UNIVERSIDADEFEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS LINHA DE PESQUISA: ESPAÇO DE TERRITORIALIDADE Doutorando: Orientador: Francisco de Assis Duarte Guimarães Márcio Moraes ValençaProf. Dr. Natal - RN Out / 10 Comunicação e Cidades I I C SNTERLOCUÇÕES PARA UMA NTERDISCIPLINARIDADE NAS IÊNCIAS OCIAIS UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS LINHA DE PESQUISA: ESPAÇO E TERRITORIALIDADE Comunicação e Cidades INTERLOCUÇÕES PARA UMA INTERDISCIPLINARIDADE NAS CIÊNCIAS SOCIAIS Doutorando: Francisco de Assis Duarte Guimarães Orientador: Prof. Dr. Márcio Moraes Valença Natal – RN Nov / 10 2 FRANCISCO DE ASSIS DUARTE GUIMARÃES Comunicação e Cidades INTERLOCUÇÕES PARA UMA INTERDISCIPLINARIDADE NAS CIÊNCIAS SOCIAIS Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais (PPGCS) da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), para obtenção do título de Doutor, sob a orientação do Prof. Dr. Márcio Moraes Valença. Natal – 2010 3 Catalogação da Publicação na Fonte. Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes (CCHLA). Guimarães, Francisco de Assis Duarte. Comunicação e cidades : interlocuções para uma interdisciplinaridade nas ciências sociais / Francisco de Assis Duarte Guimarães. – 2010. 360 f. : il. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) – Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes. Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais, Natal, 2010. Orientador: Prof. Dr. Márcio Morais Valença. 1. Comunicação. 2. Cidades e vilas. 3. Abordagem interdisciplinar do conhecimento. 4. Ciências sociais. I. Valença, Márcio Morais. II. Universidade Federal do Rio Grande do Norte. III. Título. RN/BSE-CCHLA CDU 316.77 4 UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS LINHA DE PESQUISA: ESPAÇO E TERRITORIALIDADE BANCA EXAMINADORA ____________________________ Profa. Dra. Ângela Prysthon – PPGC-UFPE ____________________________ Prof. Dr. Eustógio Wanderley Correia Dantas – PPGG-UFC ____________________________ Profa. Dra. Josimey Costa da Silva – PPGCS-UFRN ____________________________ Profa. Dra. Lisabete Coradini – PPGCS-UFRN ____________________________ Profa. Dra. Maria Bernadete Fernandes de Oliveira – PPGL-UFRN ____________________________ Prof. Dr. Márcio Moraes Valença – PPGCS-UFRN – Orientador Tese defendida em: ___ / ___ / ______ 5 Para Rafael e Danielle (in memorian). 6 AGRADECIMENTOS gradeço ao meu orientador Prof. Dr. Márcio Moraes Valença pelas sempre sinceras e corretas palavras de orientação e incentivo, bem como pela firme confiança depositada em mim e neste trabalho. Agradeço aos professores do PPGCS/CCHLA/UFRN que de maneira direta ou indireta me ajudaram nesta empreitada, e de forma especial à Profa. Dra. Maria Bernadete Fernandes de Oliveira, do PPGL/CCHLA/UFRN, pela generosidade, ponderações e equilibradas palavras, principalmente acerca do Capítulo 1. Agradeço a todos os colegas da Unidade Interdisciplinar de Estudos sobre a Habitação e o Espaço Construído pelas contribuições pessoais e coletivas, quando de nossos encontros diários e em nossas reuniões mensais na Base de Pesquisa. Agradeço ao Departamento de Comunicação Social (DECOM) pela licença concedida, sem a qual tornaria muito mais difícil a conclusão da presente tese. Agradeço aos colegas jornalistas e publicitários que me repassaram as logomarcas municipais aqui expostas no Capítulo 4, principalmente ao ex- Secretário de Comunicação Social da Prefeitura de Natal, Walter Medeiros. Agradeço, por fim, à minha família, pela paciência, compreensão e incentivos. Sem eles, esta tese seria praticamente impossível. A 7 SUMÁRIO Resumo/Abstract, 8 Apresentação, 9 Comunicação, Ciência e Cidade: um balanço, uma contribuição, 10 Comunicação e Literatura: vozes de uma mesma cidade e seus personagens, 27 Comunicação e Arquitetura: encontros empíricos nas esquinas da urbanidade contemporânea, 102 Comunicação e História: sangue de papel e suor de concreto na São Paulo revolucionária, 184 Comunicação e Geografia: uma interpretação da cidade a partir da heráldica dos prefeitos de Natal entre 1985 e 2004, 301 Comunicação nos limites do social: integrando no urbano as fagulhas do saber universal, 337 Bibliografia, 350 8 RESUMO A presente tese busca a produção de conhecimento através de uma aproximação de diversas teorias e análises empíricas. Ou seja: a partir de um encontro interdisciplinar, no âmbito das Ciências Sociais, este trabalho, tendo como base a Comunicação e a Cidade, apresenta, em cada capítulo, um campo disciplinar diferente – Literatura, Arquitetura, História e Geografia –, com os quais aquelas se relacionam, expõe seus pilares teóricos e realiza um estudo de caso, como uma contribuição fática e crítica, considerando, respectivamente, os espaços urbanos do Rio de Janeiro, Brasília, São Paulo e Natal. O debate vai do final do século XIX ao início do XXI. No geral, a tese é um conjunto interconectado e dialógico que aponta para uma maior cosmologia do saber plural. Palavras-chaves Comunicação – Cidade – Interdisciplinaridade – Ciências Sociais ABSTRACT This thesis aims at producing knowledge by putting together various theories and empirical analyses. In other words, from an interdisciplinary approach within the Social Sciences and having as background Communication and the City, this work presents, in each chapter, a disciplinary field – Literature, Architecture, History and Geography –, with which they relate, exhibits its theoretical pillars and performs a case study as a factual and critical contribution, considering the urban spaces of Rio de Janeiro, Brasília, São Paulo and Natal. By so doing, the thesis covers the period from the end of the XIX to the beginning of the XXI Century. Overall, the thesis is an interconnected and dialogic set that points to a cosmology of plural knowledge. Keywords Communication – City – Interdisciplinarity – Social Science 9 APRESENTAÇÃO ossa tese pretende mostrar que é possível construir conhecimento a partir de interlocuções entre vários saberes específicos tendo como esteio conceitual e empírico a cidade contemporânea. As interlocuções, no caso, entre Comunicação e Literatura; Comunicação e Arquitetura; Comunicação e História; e Comunicação e Geografia Cultural Urbana, nesta ordem. As cidades, também pela ordem, são: Rio de Janeiro, Brasília, São Paulo e Natal. A linha principal que sedimenta e interliga a obra, assim, é a Comunicação Social e a cidade capitalista, com suas características epistêmicas e práticas cotidianas. O período coberto pela pesquisa vai do final do século XIX ao início do XX, mais de 100 anos, portanto. O debate procura ocorrer no âmbito das Ciências Sociais. Busca-se provar que é possível fazer esses saberes dialogarem entre si através de teorias específicas e de nossas contribuições críticas e empíricas, construindo um conhecimento mais amplo, inédito e interconectado. A tese, como síntese de um encontro de teorias e de experiências, se constitui assim em um conjunto em que cada capítulo pode ser considerado uma tese particular. Não é, desta forma, por sua própria natureza, uma tese excludente de análises e avanços. Ao contrário: as interconexões se apresentam, no âmbito das Ciências Sociais, como um fluxo rumo a uma interdisciplinaridade mais polissêmica e universal. N 10 INTRODUÇÃO Comunicação, Ciência e Cidade nas fronteiras: um balanço, uma contribuição os últimos anos parece haver uma convergência entre os diversos saberes alcançados até o presente pela civilização humana. Um solapamento na antiga forma de separação campal do conhecimento, enquadrado em áreas denominadas, não sem certa dose de autoritarismo, de disciplinas, aponta para um florescimento de uma nova ilustração da sabedoria – sem estrabismos, espera-se. Há várias explicações para esse fenômeno. Desde as mudanças provocadas pela nova remodelação na economia, ocorrida através de uma pós-estruturação do capital, até clivagens culturais se dando por conta pura e simples das cada vez mais imediatas e permanentes novas realidades tecnológicas e midiáticas. Não deixam cada uma dessas explicações de ter suas razões de fundo – algo que faz parte justamente de tal realidade entrecruzada. A Comunicação Social, área que vem buscando se afirmar nas últimas décadas como saber científico, acompanhando em vários aspectos o desenvolvimento imediato e técnico das mídias, e ao mesmo tempo os fenômenos sociais com e decorrentes desse progresso, como as novas relações sociais e de produção que desse campo emergem, também converge para essa espécie de ultramoderna interação multidisciplinar. E, ao que tudo indica, com mais força ainda, dado a sua própria natureza de aproximação e interatividade. O presente trabalho se insere nesse fenômeno. Mas não somente para contribuir para o seu deslinde – isso seria por demais pretensioso num momento N 11 em que muitos ainda não o observaram e outros sequer se deram conta de sua manifestação. Mas também para, talvez como retrato próprio de uma época, porém de forma deliberada, contribuir para essa interconexão conscienciosa, mais produtiva e quem sabe sem tantos enviesamentos e desvãos – naturalmente vieses e desvãos no sentido pejorativo, dado a própria obliquidade e angularidades, aparentemente díspares e antagônicas ao saber, integrar esse quadro fenomênico da realidade contemporânea. Aliás, é exatamente por isso que, primeiro, cada uma das tentativas de aproximações aqui trazidas tem uma base epistemológica reconhecidamente sólida, a qual por si somente, rebuscada e assim narrativa e necessariamente reinterpretada, já seria uma contribuição desse campo específico ao fenômeno relacional dos saberes; e, segundo, cada uma também das contribuições deste trabalho tem uma tentativa de interpretação histórica fortemente empírica, com elementos mensuráveis e concretos, sendo esta talvez a sua parte mais contributivamente importante. Não seria assim sem fundamentação um laboratório tributário do saber convergente. A Comunicação Social nasce exatamente das três vertentes genéticas das Ciências Sociais e Humanas, abeberando-se, no entanto, e também, a partir das inúmeras pesquisas e contribuições destas. Assim, a Comunicação estrutura-se sobre os paradigmas do pensamento do funcionalismo, do weberianismo e do marxismo, correntes personificadas em Durkheim, Weber e Marx, matrizes epistemológicas clássicas de áreas disciplinares como, por exemplo, a Sociologia, a Antropologia, a Semiologia, a Psicologia etc. Esses três modelos legitimam todas essas áreas, inclusive a Comunicação, das Ciências Humanas apresentando características paradigmáticas particulares e diversas quanto à objetividade 12 científica, à interpretação da realidade social e histórica e à apresentação de soluções societárias (coletivas e individuais), a partir do século XIX. Destaquemos nesse avanço das pesquisas na área particular da Comunicação Social as contribuições importantes, como as protagonizadas pela Escola de Frankfurt (através especialmente de pensadores como Adorno, Benjamim, Fromm e Marcuse), além de estudiosos como Wright, Pierce, Eco, Barthes, McLuhan, Debord, Foucault, Jameson, Bourdieu, Castells, Morin etc. e, no Brasil, dentre vários outros, Luiz Beltrão, Adelmo Genro, José Marques de Melo, Maria Immacolata, Cremilda Medina, Lúcia Santaella etc. Com efeito, como nos mostra Lopes (2003), a Comunicação se autonomiza nessa grade das Ciências Sociais e Humanas, afirmando-se como disciplina, agora dotada de veios paradigmáticos e objetos relativos e próprios do fenômeno comunicacional, como, por exemplo, na sociedade capitalista contemporânea, a cultura de massa e nesta os Meios de Comunicação de Massa, todos com suas constituições, implicações e consequências. Lopes aponta três pontos fundamentais para essa mudança rumo às leis próprias do saber específico da Comunicação. “Verifica-se que nesse processo de autonomização do campo da Comunicação interagem fatores de diversas ordens que são histórico-sociais (a organização capitalista da cultura), institucionais (os cursos de Comunicação) e científicos (especialidade dos fenômenos de massa)”. E complementa: Como partimos do pressuposto de que a Comunicação se constitui historicamente como campo autônomo de estudos (aliás, o que ocorreu na história de cada ciência), ela não pode ser investigada fora dos marcos do contexto econômico, social, político e cultural que a envolve. As condições de produção dessa pesquisa são as condições concretas impostas pela realidade do país onde ela se faz (LOPES, 2003, p. 14). 13 Nesse sentido, Lopes vai identificar no mercado cultural brasileiro o campo de afirmação da Comunicação Social como ciência, a partir da instalação das bases industriais nos anos 1960 que se consolida nos anos 1970 e detona o fenômeno da produção e do consumo de bens simbólicos na chamada Comunicação de Massa. Ou seja: é exatamente na organização capitalista da cultura, através da formação do campo simbólico como sistema; no aumento da diferenciação e da profissionalização de produtores e empresários; quando as agências e legitimação e difusão passam a ser regidas pelas leis do mercado; e quando surge um público extenso e diversificado socialmente que a ciência dá uma resposta racional e mais precisa à sociedade através de um campo específico acerca da Comunicação de Massa. O fenômeno da comunicação societária assim é objeto próprio da Comunicação que, ao se debruçar com propriedade sobre ele, ajuda a constituí-la. Lopes, contudo, vai além. Identifica as raízes desse fenômeno cultural (a Comunicação de Massa), do qual emerge com força a Comunicação Social, nos anos 1930 até meados dos anos 1950. Nesse período, assinalada a autora, “é quando ganham realce os processos socioeconômicos da urbanização e da industrialização e os processos político-culturais do nacionalismo e do populismo”. Isto mesmo: Lopes considera que a partir da década de 1930 o processo de desenvolvimento social no país, com a proeminência da urbanização sobre o desenvolvimento econômico, tendo como base a interferência do Estado em busca da resolução da hegemonia entre o agrário e o industrial, criam um ethos urbano. Ou seja: resulta numa grande concentração urbana que por sua vez se manifesta “por estilo de vida específico (conjunto de práticas e ideias) e por um “clima mental” distinto do predominante em áreas não-urbanas”. Portanto, conclui a 14 autora, o desenvolvimento da urbanização implica a assimilação desse “clima” por populações rurais que se deslocam para a cidade. “E aqui os Meios de Comunicação de Massa (MCM) desempenham dois papéis centrais: na formação de difusores do efeito-demonstração do estilo de vida urbano e na forma de agências de socialização antecipada” (LOPES, 2003, p. 20-21). Essa comunicação, assim compreendida como fenômeno midiático e essencialmente do capitalismo urbano (cidade contemporânea), bem como a Comunicação Social, que se consolida e tem aquela como objeto de análises, criando-se assim ambas produtivamente numa relação dialética, são aquelas que no presente trabalho tanto apresentamos contributivamente à reflexão e à interdisciplinaridade quanto buscamos compreender nesses próprios fundamentos. Neste aspecto, a cidade, que muitos estudiosos, conforme suas pesquisas particulares, ao longo da história recente e de acordo com seus respectivos objetos e epistemologias, entendem como Suburbia, Sprawling, City Metrópole, Edge City, Cidade Dispersa, Cidade Global, Cidade Mundial, Cidade-Região, Cidade-Mundo, Cidade Informacional, Cidade-Fluxo, Cidade-Mosaico, Cidade Caleidoscópica, Cidade Fractal, Cidade Fragmentada, Cidade Neobarroca, Cidade Neogótica, Cidade-Tela, Cidade-Partida, Cidade Fechada, Cidade Fortaleza, Cidade Sitiada, Cidade Vertical, Cidade Pós-Moderna, Cidade Mutante, Generic City, Cidade Congestão, Cidade-Estado (ROLNIK, 2009, p. 74) é para nós aqui aquela polis que todas essas expressões encerram e que nós a entendemos numa só: aquela que comunica/ação. Ou seja: mais que somente a cidade do capital, como designa Lefebvre (2001), posto ser a cidade aqui muito fortemente a contemporânea, em função do avanço em todos os aspectos a que se chegou, é também e ao mesmo 15 tempo a cidade palimpsesto, a cidade texto, a cidade que se anuncia, se emite, se jacta e se impacta, se inscreve e se reescreve em seus entes e na história; a cidade que se sente, se interpreta, se interage e se escreve pelo citadino e cidadão em todas as suas formas de construção/relação, enfim, de sua comunicação social. É, em resumo, a cidade midiática: aquela que se expressa como obra social em todos os seus afazeres e construtos cotidianos e históricos, desde os mais recônditos, como aqueles imiscuídos nas frestas das esquinas subjetivas mais esquecidas, íntimas, ficcionais, noturnas, soturnas, virtuais, àqueles outros mais expostos no espaço- tempo, expressivos e gritantes de uma realidade clara, explosiva, imensa, portentosa, fantástica. Numa palavra: a cidade-mídia. Tal cidade é aquela que, como explica Prysthon (2006, p. 7-9), possui a construção imaginária de si mesma feita pelas indústrias culturais e que é constituída e constitui-se a partir de um diálogo com o cidadão, que contrasta sua experiência real e cotidiana com a versão midiática. “A cidade que é o grande cenário de imagens e linguagens, uma esfera intercambiante de fronteiras e sentidos”, afirma. A cidade, continua Prysthon, que é um sistema de interação comunicativa entre atores sociais, responsáveis pela produção de uma cultura e simbologias urbanas. Assim, conclui a autora, “estudá-la sob o ponto de vista comunicativo é descrever e interpretar a história e os cenários urbano e periférico, é pensar o papel da cidade através da leitura do espaço e das suas representações como parte integrante de um sistema comunicacional”. Esta é a cidade que assim entendida, muito além do somente valor estético, mas justamente por isso fortemente amparada no caráter morfológico, é aquela que buscamos aqui fincar e focar as nossas contribuições e análises. Bem entendido: a cidade que assim 16 conceitualmente compreendida e apresentada torna-se também um meio a perpassar e a sedimentar como comunicação todos os capítulos do presente trabalho. A cidade-mídia que na presente tese também é, justamente por isso, como diria McLuhan (1995), além do meio, a própria mensagem. Dito isso, cabe-nos agora abordar o porquê da interdisciplinaridade que, como a queremos aqui, tem a proposta de avançar ainda mais: apontar para o transdisciplinar. Isso porque esta tese se reintrojeta sobre si mesma, intercambiando pontos em comuns e verificáveis ao leitor mais atento em cada proposta de apresentação teórica e de análise. Não se trata de meras citações, posto não haver redes sem nós. Mas, principalmente, por ser um tema que necessariamente apresenta um fenômeno indubitável da contemporaneidade e passível à aferição e precisamente por isso de maiores e posteriores aprofundamentos: a aproximação socialmente magnética da Comunicação Social com outras áreas, ao mesmo tempo em que se dá a sua afirmação enquanto saber específico. Além: há aproximações até mesmo com disciplinas que algumas academias consideram como próprias das Ciências da Tecnologia, como Arquitetura, e da Terra, como Geografia – ambas aqui também contempladas. Uma rica bibliografia já surgiu refletindo o que vem se propondo ou já se fazendo (em várias bases de pesquisas) nesse sentido, o sentido da interação entre a Comunicação Social e outros campos do saber. Destaquemos aqui apenas algumas obras mais recentes e que nos remetem a alguns temas específicos do presente trabalho. Sobre Comunicação e Literatura: Jornalismo e Literatura em Convergência, de Marcelo Bulhões (2007). Sobre Comunicação e História: Comunicação e História: interfaces e novas abordagens, organizado por Ana 17 Paula Goulart Ribeiro e Micael Herschmann (2008). Sobre Comunicação e Materialismo Dialético e Histórico em: Vertentes da Economia Política da Comunicação e Jornalismo de Sônia Serra (2007) – esta, aliás, inclusa na obra organizada por Cláudia Lago e Márcia Benetti (2007), onde há várias outras reflexões propondo interconexões com várias outras disciplinas, como história, antropologia, literatura... –; Informação e Trabalho no Capitalismo Contemporâneo de Marcos Dantas (2003); e a monumental e clássica obra A História da Imprensa no Brasil de Nelson Werneck Sodré (1966). Sobre Comunicação e Cidade: Imprensa e Cidade, de Ana Luíza Martins e Tânia de Luca (2006); e os mais recentes Imagens da Cidade: Espaços Urbanos na Comunicação e Cultura Contemporâneas, organizado por Ângela Pryston (2006), a partir do Primeiro Simpósio Espaços Urbanos na Comunicação Contemporânea, promovido em agosto de 2006 pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da Universidade Federal de Pernambuco, e Redes Urbanas: Comunicação, Arte e Tecnologia organizado por Ricardo Freitas e Rafael Nacif (2007). Dentre vários outros. Com efeito, convém agora explicitarmos melhor o conceito de interdisciplinaridade aqui utilizado. Segundo Sommerman (2006), no século XII ocorre uma grande e primeira ruptura no pensamento intelectual da elite ocidental, quer dizer, européia. Uma ruptura na visão antropológica, cosmológica e epistemológica. Qual seja: aquela baseada na crença judaico-cristã apoiada na filosofia platônica. A partir dessa cisão, o saber vai se estruturando numa perspectiva e numa teoria do conhecimento cada vez mais racionais e empíricas. As causas dela Sommerman identifica como sendo a entrada definitiva da razão 18 aristotélica, a criação de grandes universidades e a tradução para o latim de textos, além de gregos, como o próprio corpus do saber aristotélico, de pensadores árabes. “Se a razão platônica e neoplatônica se harmonizavam com a teogonia, a cosmologia, a antropologia e a escatologia judaico-cristã, o mesmo não ocorria com a razão aristotélica”, afirma Sommerman (2006, p. 11-15) que, mais adiante nesse mesmo sentido complementa: “Enquanto Platão faz das matemáticas um meio de purificação para a alma que se distancia do mundo sensível, Aristóteles constrói uma ciência sistemática, mas puramente qualitativa”. A adoção desse outro entendimento do homem, do mundo (natureza) e de como se conquistar o saber, mina a contemplação e o raciocínio teosófico como a busca do conhecimento verdadeiro. E assim a partir do século XIV aponta para uma racionalidade em que posteriormente os sentidos humanos e também a experiência da vida prática vieram a ser considerados como aportes necessários e até imprescindíveis à aplicação da razão pela busca da verdade mais exata e indubitável. Dito de outra forma: essa primeira ruptura leva ao aprofundamento da separação entre fé e razão com a predominância da sistematização metodológica do saber real sobre a expectativa suprarreal. Alguns nomes contribuíram decisivamente para a demarcação histórica desse saber moderno. Alguns dos principais são Nicolau Copérnico (1473-1543), Galileu Galilei (1564-1642), Isaac Newton (1643-1727), René Descartes (1596-1650), sendo este considerado o pai do racionalismo moderno. Estamos aqui, como se pode verificar, mais centrados nos séculos XV, XVI e XVII. Mas o conhecimento avança e desemboca numa segunda grande ruptura epistemológica. Primeiro no século XIX, com o positivismo de Auguste Comte (1798-1857) e depois segue adiante com a 19 valoração da experiência como fonte privilegiada do saber defendida um século antes por nomes como John Locke (1632-1704) e David Hume (1711-1776), ambos considerados fundadores do empirismo moderno. Temos aqui então dois caminhos partidários percorridos: enquanto a história do racionalismo (que vê no pensamento, na razão a fonte principal do conhecimento humano) revela que alguns dos seus defensores provêm campo da matemática, a história do empirismo (que vê na experiência a fonte do conhecimento humano) mostra que alguns de seus defensores vêm das ciências naturais. Essa evolução em seu conjunto desde a primeira grande cisão até os tempos atuais levou a uma fragmentação radical do saber, reduzindo-o a apenas um nível da realidade, o do sensível. Correntes nesse sentido (re)surgiram com força, como o reducionismo, o ceticismo, o subjetivismo, o mecanicismo e o criticismo. Resume-nos neste sentido Sommerman (2006, p. 19): Vemos com isso que as posições epistemológicas predominantes foram reduzindo o campo do conhecimento considerado verdadeiro. A hegemonia da epistemologia tradicional (multidimensional), até o século XIII, deu lugar ao racionalismo (bidimensional: matéria e espírito), no século XVII, e gerou posições ainda mais estreitas: mecanicismos, reducionismo e materialismo. Porém, acrescenta o autor, essa fragmentação sempre crescente do conhecimento humano, incluindo aí a “fratura” entre ciência e filosofia ocorrida no século XVIII com a separação entre as ciências exatas (quadrivium) e humanas (trivium), e depois a organização positivista realizada no século XIX classificando as ciências em disciplinas fundamentais (matemáticas, astronomia, física, química, biologia e sociologia), descritivas (zoologia, botânica, mineralogia, psicologia) e aplicadas (engenharia, agricultura e educação), leva a uma “hiperespecialização disciplinar” que irá ocorrer na metade do século XX. Além desse histórico 20 evolutivo, segundo Sommerman (2006, p. 24), essa especialização extremada foi causada também pelo “crescimento exponencial do volume e da complexidade dos conhecimentos, e pela multiplicação e sofisticação das tecnologias” ocorridas nos anos do pós-guerra. Isso quer dizer que até o início do século XX a divisão do saber era circular, ou seja, as ciências ainda dialogavam entre si, apesar de, segundo chama a atenção Sommerman, desde o século XIV a sua circularidade constituir “círculos cada vez menores”, por conta da sistemática exclusão de campos do saber, com a eliminação primeiro da gnose ou teologia mística do século XIII, seguida da religião no século XVII e depois da filosofia ou da metafísica no século XIX. A disciplina, então, conceitualmente, se tronou, conforme também a entendemos aqui, naquele “conjunto específico de conhecimentos que tem suas características próprias no plano do ensino, da formação, dos mecanismos, dos métodos e das matérias” (SIMMERMAN, 2006, p. 25). Mas se o século XX acirrou a fragmentação do saber em campos estanques, nele cientistas do mundo todo e de diversas áreas também viram a necessidade de se tentar reaproximar os saberes. Isso tendo em vista a necessidade de somente se conhecer o universal através da aproximação e do diálogo entre vários métodos, perspectivas, acerca muitas vezes de um mesmo objeto. Mais que isso: sujeitos também deveriam se aproximar. Vários congressos, seminários e encontros importantes foram realizados nesse sentido, alguns dos quais inclusive patrocinados por universidades tradicionais e grandes agências, como a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) e a Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico 21 (OCDE), especialmente a partir dos anos 1970. Desses encontros foram criadas associações de cientistas de diversas áreas com o intuito de estudar e promover a interdisciplinaridade, afora a criação de um significativo documento, a Carta da Transdisciplinaridade, elaborada no Primeiro Congresso Mundial da Transdisciplinaridade, ocorrida em Portugal, de 2 a 6 de novembro de 1994. Mas não foram somente iniciativas voluntárias de cientistas, universidades e agências de fomento que promoveram um impulso histórico à necessidade da busca de um diálogo entre as várias ciências. Pesquisas mostraram também que a natureza é constituída de outras dimensões que refutam senão colocam em xeque os primados da ciência moderna, aquela nascida nos anos 1400-1600 com Galileu, Descartes etc. e reforçada nos séculos posteriores. A ciência viu-se de novo diante de novas fronteiras e desafios: três paradigmas estavam sendo quebrados. Primeiro com a descoberta de Max Plack, no início do século XX, que comprovou que no mundo subatômico as entidades físicas (os quanta) continuam a interagir qualquer que seja o seu afastamento. Isso, de acordo com Sommerman (2006, p. 54-55), coloca por terra o paradigma da casualidade local, qual seja, aquele que estabelece como irrefutável o fato de que não poderia haver efeito sem causa. Mais que isso. Como Plack descobriu que a energia subatômica tem uma estrutura descontínua, quer dizer, que “ela se move por saltos, sem passar por nenhum ponto intermediário”, então outra convenção científica irrefutável, a da continuidade, ou melhor, a de que nada pode transcorrer no tempo e no espaço sem que passe por todos os pontos intermediários, também caiu por terra. Algumas décadas depois da descoberta de Planck, continua Sommerman, outro dos pais da física quântica, Werner Heisenberg, derrubou o terceiro pilar da 22 física clássica (os dois primeiros são exatamente a casualidade e a continuidade), a ideia de determinismo. Porque suas equações mostraram que as entidades quânticas encontradas por Plack não poderiam ser localizadas num ponto preciso do espaço e do tempo. Assim, seria impossível aplicar o princípio de que se sabendo as velocidades e localizações de objetos físicos num dado instante, pode-se prever suas velocidades e posições no espaço e em qualquer outro momento do tempo. Desta maneira se descobriu duas realidades na natureza, aquela relativa ao mundo macrofísico (escalas supra-atômicas), em que as leis simples da física ainda continuam valendo, e a da dimensão microfísica (escalas subatômica), esta por sua vez regida por leis diferentes e que inclusive negam àquela. Baseados em todos esses eventos e acontecimentos científicos, promovidos pela inteligência e pelo avanço tecnológico, Sommerman chega a estabelecer o conceito de interdisciplinaridade, que é o que adotaremos no presente trabalho. Segundo ele, a interdisciplinaridade se encontra num nível superior ao da multidisciplinaridade. Esta seria uma integração apenas quantitativa de disciplinas ou profissionais, quer dizer, vários campos do saber especializado poderiam se justapor, tocar as suas fronteiras, mas não chegar a interagir de maneira a modificar ou enriquecer um ao outro. A definição de interdisciplinar, por sua vez, ao contrário de multidisciplinar, supõe um aprofundamento nas relações, ou seja, evoca a existência da interação entre duas ou mais disciplinas. Sommerman, inclusive, se apóia em vários outros autores. “Essas interações podem implicar a transferência de leis de uma disciplina para outra, originando, em alguns casos, um novo corpo disciplinar, como, por exemplo, a bioquímica ou a psicolinguística”, afirma Antoni Zabala, conforme 23 Sommerman (2006, p. 29-30). “A interdisciplinaridade é um método de pesquisa e de ensino suscetível de fazer com que duas ou mais disciplinas interajam entre si, esta interação podendo ir da simples comunicação das ideias até a integração mútua dos conceitos, da epistemologia, da terminologia, da metodologia, dos procedimentos, dos dados e da organização da pesquisa”, afirma Hilton Japiassu, segundo Sommerman (2006, p. 30). “O interdisciplinar consiste num tema, objeto ou abordagem em que duas ou mais disciplinas intencionalmente estabelecem nexos e vínculos entre si para alcançar um conhecimento mais abrangente, ao mesmo tempo diversificado e unificado”, diz José Aguiar Coimbra, de acordo com Sommerman (2006, p. 30). A transdisciplinaridade, por sua vez, seguindo esse entendimento, seria algo muito mais profundo e complexo, daí tentativas como a Teoria da Complexidade ou a Teoria dos Sistemas para dar conta. Através deste conceito entende-se uma etapa superior – e provavelmente a última – de interação, através da qual se daria inclusive algo mais que isso – se daria a integração. “Trata-se da construção de um sistema total, sem fronteiras sólidas entre as disciplinas”, afirma Sommerman (2006, p. 34). Por esse paradigma, os sentimentos, a subjetividade, as crenças, os mitos e o suprarreal também não deixariam de ser considerados, criteriosamente, à interatividade transdisciplinar, posto já serem muitos dos elementos dessas áreas da experiência da vida e da realidade objetiva objetos de consideração de diversas ciências, quais sejam, especificamente, os saberes não- científicos de um modo em geral, a arte, a metafísica, as tradições de sabedoria. “O reconhecimento da existência de diferentes níveis de realidade, regidos por lógicas diferentes é inerente à atitude transdisciplinar. Qualquer tentativa de reduzir a 24 realidade a um único nível regido por uma única lógica não se situa no campo da transdisciplinaridade”, afirma a Carta da Transdisciplinaridade, aprovada em 1994 no Primeiro Congresso Mundial da Transdisciplinaridade, segundo Sommerman (2006, p. 72) e acessível também na internet através do site da Rede Brasileira da Transdisciplinaridade (2010). Nosso trabalho não pretende chegar a tanto. Seria por demais pretensioso. Afora incoerente e impróprio ao que aqui propomos – o que nem por isso deixa de ser o presente trabalho desafiador e, conforme também pretendemos, tributário para as ciências humanas. Aqui, portanto, ficaremos apenas no nível da interdisciplinaridade: consideramos o mais adequado aos nossos objetivos. Assim, com base em Sommerman e nas referências que ele nos traz acerca da interdisciplinaridade, inclusive noutras que acima não foram transcritas, mas que revelam um cabedal teórico que apontam para um mesmo sentido do entendimento do fenômeno da interdisciplinaridade na sociedade contemporânea, poderíamos concluir conceitualmente que: a interdisciplinaridade é um convite histórico para se (re)buscar manter relações interdependentes e multidimensionais entre os diversos saberes e experiências, das diversas ordens e processos, hoje tão dispersos e estanques, depois de fraturados ao longo de tanto tempo, resguardando, no entanto, qualidades e valores já conquistados por cada um desses campos, com o intuito de se alçar e até mesmo alcançar, através da abertura ao desconhecido, do reconhecimento às ideias, práticas e verdades, e do rigor na apuração e na argumentação, um conhecimento mais amplo, global, eficiente, completo. É, inclusive, o que também pretendemos contributivamente aqui a partir dos próximos capítulos. 25 Para tanto, estes capítulos serão estratificados, mas guardando, como já dissemos, e aqui queremos enfatizar, relações, interligações e interações dialógicas, inclusive com o leitor. O primeiro traz à discussão com a Comunicação, através do desenvolvimento da imprensa e de uma urbanidade típica do início do século XX, a Literatura e a cidade do Rio de Janeiro, quando é apresentado, como elemento de análise, a ser feita através de conceitos do pensador russo Mikhail Bakhtin, a obra do escritor e jornalista Lima Barreto, Memórias do Escrivão Isaías Caminha. Nele o período está delimitado entre 1881 a 1922. O segundo capítulo, cujo período vai de 1922 a 1960, discute, conjunto à Comunicação, tendo como contribuição desta a arte e a técnica de diagramar jornais, mais especificamente a reforma gráfico/editorial protagonizada por Amílcar de Castro, Josias de Souza, Ferreira Goulart e outros no Jornal do Brasil, a Arquitetura/Urbanismo de Oscar Niemayer e Lúcio Costa, no âmbito da cidade de Brasília. No estudo de caso utiliza-se a Teoria do Conhecimento Indiciário, do pensador italiano Carlo Ginzburg. No terceiro capítulo, procede-se uma aproximação da Comunicação com a História, através de um rebuscamento histórico do desenvolvimento do jornalismo e do pensamento da Teoria do Materialismo Histórico e Dialético, dos estudiosos alemães Karl Marx e Friedrich Engels. Com esta, analisamos, no período de 1960 a 1985, na cidade de São Paulo, a relação conflituosa/contraditória de produção social com a sua mão-de-obra, com a política etc. do jornal Folha de São Paulo. No quarto e último capítulo, utilizando-se da Geografia Cultural, do pensador inglês Denis Cosgrove, dentre outros, que permite uma interpretação da cidade e seus construtos culturais/sociais, imagéticos e urbanos, analisa-se o que 26 denominamos de “heráldica moderna” dos gestores públicos, quais sejam, as logomarcas dos prefeitos de Natal de 1985 a 2004. Tal estudo leva em consideração o espaço e os elementos da política e da economia desta cidade. Finalmente, apresentamos a nossa Conclusão, que busca “costurar” o que parece fracionado e disperso, revelando uma interconexão polissêmica do saber e trazendo, desta forma, uma contribuição geral para um conhecimento que se pretende mais amplo e cosmológico. Mas tendo o cuidado de deixar em aberto – inclusive para, além do objetivo, o subjetivo e o intersubjetivo, como é próprio da presente proposta –, pontas e fios de uma epistéme do particular e do universal, ainda a ser devidamente absolvida e absorvida por todos, e para a qual se espera, assim, ser justa e afortunadamente tributária. 27 CAPÍTULO 1 Comunicação e Literatura: vozes de uma mesma cidade e seus personagens 1. Delimitação temática: aproximando pensares objetivo específico do presente capítulo é – como tema introdutório e ao mesmo tempo subtemático de nossa tese – tentar mostrar que é possível construir um saber através de uma convergência entre a Comunicação Social e a Literatura, tendo como pano de fundo a cidade e seu desenvolvimento urbano. Personagens fictícios e reais, autores e leitores, desempenham, no plano urbano, papéis específicos, mas que se entrelaçam no tablado da história, refletindo e ao mesmo tempo ajudando a construir épocas, tramas e dramas de uma sociedade extremamente emaranhada e inextrincável ao deslinde do senso comum. Buscaremos, para tanto, compreender os diversos papéis e linguagens no palco vivo da história, lançando mão do Jornalismo e da Literatura, campos que, no nosso entender, ao contrário do que comumente se defende, não estão tão apartados assim, conforme já começa a compreender uma forte corrente do pensamento científico contemporâneo. O 28 De maneira mais específica, vamos analisar aqui as vozes sociais da arte e da práxis jornalística e literária na cidade capitalista do início do século passado. Escolhemos para isto a obra de um dos autores tanto mais urbano quanto demonstrativo de sua época, Afonso Henriques de Lima Barreto (1881-1922), ou simplesmente Lima Barreto, como ficou mais conhecido do grande público, e o seu livro Recordações do Escrivão Isaías Caminha, publicado originalmente em 1909. Trata-se de uma obra que conta a história, na primeira pessoa, do jovem interiorano Isaías Caminha, de condição modesta, que parte de sua pequena cidade rumo ao Rio de Janeiro, capital da então nascente República, onde pretende realizar, através dos estudos, um grande sonho: ser doutor. As dificuldades de toda a saga para conseguir realizar seu principal desejo terminam por frustrá-lo anos depois, quando o entorpecimento e a acomodação social enfim parece ser a única saída para continuar vivendo sem traumas na cidade grande. O livro Isaías Caminha assim, com tons autobiográficos, faz uma forte crítica à sociedade hipócrita e preconceituosa da época, a começar pelo desnível mental entre seu pai, um ilustre vigário, e sua mãe, uma simples e sofredora dona- de-casa, passando em seguida para um questionamento vigoroso e ácido da política e da imprensa contemporâneas, dadas no plano social-urbano da incipiente, mas avassaladora, cidade moderna, o Rio de Janeiro. Neste aspecto sobressai-se mais um dos nossos objetivos: provar a importância desse autor para a formação de um Jornalismo compromissado com a realidade objetiva e com a sociedade na qual esteve inserido. Ou seja: com a prática de informar com um éthos e uma moral ideologicamente voltados para o resgate da dignidade dos indivíduos e da própria sociedade, caracterizado pela 29 defesa das classes subalternas e marginais (as mais excluídas, que teimam em subsistir nas urbes modernas até os dias atuais), através de uma escrita literária metafórica, estética, mas, ao mesmo tempo, inquieta, viva, clara e direta que, na imprensa, torna-se elemento tácito do processo de amadurecimento do Jornalismo Moderno, ao longo do tempo e de sua permanente construção profissional e deontológica até o presente. O cenário tanto real (do autor) quanto fictício (da obra), isto é, o continnum (tempo-espaço) válido para o presente estudo, portanto, é a cidade do Rio de Janeiro do final do século XIX e início do século XX, onde e quando o escritor viveu e a descreveu. E assim o fez não só como literato, mas também como jornalista e amanuense, funcionário público de condição modesta, que fazia a correspondência, copiava ou registrava dados oficiais em documentos, equivalente aos posteriores escrevente, datilógrafo e ao atual digitador do serviço público. Uma vida real e uma descrição ficcional, de Lima Barreto, por muitas vezes ativa, narrativa e dissertativa, que reflete não somente a sua própria condição, mas o caráter societário e a natureza de uma época de mudanças profundamente marcantes até os tempos atuais. Produto e produtor, assim, com suas vidas e vivências, timbres e nuanças, conteúdos e formas, desempenhando um papel ativo e prepositivo em sua sociedade corrente e, por isso mesmo, com profundos reflexos nos tempos subseqüentes. Para tanto, utilizaremos os conceitos bakhtinianos de polifonia, dialogismo e gêneros do discurso. Este último menos do que os dois primeiros. E aquele primeiro – polifonia – apenas em seu aspecto tipificador, superficial, ou seja, em parte, no que diz respeito à caracterização da voz enquanto ente social. E por um 30 motivo axiomático: estaremos aqui mais preocupados em “ouvir” o que tem a nos dizer o autor e seus personagens, inclusive o próprio Lima Barreto enquanto ser social de uma sociedade capitalista remodelada pelas novas tecnologias, do que avaliar questões estilísticas ou mesmo elementos gramaticais e movimentos literários – que, contudo, não serão de todo desprezados. Quais as imbricações entre o Jornalismo e a Literatura praticadas pelo escritor Lima Barreto? O que tem a nos dizer de sua época seus escritos jornalísticos e literários? Quais as condições históricas que nos revelam sua obra e a sua vida? Que projeções fizeram para o presente e o futuro as vozes de sua produção e as suas próprias venturas, aventuras e desventuras pessoais e intelectuais? Para responder a estas e outras questões precisamos antes de tudo conhecer Lima Barreto como escritor e em seu próprio tempo. Buscaremos, assim, inicialmente, entender o produtor intelectual e sua época. Depois explicitar a teoria de Mikhail Mikhailovitch Bakhtin. Em seguida vamos definir quais os elementos constitutivos dessa teoria que aqui vão prioritariamente nos interessar, inclusive no aspecto em que defendia o próprio Bakhtin – o de darmos a nossa contribuição, justapondo-se esta contribuição subsidiariamente à teoria dele para a construção e consecução interpretativa da realidade objetiva através das várias linguagens, línguas e demais práticas socialmente comunicativas, fato este que também é um dos objetivos principais do presente capítulo. Para tanto, contaremos com o suporte de outros importantes autores, como Márcia Benetti (2007), Fabiana Galindo (2007), Robert Stam (2000), José Luiz Fiorin (2006), Francisco de Assis Barbosa (1960), Alfredo Bosi (1996), Zélia- Nolasco Freire (2005), Ivanaldo Santos (2006), Maria Isabel Edom Pires (2006), 31 Antonio Arnoni Prado (1980) entre outros. Para finalizar, então, analisaremos, conclusivamente, tendo como base os conceitos bakhtinianos e o suporte desses autores, a obra limo-barreteana Recordações do Escrivão Isaías Caminha. 2. Sociedade Brasileira, Literatura e Jornalismo na virada do século A virada do século XIX para o XX é saudada em todo mundo ocidental, especialmente na Europa, como um grande acontecimento. Mais pelas novidades e promessas capitalistas redentoras do que pela passagem temporal do calendário. As invenções e as novidades rumo à modernidade, ao bem-estar e à prosperidade em praticamente todos os campos da vida humana, especialmente aqueles centrados nas cidades, pareciam agora apontar para resoluções definitivas dos grandes desafios que afligiam a humanidade durante todo o seu processo civilizatório, desde o início dos tempos, em particular o histórico. O que passa a ocorrer então pode ser sintetizado em duas expressões paradigmáticas: Fin de Siècle e Belle Époque. Um mundo de novidades mercantis e de utilização prática prenunciava uma mudança cultural profunda nos costumes que soterrariam de vez centênios de escuridão e dor e levariam enfim todos a uma existência prolongada, agradável e de grandes facilidades. Os veículos automotores, os transatlânticos, os aviões, o telégrafo, o telefone, a iluminação elétrica, a água tratada e encanada, inúmeros utensílios domésticos, a fotografia, o cinema, o rádio, arranha-céus e elevadores, remédios de toda espécie e de eficácia cientificamente garantida contra vários males, a imprensa e a indústria gráfica cada vez mais rápida e de qualidade sem paralelo, reformas urbanas e a TV somam apenas alguns exemplos desse reino de 32 prosperidade e de promessas de uma realidade melhor, mais bela, eficiente e aprazível. Se antes era o carvão, a máquina a vapor e o ferro que caracterizariam o primeiro momento da Revolução Industrial, tendo como símbolo máximo o tear e a locomotiva, agora ela se aprofundaria ainda mais, num segundo momento de seu desenvolvimento, com a chegada da eletricidade e da velocidade na produção e na superação das distâncias, tendo a lâmpada e o automóvel como os seus maiores símbolos. Por outro lado, no entanto, tais mudanças eram vistas também pelas conseqüências socialmente funestas que traziam, principalmente no cenário urbano, onde se davam talvez as maiores degradações humanas que se têm notícia. Isso não passou desapercebido de vários pensadores, como Engels, que já em 1845 chegou a descrever sobre a triste e aviltante situação da classe trabalhadora na Inglaterra. O que Engels vira e criticamente registrara naquele primeiro momento (meados do século XVII), terminaria por se aprofundar, inclusive no Brasil, na virada do século XIX e início do XX: o desemprego massivo; o inchaço das cidades; a moradia degradante; o alastramento de doenças seculares e o surgimento de outras novas, típicas da modernidade, como as psicossomáticas e as psicossociais, decorrentes da solidão, dos medos (fobias), da violência urbana e da desesperança (com particular destaque aqui para a loucura e o alcoolismo, das quais Lima Barreto seria portador e vítima, o que terminaria por agravar o seu quadro de discriminação e preconceito, fato sobre o qual falaremos de forma mais detida subseqüencialmente); o aumento e refinamento da exploração social do trabalhador em favor do capital; etc. Tudo isso, assim, condicionando sucessivas crises políticas, econômicas e sociais características da época. 33 Tal processo contraditório do capitalismo, portanto, chega ao Brasil de forma tardia. Suas influências, em todos os recônditos da vida política, social, cultural e econômica são marcantes. O epicentro de tais acontecimentos passa a ser a região Sudeste, mais especificamente o Rio de Janeiro e São Paulo, de tal maneira que a cidade do RJ, então capital da República, no final do século XIX, e especialmente no início do século XX, além da industrialização, passa por um processo de saneamento (higienização) e embelezamento sem par, com as medidas drásticas de “melhoramentos urbanos”, protagonizadas principalmente pelos prefeitos Barata Ribeiro e Pereira Passos, conhecidas como “bota-abaixo”, ou “era das demolições”, segundo Valladares (2000), que não se restringia somente a intervenções urbanas como a abertura de ruas e o desmoronamento do casario colonial, mas também, e de forma mais premente, na destruição de habitações degradantes no centro e nos morros, como a derribada ocorrida contra o primeiro grande cortiço do Rio que se tem notícia, o “Cabeça-de-Porco”, então situado no Morro da Favela, hoje Morro da Providência – fatos que provavelmente serviram de inspiração para o livro de Aluísio Azevedo, O Cortiço, conforme se pode ler neste trecho que, por oportuno, destacamos: “Agora, na mesma rua, germinava outro cortiço ali perto, o “Cabeça-de-Gato”...”. Na cidade de São Paulo, por sua vez, igualmente se processavam intervenções infra-estruturais importantes para prestar o suporte necessário à modernidade industrial então ascendente: a cidade urbanizava-se rapidamente, sob as exigências e os recursos da elite do café, como a busca de mão-de-obra mais barata e melhor preparada; a dos imigrantes. Ambas, RJ e SP, assim, traziam a sensação nacional de sintonia com o progresso e a evolução mundial. Nelas, a classe dominante lutava por manter seus privilégios e 34 ao mesmo tempo seguir à risca a moda européia através de um consumo exclusivo e por vezes espetaculoso e exacerbado. Com efeito, nasce, paradoxalmente, em particular nesse novo ambiente citadino do Rio de Janeiro e de São Paulo, uma nova classe social, composta por pessoas dotadas de conhecimentos, um certo capital financeiro e habilidades específicas, necessárias ao funcionamento e aprofundamento do processo urbano, com força suficiente para intervir conforme seus interesses pessoais e de grupos. São os intelectuais e trabalhadores especializados, como advogados e jornalistas, conforme também nos informa em suas reflexões Nolasco-Freire (2005, p.30): “Surge nos centros urbanos uma classe média constituída de burocratas, comerciantes e profissionais liberais que exige uma maior participação no processo econômico e político”. No campo, por outro lado, devido ao desenvolvimento capitalista agrícola – prossegue a mesma autora, e também como já nos mostra uma ampla literatura social a respeito – intensifica-se a imigração, em particular em SP, fazendo crescer os setores operários, através de organizações sindicais, que unem brancos (muitos destes vindos de países europeus em crise, como os italianos e alemães), mulatos e negros (estes brasileiros natos, os hoje denominados afro-descendentes). Não obstante, esses trabalhadores buscam nas cidades, em especial na capital paulista, melhores condições de vida, aumentando o contingente populacional e os problemas sócio-urbanos. Os brasileiros pobres e ex-escravos representam uma minoria nas fábricas e vagam pela cidade atrás de biscates: são carregadores, carroceiros, vendedores ambulantes, lavadores de roupas (Costa, 2000, p. 37). Esses brasileiros foram duas vezes excluídos: primeiro do 35 trabalho de assalariado nas indústrias; segundo são enxotados de suas casas para os subúrbios. Isto por causa do processo de urbanização que leva à especulação imobiliária e os força a se mudarem (Nolasco-Freire, 2005, p. 31). Não seria à toa, portanto, que justamente nessas cidades, e com mais intensidade no Rio de Janeiro, então capital da República, com seus graves desafios e cíclicas crises que perduram até os dias atuais, surjam os primeiros conglomerados de habitações degradantes para uma população crescente e paupérrima – o proletariado urbano. São os cortiços e as favelas, edificados espontaneamente em espaços onde o capital não tinha tanto interesse, como os morros e outros distantes e desprezíveis lugares suburbanos, conforme tão bem nos mostra Nabil Bonduki (1998) em uma importante obra sobre os primórdios da habitação social no Brasil. Assim como a literatura especializada com seus dados oficiais e dentro de critérios científicos nos faz compreender melhor e mais precisamente esse passado aqui em questão, também assim nos mostra, embora de maneira supra-real, posto ser ficção, aquilo que sem dúvida poderia vir a ser considerado – e assim o consideramos para todos os efeitos da presente tese – um dos primeiros registros históricos de uma identidade nacional, a Literatura Brasileira, através de obras clássicas, como, retratando o ambiente citadino, O Cortiço e Casa de Pensão, de Aluísio Azevedo, e Memórias de um Sargento de Milícia, de Manoel de Almeida; e retratando o espaço rural Os Sertões, de Euclides da Cunha, e Cidades Mortas e Negrinha, de Monteiro Lobato, dentre outros. Aqui, e somente para nos situarmos melhor, e rapidamente, os especificaremos. O Cortiço, por exemplo, é uma obra que nos retrata a luta pela sobrevivência de uma classe subalterna sem condições existenciais, principalmente 36 a de moradia digna, e submetida a uma permanente conflituosidade com o capital particular e especulativo do rentista urbano. No dizer de Bulhões (2007, p. 21): “revela laços evidentes com o que se pode reconhecer como real empírico, uma vez que se depreendem da narrativa desse romance de Aluísio Azevedo aspectos de uma circunstância espacial e histórica comprovável, com sinais de evidência histórica no Rio de Janeiro de fins do século XIX”. Casa de Pensão, por sua vez, tem uma relação direta com as folhas dos jornais e a realidade objetiva e urbana da época, trazendo, com efeito, referência à classe social emergente de pessoas que se impunham pelo conhecimento e serviços necessários que ofereciam, da qual falamos acima. Isso porque, segundo nos informa minuciosamente em sua obra Marcelo Bulhões (2007, p. 72-82), “um crime sangrento agitava as folhas dos principais jornais do Rio de Janeiro”, em 1876: foi quando o jovem estudante João Capistrano da Cunha, “moço rico e recém-chegado do Paraná”, fora assassinado com cinco tiros pelo ex-colega Antônio Alexandre, à Rua da Quitanda, centro da cidade, por volta das 10 horas da manhã. Fazia meses que a querela entre os dois estudantes ocupava as páginas dos jornais. Isso porque Capistrano depois de chegar ao Rio ficou hospedado na pensão da mãe de Antônio Alexandre (quando foi por este captado à acomodação, que vira nele um bom cliente, ou, no dizer da época, “um bom partido” para fomentar o negócio), e, por conta da convivência que passara a ter na pensão, mantivera relações sexuais com a irmã de Alexandre, Julia, que reclamara desse fato à mãe, a dona da pensão, inclusive com a acusação de ter sido violentada, dando assim apenas sua versão dos fatos. A questão foi levada à polícia por Capistrano que exigia pela reparação pelos “danos morais causados” uma quantia de 50 contos. O 37 caso vai a julgamento em 18 de novembro de 1876 e, para o fervor da opinião pública que torcia por João Capistrano, o estudante paranaense é absolvido e em seguida é “carregado nos braços como heróis pelas ruas da cidade”. No dia seguinte, contudo, inconformado, Antonio Alexandre se vingaria com os tiros na Rua da Quitanda. Passado alguns anos, segundo Bulhões, a “Questão Capistrano”, como ficou conhecido à época o caso, parecia esquecida. Mas, em 1883, continua Bulhões, o escritor Aluísio Azevedo, “já conhecido pela polêmica em torno de um romance de 1881, O Mulato, lançava no periódico Folha Nova uma história espantosamente semelhante à do jovem João Capistrano”. O eixo do enredo e os personagens estão numa mesma linha de correspondência: Amâncio é João Capistrano, João Coqueiro é Antônio Alexandre, Madame Brizard é D. Júlia e Amélia é a jovem Júlia. Aqui sobressai-se, portanto, além de uma apropriação direta de uma realidade factual no âmbito do espaço urbano de uma época determinada com suas características sócio-culturais, e a sua posterior re- elaboração ficcional por força da criação imaginativa no plano supra-real, também uma aproximação da linguagem jornalística com a linguagem da Literatura, o que nos leva a crer em outras estreitezas intelectuais tendo como base a realidade vivida pelos literatos de então, que, não raro, também eram jornalistas. Este parece ser o caso do romance Memórias de um Sargento de Milícias, do médico Manoel de Azevedo, também ambientado no plano urbano do Rio de Janeiro: embora não haja até hoje nenhuma comprovação de que tenha uma relação efetiva com determinados fatos objetivos da realidade citadina à qual se refere (mesmo havendo a afirmação de que se baseia nas memórias verdadeiras do português Antônio César Ramos, que teria sido “um sargento de milícias”), a obra 38 em determinados momentos nos fala da existência social de morros que eram ocupados por uma população pobre, desempregada, sofrida e perseguida pela polícia que, assim como hoje, subia morro acima para caçar bandidos e derrubar casebres feitos com materiais de refugo. Ou seja, antes mesmo da comprovação científica (sociológica) do nascimento da favela nos morros daquela cidade, conforme nos mostra (com base nos jornais da época) importantes pesquisadores sociais como Abreu (1994) e Valladares (2000), que identificam a gênese dos primeiros núcleos favelares em fins do século XIX e início do XX, Manoel Antônio de Almeida, que também era jornalista, já nos fala, em meados do século XIX, data de publicação do romance (o autor viveu entre 1831 e 1861), de construtos e relações sociais existentes no início do século XIX com características do que hoje conhecemos por favela, contribuindo assim já àquela época da publicação para a construção imaginária da cidade legal e ilegal, reforçando, por conseguinte, aqui, a nossa tese de que a Literatura promove a construção (e por vezes a própria reconstrução) identitária do real através do supra-real. Os Sertões, de Euclides da Cunha, por sua vez, deslocando-nos da cidade para o campo, segundo Proença (2000, p. 220), “retrata um grande contingente de brasileiros que vivia na miséria e procurava solução para seus problemas na religiosidade popular”. Euclides da Cunha, que originariamente publica seu trabalho no jornal O Estado de São Paulo, reporta-se em sua obra à Guerra de Canudos (1896-1897), ocorrida no sertão da Bahia, para onde fora mandado como enviado especial (repórter) por aquele órgão de imprensa. O autor revela para uma ascendente sociedade republicana que no “Brasil Moderno” havia no plano campesino o pulsar de vida degradada e esquecida do aparato legal e da atenção 39 estatal, e que justamente por isso buscava na força do idealismo ascético a reação necessária para a satisfação de suas necessidades existenciais de toda ordem. A atitude de Euclides da Cunha, em correspondência aos anseios imediatos do jornal, ajuda a inaugurar, assim, na história do Jornalismo brasileiro, e de forma mais decisiva do que outros possíveis casos anteriores, um traço essencial do contemporâneo – a necessidade da presença do jornalista no palco dos acontecimentos mais importantes da história, vivendo diretamente os fatos, testemunhando as ações conflituosas e ouvindo as vozes dos que titulam gestos e/ou daqueles que sofrem suas conseqüências; enfim, revelando direto do centro das ocorrências para o público mais amplo possível todas as possíveis faces dos acontecimentos históricos mais significativos de uma nação, de um povo. Trata-se também de uma importante contribuição dada – senão a mais importante – para o nascimento nacional da chamada grande reportagem, este como gênero jornalístico contemporâneo, com ecos a ocorrer, como sua característica principal, somente nas metrópoles. Da mesma forma, ainda relativamente ao campo, obras como Cidade Morta e Negrinha, de Monteiro Lobato, descrevem “aquela população subnutrida, socialmente marginalizada, sem acesso à cultura, acometida de toda a sorte de doenças endêmicas”, e tratam também de “temas como o preconceito racial e a situação do negro após a Abolição”, conforme Nolasco-Freire (2005, p.87). Ambos os escritores desta forma manteriam relações criativas e de produção com Lima Barreto, direta ou indiretamente, conhecendo-o pessoalmente ou não, concordando acerca da realidade social ou sendo diametralmente opostos, mas à mesma época todos protagonizando um Jornalismo e uma Literatura de militância, de denúncia e de contestação, cada qual ao seu modo. Lima Barreto, por exemplo, nesse aspecto, foi essencialmente urbano, conforme veremos a seguir. 40 3. Lima Barreto e o seu tempo Afonso Henriques de Lima Barreto nasceu mulato e humilde no dia 13 de maio de 1881. Exatamente sete anos depois, no dia 13 de maio de 1888, a Princesa do Brasil, primeira chefe de Estado da América Latina, Isabel Cristina Leopoldina de Bragança, filha do Imperador D. Pedro II, assinava a Lei Áurea, como ficou mais conhecida a Lei nº 3.353, estabelecendo a Abolição da Escravatura no país. Como presente, o pai do futuro escritor, João Henriques de Lima Barreto, também mulato, “um quase negro”, figura sofrida e justamente por isso também marcante em sua formação e desígnios, o levou ao Paço Imperial para assistir aos festejos comemorativos. Desse momento se recordaria depois da imagem da princesa vindo à janela saudar o povo – “loura, muito loura, maternal, com um olhar doce e apiedado”, segundo Prado (1980, p. 96) – bem como, influenciado pelo que representava aquele acontecimento histórico, perseguiria um objetivo sociológico como escritor que jamais iria cumprir: escrever sobre o passado e o presente histórico dos negros no Brasil, conforme ele mesmo, aos vinte e dois anos, relatou: “No futuro, escreverei a História da Escravidão Negra no Brasil e sua influência na nossa nacionalidade” (BARRETO apud NOLASCO-FREIRE, p. 47). A decisão imperial, no entanto, não livrou Afonso Henriques de Lima Barreto da pobreza nem do preconceito, dois desafios que iriam persegui-lo cruelmente até o fim de seus dias. Mas, se sofreu a dor provocada pelas dificuldades financeiras e pela intolerância, não foi, contudo, condescendente com essa realidade. Ao contrário: ao seu modo, tornou-se um resistente. De tal forma 41 que morre nove meses depois da realização da Semana de Arte Moderna, no dia 1º de novembro de 1922, quando o mundo em sua volta passara por transformações importantes para as quais, com a sua arte, ajudara a construir. O ano do nascimento do escritor seria também marcante para a Literatura Brasileira. Naquele 1881, no mesmo Rio de Janeiro, o também mulato Machado de Assis publicaria Memórias Póstumas de Brás Cubas, e Aluísio de Azevedo publicaria O Mulato. Ambas as obras, como os próprios títulos já encerram, seriam marcos de uma nova época literária, o Realismo/Naturalismo, de cujos prosseguimentos em transição para a Modernidade no seio urbano Lima Barreto viria a ser o seu maior representante, a começar exatamente com a publicação do livro aqui escolhido para análise, Recordações do Escrivão Isaias Caminha. Outro acontecimento significativo de época e que iria marcar para sempre a vida e a arte do escritor, pelas transformações políticas, econômicas e sociais que representariam daí por diante, foi a Proclamação da República. Realizada no ano seguinte à promulgação da Lei Áurea, a instalação do regime republicano, ocorrida mais exatamente no dia 15 de novembro de 1889, e executada impositivamente através de um golpe militar, trouxe, como novo estatuto de governo e sistema social, mudanças importantes em todos os campos da sociedade brasileira. As sucessivas crises daí decorrentes revelam um país em transição, mas sem grandes avanços, que buscava inserir-se no sistema capitalista mundial. Uma luta externa que era ao mesmo tempo auto-excludente na maioria dos setores societários de seu domínio interno – elementos contraditórios que aguçaram uma permanente e crescente crítica social de Lima Barreto, que assim tornar-se-ia mais monarquista que propriamente republicano. Seria um crítico militante e intransigente em relação 42 à chamada Primeira República, ou República Velha, que viveu até o início dos anos 1920, denunciando o descaso dos governos e, não sem algum equívoco, questões sociais importantes. As lutas, tensões e conflitos, próprios da crise capitalista nacional ocorridos no período que vai do final do século XIX e início do século XX, cuja bandeira ideológica dos grupos oligárquicos estaduais e segmentos militares, cada vez mais fortes e atrelados ao poder, se revestia da idéia de progresso e modernidade, eram questionados e até combatidos duramente pelo escritor Lima Barreto, condicionando-o assim a uma obra representativa dele e do período. Recordações do Escrivão Isaias Caminha, lançado originalmente em 1909, possui, assim, em grande medida, particularmente nos planos urbano e jornalístico, estas características. Lima Barreto veio ao mundo, como se disse, no final do Império e ao nascer da República. O seu pai, João Henriques de Lima Barreto, era tipógrafo, e, sua mãe, Amália Augusta Barreto, professora primária, tendo dirigido, em seu próprio lar, para ajudar na manutenção da casa, um pequeno colégio para meninas, o Santa Rosa. Aos sete anos, porém, fica órfão da mãe, que morre de tuberculose depois de ter ficado com a saúde já abalada pelo primeiro parto. O pai, que já trabalhara em publicações como Jornal do Commercio e A Reforma, e que na esperança de recuperar a saúde da esposa torna a vida quase itinerante, desorganizada, com a Proclamação da República é demitido da Imprensa Nacional por ter participado do movimento da Resistência Liberal (dirigia, à noite, as oficinas da Tribuna Liberal) e por ter sido indicado para o emprego pelo senador monárquico Affonso Celso de Assis Figueiredo (1836-1912), o Visconde de Ouro Preto – homenagem a quem o 43 pai de Lima Barreto havia lhe colocado o prenome Afonso. “Da tal história da República só me lembro eu as patrulhas andavam, nas ruas, armadas de carabina e meu pai foi, alguns dias depois, demitido do lugar que tinha” – lamentou tempos depois Lima Barreto, segundo Barbosa (1960, p. 8). Lima Barreto, contudo, segundo Prado (1980), demonstra ser desde cedo um aluno esforçado e passa com brilho pelo curso primário e pelos exames da Instrução Pública, fato que o credenciaria a fazer os primeiros preparatórios no Liceu Popular Niteroiense, instituição de ensino freqüentada pela alta sociedade. De acordo com Alfredo Bosi (1996, p. 316), porém, depois desses episódios (a morte da mãe, a demissão do pai e a situação precária da família), vão, pai e filho, morar na Ilha do Governador, em cuja Colônia de Alienados o ex-tipógrafo trabalhará como almoxarife. “Assim, o menino só vê a família aos sábados. Deprimido e solitário, com a vida dividida entre o internato e o asilo de loucos, Lima Barreto, com 15 anos, chega a pensar em suicídio” (PRADO, 1980, p. 3). Graças ainda à proteção de seu padrinho, o Visconde de Ouro Preto, Lima Barreto consegue, segundo Bosi (1996, p. 316), terminar o curso secundário e matricular-se na Escola Politécnica, em 1897, quando, de acordo com Prado (1980, p.3), passa “então a viver numa pensão da rua do Ouvir”, centro boêmio do Rio de Janeiro. Com o Visconde, no entanto, não tem um bom relacionamento. Logo no primeiro contato, segundo Nolasco-Freire (2005, p. 48), “Lima Barreto sente forte antipatia pelo padrinho e isto o leva a romper definitivamente um relacionamento que mal havia começado”, pois teria havido aspereza e pouco-caso por parte do Visconde, que também chega a destinar-lhe 10 mil-réis como pagamento pelo desapego emocional. Tais fatos iriam se refletir em personagens e enredos de 44 algumas de suas obras de ficção e de memórias. Em Triste Fim de Policarpo Quaresma o personagem principal, Policarpo Quaresma, é o padrinho de Olga, por quem devota os mais sinceros carinhos e atenção; em M. J. Gonzaga de Sá criou a figura de um padrinho, Gonzaga de Sá, que investe com denodo e desvelo na educação do afilhado Aleixo Manuel; e em Diário Íntimo chega a dizer: “E os 10$000 do tal Visconde! Idiota. Os protetores são os maiores tiranos” (BARRETO, 1956, apud NOLASCO-FEIRE, 2005, p. 48). O escritor, porém, não freqüentaria com assiduidade a Escola Politécnica. Chega a abandoná-la definitivamente em 1903. Nesse mesmo ano, no dia 23 de outubro, então com 22 anos de idade, é nomeado, por concurso, para o cargo de amanuense na Secretaria da Guerra. Entrementes, seu pai enlouquece e é recolhido à Colônia de Alienados onde ele próprio trabalhava. Isso afeta sobremaneira a vida de Lima Barreto, que, com o mísero salário, passa a cuidar do pai demente e a arcar com as despesas da casa, além de alimentar e vestir oito pessoas: três irmãos, a irmã Prisciliana, os três filhos desta e o Sr. Manuel de Oliveira, um preto velho agregado da família. Lima Barreto divide seu tempo também com artistas, escritores, jornalistas, freqüenta bibliotecas e cafés, experimentando intensamente também os meandros da vida urbana, até entregar-se completamente, após saber da loucura do pai – doença da qual também seria vítima –, ao alcoolismo. Segundo Bosi (1996, p. 316), é nesse tempo em que vira funcionário que passa a ler avidamente a Literatura de ficção européia do século XIX e desta forma se familiariza com a melhor tradição realista e social, além de ter sido um dos “raros intelectuais brasileiros que conheceram, na época, os grandes romancistas russos”. Romancistas que se juntavam à revolta contra as injustiças sociais e os 45 preconceitos dos quais se sabiam vítimas. Assim, conhece as obras de Fiódor Dostoievski (1821-1881), cuja vida guardaria incríveis semelhanças com a de Lima Barreto (a mãe do escritor russo morreu quando ele era ainda muito jovem e seu pai, o médico Mikhail Dostoievski, foi assassinato, fato que exerceu enorme influência sobre o futuro do jovem autor que, epiléptico, teve a sua primeira crise depois de saber do assassinato do pai) e cuja obra viria ser posteriormente objeto dos estudos e a principal base para o pensamento de Mikhail Bakhtin, teórico que, como já se disse, adotaremos aqui para a análise da obra do escritor brasileiro. É ainda por esse período que Lima Barreto, para aumentar a renda e exprimir suas idéias, passa a colaborar, como jornalista, em praticamente todos os jornais do Rio de Janeiro, o que lhe daria também uma posição privilegiada para acompanhar o desenvolvimento da urbe moderna, os problemas enfrentados pela população e as soluções apresentadas pelos gestores públicos. Sobre este assunto, nos fala Francisco de Assis Barbosa (1995, p. 16), um dos mais abalizados biógrafos do escritor carioca: Quanto à modernização do Rio de Janeiro, Lima Barreto sempre se colocou como uma voz solitária em posição radicalmente contra a forma como se processava. Para ele, os homens ricos, os agentes imobiliários, os pseudo-urbanistas, que se empenhavam em loteamentos para valorizar e especular os terrenos pantanosos de Copacabana, Ipanema e Leblon, não estavam preocupados com a natureza. Só se pensava mesmo em ganhar dinheiro, à custa dos favores da Prefeitura. (...) O escritor achava absurdo todo aquele sonho de grandeza que vinha acentuar ainda mais o desequilíbrio entre o litoral e o sertão, a área metropolitana sempre beneficiada e o interior desamparado, o crescimento desmedido dos centros urbanos e o abandono sistemático das populações rurais. E atacou sem rebuços, nos seus artigos, como se fosse um cientista social, a “megalomania dos melhoramentos apressados, dos palácios e das avenidas”, apontando-lhes as conseqüências inevitáveis que já se tornavam evidentes com as migrações internas, o deslocamento em massa de camponeses para os grandes centros metropolitanos, à procura de trabalho. 46 Mas não só com artigos de opinião – um dos trabalhos intelectuais nascidos nas redações que viria se transformar num dos gêneros do Jornalismo Moderno –, Lima Barreto aborda a questão urbana então vivenciada. No jornal Correio da Manhã, por exemplo, produz uma série de matérias, como repórter, sobre as transformações urbanas feitas a partir das intervenções urbanísticas protagonizadas pelo prefeito Pereira Passos, mas com uma pintada do fantástico, própria do escritor, aproximando assim, tendo a cidade como cenário, as linguagens da Literatura e a do Jornalismo. Essas reportagens de Lima Barreto, agora então com 24 anos de idade, foram sobre as escavações feitas pela prefeitura no Morro do Castelo, “espécie de marco inicial da cidade”, segundo Bulhões (2007, p. 88), e que, de acordo com Nolasco-Freire (2005, p. 50), foram publicadas entre 28 de abril e 3 de junho de 1905 e vinham assim anunciadas: “farta messe de assunto para os amadores da literatura fantástica e para os megalômanos, candidatos a um aposento na Praia das Saudades”. Detalhe: a Praia das Saudades era o lugar onde ficava o hospício que Lima Barreto conhecia tão bem. As reportagens versavam sobre as obras que estavam sendo executadas, reportando-se a entrevistas com engenheiros e possivelmente outros agentes públicos, mas também sobre a aura de mistério que envolvia o Morro do Castelo, onde se acreditava existir nos subterrâneos grandes tesouros escondidos. Dentre esses tesouros, de acordo com o texto especulativo, segundo Nolasco-Freire (2005, p. 51), haveria imagens em ouro e em tamanho natural de Santo Inácio de Loiola, São Sebastião, São José e da Virgem, deixados pelos padres da Companhia de Jesus quando foram expulsos do Brasil pelo Marquês de Pombal em 1759. 47 Acerca dessa relação entre o trabalho preciso e correspondente ao real do jornalista Lima Barreto – levando dados, opiniões e revelando fatos próximos, verdadeiros e significativos para a população em geral – mesclado com o trabalho criativo e supra-real do escritor Lima Barreto – que chega aprofundar a curiosidade do público em suas “reportagens” com uma movimentada, trágica e passional história do comissário francês Jean-François Duclerc, que comanda uma destemida invasão pirata à cidade de São Sebastião (atual RJ), conquista a cidade e a condessa italiana Alda, mas é apunhalado pelas costas, junto com a amada, pelo jesuíta João de Jouquières, com quem disputava o amor da bela jovem, tendo em seguida o assassino cometido suicídio, segundo relatos de “preciosos códices” do século XVIII, manuscritos em italiano e que teriam sido encontrados, porém mantidos em segredo, nas galerias então reviradas pela prefeitura –, tendo as transformações urbanas da cidade e especificamente as escavações no Morro do Castelo do Rio de Janeiro como objetos primordiais de suas reportagens, assim analisa Marcelo Bulhões (2007, p. 88-96): Em 1905 o Rio de Janeiro vivia os tempos da grande remodelação urbanística comandada pelo prefeito Pereira Passos, que transformou drasticamente a fisionomia da cidade: abriu a Avenida Central, destruiu cortiços coloniais, expulsou populações pobres, abriu palacetes e deu um certo ar de Paris à nossa precária e escaldante capital da República. A cidade foi escavada, perfurada, mexida por fora e por dentro, o que deixou um saldo de entulho, caco e poeira. (...) A máxima jornalística, segundo a qual o lugar do repórter é a rua, funciona como elemento estrutural da narrativa de O subterrâneo do Morro do Castelo, pois as reportagens narram o percurso transitivo do repórter em busca das revelações decisivas. (...) Estranhamente, o repórter Lima Barreto lança um produto de ficção. E, ao forjá-lo, o escritor promoveu a passagem do universo jornalístico para o romanesco, por meio de uma trapaça que consiste em se valer do efeito de credibilidade jornalística para mergulhar, sem freios, no território da aventura fantasiosa. Lima Barreto atua, pois, como um repórter ilusionista, um anti-repórter. (...) Lima Barreto transfigurou um material histórico. Duclerc, por exemplo, foi mesmo um pirata francês que invadiu o Rio de Janeiro em 1710. 48 (...) Mas não se imagine que o lado externo do Morro desaparece da mira do repórter Lima Barreto uma vez brotada a intriga folhetinesca. A inacreditável trama que envolve pirata, jesuíta e condessa é intercalada com abordagens noticiosas que comunicam o mundo externo atual do Morro do Castelo. Há um movimento de luz e sombras, interior e exterior, presente e passado... tais são os níveis que se alimentam um do outro, e o suspense se atualiza em ambos. Mas fazer o contrário disso, ou seja, inserir em seus romances, crônicas, contos, memórias e epistolografia, elementos da realidade social e urbana do Rio de Janeiro, numa evidente utilização de recursos da reportagem jornalística, o que sem dúvida nos traz uma certa precisão historiográfica, também pode ser encontrado em várias obras do escritor Lima Barreto, com aquela indisfarçável tendência para a crítica sociológica e uma conseqüente denúncia social contra os governos, a classe dominante e em favor dos menos favorecidos, dos discriminados, dos suburbanos. Segundo Bulhões (2007, p. 97-98), “Clara dos Anjos, por exemplo, romance publicado postumamente em folhetim entre 1923 e 1924, dispõe de capítulos que inserem quadros da vida urbana, ou melhor, suburbana, que funcionam como autênticas retratações desse gênero jornalístico [a reportagem]”. Acrescentaríamos aqui, dentre outras, publicações como Vida Urbana, Feiras e Mafuás, Os Bruzundangas, Bagatelas, Marginália, Diário Íntimo, Cemitério dos Vivos e aquela obra que será aqui ao final analisada, Recordações do Escrivão Isaias Caminha (1909). Talvez por isso Lima Barreto seja considerado um autor quase representante do Realismo, como o foi um dos precursores na Rússia aquele a quem ele tanto admirava, Dostoievski, e também quase Naturalista, como o foi Zola e Flaubert na França, justamente por ambas terem a realidade objetiva e nela o ser humano em atividade social como algo em comum – e exatamente por isso as duas terem sido 49 tão importantes para o desenvolvimento da História do Jornalismo –, embora as aplicações sobre tal base, a realidade societária, notadamente urbana, se dessem nelas de modo diferenciado. Daí, talvez, tenhamos obras brasileiras, que marcam o início desses dois movimentos literários, tendo em comum a vida citadina através da crítica social e da retratação de um existencial desafiador (psicológico) e de uma existência insalubre (suburbana), como, respectivamente, Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, e O Cortiço, de Aluísio de Azevedo. Mas, dado o seu próprio tempo e sua obra, afere-se ser Lima Barreto na verdade um Pré- Modernista, fazendo assim o que poderia se chamar de “uma autêntica literatura brasileira”, conforme afirma Arnoni Prado (1980, p. 5), pois voltava-se, em sua essência, para o cotidiano e para o povo, através de uma linguagem simples e comunicativa – como viria se aperfeiçoando o Jornalismo Moderno até os dias de hoje. Ou seja, produziu uma literatura memorialística e sociológica que se inclinava fundamentalmente para os problemas existenciais do indivíduo no interior da sociedade então existente, assim como foram, à mesma época, evidentemente guardadas as devidas características pessoais e estilísticas, os escritores Monteiro Lobato, Graça Aranha e principalmente Euclides da Cunha. Sobre essas possíveis sintonias (e também antinomias) em relação a Lima Barreto e Euclides da Cunha, por exemplo, Nicolau Sevcenko (1997) desenvolve um belíssimo e definidor trabalho, no qual mostra que, “apesar de viverem na mesma cidade e circularem nos seus poucos núcleos literários”, onde “provavelmente nunca se defrontaram” e “certamente jamais trocaram uma palavra”, patentearam-se, contudo, entre vidas e obras, “paralelismos e similitudes que chegaram ao rigor do pormenor”. 50 Após mostrar algumas semelhanças de vida (ambos nasceram no Rio de Janeiro; eram mestiços – Euclides apresentava traços indígenas; foram órfãos desde cedo; estudaram na Politécnica; saíram desta escola antes de terminar o curso; possuíam um “credo inabalável” num humanitarismo cosmopolita; tiveram uma formação positivista; acompanharam de maneira “próxima e comprometida” a expansão do comtismo no Brasil, tendo Euclides sido aluno de Benjamin Constant e Barreto freqüentador da Igreja Positivista do Brasil), e depois de mostrar algumas oposições fundamentais em relação à produção intelectual dos dois escritores (“suas obras se contrapõem em sentido simetricamente inverso”), assim também como algumas diferenças sobre o modo de viver e encarar alguns desafios culturais de seu tempo, Sevcenko nos fala, dentre outros, de um importante ponto em comum entre ambos que aqui, dado o seu caráter político, nos interessa sobremaneira. Trata-se da abominação que tinham pelo cosmopolitanismo tal como era interpretado pela elite social da capital da República, e que Lima Barreto chamava de “burguesia panurgiana”. Uma interpretação caracterizada como “pura e incondicional assimilação de todos os usos, costumes e idéias” em prática e oriundas da Europa. Para ambos, diz Sevcenko, “somente a descoberta e o desenvolvimento de uma originalidade nacional daria condições ao país de compartilhar em igualdade de condições de um regime de equiparação universal das sociedades, envolvendo influências e assimilações recíprocas”. Continua Sevcenko (1997, p. 122-3) ainda sobre este ponto em comum entre os dois escritores, a repulsa à vida avassaladora e inescrupulosa das elites em detrimento das classes subalternas: Assim, vemo-los revesarem-se em suas críticas abertas ao cosmopolitanismo e ao esnobismo arrivista da rua do Ouvidor, ou à agitação destrutiva e inconseqüente do jacobinismo e do 51 florianismo no rio de Janeiro. Ouvimo-lhes a declaração ardorosa de entusiasmo pelos mesmos autores russos, vanguarda internacional do humanitarismo na passagem do século. Mas, sobretudo, revelava-se nas suas obras mesmo empenho em forçar as elites a executar um meio giro sobre seus próprios pés e voltar o seu olhar do Atlântico para o interior da nação, quer que seja para o sertão, para o subúrbio ou para o seu semelhante nativo, mas de qualquer forma para o Brasil e não para a Europa. Desta maneira, acrescentaríamos, não seria sem motivo que ambos os escritores se encontrassem também no mesmo espaço-tempo em duas outras categorias societárias, a polis e a diurnalle, estas enquanto instâncias culturais capitalistas e, por conseguinte, dotadas de natureza sociológica (e todos os demais conceitos daí decorrentes, como: city, citizen, trabalho, jornada diária, jornalismo diário, crônicas, cronistas, jornalistas, escritores), que caracterizariam a importância do objeto comum entre ambos no que diz respeito à cidade e à prática cotidiana do ato de escrever, ou seja, constantes sociais tanto das reflexivas condições da época como da vivência diária, que de forma por vezes invariável se impregnavam nas folhas imprensas de todas as obras jornalísticas e literárias desses dois intelectuais brasileiros. O romance Os Sertões traria assim não somente uma denúncia (invariabilidade na prática) de uma situação existencial precária, messiânica, carente de uma compreensão maior pela informação dos citadinos envoltos na rotina da polis central, e de certa forma uma cobrança de atitudes propositivas, como deveria ser de seu ofício, por parte dos gestores do poder capital também centrado nessa mesma polis moderna, mas, e justamente por isso, se caracterizaria como parte de um ethos, capitalista, ou seja, de um gênero típico de um dos braços mais poderosos e lucrativos da indústria gráfica moderna e então nascente, o Jornalismo Impresso. Compreende-se assim melhor o porquê de Euclides da Cunha ter sido enviado para o longínquo interior da Bahia pelo jornal O Estado de São Paulo para acompanhar a saga e a déblâcle de Antônio 52 Conselheiro num ínfimo e remoto arraial, Canudos, enfim arruinada pelas tropas federais, como também um pouco mais a razão pretensamente redentora que inspirava um suposto santo e seus famintos e flagelados seguidores que perambularam por uma região seca e desvalida, e que também foram enfim mortos, assassinados. Não seria à toa, portanto, que os escritos, como produto, de um “enviado especial”, repórter-escritor, fossem publicados como reportagem mercadológica pelo OESP, posteriormente transformado em livro e assim ajudado a reconfigurar, pela força do lucro midiático, tanto a mentalidade histórica de um povo quanto o seu próprio destino. Em suma: havia em Euclides da Cunha muito da essência do Jornalismo Moderno, este enquanto missão, assim como igualmente também havia em Lima Barreto, bastando para isso ver, no caso deste, o sentimento de brasilidade e realidade social em todas suas prosas e idéias (chegou a ser um defensor do maximalismo). Lima Barreto, assim, ao mesmo tempo em que confere audição, possibilita voz amplificada aos “desprovidos”, por intermédio de um exercício lingüístico completamente coerente e concernente ao fim a que se destina: pousa-a em solo de ruas e vielas dos subúrbios cariocas, dando conhecimento do Brasil, um Brasil abafado pelo julgo do interesse e do poder (ROSSONI, 2005). Se era um ativista literário, um propugnador social, um jornalista questionador e propositivo, Lima Barreto também era em si, no domínio de suas atividades psíquicas, e em sua existência, no campo de suas realidades social e material, um representante inferior dos rebelados. Por isso mesmo sentia profundamente a dor da pobreza, da degradação pública, do preconceito e da perseguição. Não consta que tenha se casado, que tenha tido um amor romântico ou mesmo fugaz. Foi-lhe impingido pelo jornal mais poderoso da época a decretação de silêncio em suas páginas quanto à publicação de escritos ou de 53 qualquer referência àquela figura incômoda (proibição que duraria meio século, ou seja, vigorou até mesmo depois de sua morte), fato que fez Lima Barreto à certa altura desabafar: “A única crítica que me aborrece é a do silêncio”. A crítica escrita, contudo, representando a elite social e econômica da época, salvo raríssimas exceções, também não poupou em preconceito e perseguição contra Lima Barreto, como a feita, por exemplo, no jornal A Notícia, pelo literato Medeiros de Albuquerque (pseudônimo de J. Santos), em 15 de dezembro de 1909, ano de publicação do livro Recordações do Escrivão Isaías Caminha. Já no começo, Medeiros de Albuquerque chama o livro de “venenoso, venenosíssimo” e afirma que não possui “o senhor Lima Barreto o mínimo de conhecimento pessoal ou literário”. Esta crítica Medeiros de Albuquerque levou a pesquisadora limo- barreteana Alice Áurea Penteado Martha (2008, p. 3), após uma interessante análise sobre leitura e percepção estética da crítica de 1909 acerca da obra Recordações do Escrivão Isaías Caminha, a concluir que: Ao enfatizar semelhante desconhecimento, Medeiros e Albuquerque parece confirmar a discriminação social e literária a que era submetido o escritor carioca em seu campo intelectual. Em outras palavras, pode estar dizendo: quem é Lima Barreto, em termos literários e posição social, para levantar a voz em direção à elite intelectual do país? A questão se torna mais significativa quando se sabe que Medeiros e Albuquerque era divulgador da idéia, bastante comum à época, que os negros não tinham [têm] nenhuma capacidade literária. Tomado pelo alcoolismo, após anos, desde a infância, sofrendo a dor da discriminação por ser mulato, e passando pelo sofrimento dos desprovidos por ser pobre, além de graves desgostos familiares, sendo o pior deles o fato de ter que enfrentar a doença e ajudar ao pai, que ficara louco, Lima Barreto andava roto, descuidado com a aparência, e dormia bêbado em lugares inusitados, como o vagão de um trem, onde se encontrava “cambaleante, sujo, cheirando a cachaça (...) 54 espichando-se no banco e caindo num torpor barulhento, entre arrotos e uivos”, à frente de todos os passageiros que “olhavam com desdém aquele mulato triste”, ou ainda no chão de uma livraria, sobre livros, retirados da estante por compadecimento de um amigo em comum, o proprietário Schettino, que ficava, ao ver a cena, “com os olhos rasos d’água” e “eu com um nó na garganta”, como relembra consternado o “enamorado das ruas”, conforme chamou o poeta Vinícius de Moraes ao pintor da vanguarda modernista Di Cavalcanti (1997, p. 434-436), porque, assim como Lima Barreto, Di retratou elementos da realidade citadina carioca, como favelas, operários, soldados, marinheiros, festas populares. O alcoolismo de Lima Barreto, ademais, minava até mesmo suas amizades mais sinceras. “Certa vez, seu amigo Monteiro Lobato, que havia ido ao Rio especialmente para visitá-lo, encontra-o bêbado numa mesa de bar. Constrangido, evita apresentar-se, para não fazê-lo sofrer”, diz Prado (1980, p. 5). O pior, para Lima Barreto, também no campo existencial, contudo, ainda estava por vir – mesmo mantendo no campo intelectual uma intensa produção jornalística e literária. Um ano após fundar a Revista Floreal, em 1907, e depois de ter colaborado com o jornal Correio da Manhã, em 1905, lança, em 1909, Recordações do Escrivão Isaías Caminha, cuja publicação, inspirada muito provavelmente no funcionamento e em personagens reais do Correio da Manhã, deu-se somente na Europa, com a ajuda de um dileto amigo, Noronha Santos, com quem fundara, naquele mesmo ano, o panfleto O Papão, para combater a candidatura de Hermes da Fonseca à presidência da República. A publicação de Recordações ocorre em Lisboa justamente porque, em decorrência de seus escritos questionadores e relacionados à realidade objetiva – ou seja, por fazer "não apenas 55 o retrato implacável das mazelas da imprensa mas, também, uma crítica radical da hipocrisia e do preconceito reinantes na sociedade brasileira" (NOLASCO- FREIRE, 2005, p. 56) –, conseguiu amealhar alguns inimigos ocultos, que “agiam de forma camuflada, velada, sem rosto” e que, “não podendo atingir o homem, atingiam o intelectual”, segundo Nolasco-Freire (2005, p. 52). Em 1911, conforme nos revela Prado (1980, p. 3-5), lança, em folhetins, no Jornal do Commercio, o romance Triste Fim de Policarpo Quaresma, também aproximando Jornalismo e Literatura via retratação de um personagem individual que, assim como em Recordações, luta contra o status quo então vigente, vergastando costumes e, o autor, utilizando-se de uma linguagem despojada, questionadora, própria da imprensa, revela todo um inconformismo. Colabora depois com vários outros jornais, como a Gazeta da Tarde, Gazeta de Notícias e O Correio da Noite; e revistas, como Careta; publica relatos contundentes como O Chamisco, As Aventuras do Dr. Bogóloff e Entra Senhor; e, em 1912, publica mais um romance, Numa e a Ninfa, dentre outras produções e participações, inclusive político- literárias. Alcança por essa fase de intenso trabalho muita popularidade, mas nada disso evitou-lhe, como se disse, o pior. O escritor passa a ter crises de loucura, assim como o pai, e por duas vezes chega a ser internado no Hospital Nacional dos Alienados. A primeira, justamente dois anos após a publicação de Numa e a Ninfa, em 1914. “Ao sair, completamente dominado pelo álcool – que nunca deixara por completo – passa a perambular pelas ruas”, afirma Prado (1980, p. 3-5). Em 1916, pára de trabalhar para fazer o tratamento de uma anemia profunda. Mas, em seguida, novamente volta a produzir, fase em que publica, em 1917, o Manifesto Maximalista, época da Revolução Russa e da ocorrência em São Paulo de uma das maiores greves da história operária brasileira, e mais um romance, Os 56 Bruzundangas, em que traça “um perfil tragicômico das mazelas nacionais”. No ano seguinte, 1918, porém, é aposentado de seu cargo na Secretaria da Guerra por ser considerado “inválido para o serviço público”, e recebe, pouco tempo depois, o diagnóstico de ser portador de “epilepsia tóxica”, sendo internado para tratamento. Em 1919, ano de publicação de mais um romance, Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá, considerado por muitos como o seu melhor romance – “a mais curiosa síntese de documentário e ideologia que conheceu o romance brasileiro antes do Modernismo”, diz Alfredo Bosi (1996, p. 320) – é internado, no Natal daquele ano, pela segunda vez no hospício da Praia Vermelha, como também era conhecido o Hospital Nacional dos Alienados, de onde só sai em 2 de fevereiro de 1920. É nesse confinamento que escreve sobre o que vê, o que sente, no que acredita, de maneira tão rica e pungente, nos aspectos testemunhal, criativo e ideológico, que após sua morte esses escritos foram reunidos e transformados no livro Cemitério dos Vivos. Consta dessa obra – que em alguns momentos lembra Recordações da Casa dos Mortos, de Dostoievski, "pela sinceridade ardente do documento humano", como diz Bosi (1996, p. 322) – as suas memórias do hospício, em cujos textos se encontra um romance inacabado, documentos oficiais de internação, uma relação de livros do escritor, uma entrevista concedida pelo escritor ao jornal A Folha e um registro cotidiano, o Diário do Hospício, no qual faz um relato habitual e pormenorizado da internação, do ambiente, de seus sentimentos (como o desejo de suicídio e a consciência sobre seu próprio estado mental), e das características e do movimento dos outros reclusos, chegando quase a estabelecer uma tipologia da loucura. Nesse sentido, a pesquisadora Maria Isabel Edom Pires (2006, p. 67-73) faz um esclarecedor trabalho em que ressalta a 57 resistência à exclusão social e a contribuição intelectual do escritor encarcerado através da palavra escrita, que seja de forma objetiva, retratando o real, ou subjetiva, entrelaçando-a com o ficcional. Para a pesquisadora, o ideal de Lima Barreto, qual seja, o de tentar inserir-se no campo intelectual sem apadrinhamentos e buscando uma literatura sem rebuscamentos, voltada para o grande público, explicitado em Recordações do Escrivão Isaias Caminha, se amplia em Cemitério dos Vivos, de tal forma que é somente através dessa escrita, “à custa da sua infâmia”, posto que “o encarceramento forjou o narrador”, que pode-se conhecer o interior da instituição, os internos e suas queixas – condições, denúncia e dados históricos que fazem sobressair o valor documental do diário. Em suma: Atingido pela fama às avessas, fomentadas pelos excessos do corpo, Lima Barreto, experimentando o encerramento no cárcere, instilou no seu diário a memória dos infames, esses anônimos, doentes, assassinos, vagabundo, velhos e aleijados, de quem, em muitos momentos, nutria ressentimento pela convivência tumultuada, mas a quem se irmanava naquele sentido mais amplo que pode ser colhido em toda sua obra, qual seja o de reconhecer em cada excluído socialmente um igual, parceiro da mesma embarcação (PIRES, 2003, p. 73). Dito de outra forma: Lima Barreto, ao ser encarcerado como louco, vítima de seu tempo, das condições que lhe foram impostas pela sociedade e amargando o dissabor genético-familiar (“De mim para mim, tenho certeza de que não sou louco; mas, devido ao álcool, misturado com toda a espécie de apreensões que as dificuldades de minha vida material, há seis anos, me assoberbam, de quando em quando dou sinais de loucura: deliro”, chegou a afirmar, dentre outros desabafos reveladores dessa natureza inquieta, denunciadora, humana), aproxima ainda mais o artífice do intelectual; a experiência do relato, o mimética do empírico, o proverbial do poético, o metonímico da metáfora, enfim, o Jornalismo da Literatura, tendo como cenário o mais moderno ambiente citadino da exclusão 58 social, lócus da urbanidade perdida. Deste cemitério, Barreto deu, inclusive a si próprio, vida e vozes aos insepultos e afônicos, sobreviventes sociais, náufragos de uma mesma embarcação. Fez, de maneira inaugural, o que faria evolutivamente para a imprensa e para a Literatura nacional mais tarde Graciliano Ramos com Memórias do Cárcere, livro igualmente memorialístico e póstumo, e faria hoje qualquer jornalista mediano com ares literários, e minimamente conhecedor do New Journalism, através do que apropriadamente já se convencionou chamar de Livro-Reportagem. 4. Os conceitos de Mikhail Bahktin As teses de Mikhail Bakhtin sobre polifonia, dialogismo, gêneros do discurso e carnavalização são revolucionárias no âmbito da análise da produção literária mundial. Espraiam-se também para outras áreas da produção intelectual, especialmente a crítica, que se utilizam delas para o desanuvio de mensagens oriundas das mais diversas linguagens culturais e artísticas, como o cinema, a música, o teatro, as manifestações eruditas e principalmente as populares, bem como para ajudar na decifração de produções estilísticas individuais e/ou artísticas coletivas, características de correntes ou movimentos culturais, assim como, mais recentemente, em campos culturais bem específicos, como o Jornalismo. Os conceitos bakhtinianos, porém, não são revolucionários somente por isso. São refundantes à análise, bem como originais em suas premissas para os estudos literários, e por conseguintes em outros campos, como dissemos, justamente porque, no caso específico da polifonia e do dialogismo (só estes dois vai nos 59 interessar daqui por diante, conforme explicitamos no início), além de inaugurar um novo olhar e obter um mais conciso e atualizado entendimento acerca da produção intelectual literária, origina-se a partir da identificação de um escritor e de uma obra também tão originais quanto revolucionários: Fiodor Dostoievski e a sua poética – esta considerada já tão universal quanto o seu próprio autor. Este preâmbulo fez-se necessário porque, justamente destacando a importância de Dostoievski para a teoria bakhtiniana, pode-se inferir melhor o quanto é necessário fazê-lo para aqui demonstrar, antes de ingressarmos nos conceitos propriamente ditos, as importantes ligações que possuem Dostoievski com o outro autor aqui pesquisado, Lima Barreto, além daquelas outras conexões temporais e literárias que já destacamos no item anterior, bem como – e isso é o mais importante – com a própria fortuna teórica e os parâmetros conceituais de Mikhail Bakhtin. Com efeito, o próprio Bakhtin destaca essas características de Dostoievski para a consecução de seu pensamento teórico – e por conseguinte nós a convergimos naturalmente, pela obviedade, para o nosso objeto de estudo, o produtor intelectual Lima Barreto e o seu produto, a obra Recordações do Escrivão Isaias Caminha. Em primeiro lugar, Bakhtin afirma que só foi possível Dostoievski criar uma poética definidamente com elementos polifônicos e dialógicos, algo nunca antes produzido e que escapou à percepção até mesmo dos críticos de sua obra, precisamente porque, subordinado à sua visão artística, aquilo que dentre outras coisas lhe daria um certo e especial dom de ouvir e entender todas as vozes simultaneamente, Dostoievski era jornalista, praticava o Jornalismo e amava ao jornal como poucos de sua época – condição que lhe daria a habilidade e o destemor necessários para fazer emergir ao plano da realidade objetiva e ao 60 nível da atualidade da época a problemática e as contradições sociais e políticas de seu tempo, compondo assim um sentido aistórico aos personagens e acontecimentos reais ou criados. Em suma: Dostoievski produzia arte inovadora e em essência à qual subordinava até mesmo o Jornalismo. Nas palavras do próprio Bakhtin (1997, p. 30): Ele polemiza constantemente, e polemiza com certa hostilidade orgânica, com a teoria do meio independentemente da forma como esta ou aquela se manifeste (por exemplo, nas justificações dos fatos pelo meio alegadas pelos advogados); ele quase nunca apela para a história como tal e trata qualquer problema social e político no plano da atualidade. Isso não se deve apenas à sua condição de jornalista, que requer tratamento de tudo num corte da atualidade; ao contrário, achamos que a sua propensão pelo jornalismo e seu amor pelo jornal, a compreensão profunda e sutil da página do jornal como reflexo vivo das contradições da atualidade social no corte de um dia, onde se desenvolvem extensivamente, em contigüidade e conflito, as matérias mais diversas e mais contraditórias, devem-se precisamente à particularidade fundamental de sua visão artística (BAKHTIN, 1997, p. 30). Neste aspecto, Bakhtin aprofunda a propensão fundamental de Dostoievski para a prática do Jornalismo e a sua inegável e decisiva inclinação afetiva para com o jornal ao referir-se a Leonid Grossman, que escreveu: “Dostoievski nunca sentiu pela página de jornal aquela aversão característica de pessoas de sua formação intelectual, aquela repugnância desdenhosa pela imprensa diária expressa abertamente por Hoffmann, Schopenhauer ou Flaubert”. De fato, Schopenhauer, como sabemos, condenava até mesmo os eruditos, pois defendia a originalidade e o ineditismo do pensamento: repetir o que já foi dito é pensar pelos outros; é pensar o que os outros já pensaram, dizia. E Grossman acrescenta, ainda segundo Bakhtin (1997, p. 30): Diferentemente deles [Hoffmann, Schopenhauer ou Flaubert], Dostoievski gostava de mergulhar nas informações jornalísticas, censurava os escritores contemporâneos pela diferença ante esses “fatos mais reais e mais complicados” e com o senso do jornalista 61 autêntico conseguia reconstituir a visão integral de um minuto histórico da atualidade a partir de fragmentos esparsos do dia passado. “Você recebeu algum jornal? – pergunta ele em 1867 a um de seus correspondentes. – Leia, pelo amor de Deus, não por uma questão de moda mas para que a relação visível entre todos os assuntos gerais e particulares se torne cada vez mais forte e mais clara...” Bakhtin destaca outros elementos literários inéditos ou quase exclusivos até então em Dostoievski e que são próprios do Jornalismo Moderno, embora não fale disso explicita e diretamente. Elementos que foram fundamentais para possibilitar que somente a obra do escritor russo fosse capaz de criar a verdadeira polifonia, ou seja, aquilo que fez Bakhtin (1997, p. 35) à certa altura tão decisivamente afirmar: “Estamos convencidos de que só Dostoievski pode ser reconhecido como o criador da autêntica polifonia”. Senão vejamos. Quando analisa a crítica de Otto Kaus à obra de Dostoievski, por exemplo, Bakhtin (1997, p. 17-33) afirma que, no que diz respeito a causas e fatores extra-artísticos que tornaram possível a construção do romance polifônico, “o que aqui menos teremos de fazer é recorrer a fatos de ordem subjetiva, por mais profundos que seja”, pois do contrário o escritor teria feito apenas mais uma obra monológica. Ou seja: se Dostoievski tivesse levado em consideração apenas as questões relativas à vida pessoal de suas personagens, ressaltando unicamente as contradições do espírito, sem suas imbricações dramáticas e relações efetivas com as diversas camadas da realidade social, não teria produzido uma obra tão inédita quanto inovadora, mas seria apenas mais um romântico a corresponder com a concepção hegeliana da existência. “Em realidade, porém, o romancista encontrou a multiplicidade de planos e contrariedade e foi capaz de percebê-lo não no espírito mas em seu universo social objetivo”, afirma Bakhtin (1997, p. 27). Ora, a realidade objetiva com suas contradições sociais intrínsecas é a mais pura e verdadeira matéria do Jornalismo – assim como também 62 era o corpus do trabalho do jornalista e a principal fonte do escritor Lima Barreto. Quando Bakhtin examina o processo de criação do herói em Dostoievski, também nos fala de outro elemento próprio do campo teórico-prático do Jornalismo avançado, ou seja, aquele sem o qual não poderia, nas condições atuais, subsistir. Trata-se do relativo distanciamento do autor em relação às suas personagens, o que daria a estes a liberdade necessária para que pudessem se movimentar e falar o que bem quisessem, mostrarem-se articulados em idéias, valores, opiniões, crenças, ou entrarem inclusive em conflitos ou ainda em entendimentos uns com os outros, sem a interferência ideológica ou até mesmo diretamente subjetiva do autor – que seria, por conseguinte, apenas mais uma voz destoante (ou por vezes não) num universo de criação dialógica, glossárico, polifônico. Este é sem dúvida um posicionamento objetivo, como objetivo é, ou pelo menos deve ser, derivado de uma visão moderna e acadêmica, por sua vez oriunda da visão iluminista e cartesiana, o posicionamento de todos os profissionais de imprensa, especialmente o repórter, em relação às suas fontes, entrevistados, outros colegas e às ocorrências meramente factuais ou significativamente históricas – algo tão forte que se afigura, inclusive, em seu código deontológico e que poderá fazê-lo se tornar um rejeitado entre seus pares se assim minimamente não pensar e agir. Nesse aspecto, ainda sobre a Literatura de Dostoievski, e que também foi um fator decisivo, segundo a teoria bakhtiniana, para a consecução do romance polifônico, nos diz Mikhail Bakhtin (1997, p. 67): Essa nova posição “objetiva” do autor (só em Shakespeare Tchernishevsk encontra a aplicação dessa posição) permite que os pontos de vista dos personagens se revelem com toda a plenitude e autonomia. Cada personagem revela e fundamenta livremente (sem interferência do autor) a sua razão: “cada uma fala por si mesma: “o pleno direito está comigo” – julguem essas pretensões que se chocam entre si. Eu não as julgo”. 63 Após este breve introdutório, cujo objetivo foi apenas ressaltar a importância do Jornalismo para Dostoievski e, por conseguinte, para a teoria bakhtiniana, algo inevitavelmente correlacionado com o escritor brasileiro Lima Barreto e a sua obra Recordações do Escrivão Isaías Caminhas, como já dissemos e veremos mais aprofundadamente adiante quando de sua análise, passemos agora a explicitar mais detidamente o pensamento de Mikhail Bakhtin naquilo que fundamentalmente vai abalizar a nossa compreensão da obra barreteana e sua relação com o Jornalismo e a cidade do Rio de Janeiro do final do século XIX e início do século XX – as suas teses. É preciso dizer, porém, inclusive para permitir uma melhor interpretação dos conceitos de dialogismo e polifonia, que o próprio Mikhail Bakhtin, ao estabelecer sua teoria com base em Dostoievski, classificando- o de criador do romance polifônico, como vimos, foi, ele próprio, ao assim proceder, também polifônico – algo que certamente escapou à observação de muitos de seus críticos ou seguidores. Isso porque, em sua obra “Problemas da poética de Dostoievski”, o pensador russo, ao já adentrar naquilo que queria dizer – os seus conceitos – fez exatamente aquilo que é característico da prática polifônica, da consciência dialógica e do gênero do discurso, em suma, realizou aquilo que entendia por tudo isso: um processo e não um produto; uma criação da ação comunicativa social e não um catálogo descritivo invariável; algo que se cria na interação e produção do sentido e não um dado posto de maneira fechada à mera erudição ou à Literatura didática de uns poucos. Um dos que percebeu com essa característica intrínseca à obra de Bakhtin foi Robert Stam (2000, p. 41), que sobre o Bakhtin polifônico assim se pronunciou: Finalmente, vale a pena notar que o próprio Bakhtin pratica a polifonia discursiva em suas críticas. Em Problemas da poética de Dostoievski, ele cita toda uma galeria de críticos, mas não o 64 faz para sobrepujar as vozes dos outros, e sim para utilizá-las no âmbito de sua própria orquestração. Cita esses críticos longamente, permitindo-nos ouvir suas vozes com ressonância plena. Não vê os outros como oponentes a serem aniquilados, mas como colaboradores potenciais para um discurso polifônico. Neste sentido, a prática crítica do próprio Bakhtin exemplifica o dialogismo de que fala (grifos mantidos). Assim, em “Problemas da poética de Dostoievski”, Bakhtin permitiu, inicialmente, que falassem as vozes dos críticos de Dostoievski e ao mesmo tempo com elas dialogou, ora concordando, ora discordando, e ao fim chegou, após o choque de teses aparentemente díspares – a sua e a de seus interlocutores –, a uma conclusão axiomática que, em suma, é uma construção teórica fundamentada no modelo hegeliano de produção do conhecimento – e Bakhtin, como todo bom marxista, não rejeitava as teses de Hegel, apenas as considerava passível de melhor entendimento e aplicação. Trata-se esse de um processo que Bakhtin viu também, como conseqüente ao conhecimento teórico, na obra intelectual de Dostoievski. Qual seja, através da contradição, e não de sua supressão, se chegar à síntese, à verdade, à essência das coisas, em suma, ao Absoluto. Desta forma, constituem-se os modelos teóricos de Bakhtin – e o que se pode depreender da narrativa de Dostoievski, de acordo com o pensamento do próprio Bakhtin – em postulados filosóficos válidos, pelas suas próprias premissas, à compreensão da realidade à qual veio debruçar o seu pensar, o seu refletir. É desta forma que logo no primeiro capítulo, O romance polifônico de Dostoievski e seu enfoque na crítica literária, do livro Problemas da Poética de Dostoievski (1997), Bakhtin vai apresentar o pensamento monológico – e justamente por ser monológico, inclusive em seu conjunto, é incapaz de desvendar a obra de Dostoievski – de cada um dos críticos da Literatura do escritor russo Dostoievski e que ele, Bakhtin, amealhou à consubstanciação de suas idéias. 65 Amealhou às suas idéias mas selecionando partes dessas consciências, ou seja, claramente direcionando essas vozes críticas para a consecução de um discurso secundário, como é próprio de uma teoria, incluindo a sua própria, segundo categoriza Fiorin (2006, p. 70), utilizando-se por vezes do gênero direto (posto fazer uso de dois-pontos, verbos dicendi, aspas etc.) e (provavelmente) mesclando- o com os gêneros indireto e indireto livre, ao mesmo tempo em que faz algumas considerações que lhes permitem esclarecer à consciência do leitor a sua tese, ou seja, a mais uma voz. Dito, de outro modo, e sem estes esclarecimentos, nas palavras do próprio Bakhtin: Antes de desenvolvê-la [a tese] com base nas obras de Dostoievski, veremos como a crítica literária tem interpretado a peculiaridade fundamental que apontamos em sua obra. Não é nossa intenção apresentar nenhum ensaio com a plenitude mínima sequer da literatura sobre Dostoievski. Dos trabalhos sobre ele publicados no século XX, abordaremos apenas aqueles que, em primeiro lugar referem-se ao problema da sua poética e, em segundo, mais se aproximam das peculiaridades fundamentais dessa poética como as entendemos. Desse modo, a escolha se faz do ponto de vista da nossa tese, sendo, por conseguinte, subjetiva. Mas no caso dado essa subjetividade da escolha é inevitável e legítima, pois não estamos fazendo ensaio histórico nem muito menos uma resenha. Importa-nos apenas orientar a nossa tese, o nosso ponto de vista entre aqueles já existentes sobre a poética de Dostoievski. No processo dessa orientação, esclarecemos momentos isolados de nossa tese (BAKHTIN, 1997, p. 6). Sobre essas “vozes” da crítica literária na exposição de Bakhtin, que irão nos permitir melhor compreender o fenômeno e o conceito de polifonia, em sua particular aplicabilidade realizada pelo próprio pensador no processo de construção de sua teoria, o professor de Filosofia Ivanaldo Santos (2006), com a colaboração dos professores Glenn Walter Erickson (Filosofia) e Maria Fernandes de Oliveira (Letras), fez um interessante resumo dessas críticas que, pelo seu caráter breviário e preciso, iremos aqui aproveitar, mas considerando essas críticas como “vozes” e não como fez Santos, que basicamente resumiu o pensamento de cada um dos 66 críticos sob a abordagem de Bakhtin. Assim, o primeiro dos “comentadores”, como os chama Santos (2006, p. 119), analisados por Bakhtin, é Ivanov, filósofo marxista que pertenceu ao Estado stalinista, portanto, “um filósofo oficial do aparato burocrático estatal”. Desta forma, a interpretação feita por esse crítico da obra dostoievskiana é apenas monológica, pois refletiria unicamente um modelo político e revolucionário que serve ao Estado marxista russo pós-revolução de 1917, a partir da ótica de “um simples escritor proletário”. O segundo “comentador”, também conforme Santos (2006, p. 120), é Engelgardt, que buscou fazer da obra de Dostoievski apenas uma interpretação hegeliana, qual seja, o caminhar do espírito absoluto rumo à uma certa plenitude. “Os personagens de Dostoievski, ao invés de serem consciências autônomas e livres, seriam partes menores da grande consciência que é a consciência do autor”, explica Santos. Assim, conclui Bakhtin (1997, p. 27), “Engelgardt acaba tornando monológico o universo de Dostoievski, reduzindo-o a um monólogo filosófico que se desenvolve dialeticamente”. O terceiro “comentador”, ainda de acordo com Santos (2006, p. 120), é Askóldov, que por sua vez interpreta a obra de Dostoievski unicamente sob o ponto de vista psicológico de seus personagens, ressaltando seus dramas e conflitos internos. Santos alerta que Bakhtin não descarta essas características dos personagens na poética de Dostoievski, mas que vê também na obra do escritor russo, sobretudo, um microcosmo que espelha o grande cosmo, que é a sociedade, “com seus desníveis de classes sociais, seus conflitos, suas relações de dominação”. O quarto e último “comentador”, sintetizado por Santos (2006, p.120), é Komaróvitch. Este, ao contrário de Askoldov, que se centrou nas questões da interioridade das personagens, inclinou-se, em sua interpretação da narrativa de Dostoievski, no caráter empírico das ações realizadas pelas 67 personagens, esquecendo-se deliberadamente das profusões ligadas ao psicológico. “Bakhtin vê a interpretação de Komaróvitch como monológica, por ter reduzido a obra de Dostoievski a uma única consciência: a consciência que pratica uma determinada ação dentro da sociedade (roubar, assassinar, casar etc.)”, explica Santos. O jogo de vozes em Bakhtin, desta forma, é uma afirmação, ou a própria confirmação, de sua tese sobre Dostoievski – nada mau para um pensador que em outras de suas obras usou também outros nomes, como se outros autores fora. A partir de agora, então, é lícito perguntar: o que vem afinal a ser polifonia? De acordo com Bakhtin, polifonia é um estilo literário novo que se caracteriza por possuir em suas tramas personagens que detêm vozes próprias. E de tal forma essas vozes são próprias que se estruturam sobre si mesmas. Possui assim cada uma a independência necessária em relação umas às outras e quanto à voz do próprio autor, não tendo, portanto, que obrigatoriamente segui-lo enquanto voz ou mesmo no conjunto ideológico da obra, posto esta assim mesmo estar subvertida, e nem concordarem entre si nas questões em que se envolvem durante a realidade da narrativa e a realidade do mundo objetificado nela ou fora dela. Elas são assim vozes tão auto-suficientes e ao mesmo tempo tão conjunturais que as disparidades, constituições e as contradições intrínsecas dos indivíduos-personagens em suas realidades interiores e exteriores, psicológicas e materiais, soam como um conjunto tônico de vozes múltiplas e antitéticas. Trata-se, portanto, de uma orquestra de vozes díspares, regida (não imposta) pelo autor, que por sua vez é apenas mais uma voz que se estrutura sobre si mesma, paralelamente à narrativa e no âmbito da poética, posto não criar escravos mudos, mas indivíduos livres, dotados da capacidade de perfilar-se ao lado de seu criador, discordar dele ou até mesmo 68 contra ele rebelar-se. Isso quer dizer que todas são vozes de tal modo particularizadas, independentes e plenas de si mesmas que Bakhtin chega a denominá-las de “plenivalentes”. A voz do herói sobre si mesmo e o mundo é tão plena como a palavra comum do autor; não está subordinada à imagem objetificada do herói como uma de suas características mas tampouco serve de intérprete da voz do autor. Ela possui independência excepcional na estrutura da obra, é como se soasse ao lado da palavra do autor, coadunando-se de modo especial com ela e com as vozes plenivalentes de outros heróis (BAKHTIN, 1997, p. 5 – grifos mantidos). Assim, a polifonia, como muito bem resume Santos (2006, p. 118), “são consciências (vozes) que estão contidas dentro de uma obra literária e que são plenivalentes, ou seja, são plenas de valor; que mantêm com as outras consciências do discurso uma relação de absoluta igualdade, como participantes do grande diálogo”. Aqui, portanto, encontramos dois outros novos elementos a definir as vozes plenivalentes, características íntimas (delas) e intrínsecas (da obra) a torná- las essencialmente como tal: a consciência (de si, do mundo, etc.) e a manutenção dialógica (da e na obra) através do discurso multivocálico. Desta forma, já adentramos no segundo conceito bakhtiniano que aqui queremos abordar – o do dialogismo. Para nos aprofundarmos no que seja dialogismo, voltemos à estruturação do capítulo O romance polifônico de Dostoievski e seu enfoque na crítica literária, que citamos imediatamente acima como uma espécie de “auto-exemplo” em Bakhtin do que seria polifonia, e sigamos tendo-o ainda como este modelo para buscarmos compreender o que seja dialogismo. Vejamos que ali Bakhtin não permitiu que as vozes da crítica literária expressassem somente suas consciências acerca da obra de Dostoievski: cada qual sendo uma consciência monofônica, pois 69 cada uma interpretava a obra de Dostoievski ao seu modo, e em sentido contrário viam a poética apenas “como uma palavra”, “uma voz”, “uma ênfase”, de acordo apenas com essa consciência única de cada uma, nisso residindo um erro fundamental da crítica literária, pois desta forma, isoladas entre si e descoladas de si, não perceberam que “a unidade do romance polifônico, que transcende a palavra, a voz e a ênfase, permanece oculta” (BAKHTIN, 1997, p. 45). Elas expressaram, assim, com efeito, e a despeito de serem monológicas, enunciados que se relacionam com a época e a realidade social a que os críticos estavam submetidos, fatores que os impediam de perceber, por exemplo, a dimensão histórica da obra de Dostoievski quanto à criação de um novo modelo artístico do mundo, no qual havia muito da dialética e do personalismo. A exegese da poética de então, portanto, seguia modelos burgueses de um mundo que era próprio dos críticos. Bakhtin, de acordo com Santos (2006, p. 118), chega a desenvolver dois argumentos para defender essa tese. O primeiro argumento é o de que no final do século XIX e início do XX, a crítica literária não possuía uma metodologia de análise conceitual adequada para compreender a polifonia de Dostoievski; realizava uma exegese da obra de Dostoievski a partir de dois modelos de análise de conceitos. O primeiro é o modelo utilizado pela literatura burguesa da Europa (...) [que] (...) dava ênfase à nova estrutura social surgida com as revoluções do século XVIII – revolução francesa e revolução industrial. O segundo tem relações com a forma e a estilística dominante na literatura européia. Havia, naquele período, um estilo dominante de escrever e argumentar tanto na literatura como na filosofia. Era um estilo que pode ser classificado de “kantismo” (...). O segundo argumento é a completa transgressão da vontade artística do autor – nesse caso, Dostoievski. Para Bakhtin, a crítica literária não leu a obra de Dostoievski procurando encontrar nela o que realmente Dostoievski escreveu (...), isto é, leu a obra de Dostoievski a partir de seus próprios valores sociais, culturais e filosóficos, esquecendo-se de que ele construiu um pensamento filosófico autônomo. 70 Isso quer dizer que, embora não esteja explícito nas vozes (consciências) de cada crítico amealhado por Bakhtin que existiam tais condições históricas e fatores societários por trás de cada um dos “comentadores” da obra de Dostoievski, de fato eles estavam lá, como levanta em argumentos Bakhtin. Ou seja, por trás de cada discurso há um enunciado que se reveste, em suas relações com outros enunciados, de um caráter dialógico. Esses enunciados possuem assertivas que fazem sentido, de outro modo não poderia ocorrer o dialogismo entre as diversas vozes carregadas de consciências. Tais relações dialógicas ocorrem no campo lingüístico (langue), através de suas unidades fonológicas, sintáticas, morfológicas, que são indefinidamente repetidas, mas que por si somente não explicariam os sentidos e as assertivas, por isso, segundo propõe Bakhtin, é necessário ir além e, através de uma análise translinguística, verificar o campo das emissões concretas (parole) possibilitadas por esse sistema de unidades básicas e suas combinações. O objeto, pois, da translinguística, proposta por Bakhtin, segundo José Luiz Fiorin (2006, p. 21) “são os aspectos e as formas das relações dialógicas entre enunciados e entre as formas tipológicas”. Fiorin vai além e, de maneira didática, explica dois modelos conceituais de dialogismo em Bakhtin. O primeiro, segundo ele, é aquele que se caracteriza por se constituir de dois enunciados, sendo uma réplica a outro enunciado. “Portanto, nele ouve-se sempre, ao menos, duas vozes”, diz Fiorin (2006, p.24). Mas o caso não é tão simples como parece, ou ao menos como parece remeter o conceito comum de “diálogo” (instância de resolução de conflitos). Para Bakhtin, as relações dialógicas expressam exatamente as tensões societárias das vozes envolvidas. “Se a sociedade é dividida em grupos sociais, com interesses divergentes, então os enunciados são 71 sempre espaço de luta entre vozes sociais, o que significa que são inevitavelmente o lugar da contradição” (FIORIN, 2006, p. 26). Agora compreendemos melhor o exemplo que quisermos dar a partir da obra do próprio Bakhtin para explicar o conceito de dialogismo: as vozes dos críticos que se relacionam de maneira deliberada pelo próprio autor (Bakhtin) no capítulo aqui posto em relevo possuem sentido porque não só expressam enunciados em relação à obra de Dostoievski, mas também porque atuam como consciências sociais tensionadas em relação ao próprio Bakhtin que, com elas, também enquanto voz conscienciosa, promove a réplica (hegeliana). As vozes, portanto, no dialogismo, não são só individuais e soltas, mas sociais e carregadas de época e da persona que fala. O segundo modelo conceitual de dialogismo em Bakhtin apresentado por Fiorin é aquele em que se manifesta visivelmente nos discursos dos autores/narradores. São os enunciados de terceiros que se apresentam de forma Direta (transcrição literal normalmente colocada entre aspas, após travessão ou precedidas de dois pontos), Indireta (quando a voz do enunciador se confunde com a do próprio transcritor), Aspas (palavras ou expressões destacadas pontualmente pelo narrador entre aspas a demarcar idéias alheias) e negação (em que a voz do outro é exposta de forma direta ou indireta e ao final utilizada pelo transcritor como contra-argumentação contra o próprio outrem). Em todos esses casos as fronteiras lingüísticas das vozes ficam claramente demarcadas. Ao contrário, ou seja, com o discurso alheio não claramente demarcado, segundo ainda Fiorin, há a forma Indireta Livre (quando as duas vozes, a do narrador e a do personagem, se misturam, sem a fronteira do visível a demarcá-las, existindo apenas certa tonalidade a identificá-las), Polêmica Clara (quando duas vozes se confrontam aberta e claramente entre si, utilizando-se o transcritor normalmente do discurso Direto, mas não ficando claro se uma refere- 72 se como resposta à outra), Polêmica Velada (quando o narrado utiliza-se de duas vozes para expressar enunciados diferentes, mas de tal maneira é favorável apenas a um deles que, de maneira hábil, demonstra existir apenas um desses enunciados, como se existisse apenas um deles enquanto voz), Paródia (quando se imita um enunciado com o objetivo de ridicularizá-lo, desqualificá-lo, mas sem referir-se diretamente a ele e às vezes apenas trocando um termo, uma expressão, o que muda ou inverte o sentido) e Estilização (quando não há a intenção de ridicularizar o outro enunciado, mas apenas de, com repetições de termos ou expressões de uma voz que não se revela diretamente, reforçar o mesmo sentido daquele). O dialogismo também pode ocorrer entre os estilos – que também funcionam, de acordo com Bakhtin, como vozes de discursos. Fiorin chama a atenção para este fato e explica, inicialmente, aquilo que o pensador russo considerava como estilo e em seguida mostra como se daria esse diálogo. “Para ele [Bakhtin], estilo é o conjunto de procedimentos de acabamento de um enunciado” (FIORIN, 2006, p. 46 – grifo mantido). Acrescentamos: tais procedimentos em Bakhtin seriam aquilo que o enunciador lança mão da langue e da parole para amoldar o seu discurso, ou seja, o modo como faz uso do sistema da linguagem com suas unidades básicas e suas regras e combinações para criar uma voz, um enunciado, uma fonética, uma narrativa ou até mesmo uma poética própria. “Isso significa” – acrescente Fiorin à mesma página – “que o estilo é o conjunto de traços fônicos, morfológicos, sintáticos, semânticos, lexicais, enunciativos, discursivos etc., que definem a especificidade de um enunciado e, por isso, criam um sentido de individualidade”. Isso quer dizer que, com a construção de uma individualidade, sobressai-se uma especificação, uma característica, uma imagem 73 de certo autor, em suma, uma identidade prosaica do discurso e do próprio narrador. Em outras palavras, segundo Fiorin: “O estilo é o conjunto de particularidades discursivas e textuais que cria uma imagem do autor, que é o que denominamos efeito de individualidade”. Tal efeito da individualidade de estilo, acrescenta o estudioso da obra de Bakhtin, poderá ser individual, como por exemplo a obra que Guimarães Rosa, que vai criar a imagem de Rosa, ou coletiva, como o parnasianismo, que vai identificar um outro Guimarães, o poeta parnasiano que viveu e criou praticamente no mesmo período de Lima Barreto, Olavo dos Guimarães Bilac. Aqui, mesmo parecendo paradoxal, é onde ocorre o dialogismo, pois para Bakhtin é exatamente na controvérsia, no embate de estilos, que ocorre a construção dialógica. Ou seja, é no atrito dos avessos dos construtos fônicos-lingüísticos das individualidades características de cada corrente ou de cada autor que ocorre a relação dialógica. Do contrário, todos falando a mesma, digamos, linguagem, e utilizando-se da mesma tonalidade, ocorreria apenas o monologismo em vez de dialogismo; monofonia em vez de polifonia. 5. Jornalismo e as vozes da cidade nas Recordações de Caminha Ao nível que já chegamos podemos iniciar a análise daquilo que inicialmente nos propomos. Ou seja: estudarmos a obra Recordações do Escrivão Isaías Caminha utilizando-se da teoria bakhtiniana, segundo seus preceitos metodológicos no qual se inserem, além de uma admissível contribuição de nossa parte, os conceitos de polifonia (este apenas em parte e/ou em seu aspecto 74 superficial, tipificador), de dialogismo; e de gêneros do discurso. Tais conceitos iremos utilizar, implícita ou explicitamente, na análise, ao fazermos emergir o caráter social das vozes da narrativa e do discurso limo-barreteano, ressaltando assim seus aspectos históricos, espaciais, econômicos etc. no âmbito urbano da cidade do Rio de Janeiro retratada na obra. O trabalho inédito e metodológico desenvolvido por Galindo (2007) queremos aqui antes citar, mas muito mais pela temática escolhida – o cronista Lima Barreto, afirma Galindo à certa altura, tem a cidade do Rio de Janeiro como o seu principal tema de admiração, defesa, denúncia, preservação e registro cotidiano... – e menos pela forma como estabeleceu: Galindo partiu dos conceitos bakhtinianos e buscou na obra do autor aquilo que se “encaixava” neles. Faremos diametralmente o contrário. Partiremos daquilo que aqui nos propusemos estudar, a Cidade e o Jornalismo, como instâncias sociológicas, conforme explicitamos no início, e daí buscarmos suas relações artístico-históricas nas vozes contidas na narrativa dialógica e em parte polifônica do Isaías, de Barreto. Comecemos, portanto, pela Cidade, relacionando-a com o Jornalismo e vice-versa, à medida que assim a prosa avança e se desenvolve. A cidade capitular da narrativa do escrivão Isaías Caminha é inicialmente um lugar imaginado e inusitado, em seguida assombroso, ora decepcionante ora surpreendente, próprio de uma percepção de quem migra de um lugar situado no campo – este um lugar gravitacional em relação à cidade principal, carente e subjugado aos caprichos de chefes políticos –, e que busca na cidade grande, cheio de esperanças, uma vida melhor, mais satisfatória, com o intuito de um dia, amealhado ganhos por méritos, ajudar aos entes queridos que ficaram e quem sabe 75 até voltar àquele lugar de origem – como de fato, ao final, decepcionado, como milhares de outros da realidade nacional objetiva ao longo de décadas, volta. Trata- se de uma cidade misteriosa, desafiadora, idealizada, por desvendar e, por isso mesmo, reconstruída na dura realidade da experiência cotidiana quando dela tenta se apoderar. Vejamos neste conjunto discursivo a voz do próprio narrador sobre a cidade idealizada: Então, durante horas, através das minhas ocupações quotidianas, punha-me a medir as dificuldades, a considerar que o Rio era uma cidade grande, cheia de riqueza, abarrotada de egoísmo, onde eu não tinha conhecimentos, relações, protetores que me pudesse valer... (BARRETO, 1997, p. 41). Em comparação com outra voz, a de Felício, refletida por um jornal local (Diário), que em notícia reproduzira a experiência bem-sucedida por aquela enquanto consciência, no RJ – sendo essa curiosamente a primeira vez, e de forma imediata, que a voz narrativa cita a imprensa –, a voz do narrador Isaías mostra-se profundamente otimista quanto ao sucesso desafiador que se lhe apresenta a cidade almejada, numa evidente conformação discursiva, recheada do mesmo sentido: Ora o Felício! Pensei de mim para mim. O Felício! Tão burro! Tinha vitórias no Rio! Por que não as havia eu de ter também – eu que lhe ensinara, na aula de Português, de uma vez para sempre, diferença entre o adjunto atributivo e o adverbial? Por quê!? (BARRETO, 1997, p. 41). A esperança e a certeza se acentuam quando, ao anunciar sua partida à família e ao buscar ajuda junto ao coronel, chefe do poder político local, obtém respostas de assente, positivas, de estímulos. As vozes – inclusive uma de sibila – nessa seqüência narrativa são dos discursos direto, indireto e indireto livre, revelando uma natureza diversa e perturbadora da voz espiritual do narrador, não sem a presença já pela segunda vez imediata de jornais numa das cenas. Senão vejamos: 76 — Amanhã, mamãe, vou para o Rio. Minha mãe nada respondeu, limitou-se a olhar-me enigmaticamente, sem aprovação nem reprovação; mas minha tia, que costurava em uma ponta da mesa, ergueu um tanto a cabeça, descansou a costura no colo e falou persuasiva: — Veja lá o que vai fazer, rapaz! Acho que você deve aconselhar-se com o Valentim! (...) Descansou alguns pacotes de jornais manchados de selos e carimbos; tirou o boné com o emblema do Correio e pediu café. — Você veio a propósito, Valentim. Isaías quer ir para o Rio e eu acabo de recomendar que se aconselhasse com você. — Quando você pretende ir, Isaías? indagou meu tio, sem surpresa e imediatamente: — Amanhã, disse eu cheio de resolução. (...) ... Desse modo, eu ia vivendo uma doce e medíocre vida roceira, sempre perturbada, porém, pelo estonteante propósito de me largar para o Rio. Vai Isaías! Vai! Meu tio ergueu a cabeça, passou o olhar demoradamente sobre mim e disse: — Fazes bem! (...) — E disso mesmo que vínhamos tratar. Isaías quer ir para o Rio e eu vinha pedir a Vossa Senhoria... — O que é que você quer que lhe peça? (...) — Vossa Senhoria podia dizer na carta que o Isaías ia ao Rio estudar, tendo já todos os preparatórios, e precisava, por ser pobre, que o doutor lhe arranjasse um emprego. (...) ...E foi assim. Hoje, acrescentou o coronel imediatamente, não é preciso, o Rio é muito grande, há muitos recursos... Vá menino! (BARRETO, 1997, p. 42-45). 77 O sonho de se tornar “doutor” no Rio de Janeiro assim estava assegurado, garantindo como conseqüência a materialização automática, na cidade moderna, de outra grande aspiração pessoal do narrador: ascender socialmente à classe mais abastada e respeitada da sociedade carioca, o que lhe daria, além de dignidade, brilho, status, soberba, poder. O poder necessário para redimir pela altivez sua condição de racialmente discriminado – momento em que a voz do narrador se confunde com a do escritor, mas não necessariamente sendo uma mesma voz, dado, em última análise, serem consciências distintas. “Ah, Seria doutor! Resgataria o pecado original do meu nascimento humilde, amaciaria o suplício premente, cruciante e onímodo de minha cor...” (BARRETO, 1997, p. 45). A partida, porém, não se dá sem traumas psicológicos. A voz interna do narrador machuca-o ao se referir à figura esquálida e sofrida da mãe, condenada a maiores sofrimentos pela dor da perda, pelas dificuldades que lhe sobreviriam por morar numa “cidade de terceira ordem” e pela distância que ficaria em relação a uma outra cidade alcançável somente pelo esforço da imaginação. Eu a cria, então, resignada a ficar ali, nas proximidades de uma cidade de terceira ordem, tendo, de onde em onde, notícias minhas naquela grande cidade que a sua imaginação a custo havia de representar. E quem sabe se as notícias seriam de ordem a provocar-lhe dúvidas sobre a sua maternidade?! Coitada! Pobre de minha mãe! (BARRETO, 1997, p. 48). Na voz do narrador, quando da viagem de Caminha para o Rio, na qual já sofre as primeiras discriminações, no trem, por conta da cor de sua pele, a cidade que se lhe descortina, pela primeira vez, agora num escaler, faz-se num desanuvio à medida que vai se apagando a imagem do seu lugar que ficou para trás. A nova cidade vista a partir da costa é um emaranhado estranho, misto de natureza e artifício, aparentemente lógico, mas de certa forma fantástico e assustador. A visão 78 solene da chegada — “Na cidade longos riscos de fogo brilharam, juntos e espaçados, retos e cursos, paralelos e emaranhados... Chegamos.” — transforma-se em desilusão e desengano. Mas logo sua tristeza e contrariedade diminuem um pouco, ao observar um lugar especial em que as pessoas se movimentam sob a luz da eletricidade, prenunciando assim uma cidade dual, finalmente. Quando saltei e me pus em plena cidade, na praça para onde dava a estação, tive uma decepção. Aquela praça inesperadamente feia, fechada em frente por um edifício sem gosto, ofendeu-me como se levasse uma bofetada. Enganaram-me os que me representavam a cidade bela e majestosa. Nas ruas, havia muito pouca gente e do bonde em que as ia atravessando, pareciam-me feias, estreitas, lamacentas, marginadas de casas sujas e sem beleza alguma. A Rua do Ouvidor, que vi de longe, iluminada e transitada, em pouco diminuiu a má impressão que me fez a cidade (BARRETO, 1997, p. 51). Um dos primeiros contatos, na cidade, de Caminha, é com um padeiro – que viria ser na verdade o que chamaríamos hoje de lobista, conforme veremos – e com um jornalista (Raul Gusmão), e dar-se de forma em que a voz do narrador transcreve em discurso direto a voz do representante da imprensa. Trata-se de um enunciado filosófico de caráter pessoal, consciencioso, mas não sem também sublinhar que essa voz, no sentido fônico, ao ser pronunciada, seja fanhosa e dita com grandes dificuldades físicas de seu locutor. “Essa sua voz de parto difícil, esse espumar de sons ou gritos de um antropóide que há pouco tivesse adquirido a palavra articulada, deu-me não sei que mal-estar, que não mais falei até à sua despedida” (BARRETO, 1997, p. 55). Um jogo de vozes em que se sobressai a metonímica. Uma crítica do narrador, talvez; uma metáfora, certamente. Tanto que os olhos do homem da imprensa também falavam, diziam algo: Falava e não nos olhava quase; errava os olhos — os olhos pequeninos dentro de umas órbitas quase circulares a lembrar 79 vagamente uma raça qualquer de suíno — errava os olhos, dizia, pelo pátio do teatro, e quando nos fixava trazia uma expressão de escárnio que ele mantinha com um razoável dispêndio de energia muscular (BARRETO, 1997, p. 55). A voz de outro jornalista (Oliveira), que incontinenti ingressa no mesmo discurso, é por sua vez de ostentação, uma voz orgulhosa, trapaceira, infiel e macaqueada, segundo a voz de Caminha. A do padeiro (Laje da Silva) é de admiração, respeito e interesses pessoais (estes vindo somente a se saber adiante) para com a voz da imprensa. No dia seguinte, a conformação dialógica do discurso continua, desta vez com a voz única do narrador em seus próprios botões, através da qual analisa as demais vozes e, em seu íntimo, conclui aquilo que viria a conhecer, ao menos naquele momento, como a imprensa da grande cidade – assim como já prenuncia aquilo que seria a voz do interesseiro junto à imprensa, aquele que tem mais de uma face, mais de uma voz, dentre as quais aquela que seria “a mais tranqüila das vozes” e com a qual se apresentava “cheio de uma linda ingenuidade”. De manhã, pus-me a recapitular todos esses episódios; e sobre todos pairava a figura inflada, mescla de suíno e de símio, do célebre jornalista Raul Gusmão. O próprio Oliveira, tão parvo e tão besta. Tinha alguma coisa dele, do seu fingimento de superioridade, dos seus gestos fabricados, da sua procura de frases de efeito, de seu galope para o espanto e para a surpresa. Era já o genial, com quem viria travar conhecimento mais tarde, que me assombrava com o seu maquinismo de pose e me colhia nos alçapões de apanhar os simples. E senti também que o espantoso Gusmão e o bobo Oliveira me tinham desviado da observação meticulosa a que vinha submetendo o padeiro de Itaporanga. Achava extraordinário que um varejista de um vilarejo longínquo cultivasse e mantivesse amizades tão fora do seu círculo; não se explicava bem aquele seu norteio para os jornalistas, a especial admiração com que os cercava, o carinho com que tratava todos (Barreto, 1997, 57). Por vezes – e são tantas – o narrador lembra o flaneur do final do século XIX e início do XX. A voz relata caminhadas e observações tanto de dia quanto à 80 noite pelas ruas e lugares da cidade. Figuras humanas são descritas com precisão sociológica. Noutras revelam a triste vida do cotidiano de pessoas desconhecidas e, inclusive, a própria, como esta em que busca pela primeira vez o emprego prometido, de posse da carta do coronel de seu lugar, junto ao representante de seu lugar, o deputado federal Hemenegildo de Castro Pedreira, na Câmara Federal, e a partir daí passa a se decepcionar com a política e os políticos. Soavam onze horas quando sai do hotel e vim vindo a pé até às ruas centrais da cidade. Era cedo; não fui logo à Câmara. Fiquei vagueando pelas ruas à espera da hora conveniente. Cansado de andar pelo centro, aventurei-me tomar um daqueles bondes pequenos; chegando ao termo, bebi um refresco num botequim sórdido das proximidades e tomei outro bonde que, me informaram, levava à Câmara (BARRETO, 1997, p. 59). Ainda pouco familiarizado com o trânsito pesado da rua, atravessei a Rua Direita cheio de susto, cercando-me de mil cautelas, olhando para aqui e para ali, admirado que aquela porção de gente trabalhasse sob sol tão ardente, sem examinar que valor tinham as suas Câmaras e o seu Governo. E a facilidade com que os aceitava, pareceu-me sentimento mais profundo, mais espontâneo, mais natural que a minha ponta de crítica que já começava a duvidar deles. Aventurei-me pela Rua do Ouvidor já preso a outros pensamentos... (BARRETO, 1997, p. 65). Na Câmara Federal, aliás, ao se ouvir a voz de um dos deputados discursar em Plenário, o entrecruzamento com a voz da imprensa volta a ocorrer, agora com da voz perceptiva do próprio narrador acompanhada com a voz clientelista da política. Em resumo: o seu discurso afirmava que o chefe de polícia de Santa Catarina era um homem honesto e o jornalista que o insultara, um verme asqueroso e um réptil nojento (BARRETO, 1997, p. 63). Além disso, é interessante notar que, mesmo sendo um lócus (fórum, ágora) de discussão dos problemas e desafios da cidade e do país (pólis), as vozes parlamentares (parole) na Câmara dos Deputados (plenarium) algumas vezes são desconsideradas pelos próprios parlamentares, representantes do povo, as vozes 81 outras das outras vozes, que ora se calam, fazendo silêncio, que é uma forma de falar, de se expressar, ora ficam indiferentes ao que se diz, postando-se desinteressados, ou ainda fazendo coisas sem-importância, inapropriadas, ou alimentando um cotejante burburinho de interesses pessoais, indecifravelmente particulares. Um tímpano soou forte e rouco; fez-se um pouco de silêncio. O presidente disse algumas palavras, das quais as últimas davam a palavra ao Deputado Jerônimo Fagot. O miúdo deputado subiu à tribuna, limpou o suor, arrumou os livros ao lado e preparou-se para falar. Fez-se silêncio, depois de uma infernal contradança no recinto. Fagot começou: “É sabido que a moeda boa expele a má. Desde 1842, pela Lei n°. 1.425 de 30 de setembro, desse ano, que o meio circulante nacional”... Durante cinco minutos, a Câmara ouviu-o atenciosamente; dentro em breve, porém, o zunzum recomeçou. Não havia o ruído do começo, mas a desatenção era geral. Para a mesa da presidência enxameava uma multidão; o presidente já não era o mesmo; era um moço louro e magro. Parecia que as palavras de Fagot lhe morriam nos lábios: movia a boca e gesticulava como um doido furioso. Os colegas desapegados da sua eloqüência dividiam-se em grupos. À esquerda, lá ao longe, quase na minha frente, alguns viam cartões-postais; um outro, sob os meus pés, isolado, no burburinho, escrevia febrilmente, erguendo, de quando em quando, a caneta para pensar; uma roda de três, à esquerda e ao fundo, conversava sorrindo; ao fundo, ainda, mas um pouco à direita, um deputado gordo, com o calor que com o correr do dia se fizera forte, esquecido no sono, por detrás de um par de óculos azuis, roncava perceptivelmente. Fagot falou cerca de meia hora; e, quando deixou a tribuna, o presidente já era um terceiro deputado, um velho com pince-nez de aros de ouro (BARRETO, 1997, p. 64). As vozes da imprensa poderiam existir também em murmulho dialogal num único ser, o jornalista Ivã Gregoróvitch Rostoloff, cujo nome já denota uma translinguagem comunicacional, lembrando um dos principais inspiradores da poética limo-barreteana (com todas as conseqüências artísticas daí decorrentes), o escritor e jornalista russo Fiódor Dostoievski. Não parece também por acaso que a voz do narrador tenha perguntado nesse seu próximo encontro na cidade se se 82 tratava de um representante (muito provavelmente um repórter, aquele que com sua voz reporta, fala os acontecimentos) de um importante meio de comunicação impressa da época (e hoje), o Jornal do Brasil. A negativa dialogal de Gregoróvitch não diminui em nada a condição de ser possuidor de variados timbres de vozes, posto já ter passado por diversos outros meios de comunicação em diversas outras cidades do país (O Combate, de Belém; na Gazeta de Leopoldina; no Deutsches Tageblatt, de Blumenau; no Al-Barid, de São Paulo, e no Harum Al- Raxid, órgão da colônia Síria, no Rio de Janeiro); ter conhecido alguns dos principais países do mundo (França, Índia, China, Japão); e almejar naquele momento ir para o jornal O Globo, “onde vou fazer o artigo de fundo e tratarei da política interna”. Tanto não diminui – muito pelo contrário – que, como bem sublinha a voz de Isaías, como que querendo amplificar o nome à voz, trata-se de “um jornalista brasileiro”. Ou seja, fica-se entendido que não é um jornalista estrangeiro, apesar dos dotes etimológicos e das experiências de viandante metropolitano, mas muito mais: é também vocabular, posto falar várias línguas, dez delas para ser mais exato. Um jornalista, portanto, plural. De várias vozes e de múltiplas vocalizações. Tanto que Caminha, ao caminhar por uma das ruas movimentadas da cidade, como passante-pensativo, tem a sua voz interna voltada para, também de forma agitada, impaciente, querer desvendar o que seria aquelas vozes implexas numa única voz do Jornalismo. Só, subindo a rua movimentada, pus-me a interrogar-me sobre o tal Gregoróvitch. De que nacionalidade era? Que espécie de moralidade seria a sua? Com aquele título burlesco de doutor em Línguas Orientais e Exegese Bíblica, quem poderia ser ao certo? Um bandido? Um aventureiro simplesmente? Ou um homem honesto, de sensibilidade pronta a fatigar-se logo com o espetáculo diário e que por isso corria o mundo? Quem seria? E jornalista! Jornalista em dez línguas desencontradas! Mas era simpático o diabo, de fisionomia inteligente... (BARRETO, 1997, 83 p. 67). E tudo isso – como fica claro nos dois parágrafos logo a seguir – entre as igualmente variadas, afluentes e dinâmicas vozes das ruas, como as jocosas, as recheadas de pilhérias, de libido e, inclusive, as vozes que se estratificavam nas vitrines, nos produtos da moda, postos à venda, aos olhos, ao desejo, à cobiça e que, em discurso direto na voz do passante, lhe chamava repetida, urgente e (im)pertinentemente à modernidade: Subi a rua. Evitando os grupos parados no centro e nas calçadas, eu ia caminhando como quem navegava entre escolhos, recolhendo frases soltas, ditos, pilhérias e grossos palavrões também. Cruzava com mulheres bonitas e feias, grandes e pequenas, de plumas e laçarotes, farfalhantes de sedas; eram como grandes e pequenas embarcações movidas por um vento brando que lhes enfunasse igualmente o velame. Se uma roçava por mim, eu ficava entontecido, agradavelmente entontecido dentro da atmosfera de perfumes que exalava. Era um gozo olhá- las, a elas e à rua com sombra protetora, marginada de altas vitrinas atapetadas de jóias e de tecidos macios. Parava diante de uma e de outra, fascinado por aquelas coisas frágeis e caras. As botinas, os chapéus petulantes, o linho das roupas brancas, as gravatas ligeiras, pareciam dizer-me: Veste- me, ó idiota! nós somos a civilização, a honestidade, a consideração, a beleza e o saber. Sem nós não há nada disso; nós somos, além de tudo, a majestade e o domínio! (BARRETO, 1997, p. 67). Em suas andanças pela cidade, além das vistas que ouve e das tipificações que lhes falam, o Caminha, a voz do sentido em andrajos, revela-se um ser cortado de angústias, entre as quais a solidão, agravada pela saudade, e o compadecimento por seres semelhantes na dor, carências afetivas e necessidades existenciais de toda ordem, principalmente a fome e a desesperança. Sentia-me só, só naquele grande e imenso formigueiro humano, só, sem parentes, sem amigos, sem conhecidos que uma desgraça pudesse fazer amigos (BARRETO, 1997, p. 69). Foram de imensa angústia esses meus primeiros dias no Rio de Janeiro. Eu era como uma árvore cuja raiz não encontra mais terra em que se apóie e donde tire vida; era como um molusco que 84 perdeu a concha protetora e que se vê a toda a hora esmagado pela menor pressão (BARRETO, 1997, p. 70). Uma noite, andando eu deambulando por umas ruas desertas do interior da cidade, fui dar não sei a que praça, em que havia ao fundo uma grande casa; ia distraído, completamente entregue às minhas preocupações, cabisbaixo, quando alguém me tomou os passos e me falou com uma voz de apiedar. Era uma mulher andrajosa; parei e ouvi-a. Balbuciante, contou-me misérias, a fome dos filhos, moléstias, por fim, não pôde mais falar — prorrompeu em choro... Evoquei logo aquelas histórias de fadas e gnomos, aquelas histórias morais em que os gênios misteriosos vêm pela terra em disfarce, para experimentar os corações dos mortais e eu... e eu dei uma nota de esmola, uma nota graúda que me sangrou fortemente a algibeira linfática (BARRETO, 1997, p. 71). A voz do narrador não consegue deixar de notar nesses e em outros momentos subseqüentes essas e demais paisagens urbanas e humanas da cidade carioca do passado em suas andanças notívagas ou diuturnas. São barracos, bondes, quartéis, enterros, prédios, casas, escolas, jornais, hotéis, bairros, ruas, esquinas onde fervilham o trânsito, caminhões, desfiles militares, lavadeiras, prostitutas (mulheres maltrapilhas, negras, mulatas, brancas, “bamboleando as ancas”, seguidas por soldados...), vendedores de peixe, quitandeiros, criadas, donas de casa, estudantes, políticos, jornalistas. Tudo entrecortado pela doce e saudosa lembrança do pai, um sábio, um santo. Aliás, é pela voz de um dos jornais, comprado e lido no transcurso de um bonde, que fica sabendo que o deputado Castro viajara para São Paulo, cidade na qual o político iria se demorar. Fica sabendo disso depois de ter se encontrado pouco antes com ele e este ter lhe assegurado arranjar algo em que trabalhar, atendendo assim à carta do coronel de seu lugar, bastando para isso ir novamente procurá-lo. A promessa fora feita numa casa distante em que o deputado mantinha às escondidas uma amante. Agora, com a notícia, verdadeira, percebera que fora enganado pela voz traidora do “patife!, patife!”, o que faz todas as suas esperanças 85 de ter um emprego, e realizar o sonho de se transformar num doutor, na cidade grande, caírem por terra. Mas se foi através da voz da imprensa que descobriu a verdade de uma farsa da qual era a principal vítima, é ainda pela mesma voz da imprensa, através da leitura do mesmo jornal que comprara no bonde, que também faz outra importante descoberta: agora era, ao contrário, uma notícia falsa que escondia uma farsa da qual ele já tinha conhecimento. A notícia dava conta que Laje da Silva, “um capitalista e industrial”, recebera “a benção papal até a décima quinta geração”. Ou seja, uma notícia claramente plantada, mentirosa, fruto da bajulação e do pernicioso relacionamento mercantil e incestuoso do Jornalismo com as vozes ególatras. Tanto que a poética limo-barreteana, na voz irônica de Caminha (as reticências o dizem), despreza: “A notícia vinha cheia de gabos à sua atividade e à sua honestidade...” (BARRETO, 1997, p. 82). É pela voz da imprensa, a voz mais plural e independente, conforme nos revela várias seqüências dialógicas, que Caminha é conduzido à redação e passa a trabalhar em um jornal – momento em que a voz limo-barreteana atinge o ápice de sua retórica interlocutória dotada de sentidos ideológicos do período vivencial dos personagens, e provavelmente o seu também, e faz uma de suas melhores retratações sociológicas da imprensa da época, envolvendo outros campos culturais importantes, como a política e a cidade, com os seus principais elementos constitutivos, quais sejam, aqueles que promovem os acontecimentos históricos e redimensionam a vida societária em direção a um futuro esperado mas incerto. Falemos, portanto, inicialmente, do encontro da voz acabrunhada e carente do migrante que perambula pelas ruas com aquela voz salvadora, destemida e polissêmica do repórter. Trata-se, neste caso, do próprio Gregoróvitch, agora não 86 somente “um jornalista brasileiro”, mas também um ser nascido na România (hoje Romênia), filho de pai russo, mãe grega, que estudara no Cairo, e que além da Europa e Ásia já percorrera também a América (BARRETO, 1997 p. 84). Na delegacia, onde momentos depois acaba preso, sob a acusação infundada de roubo, Caminha se lembra da voz decidida e cheia de motivação idealismos patrióticos de Gregoróvitch: A delegacia continuava silenciosa e as pessoas sentadas pelas cadeiras não ousavam entreolhar-se. Não havia duas horas que eu, no restaurant, me pusera a imaginar grandes coisas. Gregoróvitch incitara-me a trabalhar pela grandeza do Brasil; fez-me notar que era preciso difundir na consciência coletiva um ideal de força, de vigor, de violência mesmo, destinado a corrigir a doçura nativa de todos nós. Pela primeira vez de lábios humanos, ouvi dizer mal da piedade e da caridade: sentimentos anti-sociais, enfraquecedores dos indivíduos e das nações... Virtudes dos fracos e dos cobardes, resumia ele (BARRETO, 1997, p. 85). A mesma voz que, ao ser lembrada ao delegado de que era uma voz afinada à do personagem principal, ou seja, de que era conhecida e talvez em decorrência disso fosse protetora de Caminha, este passa a ganhar um outro status social dentro do prédio público e por parte da autoridade policial, que sem cerimônia demonstra todo o seu “respeito” pela voz ausente da meritória imprensa na voz afiançada daquele que também era, portanto, de agora em diante, importante para o aparelho oficial da segurança. “Pois não! Um jornalista é sempre um homem importante, respeitado, e nós, da polícia, temo-lo sempre em grande conta...” (BARRETO, 1997, p. 98). Após ouvir novamente as vozes da cidade, com destaque para a Rua do Ouvidor, Largo do Machado, Rua do Rosário, Tijuca, Andaraí, Vila Isabel, Biblioteca Nacional, quando “descobri a cidade”, conforme suas próprias palavras, uma cidade sociológica, cheia de significados humanos, culturais, modernos, como aquela em que percebe que as pessoas se movem nela como se seguissem uma lei 87 universal que acometem os seres das cidades – “grupos de passeantes moviam-se de um lado para outro, isocronamente, lentamente, tristemente, como se obedecessem a uma lei inflexível a cujo império não se pudessem furtar” (BARRETO, 1997, p. 110) –, invariavelmente em passeios solitários e tristonhos, a tal ponto de ouvir até mesmo a voz do mar que o chamava repetida e convincentemente ao suicídio, Só o mar me contemplava com piedade, sugestionando-me e prometendo-me grandes satisfações no meio de sua imensa massa líquida... — Vem, dizia-me ele, vem comigo e, no meu seio, viverás esquecido, livre e independente... Aqui, eu te abrirei perspectivas infinitas à tua vida limitada e os conceitos, as noções e as idéias nada valerão. Zombarás deles, não os sentirás, não terás consciência, nem pensamento, nem vontade... (BARRETO, 1997, p. 103), o nosso personagem, triste, macambúzio, roto, confuso e já aos prantos, finalmente ouve a voz de sua admiração e boa lembrança: Oh! Caminha! Onde tens andado? Que tens, rapaz? Era Gregoróvitch Rostóloff. Falei, contei-lhe a vida. Os seus olhos de conta mais se arredondaram de desconfiança; mas, depois de duas ou três perguntas, de examinar-se o vestuário e algumas palavras de consolo, ao despedir-se, assim me convidou: — Aparece-me logo, à noitinha, na redação do O Globo. A partir daí, como dizíamos, a voz da personagem limo-barreteana nos traz uma visão histórico-social da imprensa do início do século XX e sua relação com a política no âmbito da cidade carioca de então, ou seja, a própria voz da imprensa e suas vinculações de interesses com outras vozes societárias. Assim descreve pormenores da redação; relata o trabalho ali desenvolvido; fala da estratificação social que impera na empresa jornalística; demonstra as funções sociais de cada um, afigurando quem é quem, sem esquecer de nos revelar detalhes das 88 constituições ideológicas tanto no aspecto individual, quando se aproxima deliberadamente dos caracteres psicológicos, internos, abstratos, ligando-o às feições (por vezes metafóricas), aos gestos e aos traços aparentes de cada um, como também no aspecto grupal, especialmente aqueles grupos políticos e econômicos com seus interesses implícitos, sorrateiros e não publicáveis. O jornal, ou melhor, a voz da impressa na qual passa a trabalhar como contínuo – ajudando, portanto, na sua consecução imperativa junto ao público e por conseguinte na voz enunciativa e anunciativa à cidade e seus habitantes – é de O Globo, sobre o qual, tomando inicialmente o ambiente da redação, logo descreve: Era uma sala pequena, mais comprida que larga, com duas filas paralelas de minúsculas mesas, em que se sentavam os redatores e repórteres, escrevendo em mangas de camisa. Pairava no ar um forte cheiro de tabaco; os bicos de gás queimavam baixo e eram muitos (BARRETO, 1997, p. 119). Ricardo Loberant, o diretor e proprietário, é apresentado como poderoso, autoritário, interesseiro e voz sem nenhum escrúpulo, que determina mandos ao poder público com objetivos de aumento nas tiragens, nas vendas e nos lucros. “A opinião salvou-o, e a cidade, agitada pela palavra do jornal, fez arruaças, pequenos motins e obrigou o Governo a demitir esta e aquela autoridade. E O Globo vendeu- se, vendeu-se, vendeu-se... (BARRETO, 1997, p. 121). Mais adiante, sobre o mesmo diretor, assim a voz do narrador se expressa: As conversas da redação tinham-me dado a convicção de que o doutor Loberant era o homem mais poderoso do Brasil; fazia e desfazia ministros, demitia diretores, julgava juízes e o presidente, logo ao amanhecer, lia o seu jornal, para saber se tal ou qual ato seu tinha tido o placet desejado do doutor Ricardo (BARRETO, 1997, p. 139). Aires D’Ávila, pseudônimo de Pacheco Rabelo, um homem gordo que se movia com dificuldade, jogador contumaz, e “um monstro geológico com 89 prematuros instintos de raposa”, era, como redator-chefe do jornal, o exemplo de submissão e subserviência para com Loberant. Leporace, por sua vez, o secretário gráfico (antiga função no Jornalismo que fazia a ligação entre a redação e a gráfica), consegue unir, em sua mediocridade, a Literatura e o Jornalismo, sendo, portanto, um juiz que consideraria o mérito ou o demérito, o talento ou a falta deste em terceiros, e por isso, e por também “ser a cria” de Loberant, era respeitado em toda a cidade. “Hoje, é quase uma celebridade e passeia de carro pelas ruas asfaltadas do Rio de Janeiro, tendo ao lado a mulher e os pimpolhos (BARRETO, 1997, p. 123). Floc (redução do prenome e sobrenome próprios de Frederico Lourenço do Couto), era aquele que escrevia as tiras literárias, comentando lançamentos de livros, espetáculos encenados e outras apresentações culturais sem, no entanto, ter o conhecimento suficiente para tal. Elegante, límpido, de olhar lustroso e “com a sua linda barba perfumada e o seu grande queixo erguido e atirado para adiante como um aríete de couraçado”, possuía apenas o conhecimento de folhetins e almanaques, mas jogava com palavreados clássicos e misturava-o a fatos históricos desconexos – uma aparência intelectual admirável correspondente à sua fatuidade social notável. Outros, como Carlos Oliveira (admirador do diretor e que se supunha um Deus), Meneses (estudioso, competente, mas indulgente, submisso), Adelermo Caxias, Rolim, Costa, Lemos, Leiva (estes dois repórteres de polícia), Losque, Lara, Antônio Galo e Matoso ora pertenciam ou pertenciam à voz do “estandarte” ou à voz da “artilharia” na cavalaria que era aquela redação. Da artilharia, por exemplo, faria parte, por sua independência e sua capacidade de trabalho plural, pertencia Ivã Gregoróvitch Rostóloff, estrangeiro-brasileiro que nada devia nem temia ao criticar e usar a linguagem violenta e ácida. 90 Gregoróvitch era a artilharia. Com o seu estilo desconjuntado e a sua violência injuriosa, abria brecha nas linhas adversárias e dizimava-as de longe. Estrangeiro, nada sabendo da nossa história, nem pelo estudo nem a sentindo pelo sangue, a sua crítica e o seu ataque tinham uma violência desmedida. Não poupava, não desculpava, não sentia até que ponto o homem era culpado, até que ponto a marcha das coisas fazia o homem culpado. Ligeiramente enfronhado nas causas da política do momento, ele só via diante de si um aspecto do fato, não sentia inconscientemente os outros que se ligavam com o passado que ele não conhecia, nem os outros que o futuro pressentido condicionava. Um brasileiro, educado e criado no meio das tradições, dos usos, dos hábitos, das qualidades, dos defeitos do seu meio, não teria a violência de sua linguagem, a sua força de crítica, a brutalidade de seu ataque (BARRETO, 1997, p. 128- 129). Outras vozes, em conjunto dialógico, compunham a voz do jornal, e de sua prática social cotidiana, como fica explícito nas conformações dialógicas contidas quase que exclusivamente nos capítulos oito ao quatorze, este o último da voz memorialística de Caminha. Veiga Filho, Deodoro Ramalho, Pilar Giralda e Félix da Costa são romancistas, poetas, colaboradores; Lobo é consultor gramatical; Barros é o agente de anúncio (hoje equivalente ao diretor comercial ou ao contato); Dona Inês é a esposa do diretor e a quem a redação presume ditar coisas ao jornal através do marido; Charles de Foustangel é o cozinheiro particular do diretor do jornal (cuja aparição se dá somente num momento trágico, vítima e herói ao mesmo tempo do próprio jornal, como veremos); e, por fim, mas não sem fazermos aqui um devido destaque, a voz do consultor gramatical Lobo, cujo nome já revela sua estirpe e missão: representa a vigilância rígida e destemida da linguagem a ser feita impositivamente sobre as vozes literárias e jornalísticas impressas que, por sua vez, ficam tacitamente subsumidas às regras, aos conceitos e às correções gramaticais de uma linguagem púdica, etérea e justamente por isso inalcançável em sua essência. Uma linguagem perfeita, utópica e tão precisa que, quimérica, entra em conflito com a linguagem belicista, rápida e prática de Gregoróvitch. Lobo, 91 exigente com os outros e consigo mesmo, termina por ficar louco: é ao final do romance internado, quando não diz coisa-com-coisa. A voz dele se embaralha, torna-se incompreensível e assim, de forma desesperadora, sua expressão vocal corretiva some na poeira da obra, cuja poética, por sua vez, é um eco prevalecente de defeitos gramaticais, como o admite a voz do próprio escritor. Esse conjunto dialógico, portanto, da redação de O Globo, e por conseguinte de todas as vozes de todos os jornalistas, em suma, da imprensa, é de se concluir, pode ser resumido numa única voz estilística: resulta quase que inútil o trato exacerbado e grandiloqüente da aparência quando corresponde a uma mera e fugidia essência. Numa palavra: a imprensa é superficial. Apenas num momento Caminha chega a pôr em dúvida essa conclusão. “Houve um caso que, por trágico, me ficou eternamente gravado e foi como a demonstração de que ainda havia no fundo de alguns deles uma crença no Sério, no Verdadeiro, na Perfeição”, diz, numa espécie também de autocrítica (BARRETO, 1997, p. 204). É quando Floc, o jornalista responsável pela cobertura dos acontecimentos culturais da cidade, pressionado pelo imperativo do tempo, que lhe cobra de imediato a produção intelectual, capacidade e produção que ao fim e ao cabo não dispõe, ou seja, não consegue expressar com sua voz escrita aquilo que sua vocalização interior sente, que quer dizer e fazer-se sentir, sobre aquilo que momentos antes tinha tão emocional, verdadeira e profundamente assistido num teatro da cidade, acaba, ali mesmo, na redação, por decidir a pôr fim à sua própria vida, com um tiro na cabeça, apagando definitivamente assim com uma inaudível voz que supunha existir e possuir – um fim trágico para o insuportável e o impossível como foi também o caso do gramático Lobo. Assim, os momentos que 92 antecedem ao suicídio demonstram o quanto é difícil o ato de escrever, o desafio que impõe a folha de papel em branco, que recebe tudo, que tudo suporta, mas ao mesmo tempo vigia para fazer revelar ao mundo quem é verdadeiramente o autor, provando assim que escrever sem embaraços, rápido, com arte e precisão para que se possa ler fácil, suave e com exatidão é, na verdade, algo muito, muito difícil. Um exercício ardente, desafiador, mas também asfixiante, aflitivo e por vezes demolidor, como no caso. Senão vejamos: Quedou-se assim alguns minutos, três a cinco, e logo se pôs ao trabalho. As duas primeiras tiras foram rapidamente escritas, no começo da terceira, parou, escreveu, emendou, tornou a escrever, emendou, parou, suspendeu a pena e ficou olhando perdido a parede defronte. Voltou a ler o que tinha escrito... Leu duas vezes, não gostou, rasgou... Recomeçou... A sua fisionomia estava transtornada. Não tinha mais a impressão de satisfação, de deslumbramento interior. A testa contraíra-se, enrugando-se; os olhos estavam fixos e a boca, cerrada nervosamente, custava a abrir-se para aspirar rapidamente o charuto. Toda a sua fisionomia revelava uma contensão extraordinária, fora mesmo do poder habitual da sua vontade. Escreveu de novo e gritou: — Caminha! Vai buscar aí cachaça! Anda! Quando voltei, ele discutia com o paginador. O operário vinha apressá-lo. Esperavam o seu artigo. Floc, aparentando calma, prometeu que o daria dentro de meia hora. Saído o paginador, tomou a garrafa, e pelo gargalo sorveu um longo gole. Aproximou a pena do papel e escreveu algumas palavras que riscou imediatamente. Suspendeu o trabalho, tomou outro gole e a sua fisionomia começou a adquirir uma expressão de desespero indescritível. Eu estava inquieto, sentindo vagamente um drama. Fumava agora um cigarro sobre outro; não ia até o fim, atirava-o em meio ao chão, acendia um outro. Bebeu, foi à janela, debruçou-se e o paginador voltou: — “Seu” Couto! — Homem! Já vai! Você pensa que isto é máquina!?... Voltou a escrever. A pena estava emperrada; não deslizava no papel. Floc fumava, mordia o bigode e a pena continuava a resistir (BARRETO, 1997, p. 207). Mas não é somente sobre as características das vozes e seus papéis sociais que a voz do narrador faz relatos sociológicos. Revela também, ainda dentro da 93 voz da imprensa, elementos típicos do fazer, isto é, relata sobre técnicas do Jornalismo e da reportagem, específicas da época. Um desses momentos é quando, na redação, chega a informação de que num lugar distante da cidade, em Santa Cruz, mais precisamente nos campos de São Marcos, fora encontrado pela polícia um homem e uma mulher mortos a facadas e decapitados. Não se sabia quem era o assassino e o caso desafiava ainda mais à polícia porque os mortos “se vestiam com luxo” e “pareciam pessoas de tratamento”. “Um mistério!” – proclama Lemos, o repórter de polícia, num misto de satisfação e espanto. (BARRETO, 1997, p. 162). O que segue daí por diante é um alvoroço típico da redação quando, tomada de assalto pelos acontecimentos da rua, sente-se desafiada a transformar sua principal matéria-prima, as informações ainda por checar, elementos brutos, como boatos, bizus, dicas, deixas, dados extra-oficiais, não-oficiais ou mesmo oficiais, em notícias, ou seja, em informações precisas para o maior número de pessoas possível. No caso, porém, o que se passa na redação de O Globo é uma inversão ética dessa forma moral de trabalhar, numa demonstração típica de subversão dos acontecimentos, ou de parte deles, para atiçar no público a curiosidade além da dimensão que os acontecimentos em si já seriam capazes de naturalmente despertar – visando, em última análise, apenas o aumento das vendas e lucro de toda ordem. Depois de lançar, afixando à porta do jornal, para o público passante na rua, um boletim do ocorrido como havia sido repassado pela polícia, quando “a notícia espalhou-se rapidamente, com uma rapidez de telégrafo, com essa rapidez peculiar às noticias sensacionais que, nas grandes cidades, se transmitem de homem a homem quase com a velocidade espantosa da eletricidade” (BARRETO, 1997, p. 162-3), quase todos os repórteres e redatores passam a trabalhar em torno desses acontecimentos visando a publicação do jornal. Nesse momento é quando se 94 produz “a cabeça”, ou seja, a parte introdutória de uma notícia, conhecida também como “nariz-de-cera”, muito comum nos primórdios do Jornalismo brasileiro mas posteriormente abolida por conta de seu caráter discursivo, laudatório, pomposo, tergiversante, às vezes anético e incongruente (e portanto, hoje, dispensado), conforme explica num mesmo sentido discursivo-didático, a voz do próprio narrador, tomando como exemplo um outro acontecimento, o caso de uma briga entre amantes por causa de ciúmes que virou notícia. Chama-se “cabeça” nos jornais às considerações que precedem uma notícia. Feita com a moral de Simão de Nantua e a leitura dos folhetins policiais, a “cabeça” é a pedra de toque da inteligência dos pequenos repórteres e dos redatores anônimos. Para dar um exemplo, vou reproduzir aqui trechos de uma “cabeça”. Tratava-se de uma briga entre amantes e o repórter, após intitular a notícia — “o eterno ciúme” — começou a filosofar, com muita lógica e inédita psicologia: “O ciúme, esse sentimento daninho que embrutece a imaginação humana e a arrasta à concepção de crimes, cada qual mais trágico e horripilante, não cessa de produzir seus efeitos maléficos”. Continuava, após um período intermediário: “No caso de que nos vamos ocupar, trata-se da briga entre dois amantes, motivada de uma parte pelo ciúme e da outra pela repulsa natural de quem se sente ofendido e maltratado”. São assim, com poucas variantes, as “cabeças” (BARRETO, 1997, p. 163). A voz do narrador, ainda nessa Seqüência Discursivo-Didática, explica o que vem a ser “tiras” (que, com o aprofundamento da modernização da imprensa, viriam a se transformar em “laudas”, hoje em desuso), num momento em que a máquina de escrever ainda não tinha chegado às redações, ou seja, os textos ainda eram manuscritos antes de irem para a composição, montagem e impressão. É preciso saber-se que as tiras no jornal são menores e levam menos palavras que as redigidas por qualquer pessoa não afeita ao 95 ofício. São escritas com grandes intervalos entre as linhas e grandes espaços entre as palavras, para facilitar a composição (BARRETO, 1997, p. 163). A voz de Caminha explica ainda como se dava o processo de titulação, quando, no caso da morte misteriosa do casal nos Campos de São Marcos, passou- se da sugestão de “Crime no pampa” para “Bucolismo e tragédia”, em seguida para “Ciúme e crime”, chegando-se finalmente ao que as vozes unânimes da redação consideraram o mais apropriado, “Descampado da morte”, que hoje estaria mais adequado para ser um antetítulo, posto o título ter adquirido até o presente outras características técnico-linguísticas, como a explicitação direta do sujeito ativo, o verbo dicendi a ressaltar a ação do acontecido, e o complemento da oração posto de forma sintética e precisa, sem dubiedades e sinais de pontuação. Nessa mesma seqüência do discurso, a voz do narrador explica, por fim, como eram distribuídas as funções de cada um na empresa, como aqueles que ficavam a trabalhar na feitura da notícia dentro da redação, como no caso da elaboração da “cabeça” e dos sistemáticos boletins que sustentavam a curiosidade de um público cada vez maior; aqueles que eram designados para cobrir o acontecimento in loco, na polícia e sentir as reações nas ruas, os humores nos cafés, as opiniões da cidade; e aquele que, por detrás de toda essa engrenagem, funcionava como um importante, decisivo e motivador agente de sua dinâmica, desempenhando o papel de especulador e inescrupuloso capitalista, o diretor Ricardo Loberant que, de sua sala, espreitava o “poviléu” por “detrás da veneziana semicerrada”, vislumbrava os números de sua lucratividade, acompanhava os passos da concorrência e incitava as pessoas a se mobilizarem contra o poder constituído quando nisso tinha interesses escusos. 96 Um desses casos demonstra a relação direta da imprensa com a cidade. Ou talvez seja melhor dizer: do jornal com o poder público municipal em que os citadinos são transformados em meros coadjuvantes pró-ativos. Trata-se da instituição de um projeto de lei do Conselho Municipal que estabelecia a obrigatoriedade de utilização de sapatos por todos os transeuntes da cidade. Todos que saíssem às ruas estariam obrigados a calçar sapatos. A lei nascera da idéia de que a cidade precisava se modernizar e competir com outras que também ingressavam na urbanidade mais avançada da época. No caso específico, conforme a voz do narrador, a concorrência entre as cidades, na sociedade moderna, nascia com forte adversidade entre o Rio de Janeiro e Buenos Aires, influindo nas leis e operando transformações urbanas no sentido de produzir um certo refinamento da urbanidade, sentimento então nascente com a República, provocando, com efeito, o dissenso popular, pelo preconceito e pela imposição legal das elites, sob o argumento da antibarbárie. Nós passávamos então por uma dessas crises de elegância, que, de quando em quando, nos visita. Estávamos fatigados da nossa mediania, do nosso relaxamento; a visão de Buenos Aires, muito limpa, catita, elegante, provocava-nos e enchia-nos de loucos desejos de igualá-la. Havia nisso uma grande questão de amor- próprio nacional e um estulto desejo de não permitir que os estrangeiros, ao voltarem, enchessem de críticas a nossa cidade e a nossa civilização. Nós invejávamos Buenos Aires imbecilmente. Era como se um literato tivesse inveja dos carros e dos cavalos de um banqueiro. Era o argumento apresentado logo contra os adversários das leis voluptuárias que aparecem pelo tempo: “A Argentina não nos devia vencer; o Rio de Janeiro não podia continuar a ser uma estação de carvão, enquanto Buenos Aires era uma verdadeira capital européia. Como é que não tínhamos largas avenidas, passeios de carruagens, hotéis de casaca, clubes de jogo?” (BARRETO, 1997, p. 161). Pode-se perceber, nas vozes favoráveis à lei dos sapatos, a questão do turismo (não há na obra esta palavra) sendo convocada e aclamada como algo possível, dado as belezas naturais existentes na cidade do Rio de Janeiro e que precisavam ser vistas por visitantes estrangeiros que trariam recursos e assim 97 compensariam os investimentos realizados. Era também ressaltada a necessidade da existência de gastos na construção de ruas largas “para diminuir a prostituição e o crime e desenvolver a inteligência nacional” (BARRETO, 1997, p. 161). Por trás dessas idéias e defesas ardorosas, havia os interesses em propinas e lucros, por parte de corretores, banqueiros, empresários, sindicatos, políticos, jornalistas, tendo como objeto um empréstimo a ser contraído pela prefeitura através de um outro projeto de lei. A lei dos sapatos obrigatórios, portanto, havia precipitado os que eram a favor do empréstimo e aqueles que o desaprovavam pela sua falta de necessidade. Uma das formações da voz do narrador, transcrita abaixo, dá a exata dimensão dos interesses de um desses lados envolvidos (aqueles que estavam “à frente”, “os cinco mil de cima” e os que ganhariam com a supervalorização de seus imóveis), através da defesa, pela voz da imprensa (O Globo), dos investimentos para que houvesse as transformações urbanas na cidade sob o argumento de que era preciso fazer a cidade ingressar em definitivo na modernidade tendo como parâmetros outras cidades do mundo – além de Buenos Aires –, como a Paris, do prefeito Georges-Eugène Haussmann, que entre 1853 e 1870 foi o responsável pela reforma urbana de Paris e assim tornou-se uma referência na história do urbanismo, e a nobreza da Inglaterra ditada pela voz do modilhosa da imprensa da época. E os da frente, os cinco mil de cima, esforçavam-se por obter as medidas legislativas favoráveis à transformação da cidade e ao enriquecimento dos patrimônios respectivos com indenizações fabulosas e especulações sobre terrenos. Os Haussmanns pululavam. Projetavam-se avenidas; abriam-se nas plantas squares, delineavam-se palácios, e, como complemento, queriam também uma população catita, limpinha, elegante e branca: cocheiros irrepreensíveis, engraxates de libré, criadas louras, de olhos azuis, com o uniforme como se viam nos jornais de moda da Inglaterra. Foi esse estado de espírito que ditou o famoso projeto dos sapatos (BARRETO, 1997, p. 161-2). 98 Ao final de seu dialogismo, Caminha não deixa de relatar que se transforma, enfim, senão num doutor, como inicialmente queria e para isso tinha tomado uma das decisões mais importantes de sua vida – quando decidira partir de um lugarzinho esquecido e distante, situado no interior do Rio de Janeiro, onde deixara uma mãe triste e doente, para se bandear para a principal cidade do país, a capital da nascente e esperançosa República, onde apostaria na sorte e em seus esforços intelectuais –, se transforma ao menos num repórter de uma das publicações mais influentes da época, o jornal O Globo, fato que ocorre meio que por acaso e em condições para as quais concorreram menos a sua capacidade intelectual e honestidade literária, a sua ambição e o seu ímpeto pessoal, e mais por aquilo que veio involuntariamente saber e pessoalmente testemunhar acerca dos segredos íntimos e atos inescrupulosos da voz-maior da redação, a voz-mor da empresa jornalística, a voz corretiva dos desígnios públicos de terceiros e do país, a voz do todo-poderoso Ricardo Loberant. Torna-se, assim, amigo do diretor, o que desperta a inveja de seus iguais, sem, no entanto, por isso, perder a sua condição de classe socialmente inferior, realidade que lhe assoma, mas sobre a qual tem, além de uma profunda e inelutável melancolia, plena consciência. “Eu sentia bem o falso da minha posição, a minha exceção naquele mundo”, diz, em voz confessional (BARRETO, 1997, p. 219). Sobre esse revés de seu destino, e de sua prostração social diante da muralha que são as condições adversas da sociedade, também não estava inconsciente, como é próprio às vozes sociologicamente ricas e literariamente dialógicas. “Não; eu não tinha sabido arrancar da minha natureza o grande homem que desejara ser; abatera-me diante da sociedade; não soubera revelar-me com força, com vontade e grandeza...” (BARRETO, 1997, p. 219). Mas sabia que tinha que prosseguir, continuar, seguir em frente, rumo ao seu previsível, 99 mais ainda não alcançado, destino. “Sentia bem a desproporção entre o meu destino e os meus primeiros desejos; mas ia” (BARRETO, 1997, p. 220). Uma retratação, portanto, de outras vozes, de outras épocas, de outros sentimentos e experiências vividas ou ainda por viver num plano definido e intersubjetivamente real. Percebe-se, assim, nesse conjunto imenso de vozes da obra limo-barreteana, que todas, de uma forma ou de outra, no sentido conceitual bakhtiniano mais amplo, estão entrelaçadas e em fulgurante movimento. Um movimento dialético que se dá através de Caminha, o narrador, este sendo, ao mesmo tempo, ou seja, e vice-versa, uma voz conscienciosa, autônoma e independente em relação às demais. Todas as vozes, dessa forma, compõem o dialogismo polifônico e discursivo da poética barreteana nas Recordações do Escrivão Isaías Caminha. Recordações que são também uma voz memorialística do autor, da cidade e de todas as outras personagens que, conjuntivamente, compõem, com o leitor e a sua voz igualmente conscienciosa e independente, um quadro dialogal que remonta, num jogo polifônico de elevado sentimento artístico-cultural, o panorama de uma época que passou por grandes transformações políticas, sociais e econômicas, que por sua vez se refletiram sobre seu próprio meio e remodelaram todos os recônditos da vida societária de então – no caso, os aspectos moral, ético e toda a produção material. A cidade, nesse contexto real, à medida que se produz, é imaginariamente reproduzida, também como voz em e de suas próprias bases sócio-espaciais, e projeta-se indefinidamente para o futuro. O mesmo se dá com a produção jornalística e seus principais atores em todos os níveis societários. Trata- se da estratificação real e intersubjetiva de seu próprio ethos, práxis e meio. O que 100 emerge daí, dessa colossal e complexa polissemia discursiva limo-barreteana, é uma sociedade em transição, contraditória, excludente, com evidentes conseqüências naquele pretérito que transcorrem até o presente. Com efeito, a voz de Caminha, solitária, amargurada, triste, demonstra sofrer, impassível – salvo por ser voz –, todo o peso dessas circunstâncias. Portanto, uma voz narrativa, aqui ainda em amplo sentido bakhtiniano, que, a despeito de ser uma voz lamentosa, inclusive daqueles que nem vozes têm, revela, em tom de denúncia e desmascaramento, que a sociedade e todos os esforços envidados pelos indivíduos para virtuosamente se alcançar o bem e o bom, motivados por um devir incutido e socialmente alimentado como factível e acessível a todos, se mostra na verdade falsa e inúteis. Numa palavra: revela e denuncia a luta em vão e frustrante do indivíduo que busca realizar seus sonhos numa sociedade que assim não lhe prometera e também nada cumprira. 101 Foto 1 - Escritor Lima Barreto em 1919: fotografado no Instituto de Neuropatologia. Foto 2 - Morro do Castelo, no Rio de Janeiro, sendo derrubado, em 1905, pelo poder público: objeto de reportagem real no Correio da Manhã mesclada com literatura ficcional fantástica. Foto 3 - Demolições na Avenida Central, Centro no Rio de Janeiro: tipo de modernização urbana que se constituía em uma das principais preocupações do escritor e do jornalista Lima Barreto. http://bussolaliteraria.blogspot.com/ http://cafehistoria.ning.com/ http://picasaweb.google.com/lh/photo/rWtBFFMTCC2Rpj3q_83y0w 102 CAPÍTULO 2 Comunicação e Arquitetura: encontros empíricos nas esquinas da urbanidade contemporânea 1. Delimitação temática: aproximando pensares objetivo específico do presente capítulo é – como continuidade temática e ao mesmo tempo subtemática de nossa tese – tentar mostrar que é possível construir saber científico através de uma convergência entre a Comunicação e a Arquitetura, ambas enquanto campos disciplinares produtoras de conhecimento e de práticas cotidianas no espaço urbano da cidade contemporânea. Exatamente neste sentido também pretendemos, ao final do presente capítulo, como estudo de caso, trazer a nossa contribuição empírica, fomentando assim um debate que visa consubstanciar a construção epistemológica via novos modelos paradigmáticos de avaliação e síntese de teorias e realidades. Sujeito e objeto desta forma se ampliarão ao invés de se fragmentar, pois aqui tentar-se-á costurar numa nova trama o que está estilhaçado por princípios do saber moderno acerca desses dois campos, considerados hoje, erradamente, por alguns, tão distantes quanto incongruentes, tão estanques quanto incompatíveis. Assim, inevitavelmente, outros elementos para a construção deste saber virão à baila; irão emergir à discussão. O 103 Deve, portanto, o leitor estar preparado para uma outra interpretação, através da qual que pretendemos fazer surgir, em desvelo, por conseguinte, uma outra realidade, talvez nova, muito provavelmente inédita, reveladora de si mesma, mas não exclusivista, posto pertencer – embora implicitamente, por se encontrar subsumida – a ambos os campos do saber aqui escolhidos e já tão bem definidos pelos critérios e inteligências da Modernidade. Com efeito, as vias práticas pelas quais tentaremos aproximar esses campos serão a diagramação jornalística, midiática e contemporânea, como elemento da Comunicação Social, e a cidade moderna, igualmente midiática e contemporânea, como elemento da Arquitetura. Para tanto, e de forma mais específica, escolhemos para a nossa análise, como objetos concretos desses dois campos do saber, e como elementos sociológicos da urbanidade avançada, respectivamente, a diagramação do Jornal de Brasil, esta enquanto projeto pensado e implementado no final do segundo quartel do século passado, e que se constitui numa das mais significativas e influenciadoras reformas gráficas jamais feita no país, e a cidade de Brasília, esta também como projeto elaborado e implementado no mesmo período do século XX, e que da mesma forma se constitui até hoje como um dos marcos mais importantes da Arquitetura Moderna Brasileira (sobre os detalhes históricos de ambos projetos falaremos adiante). A análise irá privilegiar – como o faz Ginzburb em alguns de seus estudos, conforme veremos – a questão morfológica materializada desses projetos, tratando-a inclusive de modo relacional. Tomaremos, portanto, suas produções como construtos visuais e artefatos espaciais, utilitários e concretos, observando, naturalmente, outras categorias societárias, mais conhecidas e condicionantes da história (sociológicas), como a política e a economia. 104 Para alcançarmos tais intentos, contudo, utilizaremos a Teoria do Conhecimento Indiciário, conforme coligida historicamente, sistematizada e aplicada, através de diversos trabalhos práticos, pelo pensador italiano Carlo Ginzburg. Dela utilizaremos ora em maior ou menor grau, ora em transversalidade, os conceitos de venatório, divinatório, semiótico e indiciário, estes dois muito mais provavelmente que aqueles. Trata-se de um modus paradigmático de recolhimento e análise de fragmentos "esquecidos" no tempo-espaço pela maioria dos pesquisadores e algumas metodologias das ciências humanas, particularmente aquelas que se utilizam de Metanarrativas, que por sua vez se ocupam mais da historicidade e dos acontecimentos grandiloqüentes, necessariamente encadeados num continnum, delimitado, sincrônico, e, quase sempre, invariável, do que dos detalhes esparsos, perdidos ou quase perdidos, por vezes diacrônicos, na maioria das vezes imperceptíveis, que, contudo, podem ser reconstruídos numa nova tecitura lógica e histórica. O Saber Indiciário, como também é chamado, assim, preocupa-se mais com os microfatos e elementos particulares ou residuais passados, que foram desprezados e/ou não encadeados, num novo plano, pelos saberes, digamos, mais tradicionais, e o reconstrói num outro painel sócio-histórico. Tal empreendimento, contudo, não vem a ser a negação, na acepção mais radical da palavra, desses saberes mais conhecidos e utilizados. Muito pelo contrário: apresenta-se como um paradigma que possibilita o resgate e a interpretação histórica, inclusive a geral, com bases em microelementos, além de lógicos e concretos, como dissemos acima, em premissas e conceitos passíveis à aferição e à validação por outras concepções de verdade. A própria delimitação de nossos objetos de estudos – os projetos de 105 diagramação do Jornal do Brasil e arquitetônico-urbanístico de Brasília, situados num mesmo período histórico-nacional – já provam isso, sem contar com alguns trabalhos do próprio Ginzburg, como A micro-história e outros ensaios (1989), no qual, utilizando-se daquilo que chama de micro-história, resgata a história da arte italiana, entre outros vários estudos exemplares nesta e em outras variadas obras. O que tem de tão importante e como se constitui afinal esse Saber Indiciário sistematizado por Ginzburg? Como ele poderá nos ajudar a tentar relacionar Comunicação e Arquitetura e fundamentar uma análise de base empírico-morfológica sem que caiamos numa mera pareidolia ou mesmo numa vulgar apofenia? Como, a partir desta análise, o Saber Indiciário poderá possibilitar a emersão de uma outra possível forma (perspectiva) de conhecimento? E como poderá nos ajudar a se debruçar sobre uma simples realidade objetiva e fazer surgir daí alguma verdade? São respostas para estas e outras perguntas que tentaremos dar no tópico a seguir e pretendemos demonstrar no tópico posterior. 2. Saber Indiciário: metafragmentos de e para outra versão histórica Talvez a obra do historiador italiano que resuma mais apropriadamente, em termos explicativos, a concepção do indiciarismo, como afirmação de ciência, seja Sinais: raízes de um paradigma indiciário, ensaio que faz parte de seu interessante livro Mitos, emblemas, sinais: morfologia e história (1989); e a que melhor mostre a aplicação prática desse método seja aquele trabalho do mesmo autor que é mundialmente, segundo Rojas (2003), o mais conhecido, o livro O queijo e os vermes: o cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pela Inquisição (1989). 106 Com base nessas e demais não menos importantes reflexões e pesquisas do pensador e historiador italiano, buscaremos mostrar a fundamentação paradigmática do indiciarismo histórico, que aqui vamos utilizar para cimentar nossas tentativas de aproximação científica e de análise, já apontando, condicionalmente, para os nossos objetos de estudo. Segundo Ginzburg (1989, p. 143), foi por volta do final do século XIX que “emergiu, silenciosamente no âmbito das ciências humanas, um modelo epistemológico (caso se prefira, um paradigma)” sobre o qual, apesar de operante, “não se prestou suficiente atenção”. A análise desse paradigma, continua Ginzburg, “talvez possa ajudar a sair dos incômodos da contraposição entre racionalismo e irracionalismo”, ou seja, daquilo que poderia ser considerado como ciência e não- ciência, diante de tanta diversidade descartada e de tantos detalhes não mesurados. Ginzburg revela inicialmente uma história tão interessante quanto aquilo que o próprio Saber Indiciário se propõe a fazer: desvendar o enigmático, o misterioso. E dentro de uma característica que também é própria do método: a narrativa pormenorizada, o relato minucioso. Nessa história, Ginzburg junta um monte de peças, dentre as quais elementos de estudos de um italiano chamado Giovanni Morelli; da psicanálise de Sigmund Freud; e da forma lógico-dedutiva de Sherlock Holmes, figura criada (e um dos três personagens mais famosos da literatura, segundo Peter Haining, ao lado de Hamlet e Robinson Crusoé) por Sir Arthur Conan Doyle, formando, ao final, um belo e surpreendente quebra-cabeças. Senão vejamos. Entre 1874 e 1876, diz Ginzburg, apareceu na Alemanha uma série de artigos sobre a arte italiana, assinados pelo desconhecido estudioso russo Ivan 107 Lermolieff, e que foram traduzidos para o alemão pelo igualmente desconhecido Johannes Schwarze. Somente alguns anos depois é que o autor dos escritos “tirou a dupla máscara”: tratava-se da mesma pessoa, o italiano Giovanni Morelli, “sobrenome do qual Schwarze é uma cópia e Lermolieff o anagrama” (e de cujo prenome Johannes seria uma aproximação e Ivan uma derivação, acrescentaríamos). O que Morelli apresentava, porém, em seus escritos, seria o algo muito mais importante: aquilo que também pelos anos seguintes viria a ser conhecido pelos especialistas em arte como o “método morelliano”. Tal método consistia em não negligenciar, ao exame de obras de autores desconhecidos, repintadas ou possivelmente falsificadas, os detalhes, os pormenores que são próprios de cada pintor e menos característicos das escolas às quais pertence, posto estes serem mais vistosos, evidentes e, portanto, mais passíveis de imitação do que aqueles. Assim, ao invés do que normalmente se faz ao examinar um quadro, dever-se-ia, por exemplo, observar pormenores como os lóbulos das orelhas, as unhas, as formas dos dedos das mãos e dos pés. “Dessa maneira, Morelli descobriu, e escrupulosamente catalogou, a forma de orelha própria de Botticelli, a de Cosmè Tura e assim por diante: traços presentes nos originais, mas não nas cópias”, afirma Ginzburg (1989, p. 144). O método de Morelli, continua Ginzburg, cujas obras se encontram recheadas de ilustrações de orelhas, dedos e outras minúcias que podem fazer qualquer museu estudado por ele parecer mais um “museu criminal”, pois pode levar um artista a ser descoberto por detalhes de sua obra assim como um criminoso pode ser “traído” por suas impressões digitais, se aproxima, dessa maneira, do método de investigação utilizado “quase nos mesmos anos” pelo 108 personagem Sherlock Holmes e seu criador, o escritor inglês Arthur Conan Doyle. Ginzburg lembra que num dos contos de Doyle, “A caixa de papelão”, Holmes literalmente “dá uma de Morelli”. “O caso começa exatamente com duas orelhas cortadas e enviadas pelo correio a uma inocente senhorita”, informa Ginzburg, acrescentando que, ao final, Holmes descobre o mistério por ter estudado e até publicado na Revista Antropológica um artigo exatamente sobre a complexidade identitária dessa parte do corpo que em cada pessoa se difere em particularidades das demais. Não se trata, porém, afirma Ginzburg, de um mero paralelismo entre o método de Morelli e o utilizado pelo detetive inglês em dezenas de aventuras criadas por Doyle – com o que concordamos. Isso porque o método de Holmes – acrescentaríamos – é lógico-dedutivo, ou seja, semicientífico, e deriva, suas observações e conclusões, da realidade objetiva, das evidências microcósmicas, esparsas, mas contidas de grandes verdades. Segundo um texto inédito escrito pelo próprio Doyle, intitulado A verdade sobre Sherlock Holmes, publicado recentemente no Brasil junto com algumas aventuras também inéditas de Holmes (DOYLE, 2006), sua inspiração para o detetive e o método de descobertas utilizado por ele no personagem teve início em 1876, quando começou seu curso de medicina na Universidade de Edinburg, e manteve contato com “a personalidade mais notável que conheci”, o professor e cirurgião Joseph Bell. “Era um cirurgião muito capaz, mas o seu ponto forte era a diagnose, não só de doenças, mas de caráteres”, diz Doyle (2006, p. 32). E explica: ao receber os pacientes, o médico/professor já adiantava para os próprios consultados e à platéia de alunos as características pessoais e de vida que só os 109 doentes sabiam e tinham vivenciado. Depois informava, em encadeamento, os dados minuciosos que o levavam àquelas conclusões lógicas, inclusive sobre a origem e os lugares onde ocorreram os contágios de certas doenças, com base apenas nos gestos, roupas, formas de se comportar, de falar e de se portar dos pacientes. “Não admira que depois de estudar uma personalidade dessas eu usasse e ampliasse seus métodos quando, mais tarde na vida, tentei criar um detetive científico que elucidasse casos em função de seus méritos e não da loucura do criminoso”, revela Doyle (2006, p. 33). De fato, se observamos as histórias de Doyle vamos encontrar nelas várias referências que ele faz a respeito de seu método de descoberta da verdade criminal, com base em uma diagnose que poderíamos chamar de social, e às vezes até mesmo com alguma prognose sobre decisivos acontecimentos acerca da questão que se tem por desvendar. Pinçamos alguns trechos de algumas dessas histórias inéditas de Doyle (2006) a título apenas de ilustração da prática sherlokiana, ou talvez seja melhor dizer do método Bell-Doyleano. São trechos que reforçam a tese de que não se trata de uma forma vulgar e totalmente comum de observação, análise e conclusão, mas de um modelo racional que utiliza parâmetros de cientificidade. Passemos aos trechos. 1) Sobre a qualidade do particular na persona: “sempre tive uma fraqueza pelo estudo e a análise do caráter humano, e encontrava muita coisa interessante no microcosmo em que vivia” (O mistério da casa do tio Jeremy); 2) Sobre um dos recursos técnicos, a imaginação, à qual devem se encaixar as evidências dos fatos (lembramo-nos aqui do nobel Stephen W. Hawking com seus livros de física que 110 nos remetem à imaginação lógica da fantástica possibilidade de viagem no tempo): “ao invés de deduzir o que aconteceu dos dados conhecidos, devemos construir uma explicação fantasiosa que seja coerente com os acontecimentos conhecidos. Podemos então testar essa explicação em face de qualquer dado novo que possa surgir. Se tudo se encaixar, a probabilidade é de que estejamos no caminho certo, e a cada fato novo essa probabilidade aumentará em progressão geométrica até que a evidência se torne definitiva e convincente” (O caso do homem dos relógios); 3) Sobre um dos princípios do método, buscar a verdade no fragmento, tentando, conforme ele mesmo diz, esclarecer a questão de forma crítica e semicientífica, usando a dedução lógica: “um dos princípios elementares do raciocínio prático é que, quando o impossível foi eliminado, o resíduo, por mais improvável que seja, deve conter a verdade” (O caso do trem desaparecido); 4) Sobre a importância dos detalhes: “conforme já tentei lhe incutir muitas vezes, Watson, os detalhes são os dados de maior importância” (O caso do homem procurado); 5) Sobre um dos princípios do método: “a primeira coisa a se fazer é avaliar a inteligência e a astúcia do criminoso” (O caso do homem procurado); 6) Sobre, por fim, os detalhes de sua criação e de seu método, Doyle revela, numa entrevista, que se inspirara também em Poe para aperfeiçoar o que absorvera de seu antigo professor em Edinburg: “comecei a arquitetar uma história dotando meu detetive de um sistema científico, de modo a fazê-lo deduzir tudo logicamente. Intelectualmente isso já fora feito antes por Edgar Alan Poe com M. Dupin, mas o ponto em que Holmes diferia de Dupin era que possuía uma enorme base de conhecimento exato a que recorrer em conseqüência de sua educação científica” (Conan Doyle conta a verdadeira história do fim de Sherlock Holmes). 111 Não seria à toa, portanto, conforme o próprio Doyle (2006, p. 188-197) revela num outro artigo de sua autoria (Alguns dados pessoais sobre Sherlock Holmes), que tivessem lhe chegado às mãos casos da vida real semelhantes aos “que inventei para demonstrar o raciocínio do Sr. Holmes” e nos quais “o método de raciocínio daquele cavalheiro foi copiado com pleno êxito”. Ou seja: a vida não só imitou, mas se utilizou da arte. Tudo isso demonstra, como dizíamos, que a relação entre Morelli e Doyle não é um mero paralelismo, como defende o próprio Ginzburg e que, em sua narrativa da interessante história sobre Morelli-Doyle-Freud, que aqui retomamos, avança ainda mais para demonstrar essa sua tese. Ginzburg cita que o grande responsável pelo resgate do método de Morelli foi E. Wind, que viu nele um exemplo da “atitude moderna”, pois demonstrava ter um alto grau de observação e análise do gênio criador através da arte. Quando Wind fala que Morelli se aproximaria da psicologia moderna por definir que “os nossos pequenos gestos inconscientes revelam o nosso caráter mais do que qualquer atitude formal, cuidadosamente preparada por nós”, tal expressão, “psicologia moderna”, segundo Ginzburg (1989, p. 145-146), poderia ser “diretamente substituída pelo nome de Freud”. Isso porque, com o resgate feito por Wind do método de Morelli, muitos pesquisadores voltaram suas atenções para uma passagem que por muito tempo foi negligenciada de um ensaio de Sigmund Freud, Moisés de Michelangelo, publicado originalmente em 1914. Nessa passagem Freud, segundo Ginzburg, cita que antes de ouvir falar em Psicanálise conhecera um método, que provocara “uma revolução nas galerias da Europa”, através dos ensaios de um certo especialista russo chamado Ivan 112 Lermolieff. Tal método, continua Freud conforme Ginzburg, ensinava a distinguir com segurança entre as imitações dos originais a partir dos “detalhes secundários, das particularidades insignificantes, como a conformação das unhas, dos lobos auriculares, da auréola”, que comumente passavam desapercebidos, inclusive do falsificador, que assim deixa de imitar, mas que eram próprios de cada artista. Foi depois muito interessante para mim saber que sob o pseudônimo russo escondia-se um médico italiano de nome Morelli. Tendo se tornado senador do reino da Itália, Morelli morreu em 1891. Creio que seu método está estreitamente aparentado à técnica da psicanálise médica. Esta também tem por hábito penetrar em coisas concretas e ocultas através de elementos pouco notados ou desapercebidos, dos detritos ou “refugos” da nossa observação (FREUD apud GINZBURG, 1989, p. 147). A citação de Freud feita por Ginzburg não é gratuita. Além de Freud ter publicado o artigo anonimamente em 1914, na Imago, sob um pseudônimo enigmático (‘de***’), e somente em 1924 revelar o seu disfarce quando decidiu incluí-lo na publicação de suas Obras Completas – o que levou muitos a defender a hipótese de que Freud foi motivado pelo próprio Morelli para esconder tão deliberada e enigmaticamente a sua identidade –, o “pai da Psicanálise”, como popularmente Freud é mais conhecido, também foi, seguramente, segundo garante Ginzburg (1989a, p. 148), influenciado intelectualmente pelo senador e estudioso da arte italiano, o que garantiria assim a Morelli “um lugar de destaque na fundação da psicanálise”. Posição importante diante do que hoje sabemos em que se transformou a Psicanálise, modelo imprescindível não só para a ciência médica avaliar e conduzir as pessoas na busca pelo autoconhecimento e até a cura de certas neuroses e psicopatologias, mas também para a análise de outras instâncias produtivas da vida societária, incluindo a própria arte. 113 Antes de prosseguirmos, porém, com o relato de Ginzburg sobre os encontros de Freud com os textos de Morelli e as conseqüências daí decorrentes, vamos nos deter um pouco no ensaio dele acerca da escultura de Michelangelo (obra em mármore que se encontra na Igreja de San Pietro in Vincoli, em Roma, como parte da gigantesca tumba que o artista deveria erguer para o poderoso Papa Júlio II), algo não analisado pelo historiador italiano, para nos cientificarmos de sua utilização e aplicação do método morelliano. Na edição brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, (FREUD, 1974), o diretor geral da tradução informa que Freud foi vê-la pela primeira vez em 1901 e por diversas vezes posteriores, tamanho o seu interesse pela obra. De fato, no próprio artigo Freud (1974, p. 255) confessa que “nunca uma peça de estatuária me causou impressão mais forte do que ela”. E arremata: “quantas vezes subi os íngremes degraus que levam do desgracioso Corso Cavour à solitária piazza em que se ergue a igreja e tentei suportar o irado desprezo do olhar do herói! Às vezes saí tímida e cuidadosamente da semi-obscuridade do interior como se eu próprio pertencesse à tumba sobre a qual seus olhos estão voltados”. Freud (1974, p. 253) começa defendendo a tese, paradoxal, de que “algumas das maiores e mais poderosas criações da arte constituem enigmas ainda não resolvidos pela nossa compreensão”. Há um encantamento tão forte, que só pode ser decorrente das intenções intelectuais e emocionais do artista, que as tornam ao mesmo tempo maravilhosas e inescrutáveis. Existem várias dessas obras-primas da arte universal que provocam esse deslumbramento até hoje, como Hamlet, de Shakespeare, hoje com mais de quatro séculos, e aquela que sobre ele exercia ainda 114 mais e decisivamente esse fascínio, a estátua do Legislador dos Judeus, segurando os Dez mandamentos, produzida por Michelangelo. A seguir, Freud apresenta algumas dentre aquelas interpretações que considerava como as mais relevantes dentre as inúmeras realizadas sobre a obra e que ele vinha amealhando, silenciosa e apaixonadamente, ao longo de anos. Praticamente todas se concentram num ponto: interpretar o instante em que a estátua, produzida entre 1512 e 1516, com seu semblante, expressões faciais, gestos, modo de estar sentada, direção do olhar, intenções subjacentes etc., remete- se correspondentemente ao momento bíblico em que o profeta se encontrava, o que sentia, o que fez, o que faria dali por diante etc. Assim, há uma espécie de entendimento tácito nessas análises: o instante eternizado da estátua remete ao ínterim em que Moisés, ao descer o Monte Sinai, onde recebera de Deus as Tábuas, percebera que o povo havia feito para si um bezerro de ouro e dançava ao redor dele, e exatamente nessa ocasião reage com expressões que correspondem a todos os estados congelados de seu corpo e, poder-se-ia dizer, da alma. Freud concorda que o status da obra corresponde em sua plenitude a esse instante temporal do patriarca, mas acha as interpretações, apesar de algumas com profunda agudeza, insuficientes para dar cabo de toda grandiosidade e encantamento que ela encerra, por negligenciar exatamente os detalhes. “Ora, em dois lugares da figura de Moisés há dois pormenores que até aqui não apenas escaparam à observação, mas, na realidade, nem mesmo foram corretamente descritos. São a postura da mão direita e a posição das duas Tábuas da Lei” – afirma Freud (1974, p. 265) logo após ter citado Morelli e o seu método de observação minuscular da arte. A partir daí, e desses dois elementos, Freud faz uma análise pormenorizada e descritiva da 115 estátua, em que não passam desapercebidos protuberâncias das Tábuas; posição dos dedos do pé direito; pressão do braço direito sobre as Tábuas; curvatura do dedo indicador da mão direita sobre as madeixas que descem obliquamente no canto inferior esquerdo do rosto; redemoinhos de pelos flexionados; cavas em mechas da barba; e elementos fisionômicos que remetem a estados psíquicos. Para isso Freud conta, inclusive, com a ajuda de quatro desenhos (além de fotografias) que mandara elaborar para explicar melhor seu raciocínio e descobertas. As figuras de Freud nos remetem aos instantes anteriores e posteriores ao representado pelo meio-tempo da estátua, ou seja, sua análise alcança até imagética e imaginativamente os momentos instantâneos e fracionais do antes e do depois daquele estratificado por Michelangelo em sua obra. Apenas num breve período (agora ‘período’ como uma reunião de orações que formam um sentido completo de um enunciado) Freud narra, elucidativamente (como defende Ginzburg em seu conceito de micro-história e também o faz em alguns de seus trabalhos), o que teria ocorrido terminus ante quem e terminus post quem (para utilizamos também duas expressões de Ginzburg) ao instante de cristalização da estátua. Conta, em síntese, Freud (1974, p. 268): “Presumimos que a mão direita se achava, de início, afastada da barba; que depois ela se estendeu para a esquerda da figura num momento de grande tensão emocional, agarrou a barba, e que finalmente foi retirada de novo, levando consigo uma parte da barba”. Dentre as demais conclusões, ao final, não escaparam, como já dissemos, nem os aspectos psicológicos, que Freud coloca em uma suma psicanalítica: O que vemos diante de nós não é o início de uma ação violenta, mas os restos de um movimento já efetivado. Em seu primeiro transporte de fúria, Moisés desejou agir, levantar-se, vingar-se e esquecer as Tábuas, mas dominou a tentação e permanecerá sentado e quieto, com sua ira congelada e seu sofrimento 116 mesclado de desprezo... Ao dar expressão à sua cólera e indignação, teve de abandonar as Tábuas e a mão que as retinha foi afastada. Elas começaram a deslizar e ficaram em perigo de se quebrarem. Isso o trouxe a si. Lembrou-se de sua missão e, por causa dela, renunciou à satisfação de seus sentimentos. Sua mão retornou e salvou as Tábuas antes que caíssem no solo. Nessa atitude permaneceu imobilizado e foi nela que Michelangelo o retratou como guardião do túmulo... À medida que nossos olhos percorrem a figura de cima para baixo, a figura apresenta três estados emocionais distintos. As linhas do rosto refletem os sentimentos que predominaram; o meio da figura mostra traços do movimento reprimido; e o pé ainda permanece na atitude da ação projetada. (FREUD, 1974, p. 272). Voltemos agora à importância do encontro Freud-Morelli. Segundo Ginzburg, foi exatamente a proposta de um método interpretativo baseado em resíduos, elementos marginais, pormenores normalmente desprezados pela grandiosa maioria dos estudiosos da arte, por considerá-los triviais, mas que podem ser decisivamente reveladores sobre o que se quer interpretar, aquilo que possibilitou ao jovem Freud construir a sua monumental obra, de tal forma que poderia muito bem fazer Morelli se apropriar adequadamente do lema virgiliano (Flectere si naqueo Supero, Acheronta movebo, ou seja, “Se não posso dobrar os poderes superiores, moverei o Aqueronte”), que anos depois fora escolhido por Freud como epígrafe de seu livro A interpretação dos sonhos, sintetizando assim e de certa forma todo um esforço intelectual e investigativo por toda sua vida. O ciclo parece se fechar no momento em que se percebe que na relação Morelli-Holmes-Freud há também uma relação Freud-Holmes-Morelli, quando, segundo Ginzburg (1989a, p. 150), o próprio Freud manifestou, em O homem dos lobos, “o seu interesse pelas aventuras de Sherlock Holmes” e, a um colega, T. Reick, que por sua vez “aproximara o método psicanalítico ao de Holmes”, falara com “admiração, na primavera de 1913, das técnicas atributivas a Morelli”. Dessa tripla relação, cada qual com procedimentos semelhantes para casos e objetos 117 distintos, Ginzburg consegue resumir na palavra pistas aquilo que em cada um dos três se ampliam em possibilidades infinitesimais de descoberta e que de outra forma não alcançariam algum resultado tangível e provável. “Pistas: mais precisamente, sintomas (no caso de Freud), indícios (no caso de Sherlock Holmes), signos pictóricos (no caso de Morelli)”, diz Ginzburg (1989a, p. 150) que, baseado nisso, em seguida questiona: “Como se explica essa tripla relação?”. O próprio pensador italiano responde: “Freud era médico; Morelli formou-se em medicina; Conan Doyle havia sido médico antes de dedicar-se à literatura”. Ora, essa coincidência por si somente nada explica, por isso Ginzburg destaca que nos três casos há um algo mais, um modelo paradigmático que ele chama de “semiótica médica”, qual seja: “a disciplina que permite diagnosticar as doenças inacessíveis à observação direta na base de sintomas superficiais, às vezes irrelevantes aos olhos do leigo”. As três coincidências, assim, se dão no mesmo instante em que “começou a se afirmar nas ciências humanas um paradigma indiciário baseado justamente na semiótica”, e que, a despeito de emergir no final do século XIX, mais precisamente na década de 1870-80, tem as suas raízes históricas fincadas num passado tão remoto quanto profundo, que Ginzburg a partir daí vai tentar entender, destrinçar e estabelecer os conceitos de venatório, divinatório, semiótico e indiciário. O primeiro conceito – venatório – tem a ver com a arte da caça. Ginzburg (1989a, p. 151) explica que por milênios o homem foi caçador. Nesse período amealhou um saber inestimável. Aprendeu a reconstruir narrativamente, a partir de pegadas na lama, ramos quebrados, tufos de pêlos, bolotas de esterco, plumas emaranhadas, odores estagnados, os passos das presas invisíveis. “Aprendeu a 118 fazer operações mentais complexas com rapidez fulminante, no interior de um denso bosque ou numa clareira cheia de ciladas”. Nada documental, entretanto, a esse respeito, ficou registrado, para colocá-los ao lado das pinturas rupestres e outros artefatos, por isso há de se recorrer ao mito, às fábulas, onde se pode encontrar algum eco dessa atividade cognoscitiva. Um dos exemplos é aquela história, existente em vários povos, como os quirquizes, tártaros, hebreus e turcos, de três irmãos que, ao serem questionados se viram um determinado animal fugidio, mesmo sem terem visto, relataram dados precisos sobre a passagem e a existência dele, sendo por isso presos e acusados de roubo, pelo simples fato de conseguirem enxergar dados irrefutáveis onde os outros nada viam. “O que caracteriza esse saber é a capacidade de, a partir de dados aparentemente negligenciáveis, remontar a uma realidade complexa não experimentável diretamente”, explica Ginzburg (1989a, p. 152). Ginzburg, entretanto, chama atenção para o fato de que “decifrar” e “ler” pistas de animais são apenas metáforas, as mesmas que, sob a explicação mitológica do surgimento da escrita, na China, levaria a crer que os caracteres foram criados a partir da observação das pegadas de um pássaro impregnadas nas margens de um rio – mesmo sabendo-se que os pictogramas foram um excelente passo da humanidade rumo à abstração em comparação com possíveis pegadas concretas (pistas, materialmente) registradas de fato nalguma areia. No entanto, se abandonarmos essas concepções etiológicas baseadas apenas na formulação mitológica, e nos concentrarmos em dados concretos, como os documentos mesopotâmicos escritos 3 mil anos antes de Cristo, veremos algo impressionante: 119 uma inegável analogia entre aquilo que caracterizaria o que agora entendemos como venatório e o que Ginzburg chama de divinatório. Se de um lado temos elementos ínfimos dos animais deixados para trás caracterizando sua passagem, compleição e até dados sobre a sua existência anterior à passagem, de outro, no campo do divinatório, temos outro sem-número de dados particulares, também minusculares, como entranhas de animais, gotas de óleo na água, astros, movimentos involuntários do corpo etc. que exigiriam uma observação minuciosa, uma decifração acurada, além do comum. Se a diferença entre essas artes de decifrar estaria em se saber o passado, na maioria das vezes um passado recentíssimo, no caso do venatório, e o futuro, muito breve ou mesmo muito distante, no caso do divinatório, em ambos a atitude cognoscitiva, segundo Ginzburg (1989a, p. 153), era muito parecida, ou seja: “as operações intelectuais envolvidas – análises, comparações, classificações – eram formalmente idênticas”. Sobre a semiótica, é preciso dizer que, como rebusca o passado à cata de pistas, o termo para Ginzburg não tem a concepção quase única como majoritariamente a entendemos hoje, ou seja, como a ciência do signo, de raízes norte-americanas. Mais que sua gênese, o saber baseado nessa premissa erigida por Ginzburg está também, e intrinsecamente, ligado a uma constelação de outros saberes particulares, inclusive relacionando-se àqueles sobre os quais discutimos até agora, o venatório e o divinatório. Por isso, o termo disciplinas para essa constelação de saberes, a princípio, conforme ele mesmo afirma, é “anacrônico”. Poderíamos até relacionar as artísticas ou pseudocientíficas, como a fisiognomonia e a arte divinatória, com as científicas, como o direito e a medicina, cada qual com suas particularidades indiciárias, ou seja, com a utilização em maior ou menor grau 120 cada uma de pistas, sintomas e indícios, que ainda assim iríamos encontrar nelas geneticamente elementos semióticos. Desta forma, semiótico, em Ginzburg, parece nos remeter àquilo que a própria expressão etimologicamente encerra: algo que pode ser semivisto, semiacabado, semidefinido e assim ser deslindado por uns poucos experts. No entanto, se nos aprofundarmos nessa transversalidade indiciária, com a semiótica inserindo-se nessa constelação de disciplinas, vamos encontrá-la originariamente mais evidenciada no que Ginzburg chama de semiótica médica, cuja principal característica é a diagnose e a prognose. Os próprios textos mesopotâmicos de jurisprudência centenas de anos a.C. não se constituíam somente em tratados de leis, mas também em registros de casos clínicos e/ou cirúrgicos concretos. A semiótica médica aponta assim para o passado, o presente e o futuro, da mesma forma que os outros campos do Saber Indiciários ora apontam para o passado (venatório) e para o futuro (divinatório). Como se vê, o termo indiciário é amplo e perpassa todas as esferas disciplinares em Ginzburg. Mas Ginzburg vai estabelecer historicamente dois momentos significativamente importantes para remontar ao desenvolvimento do Saber Indiciário até a sua formação paradigmática no final do século XIX. O primeiro ocorre na Grécia antiga, cerca de 500-400 anos antes de Cristo, quando, inicialmente, numa sociedade mergulhada no divinal, faz surgir o paradigma da conjetura (tekmon), ou o saber conjetural, que opera em todos os campos da atividade humana (política, caça, pesca, história) e, em seguida, apartando-se desse saber conjetural (“esmagado” pelo modelo platônico), à luz de novas disciplinas, como a historiografia e a filologia, conquista-se uma nova autonomia social e epistemológica através de antigas disciplinas, como a medicina, cuja nova relação 121 entre médico e paciente implantada, uma relação de saber e poder, permanece até os dias hoje. “O corpo, a linguagem e a história dos homens foram submetidos pela primeira vez a uma investigação sem preconceitos, que por princípio excluía a intervenção divina”, diz Ginzburg (1989a, p. 155). Isso ocorreu porque, com a medicina hipocrática, nascia um maior rigor racional na observação dos sintomas (semeion), na definição dos males e conseqüentemente na busca pela cura. “Apenas observando atentamente e registrando com extrema minúcia todos os sintomas – afirmavam os hipocráticos – é possível elaborar “histórias” precisas de cada doença”, diz Ginzburg. O segundo momento dá-se após um transcurso de cerca de 2.500 anos, ou aproximadamente 1.200 anos depois da morte de Hipócrates (460-377 a.C.), quando, cerzindo afinal um processo ocorrido nesse período, em que houve um aprofundamento contra a incerteza na busca cada vez mais precisa pelo saber, através da peleja humana para se alcançar um maior rigor na forma de apuração e observação dos fenômenos, Galileu Galilei (1564-1642) faz surgir, através da física, remodelando as idéias aristotélicas, um novo paradigma em que se cristalizam atividades abstratas e concretas, incluindo nele novos termos e conceitos, relativamente àquilo que inaugurou e entendemos desde então por ciência moderna. O modus galileano, eminentemente quantitativo, porém, a despeito de seu grande avanço e contribuições, exclui as disciplinas indiciárias, por sua vez eminentemente qualitativas (hoje acomodadas no âmbito das ciências humanas), como aquelas praticadas e desenvolvidas pelos médicos e pelos historiadores, pelos literatos e pelos críticos literários. Estas duas, aliás, emergiram com mais força 122 exatamente à época de Galileu, por conta do aparecimento da imprensa, engendrada afinal por Johann Gutenberg (1398-1468), após terem surgido com a invenção da escrita cerca de 5.000 anos a.C. É preciso dizer aqui que o sentido de crítico literário para Ginzburg refere-se a todo aquele que lê uma obra, uma pesquisa etc. de maneira crítica, prospectiva, reflexiva, como o faz o pesquisador, o docente, o cientista, ou seja, é uma atividade disciplinar de amplos saberes e atores. O método e as idéias propugnados pelo físico italiano, assim, exclui da ciência da natureza a possibilidade do homem ser sujeito-objeto central das coisas, descartando peremptoriamente, por conseguinte, suas constituições e valores antropomórficos e antropocêntricos, mesmo metaforicamente Galileu tendo recorrido à imagem do livro para se dizer que a natureza se encontra escrita com caracteres geométricos e que está aberta à decifração de todos que saibam dessa linguagem e assim queiram interpretá-la. Por conta dessas idéias decisivas e inaugurais de Galileu, Ginzburg (1989, p, 158) afirma que: No mapa do saber abria-se um rasgo destinado a se alargar continuamente. E certamente entre o físico galileano, profissionalmente surdo aos sons e insensível aos sabores e odores, e o médico contemporâneo seu, que arriscava diagnósticos pondo o ouvido em peitos estertorantes, cheirando fezes e provando urinas, o contraste não podia ser maior. O médico a quem se refere Ginzburg é Giulio Mancini, de Siena, que viria a ser o prestigioso, o principal, ou o “médico-mor”, como diz Ginzburg, do papa Urbano VIII. Mancini era vulgarmente conhecido pela sua capacidade extraordinária de diagnosticar doenças, bastando para isso um rápido, mas acurado olhar sobre o paciente. Sobre a vida e a obra de Mancini, aliás, informa Ginzburg, chegou-se em seu contexto a escrever um “léxico divinatório” dado a capacidade dele de identificação dos males. Mas Mancini era também conhecedor 123 inteligentissimus da pintura. Escreveu um livro que foi amplamente conhecido sobre o assunto, cujo longo título, Algumas considerações referentes à pintura como deleite de um gentil-homem e como introdução ao que se deve dizer, séculos depois inspirou a expressão cronnoisseurship, ou seja, o método defendido por ele mesmo e através do qual poderia se reconhecer, levando-se em conta as características do tempo e o caráter de unicum da arte, aquela que seria uma obra verdadeira de um determinado artista em contraposição àquela que seria uma fraude de um impostor. Ginzburg traça um paralelo entre esse método e outros dois saberes indiciários. O primeiro surgido mais ou menos no mesmo período de Mancini e que foi desenvolvido pelo bibliotecário da biblioteca do Vaticano Leone Allaci, que consistia em descobrir através da consideração temporal quais as datas dos antigos textos gregos e latinos, método que foi meio século mais tarde retomado e desenvolvido por Mabillon, fundador da ciência paleográfica. O outro é a grafologia, cujas origens apontam para o médico bolonhês Camilo Baldi e o seu Tratado sobre como de uma carta missiva se conhece a natureza e a qualidade do escritor, no qual figura um capítulo que, segundo Ginzburg (1989a, p. 161), “pode- se considerar o mais antigo texto de grafologia aparecido na Europa”. Ambos saberes alimentaram o método de Mancini que, no entanto, não levou tanto em consideração a contribuição que os valores consecutivos da grafologia, então nascente, poderia lhe dar no campo da pintura. Tal fato faz Ginzburg chegar a uma interessante – e perspicaz – conclusão: Mas, não obstante as palavras elogiosas que lembramos, Mancini desinteressou-se quanto ao objetivo declarado da nascente grafologia, isto é, a reconstrução da personalidade dos escreventes remontando-se do “caráter” escrito ao “caráter” 124 psicológico (sinonímia esta que remete, uma vez mais, a uma mesma remota matriz disciplinar) (GINZBURG, 1989, p. 161). Aliás, é sob o mesmo termo e o seu sentido sinonímico que Ginzburg resume a confluência, por volta do ano 1620, dos caracteres imateriais de Galileu, “lidos pelo cérebro”, de um lado, e, de outro, “os que Aladi, Baldi ou Mancini decifravam materialmente em papéis, pergaminhos, telas ou quadros”, ambas as formas dando-se em escalas e sentidos diferentes: a primeira indo em direção ao universal, ao secular, e a segunda no caminho do particular, do individual. Sentidos que, quanto mais se percorriam, mais se faziam distanciar. Inclusive no aspecto da excludência do cientificismo. Nesse ponto, abriam-se duas vias: ou sacrificar o conhecimento do elemento individual à generalização (mais ou menos rigorosa, mais ou menos formulável em linguagem matemática), ou procurar elaborar, talvez às palpadelas, um paradigma diferente, fundado no conhecimento científico (mas toda uma cientificidade por se definir) do individual. A primeira via foi percorrida pelas ciências naturais, e só muito tempo depois pelas ciências humanas (GINZBURG, 1989a, p. 163). Isso quer dizer que se houve um afastamento também houve ainda alguns elos a interligar as esferas matemáticas/quantitativas e indiciárias/quantitativas, como a estatística, apesar do dito inicialmente o contrário, até chegar-se aos dois grandes campos epistemológicos atuais, relativamente às ciências da natureza e humanas, ambos com seus estritos e considerados modelos paradigmáticos de precisão e variação do saber. Neste sentido, Ginzburg destaca, por exemplo, que a medicina continua a avançar com duas identidades inalienáveis, já que não conseguiu se desvencilhar do caráter do individual, próprio do indiciarismo, e da necessidade do generalizante, própria do galileanismo. Tanto que, a despeito da evidente tendência para o rigor e para a norma, também permaneceu pendente para a acuidade e a qualificação. 125 Depois de retomar as origens do paradigma indiciário no campo venatório, na história dos três irmãos, filhos do rei de Serendip, que foram presos e julgados por terem revelado o paradeiro e características de um animal, que nunca viram, apenas com base em indícios a eles relatados, um conto tantas vezes reeditado e de diversas formas recontado, inclusive por Voltaire (2001), no terceiro capítulo, “O cão e o cavalo”, de sua obra Zadig, publicada pela primeira vez em 1748, Ginzburg chega agora talvez ao ponto mais alto de sua exposição epistemológica do paradigma indiciário. É quando apresenta o paradigma como metáfora. Faz uma analogia do modelo com um tapete, cujos fios são, cada um e em cada sentido da trama, o remontar de uma imagem do saber/real/histórico e fundante das artes e das práticas cotidianas e/ou reflexivas dos campos venatório, divinatório, indiciário e semiótico. Apesar de longa, preferimos aqui transcrever a explicação de Ginzburg, pela sua importância e os aspectos denotativos que encerram: Poderíamos comparar os fios que compõem esta pesquisa aos fios de um tapete. Chegados a este ponto, vemo-los a compor-se numa trama densa e homogênea. A coerência do desenho é verificável percorrendo o tapete com os olhos em várias direções. Verticalmente, e teremos uma seqüência do tipo Seredip-Zadig- Poe-Gaboriau-Doyle. Horizontalmente, e teremos no início do século XVIII um Dubos que classifica, uma ao lado da outra, em ordem decrescente de inconfiabilidade, a medicina, a connoisseurship e a identificação das escritas. Até mesmo diagonalmente – saltando de um contexto histórico para outro –, e, às costas de monsieur Lecoq, que percorreu febrilmente um “terreno inculto, coberto de neve”, pontilhado de pistas de criminosos, comparando-o à “imensa pagina branca onde as pessoas que procuramos deixaram escritos não só os seus movimentos e seus passos, mas também seus pensamentos secretos, as esperanças e angústia que as agitavam”, veremos perfilarem-se autores de tratados sobre a fisiognomonia, adivinhos babilônicos empenhados em ler as mensagens escritas pelos deuses nas pedras e nos céus, caçadores de Neolítico. (...) O tapete é o paradigma que chamamos a cada vez, conforme os contextos, de venatório, divinatório, indiciário ou semiótico. Trata-se, como é claro, de adjetivos não-sinônimos, que no entanto remetem a um modelo epistemológico comum, articulado em disciplinas diferentes, muitas vezes ligadas entre si pelo 126 empréstimo de métodos ou termos-chaves (GINZBURG, 1989a, p. 170). O tapete metafórico de Ginzburg, no entanto, ainda está incompleto. Acima, ele nos mostra a sua afiguração num tempo que antecede aos séculos XVIII e XIX. Exatamente nestes, porém, especialmente a partir de meados do século XIX, outras analogias de novos saberes científicos ou semicientíficos, inseridos numa outra sociedade, a industrial, surgem e vêm se juntar, no campo das humanas, à trama do tapete. Isso se dá através de um alternativo modelo semiótico, de um lado, e um também alternativo entendimento orgânico da sociedade, de outro. Um exemplo do modelo orgânico, segundo Ginzburg, é aquele expresso por Marx, em seu livro Para a Crítica da Economia Política, que dizia comparativamente que “a anatomia da sociedade civil deve ser buscada na economia política”, apontando, assim, pela metáfora da “sociedade anatômica”, para o desmoronamento do último sistema filosófico, o hegeliano. As ciências humanas, porém, segundo Gizburg, apesar da grande contribuição do marxismo, acabaram por assumir muito mais o paradigma alternativo da semiótica, que se centrava, cada vez mais, por derivação e evolução histórica, nos interstícios do médico-artístico. “E aqui reencontramos a tríade Morelli-Freud-Conan Doyle da qual partimos”, afirma Ginzburg (1989a, p. 171). A partir da confecção desse paradigma, é hora, agora, diz Ginzburg (1989a, p. 171), “de desarticulá-lo”. Faz isso através da distinção entre natureza e cultura. Isso porque uma coisa é aquilo que compõe o conjunto deixado residualmente pelos seres e coisas que independem da intervenção humana, refletida ou consciente, e que já estão postos, dados, como as fezes, os rastros etc., e uma outra coisa são, no indiciarismo, o debruçar-se percucientemente, as análises, como as da escrita, do discurso, das pinturas etc. 127 Com efeito, no campo cultural, via somente por onde se pode compreender o paradigma indiciário, o que sociologicamente também quer dizer societário, é que Ginzburg vai encontrar as devidas explicações. Assim, ele identifica que é precisamente entre os séculos XVII e XVIII, na Europa, que surge a necessidade da sociedade burguesa, então nascente, de impor um controle social destinado aos delinqüentes e, principalmente, aos reincidentes criminais. Isso se dá primeiro na Inglaterra, em 1720, aproximadamente, com o aparecimento das relações de produção capitalista; depois, no resto da Europa, com o Código Napoleônico, instituído quase um século depois. Desta forma, a questão da identificação individual, ou seja, dos indivíduos que compõem a massa populacional, torna-se um desafio para as elites, pois deveria se romper com a tradição identificatória anterior, que variava de sociedade para sociedade e o tempo, indo do simples registro do nome ao sumário dos dados físicos. Nem mesmo a grande indústria, a mobilidade geográfica e social a ela ligada, e nem mesmo as gigantescas concentrações urbanas, afirma Ginzburg, conseguiram modificar completamente essa forma variável e anterior. Somente a partir dos novos fatos contemporâneos decorrentes da luta de classes, como a criação da uma Associação Internacional de Trabalhadores; da repressão da oposição operária depois da Comuna; e das modificações da criminalidade, explica Ginzburb, é que se constituiu, a identificação dos indivíduos, na “cabeça-de-ponte” de um projeto mais ou menos deliberado de controle total e ao mesmo tempo sutil sobre a sociedade. “A respeitabilidade burguesa” – afirma Ginzburg (1989ª, p. 173) – “precisava de sinais de 128 reconhecimento igualmente indeléveis, mas menos sanguinários e humilhantes do que os impostos sob o ancien régime”. Ginzburg registra narrativamente aquilo que poderíamos chamar aqui de quatro importantes momentos do desenvolvimento do processo de identificação elementar da massa populacional ameaçadora ao stableshiment, ocorrido sob a necessidade social do controle por parte da sociedade burguesa, destacando nesse processo o surgimento de outras ciências que, assim como ocorreu no tempo anterior, a partir de Galileu, vingaram por se sustentar em bases mais sólidas, na concepção de ciência moderna, ou simplesmente não vingaram por não conseguir compatibilizar cientificamente o particular como o universal, como é próprio do indiciarismo e como o fez e se constitui até hoje a medicina. O primeiro desses momentos dá-se fundamentalmente com Purkyne, fundador da histologia, em 1823, que identifica nove tipos fundamentais das linhas papilares datiloscópicas e afirma, com base em seus estudos, não existir dois indivíduos com impressões digitais idênticas. Purkyne tinha também formação filosófica e, nesse campo, seguia o pensamento de Leibniz (1646-1716), que metafisicamente defendia que todos os indivíduos possuem características imperceptíveis e infinitesimais que compõem a sua singularidade, que podem assim identificá-lo particularmente. O segundo momento identificado por Ginzburg é quando, em 1880, agora na China, William Herschel, administrador inglês do distrito de Hooghly, em Bengala, conforme artigo publicado por ele mesmo na revista Nature, passa a adotar oficialmente um sistema de identificação dos nativos a partir da própria experiência prática dos bangaleses com impressões digitais depois de 16 anos de 129 testes. “Os funcionários imperiais tinham-se apropriado do Saber Indiciário dos bengaleses e viraram-no contra eles”, afirma Ginzburg (1989a, p. 176). Em 1879, um servidor da prefeitura de Paris, Aphonse Bertillon, cria um método antropométrico “baseado em minuciosas medições do corpo, que convergiam para uma ficha pessoal”, conforme destaca Ginzburg (1979a, p. 173) no que denominamos de terceiro momento da identificação ordinária da massa populacional ameaçadora. Ginzburg fala das dificuldades encontradas por esse método devido “à irredutível elusividade do indivíduo”, ou seja, por conta da impossibilidade de precisão de que as características particulares de uma pessoa se refere exclusivamente a ela e não à outra ou a outras pessoas. Por isso, acrescenta Ginzburg, Bertillon propôs a associação do método antropométrico com o “retrato falado”. Este, por sua vez, possuía estudos fisionômicos, relativamente a orelhas, por exemplo, que lembravam os ensaios de Giovanni Morelli, realizados nos mesmos anos, ressalta Ginzburg. O quarto e último momento é quando, em 1888, através de uma dissertação que foi posteriormente aprofundando, F. Galton propõe o uso de um sistema de identificação mais simples e que já tivera uma experiência anterior, qual seja, o das impressões digitais, ou fingers prints. Galton houvera se abeberado dos trabalhos de Purkyne e do artigo de Herschel. Tentou, sem sucesso, associar as impressões digitais às particularidades raciais, além de buscar nelas, em algumas tribos indianas, características próximas às dos macacos. De qualquer forma, a partir de suas proposições, “em pouquíssimo tempo o método foi introduzido na Inglaterra, e dali gradualmente no mundo todo”, diz Ginzburg, (1989a, p. 177), que à mesma página acrescenta: 130 Essa prodigiosa extensão da noção de individualidade ocorria de fato através da relação com o Estado e seus órgãos burocráticos e policiais. Até o último habitante do mais miserável vilarejo da Ásia ou da Europa tornava-se, graças às impressões digitais, reconhecível e controlável”. Aqui chegamos num ponto fundamental do paradigma indiciário, ressalta Ginzburg: a mesma sistematização científica desse saber que poderia ser utilizada pelas camadas superiores da sociedade para promover o controle dos indivíduos que lhe punham sob ameaça, também poderia, em sua dimensão de representar e tentar explicar o que aparentemente é superficial, ou desprezível para o conhecimento moderno, ser útil para esclarecer os vazios, aquilo que é opaco, da realidade. Foi exatamente essa idéia – acrescenta o historiador – que penetrou profundamente nos mais variados âmbitos das ciências humanas (e aqui pensamos o quão de sinais e de indícios como objetos de estudos possuem campos de saberes como a antropologia, a história, a geografia, a paleontologia, a filologia, a psicologia que se afirmaram como ciências e outras como a frenologia, a fisiognomonia, a pelografia, a grafologia, a alveitaria, a teratologia que ou se perderam, ou ficaram no meio do caminho ou delas se originaram outras). Com efeito, questiona Ginzburg: o paradigma indiciário pode ser rigoroso? Aqui se chega num ponto nevrálgico da questão. Até porque diz respeito a todos os outros campos disciplinares das ciências humanas. Polemiza-se, assim, com os respectivos estatutos mais ou menos estáveis dessas ciências. E esse xeque começou a ser colocado, segundo explica o autor, pela instituição galileana de ciência moderna. A escolha foi, para as ciências humanas, como não poderia deixar de ser, assumir a sua própria natureza que, embora possuidora de preceitos pouco vigorosos, poderia proporcionar resultados relevantes, posto levar em conta dados do imponderável, do sensível, do subjetivo, da experiência. 131 O contrário disso, ou seja, se assumisse uma postura de rigidez e desprezasse os fatores do intangível, do imprescutável, da elusividade, chegaria invariavelmente a resultados pouco significativos. Isso porque, nesse tipo de conhecimento, acrescenta Ginzburg, não entram em jogo somente elementos que se podem pragmaticamente medir, pesar, estabelecer. Entram em jogo outros ainda mais arraigados, que são essenciais aos sentidos, ao discernimento e à sagacidade, como o faro, o golpe de vista, a intuição – levando o paradigma indiciário assim a possuir um aparentemente contraditório, mas na verdade um ineliminável “rigor flexível”. 3. Linhas de Brasília e traços do JB: riscos de uma mesma trama As linhas que inspiram e compõem Brasília e os traços que afiguram e se justapõem no design gráfico do Jornal de Brasil, em todos os aspectos sócio- espaciais, inclusive o morfológico-metafórico e o cultural-simbólico, incluindo as esferas política e econômica, se entrecruzam e se entremeiam muito mais do que se possa inicialmente observar e imaginar. São fios que, ao se tocar, ao se encontrar, formam nós, uma rede, uma trama, textura, texto e contexto de uma realidade histórica por muitas vezes negligenciada em seu conjunto. Trata-se de uma forma de riscos e com os riscos de uma linguagem que somente pela vazão empírica e pela razão epistemológica, possibilitada pelo paradigma indiciário, pode ser decupada e decodificada, decifrada e interpretada; enfim: lida. Acreditamos, por isso, e neste aspecto, que o Saber Indiciário, o que quer dizer a consecução de um paradigma indiciário próprio para o caso, ou seja, erigido a partir do próprio caso, 132 conforme apontado substantivamente a fortiori no item anterior, é o que vai nos permitir alcançar tal objetivo. Para tanto, lembrarmos aqui, por oportuno, duas importantes pesquisas indiciárias que guardam em si relação paradigmática direta com os nossos objetos de estudo. A primeira delas é um dos mais importantes trabalhados de Ginzburg neste sentido – entre vários outros, como Fios e rastros (2007), Nenhuma ilha é uma ilha (2004), Olhos de madeira (2001) e História noturna (1991). Trata-se do livro Queijos e vermes (1987), que traz uma rica interpretação a partir de dados minusculares de uma classe social superior e que foram impostos sobre outra, subalterna, num determinado lócus social (ROJAS, 2004), ou melhor, indícios microscópicos contidos num processo inquisitorial manuscrito e que fora movido pela Igreja Católica contra um humilde moleiro italiano, Domenico Scandella, mais conhecido por Menocchio, nascido em 1532, em Montereale, uma pequena aldeia nas colinas do Friuli, a 25 km de Pordedone, Itália, onde é preso e sofre o primeiro interrogatório a 7 de fevereiro de 1584, sob acusação de heresias e blasfêmias contra Deus e contra a Igreja Católica, e depois de uma seqüência dolorosa de humilhações, admoestações, torturas, é finalmente morto por sentença entre 1599 e 1601, num lugar não registrado no processo. Cuida, assim, de uma realidade que emerge daquilo que está afigurado num suporte, o papel; daquilo que está escriturado, desenhado, formatado nos autos de um processo relativo a um caso real. A segunda obra é o livro de Giancarllo Ricci, As cidades de Freud (2005), no qual o autor, curiosamente utilizando (poderíamos dizer) o método indiciário, narrativo da micro-história ginzburgiana, remonta com estilo e inteligência os 133 caminhos percorridos por Freud na consecução, por toda sua vida de médico, intelectual e pesquisador, da cidade almejada, a cidade ideal, qual seja, a “cidade psicanalítica”, ou seja, a própria Psicanálise. Trata assim de uma seqüência geográfica, cronológica e evolutiva na qual cada cidade percorrida, em vários e (in)definidos itinerários, ou seja, cada uma delas sendo representada e experimentada caracteristicamente em e por suas próprias vidas, virtudes, vícios, pessoas, pacientes, amigos, arte, beleza, passado, presente, casos, lugares. Cidades que exercem emblematicamente influências decisivas nessa construção do saber e da prática da Análise, a partir de indícios internos e pessoais, codificadamente aflorados, mas normalmente desprezados – aqueles mesmos que ajudam na construção do paradigma indiciário semiótico, conforme vimos. São quarenta cidades, desde a pequena Freiberg, onde Freud nasce em 1856, até a grandiosa Londres, onde morre em 1939, depois de ter passado, entre outras, por cidades como Leipzig, Viena, Paris, Berlim, Munique, Nova York, Veneza, Praga e Milão. É em Milão, aliás, onde, em 14 de setembro de 1898 (Ricci cita diretamente Ginzburg como uma de suas fontes), Freud compra o livro de Giovanni Morelli, Da pintura italiana. As galerias Borghese e Doria-Pamphili em Roma (até hoje ainda conservado na biblioteca dele), que lhe ajuda não só na interpretação das obras de artes, como aquela realizada no ensaio O Moisés de Michelangelo, conforme vimos no item anterior, mas também, segundo o próprio Ricci, na construção de uma de suas mais importantes e revolucionárias teorias freudianas, a que cuida de entender algo essencialmente imagético, os sonhos: De fato, as teses de Morelli o levarão a dedicar-se à arte e à biografia de grandes artistas, como no ensaio Uma recordação de infância de Leonardo da Vinci, de 1910, ou a análise de obras de arte, como no Moisés de Michelangelo, de 1914. Com efeito, a teoria freudiana do sonho pode ser considerada uma teoria da 134 representação, visto que o trabalho onírico se exprime através de uma língua de imagens (RICCI, 2005, p. 98). Essas duas obras foram citadas – juntamente com O Moisés de Michelangelo e o livro de Morelli – por julgarmos que exatamente na confluência daquilo que elas expressam (relato manuscrito, afigurado e configurado no papel; itinerários e cidades como emblemas e símbolos de uma construção; e em ambos a existência de elementos indiciários passíveis de interpretação, com a arte subjacente e entrelaçada aos aspectos sociais, políticos e econômicos) reside o nosso ponto de partida e ao mesmo tempo o de chegada. Ou seja, na planificação artística e morfológica do JB e no traçado emblemático da cidade de Brasília, e assim vice-versa, inserido na cultura, como ocorre numa textura qualquer posta racionalmente sobre um também qualquer suporte e na consolidação lingüística deliberadamente erguida em algum lugar. Numa palavra: aquilo que expressam o que está planificado num papel e narrativas sobre cidades. Partamos, pois, relativamente aos nossos objetos, destas aparentemente tênues, mas na verdade fortes fibras indiciárias. Como se sabe, Brasília resulta de um projeto ansiado pela classe intelectual e política nacional desde a Colonização, passando pela Independência e chegando à República. Inicialmente com o Marquês de Pombal, que aventou, em 1716, no início portanto do século XVIII, sobre a necessidade de transferência da capital para o interior da Colônia por ser o litoral mais exposto a invasões e outras ameaças externas. Depois com a apresentação à Assembléia Constituinte de 1823, pelo patriarca José Bonifácio, da proposta de transferência da Capital do Império do Rio de Janeiro para o interior do país, sob o argumento de que a nação precisava avançar em terras fora de sua costa e ali abrir novas frentes de ocupação territorial 135 e de desenvolvimento. A idéia de Bonifácio, acompanhada por muitos políticos, jornalistas e intelectuais da época, e na qual já se sugeria o nome “Brasília”, contudo, restou frustrada: a Assembléia foi dissolvida pelo Imperador D. Pedro I por questões políticas. Somente 62 anos depois, já no final do século XIX, esse desejo enfim se registra na Constituição Republicana de 1891. Realiza-se, concretamente, porém, somente com o estabelecimento de um Distrito Federal no qual é erguida a nova Capital da República. A construção ocorre a partir de 1956, durante pouco mais de três anos do governo do presidente Juscelino Kubitschek de Oliveira, que, a despeito das críticas a favor e contra, finalmente a inaugura em 21 de abril de 1960. Uma data não-aleatória: 21 de abril é o Dia de Tiradentes, o mártir da Inconfidência Mineira, movimento, por sua vez, que surgiu no final do século XVIII, exatamente no Estado natal do então presidente JK e que, entre Pombal e Bonifácio, mais precisamente nos anos 1780, também defendeu a criação de uma nova capital para o Brasil no interior do país. Trata-se, a consecução de Brasília, como se vê, de uma vontade estratégica política que resulta historicamente de várias mãos, como também o foi das mãos do geógrafo belga Luís Cruls, que demarcou o Distrito Federal em 1892; das do geógrafo francês Francis Ruellan, que fez a escolha dos sítios em 1947; das de suas respectivas equipes expedicionárias; e das calosas dos candangos, como ficaram conhecidos os milhares de operários anônimos que de forma destemida ergueram a obra monumental, e cuja maioria era constituída por migrantes nordestinos que buscava na cidade prometida melhores expectativas de vida. Uma vontade estratégica que aponta, portanto, em vários sentidos à interpretação. 136 Um desses sentidos, e aquele que mais chama a atenção, é o da centralidade geomorfológica, sem dúvida decorrente de um ato geopolítico de objetivo concreto: a nova capital brasileira ao se localizar no Centro-Oeste do país, encravada no Estado de Goiás, ficaria eqüitativamente mais próxima de todas as demais regiões e de seus respectivos Estados, e estes, por sua vez, como unidades federadas, igualmente mais próximos do poder central da União, concentrado em Brasília. Ou seja: ao menos no campo geodésico o primado da política como instrumento, que utiliza a eqüidistância territorial como peso distributivo das forças societárias para todos os seus membros, estaria assim resolvido. Vontade, dessa forma, realizada. Vontade triunfal. Sobre esse aspecto, aliás, nos fala o próprio Kubitschek: “Cumpre-nos apagar esses ressentimentos e amarguras [da vida] com os nossos triunfos”. E no parágrafo seguinte completa: Dando um balanço no que realizei, ao longo do caminho que me levou ao Palácio Central para ali edificar a Capital de meu país, quero ser o primeiro a reconhecer que só esse triunfo, que a História recolheu nas suas páginas imperecíveis, bastaria para atenuar na minha natureza qualquer impulso de cólera ou revolta (KUBITSCHEK 1974, p. 7 – destaques nossos). Inevitável não nos lembrarmos aqui do documentário “Arquitetura da destruição”, de Peter Cohen (1992) e do original e realíssimo documentário “O triunfo da vontade”, de Leni Riefenstahl (1935). Ambos mostram – mais este do que aquele – a arquitetura na Alemanha nazista sendo utilizada como instrumento político e símbolo máximo de um sonho: o desejo do soerguimento do terceiro maior império do mundo, o III Reich, depois do grego e do romano, que reviveria e reaproveitava assim aquilo que historicamente de “melhor” esses dois teriam produzido. Qual seja: a beleza, a pureza e a fortaleza, estratificadas respectiva e principalmente através da arte (incluindo de forma especial a arquitetura), da raça e 137 do poderio territorial e militar, centrados numa cidade, depois de Atenas e Roma, no caso, Berlim. Uma vontade de triunfo que nos lembra também, sob o aspecto centro- religioso, Jerusalém, com sua convergência e radiações cêntricas ao longo dos tempos: tão desejada quanto possuída; tão amada quanto destruída. A cidade secular nos mapas da Idade Média já figurava como o centro do mundo moderno. De lá nasceram, se expandiram e para lá confluíram e hoje se encontram e se acotovelam as três maiores religiões do mundo, o judaísmo, o islamismo e o cristianismo. Em nome dessa tríade profissão de fé, conquistaram, destruíram e a reconquistaram a ferro e fogo mais de vinte vezes em trinta séculos. Hoje Jerusalém reúne em suas ruas provavelmente o maior número de judeus, cristãos e muçulmanos do que qualquer outra cidade do planeta. É no meio dessa maior densidade dogmática populacional da fé secular que se concentram também os três maiores símbolos arquitetônicos em terra das respectivas religiões. São construções localizadas tão próximas fisicamente como tão distantes socialmente: o Muro Ocidental ou Muro das Lamentações (localizado aos pés do Monte Moriá, no qual haveria uma certa presença deífica, pois teria sido ali que Abraão depositara a arca e se encontrara com Deus através de um acontecimento divino); a Mesquita da Rocha ou Domo da Rocha (localizada no cimo do mesmo Monte Moriá, onde Maomé teria partido aos céus para o seu encontro com Alá também através do divino); e, a menos de 100 metros dali, a Igreja do Santo Sepulcro (no interior da qual estaria o gólgota, local onde Jesus teria sido crucificado e morto). Apesar dessa divisão política de lugares para cada religião, este um forçoso e difícil acordo para apascentar os ânimos, o estado de tensão, por esses e nesses lugares, reflexo 138 da tensão político-religiosa pelo resto do mundo, é permanente. A “Cidade da Paz”, também por isso, ou seja, por concentrar ao mesmo tempo tanta devoção e repulsa, tanta paixão e intolerância, tanto amor e ódio – um paradoxo certamente intransponível –, com suas obras arquiteturais estruturadas sobre crenças universais que apontam para um certo infinito, um certo eterno, se transformou igualmente desde os tempos remotos até o presente, principalmente no presente, no centro das colisões mundiais, ou seja, também em seu contrário: na “Cidade dos Conflitos”. Se Jerusalém anuncia a vida e a paz eternas, também em função dela ocorre a morte e a intranqüilidade permanentes. Justamente por isso, e ao lado dessa centralização da arquitetura religiosa, algo curioso acontece no campo da Comunicação Social: por ter se transformado num referencial da vontade do triunfo geopolítico, palco de um hostil triatlo religioso, aparentemente sem-fim, Jerusalém também se transformou na cidade que recebe certamente hoje o maior número de correspondentes da imprensa do mundo inteiro. Centenas de jornalistas internacionais não só se concentram, mas também a partir dali ecoam para o resto do planeta aquilo que a cidade absorve, expressa, protagoniza. Trata-se de algo que também acontece na Capital Federal brasileira: Brasília possui hoje o maior número de repórteres nacionais e internacionais do país, muito embora em escalas – de dimensão e de interesses – diferentes em relação à Terra Prometida. Em todo caso, na Capital Federal brasileira a vontade caracterizada pela centralização geodésica, sob o aspecto político-econômico, bem como geométrica, sob o aspecto morfológico, também tem seu sentido de verdade cronológica, especialmente através de suas medidas particulares, tanto remotamente quanto contemporaneamente. Remotamente: no século XVI, quando da divisão da Colônia 139 em Capitanias Hereditárias, primeira forma de predomínio e de governo a partir da Coroa, a centralização do poder donatário, exercida pelo Governo Geral, se localizaria equidistantemente das demais capitanias, concentrando-se mais precisamente na Capitania da Bahia, lugar tão mais próximo do Norte quanto do Sul e do Oeste, de onde irradiavam as determinações de toda ordem e níveis, e inversamente para onde convergiam todos os recursos, pleitos e demandas. Contemporaneamente: quatrocentos anos depois, em meados do século XX, após se tornar pronta, a centralização do poder capital, agora federal, concentrada numa cidade construída artificialmente, viraria, além de um pólo de poder centrípeto e centrífugo que se dista igualmente em relação às demais unidades, conforme vimos, também sob o aspecto cronológico, num ponto no qual se infeririam elementos políticos, econômicos e sociais decisivos para os novos rumos da história recente do país. Naquele exato momento da construção de Brasília, por exemplo, começa a acorrer um forte processo de urbanização; surgem a Bossa Nova, a televisão, vacinas; o Brasil ganha a Copa do Mundo de Futebol; crescem os empregos, a indústria de bens de consumo duráveis, sobretudo eletrodomésticos e carros, a produção de insumos, máquinas e equipamentos pesados para mecanização agrícola, transporte ferroviário e construção naval; e há uma queda na taxa de fecundidade e no índice de mortalidade (que despenca de 20,9 % para 9,8 %), fazendo crescer a qualidade de vida. Ou seja, há um antes e um depois do final dos anos 1950 para o início dos anos 1960, sendo tal momento o ponto central exato de certas incidências e refletâncias sócio-culturais da época. Tanto que tal período se tornou o emblema máximo do chamado Brasil Grande. Localiza-se precisamente na chamada Era JK. Ou, em outras palavras, na era desenvolvimentista do país, tempo que se liga e se sedimenta na figura do 140 presidente da República, Juscelino Kubistchek de Oliveira, cujos preceitos sociológicos de governo e de país se identificam e se encontram, com a consolidação da liberdade e da democracia, exatamente entre duas ditaduras, a do Estado Novo e a do Regime Militar (PEREIRA, 1997). As centralidades geopolítica e geomorfológica, assim, no plano sócio-histórico, in tempore, se repete, e se repete em clima de pós-guerra, atiçando a satisfação, a criatividade e a imaginação. A imagem de um avião, como lembra o partido de Lúcio Costa para Brasília, torna-se, dessa maneira, para o capitalismo tardio brasileiro, o mais adequado símbolo. Está pousado num plano alto, eqüidistante, central, o Planalto Central, de onde fará um vôo certo e seguro rumo ao seu futuro, o futuro da nação, e que justamente por isso deverá ser, tal futuro, urgentemente abreviado, repatriado e repartido à velocidade máxima do poder político e econômico. O Plano Piloto, o plano de vôo, exposto ao céu de Brasília, desta forma, representa a modernização rápida de um país que se quer alcançar via o alçar, ou seja, a elevação de um ambicioso plano moderno de metas desenvolvimentistas no qual se incluiu o translado da própria Capital Federal do Rio para Brasília. Até hoje essas visões povoam o imaginário nacional. Uma recente minissérie da TV Globo, denominada simplesmente “JK”, escrita por Amaral; Carneiro; Nogueira (2006), com toda carga tempo-sócio-espacial que esta sigla carrega, retrata muito bem, através da teledramaturgia, esse algo simbólico, esse período nacional-desenvolvimentista, que desde à época também passou a ocorrer nos outros campos da Arte (música, dança, cinema, literatura, esportes etc., daí o retrato dos profícuos anos 1950 para a cultura brasileira). O mais recente filme de Zelito Viana (2009) é bem mais 141 explícito. Chega, ao final da exibição, a informar textualmente ao telespectador que durante o governo de JK foi inaugurada a nova capital do Brasil, foram criadas as indústrias automobilística e naval, foi construída a Hidrelétrica de Furnas, a Estrada Belém-Brasília e a Ponte da Amizade entre o Brasil e o Paraguai. E arremata: “Fomos campeões do mundo de futebol pela primeira vez, foi inventada a Bossa Nova, o Teatro de Arena de São Paulo, a Bienal de Artes Plásticas e o Cinema Novo. A produção de Petróleo passou de 6.800 para 100 mil barris diários e a taxa de crescimento atingiu um recorde até hoje não batido de 10,8% ao ano”. A explicitação fica mais evidenciada quando se descobre que o título do filme, Bela Noite para Voar, baseado no livro homônimo de Pedro Rogério Moreira, é uma evocação à imagem do avião e à possibilidade segura de se voar, mesmo que à noite, só com as luzes das estrelas. Trata-se de uma frase dita por Juscelino quando ia embarcar na então moderna e recém-adquirida aeronave presidencial rumo ao seu destino e a um sonho de País. Em suma: são fatos e coisas próprias do desenvolvimento brasileiro, vivenciado e protagonizado também pela capacidade criadora e imaginativa do povo, dos artistas, dos políticos, com ressonância na própria Arte, e sobre o qual já trata, com o necessário rigor e acuidade, as ciências humanas. Com Juscelino Kubitschek, o sentimento desenvolvimentista toma conta do país, traduzido pela expressão “fazer o país saltar cinquenta anos em cinco”, durante o seu governo. Se não o conseguiu, pelo menos consolidou a democracia e promoveu o progresso econômico (PEREIRA, 1997, p. 88). Tal ideário nacional-desenvolvimentista possui suas raízes estéticas no pré- realismo e mais visíveis ainda no modernismo, que nasce, ao menos de forma oficial, no Brasil, no início do século XX, mais precisamente quando da realização da Semana de Arte Moderna, ocorrida de 11 a 18 de fevereiro de 1922, em São 142 Paulo, de quando, até os dias atuais, e de onde, até o presente, se espalhou pelo resto do país. Numa época cheia de turbulências políticas, econômicas, culturais e sociais, os vanguardistas da arte moderna brasileira defendiam, em síntese, uma nacionalidade para o país, ou seja, uma estética de viver e produzir que se fundamentasse num caráter nacional próprio, valorizando, para isso, a liberdade, o regionalismo, a brasilidade. Não desprezariam, porém, as influências externas, especialmente vindas da Europa, que deveriam, no entanto, ser digeridas e reprocessadas por esse e em favor desse novo caráter nacional – mesmo que fosse caráter nenhum. A arquitetura da capital Brasília, síntese do modernismo à brasileira, retrata bem esse novo modo de fazer arte concreta no mais íntimo e puro espaço nacional, o espaço da anima brasilis, o espaço do longínquo e desabitado cerrado, que processa e reapresenta o extemporâneo deliberadamente apreendido: a modernidade da arquitetura européia trazida para o Brasil no início do século XX, principalmente pelo arquiteto franco-suíço Le Corbusier, pseudônimo de Charles Édouard Jeannneret, em sua primeira viagem ao Brasil, em 1929, e depois em 1934, quando de sua segunda visita. Uma modernidade traduzida e retroalimentada especialmente pelo arquiteto Oscar Niemeyer, que assim mantém e/ou amplia os objetivos originais da arquitetura moderna e cujo ideário fora consolidado na famosa Carta de Atenas (CIAM, 1933), escrita pelo próprio Le Corbusier. Faz-se necessário destacar aqui, portanto, que, quando da primeira visita de Le Corbusier ao país, Lúcio Costa e Oscar Niemeyer, os autores do projeto urbanístico e arquitetônico da nova Capital Federal, que viria a ser escolhido através de um concurso nacional realizado pelo governo JK, mantêm com ele um 143 profícuo contato ao mesmo tempo em que aprofundam as influências anteriores, obtidas através das idéias e das obras dele. Lúcio Costa, por exemplo, que chegara a ser diretor da Escola Nacional de Belas-Artes, quando reformula e redireciona o ensino da arquitetura tradicional para uma tônica mais moderna, e que fora professor de Niemeyer, em uma carta ao ministro da Educação e Saúde do governo Getúlio Vargas, Gustavo Capanema, relata, segundo Pereira (1997, p. 80-81): “Foi graças a esse convívio [com Le Corbusier] de três meses que o excepcional talento do arquiteto Oscar Niemeyer, até então inexplicavelmente incubado, revelou-se em toda a sua plenitude”. E, sobre a absorção das influências externas, inclusive da Bauhaus, e o seu reprocessamento por Niemeyer, nos fala Lauro Cavalcanti (2008), arquiteto e antropólogo, quando das comemorações pelos cem anos do mestre em 2007: “De certa forma, o Oscar realiza o projeto dos Andrade [Osvald e Mário], de antropofagia; ele devolve o Le Corbusier; ele retransforma e faz a sua própria arquitetura”. Com certeza: o desenho de Oscar, por exemplo, quebra, através o uso audacioso da suavidade sensual e desafiadora das curvas, o rigor métrico e duro das linhas retas e, na intersecção de ambas, faz conviver uma surpreendente harmonia concreta, proporcionada somente pela utilização de novas tecnologias estruturais de engenharia e dos novos materiais de sustentação de cargas – como o próprio concreto armado. Parece-nos que somente essa modernidade da arte arquitetural brasileira poderia proporcionar, em sua regurgitação modernista, retrato de uma época, a centralidade morfológica no partido da nova capital federal. Lúcio Costa, ao iniciar a idéia de Brasília, no papel, traçou duas pequenas linhas que se tocavam, formando um ponto único entre dois rumos. Esses foram seus primeiros gestos. Fez 144 uma cruz. Os riscos passavam assim a demonstrar não só um encontro focal de uma época democrática, desenvolvimentista e situada entre duas ditaduras, mas um momento a partir do qual se queria um outro projeto de país, mais avançado, mais desenvolvido. Exprimia também o ideário social, político e estratégico, remotamente ansiado, contemporaneamente possível, de se configurar uma vontade triunfal, ou, simplesmente, como já chamamos aqui, os sentidos geopolítico e geomorfológico, traduzidos concretamente por equidade, eqüidistância, equilíbrio, em suma, partilha igualitária do poder focal entre pares sobre o traçado de um território. Um ponto central, assim, estaria a demarcar, por uma cruz (ou mesmo um xis, se mudarmos a posição do olhar), o coração do Brasil, o que quer dizer, emblema e prenúncio daquele mesmo desejo visceral de vitória, de realização, de triunfo, como o fora também a cruz dos bandeirantes. Um ponto central que, como nos diz Arnheim (2000), não é visualmente gratuito nem estático: possui a atuação de forças perceptivas, contidas na ação dos próprios objetos percebidos, que se relacionam em tensão com todos os elementos contidos do campo visual ao seu redor e ao redor do campo físico do observador, de modo que se anulam e se equilibram mutuamente quando relativamente se equidistanciam e interagem no tempo e no espaço. Em suma: o olhar vê a ação. Uma ação com “tensões dirigidas”. Com sentido. Sentido inclusive histórico, acumulado, no tempo e no espaço. Uma ação que envolve o sujeito perceptivo e que também por isso que não deixa de ser considerada por artistas, arquitetos, designers e ao mesmo tempo de ser notada pelo observador, mesmo que ocorra em ambos os casos respectivamente pela simples intuição e pela mera indução. Uma centralidade mais pura e uma ação mais cabal que remontam à busca na Renascença pela integração mais perfeita do espaço pictórico e pela aferição e definição mais correta possível da natureza 145 física. Aventura renascentista que mobilizou a sensibilidade e a ciência e levou a novas e importantes descobertas de exatidão e verdades do mundo perceptivo. Vejamos, em resumo, o que nos diz a respeito Arnheim naquela sua obra que é considerada como a maior expressão da gestalt: A experiência visual é dinâmica. (...) O que a pessoa ou animal percebe não é apenas um arranjo de objetos, cores e formas, movimento e tamanhos. É, talvez, antes de tudo, uma interação de tensões dirigidas (ARNHEIM, 2000, p. 4). Para qualquer relação espacial entre objetos há uma distância “correta”, que o olho estabelece intuitivamente. Os artistas são sensíveis a esta exigência quando organizam os objetos pictóricos numa pintura ou os elementos numa peça escultórica. Os “designers” e arquitetos buscam constantemente a distância apropriada entre os edifícios, janelas, móveis (ARNHEIM, 2000, p. 5). Qualquer linha desenhada numa folha de papel, a forma mais simples modelada num pedaço de argila, é como uma pedra arremessada a um poço. Perturba o repouso, mobiliza o espaço. O ver é a percepção da ação (ARNHEIM, 2000, p. 9). O observador vê as atrações e repulsões nos padrões visuais como propriedades genuínas dos próprios objetos percebidos. (ARNHEIM, 2000, p. 10). Toda experiência visual é inserida num contexto de espaço e tempo (ARNHEIM, 2000, p. 41). Esta natureza paradoxal da perspectiva central manifesta-se nas suas raízes radicalmente diferentes das quais surge historicamente. Por outro lado ela é, como já mencionei, a solução final para uma longa luta por uma nova integração do espaço pictórico (ARNHEIM, 2000, p. 271). A perspectiva central ocorreu como um aspecto da busca de definições objetivas corretas da natureza física – uma pesquisa que surgiu durante a Renascença, a partir de um novo interesse pelas maravilhas do mundo sensório, e levou às grandes viagens de exploração bem como ao desenvolvimento da pesquisa experimental e a padrões científicos de exatidão e verdades (ARNHEIM, 2000, p. 271). E aqui abrimos um elucidativo parêntese para depois voltarmos a essa questão: não seria, portanto, à toa que Brasília viesse a ser notada também pelos místicos como um lugar especial e central no mundo atual e futuro, estando isso 146 inclusive nas previsões religiosas e videnciais esotéricas que lhe dariam uma cada vez mais forte mística e religiosidade. Assim como ocorre em Jerusalém, ao nível tenso-triádico da religiosidade judaico-cristã, no Distrito Federal, ao nível do pacífico-ecumênico, seitas e outras denominações de variadas crenças, desde as mais tradicionais às mais esotéricas, como a católica, a protestante, as neoprotestantes e as holísticas, teofísicas e xamânticas, reforçariam na capital brasileira, com o translado, povoamento e afirmações templárias, o seu caráter de também ser uma terra prometida. De acordo com uma dessas profecias, já por demais conhecida, mas relatada de maneira fervorosa e mística por uma taróloga numa interessante história urbana contada pelo jornalista Francisco de Moura Pinheiro (1998, p. 147-157), num dia quando resolveu sair a flanar pela cidade. A história dá conta que o santo da Igreja Católica Giovanni Melchior Bosco, ou simplesmente Dom Bosco (1815-1888), em 1882 teria tido a visão, através de um sonho, de que entre os paralelos 15º e 20º do Hemisfério Sul haveria um leito muito largo e extenso que partia de um ponto, onde se formava um lago. “No momento da visão, uma voz se fez ouvir repetidamente, afirmando que quando escavassem as minas escondidas no meio dos montes do lugar apareceria ali a Terra Prometida, onde jorraria leite e mel, surgindo uma riqueza inconcebível” – disse a taróloga, segundo Pinheiro, confirmando assim uma história que fez desde o seu princípio Brasília ter como padroeiro Dom Bosco, em memória de quem Niemeyer projetou a Ermida Dom Bosco, uma pequena capela em forma de pirâmide egípcia, revestida de mármore branco. A Ermida foi construída em 1957, sobre uma plataforma de lajes, às margens do Lago Paranoá, exatamente no ponto de passagem do paralelo 15º. Além de um marco da cidade, é um marco da profecia. 147 Outros relatos de fé, reais e imaginários, tendo Brasília como o ponto central dos construtos sociais, também levariam seitas e religiões a aumentar sua crença exotérica e principalmente esotérica na cidade mística, predestinada, dividindo assim a cidade entre a cidade dos burocratas, para a qual foi criada, e a cidade dos místicos, que voluntariamente a ocuparam, como nos mostra o interessante documentário de LeBrun (2001). Alguns desses relatos, segundo Pinheiro (2006, p. 157), são: a coincidência de vida e morte entre Akaton, faraó egípcio da XVIII dinastia, que fez a primeira cidade planejada do mundo, Aton, e Juscelino Kubitschek, que como Akaton viveu apenas dezesseis anos após a construção da cidade e igualmente sofreu uma morte violenta; a simbologia da catedral da cidade, que possui profetas postados à sua frente da mesma forma que os deuses do Set I do Antigo Egito em frente de um templo; a visão do Sol nascente no dia 21 de abril dentro do Congresso Nacional que ocorre da mesma forma que dentro do sarcófago de Juscelino no Memorial JK; a semelhança de forma entre a pirâmide de Queóps e o Teatro Municipal; a posição geométrica das grandes construções da cidade, em forma de triângulo e que lembra a estrela de Davi, ou seja, todos os poderes constituídos de Brasília estão dentro de uma triangulação, o que criaria “uma alusão direta com o macrocosmo”; uma semelhança entre o prédio do CNPq e o Ramsium de Ramsés XIX; e o traçado da cidade que, além de ser uma cruz, símbolo máximo das religiões cristãs, lembra um pássaro “voando para algum lugar e servindo de transição para uma nova era”. Dentre estas, destaquemos apenas uma: a que diz respeito à coincidência entre Juscelino Kubitschek e o faraó Akaton. No primeiro volume de seu livro autobiográfico Meu caminho para Brasília, o ex-presidente fala de uma importante 148 e decisiva viagem, muito antes de ser presidente, que fez à Europa e ao Oriente Médio. O relato é curioso. JK tinha 27 anos e era recém-formado em medicina. Precisava se especializar em urologia em Paris. Amealhou dinheiro e partiu para a “cidade luz”. Depois do curso, resolveu conhecer outras cidades do Mediterrâneo. Ao chegar ao Egito, a visão se constituiu num “espetáculo inesquecível”. Juscelino diz que se lembrou de Amenófis IV, ou Akhenaton (e não Akaton), o faraó visionário que aprendera a admirar desde suas primeiras leituras quando ainda tinha uma vida muito humilde em Diamantina. “Apesar da minha formação religiosa, não escapei ao fascínio daquela estranha personalidade, misto de sonho e audácia, cuja obra de reformador constituiu, durante algum tempo, uma das preocupações do meu espírito”, diz Kubistchek (1974, p. 111). JK se detém a explicar outros detalhes do monarca, demonstrando bastante conhecimento sobre o personagem. Diz que Akhenaton foi considerado pelo egiptólogo J. H. Breastead como “a primeira personalidade da história da Humanidade”, governou entre 1375 e 1358 a.C., que foi o responsável pelo fim do culto de Amon e que acabou com o politeísmo confuso da religião tradicional. O faraó compreendera também, prossegue Juscelino, que só subverteria a tutela milenar dos sacerdotes se transferisse a capital do Egito de Tebas para um lugar mais estratégico. O nome dessa nova cidade seria Ekhenaton, a “Cidade do Horizonte de Aton”. Reparemos como JK descreve o processo de construção da nova cidade egípcia e veremos porque os místicos de Brasília hoje têm suas razões para acreditar mais em inspiração, desígnios e coincidências e menos em determinação das condições históricas. O plano de transferência, apesar de tão recuado no tempo – quase quatro mil anos atrás –, foi levado a efeito com uma técnica e planejamento dignos do século XX. Arquitetos foram 149 mobilizados. Artífices vieram de todas as partes do Império. Engenheiros, astrônomos, técnicos em hidráulica, britadores, escultores, pedreiros especializados foram mobilizados. O local escolhido foi Tell Al-Amarna, um vale situado entre o Nilo e as encostas rochosas do deserto. A mudança da Capital coincidiu, também, com a mudança do próprio nome do monarca. Amenófis IV foi substituído pelo de Akheton, “Aquele que agrada a Aton” (KUBITSCHEK, 1974, p. 111). Voltemos agora à questão da importância morfológica da cruz com suas linhas gráfico-territoriais: como elemento demarcador da centralização nacional de Brasília, configurando como gesto inicial e basilar o partido de Lúcio Costa, assim como de todo o traço arquitetônico de Niemeyer, ganha um sentido mais amplo se analisarmos a sua concepção primária do ponto de vista perceptivo, morfológico. Trata-se de um encontro simples de dois segmentos de retas, um na vertical e outro na horizontal, que, no entanto, nos dizem mais. Mais do que o resultado de dois impulsos manuais. Segundo Frutiger (1999, p. 11), “a facilidade com que se desenha uma cruz fez com que esta se tornasse o sinal mais empregado universalmente. É usada para marcar, contar, assinar e até jurar”. Por isso, continua autor, vem a ser o sinal mais abstrato e mais simétrico que existe, e a partir do qual se criou e pode criar inúmeros outros sinais, emblemas, símbolos e projetos, como o foi, por exemplo, a suástica (existente desde a pré-história e da qual se apropriou a doutrina nazista), e, acrescentaríamos, os dois simples riscos do partido de Lúcio Costa para Brasília. A cruz poderia ser nomeada como o “sinal dos sinais”. Como dito anteriormente, o ponto de intersecção entre as duas linhas traz algo de abstrato, na verdade invisível, porém tão preciso, que matemáticos, arquitetos, geógrafos, geólogos, entre outros, utilizam-no freqüentemente para designar a posição exata de um ponto (FRUTIGER, 1999, p. 29). Frutiger ressalta, como se vê, o caráter demarcador do centro pela cruz. Algo que está presente nas culturas, mitologias e crenças de várias civilizações, 150 como ele mesmo demonstra através de uma diversidade de desenhos feitos em inúmeros tipos de suportes ao longo da história por vários povos. São desenhos que invariavelmente possuem como característica principal o encontro das linhas vertical e horizontal, refletindo assim um equilíbrio máximo através do encontro dual entre os sentidos do ativo e do passivo. Possuem, desta forma, a base sígnica essencial da centralização que reflete, em praticamente todas as culturas – a despeito da variedade –, a identidade, o cosmos, o espaço vital, a vida. “Para indicar o centro”, diz Frutiger (1999, p. 241), “tornou-se [a cruz] o símbolo das mais diversas mitologias”. E acrescenta: “A extrema simplicidade de sua estrutura é certamente a razão de sua disseminação pelo mundo”. Não seria difícil, assim, imaginar que a cruz, como símbolo da fé cristã, incorporasse também as dimensões do plano (Terra) e do infinito (Céu), dispostos num religare simbólico entre os indivíduos e Deus. Tanto que, conforme podemos ver as imagens e saber ainda em Frutiger (1999, p. 243), “desde a Idade Média, o cristianismo apoderou-se desse símbolo, que acabou sendo transformado num signo básico em todos os campos de aplicação, como na decoração, na heráldica, na sinalização etc.”. Apesar da percuciência e do alcance dessa análise, a morfologia do projeto urbano de Brasília aprofunda à análise essas premissas frutigerianas. Lúcio Costa conseguiu imprimir em seu partido algo mais que o simples cruzar retilíneo de linhas. Foi além do milimétrico que na escala do real chega ao quilométrico – com todas as implicações daí decorrentes, posto, como é óbvio, no concreto os indivíduos viverem e se relacionarem. Tal atitude teve, assim, como não poderia deixar de ser, reflexos sociais significativos. Essa diferença reside no fato de que a linha horizontal do desenho após se cruzar exatamente no centro da linha vertical 151 sofre uma ligeira inclinação para trás em ambos os lados a partir do vórtice. Isso dá a sensação de movimento no partido; de que há uma forte impulsão para frente em todo o projeto. Em outras palavras: o eixo horizontal na verdade é uma linha curva que, ao cortar o eixo principal, o chamado pelo próprio Lúcio Costa de “Eixo Monumental”, exatamente em seu centro, formando a escala gregária de Brasília (a rodoviária é o seu símbolo máximo e fica exatamente nesse ponto), sem deixar, portanto, de ser uma cruz, em sua pureza e primariedade, faz emergir toda dinâmica do projeto, inclusive naquilo que lhe é o mais esplendoroso, monumental. O eixo horizontal cria assim as denominadas – talvez por isso mesmo – Asa Norte e Asa Sul, onde estão as residências dispostas em superquadras. O sentido de que a impulsão é para frente (Leste) reside no fato de que o deslocamento curvilíneo do eixo horizontal está em sentido oposto à parte superior do Eixo Monumental, também conhecida popularmente como “cabine do avião”, ou seja, onde se localiza tudo aquilo que lhe dá a qualidade de grandioso, extraordinário: os Ministérios, a Praça dos Três Poderes e ao redor desta os edifícios-sede dos três poderes nacionais republicanos, o Palácio do Planalto (Executivo), o Congresso Nacional (Legislativo) e o Tribunal de Justiça (Judiciário). Na cruz e no modo de centralização de Costa temos assim não só o princípio do ativo e do passivo juntos. Isto por si só já lhe conferiria um inevitável equilibro, uma tranqüila harmonia e a mais perfeita simetria, através de toda carga de pureza que esse símbolo por si somente já proporcionaria. Mas temos também o encontro igualmente dual dos princípios do fixo e do flexível, do retilíneo e do semicircular, o que lhe acrescenta um maior e mais forte dinamismo, algo praticamente impossível de ocorrer nas cidades somente enxadrezadas ou só concêntricas e circulares, como a aquela que seria rodeada por indústrias, pela a natureza etc. e entrecortada por vias de 152 circulação, como a Cidade-Jardim, proposta pelo jornalista inglês Ebenezer Howard, implantada na Inglaterra, e sobre a qual nos fala, ao mesmo tempo em que faz uma crítica ácida aos seus fundamentos, a também jornalista Jane Jacobs (2001, p. 1-26). Trata-se, desta forma, do mesmo dinamismo que vamos encontrar quando da junção das linhas retas e curvas nos desenhos, artefatos e outros construtos de Niemeyer no interior do projeto do próprio Lúcio Costa. Uma coerência dialógica e evidente, portanto. O que tudo isso tem a ver, porém, com a diagramação jornalística do Jornal do Brasil? Tal relação é o que pretendemos demonstrar daqui para frente, incluindo, além daquilo que se relaciona com o já visto até agora, outros elementos e dados sócio-morfológicos que fazem nossos objetos se entrelaçarem ainda mais no tempo e no espaço. Comecemos, portanto, pelo que foi exposto até agora. O projeto de planificação de textos e imagens do JB foi elaborado e implementado na mesma data e, portanto, dentro das mesmas condições sócio- históricas do projeto urbano/arquitetônico de Brasília. Possui, por isso, em comum, muito das mesmas características ideológicas, culturais e morfológicas. Trata-se, por exemplo, o projeto do JB, de um dos marcos mais importantes na história do Jornalismo Moderno brasileiro, assim como Brasília se constitui em um dos marcos mais importantes da moderna arquitetura brasileira. Nesse aspecto, quanto ao projeto do Jornal do Brasil, vejamos o que diz Washington Dias Lessa, professor da Escola Superior de Desenho Industrial e um dos pesquisadores que melhor estudou o projeto do JB. A reforma do Jornal do Brasil, iniciada em 1956 e consolidada 153 nos primeiros anos da década de 60, faz parte do conjunto de iniciativas que resultam na implantação do jornalismo moderno no Brasil do pós-guerra. Possui, historicamente, caráter exemplar, não só pela qualidade do jornalismo desenvolvido, como também pela eficácia mercadológica das mudanças, medida pelos significativos aumentos de tiragem. Do ponto de vista da história do design no Brasil, também é um marco importante. A força e a consistência da nova caracterização visual do jornal evidenciam o papel estruturador que o raciocínio gráfico teve dentro da iniciativa propriamente jornalística (LESSA, 1995, p. 17). Segundo Lessa, os dois principais pensadores e implementadores do projeto de reforma gráfica do Jornal do Brasil – assim como foram em número dois os principais de Brasília – foram o artista plástico e escultor Amílcar de Castro e o jornalista e editor Jânio de Freitas. E da mesma forma que também há no projeto da Capital Federal precedentes sócio-culturais, “o Jornal do Brasil dos anos 1950 é o resultado de uma política empresarial iniciada em 1921”. Por volta desta última data citada por Lessa (1995), encontramos, no campo estético, assim como encontramos nos antecedentes de Brasília, a Semana de Arte Moderna de 1922 a produzir um divisor de águas na cultura brasileira, com reflexos futuros no campo plástico do jornalismo brasileiro. Trata-se de algo que por sua vez foi precedido pelas mudanças que se operaram na esfera do político-industrial e que repercutiram na postura da imprensa, em seu modo de fazer jornalismo (função) e em seu modo de produzir jornal (mercadoria), assim como ocorreu na arquitetura e no urbanismo, e possui suas raízes fincadas no fim do século XIX e início do XX. Vejamos no que diz respeito ao JB dessa virada do século até o início dos anos 1920: em 1891 o Jornal do Brasil é fundado por Rodolfo Dantas; em 1893 é o pioneiro na publicação de caricaturas e história em quadrinhos; em 1912 publica pela primeira vez uma página de esportes; em 1916 é um dos primeiros a usar máquina de escrever na redação; por volta deste mesmo ano já possui o maior parque gráfico da imprensa brasileira; em 1918 é adquirido pelo Conde Papalino 154 Ernesto Pereira Carneiro; em 1921 passa a publicar de maneira inédita na imprensa brasileira aquilo que iria lhe marcar pelas décadas seguintes, os anúncios classificados na primeira página. Assim, a trajetória do JB reflete o percurso da modernidade brasileira desde o final do século XIX até meados do século XX (época da inauguração de Brasília), quando se verifica a transição da pequena para a grande imprensa. E isso ocorre porque desde então os jornais se organizaram como empresas capitalistas de pequeno ou médio porte, período em que incorporaram as mais novas e revolucionárias tecnologias na história da imprensa mundial, como as máquinas de escrever, de composição, de transmissão, de fotografar e de impressão – algo similar ao ocorrido na construção civil, que passou a inserir as mais novas tecnologias de cálculos e de materiais de suporte, de estrutura e de textura, com possibilidades diretas para a ousadia, a inovação e o arrojo da arquitetura e do urbanismo. Em ambos os casos foram exigidos mais profissionalismo e responsabilidade. Os jornalistas, mesmo famosos e reconhecidos, deixaram de ser meros diletantes e apaixonados, ou seja, apenas autodidatas com grande ou pequena vocação, assim como o foram muitos dos arquitetos nesta atividade, dentre os quais o próprio Le Corbusier, para se tornarem especialistas formados através de cursos que foram oficialmente se afirmando e sendo oferecidos pelo Estado. Em tal processo de modernização da imprensa (e da arquitetura brasileira), mais exatamente no ano de 1954, com a morte do Conde Ernesto Pereira Carneiro, assume o Jornal do Brasil a esposa deste, a Condessa Pereira Carneiro que, a partir de uns primeiros passos já iniciados um ano antes, em 1953, no sentido de 155 aprofundar a modernização no campo estético-cultural do JB, como, por exemplo, com a criação de uma página feminina que também tratava de assuntos culturais, a empresa abre enfim caminho para a implementação definitiva de uma reforma que espelharia a modernidade estética dos novos tempos. Isso se dá principalmente através da criação, em 1956, do Suplemento Dominical do Jornal do Brasil (SDJB), cujo enorme sucesso editorial e de público, como diz Lessa (1995, p. 20), foi provavelmente o “que inspirou a Condessa a tentar mudar inteiramente as feições do jornal” pelos anos seguintes. Para tanto, contrata o jornalista Odylo Costa, filho, que busca implementar a reforma gráfica e ao mesmo tempo iniciar os primeiros passos de um jornalismo moderno que, no que diz respeito à feitura do texto, já vinha sendo implantado no Diário Carioca por Pompeu de Souza. Tratava-se de um estilo novo de se produzir e se publicar notícias, inspirado no modelo norte-americano. Tal modelo consiste basicamente em dispensar dos títulos e principalmente dos textos os floreios, o tom laudatório, o rodeio enciclopédico, enfim, o nariz-de-cera tão comum na imprensa do início do século, e a partir do lead (primeiro parágrafo de uma notícia de jornal), construir uma “pirâmide invertida”, ou seja, seguindo os critérios de importância, proximidade, imparcialidade, precisão, clareza e objetividade, responder logo, de pronto, no lead, de forma inteligente e atraente, às seis perguntas básicas de quaisquer modalidades de notícias ou gêneros de reportagens jornalísticas, quais sejam: o quê?, quem?, quando?, onde?, como? e por quê? A notícia ganharia assim a dimensão da expressão das iniciais em inglês de news: north, east, west e south. A partir do lead, então, ainda seguindo a “pirâmide invertida”, poder-se-ia ir descendo aos detalhes da notícia ou da reportagem 156 escolhidos pelo grau de interesse público. Desnecessário dizer que, por esses critérios, no interior dos textos, as instâncias de verdade, do contraditório, da ética, da linguagem e da rapidez estariam sendo melhores cultivados e observados, afora a subversão à cronologia dos acontecimentos noticiados, que agora ficaria subordinada ao êxtase dos fatos e não somente ao seu desenrolar temporal. No design dos jornais de então, o impacto de tal modernidade, voltada para o conteúdo dos textos e para os aspectos éticos, morais e comportamentais dos profissionais envolvidos, também foi muito grande, especialmente a partir da reforma gráfica pioneira do Jornal do Brasil. O mesmo princípio da “pirâmide invertida”, por exemplo, se aplicaria ao layout das páginas internas, onde as matérias mais importantes ficariam na parte superior e as de menor importância na parte inferior até à base. Jornal é “da esquerda para a direita e de cima para baixo”, diz Amílcar, segundo Lessa (1995, p. 21). Aplicar-se-ia também esse princípio na capa, que seria a síntese de toda a hierarquia da informação disposta na vertical das páginas internas e nas respectivas editorias e cadernos: a manchete deveria se referir à matéria mais importante de todo o conjunto chamado jornal e as demais chamadas de capa se refeririam às melhores matérias de cada editoria ou caderno. Vale dizer que as editorias e os cadernos surgiram com a divisão no trabalho das redações com a chegada da modernidade. Isso fez repórteres passarem a atuar por áreas segmentadas, como as de política, economia, cidades, geral, internacional, esportes e sociedade. Daí a seqüência lógica dessas editorias dispostas no interior dos jornais também seguirem esse mesmo princípio hierárquico: ao folhear o exemplar o leitor verá aquilo que editorialmente o jornal consideraria como seqüencialmente os fatos mais importantes. Os editoriais, opinião e as notícias de 157 política, por exemplo, consideradas como de maior prestígio, muito comumente estariam nas primeiras páginas internas logo após a capa. A diagramação representava assim a organização e a economia de tempo e de espaços. Esse impacto da modernidade através da diagramação, e que teve seu auge no JB, começara lentamente da imprensa brasileira no século XX, entretanto, no jornal Última Hora, do jornalista Samuel Wainer (1993), fundado em 1951 para defender Getúlio Vargas, passando a ter edições impressas em várias cidades brasileiras, pode-se identificar uma das suas mais importantes raízes. Wainer foi quem trouxe da Argentina para o Brasil alguns dos primeiros diagramadores do país, segundo ele mesmo explica em seu livro Minha razão de viver, obra em que relata de forma surpreendente e apaixonante a ousadia de um jornalista empreendedor, próximo ao poder e ligado aos principais acontecimentos da época. Esse fato é confirmado tanto por Lessa (1995, p. 38) quanto pelo próprio Amílcar de Castro numa entrevista inédita concedida em 1977 ao jornalista Eustáquio Augusto dos Santos e que ficara adormecida nos arquivos Centro de Pesquisa e Memória do Jornalismo Brasileiro da Associação Brasileira de Imprensa e que veio a público pela primeira vez graças ao resgate dos pesquisadores e designers Trench e Stolarski (2007). Ana Maria de Abreu Laurenza, que escreveu sobre o embate jornalístico entre Wainer e Carlos Lacerda, da Tribuna da Imprensa, também destaca a importância da contribuição da diagramação do jornal Última Hora: Nesse ponto, a Última Hora destacava-se, em termos qualitativos, em relação à Tribuna da Imprensa. Ao adotar uma evolução técnica, por meio de uma diagramação planejada que representava um maior aproveitamento dos recursos humanos e economia de ativos, conseguia oferecer ao leitor um jornal com visual atraente, mais fácil de ler do que a Tribuna, que abrangia vários editoriais e oferecia informação diversificada à população alfabetizada urbana (LAURENZA, 1988, p. 77). 158 No entanto, nesse processo lento de avanço estético no qual se insere a contribuição do UH, dentre outros, muito especialmente a partir dos anos 1920, somente no JB é que o design do jornalismo brasileiro encontraria a sua mais revolucionária transformação. Uma transformação que se daria através da arte da diagramação moderna e seria dela a sua maior expressão – assim como foi a maior expressão da arquitetura brasileira moderna o projeto e a construção de Brasília, cujas raízes igualmente se encontrariam fincadas nos anos 1920, conforme vimos. Outros caminhos fariam a diagramação e a arquitetura se encontrarem como arte perceptiva e de criação de espaços regularmente aprazíveis. O Modulor, criado por Le Corbusier em 1946, por exemplo, tenderia a aproximar ainda mais a página impressa da arquitetura. Pelo sistema do arquiteto suíço, a divisão áurea se aplicaria às escalas e proporções humanas. A divisão áurea é aquela utilizada pelos antigos, através da qual se chegaria às formas mais perfeitas possíveis, como, por exemplo, a do retângulo áureo – o mesmo método aplicado para se obter o melhor formato de algumas folhas de papel destinadas à impressão de jornais. A divisão áurea, ou a Divina Proporção, utiliza princípios matemáticos e geométricos e pode ser identificada com relativa facilidade em importantes construções gregas, como o Parthenon e a Acrópole. As escalas e proporções de Le Corbusier, por sua vez, absorveu o método áureo e se fundam, segundo Hurlburt (1986, p. 81), em três pontos principais da anatomia de um homem de 1,90 m: o plexo solar, o alto da cabeça e a ponta dos dedos da mão erguida. Outros métodos foram aplicados para a melhor divisão das proporções no design, como aquele alcançado através da utilização da Série de Fibonacci (Bonacci descobriu que vários objetos da Natureza seguiam uma mesma seqüência lógica: 0:1:1:2:3:5:8:13:21:34...) e do Princípio de Vitrúvio, que partem, respectivamente, do traçado e do quadrado e 159 estabelecem proporções regulares às massas e ao retângulo através dos chamados “traçados reguladores”, segundo nos mostra Ribeiro (1993, p. 143-181). Ambos podem ser vistos aplicados à geometria do Palácio do Planalto, do Supremo Tribunal Federal, dos prédios dos ministérios desenhados por Niemeyer. Mas o Modulor de Le Corbusier, originalmente destinado à arquitetura e que muito provavelmente se encontra também aplicado à criação de Niemeyer em Brasília, foi para o design gráfico uma contribuição ainda mais incontestável “num período de grande desenvolvimento científico e tecnológico”, como nos diz o próprio Hurlburt. De dois modos principais o Modulor tem contribuído para o design gráfico contemporâneo. Em primeiro lugar o sistema tem aplicação direta no design da página, embora seja de tal forma complicado e tenha tantas e inumeráveis variações que tornam seu uso extremamente reduzido. Em segundo lugar – e esta é provavelmente sua importância maior –, a maneira como o Modulor pode desenvolver designs assimétricos a partir de um meio simétrico tem inspirado designers gráficos na criação de diagramas e sistemas de design da página impressa (HURLBURT, 1986, p. 81). Faz-se necessário, agora, esclarecermos alguns pontos da diagramação moderna, ressaltando os seus aspectos técnicos – além de arte plástica, conforme vimos tratando até agora – para melhor entendermos a sua relação com a arquitetura e o urbanismo, inclusive quanto à questão da centralidade, já discutida acima. Diagramação é uma atividade intelectual que decorre das exigências perpetradas pelas novas tecnologias de composição e impressão de textos e imagens. Por isso a feitura da página deixou de ser feita pelos próprios compositores manuais nas oficinas gráficas, os armadores, como ocorrida desde Gutenberg no século XV, e ascende às redações, em meados do segundo quartel do 160 século XX. Com a profissão de diagramador assim estabelecida poder-se-ia agora calcular matematicamente os textos originais feitos pelos repórteres, colunistas, editorialistas e demais jornalistas e colaboradores das redações, além de outros elementos da diagramação, como a fotografia. E em seguida programá-los para serem compostos e depois colados pelos paginadores, arte-finalistas ou pestapeiros. Somente a partir daí é que seriam impressos, conforme os vemos nos jornais, revistas e livros. Expliquemos de forma mais detalhada, baseados em vários autores, como Amaral (1982), Amaral (1982ª), Collaro (1987), Craig (1987), Ribeiro (1993), Silva (1985) etc. e em nossa própria vivência profissional nas redações. A composição de textos, depois de ser feita por mais de quatro séculos manualmente, utilizando-se dos tipos móveis de madeira e depois de ligas metálicas, passou a ser feita a quente, ou seja, através da linotipo. A linotipo foi inventada em 1886 nos EUA e amplamente usada no Brasil até décadas atrás, quando da chegada definitiva dos computadores. Chamava-se a quente porque a linotipo utilizava uma pequena fundição. Depois a composição passou a ser feita a frio, quando da introdução da fotocomposição, que combinou o processamento datilográfico e o fotográfico. A fotocomposição acabou também com a chegada definitiva dos computadores e com estes a composição e posteriormente a diagramação virtual. Todo esse avanço tecnológico sofreu outra grande revolução com a invenção da impressão offset. As primeiras máquinas desse processo surgiram em 1959 nos EUA. Baseava-se no princípio de que água e gordura não se misturam. Também continha outra inovação. Se antes todas as formas de impressão de uma matriz em um suporte era objetivamente direta, com a invenção 161 da impressão que utilizava um sistema de cilindros de pressão, contra-pressão e de impressão de uma matriz sensibilizada com tinta para uma blanqueta (cilindro revestido de borracha, o caucho), a impressão agora seria indireta, fora de contato, ou seja, a matriz não imprimia diretamente sobre o suporte, no caso, o papel – daí o nome offset. A rapidez desse sistema, porém, proporcionada pela velocidade dos cilindros, bobinas e os conjuntos de molhas e de tinteiros automáticos, era incrivelmente alta, especialmente em comparação às formas anteriores de impressão, sendo até os dias de hoje a mais utilizada pela indústria gráfica. O impacto da impressão offset nas Artes Gráficas, assim, foi enorme, alcançando, inclusive com a qualidade e aplicação de cores, o design e a diagramação. Paralelamente a esses avanços, os textos originais passaram também a ser redigidos em laudas e com máquinas de escrever ao invés de serem manuscritos nas antigas “tiras”. Isso proporcionava uma melhor contagem de toques. Uma lauda padrão possui normalmente 30 linhas e 70 caracteres tipográficos em cada linha, contando com os espaços em branco, totalizando assim cerca de 2.100 toques. Caso um texto fosse de 3 laudas, por exemplo, facilmente o diagramador chegaria a um resultado mais ou menos preciso: 6.300 toques. Tais textos originais seriam dessa forma projetados como massas de textos virtuais no diagrama. O diagrama é uma folha de papel do mesmo tamanho da página do jornal, numerada de forma crescente e decrescente nas laterais e entrecortada por linhas verticais, formando as colunas e os espaços entre elas, e por linhas horizontais, formando as guias. Essas linhas, levemente impressas, definem assim, em módulos, os espaços em branco, os espaços dos textos, das fotos etc., simulando desta forma como deverá ficar a área de impressão da página do jornal. 162 E este é o trabalho do diagramador: projetar como esses elementos irão ficar depois de impressos. Para fazer tal projeção, que seria representada no diagrama por rascunhos e retrancas, referentes aos elementos da diagramação (textos, fotos, antetítulos, títulos, subtítulos, legendas, vinhetas, fios ou linhas, adornos, anúncios etc.), o diagramador utilizava-se de régua de centímetros, régua de toques, tipômetro, catálogo e réguas de fontes, tabelas de conversão, lápis de cores e papel para os cálculos matemáticos. Os cálculos vieram a ser facilitados depois com a inserção da máquina de calcular. Em algumas redações os diagramadores, os arte-finalistas e paginadores faziam uso da mesma prancheta utilizada pelos arquitetos. Sobre a seqüência desse processo, Collaro (1987, p. 9) chega a dizer: “A diferença entre diagramação e paginação pode ser comparada à diferença entre construção e arquitetura; resumindo, diagramação é um estágio anterior à paginação” Assim, para os cálculos, o diagramador levava em conta as larguras das colunas, os tamanhos dos tipos (corpos), o entrelinhado das fontes em que os originais iriam ficar e a quantidade de toques dos textos originais. Para isso utilizava-se de uma das duas unidades gráficas de medidas, o milímetro e o ponto tipográfico americano ou o ponto tipográfico anglo-saxão. Uma paica são doze pontos americanos, um cícero são doze pontos anglos-saxões assim como um centímetro são dez milímetros – e assim eram mais conhecidos e aplicados. Uma pica ou um cícero equivale a 0,4512 do centímetro (ou 4,512 milímetros). O diagramador aqui se equivaleria na arquitetura ao engenheiro calculista? Estaria para o editor assim como o calculista estava para o arquiteto? 163 Talvez sim, talvez não. O fato é que toda a projeção, calculada, era feita no sentido de estabelecer como iriam ficar em estruturas visuais todos os elementos da diagramação. Com o uso do fotolito para o sistema offset na oficina gráfica foi possível ampliar ou reduzir proporcionalmente as fotos, ou utilizar-se de outros recursos, como a inversão e a solarização (negativo), todos agora à disposição da decisão intelectual do diagramador e do editor na redação. Assim ampliava-se a linguagem da mancha gráfica, ou seja, tudo aquilo que o leitor finalmente vê impresso e que assim só é possível de ocorrer pelo contraste dado pelo papel em branco com a oposição da tinta escura. E aqui um detalhe: o que o leitor vê impresso, a mancha gráfica, vê como uma arquitetura. Literalmente: uma arquitetura da informação, como já discutimos acima. Uma arquitetura que é vista antes mesmo do leitor descer ao conteúdo da mensagem, ou seja, antes de decifrar os códigos signo-venaculares e/ou texto-gramaticais ali dispostos e disponíveis e saber do seu conteúdo em permanente transmissão. A leitura visual, assim, como diz Dondis (1997), precede a leitura textual. Uma leitura na qual está contido todo um processo racional, codificado e inteligível de confecção, diagramação, composição, impressão, enfim, de edição em que tudo fora construído, destruído e reconstruído por inúmeras vezes até se chegar àquele produto final, como nos lembra Parente et alii (1993). A mesma leitura visual que se faz ao se mirar e se delinear uma cidade, cidade tida como texto, texto histórico e reescrito por várias vezes no tempo e no espaço, como nos explica didaticamente Rolnik (1988), ou a cidade midiática, a cidade literária, de espaços de comunicação, como nos mostra Pryston et alii (2006). Neste caso, a imagem do palimpsesto, pergaminho próprio dos primórdios das Artes Gráficas, não poderia deixar de ser a melhor analogia para a história das cidades. 164 Mesmo superadas hoje muitas coisas desse processo evolutivo do design da diagramação, algumas das que permaneceram ou se aperfeiçoaram ainda se mantêm ou voltaram a se manter de outras formas imbricadas com a arquitetura. Note-se, por exemplo, que a diagramação deixou de ser feita materialmente, ou seja, diretamente na folha de diagrama, e passou a ser feita no computador. Isso também ocorreu com a arquitetura. Deixou a prancha e foi para o virtual. Assim, ambos são feitos por programas de computador, sendo os mais utilizados, respectivamente, o IndDesign e o AutoCad – ambos produzidos por uma mesma corporação, a Adobe Systems Incorporated, que também produz o Photoshop, programa utilizado também tanto pela diagramação como pela arquitetura para o tratamento de imagens. Não seria de estranhar, portanto, que nas páginas de jornais esses dois campos, aparentemente tão díspares, voltassem novamente a se encontrar, através da diagramação jornalística cotidiana e dos anúncios também cotidianos de vendas de casas e apartamentos, em cujos reclames classificados ou em páginas inteiras e coloridas de propaganda se afigurem prédios, condomínios, paisagens, ambientes, cômodos etc. feitos pela arquitetura para o setor imobiliário das cidades – sendo este último, ou seja, a publicidade imobiliária, um importante fenômeno do capitalismo avançado, constituindo-se inclusive num significativo objeto de estudo de pesquisadores que buscam compreender relações, causas, tendências, ocupações e exclusões perpetradas pelo mercado imobiliário urbano, como o faz Loureiro; Amorim (2006) num interessante trabalho. Um fenômeno, portanto, aperfeiçoado e que une Comunicação e Arquitetura, mas que se funda num passado, no presente caso, não muito distante. Quando da inauguração de Brasília, por exemplo, foi a 165 diagramação moderna que afigurou na primeira página do Jornal do Brasil, no dia 21 de abril de 1960, sob o título “Brasília é feita Capital”, com todas as outras informações sobre talvez o mais marcante acontecimento para a Arquitetura Moderna brasileira (LESSA, 1995, p. 32). Dadas estas explicações panorâmicas sobre as funções e as ferramentas técnicas da diagramação jornalística, alinhando-as em alguns nós à cidade e à arquitetura moderna, aprofundemos agora, com este mesmo propósito, a questão da centralidade. Aquela mesma que nos faz dizer que se Brasília “não tem nem nunca teve um centro”, o chamado “Centro da Cidade”, aquele que possibilitaria sociabilidades, o burburinho e o footing, e que tem apenas algumas centralidades sociais localizadas mais nos Centros Comerciais Norte e Sul, como defende Silva (2008) – e como defende também Castells (2000), baseado em seus estudos sobre algumas cidades da Europa e dos EUA, quando afirma que o “centro da cidade não é o geográfico”, mas onde se concentra o poder financeiro, comercial, enfim, do capital –, ou seja, se não existe um centro no sentido tradicional, existe de fato um centro geomorfológico revestido com toda sua indumentária de realidade, da história, imaginação e contemporaneidade. Um centro com um sentido deliberadamente moderno, algo inclusive reconhecido por Silva, Castells e outros autores, e que deriva de uma promoção estético-estratégica. Trata-se de um centro interseccional, carregado de significado gráfico-histórico, conforme vimos, e que, de maneira prática, o faz distar, no caso de Brasília, a partir da Rodoviária do Plano Piloto, 7 km da extremidade da Asa Norte, 7 km da extremidade da Asa Sul, 7 km do Terminal Rodoviário do Cruzeiro Velho, 20 km do Lago Sul e 30 km do Lago Norte – medidas, dentre outras, infinitas e variadas, algumas das quais estudadas 166 por pesquisadores como Holanda (2007), que faz comparações escalares inclusive com obras da tradição do “grande desenho”, como Teotihuacán e Zócalo (México), San Pietro (Roma) e Champs Élysées (Paris). Um centro, como se vê, mais que matemático; um centro morfológico, sintático-visual, geográfico-cultural. Essa qualidade de Brasília também se expressa no design. E se funda na diagramação brasileira mais ou menos na mesma época da consecução da Capital Federal. Embora com características e finalidades próprias, segue visualmente o mesmo princípio e o mesmo sentido morfológico: a atração visual e a facilitação social em vários níveis. No diagrama, há o centro da página demarcado por uma cruz abstrata que ao mesmo tempo define os Quadrantes. “Uma forma simples de diagramar e atingir um resultado satisfatório é dividir a página em quatro módulos, ocupando os espaços simetricamente” – explica Collaro (1987, p. 75). Collaro, sem saber, faz referência ao mesmo gesto primário de Lúcio Costa quando desenhou Brasília. Essa cruz do diagrama também define as chamadas Zonas Ópticas (ZOs) Primária (canto superior esquerdo), Secundária (canto inferior direito) e as Mortas (cantos superior direito e inferior esquerdo). Ou, como chama Silva (1985, p. 46- 49) e Erbolato (1981, p. 63-65), Zonas de Visualização. Nelas aconselha-se a distribuir, pelo grau de importância, e respeitando os módulos, os elementos da diagramação, de forma que sigam o processo de leitura da esquerda para direita e de cima para baixo, evitando as linhas que coincidem com as dobras do jornal. Estas linhas são as mesmas da cruz que demarcam os módulos. Assim, ficaria inapropriado, por exemplo, colocar um título exatamente por sobre a linha horizontal, pois a dobra não o deixaria ser totalmente visto. Tal princípio também vale para a publicidade – daí vermos anúncios ocupando ora um, ora outro módulo 167 (1/4 de página), ora dois combinados (2/4), que é o mesmo que meia página (½), ora os quatro módulos (4/4), que por sua vez é a página inteira (1 p.). O mesmo procedimento vale para o processo decrescente. Ou seja: os módulos podem ser igualmente subdivididos em pequenas partes até se chegar ao menor tamanho possível. Isso quer dizer toda a página ser dividida em pequenas partes proporcionalmente iguais. Neste caso teremos variadas frações como rodapé, meio rodapé etc. Todos medidos por centímetro por coluna (cm x col.), sendo a largura da coluna, como já dissemos, medida em paica ou cícero. A página, assim, adquire a trama de um grande e fracionado módulo. Curiosamente, este é o mesmo nome – Módulo – de uma revista lançada por Niemeyer em 1955 para se discutir a arquitetura brasileira, o que, de certa forma, o aproxima do jornalismo, tendo em vista que, segundo Pereira (1997, p. 116-117), ele adorava ler e escrever, e também da própria diagramação jornalística, já que o design de sua revista seguia a mesma tendência de modernidade verificada no jornalismo de então. A cruz, assim, como elemento definidor de módulos, serve também para demarcar, como nos mostra Oliveira (apud Ribeiro, 1993, p. 167-170), o Centro Geométrico (exatamente o ponto de interseção das linhas, ou seja, o centro da página), o Centro Ótico (sempre um pouco acima do Centro Geométrico e que parece seguir o princípio proporcional da divisão áurea) e os chamados Pontos Fortes (que se situam exatamente na interseção das quatro linhas quando postas para dividir proporcionalmente a página em pequenos retângulos tanto na vertical quanto na horizontal. Pode-se ver, como já dissemos, que está presente na consecução de Brasília aquela cruz inicial, primária, e que fez Lúcio Costa assim se expressar, quando se referiu ao Plano Piloto, segundo Pereira (1997, p. 153): 168 “Nasceu de um gesto primário de quem assinala um lugar ou dele toma posse: dois eixos cruzando-se em ângulo reto, ou seja, o próprio sinal da cruz...” Baseado nisso, poderíamos pensar também que o centro de Brasília definido pelos dois eixos de Lúcio Costa é o Centro Geométrico e que a Praça dos Três Poderes com seus edifícios magnânimos em volta, o “cockpit”, é o Centro Óptico. Além desse fundamento primário, contudo, pode se ver também que outros eixos cruzados, em menor escala, assim como ocorre na subdivisão em módulos dos Quadrantes das páginas dos jornais, subdividem também alguns traços de Lúcio Costa, como as Superquadras, e algumas obras e ambientes de Oscar Niemeyer, como os prédios simétricos e repetitivos da Esplanada dos Ministérios. Aqui ingressamos noutras características símiles entre a arquitetura e a diagramação modernas aplicadas em Brasília e no Jornal do Brasil. Se aquela utiliza preceitos como harmonia, equilíbrio e ritmo, que podem ser verificados através de instâncias como a repetitividade, distribuição equitativa dos “pesos visuais” e a disposição simétrica dos elementos e artefatos arquiteturais sobre e no espaço, como ocorre com a Esplanada dos Ministérios, Palácio do Planalto, Itamaraty, Congresso Nacional e Catedral de Brasília, no Jornal do Brasil de Amílcar de Castro essa aplicação não seria diferente. Colunas, fotos e outros elementos se disporiam seguindo relativamente os mesmos critérios, de tal modo que poderiam permitir, segundo Lessa (1995, p. 50), a “intercambialidade ou substituição de textos”. Isso quer dizer, por exemplo, que uma massa de texto, ou seja, um fragmento de coluna tinha a mesma largura e o mesmo número de linhas que outras perfiladas simetricamente. De tal forma que poderiam vacilar, serem modificadas, aumentadas, transpostas, sem perderem essa característica, pois todas 169 seguiam o mesmo sentido de modificação, guardando a leiturabilidade e a percepção de texto corrido. Os longos espaços de Brasília também guardam correspondência com o JB. Os grandes vazios da Capital Federal, que se sobressaem, inclusive como linguagem, e ajudam a escrever a história da nova cidade moderna, posto se apresentarem imensamente dispostos ao valor de uso, se apresentam também como recursos àquela sensação de equilíbrio social imbricada com o visual. Neste sentido, a intervolumetria fica bastante evidente. A Praça dos Três Poderes, por exemplo, é um espaço amplo e aberto, medindo 120 x 220 metros, de maneira que os prédios que compõem o entorno e representam a instância nuclear e máxima dos três poderes republicanos do país, não se sobressaem um diante dos outros. Isso em respeito ao princípio de que são harmônicos e independentes e, portanto, têm o mesmo peso. No projeto do JB, o espaço em branco se apresenta igualmente como útil e venacular. Isso quer dizer que aquilo que suporta e possibilita, à composição de massas, uma distribuição equilibrada e diametral, portanto, harmônica, rítmica, passa também a ter um novo e mais valorizado papel: ser um elemento mais ativo no conjunto estético da imprensa moderna brasileira. Senão vejamos: O espaço em branco, que tendia a se confundir com o suporte – a folha antes de ser impressa – e funcionar como fundo das “figuras” jornalísticas ou moldura da informação, passa a reagir dinamicamente à colocação dos outros elementos, potencializando plasticamente as massas de texto, fotos e títulos (LESSA, 1995, p. 48). Em algumas obras de Oscar Niemeyer para Brasília – o Palácio do Planalto, o Palácio da Alvorada, o Palácio da Justiça e a Catedral de Brasília – as colunas são mais que a base de sustentação tradicional de arquitraves, lajes, paredes, abóbadas, arcos, edifícios. São objetos frutos de uma revolucionária ousadia artística e funcional 170 desde as dóricas, jônicas e coríntias gregas. Destas, clássicas, Niemeyer subverteu todas as linhas verticais e horizontais. Retirou volutas, arremates, adornos, frisos, caneluras. Transformou ou simplesmente aboliu a base, que passaria agora a ser somente pontiaguda, pousando sobre o solo; o capitel, que seria apenas a ponta de um arco superior, apontando para o cimo; e o fuste, que deixaria de ser cilíndrico, com a esperteza das entasis, para adquirir outra forma, tão inusitada e surpreendente quanto leve e delicada. Nas colunas tradicionais, alcançando as romanas e as islâmicas, entre o capitel e a base seguiam-se sempre no mesmo sentido – com as variações sendo no decorativo-estrutural, ou seja, apenas de natureza estilística. Em Niemeyer, no entanto, essa nova forma, inclusive de colunata, faz surgir um novo códice para a arquitetura universal. A coluna do Palácio da Alvorada, por exemplo, adquire a imagem de uma estrela de quatro pontas, sendo a ponta superior mais alongada que a inferior, e as laterais apresentando-se exatamente iguais, mas se unindo umas às outras por esses prolongamentos. As linhas, ao invés de retilíneas, passaram assim a ser curvas e delgadas. O centro da “estrela” também se projeta para fora, mas muito pouco, dando a impressão de ser apenas uma ponta em prenúncio de saliência. “O espanto é característica primordial da obra de arte, de modo que aqui fiz as colunas no chão, como as colunas do Alvorada, e depois as suspendi, ancoradas”, diz Niemeyer em entrevista a Zubaran (2002, p. 22). A coluna utilizada no Palácio do Planalto, por sua vez, foi a mesma utilizada no Palácio da Justiça. O próprio Niemeyer explica que quis dar a mesma identidade a ambas as construções e representações do poder. Quando eu fiz as colunas do Palácio do Planalto, eu fiz uma arquitetura mais leve. Eu queria que as pessoas passassem por baixo. Eu quis que no outro Palácio, do Supremo Tribunal Federal, acontecesse o mesmo, que o mesmo tipo de exigência ocorresse. Por uma questão de unidade, que as coisas se parecessem. E que tivesse, no conjunto, um denominador comum criado através da disposição dos prédios (ZUBARAN, 2002, p. 22). 171 O fato é que as colunas utilizadas identicamente no Palácio do Planalto e no Palácio da Justiça têm a mesma característica de inovação e lembra as do Palácio da Alvorada. Ao caráter visual novamente se faz acompanhar o político. A diferença é que, se aquelas parecem como estrelas enfileiradas (falam também em semelhança com uma árvore existente na região), chegando a ser o símbolo de Brasília, aqui parecem mais velas ao mar. Não seria assim tão gratuito o espelho de água existente em volta do prédio do Supremo Tribunal Federal que as refletem ao observador. Outra característica em comum, inclusive nas também tão inovadoras colunas da Catedral de Brasília, são as curvas, sinuosas, ousadas, belas. Aquelas mesmas curvas sobre as quais já comentamos acima e que nos fazem lembrar o texto, transformado em O Poema da Curva, já tão conhecido quanto auto-explicativo, do próprio Niemeyer: Não é o ângulo reto que me atrai. Nem a linha reta, dura, inflexível criada pelo homem. O que me atrai é a curva livre e sensual. A curva que encontro nas montanhas do meu país, no curso sinuoso dos nossos rios, nas nuvens do céu, no corpo da mulher amada. De curvas é feito todo o universo. O universo curvo de Einstein (NIEMEYER apud PEREIRA, 1997, p. 126). As colunas do projeto gráfico-editorial do Jornal do Brasil não chegaram a tanto em ousadia. Em grande parte porque as formas de composição de texto à época, ao contrário do que aconteceu com o concreto armado, não possibilitaram que as curvas fossem possíveis. Algo que só veio a ocorrer mais recentemente, quando a diagramação passou a ser feita através de programas específicos de computador. Isso, porém, não tira o mérito das formatações executadas no design das colunas do JB. A principal delas é que as linhas retas da modernidade foram empregadas com mais racionalidade e equilíbrio. De tal forma que as massas e os blocos de composições seguiam um padrão visual lógico. Essa mudança, porém, é lenta e complexa, pois segue a combinação de dois grids, que utilizam, inclusive, e também de forma inovadora, as chamadas falsas colunas, como nos mostra detalhadamente Lessa (1995, 172 p. 50-54). O auge dessa transformação, contudo, vem ocorrer somente em 1959, com a combinação dos padrões internos e externos. A interpenetração simultânea de diagramas diferentes – desdobramento lógico da medida de falsa coluna – também já havia ocorrido no SDJB. Desde meados de 1957 havia sido estabelecido um padrão que combinava um diagrama de cinco colunas de quinze cíceros com um diagrama de sete colunas de nove cíceros. Mas esta solução só vai efetivamente se destacar ao ser utilizada para o redesenho da primeira página, no dia 2 de junho de 1959 (LESSA, 1995, p. 52). Esse novo padrão de colunas também ocorre com a introdução de um novo e exclusivo tipo (letra), escolhido por Amílcar para ser utilizado nos títulos e textos. O JB deixa definitivamente de mesclar caracteres tipográficos, o que impossibilitava a construção de uma identidade visual – a não ser pela própria negação do empastelamento. “O uso de uma única família tipográfica não apenas confirma a intenção de simplificar os elementos formais do jornal, mas também evidencia a preocupação em hierarquizar as informações impressas”, dizem Trench e Stolarski (2007, p. 133), que complementam: “A sistematização garante a uniformidade visual – é gritante aqui o contraste em relação ao uso indiscriminado de diferentes tipos do JB pré-reforma”. A fonte Bodoni – hoje tão acessível – foi adquirida nos Estados Unidos pelo Jornal do Brasil a pedido do artista-diagramador (LESSA, 1995, p. 21). Sua característica é, dentro da classificação universal de tipos gráficos, a que se alinha, entre inúmeras outras, às fontes Quirinus, Mondial, Onix e Didot (RIBEIRO, 1993, p. 62). Ou seja, àquelas que combinam traços finos e grossos em suas hastes e possuem serifas extremamente finas. Um alto contraste. Isso produz refinamento e um mais acentuado equilíbrio e harmonia visuais. São as mesmas fontes que, dentro da classificação feita por Collaro (1987, p. 26), são chamadas de Romanas Modernas. Trata-se de um tipo ideal para publicações voltadas para a vida moderna. Daí serem utilizadas em jornais como Folha da Tarde e revistas como Cláudia, que oferecem em 173 seu conteúdo soluções práticas para a vida cotidiana, ou querem se apresentar em si como impressos refinados. São utilizadas também em publicidades que anunciam produtos novos no mercado e que prometem soluções rápidas e eficientes para o bem- estar e a elegância no dia-a-dia. A Bodoni, contudo, ao pertencer à família da Romana Moderna, descende da família da Romana Antiga. Desta fazem parte a Caslon, Garamond, Baskerville e a Times. São consideradas fontes clássicas, pois se inspiram nos escritos greco-romanos feitos nas lápides e fachadas dos edifícios da Antiguidade. Tanto que hoje são as mais utilizadas para textos na maioria dos jornais e revistas de informação do mundo. A fonte Times, por exemplo, foi criada exclusivamente para a revista Times. Assim, a Bodoni possui não só o espírito da modernidade, mas também a aura do mundo clássico. Com efeito, aqui encontramos outro ponto de convergência entre a arquitetura e o jornalismo. E, por conseguinte, entre Brasília e o JB. As fontes tipográficas derivam do desenvolvimento da escrita, que nasce entre 3 mil e 5 mil anos antes de Cristo, segundo Giovannini (1987), e acompanham a evolução da arte, dentre as quais a arquitetura. Os primeiros registros mostram que os fenícios escreviam sem adornos, arremates e o faziam em desenhos cuneiformes e utilizando bastões – daí a classificação, segundo Ribeiro (1993), de Bastão às fontes desprovidas de quaisquer enfeites e serifas em suas hastes, resgatadas posteriormente pela Bauhaus, conforme nos mostra, dentre outros, Hurlburt (1986). Outros autores, como Erbolato (1981), seguindo o mesmo raciocínio, classificam-nas de Lapidárias, Etruscas ou Grotescas. Descendem dessa prática e integram essas famílias as atuais Arial, Helvética, Grotesca, Univers e Impact, dentre inúmeras outras. São fontes práticas e vigorosas, principalmente quando negritadas. Por isso mesmo muito utilizadas em títulos e de forma garrafal por jornais sensacionalistas. Foram os gregos e os romanos que deram a 174 beleza estética às letras, modificando assim o uso dos simples bastões e consequentemente a singeleza das hastes das letras. Utilizaram para isso o stylus – daí o sentido amplo da palavra estilo e da decorrente expressão “estilo de escrever”. Criaram, além de outras letras e sinais gráficos, um padrão nos desenhos e os arremates nas pontas das hastes, ou seja, as serifas. Isso faz com que, se ampliarmos e observarmos hoje detidamente a letra “I”, grafada em maiúsculo e em fonte clássica, identifiquemos ali a imagem semelhante à de uma coluna grega ou romana. Ao observarmos da mesma forma a configuração das demais letras do alfabeto, sempre em maiúsculas (as minúsculas só foram inventadas na Idade Média), perceberemos a repetição das mesmas hastes que por sua vez lembram várias colunas em combinação – que os arquitetos chamam na arquitetura de colunato. A letra X, por exemplo, seria o resultado de duas colunas cruzadas, a T de uma coluna vertical encimada por meia coluna horizontal e assim por diante. Poderíamos assim dizer que o capitel e o fuste da coluna correspondem à serifa e à haste das letras em maiúsculas clássicas, respectivamente. Pois bem: é exatamente esse tipo de letra clássica que se encontra gravada em vários prédios e monumentos de Brasília. Ou seja: pela tipografia, a arquitetura também se funde, na cidade moderna, ao ideário modernista da imprensa, como aquele implementado pela reforma gráfica do Jornal do Brasil desde a data de fundação da Capital Federal. Se as colunas propriamente ditas do Jornal do Brasil não avançaram tanto quanto as protagonizadas pela arte de Niemeyer em Brasília, a sua configuração na página, porém, guarda uma relação muito provavelmente direta com as colunas clássicas e parte do conjunto que estrutura fisicamente as obras da Grécia Antiga. Não há dados precisos, mas é possível que o nome “colunas” dado àquelas massas de textos, que compõem os materiais impressos, descendam exatamente daquilo que 175 designam aquelas massas concretas de construções do mundo antigo, as colunas. Quando Gutenberg inventou a imprensa para o Ocidente e imprimiu o seu primeiro trabalho – cem Bíblias em dois tomos cada uma –, o fez utilizando duas colunas em cada página. As fontes de caracteres utilizadas para tanto, obtidas a partir dos inéditos tipos móveis, foram góticas. O objetivo era conceber uma aparência mais que adequada à época, posto estarmos na Idade Média e era muitíssimo mais comum, em vez do stylus em pedras e madeiras etc., o uso da pena e da tinta em pergaminhos e outros tipos de folhas de papéis. As letras minúsculas nascem assim da necessidade de ser o mais rápida possível essa forma de escritura: fazer uma letra “a” manuscrita era muito mais fácil do que a letra “A”. O estilo gótico, com seus desenhos flamejantes, linhas lanceoladas, resulta também dessa prática eminentemente manual. A performance artesanal gótica assim se diversifica e encampa de tal forma que chega a ser utilizada oficialmente por alguns estados. Isso explica o porquê dos alemães até hoje serem associados, em produções midiáticas de toda ordem, especialmente quando se remetem ao passado dessa nação, às letras góticas, assim como ocorre de um modo em geral com a cultura da Idade Média. Tanto que hoje essa modalidade de letras, com todas suas diversificações, faz parte de uma classificação universal como uma família de tipos, a das letras Góticas, ao lado das famílias Bastão, Romana Antiga, Romana Moderna, Egípcia e Fantasia. A motivação de Gutenberg, quanto à tipologia, portanto, era óbvia. Mas, quanto às colunas? Onde ele buscou inspiração para o feitio e a nomenclatura? Muitas respostas podem ser dadas, mas uma, igualmente óbvia como a dada acima para a tipologia gótica, aponta para aquilo que lhe deu o nome: as colunas greco-romanas. De fato, as colunas dos livros, e principalmente dos jornais, nos fazem lembrar as colunas da Idade Antiga, especialmente as gregas. Recordemos que Gutenberg 176 imprimiu cada página em duas colunas de texto e, no início do primeiro parágrafo de cada livro de sua Bíblia, destacou a primeira letra, belamente adornada, cujo nome a tipografia chama de capital. A semelhança com as colunas gregas talvez não seja assim tão por acaso: ali também temos belamente adornadas por espirais e volutas o que a arquitetura chama de capitel. Assim também como os espaços entre as colunas dos jornais são interculunas, na arquitetura são intercolúnios. E assim como as colunas dos jornais são encimadas por subtítulos, títulos e antetítulos, que se estendem horizontalmente, como a se sustentar pelas massas de textos das colunas logo abaixo, as colunas gregas sustentam arquitraves, frisos e cornijas, que igualmente se estendem horizontalmente e efetivamente são sustentadas pelas colunas logo abaixo. Tal relação se acentua quando percebemos que, se as colunas dos jornais podem derivar das colunas tradicionais, estas também podem conter características que hoje consideramos próprias da imprensa moderna. Na Coluna de Trajano, construída em Roma pelo arquiteto Apolloro de Damasco, 114 anos d.C., ao longo de seus trinta metros de altura encontramos o relato minucioso de um acontecimento, o desenrolar de um fato histórico, acerca de uma guerra de conquista, escrito através de imagens em relevo na parede do próprio mármore. “O imenso fuste da Coluna de Trajano está percorrido por um friso de relevos em extensão helicoidal, a modo de crônica jornalística, sobre as façanhas do imperador na conquista da guerra”, diz Correia Neto (S/D – destaques nossos) num interessante documentário sobre a “História da Arte”. Assim, as colunas do JB podem não ter ousado tanto como as de Niemeyer, mas certamente que, ao serem mais bem definidas, através de uma maior afirmação dos espaços em branco, como já vimos, ganharam um pouco mais de qualidade, equilíbrio e padronização gráfica, como as de Brasília, e possui com estas 177 uma relação histórica, inclusive em sentido inverso: as colunas da Capital Federal falam sobre um acontecimento factual extremamente importante da vida nacional. Paralelamente, no JB, Amílcar de Castro colocava em prática a assertiva de que “menos é mais”, da qual nos fala Francisco Homem de Melo (2004). Isso quer dizer que despojou das páginas todos os tipos de adornos, filetes, frisos, grifos, molduras. No dizer duplamente axiomático do próprio Amílcar, segundo Lessa (1995, p. 21), “fio não se lê” e “jornal é preto do branco”. Ao clarear o jornal, a reforma gráfica do JB segue o princípio lecorbusiano de deixar entrar a luz nas habitações, na cidade – daí a sua concepção de La ville radiuse. “A arquitetura é o jogo sábio, correto e magnífico dos volumes unidos sob a luz”, ensinava Le Corbusier (2006, p. 29). Este princípio parece ter sido seguido com inventividade antropofágica por Niemeyer, quando estabelece, por exemplo, como ambientes escuros as passagens que levam unicamente a outros recintos de forte claridade natural e/ou artificial. A distinção do claro-escuro, como o preto-branco em Amílcar, fica desta forma bem evidenciada em Niemeyer. Na Catedral Metropolitana de Brasília, com sua forma de Coroa de Espinhos, por exemplo, o caminho da entrada lembra o purgatório, dado a escuridão. Uma vez se chegando ao seu interior, pode-se verificar, de súbito, além de arcanjos pendurados ao teto, pairando sobre os fiéis, como a voar (ao invés dos tradicionais postos à parede), vitrais em cores e motivos celestiais que deixam a luz natural entrar com um certo vigor e ao mesmo tempo uma grande sobriedade. Outras obras seguem o mesmo princípio. Assim como também toda a cidade: de qualquer lugar é possível divisar o “céu de Brasília, traço do arquiteto”, como canta Djavan (1992) em homenagem à cidade na música “Linha do equador” e, no mesmo tom, assim explica o historiador Celso Fonseca (2009): “Você tem construções, propostas de edificações, que têm essa grandeza, que têm o horizonte. Você tem, em todas as dimensões, de todos os ângulos, 178 um horizonte à vista, de Brasília”. Assim, ao “clarear” o JB, Amílcar de Castro também valoriza a impressão. “A impressão do jornal era péssima. Então, uma das providências que eu tomei foi tirar tudo que é negativo e fio. Tudo o que não era essencial à leitura, tirava para clarear um pouco o jornal, para dar mais força à matéria escrita”, diz, segundo Trench e Stolarski (2007, p. 138 – destaque nosso). A inserção lenta de fotografias com dimensões ousadas na primeira página do Jornal do Brasil, assim como, de forma assimétrica, nas páginas do Caderno de Domingo – este tendo ocorrido logo nos primeiros anos das mudanças –, com a participação do poeta Ferreira Gullar e dos jornalistas Jânio de Freitas e Reynaldo Jardim, também faz parte da grande reforma que se operou no JB. A tríade de imagens fotojornalísticas que se instalou a partir daí ainda hoje repercute na imprensa diária, posto o projeto ter sido seguido logo depois por outros jornais e Amílcar ter se tornado a referência para fazê-los. “A radicalidade da reforma, sobretudo a do período 59/61, transforma-se em símbolo de renovação do jornalismo e Amílcar em seu agente autorizado”, afirma Lessa (1995, p. 36). Em Brasília, e com Niemeyer, parece não ter ocorrido algo diferente quando se trata de radicalidade. O próprio Niemeyer afirma que alguém pode até não gostar de Brasília, mas não poderá jamais dizer que viu coisa parecida até então. Radicalismos, com suas indubitáveis razões, à parte, uma coisa é certa: a diagramação paradigmática do JB reflete uma tendência de consolidação do design do produto industrial brasileiro, dentro de uma atmosfera de modernidade que expressa, por suas próprias características, o concretismo e o neoconcretismo; e a arquitetura e o urbanismo modelares de Brasília seguem o mesmo caminho, embalados pela aura desenvolvimentista, feita, por sua vez, essencialmente do moderno concreto armado e outros neoelementos. São, assim, os nós de uma mesma textura social, 179 cingida pelas mesmas idéias contemporâneas e tecidas por muitos dos mesmos ideais clássicos. 180 Foto 4 - Davi de Michelangelo: escultura enigmática se constituía por muito tempo num objeto de grande fascinação para Freud, cuja ideia de movimentos anteriores e posteriores a partir dos detalhes da obra foi a chave para que o... Foto 5 - ...o "Pai da Psicanálise" finalmente desvendasse o seu mistério. Foto 6 - Sherlock Holmes: personagem da literatura que usava o método semicientífico Fotos 7, 8 e 9: Colunas do Jornal do Brasil, em seus primórdios (à esq.), e detalhes (acima) da Coluna de Trajano: narrativas históricas escritas em tinta e relevo para a posteridade. http://www.baixaki.com.br/papel-de-parede/6849-moises-de-michelangelo.htm http://www.revistavortice.com. br h tt p :/ /v it sa m ar al .b lo g sp o t. co m /2 0 1 0 /0 5 /s im p li c h tt p :/ /a p at o ta d o p it ac o .b lo g sp o t. co m /2 0 1 0 /0 8 /j o rn al -d o -b ra si l- q u ed a- d e- u m -g ig an te .h tm l http://silenciandocompalavras.blogspot.com/ h tt p :/ /a rt en ae sc o la .w ik is p ac es .c o m /H is to ri a+ d a+ A rt e 181 Foto 10 – Os primeiros passos do projeto de Lúcio Costa começam com dois segmentos de reta se cortando, remonta à cruz, evolui com a curva e assim se estabelece.... Foto 11 – ...como projeto (partido), cujo diagrama lembra o avião, símbolo de uma época capitalista, que “alça vôo” e finalmente termina por ser concretizado... Foto 11 – ...numa região central do Brasil, como a demarcar um ponto equidistante na história, na geografia e no poder político do país, realizando assim um desejo ancestral, do presente e para o futuro: triunfo da vontade. Fotos: arquivos de aula ministrada pelo prof. Frederico de Holanda (UnB) 182 Fotos 12 e 13 – Concepção e consecução do Congresso Nacional: modernidade das linhas retas e das curvas evocam o equilíbrio político e lembram a simetria da reforma gráfica do JB: mesmas ideias de uma mesma época Fotos 14, 15 e 16 – As colunas revolucionárias divergem das colunas clássicas do jornalismo moderno, mas a modernidade anuncia-se na reprodução dos espaços, dos fatos e dos acontecimentos sincrônicos da realidade arquitetural, artística, política, econômica etc. http://www.skyscrapercity.com/showthread.php?t=583353 http://www.arcoweb.com.br/arquitetura/oscar-niemeyer- coletanea-de-11-02-2008.html http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Palacio_do_Planalto.jpeg http://www4.planalto.gov.br/restauracao/registros- fotograficos/historia-do-palacio/croquis-do-palacio-do- planalto-de-oscar-niemeyer-1958/view h tt p :/ /w w w .j b lo g .c o m .b r/ h o je n ah is to ri a. p h p ?i te m id = 2 0 7 2 5 183 Fotos 17 e 18 (acima e à dir.) – Repetitividade modular de construtos prediais e de composições gráficas; valorização dos espaços vazios e dos espaços em branco: novo sentido à sociabilidade e à visibilidade. Fotos 19 e 20 – Por vezes, junto com a valorização dos espaços, as colunas da mancha gráfica também avançam na ousadia revolucionária das colunatas curvas e apontam para um sentido ideológico/cultural: política, religião etc. se refletem na criação/produção artística. http://www.trekearth.com/gallery/South_America/Brazil/Center- West/Distrito_Federal/Brasilia/photo971141.htm h tt p :/ /o g lo b o .g lo b o .c o m /e co n o m ia /m a t/ 2 0 1 0 /0 8 /3 1 /r ef o rm a -g ra fi ca -d o - jo rn al -d o -b ra si l- n o s- an o s- 5 0 -c ri ac ao -d o -c a d er n o -i n fl u en c ia ra m - im p re n sa -p u se ra m -r io -n o -c en tr o -d o -p a is -9 1 7 5 2 4 5 5 0 .a sp h tt p :/ /e x tr a. g lo b o .c o m /e co n o m ia /m at er ia s/ 2 0 1 0 /0 8 /3 1 /r e fo rm a -g ra fi ca -d o -j o rn al -d o -b ra si l- n o s- an o s- 5 0 -c ri ac ao -d o -c ad er n o -i n fl u en ci ar a m -i m p re n sa -p u se ra m -r io -n o -c en tr o -d o -p a is - 9 1 7 5 2 4 6 2 2 .a sp Foto: arquivo de aula ministrada pelo prof. Frederico de Holanda (UnB) 184 CAPÍTULO 3 Comunicação e História: sangue de papel e suor de concreto na São Paulo revolucionária 1. Delimitação temática: aproximando pensares este capítulo pretendemos aproximar Comunicação e História. O objetivo, seguindo o mesmo caminho já trilhado nos capítulos anteriores, é tentar mostrar que é possível contribuir para um maior deslinde da realidade, interconectando duas importantes áreas do conhecimento das ciências humanas. Duas áreas tão próximas no cotidiano empírico quanto distantes foram sendo tornadas pelas práticas reflexivas ao longo da construção histórica do saber, desde o nascimento da ciência moderna. Não se fechará aqui – nem se poderia – um círculo epistemológico acerca do tema. Muito pelo contrário. Pretende-se contribuir para a construção de um aprofundamento paradigmático neste sentido, qual seja: ampliar a rede de possibilidades de interdisciplinaridades ou mesmo de transdisciplinaridades via o alargamento dos horizontes à observação de objetos sociais relativamente novos, igualmente plurais, que exigem novas demandas mentais e metodológicas, de maneira especial na esfera das Ciências Sociais. Também como nos capítulos anteriores, nosso palco à empiria será a cidade N 185 contemporânea. Nela nos debruçaremos sobre a realidade concreta com aquilo que consideramos as suas multiformas midiáticas. Noutras palavras: pretendemos analisar a cidade-mídia na particularidade de alguns de seus construtos socioculturais imbricados e em relações dialéticas recorrentes, dinâmicas, próprias. Levando a efeito, e falando de forma mais objetiva e didática, no presente capítulo pretendemos estudar, como elemento tributário da Comunicação Social, o jornal diário Folha de São Paulo e sua prática cotidiana nos campos jornalístico, político, econômico, social etc. na cidade de São Paulo – e, por conseguinte, do Brasil –, no período que se inicia no início da década de 1960 e termina em meados da década de 1980. Algo que por si só já seria imanente do campo da História. Mas desta buscaremos, ainda como contribuição disciplinar, algo também próprio das Ciências Sociais: a linha teórica adotada por Marx para interpretar a História e os fatos sociais, políticos, econômicos e culturais mais relevantes de seu tempo. Um Marx e um pensamento marxista, portanto, em construção e diante de uma realidade concreta – algo que aproxima, inclusive pela experiência pessoal e narrativa existencial do pensador, ou seja, biográfica e historiográfica, a História e o Jornalismo. De nossa parte, o ineditismo, por assim dizer, seria não se limitar a aplicar, como um receituário ou uma fórmula pronta, estática e imutável, o método do Materialismo Histórico e Dialético. Aquele que consideramos a essência do materialismo moderno, factível em qualquer campo cultural em qualquer tempo de qualquer sociedade capitalista, e nele o método tal como concebido por Marx e Engels a partir das ideias de Hegel. Mas sim buscar alçá-lo para o hoje, em processo, como lhe é próprio, a partir da reconstrução histórica do pensamento marxista, retratada por ele mesmo através de suas proposições, suas análises e seus 186 relatos de fatos históricos proeminentes que estudou e/ou experimentou, como nos revelam a sua própria história de vida e a sua obra. Assim, “inspirados” pelos primeiros escritos filosóficos do jovem Marx, seguidos pelos relatos críticos de um filósofo-jornalista (principalmente) que amadurecia ao estudar e narrar acontecimentos significativos da história da humanidade, em meio a tantas dificuldades existenciais de um mundo que combatia, e depois imbuídos pelos escritos sociais de um “cientista da história”, como ele mesmo preferia à afirmação de ser um dos integrantes e/ou fundadores da então nascente Ciências Sociais, momento em que enfim se torna num experimentado e decisivo pensador, um dos maiores, do nosso tempo, é que pretendemos, nessa linha tempo-espacial, ressaltando lugares e acontecimentos de sua vida pública e social, não desmerecidamente nem despropositadamente para o presente trabalho, é que pretendemos nos debruçar sobre os nossos objetos de estudos pinçados dos campos da Comunicação Social e da História. Com efeito, acerca desses objetos, com o intuito de melhor delimitá-los, poder-se-ia aqui questionar: quais as relações entre o jornal Folha de São Paulo e a cidade de São Paulo no período estudado? Haveria algo mais que propriamente a atividade jornalística de retratar o cotidiano político, econômico e social da cidade e de seus personagens? Teriam isso implicações nacionais? Quais os interesses por trás da “indústria” Folha de São Paulo no contexto industrial da cidade? O que tem a nos dizer a história desse possível maior empreendimento editorial na maior cidade industrial do país? Qual a relação entre o desenvolvimento urbano da metrópole, uma das maiores do mundo, e o jornal Folha de São Paulo, um dos periódicos mais importantes do país? Quais os interesses e ligações do jornal com 187 a ditadura militar, que se inicia em 1964 e termina em 1985, que poderiam se caracterizar como mútuos, nesse período sombrio da vida nacional? A teoria marxista da história, até onde pudemos alcançar em nossas pesquisas e reflexões – em face de sua profundidade e complexidade – nos ajudaria a minimizar a conta dessas preocupações? Estas e outras questões nos fornecem com mais certeza e clareza os limites das dimensões daquilo sobre o que pretendemos nos debruçar. O “como” faremos isso, sem sermos ortodoxos e inflexíveis acerca do pensamento marxista, e menos ainda sem o intuito de discuti-lo à exaustão e muito menos de se “apegar” a apenas um de seus conceitos, mas ao mesmo tempo sem deixarmos de ser extremamente criteriosos, zelosos e até reverentes, ressaltando as ideias marxistas numa linha histórica crescente, ou seja, em construção, em processo, como exige a própria dialética do pensamento do autor, conforme já dissemos e iremos nos aprofundar adiante, é o que pretendemos abordar, com cuidado e atenção, na seção seguinte, antes de ingressarmos, com mais propriedade e definição, no item posterior, o da análise propriamente dita acerca dos nossos objetos de estudo. 2. Marx jornalista, Marx pensador: a construção histórica de um saber Ideia. Sangue. Suor. A teoria marxista do Materialismo Histórico e Dialético, segundo uma proposição pessoal, poderia ser resumida apenas nestas três palavras, de acordo com uma concepção, digamos, jornalística da história do marxismo, inspirada no próprio Marx, como intelectual e como homem de jornal, ou seja, como ser real e ativo na sociedade, e para tal contando com o apoio de 188 autores marxistas contemporâneos que nos falam das ideias, da historiografia e da biografia de Marx, como Leandro Konder (1981), Florestan Fernandes (1983), José Arthur Giannotti (2009), dentre outros. Estas são mais que meramente três palavras em si: são expressões. Expressões imagéticas e cheias de significados. Expressões que nos remetem a lugares, relações sociais e momentos distintos, importantes e decisivos (condições históricas, se quisermos usar uma terminologia do próprio objeto estudado) para a criação do indivíduo e do pensamento do próprio Marx – como ele mesmo sabia e assim parece que conscientemente agia em sua existência. Numa concepção tradicional e cronológica dessa história individual, diríamos, inicialmente, correspondentemente a lugares, que em primeiro lugar, relativamente à primeira expressão, aparece Marx e os princípios iniciais de seu marxismo na Alemanha, onde nasceu e se abeberou de uma filosofia revolucionária no campo da história e própria de seu tempo; depois, respectivamente à segunda expressão, aprofundando-se, na França, onde amadureceu através de estudos e de uma vivência direta acerca de acontecimentos sociais revolucionários na história da Humanidade; e em seguida e em referência à terceira expressão, por fim, inclusive o existencial do autor-objeto, na Inglaterra, onde observou as profundas transformações sociais protagonizadas pelo capitalismo nascente e avassalador e onde também escreveu, em face disso e de todo cabedal intelectual e vivencial anterior que amealhara, a sua maior obra, O Capital. Comecemos, portanto, pelo começo. Mas não sem propósito: o pensamento marxista também segue e defende uma linha seqüencial e racional (naturalismo) da história. Para ele, as ações humanas só podem ocorrer na natureza, ou seja, os atos históricos só podem evoluir num ambiente natural, portanto, nada mais coerente do 189 que traçar modelos a partir do mundo da natureza. Lembremos do modelo naturalista mais conhecido do pensamento marxista: comunismo primitivo- capitalismo-socialismo/comunismo. (Não confundamos a natureza, o ambiente necessário aos atos humanos, com somente a Natureza, posta, dada, bucólica, geodésica, cósmica, também necessária à existência.) Dito isto, voltemos ao nosso “começo”. Foi nessa Alemanha, na cidade de Trèves (hoje Trier, localizada no atual Estado da Renânia-Palatinado, este situado à Sudoeste da Alemanha e cuja Capital é Mainz), onde Karl Heinrich Marx nasceu a 5 de maio de 1818. Foi nessa cidade onde manteve os seus primeiros contatos com o pensamento de autores que iram marcá-lo profundamente para o resto de sua vida. Nos primeiros anos de sua adolescência, era um Marx imaturo, porém aberto às reflexões. Por influência do próprio pai, Heinrich Marx, um “livre pensador”, manteve os seus contatos iniciais com Lessing, Voltaire e Rousseau. Depois o jovem estudante aprendeu a admirar até os seus últimos dias de vida, através do barão Ludwig von Westphalen, pai de sua futura esposa, Jenny Westphalen, Homero e Shakespeare, este inclusive viria a ser recorrente em suas conversas, conforme colhemos de alguns autores, e depois citado em algumas passagens de sua principal obra, O Capital (MARX, 1983), conforme verificamos. Entre o fim de 1835 e o começo de 1836, na Universidade de Bonn, estudou direito, história, filosofia, arte e literatura. Mas é somente a partir de meados deste mesmo ano de 1836, agora na Universidade de Berlim, portanto ainda na Alemanha, que mantém contato com o pensamento daquele que iria fazê-lo se definir por um modelo de interpretação histórica também para o resto de sua vida: Georg Wilhelm Friedrich Hegel, que ali lecionara e morrera em 1831, além de 190 fazer leituras detidas das obras de Spinoza, Kant, Leibnitz, Aristóteles e Epicuro, como nos mostra Konder (1981). Assim, entre 1838 e 1840, em Berlim, Marx chega a fazer parte do “Clube dos Doutores”, liderado por Bruno Bauer, e de um grupo denominado “Jovens Hegelianos”, divididos entre aqueles que procuravam aplicar o método historicista do mestre Hegel à análise das questões sociais, os chamados hegelianos de esquerda, e do qual Marx fez parte, e aqueles que se prendiam aos elementos conservadores da filosofia idealista e à ordem constituída, os chamados hegelianos de direita. A filosofia de Hegel propõe ao mundo um novo tipo de história. Trata-se do apogeu do que ficou denominado desde o final do século XVIII, com Voltaire, de filosofia da história: a propositura de se entender a História através da crítica, do pensamento, do saber, da ciência, em que o historiador dispensava-se das fontes diretas, da pesquisa in situ, dos alfarrábios objetivos. Em Hegel, segundo Collingwood (s/d), a filosofia da história passa a ter uma nova dimensão, a da história universal da humanidade. Nela se sobressai, como narrativa, desde os tempos primitivos à civilização contemporânea, a luta pela liberdade. O desenvolvimento dessa liberdade é o desenvolvimento da consciência. Uma consciência que passa por estágios necessários – um desenvolvimento lógico, portanto – até alcançar o seu auge, o ponto máximo da história, a autoconsciência, quando o mundo finalmente converte-se em espírito. A história possui assim um espírito: o espírito da história, que se encontra a si mesmo ao encontrar-se como consciência de si. Um encontro que só se dá através da razão e que só acontece exclusivamente no presente, posto que para Hegel não há o futuro, pois este é um tempo que (ainda) não existe, permanecendo 191 assim para o historiador como “um livro sempre fechado”, insujeito ao deslinde e até mesmo à realização da Utopia. A história, dessa maneira, é a história do pensamento, que se acaba e deve se acabar somente no presente. Hegel, no entanto, ao contrário de outros pensadores anteriores da filosofia da história, não descarta a empiria. Muito pelo contrário. O conhecimento acerca dos elementos reais da experiência humana é necessário para se entender os desejos, as paixões, as motivações, os projetos, o racional e o irracional, as ideias, enfim, o pensamento de cada época, o espírito da história. Hegel insiste, portanto, no fato de que o historiador deve começar por um trabalho empírico, estudando documentos e outras provas, pois só desse modo é que pode determinar aquilo que os fatos são. Mas depois terá que observar, do interior, os fatos, dizendo- nos o que é que estes representam, a partir daquele ponto de vistas (COLLINGWOOD, s/d, p. 190-1). Hegel, assim, como explica Abrão (2004, p. 347), buscava ardentemente a compreensão do presente a partir da explicação do sentido do desenvolvimento histórico. “A filosofia hegeliana caracterizava-se, nessa medida, por um intenso compromisso com a realidade”, complementa Abrão. Tal compreensão do presente histórico, Hegel identifica como passível de compreensão em sua mutabilidade ininterrupta e contraditória somente através da dialética. “Hegel expôs e trouxe à luz a importância, o papel, a multiplicidade das contradições do homem, na história e até na natureza”, afirma Lefebvre (1979, p. 18). Propõe, para tanto, algo além da maieutiké pedagógica de Sócrates, do diálogo platônico e dos movimentos dos contrários concebidos pela lógica clássica e o meramente disputatio medieval. Uma dialética que estrutura a própria realidade e que considera, no movimento permanente do pensar as coisas e das próprias coisas pensadas, o choque entre os contrários e, como resultado daí advindo, o surgimento de uma nova afirmação, em 192 que afinal o Estado surge como uma síntese que unifica a eternidade do pensamento com a ordem do tempo percorrido. Portanto, trata-se de um movimento que é ao mesmo tempo pensamento e busca pela liberdade. Busca em si e para si. Ou seja, a dialética hegeliana é uma teoria do ser, uma ontologia; fala-nos do espírito, o espírito da história. Um silogismo do que conflui o passado, como por exemplo o despertar para o saber do mundo clássico; a sua negação, decorrente daquele, e que portanto o contém ao mesmo tempo que o nega, como por exemplo o mundo medievo, com a escolástica e a submissão do saber à fé; e o presente, com propriedades daqueles dois mas agora transmutado e em superação, ou seja, posta-se em uma nova afirmação, como por exemplo o mundo moderno, que chega afinal a ser um algo absoluto no qual se sobressai, como no exemplo da história universal em tela, o Estado racional, conciliador, ordenador, ideal. Um movimento natural e um percurso necessário em que o pensamento toma consciência em si ao sair de si e volta a se encontrar agora como consciência de si e para si através da razão. Um processo que conserva os opostos anteriores ao mesmo tempo em que os supera. Resume- nos Abrão: A lógica tradicional, binária, é a lógica da imobilidade, pois exige a opção ou pela afirmação ou pela negação, excluindo uma terceira possibilidade, isto é, a de considerá-las parte de um processo. A lógica de Hegel, no entanto, contém três termos: a afirmação (tese), a negação (a antítese) e a síntese, que resulta da negação da negação. O último termo, uma dupla negação, é também outra afirmação, mas engendrada pelo confronto dos dois termos anteriores. Hegel chama essa estrutura lógica de dialética (ABRÃO, 2004, p. 353). É com esta ideia, complexa, ampla e que se destina a explicar a história, tendo como ponto central o pensamento que se volta para a realidade e volta a se reencontrar em si mesmo, agora em totalidade, como absoluto, aqui exposta de 193 maneira resumida, que o jovem Marx, então com 18 anos de idade, vai se defrontar na Alemanha hegeliana. Dedica-se à sua tese de doutorado, A Diferença entre a Filosofia da Natureza de Demócrito e Epicuro, entre os anos de 1838 e 1840. Nela, Marx faz “uma análise original da filosofia epicurista”, na qual destaca a afirmação de Epicuro da autoconsciência como princípio da liberdade, diferente de Demócrito, “que introduz um terceiro elemento, o clinamen, ou seja, o da declinação da linha reta, que corresponderia ao movimento de autodeterminação dos átomos”, segundo resume Albinati (2000). No entanto, por questões políticas sob um regime absolutista que se opôs na Prússia, que não via com bons olhos os hegelianos de Berlim, especialmente os de esquerda, que passaram inclusive a ser perseguidos, Marx decide ir para a Universidade de Iena, ainda na Alemanha, onde defende brilhantemente a sua tese, em 15 de abril de 1841. Consegue o diploma, mas não um emprego de professor, que tanto queria. Marx, então, mesmo já bastante conhecido no meio intelectual, procura o jornalismo como fonte de renda e como meio de exposição de suas ideias. Vendo-se impossibilitado de exprimir as suas ideias através de uma cátedra de professor universitário, o jovem filósofo resolveu expô-las através dos jornais. Enviou, então, o seu primeiro artigo para Anais Alemães, publicação dirigida por seu amigo Arnold Ruge. Era a primeira intervenção de Marx na vida pública. E era um artigo contra a censura. Infelizmente, Anais Alemães não pôde publicá-lo, porque a publicação foi impedida... pela censura (KONDER, 1981, p. 29-30). A partir daí Marx passou a escrever para a Gazeta Renana (Rheinische Zeitung), da província de Colônia. Em um de seus artigos voltou a tratar da liberdade de imprensa. Marx fez tanto sucesso, segundo Konder, que em 11 de outubro de 1842 se mudou para Colônia e assumiu a direção do jornal. “Frustradas suas expectativas de fazer carreira universitária (...) não lhe resta outro caminho do 194 que ganhar a vida como jornalista político. Por isso aceita o convite para dirigir a Gazeta Renana, para a política, o comércio e a indústria, fundada em Colônia por líderes liberais”, informa Giannotti (2009, p. 33). O jornal rapidamente aumentou a sua tiragem e de circulação. Foi nesse posto que Marx sentiu-se cobrado a conhecer melhor o comunismo. Isso porque considerava superficiais e demagógicos os artigos, salpicados de tiradas comunistas, que lhes eram enviados de Berlim por jovens socialistas simpatizantes do jornal. Chegou a dizer-lhes isso pessoalmente, o que causou rompimento da Juventude Socialista de Berlim com Marx. Porém, foi na Gazeta Renana onde Marx teve o seu primeiro encontro com Friedrich Engels, que, além de artigos que enviara de Berlim, posto ser um dos simpatizantes na capital alemã dos hegelianos de esquerda, decidira, em viagem para Inglaterra, passar por Colônia e conhecer a redação do jornal e ao diretor Karl Marx. O encontro, contudo, não foi um dos mais felizes, em função das desconfianças do diretor do jornal em relação à política prussiana e consequentemente das visitas que recebia. Foi ainda como diretor da Gazeta Renana que Marx promoveu pela primeira vez a defesa da classe subalterna através de suas reflexões práticas. Camponeses pobres da região do Reno eram acusados de roubar madeira. Por isso respondiam perante o Estado, cujas autoridades, mancomunadas com grandes proprietários, através do Poder Judiciário, aplicavam medidas punitivas. Marx os defendeu, pois acreditava que os camponeses roubavam devido à sua condição de miséria e as autoridades, por sua vez, não iam a fundo na resolução justa da questão. Limitavam-se a aplicar penas e assim não solucionavam um problema social grave. 195 A experiência ensinou ao jovem jornalista e recém-doutor em filosofia que questões sociais práticas não podiam ser resolvidas por meios puramente jurídicos. Ensinou também, junto com outras experiências, como aquela que teve com a Juventude Socialista de Berlim, que precisava estudar ainda mais acerca da realidade. “Assim, foi a atividade política, no exercício do jornalismo, que o impeliu ao estudo em duas direções marcantes: as da Economia Política e das teorias socialistas”, afirma Jacob Gorender (1983, p. X). Com esses e outros embates, no entanto, o sucesso do jornal durou pouco. “Após um violento artigo contra o absolutismo russo, publicado em janeiro de 1843, o czar Nicolau I pressionou o governo prussiano e este fechou o jornal”, diz Konder (1981, p. 31). Marx, porém, não desistiu do jornalismo. Mas concluiu que na Alemanha era impossível prosseguir suas atividades intelectuais. Por isso, com um amigo, Arnold Ruge, combinou a fundação de uma nova revista, na França, denominada Anais Franco-Alemães. O objetivo era, segundo Giannotti (2009, p. 34), “aglutinar revolucionários dos dois lados do Reno a fim de que a experiência política francesa, associada ao pensamento alemão, pudesse chegar até as massas”. Em 1843, já casado com Jenny, muda-se para Paris – e aqui ingressamos na amplitude do significado da segunda expressão na carreira jornalística e no amadurecimento intelectual do pensador Karl Marx: a demonstração prática e revolucionária da experiência histórica francesa. Os Anais, no entanto, revelam-se um fracasso editorial. Nem franceses nem alemães vivendo na França colaboraram com artigos. Nem mesmo Ludwig Feuerbach, um dos integrantes mais ativos da “esquerda hegeliana”, conforme prometera a pedido de Engels, encaminha seu artigo combatendo as ideias de 196 Friedrich Wilhelm Joseph Schelling, filósofo e representante da direita prussiana, que contestava, a pedido do governo, no âmbito universitário de Berlim, as ideias de Hegel e dos jovens hegelianos de esquerda. Para agravar a situação, cerca de 300 exemplares dos Anais foram apreendidos pela polícia nas fronteiras da Prússia e da Bavária. Mas, se os Anais foram um malogro editorial, Marx conseguira publicar neles duas de suas principais obras de até então: Introdução à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel (MARX, 2002, p. 13-44) e A questão judaica (MARX, 2002, p. 45-59). Paralelamente, vinha mantendo contatos com o socialismo francês e desenvolvendo alguns estudos sobre a economia política, especialmente a inglesa, lendo com afinco Adam Smith, David Ricardo, James Mill, dentre outros. Tendo por base estes autores e a experiência francesa, aliados principalmente a suas reflexões sobre a filosofia alemã, escreveu também algumas análises que acabariam dando origem aos Manuscritos Econômicos e Filosóficos de 1844 (MARX, 2002, p. 61-196), trabalho somente depois recolhido e publicado originalmente em 1939. Nos artigos dos Anais, Marx critica a teoria filosófica de Hegel sobre o Estado e reconhece que Feuerbach avança quase em definitivo na tarefa de criticar a religião na Alemanha. Marx propõe, no entanto, a crítica do Estado (e não ainda a sua superação) e da sociedade reais, a substituição da sensibilidade pela práxis humana e a utilização da filosofia como instrumento radical da história, tendo o homem como centro. Essa inversão e utilização da filosofia e da própria sociedade histórica invertida no pensamento, continua Marx, só poderia ser feita à época e na vida real por sua própria negação, ou seja, pelo seu avesso: aqueles que nada 197 tinham a perder, em face da concentração privada, constituindo-se assim nas armas materiais da crítica agora invertida – o proletariado. “As armas da crítica não podem, de fato, substituir a crítica das armas; a força material tem de ser deposta por força material, mas a teoria também se converte em força material uma vez que se apossa dos homens”, afirma Marx (2002, p. 53), acrescentando: “A teoria é capaz de prender os homens desde que demonstre sua verdade face ao homem, desde que se torne radical. Ser radical é atacar o problema em suas raízes. Para o homem, porém, a raiz é o próprio homem”. E, mais adiante, à página 59, conclui: “Assim como a filosofia encontra no proletariado suas armas materiais, o proletariado encontra na filosofia suas armas espirituais”. Nos seus Manuscritos Econômicos e Filosóficos (2002), por sua vez, Marx, além de uma crítica da sociedade capitalista sustentada em várias teses filosóficas acerca da economia política, envolvendo questões como salário do trabalho, lucro e renda da terra, desenvolve também a sua teoria da alienação – uma das bases fundamentais para o entendimento do pensamento marxista. Vejamos. Para Marx, o homem é o único ser capaz de antes de realizar suas tarefas projetá-la antes em seu pensamento, ou seja, planejar. E isso, acrescenta ele, é exatamente aquilo que distingue os homens dos outros animais. Assim, o indíviduo modifica a natureza conforme as suas vontades e necessidades, realizando-as satisfatoriamente, contudo, somente em suas funções animais. O trabalho criador, desse modo, para Marx, é emancipatório, pois aponta cada vez mais para a liberdade humana. Na vida real da sociedade capitalista, porém, Marx identifica que o trabalho adquire características que fogem à essa natureza do vir-a-ser do homem, ou seja, das potencialidades humanas. Os trabalhadores na indústria 198 voltam à inumanidade pior do que eram os próprios primitivos, posto o trabalho agora assumir formas desumanas e degradantes, inclusive no campo subjetivo. Tal trabalho, ao mesmo tempo em que oprime, revolta, imbeciliza e reduz o trabalhador à “besta de carga”, faz a riqueza, pela exploração e pela acumulação, do proprietário da indústria ser cada vez maior. Assim, o fruto do trabalho, para o trabalhador, escapa-lhe à propriedade, ao usufruto e ao reconhecimento. Dessa maneira torna-se a criação do trabalho, o produto, em algo estranho, inalcançável e hostil ao próprio criador, o operário. O homem, assim, se torna estranho a si mesmo tornando-se estranho ao que lhe é próprio. Mas, por outro lado, o tal produto que lhe é estranho pertence a “outro homem” que dele se apropriou bem como se apropriou do próprio trabalho do verdadeiro produtor e dessa maneira fica cada vez mais rico: o capitalista. A esse fenômeno Marx chamou de alienação do trabalho. Algo que, no entanto, atinge também aos capitalistas em geral, posto esses, apesar de se beneficiarem do trabalho produtivo de terceiros, em sua inércia parasitária, ou seja, em sua atividade improdutiva, alienam-se entre si e da nobre e humana atividade produtiva. A característica da alienação implica que cada esfera me propõe normas diferentes e contraditórias, uma a moral, outra a economia política, porque cada uma delas constitui uma determinada alienação do homem: cada uma concentra-se num círculo específico de atividade alienada e encontra-se alienada em relação à outra alienação (MARX, 2002, p. 153). Os Manuscritos são assim um marco fundamental no amadurecimento intelectual do filósofo e revolucionário jovem Marx. “Quando se fala do “jovem Marx”, em função dos manuscritos de 1844, o que está em jogo é o novo Marx, que se movia no sentido de buscar uma ponte entre o seu recente passado radical e 199 o seu emergente futuro revolucionário” – afirma Florestan Fernandes (1983, p. 21), em sua excelente obra e compilação. Giannotti também trata da questão. Afirma que os Manuscritos alimentaram teses humanistas a partir de sua publicação e que uma enorme polêmica se travou daí para diante no sentido de se saber se, ao incorporar a economia política ao seu pensamento, Marx abandonara as suas posições de jovem. O que o filósofo brasileiro (fundador da primeira faculdade de filosofia do país) diz em seguida, tentando esclarecer este assunto, é extremamente pertinente para compreendermos melhor essa obra não só como um ponto de transição em Marx, mas também como uma complementação fundamental à teoria hegeliana, agora revista e melhor aplicada à realidade social, através da contribuição de economistas ingleses acerca da utilização (exploração) do trabalho assalariado na Inglaterra, onde se processava a Revolução Industrial – referência que põe mais sentido à segunda e singela expressão aqui proposta, Suor. Haveria um corte epistemológico, como pretende Louis Althusser? Ou o corte seria sobretudo político, como defende Michel Löwit? Acredito que as duas teses são defensáveis, mas tendo a pensar que a ruptura se dá sobretudo a partir do momento em que Marx, afastando-se definitivamente de Feuerbach e compreendendo o alcance da teoria do valor-trabalho, elaborada por David Ricardo, formula sua noção de capital, cujo desdobramento meramente conceitual substitui a lógica do sensível. Em vista disso, o mundo invertido das relações sociais adquire estatuto ontológico muito particular, que permite o emprego sistemático da contradição no sentido heqeliano da palavra, de sorte que todos os conceitos produzidos pela análise do trabalho alienado são torcidos para adquirir novos significados (GIANNOTTI, 2009, p. 40). Mas se os Manuscritos se constituem numa base fenomenal e fundamental do e para o pensamento de Marx, que iria culminar com sua obra máxima, O Capital, em que analisa a sociedade capitalista com muito do que rascunhou quando se encontrava na França, também se revelam como o último trabalho de expressão de Marx antes de iniciar uma parceria fecunda com aquele que seria seu 200 grande amigo e parceiro até o fim de seus dias, Friedrich Engels. Pois foi em fins daquele mesmo ano de 1844, na França, que Engels, depois do primeiro encontro não muito feliz em Colônia, voltou a se encontrar pessoalmente com Marx. Queria mostrar-lhe um estudo sobre A Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra que havia realizado. Um trabalho que mostra a degradação da população operária especialmente na cidade de Manchester. Analisa de forma inédita a Revolução Industrial através de suas conseqüências nefastas na transformação destrutiva do espaço urbano e de misérias e humilhações das famílias e da classe trabalhadora da Inglaterra. Retrata assim as contradições sociais de uma sociedade central de uma transformação radical no mundo e para a qual preconizava igualmente uma transformação radical em sentido contrário, que muito provavelmente se daria, segundo acreditava, através do comunismo. A experiência e a pesquisa de Engels na Inglaterra, dessa forma, interessavam vivamente a Marx. “A partir de então, estabeleceu-se entre os dois uma amizade que durou enquanto eles viveram e deu origem a numerosos trabalhos realizados em comum”, diz Konder (1981, p. 52). Isso porque Marx tentara, em Paris, unir intelectuais e revolucionários, especialmente os socialistas, sobre cujas obras e/ou práticas se debruçara com vivo interesse, em torno das causas populares direcionadas, com as massas, para transformar racional e radicalmente a sociedade capitalista, mas não conseguira. Nem com os discípulos de Saint Simon; nem com os seguidores de Charles Fourier; nem com Louis Blanc e seus liderados; nem com Mikhail Bakunin; nem com Joseph Proudhon; e nem com Etienne Cabet. “O único vulto revolucionário expressivo com o qual lhe foi possível encontrar uma autêntica afinidade de ideias, 201 em Paris, naquele ano de 1844, foi de fato com Engels”, complementa Leandro Konder (1981, p. 55). Ademais, além de revolucionário, Engels era originário, na Alemanha, da mesma região que Marx, a Renânia, e se abeberara das mesmas teses de Hegel, dos hegelianos de esquerda e das mais importantes teses dos autores da economia política. Por isso, Marx convidou-o para redigirem um trabalho em conjunto. E assim nasceu o primeiro livro da parceria, A Sagrada Família: ou a Crítica da Crítica-Crítica (MARX; ENGELS, 1987), texto em que analisam as consequências políticas do neo-hegelianismo. Trata-se, em síntese, de um posicionamento vigoroso contra Bruno Bauer e seus irmãos Edgard e Egbert, os quais, como editores da Gazeta Geral Literária, publicada em Charlottenburg (hoje distrito de Berlim, Alemanha), defendiam uma política liberal considerada por muitos pensadores marxistas de hoje como elitista. Em lugar do isolamento do espírito diante das massas, Marx e Engels preconizavam um amplo entrosamento da teoria com os proletários, pois, diziam, nada é mais ridículo do que uma ideia isolada de interesses concretos. Tal livro, entretanto, não chegou a ser publicado na França. Um novo acontecimento obrigaria Marx novamente se desterrar. Depois da Alemanha, agora exilar-se de um país que não era o seu. E envolvendo mais uma vez a sua condição de jornalista ativo e crítico. Vejamos como ocorreu. Quando os Anais tornaram-se um fracasso editorial, momento em que o amigo Arnold Ruge também desiste de continuar a revista, Marx estabelece ligações com a publicação alemã Vorwaerts (Avante), publicada em Paris por Einrich Bornstein, que circulava entre os emigrados alemães. Marx passa assim a ganhar a vida modestamente como jornalista em Paris. Os artigos dele, na 202 Vorwaerts, contudo, incomodam o governo de Frederico Guilherme IV. Um desses artigos, sobre a greve dos tecelões na Silésia (então província da Prússia que fora anexada por Frederico II, O Grande, em 1740), foi usado como pretexto pelo governo prussiano para pressionar o primeiro-ministro da França, François Pierre Guillaume Guizot. O primeiro-ministro então, atendendo às reclamações, determinou o fechamento da revista e a expulsão dos seus redatores, dentre os quais Marx. A imprensa francesa de caráter liberal publicou alguns protestos contra a medida do governo. Mas não houve recuo: Marx foi obrigado com a família a ir para Bruxelas, sob a condição, por escrito, de que ali nada deveria escrever e publicar, como jornalista e filósofo, acerca da realidade política e econômica nacional e internacional. Marx, no entanto, em Bruxelas, não cumpre o acordo com o governo Belga. Questiona-se acerca do materialismo que aplicara contra Bruno Bauer e conclui que essa doutrina, em Ludwig Feuerbach, que escrevera contra a religião na Alemanha utilizando-se do materialismo tradicional, e com o qual Marx concordara em seus Manuscritos, por considerá-lo adequado em sua oposição ao idealismo de Hegel, continha alguns equívocos que precisavam ser devidamente esclarecidos senão refutados. Assim, escreveu as chamadas onze Teses sobre Feuerbach (MARX, 2009), através das quais, em resumo, identifica na ação política prática a única forma de atuação da verdadeira filosofia em contraposição ao idealismo, à contemplação e à imobilidade. “É na práxis que o homem deve demonstrar a verdade, a saber, a efetividade e o poder, o caráter terreal de seu pensamento”, afirma já na segunda tese. E conclui na décima-primeira: “Os 203 filósofos têm apenas interpretado o mundo de maneiras diferentes; a questão, porém, é transformá-lo”. Depois das Teses, que só foram publicadas por Engels em 1888 (na verdade eram apenas rascunhos que Marx pretendia, ao que tudo indica, desenvolver depois), Marx redigiu, em parceria com Engels, A Ideologia Alemã, entre setembro de 1845 e maio de 1846. Mas essa obra só foi impressa postumamente, em 1932, pois à época não encontraram editor disposto a publicá-la. Menos males para os autores, segundo avaliaram, pois a consideravam apenas rascunhos esclarecedores de suas próprias reflexões. "Abandonamos tanto mais prazerosamente o manuscrito à crítica roedora dos ratos, na medida em que havíamos atingido nosso fim principal: ver claro em nós mesmos", afirmara depois em Para uma Crítica da Economia Política. Contudo é na A Ideologia Alemã e na A Sagrada Família, também escrita em parceria com Engels, como vimos (as primeiras, portanto), que Marx e Engels vão expressar “pela primeira vez a sua concepção de história”, segundo Abrão (2004, p. 383). De fato. Mesmo parecendo que o objetivo inicial do livro seja somente confrontar e romper com os jovens hegelianos, especialmente com aqueles considerados de esquerda, como Ludwig Feuerbach, Bruno Bauer e Max Stirner, que dão títulos aos três capítulos, nessa obra Marx e Engels, ao mesmo tempo em que os combatem, abordam sobre a relação dinâmica entre sujeito e objeto, abolindo a especulação filosófica, e colocam a ciência da história (a História) como a única ciência (e este é o ponto que mais nos interessa aqui) para a qual se deve sempre partir da produção material da vida. Por isso nessa obra se acha, inclusive 204 para alguns marxianos importantes como Fernandes (1983, p. 21), “a única sistematização que empreenderam em comum da história como ciência”. Com efeito, fazem uma elaboração histórica da sociedade, desde alguns de seus primórdios, colocando sempre o homem no centro desse desenvolvimento societário, numa explicitação encadeada e naturalista (sequencial e evolutiva) da história até alcançar a sociedade revolucionária burguesa. Mas tudo isso não sem etapas, consequências, conceituando e categorizando tais etapas e consequências, dentre as quais destacaríamos: classes sociais, divisão do trabalho, formas de propriedade (tribal, estatal e comunal, feudal ou estamental), intercâmbio, ideologia e alienação. Destaquemos aqui, an passant, apenas o que seria ideologia para ambos. A produção de ideias e representações da consciência está entrelaçada, dix Marx (1970), em dois campos: a atividade material e no intercâmbio material (relações sociais) dos homens. Toda essa reprentação, assim, deriva do seu comportamento material. “O mesmo vale para a produção intelectual tal como se apresenta na linguagem da política, das leis, da moral, da religião, da metafísica etc. de um povo”, acrescenta. A partir da divisão social do trabalho, os interesses dos indivíduos pertencentes às classes sociais dominantes impuseram-se sobre as classes subalternas, mas tal imposição acontece de maneira dissimulada, falsa, ilusória ou, como diz o próprio Marx, apresenta-se de forma invertida. Assim, todos os homens e suas relações aparecem “como numa câmera escura, virados de cabeça para baixo”, acrescenta. Tal é o processo e a própria ideologia. Isto é, a classe dominante apresenta falsamente, principalmente através do Estado, que os seus interesses particulares são naturais, humanos, universais e bons para todos os homens. E mais ainda: e 205 que todos os membros da sociedade são iguais em todos os níveis societários materiais e imateriais. “A função principal da ideologia é ocultar e dissimular as divisões sociais e políticas, dar-lhes a aparência de indivisão e de diferenças naturais entre os seres humanos”, explica Chauí (2000, p. 174). Marx e Engels demonstram assim que a realidade histórica até a sociedade presente (a deles), na Alemanha e França especialmente, era fruto das relações contraditórias e sociais, das condições de produção e da forma de propriedade, que determinavam, além da produção material de toda ordem, também a produção das ideias – ambas, porém, passíveis de serem modificadas, pois nasciam do próprio homem, vivo e ativo, posto ser este mesmo o pressuposto da transformação histórica. Ambos, dessa forma, além de inverterem a ideologia dos filósofos alemães, na qual os homens apareciam desapartados da história, colocavam os homens no centro da história, como resultados das circunstâncias, mas também como atores de suas próprias condições materiais e espirituais. Mas mais que isso: ao apresentarem a história como uma ciência inevitável do próprio curso da história, e nela os indivíduos como criadores e criaturas objetivas e subjetivas de si mesmos, apresentavam também a classe proletária e o comunismo como o único sujeito, no âmago da sociedade burguesa, capaz de interpretar tal processo histórico in flux e promoverem em conjunto a transformação social necessária. Em suma: uniam a “ciência da história” e o comunismo com as massas dos trabalhadores explorados a fim de compreendendo o passado modificar o futuro num revolucionário presente. “O comunismo científico caracteriza-se pelo movimento inteiro da história – pelo devir do homem considerado na sua totalidade”, explica-nos Lefebvrre (1979, p. 41). Alcançar-se-ia 206 assim, para Marx e Engels, a consecução da hisória universal na qual nem mesmo o comunismo, ao contrário do que ainda pensam muitos, não se constitui num estado de coisas estáticas e idealizadas, mas em um processo em fluxo igualmente dialético e material. Para nós o comunismo não é um estado que deva ser implantado, nem um ideal que a realidade deva obedecer. Chamamos comunismo ao movimento real que acaba com o atual estado de coisas. (...) O proletariado só pode existir à escala da história universal, assim como o comunismo, que é o resultado de sua ação, só pode concretizar-se enquanto existência “histórico- universal”. Existência histórico-universal dos indivíduos diretamente ligada à história universal (MARX; ENGELS, 1970, vol. I, p. 42-43). Entre 1844 e 1846, Marx envolveu-se em algumas polêmicas em decorrência de suas atividades políticas práticas e reflexivas na imprensa. Dentre as mais importantes, como a que travou com Joseph Proudhon, resultou no livro A Miséria da Filosofia (MARX, 1976). Trata-se de uma resposta irônica ao livro de Proudhon Sistemas das Contradições Econômicas que tinha como subtítulo Filosofia da Miséria. De acordo com Konder (1981, p. 77), o alemão Marx redigiu o texto diretamente em francês e “o ataque foi severo”. Isso porque Marx considerou que o pensador francês reduziu à banalidade dualítica a complexidade da dialética de Hegel ao analisar a economia burguesa – ou seja, acrescentou Marx, analisou como o próprio burguês que era. Proudhon simplificou o processo idealizado das contradições históricas de Hegel ao meramente “lado bom” e “lado mau” das coisas, explica Konder. E diminuiu à ciência social apenas a busca por esse “lado bom” e a sua incorporação aos estágios mais avançados do processo histórico. Pierre Proudhon, como representante da mentalidade da pequena burguesia, continua Konder, destancando a diferenciação de história para Marx e Proudhon, 207 não compreendeu o caráter histórico das contradições que tinha procurado examinar em seu livro e utilizou, em sua análise da economia capitalista, conceitos e categorias que supunha estarem acima da história. “Ele falava, por exemplo, em “natureza humana” como se essa natureza humana fosse algo imutável que não se modificasse ao longo da história e não pudesse mudar no futuro”, esclarece Konder (1981, p. 79), para por fim arrematar: “Marx retrucou-lhe: “O Sr. Proudhon ignora que toda a história não tem sido outra coisa senão uma permanente trasformação da natureza humana”. Se Marx refuta a concepção de história e de algumas categorias sociais em Proudhon, sinteticamente destacada por Konde acima, também esclarece de maneira didática o pensamento dialético de Hegel, bem como a sua aplicação histórica e prática, mas agora através do seu próprio pensamento (marxista), conforme entendera por modificá-lo para melhor comprender a realidade econômica que Proudhon não viu ou teimava em não ver. Quando esclarece, por exemplo, sobre a concepção metodológica de Hegel, Marx explica que tudo e todas as coisas que existem sobre a Terra e sob as águas não existem e não vivem senão em virtude de um movimento qualquer. “Assim, o movimento da história cria relações sociais, o movimento da indústria nos proporciona os produtos industriais etc.”, acrescenta Marx (1976, p. 102), que continua: Assim como, por meio da abstração, transformamos todas as coisas em categoria lógica, de igual modo basta fazer abstração de todo traço característico dos diferentes movimentos, para chegar ao movimento em estado abstrato, ao movimento puramente formal, à fórmula puramente lógica do movimento julga-se ter encontrado o método absoluto, que não só explica cada coisa, mas que implica além disso, o movimento das coisas (MARX, 1976, P. 102). 208 Em seguida, Marx explica que, em Hegel o método é a força absoluta, única, suprema, infinita, composta, através da lógica, por conjuntos de produtos e de produção que não poderiam resultar noutra coisa a não ser em uma metafísica aplicada, coisa que Hegel fez com a religião, o direito etc. Algo que Proudhon gostaria de fazer para a economia política e redunda-se inevitavelmente também numa metafísica da própria economia política. Para provar isso, Marx aprofunda-se na explicação do método hegeliano, retomando a concepção universal de movimento. Em que consiste, pois, esse método absoluto? Na abstração do movimento. Que é a abstração do movimento? O movimento em estado abstrato. Que é o movimento em estado abstrato? A fórmula puramente lógica do movimento ou o movimento da razão pura. Em que consiste o movimento da razão pura? Em situar-se em si mesma, opor-se a si mesma e combinar-se consigo mesma, em formular-se como tese, antítese e síntese ou então, em afirmar-se, negar-se e negar a negação (MARX, 1976, p. 103). Após a razão afirmar-se agora como tese, tal pensamento, oposto de si mesmo, se desdobra em dois pensamentos contraditórios: o positivo e o negativo, o sim e o não. “A luta desses dois elementos antagônicos, compreendidos na antítese, constitui o movimento dialético”, complementa Marx, acrescentando que, agora, o sim se converte em não, o não em sim, de tal forma que ambos são a mesma coisa de si mesmo e ao mesmo tempo do outro, equilibrando-se, neutralizando-se, paralisando-se reciprocamente. A fusão desses dois pensamentos contraditórios, constitui um pensamento novo, que é a sua síntese. Este pensamento novo, volta a desdobrar-se em dois pensamento s contraditórios. Desses dois grupos de pensamentos nasce um novo grupo, assim também, do movimento dialético dos grupos nasce a série do movimento dialético das séries nasce o sistema. (...) Aplicai este método às categorias da economia política e terei a lógica metafísica da economia política... O Sr. Proudhon, pese a todo seu zelo por escalar os píncaros do sistema das contradições, não pode jamais passar dos dois primeiros escalões: da tese e da antítese simples, e além disso não chegou a eles mais que duas 209 vezes e, dessas duas vezes, numa delas caiu de papo para o ar (MARX, 1970, p. 103-104). Assim, pois, mais na frente, Marx dá um exemplo claro de como Proudhon, ao se utilizar do método dialético de Hegel, o faz de maneira equivocada, chegando a um resultado que é, acreditamos, com base nas explicações do próprio Marx, uma metafísica inversão da inversão, ou seja, uma confusão com uma conclusão lógica inevitavelmente paradoxal, contraditória. Isso porque Proudhon, ao aplicar o método dialético hegeliano – ainda mais no sentido metafísico, conforme afirmado por Marx –, à análise do monopólio moderno e da concorrência, parte desses elementos em si, esquecendo-se de que ambos já são a inversão de um movimento anterior, ou seja, de que a concorrência foi engendrada pelo monopólio feudal, sendo, portanto, inicialmente, ambos o contrário um do outro. Neste momento Marx chega ao extremo de seu didatismo, ao explicitar o que vem a ser tese, antítese e síntese, corrigindo Proudhon por entrar em contradição com sua própria filosofia: Portanto, o monopólio moderno não é uma simples antítese, mas pelo contrário é a verdadeira síntese. Tese: O monopólio feudal anterior à concorrência. Antítese: A concorrência. Síntese: O monopólio moderno, que é a negação do monopólio feudal, porquanto pressupõe o regime da concorrência, e a negação da concorrência, porquanto é monopólio. Assim, pois, o monopólio moderno, o monopólio burgês, é o monopólio sintético, a negação da negação, a unidade dos contrários (MARX, 1976, p. 143). Não foi à toa que Marx disse que na França Proudhon era conhecido como filósofo e na Alemanha como economista. Polêmicas pessoais à parte, Marx estava interressado mesmo era num projeto grandioso, mais, digamos, absoluto – o da transformação da sociedade através da ação revolucionária. O ano de 1847, por 210 exemplo, ainda em Bruxelas, mas com entendimentos por outros países europeus, especialmente Alemanha, França e Inglaterra, foi de intensa atividade para ele. Além de várias conferências na sede da Associação dos Operários Alemães sediada em Bruxelas, onde falava, segundo Konder (1981, p. 81), sempre do trabalho assalariado, da exploração dos operários sob o regime capitalista, Marx dialogava, de acordo com Giannotti (2009, p. 50), com a Sociedade dos Democratas Fraternais, entidade que reunia artesãos ingleses, alemães e de outras nações européias, e, finalmente, se inscreve na Liga dos Justos, sociedade secreta cuja face pública era justamente a Associação dos Operários Alemães. Marx ingressa na Liga dos Justos exatamente quando ela estava para se transformar na Liga dos Comunistas. Marx e Engels participam ativamente das mudanças internas na nova entidade, de forma a depurá-la do socialismo utópico e implantarem um ideário hegemônico e revolucionário baseado na ciência histórica. Conseguem mudar o lema “Todos os homens são irmãos” para “Proletários do mundo, uni-vos”, segundo Giannotti (2009, p. 51), e apóiam o novo estatuto cujo primeiro artigo estabelece que a Liga visa derrubar a burguesia, instalar o reino do proletariado e fundar uma nova sociedade sem classes e sem propriedade privada. Em novembro de 1847, de acordo com Konder (1981, p. 82), eles vão para Londres onde participam do II Congresso da Liga dos Comunistas (Giannotti informa ter sido o I). “Lá, eles desenvolveram um infatigável trabalho de persuasão dos representantes operários, convencendo-os das vantagens de seus pontos de vista. Em consequência desse trabalho, foram ambos encarregados da redação de um Manifesto Comunista”, revela Konder (1981, p. 82). “Em janeiro de 1848, Marx 211 envia a Londres o Manifesto do Partido Comunista, um dos textos mais importantes do século”, complementa Giannotti (2009, p. 52). O Manifesto do Partido Comunista (MARX; ENGELS, 2010) é considerado um material impresso admirável por possuir importantes características voltadas diretamente para as massas. Possui, realmente, um caráter didático, uma linguagem acessível e um tamanho de texto extremamente curto para os padrões que as explicitações sociais e filosóficas da época (e de ainda hoje) exigiam. Ou seja, é extremamente sintético na exposição das bases mais fundamentais do materialismo histórico e revolucionário. Por isso a objetividade, a clareza e o vigor sobre a importância do que se diz é patente e impressionam – talvez daí Giannotti ter dito acima, como vimos, ser “um dos mais importantes textos do século”. A conclusão sobre esse trabalho nos parece óbvia: Marx e Engels produziram uma peça máxima do jornalismo contemporâneo a eles (o formato e o conteúdo de peças similares afeitas ao jornalismo viriam, ao longo do tempo, até os dias atuais, sendo cada vez mais despojados, curtos e diretos). “O Manifesto pode ser considerado, ainda hoje, a melhor introdução ao estudo do pensamento de Marx. Apesar de trascorrido cerca de 120 anos desde que ele foi escrito, é surpeendente como o documento resistiu à ação do tempo e continua a provocar poderosa impressão nos que o leem” – afirma Konder (1981, p. 82). Em o Manifesto, Marx e Engels, logo no início, são, como todos os jornalistas devem ser na imprensa do dia-a-dia, titulares e impactantes: “Um espectro ronda a Europa – o fantasma do comunismo”. E continuam, sem deixar de serem menos surpreendentes: “Todas as potências da velha Europa unem-se numa Santa Aliança para conjurá-lo: o Papa e o Czar, Metternich e Guizot, os radicais da 212 França e os policiais da Alemanha”. Mas se buscavam ser surpreendentes, os dois filósofos-jornalistas não eram menos jornalistas-filósofos. Estavam utilizando-se de uma das mais caras premissas da imprensa moderna, quer dizer, estavam dizendo a verdade, uma verdade da época: de fato, a Europa vivia momentos de apreensão sobre a iminência de movimentos, lutas e consecuções revolucionárias – o que quer dizer abolição de privilégios, destruição de direitos exclusivos de uma classe, mudança de regime, supressão de governos, derramamento de sangue. O Manifesto, assim, mais que uma pregação, é consciencioso e esclarecedor sobre o que estava por ocorrer – e realmente ocorre. Finalmente explode a revolução esperada. Começa na Suíça em novembro de 1847, penetra na Itália até o sul da Sicília, atinge profundamente a Bélgica, agita a França e a Europa Central. Por toda parte grupos operários se insurgem, reivindicando maior igualdade social (Giannotti, 2009, p. 53). Segundo o Manifesto, o mundo é dividido em classes sociais e o crescimento da classe mais explorada, mais subalterna, mais humilhada, a classe operária, faz parte do dinamismo do capitalismo que requer da mesma forma crescente o aumento da produção e da acumulação das riquezas, enfim, do capital. Em contraposição à classe trabalhadora está a burguesia. A condição para esta supremacia da classe burguesa sobre a operária é a propriedade. De igual modo, a condição para existência desse capital apropriado é o trabalho assalariado. Mas o progresso industrial substituiu o isolamento dos operários por sua união revolucionária. Essa união se dá através da associação. Assim, ao mesmo tempo em que o desenvolvimento da grande indústria abriu o terreno sobre o qual implantou tal regime de produção, exploração e acumulação, produziu “os coveiros” que irão enterrá-lo. O eufemismo de Marx e Engels é para explicar o seguinte: somente a classe operária poderá sepultar na história tal regime de 213 exploração. Mas isso se dará apenas através de uma atitude revolucionária de conquista do poder político e da supressão da propriedade privada. Dissemos supressão porque a propriedade privada não será totalmente abolida. No comunismo, esclarecem, todos terão o direito de ter a sua parte dos produtos sociais. O que verdadeiramente acaba é o poder de escravizar o trabalho de outrem através da apropriação. Marx e Engels explicam que o capitalismo universalizou-se e por isso essa mudança não pode restringir-se somente a um país, mas também ser universal. A revolução deve ter assim um caráter internacional. Por isso, conclamam Marx e Engels ao final do Manifesto, “os proletários nada têm a perder (...) a não ser os seus grilhões. Têm um mundo a ganhar. Proletários de todos os países, uni-vos!”. Embalados pelas revoluções na Europa daquele ano de 1848, os emigrados alemães participam intensamente desses movimentos, aproveitando a oportunidade para se aproximarem dos operários locais. Marx está entre eles. Com a queda do rei Luiz Felipe, da França, a 24 de fevereiro, o jornalista e pensador alemão chega a ser convidado por Ferdinand Flocon, membro do governo provisório, democrata pequeno-burguês e um dos redatores do jornal La Réforme, para voltar para Paris. Marx já se preparava para partir, quando o rei Leopoldo, da Bélgica, desencadeia uma onda de perseguição contra os políticos democratas, republicanos e principalmente contra os integrantes do movimento operário. Leopoldo sentia-se ameaçado, pois o rei deposto era seu sogro. A iminência da deposição do genro, portanto, também lhe incomodava. Assim, Marx foi preso e em seguida a sua esposa, Jenny Marx, que ficou numa cela por algumas horas junto com prostitutas. “A imprensa protestou contra o tratamento dado ao casal Marx”, diz Konder (1981, 214 p. 88), que completa: “Mas as manifestações de solidariedade não impediram que Marx e a mulher fossem expulsos da Bélgica". Realmente: segundo Giannotti (2009, p. 53), Marx foi acusado pela polícia belga de financiar a compra de armas para os trabalhadores de Bruxelas e, por isso, foi expulso, tendo recebido a ordem de deixar o reino belga em 24 horas. “Conduzido à fronteira, encontra Paris ainda revolta pelas lutas nas barricadas, festejando a queda do rei Luiz Felipe e a proclamação da II República”. Na França, Marx recusa-se a participar, sob um clima de euforia revolucionária, de dois levantes alemães, por considerá-los inapropriados. O primeiro de refugiados que, sob a liderança de Adalbert Von Bornstedt, com o financiamento do governo provisório francês, pretendia invadir militarmente a Alemanha. A invasão revelou-se um fiasco. O outro foi proposto pelo duque de Brunswick, que se dispunha a financiar uma operação na Prússia desde que voltasse a ter o seu antigo ducado. Dispensável dizer que Marx o recusou prontamente. A revolução deve ter também seu bom senso. Marx decide, então, junto com o amigo Engels, partir para a Alemanha. Ambos preferem aproveitar as condições internas, agora mais favoráveis, dado o rei Frederico Guilherme IV estar fazendo acordos com os constitucionalistas e os liberais, por se encontrar numa posição vulnerável: Metternich, do Império Austríaco, havia caído e ele também temia ser deposto. A decisão envolve novamente a imprensa. Ambos voltam para Colônia, onde Marx havia dirigido a Gazeta Renana, mas agora para dirigir e publicar a Nova Gazeta Renana (Neue Rheinische Zeitung). O objetivo é promover as reformas necessárias à instauração das mudanças radicais rumo ao comunismo. Para isso fazem também acordos 215 políticos com os democratas, dissolvem a Liga dos Comunistas, por considerá-la ultrapassada e denunciam o oportunismo de revolucionários intempestivos e inconseqüentes. Na França, porém, o movimento revolucionário de fevereiro de 1848 reflui e a burguesia reprime com violência um protesto operário em junho daquele mesmo ano (Marx irá escrever sobre isso, tirando lições e explicações históricas, como veremos mais adiante). Na Prússia, então, as forças reacionárias se reorganizam. O governo fecha o Congresso e decreta estado de sítio em Colônia. Em função disso, a Nova Gazeta Renana é fechada temporariamente. Após o sufocamento de rebeliões internas, o governo esgota o prazo do estado de sítio e o jornal volta a ser publicado. Marx também volta a escrever – e agora de forma mais radical. O governo, então, decide processá-lo. Marx faz a sua própria defesa. Trata- se de um belo discurso em favor da liberdade de imprensa. Esse discurso foi publicado na Nova Gazeta Renana em 14 de fevereiro de 1849, uma semana após o julgamento que o absolveu. No Brasil, em 1980, esse discurso também foi publicado num livro junto com outros artigos igualmente ilustres de Marx (1980) sobre a imprensa e acontecimentos imediatos, próprios da imprensa cotidiana. Tal livro nos mostra um pouco do pensamento e do estilo jornalístico de Marx quando o assunto é a liberdade ou o trabalho da imprensa. Trata-se de uma amostra bastante pequena da produção jornalística de Marx, tendo em vista que ele e Engels escreveram mais de 500 artigos e verbetes de enciclopédias só para os EUA, segundo José Onofre na apresentação da própria obra brasileira. Naquele discurso, proferido a 7 de fevereiro de 1849, Marx (1980, p. 70) é enfático em sua opção por unir jornalismo e história e repudiar a prática da 216 advocacia burguesa: “Eu, de minha parte, asseguro-lhes, cavalheiros, eu prefiro acompanhar os grandes acontecimentos mundiais, analisar o rumo da história, do que pelejar ídolos locais, com policiais, com tribunais”. E finaliza mostrando, por conclusão, qual deve ser exatamente a primeira grande missão da imprensa: “Mas, de uma vez por todas, é o dever da imprensa tomar a palavra em favor dos oprimidos à sua volta. (...) O primeiro dever da imprensa, portanto, é minar todas as bases do sistema político existente (Aplausos no tribunal)” (MARX, 1980, p. 70 – destaque mantido). Marx foi absolvido. Saiu livre e aplaudido do Tribunal de Colônia. Mas politicamente estava abatido. Vira a revolução recuar; os velhos hábitos da clandestinidade “revolucionária” retornarem; a Nova Gazeta Renana mais uma vez ser fechada pelo despotismo; o pedido de sua nacionalidade alemã lhe ser negado pelo governo; e encontrar-se numa situação financeiramente precária. “Nessas condições, não tem mais o que fazer em sua terra natal e termina emigrando para a Inglaterra”, lamenta Giannotti (2009, p. 56). Marx passa novamente por Paris antes de seguir viagem para Londres. Em 24 de agosto de 1849 se instala na capital londrina. Reorganiza a Nova Gazeta Renana em forma de revista mensal. Ainda consegue publicar seis números. Todos foram impressos em Hamburgo. O último número foi publicado em novembro de 1850. No campo da ação política, tenta soerguer a Liga dos Comunistas, mas sem muito sucesso: as brigas internas o impedem de prosseguir. Chega mesmo a escrever um panfleto sobre essas divergências: Os Grandes Homens do Exílio. Entrega-o a um editor que se mostra interessado. O editor desaparece. Descobre-se depois que se tratava de um agente policial disfarçado. 217 A vida pessoal de Marx, por outro lado, afunda na miséria. Segundo Giannotti, três de seus filhos (Konder informa que foram dois) chegam a falecer por falta de assistência médica, remédios, dinheiro, comida. “Há oito dias que alimento minha família unicamente com pão e batatas. E não sei se ainda vou poder comprar pão e batatas para hoje” – diz Marx numa de suas cartas para o amigo Engels, que lhe ajuda financeiramente, em 8 de setembro de 1852, segundo Konder (1981, p. 96). Mas se a vida pessoal de Marx e de sua família ia aos frangalhos, na Nova Gazeta Renana mantém sua crescente produção intelectual. Publica na própria Gazeta em capítulos o livro As Lutas de Classe na França de 1848 a 1850 e no jornal New York Tribune publica O Dezoito Brumário de Luís Bonaparte, segundo Giannotti (Konder informa que foi na revista A Revolução, de Nova York). São duas contribuições significativas para a concepção da história em Marx. Isso porque ele analisa de maneira prática a história real, diretamente sob a perspectiva da economia política, utilizando-se do pensamento dialético hegeliano, mas agora invertido, ou seja, partindo da realidade para a abstração e voltando para a realidade prática – conforme assim já compreendera e estabelecera. Em ambas as obras vemos o Marx trabalhar a história como um processo, conforme destaca Fernandes (1983), e tratá-la diretamente através de seus próprios elementos definidos, dinâmicos e concretos: são os homens que produzem a sociedade e os próprios homens e ao mesmo tempo são produzidos por essa mesma sociedade de indivíduos produtores que também produzem a si mesmos. Isso quer dizer que Marx analisa a história dos homens ativos e reais em dado momento 218 histórico definido e de maneira prática sob a ótica do Materialismo Histórico e Dialético. Os acontecimentos, personagens, tramas, dramas, movimentos e interesses surgem assim como partes de uma sociedade dividida em classes sociais. Nela as contradições afloram, em crises, revoltas, revoluções ou mesmo em contra- revoluções (reacionarismo) de sorte a se configurar ora de uma forma num momento, ora de outra noutro momento e até mesmo de se repetir neste mesmo outro momento. Uma história em processo, mas que pode ser tomada e domada oportunamente pelos seus próprios protagonistas mais explorados e apontar para um futuro que se quer construir, enterrando as inspirações poéticas, românticas, religiosas, metafísicas etc. do passado. Aqui vale transcrever, nesse aspecto, uma das citações mais conhecidas de Marx em O Dezoito Brumário. Os homens fazem a história, mas não a fazem arbitrariamente, nas condições escolhidas por eles, mas nas condições dadas diretamente e herdadas do passado. A tradição de todas as gerações sobrecarrega o cérebro dos vivos. E mesmo quando eles parecem ocupados em se transformar, a si próprios e às coisas, em criar algo completamente novo, é precisamente nessa época de crises revolucionárias que eles evocam receosamente os espíritos do passado, dos quais eles tomam seus nomes, suas palavras de ordem, seus costumes, para aparecer na nova cena da história sob esse disfarce respeitável e com essa linguagem emprestada. (...) A revolução social do século XIX não pode tirar sua poesia do passado, mas somente do futuro. Ela não pode começar como tal antes de ter liquidado completamente toda superstição com referência ao passado. As revoluções anteriores tiveram necessidade de reminiscências históricas para dissimular para si mesmas seu próprio conteúdo. A revolução do século XIX deve deixar os mortos enterrarem seus mortos para realizar o seu próprio fim. Outrora, a frase excedia ao conteúdo, agora, é o conteúdo que excede à frase (MARX, 1978, p. 17-18). Parece-nos óbvio que aqui, ao final, mais exatamente nas duas últimas frases do texto, Marx está se referido diretamente ao cristianismo: quem disse essa sentença foi Jesus, segundo os evangelistas, quando pregava algo 219 revolucionariamente novo para a época, através de um novo ethos para a vida, principalmente a vida espiritual, voltado para a salvação da alma, quando de uma existência supra-real. A crítica de Marx, contudo, parece ainda mais pertinente quando lembramos que, além disso, os “novos hegelianos, principalmente aqueles objetos da crítica de Marx em A Sagrada Família, enveredaram com a filosofia de Hegel pelos caminhos da fé cristã. Impõe-se assim um novo posicionamento para os agentes revolucionários (talvez também para os próprios historiadores de hoje) diante dos acontecimentos contemporâneos e da própria historiografia: aquele que desmistifique cientificamente a própria história. Mas se deve-se desprezar o etéreo do passado através da ciência para evitar a sua projeção a partir do presente, não se deve deixar de lado os fatos superficiais e ao mesmo tempo os acontecimentos mais profundos do período quando se trata de análise prática, corrente, dessa mesma narrativa. O objetivo pode ser, a par deles, articulá-los dialeticamente entre si. Esclarece-nos, a propósito, Florestan Fernandes, ao comentar sobre essa fase de Marx e nela o seu trabalho prático sobre a história: A história da vida cotidiana e do presente em processo, encarada da perspectiva do materialismo histórico, propõe-se lidar, simultaneamente, com os fatos históricos que permitem descrever tanto o “superficial”, quanto o “profundo” na cena histórica. No plano descritivo, ela busca a reconstrução da situação histórica total. No plano interpretativo, ela se obriga a descobrir a rede (ou as redes) da causação histórica, associando reciprocamente as transformações das relações de produção às transformações da sociedade e das superestruturas políticas, jurídicas, artísticas, científicas, religiosas etc. (FERNANDES, 1981, p. 51). O mesmo Fernandes (1981, p. 57) é quem nos explica sobre as qualidades daquele outro trabalho de Marx do mesmo período em que se iniciara na Inglaterra: 220 As Lutas de Classe na França de 1848 a 1850 é “o mais vigoroso estudo histórico produzido por K. Marx”. Fernandes acrescenta que este texto de Marx se encontra na base da formação não somente do pensamento histórico, mas também das Ciências Sociais. “Nele se destacam a precisão da descrição histórica, a compreensão da situação histórica como totalidade e a introdução de um modelo causal adequado aos fatos e processos históricos”, completa o pesquisador Fernandes à mesma página. Trata-se, portanto, de uma obra com as mesmas características analíticas e metodológicas acerca de uma dada realidade histórica determinada como encontramos em O Dezoito Brumário: a descrição, a narrativa, o encadeamento lógico-temporal dos fatos, a nomeação e a retratação dos personagens, os interesses ideológicos e políticos etc. em que se sobressaem as lutas de classes e fica subsumido o economicismo do qual Marx é freqüentemente acusado. “Em ambas as obras, o método do materialismo histórico recém-cirado foi posto à prova na interpretação à quente de acontecimentos da atualidade imediata”, explica Gorender (1983, p. XVII). “Nelas, são realçados não só fatores econômicos, mas também fatores políticos, ideológicos, institucionais e até estritamente concernentes às pessoas dos protagonistas dos eventos históricos”, completa. Entretanto, elas possuem um algo mais, dentro das mesmas características historiográficas e metodológicas explicitadas acima, que destacaríamos aqui. Ambas nos falam, principalmente a primeira, dos processos sangrentos e revolucionários da história. Algo que fez em igual timbre Engels ao escrever no mesmo período (1848-1850) sobre As Guerras camponesas na Alemanha. Trata-se de elementos de uma prática-prática do Materialismo Histórico e Dialético que nos 221 remete aqui, como o leitor já deve ter percebido, à nossa segunda palavra metafórica: sangue. Expressão que associamos assim tanto ao socialismo francês, que inspirou as propostas de mudanças radicais a partir da classe proletária, e à construção do pensamento do próprio Marx naquele momento, quanto à reação igualmente radical das classes burguesas a essas mudanças, assim como também, e até com certo destaque, aos seus inevitáveis e por vezes terríveis resultados: os choques violentos de ideias e de interesses, os levantes e os inúmeros embates sangrentos que resultaram em milhares de mortes, muitas das quais torpes e cruéis. Associamo-la, também e por conseguinte, aos levantes políticos e religiosos radicais, e aos embates sangrentos da oposição reacionária e às milhares de mortes resultantes, inclusive em outros países da Europa, de que nos fala Engels em seu ensaio sobre As Guerras Camponesas na Alemanha, escrito sob a mesma perspectiva teórica, mas com o seu próprio stylus. “Esta visão da história, a única materialista, não parte de mim, mas de Marx, e encontra-se igualmente nos seus trabalhos sobre a revolução francesa de 1848-1849, nessa mesma Revue, e no Dezoito Brumário de Luís Bonaparte”, explica em seu prefácio o próprio Engels (1981, p. 6 – tradução nossa). Há outros textos igualmente importantes e com mais ou menos as mesmas características de análise histórica de Marx e Engels. São aqueles que foram escritos nesse período em que Marx se encontrava em situação muitíssimo precária e precisava sobreviver. Marx assim escreveu para o People’s Paper, Neuer Oder Zeitung, Ther Free e New York Daily Tribune. Neste jornal estadunidense, aliás, é onde se encontra, para muitos, sua mais substanciosa colaboração jornalística sobre a história. Citemos apenas alguns: Capital Punishment (Punição Capital), 222 Revolution in China and Europe (Revolução na China e na Europa), The British Rule in India (O Domínio Britânico na Índia), War in Burma (Guerra na Birmânia) e The Future Results of British Rule in India (Resultados Futuros do Domínio Britânico na Índia) de 1853 e The Decay of Religious Authority (A Decadência da Autoridade Religiosa) de 1854 e Revolution in Spain (Revolução na Espanha) de 1856. O período que cobre o conjunto desses textos marca, inclusive, entre 1852 a 1854, para alguns historiadores, a transição de Marx e Engels da filosofia para a economia. Com efeito, se Marx na França já mantivera contatos com as obras de importantes economistas franceses e principalmente ingleses, na Inglaterra iria se aproximar ainda mais da economia política. Leu e estudou em seu exílio londrino os livros de Robert Torrens, Thomas Hodgskin, Thomas Robert Malthus, Andrew Ure, J. G. Hubbard, Nassau Senior, William Hickling Prescott, Claude Frédéric Bastiat, J. Gray, dentre outros. E aqui nos encontramos mais enfaticamente com aquela nossa terceira expressão: Suor. O trabalho está no centro dos estudos da economia política e Marx se encontra na Inglaterra, centro mundial produtor do trabalho, do trabalhador assalariado e ao mesmo tempo de seus reveses – a degradação, a miséria, o desemprego, a violência, a fome, as doenças; elementos dos quais o próprio Marx padece. A economia política clássica – que Marx vai criticar vigorosamente, acusando-a de representação intelectual e ideológica da burguesia – preocupa-se somente com o primeiro, quer dizer, com a tecnologia, o lucro, a exploração, a expropriação, a rentabilidade, a posse. Nesse aspecto, Marx se debruçou sobre a teoria do valor-trabalho de Smith e Ricardo. Trata-se, como explica Gorender (1983, p. XXX), da “idéia de que o trabalho exigido pela 223 produção das mercadorias mede o valor de troca entre elas e constitui o eixo em torno do qual oscilam os preços expressos em dinheiro”. O lucro, entretanto, nas acepções de Smith e Ricardo, continuava sem explicação, por conta da sua equivalência entre o capital e a força de trabalho quando relacionados na troca. A solução para essa questão fundamental da economia foi resolvida por Marx com a teoria da mais-valia, cuja concepção apresenta de forma mais refinada, junto com a sua teoria sobre o valor, em O Capital – o que veremos resumidamente mais na frente. A esse conjunto de fatores históricos e teóricos envolvendo a figura intelectual de Marx, imersos e ao mesmo tempo expressando uma sociedade com todas as conformações, condições e práticas sociais capitalistas avançadas, voltadas para a transformação da natureza, com toda ordem de conseqüências daí advindas, para o bem e para o mal, é o que buscamos enquadrar nesta expressividade metafórica e única, que nos remete ao elemento desencadeador de tudo isso, o trabalho. Uma sociedade cuja representação, por seu lado mais triste, também nos é apresentada por Engels ao analisar a situação da classe trabalhadora na Inglaterra, assim como por ambos, Marx e Engels, em toda Europa, seja por seus outros escritos, seja por suas práticas políticas. Pois bem, foi com base nessas leituras sobre economia política, mesmo contendo essa linha clássico-burguesa, especialmente em Adam Smith e David Ricardo, e também como parte-integrante contestatória dessa sociedade, que Marx escreveu, aprofundando-se no seu método, Introdução Geral à Crítica da Economia e depois Fundamentos da Economia Política. Em seguida, baseado nesses dois trabalhos, escreveu e publicou, em 1859, Contribuição à Crítica da Economia Política, conhecido também como Grundisses. Nesta obra já antecipa 224 aqueles que viriam a ser os quatro primeiros capítulos de O Capital. Vale aqui destacar duas passagens dessas obras. A primeira nos fala da importância decisiva de sua atividade jornalística no Gazeta Renana para começar a voltar-se aos estudos da realidade econômica e política, conforme já destacamos acima, mas que, no prefácio de sua Contribuição, nos fala de modo ainda mais revelador. Em 1842-43, na qualidade de redator da Rheinische Zeitung (Gazeta Renana), encontrei-me, pela primeira vez, na embaraçosa obrigação de opinar sobre os chamados interesses materiais. Os debates da Dieta renana sobre os delitos florestais e o parcelamento da propriedade fundiária, a polêmica oficial que o Sr. Von Schaper, então governador da província renana, travou com a Mosela, por último, das discussões sobre o livre-câmbio e o protecionismo, proporcionaram-me os primeiros motivos para que eu começasse a me ocupar das questões econômicas. Por outro lado, nessa época, em que o afã de “avançar” sobrepujava amiúde a verdadeira sabedoria, fez-se ouvir na Gazeta Renana um eco entibiado, por assim dizer filosófico, do socialismo e do comunismo francês (MARX, 1983, p. 23). A segunda passagem se encontra na Introdução dos seus Grundisses, onde Marx nos revela didaticamente o seu método de abordagem na economia política – o que nos permite compreender melhor a sistematização de seu pensamento. Mesmo que esse pensamento não seja “um modelo, pois o seu itinerário filosófico- científico é a apreensão da lógica objetiva dos seres e processos, é a concreção conceitual da regência imanente das existências”, como nos alerta Vaisman (2010), Marx fala de maneira clara e ilustrativa: Parece correto começar pelo real e o concreto, pelo que se supõe efetivo; por exemplo, na economia, partir da população, que constitui a base e o sujeito do ato social da produção no seu conjunto. Contudo, a um exame mais atento, tal revela-se falso. A população é uma abstração quando, por exemplo, deixamos de lado as classes de que se compõe. Por sua vez, estas classes serão uma palavra oca se ignorarmos os elementos em que se baseiam, por exemplo, o trabalho assalariado, o capital, etc. Estes últimos supõem a troca, a divisão do trabalho, os preços, etc. O capital, por exemplo, não é nada sem o trabalho assalariado, sem o valor, sem o dinheiro, sem os preços, etc. Por conseguinte, se começássemos simplesmente pela população, teríamos uma visão 225 caótica do conjunto. Para uma análise cada vez mais precisa chegaríamos a representações cada vez mais simples; do concreto inicialmente representado passaríamos a abstrações progressivamente mais sutis até alcançarmos as determinações mais simples. Aqui chegados, teríamos que empreender a viagem de regresso até encontrarmos de novo a população - desta vez não teríamos uma ideia caótica de todo, mas uma rica totalidade com múltiplas determinações e relações. (...) Eis, manifestamente, o método científico correto. O concreto é concreto porque é a síntese de múltiplas determinações e, por isso, é a unidade do diverso. Aparece no pensamento como processo de síntese, como resultado, e não como ponto de partida, embora seja o verdadeiro ponto de partida, e, portanto, também, o ponto de partida da intuição e da representação (MARX, 1983, p. 218) Por essa época, dos Grundisses, Marx participou ativamente da política e publicou mais artigos de interesse político e geral na imprensa, como Population, Crime and Pauperism (População Crime e Pauperismo) no New York Daily Tribune em 1859, Inaugural Address of the Working Men's International Association (Manifesto de Lançamento da Primeira Internacional) em 1864, e Value, Price and Profit (Salário, Preço e Lucro), em 1865. Mas nada comparado ao que publicaria dois anos depois e em cuja produção já vinha trabalhando por anos a fio, o livro O Capital. O primeiro volume de O Capital: Crítica da Economia Política – o Processo de Produção do Capital apareceu em 1867. A impressão ocorreu em Hamburgo (Alemanha) e a tiragem foi de um mil exemplares. Nele Marx apresenta ao mesmo tempo um estudo filosófico e político-econômico da sociedade capitalista. Em suma: estuda o modo de produção da sociedade capitalista e suas relações sociais. Justamente por isso, também é um estudo historiográfico, antropológico, sociológico, demográfico; um estudo, como nos fala Gorender (1983, p. XXIV), interdisciplinar e multilateral das ciências humanas. Isso quer dizer que temos que observar O Capital por esses dois principais vieses, o da filosofia e o da economia política, posto, como nos alerta Giannotti (2009, p. 64), 226 os filósofos tendem a desprezar o viés econômico e os cientistas tendem a desprezar o viés o filosófico. “O marxismo é ao mesmo tempo uma ciência (a sociologia científica, a economia racionalmente estudada etc.) e uma filosofia (uma teoria do conhecimento, da razão, do método racional etc.)”, referenda Lefebvre (1979, p. 20). No aspecto filosófico, poderíamos destacar o método hegeliano presente por toda a obra, porém, posto em prática da forma compreendida como a mais correta por Marx. Desta forma, as categorias sociais apreendidas e determinadas de maneira concreta são analisadas em processo dinâmico a partir da própria realidade social da qual os homens são os seus principais protagonistas. Marx, para isso, parte daquilo que compreende ser a unidade elementar da sociedade capitalista, a mercadoria. Assim, analisa a mercadoria como objeto celular e ao mesmo tempo imanente da sociedade. Ou seja, como ele mesmo diz acima, elemento concreto a partir do qual se deve elevar a abstrações cada vez mais refinadas até reencontrá-lo novamente em sua diversidade total e cheia de determinações. Assim, Marx procede a análise da mercadoria cujo texto foi escrito e reescrito várias vezes. Ele mesmo chama a atenção para as dificuldades de compreensão desse primeiro capítulo no prefácio logo da primeira edição. “Todo começo é difícil; isso vale para qualquer ciência. O entendimento do capítulo I, em especial a parte que contém a análise da mercadoria, apresentará, portanto, a dificuldade maior” (MARX, 1983, p. 11). Ao mesmo tempo em que avança, analisa a mercadoria como dotada de valores intrínsecos. E a partir daí desenvolve a sua teoria de valor. Aqui já ingressamos no campo da economia política, daí demonstrações quantitativas serem muito mais utilizadas como suportes da explanação marxista. 227 Assim, conceitos como valor de uso, valor de troca, força de trabalho cristalizada, tempo de trabalho socialmente necessário, caráter fetichista da mercadoria e mais-valia, dentre outros, se constituírem como elementos esclarecedores da sociedade capitalista irracional que Marx pretende desvendar – sim, porque no fundo o projeto de Marx é científico/propositivo/revolucionário e aponta para uma sociedade desvendada, racional, sem classes e humanamente dominada. Destaquemos apenas alguns desses conceitos, sintética e exclusivamente de seu livro primeiro (os dois outros volumes não foram publicados por Marx, mas, após a sua morte, por Engels, que coligiu os escritos dispersos e até os complementou para o livro terceiro), dado a complexidade de temas e aqui a carência de espaço. A mercadoria, diz Marx, é antes de tudo um objeto exterior dotado da capacidade de satisfazer as necessidades humanas. Ou seja: possui utilidades. Assim, possui a capacidade de ser utilizada de múltiplas maneiras. Uma dessas maneiras é aquela que satisfaz as necessidades subjetivas. Trata-se daquela mercadoria que tem a propriedade de suprir o “gostar”, o “querer”, o “desejar” dos indivíduos. Está ligada, portanto, às necessidades vitais, mas muito mais às psicológicas dos consumidores. A essa propriedade, que se apresenta no próprio corpo da mercadoria, Marx denomina de valor de uso. Tal valor se realiza no uso ou no consumo, explica Marx, mas também pode ser quantificada material e matematicamente – daí possui também um valor que denomina valor de troca. O valor de troca, no entanto, ao contrário do valor de uso, não é subjetivo, mas objetivo. Isso quer dizer que ele pode ser, como o valor de uso, não só quantificado numericamente, mas também qualificado. Tal qualificação ocorre no mercado das coisas produzidas, no grande leilão do mundo das mercadorias. Ou 228 seja: o valor de troca se manifestar objetivamente nas relações sociais, na troca, na compra e na venda dos produtos, servindo inclusive de parâmetro valorativo para outros produtos do trabalho humano no colossal reino das mercadorias. Uma mercadoria pode ter um mesmo valor que outra. Serem equivalentes. E assim serem trocadas entre si, equitativamente, no escambo. Para que tenha esse valor de troca, no entanto, o objeto deve ter alguma utilidade para alguém, ou seja, deve também possuir valor de uso. O contrário, porém, pode necessariamente não ocorrer. Marx, em seu processo de análise (abstração), retira do corpo da mercadoria o valor de uso, por justamente considerá-lo que não poder ser medido objetivamente. Isso implica dizer que nela não resta mais nada de sua utilidade para uso subjetivo. Assim resta estratificado na mercadoria apenas a sua propriedade quantitativa, ou seja, o seu valor de troca. Esse valor, conclui Marx, é único e será o valor total do bem. De onde, contudo, provém tal valor? Percorrendo o caminho de volta ao valor de troca Marx encontra em comum, na relação de troca, o valor. Um valor que, segundo deduz, só pode ser fruto do trabalho humano. Isso quer dizer logicamente trabalho humano corporificado na mercadoria. Portanto, infere Marx, o valor de troca só possui valor porque nele está cristalizado o trabalho humano abstrato. Podemos avançar ainda mais nas deduções de Marx sobre sua teoria do valor: no processo de fabricação dos produtos, é dispensado um grau de trabalho tanto maior quanto for necessário para a sua fabricação. Assim, quanto mais tempo exige a fabricação de uma mercadoria, maior valor tende a alcançar no mercado. Ao período médio necessário para a fabricação dessa mercadoria Marx chama de 229 tempo socialmente necessário. Nesse período médio estão inclusas também as condições e as habilidades igualmente médias e necessárias ao processo de fabricação. Caso esse tempo socialmente necessário fosse constante, diz Marx, a grandeza de valor de uma mercadoria também seria constante. A mercadoria muda seu valor, portanto, em decorrência da mudança do tempo social que a ela é dispensado na fabricação. Mas, então, o que produz a inconstância no período das equivalências sociais de tempo, habilidades e condições? Para Marx, esta decorre das mudanças naquilo que chama de força produtiva do trabalho. E o próprio Marx nos explica o que seja tal conceito: A força produtiva do trabalho é determinada por meio de circunstâncias diversas, entre outras pelo grau médio de habilidade dos trabalhadores, o nível de desenvolvimento da ciência e sua aplicabilidade tecnológica, a combinação social do processo de produção, o volume e a eficácia dos meios de produção e as condições naturais (MARX, 1983, p. 48). Mais adiante, Marx analisa o caráter fetichista da mercadoria. Marx explica que, assim que a matéria-prima é transformada em mercadoria, esta assume uma natureza metafísica. Noutras palavras: produz uma espécie de encantamento. Esse caráter místico da mercadoria permanece mesmo sabendo-se que a qualidade natural e primária ainda lhe é inerente. Marx afirma que tal encantamento não deriva do seu valor de uso nem tampouco do conteúdo daquilo que determinam o valor da mercadoria. “De onde provém, então, o caráter enigmático do produto do trabalho, tão logo ele assume a forma de mercadoria? Marx explica, em outras palavras, que, a despeito da mercadoria possuir em si mesma as características das relações sociais e produtivas dos homens em sociedade, estas qualidades só se apresentam aos próprios indivíduos por reflexo. 230 A mercadoria, portanto, não é vista como a expressão do trabalho humano concreto, apenas como um fantasma dessa realidade social objetiva. A sua verdadeira identidade social e constituição econômica é ocultada. Apresenta-se simplesmente como “coisa” que se relaciona com outras “coisas” no processo de troca. “Assim, em lugar da mercadoria aparecer como resultado de relações sociais enquanto relações de produção, ela aparece como um bem que se compra e se consome”, explica Chauí (1984, p. 56). Marx ainda vai mostrar no O Capital qual a fonte dos lucros dos capitalistas a partir do valor da mercadoria produzida pelo assalariado, paradoxo do qual, como vimos, Ricardo se meteu e não soube resolver. A solução desse problema Marx demonstra quando irá falar sobre a transformação do dinheiro, também uma mercadoria, em capital. A representação desse processo Marx descreve através da conhecida expressão D – M – D’. Aqui D representa o dinheiro originalmente investido, o M a mercadoria como produto transformado e posto no mercado de consumo e efetivamente vendido e o D’ novamente o dinheiro só que agora aparecendo como aquele dinheiro adiantado mais um incremento. “Esse incremento, ou o excedente sobre o valor original, chamo de mais-valia (surplus value)” – explica Marx (1983, p. 128). “O valor originalmente adiantado não só se mantém na circulação, mas altera nela a sua grandeza de valor, acrescenta mais- valia ou se valoriza. E esse movimento transforma-o em capital”, complementa Marx. A força e a aplicação da dialética hegeliana aqui são evidentes. Não só no aspecto triádico, mas também no sentido do movimento e na constituição dos segundo e terceiros elementos: a negação do dinheiro, a mercadoria, o contém ao 231 mesmo tempo em que está contida, assim como a própria afirmação, o dinheiro, no “novo” dinheiro, posto ser este agora uma nova afirmação, ou seja, a despeito de conter os dois primeiros, agora é uma outra coisa, a síntese, diferente das duas anteriores – é capital. “Como portador consciente desse movimento, o possuidor do dinheiro torna-se capitalista”, acrescenta Marx (1983, p. 129). A mais-valia, para Marx, origina-se da fonte básica do valor, o valor- trabalho, ou seja, do trabalho humano. Trata-se daquele mesmo valor que amplia o valor da mercadoria no mercado quanto mais nele se debruça como força intelectual e física. Para utilizar-se dessa força na produção, o capitalista tem que adquiri-la enquanto mercadoria. E os trabalhadores assim a vendem, como mercadoria, pois, destituídos dos meios de produção, é a única coisa que possuem como tal no mundo das propriedades. No entanto, o capitalista não a compra de forma justa dos trabalhadores. “Pelo contrato de trabalho, ele entrega ao capitalista o valor de uso da sua força de trabalho e recebe em retribuição o salário, que corresponde a seu valor de troca”, explica Konder (1981, p. 147). Após a publicação de O Capital, no qual outros conceitos, enquanto categorias lógicas, além das acima citadas, vão se ampliando na análise da expansão do capital, Marx ainda publicou alguns escritos importantes, como A Guerra Civil na França, em 1871, e Crítica ao Programa de Gotha, em 1875. Pensou até mesmo em escrever, por essa época, sobre Balzac – e aqui vamos encontrá-lo novamente numa interessante conexão com o jornalismo a qual só poderíamos verificar melhor nos tempos de hoje. Isso porque Honoré de Balzac, ao lado de outros escritores, filósofos e jornalistas franceses da época, como Montaigne, Pascal, Voltaire, Moliére, Stendhall, Zola etc., é considerado um dos 232 precursores e/ou fundadores do Realismo-Naturalismo (BULHÕES, 2007). Prática literária para a qual se acreditava que aquele que escreve deve se corresponder ao máximo à realidade social em que vive ou experimenta – corrente que iria atingir de cheio romancistas e jornalistas brasileiros, como Lima Barreto, objeto do primeiro capítulo do presente trabalho, conforme vimos. “Marx achava que os romances dele [Balzac] refletiam tão profundamente a realidade da época que assumiam até uma significação revolucionária, pois mostravam a estrutura social como uma coisa que estava sendo transformada e precisava mesmo ser submetida a uma transformação”, diz Konder (1981, p. 119). “Marx gostava tanto da obra de Balzac que, quando acabasse de escrever O Capital, pretendia se dedicar a um estudo aprofundado dela. Infelizmente, a morte não lhe deu tempo para esse trabalho”, complementa Konder. De fato, Marx morreu em 1883. Nada, porém, do que escreveu e muito provavelmente o que pretendia escrever se assemelha ou se assemelharia à análise que procedeu naquela que é considerada a sua obra máxima. Porque é nela que nos apresenta os processos históricos de produção, distribuição e trocas de mercadorias da sociedade capitalista a partir da própria realidade social. E porque para ela, como uma síntese de seu pensamento, confluíram em construção biográfico- histórica num primeiro momento o idealismo da Alemanha, depois o socialismo e as revoluções da França, em seguida a realidade da classe trabalhadora e as teorias burguesas sobre a produção da Inglaterra. Ou simplesmente ideia, sangue e suor, como elegoricamente aqui cognominamos desde o início. Uma obra, portanto, histórica. Uma obra revolucionária. 233 3. Capital versus trabalho: constituições e construções na cidade A cidade de São Paulo, hoje com mais de 11 milhões de habitantes, assim como a Região Metropolitana de São Paulo, composta por 39 municípios e com uma população de mais de 19 milhões de habitantes, segundo o IBGE (2010), é onde historicamente os conflitos entre capital e trabalho mais se desenvolveram no país. São os maiores, os mais graves e também os mais crescentes. Constitui-se assim essa cidade num megacentro de contradições: se por um lado imprime a maior riqueza concentrada e tudo que de bono daí decorre, especialmente e quase que exclusivamente para as suas classes superiores, por outro expressa em expansão permanente toda uma série de dificuldades, necessidades, misérias e subumanidades que amargam a maioria daqueles que ali sobrevivem muito mais do que vivem. “Entrar na cidade [em São Paulo] é estar permanentemente exposto à sua imagem contraditória de grandeza, opulência e miséria, carroça e caminhonete blindada, mansão e buraco, shopping center e barraca de camelô”, diz Rolnik (2009, p. 10). Isso não decorre simplesmente do fato dessa cidade possuir a maior densidade demográfica e a maior quantidade de próprios urbanos que ao longo de centenas de anos ali foi se formando desde a sua fundação, em 1554, pelos padres jesuítas, até os dias atuais, quando a vila se transformou numa das maiores economias do planeta. Mais por ser o maior pólo de concentração de capital, de mão-de-obra e de produção de mercadorias do Brasil, das Américas e um dos maiores do mundo, incrementado principalmente a partir de sua inserção no capitalismo moderno e nas passagens pelos anos do chamado desenvolvimento e 234 pelo “milagre econômico” brasileiro. Assim, aquilo que faz São Paulo ser o principal centro financeiro, corporativo e mercantil da América Latina também a faz ser a cidade continental com maior volume de desigualdades, problemas e desequilíbrios urbanos e, nesses aspectos, uma das maiores do mundo. Trata-se de uma síntese da contradição capitalista mais exemplar. Vários estudos comprovam essa realidade cujo desenrolar pode ser visto a olhos nus todos os dias: se São Paulo possui as maiores vias expressas, indústrias pesadas e de pontas, empresas de investimentos e de finanças e os principais centros decisórios do poder do capital assentados sobre uma base tecnológica das mais avançadas do país, interconectados com outros organismos congêneres e/ou similares das principais cidades do mundo, tornando-se assim uma Cidade Global, da qual nos fala Sassen (1998), possui também as maiores emissões de gases poluentes no ar, os maiores volumes de congestionamentos de veículos, o maior número de moradores de ruas, o mais alto índice de desempregados, a maior quantidade de sem-tetos e uma das maiores e históricas crises da habitação social do Brasil, como nos mostra, sobre este último caso, Bonduki (1999). Tudo isso imerso ao mesmo tempo na maior diversidade cultural do país. Uma realidade que, portanto, se expressa na dinâmica de seu próprio cotidiano. Não seria à toa que aquilo que o senso comum diz sobre essa cidade, como “São Paulo é a locomotiva do país”, numa referência desproposital ou mesmo proposital ao seu passado de crescimento ligado às estradas de ferro, dentre outros ditos populares que ressaltam o seu papel de condottiere da economia nacional, tenha uma relação direta com o que lhe impingiram deliberadamente a classe dominante 235 em seu brasão, cujo lema é Non ducor, duco, ou seja, “Não sou conduzido, conduzo”. Aliás, este é um traço marcante da cidade desde o seu nascimento e que, se por um lado ajudou a promover o seu desenvolvimento até os dias de hoje, ainda faz promover o seu crescimento desigual e diverso, qual seja: mais do que um “porto” é um ponto de confluência e expansão para todos os fins do capital, o que quer dizer de todos os interesses políticos, econômicos, religiosos etc. Um traço, inclusive, destacado por Rolnik (2009, 14-15): “São Paulo bandeirante: a marca dessa cidade é a sua fronteira aberta, por onde entram os forasteiros do país e do mundo e de onde se sai para conquistar territórios”. Uma marca também, acrescentaríamos junto com a autora, quando a posição econômica da cidade se transforma completamente com a expansão do cultivo do café na então província de São Paulo, em 1850; quando torna-se um “entroncamento ferroviário” atravessado por ferrovias, ligando Santos a Jundiaí, a partir de 1867; quando transforma-se na sede de uma importante província em franca expansão econômica no momento de instauração do regime de trabalho assalariado e da República, em 1889; quando na virada do século XIX para o XX a acumulação elevada e rápida de capitais atraía um intenso fluxo de mão-de-obra de centenas de imigrantes europeus, principalmente italianos; e quando se seguem a partir daí outros intensos fluxos imigratórios de mão-de-obra da Europa e outras partes do mundo, como os italianos, portugueses, espanhóis, libaneses, sírios, judeus e japoneses. Foi exatamente nesse último momento, ou seja, na virada do século XIX para o XX, aliás, segundo destaca Rolnik (2009, p. 17), que São Paulo teve o seu 236 grande surto de urbanidade, com a chegada de importantes bens e serviços modernos, como água encanada, bondes elétricos, iluminação pública etc. e a implantação de suas primeiras grandes reformas urbanas, através do projeto do arquiteto inglês Barry Parker, “empregado do gigantesco holding City of São Paulo Improvements and Freehold Land Co., responsável pelo empreendimento imobiliário das cidades-jardins”, que vendeu a ideia do Parque da Paulista como o “bairro mais moderno da cidade”, e do projeto do arquiteto francês Joseph Bouvard, que transformou “as vertentes do Anhangabaú e os pântanos do Tietê num panorama cenográfico dos mais elegantes”, conforme Sevcenko (1991, p. 115). Mas todas essas transformações nos mundos do capital e do trabalho, incluída a urbana, foram promovidas pelo modo de acumulação capitalista baseada na cultura do café, com consequências sociais contraditórias que se fazem presentes até os dias de hoje. Criou barões e todo um séquito familiar, econômico, político e midiático de influências até então jamais vistas nos âmbitos urbano e nacional, mas também segregou espacialmente grupos sociais, instaurou um modelo de urbanização densa e concentrada e constituiu uma nova classe média urbana a partir dos imigrantes. Nesse contexto, já pelos anos 1920, a opção pela expansão horizontal ilimitada da cidade, baseada no “modelo rodoviarista” de transporte, idealizada pela gestão do prefeito Prestes Maia (em substituição aos bondes), em cujo projeto se imprimem estadas concêntricas e cruzadas por outras radiais a partir de um centro, ajudou não só a afigurar a cidade de hoje, como também a “empurrar” para 237 fora do seu núcleo urbano, pelo critério da exclusão, as classes sociais mais subalternas. A periferia funcional “sem regras” assim se expandiu e o centro urbano paulista moderno ficou destinado exclusivamente às elites. Germinaram por conseguinte num mesmo lócus as cidade legal e a ilegal. Nesta irão, a partir de cortiços e outras formas de moradias precárias, das quais nos fala Bonduki (1999), se desenvolver nas décadas seguintes, principalmente nos anos 1940, os loteamentos clandestinos periféricos, longe de tudo e com todos os azares da vida. “Em São Paulo, concomitantemente ao declínio dos cortiços, os loteamentos ilegais tornaram-se a forma predominante de moradias dos trabalhadores, a partir dos anos 40”, afirma Maricato (2003, p. 79), uma das defensoras do conceito jurídico-social da cidade contraditória. Nas décadas seguintes à de 1940, São Paulo passa por um novo e forte surto de crescimento. Mas crescimento dual. Se nos anos anteriores o seu progresso urbano foi no sentido de uma ilimitada e horizontal expansão territorial, ou seja, de crescer “para fora” de seu núcleo urbano, na década de 1940 inicia-se um processo vigoroso de verticalização das zonas centrais. Passa também a se afirmar a partir de seu centro para o sudeste uma concentração de moradias de alto padrão de consumo e o oferecimento de um comércio caro e serviços de luxo destinados a pessoas de altas rendas, expandindo assim o seu centro urbano. O crescimento rodoviarista, por seu turno, continuou inclemente em seu sentido único para o transporte a motor-combustível sobre pneus. E com ele irrompeu um novo desenvolvimento industrial baseado na indústria metalúrgica, metal-mecânica e elétrica, segundo Rolnik (2009). Essa combinação fez gerar uma 238 nova expansão na região chamada Grande ABC ou ABC Paulista. Noutras palavras: esse novo surto de crescimento amplia as funções capitalistas dos vizinhos municípios de Santo André (A), São Bernardo (B) do Campo e São Caetano (C) do Sul – hoje todos conurbados à Capital e integrados à Região Metropolitana de São Paulo. Nos anos 1950, esse processo de crescimento é fortemente intensificado, através da instalação de plantas industriais de veículos automotores e da indústria petroquímica, fato que irá representar, conforme nos mostra Rolnik (2009, p. 43), “a inserção definitiva da cidade no circuito da grande produção industrial multinacional”. A partir daí, nas décadas de 1950 e 1960, especialmente nos anos do chamado “milagre econômico”, que vai do final dos anos 1960 ao início dos anos 1970, e também na década 1970, a despeito de ocorrer em 1973 a primeira grande crise econômica mundial baseada no consumo do petróleo e de seus derivados, o crescimento da cidade continuou surpreendentemente excepcional – mas novamente e sempre desigual. “A cidade de São Paulo, que naquele momento já é o centro industrial mais importante do país, passa a ser também o mais importante centro financeiro e a maior cidade brasileira, suplantando o Rio de Janeiro”, afirma Rolnik (2009, p. 43) sobre esse período (1950-70). O crescimento nessa época, décadas de 1950, 1960 e 1970, acrescenta a autora, é de mais de 5% ao ano e a população passa de 2 milhões para 6 milhões de habitantes. Nesse mesmo período, quando a imigração da Europa e de outras partes do mundo para essa cidade diminuiu, São Paulo passou a ter um forte incremento na migração de várias regiões brasileiras. Os migrantes eram originários principalmente de Minas Gerais e do Nordeste. Em 239 1970, eles já compunham quase 20% da população da cidade enquanto que os 380 mil estrangeiros se dividiam em mais de 70 nacionalidades. “Esse movimento, embora tenha diminuído de intensidade a partir dos anos 70 (em 1991 são “apenas” 2,5 milhões de migrantes e 200 mil estrangeiros entre 9,5 milhões de habitantes), marca de forma muito evidente as transformações culturais da cidade”, acrescenta Rolnik (2009, p. 44). Mas se São Paulo cresceu economicamente, aumentando a concentração de capitais, também experimentou nesse mesmo período o agravamento de suas desigualdades sociais e incrementou um ataque descontrolado à natureza. E isso ocorreu de tal forma que os problemas sociais, urbanos e ecológicos hoje se apresentam difíceis de resolver. Com o crescimento de sua economia, por exemplo, as leis de zoneamento do solo urbano apenas consagraram a concentração de edifícios em apenas 10% do seu território e separou as periferias por “barreiras industriais”, como diz Rolnik (2009). A política habitacional no mesmo período também ajudou a segregar ainda mais as populações residentes em sua periferia. Postas em conjuntos habitacionais padronizados, estes tornaram-se “guetos” monstruosos, afastados cada vez mais da centralidade dos poderes do capital, dos recursos e das possibilidades de crescimento individual ou coletivo. Em conjuntos habitacionais como Itaquera, por exemplo, no extremo leste da cidade, foram erguidas um contingente fabuloso de 35 mil moradias para abrigar uma população de 165 mil pessoas – o que acabou gerando, além de demandas para os moradores, também em seu entorno formas de ocupação ilegais, como os loteamentos clandestinos. 240 O exemplo se repete noutras regiões distantes, com um agravante comum a todas elas: a falta de estrutura urbana de toda ordem leva à destruição de mananciais ribeirinhos, de lagos, de reservas ambientais, de florestas e ao aumento de calamidades públicas, especialmente em épocas de intempéries. “Porém, o impacto mais devastador desse modelo é, sem dúvida, a radical exclusão territorial a que foram condenados os moradores da extrema periferia – guetos de baixa renda, educação precária, desemprego alto, serviços urbanos deficientes, radicalmente fora dos locais onde funcionam as oportunidades” – afirma Rolnik (2009, p. 51). Neste aspecto, é importante destacar que, segundo a literatura por nós consultada, com poucas variações dos dados, nos anos 1970 e chegando até os anos 1980 as favelas não se constituíam uma forma importante de moradia em São Paulo. “No início dos anos 70, menos de 1% da população paulistana morava em favelas. Essa situação evoluiu de tal modo que a cidade apresentava aproximadamente 20% de moradores de favelas em meados dos anos 90”, diz Maricato (2003, p. 2). A cidade chega assim ainda mais fraturada aos anos 1980, e padecendo daquilo que os especialistas chamam de “reconversão econômica” ou processo de “desindustrialização”, fenômeno típico do pós-guerra, no qual se destacam, após um período de industrialização e desenvolvimentismo, as crises do fordismo e do taylorismo. Desta forma também atravessa os anos 1980 e ingressa nos anos 1990 e 2000 com a riqueza e a pobreza se aprofundando e convivendo lado a lado, como registra até mesmo o Almanaque (1997) da Abril do final dos anos 1990. Em parte pela estagnação e até mesmo o decréscimo econômico, com os investimentos 241 buscando oportunidades mais rentáveis em outras regiões do país. Em parte porque a infraestrutura urbana e industrial está esgotada, sendo insuficiente para atender às demandas sociais de transporte, saúde, moradia e educação – apesar de São Paulo ainda ser até o presente (2010) a maior força capitalista, sempre em transformação, do país e uma das maiores do mundo. O que pretendemos até agora não foi examinar todos os ramais de contradições que a cidade de São Paulo apresenta ao longo de sua história, mas apenas destacar alguns traços deles no decorrer do tempo, sempre ligados direta ou indiretamente à crise do capital e do trabalho. Crise que se expressa, como vimos, no conjunto urbano/citadino da São Paulo, metrópole geradora de agudas contradições do capitalismo avançado, por isso mesmo revolucionária. O prólogo acima, portanto, embora já nos remetendo às contradições históricas sócio- espaciais dessa cidade no período específico de nossa análise, foi apenas, como em toda tragédia grega, o prenúncio para revelar esta empreitada: examinar o empreendimento jornal Folha de São Paulo e a sua relação com a sua mão-de-obra especializada e produtora de ideias dos jornalistas no contexto da cidade em questão ao logo dos anos 1960 até os de 1980. Desnecessário dizer que não pretendemos aqui aplicar a teoria de maneira fechada – nem poderíamos –, nem estabelecer novas categorias sociológicas da cidade capitalista, embora assim possa ocorrer. Mas, a partir das bases fundamentais dessa teoria, compreendendo a sociedade-objeto como uma sociedade de classes, expor suas contradições nesse particular, dentre as quais algumas já palmilhadas por outros autores com vertentes marxistas, os quais julgamos justamente por isso importantes para o aprofundamento destas questões. 242 Alguns desses autores/pesquisadores são: Kowarick, Campanário, Bonduki e Abramo. Nesse sentido, passaremos agora a examinar melhor e de forma mais delimitada o caráter contraditório do capital versus trabalho na conjuntura sociourbana de São Paulo exatamente do período em que pretendemos nos debruçar – entre os anos 1960 e 1980. Faremos isso para situarmos mais adequadamente no tempo e no espaço social os nossos objetos de análise bem como procedermos de maneira mais profícua e coerente o nosso estudo de caso. Parece haver um consenso entre os pesquisadores sociais de que esse período, que vai dos anos 1960 até os anos 1980, é um dos mais marcantes do país. Não é para menos. Ele cobre um transcurso importante da vida nacional, nos aspectos político, econômico e social, com suas conexões locais e internacionais. Nele se inserem o golpe militar de 31 de abril de 1964, quando o país mergulha num regime ditatorial e econômico típico, e o processo de redemocratização, que culmina com uma nova Constituição da República, aprovada em 5 de outubro de 1988. A cidade de São Paulo, com todo seu decisivo arsenal infraestrutural e superestrutural gerados pelo poder econômico, no qual se inserem atores políticos, meios de comunicação, movimentos sociais, sistemas simbólicos e legais, instituições públicas, privadas, sindicais, religiosas, desempenha um papel significativo que denotam um rumo, um sentido histórico para si e para o país. Nesse aspecto, Kowarick (1988, p. 25) ressalta historicamente a importância “da cidade de São Paulo enquanto lócus de participação e conflitos sociais no período populista e as radicais mudanças que ocorreram com o golpe de 1964” até os anos 1980. No mesmo sentido, Kowarick; Campanário (1988, p. 29-46) destacam o caráter metropolitano de sua área como punctu principal do 243 crescimento capitalista, com todas as suas contradições, a partir de 1960 até o final dos anos 1980. “A Região Metropolitana de São Paulo é o principal centro industrial da América Latina. Aí instalou-se uma enorme e complexa engrenagem produtiva que dita o rimo da acumulação de capital no Brasil. Mais que isto, a Grande São Paulo a partir de 1960, contituiu-se em importante mediação no processo de integração entre a economia local e o mercado internacional”, afirmam. Os autores também ressaltam que no espaço urbano da Grande São Paulo, forjado ao longo desse período, se assenta não somente os meios de produção e de gerência das grandes empresas multinacionais, estatais e privadas, “mas também a força de trabalho que impulsiona a vasta e complexa engrenagem econômica instalada na Região”. Para eles, contudo, toda problemática urbana não só daí decorre, mas também acaba por influenciar decisivamente as condições de reprodução do capital. Para compreender tal fenômeno, qual seja, o papel da Grande São Paulo no contexto econômico nacional e internacional desse período, porém, ressaltam os autores, uma visão dialética faz-se necessária. E assim o fazem. Segundo Kowarick; Campanário, as condições econômicas internacionais do pós-guerra, decorrente de uma nova divisão mundial do trabalho, possibilitou vultosos investimentos internacionais diretos em São Paulo e região, especialmente voltados para a produção de bens de consumo duráveis. Investimentos que foram atraídos pelas condições estruturais bancadas pelo Estado, que investiu pesado em energia, transporte e insumos básicos; por um mercado interno amplo; e por uma mão-de-obra muito barata para o capital. “Cresce, assim, o peso relativo deste 244 núcleo urbano [da cidade de SP] não só enquanto receptor de investimentos diretos estrangeiros, mas também como espaço construído capaz de fazer circular o valor ali criado”, afirmam. Com efeito, ao destacar São Paulo como a metrópole do capital e do trabalho, Kowarick; Campanário apontam a Grande São Paulo como o “epicentro” do crescimento econômico nacional, que sobe à taxa de 7,1% ao ano do Produto Interno Bruto (PIB) entre o final dos anos 1950 e dos anos 1980. A Região Metropolitana de São Paulo, ao término desse período, informam os autores, em relação ao país, já dispunha de 36% do pessoal ocupado; 46% do total dos salários; 40% do valor de transformação industrial e dos investimentos de capital na indústria, concentrando 70% do valor de transformação dos ramos de material de transportes e elétrico; 60% dos produtos farmacêuticos e plásticos; 55% referente à indústria mecânica, “além de presença significativa em quase todos os outros ramos”. Para os autores, esse caráter atrativo do capital em São Paulo subordinou as outras regiões do país aos pólos mais avançados de produção, estes por sua vez liderados pela própria cidade de São Paulo e sua Região Metropolitana. No campo do trabalho, no entanto, segundo Kowarick; Campanário, nesse período, as consequências foram diametralmente outras. Todos os índices sociais, como mortalidade infantil, analfabetismo, falta de saneamento e de rede de água encanada e tratada para as populações trabalhadoras já eram nos anos 1980 extremamente muito superiores aos das duas décadas passadas. O salário mínimo decresceu em termos reais entre 1959 e 1986 em cerca de 55%. “A acentuada exploração da mão-de-obra torna-se evidente quando se tem em conta que quem ganha, em 1986, 3,5 salários mínimos mensais dispendia um número de horas 245 equivalentes para adquirir a mesma cesta alimentar em relação ao poder compra de um salário mínimo do final dos anos 50”, informam. Os dados sobre a força de trabalho que não conseguia obter ocupação também eram surpreendentes e crescentes. No final de 1983, já se chegava à casa de 1,5 milhão de desempregados na Grande São Paulo, correspondendo a 20% do total da população economicamente ativa, segundo os autores. “É conveniente relembrar: nestas partes do globo é a própria classe trabalhadora – e não o Estado – quem precisa sustentar aqueles que foram alijados do processo produtivo”, ironizam. Se nos anos da industrialização de São Paulo da virada do século XIX para o XX até os anos 1920 foram concomitantemente abertos espaços para a política sindical frente ao poder patronal e do Estado, com destaque para movimentos anarquistas dos imigrantes, como mostra Ronik (1988, p. 75-93), e em seguida instaurado o populismo que promove a derrocada do poder das oligarquias rurais, estando, portanto, este movimento associado à urbanização, em meados do século XX, uma nova conformação histórica do capitalismo exige nova ordem política para continuar a se desenvolver com seu caráter contraditório. São Paulo torna-se então no lugar onde um novo pacto das elites irá acomodar economicamente tal conformação e também fazer gerar posteriormente as mais fortes reações aos seus desígnios. O golpe de 1964 representou a emergência de um poder autoritário que, ao controlar e reprimir as organizações populares, transformou a Metrópole num lócus, mais do que nunca, ditado pela lógica do lucro, investindo massivamente para acelerar a acumulação do capital e privilegiando os estratos mais ricos da população. Mais do que nunca, São Paulo tornou-se numa cidade segregada, pois as políticas públicas foram canalizadas para uma transformação urbana que beneficiou as camadas de médio e alto poder aquisitivo, ao mesmo tempo que continuavam a se reproduzir as múltiplas periferias desprovidas de serviços básicos e em que as favelas, até então quantitativamente insignificantes 246 em São Paulo, passaram a crescer aceleradamente (KOWARICK; BONDUKI, 1988, p. 134). Os autores destacam que, nesse sentido, a partir do ano seguinte ao golpe militar, São Paulo já passou a receber fortes investimentos que modificaram o seu espaço urbano de maneira extremada. Um dos exemplos dessa política foi aquela adotada pelo e a partir do prefeito Faria Lima. O conjunto dessas políticas públicas gerou inúmeras vias expressas, pontes, viadutos alargamento e abertura de novas avenidas “destinado a criar um sistema viário capaz de receber uma frota que aumentou, num período de 20 anos, de 160 mil veículos na Capital em 1960 para mais de 2 milhões” (KOWARICK; BONDUKI, 1988, p. 148). Mas se os investimentos privilegiavam o capital, servindo para ele promover o receptivo de insumos e o escoamento da produção, além de priorizar o transporte particular, a classe trabalhadora amargava ter que conviver com o desafio crescente de se deslocar de forma precária e igualmente insuficiente através do transporte de massas. Essa forma se dava basicamente através de ônibus e de trens de subúrbios superlotados, desconfortáveis, pingentes, atrasados. “Em 1968, ocorriam 7 milhões de deslocamentos diários na RMSP, montante que, em 1982, subia para 17,6 milhões, sendo que cerca de 60% das viagens eram realizadas em ônibus e trens”, afirmam Kowarick; Bonduki (1988, p. 148). O ônibus, aliás, permitiu também a periferização, em cujo processo, com a injeção do Estado em benfeitorias, o valor da terra, mesmo distante, alcançou valores inacessíveis à classe trabalhadora. “De fato,” – dizem Kowarick; Bonduki (1988, p. 149) – “enquanto o valor dos salários se reduziu à metade entre 1959 e 1978, o preço do metro quadrado de terreno, neste período, chegava quase triplicar” – completam. 247 Além desses problemas para a classe trabalhadora, outros que foram surgindo e/ou se multiplicando no período, alguns aqui inclusive já citados, elevaram o grau de reivindicação por melhores condições de vida, de trabalho e de participação política. O Estado autoritário, por sua vez, no âmbito de São Paulo, volta-se para atender algumas dessas demandas como forma de manter a sua legitimação. Assim ocorre de tal forma que, nos anos 1970, quando alguns índices sociais alcançam níveis mais agudos, como, por exemplo, relativamente à falta de moradia, a Companhia de Habitação do Estado de São Paulo (Cohab/SP) mais volta-se para o financiamento/construção de moradias para as camadas com renda de até cinco salários mínimos. Isso ocorreu porque, na cidade de São Paulo, o governo estadual, dizem Kowarick; Bonduki (1988, p. 152), “que permaneceu nas mãos da Arena [Aliança Renovadora Nacional] depois transformada em PDS [Partido Democrático Social], até 1982, não podia mais ignorar as reivindicações da população (...), mesmo porque precisaria do voto popular para vencer as eleições, e, para tanto precisavam alterar o caráter excludente das políticas públicas”. Ao nível federal também não foi diferente: quando se acirra a repressão do poder estatal e a classe trabalhadora reage com alguma pressão sindical e popular, aquiesce o poder em realizar eleições diretas para renovação das Assembléias Legislativas, Câmara Federal e um terço do Senado. Chega a permitir a realização de debates pela televisão. E em São Paulo ocorre um famoso: entre o candidato governista Carvalho Pinto, tido como favorito, e o da oposição, Orestes Quércia, que inverte o favoritismo e consegue vencer. Nessas eleições, entretanto, o governo federal amarga uma derrota histórica. No Senado, das 22 cadeiras em disputa, o 248 Movimento Democrático Brasileiro (MDB) arrebatou 17. Na Câmara Federal, o MDB conquistou 160 cadeiras, aproximando-se da Arena, que ficou com 204 vagas. Nas Assembléias Legislativas, fez um total de 330 cadeiras, contra 457 da Arena. O movimento popular e sindical pela redemocratização, assim, com apoio da Igreja, Imprensa e outras entidades, iria evoluir desde então até desembocar num movimento operário sem precedentes na história do país a partir de 1978 – e para o qual São Paulo estará no centro dessa transformação. Deve-se dizer que essas transformações não foram gratuitas: elas estão ligadas à crise do capital internacional. Durante o chamado “milagre econômico”, ocorrido entre 1969 e 1973, o país teve uma média de crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) de 11,2% e uma inflação média anual de 18%, segundo Romancini; Lago (2007, p. 136). Sabemos que nesse período a disponibilidade externa de capital e a determinação dos governos militares de investirem pesado para fazer o país uma “potência emergente” viabilizaram, ao custo de um endividamento sem lastro, pesados investimentos em infraestrutura, nas indústrias de base e de transformação, de equipamentos, de bens duráveis e na agroindústria de alimentos. Muitos desses investimentos se concentraram em São Paulo e Região Metropolitana. Em 1973, porém, o país sofreu um duro golpe em sua economia. A crise mundial de petróleo e alta internacional nos juros desaceleram a expansão industrial. Inicia-se uma conjuntura extremamente desfavorável que leva o país, na década de 1980, a desequilíbrio do balanço de pagamentos e ao descontrole da inflação. O Brasil nessa década, exatamente por isso também chamada de “A 249 década perdida”, mergulha numa longa recessão e em dias de dúvidas e de incertezas que, se por um lado praticamente bloqueiam a sua produção industrial, por outro produz uma grave crise política necessária à transformação democrática, que levará o país a se inserir mais acentuada e traumaticamente nos circuitos de produção e das finanças do mercado internacional. Umas das principais portas dessas exigências de remodelação política e de inserção internacional pós-década de 1980 é a cidade São Paulo. Cidade em cujo contexto e transcurso históricos, analisaremos, a seguir, os nossos objetos de estudo: a Folha de São Paulo, enquanto capital, e a sua relação com a sua mão-de-obra especializada, a categoria dos jornalistas. 4. Folha versus jornalistas: (im)pressões e (ex)pressões na metrópole Quem chega hoje à cidade de São Paulo dificilmente deixa de ver ou de saber sobre o seu mais recente e fabuloso marco de concreto e aço. Uma ponte inaugurada em 2008 tem três vias em níveis diferentes, sendo duas pistas estaiadas, com 990 metros de comprimento cada uma, em curvas independentes de 60º, cruzando o rio Pinheiros, no bairro do Brooklin, valorizando ainda mais um bairro já voltado para o capital. A ponte, uma das cinco mais altas construções da cidade, possui um mastro em forma de X, com 138 metros de altura, equivalente a um prédio de 46 andares, de onde partem 144 estais, com 462 toneladas de aço trançado que suportam as duas pistas. A torre do mastro poderá em breve ser transformada num restaurante-mirante. A estrutura à noite é iluminada por um sistema informatizado da empresa holandesa Philips, em que se misturam as cores 250 vermelho, azul e verde. A obra, do arquiteto João Valente Filho, construída pela OAS, começou a ser erguida em 2003, consumiu 59 mil metros cúbicos de concreto e envolveu cerca de 500 operários. Ela já foi cenário de alguns filmes antes mesmo de ser concluída; em abril de 2010 serviu de palco para mais de 20 mil atletas que participaram da XVI Maratona Internacional de São Paulo, transmitida ao vivo para todo mundo; e agora serve de cenário para alguns telejornais locais e nacionais. O conjunto da obra é denominado Complexo Viário do Parque e a ponte, que se liga à Avenida Jornalista Roberto Marinho, fundador da Rede Globo, foi batizada de Ponte Jornalista Octavio Frias de Oliveira. Mas quem foi o jornalista Octavio Frias de Oliveira para merecer tal comenda do capital urbano? O que fez e representou ele que recebe também, quando ainda vivo (faleceu em 2007), em 3 de maio de 2006, das mãos do governador Cláudio Lembo, ou seja, do capital político, o Prêmio Personalidade do Ano da Comunicação no Centro de Convenções Rebouças, em São Paulo? Quem é esse cidadão que poucos dias após esse evento, mais exatamente no dia 28 do mesmo mês de maio, recebe as felicitações pelo prêmio, em sua própria casa, e pessoalmente, do presidente da República, Luís Inácio Lula da Silva, ex-torneiro mecânico e ex-líder sindical forjado no ABC Paulista, ou seja, ex-representante da mão-de-obra produtiva da cidade, da RMSP e hoje a mais alta autoridade do país? O desenvolvimento político e urbano de São Paulo não iria colocar um nome numa obra viária expressiva nem entregar um prêmio de tamanho reconhecimento oficial e simbólico sem uma justificativa para o seu próprio desenvolvimento econômico e social. É verdade: Octavio Frias de Oliveira foi mais para o capital que um simples dono de jornal, a Folha de São Paulo – o que por si 251 somente já seria por demais importante em se tratando do que é hoje e aquilo que representa historicamente esse empreendimento enquanto veículo de Comunicação Social para São Paulo e para o país. Octavio foi um protagonista do crescimento urbano da cidade e do capital financeiro/empresarial. Defensor da livre-iniciativa nos moldes americano, era, também por isso, um dos mais finos representantes da classe superior, da elite empresarial, política e burguesa de São Paulo. Pertencia, portanto, à classe dominante brasileira, cuja função maior era produzir idéias consumíveis nos mercados local, nacional (principalmente) e internacional. Noutras palavras: produzir ideologia. Produzir ideologia para toda a sociedade brasileira da classe dominante e do modo de produção capitalista, cujo objetivo não deixaria de ser também a sua grande fonte de lucros e de riquezas – afinal, com o seu conglomerado, era o que passou a se chamar exatamente a partir dos EUA, país de sua admiração, de “magnata da comunicação” ou, à la brasileira, de “barão da mídia”. E assim, como grande capitalista da mídia nacional, servia e representava a classe dominante, mesmo se opondo humildemente a esse epíteto. Daí a sua importância. Para o capital e para o urbanismo. Para a política e para a forma de produção social e econômica de São Paulo e do Brasil. Uma importância, contudo, não sem uma trajetória e um sentido históricos. Paschoal (2007, p. 12), biógrafo autorizado de Octavio Frias de Oliveira e um dos ex-integrantes da Folha de São Paulo, transcrevendo declaração do filho do empresário, Otávio Frias Filho, hoje sucessor e presidente do Grupo Folha, no qual figura como diretor da FSP, nos diz que Octavio Frias de Oliveira “pertence (e graças à longevidade é um dos poucos remanescentes) a uma geração de empresários modernizadores que se projetou no pós-guerra (1945)”. Esses 252 empresários, ainda segundo Paschoal, “foram pioneiros, self-made men, homens dedicados a uma disciplina de trabalho, poupança e reinvestimento”. E continua: “Foi a primeira geração de empresários brasileiros cuja inspiração eram os Estados Unidos, não mais a Inglaterra. Foi também a primeira a empregar métodos racionais de administração, tais como planejamento associado a metas predefinidas, controle de custos, treinamento de pessoal, uso intensivo da publicidade etc.”. Ainda de acordo com as declarações de “Otavinho”, sobre o caráter empresarial do pai (e aqui temos uma revelação importante), transcritas por Paschoal, Nos anos 40 e 50, seu pai “esteve no âmago de duas atividades modernizadoras. Uma delas foi a das grandes incorporações imobiliárias, das quais o símbolo em São Paulo seria o Copan. O país começava a contar com um sistema bancário integrado e forte, apto a financiar projetos que se beneficiavam da urbanização acelerada. Não discuto os efeitos positivos e negativos dessa urbanização às vezes desenfreada, mas não tenho dúvida de que ela teve função de relevo na modernização do Brasil. A outra atividade inovadora foi a do então incipiente mercado de títulos, a que meu pai se dedicou por meio de uma pequena empresa chamada Transaco. Essa empresa foi uma espécie de plataforma de empreendimentos posteriores, como a estação rodoviária e a Folha (PASCHOAL, 2007, p. 12-13). De fato. Octavio Frias de Oliveira, nascido em 5 de agosto de 1912 em Copacabana, descendente por parte do pai dos barões de Itaboraí e Itambi, duas grandes fortunas do Rio de Janeiro, políticos influentes do Segundo Reinado e fundadores do Banco do Brasil, e por parte da mãe do industrial do setor têxtil Jorge Street, teve que se mudar ainda criança com sua família do Rio de Janeiro para o interior de São Paulo, em função do pai, magistrado, mas sem grandes posses como os antecedentes, ter que ocupar subsequencialmente várias comarcas, a partir de quando o garoto começou a trabalhar na cidade, depois o jovem a fazer fortuna e por fim o adulto a influenciar no desenvolvimento urbano da São Paulo. 253 Inicialmente trabalhou na Companhia de Gás de São Paulo aos 14 anos de idade graças à influência de um tio. Destacou-se como funcionário. Aos 19 já estava na Recebedoria de Rendas, repartição da Secretaria da Fazenda do Estado. Aos 20 anos afasta-se do serviço público para participar da revolução Constitucionalista de 1932. De volta ao emprego, transformava-se em alto funcionário público. Com certo poder, habilidade e influência por trabalhar com numerários e um excelente salário. Em função disso, foi convidado, através de Américo Portugal Gouvêa, irmão do próprio diretor-geral da Secretaria da Fazenda, Sebastião Américo Portugal Gouvêa, em 1946, quando já se encontrava com 34 anos de idade, para fazer parte da direção de um banco que estava sendo fundado “por um grupo de amigos”. Dentre esses amigos estavam o empresário e corretor de imóveis Orozimbo Roxo Loureiro, o próprio diretor-geral da Secretaria da Fazenda Sebastião Américo Portugal Gouvêa e aquele que seria o diretor-presidente do banco, Aristides Castro Andrade. No Banco Nacional Imobiliário (BNI) Octavio assume o cargo de diretor e passa a ter 10% das ações. O diretor Octávio pede demissão do cargo público, ajuda na fundação do banco por dois anos, momento em que conhece o então diretor-proprietário da Folha de São Paulo, José Nabantino Ramos. Aqui devemos abrir um parêntese para memoriar elementos históricos antecedentes no sentido de compreender então o que representou esse encontro inicial entre esses dois agentes econômicos, bem como as ações de ambos a partir daí, tanto para eles próprios, como capitalistas em busca de ascensão, quanto para o desenvolvimento urbano de São Paulo até o presente. O jornal Folha de São Paulo, 254 de acordo com os historiadores Mota; Capelato (1980), que escreveram História da Folha de São Paulo (1921-1981), quando foi fundado em 19 de fevereiro de 1921 pelos jornalistas Olival Costa e Pedro Cunha, com o nome inicial de Folha da Noite, o jornal, em meio às perturbações do fim da Primeira Guerra Mundial e da agoniação da Primeira República, tinha o perfil cívico/crítico e se inclinava para os trabalhadores assalariados urbanos. Voltava-se prioritariamente para os imigrantes e para as classes populares, aí inclusos os operários, pequenos comerciantes, artesãos etc. Nasce às vésperas da Semana de Arte Moderna, o que vai influenciar valorativamente na cultura autóctone; quando o profissional da imprensa passava por grandes questionamentos, inclusive do mundo literário, quanto ao seu papel frente à realidade objetiva; e quando o jornalismo se modernizava através da busca de implantação de novas tecnologias, habilidades e procedimentos profissionais. Vem dessa época, em que o povo, e em particular o cidadão comum e urbano de São Paulo, era retratado na Folha da Noite através do personagem Juca Pato, criado pelo pintor, cronista, ilustrador e caricaturista Belmonte (Benedito Carneiro Bastos Barreto) em 1925. Juca Pato era um pequeno burguês, vestia terno e gravata, expressando um autêntico white-collar, não-massificado, porém perplexo com o mundo e mordaz com os poderosos, conforme destaca Paschoal (2007, p. 27). Juca Pato, careca “de tanto levar na cabeça”, cujo lema era “podia ser pior” e encarnando assim a classe média paulistana, fez tanto sucesso junto à população “que sua popularidade podia ser comprovada nas ruas: havia o nome e/ou a imagem dele ilustrando bar e restaurante, marca de cigarro, graxa de sapato, vinho, água sanitária, pacote de café, balas, aperitivo e até letra de samba (FOLHA, 2010). “A figura de Juca Pato, expressão de São Paulo na Primeira República, 255 traduzirá essa personagem irônica e indefinida, cheia de contradições (...) imobilidade social e insegurança”, afirma Paschoal (2007, p. 27). O personagem ainda hoje é reconhecido por aquele que foi talvez o último empréstimo de seu nome, o Prêmio Intelectual do Ano Juca Pato, criado em 1962 pela União Brasileira dos Escritores (UBE), um dos maiores prêmios literários do Brasil desde então. A Folha da Noite exercia assim com Juca Pato um “fiscalismo” em relação ao Estado sob uma visão urbana e em defesa do paulistano médio. “Com efeito, o novo órgão de imprensa procurava expressar o ideário das classes médias urbanas desse período, caracterizado por um pálido reformismo, pelo fiscalismo, pelo urbanismo”, afirmam Mota; Capelato (1980, p. V). O vespertino dessa forma cresce e em 1º de julho de 1925 lança uma outra edição, agora matutina, denominada Folha da Manhã. Os dois jornais estruturam- se como empresa que passa a se chamar Empresa Folha da Manhã Ltda. a partir de 20 de janeiro de 1931, exatamente quando do nascimento da Segunda República e após a Revolução de 1930 (momento em que o jornal chega a ser empastelado). Nasce assim com os novos tempos uma nova fase das Folhas, como viriam a ser chamadas as duas edições. “Nessa segunda fase, que vai de 1931 a 1945, coincidindo com a República Nova (1930-1937) e o Estado Novo (1937-1945), as Folhas se definiram como um jornal de defesa de um certo setor da classe dominante – os cafeicultores, tendo no agrarismo o seu traço mais definidor. Seus dirigentes defendem “um projeto de desenvolvimento capitalista no campo”, explicam Mota; Capelato (1980, p. VII). Nessa segunda fase do jornal, que os historiadores chamam de “burguesia afazendada”, surge a figura de Octaviano Alves de Lima. Ele adquirira o jornal em 1931 após o seu empastelamento e com 256 as dificuldades daí decorrentes. Após desistir do empreendimento, em 1945, Octaviano Alves de Lima, filho de uma família tradicional e agrária, repassa o que denominava de “a voz da lavoura” para novos sócios, dentre os quais José Nabantino Ramos. Com Nabantino, o jornal ingressa numa terceira fase, conforme classificam Mota; Capelato. A linha editorial dos jornais aos poucos vai mudando. Volta-se novamente para o seu papel de fiscalizador do Estado e de defensor das classes sociais médias de São Paulo. A empresa passa a se chamar Empresa Folha da Manhã S/A. Em 1º de janeiro é criado mais um jornal, a Folha da Tarde – que, depois de fechado, viria a ser ressuscitado por Octavio Frias e escreveria uma página triste durante o regime militar (1964-1985), como veremos. Mas em 1º de janeiro de 1960 as três edições (manhã, tarde e noite) são unificadas sob um novo nome, Folha de S.Paulo (escrito assim mesmo: com o esse abreviado (S.) e unido ao pronome do santo (Paulo) que dá nome à cidade, forma preservada até hoje). “Caracteriza-se também pelo urbanismo, mas a modernização, a racionalidade, a eficiência no desenvolvimento, o planejamento são agora a tônica do jornal”, asseguram Mota; Capelato (1980, p. VII). “As Folhas haviam se tornado uma empresa moderna”, complementam os historiadores. E graças a José Nabantino Ramos – exatamente aquele que Octavio Frias Filho viria conhecer quando da fundação do seu banco, o BNI, em 1947-1948. O diretor José Nabantino Ramos e o empreendimento Folha de São Paulo, Frias conheceu pessoalmente através de um dos sócios de Nabantino, Clóvis Queiroga, por sua vez cunhado de Frias. Ambos, Frias e Nabantino, a partir daí passaram a fazer vários e importantes negócios envolvendo o banco e o jornal: 257 essencialmente relações de produção capitalista com impactos ideológicos e urbanos. De tal forma que um dos endereços mais conhecidos da mídia nacional na cidade de São Paulo, o do próprio jornal, à Rua Barão de Limeira, iria se marcar física e morfologicamente no imaginário e na prática vivencial de inúmeros jornalistas, políticos, cidadãos e leitores da Folha de São Paulo até o presente a partir desse relacionamento e dos negócios comerciais que ambos realizaram, quando Octavio, conforme garante, sequer suspeitava que um dia viria adquirir o empreendimento: foi exatamente ele, Octavio frias, quem vendeu para Nabantino o prédio da Barão de Limeira que até hoje abriga o jornal e que um dia iria comprar de volta. Depois que o BNI já estava funcionando, fizemos vários negócios. Eu vendi para o Nabantino o prédio da Alameda Cleveland, quase esquina da Alameda Nothmann, para onde se mudaram, em 1950, a redação, administração, publicidade e composição. Depois vendi para ele o prédio da Alameda Barão de Limeira, que ia até a Barão de Campinas, para onde a Folha se mudou em 1953. Assim, comecei a freqüentar a Folha, fiz algumas operações de crédito para a empresa, que sempre pagou tudo direitinho (FRIAS apud PASCHOAL, 2007, p. 69). Foi também através do Banco Nacional de Investimentos que Octavio Frias conheceu um dos mais importantes arquitetos do século XX, Oscar Niemeyer, autor do projeto da Pampulha, em Belo Horizonte, e da primeira cidade moderna e planejada do Brasil, Brasília. O BNI incorporava e/ou construíra vários prédios importantes no centro de São Paulo, conforme afirma Eduardo Queiroga, filho do sócio de José Nabantino Ramos, Clóvis Queiroga, e sobrinho de Octavio Frias (PASCHOAL, 2007, p. 72-73), como um prédio grande no Largo do Arouche e o Residencial Vila Normanda, situado na esquina da Rua São Luís com a famosa Avenida Ipiranga. Porém, dentre essas várias obras, destaca-se aquela que hoje é um dos emblemas do crescimento urbano, da dinâmica da verticalização citadina e 258 da modernidade em concreto de São Paulo, o edifício Copan (acrônimo de Companhia Pan-Americana de Hotéis), concebido pelo arquiteto contratado por Octavio através do BNI, Niemeyer. Tanto é importante que o Copan, com sua imponência, geometria sinuosa, em formato de esse (S), elemento típico de um arquiteto que preferia a curva à linha reta, tem um site na internet (), figura na Wikipédia () e sempre ilustra várias referências à cidade de São Paulo, como, por exemplo, a capa de um dos livros mais citados no presente trabalho, o de Rolnik, coincidentemente, ou não por acaso, publicado por uma das empresas do hoje Grupo Folha, a Publifolha. Nesse aspecto, afirma Paschoal: Mas, sem dúvida, entre os prédios construídos na época o mais famoso é o Copan, um dos maiores símbolos e cartões-postais de São Paulo, localizado na Avenida Ipiranga. Foi aí que Frias, em meados de 1950, resolveu trazer Oscar Niemeyer, que já era um arquiteto de renome, para São Paulo. Niemeyer projetou a Galeria Califórnia, na Rua Barão de Itapetininga, e o edifício Montreal, entre 1950 e 51; o Copan e o Triângulo, em 1952; o Eiffel, na Praça da República, entre 1952 e 53; e outro na Rua Direita, que foi a antiga sede das Indústrias Matarazzo, quando a empresa saiu da Rua Direita e foi para o viaduto do Chá. O prédio foi comprado pelo BNI e ali foi feito um projeto do Niemeyer (PASCHOAL, 2007, p. 73). É importante dizer aqui como o BNI foi capitalizado. Revela-nos os anseios e uma das formas de agir dos capitalistas urbanos na São Paulo em desenvolvimento, ao qual iria continuar influenciando através de financiamentos, incorporações e construções prediais e viárias, e somente através de tal forma iria lhe ser permitido a aquisição do jornal Folha de São Paulo. Octavio revela a Paschoal que, quando da fundação do banco, não tinha dinheiro para investir no novo empreendimento. Entrou por conta de habilidades e conhecimento. Ao que 259 parece, os demais sócios também entraram com poucos recursos na empresa: o dinheiro dos investimentos foi todo representado pelas garantias dadas pelos próprios tomadores de empréstimos e o aporte foi feito pelos acionistas que conseguiram amealhar através da venda de títulos de créditos que emitiram no mercado financeiro tendo como base essas mesmas garantias dos clientes. Senão vejamos, segundo as palavras do próprio Frias Paschoal (2007, p. 70): “a filosofia do negócio era a seguinte: o cliente dava um imóvel em hipoteca ao banco. O banco avaliava o imóvel e dava o dinheiro ao cliente. Mas como o banco obtinha fundos para fazer essas hipotecas? Com base na hipoteca recebida, o banco emitia debêntures garantidas pela hipoteca e colocava as debêntures na praça”. Atuando também como agente imobiliário, o BNI chegou a ter 46 agências na capital paulista – e continuava a decisivamente promover o desenvolvimento vertical e urbano de são Paulo, inclusive com a construção de condomínios residenciais. Paralelo ao banco, Frias abriu a Transaco, empresa de sua propriedade que instituiu exatamente para atender a uma das propostas de Nabantino: vender assinaturas perpétuas a leitores como títulos que iriam imobilizar 10% do capital da empresa jornalística. A Transaco, favorecida pelo crescimento urbano e empresarial em São Paulo, chegava a vender 300 assinaturas dessas por mês. E foi exatamente através da Transaco, vendendo outras formas de títulos no mercado, que Frias conheceu políticos importantes, como governadores e donos de jornais e de bancos, como Carlos Lacerda, governador do Rio e dono do jornal Tribuna da Imprensa; Jânio Quadro, prefeito e governador de São Paulo e depois presidente da República; e Gastão Vidigal, dono do Banco Mercantil de São Paulo. Foi também através da Transaco que ele se estruturou para realizar uma das maiores obras de 260 então em São Paulo, a Estação Rodoviária, e em seguida fazer uma das maiores transações no mercado da mídia da cidade de São Paulo, a aquisição da Folha de São Paulo. A esse respeito, nos diz Paschoal: O país começava a contar com um sistema bancário integrado e forte, apto a financiar projetos que se beneficiavam da urbanização acelerada. Claro que podem ser levantados efeitos positivos e negativos dessa urbanização às vezes desenfreada, mas ela teve função de relevo na modernização do Brasil. A segunda atividade inovadora de Frias foi a do então incipiente mercado de títulos, à qual ele se dedicou por meio da Transaco. E a empresa foi uma espécie de plataforma de seus empreendimentos posteriores, como a estação rodoviária e a própria Folha (PASCHOAL, 2007, p. 95). Com a quebra do BNI, em função de desarranjos internos, e no qual por isso interveio o governo, que posteriormente o vendeu ao banqueiro Amador Aguiar, dono do Bradesco S/A – que de maneira ousada e inédita ampliou o número de agências para o interior, sob a batuta de popularização dos serviços e produtos bancários, um marco na história dos especuladores, financistas e banqueiros do país –, Octavio Frias, depois de um período “quebrado”, começou a se reergue. O seu soerguimento se deu, segundo diz, exatamente com a Transaco, fazendo inclusive a especulação ilegal, comum aos capitalistas ao mesmo tempo inauditos e sem escrúpulos, ou seja, os de natureza crematística. “Se o negócio é ganhar dinheiro, eu vou mesmo. E eu era impiedoso. Aplicava dinheiro a juros, sim, senhor. Era usurário, cobrava 3% ao mês [risos]. Esse crime de usura eu pratiquei muito... Eu estava ficando rico mesmo, por cima da carne-seca. Para mim era muito dinheiro, eu estava independente já”, afirmou em seu depoimento para Paschoal (2007, p. 98). Após este memorial, e fechando o parêntese acerca do desenvolvimento histórico/urbano de São Paulo e daquilo que elevaram Octavio Frias de Oliveira à 261 qualidade de capitalista bem-sucedido na cidade, chegamos aqui mais bem embasados ao início do período no qual pretendemos explicitar e entendermos melhor a relação entre a classe produtiva jornalística e o empreendimento Folha de São Paulo. O ano é de 1960. O jornal adota uma novidade logo em 1º de janeiro: a Empresa Folha da Manhã passa a englobar sob um único nome – Folha de São Paulo –, as Folha da Manhã, Folha da Tarde e Folha da Noite. Ocorre também outro acontecimento que iria influenciar um setor da área urbana da cidade voltada para o fluxo de pessoas, bem como marcar o destino ideológico da Folha no fazer jornalismo em São Paulo para esta cidade e para o país. Ao mesmo tempo em que investe no então incipiente agronegócio, chegando a ser proprietário de uma empresa avícola com cerca de dois milhões de aves, Frias se associa a Carlos Caldeira Filho – aquele com quem iria voltar-se em exploração da classe trabalhadora citadina e do próprio jornal. Caldeira, descendente de uma tradicional família da cidade de Santos/SP, havia sido cobrador e administrador de obras no BNI. Com ele foram erguidos mais de dez prédios de condomínios em São Paulo financiados pelo banco. Com a extinção do BNI, continuou no mercado imobiliário e da construção civil. Com recursos públicos, emprestado através do Banco do Estado, autorizado pelo governador Carvalho Pinto, a sociedade entre ambos se firmou. Assim construíram a Estação Rodoviária de São Paulo para atender a uma demanda crescente e de passageiros que vinham principalmente do interior. O jornal O Estado de São Paulo questionou o envolvimento do governador Carvalho Pinto, o empréstimo feito pelo governo, o terreno, a autorização para construção da obra feita pelo prefeito Adhemar de Barros, a construção do empreendimento e a posterior exploração da prestação de serviços e de uso da rodoviária feita pelos sócios Frias/Caldeira. Uma enorme polêmica se instaurou. “O Estado de São Paulo 262 conseguiu convencer os leitores que nós tínhamos construído em terreno público, através de uma negociata com o Adhemar”, reclamou Frias, segundo Paschoal (2007, p. 106). Apesar disso, continuaram com a posse e a exploração do empreendimento. Rios de dinheiro ganharam com a rodoviária. A aquisição da Folha de São Paulo se deu após Nabantino enfrentar uma forte greve em 1961 dos profissionais de imprensa. Não aceitou aquilo. Uma greve que ficou na história da imprensa de São Paulo. Os jornalistas buscavam melhores condições de trabalho e de níveis salariais. Ficou famosa nessa época a frase “a nossa situação salarial é horrorosa”. A fama da greve também se deu pela reação violenta da burguesia paulista através do poder de polícia do Estado, mas que enfim se tornou vitoriosa, como relembra um dos diretores (secretário-geral) da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), João Antônio Mesplé: Ainda em janeiro os jornalistas de São Paulo, sob o comando de seu Sindicato, entram em greve e conseguem paralisar o setor. A reação patronal e a repressão policial foram particularmente violentas. O presidente da Federação [Marcelo Coimbra Tavares] desloca-se para a capital paulista onde, com o apoio do vice- presidente Nabor Cayres de Brito, formula veemente protesto junto às autoridades estaduais contra a violência desencadeada. O movimento terminou vitorioso com uma decisão do Tribunal Regional do Trabalho que atendia os principais reclamos dos jornalistas (Mesplé apud Sá, 1999, p. 294-5). Assim, Nabantino, “desgostoso”, decidiu vender o jornal, pois para ele, na verdade, segundo podemos inferir com base nas várias pesquisas literárias que fizemos sobre o fato, um acirramento da contradição entre capital x trabalho era inaceitável (exatamente o contrário de como pensava e agiria dali por diante contra a mão-de-obra produtiva da empresa Octavio Frias de Oliveira sendo dono do jornal). Há, porém, uma explicação histórica para esse embate e ao nível em que se deu em 1961 em São Paulo e em particular no jornal Folha de São Paulo. O 263 sindicalismo de São Paulo nasceu, principalmente no início do século XX, marcado pela influência e iniciativas dos trabalhadores imigrantes da Europa, sob forte ascendência comunista e anarquista. Mas em seguida se estrutura sob o controle pernicioso do Estado, por volta de 1921, com a criação do Conselho Nacional do Trabalho (CNT), depois com a publicação da Lei da Sindicalização, em 1931, e depois com a chegada do Estado Novo, que promulga a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), em 1943, que também, para controlar a imprensa e produzir uma imagem favorável do governo, cria em 1939 o Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), conforme nos mostra Sá (1999, p. 29-64). Nesse período, vários sindicatos de jornalistas são criados em diversos Estados do país, dentre os quais, um dos mais importantes, o de São Paulo, em 1937. Com efeito, em 20 de setembro de 1946 é criada, a despeito de várias lutas, percalços, embates, inclusive internos, o órgão máximo da categoria, a Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), com o apoio decisivo de outras entidades, como a Associação Brasileira de Imprensa (ABI). “A despeito desse tenebroso quadro e vítima histórica do cerceamento à livre organização, o jornalista brasileiro superou essas barreiras e criou, a partir de [19]35, seus sindicatos, culminando a luta em [19]46, com a Federação”, resume Sá (1999, p. 63). É interessante ressaltar aqui que, nesta data, ou seja, 1946, a entidade passa a se chamar Federação Nacional dos Jornalistas Profissionais, elemento sintomático de uma época: com as exigências das novas tecnologias que acarreta a busca pelas novas habilidades e conhecimentos, afora os preceitos humanistas e éticos, como o comprometimento individual e coletivo da responsabilidade para com a sociedade, incluindo a criação dos cursos superiores de jornalismo em universidades e faculdades, afirma-se no interior da categoria a busca não só pela regulamentação profissional, mas também 264 pelo reconhecimento do valor do seu trabalho no processo produtivo. Algo que se confronta diretamente com os interesses do capital. Não seria, portanto, à toa, que nos fins dos anos 1950 e começo dos anos 1960, quando houvera terminado o Estado Novo e começara uma nova transmutação no capitalismo nacional, em que se sobressaem maiores considerações pelas liberdades e formas de expressão da classe trabalhadora, uma greve fira os brios dos capitalistas que têm seus interesses na mais-valia ameaçados. Mesmo que levemente ameaçados, como ocorreu com a Folha de Nabantino. Daí, vendê-la lhe resguardaria não só os dedos, mas também todos os anéis. O jornal, assim, é repassado para novas mãos. Com o seu sócio Carlos Caldeira, ou seja, com a união entre o capitalismo financeiro e o capitalismo da construção civil, Octavio Frias adquire a Folha de São Paulo em 13 de agosto de 1962. Terminava ali o ciclo que procurou dar uma visão empresarial numa sociedade de capitalismo industrial então nascente. Começava o ciclo que Mota; Capelato chamariam de “Reorganização financeiro- administrativa” dentro de uma perspectiva que iria imprimir certa “autonomia financeira à busca de um projeto político-cultural” para a Folha de São Paulo. Entendemos, porém, que foi muito mais que isso. Ou melhor: aprofundando essa afirmação de Mota; Capelato, mas agora sob uma perspectiva teórica apropriada, podemos dizer que é exatamente a partir desse momento que a Folha ingressa num modo de fazer jornalismo que reflete a visão eminentemente dos campos do capitalismo financeiro e empresarial de Frias e Caldeira. Um jornalismo que se volta ainda mais tanto para a produção do jornal como mercadoria quanto no investimento do dinheiro para a produção e reprodução acumulativa de capital. Tudo com um sentido histórico definido: confrontar ainda mais direta e 265 tempestivamente a sua mão-de-obra produtiva com o intuito de, mesmo não declaradamente e sob um manto ideológico através de uma produção alienante, promover sobre essa mesma mão-de-obra produtiva uma maior e mais refinada exploração da mais-valia para a consecução daqueles agora seus mais acirrados objetivos – expropriação e entesouramento. O argumento do discurso dominante para isso é um só: o da modernização. Qual seja: no aspecto ideológico seria o mesmo que, a partir das ações e dos interesses dos EUA, levaria o jornal a apoiar, tendo São Paulo como suporte, o golpe de estado em 1964, dado pelos militares e políticos conservadores, sobre um governo federal que se apresentava inclinado à classe trabalhadora. Mesmo que para isso o novo jornal se apresentasse, como de fato se apresentou, como o grande arauto da liberdade de expressão e da liberdade de imprensa. E como pioneiro, até. Para palmilhar esse caminho até os anos 1980, porém, a Folha de São Paulo investe ainda mais nas novas tecnologias que exigem da categoria produtiva novas e maiores habilidades, incluindo em sua pauta a busca pela aceitação da classe mediana de São Paulo. Associa-se à elite dominante que se apodera do poder estatal através do golpe militar e abandona esse projeto quando as classes burguesas necessitavam de nova reforma estruturante para a sobrevivência do capital. Ao fim, implanta um projeto de exploração “cultural” da mão-de-obra inspirada no capitalismo financista e bancário em que os trabalhadores devem, ao incorporar o feito e o feitor, serem seres autômatos de uma cadeia produtiva que associa a rapidez, a eficiência e a precisão que se originam dos preceitos e aplicações do fordismo e do taylorismo. No aspecto político-nacional, quando da aquisição da Folha de São Paulo, o país vivia, antes do golpe perpetrado pelos militares, uma polarização ideológica 266 que se refletia na própria constituição mandatária do poder federal. Se depois da saída de Juscelino Kubitschek aquele que viria ser o primeiro presidente eleito a ocupar o cargo máximo do país na nova capital federal, Brasília (cidade que Juscelino junto com Niemeyer e Costa idealizaram/planejaram/construíram; promoveram uma verdadeira epopéia histórica em vários aspectos e jamais vista no Brasil central), foi um político ligado às elites de São Paulo, o incontroverso Jânio da Silva Quadros, do Partido Democrático Cristão (PDC), apoiado por uma coligação de partidos igualmente de direita (PTN-UDN-PR-PL), o vice deste, João Belchior Marques Goulart, o “Jango”, originário do geopoliticamente antagônico Estado do Rio Grande do Sul, através de sua legenda, o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), no qual a sombra de Getúlio Vargas ainda se mantinha firme, tinha ideias e alguns atos voltados para a classe trabalhadora, ao menos no aspecto associativista. Uma cobra de duas cabeças, portanto. No aspecto conjuntural a realidade não se apresentava diferente: também era contraditória, como nos mostram Richard Romancini; Cláudia Lago (2007, p. 115). À esquerda havia os movimentos sociais em ascensão, como as ligas camponesas a estruturar-se no Nordeste; as manifestações estudantis radicais lideradas pela União Nacional dos Estudantes (UNE); parte do clero ou de grupos ligados à Igreja como a Juventude Universitária Católica (JUC); grupos de trabalhadores, especialmente os ligados aos setores públicos, que promoviam uma série de greves, muitas das quais sob a orientação do Comando Geral dos Trabalhadores (CGT). À direita, por sua vez, se organizavam e se articulavam, inclusive com os militares, as elites através da Escola Superior de Guerra (ESG), que pregava a “segurança nacional” e o progresso do país sob parâmetros 267 estritamente capitalistas; o Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais (IPES), criado por empresários cariocas e paulistas; e o Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD), “órgão que obteve recursos da Agência Central de Inteligência norte- americana (CIA) para financiar suas atividades”. O movimento entre essas duas oposições iria desembocar no golpe que recebeu o apoio da maioria dos jornais, dentre os quais a Folha de São Paulo, logo após a renúncia de Jânio e a ascensão de Jango à presidência, cuja gestão também encontrara oposição na imprensa ligada às elites, como a Folha. “A Folha de S.Paulo clamava, em editorial datado de 14 de março, pela intervenção das forças armadas”, afirmam Martins; Luca (2006, p. 98), para em seguida transcreverem parte do texto em que o jornal pedia a intervenção militar no governo, por conta de um comício feito pelo presidente em 13 de março na Central do Brasil (RJ) através do qual buscava o apoio para reformas então polêmicas que Jango defendia, como reforma agrária, contenção dos aluguéis e extensão do direito de voto aos analfabetos e praças. Dois dias antes do golpe militar, ainda segundo Martins; Luca, o jornal volta à carga: condenava o que classificou de “quebra de hierarquia” nas forças armadas, quando durante uma crise envolvendo marinheiros, estes exigiram e conseguiram a deposição do ministro da Marinha, tudo por culpa de um presidente que queria modificar o panorama econômico. O episódio foi considerado pela Folha, no dia 29 de março de 1964, “como uma capitulação”, com uma provocante ironiza: “A indisciplina saiu vitoriosa, e aos indisciplinados só falta conceder medalha de hora ao mérito”, incitou a Folha, segundo Martins; Luca (2006, p. 99). A partir daí, com o apoio da chamada grande imprensa, invariavelmente ligada às elites, especialmente do Rio de Janeiro e de 268 São Paulo, o golpe pareceu inevitável e necessário. Tanto que quando ocorreu foi saldado por quase toda imprensa escrita, exceção apenas do Correio da Manhã e o Última Hora. Frias por sua vez não perdeu tempo: fez publicar, exatamente no dia do golpe, 31 de março de 1964, sob o manto discursivo-ideológico de que a liberdade de imprensa é essencial, a sua ode à liberdade de empresa, especificamente de sua empresa, e posiciona estrategicamente a partir daí esse seu empreendimento, através das matérias e editoriais, como “liberal-oligárquico” e ao mesmo tempo “populista”, pechas do período conjuntural-político anterior, mas que, naquela nova realidade, mostrava-se, com essa oscilação, como equilibrado e mediano, ou seja, sintetizava-se num jornal de centro, e assim se (auto)proclamava como baluarte e núncio do “liberalismo-democrático”, conforme Mota; Capelato (1981, p. 194-195), do moderno, do novo e do avanço, alcançando dessa forma, além da simpatia e aquiescência do poder, também grossas fatias de leitores da classe média paulistana e nacional. Mais do que isso. Até a década anterior, como mostra Abreu (2002), a imprensa sobrevivia de favores do Estado e dos pequenos anúncios populares ou domésticos e da publicidade de lojas comerciais. “Com a maior diversificação da atividade produtiva trazida pela indústria, começaram os investimentos de peso em propaganda e surgiram as primeiras grandes agências de publicidade”, diz Abreu (2002, p. 9), que complementa: “Era preciso agora anunciar produtos como automóveis, e eletrodomésticos, além de produtos alimentícios e agrícolas. Em pouco tempo, os jornais passaram a obter 80% de sua receita dos anúncios”. Com esse avanço, os proprietários de jornais, em sua grande maioria, ainda segundo a autora, no final dos anos 1950 e especialmente a partir dos anos 1960, passaram a 269 adotar o modelo de jornalismo norte-americano em detrimento do modelo francês; encamparam as idéias do liberalismo econômico; se identificaram com o ideário da UDN, partido que junto com os militares conspirou para a deposição do presidente João Goulart; abdicaram de sua crença na liberdade individual e aceitaram a centralização do poder nas mãos dos militares golpistas, postos estes se apresentarem contrários à interferência nos lucros, ao “perigo dos comunistas” e à subversão”. Exatamente como fez os empresários Frias e Caldeira ao adquirirem o jornal. Mas, mais ainda do que isso: o novo regime, ao mesmo tempo em que censurava e cometia crimes contra os direitos humanos, investiu pesado no setor de comunicação (em 1965 criou o Ministério das Comunicações e a Empresa Brasileira de Telecomunicações (Embratel), mesma data de inserção no mercado da TV Globo; e em 1972 criou a Telecomunicações Brasileiras S/A (Telebrás)) e financiou direta e indiretamente a modernização dos meios de comunicação, em nome da integração, integridade, unidade e desenvolvimento nacional. Isso explica porque, para eles, essa modernização era parte de uma estratégia ligada à ideologia da segurança nacional. A implantação de um sistema de informação capaz de “integrar” o país era essencial dentro de um projeto em que o Estado era entendido como o centro irradiador de todas as atividades fundamentais em termos políticos (ABREU, 2002, p. 15). Nesse momento, o jornal Folha de São Paulo, que adquirira, desde a sua passagem para as mãos de Frias e Caldeira, novas e rápidas máquinas de imprimir e de cortar, possibilitando a antecipação do fechamento, da impressão e do despacho do produtor industrial para o mercado consumidor, e ampliara a sua frota de veículos de 25 para 165 (na década de 1980 chega a 340 veículos, que percorrem mais de 980 mil km/mês, empregando somente no setor de transportes aproximadamente 570 funcionários), segundo Mota; Capelato (1980, p. 199), 270 destinada a reportagens e principalmente às entregas do jornal, além de implementar um vigoroso método de distribuição na cidade, no interior e até fora do Estado, alcança logo nas primeiras horas dos dias várias cidades de São Paulo e de outros Estados do país, suplantando uma prática anterior e principalmente os concorrentes – dentre os quais O Estado de São Paulo, nomeadamente por Frias como o seu principal inimigo no mercado. A estratégia é obviamente inspirada na tática de interiorização e popularização do setor bancário, especificamente do Bradesco de Amador Aguiar, que comprara o BNI inclusive com esse fim, conforme vimos. O jornal assim avança sobre mercado, alcança novos leitores e chega à casa dos 160 mil exemplares em dia da semana mais a edição de domingo. Passa para 183 mil em dia da semana mais o domingo na década de 1970, e para 240 mil somente em dias da semana e para 325 mil somente aos domingos na década de 1980. Com isso, o número de assinantes responde: salta em 1969 de 94 mil para 125 mil nos anos 1980, ainda segundo Mota; Capelato (1980, p. 199). Trata-se, como se vê, das mudanças provocadas em um modo de produção específico pelas novas tecnologias que iriam alterar as relações de produção e as próprias relações de trabalho. Relações que iriam se tornar ainda mais críticas e complexas com a introdução inédita para grandes tiragens no Brasil no final dos anos 1960 de outras e mais ainda modernas tecnologias, como o avançado sistema de imprimir offset. “O sistema era composto de 3 máquinas, de 8 unidades cada uma, num total de 24 unidades, pesando 300 toneladas”, relatam Mota; Capelato (1980, p. 200). Estes autores, para darem a dimensão da grandiosidade e da importância dos novos equipamentos e máquinas, complementam: “Chegara do Exterior no mês de maio 271 de 1967, via Rio de Janeiro, em etapas sucessivas, por navio. Os componentes da Fotomecânica, um conjunto de aparelhos foto-mecânicos ultra-sensíveis, vieram por via aérea da Itália, da Alemanha, dos Estados Unidos e da Inglaterra”. O avanço no parque gráfico do Grupo Folha, assim, se assoberba de tal forma que encontra inevitáveis resistências junto aos gráficos e jornalistas, não pelo avanço tecnológico em si, quer dizer, por haver uma mudança relativa no campo infraestrutural, mas pelas mudanças no caráter e no refinamento da exploração no campo estrutural que provocava. Mudanças que contrariavam fortemente direitos trabalhistas das duas categorias, alguns dos quais duramente adquiridos junto às próprias instituições superestruturais da sociedade e até no próprio âmbito da então economicamente já principal cidade do país. De tal forma que o Sindicato dos Gráficos, acusada por um dos diretores do jornal de ser uma “forte corporação medieval”, entrava em confronto direto da Folha: acusava a exploração e cobrava respeito às leis e aos direitos por parte do jornal e das autoridades. Assim também ocorreu com o Sindicato dos Jornalistas. Através dele a categoria “peitava” o jornal e divulgava memoriais denunciando o Grupo Folhas, como este, sob o título “Sindicato dos Jornalistas denuncia o Grupo Folhas”, publicado exatamente no veículo mais concorrente e mais detestado pela cúpula da empresa, o jornal O Estado de São Paulo, a 3 de abril de 1969. Nessa denúncia consta, segundo Mota; Capelato (1980, p. 207), o seguinte: “Arrolavam-se infrações desde a não-obediência da lei de cinco horas para jornalistas até pagamento adicional de insalubridade aos revisores”. O avanço tecnológico da Folha, a despeito dessas resistências, algumas históricas, continua da década de 1970, com a aquisição de novas máquinas e a 272 desativação definitiva de práticas consideradas superadas, como a composição a quente, ocorrida em 15 de janeiro de 1974, e chega aos anos 1980 com o poder de transformação ainda maior, de tal forma que invade até o campo privado do profissional: nessa década atinge o campo psicológico, comportamental e linguístico do jornalista, através da concentração, admoestação e da racionalização exacerbadas, a ponto de transformá-lo num ser autômato, via a defensoria de novas práticas trabalhistas inéditas no país e inspiradas ainda mais no jornalismo norte- americano, como o Projeto Folha, apontando sempre para um mesmo sentido: o aumento da tiragem, da vendagem, dos lucros, enfim, o aumento do capital. O Projeto Folha representou um marco na história da imprensa brasileira. Talvez comparado somente às mudanças implementadas, especialmente no campo estético, pelo Jornal do Brasil no final dos anos 1950 e início dos anos 1960. Cantado e decantado em verso e prosa pelos seus autores e partidários, sofreu por parte da categoria severas críticas, não raro ocasionando rupturas que demandavam novas realidades, mesmo diante da aparente imutabilidade empresarial da Folha em defender o seu novo ideário ético e trabalhista. Tratava-se tal projeto da implementação, sob inspiração do jornalismo norte-americano, de regras tidas como perfeitas, claras e inflexíveis, “criteriosamente” definidas, a maioria recorrentes e providencialmente estabelecidas por escrito, no Manual de Redação da Folha (1984), posto à disposição tanto para consultas e o seu régio cumprimento, parte dos jornalistas que compunham a mão-de-obra da redação, quanto, como um modelo educativo e/ou paradidático, para o seu público externo, através de sucessivas e cada vez mais volumosas edições. O projeto, inclusive gráfico, com ênfase na precisão, objetividade e didatismo, recebeu, além de seus 273 proprietários/idealizadores, também o apoio de adesistas, estes oriundos do seio da própria classe trabalhadora, sendo o mais notável deles o jornalista Carlos Eduardo Lins da Silva, também um de seus implementadores. A inspiração norte-americana no Brasil, por exemplo, rendeu um estudo comparativo de Silva (1991), que ao fim e ao cabo é apenas um trabalho ideológico: faz sem peias uma ode daquilo que se copiou no Brasil, destacadamente por parte da Folha de São Paulo, que elogia de maneira especial. A sua crítica resume-se às Escolas de Jornalismo no Brasil, onde existe uma “pretensa visão crítica” e um “antiamericanismo primário”, “baseado em leituras apressadas e atrasadas das teorias da Escola de Frankfurt ou do grupo latino-americano de Armand Mattelart e Ariel Doffman”, assim também como aos pioneiros dessa escola, como Luiz Beltrão e Mário Erbolato, que apenas “reproduziram acriticamente” os “autores americanos ingênuos das décadas de 1930 a 1950”. E conclui Silva (1991, p. 86-87), agora em campo oposto, quando se trata da cópia norte-americana (sociedade inclusive que elogia por sua democracia e liberdade) feita pela Folha de São Paulo: Não há exemplo mais acabado dessa situação do que o da Folha de São Paulo. A leitura do Manual de Redação desse jornal e dos estudos científicos que vêm sendo feitos a seu respeito [aqui cita, primeiro, dentre os de outros autores, um trabalho dele, Mil Dias], mostram com clareza indiscutível que se tem ali um caso de influência consciente, não-ocasional, do jornalismo americano sobre o brasileiro. Uma diferença notável em relação ao que acontecia quando os primeiros agentes começaram a atuar. O mesmo Silva se encarregou de contar, na obra Mil Dias, e depois recontar em Mil Dias: Seis Mil Dias Depois (SILVA, 2005), como e por que ocorreu a implantação do Projeto Folha, entre 1984 a 1987, considerando a sua condição de credenciado, já que no jornal fora repórter, editor, secretário de redação e mais recentemente ombudsman. Este cargo, aliás, também foi criado no Brasil de forma 274 inédita pela Folha, dia 24 de setembro de 1989, acompanhando a transformação nas relações de trabalho. Ele seria, como já ocorria nos países nórdicos e nos EUA, uma espécie de ouvidor do público: recebia as reclamações dos leitores, selecionava quais as mais importantes sob seus próprios critérios, pedia explicações aos setores responsáveis e fazia sua explanação pessoal e crítica a respeito do tema, tendo, para isso, um espaço certo aos domingos e a garantia no emprego por dois anos. Ou seja: uma espécie de anteparo da própria Folha, já que a sua liberdade era concedida e o jornal não deixaria de pagar os seus salários. O cuidado em não macular a Folha e o zelo para com o seu projeto editorial eram evidentes, funcionando assim o ombudsman como um de seus fiscais, senão, conforme nos mostra Maia (2004), como regulador e modelizador do discurso. O novo cargo, contudo, não é implantado sem resistências da classe trabalhadora, por conta da sua unicidade e indiscutibilidade – mesmo daqueles funcionários obedientes ao jornal e defensores do Projeto Folha. Na Folha, a resistência de alguns jornalistas adiou a criação da função por três anos após a idéia da direção do jornal. As quatro primeiras pessoas que foram convidadas a assumir a função recusaram. Somente em 1989, o jornalista Caio Túlio Costa assumiu e se consagrou como o primeiro ombudsman de imprensa do Brasil (MACHADO, 2007). Da mesma forma, em seu livro sobre a implantação do projeto, Silva não deixa de falar, não sem algum constrangimento, da forma impositiva e por vezes antidemocrática, com que o Projeto Folha é implantado pela cúpula, tendo à frente o filho de Octavio Frias de Oliveira, Otávio Frias Filho, que assume o comando do jornal como diretor de redação em 1984. As demissões sistemáticas daqueles que não se adequavam ao novo ideário, não seguiam todas as regras ou simplesmente gostariam de colaborar com suas experiências, eram comuns, constrangedoras, 275 temerárias. Novamente a Folha batia de frente na sua mão-de-obra trabalhadora, especificamente a da redação, mas obtendo reações contrárias da categoria, algumas vigorosas, em sua maioria através do sindicato. Segundo Silva, no entanto, havia entre os dirigentes quem considerasse essas demissões como fatores necessários à impulsão das mudanças. O fato é que a taxa de turn-over (rotatividade de pessoal) na redação da Folha era nos anos 1980 altíssima, mesmo se considerando a rotatividade ter uma taxa muito alta na imprensa em geral: em 1984 chegou a 32%; em 1985 a 44%; e em 1986 a 55%, quando o ideal seria 10%, segundo Silva, secretário de redação à época. “Em 1984 pediram ou foram demitidos 116 jornalistas; em 1985, 142; e em 1986, 187; nos dois primeiros meses de 1987, foram 29; num total de 474 em mil dias, o que dá a média de uma pessoa deixando a Redação da Folha a cada 2,1 dias”, diz Silva (2005, p. 193). Também pudera: além de arrogante, o Manual de Redação, do Projeto Folha, chegava ao extremo de obrigar que toda informação produzida pelos repórteres, logo no lead da notícia, tivesse registrado, após o nome do entrevistado, a idade dele, de maneira que se chegava ao absurdo de se poder criar embaraços na informação e constrangimentos desnecessários às fontes. As pressões contra a classe trabalhadora não pararam. E mais uma vez sob forte inspiração da ideologia norte-americana. Primeiro investe contra as Escolas de Jornalismo, com o objetivo de atingir a categoria e uma de suas formas de resistência e de obtenção de respeito. A Folha desencadeia uma campanha destruidora contra a exigência do diploma. Afirma que nos EUA, a maior democracia do mundo, ele não é necessário e que, portanto, no Brasil também não deve sê-lo. A motivação para isso parte de um confronto, talvez o mais tenso e 276 grave, entre o Sindicato dos Jornalistas Profissionais de São Paulo e o diretor de redação da Folha, Otavio Frias Filho. Mesmo depois de apresentar-se como provisionado (registro profissional para quem não tem formação numa universidade), amparado assim por uma das leis conquistada pela categoria e contra a qual se insurgia, Frias Filho continua a sua campanha de convencimento junto à opinião pública e às autoridades, de tal forma que consegue, conforme determina o Projeto Folha, o apoio dos seus jornalistas subordinados, como Clóvis Rossi e o próprio Carlos Eduardo Lins da Silva. Este, em seu livro, não deixa de fazer uma defesa das ideias contraditórias do patrão. Frias defendia através do jornal, segundo explica Silva, “uma posição anticorporativista na organização das relações de trabalho e uma posição de total liberdade de expressão na organização das relações sociais”. E arremata: “A obrigatoriedade do diploma, na opinião da direção de Redação, choca-se com essas duas posições”. Ora, a empresa não seria corporativa nas relações de produção? Como poderia exigir a não-corporação daquilo que por sua própria natureza social é associativista, uma categoria profissional? Quanto à total liberdade de expressão, como sabemos, esta é, no sistema capitalista, uma espécie de mito ideológico – fabricado exatamente por aquela que mais detém a liberdade verdadeiramente mais produz essa ideologia, a classe dominante. Mais adiante Silva (2005, p. 200) revela a verdadeira causa do embate envolvendo a questão do diploma. Com o Projeto Folha, Otavio Filho, em junho de 1984, demite de uma só vez 27 jornalistas “por inadequação ao grau de exigência técnica do projeto”. O Sindicato publica uma reportagem em seu órgão de classe que Silva (2005, p. 201), como bom defensor da Folha, diz que foi considerada “mentirosa, difamatória e tecnicamente comprometedora”. E não mede esforços para defender ainda mais a empresa: “Apesar disso, a diretoria do 277 sindicato foi recebida em abril de 1985 pela direção de Redação para uma tentativa de aproximação que resultou inútil”. A partir daí, o que se vê, é um embate acirrado, com proibições, por parte daquele que defendem a liberdade de expressão, de que representantes do sindicato conversem com os colegas na redação; de que jornalistas utilizem até bottons no interior da empresa quando da campanha eleitoral pela sucessão sindical; e com denúncias sistemáticas contra a categoria através do jornal, como as publicadas revelando que jornalistas possuíam empregos no serviço público e ao mesmo tempo nas redações, incluindo alguns da Folha, o que seria contrário ao Código de Ética; e através das dezenas de outras também publicadas na própria Folha em sentido substancialmente contrário – aí sim se justifica a motivação – à necessidade de formação superior para o exercício da profissão. Outro embate histórico também chama a atenção nesse processo conflituoso/contraditório entre a Folha de São Paulo vs. jornalistas da cidade de São Paulo, em especial os seus próprios funcionários. A empresa, estabelecida na principal cidade da Região Metropolitana de São Paulo, a que mais produzia no país e na América Latina o símbolo máximo da vida moderna, o automóvel, busca nas ideias de Lee Iacocca, alto executivo das indústrias de automóvel Ford e Chrysler, o estímulo para lançar, no correr do Projeto Folha, o Plano de Metas Trimestrais da Redação. “Houve uma grande influência do livro Iacocca: uma Autobiografia, lançado nos Estados Unidos em 1984, que o Publisher Octavio Frias de Oliveira leu naquele ano”, revela Silva (22005, p. 100). Por esse plano, o qual também se baseia nas orientações no psicólogo norte-americano Robert Mager, curiosamente classificado por Silva como “de esquerda”, cada jornalista 278 tinha que escrever quais eram os seus sonhos, ou seja, quais os seus objetivos, planos, prioridades e expectativas para os próximos 90 dias, e de que forma pretendia alcançá-los. Depois de escritos, como relatórios, num espaço de três meses, entregá-los à cúpula da empresa, para avaliações e decisões. Ou seja: exigia-se a exteriorização explícita da individuação pessoal e profissional e portanto algo considerado pela categoria como totalmente fora do contexto trabalhista, cujas tarefas diárias já eram previamente definidas, como pautas e horários, se revelando assim como mais uma forma de se manter o controle, a vigilância, a exploração e um além-trabalho sobre a categoria dos jornalistas, com um único e privativo objetivo: a produção de mais lucro e de mais capital unilateral e exclusivo para os proprietários do jornal. Noutras palavras: o burocratismo e o gerenciamento da indústria do automóvel sob inspiração da ideologia norte- americana era aplicado à Folha de São Paulo, que assim se exacerbava em predomínio e exploração sobre os jornalistas, sofrendo, por isso, em sentido contrário, a repulsa dos profissionais, de tal forma que até mesmo ocupantes de cargos de direção, que chegaram a considerar a determinação como “um sintoma de enlouquecimento”, se sentiam constrangidos tanto em fazer esse trabalho a mais quanto para cobrá-lo de seus subordinados. E assim, apesar dos elogios sobre a sua validade feita por Silva, o Plano de Metas minguou, reduzindo-se posteriormente à busca pela diminuição do número de erros nas edições diárias do jornal – o que de fato passou a ocorrer, mas em sua grandiosa maioria, como nos mostra Abramo (1991, p. 9), sobre o dispensável e não nas questões fundamentais: “Imagina-se que, com isso, o leitor médio reflita que o jornal deve ser muito bem feito, uma vez que praticamente só erra em bobagens”. 279 É importante dizer aqui que o Projeto Folha revestia-se do discurso voltado para o marketing com a busca prática daquilo que se chamou, e foi sistematicamente se aprofundando na Folha, de jornalismo “crítico”, “pluralista”, “apartidário” e “moderno”. Tais conceitos e práticas foram implementados num momento em que a sociedade brasileira passava pela necessidade de uma nova reestruturação política protagonizada pelo capital, em decorrências de um “milagre econômico”, ocorrido sem poupança interna, e as sucessivas crises mundiais dos anos 1970. As forças do capital exigiam tanto da esfera da produção, o que quer dizer, das forças produtivas da sociedade quanto da própria produção material e imaterial, o atendimento às novas demandas para continuar subsistindo e avançar em seu desenvolvimento. Os anos da década de 1980 nesse aspecto foram desafiadores – e extremamente instáveis. Tanto que aquela chegou a ser classificada por muitos como “a década perdida”. A Folha, no entanto, como agente do novo discurso ideológico, faturou em cima do que vendia e do que propagandeava, ao contrário do que ocorrera duas décadas atrás, quando apoiou o golpe, os militares e a sua política econômica: agora pedia a democracia, a liberdade e a transparência ao mesmo tempo em que se posicionava como aberta e diversificada ou ao menos se caracterizava de maneira oportuna no mercado como um espaço aberto para as diversas vozes, inclusive às discordantes do Establishment. Nesse aspecto, é necessário voltarmos à cartografia dos primeiros momentos, quando da aquisição da Folha, até alcançarmos novamente os turbulentos anos 1980, quando esse jornal, ao contrário das dezenas de outros que são abatidos ou simplesmente se afundiam pelo caminho, navega com um rumo 280 certeiro à ilha do tesouro: metáfora ao oportunismo e entesouramento. Isso porque os traçados desses primeiros momentos, assim como os posteriores, definem bem quanto, especialmente nos campos político e econômico, à participação da Folha como órgão representante dos interesses da antiga/nova oligarquia paulista diante de uma nova realidade capitalista, que também ajuda a moldar, e se utiliza, para isso, inclusive, da mão-de-obra especializada dos jornalistas, alguns deles dos mais notórios e respeitados na imprensa nacional. Senão vejamos. A estratégia da Folha de São Paulo, a partir dos anos 1960, quando adquirida por Frias e Caldeira, com suas providenciais mudanças pelo caminho até os anos 1980, teve alguns fatores sintomáticos logo de início: o de aproximação, senão o acocho, ao poder dos militares golpistas, além da “venda do peixe” para um público ávido pelo discurso citadino e ao mesmo tempo acólito do avanço da modernidade urbana. Discurso em que consta o veio ideológico – portanto não explícito – da oscilação entre o popular e o oligárquico, ou seja, o meio-termo para um público preferencialmente de classe média, sob o manto da oratória do liberalismo econômico – este sim explícito – conforme vimos. De tal forma que a Folha é um dos primeiros jornais a encampar o jornalismo econômico, no final da década de 1960, abrindo um caderno exclusivo para esse tema e especializando jornalistas na área. Ainda nesse projeto político de atendimento ao poder e ao mesmo tempo de desenvoltura da atividade lucrativa pode-se citar outros exemplos. Frias e Caldeira compraram, segundo Paschoal (2007, p. 134-136), em 1º de setembro de 1965, o jornal Última Hora, de São Paulo, fundado por Samuel Wainer, então exilado em Paris, para onde Frias foi fazer negócio e saiu de lá dono de mais uma empresa de comunicação. Mais tarde, em suas memórias, numa obra 281 póstuma, Wainer lembraria o episódio da venda num hotel em Paris, quando, após a assinatura do contrato, Frias teria lhe revelado que o que acabara de fazer alegraria a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP). “Sobretudo entre 1952 e 1964, [o Última Hora] fora um grande jornal, muito influente entre os trabalhadores urbanos [de São Paulo]”, diz Wainer (1993, p. 268), que acrescenta: “A rigor, a FIESP não queria destruir-me – queria destruir o jornal, e o jornal continuaria vivo.” Frias e Caldeira compraram também, ainda segundo Paschoal (2007, p. 136-137), em 22 de outubro daquele mesmo ano (1965), o Notícias Populares. Este jornal fora fundado pelo banqueiro Hérbert Levy, então presidente da UDN (dono também do mais tradicional jornal de economia do país, o Gazeta Mercantil), para fazer frente, no campo ideológico e junto à população de São Paulo, justamente ao jornal de Samuel Wainer, o Última Hora, que defendia o PTB de Getúlio Vargas, o getulismo, alguns anseios populares e até ideias da esquerda brasileira. E finalmente fundaram, conforme ainda Paschoal (2007, p. 137), em 1º de julho de 1967, o Cidade de Santos, na cidade de Santos, reduto eleitoral de Caldeira e onde ele posteriormente viria se tornar prefeito. Assim, o Grupo Folha apodera-se pelo assenhoreamento do capital ainda mais dos seus objetivos políticos e mercantilistas. Apoderação que se daria barateando a distribuição pelo maior número de títulos e de exemplares de jornais, alcançando mais eficientemente os leitores medianos da Folha de São Paulo e agora também, com os jornais Última Hora e Notícias Populares, o dúbio campo dos leitores considerados populares, como os estudantes e os operários, simpáticos ou não, participantes ou não, dos movimentos das esquerdas e da direita no poder. 282 É importante dizer, contudo, que com o Golpe de Estado, em 1964, a esquerda brasileira foi excluída do processo político e assim o Última Hora, agravado pelo boicote econômico, perdeu o seu sentido genético de existir, e igualmente o Notícias Populares de o quê combater dali por diante, posto Goulart ter se exilado e o empreendimento amargar nas baixas vendagens. É quando, com um jornal nacionalista, mas economicamente desmantelado, dado à perseguição política e econômica, Wainer decide vender; e com um jornal sem sentido político de existir e igualmente com problemas de caixa, Levy também decide vender. “Devido a dificuldades econômicas, resultantes de pressões políticas, Wainer irá fechar ou vender algumas das redações regionais do Última Hora, caso da paulista, comprada pelo Grupo Folha, em 1965”, afirmam Romancini; e Lago (2007, p. 124), que não deixam de destacar: “Assim, curiosamente, este grupo passaria a editar dois jornais antagônicos, visto que comprara no mesmo ano o Notícias Populares”. Desta forma, a incorporação tanto do UH quanto do NP ao Grupo Folha feita por Frias e Caldeira se dá de maneira oportunista, com um único e definido objetivo para os seus agora novos proprietários: enfatizar-se no mercado o mais amplamente possível buscando ao fim e ao cabo a produção de mais capital. Paschoal (2007, p. 136) e o próprio Frias, este em depoimento àquele, revelam o plano: “A compra desses jornais foi feita de forma planejada, para ocupar nichos em que a Folha não atuava, segundo Frias: “Quando compramos o Notícias Populares, achamos que era uma faixa na qual a Folha não entrava e, portanto, não iria colidir com a Folha, que era sempre o carro-chefe””. E o plano dá certo. Tanto que, por exemplo, o Notícias Populares sobrevive até 2001, quando, numa outra realidade, globalizada e multimidiática, é definitivamente fechado por Frias. 283 Mas se Frias e Caldeira compraram jornais que perderam originalmente o seu sentido político de ora conjurar ora ser inconfidente com o poder, tanto de um lado quanto de outro, dependendo de quem estivesse no poder, também não se esqueceram de fazer seus próprios empreendimentos nesse mesmo sentido. Ou seja, refundam e passaram a investir politicamente, mas também com um sentido financeiro último e subjacente, num jornal que de maneira aberta voltara-se, antes de seu fechamento, para as classes populares. Um jornal que, agora renascido, após o golpe, passa a defender o governo, os torturadores e posiciona-se radicalmente contra aqueles considerados pelos militares como “subversivos” – muitos dos quais jornalistas, inclusive alguns trabalhadores da própria Folha de São Paulo e de outros setores do Grupo Folha – ao mesmo tempo em que se posiciona como popular, alcançando as classes dos trabalhadores urbanos. Trata-se do jornal Folha da Tarde, que existira como edição vespertina antes da junção das “Folhas” em um único jornal, a Folha de São Paulo. A Folha da Tarde, fundada em 1º de julho 1949, quando a empresa ainda pertencia a José Nabantino Ramos, fora fechado 31 de dezembro de 1959, ou seja, antes da aquisição da empresa por Frias e Caldeira. O seu slogan fora “O vespertino das multidões”, evidenciando o seu caráter popular. O jornal Folha da Tarde, entretanto, foi ressuscitado pelos novos donos, Frias e Caldeira, em 19 de outubro de 1967 – três anos após o golpe e dois após terem adquirido o Última Hora e o Notícias Populares e extinto somente em março de 1999 –, para fazer frente no mercado a um dos jornais, o Jornal da Tarde, daquele que consideravam o principal concorrente da Folha, o jornal O Estado de São Paulo, dos Mesquita – tradicional grupo oligárquico de São Paulo. A historiadora Beatriz Kushnir estudou 284 a Folha da Tarde de 1967 a 1984, ou seja, da data de seu renascimento feito por Frias e Caldeira até o fim da ditadura militar – exatamente o mesmo período que nos interessa no presente trabalho. “Nesses dezessete anos, entre 1967 e 1984, o país foi dos “anos de chumbo” ao processo das Diretas Já e a Folha da Tarde teve uma redação tanto de esquerda engajada como de partidários do autoritarismo que reinava no país”, resume as suas pesquisas Kushnir (2004, p. 217) em sua interessante obra Cães de Guarda: jornalistas e censores, do AI-5 à Constituição de 1988. No início da análise, contudo, a autora já anuncia: “Como se poderá notar, a trajetória da Folha da Tarde espelha tanto as rupturas e mudanças no panorama brasileiro como os caminhos percorridos pelo Grupo Folha da Manhã para se adaptar aos percalços e às efervescências políticas daquele período” (KUSHNIR, 2004, p. 218). Com efeito: a autora mostra em minúcias que, quando refundado, a Folha da Tarde tinha uma orientação e em sua redação jornalistas de esquerda, fato corroborado, embora de maneira tênue, por Paschoal (2007, p. 153). Alguns desses ativistas eram, por exemplo, membros da Aliança Libertadora Nacional (ALN) e até padres dominicanos ligados ao famoso guerrilheiro Carlos Marighella, como Frei Beto. Eles, àquela altura, passaram a dar voz aos movimentos sociais organizados. Atendiam nesse aspecto aos anseios mercadológicos de Frias e Caldeira, que era cobrir, por exemplo, as passeatas dos estudantes e outras mobilizações similares, tendo em vista que estes viam na contestação social um “filão econômico”. Ao mesmo tempo, tais membros da redação questionavam os rumos que o regime militar estava dando ao país. Mas essa orientação editorial e a composição da redação mudaram radicalmente a partir de 1968, segundo Kushnir, 285 quando ocorre uma forte ruptura legal, causada pela edição em 13 de dezembro daquele ano do Ato Institucional Nº 5, dando poderes extraordinários ao presidente da República, na ocasião o general Costa e Silva, como fechar o Congresso Nacional – o que de fato ocorreu poucas horas depois, dando início ao chamado “Anos de Chumbo”, conforme Romancini; Lago (2007, p. 126) –, além de cassar mandatos, suspender direitos políticos, demitir funcionários públicos etc., fato consubstanciado por uma série de acontecimentos neste mesmo sentido ocorridos no ano anterior, 1967, como a instituição da Lei de Imprensa e a Lei de Segurança Nacional, que prepararam o caminho para o endurecimento do regime militar com o AI-5. A Folha da Tarde a partir daí continuou voltada para o público popular, mas apoiando a contra-reação dos militares aos movimentos de esquerdas. Para isso, a FT incorporou aos seus quadros, principalmente depois de 1970 (o presidente da República já era desde 1969 o general Emílio Garrastazu Médici, considerado o mais “linha-dura” na galeria de todos os ex-presidentes militares do período e em cujo governo houve os mais numerosos casos de censura à imprensa, perseguições, torturas e assassinatos), jornalistas que Kushnir chama de “cães de guarda” – repórteres com assento nos jornais e ao mesmo tempo com emprego nos órgãos repressivos da ditadura, denominação também comum aos policiais e censores do chamado “porões da ditadura”, que se imiscuíam nas redações ou eram encarregados diretamente de censurar a imprensa. “O corpo de redação da Folha da Tarde, de 1967 a 1984, é formado por dois grupos distintos: os de antes e os de depois do AI-5”, resume Kushnir (2004, p. 229). Um desses repórteres, da editoria de polícia, muito conhecido e respeitado pelos seus “furos”, era Antônio Aggio 286 Júnior, que tinha um emprego nos órgãos de segurança pública, onde atuou como assessor dos delegados Romeu Tuma e Sérgio Paranhos Fleury no Departamento de Ordem Política e Social (DOPS), e que teria posto os carros do jornal à disposição da polícia e do Exército para ações camufladas de repressão, conforme admite o próprio Frias em Paschoal (2007, p. 153-157). Dois casos que ocorreram nesse segundo período do FT são emblemáticos e revelam de forma cristalina o quanto o jornal estava atado ao regime militar, conforme nos mostra detalhadamente Kushnir (2004, p. 213-353). Primeiro os ataques aos carros do Grupo Folha da Manhã, por duas vezes, em 1971, feitos por militantes de esquerda, que incendiaram os veículos em represália ao fato da empresa ceder mascaradamente carros para o DOI-CODI (Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna) montar emboscadas, prender e matar ativistas. O segundo caso envolve dois militantes de esquerda, Ivan Seixas, codinome Teobaldo, e o seu pai, Joaquim Seixas, o Roque. Ambos foram presos, no dia 16 de abril de 1971, e seguidamente torturados, pela Operação Bandeirantes (OBAN), sob acusação de terem participado do assassinato de um industrial paulista, o presidente da Ultragás, Henning Boilesen, considerado pelos ativistas como financiador da repressão política e instrutor de torturas. Ao ser levado para dar “um passeio”, quando foi outras vezes barbaramente torturado, Ivan Seixas, conforme revelou depois, conseguiu ler, de dentro do carro da polícia onde se encontrava, na edição da tarde de 17 de abril de 1971 do jornal Folha da Tarde, quando os policiais pararam numa padaria para tomar um café, por volta do meio-dia, que o seu pai, “assassino do empresário”, havia “reagido violentamente à prisão” e, “numa troca de tiros”, fora morto por policiais. O caso, assim, anunciava 287 o jornal em manchete, fora solucionado. Ocorre, porém, que, ao voltar do “passeio”, Ivan Seixas encontrOU, nas instalações da OBAN, o seu pai ainda vivo – mas que iria morrer na tarde daquele mesmo dia, pois a sua sentença de morte já fora decidida e o jornal conseguira antecipar, inclusive a versão dada depois pela polícia, nas falsas condições de reação à prisão. Tudo obtido e divulgado através de jornalistas/policiais da Folha da Tarde imiscuídos nos porões da ditadura. Não seria sem propósito que chamariam a FT de “o jornal de maior tiragem” – numa alusão ao número volumoso de exemplares/dia e ao mesmo tempo aos “tiras” nele infiltrados ou acomodados. Isso num período em que se foi o mais sangrento de uma ditadura “escancarada”, com o fechamento de vários jornais vítimas da arbitrariedade do poder, foi também, como nos mostram diversos autores, a época do chamado “milagre econômico”, o mais fértil nas estatísticas de desenvolvimento econômico nacional e de maior verticalização e concentração do capital empresarial/industrial, especialmente de São Paulo e Região Metropolitana, dentre os quais o da imprensa que ali se modernizava (ABREU, 2002). Ou seja: se para a sociedade foram “anos de chumbo”, para Frias e Caldeira foram “anos de ouro”. A nova direção do Grupo Folha da Manhã, porém, não se daria por satisfeita por comprar e lançar jornais que em sua diversificação alcançassem o maior número de compradores possível no mercado da imprensa paulistana e nacional. Afinal, como o próprio Frias revela em Paschoal (2007), aprendera com o amigo Caldeira a, ao notar uma demanda qualquer no mercado, fazer de tudo para satisfazê-la, fazer de tudo para saciar a sede de consumidores ávidos, pois esta seria a fórmula mais rápida e eficiente de se ganhar muito dinheiro. 288 Assim, ambos, mas especialmente Frias, iriam também contratar, senão cooptar, ao seu projeto, mão-de-obra simbólica, especializada e capacitada, ou seja, jornalistas de renome e de grande credibilidade, que pudessem fazer avançar os seus ideais neste sentido capitalista: o de ganhar dinheiro ilimitado, obter o máximo de lucro possível, retransformar um investimento lucrativo em mais capital ainda, através da exploração da mão-de-obra intelectual. O mais notável caso, nesse aspecto, foi a contratação e o trabalho desenvolvido pelo jornalista Cláudio Abramo. Famoso e respeitado, não só pela sua capacidade intelectual, mas também por saber comandar redações de peso, Abramo era a peça perfeita aos propósitos de Frias-Caldeira. Mais ainda porque ele fora, bem-sucedido, diretor da redação do jornal de antigos desafetos e ainda o principal concorrente de Frias-Caldeira, os Mesquita e O Estado de São Paulo. “Cláudio tocava qualquer instrumento da orquestra [redação], mas sobretudo sabia regê-la. Conhecia as esquinas do efêmero, mas não se perdia nas esquinas do perene”, sintetiza Mino Carta, um dos outros nomes notáveis do jornalismo brasileiro, e talvez o maior amigo dele, no prefácio do livro póstumo de Abramo (1998, p. 8). Cláudio Abramo foi o grande responsável pela reforma de OESP a partir de meados dos anos 1950. “No conjunto, ele foi o primeiro responsável pela transformação de um jornal provinciano e um tanto excêntrico em um órgão digno da contemporaneidade”, acrescenta Carta. Mas Abramo foi demitido em 1963 do Estadão, como também é chamado o jornal. Carta credita isso à sobrevivência da oligarquia dos Mesquita. A versão de Cláudio Abramo (1998) para essa demissão segue nesse mesmo sentido: já empenhada na conspiração que culminaria com o golpe de 1964, a família Mesquita queria se livrar dele. 289 Marxista, membro do Partido Socialista Brasileiro (PSB) até 1950, Abramo era irmão de Fúvio e Lívio Abramo, destacados militantes do movimento trotskista no Brasil e “pessoas de jornal com quem convivi”. Visitou, a convite dos governos, a Alemanha, Inglaterra, Estados Unidos e Índia, fato inclusive destacados por Paschoal. Conheceu jornais da Ásia, Europa e EUA, onde conheceu de perto o The New York Times, Washington Post e Wall Strett Journal, além de ter participado de vários eventos nas universidades de Stanford, Columbia e Berkeley. Através de um banqueiro, Antonio de Pádua Rocha Diniz, do Banco Nacional, segundo relata Paschoal (2007, p. 125), Frias conheceu Abramo, pessoa de cujo talento naquele momento precisava para a Folha, ainda mais vindo do concorrente que tanto considerava. “Não me lembro qual foi a primeira impressão que Cláudio me causou, mas o que me atraía era o nome do Cláudio, o fato de ele ter sido do Estado, porque o Estado era o máximo, era o Olimpo. Então ter na Folha um homem que foi secretário do Estado era um ganho de status, de capacidade, muito importante”, afirma Frias, ainda segundo Paschoal (2007, p. 126-127). O diálogo que Frias e Abramo travaram quando do primeiro encontro, na sede do Banco Nacional, de propriedade do amigo em comum a ambos, situado à época na Avenida Ipiranga, quase esquina da Rua São João, coração da cidade de São Paulo, ponto de várias confluências culturais da vida urbana paulista, é sintomático. Não só pelo local em que se deu e pelo que revela do caráter ideológico e da natureza psicológica de cada um, mas também pelo que nos demonstra dos respectivos interesses materiais e sociais dos dois personagens históricos. Quem narra o encontro é o próprio Abramo (1998, p. 83): Por iniciativa de Roberto Gusmão, tivemos um encontro no escritório de Rocha Diniz, do Banco Nacional, que é meu amigo. 290 Frias é muito franco, despachado, e foi logo me dizendo: “Dizem que você é autoritário, comunista e tem freqüentes acessos de loucura”. E eu respondi: “É tudo verdade, mas em outros termos. Sou marxista, de formação desde menino, sou autoritário, mas também disciplinado, e tenho meus acessos de raiva, como todo secretário de redação, pois vivemos sob tensão”. Mas não acertamos. Pouco depois, contudo, Abramo acertou com Frias, sendo contratado. Foi trabalhar primeiro na Transaco, empresa de corretagem de ações de Frias, fazendo relatórios críticos e diários sobre a Folha, posto encontrar resistências dentro do jornal que Frias precisava sanar. Em seguida assumiu a chefia de produção (ou reportagem, como diz Frias) e depois a secretaria de redação. E iniciou uma reforma. Foi uma das mais importantes reformas protagonizadas pela Folha no período de mudanças políticas e econômicas do país e que culminaria com o processo de redemocratização no final dos anos 1970 e principalmente na década de 1980. Sem nenhum pejo, Frias e Paschoal (2007, p. 131) revelam: “Contratar Cláudio Abramo, que tinha sido de O Estado de São Paulo, era o primeiro passo para o objetivo maior de Frias: ‘Fazer um grande jornal. Um jornal que alcançasse o Estado. Esse sempre foi o meu objetivo’”. Nas suas reflexões, publicadas postumamente, Abramo, por duas vezes, em tom de autocrítica, considera que ajudar a Folha da forma que ajudou, indispondo-se inclusive com colegas e a própria categoria, através do Sindicado dos Jornalistas de São Paulo, foi um grande erro de sua parte. “Apesar disso, às vezes acho que ter ido para a Folha foi um dos maiores erros que cometi na vida, pois ajudei muito o jornal e hoje sou marginalizado” (ABRAMO, 1998, p. 85). E mais na frente acrescenta: “Se tivesse que repetir toda a experiência da Folha não o faria de novo, porque foi muito frustrante profissionalmente. Mesmo considerando que contribuí para a 291 organização do jornalismo brasileiro e que, na Folha, ajudei um pouco a apressar o processo democrático, a experiência não foi boa” (ABRAMO, 1998, p. 90). Mas o que fez Abramo para se arrepender? Num período de ampliação das telecomunicações e controle estatal e ao mesmo tempo concentração do capital e de modernização rápida da imprensa brasileira (ABREU, 2002; Mota; Capelato (1981), entre outros), pode-se dizer que, em etapas, o que Abramo fez foi buscar a profissionalização da mão-de-obra da redação, demitindo alguns antigos cujas práticas considerava atrasadas, exigindo maior empenho das atividades subjetivas e objetivas dos jornalistas que ficaram ou contratou, bem como direcionando o jornal para o sentido de se posicionar no mercado como mais crítico e defensor da participação política. “A ele, Cláudio, se deverão várias iniciativas que deram à ‘Folha’ sua fisionomia crítica atual. Em primeiro lugar, a resistência num dos períodos mais duros da vida do jornal, sob o AI-5”, afirmam Mota; Capelato (181, p. 20). De 1965 até 1972, no entanto, as reformas de Abramo não avançaram tanto como queria, apesar do caráter crítico subjacente. A censura e as perseguições políticas não permitiam que o jornal ousasse tanto. Foi nessa época que Frias criou uma Central de Notícias, depois Agência Folhas, e nesta um núcleo policial, para autocensurar o próprio jornal de acordo com os desejos e caprichos dos militares, sem mesmo consultá-los (MOTA; CAPELATO, 1981; ABRAMO, 1988). Eram os “cães de guarda” chamados por Kushnir. Em seguida investiu na reativação e guinada da Folha da Tarde e remanejou esse pessoal para lá, de tal forma que, como se lembra o próprio Abramo (1988, p. 87), Frias transformou a FT “no jornal mais sórdido do país”. O “terror policial” que marcaria o Grupo Folha como um “low profile” coincidiria por todo o período do chamado “milagre econômico” 292 (1969-1974) do governo Médici, segundo informam Mota; Capelato (1981, p. 215). O fato é que abatido com toda essa situação, vendo todos os dias amigos sendo presos, torturados, mortos, sem quase nada poder fazer com a política antagônica da Folha, em 1972 Abramo é afastado da redação, mas sem perder o emprego. Fica nessa situação por cerca de dois anos. Nesse período, mais precisamente em 1974, viaja para Nova York, com, entre outros, o filho de Frias, Otávio Frias Filho. O encontro das duas gerações, exatamente nos EUA, país inspirador de Octávio, o pai, é politicamente instrutivo e iria mudar os rumos da Folha. “Conversei muito com o Otavinho nos EUA. Era um momento de mudança política no Brasil. O MDB elegera dezesseis senadores nas eleições daquele ano e pressenti que o Brasil estava começando a mudar. O golpe estava esgotado... O jornal também precisava mudar”, informa Abramo (1988, p. 88). O mesmo assunto, ainda nos EUA, Abramo conversaria durante horas com os dois Frias, pai e filho, aprofundando a análise sobre o momento e suas ideias para o jornal. “Ele estava pensando da mesma forma... Frias percebeu então que seu jornal só poderia prosperar num regime democrático, e por isso adotou uma linha combativa”. Mas Frias “pensava da mesma forma” não por si somente, como deixa transparecer Abramo. Na verdade, a sua aproximação com os militares o compelia para isso. Pelo menos é o que deixa transparecer o seguinte episódio contado por ele mesmo. Em 1964, quando participava de um almoço em homenagem ao marechal Castelo Branco, primeiro presidente do golpe, no Conjunto Nacional, em São Paulo, Júlio de Mesquita Filho, do jornal Estadão, escreveu num guardanapo um bilhete para o presidente reclamando do crescimento da Folha e que isso precisaria ser apurado pelo governo, pois havia informações de que os recursos 293 vinham de fora do país, dos EUA, da Rússia, os comunistas. Foi feita uma apuração e descobriu-se que os recursos eram eminentemente dos bancos – o que comprova mais uma vez a linhagem oligárquica da Folha dentro da classe dominante de São Paulo que aqui tentamos expor. Dez anos depois, quando da iminência da assunção de um novo presidente da República, general Ernesto Geisel, considerado da linha “castelista”, ou seja, que pensava em fazer retornar o poder aos políticos tradicionais, o general Golbery do Couto e Silva, chamado por muitos de “o bruxo” da revolução, pelo seu método inteligente, sorrateiro e de efeito acerca dos desígnios do país que planejava com e para o poder, mostrando o bilhete para Frias, como fizera noutras ocasiões, “expôs ao dono da Folha o seu plano de distensão lenta, gradual e segura do regime”, dando a entender que “o novo governo veria com bons olhos a existência de um outro jornal paulista de prestígio, além de O Estado” (PASCHOAL, 2007, p. 134). A própria elite segreda seus pecados quando lhe tocam no bolso. Quando retorna ao Brasil, no entanto, em 1975, Abramo, juntamente com a esposa, é preso pelo DOI-CODI, já sob governo do novo presidente, acusado de subversão. É importante dizer que, nesse mesmo ano, foi preso, dentre vários outros, o jornalista Vladimir Herzog, diretor de jornalismo da TV Cultura/Fundação Padre Anchieta, acusado de pertencer a uma célula do Partido Comunista Brasileiro. Nas instalações da OBAN, “Vlado”, como era carinhosamente chamado, morre horas depois sob tortura. Para despistar, foi simulado um suicídio por enforcamento, e cuja foto, tirada pelos próprios algozes, hoje é um símbolo ao mesmo tempo da tortura descontrolada e da resistência daquela época: a imagem, chocante, retrata um suicídio tecnicamente improvável. 294 Abramo, no entanto, teve outra sorte: foi solto dias depois. É a partir daí que começa a “virada” da Folha, conforme revela o próprio Abramo (1988, p. 89): “Quando sai do DOI-CODI, comecei a formular os planos para a Folha. A partir de junho comecei a mudar o jornal, a princípio sem estar na redação, mas sempre de acordo com Frias. Começamos a levar gente boa, como Paulo Francis, Newton Rodrigues, Alberto Dines, cuja ida para a Folha eu já havia negociado; aí começou a virada. A reforma da Folha representou uma mudança completa de atitude, de comportamento, que até hoje permanece. Com efeito, por iniciativa de Abramo, o jornal abre as páginas dois e três para a exposição e análises conjunturais da política e da economia nacional. O espaço “Tendências/Debates”, na página três, abrigou políticos, empresários, juristas, ativistas, mas mais especialmente professores e pesquisadores das universidades, que expunham dados, análises etc. que discutiam, através de uma maior liberdade, os avanços e recuos do regime, da economia, da política etc. Entre alguns desses nomes constam os dos sociólogos Florestan Fernandes e Fernando Henrique Cardoso (que viria se tornar presidente do Brasil), e depois Delfim Neto, José Sarney (também ex-presidente) e Antônio Ermírio de Moraes, estes dois mantendo até o presente suas colunas semanais. O novo espaço proporcionado pelo jornal, inclusive nos temas das reportagens, junto com o suplemento Folhetim, também da Folha, “abocanha” do mercado, senão anula, os vários jornais de organizações de esquerda e de movimentos da própria categoria (partidos políticos e cooperativas ou simples grupos de jornalistas que com o fim do precário equilíbrio nas relações de trabalho nas empresas ligadas à classe dominante não encontravam lugar na imprensa tradicional), os quais àquela altura questionavam o regime militar e o modelo econômico adotado, como o Pasquim, Movimento, Opinião, Em Tempo, e de tal 295 forma que finalmente estes desaparecem como por encanto. “Como se tivesse ocorrido um cataclisma, quase todos os jornais alternativos que circulavam entre 1977 e 1979 deixaram de existir a partir de 1980-1981”, afirma Bernardo Kucinski (1991, p. 117), em sua interessante e exaustiva obra a respeito da importância e da participação da chamada “imprensa nanica” no período da ditadura militar dos anos 1960 até o início da abertura política da década de 1980. “Navegando nos ventos da abertura, a FOLHA DE SÃO PAULO disputava o leitor d’O ESTADO DE SÃO PAULO através de uma linha editorial crítica. Atraiu a geração Libelu [liberdade e luta] e adotou parte da linguagem alternativa. O projeto editorial da FOLHA delineado primeiramente por Cláudio Abramo em 1978, inspirou-se na experiência dos alternativos orgânicos, inclusive através da proposta de uma plataforma política”, afirma acertadamente mais na frente Kucinski (1991, p. 125). Mas em setembro daquele mesmo ano, 1977, em que a Folha lança, sob a direção do jornalista Tarso de Castro, este vindo exatamente de O Pasquim, Cláudio Abramo foi mais uma vez afastado da direção de redação da Folha de São Paulo, num episódio que revela novamente a ligação, senão de subserviência ao menos de obediência, comedida, cautelosa, é bem verdade, mas também objetivamente tática, de Frias para com os militares, bem como revela também a necessidade de se abrir espaços para outra e mais jovem mão-de-obra que viria fazer parte da nova transmutada Folha, como acredita o próprio Abramo, apontando para um maior predomínio e disciplinamento do sistema produtivo. O episódio teve a participação direta do general Hugo de Abreu, chefe da Casa Militar do presidente Ernesto Geisel. O incidente ficou conhecido como “O Caso Diaféria”. Isso porque o Exército se irritou profundamente em seus brios com um 296 artigo publicado na Folha de São Paulo pelo jornalista da Lourenço Diaféria, intitulado “Herói. Morto. Nós”, no dia 1º de setembro de 1977. O artigo foi considerado ofensivo à memória do Patrono do Exército, Duque de Caxias. Diaféria foi preso. No dia seguinte à prisão, o jornal publicou, em tom de protesto, a coluna em branco, com uma nota de rodapé explicativa. Foi quando o general Hugo de Abreu, outrora sempre cordato com o Grupo Folha, ligou para Frias, por imposição do ministro do Exército, general Sylvio Frota, e exigiu dele a demissão de Abramo, caso contrário também seria preso e o jornal deixaria de circular por um mês, com base na Lei de Segurança Nacional (ABRAMO, 1988, p. 89-90; PASCHOAL, 2007, p. 161; KUSHNIR, p. 222; MOTA; CAPELATO, 1980, p. 235-236). Frias e o jornal obedeceram às ordens. Mais que isso: deu uma guinada à direita – ou promoveu um retrocesso, como dizem alguns autores. Além de substituir Abramo pelo jornalista Boris Casoy, conhecido por suas posições de direita (foi assessor do ex-prefeito de São Paulo, José Carlos de Figueiredo Ferraz, do ex-ministro Cirne Lima e dos ex-secretários Herbert Levy e Antônio Rodrigues), retirou o seu nome como diretor-presidente da primeira página, as colunas de Newton Rodrigues e Alberto Dines e suspendeu os editoriais. Trocou as peças, fez mudanças, inclusive outras que agradariam aos militares e empresários representantes da classe dominante, mas o objetivo mercantilista permaneceu o mesmo, até porque este se afinava com a regência estatal. Na reunião que tinha tido com os editores, por exemplo, quando do anúncio das mudanças, Frias informou “que não havia pressões sobre ele – “o Frias empresário” – mas deixou claro que as pressões eram dirigidas contra o jornal” (JORNAL DO BRAIL, 1977, apud MOTA, CAPELATO, 1980, p. 350). Assim tanto a posição do jornal no mercado, 297 onde busca sua legitimidade, quanto em relação à sua mão-de-obra, não muda. Neste último, ao contrário: aprofunda-se em predomínio e exploração. Confiramos. Mesmo demitido, Abramo continuou como membro do Conselho Editorial, onde participou da confecção de um documento em 1978 em que se faz uma avaliação histórica e aponta as tendências que o jornal deve buscar e seguir. “O documento é extremamente significativo, por traduzir a percepção da subordinação da “Folha de S. Paulo” ao sistema capitalista”, afirmam Mota; Capelato (1980, p. 239), que em seguida fazem a longa transcrição literal. Tal documento reconhece, naquele momento, no regime militar, a proposta capitalista de modernização do país, que se esgota ao cumpri-la, e dirige o veículo para rumos ideológicos que deve retomar e manter: ocupar espaço político, e não de tempo, aberto pela sociedade. “A preservação e, secundariamente, a ampliação desse espaço é a questão de maior importância no momento”, afirma o documento, segundo a transcrição de Mota; Capelato (1981, p. 242). Abramo saiu do jornal quando se indispôs com o Sindicato dos Jornalistas de São Paulo durante a greve de 1979. Mais um embate a demonstrar a crise entre os jornalistas e a empresa Folha da Manhã, algo que iria se repetir acirradamente nos anos 1980, como vimos. No entanto, as bases da reforma estavam plantadas, que culminariam com a chegada do Projeto Folha, em 1984, através do novo diretor de redação, Otavio Filho, conforme foi dito acima. Projeto e sua consequente normatização explícita do comportamento profissional e até de suas subjetividades em nome do imediato sucesso ideológico de mercado do empreendimento. Numa década em que se buscava uma saída sistêmica para uma crise política e econômica no país, a normatização da linguagem, do comportamento (a Folha também exigia formas de 298 se vestir etc.) e a estandardização na apresentação final da principal mercadoria do jornalismo, a informação impressa no jornal e nas cabeças das pessoas, assim, foi uma maneira de, sobrepondo-se às características particulares e imanentes de cada indivíduo jornalista, extrair-lhe a força de trabalho de forma mais eficiente, ao mesmo tempo em isso asseguraria à corporação a produção de uma apartação mais bem acabada daquele que efetivamente produz a mercadoria e ao mesmo tempo desta daquele que efetivamente a produz, como intuito final de manter as sobretaxas cumulativas de lucro, da produção indefinida de mais capital. A homogeneização, também prevista nos seus próprios termos no Projeto Folha, do qual se sobressai o Manual de Redação como uma de suas maiores expressões, garantiria, por seu turno, uma mais eficiente alienação de repórteres, correspondentes, diagramadores etc. que, mesmo tendo o registro de seus nomes em algumas partes previa e mercadologicamente definidas, ficariam quase sem rosto – todos eram qualquer um e vice-versa: a ameaça de desemprego aos que não se enquadram é a maior prova disso – ao mesmo tempo em que o jornal, ao contrário, a partir do epicentro econômico da principal cidade do país, cada vez mais explorava, se sobrepunha, se legitimava, se expressava e vendia. 299 Fotos 25 e 26 – Empresário Octavio Frias de Oliveira e jornalista Cláudio Abramo: as duas faces de um mesmo empreendimento. Fotos 21 – Folha de São Paulo, ainda com Nabantino, noticia, em 21 de abril de 1960, a inauguração de Brasília. Fotos 24 e 24 – Folha da Tarde anuncia, segundo Kushnir (2004), a morte de Joaquim Seixas em 17 de abril de 1971, quando ele ainda se encontrava vivo e preso numa das celas da OBAN; veículos do Grupo Folha utilizados em operações da polícia, segundo confirmou Paschoal (2007), foram queimados em 1971 por ativistas políticos como represálias: imagens de uma contradição trágica. Fotos 22 e 23 – Duas posições contrárias do jornal separadas pelo tempo abordam dois momentos distintos da história: em 1º de abril de 1964, os movimentos dos militares após a tomada do poder; em 5 de outubro de 1984, os movimentos populares pela retomada do poder. http://congressoemfoco.uol.com.br/upload/co ngresso/arquivo/folha_de_spaulo.pdf http://www1.folha.uol.com.br/folha/circulo/ primeira_pagina_1_abr_1964.htm http://www1.folha.uol.com.br/folha/circulo/ primeira_pagina_26_jan_1984.htm http://www.aggio.jor.br/ampliacao1.htm http://www.aggio.jor.br/historia_folha.htm http://noticias.uol.com.br/ultnot/especial/octaviofrias/ 300 Fotos 27 e 28 – Prédio do Copan projetado por Niemeyer e construído por Octávio Frias de Oliveira através do BNI; acima capa do livro de Rolnik (2009) publicado pela Publifolha, empresa do Grupo Folha, sobre o crescimento de São Paulo. Fotos 29 e 30 – Monumental e estaiada ponte sobre o Rio Pinheiros, no moderno bairro do Brooklin: homenagem do poder político ao capital simbólico e financeiro. http://planhabdauufes.blogspot.com/2009/12/tipologias- habitacionais.html www.publifolha.com.br h tt p :/ /w w w .f li ck ri v er .c o m /p h o to s/ ca rl o sa lk /p o p u la r- in te re st in g / h tt p :/ /g re g o ri p av an .b lo g sp o t. co m /2 0 0 8 /0 5 /p o n te -e st ai ad a- o c tv io -f ri as - d e- o li v ei ra .h tm l 301 CAPÍTULO 4 Comunicação e Geografia: interpretação da cidade a partir da heráldica dos prefeitos de Natal entre 1985 e 2004 1. Delimitação temática: aproximando pensares presente capítulo tem como objetivo principal contribuir para uma maior aproximação, que consideramos, até onde pudemos alcançar, inédita, entre as ciências da Comunicação e da Geografia Cultural Urbana, aprofundando assim o objetivo geral desta tese, que é, como já sabemos, concorrer para a abertura de novos saberes científicos, passíveis de serem interconectados, interdisciplinarizados, ou mais precisamente, para a construção de um paradigma mais amplo que revele novos conhecimentos e interpretações teóricas entre a Comunicação Social e demais ciências da área das humanas, especialmente as Ciências Sociais, tendo como campo epistemológico o paradigma do espaço urbano e como lócus à observação empírica a cidade-mídia contemporânea. Com efeito, no presente estudo buscaremos analisar as logomarcas, como princípio heráldico – dotadas, portanto, das forças de persuasão e do simbólico que visam a auferição, para seus titulares, via o assente citadino, de mais poderes nas esferas do político e do eleitoral –, dos prefeitos de Natal, desde o primeiro a ser O 302 eleito diretamente pelo povo, logo após o processo de redemocratização do Brasil depois do período de 21 anos do regime militar (1964-1985), Garibaldi Alves Filho (1985-1988), seguido subseqüencialmente pela prefeita Wilma Maria de Faria (1989-1992), Aldo Tinôco Filho (1993-1996), Wilma Maria de Faria (1997-2000), Wilma Maria de Faria (2001-2002) e Carlos Eduardo Alves (2003-2004), no contexto sócio-espacial da cidade, in casu, Natal. A análise pretende compreender, nesse período (1985-2004), qual a relação de coerência das respectivas marcas, enquanto objetos de expressão administrativa e do caráter público de seus representantes assim como fora na perspectiva emblemática os antigos brasões para as famílias de nobres, com a realidade conjuntural e urbana de Natal, ou seja, com as esferas do político, do econômico e por vezes do ideológico da cidade, e, dialeticamente, desta com seus representantes no poder máximo do Executivo Municipal. Nesse processo, e sentido, as escolhas unilaterais por parte dos gestores públicos de elementos patrimoniais e culturais da linguagem, obtidos, extraídos ou inspirados, para ficarmos num eufemismo usual, do espaço urbano da cidade em questão e do âmbito da afetividade identitária de seus habitantes, fato comum nas sociedades capitalistas e midiáticas contemporâneas, parece demonstrar algo mais que uma simples objetivação mercadológica da imagem da gestão desses políticos. Sinaliza, ou mesmo já denota, conforme heuristicamente acreditamos, uma subjetiva, unilateral e discriminatória tendência das políticas públicas municipais. Poder-se-ia até dizer: torna visível o caráter público não-conjurado da administração pública desses políticos, o corpo e o escopo de suas respectivas 303 gestões para com a cidade e, ao mesmo tempo, da trajetória cultural e do sentido e desenvolvimento histórico desta mesma cidade, ao longo do período em questão. Desvendar esse processo, a partir de uma perspectiva crítica, tendo como pano de fundo a questão social, política e espacial no locus urbano da capital potiguar, é, em outras palavras, o objetivo do presente capítulo, que adotará, como metodologia, a decifração de elementos morfológicos da cidade, cujas bases histórico-teóricas, do âmbito da Geografia Cultural Urbana, abordaremos na seção a seguir (antes, portanto, da leitura propriamente dita da cidade a partir de seus elementos patrimoniais/reais e do design gráfico/heráldico dos referidos prefeitos que, subseqüencialmente, também iremos expor, como contribuição, por sua vez, da Comunicação Social, do âmbito da Publicidade e Propaganda, para o construto daquela visão mais ampla, paradigmática e interdisciplinar do conhecimento social que inicialmente nos propusemos ajudar a erguer). Partamos, portanto, agora, da gênese e do desenvolvimento da Geografia Cultural Urbana que contemplará a análise do nosso objeto de estudo. 2. Geografia Cultural: um trajeto rumo à decifração urbana A questão do espaço, em todas as áreas do conhecimento, particularmente na Geografia, vem merecendo, principalmente a partir do início do século XX, e que se acentua depois do terceiro quartel desse mesmo século (SOJA, 1993, p. 17- 55), uma atenção redobrada por parte de filósofos e dos pesquisadores sociais em geral. Tal análise dá-se em mais profundidade no âmbito das cidades, estas com suas significantes produções capitalistas/urbanas, coincidindo com o avanço da 304 Geografia Cultural, suas premissas teóricas e validações metodológicas a partir e em interação com novos e velhos elementos de construtos sócio-espaciais do urbano (CORRÊA; ROSENDAHL, 2003a). Essa renovação na Geografia Cultural supera a idéia de espaço dado, ecológico, dotado de elementos característicos, que pode ser definido por “um conjunto de categorias do meio físico” no qual o homem, mero ser geodésico, apenas compõe e sofre as conseqüências da natureza numa relação inelutavelmente causal (SAUER, 2003, p. 19), que por muito tempo preencheu o imaginário da ciência geográfica, assim denominada de humana. Supera até mesmo uma visão que lembra uma certa assertiva antropológica de práticas e costumes supra-orgânicos da qual, a partir de uma ontologia determinante e superior, regida por leis próprias e pré-existentes, emanaria um certo poder extemporâneo e portanto causativo da ordem e dos acontecimentos no âmbito das relações sociais, entendimento esse defendido por muitos geógrafos norte-americanos culturais importantes (DUNCAN, 2003). Chega-se assim, hoje, a uma interpretação necessariamente histórica e radical da produção societária, como explica Cosgrove (2003), porém mais afeita e precisa, em que se somam elementos que ampliam o leque de um conjunto cultural que, desta forma, torna-se válido, logo indispensável à decifração geográfica cultural, principalmente urbana. Tais elementos derivam da produção, da arte coletiva, tendo os seres humanos, pensantes e ativos, como transformadores e criadores, intermediados pela comunicação. Com efeito, tornam-se objetos primordiais de estudo dessa nova Geografia as produções simbólicas, lingüísticas, os códigos de todas as formas de 305 comunicação, para as quais concorrem o sensório e o imagético, que servem não- somente à interpretação do real como também dialeticamente o engendra, recria. Essa Geografia, assim afeita, é também ativa e efetiva. Resume-nos Cosgrove (2003, p. 103 e p. 129): Essa apropriação simbólica do mundo produz estilos de vida (genres de vie) distintos e paisagens distintas, que são histórica e geograficamente específicos. A tarefa da geografia cultural é apreender e compreender essa dimensão da interação humana com a natureza e seu papel na ordenação do espaço. (...) Finalmente, como prática revolucionária, a geografia cultural pode não apenas revelar a contribuição simbólica da ação humana na produção e manutenção das paisagens e o grau pelo qual essas paisagens estruturam e mantêm a produção simbólica, mas pode examinar criticamente formas emergentes de organização espacial e da paisagem. Para chegar a tal momento, ou estágio, a Geografia Cultural, em seu processo construtivo, se abebera basicamente das filosofias do significado (fenomenologia) e do materialismo cultural de Raymond William, conforme nos informa Corrêa; Rosendahl (2003b, p. 12), assim como do materialismo histórico de Marx e Engels, como defende Cosgrove (2003). Por conseguinte, a partir daí, passa a não escapar mais à análise interpretativa dessa ciência todos os componentes importantes da paisagem e/ou intrínsecos ao indivíduo, como a significância das partes, a linguagem que nomeia e intermedia, a (inter) subjetividade, a prática social, concorrendo para isso, além da comunicação como um todo orientado para a ação (WAGNER; MIKESELL, p. 29), também o econômico, que, assim como o sensório, exerce um importante e decisivo papel na consecução da materialidade e de sua interpretação geográfica (COSGROVE, 2003). 306 Dessa forma, nem mesmo a imaginação ficaria de fora: trata-se de algo a ser considerado quando da análise da tessitura de uma realidade em que o cultural é considerado produção e ao mesmo tempo intermediação comunicativa humana a ser decifrada (COSGROVE apud CORRÊA; ROSENDAHL, 2003b, p. 13). Há, em realidade, inúmeros caminhos a serem trilhados pelos geógrafos, visando contribuir para dar uma inteligibilidade à ação humana sobre a superfície terrestre. Nesses caminhos podem ser considerados tanto a dimensão material da cultura como a sua dimensão não-material, tanto o presente como o passado, tanto objetos e ações em escala global como regional e local, tanto aspectos concebidos como vivenciados, tanto espontâneos como planejados, tanto aspectos objetivos como intersubjetivos (CORRÊA; ROSENDAHL, 2003b, p. 13). Assim, o homem, enquanto ser universal, não é somente um algo determinado, passivo, produto do seu meio, mas também um agente geomorfológico dotado de psique, ethos e de uma moral determinantes na feitura recíproca de uma realidade social e espacial construída por diversos matizes culturais, que lhes são próprios, e intermediado pelas mais variadas formas de linguagem intra e intersubjetivas. A paisagem, qualquer que seja ela, em qualquer espaço ou dimensão que possa (ou pareça) se localizar, dessa maneira, ganha um novo status enquanto objeto de estudo: possui a força de uma identidade que se comunica, revela-se, se desnuda à interpretação geográfica cultural. Nesse aspecto, o da espacialidade produzida socialmente, aliás, Soja (1993, p. 24-30) destaca a contribuição de Micheal Foucault acerca da construção de uma geografia em que o espaço não é um vazio a ser preenchido por pessoas e coisas, mas um conjunto de relações sociais que definem localizações que, se na modernidade não se superpõem, posto ser delimitado e estanque, na pós- modernidade por vezes podem se sobrepor, se entrelaçar, gerando o que 307 denominou de heterotopia – lugar impossível das coisas possíveis; uma radical incomensurabilidade, como nos explica Connor (2000, p. 16) também se referindo a Foucault. Algumas dessas localizações, se sobrepondo ou não, seriam, por exemplo, o cemitério, a igreja, o jardim, o museu, a biblioteca, a feira, o quartel, a prisão. Foucault dessa maneira eleva a categoria da espacialidade a um nível superior à da temporalidade, fenômeno teórico contrário ao entendimento de pensadores e pesquisadores modernos (historicistas), ou seja, para quem o tempo (dialético) era mais importante e decisivo à interpretação histórica que propriamente o espaço (imóvel) e seus caracteres e artefatos. A leitura do espaço, construído socialmente, assim, em Foucault, passa a ser central na crítica em relação às formas de poder, à existência, às conjunturas políticas, à realidade histórica. Stuart Hall (2004) também destaca esse caráter identitário do espaço socialmente construído na sociedade contemporânea. Segundo ele, o sujeito, agora descentrado, contrapondo ao sujeito centrado do Iluminismo e do Sociológico, localiza-se no presente em culturas nacionais basicamente imaginadas, em que os sentidos passaram a construir as identidades comunais que por sua vez são híbridas em qualquer lugar, mesmo as mais fechadas ou que tentam preservar em si características de nacionalismo e de pureza étnica em contraponto aos inevitáveis enclaves. A globalização, com o avanço dos transportes e dos meios de comunicação, que comprimiu o espaço e o tempo, diz Hall referindo-se à conceituação de Harvey (2001), acelerou esse processo de miscigenação espacial, mantendo, por um lado, as raízes identitárias em determinados locais fixos e também em qualquer lugar distinto, ao mesmo tempo em que promoveu, por outro 308 lado, justamente por isso, o seu cruzamento com o global, o extemporâneo, tendo assim, aparentemente paradoxal, um caráter pluralizador, híbrido, de fragmentação e manutenção da diversidade. O simbólico, dessa forma, passa a ser um elemento importante na compreensão da identidade desse novo indivíduo e de seu lócus cultural fixo/volátil, que, na relação local versus global (tradição/tradução), dialeticamente se interpenetram e se preservam, gerando um outro algo, a sociedade global. 3. A cidade como texto Podemos dizer agora que vamos, no presente trabalho, utilizar o conceito interpretativo da realidade material construída no espaço urbano proposto por Corrêa (2003). Na base teórica da Geografia Cultural Urbana desse pesquisador, a cidade passa a ser vista como uma marca, uma matriz cultural ou um texto no qual “se lêem a sociedade e suas múltiplas interpretações da paisagem urbana” (p.168). Nessa concepção, a cultura, produtora e ao mesmo tempo produto do espaço construído (posto esse ser também um elemento social, como já vimos), tem a dimensão do político – além do econômico e do social – como uma esfera importante de poder, que dá direção e significado às coisas. Para sua interpretação, ou seja, para uma hermenêutica dessa dimensão texto-sócio-espacial da cidade, o metafórico, essencialmente crítico, se constitui ponto indispensável da Geografia Cultural Urbana. O mapa, a imaginação, as crenças, os códigos, as marcas, por exemplo, adquirem status de elementos interpretativos à elucidação e compreensão do real, posto poderem ser ao mesmo tempo instrumentos e reflexos gerativos do 309 cultural urbano. O cultural e o urbano, assim, se entrelaçam num processo de expressão do construto social citadino. “As relações profundas entre cultura e o urbano são complexos e se relacionam de diferentes modos” – explica Corrêa (2003, p. 175), que em seguida enumera três dimensões culturais que expressariam essas manifestações da/na cidade: a) a toponímia e a identidade; b) a cidade e a produção de formas simbólicas; d) a paisagem urbana e seus significados. No primeiro caso, ou seja, no campo da “toponímia e a identidade”, Corrêa (2003, p. 176-177) explica que os nomes próprios das coisas ou dos espaços expressam uma “efetiva apropriação do espaço por um dado grupo cultural”, sendo também “um poderoso elemento identitário”, articulando assim “linguagem, política territorial e identidade”. O autor chega a citar, como um exemplo dessa relação, o caso de um município do Rio Grande do Norte, estudado por Felipe (2001). No “país de Mossoró”, prossegue Corrêa, “instituições, monumentos e nomes de ruas revelam o poder do grupo familiar e contribuem para viabilizar o imaginário social, recriando um lugar à imagem da família hegemônica”. Acerca da dimensão de “a cidade e da produção das formas simbólicas”, Corrêa (2003, p. 177-178) detalha que determinadas constituições espaciais expressam certas culturas ao longo da história, aliando assim forma, função e simbolismo, que exercem um papel central e transformador que podem variar ao longo do tempo, como fora a catedral da cidade medieval e hoje representa o arranha-céu na metrópole moderna. Ao serem transformadas em mercadorias, no processo de acumulação capitalista, porém, as formas simbólicas, como (além dos prédios, monumentos etc.), os filmes, as músicas, os móveis de arte e as roupas da moda, passam a ser “bens e serviços” a serem vendidos e consumidos com “algum 310 conteúdo emocional ou intelectual”, constituindo-se desta maneira em “instrumentos de entretenimento, comunicação, autovalorização, ornamentação” e até de “posição social”. Sobre “a paisagem urbana e seus significados”, Corrêa (2003, p. 179-182) explica que a vista urbana considerada como um elemento da morfologia da produção dos indivíduos é por um lado um meio de comunicação da identidade social, ou seja, um conjunto de idéias, de expressão e de controle social da elite, e por outro de manifestação étnica, memorial, de sentimentos e valores sociais que unem uma população. A paisagem urbana também pode inferir contestação política, mas igualmente ser um instrumento de resolução de conflitos sociais, promovendo assim aquilo que os seus controladores desejam, isto é, “transformá-la em produto espontâneo, natural, e fruto de uma tradição da qual a harmonia social e o desejo de progresso são partes integrantes”. 4. Discriminação espacial: um possível significado 4.1. – Primeira visão: um jogo de escaramuças voltado para o mercado Logomarcas e elementos do concreto aos quais essas logomarcas se referem, isto é, referenciais e referências, significados e significantes, sinais e símbolos, que são utilizados de forma massiva, através da mídia pelas administrações públicas em geral, na sociedade capitalista contemporânea, a exemplo dos objetos do presente estudo, deixam evidente a questão de um 311 marketing dirigido e laudatório que gestores públicos buscam desenvolver, através de agências de Publicidade e Propaganda, sob a supervisão de assessores diretos de Comunicação Social, enquanto estratégia comunicacional meticulosamente planejada, portanto não-inocente, junto à população. Assim, do ponto de vista político-ideológico, e por conseguinte extremamente fugidio para análise, promovem a respectiva administração municipal e buscam criar, ao mesmo tempo, uma empatia com o público, cujo sentido tático, em última instância, no aspecto legal, seria prestar contas dos atos e tornar o cidadão satisfeito com a condução “eficiente” dessa ou daquela gestão pública. Mas, sub-repticiamente, tratam também de, por associação, engajamento ou agregação, como parece ser óbvio, fazer a promoção pública e pessoal do administrador público, ou seja, de si próprio, este enquanto gestor e também político e potencial candidato a qualquer outro próximo cargo eletivo na esfera do público – mesmo sendo isso contrário, no caso brasileiro, à legislação vigente desde o começo do processo de redemocratização nacional a partir da Constituição Federal de 1988, que instaura os princípios jurídicos da “impessoalidade, da moralidade e da publicidade” (art. 37), alcançando desta forma a obrigatoriedade do apartidarismo das propagandas públicas (BRASIL, 1988, p. 36). Não haveria, assim, tanta distância entre intenção e gesto, como disse o poeta1, nem entre consumidor e eleitor, como observa a normativa ordinária estabelecida pelo Poder Legislativo (leis eleitorais do período aqui estudado: 7.493/86, 7.664/88, 8.214/91, 8.713/93, 9.100/95 e 9.504/97) e da Justiça Eleitoral Brasileira (portarias, resoluções etc. daí decorrentes). 1 Refiro-me a Chico Buarque de Hollanda em sua música Fado Tropical, da peça Calabar, que diz: “...Se trago as mãos distantes do peito / É que há distância entre intenção e gesto.” (BOLLE, 1980, p. 50). 312 Apesar de essa realidade aparecer assim de maneira geral numa democracia, isto é, explícita e implicitamente, num jogo dialético-sígnico, de escaramuças, entrelaçando ora interpretante ora interpretado, muitos ainda não conseguem fazer clara e distintivamente tal leitura, em particular no aspecto perceptivo-visual do imagético extralegal, e acabam assim apenas apreendendo e forçosamente lembrando – por conta de uma imperiosa e sistemática massificação publicitária sob o manto da pseudolegalidade –, dessa ou daquela marca como sendo a desse ou daquele prefeito-virtual candidato, consumindo-o ao mesmo em que são consumidos, como ocorre com qualquer refrigerante ou sabonete no mundo das mercadorias. Com efeito, faz-se oportuno e impreterível, nesse sistema concorrencial, consumista e permissivamente fissurado, para o gestor público, desenvolver uma campanha comunicacional que, além de agradável sob todos os pontos de vista do mercado, possa assim agir, ou seja, “prestando contas” e ao mesmo tempo promovendo cooptação dos eleitores, dos contribuintes, dos cidadãos em geral, operando nos campos da visibilidade alfabética, como acredita Donis (1997), e do psicológico, como nos demonstra Arnheim (2000). As logomarcas adotadas pelos políticos-administradores de Natal, entre 1985 e 2004, acabam, contudo, revelando algo mais que as intenções diretas e ao mesmo tempo furtivas, conforme exposto acima. Revelam uma progressiva inclinação discriminatória para o atendimento das demandas sócio-econômicas da cidade, a se inscrever no espaço, bem como, e, por conseguinte, as reais intenções, nesse aspecto, do ideário gerencial público e dos interesses políticos dos seus respectivos titulares, com especial destaque, no caso em tela, para a prefeita de Natal Wilma Maria de Faria, chefe do Executivo Municipal por três vezes (e quase 313 que consecutivamente), de 1989 a 2002, no período aqui delimitado para análise (de 1985 a 2004). 4.2. – Logomarcas: objetos estilísticos de apropriação e reprodução As principais logomarcas adotadas respectiva e seqüencialmente pelos prefeitos a partir de referentes espaciais concretos, os quais desde agora passaremos mais detidamente a decifrar, foram os seguintes: (1) o Forte dos Reis Magos, do prefeito Garibaldi Alves Filho; (2) a marca-símbolo literária e da historiografia tipográfica de um “V” estilizado dentro de um círculo, da prefeita Wilma de Faria (então Wilma Maia); (3) a fachada do prédio da prefeitura de Natal, sede do máximo poder público municipal, do prefeito Aldo Tinôco Filho; (3) o Farol de Mãe Luíza, da prefeita Wilma de Faria; (4) o Pórtico de Natal, da prefeita Wilma de Faria; e (5) o Morro do Careca, do prefeito Carlos Eduardo Alves. Estas representações gráficas, reforçadas pelos slogans, demonstram em primeiro lugar uma apropriação dos bens patrimoniais simbólicos, calcadas no concreto histórico da cidade, tendo como substrato o conhecimento acadêmico e o imaginário popular (oriundos de bases históricas e daí decorrentes no senso comum), logo, possuindo um poder persuasivo muito forte, decorrente de um certo assente citadino, de uma incorporação tácita do poder sígnico, histórico e midiático, passível à contemplação, ao desejo, ao consumo, conseqüentemente, à favorabilidade que esperam seus titulares. Valor de uso e valor de troca não se desapartam. Ao contrário: ambos se acentuam à medida que criativamente são 314 reproduzidos enquanto marcas e a sociedade capitalista avança com seus dogmas de natureza crematística, contradições, reestruturações, flexibilidades. Fetichismo, como analisa o segredo da mercadoria Marx (1983, p. 70-78), e feiticismo, como prefere discutir a literatura Andrade (2006, p. 43-56), portanto, estão presentes, contando com a força misteriosa das relações de trabalho e encantando os olhos de quem vê e interpreta. É de tudo isso que os gestores se apropriam, e não-somente do objeto-símbolo histórico em si, pois de outra forma, ou seja, sem valor intrínseco processado, não se daria nenhuma comunicação nem teria sentido qualquer reprodução mercadológica. 4.3. – A heráldica moderna e o sentido contemporâneo Em tais reproduções, o sentido heráldico contemporâneo dos prefeitos em questão não deixa de acentuar, ou mesmo impor, em geral, certas marcas próprias às respectivas marcas, ou seja, de incorporar submarcas de primeiro grau, como chamaremos, que são simples elementos identitários, sinais meramente indicativos da pessoalidade e do personagem do gestor; e/ou submarcas de segundo grau, como também chamaremos, que são elementos interiores, da personalidade, do caráter, do Eu psicológico – que podem se entrelaçar com aquele, no campo da comunicação sígnica, e por isso mesmo servirem para variadas interpretações, posto dependerem também do Eu interpretante e do grau cultural deste acerca do conjuntural daquele, ou seja, daquilo que envolvam tanto aspectos do subjetivismo individualista quanto do objetivismo abstrato que ocorrem somente no campo social-ideológico de que nos fala Mikhail Bakhtin (2006). Tudo isso comporia, 315 neste mesmo rumo, isoladamente ou em conjunto, um poderoso sistema de comunicação midiática num infinito oceano histórico de comunicação e de inter- relações sociais e ideológicas. Teríamos coragem de dizer, por exemplo, que a foice e o martelo como emblema não representariam nada para o século XX? Ou que a sinal da cruz nada expressa sobre a nossa civilização ocidental? No caso em tela, abstraímos algumas heráldicas do nosso grupo selecionado e delas alguns elementos intrínsecos para análise nesse aspecto. A marca lítero- tipográfica de um “V” estilizado dentro de um círculo (algo material tácita e unanimemente incorporado às práticas lingüísticas comuns e cotidianas principalmente em certos ambientes de codificação das cidades, quer seja nas escolas, no comércio, quer seja nas repartições públicas ou nas conferências, quer seja nas áreas médicas ou laboratoriais etc., certamente tornado mais intenso com o advento do mundo fabril, assim como vem sendo agora cada vez mais disseminado, com a informática, o símbolo da arroba, através da proliferação dos domínios e dos endereçamentos eletrônicos), da então prefeita Wilma Maria de Faria, que teima a nos demonstrar algo concluído ou positivamente superado pela gestão pública municipal, e, ao mesmo tempo, no jogo furtivo, delineado entre o legal e o ilegal, conforme discutido acima, nos transmite claramente o “V” de Vilma2, da Vitória, do Veni vidi vici – afinal, uma guerra eleitoral antecede a batalha de outra guerra que é administrar. 2 Apesar da prefeita de Natal ter seu nome de nascimento registrado em cartório com um “W”, o dábliu, ou vê duplo, ou dobrado, como utilizamos aqui para identificá-la: Wilma (conforme nos revelou numa entrevista jornalística à época), em suas campanhas políticas sempre utilizou a letra “V”, sinalizando e ao mesmo tempo associando Vilma à “Vitória”, ao “Vamos”, ao “Vencer”, como ficou claro desde sua primeira campanha política para prefeita, em 1984, quando seu slogan dizia “Vamos 316 Uma outra heráldica de natureza, apenas nesse aspecto, idêntica, é a do prefeito Carlos Eduardo Alves. Em sua logomarca, a do Morro do Careca, totalmente estilizado, o traço direito curvilíneo que delimita a parte lateral desmatada do morro forma ao mesmo tempo a letra “C”, de Carlos, que forma também a palavra “Careca”, do morro. O subliminar aí é forte: absorve-se sem que na maioria das vezes claramente se perceba o elemento alfabético, mas que está lá. De qualquer modo observável, no particular ou no conjunto, porém, poder-se-ia deduzir logicamente que não existe Morro do Careca sem esse prefeito especificamente nem ambos sem a cidade, posto o principal cartão postal desta cidade estar inalienavelmente a representá-los; nem a cidade sem o morro e sem o tal prefeito, já que ambos, morro e Natal, no cê e na cidade representada na logomarca, naturalmente os contêm e os expressam, não por acaso aquele como o prefeito Carlos Eduardo e o Morro do Careca como a própria cidade. Ora, é necessário aqui objetarmos por um momento, afirmando que observações desse tipo podem levar a tergiversações, talvez a análises fantasiosas ou mesmo absurdas. Isso não deixa de ser em parte verdade, especialmente quando não se segue nenhum critério, como por exemplo a não observância de valores intrínsecos em certos graus e que representam uma força persuasiva compósita de um enunciado sígnico extraverbal, como dissemos acima: tudo não vai passar também da acuidade perceptivo-intelectual acerca de quem, do como e de o quê se interpreta. Mesmo acreditando termos observado criteriosamente as heráldicas modernas em questão, o que nos daria para de maneira segura e fundada com Vilma”, no qual os dois dedos da mão direita, erguida, da candidata, em forma de vê, compunha a palavra “Vilma”. 317 continuarmos este tipo de decifração, realçando outros elementos intrínsecos passíveis à presente análise, como por exemplo a rica interpretação que poderia se fazer acerca dos slogans destas logos e de suas respectivas tipologias gráficas (dois importantes elementos comunicativos presentes em quase todas as logomarcas aqui selecionadas), preferimos, neste rumo, não nos alongarmos, posto já consideramos por ora os destaques feitos (pois é também verdade que foram e são percucientes e elucidativos à medida que nos aprofundamos e venhamos nos aprofundar neste tipo análise) como sendo suficientes para, por outro lado, nos levar num outro sentido, o sentido de um trato interpretativo mais prospectivo e venturoso em relação às forças produtivas e pulsantes da cidade. 4.4. – O sentido de forças pulsantes, produtivas e gestoras da heráldica na cidade Neste segundo momento da análise, assim, em decorrência daquele, ressaltam-se para nós os elementos culturais e o desenvolvimento histórico do urbano, em consonância com as formatações do poder municipal afiguradas nas suas respectivas heráldicas. Observamos, desta forma, em primeiro lugar, um deslocamento no espaço urbano e no tempo histórico (continuum) feito a partir das escolhas dos referenciais da cidade como emblemas para cada administração. Parte, inicialmente, tal deslocamento, em 1985-1988 (Garibaldi Filho), do bairro de Santos Reis e da Praia do Forte, onde está o Forte dos Reis Magos; segue, em 1989-1992 (Wilma Maia), para o centro da cidade, ou Cidade Alta, onde se localiza o cargo jurídico, enquanto instituição pública, da Prefeita de Natal; 318 permanece nesse lugar, em 1993-1996 (Aldo Tinôco Filho), onde se localiza a sede da Prefeitura de Natal, cuja fachada expressa o símbolo máximo do Poder Municipal; ruma, em 1997-2000 (Wilma de Faria), para Mãe Luíza, bairro que dá nome ao Farol, este situado na cabeceira de um dos morros de onde se delineia parte da terra e do mar da cidade; segue, em 2000-2002 (Wilma de Faria), para a BR-101 e se chega até o bairro de Neópolis, à altura do Conjunto Cidade Satélite, onde se encontra, à entrada da cidade, o Pórtico de Natal; e, finalmente, em 2002- 2004 (Carlos Eduardo Alves), volta-se para o bairro de Ponta Negra, chegando à Praia de Ponta Negra, onde está o mais conhecido cartão postal da cidade, o Morro do Careca. Esse deslocamento, essencialmente no espaço intra-urbano e exclusivamente no tempo político-histórico da cidade, revela, além do seu sentido cardeal, geográfico, e das apropriações patrimoniais, materiais e subjetivas, algo mais que a preferência por certos marcos históricos ou mesmo um mero avançar num certo rumo. Revela um sentido social que, bem a propósito, pode ser expresso, em resumo, no sentido Norte-Sul, como se pode ver na síntese pontilhada de nossa Ilustração 1. Revela, por isso, inversamente, ao mesmo tempo, à medida que se segue para a Zona Sul, um igual e proporcionalmente afastar-se das regiões Norte, Oeste e Leste, detentoras hoje, especialmente as duas primeiras (e por conseguinte dos bairros que as compõem), dos maiores problemas e desafios sócio-espaciais da cidade, como desemprego, mortalidade infantil, carência habitacional, violência familiar e urbana, analfabetismo, falta de infra-estrutura básica e de equipamentos comunitário, em favor de lugares da Zona Sul para onde hoje convergem as classes mais abastadas de autóctones e de turistas solváveis, que fomentam um vigoroso 319 mercado gastronômico, de hospedagem, rentista e imobiliário, conforme nos mostra (tal cidade dual) uma farta bibliografia (CLEMENTINO, 1995; LIMA, 2001; LOPES JÚNIOR, 1997; SILVA, 2003; VALENÇA; GOMES (orgs.), 2002; VIDAL, 1998; etc.) e os dados oficiais (IBGE, 2002; LOPES, 2004; SEMURB, 2003; etc.). A Zona Sul de Natal foi igualmente para onde, acompanhando o deslocar das escolhas dos referenciais citadinos pelos sistemas comunicacionais dos prefeitos, os sucessivos governos municipais de Natal, apoiados pelos governos federal e estadual, ao longo do período em questão, voltou mais suas preocupações (direção, sentido) e vem fazendo vultosos investimentos infra-estruturais urbanos, conforme nos demonstra fartamente a literatura acadêmica supracitada a respeito e também pode ser facilmente constatado in loco. Destacamos, como exemplos desse sentido, dentre os mais recentes, o saneamento de Ponta Negra e Alagamar e a construção da Ponte Forte-Redinha (que embora esteja situada na divisa entre as Zonas Norte e Leste – o rio Potengi –, unindo as Praias do Forte e da Redinha, objetiva interligar as praias do litoral Norte à Ponta Negra através da Via Costeira e daí às praias do Litoral Sul, em outras palavras, ampliar aquele que começa e termina na Zona Sul, ou seja, o “corredor turístico da cidade” que, como sabemos, passa à margem das áreas degradadas e dos graves problemas sociais do restante da cidade), além dos investimentos maciços no receptivo e no imagético, com permanentes serviços de apoio ao turista e de cuidados com praças, logradouros, canteiros, jardins e fontes. Valorizam-se, dessa forma, terrenos, casas e apartamentos, e outros empreendimentos de porte (investimentos capitalistas, por assim dizer, de incorporadoras, empreiteiras, 320 conglomerados, consórcios), como condomínios empresariais e residenciais, hotéis, restaurantes, universidades, rede de supermercados, shoppings. Não seria à toa, portanto, que as escolhas para referenciar a heráldica moderna dos gestores midiatizados de Natal, veiculadas especialmente pela TV que atinge um maior número de pessoas (habitantes, visitantes, eleitores etc.), fossem referências históricas e de consumo turístico, com o assente afetivo da população (afinal, segundo prega o discurso oficial, o turismo gera emprego, renda...), como por exemplo o Forte dos Reis Magos e o Morro do Careca, ambos elementos da paisagem potiguar que hoje talvez sejam os mais globalizados, tanto pelos meios de comunicação, como internet, folhetaria, agências de viagens, revistas especializadas, como também pelos meios de transportes, principalmente os aéreos, cujos passageiros (de vôos domésticos e internacionais), chegam e saem exclusivamente pelo Aeroporto Internacional Augusto Severo – por sinal, localizado às margens da BR-101, nas proximidades do Pórtico de Natal, por onde necessariamente se passa para alcançar os hotéis, restaurantes, o Morro do Careca, enfim, a Praia de Ponta Negra e a Via Costeira, começo e fim desse corredor turístico. A coerência heráldica dos gestores, contudo, não se dá somente em relação às escolhas elementares, afigurações gráficas, aplicabilidades midiáticas e práticas públicas relativamente discriminatórias que beneficiam mais uma parte da população (e visitantes solváveis) de uma região em detrimento da maioria das outras. Acontece também no campo político – que nem mesmo as querelas típicas que habitualmente ocorrem durante as eleições desmentem, apesar de esses fatos eleitorais e circunstanciais servirem de pretexto público para o partidarismo vulgar 321 de seus atores, para o proselitismo ingênuo de grande parte da população, para o sectarismo trivial da maioria das elites, todos esses intermediados pelos Meios de Comunicação de Massa locais e calcados na adoração, na dependência ao poder via nepotismo, da mordomia e/ou pura e simplesmente num populismo residual. Tais componentes são, portanto, indissociáveis da conjuntura política que unem todos os políticos titulares dos respectivos emblemas aqui analisados. Formam o conjunto armorial de cada um desses brasões que, no entanto, não podem ser vistos como fenômeno físico, a tocar a retina e através do nervo ótico serem levados ao cérebro para decifração, repulsa ou aquiescência: constituem uma forma de poder, embora sensorial, que dá-se somente pela consciência ou mesmo pela conscienciosidade: sabe-se que aquela marca é daquele prefeito que representa aquele grupo, facção, circunstância, história etc. e assim o respeitam (os partidários, parasitas, adoradores etc.) ou o repelem (os adversários ferrenhos, desaprovadores circunstanciais etc.). Trata-se, em suma, da ideologização da prática secular e política da atual classe dominante (políticos, empresários etc.), oriunda de antigas classes dominantes do Brasil e em particular do Nordeste (sesmeiros, coronéis, latifundiários, oligarcas etc.), a se afigurar invisivelmente (posto ser força) em seus grafismos modernos, que pode ser resumido numa palavra: ideografismo. Tal padrão de coerência política, histórica e ideológica, condicionada na heráldica de hoje e reflexiva no meio social, pode ser materialmente identificada através das práticas políticas de seus atores bem como em suas relações consangüíneas e de interesses pessoais e de grupo. Senão vejamos. O primeiro prefeito eleito por voto direto após a redemocratização nacional, Garibaldi Alves 322 Filho (à época já deputado estadual por várias legislaturas), descende da oligarquia Alves, sendo sobrinho da maior expressão desse grupo político-familiar, o ex- deputado federal (quatro vezes), ex-governador (1961-1965), ex-ministro (duas vezes: governos Sarney e Itamar Franco), ex-empresário do ramo têxtil e ex- proprietário fundador do maior conglomerado de comunicação do Estado (TV Cabugi, Jornal Tribuna do Norte, Rádios Cabugi, Difusora de Mossoró etc.), Aluízio Alves (ALVES, 2001; MACHADO, 1992; MACHADO, 1995; SENADO FEDERAL, 2007; TRINDADE, 1995). Wilma Maria de Faria (à época Wilma Maia), por sua vez, descendente da oligarquia Maia, cuja maior expressão foi o ex- secretário de Educação do Governo Dinarte Mariz (1956-1960), ex-deputado federal, ex-presidente do IPASE, ex-representante do MEC junto à SUDENE, ex- governador (1975-1979), ex-presidente da estatal Companhia Nacional de Álcalis, senhor de terras da Fazenda São João e proprietário e fundador do Grupo Maísa, em Mossoró, Tarcísio Vasconcelos Maia (MACHADO, 1992; MACHADO, 1995; TRINDADE, 1995), representado familiarmente no RN pelo grupo de comunicação Tropical (TV Tropical, Rádio Tropical etc.) de propriedade de seu filho, o ex-prefeito, ex-governador (duas vezes) e senador (duas vezes) José Agripino Maia. Tanto Aluízio como Tarcísio apoiaram o golpe militar de 1964, sendo que, em meados do período da ditadura, Aluízio foi cassado por dez anos, sob a acusação de corrupção em seu governo, enquanto Tarcísio permaneceu próximo dos militares, sendo amigo pessoal do presidente Ernesto Geisel e do general Golbery do Couto e Silva (ALVES, 2001; MACHADO, 1995). A partir da trajetória político-ideológica desses dois nomes (Aluízio e Tarcísio), ambos 323 responsáveis máximos pelos ciclos Alves e Maia na política do Rio Grande do Norte, rivalizando fervorosamente em alguns instantes e noutros se associando pelo poder reservado às elites do Estado, pode-se conhecer suas respectivas descendências políticas ao nível do poder local no tempo/espaço aqui em questão. Identifica-se, assim, os mesmos traços, especial e indelevelmente, nos ex-prefeitos Garibaldi Filho e Wilma de Faria, nos quais também e ainda subsistem as correntes oligárquicas desde o Império até os populistas do passado republicano mais recente, como as caracterizadas pelas cores vermelha, da Arena e posteriormente PDS/PFL, do grupo Mariz/Maia, e o verde, do MDB e depois PMDB, do grupo Aluízio/parentes e aderentes. Se Garibaldi e Wilma se rivalizaram em alguns instantes, em outros, assim como procederam seus antecessores no passado, também se confluíram quando a harmonia era necessária para se alcançar o poder. Bastaria dizer isso, além das respectivas descendências consangüíneas e hereditariedades políticas, para mostrar um padrão de identidade comum a ambos. Mas continuemos, mostrando o complexo político capital de ambos e seu entrelaçamento com os demais, o que consideramos necessário à compreensão da trajetória (afiguração, sentido, deslocamento etc.) da heráldica na cidade. Quando candidato, Garibaldi Filho polarizou a eleição com Wilma Maria de Faria – à época titular da Secretaria do Trabalho e Bem-Estar Social (STBS) do governo José Agripino (1983-1986) e esposa do ex-secretário de Saúde do governo Tarcísio Maia e ex-governador do Estado Lavoisier Sobrinho Maia (1979-1983), do qual foi pródiga assistencialista e clientelista através do Movimento de Integração e Orientação Social (MEIOS). Garibaldi consegue se eleger, segundo dados do Tribunal Regional Eleitoral (1985), com 97.920 votos (Wilma obteve 324 82.136), sob a bandeira da Nova República, da revalorização municipal, da cidadania e dos munícipes: não é à toa que é desse seu mandato a logomarca do Forte dos Reis Magos, estilizado, a sinalizar, de seu ponto estratégico, entre o rio e o mar, através do poder, para a cidade e seus habitantes, aquilo que mais a identifica em todos os tempos e em toda sua história. Wilma, contudo, não perde completamente. A sua queda, como se diz, foi para cima: na eleição do ano seguinte (1986), pelo PDS, consegue se eleger como a primeira mulher do RN a chegar à Câmara Federal e vai participar, também como constituinte, da elaboração da nova Constituição Federal, em Brasília, quando muda para o PDT. O prefeito Garibaldi Filho, porém, rebento do vice-governador e ex- deputado estadual Garibaldi Alves (irmão de Aluízio Alves), não conseguiu fazer, ao término de seu mandato, na campanha de 1988, como seu sucessor, o primo Henrique Eduardo Alves3 (então deputado federal hoje já em seu décimo mandato). Henrique obteve, segundo o Tribunal Regional Eleitoral (1988), 86.808 votos, tendo sido eleita, desta vez, com 93.728 votos, Wilma Maria de Faria, que desde a época do marido governador cultivava uma imagem de líder emergente a partir de um trabalho assistencialista que fez na STBS, que consistia em realizar favores para a população pobre, e no estímulo para que surgissem e se apegassem à estrutura estatal líderes comunitários através da criação de clubes de mães, conselhos comunitários etc. Wilma, dessa forma, tendo sido do PDS e descendendo, como sua oligarquia, da Arena, mantinha-se coerente com a 3 Se em 1988 não conseguiu eleger o primo, Garibaldi Filho, entretanto, foi eleito senador em 1990; eleito governador em 1994; reeleito em 1998; renunciou em 2002 para novamente concorrer, com vitória, ao Senado Federal, onde tem seu mandato garantido até 2011. 325 ideologia dos militares que permaneceram no poder por 21 anos: nesse período eles apoiaram vigorosamente a centralização dos poderes locais nas mãos dos herdeiros do coronelismo regional que lhes eram favoráveis, em detrimento de outras expressões políticas (TRINDADE, 1995), bem como promoveram, ao final do ciclo militar, adequado à transição democrática, o surgimento de lideranças eleitoreiras, a maioria oriunda de conjuntos habitacionais massificados e carentes de infra-estrutura urbana, portanto dependentes, dentro da Política Nacional de Habitação na qual se incluiu o BNH, COHABs, INOCOOPs e alguns programas como o PROFILURB, PROMORAR, CURA e FICAM (GUIMARÃES, 2002). Dessa forma, e por conta de tudo isso, Wilma de Faria (na época ainda com o sobrenome Maia, como já dissemos), com uma excelente imagem junto à população (tanto que conseguiu derrotar um “Alves”), passou a ter uma logomarca personalística, a de um “V” dentro de um círculo. Ao contrário de Garibaldi Filho, também por conta de seu alto índice de aceitação popular, conseguiu eleger o seu sucessor, o até então desconhecido engenheiro sanitarista Aldo Tinôco Filho (com quem não possuía nenhum laço consangüíneo), que ocupava a pasta do Instituto de Planejamento de Natal (Iplanat), derrotando, pela segunda vez, o deputado federal Henrique Eduardo Alves, filho de Aluízio Alves. Aldo obteve, no primeiro turno, segundo o Tribunal Regional Eleitoral (1992a), 55.903 votos e Henrique 81.495 votos (os demais candidatos somaram 69.840 votos), mas no segundo conseguiu reverter a situação e se eleger com 112.993 votos, ainda segundo o Tribunal Regional Eleitoral (1992b), ganhando por uma apertada diferença para Henrique, que ficou com 112.032 votos. 326 Ao assumir o cargo Aldo Tinôco mantêm-se fiel à gestão antecedente, meses depois, porém, costura novas alianças, muda de partido, demite vários auxiliares ligados a Wilma, nomeia auxiliares oriundos do PT de São Paulo, rompe enfim com a ex-prefeita e tenta fazer uma administração independente das oligarquias. Sua logomarca nesse período foi a fachada do prédio da prefeitura, a sinalizar, talvez, imutavelmente, esses dois momentos: uma conexão com a pessoalidade institucional anterior, de Wilma (prefeita de Natal), e ao mesmo tempo o contrário disso, ou seja, um recomeço, possivelmente uma terceira força política, a partir do próprio poder público municipal (prefeitura de Natal). Aldo, entretanto, é sufocado, inclusive pelos empresários prestadores de serviços que viam na iminente volta de Wilma a possibilidade do não recebimento de seus pagamentos caso não a acompanhassem. Ao final do mandato, assim, a gestão Aldo Tinôco Filho torna-se sofrível, com a população sentindo, por exemplo, a falta regular da coleta de lixo na cidade pelo boicote surdo dos empresários. A ex-prefeita Wilma – revelando em entrevistas que fora traída pelo seu ex- auxiliar que conseguira com seu prestígio e carisma eleger, conforme pudemos acompanhar à época –, volta ao poder público municipal de Natal em 1996 como que retomando o seu lugar. Derrota, com 92.224 votos, no primeiro turno, o “candidato dos Alves”, João Faustino (do PSDB), que obteve 66.227 votos, e vai para o segundo turno contra a segunda colocada, a professora Fátima Bezerra (do PT), que alcançara 74.444 votos; no segundo turno, Wilma, com 136.396 votos, vence Fátima Bezerra, que ficou com 127.531 votos, conforme, respectivamente, dados do Tribunal Regional Eleitoral (1996a; 1996b). Ao mesmo tempo em que sinaliza para uma nova mudança política, já que ingressara num partido socialista, 327 o PSB, defenestrando assim seu passado junto à direita militar e parecendo querer afastar-se de sua ascendência oligarca, afora a satisfatória volta após a experiência com seu valido, a prefeita parece conseguir demonstrar isso, também como arrojo, em sua nova heráldica. Passa a ter agora como logomarca o Farol de Mãe Luíza – que na propaganda igualmente sinaliza, com seu dinâmico e circular facho de luz sobre a cidade (especialmente na TV), um outro caminho, quem sabe um luminoso tempo. Na eleição seguinte, a de 2000, Wilma novamente se candidata à sua própria sucessão e, pela terceira vez, consegue se eleger prefeita de Natal, mantendo por alguns meses a mesma logomarca da administração anterior. Muda sua heráldica em seguida para o Pórtico de Natal, como a indicar para a abertura da cidade, pela Zona Sul, à visitação e ao turismo, ao mercado de serviços e à globalização. Não seria coincidência o fato de que o governo do Estado, nesse interregno dos dois mandatos da prefeita Wilma de Faria, em alguns momentos em parceria com a própria prefeitura e também com o governo federal (maior provedor de recursos), construísse um novo aeroporto em Parnamirim (que lembra as dunas, com seu telhado ondulante) e o Viaduto do Quarto Centenário, na confluência da Avenida Salgado Filho com a BR-101; elaborasse e concluísse uma complexa obra de drenagem e saneamento em Alagamar/Ponta Negra; reabrisse o Hotel-Escola Barreira Roxa (para treinar e formar mão-de-obra para o setor turístico da cidade: garçons, cozinheiros, recepcionistas, gerentes, etc.); criasse o curso superior em Turismo na Universidade Estadual (UERN); entre outras. O próprio Pórtico de Natal foi mandado erguer pela prefeitura como a dar boas-vindas e anunciar – como anunciou a estrela bíblica aos Três Reis Magos vindos do Oriente – as boas- 328 novas aos visitantes vindos pelo aeroporto ou pela estrada (BR-101) oriundos de qualquer parte do Brasil e do mundo. Nessa última e terceira eleição de Wilma à prefeitura de Natal, porém, um fato político interessante ocorre: um certo “avançar” político em seu “arrojado” caminho. Para conseguir seu intento eleitoral, coloca em prática uma forma de acomodação política face às condições conjunturais nas quais se sobressaem algumas forças progressistas e conservadoras da sociedade brasileira após a consolidação da democracia desde 1988. A candidata, que passara para o PSB, vai enfrentar mais uma vez e bem mais estruturado eleitoralmente o PT – que tem como candidata, pela terceira vez, a professora Fátima Bezerra –, e representantes do grupo político do qual é originária. O novo caminho, entretanto, é na aparência uma espécie de semicírculo jovial ao passado. Wilma encontra apoio à sua eleição dentro da própria oligarquia Alves, que parcialmente se divide: o candidato a vice- prefeito escolhido por ela para compor sua chapa é o então deputado estadual Carlos Eduardo Alves, filho de Agnelo Alves, este por sua vez ex-prefeito de Natal (quando foi cassado junto com o irmão Aluízio Alves) e então prefeito de Parnamirim (hoje no segundo mandato). Carlos rompera com parte do PMDB, ingressara no partido de Wilma e obtivera o apoio do pai-prefeito. Ambos são acompanhados por alguns seguidores do grupo oligárquico ao qual pertencem. Por fim, todos da família Alves, ainda capitaneada pelo presidente regional do PMDB, Aluízio Alves, junto com o então governador Garibaldi Filho (em seu segundo mandato) e o deputado federal Henrique Eduardo Alves, decidem apoiar a chapa Wilma-Carlos numa das maiores alianças partidárias do Rio Grande do Norte: PMDB / PPB / PSB / PPS / PMN / PV / PL / PAN / PSD. Wilma e Carlos sequer 329 vão ao segundo turno – vencem, de acordo com os dados do Tribunal Superior Eleitoral (2000) e do Tribunal Regional Eleitoral (2000), logo no primeiro turno com 178.016 votos (57,71%) contra 90.630 votos (29,38%) do segundo colocado (Fátima Bezerra, da coligação PT / PDT / PC do B / PCB / PHS / PT) e 33.995 votos (11,02%) do terceiro colocado (Sonali Rosado, da coligação PSDB / PFL / PTB / PRN / PSL), ou seja, teoricamente derrotam aquelas duas outras forças que aparentemente seriam antagônicas entre si. Dois anos depois, em 2002, no entanto, Wilma deixa a prefeitura para seguir um caminho que lhe apontou o farol da política: concorrer ao governo do Estado, obtendo êxito, inclusive, na reeleição, em 2006 (no presente, 2007, encontra-se em seu segundo mandato, depois de vencer, entre outros, o próprio Garibaldi Filho, que a vencera em 1985 e a apoiou em 2000 para a prefeitura). A saída de Wilma da prefeitura abre caminho para o vice assumir o cargo de prefeito de Natal. Carlos, no entanto, permanece com a logomarca da ex-prefeita como a sua heráldica municipal de poder, assim como também mantêm os antigos assessores de Wilma em seus respectivos cargos. A força e o personalismo de Wilma permanecem impregnados nas paredes visíveis da estrutura do poder, nas formas de comunicação social da prefeitura e até no marketing pessoal do prefeito. Tanto que Wilma o apóia, em 2004, para continuar como prefeito de Natal. O candidato obtém êxito na recondução ao cargo – mas de forma muito difícil, como veremos a seguir – a despeito das críticas sobre sua administração estar subordinada à identidade anterior e o fantasma do wilmismo pairar por todos os gabinetes e recônditos municipais. Sobre esse assunto, diz Spinelli (2007, p. 6), pesquisador da UFRN nessa área: 330 É inegável que a (re)eleição de Carlos Eduardo representou uma vitória incontestável de Wilma de Faria. O seu prestígio pessoal frente ao eleitorado pesou na votação do candidato por várias razões: ele era seu vice e manteve em sua administração o mesmo secretariado, o mesmo estilo, o mesmo programa de governo, o mesmo marketing institucional, a tal ponto que o eleitor comum era levado a pensar que Wilma de Faria continuava à frente do Palácio Felipe Camarão, sede do governo municipal. Por seu turno, ainda como vice que acabara de ascender ao cargo de prefeito, Carlos Eduardo apóia a candidatura de Wilma, em 2002, ao governo do Estado (assim como na disputa posterior dela à reeleição, em 2006), depois dele ter sido também reconduzido em 2004, como já dito. E o faz em detrimento de seus familiares (à exceção do pai, o prefeito de Parnamirim) que se baldearam para a candidatura de Fernando Bezerra, o vice-governador de Garibaldi Filho, em 2002, e, depois, na de 2006, ter ficado contra o seu primo, o próprio Garibaldi. Revela-se dessa forma um penhorado valido e um fiel aliado de sua patroness, mantendo dela o mesmo armorial político e a mesma logomarca moderna até o momento oportuno de mudar – ao contrário do que fez Aldo Tinôco Filho que, por conta disso, saiu da política do RN tão rapidamente quanto entrou. Esse momento de mudar a heráldica de Carlos Eduardo ocorreu somente após Wilma conquistar, com ajuda de seu protegido que acabara de deixar na prefeitura, o cargo de governadora do Estado, em 2002. A nova logomarca de Carlos Eduardo foi instituída quando a gestão dele estava terminando e se preparava para ser candidato em 2004. Apesar de se referir a outro prefeito e a uma outra administração, no entanto, a logomarca com o Morro do Careca parece aprofundar, como a sombra da ex-prefeita ainda a pairar na gestão pública municipal, um estilo que cultiva, além da beleza plástica, forte e dinâmica da 331 imagem, a beleza natural, forte e dinâmica do turismo. Ambos, nesse ponto, se completam: o turismo pode ser contemplativo e a imagem pode ser turística. A força e o dinamismo decorrem exatamente de suas próprias produções e desenvolvimento sócio-econômicos. Não seria sem esses motivos (bem como pelos demais já expostos acima acerca da mesma heráldica e prefeito) que Carlos Eduardo Alves a manteria em sua segunda gestão – momento em que, mesmo recebendo o apoio de Wilma governadora, vence uma eleição acirrada com menos de 4% dos votos válidos de diferença. Essa pequena diferença de vantagem pró- Carlos, a despeito de ele ter vencido em três das quatro Regiões Administrativas de Natal (Sul, Leste e Oeste), dá-se justamente porque foi na Zona Norte a única em que perdeu com uma grande margem de diferença, aliado à baixíssima diferença que obteve na Zona Oeste. Trata-se da comprovação do que afirmamos acerca do deslocar-se no tempo e no espaço da heráldica municipal, reflexo do sentido das políticas públicas municipais cada vez mais protecionistas para com a Zona Sul, em detrimento proporcional nesse afastar-se exatamente da Zona Norte e em menor escala da Zona Oeste – não por acaso as socialmente mais necessitadas. Senão vejamos, muito a propósito, o que diz ainda Spinelli (2007, p. 1-2): Vendo-se a eleição da perspectiva das regiões da cidade, percebe- se que o prefeito ganhou nas regiões Sul, Leste e Oeste, enquanto Almir suplantou seu adversário apenas na região Norte, seu tradicional reduto. Do ângulo do comportamento eleitoral das classes sociais, pode-se notar que o prefeito venceu amplamente nos setores de classe média e da “alta classe média” natalense (regiões Sul e Leste) e entre os “descamisados” (região Oeste da cidade, área que apresenta os mais altos índices de “desfiliação” social), enquanto Almir superou seu adversário entre assalariados da classe trabalhadora e uma “pequena burguesia” ainda muito pobre, mas em ascensão, de formação recente, concentrada na região Norte da capital. 332 Certamente que para isso contou o fator eleitoral de seu adversário, Luiz Almir, se dizer representante da Zona Norte, onde de fato fincou bases assistencialistas e, na TV, desenvolver há alguns anos um programa de grande apelo emocional e popular. Mas deve-se ressaltar que, além do explicitado acima, ou seja, que as Zonas Norte e Oeste são justamente as duas regiões de Natal – em especial a Norte – de onde os poderes públicos mais vêm se afastando nos últimos anos, refletindo em seus índices sociais negativos4, foi em favor da Zona Sul que também os discursos eleitorais mais se voltaram, seguindo a heráldica. A tônica era o investimento no turismo que geraria emprego, renda, desenvolvimento, inserção em escalas nacional e global. Mas com uma distinção: o prefeito Carlos Eduardo, que terminou ganhando a eleição em segundo turno com 192.513 votos contra 178.249 votos de Luiz Almir (apenas 14.264 de diferença), e que agora tem um mandato em curso até 2008, não possuía somente a retórica. Junto com a governadora e ex-prefeita Wilma de Faria poderiam mostrar na prática obras realizadas ou em realização, com jingles e imagens chicotadas de que Natal não poderia parar ou de que estava melhor e que iria melhorar mais ainda. Se esses seus objetivos serão alcançados, ainda não há possibilidade de se dizer, mas talvez seja um princípio de novas mudanças e quem sabe de outro sentido nas ações municipais – e, por conseguinte, também de outra heráldica que, espera-se, não se aproprie tão assenhoradamente do capital cultural da cidade nem deixe de refletir os interesses da maioria dos natalenses. 4 Na Zona Norte, no entanto, existe também um desenvolvimento que poderíamos chamar de potencialmente autônomo, no qual se destaca a iniciativa da própria população para economicamente crescer, podendo isso ser comprovado empiricamente através dos vários empreendimentos particulares visíveis nas principais ruas e avenidas e em bolsões de uma típica classe média que, ao que tudo indica, não pára de crescer. 333 Figura 1: Governo Garibaldi Filho (1985-1988) Figura 2: Governo Wilma de Faria (1989-1992) F o to s: F ra n c is co d e A ss is D u ar te G u im ar ãe s (o a u to r) 334 Figura 3: Governo Aldo Tinôco Filho (1993-1996) Figura 4: Governo Wilma de Faria (1997-2000) 335 Figura 5: Governo Wilma de Faria (2001-2002) Figura 6: Governo Carlos Eduardo Alves (2002-2004) 336 NATAL - DIVISÃO ADMINISTRATIVA LAGOA AZUL NOSSA SENHORA DA APRESENTAÇÃO POTENGI IGAPÓ EXTREMOZ EXTREMOZ MACAÍBA PARNAMIRIM SÃO GONÇALO DO AMARANTE SALINAS SANTOS REIS ROCAS PAJUÇARA REDINHA RIBEIRA PRAIA DO MEIO AREIA PRETA MÃE LUIZA TIROL BARRO VERMELHO PETRÓPOLIS CIDADE ALTA ALECRIM LAGOA SECA NORDESTE BOM PASTOR FELIPE CAMARÃO GUARAPES PLANALTO PITIMBU CIDADE NOVA CANDELÁRIA NEÓPOLIS PONTA NEGRA CAPIM MACIO LAGOA NOVA QUINTAS DIX-SEPT ROSADO NOSSA SENHORA DE NAZARÉ CIDADE DA ESPERANÇA NORTE LEGENDA REGIÕES ADMINISTRATIVAS LESTE SUL OESTE NOVA DESCOBERTA Ilustração 1 - Direções e síntese do deslocamento, no tempo e no espaço, das escolhas dos elementos referenciais citadinos pelas gestões públicas para suas expressividades publicitárias: Zona Sul privilegiada em detrimento das demais Zonas de Natal. Arte: do autor sobre mapa da Secretaria Municipal de Urbanismo (SEMURB, 2003). 337 CONCLUSÃO Comunicação nos limites do social: integrando no urbano as fagulhas do saber universal alvez nenhuma das áreas do conhecimento até hoje estratificado em fagulhas incandescentes do saber universal alcançado até o presente tenha se aproximado mais dessa ciência fragmentada em particularidades, com o intuito propagador/integrador em suas existências, práticas utilitárias e de desvelo da realidade, do que a Comunicação Social. Essa mesma realidade, serventuária e em descortinação permanente, tanto epistemológica quanto do senso comum, nos aponta com bastante propriedade para este sentido. Verificamos, com base nas evidências, algumas das quais inclusive trazidas e discutidas aqui, que o continuum em que esse fenômeno ocorre com maior intensidade e frequência são os tempos recentes e as cidades contemporâneas, mais precisamente a partir da virada do século XIX para o XX, o que quer dizer a sociedade moderna, de capitalismo avançado. Uma intensidade-frequência, justamente por isso, que aumenta quanto mais avança esse sistema socioeconômico e nele os saberes, as práticas, as vivências, os fluxos e os entrelaçamentos, proporcionados cada vez mais e em maior amplidão e escalas pelas novas tecnologias, habilidades, acessos e recursos midiáticos. O presente trabalho, que também traz e expõe algumas dessas áreas T 338 disciplinares e práticas humanas passíveis de interconexão rumo a um saber mais amplo e não-excludente, seria uma demonstração clara dessa realidade corrente, confluente e recorrente da VidaViva, aquela em que pulsa o progresso, mas também uma possível e já em curso pedagogia dos afetos entre as ciências, uma educação paradigmática das diferenças intelectuais, uma comunhão das diversas gramáticas esfareladas do saber racional, um maior diálogo valorativo e crescente da sapiência, enfim, um debate sociocomunicacional conectando o saber interdisciplinar. Com efeito, a Comunicação Social, antes mesmo do consciencioso acadêmico acerca dessa problemática, que começa acontecer em meados do século passado, já se apresentava, desde a virada do século XIX para o XX, como o elo entre a ciência e a sua demanda por anunciação/enunciação à sociedade das suas contribuições para uma vida melhor de todos os seres vivos e para o bem-estar físico, mental e relacional dos indivíduos humanos na sociedade moderna – fato que se acentuou hoje com a crise ambiental e que põe em xeque a sobrevivência da civilização no planeta e da própria Terra. Naquele momento inicial, contudo, enquanto os Meios de Comunicação de Massa (MCM), especialmente os jornais, se estruturavam como propagadores de ideias e de ideários científicos, ressaltando seus aspectos benéficos e necessários, centralmente nas cidades – e quanto maiores e mais estruturadas eram estas, mais fortes, organizados, amiúdes e factuais eram aqueles –, a imprensa também carecia de seus próprios avanços científicos e ideários próprios. Não sem alguma resistência, inclusive da própria imprensa. Mas, no geral, não foi isso que aconteceu. Assim, se a ciência se expandia em disciplinas e precisava do 339 jornalismo para difundir seus avanços e descobertas para um possível bem-estar social, a imprensa buscava cumprir esse papel junto à sociedade e por sua vez carecia da ciência para também se especializar. Desta forma surgiu o Jornalismo Científico, como editoria distinta nas empresas, originando publicações de cadernos, de revistas etc. sobre as várias ciências e suas novidades, e também como disciplina acadêmica nos cursos de Comunicação Social com habilitação em Jornalismo. As pesquisas, por conseguinte, nessa área, o interior da Comunicação Social, também avançavam, inclusive com o apoio e o incentivo de organismos privados e governamentais, como, além de universidades públicas e de fundações particulares, aqueles patrocinados por entidades internacionais, como a Organização dos Estados Americanos (OEA), com a criação, por exemplo, em 1970, do Centro Interamericano para a Produção de Material Educativo e Científico para a Imprensa (CIMPEC). Hoje, nas academias, há uma rica produção teórica que procura explicar o Jornalismo, como os estudos sobre os Gatekeepers, as investigações sobre o Newsmaking, a Teoria do Agendamento (Agenda Setting), a Teoria dos Espelhos. Os exemplos são inúmeros. Inclusive nos outros campos do saber disciplinar da Comunicação. Os paradigmas que nortearam as disciplinas científicas em fragmentação crescente, assim, foram os mesmos que possibilitaram a afirmação da Comunicação Social como um todo e, em particular, do jornalismo especializado na área, o Jornalismo Científico, ao mesmo tempo em que já apontava para o rumo da inter-relação multidisciplinar. O mesmo rumo poderia ser encontrado nas demais áreas do jornalismo, como a esfera econômica, quando os estudiosos das 340 academias, como, por exemplo, economistas e sociólogos, foram convocados a vir a público explicar fenômenos do crédito, do financiamento, da acumulação e do consumo, e daí surgiu o Jornalismo Econômico, com igual respaldo nos cursos de Comunicação Social, inclusive em nível de pós-graduação, assim como ocorreu também nas áreas dos esportes, com o Jornalismo Esportivo, da saúde, incluso no Jornalismo Científico, e da cultura, com o Jornalismo Cultural. O presente trabalho busca este sentido. Ao apresentar quatro capítulos, em cujo conjunto elementos paradigmáticos aparentemente distintos – e pelo saber fracionado de fato o são – se encontram para dialogarem entre si, tenta provar que, ao se criar uma narrativa relacional de valores teóricos e das coisas do mundo, notadamente objetos também aparentemente díspares, busca contribuir, no torvelinho da crise da degenerescência do saber técnico-cientificista, para a possibilidade de novas escrituras e interpretações através de uma aproximação dialógica, polissêmica, muito mais rica e condizente às realidades interobjetiva e intersubjetiva. Enfatizamos a questão valorativa de cada instância epistêmica porque, para alcançarmos o que aqui propomos, não acreditamos que se deva abandonar, como não foram abandonados, elementos importantes e já alcançados com propriedade e aplicabilidades pelo saber pragmático. Juízo e razão não são coisas pueris e descartáveis. Muitíssimo pelo contrário: tais elementos, estratificados em postulados, conceitos, métodos etc., aqui se entrelaçam justamente por assim terem sido constituídos e apresentarem, a despeito do dilaceramento, possibilidades de comunicação intersígnica. O modelo estrutural da apresentação aqui escolhido, por exemplo, repete-se em todas as exposições capitulares e nos estudos de caso, sendo nestes tanto a sua 341 re-pontuação quanto a repetida valoração/permanência da empiria mais um reforço à coerência do entrelaçamento e à firmeza do conjunto; do trabalho como um todo. Igualmente a taxonomia da sua morfologia: tanto no aspecto tipológico quanto no aspecto quantitativo buscou-se um equilíbrio imagético e gráfico. Tais seriam coisas de somenos diante dos outros cuidados à interconexão dialógica e polissêmica aqui efetivada. Vejamos, e apenas en passant, acerca do discurso. Cada exposição tem a Comunicação como base da qual raiam, e vice- versa, as outras disciplinas. Igualmente ocorre com o lócus: a variação dos espaços urbanos são apenas nominais e temporais, posto a cidade contemporânea, enquanto conceito sociológico (categorial), ser conjunturalmente em todo o corpo do trabalho exatamente o mesmo. O aspecto teórico, por sua vez, apresenta o cabedal histórico em cada parte através de um rebuscamento a partir de uma bibliografia referencial de bases intelectuais reconhecidamente sólidas acerca do saber científico/disciplinar. Mas tal rebuscamento já possui em si o gérmen da interlocução a que se propõe. Quando da apresentação, nesse aspecto, por exemplo, da teoria marxista do Materialismo Histórico e Dialético, optamos por mostrar o Marx filósofo e economista também como o Marx jornalista, algo inerente à Comunicação Social, mas normalmente negligenciado nas Ciências Sociais, e o fizemos dentro de uma exposição de desenvolvimento do saber crescente e cronológico, por sua vez algo tanto da própria epistemologia marxista (naturalismo social) quanto do campo da História (narrativa encadeada dos fatos e dos acontecimentos). E de tal forma que, tanto um quanto outro e o terceiro destes elementos podem ser de qualquer uma das áreas ali comungadas, sem esquecer, evidentemente, os espaços urbanos onde se deram e prosperaram. 342 Para o leitor mais atento, entretanto, a interdisciplinaridade deste trabalho poderia, além disso, inaugurar também – embora este não seja o propósito principal – uma realização contributiva que poderíamos chamar de intradisciplinaridade. Dado termos a Comunicação Social como referência premente sedimentando toda obra, assim como a Cidade contemporânea, em todos os casos estando estes bem definidos em cada uma das proposituras, poderíamos, contudo, verificar que um algo sempre vaza de um capítulo e deságua para outro ou outros, proporcionando uma interconexão no interior da já explícita interação. Melhor dito: os campos aqui não são estanques, posto, a despeito de parecerem recônditos sólidos e com fronteiras bem fechadas e definidas, visão típica do cientificismo tradicional e fragmentado, há uma dialógica entre-si e para-si no interior de seu conjunto que assim se abre também, e inclusive, às subjetividades. Uma ilustração prática e talvez das mais evidentes seria esta: no capítulo primeiro temos a figura de um jornalista (Lima Barreto) que leu escritores russos; a teoria empregada no capítulo quarto é a de um pensador russo (Mikhail Bakhtin) que analisou a obra de um escritor russo (Fiódor Dostóievski) que por sua vez, como jornalista e principalmente como escritor, influenciou o escritor e jornalista brasileiro do primeiro capítulo (Lima Barreto). Diríamos mais: no capítulo terceiro temos um jornalista comunista (Karl Marx) que por sua vez influenciou enquanto pensador aquele pensador russo (Mikhail Bakhtin) do capítulo quarto assim como também um importante arquiteto brasileiro e suas obras (Oscar Niemeyer, Brasília), estes objetos de análise do capítulo dois, onde o arquiteto por sua vez figura como jornalista igualmente defensor da visão materialista e dialética da história assim como fora aquele jornalista (Karl Marx) do terceiro capítulo em todas as suas mais importantes obras. Outras remissibilidades podem ser buscadas e encontradas, 343 como aquelas, numa outra esfera, a morfológica, notadamente dos objetos analisados nos estudos de caso entre si, tanto quanto em alguns modelos teóricos, alguns dos quais aqui (abaixo) buscaremos evidenciar, mas alertando: outras mais e de outros tipos podem ser buscadas pelo leitor, fato que se constitui, por sua suspensão, em um simples, porém nobre objetivo: estimular o sensível e o pensamento do leitor à interconexão interdisciplinar e ao mesmo tempo provar num movimento dialógico e permanente de em-si e para-si a presente tese. Se, contudo deixaremos deliberadamente de ressaltar apenas alguns dos elos morfológicos que interligam o presente trabalho, para demonstrar ao leitor, mesmo ao mais indisposto, a possibilidade de existência de um conhecimento intersubjetivo, que aqui grassa e emerge das diversas esferas apresentadas, e para o qual concorrem inevitavelmente elementos do sensível, experienciais e lógico- dedutivos, por outro lado, o da razão instrumental – mas nem por isso pura –, não deixaremos de evidenciar algumas das tessituras, das mais concretas, que também interligam, neste mesmo sentido, o da produção de saberes interconectos, a partir das estruturas da vida social, as exposições e os debates até aqui realizados (lembremos que cada capítulo tem ao seu final um sentido também conclusivo). Com isso queremos dizer que há outros fatores internos que nos permitem interligar a oratura de um saber grassante. Vejamos. Nas cidades reais, aqui contempladas como objetos, quais sejam, Rio de Janeiro, Brasília, São Paulo e Natal, e naturalmente dentre outras, os pensamentos, por exemplo, de Freud e Marx, discutidos respectivamente nos capítulos dois e três, ainda compõem importantes esteios a pesquisas e aplicabilidades a que se destinam. Pensamentos que foram forjados em cidades onde nasceram, residiram ou visitaram, como 344 Freiberg, Leipzig, Viena, Paris, Berlim, Munique, Nova York, Veneza, Praga e Milão, relativamente a Freud, e Trèves/Trier, Berlim, Iena, Paris, Bruxelas e Londres, relativamente a Marx. As “Cidades de Freud” e as “Cidades de Marx”, assim, nas cidades-objetos e reais, se com/fundem com os respectivos pensamentos desses autores: formam uma linha inspiradora e construtiva, com seus personagens, vivências, cotidianos, movimentos, acontecimentos, arte, história etc. daquilo que iria forjar o Saber Indiciário e o Materialismo Histórico e Dialético. Por um momento assim a cidade deixa de ser somente o pano de fundo da presente tese e/ou só a geovivência antropológica nos espaços urbanos – que mesmo assim não se extinguem; muito pelo contrário – e se sobrepõe e/ou se associa à comunicação midiática (à época dos pensadores, os jornais eram a sua expressão fenomênica mais evidente) para ajudar a sedimentar a consecução teórica de ambos, bem como o Conhecimento Indiciário e o Materialismo Histórico e Dialético aqui trazidos à exposição e ao debate. O mesmo se pode dizer da gramatologia do capítulo um, dos anagramas do capítulo dois, dos fluxogramas do capitulo três e dos pentagramas do capítulo quarto: todos compõem um diagramma cuja equação resolutiva não se limitaria a um grafismo simbólico, e nem mesmo a um infografismo paradidático, mas à própria morfologia da história. Viva e real. O presente trabalho, ademais, e também por isso, demonstra um caráter evolutivo do pensamento comunicacional. Abordemos por um viés objetivo. Na cidade do Rio de Janeiro temos/vemos um escritor, ao retratá-la, retratando a si mesmo e ao mesmo tempo uma imprensa engatinhando, ou no máximo ainda dando os seus primeiros passos, por isso mesmo incipiente, ainda paupérrima e com o compromisso ético, técnico e estético extremamente sofrível. Mas, ao 345 mesmo tempo em que experimenta a divisão social do trabalho, propiciada por uma cada vez mais veloz e inelutável modernidade tecnológica, nos anos do capítulo um, o seu marco fundamental somente iremos verificar com a reforma gráfica e editorial do Jornal do Brasil, nos anos do capítulo dois, cuja evolução e refinamento metodológico, dentro de um capitalismo industrial cada vez mais avançado, qualitativo e padronizado, teremos somente com a implantação do Projeto Folha, nos anos do capítulo três, desembocando em sua ampliação para outras áreas, que também se expandiram e se afirmaram ao longo desse processo, inclusive como disciplinas acadêmicas, como ocorreu com a Publicidade e a Propaganda, expostas, a partir de sua produção, somente nos anos do capítulo quatro. Isso quer dizer que há uma interligação entre os vários pontos históricos, evolutivos e cronológicos da Comunicação, desde o final do século XIX ao início do XXI, retratados no correr da presente tese, e que se constitui exatamente em sua construção enquanto objeto de estudo (fenômeno social), campo de trabalho (profissão) e área de ensino e pesquisa (saber disciplinar). Visto sob esta perspectiva, o presente trabalho é ao mesmo tempo reflexo desse evolutivo pensamento comunicacional e decisivamente a negação de seu contrário, qual seja: o de um saber incomunicacional. De modo em geral, portanto, o presente trabalho faz emergir um apanhado seletivo de modelos paradigmáticos que, antes de se constituir um amontoado, como pensaria a visão sistêmica do fracionamento modernista do saber, são na verdade uma construção histórica do conhecimento até este nível ao qual se chegou hoje e que ao fim e ao cabo nos eleva em ilustração e ainda mais em saberes amplos e conscienciosos. Mais ilustração e saberes proporcionados não somente 346 pela junção coerente relativamente aos vários aspectos que concorrem para este sentido e que foram citados acima, mas fundamentalmente porque traz consigo a efetiva possibilidade de realinhamento e, com este, uma real confluência a novas descobertas. Tal ocorrência se situa, ainda no cômputo qualitativo geral da presente tese, por um lado, tanto nas exposições teóricas como, por outro, na utilização de métodos e propostas de objetos da realidade a descobertas. E mais ainda: também quando das análises/estudos de caso, momento em que ficam mais claros fenômenos, construtos e práxis sociais. Numa palavra: se produz mais saberes. E saberes não desligados. Neste aspecto, há de se ressaltar neste trabalho a contribuição aproximativa que traz/faz, no âmbito das Ciências Sociais, mas particularmente no campo da Sociologia, a partir da conjunção aditiva da Comunicação Social e vice-versa. Não seria isso, contudo, sem um propósito, conforme está exposto, como plano e objetivo, desde o início do presente de trabalho. Além de ter começado a fomentar as Ciências da Comunicação desde o seu início, apresentando paradigmas para análises de fenômenos sociocomunicacionais importantes desde a então nascente sociedade moderna, a Sociologia também, a seu modo, voltou-se para estudar muitos desses mesmos fenômenos – aumentando a fragmentação disciplinar e ao mesmo tempo, paradoxalmente, a necessidade dialógica e de interconetividade de modelos, análises e objetos. Com efeito, um dos casos mais notórios nesse sentido é a ocorrência da ascensão social e econômica da chamada “Sociedade de Massa”. Tanto questões como aquelas que motivaram a Sociologia a pensar/descobrir como agem os Meios de Comunicação de Massa, quais os seus efeitos na vida societária, como se 347 organizam e se relacionam no coletivo das diversas sociedades, assim como outras interrogações/discussões noutros setores envolvendo o fenômeno da comunicação na sociedade capitalista voltado para a produção massiva de bens simbólicos, como a chamada “Sociedade do Espetáculo” e em seguida a denominada “Era da Informação”, levaram-na a criar uma nova disciplina no interior de sua própria competência, a Sociologia da Comunicação. O objeto da Sociologia da Comunicação é, portanto, a comunicação. Este trabalho – como de resto para todas as demais disciplinas aqui chamadas à discussão, como a Literatura, a Arquitetura, a História e a Geografia – reconhece a qualidade tributária desse movimento particular, que assoma ao geral, bem como os elementos contributivos que lhes são próprios, como sendo aquele mesmo movimento que o impele à construção de algo maior: acrescentar à Teoria do Conhecimento vetores recíprocos e demais elementos de um saber comunicacional já com uma solidez epistemológica bastante reconhecida em vários de seus campos e sentidos. A cidade como tema científico – ainda no cômputo geral do presente –, um dos mais importantes da nossa era moderna, discutido por disciplinas tão fragmentadas por essa mesma contemporaneidade racional e ao mesmo tempo tão unidas por esse mesmo objeto fenomênico e social, onde grassa toda a vida e práticas socioculturais das mais significativas desde o seu nascimento, inclusive no âmbito do imaginário, é apresentada aqui de ponta a ponta como, de fundo e em síntese, um algo mais amplo: a questão urbana. Noutras palavras: a problemática do urbano, cada vez mais prezada pelas preocupações científicas e por isso tão cara ao deslinde das diversas áreas disciplinares, concorre como exemplo e ao lado ou 348 mesmo no interior daquelas aqui neste mesmo sentido conclamadas ao debate. Vejamos: para a Literatura, a cidade é o mundo real/ficcional da vida sígnica/objetiva/imaginária; para a Arquitetura, o lócus do esquadrinho/assentamento relativamente ao design/arrojo/bem-estar da vida; para a História, o conjunto conexo do espaço/tempo das ocorrências, narrativas e estratificações humanas; para a Geografia, o ambiente da vivência sócio-político- antropológica e de uma nova escrita cultural/simbólica na/da Terra. Essa questão urbana, contudo, não se revela apenas como seria para cada uma desta particularidade disciplinar (do saber individual), mas fundamentalmente como, justamente por isso, aquele algo (fenômeno) que a torna exatamente neste elemento interdisciplinar e por vezes transdisciplinar. Emerge aqui não só como uma mera variável (a cidade) de vivências, de práticas citadinas desde sempre, mas também, e sobretudo, como expressão de toda uma urbanidade, de todo um processo/projeto civilizatório. Assim, a cidade é mais do que somente acontecimento, é a personificação e o próprio significado interativo do avanço social, bem como das próprias análises que aqui também ensejam. A questão urbana, assim, é a própria cidade, mas agora a cidade-mídia, aquela não-estanque nem morta à exumação de interesses particulares, porém a cidade pulsante à decifração, a cidade significante/significado de si mesma, a cidade inter-relacional através, até o presente estágio, do que é, faz e comunica. Uma cidade, desta forma, no presente trabalho, não só histórica e sempiterna, o que já seria por demais significativo e esclarecedor, mas, sobretudo, não-isolada e nem tão distante, porém ativa, interativa, intersubjetiva, interdisciplinar, assim como também o são as várias teorias, objetos, relatos, 349 descrições, narrativas, modus operativos/conclusivos e todos os demais elementos das práticas sensoriais empíricas e das criteriosas práxis metodológicas humanas; da reflexão conscienciosa e/ou do pensamento pulsional; dos saberes lógico- dedutivos mas também aferente-experienciais, todos aqui trazidos, em maior ou menor grau, ao debate, ao estudo, à análise, à decifração e deliberadamente expostos à disposição da crítica. Especialmente àquela crítica aberta a novas propostas paradigmáticas, interdisciplinares e às assomas interativas, tributárias e multimidiáticas de e para uma nova realidade social: a de uma sociedade cada vez mais dialógica e de um mundo cada vez mais interconectado. Uma contribuição, portanto, pragmática, sensível, teórica, epistolar, solidária... para a grande gramática da experiência e da epistemologia humanas. 350 BIBLIOGRAFIA ABRAMO, Cláudio Weber. Império dos Sentidos: Critérios e Resultados na Folha de S. Paulo. Revista Novos Estudos CEBRAP [Centro Brasileiro de Análise e Planejamento], nº 31, out. 1991, p. 41-67. São Paulo: CEBRAP, 1991. ABRAMO, Cláudio. A Regra do Jogo: o Jornalismo e a Ética do Marceneiro. Prefácio de Mino Carta. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. ABRÃO, Bernadete Siqueira. História da Filosofia. São Paulo: Nova Cultural, 2004. ABREU, Alzira Alves de. A Modernização da Imprensa (1970-2000). Rio de Janeiro: Zahar, 2002. 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