspecto perceptivo-visual do
imagético extralegal, e acabam assim apenas apreendendo e forçosamente
lembrando – por conta de uma imperiosa e sistemática massificação publicitária
sob o manto da pseudolegalidade –, dessa ou daquela marca como sendo a desse ou
daquele prefeito-virtual candidato, consumindo-o ao mesmo em que são
consumidos, como ocorre com qualquer refrigerante ou sabonete no mundo das
mercadorias. Com efeito, faz-se oportuno e impreterível, nesse sistema
concorrencial, consumista e permissivamente fissurado, para o gestor público,
desenvolver uma campanha comunicacional que, além de agradável sob todos os
pontos de vista do mercado, possa assim agir, ou seja, “prestando contas” e ao
mesmo tempo promovendo cooptação dos eleitores, dos contribuintes, dos
cidadãos em geral, operando nos campos da visibilidade alfabética, como acredita
Donis (1997), e do psicológico, como nos demonstra Arnheim (2000).
As logomarcas adotadas pelos políticos-administradores de Natal, entre
1985 e 2004, acabam, contudo, revelando algo mais que as intenções diretas e ao
mesmo tempo furtivas, conforme exposto acima. Revelam uma progressiva
inclinação discriminatória para o atendimento das demandas sócio-econômicas da
cidade, a se inscrever no espaço, bem como, e, por conseguinte, as reais intenções,
nesse aspecto, do ideário gerencial público e dos interesses políticos dos seus
respectivos titulares, com especial destaque, no caso em tela, para a prefeita de
Natal Wilma Maria de Faria, chefe do Executivo Municipal por três vezes (e quase
313
que consecutivamente), de 1989 a 2002, no período aqui delimitado para análise
(de 1985 a 2004).
4.2. – Logomarcas: objetos estilísticos de apropriação e reprodução
As principais logomarcas adotadas respectiva e seqüencialmente pelos
prefeitos a partir de referentes espaciais concretos, os quais desde agora
passaremos mais detidamente a decifrar, foram os seguintes: (1) o Forte dos Reis
Magos, do prefeito Garibaldi Alves Filho; (2) a marca-símbolo literária e da
historiografia tipográfica de um “V” estilizado dentro de um círculo, da prefeita
Wilma de Faria (então Wilma Maia); (3) a fachada do prédio da prefeitura de
Natal, sede do máximo poder público municipal, do prefeito Aldo Tinôco Filho;
(3) o Farol de Mãe Luíza, da prefeita Wilma de Faria; (4) o Pórtico de Natal, da
prefeita Wilma de Faria; e (5) o Morro do Careca, do prefeito Carlos Eduardo
Alves.
Estas representações gráficas, reforçadas pelos slogans, demonstram em
primeiro lugar uma apropriação dos bens patrimoniais simbólicos, calcadas no
concreto histórico da cidade, tendo como substrato o conhecimento acadêmico e o
imaginário popular (oriundos de bases históricas e daí decorrentes no senso
comum), logo, possuindo um poder persuasivo muito forte, decorrente de um certo
assente citadino, de uma incorporação tácita do poder sígnico, histórico e
midiático, passível à contemplação, ao desejo, ao consumo, conseqüentemente, à
favorabilidade que esperam seus titulares. Valor de uso e valor de troca não se
desapartam. Ao contrário: ambos se acentuam à medida que criativamente são
314
reproduzidos enquanto marcas e a sociedade capitalista avança com seus dogmas
de natureza crematística, contradições, reestruturações, flexibilidades. Fetichismo,
como analisa o segredo da mercadoria Marx (1983, p. 70-78), e feiticismo, como
prefere discutir a literatura Andrade (2006, p. 43-56), portanto, estão presentes,
contando com a força misteriosa das relações de trabalho e encantando os olhos de
quem vê e interpreta. É de tudo isso que os gestores se apropriam, e não-somente
do objeto-símbolo histórico em si, pois de outra forma, ou seja, sem valor
intrínseco processado, não se daria nenhuma comunicação nem teria sentido
qualquer reprodução mercadológica.
4.3. – A heráldica moderna e o sentido contemporâneo
Em tais reproduções, o sentido heráldico contemporâneo dos prefeitos em
questão não deixa de acentuar, ou mesmo impor, em geral, certas marcas próprias
às respectivas marcas, ou seja, de incorporar submarcas de primeiro grau, como
chamaremos, que são simples elementos identitários, sinais meramente indicativos
da pessoalidade e do personagem do gestor; e/ou submarcas de segundo grau,
como também chamaremos, que são elementos interiores, da personalidade, do
caráter, do Eu psicológico – que podem se entrelaçar com aquele, no campo da
comunicação sígnica, e por isso mesmo servirem para variadas interpretações,
posto dependerem também do Eu interpretante e do grau cultural deste acerca do
conjuntural daquele, ou seja, daquilo que envolvam tanto aspectos do subjetivismo
individualista quanto do objetivismo abstrato que ocorrem somente no campo
social-ideológico de que nos fala Mikhail Bakhtin (2006). Tudo isso comporia,
315
neste mesmo rumo, isoladamente ou em conjunto, um poderoso sistema de
comunicação midiática num infinito oceano histórico de comunicação e de inter-
relações sociais e ideológicas. Teríamos coragem de dizer, por exemplo, que a
foice e o martelo como emblema não representariam nada para o século XX? Ou
que a sinal da cruz nada expressa sobre a nossa civilização ocidental?
No caso em tela, abstraímos algumas heráldicas do nosso grupo selecionado
e delas alguns elementos intrínsecos para análise nesse aspecto. A marca lítero-
tipográfica de um “V” estilizado dentro de um círculo (algo material tácita e
unanimemente incorporado às práticas lingüísticas comuns e cotidianas
principalmente em certos ambientes de codificação das cidades, quer seja nas
escolas, no comércio, quer seja nas repartições públicas ou nas conferências, quer
seja nas áreas médicas ou laboratoriais etc., certamente tornado mais intenso com o
advento do mundo fabril, assim como vem sendo agora cada vez mais
disseminado, com a informática, o símbolo da arroba, através da proliferação dos
domínios e dos endereçamentos eletrônicos), da então prefeita Wilma Maria de
Faria, que teima a nos demonstrar algo concluído ou positivamente superado pela
gestão pública municipal, e, ao mesmo tempo, no jogo furtivo, delineado entre o
legal e o ilegal, conforme discutido acima, nos transmite claramente o “V” de
Vilma2, da Vitória, do Veni vidi vici – afinal, uma guerra eleitoral antecede a
batalha de outra guerra que é administrar.
2
Apesar da prefeita de Natal ter seu nome de nascimento registrado em cartório com um
“W”, o dábliu, ou vê duplo, ou dobrado, como utilizamos aqui para identificá-la: Wilma (conforme nos
revelou numa entrevista jornalística à época), em suas campanhas políticas sempre utilizou a letra “V”,
sinalizando e ao mesmo tempo associando Vilma à “Vitória”, ao “Vamos”, ao “Vencer”, como ficou
claro desde sua primeira campanha política para prefeita, em 1984, quando seu slogan dizia “Vamos
316
Uma outra heráldica de natureza, apenas nesse aspecto, idêntica, é a do
prefeito Carlos Eduardo Alves. Em sua logomarca, a do Morro do Careca,
totalmente estilizado, o traço direito curvilíneo que delimita a parte lateral
desmatada do morro forma ao mesmo tempo a letra “C”, de Carlos, que forma
também a palavra “Careca”, do morro. O subliminar aí é forte: absorve-se sem que
na maioria das vezes claramente se perceba o elemento alfabético, mas que está lá.
De qualquer modo observável, no particular ou no conjunto, porém, poder-se-ia
deduzir logicamente que não existe Morro do Careca sem esse prefeito
especificamente nem ambos sem a cidade, posto o principal cartão postal desta
cidade estar inalienavelmente a representá-los; nem a cidade sem o morro e sem o
tal prefeito, já que ambos, morro e Natal, no cê e na cidade representada na
logomarca, naturalmente os contêm e os expressam, não por acaso aquele como o
prefeito Carlos Eduardo e o Morro do Careca como a própria cidade.
Ora, é necessário aqui objetarmos por um momento, afirmando que
observações desse tipo podem levar a tergiversações, talvez a análises fantasiosas
ou mesmo absurdas. Isso não deixa de ser em parte verdade, especialmente quando
não se segue nenhum critério, como por exemplo a não observância de valores
intrínsecos em certos graus e que representam uma força persuasiva compósita de
um enunciado sígnico extraverbal, como dissemos acima: tudo não vai passar
também da acuidade perceptivo-intelectual acerca de quem, do como e de o quê se
interpreta. Mesmo acreditando termos observado criteriosamente as heráldicas
modernas em questão, o que nos daria para de maneira segura e fundada
com Vilma”, no qual os dois dedos da mão direita, erguida, da candidata, em forma de vê, compunha a
palavra “Vilma”.
317
continuarmos este tipo de decifração, realçando outros elementos intrínsecos
passíveis à presente análise, como por exemplo a rica interpretação que poderia se
fazer acerca dos slogans destas logos e de suas respectivas tipologias gráficas (dois
importantes elementos comunicativos presentes em quase todas as logomarcas aqui
selecionadas), preferimos, neste rumo, não nos alongarmos, posto já consideramos
por ora os destaques feitos (pois é também verdade que foram e são percucientes e
elucidativos à medida que nos aprofundamos e venhamos nos aprofundar neste tipo
análise) como sendo suficientes para, por outro lado, nos levar num outro sentido,
o sentido de um trato interpretativo mais prospectivo e venturoso em relação às
forças produtivas e pulsantes da cidade.
4.4. – O sentido de forças pulsantes, produtivas e gestoras da heráldica na
cidade
Neste segundo momento da análise, assim, em decorrência daquele,
ressaltam-se para nós os elementos culturais e o desenvolvimento histórico do
urbano, em consonância com as formatações do poder municipal afiguradas nas
suas respectivas heráldicas. Observamos, desta forma, em primeiro lugar, um
deslocamento no espaço urbano e no tempo histórico (continuum) feito a partir das
escolhas dos referenciais da cidade como emblemas para cada administração.
Parte, inicialmente, tal deslocamento, em 1985-1988 (Garibaldi Filho), do bairro de
Santos Reis e da Praia do Forte, onde está o Forte dos Reis Magos; segue, em
1989-1992 (Wilma Maia), para o centro da cidade, ou Cidade Alta, onde se
localiza o cargo jurídico, enquanto instituição pública, da Prefeita de Natal;
318
permanece nesse lugar, em 1993-1996 (Aldo Tinôco Filho), onde se localiza a sede
da Prefeitura de Natal, cuja fachada expressa o símbolo máximo do Poder
Municipal; ruma, em 1997-2000 (Wilma de Faria), para Mãe Luíza, bairro que dá
nome ao Farol, este situado na cabeceira de um dos morros de onde se delineia
parte da terra e do mar da cidade; segue, em 2000-2002 (Wilma de Faria), para a
BR-101 e se chega até o bairro de Neópolis, à altura do Conjunto Cidade Satélite,
onde se encontra, à entrada da cidade, o Pórtico de Natal; e, finalmente, em 2002-
2004 (Carlos Eduardo Alves), volta-se para o bairro de Ponta Negra, chegando à
Praia de Ponta Negra, onde está o mais conhecido cartão postal da cidade, o Morro
do Careca.
Esse deslocamento, essencialmente no espaço intra-urbano e
exclusivamente no tempo político-histórico da cidade, revela, além do seu sentido
cardeal, geográfico, e das apropriações patrimoniais, materiais e subjetivas, algo
mais que a preferência por certos marcos históricos ou mesmo um mero avançar
num certo rumo. Revela um sentido social que, bem a propósito, pode ser expresso,
em resumo, no sentido Norte-Sul, como se pode ver na síntese pontilhada de nossa
Ilustração 1. Revela, por isso, inversamente, ao mesmo tempo, à medida que se
segue para a Zona Sul, um igual e proporcionalmente afastar-se das regiões Norte,
Oeste e Leste, detentoras hoje, especialmente as duas primeiras (e por conseguinte
dos bairros que as compõem), dos maiores problemas e desafios sócio-espaciais da
cidade, como desemprego, mortalidade infantil, carência habitacional, violência
familiar e urbana, analfabetismo, falta de infra-estrutura básica e de equipamentos
comunitário, em favor de lugares da Zona Sul para onde hoje convergem as classes
mais abastadas de autóctones e de turistas solváveis, que fomentam um vigoroso
319
mercado gastronômico, de hospedagem, rentista e imobiliário, conforme nos
mostra (tal cidade dual) uma farta bibliografia (CLEMENTINO, 1995; LIMA,
2001; LOPES JÚNIOR, 1997; SILVA, 2003; VALENÇA; GOMES (orgs.), 2002;
VIDAL, 1998; etc.) e os dados oficiais (IBGE, 2002; LOPES, 2004; SEMURB,
2003; etc.).
A Zona Sul de Natal foi igualmente para onde, acompanhando o deslocar
das escolhas dos referenciais citadinos pelos sistemas comunicacionais dos
prefeitos, os sucessivos governos municipais de Natal, apoiados pelos governos
federal e estadual, ao longo do período em questão, voltou mais suas preocupações
(direção, sentido) e vem fazendo vultosos investimentos infra-estruturais urbanos,
conforme nos demonstra fartamente a literatura acadêmica supracitada a respeito e
também pode ser facilmente constatado in loco.
Destacamos, como exemplos desse sentido, dentre os mais recentes, o
saneamento de Ponta Negra e Alagamar e a construção da Ponte Forte-Redinha
(que embora esteja situada na divisa entre as Zonas Norte e Leste – o rio Potengi –,
unindo as Praias do Forte e da Redinha, objetiva interligar as praias do litoral Norte
à Ponta Negra através da Via Costeira e daí às praias do Litoral Sul, em outras
palavras, ampliar aquele que começa e termina na Zona Sul, ou seja, o “corredor
turístico da cidade” que, como sabemos, passa à margem das áreas degradadas e
dos graves problemas sociais do restante da cidade), além dos investimentos
maciços no receptivo e no imagético, com permanentes serviços de apoio ao turista
e de cuidados com praças, logradouros, canteiros, jardins e fontes. Valorizam-se,
dessa forma, terrenos, casas e apartamentos, e outros empreendimentos de porte
(investimentos capitalistas, por assim dizer, de incorporadoras, empreiteiras,
320
conglomerados, consórcios), como condomínios empresariais e residenciais,
hotéis, restaurantes, universidades, rede de supermercados, shoppings.
Não seria à toa, portanto, que as escolhas para referenciar a heráldica
moderna dos gestores midiatizados de Natal, veiculadas especialmente pela TV
que atinge um maior número de pessoas (habitantes, visitantes, eleitores etc.),
fossem referências históricas e de consumo turístico, com o assente afetivo da
população (afinal, segundo prega o discurso oficial, o turismo gera emprego,
renda...), como por exemplo o Forte dos Reis Magos e o Morro do Careca, ambos
elementos da paisagem potiguar que hoje talvez sejam os mais globalizados, tanto
pelos meios de comunicação, como internet, folhetaria, agências de viagens,
revistas especializadas, como também pelos meios de transportes, principalmente
os aéreos, cujos passageiros (de vôos domésticos e internacionais), chegam e saem
exclusivamente pelo Aeroporto Internacional Augusto Severo – por sinal,
localizado às margens da BR-101, nas proximidades do Pórtico de Natal, por onde
necessariamente se passa para alcançar os hotéis, restaurantes, o Morro do Careca,
enfim, a Praia de Ponta Negra e a Via Costeira, começo e fim desse corredor
turístico.
A coerência heráldica dos gestores, contudo, não se dá somente em relação
às escolhas elementares, afigurações gráficas, aplicabilidades midiáticas e práticas
públicas relativamente discriminatórias que beneficiam mais uma parte da
população (e visitantes solváveis) de uma região em detrimento da maioria das
outras. Acontece também no campo político – que nem mesmo as querelas típicas
que habitualmente ocorrem durante as eleições desmentem, apesar de esses fatos
eleitorais e circunstanciais servirem de pretexto público para o partidarismo vulgar
321
de seus atores, para o proselitismo ingênuo de grande parte da população, para o
sectarismo trivial da maioria das elites, todos esses intermediados pelos Meios de
Comunicação de Massa locais e calcados na adoração, na dependência ao poder via
nepotismo, da mordomia e/ou pura e simplesmente num populismo residual.
Tais componentes são, portanto, indissociáveis da conjuntura política que
unem todos os políticos titulares dos respectivos emblemas aqui analisados.
Formam o conjunto armorial de cada um desses brasões que, no entanto, não
podem ser vistos como fenômeno físico, a tocar a retina e através do nervo ótico
serem levados ao cérebro para decifração, repulsa ou aquiescência: constituem uma
forma de poder, embora sensorial, que dá-se somente pela consciência ou mesmo
pela conscienciosidade: sabe-se que aquela marca é daquele prefeito que representa
aquele grupo, facção, circunstância, história etc. e assim o respeitam (os
partidários, parasitas, adoradores etc.) ou o repelem (os adversários ferrenhos,
desaprovadores circunstanciais etc.). Trata-se, em suma, da ideologização da
prática secular e política da atual classe dominante (políticos, empresários etc.),
oriunda de antigas classes dominantes do Brasil e em particular do Nordeste
(sesmeiros, coronéis, latifundiários, oligarcas etc.), a se afigurar invisivelmente
(posto ser força) em seus grafismos modernos, que pode ser resumido numa
palavra: ideografismo.
Tal padrão de coerência política, histórica e ideológica, condicionada na
heráldica de hoje e reflexiva no meio social, pode ser materialmente identificada
através das práticas políticas de seus atores bem como em suas relações
consangüíneas e de interesses pessoais e de grupo. Senão vejamos. O primeiro
prefeito eleito por voto direto após a redemocratização nacional, Garibaldi Alves
322
Filho (à época já deputado estadual por várias legislaturas), descende da oligarquia
Alves, sendo sobrinho da maior expressão desse grupo político-familiar, o ex-
deputado federal (quatro vezes), ex-governador (1961-1965), ex-ministro (duas
vezes: governos Sarney e Itamar Franco), ex-empresário do ramo têxtil e ex-
proprietário fundador do maior conglomerado de comunicação do Estado (TV
Cabugi, Jornal Tribuna do Norte, Rádios Cabugi, Difusora de Mossoró etc.),
Aluízio Alves (ALVES, 2001; MACHADO, 1992; MACHADO, 1995; SENADO
FEDERAL, 2007; TRINDADE, 1995). Wilma Maria de Faria (à época Wilma
Maia), por sua vez, descendente da oligarquia Maia, cuja maior expressão foi o ex-
secretário de Educação do Governo Dinarte Mariz (1956-1960), ex-deputado
federal, ex-presidente do IPASE, ex-representante do MEC junto à SUDENE, ex-
governador (1975-1979), ex-presidente da estatal Companhia Nacional de Álcalis,
senhor de terras da Fazenda São João e proprietário e fundador do Grupo Maísa,
em Mossoró, Tarcísio Vasconcelos Maia (MACHADO, 1992; MACHADO, 1995;
TRINDADE, 1995), representado familiarmente no RN pelo grupo de
comunicação Tropical (TV Tropical, Rádio Tropical etc.) de propriedade de seu
filho, o ex-prefeito, ex-governador (duas vezes) e senador (duas vezes) José
Agripino Maia.
Tanto Aluízio como Tarcísio apoiaram o golpe militar de 1964, sendo que,
em meados do período da ditadura, Aluízio foi cassado por dez anos, sob a
acusação de corrupção em seu governo, enquanto Tarcísio permaneceu próximo
dos militares, sendo amigo pessoal do presidente Ernesto Geisel e do general
Golbery do Couto e Silva (ALVES, 2001; MACHADO, 1995). A partir da
trajetória político-ideológica desses dois nomes (Aluízio e Tarcísio), ambos
323
responsáveis máximos pelos ciclos Alves e Maia na política do Rio Grande do
Norte, rivalizando fervorosamente em alguns instantes e noutros se associando
pelo poder reservado às elites do Estado, pode-se conhecer suas respectivas
descendências políticas ao nível do poder local no tempo/espaço aqui em questão.
Identifica-se, assim, os mesmos traços, especial e indelevelmente, nos ex-prefeitos
Garibaldi Filho e Wilma de Faria, nos quais também e ainda subsistem as correntes
oligárquicas desde o Império até os populistas do passado republicano mais
recente, como as caracterizadas pelas cores vermelha, da Arena e posteriormente
PDS/PFL, do grupo Mariz/Maia, e o verde, do MDB e depois PMDB, do grupo
Aluízio/parentes e aderentes. Se Garibaldi e Wilma se rivalizaram em alguns
instantes, em outros, assim como procederam seus antecessores no passado,
também se confluíram quando a harmonia era necessária para se alcançar o poder.
Bastaria dizer isso, além das respectivas descendências consangüíneas e
hereditariedades políticas, para mostrar um padrão de identidade comum a ambos.
Mas continuemos, mostrando o complexo político capital de ambos e seu
entrelaçamento com os demais, o que consideramos necessário à compreensão da
trajetória (afiguração, sentido, deslocamento etc.) da heráldica na cidade.
Quando candidato, Garibaldi Filho polarizou a eleição com Wilma Maria de
Faria – à época titular da Secretaria do Trabalho e Bem-Estar Social (STBS) do
governo José Agripino (1983-1986) e esposa do ex-secretário de Saúde do governo
Tarcísio Maia e ex-governador do Estado Lavoisier Sobrinho Maia (1979-1983),
do qual foi pródiga assistencialista e clientelista através do Movimento de
Integração e Orientação Social (MEIOS). Garibaldi consegue se eleger, segundo
dados do Tribunal Regional Eleitoral (1985), com 97.920 votos (Wilma obteve
324
82.136), sob a bandeira da Nova República, da revalorização municipal, da
cidadania e dos munícipes: não é à toa que é desse seu mandato a logomarca do
Forte dos Reis Magos, estilizado, a sinalizar, de seu ponto estratégico, entre o rio e
o mar, através do poder, para a cidade e seus habitantes, aquilo que mais a
identifica em todos os tempos e em toda sua história.
Wilma, contudo, não perde completamente. A sua queda, como se diz, foi
para cima: na eleição do ano seguinte (1986), pelo PDS, consegue se eleger como a
primeira mulher do RN a chegar à Câmara Federal e vai participar, também como
constituinte, da elaboração da nova Constituição Federal, em Brasília, quando
muda para o PDT.
O prefeito Garibaldi Filho, porém, rebento do vice-governador e ex-
deputado estadual Garibaldi Alves (irmão de Aluízio Alves), não conseguiu fazer,
ao término de seu mandato, na campanha de 1988, como seu sucessor, o primo
Henrique Eduardo Alves3 (então deputado federal hoje já em seu décimo mandato).
Henrique obteve, segundo o Tribunal Regional Eleitoral (1988), 86.808 votos,
tendo sido eleita, desta vez, com 93.728 votos, Wilma Maria de Faria, que desde a
época do marido governador cultivava uma imagem de líder emergente a partir de
um trabalho assistencialista que fez na STBS, que consistia em realizar favores
para a população pobre, e no estímulo para que surgissem e se apegassem à
estrutura estatal líderes comunitários através da criação de clubes de mães,
conselhos comunitários etc. Wilma, dessa forma, tendo sido do PDS e
descendendo, como sua oligarquia, da Arena, mantinha-se coerente com a
3
Se em 1988 não conseguiu eleger o primo, Garibaldi Filho, entretanto, foi eleito senador em
1990; eleito governador em 1994; reeleito em 1998; renunciou em 2002 para novamente concorrer,
com vitória, ao Senado Federal, onde tem seu mandato garantido até 2011.
325
ideologia dos militares que permaneceram no poder por 21 anos: nesse período eles
apoiaram vigorosamente a centralização dos poderes locais nas mãos dos herdeiros
do coronelismo regional que lhes eram favoráveis, em detrimento de outras
expressões políticas (TRINDADE, 1995), bem como promoveram, ao final do
ciclo militar, adequado à transição democrática, o surgimento de lideranças
eleitoreiras, a maioria oriunda de conjuntos habitacionais massificados e carentes
de infra-estrutura urbana, portanto dependentes, dentro da Política Nacional de
Habitação na qual se incluiu o BNH, COHABs, INOCOOPs e alguns programas
como o PROFILURB, PROMORAR, CURA e FICAM (GUIMARÃES, 2002).
Dessa forma, e por conta de tudo isso, Wilma de Faria (na época ainda com
o sobrenome Maia, como já dissemos), com uma excelente imagem junto à
população (tanto que conseguiu derrotar um “Alves”), passou a ter uma logomarca
personalística, a de um “V” dentro de um círculo. Ao contrário de Garibaldi Filho,
também por conta de seu alto índice de aceitação popular, conseguiu eleger o seu
sucessor, o até então desconhecido engenheiro sanitarista Aldo Tinôco Filho (com
quem não possuía nenhum laço consangüíneo), que ocupava a pasta do Instituto de
Planejamento de Natal (Iplanat), derrotando, pela segunda vez, o deputado federal
Henrique Eduardo Alves, filho de Aluízio Alves. Aldo obteve, no primeiro turno,
segundo o Tribunal Regional Eleitoral (1992a), 55.903 votos e Henrique 81.495
votos (os demais candidatos somaram 69.840 votos), mas no segundo conseguiu
reverter a situação e se eleger com 112.993 votos, ainda segundo o Tribunal
Regional Eleitoral (1992b), ganhando por uma apertada diferença para Henrique,
que ficou com 112.032 votos.
326
Ao assumir o cargo Aldo Tinôco mantêm-se fiel à gestão antecedente,
meses depois, porém, costura novas alianças, muda de partido, demite vários
auxiliares ligados a Wilma, nomeia auxiliares oriundos do PT de São Paulo, rompe
enfim com a ex-prefeita e tenta fazer uma administração independente das
oligarquias. Sua logomarca nesse período foi a fachada do prédio da prefeitura, a
sinalizar, talvez, imutavelmente, esses dois momentos: uma conexão com a
pessoalidade institucional anterior, de Wilma (prefeita de Natal), e ao mesmo
tempo o contrário disso, ou seja, um recomeço, possivelmente uma terceira força
política, a partir do próprio poder público municipal (prefeitura de Natal). Aldo,
entretanto, é sufocado, inclusive pelos empresários prestadores de serviços que
viam na iminente volta de Wilma a possibilidade do não recebimento de seus
pagamentos caso não a acompanhassem. Ao final do mandato, assim, a gestão
Aldo Tinôco Filho torna-se sofrível, com a população sentindo, por exemplo, a
falta regular da coleta de lixo na cidade pelo boicote surdo dos empresários.
A ex-prefeita Wilma – revelando em entrevistas que fora traída pelo seu ex-
auxiliar que conseguira com seu prestígio e carisma eleger, conforme pudemos
acompanhar à época –, volta ao poder público municipal de Natal em 1996 como
que retomando o seu lugar. Derrota, com 92.224 votos, no primeiro turno, o
“candidato dos Alves”, João Faustino (do PSDB), que obteve 66.227 votos, e vai
para o segundo turno contra a segunda colocada, a professora Fátima Bezerra (do
PT), que alcançara 74.444 votos; no segundo turno, Wilma, com 136.396 votos,
vence Fátima Bezerra, que ficou com 127.531 votos, conforme, respectivamente,
dados do Tribunal Regional Eleitoral (1996a; 1996b). Ao mesmo tempo em que
sinaliza para uma nova mudança política, já que ingressara num partido socialista,
327
o PSB, defenestrando assim seu passado junto à direita militar e parecendo querer
afastar-se de sua ascendência oligarca, afora a satisfatória volta após a experiência
com seu valido, a prefeita parece conseguir demonstrar isso, também como arrojo,
em sua nova heráldica. Passa a ter agora como logomarca o Farol de Mãe Luíza –
que na propaganda igualmente sinaliza, com seu dinâmico e circular facho de luz
sobre a cidade (especialmente na TV), um outro caminho, quem sabe um luminoso
tempo.
Na eleição seguinte, a de 2000, Wilma novamente se candidata à sua
própria sucessão e, pela terceira vez, consegue se eleger prefeita de Natal,
mantendo por alguns meses a mesma logomarca da administração anterior. Muda
sua heráldica em seguida para o Pórtico de Natal, como a indicar para a abertura da
cidade, pela Zona Sul, à visitação e ao turismo, ao mercado de serviços e à
globalização. Não seria coincidência o fato de que o governo do Estado, nesse
interregno dos dois mandatos da prefeita Wilma de Faria, em alguns momentos em
parceria com a própria prefeitura e também com o governo federal (maior provedor
de recursos), construísse um novo aeroporto em Parnamirim (que lembra as dunas,
com seu telhado ondulante) e o Viaduto do Quarto Centenário, na confluência da
Avenida Salgado Filho com a BR-101; elaborasse e concluísse uma complexa obra
de drenagem e saneamento em Alagamar/Ponta Negra; reabrisse o Hotel-Escola
Barreira Roxa (para treinar e formar mão-de-obra para o setor turístico da cidade:
garçons, cozinheiros, recepcionistas, gerentes, etc.); criasse o curso superior em
Turismo na Universidade Estadual (UERN); entre outras. O próprio Pórtico de
Natal foi mandado erguer pela prefeitura como a dar boas-vindas e anunciar –
como anunciou a estrela bíblica aos Três Reis Magos vindos do Oriente – as boas-
328
novas aos visitantes vindos pelo aeroporto ou pela estrada (BR-101) oriundos de
qualquer parte do Brasil e do mundo.
Nessa última e terceira eleição de Wilma à prefeitura de Natal, porém, um
fato político interessante ocorre: um certo “avançar” político em seu “arrojado”
caminho. Para conseguir seu intento eleitoral, coloca em prática uma forma de
acomodação política face às condições conjunturais nas quais se sobressaem
algumas forças progressistas e conservadoras da sociedade brasileira após a
consolidação da democracia desde 1988. A candidata, que passara para o PSB, vai
enfrentar mais uma vez e bem mais estruturado eleitoralmente o PT – que tem
como candidata, pela terceira vez, a professora Fátima Bezerra –, e representantes
do grupo político do qual é originária. O novo caminho, entretanto, é na aparência
uma espécie de semicírculo jovial ao passado. Wilma encontra apoio à sua eleição
dentro da própria oligarquia Alves, que parcialmente se divide: o candidato a vice-
prefeito escolhido por ela para compor sua chapa é o então deputado estadual
Carlos Eduardo Alves, filho de Agnelo Alves, este por sua vez ex-prefeito de Natal
(quando foi cassado junto com o irmão Aluízio Alves) e então prefeito de
Parnamirim (hoje no segundo mandato). Carlos rompera com parte do PMDB,
ingressara no partido de Wilma e obtivera o apoio do pai-prefeito. Ambos são
acompanhados por alguns seguidores do grupo oligárquico ao qual pertencem. Por
fim, todos da família Alves, ainda capitaneada pelo presidente regional do PMDB,
Aluízio Alves, junto com o então governador Garibaldi Filho (em seu segundo
mandato) e o deputado federal Henrique Eduardo Alves, decidem apoiar a chapa
Wilma-Carlos numa das maiores alianças partidárias do Rio Grande do Norte:
PMDB / PPB / PSB / PPS / PMN / PV / PL / PAN / PSD. Wilma e Carlos sequer
329
vão ao segundo turno – vencem, de acordo com os dados do Tribunal Superior
Eleitoral (2000) e do Tribunal Regional Eleitoral (2000), logo no primeiro turno
com 178.016 votos (57,71%) contra 90.630 votos (29,38%) do segundo colocado
(Fátima Bezerra, da coligação PT / PDT / PC do B / PCB / PHS / PT) e 33.995
votos (11,02%) do terceiro colocado (Sonali Rosado, da coligação PSDB / PFL /
PTB / PRN / PSL), ou seja, teoricamente derrotam aquelas duas outras forças que
aparentemente seriam antagônicas entre si.
Dois anos depois, em 2002, no entanto, Wilma deixa a prefeitura para
seguir um caminho que lhe apontou o farol da política: concorrer ao governo do
Estado, obtendo êxito, inclusive, na reeleição, em 2006 (no presente, 2007,
encontra-se em seu segundo mandato, depois de vencer, entre outros, o próprio
Garibaldi Filho, que a vencera em 1985 e a apoiou em 2000 para a prefeitura). A
saída de Wilma da prefeitura abre caminho para o vice assumir o cargo de prefeito
de Natal. Carlos, no entanto, permanece com a logomarca da ex-prefeita como a
sua heráldica municipal de poder, assim como também mantêm os antigos
assessores de Wilma em seus respectivos cargos. A força e o personalismo de
Wilma permanecem impregnados nas paredes visíveis da estrutura do poder, nas
formas de comunicação social da prefeitura e até no marketing pessoal do prefeito.
Tanto que Wilma o apóia, em 2004, para continuar como prefeito de Natal. O
candidato obtém êxito na recondução ao cargo – mas de forma muito difícil, como
veremos a seguir – a despeito das críticas sobre sua administração estar
subordinada à identidade anterior e o fantasma do wilmismo pairar por todos os
gabinetes e recônditos municipais. Sobre esse assunto, diz Spinelli (2007, p. 6),
pesquisador da UFRN nessa área:
330
É inegável que a (re)eleição de Carlos Eduardo representou uma
vitória incontestável de Wilma de Faria. O seu prestígio pessoal
frente ao eleitorado pesou na votação do candidato por várias
razões: ele era seu vice e manteve em sua administração o mesmo
secretariado, o mesmo estilo, o mesmo programa de governo, o
mesmo marketing institucional, a tal ponto que o eleitor comum
era levado a pensar que Wilma de Faria continuava à frente do
Palácio Felipe Camarão, sede do governo municipal.
Por seu turno, ainda como vice que acabara de ascender ao cargo de
prefeito, Carlos Eduardo apóia a candidatura de Wilma, em 2002, ao governo do
Estado (assim como na disputa posterior dela à reeleição, em 2006), depois dele ter
sido também reconduzido em 2004, como já dito. E o faz em detrimento de seus
familiares (à exceção do pai, o prefeito de Parnamirim) que se baldearam para a
candidatura de Fernando Bezerra, o vice-governador de Garibaldi Filho, em 2002,
e, depois, na de 2006, ter ficado contra o seu primo, o próprio Garibaldi. Revela-se
dessa forma um penhorado valido e um fiel aliado de sua patroness, mantendo dela
o mesmo armorial político e a mesma logomarca moderna até o momento oportuno
de mudar – ao contrário do que fez Aldo Tinôco Filho que, por conta disso, saiu da
política do RN tão rapidamente quanto entrou.
Esse momento de mudar a heráldica de Carlos Eduardo ocorreu somente
após Wilma conquistar, com ajuda de seu protegido que acabara de deixar na
prefeitura, o cargo de governadora do Estado, em 2002. A nova logomarca de
Carlos Eduardo foi instituída quando a gestão dele estava terminando e se
preparava para ser candidato em 2004. Apesar de se referir a outro prefeito e a uma
outra administração, no entanto, a logomarca com o Morro do Careca parece
aprofundar, como a sombra da ex-prefeita ainda a pairar na gestão pública
municipal, um estilo que cultiva, além da beleza plástica, forte e dinâmica da
331
imagem, a beleza natural, forte e dinâmica do turismo. Ambos, nesse ponto, se
completam: o turismo pode ser contemplativo e a imagem pode ser turística. A
força e o dinamismo decorrem exatamente de suas próprias produções e
desenvolvimento sócio-econômicos. Não seria sem esses motivos (bem como pelos
demais já expostos acima acerca da mesma heráldica e prefeito) que Carlos
Eduardo Alves a manteria em sua segunda gestão – momento em que, mesmo
recebendo o apoio de Wilma governadora, vence uma eleição acirrada com menos
de 4% dos votos válidos de diferença. Essa pequena diferença de vantagem pró-
Carlos, a despeito de ele ter vencido em três das quatro Regiões Administrativas de
Natal (Sul, Leste e Oeste), dá-se justamente porque foi na Zona Norte a única em
que perdeu com uma grande margem de diferença, aliado à baixíssima diferença
que obteve na Zona Oeste. Trata-se da comprovação do que afirmamos acerca do
deslocar-se no tempo e no espaço da heráldica municipal, reflexo do sentido das
políticas públicas municipais cada vez mais protecionistas para com a Zona Sul,
em detrimento proporcional nesse afastar-se exatamente da Zona Norte e em
menor escala da Zona Oeste – não por acaso as socialmente mais necessitadas.
Senão vejamos, muito a propósito, o que diz ainda Spinelli (2007, p. 1-2):
Vendo-se a eleição da perspectiva das regiões da cidade, percebe-
se que o prefeito ganhou nas regiões Sul, Leste e Oeste, enquanto
Almir suplantou seu adversário apenas na região Norte, seu
tradicional reduto. Do ângulo do comportamento eleitoral das
classes sociais, pode-se notar que o prefeito venceu amplamente
nos setores de classe média e da “alta classe média” natalense
(regiões Sul e Leste) e entre os “descamisados” (região Oeste da
cidade, área que apresenta os mais altos índices de “desfiliação”
social), enquanto Almir superou seu adversário entre assalariados
da classe trabalhadora e uma “pequena burguesia” ainda muito
pobre, mas em ascensão, de formação recente, concentrada na
região Norte da capital.
332
Certamente que para isso contou o fator eleitoral de seu adversário, Luiz
Almir, se dizer representante da Zona Norte, onde de fato fincou bases
assistencialistas e, na TV, desenvolver há alguns anos um programa de grande
apelo emocional e popular. Mas deve-se ressaltar que, além do explicitado acima,
ou seja, que as Zonas Norte e Oeste são justamente as duas regiões de Natal – em
especial a Norte – de onde os poderes públicos mais vêm se afastando nos últimos
anos, refletindo em seus índices sociais negativos4, foi em favor da Zona Sul que
também os discursos eleitorais mais se voltaram, seguindo a heráldica. A tônica era
o investimento no turismo que geraria emprego, renda, desenvolvimento, inserção
em escalas nacional e global. Mas com uma distinção: o prefeito Carlos Eduardo,
que terminou ganhando a eleição em segundo turno com 192.513 votos contra
178.249 votos de Luiz Almir (apenas 14.264 de diferença), e que agora tem um
mandato em curso até 2008, não possuía somente a retórica. Junto com a
governadora e ex-prefeita Wilma de Faria poderiam mostrar na prática obras
realizadas ou em realização, com jingles e imagens chicotadas de que Natal não
poderia parar ou de que estava melhor e que iria melhorar mais ainda. Se esses seus
objetivos serão alcançados, ainda não há possibilidade de se dizer, mas talvez seja
um princípio de novas mudanças e quem sabe de outro sentido nas ações
municipais – e, por conseguinte, também de outra heráldica que, espera-se, não se
aproprie tão assenhoradamente do capital cultural da cidade nem deixe de refletir
os interesses da maioria dos natalenses.
4
Na Zona Norte, no entanto, existe também um desenvolvimento que poderíamos chamar de
potencialmente autônomo, no qual se destaca a iniciativa da própria população para economicamente
crescer, podendo isso ser comprovado empiricamente através dos vários empreendimentos
particulares visíveis nas principais ruas e avenidas e em bolsões de uma típica classe média que, ao
que tudo indica, não pára de crescer.
333
Figura 1: Governo Garibaldi Filho (1985-1988)
Figura 2: Governo Wilma de Faria (1989-1992)
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334
Figura 3: Governo Aldo Tinôco Filho (1993-1996)
Figura 4: Governo Wilma de Faria (1997-2000)
335
Figura 5: Governo Wilma de Faria (2001-2002)
Figura 6: Governo Carlos Eduardo Alves (2002-2004)
336
NATAL - DIVISÃO ADMINISTRATIVA
LAGOA AZUL
NOSSA SENHORA
DA APRESENTAÇÃO
POTENGI
IGAPÓ
EXTREMOZ
EXTREMOZ
MACAÍBA
PARNAMIRIM
SÃO GONÇALO
DO AMARANTE
SALINAS
SANTOS
REIS
ROCAS
PAJUÇARA
REDINHA
RIBEIRA
PRAIA DO MEIO
AREIA PRETA
MÃE LUIZA
TIROL
BARRO
VERMELHO
PETRÓPOLIS
CIDADE
ALTA
ALECRIM
LAGOA
SECA
NORDESTE
BOM PASTOR
FELIPE CAMARÃO
GUARAPES
PLANALTO
PITIMBU
CIDADE
NOVA
CANDELÁRIA
NEÓPOLIS
PONTA NEGRA
CAPIM
MACIO
LAGOA
NOVA
QUINTAS
DIX-SEPT
ROSADO
NOSSA
SENHORA
DE NAZARÉ
CIDADE DA
ESPERANÇA
NORTE
LEGENDA
REGIÕES ADMINISTRATIVAS
LESTE
SUL
OESTE
NOVA
DESCOBERTA
Ilustração 1 - Direções e síntese do deslocamento, no tempo e no espaço, das
escolhas dos elementos referenciais citadinos pelas gestões públicas para suas
expressividades publicitárias: Zona Sul privilegiada em detrimento das demais
Zonas de Natal. Arte: do autor sobre mapa da Secretaria Municipal de Urbanismo
(SEMURB, 2003).
337
CONCLUSÃO
Comunicação nos limites do social:
integrando no urbano as fagulhas do
saber universal
alvez nenhuma das áreas do conhecimento até hoje estratificado em
fagulhas incandescentes do saber universal alcançado até o presente tenha
se aproximado mais dessa ciência fragmentada em particularidades, com o intuito
propagador/integrador em suas existências, práticas utilitárias e de desvelo da
realidade, do que a Comunicação Social. Essa mesma realidade, serventuária e em
descortinação permanente, tanto epistemológica quanto do senso comum, nos
aponta com bastante propriedade para este sentido. Verificamos, com base nas
evidências, algumas das quais inclusive trazidas e discutidas aqui, que o continuum
em que esse fenômeno ocorre com maior intensidade e frequência são os tempos
recentes e as cidades contemporâneas, mais precisamente a partir da virada do
século XIX para o XX, o que quer dizer a sociedade moderna, de capitalismo
avançado. Uma intensidade-frequência, justamente por isso, que aumenta quanto
mais avança esse sistema socioeconômico e nele os saberes, as práticas, as
vivências, os fluxos e os entrelaçamentos, proporcionados cada vez mais e em
maior amplidão e escalas pelas novas tecnologias, habilidades, acessos e recursos
midiáticos. O presente trabalho, que também traz e expõe algumas dessas áreas
T
338
disciplinares e práticas humanas passíveis de interconexão rumo a um saber mais
amplo e não-excludente, seria uma demonstração clara dessa realidade corrente,
confluente e recorrente da VidaViva, aquela em que pulsa o progresso, mas
também uma possível e já em curso pedagogia dos afetos entre as ciências, uma
educação paradigmática das diferenças intelectuais, uma comunhão das diversas
gramáticas esfareladas do saber racional, um maior diálogo valorativo e crescente
da sapiência, enfim, um debate sociocomunicacional conectando o saber
interdisciplinar.
Com efeito, a Comunicação Social, antes mesmo do consciencioso
acadêmico acerca dessa problemática, que começa acontecer em meados do século
passado, já se apresentava, desde a virada do século XIX para o XX, como o elo
entre a ciência e a sua demanda por anunciação/enunciação à sociedade das suas
contribuições para uma vida melhor de todos os seres vivos e para o bem-estar
físico, mental e relacional dos indivíduos humanos na sociedade moderna – fato
que se acentuou hoje com a crise ambiental e que põe em xeque a sobrevivência da
civilização no planeta e da própria Terra.
Naquele momento inicial, contudo, enquanto os Meios de Comunicação de
Massa (MCM), especialmente os jornais, se estruturavam como propagadores de
ideias e de ideários científicos, ressaltando seus aspectos benéficos e necessários,
centralmente nas cidades – e quanto maiores e mais estruturadas eram estas, mais
fortes, organizados, amiúdes e factuais eram aqueles –, a imprensa também carecia
de seus próprios avanços científicos e ideários próprios. Não sem alguma
resistência, inclusive da própria imprensa. Mas, no geral, não foi isso que
aconteceu. Assim, se a ciência se expandia em disciplinas e precisava do
339
jornalismo para difundir seus avanços e descobertas para um possível bem-estar
social, a imprensa buscava cumprir esse papel junto à sociedade e por sua vez
carecia da ciência para também se especializar. Desta forma surgiu o Jornalismo
Científico, como editoria distinta nas empresas, originando publicações de
cadernos, de revistas etc. sobre as várias ciências e suas novidades, e também como
disciplina acadêmica nos cursos de Comunicação Social com habilitação em
Jornalismo.
As pesquisas, por conseguinte, nessa área, o interior da Comunicação
Social, também avançavam, inclusive com o apoio e o incentivo de organismos
privados e governamentais, como, além de universidades públicas e de fundações
particulares, aqueles patrocinados por entidades internacionais, como a
Organização dos Estados Americanos (OEA), com a criação, por exemplo, em
1970, do Centro Interamericano para a Produção de Material Educativo e
Científico para a Imprensa (CIMPEC). Hoje, nas academias, há uma rica produção
teórica que procura explicar o Jornalismo, como os estudos sobre os Gatekeepers,
as investigações sobre o Newsmaking, a Teoria do Agendamento (Agenda Setting),
a Teoria dos Espelhos. Os exemplos são inúmeros. Inclusive nos outros campos do
saber disciplinar da Comunicação.
Os paradigmas que nortearam as disciplinas científicas em fragmentação
crescente, assim, foram os mesmos que possibilitaram a afirmação da
Comunicação Social como um todo e, em particular, do jornalismo especializado
na área, o Jornalismo Científico, ao mesmo tempo em que já apontava para o rumo
da inter-relação multidisciplinar. O mesmo rumo poderia ser encontrado nas
demais áreas do jornalismo, como a esfera econômica, quando os estudiosos das
340
academias, como, por exemplo, economistas e sociólogos, foram convocados a vir
a público explicar fenômenos do crédito, do financiamento, da acumulação e do
consumo, e daí surgiu o Jornalismo Econômico, com igual respaldo nos cursos de
Comunicação Social, inclusive em nível de pós-graduação, assim como ocorreu
também nas áreas dos esportes, com o Jornalismo Esportivo, da saúde, incluso no
Jornalismo Científico, e da cultura, com o Jornalismo Cultural.
O presente trabalho busca este sentido. Ao apresentar quatro capítulos, em
cujo conjunto elementos paradigmáticos aparentemente distintos – e pelo saber
fracionado de fato o são – se encontram para dialogarem entre si, tenta provar que,
ao se criar uma narrativa relacional de valores teóricos e das coisas do mundo,
notadamente objetos também aparentemente díspares, busca contribuir, no
torvelinho da crise da degenerescência do saber técnico-cientificista, para a
possibilidade de novas escrituras e interpretações através de uma aproximação
dialógica, polissêmica, muito mais rica e condizente às realidades interobjetiva e
intersubjetiva. Enfatizamos a questão valorativa de cada instância epistêmica
porque, para alcançarmos o que aqui propomos, não acreditamos que se deva
abandonar, como não foram abandonados, elementos importantes e já alcançados
com propriedade e aplicabilidades pelo saber pragmático. Juízo e razão não são
coisas pueris e descartáveis. Muitíssimo pelo contrário: tais elementos,
estratificados em postulados, conceitos, métodos etc., aqui se entrelaçam
justamente por assim terem sido constituídos e apresentarem, a despeito do
dilaceramento, possibilidades de comunicação intersígnica.
O modelo estrutural da apresentação aqui escolhido, por exemplo, repete-se
em todas as exposições capitulares e nos estudos de caso, sendo nestes tanto a sua
341
re-pontuação quanto a repetida valoração/permanência da empiria mais um reforço
à coerência do entrelaçamento e à firmeza do conjunto; do trabalho como um todo.
Igualmente a taxonomia da sua morfologia: tanto no aspecto tipológico quanto no
aspecto quantitativo buscou-se um equilíbrio imagético e gráfico.
Tais seriam coisas de somenos diante dos outros cuidados à interconexão
dialógica e polissêmica aqui efetivada. Vejamos, e apenas en passant, acerca do
discurso. Cada exposição tem a Comunicação como base da qual raiam, e vice-
versa, as outras disciplinas. Igualmente ocorre com o lócus: a variação dos espaços
urbanos são apenas nominais e temporais, posto a cidade contemporânea, enquanto
conceito sociológico (categorial), ser conjunturalmente em todo o corpo do
trabalho exatamente o mesmo. O aspecto teórico, por sua vez, apresenta o cabedal
histórico em cada parte através de um rebuscamento a partir de uma bibliografia
referencial de bases intelectuais reconhecidamente sólidas acerca do saber
científico/disciplinar. Mas tal rebuscamento já possui em si o gérmen da
interlocução a que se propõe. Quando da apresentação, nesse aspecto, por exemplo,
da teoria marxista do Materialismo Histórico e Dialético, optamos por mostrar o
Marx filósofo e economista também como o Marx jornalista, algo inerente à
Comunicação Social, mas normalmente negligenciado nas Ciências Sociais, e o
fizemos dentro de uma exposição de desenvolvimento do saber crescente e
cronológico, por sua vez algo tanto da própria epistemologia marxista (naturalismo
social) quanto do campo da História (narrativa encadeada dos fatos e dos
acontecimentos). E de tal forma que, tanto um quanto outro e o terceiro destes
elementos podem ser de qualquer uma das áreas ali comungadas, sem esquecer,
evidentemente, os espaços urbanos onde se deram e prosperaram.
342
Para o leitor mais atento, entretanto, a interdisciplinaridade deste trabalho
poderia, além disso, inaugurar também – embora este não seja o propósito principal
– uma realização contributiva que poderíamos chamar de intradisciplinaridade.
Dado termos a Comunicação Social como referência premente sedimentando toda
obra, assim como a Cidade contemporânea, em todos os casos estando estes bem
definidos em cada uma das proposituras, poderíamos, contudo, verificar que um
algo sempre vaza de um capítulo e deságua para outro ou outros, proporcionando
uma interconexão no interior da já explícita interação. Melhor dito: os campos aqui
não são estanques, posto, a despeito de parecerem recônditos sólidos e com
fronteiras bem fechadas e definidas, visão típica do cientificismo tradicional e
fragmentado, há uma dialógica entre-si e para-si no interior de seu conjunto que
assim se abre também, e inclusive, às subjetividades. Uma ilustração prática e
talvez das mais evidentes seria esta: no capítulo primeiro temos a figura de um
jornalista (Lima Barreto) que leu escritores russos; a teoria empregada no capítulo
quarto é a de um pensador russo (Mikhail Bakhtin) que analisou a obra de um
escritor russo (Fiódor Dostóievski) que por sua vez, como jornalista e
principalmente como escritor, influenciou o escritor e jornalista brasileiro do
primeiro capítulo (Lima Barreto). Diríamos mais: no capítulo terceiro temos um
jornalista comunista (Karl Marx) que por sua vez influenciou enquanto pensador
aquele pensador russo (Mikhail Bakhtin) do capítulo quarto assim como também
um importante arquiteto brasileiro e suas obras (Oscar Niemeyer, Brasília), estes
objetos de análise do capítulo dois, onde o arquiteto por sua vez figura como
jornalista igualmente defensor da visão materialista e dialética da história assim
como fora aquele jornalista (Karl Marx) do terceiro capítulo em todas as suas mais
importantes obras. Outras remissibilidades podem ser buscadas e encontradas,
343
como aquelas, numa outra esfera, a morfológica, notadamente dos objetos
analisados nos estudos de caso entre si, tanto quanto em alguns modelos teóricos,
alguns dos quais aqui (abaixo) buscaremos evidenciar, mas alertando: outras mais e
de outros tipos podem ser buscadas pelo leitor, fato que se constitui, por sua
suspensão, em um simples, porém nobre objetivo: estimular o sensível e o
pensamento do leitor à interconexão interdisciplinar e ao mesmo tempo provar
num movimento dialógico e permanente de em-si e para-si a presente tese.
Se, contudo deixaremos deliberadamente de ressaltar apenas alguns dos elos
morfológicos que interligam o presente trabalho, para demonstrar ao leitor, mesmo
ao mais indisposto, a possibilidade de existência de um conhecimento
intersubjetivo, que aqui grassa e emerge das diversas esferas apresentadas, e para o
qual concorrem inevitavelmente elementos do sensível, experienciais e lógico-
dedutivos, por outro lado, o da razão instrumental – mas nem por isso pura –, não
deixaremos de evidenciar algumas das tessituras, das mais concretas, que também
interligam, neste mesmo sentido, o da produção de saberes interconectos, a partir
das estruturas da vida social, as exposições e os debates até aqui realizados
(lembremos que cada capítulo tem ao seu final um sentido também conclusivo).
Com isso queremos dizer que há outros fatores internos que nos permitem
interligar a oratura de um saber grassante. Vejamos. Nas cidades reais, aqui
contempladas como objetos, quais sejam, Rio de Janeiro, Brasília, São Paulo e
Natal, e naturalmente dentre outras, os pensamentos, por exemplo, de Freud e
Marx, discutidos respectivamente nos capítulos dois e três, ainda compõem
importantes esteios a pesquisas e aplicabilidades a que se destinam. Pensamentos
que foram forjados em cidades onde nasceram, residiram ou visitaram, como
344
Freiberg, Leipzig, Viena, Paris, Berlim, Munique, Nova York, Veneza, Praga e
Milão, relativamente a Freud, e Trèves/Trier, Berlim, Iena, Paris, Bruxelas e
Londres, relativamente a Marx. As “Cidades de Freud” e as “Cidades de Marx”,
assim, nas cidades-objetos e reais, se com/fundem com os respectivos pensamentos
desses autores: formam uma linha inspiradora e construtiva, com seus personagens,
vivências, cotidianos, movimentos, acontecimentos, arte, história etc. daquilo que
iria forjar o Saber Indiciário e o Materialismo Histórico e Dialético. Por um
momento assim a cidade deixa de ser somente o pano de fundo da presente tese
e/ou só a geovivência antropológica nos espaços urbanos – que mesmo assim não
se extinguem; muito pelo contrário – e se sobrepõe e/ou se associa à comunicação
midiática (à época dos pensadores, os jornais eram a sua expressão fenomênica
mais evidente) para ajudar a sedimentar a consecução teórica de ambos, bem como
o Conhecimento Indiciário e o Materialismo Histórico e Dialético aqui trazidos à
exposição e ao debate. O mesmo se pode dizer da gramatologia do capítulo um,
dos anagramas do capítulo dois, dos fluxogramas do capitulo três e dos
pentagramas do capítulo quarto: todos compõem um diagramma cuja equação
resolutiva não se limitaria a um grafismo simbólico, e nem mesmo a um
infografismo paradidático, mas à própria morfologia da história. Viva e real.
O presente trabalho, ademais, e também por isso, demonstra um caráter
evolutivo do pensamento comunicacional. Abordemos por um viés objetivo. Na
cidade do Rio de Janeiro temos/vemos um escritor, ao retratá-la, retratando a si
mesmo e ao mesmo tempo uma imprensa engatinhando, ou no máximo ainda
dando os seus primeiros passos, por isso mesmo incipiente, ainda paupérrima e
com o compromisso ético, técnico e estético extremamente sofrível. Mas, ao
345
mesmo tempo em que experimenta a divisão social do trabalho, propiciada por
uma cada vez mais veloz e inelutável modernidade tecnológica, nos anos do
capítulo um, o seu marco fundamental somente iremos verificar com a reforma
gráfica e editorial do Jornal do Brasil, nos anos do capítulo dois, cuja evolução e
refinamento metodológico, dentro de um capitalismo industrial cada vez mais
avançado, qualitativo e padronizado, teremos somente com a implantação do
Projeto Folha, nos anos do capítulo três, desembocando em sua ampliação para
outras áreas, que também se expandiram e se afirmaram ao longo desse processo,
inclusive como disciplinas acadêmicas, como ocorreu com a Publicidade e a
Propaganda, expostas, a partir de sua produção, somente nos anos do capítulo
quatro. Isso quer dizer que há uma interligação entre os vários pontos históricos,
evolutivos e cronológicos da Comunicação, desde o final do século XIX ao início
do XXI, retratados no correr da presente tese, e que se constitui exatamente em sua
construção enquanto objeto de estudo (fenômeno social), campo de trabalho
(profissão) e área de ensino e pesquisa (saber disciplinar). Visto sob esta
perspectiva, o presente trabalho é ao mesmo tempo reflexo desse evolutivo
pensamento comunicacional e decisivamente a negação de seu contrário, qual seja:
o de um saber incomunicacional.
De modo em geral, portanto, o presente trabalho faz emergir um apanhado
seletivo de modelos paradigmáticos que, antes de se constituir um amontoado,
como pensaria a visão sistêmica do fracionamento modernista do saber, são na
verdade uma construção histórica do conhecimento até este nível ao qual se chegou
hoje e que ao fim e ao cabo nos eleva em ilustração e ainda mais em saberes
amplos e conscienciosos. Mais ilustração e saberes proporcionados não somente
346
pela junção coerente relativamente aos vários aspectos que concorrem para este
sentido e que foram citados acima, mas fundamentalmente porque traz consigo a
efetiva possibilidade de realinhamento e, com este, uma real confluência a novas
descobertas. Tal ocorrência se situa, ainda no cômputo qualitativo geral da presente
tese, por um lado, tanto nas exposições teóricas como, por outro, na utilização de
métodos e propostas de objetos da realidade a descobertas. E mais ainda: também
quando das análises/estudos de caso, momento em que ficam mais claros
fenômenos, construtos e práxis sociais. Numa palavra: se produz mais saberes. E
saberes não desligados.
Neste aspecto, há de se ressaltar neste trabalho a contribuição aproximativa
que traz/faz, no âmbito das Ciências Sociais, mas particularmente no campo da
Sociologia, a partir da conjunção aditiva da Comunicação Social e vice-versa. Não
seria isso, contudo, sem um propósito, conforme está exposto, como plano e
objetivo, desde o início do presente de trabalho. Além de ter começado a fomentar
as Ciências da Comunicação desde o seu início, apresentando paradigmas para
análises de fenômenos sociocomunicacionais importantes desde a então nascente
sociedade moderna, a Sociologia também, a seu modo, voltou-se para estudar
muitos desses mesmos fenômenos – aumentando a fragmentação disciplinar e ao
mesmo tempo, paradoxalmente, a necessidade dialógica e de interconetividade de
modelos, análises e objetos.
Com efeito, um dos casos mais notórios nesse sentido é a ocorrência da
ascensão social e econômica da chamada “Sociedade de Massa”. Tanto questões
como aquelas que motivaram a Sociologia a pensar/descobrir como agem os Meios
de Comunicação de Massa, quais os seus efeitos na vida societária, como se
347
organizam e se relacionam no coletivo das diversas sociedades, assim como outras
interrogações/discussões noutros setores envolvendo o fenômeno da comunicação
na sociedade capitalista voltado para a produção massiva de bens simbólicos, como
a chamada “Sociedade do Espetáculo” e em seguida a denominada “Era da
Informação”, levaram-na a criar uma nova disciplina no interior de sua própria
competência, a Sociologia da Comunicação. O objeto da Sociologia da
Comunicação é, portanto, a comunicação.
Este trabalho – como de resto para todas as demais disciplinas aqui
chamadas à discussão, como a Literatura, a Arquitetura, a História e a Geografia –
reconhece a qualidade tributária desse movimento particular, que assoma ao geral,
bem como os elementos contributivos que lhes são próprios, como sendo aquele
mesmo movimento que o impele à construção de algo maior: acrescentar à Teoria
do Conhecimento vetores recíprocos e demais elementos de um saber
comunicacional já com uma solidez epistemológica bastante reconhecida em vários
de seus campos e sentidos.
A cidade como tema científico – ainda no cômputo geral do presente –, um
dos mais importantes da nossa era moderna, discutido por disciplinas tão
fragmentadas por essa mesma contemporaneidade racional e ao mesmo tempo tão
unidas por esse mesmo objeto fenomênico e social, onde grassa toda a vida e
práticas socioculturais das mais significativas desde o seu nascimento, inclusive no
âmbito do imaginário, é apresentada aqui de ponta a ponta como, de fundo e em
síntese, um algo mais amplo: a questão urbana. Noutras palavras: a problemática
do urbano, cada vez mais prezada pelas preocupações científicas e por isso tão cara
ao deslinde das diversas áreas disciplinares, concorre como exemplo e ao lado ou
348
mesmo no interior daquelas aqui neste mesmo sentido conclamadas ao debate.
Vejamos: para a Literatura, a cidade é o mundo real/ficcional da vida
sígnica/objetiva/imaginária; para a Arquitetura, o lócus do
esquadrinho/assentamento relativamente ao design/arrojo/bem-estar da vida; para a
História, o conjunto conexo do espaço/tempo das ocorrências, narrativas e
estratificações humanas; para a Geografia, o ambiente da vivência sócio-político-
antropológica e de uma nova escrita cultural/simbólica na/da Terra.
Essa questão urbana, contudo, não se revela apenas como seria para cada
uma desta particularidade disciplinar (do saber individual), mas fundamentalmente
como, justamente por isso, aquele algo (fenômeno) que a torna exatamente neste
elemento interdisciplinar e por vezes transdisciplinar. Emerge aqui não só como
uma mera variável (a cidade) de vivências, de práticas citadinas desde sempre, mas
também, e sobretudo, como expressão de toda uma urbanidade, de todo um
processo/projeto civilizatório. Assim, a cidade é mais do que somente
acontecimento, é a personificação e o próprio significado interativo do avanço
social, bem como das próprias análises que aqui também ensejam. A questão
urbana, assim, é a própria cidade, mas agora a cidade-mídia, aquela não-estanque
nem morta à exumação de interesses particulares, porém a cidade pulsante à
decifração, a cidade significante/significado de si mesma, a cidade inter-relacional
através, até o presente estágio, do que é, faz e comunica.
Uma cidade, desta forma, no presente trabalho, não só histórica e
sempiterna, o que já seria por demais significativo e esclarecedor, mas, sobretudo,
não-isolada e nem tão distante, porém ativa, interativa, intersubjetiva,
interdisciplinar, assim como também o são as várias teorias, objetos, relatos,
349
descrições, narrativas, modus operativos/conclusivos e todos os demais elementos
das práticas sensoriais empíricas e das criteriosas práxis metodológicas humanas;
da reflexão conscienciosa e/ou do pensamento pulsional; dos saberes lógico-
dedutivos mas também aferente-experienciais, todos aqui trazidos, em maior ou
menor grau, ao debate, ao estudo, à análise, à decifração e deliberadamente
expostos à disposição da crítica. Especialmente àquela crítica aberta a novas
propostas paradigmáticas, interdisciplinares e às assomas interativas, tributárias e
multimidiáticas de e para uma nova realidade social: a de uma sociedade cada vez
mais dialógica e de um mundo cada vez mais interconectado. Uma contribuição,
portanto, pragmática, sensível, teórica, epistolar, solidária... para a grande
gramática da experiência e da epistemologia humanas.
350
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