UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS PARA UM CINEMA DA CRUELDADE EM ANTONIN ARTAUD Fagner Torres de França NATAL/RN FEVEREIRO/2016 Fagner Torres de França PARA UM CINEMA DA CRUELDADE EM ANTONIN ARTAUD Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, área de concentração Dinâmicas Sociais, Práticas Culturais e Representações, como requisito parcial à obtenção do título de Doutor em Ciências Sociais. Orientador: Profº Dr. Alexsandro Galeno Araújo Dantas NATAL/RN FEVEREIRO/2016 UFRN / Biblioteca Central Zila Mamede Catalogação da Publicação na Fonte Franca, Fagner Torres de. Para um Cinema da Crueldade em Antonin Artaud / Fagner Torres de Franca. - Natal, RN, 2016. 231 f. : il. Orientador: Prof. Dr. Alexsandro Galeno Araújo Dantas. Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes. Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais 1. Cinema - Tese. 2. Corpo - Tese. 3. Pensamento - Tese. 4. Crueldade - Tese. 5. Antonin Artaud (1896-1948) – História e Interpretação - Tese. I. Dantas, Alexsandro Galeno Araújo. II. Título. RN/UF/BCZM CDU 791.221.6 Fagner Torres de França PARA UM CINEMA DA CRUELDADE EM ANTONIN ARTAUD Banca Examinadora: ___________________________________________________ Orientador: Profº Dr. Alexsandro Galeno Araújo Dantas - UFRN ____________________________________________________ Membro Interno ao PPGCS – Profa. Dra. Maria da Conceição de Almeida - UFRN _____________________________________________________ Membro Interno ao PPGCS - Profa. Dra. Josimey Costa da Silva – UFRN ____________________________________________________ Membro Externo - Profa Dr. Hermano Machado Ferreira Lima - UECE ____________________________________________________ Membro Externo – Profº. Dr. Gustavo de Castro - UnB NATAL/RN FEVEREIRO/2016 AGRADECIMENTOS Agradeço a República Federativa do Brasil, ao Ministério da Educação e a CAPES pelo investimento feito em minha formação. Estarei sempre disposto a retribuir. Agradeço a Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e ao Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais (PPGCS), nas figuras de João Bosco, Jefferson e Otânio, por possibilitarem a efetivação deste projeto, por meio de um trabalho administrativo sério mas profundamente humano. Agradeço a minha mãe, Socorro Paula, artista completa, sempre a poetizar a existências daqueles que a rodeiam; meu irmão Bruno Torres, pela parceria silenciosa, mas sincera e constante, e meu irmão Gibran Torres, pela capacidade de compreender e captar, por meio do humor, aquilo que de imponderável há em todos nós; também ao meu pai, Francisco de Assis, filósofo e humanista. Sou grato aos amigos e colegas de caminhada por multiplicar as alegrias e dividir as tristezas e incertezas: Artemilson, Jucieude, João Paulo, Virgínia, Carmen Rivera, Ana Eliza, Maria Rita, Ana Tázia, Gerlúzia Azevedo, Rebekka Fernandes e todos os outros com quem cruzei nessa jornada e que de alguma forma imprimiram uma marca em mim. Agradeço a Florence de Mèredieu pelo trabalho criterioso em pesquisar a vida de Artaud e me abrir a possibilidade de passar uma temporada de estudos em Paris; igualmente a Nicole Brenez pela ajuda generosa na concretização deste sonho. Agradeço a Universidade Paris III – Sorbonne Nouvelle pela acolhida simpática. Da mesma forma, agradeço a prefeitura de Paris por manter em tão boa organização e fácil acessibilidade os arquivos artaudianos. Aos amigos que fiz na capital francesa e com quem compartilhei alguns dos melhores momentos de minha vida: Cédric Frin, pela hospedagem, amizade, apoio e companheirismo, Marianne Lefort, pelo carinho fraternal e pela paciência, Ciro Inácio, pela capacidade de aliar razão e sensibilidade, Isabela Welter e Romain Crouzet, que tornaram tudo mais colorido e saboroso, Luis de Carvalho, pelo desprendimento e disposição para com o outro, além de Marcelo Mello, grande parceiro e brilhante intelectual. Agradeço a Marcela Franzen, amiga dedicada, com quem dividi minhas melhores descobertas e minhas inúmeras e terríveis angústias e torturas existenciais, assim como as tristezas e alegrias, inseguranças e desamparos, sempre entre a lucidez e a embriaguez. Sobrevivemos! Agradeço ao Marginália e seus participantes pelas sempre boas e engrandecedoras discussões. Ao Grupo de Estudos da Complexidade (GRECOM) e seus habitantes, fonte de luz e calor, minha casa, onde sempre retorno para sorver a seiva pura do conhecimento e do espírito de confraternização: Thiago Severo, Tati Lapitz, Mônica, Louize, a doce e querida Wani e todos os demais. A Ceiça Almeida, coordenadora do Grupo, por sua imensurável grandeza. Sem ela provavelmente estaria ainda preso em um labirinto existencial tentando vislumbrar a possibilidade de saída. Com ela minhas esperanças no mundo se renovam. Meu grande amor, minha amiga irrestrita, meu anjo de guarda, espero um dia retribuir um átimo do que você merece. Por fim, agradeço ao meu orientador, Alex Galeno. Muito mais que um professor, Galeno é um amigo, irmão, terapeuta, companheiro de todas as horas, cuja extrema empatia e vasta cultura humanista o tornam capaz de compreender a via crucis de cada um. Seu trato com os alunos extrapola a simples relação mestre-discípulo para tornar-se uma parceria afetiva e intelectual baseada na ética e no respeito. Um raro exemplar. Por meio dele fui acolhido no doutorado quando as esperanças mais vacilavam. Por meio dele pude realizar um antigo sonho de fazer parte dos meus estudos em terra estrangeira, pois que sugeriu, apoiou e articulou todo o processo. Por meio dele pude retomar a vida. Não saberia jamais como agradecer por tudo. Começo apenas com um singelo obrigado. “É que, mesmo no seu ponto máximo de irrealidade, o sonho é já por si vanguarda da realidade”. * “O cinema dá-nos, não só o reflexo do mundo, mas também o do espírito humano”. Edgar Morin A questão não é mais: o cinema nos dá a ilusão do mundo?, mas: como o cinema nos restitui a crença no mundo? Giles Deleuze A pele humana das coisas, a derme da realidade, é sobretudo com isso que o cinema lida. Ele exalta a matéria e a revela para nós em sua espiritualidade profunda, em suas relações com o espírito de onde ela se originou. Antonin artaud Dedicado a Alex Galeno e Ceiça Almeida, dois amores capitais em minha vida. Na esperança de que aceitem. RESUMO Antonin Artaud (1896-1948) é um poeta, ator, dramaturgo e escritor francês nascido em Marselha, mas cuja vida artística de desenvolve principalmente em Paris. É dele a conhecida noção de Teatro da Crueldade, que até hoje inspira diversos grupos teatrais em vários cantos do mundo. Escreveu sobre teatro, poesia, artes plásticas, filosofia, entre outros temas. De 1924 a 1935 dedica-se também ao cinema, tanto em sua parte teórica como prática. Uma fase um tanto desconhecida e pouco explorada de sua vida. Atuou em 22 filmes com alguns dos diretores mais importantes do mundo, assim como deixou oito roteiros, dos quais apenas um foi filmado, e oito textos teóricos sobre o cinema. O presente trabalho procura debruçar-se justamente sobre este período insuficientemente estudado de sua carreira, partindo de três questões iniciais: Artaud elaborou uma noção de crueldade para além do teatro? É possível pensar a cultura da crueldade para o cinema, ou seja, um cinema da crueldade? Podemos pensar o sujeito contemporâneo a partir dessa cultura? A resposta para as três perguntas é sim. A ideia da crueldade pensada para o cinema ocorreu de forma concomitante a suas experiências e elaborações do que chamou de Teatro da Crueldade. Ambas as reflexões se deram de maneira concomitante e recursiva. Elas, de fato, se retroalimentaram, de forma que coincidem em muitos pontos, com exceção daquilo que de específico existe em cada linguagem. Mais do que isso, todas as suas produções artísticas, incluindo poesia e pintura, foram atravessadas pela noção de crueldade. Concluímos que suas elaborações sobre um cinema da crueldade quedou interrompida no momento mesmo em que o desenvolvimento técnico apontava para a possibilidade de sua realização. E mais: compulsando sua obra pudemos perceber que praticamente todo o seu pensamento foi elaborado sob um transfundo imagético, de modo que podemos mesmo falar de um pensamento cinematográfico artaudiano. Nesse sentido, não concebemos a sua teoria para a sétima arte como secundária aos seus interesses, como relata a maioria dos seus comentadores, mas absolutamente essencial no desenvolvimento de seus escritos, que até hoje acumulam mais de duas mil páginas. Ademais, Artaud não pensava a arte pela arte, mas apenas enquanto um diálogo fecundo e intenso com o homem e a cultura. A arte era seu instrumento privilegiado de propor um diagnóstico e um novo caminho para a sociedade contemporânea. Por meio do cinema imaginou a possibilidade de uma recuperação de forças ético-estético-políticas perdidas sob os escombros da civilização ocidental. Estabelecendo uma nova relação com a imagem o sujeito da (pós-) modernidade poderia resgatar uma potência estética do corpo e do pensamento que, ressignificados, atuariam no sentido da reinvenção de si e do mundo. PALAVRAS-CHAVES: Antonin Artaud, Cinema da Crueldade, Corpo, Pensamento, Cultura. RÉSUMÉ Antonin Artaud (1896-1948) est un poète, acteur, dramaturge et écrivain français né à Marseille, mais dont la vie artistique se développe principalement à Paris. Artaud est l'auteur de la notion bien connue de Théâtre de cruauté, qui inspire encore aujourd'hui de nombreux groupes de théâtre dans différents coins du monde. Il a écrit sur le théâtre, la poésie, l'art, la philosophie, entre autres. De 1924-1935 est également dédié au cinéma, à la fois dans son théorique et pratique. Une étape un peu inconnu et peu exploré dans sa vie. Elle a joué dans 22 films avec certains des réalisateurs les plus importants dans le monde, et a laissé huit scénarios, dont un seul a été realizé, et huit écrits théoriques sur le cinéma. Cette thèse cherche à examiner précisément cette période insuffisamment étudié dans sa carrière, à partir de trois questions initiales: Artaud développé un sens de la cruauté au-delà du théâtre? Nous pouvons penser à la culture de la cruauté envers les films, en d‘autres termes, un cinéma de la cruauté ? Nous pouvons penser sur le sujet contemporain de cette culture? La réponse à ces trois questions est oui. L'idée de la pensée de la cruauté au cinéma est intervenue concomitamment à leurs expériences et élaborations de ce qu'il a appelé Théâtre de la cruauté. Les deux réflexions sont donnés concomitamment et de manière récursive. Plus que cela, toutes ses productions artistiques, dont la poésie et la peinture, ont été traversés par la notion de cruauté. Nous concluons que leurs élaborations sur un cinéma de la cruauté a eté interrompu au moment même que le développement technique a souligné la possibilité de sa réalisation. De plus, à l'enquête de son travail, nous pouvons voir que presque toute sa pensée a été préparé sous les images, de sorte que nous pouvons même parler d'une pensée cinématographique d‘Antonin Artaud. En conséquence, nous ne concevons pas sa théorie au septième art comme secondaire à leurs intérêts, comme le rapporte la plupart de ses commentateurs, mais absolument essentiel dans le développement de ses écrits, qui jusqu'à maintenant accumulé plus de deux mille pages. En outre, Artaud ne pense pas l'art pour l'art, mais seulement comme un dialogue fructueux et intensif avec l'homme et la culture. L‘art était l'instrument privilégié de proposer un diagnostic et une nouvelle façon de voir la société contemporaine. À travers le film il a imaginé la possibilité d'une reprise de forces éthico-esthétique-politiques perdus sous les décombres de la civilisation occidentale. L'établissement d'une nouvelle relation avec l'image, le sujet de la (post-) modernité pourrait sauver une puissance esthétique du corps et de la pensée que, réinterprété, agiraient envers eux-mêmes et le monde à réinventer. Mots-clés : Antonin Artaud, Cinéma de la cruauté, Corps, Pensée, Culture. SUMÁRIO INTRODUÇÃO...............................................................................................................15 SEQUÊNCIA I: IMAGENS DA CRUELDADE............................................................25 Mesmo o amor pode ser cruel.........................................................................................26 Graziella e o amor não correspondido............................................................................27 As três cocoques..............................................................................................................29 A crueldade é uma vontade de potência..........................................................................30 Crueldade e violência: entre mortos e alucinados..........................................................33 As “sutilezas metafísicas” da crueldade.........................................................................35 Freud no divã de Artaud..................................................................................................37 Crueldade integral...........................................................................................................41 Cioran e o homem orgânico............................................................................................42 Rumo à estação crueldade...............................................................................................44 Artaud, meu próximo-distante.........................................................................................47 Artaud e suas (im)possibilidades.....................................................................................48 As três fases do cinema artaudiano.................................................................................50 Voos e Os 32: a deseducação do olhar...........................................................................54 A alma transhistórica......................................................................................................57 Desfazendo mal-entendidos: a crueldade de Bazin a Artaud.........................................58 Crueldade: a cura pela contaminação geral...................................................................64 SEQUÊNCIA II: VIDAS CRUZADAS..........................................................................66 Caldo de cultura..............................................................................................................68 Artaud e o espírito do tempo...........................................................................................70 Keaton, Chaplin e cia......................................................................................................73 Primeiros contatos...........................................................................................................76 A intervenção de Louis Nalpas........................................................................................77 Artaud: entre Édipo e Sísifo............................................................................................78 A concha e o clérigo ou o Cinema verdadeiro................................................................81 Artaud, um anjo obsceno? ..............................................................................................84 Artaud e Baudrillard.......................................................................................................85 Um cineteatro artaudiano?.............................................................................................86 O drama permanente.......................................................................................................93 SEQUÊNCIA III – SURREALISMO AVANT LA LETTRE ..........................................99 A Revolução Surrealista – o início..................................................................................99 Para uma Metafísica pouco ortodoxa...........................................................................101 Surrealismo, imagem, morte e ressurreição..................................................................104 Laços estreitos...............................................................................................................112 Para acabar com a representação................................................................................115 Écran: o elogio da superfície........................................................................................119 Artaud e Eisenstein: entre hieróglifos e ideogramas....................................................121 Entrando na vereda do sonho........................................................................................122 SEQUÊNCIA IV – DO SURREALISMO AO CINEMA DA CRUELDADE.............125 Os dezoito segundos e a busca da imagem-carne.........................................................125 Espaço qualquer e princípio de indiscernibilidade.......................................................130 Sobre experiências incomunicáveis de um dia comum.................................................131 Tempo de desilusão ......................................................................................................134 O triplo problema de um surrealista singular...............................................................137 Um personagem a procura de um diretor.....................................................................141 Irmãos Marx: crueldade e humor..................................................................................143 SEQUÊNCIA V - L’ENFANT TERRIBLE DO CINEMA ...........................................147 Bastide: Freud e Bergson..............................................................................................150 Corpo e crueldade cósmica...........................................................................................157 Artaud e seus roteiros....................................................................................................158 A incomunicação em Duas nações nos confins da Mongólia .......................................161 A potência molecular do cinema...................................................................................167 Para além do sonho.......................................................................................................171 O estado lírico...............................................................................................................173 SEQUÊNCIA FINAL – O CINEMA E SEUS DUPLOS: CORPO E PENSAMENTO............................................................................................................176 Cinema como diálogo com a cultura.............................................................................176 As filhas de Loth e a metafísica do corpo.....................................................................181 Tarakanova e o cinema inorgânico...............................................................................185 A rebelião do açougueiro e a potência do inumano......................................................188 O resgate da carne na imagem......................................................................................192 O abandono precoce do cinema....................................................................................196 O cinema e o duplo........................................................................................................200 Sobre tempo, imagem, corpo e pensamento..................................................................203 A ética da crença...........................................................................................................205 CONSIDERAÇÕES FINAIS........................................................................................210 BIBLIOGRAFIA DE ARTAUD...................................................................................215 LIVROS E ARTIGOS SOBRE ARTAUD...................................................................216 OUTRAS REFERÊNCIAS CONSULTADAS.............................................................218 FILMOGRAFIA DE ARTAUD....................................................................................224 FILMOGRAFIA CONSULTADA................................................................................228 TABELA DE FIGURAS FIGURA 1. Artaud interpreta o pescador Cecco em Graziella (1925)...........................28 FIGURA 2. Artaud interpreta um intelectual em Verdun, visões da história (1927). A estupidez da guerra o revolta, e vai matá-lo antes que possa entendê-la.........................34 FIGURA 3. Hans Bellmer e os ―anagramas do corpo‖...................................................39 FIGURA 4. Joanna d‘Arc, interpretada por Falconetti. Dilaceramento, misticismo, luz, sobras, closes e desenquadramento da visão...................................................................60 FIGURA 5. O irmão Massieu, interpretado por Artaud, questiona o juízo de Deus. Vida e obra se conjugam..........................................................................................................60 FIGURA 6. Massieu consola Joanna d‘Arc. Afinidade espiritual..................................61 FIGURA 7. Artaud interpreta o soldado Vieublé em A cruz de Madeira (1931). Os traumas de guerra foram estruturantes para a formação de sua psique e, consequentemente, na elaboração de sua obra................................................................71 FIGURA 8. Artaud interpreta o Senhor M, seu primeiro filme em que participa como ator...................................................................................................................................77 FIGURA 9. Artaud interpreta Jean-Paul Marat, um dos líderes da Revolução Francesa esfaqueado por uma jovem girondina. Imagem marcante da carreira do ator e do cinema............................................................................................................................129 FIGURA 10. Em Faubourg Montmartre (1931) Artaud interpreta Follestat, um líder revolucionário alucinado e de caracteristicas messiânicas que conduz uma malta colérica em uma fúria patética. A própria composição das imagens oferece uma atmosfera de delírio.......................................................................................................130 FIGURA 11. Cena de A concha e o clérigo. A bola de cristal envolvendo uma cabeça empresta ao ambiente uma atmosférica mágica e onírica.............................................131 FIGURA 12. Germaine Dulac. Importante cineasta da vanguarda francesa, diretora de A concha e o clérigo..........................................................................................................135 FIGURA 13. Artaud, à direita, parece não participar do mesmo sentimento que move o restante dos soldados.....................................................................................................142 FIGURA 14. Cena de A concha e o clérigo. O pensamento aprisionado procura uma saída...............................................................................................................................148 FIGURA 15. Cena de Melancolia.................................................................................151 FIGURA 16. Criança observa o nascimento do novo homem geopolítico...................153 FIGURA 17. Autorretrato..............................................................................................175 FIGURA 18. ―Meu olho é uma boca‖. Pintura de Dieter Roth.....................................180 FIGURA 19. Em Tarakanova, Artaud interpreta um jovem cigano louco e apaixonado.....................................................................................................................185 FIGURA 20. Cena de A concha e o clérigo. Um corpo que se desfaz na busca irrefreável do objeto de desejo.......................................................................................186 FIGURA 21. Cena de A concha e o clérigo. A concha que subtrai o homem ao desejo.............................................................................................................................187 FIGURA 22. Em Lucrécia Bórgia, Artaud interpreta Savonarola, a aparição mais próxima do devir existencial de Artaud. Sua denúncia contra o Papa Alexandre VI ecoou na vida como uma denúncia incansável do mundo. Um corpo multidão...........188 FIGURA 23. Exemplo de exploração de espacialidade na concepção de um ―espaço qualquer‖. Em A concha e o clérigo, o religioso passeia pelo que poderia ser uma igreja, um salão, um corredor ou uma casa. O claro-escuro impede de determinar uma hora aproximada na qual a cena se passa...............................................................................189 FIGURA 24. Artaud em Liliom. Ser poroso..................................................................189 FIGURA 25. Artaud em O judeu errante......................................................................194 16 INTRODUÇÃO Chegamos ao mundo saídos de um reino no qual somos o único rei. Há conforto, alimento, calor, aconchego, uma sensação de imensidão que procuramos reencontrar, às vezes, junto ao mar, quando retornamos quase magicamente ao estado fetal, onde tudo bastava e éramos felizes. Com o tempo, após o nascimento, a vida nos invade. Tateamos os objetos, cheiramos as coisas, provamos, ouvimos, olhamos e passamos a nos dar conta da dimensão do outro que nos constitui. Percebemos que o inferno, mas também o paraíso, são os outros – e nós também. Só podemos existir em relação, e não nos bastamos a nós mesmos. E tudo começa, aos poucos, a fazer sentido. Reconhecemos o pai, a mãe, os amigos, vamos à escola, trabalhamos, namoramos, casamos, temos filhos e seguimos o script para o qual fomos condicionados, embora construamos nossas linhas de fuga para escapar ao tédio avassalador ao qual todos estamos sujeitos. Abrimos os olhos e observamos ao redor. Uma e outra vez. E às vezes parece que as coisas vão perdendo contornos, nitidez. Alguns passam a questionar, enquanto outros apenas seguem em frente. Os questionadores sentimos um desconforto frente ao mundo, uma impressão estranha e angustiante que invade, paralisa e não cede jamais. O primeiro questionamento é como um vírus inoculado que passa a tomar o corpo e alma, inexoravelmente. E passamos a nos perguntar o porquê de tudo ser como é. Há os famintos, condenados da terra, milhões em todo o mundo, sem acesso a saneamento básico, saúde preventiva ou educação, enquanto poucos concentram fortunas exorbitantes que jamais conseguiriam gastar; há as vítimas de guerras políticas, econômicas ou religiosas que absolutamente não entendem sua própria situação, apenas sofrem as consequências daquilo que é decidido em altas cúpulas cujos interesses desconhecemos; há uma violência desenfreada de uns contra os outros como se tivéssemos perdido a dimensão da importância da vida, qualquer que seja; há o dinheiro, por meio do qual passamos a medir as pessoas. Os que detêm o poder de decisão sobre a vida e a morte parecem estar cada vez mais encerrados em torres de marfim, insensíveis à tragédia humana que se desenrola dia após dia, sejam eles generais, políticos ou cientistas. A chamada civilização moderna pode ser facilmente confundida com a barbárie, dependendo do ponto de vista pelo qual se a observa. Como exemplo, nossa tecnologia descobriu o átomo, manipulou seus elementos, investigou sua constituição, imaginou suas possibilidades, realizou a 17 fissão nuclear, construiu uma bomba atômica e ajudou a matar milhares de pessoas em Hiroshima e Nagasaki. Uma resposta à outra barbárie civilizada. A sofisticada Alemanha, terra de pensadores e artistas sensíveis, promoveu um dos maiores genocídio do século XX, assim como a Europa iluminista havia feito no período de colonização. Mas a angústia permanece, e uma sensação de não pertencimento a um mundo ensandecido parece instalar-se cada vez mais profundamente. Mesmo assim, há esperança. E alguns de nós procuramos nos aliar àqueles que fazem a crítica radical de uma cultura que mata e procura abortar o rompimento do novo: os espíritos livres, demoníacos, dionisíacos, os anjos terríveis da cultura, descolados da consciência social geral, àqueles a quem uma sociedade pretende sempre calar ou desqualificar, os profetas, santos diabólicos, gênios amaldiçoados, visionários. Foi assim que um dia houve um encontro com Antonin Artaud, poeta, dramaturgo, pintor, desenhista, escritor, ator de teatro e cinema, roteirista, maldito, bendito, louco lúcido, incompreendido. Nascido em Marselha em 4 de setembro de 1896 e morto em Paris em 4 de março de 1948, Artaud viveu desde cedo uma vida de estranhamento. A família do pai, Antoine-Roi é de origem provençal e marselhesa. A mãe, Euphrasie, nasce em Esmirna, cidade turca ligada ao Império Otomano. Em sua casa, tem contato com diversas culturas e idiomas, vivendo uma experiência de fronteiras que vai levar para sempre, entre o ser e o não ser, o ser e o nada, o tudo e o nada, a palavra e o silêncio, o silêncio e o estrondo, o dizível e o indizível, o mesmo e a alteridade, a identidade e a diferença, a calma e a fúria, o som e a fúria, a luz e o ocaso, a ribalta e a coxia, a loucura e a lucidez, a vida e a morte. A identificação com o poeta de Marselha deu-se assim como um duplo, ideia cara ao poeta. A angústia e a solidão, o amor pela arte, a vontade de pensar sobre o mundo, a cultura, o homem, de resgatar a potência de viver e poetizar a existência são as mesmas. Pois a prosa do mundo parece ter substituído a sua poesia, e a causa de nossa tragédia parece estar na própria impotência em possuir a vida. Em O teatro e seu duplo (2006b), sua obra mais conhecida, escreve que O mais urgente não me parece tanto defender uma cultura cuja existência nunca salvou qualquer ser humano de ter fome e da preocupação de viver melhor, mas extrair, daquilo que se chama cultura, ideias cuja força viva é idêntica à da fome (p. 1). Fome no sentido de uma necessidade inadiável. 18 A leitura de Artaud foi surpreendente também de outro modo. O conhecemos, por meio de algumas leituras, como o homem que pensava e vivia o teatro, procurava refazer suas práticas, recuperar sua força viva, reconstruir sua linguagem, atingir o público de uma forma que só a dramaturgia poderia fazer. Por isso desenvolve sua ideia de teatro da crueldade. Mas a conexão maior deu-se com a descoberta de sua paixão pelo cinema, da qual também compartilhamos. Artaud dedicou 12 anos de sua vida, de 1924 a 1935, a pensar e fazer cinema. Participou de 22 filmes e deixou 7 roteiros, além de textos teóricos e algumas críticas cinematográficas. Nesse período, amou e odiou a sétima arte, encantou-se com suas possibilidades e desiludiu-se com seus limites. E deixou um legado importante. Porém, acreditamos que a sua obra dedicada ao cinema ainda seja pouco estudada. Artaud explica que ―O cinema seria como uma verdadeira liberação, necessária e precisa, de todas as forças sombrias do pensamento‖ (ARTAUD, 2006b), um choque infligido aos olhos, tirado da própria substância do olhar, agindo diretamente no cérebro sem intermédio do discurso, não proveniente de circunstâncias psicológicas. Artaud busca o que ele chama de cinema visual, mais que textual, no sentido de exibir os nossos atos em sua barbárie original e profunda. Uma ontologia do ser por meio do cinema. Assim como a noção de teatro da crueldade, acreditamos ser possível também pensar em um cinema da crueldade. No entanto, é preciso pesquisar a especificidade desta nova linguagem cinematográfica proposta por ele. Nova à época e ainda hoje, pois que não foi possível levá-la a efeito em sua plenitude. Apenas um dos roteiros de Artaud chegou a ser filmado, A concha e o clérigo (1928). Experiência surrealista de vanguarda, o trabalho foi entregue à cineasta Germaine Dulac, mas o resultado final não agradou ao autor, gerando desentendimentos entre os dois. Em 1935, Artaud, cujas participações em filmes eram cada vez mais episódicas e limitadas, decide abandonar o cinema, declarando sua velhice precoce (declaração ela mesma, como veremos, um tanto precoce, pois que traços de suas ideias sobre cinema podem ser encontrada em diversos diretores contemporâneos). Alguns autores (MÉREDIEU, 2011; VIRMAUX, 1996) acreditam que seu interesse pela técnica emergente era desde o começo provisório, como um meio de sobrevivência econômica para desenvolver os projetos teatrais. Chega-se a falar mesmo em fracasso. Não concordamos de todo com esta afirmação. Artaud dedicou tempo e saúde consideráveis para desenvolver um projeto consistente de cinema. Compreendeu profundamente o seu funcionamento e vislumbrou possibilidades de imagens que pudessem agir sobre o 19 inconsciente subvertendo valores, desorganizando a visão, fazendo vibrar o organismo. Uma ideia ainda hoje revolucionária. Mas partindo da mesma questão levantada por Deleuze e Guattari (2014) em seu estudo sobre Kafka, pensamos: qual a melhor forma de entrar na obra de Artaud? Ela é também um rizoma, uma série de tocas, por vezes um campo minado, um castelo de entradas múltiplas, inúmeras portas, um complexo de túneis, de caminhos que se cruzam e se afastam, um labirinto onde é fácil se perder. O mais difícil é tentar interpretar uma obra que mais se presta a experimentação. Antonin Artaud (1896-1948) publicou mais de duas mil páginas apenas pela editora Gallimard. Sessenta e oito anos após a sua morte e seus escritos continuam sendo lançados. Artaud escrevia compulsivamente sobre diversos assuntos, lançando pseudópodes em tantas direções quantos eram seus interesses, alguns dos quais se ramificavam e se desenvolviam, enquanto outros adormeciam esperando desdobramentos que, por vezes, vinham ou não. Teatro, cinema, poesia, literatura, filosofia, história, pintura e desenho eram alguns dos seus temas de reflexão. A incursão pela chamada sétima arte, por exemplo, foi um dos projetos interrompidos pelo francês de Marselha. Deixou poucos textos sobre o assunto, variando entre o encantamento e a melancolia profunda daqueles que não conseguem mais amar seu objeto de desejo. Portanto, podemos pensar: ―Sendo assim, nada mais adequado do que escolher a toca do cinema como via de acesso à obra de Artaud‖. Verdade, mas a questão principal é saber como separar aquilo que constitui o pensamento cinematográfico dos seus textos sobre teatro, pintura, desenho, poesia, filosofia, história etc. Mais uma vez, a resposta parece simples: ―Procure seus textos específicos sobre cinema. Você mesmo disse que não são muitos‖. Mas não é tão fácil. Uma de nossas hipóteses é que seu próprio pensamento era cinematográfico, do começo ao fim da vida, como se sua relação com o mundo se desse a partir da percepção acionada por um cinematógrafo interior eternamente em funcionamento. Sua relação com a imagem era bastante visceral. Era pintor e desenhista, crítico de arte e, por pouco tempo, de cinema. Seus poemas e textos autobiográficos são imagéticos, seu teatro pretendia nada mais que compor imagens capazes de despertar um medo metafísico que colocasse em movimento mecanismos interiores de transformação do corpo e do espírito: ―Proponho assim um teatro em que imagens físicas violentas triturem e hipnotizem a sensibilidade 20 do espectador, envolvida no teatro como num turbilhão de forças superiores‖ (2006b, p. 93, grifo nosso). Tudo em seu pensamento, portanto, evoca o cinema, a ponto de Benjamin Fondane (2007), poeta e escritor francês, acreditar que em seu texto mais conhecido, O teatro e seu duplo (2006b), o que Artaud buscava era encontrar uma espécie de via perdida do cinema. A todo o momento, neste e outros escritos, Artaud convoca imagens para dar conta de uma reflexão, principalmente aquelas com a capacidade de nos lançar no estado de incerteza e angústia. Portanto, muito de seu pensamento é permeado desse adubo imagético. De modo que não basta apenas ler parte de sua obra dedicada ao cinema para saber do que se trata, mas é preciso investigar todos os seus arquivos para neles perceber, com mais ou menos sutileza, o contexto de formação desse pensar cinematográfica. Desde seus primeiros textos, como veremos adiante, ele se preocupa com a angústia provocada por ideias e imagens que surgem e desaparecem no momento mesmo em que ele tenta fixá-las em alguma forma, dificultando assim sua transmissão. Antes de repudiar essa situação, ele a toma como base de um pensamento alimentado sistematicamente por um não-pensável, um impensável, um vazio, um intolerável. A impotência do pensamento seria, portanto, uma força, e não uma fraqueza do próprio pensamento. É justamente essa força escondida e inexplorada que seria preciso resgatar para repensar uma cultura que tudo paralisa em conceitos e imagens pré-fabricadas. Nesse sentido, o leitor perceberá que, embora nosso tema seja o cinema da crueldade artaudiano, em nenhum momento essa investigação estará separada das outras áreas de interesse do autor ou mesmo de sua vida. Pintura, poesia, desenho, teatro, cinema e vida, todos esses elementos estabelecem uma interface, uma comunicação, em menor ou maior grau, e todos eles estão de uma forma ou outra relacionados, sendo assim quase inseparáveis. Em comum, todos eles pretendem ressuscitar um fundo de imagens potencialmente transformadoras que nadam em nosso inconsciente, naquilo que existe antes da consolidação da palavra, do gesto, do condicionamento corporal aos quais fomos acostumados. Por isso, para pensar o cinema artaudiano, estabelecemos um diálogo constante entre as demais expressões artísticas cultivadas por Artaud, mais substancialmente com seu teatro da crueldade. Como veremos mais a frente, suas reflexões sobre teatro e cinema, suas experiências teórico-práticas nos dois movimentos se dão simultaneamente, a partir de meados da década de 1920, assim como a desilusão e o 21 abandono de ambas as artes, em meados da década de 1930, quando Artaud passa a tentar realizar o teatro e o cinema não mais nos palcos ou na tela, mas na própria vida. E aqui reside o caráter de abertura desse trabalho. Artaud investe na prática artística enquanto modo próprio de se posicionar frente a cultura e ao mundo, como forma de propor alguma coisa nova para enfrentar a deterioração de um estado de coisas a partir de um domínio que lhe cabia, assim como alguns fazem política e outros vão à igreja. Paradoxalmente, não se trata de fazer arte num sentido utilitário, para divertir, consolar ou lançá-la no mercado multimilionário dos leilões. Para ele, há uma necessidade premente de ressuscitar uma eficácia intelectual da arte, nem para isso seja preciso destruí-la e refazê-la em outras bases, agora investida de uma potência poética transformadora multiplicada. Portanto, o presente texto pretende dialogar não apenas com o cinema ou o teatro, mas também com o mundo e a cultura contemporânea. E é a partir de Artaud como intercessor que esperamos estabelecer esta comunicação. Por meio da noção de crueldade e seus vários desdobramentos, tentaremos responder a três questões principais: Artaud elaborou uma noção de crueldade para além do teatro? É possível pensar a cultura da crueldade para o cinema? Podemos pensar a relação do sujeito contemporâneo com o mundo a partir dessa cultura? Em seus textos sobre a crueldade, reunidos em O teatro e seu duplo, Artaud propõe a ideia da crueldade cósmica que servirá de guia para pensarmos sobre a relação de Artaud com o cinema e as imagens. A crueldade cósmica seria aquela que comanda a própria realidade do ser, qual seja, aquela de um devir perpétuo que não pode suportar nenhuma ordem estável, pois que a vida é uma constante tentação do caos no movimento mesmo do cosmo. É essa a força da crueldade a qual devemos integrar e reelaborar. Dito de outra forma, é um movimento tanto de destruição quanto de criação. Trata-se de um apetite metafísico de crueldade por meio do qual podemos ter a esperança de recriar o mundo. Alain Virmaux (2009), em um estudo sobre o teatro artaudiano, investiga seus temas recorrentes, dentre eles, o incesto, a roda, os manequins, as dissonâncias e a atualidade. Todos estes temas são também, com alguma variação (por exemplo, a roda poderia ser substituída pelo tema recorrente da bola de cristal), encontrada no cinema de Artaud. O nosso interesse reside, porém, no substrato que põe em movimento todos estes mecanismos, e que o cinema mais do que o teatro poderia realizar por causa de sua própria especificidade. 22 Mais acima passamos rapidamente por este ponto, e agora vamos retomá-lo com um pouco mais de calma. Há alguns parágrafos, dissemos que Artaud pretende ―ressuscitar um fundo de imagens potencialmente transformadoras que nadam em nosso inconsciente‖. O sonho seria, portanto, o meio de acesso privilegiado a este conteúdo latente e inexplorado. O sonho, mais que os conceitos, será a nossa chave de entrada para esse universo. Sobre a sua importância como aquilo que subjaz a todo o projeto artístico artaudiano, vejamos uma citação em O teatro e seu duplo: Assim como nossos sonhos agem sobre nós e a realidade age sobre nossos sonhos, pensamos que podemos identificar as imagens da poesia com um sonho, que será eficaz na medida em que será lançado com a violência necessária. E o público acreditará nos sonhos do teatro sob a condição de que ele os considere de fato sonhos e não como um decalque da realidade (2006b, p. 97). Nada melhor que o cinema para projetar um sonho em toda sua radicalidade, para traduzi-los em imagens. Caso contrário, o cinema para nada serviria, diz ele, em Feitiçaria e cinema (2006a). E isso porque o sonho entretece uma relação privilegiada com a noção de crueldade. E a forma de unir as duas pontas da corda seria por meio das imagens. A crueldade, como vimos, guarda relação com um devir perpétuo de um ser vivendo num movimento pendular entre caos e cosmos, ordem e desordem. As imagens seriam capazes de reproduzir esse movimento mesmo, pois que estão sempre em choque, sobreposição, metamorfose, associação, dissociação, extraindo desse processo suas significações próprias, uma desorganização da visão, uma outra ordem de coisas que nada deve a realidade conhecida. O pensamento artaudiano longe de ser sistemático é, na verdade, uma sequência de imagens, uma sequência de estados de espírito e intensidades. Por isso decidimos dividir os capítulos em sequências. E assim como a própria criação de imagem em Artaud se dá por meio de choques, subdividimos as sequências em saltos de pensamento, que não representam necessariamente um ordenamento lógico. Não fez parte da estratégia investigativa trabalhar com enquadramentos, categorias e conceitos pré-formulados, pois que seria trair o próprio autor. Nossa intenção, que esperamos não tenha sido equivocada, foi elaborar o presente texto utilizando o gênero ensaístico, um híbrido entre filosofia, literatura, jornalismo e sociologia. Tal estratégia seria a mais adequada para dar conta de uma insuficiência com a qual nos debatemos todos os dias: a incapacidade de definir-se a partir de um campo específico. 23 Uma das principais dificuldades na elaboração deste ensaio foi a de captar a própria dimensão e multiplicidade do sujeito de pesquisa, que trafega entre apenas o grande demais e o inapreensível. Talvez por isso o leitor tenha uma certa impressão de que o trabalho não possui bordas. Tanto pior para o autor. Além disso, de todo o material levantado para a construção deste texto, encontramos apenas uma tese que trata do cinema em Artaud, defendida na Universidade de Paris III – Sorbonne Nouvelle. Dada a escassez de documentos acerca do assunto, tivemos de desatar por conta própria os nós que constantemente apareciam. Daí o fato de ser um texto de cunho autoral e reduzidas citações. Um desses nós é o seguinte: a abordagem artaudiana sobre o cinema divide-se em três campos que por vezes se conjugam e por vezes são opostos. Cada um deles poderia merecer um estudo a parte. Temos o Artaud teórico, o roteirista e o ator. O primeiro pensa num cinema ideal, verdadeiro, capaz de transformar o sujeito contemporâneo, a cultura e a sociedade ocidental. Suas elaborações são bastante abstratas e abrangentes, e ele próprio sente os desafios de colocá-las no papel quando da construção dos roteiros para cinema. A dificuldade de transpor a teoria para a prática era tamanha que apenas um de seus roteiros foi filmado, e mesmo assim a adaptação não o agradou. Por último, temos o ator meticuloso que precisava lidar com dois obstáculos: 1) a limitação na composição de seus próprios personagens, pois que se encontrava na posição de alguém que é dirigido e segue as indicações do diretor; e 2) o profissional que precisa trabalhar em projetos os quais não acredita apenas para conseguir certa visibilidade, algum dinheiro e sobreviver. Por isso o problema de analisar do ponto de vista da crueldade as interpretações que nem o próprio autor acreditou. Além disso, há a questão da própria heterogeneidade de seus papeis no cinema, que iam de filmes clássicos e profundos às comédias e operetas superficiais. No sentido de resolver tais questões, adotamos a seguinte estratégia: investigamos o que, em sua obra, prenuncia a germinação de um pensamento cinematográfico e quais suas características. Como as imagens devem ser dispostas e trabalhadas, e com que objetivos, para que tenhamos um cinema da crueldade? Na sequência, tomamos como base os textos teóricos para, em seguida, observarmos sua efetivação nos roteiros e atuações em filmes. Tais textos teóricos, que são como a coagulação de suas ideias difusas de cinema, transversalizam todas as sequências do trabalho. Serão eles nossa base de reflexão, enquanto os filmes e roteiros serão lançados 24 como elementos de demonstração. Principalmente aqueles que o autor mais valorizou em sua carreira, seus textos e atuações mais marcantes para a história do cinema. Na primeira sequência, discutiremos com certa profundidade a noção de crueldade no sentido de esclarecê-la. Ainda muito criticada e, por vezes, incompreendida, a crueldade não se refere necessariamente a sadismo, violência, gosto de sangue ou terror. Significa que viver sob a ética da crueldade é viver com a consciência do desabrigo metafísico que nos constitui, cujos pilares são o princípio da realidade suficiente e o princípio da incerteza, conforme veremos com Rosset (1989). Essa consciência exige um apetite de vida e um rigor aplicado no sentido de fruir a existência como criação e experimentação constantes, em que pese todo o mal ao qual estamos expostos. Na segunda sequência contextualizaremos a biografia de Artaud com as três primeiras décadas da história do cinema, do apogeu ao seu declínio e sua retomada no entre-guerras. Com a ascensão das vanguardas artísticas e cinematográficas Artaud apaixona-se definitivamente pela sétima arte e empenha-se em desenvolver uma ideia original de cinema, pois que o cinematógrafo utilizado para fins unicamente de diversão, com uma linguagem emprestada de outros meios, esvaziado de especificidade, estaria desvirtuando potencialidades inimagináveis. A partir desse período cinema e teatro começam a ser pensados conjuntamente. Na terceira e quarta sequências enfocamos o movimento artístico que mais se debruçou sobre a melhor forma de explorar e liberar as potências adormecidas do sonho e do pensamento: o surrealismo. Para Edgar Morin (2013b, p. 155), ―o surrealismo foi um dos acontecimentos culturais, e mesmo filosóficos, mais ricos do século XX‖, no qual poesia, pensamento, ação e vida se entrefecundam. Artaud estabelece uma relação dúbia com o movimento, do qual faz parte oficialmente por apenas dois anos (1924- 1926). Difícil imaginar Artaud, espírito imenso, sob a sombra de André Breton. Não demoraria para divergirem. E o rompimento foi inevitável. Não obstante, Artaud se considerava um surrealista antes, depois e maior que todos os surrealistas. Mesmo fora do grupo, levou suas experiências ao limite da experimentação, do pensamento e do corpo. Temos aqui dois pontos importantes. Primeiro, com Morin (2013b), tomamos consciência de que o homem habita a Terra poeticamente, de modo que a própria noção de realidade é tecida de imaginário, daí a dimensão semi-imaginária da realidade. Junte-se a isso o fato de que a porção poética da 25 existência está sendo progressivamente absorvida pela parte prosaica, enquanto a própria imaginação passa por um processo de captura pelo capital. Em segundo lugar, o termo surrealismo hoje encontra-se, como diz Morin, despoetizado, esvaziado, trivializado, desvitalizado. Artaud propõe, portanto, a revitalização da noção de sonho por meio do cinema e o resgate de suas potências criativas. Mas quando falamos de surrealismo em Artaud, estamos falando de um surrealismo ampliado, como sendo qualquer coisa capaz de por em questão todas as relações entre os objetos e entre as formas e suas significações. Ponhamos na conta do surrealismo ampliado de Artaud, por exemplo, o humor-destruição da poesia anárquica, como nos filmes dos irmãos Marx ou mesmo Charles Chaplin. Na quinta e sexta sequências trazemos exemplos de filmes tanto do próprio Artaud quanto de diretores da vanguarda europeia para mostrar como a ideia artaudiana de cinema não se resume ao movimento surrealista (que, de resto, nunca deu a devida atenção ao cinema) e pode ser encontrada em diversas outras produções, inclusive contemporâneas. O mais importante é constatar que a libertação e retomada da experiência com o corpo, preso nos dispositivos disciplinares e de controle, transformado em mero suporte de imagens, podem ser pensadas a partir destes dois instrumentos: o sonho como o resgate de um enriquecimento da via imaginária e a ética da crueldade como ampliação de um campo de experimentação da vida. É quando estabelecemos a relação cinema-corpo-pensamento. As sequências doravante dispostas podem ser lidas de forma independente. Pode-se entrar por qualquer parte, pois nenhuma deve valer mais que a outra. Por isso evitamos dividir o ensaio entre capítulos teóricos e práticos. Todos eles têm um pouco dos dois. No final, seja qual for a porta de entrada, surgirá uma ideia de conjunto mais ou menos ordenada. Talvez devamos admitir que o presente trabalho aproxima-se mais a uma experiência de pensamento, e que não ambiciona extrair conclusões peremptórias que possam mudar alguma coisa no status quo do mundo. Isso implica assumir inconsistências, erros e limitações, pelos quais não abdicaremos da responsabilidade. Textos são como chaves velhas guardadas num antigo baú esquecido no quarto dos fundos: podem abrir alguma coisa, não sabemos o quê, ou talvez aquilo que elas poderiam abrir já não exista mais; ou como garrafas com mensagens lançadas ao mar: não se sabe se um dia alguém vai encontrá-las; se encontrar, se poderá lê-las; se puder, não imaginamos se fará algum sentido; se fizer, não sabemos se esse sentido ajudará em alguma coisa. Pelo menos o gesto foi feito: lancemos nossa garrafa. Au revoir. 26 SEQUÊNCIA I: IMAGENS DA CRUELDADE Se pudéssemos resumir a ideia de crueldade em Antonin Artaud em poucas palavras, poderíamos dizer que a crueldade existe simplesmente porque a vida é cruel. Cruel por ser uma luta constante contra os princípios que contra ela se levantam desde o nascimento (que constitui uma espécie de primeiro trauma), como a entrada no mundo do desamparo, a entropia, a inércia paralisante, a luta pela sobrevivência no reino da necessidade, a melancolia, a acídia, as constantes frustrações, em suma, o próprio princípio da realidade, a crueldade como um primeiro impulso que põe em movimento a maquinaria das relações do homem consigo mesmo, os outros e o mundo, funcionando em perpetuum mobile. Uma agonística interminável e implacável, ―a consciência que dá ao exercício de todo ato da vida sua cor de sangue, sua nuance cruel‖ (ARTAUD, 2006b, p. 118). Por isso, antes de tudo, a crueldade não se resume ao gosto do suplício, do sadismo ou masoquismo, da maldade, da dor, do sangue derramado, da violência gratuita, da carne rompida e corroída, do horror, do medo, da angústia dilacerante, do pessimismo da vontade, das pulsões destruidoras, embora possa também recorrer ocasionalmente a estes elementos para efeitos de problematização artístico-existencial ou ético-estético-política. Pelo contrário, a noção de crueldade seria uma poderosa arma de afirmação da vida. E para compreendê-la e aplicá-la em toda sua potencialidade seria preciso um trabalho ascético rigoroso e consciente. Como explica o autor, a palavra crueldade é usada no sentido de apetite de vida, de rigor cósmico e de necessidade implacável, no sentido gnóstico 1 de turbilhão de vida que devora as trevas, no sentido da dor fora de cuja necessidade inelutável a vida não consegue se manter; o bem é desejado, é o resultado de um ato, o mal é permanente (2006b, p. 119). 1 O gnosticismo possui várias correntes e definições. Em suma, podemos dizer tratar-se de uma reflexão acerca da presença do mal no mundo. A concepção maniqueísta, por exemplo, assevera que a vida é, desde o início, uma luta costante entre forças de luz e trevas. Como resultado dessa contenda, as trevas inicialmente apoderam-se da luz, restando a nós a tarefa de separar os dois elementos, ou seja, extrair a luz das sombras. Zizek (2010), por sua vez, explica o gnosticismo como uma rejeição da “exterioridade da verdade”, característica fundamental do universo judaico-cristão. Isto é, a verdade advém de um encontro com um grande Outro desejante e impenetrável (o chamado de Deus, por exemplo) que aponta o caminho a ser seguido. Já no gnosticismo, o caminho para a verdade parte de uma jornada interior da autopurificação espiritual. Artaud, como o compreendemos, coloca-se a meio caminho desta jornada, sua arte servindo como um grande Outro por meio do qual é possível aproximar-se dessa redescoberta do eu. Todos esses sentidos contribuem para a ideia gnóstica em Artaud. 27 Pois mesmo se reconhecemos a crueldade da vida, é preciso também saber ―devorar as trevas‖ e manter-se em riste para além das adversidades do ―turbilhão de vida‖, aprender a movimentar-se em meio à dor da angústia e do desamparo que jamais nos abandona do nascimento à morte. Mesmo o amor pode ser cruel Dentre os autores contemporâneos que melhor discutiram essa noção, podemos destacar pelo menos dois: Clément Rosset (1989) e Camille Dumoulié (1996a). Rosset, em O Princípio de Crueldade, explica que desejar a crueldade é desejar o que é, a realidade em sua plenitude, única e inapelável, mesmo que desconfortante. Nesse caminho, a ―ética da crueldade‖ desenvolvida por ele tem como pilares ―o princípio da realidade suficiente‖ e o ―princípio da incerteza‖. Ambas as bases nos retirariam o abrigo metafísico das certezas e verdades seguras e nos deixariam expostos ao real em toda a sua crueza, de modo que nossa intolerância às incertezas e a busca por um pouco que seja de segurança sejam substituídas por uma atitude mais afirmativa em relação ao próprio real no que ele tem de inelutável, e, por consequência, em relação à própria vida. Sobre a crueldade da realidade, Rosset a exemplifica relacionando-a com a crueldade do amor (em seu sentido estendido, como amor a outra pessoa, amor à vida, amor a si mesmo). No primeiro caso, o amor à outra pessoa, Alain de Botton, em seu Ensaios de amor (2012), entende que ―para os que amam a certeza, a sedução não é território em que se deva entrar‖ (p.22), pois cada sorriso, gesto, palavra ou expressão do ser amado podem levar a milhares de possibilidades. Possibilidades abertas pelo princípio da liberdade que é também cruel. Aquele que ama presta atenção a todos os menores sinais que respondam a questão central de suas investidas: saber se é ou não desejado. O amor é, antes de tudo, território da incerteza, do imprevisível, do mistério, da dúvida; território do ser e/ou não ser. A questão, diz Rosset, é que a verdade do amor não se coaduna com a experiência do amor. Alain de Botton observa algo semelhante quando fala sobre as contradições do amor: ―Nos apaixonamos porque desejamos escapar de nós mesmos com alguém que seja tão ideal quanto somos caídos. Mas, e se um ser tão perfeito um dia se virasse e decidisse que nos amaria? Só podemos ficar um tanto chocados‖ (2012, p. 44), pois se amamos a idealização de um ser que nos supera de algum modo, o paradoxo cruel surge quando esse mesmo ser retribui o amor a ele dirigido, e assim 28 passamos a duvidar de sua própria capacidade de discernimento e a ilusão começa a ruir quase que imediatamente. Rosset (1989), no entanto, vai mais longe. Para ele, o amor a si mesmo, aos outros e à vida tende a perecer progressivamente quando nos damos conta de que somos todos um projeto inacabado fadado à desaparição total, que algumas coisas que amamos irão durar provavelmente mais que nós, que o amor pelo outro está destinado a acabar, por decisão nossa ou não. Nesse sentido, A crueldade do amor (como a da realidade) reside no paradoxo ou nessa contradição que consiste em amar sem amar, em afirmar como durável o que é efêmero – paradoxo cuja forma mais simples seria dizer que algo, ao mesmo tempo, existe e não existe (p. 44). Como se o amor fosse dar o que não se tem; como se o amor fosse dotado de uma capacidade alquímica cruel de transformar algo em nada ou nada em algo. Se no mesmo arco de crueldade experimentamos desde o princípio de realidade às incertezas do amor é para mostrar como a noção mesma de crueldade é complexa e carregada de sutilezas que podem ecoar em diversos domínios da vida, do mais superficial ao mais profundo. Consciente ou inconscientemente, Artaud vivia no cinema alguns dos papéis que desempenhava na própria carne. Os diretores, conhecendo seu caráter conturbado e tipo físico singular, o convidavam para trabalhos nos quais toda a sua genialidade pudesse aflorar em contato mesmo com sua existência atribulada. Graziella e o amor não correspondido Mesmo as experiências de crueldade afetiva Artaud transportava para as telas, como nos filmes Surcouf, roi des corsaires (1924), Le juif errant (1926) e Graziella (1925). Os três filmes constituem uma espécie de trilogia romântica à qual Artaud oferece um rosto conjugando uma melancolia insondável, uma ternura infinita e um ardente e sombrio terror. No último, filmado na Itália, dirigido por Marcel Vandal e baseado na obra do poeta Alphonse de Lamartine, Artaud é convidado para representar o personagem do jovem pescador Cecco, noivo de Graziella, recebendo um certo destaque em um papel razoavelmente importante, no qual é focalizado em uma boa quantidade de grandes planos, ganhando alguma visibilidade no meio cinematográfico. Os diretores sabiam como explorar, a cada vez, seu rosto e corpo cheios de expressão e 29 sofrimento, para deles extrair o sentimento que desejavam: amor, ódio, ansiedade, desprezo, medo etc. Em Graziella (Figura 1), Artaud interpreta um homem apaixonado tendo que lidar com angústia de ver-se encurralado entre seguir a tradição familiar e casar-se com a moça escolhida pelo pai ou deixá-la ir para os braços daquele a quem verdadeiramente ama. Graziella, novela de Lamartine, conta a história do poeta e um amigo que, um belo dia, cansados da entediante vida cultural francesa de inícios do século XIX e vislumbrando aventuras em terras distantes, nas quais pudessem flanar livremente, conhecer novas pessoas, paisagens e costumes, tal qual andarilhos em busca de uma existência poética e uma educação sentimental, decidem embarcar como trabalhadores em um barco pesqueiro. Ao chegar à costa italiana, Lamartine encontra Graziella, por quem se apaixona perdidamente. A recíproca é verdadeira, mas Graziella, noiva de Cecco (Artaud), hesita em partir, abandonar a família e se entregar ao seu destino (a mesma decisão que Francesca Johnson (Meryl Streep) teria de enfrentar tempos depois em As pontes de Madison (1995)). Figura 1. Fragmentos de Graziella (1925), no qual Artaud interpreta o pescador Cecco. 30 Angustiado pela intuição de um sentimento novo e não revelado que paira como nuvem carregada em sua relação, com olhos alucinados e uma expressão ao mesmo tempo diabólica e inocente, frágil e poderosa, cabe a Cecco tomar a dolorosa iniciativa de tornar sua amada feliz, mesmo que isso signifique deixá-la livre para ir. Por essa época Artaud já enfrentara as desventuras do amor por meio de sua relação atribulada com a atriz romena Génica Athanasiou, e mais tarde conheceria mais a fundo outras crueldades amorosas com a escritora Anaïs Nin e a também atriz Cécile Schramme. As três cocotes Com a primeira manteve provavelmente a relação amorosa mais consistente de sua vida. Escreve-lhe constantemente cartas nas quais relata desde banalidades do cotidiano, seus projetos, encontros, trabalhos, até questões mais sérias como suas crises ciclotímicas, as internações e o grau de sua opiomania. Ela se preocupa cada vez mais com os delírios resultantes das aplicações de ópio, do qual ele era declaradamente dependente, chegando a fazer publicamente a defesa de sua liberação. Mas Génica é seu porto seguro, aquela que escolheu para compartilhar as angústias existenciais. Permaneceram juntos durante quase toda a década de 1920, rompendo definitivamente em 1928. Em 1940, quando Artaud é internado em Ville-Évrard, ela ainda parece permanecer desesperadamente em suas lembranças. Em março de 1933 conhece a escritora Anaïs Nin, por quem manifesta uma paixão fulminante. Anaïs alimentava uma certa imagem ilusória de Artaud a partir dos textos aos quais tivera acesso e da fama de homem genial e genioso que o precedia. Ela não cede aos apelos apaixonados de Artaud. Prefere viver no universo de sonho construído para si, infensa aos tormentos e delírios do jovem ator, que ao mesmo tempo absorve e repele, fascinante e inquietante que é. Vivem uma aventura mais intelectual e poética que propriamente afetiva e corporal, um amor abstrato. No universo de Anaïs, Artaud sente-se arrastado para um enredo de intrigas amorosas, ciúmes, incesto, tortura psíquica e crueldade, e não encontra estrutura emocional para investir no relacionamento. Rompem no mesmo ano. Um par de anos depois conhece a jovem atriz belga Cécile Schramme, com quem enceta um relacionamento tão intenso quanto breve, no contexto de um não raro momento de muita perturbação na vida do ator, cercado de mais delírios e internações. As palavras de Mèredieu sobre esse caso mostram um Artaud cada vez mais 31 atormentado: ―O relacionamento que ele procura é mais abstrato, mais desesperado do que nunca e muito amplamente marcado por um horror à sexualidade‖ (2011, p. 565), pois à essa época ele elaborara uma visão da mulher como marcada pela predominância dos instintos sexuais. Não há dados objetivos que sugiram uma certa homossexualidade latente em Artaud. Ele apenas parecia desviar seus desejos para outros projetos, ou talvez apostasse numa erotização difusa e geral no mundo, sem ligação específica com o apelo sexual. Artaud pretende seriamente casar-se com Cécile. Para isso, tenta mais uma desintoxicação por 33 dias, mas não resiste. Seu cortejo de internação e sua vida instável eram, na visão de uma família conservadora belga, inaceitável. Mais um amor que se acaba. A crueldade é uma vontade de potência Mas se, apesar de tudo, continuamos amando, essa é uma questão, talvez, de (boa) crueldade, pois as pequenas ou grandes marcas de vida que o corpo carrega e assimila podem significar um ganho de potência existencial e um sinal de abertura (e não de fechamento, o que seria uma má crueldade) para o outro e para o princípio da realidade. A crueldade como afirmação da vida que é – e, para evitar mal-entendidos, podemos dizer que a vida que é, em Artaud, não se confunde com uma substância, mas com um devir – pode ser facilmente identificada com uma questão nietzschiana por excelência. É nessa conjunção que trabalha Camille Dumoulié em seu livro Nietzsche y Artaud: por una ética de la crueldad (1996a), reconhecendo a influência do escritor alemão no pensamento artaudiano. Artaud advertiu, certa vez, para não o culparem pela utilização da crueldade em sua arte; culpem antes ao mundo, que é cruel, da mesma forma que Picasso havia culpado Franco e seu regime fascista e sanguinário por tê-lo inspirado a pintar a Guernica. Artaud viveu o drama de duas guerras, ouviu sobre os campos de concentração, foi internado diversas vezes em clínicas psiquiatras e submetido a dezenas de tratamentos de eletroconvulsoterapia (ECT). Mas, da mesma forma que tratamos, mais acima, de uma boa e uma má crueldades, Dumoulié pensa em termos de uma crueldade perversa e outra pura. A primeira se caracterizaria por uma ausência de rigor, uma entrega e um esmorecer frente ao sofrimento, um fechamento, dentro de uma estabilidade artificial, para o mundo, o outro e suas possibilidades, formando, assim, sujeitos ressentidos e incapazes de viver, tragados por uma vontade de nada. 32 A crueldade pura, por sua vez, seria rigorosamente consciente (não existe crueldade sem consciência), natural e inocente, o que não quer dizer ingênua. Segundo Alexandre de Oliveira Henz (2012, p. 105), ―os movimentos inocentes afirmam uma potência criadora (...) A ênfase da vida se volta à criação, ela é o foco‖, enquanto a ingenuidade opera na esperança despótica de um mundo girando em torno de demandas narcísicas. De novo, uma funcionando na abertura, a outra, no fechamento. Assim, para Dumoulié (1996), a crueldade artaudiana é equivalente à ―vontade de poder‖ em Nietzsche, os dois termos expressando uma lógica da vida. Segundo o autor, a crueldade como metáfora da vida representa a impossibilidade constante para o homem de estar de acordo consigo mesmo e com mundo, e essa impossibilidade de acordo revelar-se-ia pelo excesso. A angústia do ser lançado ao mundo, seu desamparo estrutural, esconderiam, na verdade, um ―excesso cruel‖ como dimensão constitutiva do homem, mesmo quando opera no registro de um nada de vontade. Tal condição seria responsável por manter uma abertura para um mais além, o qual seria alcançado por meio de uma ascese (rigor) e uma ética da crueldade que animariam nossa vontade de acesso ao real. Dessa forma, os dois autores pensavam a crueldade ―como o signo de uma necessidade metafísica de reconciliação com um real que havia sido ocultado: sonho de uma harmonia recobrada cuja expressão primeira foi o desejo de reconciliação entre a natureza e a cultura‖2 (DUMOULIÉ, 1996a, p. 33). E é justamente o excesso que impede a reconciliação total (mas apenas provisória, por meio do êxtase ou da arte) em um uno primordial e mantém aberta a possibilidade do devir permanente. Por outro lado, o perigo do excesso é que ele pode levar ao risco da dissolução completa dos limites do sujeito e conduzí-lo à beira do abismo da loucura (ou mesmo lá atirá-lo), como de fato aconteceu com Nietzsche e Artaud. Por dois motivos. Como aponta Rosa Dias (2011), em sua obra Nietzsche, vida como obra de arte, para o pensador alemão, existir é criar, e para que a criação ocorra é indispensável a condição da embriaguez (força dionisíaca). Essa condição fisiológica prévia age como uma tensão de forças que cresce sem parar e produz um estado de plenitude e superabundância de vida que explode em ações criadoras. Por outro lado, se a criação parte de uma vontade criadora, 2 Todas as traduções serão de nossa responsabilidade, caso indicação em contrário. No original: “como el signo de uma necesidad metafísica de reconciliación con un Real que había sido ocultado: sueño de uma armonía recobrada cuya expresión fue el deseo de reconciliación entre la naturaliza y la cultura”. 33 Para que haja criação constante, para que haja vida, é preciso que a forma se desfaça, não dure infinitamente, e que o movimento de vir à forma não cesse jamais. Nada escapa à destruição, nem mesmo o devir, mas a destruição do devir é condição de sua durabilidade (p. 82). Em outras palavras, a vontade criadora nietzschiana necessita tanto da força dionisíaca quanto da apolínea, que aquela chama em seu socorro para fixar as formas mesmo que provisoriamente, de modo que ordem e desordem, construção e destruição permanentes, territorialização e desterritorialização, caos e cosmos, vida e morte sejam elementos inseparáveis no processo criador. São, portanto, forças de crueldade. Heliogábalo encontra Dionísio. Como diz Artaud sobre seu anarquista coroado, "Nada há de gratuito na magnificência de Heliogábalo, nem em seu maravilhoso ardor pela desordem, que não é senão uma aplicação de uma ideia metafísica e superior de ordem, quer dizer, de unidade‖ (OC, vol. VII, 1982, p. 94) 3 . O espírito dionisíaco comunica com o ser que se esconde sob a aparência e para além das formas individuais, provocando um êxtase, uma identificação mística com uma potência misteriosa, uma embriaguez. Os sofrimentos de Dionísio representam uma variante mitológica daquilo que Antonin Artaud chama de crueldade cósmica, cujos elementos Artaud - assim como Nietzsche - vai buscar nas tragédias gregas, tais como a representação de tudo aquilo que há de terror, de crueldade, de mistério, de negação e de fatalidade no transfundo do curso da vida. Não obstante, segundo Gouhier (1974), se podemos reconhecer facilmente o espírito dionisíaco em Artaud, o mesmo não se pode dizer do espírito apolíneo. Nesse sentido, Artaud é mais radical no delineamento de sua noção de crueldade. E aqui se revela sua originalidade frente ao pensamento do filósofo alemão: aquilo que o espírito apolíneo introduz na tragédia, de acordo com Nietzsche, ou seja, a necessidade de controlar a embriaguez e definir os seus limites, é precisamente o que Artaud pretende eliminar para encontrar a tragédia em sua pureza. Se a vida é uma constante luta entre forças cósmicas, entre princípios de bem e mal ou instintos e pulsões, lá onde Nietzsche vê um antagonismo no seio mesmo da natureza como um imperativo da vontade de viver, Artaud observa justamente o efeito 3 « Rien de gratuit dans la magnificence d’Héliogabale, ni dans cette merveilleuse ardeur au désordre que n’est que l’application d’une idée métaphysique et supérieure de l’ordre, c’est-à-dire de l’unité ». 34 de uma cultura que oprime essa natureza e uma astúcia da razão histórica em uma civilização na qual a arte caminha na contracorrente da vida. Em suma, embora o espírito apolíneo esteja presente nos dois autores, para Artaud, o espírito apolíneo nada mais é que uma personificação da cultura ocidental. É nesse ponto que Heliogábalo e Dionísio se separam: este precisa do efeito de cultura para fabricar algum grau de ordem, enquanto o primeiro empreende uma desmoralização sistemática e alegre da consciência ocidental, e teria levado ao extremo esta subversão se pudesse ter vivido mais tempo 4 (OC, vol. VII, 1982). Para Artaud, trata-se de utilizar a crueldade e as forças destrutivas a serviço da existência. Se viver é um processo constante de criação, não deixa de ser uma violência contra alguma coisa, seja o mundo ou o pensamento instituído e naturalizado. A crueldade é inerente e necessária à vida: os crimes, a violência, os cataclismos são normais e indispensáveis. Mas para não ser destruído por eles é preciso canalizá-los por meio da arte, nos planos abstratos do teatro e do cinema, da escritura e da pintura (Dumoulié, 1996b). A isso Comte-Spomville (2000) chama de sabedoria trágica, a única aceitável hoje em dia: uma atitude frente ao mundo que não finge que o pior não existe, como se Auschwitz não tivesse existido, como se o sofrimento das crianças e a decrepitude dos velhos não existisse. O importante, em meio a tudo isso, é tentar viver com um doce desespero. Crueldade e violência: entre mortos e alucinados Do ponto de vista mais prático, Alain Virmaux (1984) observa que, embora pouco solicitado, é difícil instituir um discurso sobre a violência que não se refira, direta ou indiretamente, a Antonin Artaud. Em primeiro lugar, diz Virmaux, pelos sinais exteriores oferecidos pelo seu comportamento, impressões registradas e disseminadas no imaginário coletivo pelas suas confissões, testemunhos de amigos, intervenções em eventos públicos, textos publicados desde o período surrealista em meados dos anos 1920 (contra as religiões, as instituições, a família, a medicina, às universidades etc.), mas, principalmente, por meio de suas aparições no cinema, marcadas pela representação de personagens heroicos como Marat (Napoleão, 1925-1927), alucinados, como Savonarola (Lucrécia Bórgia, 1935) e loucos, como o soldado de A cruz de 4 Heliogábalo reinou sobre Roma entre 218 e 222 D.C. Foi assassinado aos 18 anos numa operação envolvendo familiares e a guarda pretoriana. 35 madeira (1930-1932), apenas para citar alguns. São trabalhos que parecem ilustrar bem a ideia que dele faziam seus contemporâneos, não raro convidado para atuar em papéis de louco, furioso, delirante, profeta do apocalipse, muito próximos daquele do grande blasfemador que ele naturalmente encarnava, Porque os testemunhos abundam sobre seu comportamento social, e todos eles convergem: Artaud aparece como um homem desconcertante, crepitante, temperamental, imprevisível, um homem que injuriava mulheres e casais em plena rua – ―fornicação e putaria, cadelas no cio, ai de ti!‖ (segundo Michel Leiris) – ou que brandia em público um cajado de ferro ou uma faca trançada 5 (VIRMAUX, 1984, p. 34). Em suma, um homem em luta constante contra a ordem estabelecida. Mas não apenas. Por isso, em segundo lugar, Virmaux (1984) aponta a violência que retroage sobre o próprio autor e se aplica igualmente a ele mesmo e à sua produção artística. Nenhum autor foi menos complacente em relação a sua obra do que o próprio Artaud, criticando severamente desde os textos da juventude até aqueles que acabara de escrever. Nesse sentido, embora tenha escrito 400 cadernos, é difícil mensurar quanto de sua obra não se perdeu devido a seu violento órgão de controle interno. Se nada nem ninguém são poupados, se a própria vida é colocada em questão em seus fundamentos, é porque a violência tem raízes profundas no pensamento artaudiano (Figura 2). Longe de ser uma ressentida acusação de uma sociedade que não reconhece o lugar e a importância do poeta e ator, ela aparece como uma exigência radical de 5 “Car les témoignages abondent sur son comportement social, et ils convergente tous: Artaud y apparaît comme un individu déconcertant, rugissant, emporté, imprévisible, un homme qui invectivait femmes et couples em pleine rue – « fornication et putasserie, chiennes en rut, malheur à vous ! » (d’après Michel Leiris) – ou qui brandissait em public une canne ferré ou un couteau acéré ». Figura 2. Artaud interpreta um intelectual em Verdun, visões da história (1927). A estupidez da guerra o revolta, e irá matá-lo antes que possa entendê-la. 36 sublevação absoluta, que procede ela mesma de uma tragédia interior sentida como maldição. E aqui temos uma importante ligação com o terceiro ponto da ideia de violência em Antonin Artaud. Se há o reconhecimento por parte deste de uma ameaça externa permanente, fruto de um período conturbado da história, o qual Eric Hobsbawn denominou de Era dos extremos (1995), há também, sobretudo, a guerra travada dentro dele e contra ele. É impossível para Artaud conceber a existência e o universo que não seja em termo de conflito generalizado: ―tudo o que age é uma crueldade‖, afirma em O teatro e a crueldade (2006b, p. 96), pois a vida como criação e afirmação é sempre um correr riscos, um nadar contra a corrente. O sofrimento que a ele foi infligido torna-se o reconhecimento de um mal universal contra o qual é preciso lutar sem descanso. É como se toda sua vida e obra derivassem, portanto, de sua própria situação angustiante de estar no mundo. Seus escritos são, do começo ao fim, uma tentativa de denunciar esse sofrimento e ao mesmo tempo fugir da impotência criadora que dele resulta. A dor pessoal (física e existencial) vai pouco a pouco impor a ideia de um princípio do mal que o atinge desde fora, vindo de cada vez mais longe, da guerra, do universo, de um deus vingativo. Seu conflito com o mundo torna-se então ontológico, metafísico e gnóstico. Artaud se considerará como um ser de vocação crística, designado ao sacrifício, eleito para assegurar a redenção da humanidade. Pensa-se como um vidente: Porque eu prevejo a Destruição total [da Terra] pela Água, a Terra, o Fogo, e por uma estrela que ocupará a superfície total do Ar onde o Espírito do Homem se banhou, eu prego assim a Destruição total, mas Consciente e Revoltada‖6 (OC, vol. VII, 1982, p 143, grifo do autor), diz o autor, como quem forja progressivamente a necessidade de uma revolta permanente, uma violência destinada a assegurar sua própria sobrevivência como também a de todos os homens. Porém, trata-se de uma violência perfeitamente assimilável, com método, consciência e rigor, à qual ele chamará de crueldade. As “sutilezas metafísicas” da crueldade 6 « Parce que je prévois la Destruction totale par l’Eau, la Terre, le Feu, et par une Étoile qui occupera la surface totale de l’Air où l’Esprit de l’Homme a baigné, je prêche aussi la Destruction totale, mais Consciente et Révoltée. » 37 Para tentar interpretar a aplicação da crueldade no cinema artaudiano é preciso, portanto, partir das sutilezas da noção utilizada pelo autor. Michel Erman, eu seu La cruauté – Essai sur la passion du mal (2009), adverte que, na história do pensamento, a crueldade foi sempre considerada não como uma realidade, mas como uma paixão inexplicável, até mesmo escandalosa, objeto de comentários sumários que a exclui da ordem do humano, um ponto cego do pensamento, próprio do estado de natureza, loucura ou barbárie. Nos ensaios de Primo Levi (1988), Hannah Arendt (1999) ou Giorgio Agamben (2010), apenas parar citar três, a crueldade é revelada como a recusa de reconhecimento do outro como um igual em dignidade. As vítimas da crueldade totalitária, por exemplo, são excluídas de toda humanidade, relegadas a categorias de coisas passíveis de serem desumanizadas e em seguida exterminadas. No limite, elas receberam aquilo que mereciam. Os traços de burocratização, racionalização e banalização do mal, vistos mais recentemente nos atentados e ameaças terroristas que pairam sobre Oriente Médio, Europa e Estados Unidos permitem a Erman questionar se ainda é possível, hoje, definir a crueldade como uma violência gratuita e cega transbordando toda e qualquer razão. No entanto, se levarmos em consideração a origem etimológica do termo e seus usos na história, perceberemos as variações em sua construção e a complexidade da noção: cruor designa inicialmente sangue derramado; a derivação crudus é associada aquele que ama o sangue; crudelis diz-se do caráter inumano de uma ação, e enfim crudelitas, que deságua em crueldade, implicando a vontade de fazer sofrer. Por outro lado, ―Os autores latinos opõem em geral a cruor o termo sanguis, que pode designar tanto o sangue que circula no corpo quanto força vital‖ (ERMAN, 2010, p. 22), uma distinção que remonta a ideia freudiana de pulsões de vida e de morte, mas que também pode levar a considerações de caráter psíquico, moral, político, antropológico e ontológico. Artaud, por sua vez, reúne todas essas abordagens em uma categorização metafísica real da crueldade. Em que pese a materialidade da crueldade humana – pois o anjo nunca está muito distante da besta –, o poeta francês encontra uma idealidade que se constitui entre o real e o imaginário. Do ponto de vista metafísico, portanto, a crueldade pode ser tida como a tentativa de encontrar a harmonia de uma unidade perdida, que o autor tenta desenvolver ao longo de sua obra. Isso significa que, se a consciência é estruturada pela linguagem, para fugir de seus limites e encontrar a potência de uma origem encoberta sob camadas de civilização é importante fazer apelo 38 a certas ideias incomuns e de ordem cósmica, ―cujo destino é exatamente o de não poderem ser limitadas, nem mesmo formalmente esboçadas‖ (ARTAUD, 2006b, p. 102). Ideias essas referentes à Criação, ao Devir e ao Caos original, com o objetivo de criar uma espécie de equação apaixonante entre o Homem, a Sociedade, a Natureza e os Objetos. Trata-se, aqui, de explorar uma intelectualidade nova e mais profunda, escondida por trás dos gestos, do corpo, da palavra, do pensamento racional, do sonho, do inconsciente, das imagens e dos espaços, em suma, da vida e da cultura. Inevitavelmente Artaud aproxima-se de um certo ateísmo integral apregoado pelo Marquês de Sade, no sentido de libertar o pensamento de toda e qualquer razão normativa pré-estabelecida (KLOSSOWSKI, 2008), o que seria um pressuposto para a desintegração do homem tal qual a racionalidade ocidental o concebe. Esse é o fio condutor que percorre obras artaudianas como Heliogábalo, o anarquista coroado (ensaio histórico-filosófico), Os Cenci (teatro), Lucrécia Bórgia e A concha e o clérigo (cinema). A crueldade interroga o princípio de todo julgamento moral, ao mesmo tempo em que coloca em questão as distinções absolutas entre, de um lado, a natureza e suas pulsões e, do outro, a cultura e seus interditos. Seria o caso de admitir, em Sade, de uma vez por todas, que o mal é irredutível ao homem em sua relação com o outro, sem que isso se refira a uma falta moral ou metafísica, e assim, constatar a fragilidade do estado da civilização, um mal-estar permanente escondido por baixo de um véu de Maya. Freud no divã de Artaud Se voltarmos à ideia da memória transgeracional pensada por Freud (2012), compreenderemos que ―na vida psíquica nada do que uma vez se formou pode perecer‖ (p. 50), pois tudo permanece conservado de alguma forma e pode ser recuperado novamente sob condições apropriadas. Seria, talvez, o caso de usar a crueldade como meio de recriar essas condições. Freud mesmo revela as contradições quase insuperáveis da civilização moderna: vivemos pelo princípio do prazer e, no entanto, o prazer mais intenso provém da satisfação dos impulsos não domesticados. Mas a própria cultura, que pretende nos proteger das ameaças oriundas das fontes de sofrimento, é a mesma que estabelece as regras para que a vida, sob a égide do princípio do prazer, seja refreada, causando, assim, mais sofrimento. 39 Nesse sentido, a crueldade artaudiana pode ajudar a responder três questões importantes colocadas por Freud em seu clássico O mal-estar na cultura. Para o médico e psicanalista vienense, as três fontes de nosso sofrimento estão: 1) no reconhecimento do poder superior da natureza; 2) na consciência da fragilidade do nosso próprio corpo; e 3) na deficiência das disposições que regulam os relacionamentos dos seres humanos na família, no Estado e na sociedade (2012, p. 80). Nesse diálogo imaginário que ora entabulamos entre os dois autores, Artaud propõe, em primeiro lugar, por meio de sua arte, a reconciliação entre Homem e Natureza, ou entre Natureza e Cultura. Alex Galeno (2005), lendo em chave complexa a obra artaudiana, alerta para uma revolta que tratará dos dramas da cultura e da natureza ou, ainda, do embelezamento psíquico e estético da vida para ajudar a enfrentar, com determinação e leveza, os dilemas de nosso tempo trágico e a trágica incerteza da morte (p. 98), numa tentativa de refazer a sutura entre sapiens e demens, o ser racional e o intuitivo, uma poética existencial contra a hipertrofia do prosaico da vida. É em sua viagem ao México, em 1936, que Artaud procura realizar esse encontro com mais radicalidade, quando parte em busca dos Tarahumaras, os homens da Raça Princípio. Segundo seu relato, Se os Tarahumaras são fisicamente fortes como a Natureza, não será porque vivam materialmente perto dela, mas são feitos do mesmo tecido que a Natureza e, como todas as manifestações autênticas da Natureza, nasceram de um primitivo amálgama (2000, p. 73), estabelecendo com ela uma espécie de Inconsciente Natural. E se não construíram uma civilização tal qual a conhecemos, com suas comodidades físicas e materiais, é porque a desprezam, ao mesmo tempo em que mantêm o mais elevado conceito do movimento filosófico da natureza. Problematizando a questão dos saberes científico e da tradição, Maria da Conceição de Almeida (2010) adverte que, ao lado do conhecimento científico, as populações tradicionais, ao longo de sua história, têm desenvolvido e sistematizado saberes diversos que lhe permitem responder a problemas de ordem material e 40 utilitária tanto quanto têm construído um rico corpus da compreensão simbólica e mítica dos fenômenos do mundo (p. 48). Manter e recuperar a diversidade de culturas e saberes é, portanto, um processo de resistência contra o estabelecimento de uma monocultura da mente levado a cabo pelo Ocidente desde o início das grandes navegações. Em segundo lugar, Artaud propugna um resgate das potencialidades de um corpo preso em modernos dispositivos disciplinares e de controle. O que há é uma necessidade inelutável de fazer o corpo dançar, pois ―No estado de degenerescência em que nos encontramos, é através da pele que faremos a metafísica entrar nos espíritos‖ (ARTAUD, 2006b, p. 114). É como se tudo começasse e terminasse no corpo, no domínio da experimentação, e para isso é preciso reabilitar a dimensão corporal do humano e salvá-lo da disjunção que privilegia o elemento ―alma‖ em detrimento do ―corpo‖. O homem se insere na vida por meio do corpo, superior e anterior à consciência, um corpo pensador. Michel Serres (2004) chega a afirmar que o corpo é o próprio inconsciente. Artaud vai pensar na ideia da criação de um corpo superior, a partir da experimentação do corpo sem órgãos 7 , bem como por meio de uma poética espacial que explore gestos, música, movimento, palavras, luzes, enfim, tudo aquilo que possa contribuir para fazer um corpo pensador. A partir do refazimento do corpo Artaud pretende também reinventar o homem, sua anatomia, liberar o corpo das amarras que o prendem ao organismo, ao juízo, às máquinas julgadoras. Para se fazer uma revolução a partir do plano corporal seria preciso reencontrar as possibilidades esquecidas do corpo, buscar reatar laços com o corpo do começo, o corpo da terra, experimentá-lo, recriá-lo em um conjunto de práticas (Figura 3). Como observa Daniel Lins (2011), o projeto artaudiano é o de destruir o corpo original, imperfeito, escravizado, domesticado: 7 Trataremos dessa questão com mais detalhes na última sequência. Figura 3. Hans Bellmer e os "anagramas do corpo". 41 o corpo deve ser modificado, refeito pelo homem que, ao dar-lhe uma forma nova, escolherá a realidade. Mais ainda: é necessário reinventar o rosto humano, visto que Deus fracassou, se enganou na sua tarefa (p. 64). Experimentar o corpo como zonas de intensidades, colocando-o em relação com forças imperceptíveis, inapreensíveis, inefáveis, intoleráveis, é uma das tarefas do cinema da crueldade. Portanto, a ideia de revolução em Artaud está intimamente ligada a transformação do corpo, desarticulando os condicionamentos e disciplinas corporais aos quais estamos enredados e cujos ecos reverberam no mais profundo do organismo. A noção de crueldade aplicada ao cinema, teatro, literatura ou à própria posição da vida frente à cultura poderia justamente ser mobilizada na desconstrução do organismo produzido pelos dispositivos disciplinares, permitindo uma modificação integral da condição ontológica do homem na terra e a produção de estados de ser passíveis de agir na constituição de uma nova cultura e sociedade (QUILICI, 2004). A reconstrução do corpo passa por um processo de reformulação da alma/espírito, que retroage na construção de um novo corpo, convocando tanto a materialidade da transcendência quanto a espiritualidade da imanência conjugadas numa espécie de ciência das paixões: ―Saber que uma paixão é matéria, que ela está sujeita às flutuações plásticas da matéria, dá sobre as paixões um domínio que amplia nossa soberania‖ (ARTAUD, 2006b, p. 154). Significa dizer que todas as emoções têm bases orgânicas, e a importância do teatro e do cinema, cada qual à sua maneira, é saber qual o melhor método para tocar o corpo do espectador a fim de lançá-lo num estado de transe e abertura. No terceiro momento do diálogo Freud-Artaud, que trata da deficiência das disposições que regulam os relacionamentos dos seres humanos na família, no Estado e na sociedade, relembremos uma passagem de Daniel Lins (2011) esclarecedora: ―Artaud queria repensar o corpo, experimentando-o, longe da polícia das famílias, do olhar do Censor, isento de uma interpretação que se compraz com uma série de constatações sob o domínio dos signos e significados‖ (p. 63). Artaud, embora inconscientemente, alinhavava as três questões elaboradas por Freud: uma cultura que não se opõe à natureza, permeada por um corpo sem órgãos em constante territorialização-desterritorialização e capaz de transformar a sociedade a partir deste movimento de construção de um plano de consistência própria do desejo. 42 Nesse diapasão, a crueldade poderia servir como ―cura cruel‖ para o mal-estar da cultura, principalmente se levarmos em conta a advertência de Joel Birman (2012), para quem O corpo é o registro antropológico mais eminente no qual se anuncia na atualidade o mal-estar. Todo mundo hoje se queixa de que o corpo não funciona a contento. Algo não está bem com o corpo, que se transforma na caixa de ressonância privilegiada do mal-estar (p. 69). Em Surrealismo e Revolução (WILLER, 1983), palestra pronunciada no México em 1936, Artaud declara sua revolta contra todas as formas de opressão material ou espiritual, seja o pai, a pátria, o patrão, a família, a religião, o capital ou os valores da burguesia francesa. E se as aparências permaneciam intocadas, é porque a revolta preconizada pelos surrealistas pretendia atingir as coisas naquilo que elas tinham de mais secreto, liberando e descongestionando fisicamente a vida. É nesse sentido que podemos pensar numa revolta que começa e termina no corpo, no que há de mais íntimo e ao mesmo tempo universal. Pois todos nós possuímos um corpo, seja qual for, e com ele construímos singularidades e resistências a partir das nossas experiências individuais ou coletivas. Crueldade integral Daí a pertinência do apelo à crueldade, ―mas num plano vasto, e cuja amplidão sonda nossa vitalidade integral, nos coloca diante de todas as nossas possibilidades‖ (ARTAUD, 2006b, p. 97, grifo nosso). Para que essas possibilidades de vitalidade integral (que inclui o corpo, os sentidos, as paixões, as emoções, os afetos, o pensamento, as ideias, crenças etc.) possam ser desenvolvidas, seria preciso vencer o obstáculo que o próprio corpo enfermo pode representar. Portanto, mais importa destruí- lo que encontrá-lo, e inventar um novo corpo a partir da guerra que será travada contra ele mesmo. Esse novo corpo traria em si uma renovação da linguagem e uma semiótica do corpo. Pois, como observa Artaud em Cartas sobre a linguagem (2006b), ao lado da cultura pelas palavras há uma cultura pelo gesto. A dificuldade reside no fato de a semiótica do corpo não poder constituir jamais uma significação: o mais ―próprio‖ dele seria o mais próximo do incomunicável, pois no momento em que se fala já não há mais corpo. Quando diz ―crueldade‖, Artaud está falando de ―vida‖, ou seja, movimento, ato e emanação perpétuos, diferente da 43 ossificação da palavra. De modo que, como anotaram Deleuze e Guattari (2010), o corpo sem órgãos não pode ser concebido como um conceito ou uma noção, mas um conjunto de práticas, algo perto do irrepresentável. No poema Post-scriptum, vemos uma imagem aproximada dessa ideia: Quem sou eu?/De onde venho?/Eu sou Antonin Artaud/e basta eu dizê-lo/ como sei dizer/e imediatamente/ vocês verão meu corpo atual/voar em pedaços/refazendo/sob dez mil aspectos notórios/um corpo novo/no qual vocês não poderão/jamais/me esquecer‖ (OC, vol. XIII, p. 118, 1974). É apenas em 1932, três anos antes de abandonar o cinema, que Artaud utiliza pela primeira vez o termo crueldade para nomear seu projeto de teatro 8 , meio privilegiado para expressão de sua linguagem cruel. Nunca lançou mão dele para denominar qualquer outra de suas práticas artísticas, seja cinema, pintura, desenho ou literatura. No entanto, a ideia da crueldade já o havia escolhido 9 desde os seus primeiros escritos - devido aos temas e obsessões que o perseguirão até o fim da vida - e espalhou- se por todos os domínios criativos de sua obra, vazando para sua vida mesma e à condução de suas atitudes frente à cultura. Por isso, o uso da palavra não acrescenta muito à sua visão de mundo, que sempre pressentiu nas forças obscuras que animam o universo um mal inerente ao ser, reenviando ao problema da ―crueldade cósmica‖. Trata-se da ideia de que a lei do universo é um movimento permanente. É nesse sentido que Dumoulié (1996a) localiza o corpo sem órgãos no entre-dois-corpos: o do corpo formado e que não é mais e aquele que ainda não é corpo, mas está a ponto de criar-se. É como morrer vivendo em lugar de viver morto. Cioran e o homem orgânico Emil Cioran, em seu Nos cumes do desespero (2011) parece, por vezes, trabalhar na mesma chave da crueldade utilizada por Artaud: o caos, o devir, a luta entre o bem e 8 Outros nomes como Teatro Alquímico ou Teatro Metafísico também foram aventados, mas logo descartados. 9 Lembremos de Edgar Morin (2010), quando afirma que a ideia de complexidade o perseguia desde a infância. 44 o mal 10 e contra a forma ideal, um desesperar de quem não mais espera e faz da vida uma força ativa no sentido da criação, em direção a uma criação de sentido, mesmo que provisório 11: ―Não há em mim nenhuma vontade na direção da forma, de cristalização, ou de um ideal. Por que não saio voando, por que não crio asas? (...) Sinto em mim tanta fluidez, que me surpreendo como não derreto e escorro‖ (p. 103). Seu pessimismo implacável canaliza suas forças para a vida vivida na intensidade da experiência corporal e espiritual do instante 12 , sem ressentimentos do passado, sem uma memória de Funes, praticando o esquecimento como uma força plástica regeneradora, sem ilusões de um futuro que só existe em hipótese. Fórmula do amor fati (NIETZSCHE, 2003) para a grandeza do homem: não apenas suportar ou dissimular aquilo que é necessário, mas amá-lo mesmo assim. O Theatrum philosoficum de hoje exibe o espetáculo da crueldade, apresentado com a participação especial de três dos grandes poetas-filósofos da crueldade: Artaud, Cioran e Nietzsche. Os três, em comum, dispõem do apetite de vida para a criação em meio ao caos que constantemente destrói e reconstrói a existência; os três, ao contrário dos que vivem na temperatura normal da vida, se consomem em temperaturas em que a vida não resiste, em que só se pode respirar estando com um pé do outro lado da vida; os três, seres líricos profundos, lutam diante do refinamento de uma cultura aprisionada em formas e limites que mascaram tudo, e assim fazem do lirismo uma expressão bárbara, cujo valor é de ser só sangue, sinceridade e chamas; os três entram na classe do homem orgânico, daqueles que experimentam a vida e o corpo, em contraposição ao homem abstrato (CIORAN, 2011): Diante do homem abstrato, que pensa pelo prazer de pensar, surge o homem orgânico, que pensa sob a determinação de um desequilíbrio vital que está além da ciência e da arte. Gosto do pensamento que mantém o aroma de sangue e de carne e prefiro mil vezes, à abstração vazia, a reflexão gerada por uma efervescência sexual ou por uma depressão nervosa (p. 34). Artaud vai um pouco além quando, em sua busca da fecalidade, da organicidade humana, pretende acabar com o julgamento de Deus, e declara: ―Onde cheira a merda/ 10 Segundo Nietzsche (2003), “Zaratustra foi o primeiro a ver na luta entre o bem e o mal a verdadeira roda motriz na engrenagem das coisas (...)” (p. 146). 11 Diz Cioran: “Criar significa salvar-se provisoriamente das garras da morte” (p. 21). 12 Lembrando que a experiência do instante não se limita à superfície do presente, mas ressoa em camadas profundas da existência, liberando suas várias temporalidades. 45 cheira a ser‖13 (OC, vol. XIII, p. 83, 1974). Além do gosto de sangue, de carne, das vísceras, existe o que há de próprio a todos os homens orgânicos, o fato de que, apesar da diferença, a fecalidade nos une a todos, experiência primordial que compartilhamos como um segredinho sujo. Como observa Peter Sloterdijk (2012), temos uma relação mais ou menos conturbada com nossa própria merda: ―A dissociação de nossa consciência de sua própria merda é o mais profundo adestramento em nome da ordem; ela nos diz o que deve acontecer de modo escondido e privado‖ (p. 214). Aquele que se recusa a se admitir como um produtor de dejetos não pode praticar a crueldade, justamente por não ter sido tocado por uma consciência da natureza que avalia de maneira positiva o lado animal do homem. Se Nietzsche não poderia crer que num deus que não dançasse (dançar com os pés, as mãos, a cabeça, o corpo, mas também com o pensamento e as palavras), Artaud, à sua maneira, prefere formular a questão de deus da seguinte forma: ―É deus um ser?/Se o for, é merda./ Se não o for, não é.‖ (in: WILLER, 1983, p. 153). Em sua metafísica imanente, a questão primordial do ser é relacionada diretamente com os movimentos do corpo e da carne. Por isso que onde cheira a merda cheira a ser. Preferir cagar é escolher viver, e essa seria uma bela imagem da crueldade. A merda é capaz de promover a ruptura com o idealismo e a abstração puros e inspirar nossa competência para aquilo que é indesejado, inútil, improdutivo, ativando o reconhecimento para a nossa parte maldita 14 . Em uma sociedade voltada para o consumo, na qual as leis do mercado penetraram verticalmente quase todos os domínios da vida, até mesmo o do sonho 15 , praticar a atividade improdutiva, desprovida de finalidade em si mesma é quase um ato de resistência. De modo que podemos pensar a noção de crueldade também como um ato de resistência. Rumo à estação crueldade 13 « Là où ça sent la merde/ça sent l’être ». 14 Segundo Georges Bataille (2013), grosso modo, a atividade humana pode ser dividida em duas partes distintas: a primeira visa a atividade produtiva para a conservação da vida, enquanto a segunda, a parte maldita, é representada pelos dispêndios ditos improdutivos, como luxo, jogos, guerras, artes, atividade sexual perversa (desviada de sua finalidade genital), enfim, aquelas atividades que têm seu fim em si mesmas. 15 Sobre isso, ver CRARY, Jonathan. 24/7. Capitalismo tardio e os fins do sono. São Paulo: Cosac Naify, 2014. 46 Tudo o que foi exposto acima nos autoriza a elaborar uma demarcação segura de crueldade segundo Antonin Artaud? Dificilmente. Jamais chegaríamos perto de esgotar o assunto, embora tenhamos estabelecido alguns princípios importantes para se abordar o tema. Além disso, aprisionar Artaud em alguma definição, qualquer que seja, seria uma traição com o autor. Como dito anteriormente, Artaud pensa mais detida e sistematicamente a relação da crueldade com o teatro, mas o nosso problema, como veremos no decorrer do texto, consiste em desdobrar a ideia de crueldade para a questão das imagens no cinema, o que significa explorar outros elementos pouco desenvolvidos por ele e por meio dos quais Artaud tentou elaborar, embora de maneira incipiente, em traços e vestígios, outras possibilidades para exprimir a força da poesia. Assim, a crueldade artaudiana é sobretudo uma metafísica da carne 16 , ligada ao sofrimento de existir, uma luta contra aquilo que nos impede de criar. Enquanto o corpo anatômico, articulado, organizado e sexuado faz barreira à carne, que é também uma matéria espiritual, espaço orgânico atravessado pela pulsão de vida, da mesma forma a linguagem articulada faz barreira à continuidade do sentido e do pensamento, que se experimentam também na carne (DUMOULIÉ, 1996a). Podemos, sem prejuízo, comutar o termo ―metafísica da carne‖ em ―metafísica em atividade‖ ou ―metafísica do gesto‖, todos vez ou outra utilizados por Artaud. Ou seja, uma linguagem que desenvolve ao limite todas as suas consequências físicas e poéticas tanto na consciência quanto no corpo. Quando utilizada de modo excepcional e incomum, religiosa e mística, articulando espaço, gesto e voz, essa linguagem seria capaz de causar comoções comparadas a um grande medo metafísico. É a isso que ele chama linguagem sob a forma de Encantamento e destinada aos sentidos num nível superior, pois ―Esta ideia de arte desligada, de poesia-encantamento que só existe para encantar o lazer, é uma ideia de decadência e demonstra claramente nossa força de castração‖ (ARTAUD, 2006b, p. 87). O mal está principalmente no corpo humano tal como existe e funciona. Artaud proclama a necessidade de negar o corpo atual para reconstruir um novo corpo purificado. Mas para purificá-lo é preciso antes destruir tudo aquilo que o aprisiona: religiões, doutrinas, instituições, individualismo etc. A crueldade artaudiana, portanto, 16 Conforme observa Dumoulié (1996a), quando Artaud afirma que “há um espírito na carne” (OC, I**, p. 50, 1976), seu axioma encerra três pontos importantes sobre sua ideia de metafísica: trata-se de 1) uma técnica espiritual, 2) uma estratégia de conhecimento e 3) uma poética, que visa a produzir no seio da linguagem uma semiótica do corpo. 47 apregoa a exigência de uma revolução total, não somente política ou socioeconômica, mas na integralidade do homem em sua multidimensionalidade. Outra característica importante da crueldade foi captada por Kuniichi Uno (2000): cruel é antes de tudo o pensamento. ―Pensar, que consistiria no fato de dividir, compor, associar, determinar, diferenciar, identificar, se transforma em um processo estranho, indeterminado‖17 (p. 42). Mas Artaud vai mais além. Pensar é cruel porque quando (e se) pensamos, o pensamento nos chega como uma invasão, penetra no ser, rasgando toda a espessura da vitalidade, o enredamento sem fim de nossas sensações e memórias, tudo o que está registrado na superfície do corpo. Por isso, o pensamento seria uma forma de violência. Mas o pensamento é cruel sobretudo porque jamais pensamos como deveríamos. E é nessa impossibilidade ou paralisia terrível do pensamento que Artaud descobre e redescobre a crueldade. Trata-se da eficácia intelectual da arte, que é mais do que é um simples estetismo, mais do que o seu valor de recreação e repouso. Não se trata de pensar sobre a arte mas, a partir dela, pensar sobre alguma coisa, servindo-se assim das forças vivas da poesia, entendida aqui como poisesis, uma força criadora. O puro jogo formal da arte acompanhado de seu esclarecimento pela palavra esconderia o verdadeiro sentimento, que na verdade é intraduzível. O sentimento forte provocaria em nós a ideia de vazio, aí onde vem instalar-se a consciência de si, o questionamento do ser, o encontro com a náusea. Ainda uma forma de crueldade no pensamento consiste em jamais chegar a pensar, na medida em que um pensamento não significa fazer funcionar o espírito a partir de certas regras conhecidas, mas ―reencontrar a cada vez os materiais e corpos desconhecidos, e os cortar, escavar, bater, minar, acumular, com uma infinidade de variações: é um ato forçosamente interminável, incontornável‖ (UNO, 2000, p. 42). Por esse motivo, pensar e não poder pensar 18 são quase coextensivos, mas é o que torna o pensamento cruel. Essa questão está bem colocada na correspondência de Artaud com Jacques Rivière (OC, vol. I, 1984). É como se o pensamento necessitasse sofrer uma 17 « Penser, qui consisterait dans le fait de divisier, composer, associer, déterminer, différencier, identifier, se transforme en processus étrange, indéterminable ». 18 De forma semelhante, Sartre (2015), em debate com membros proeminentes do Partido Comunista Italiano (PCI), em 1961, afirma que “há uma subjetividade sustentada por algo que escapa ao saber e que, não só não é conhecida, mas cujo conhecimento seria até, em certos casos, prejudicial à ação” (p. 32, grifo do autor), de certa forma retomando a conhecida ideia hegeliana de que a Coruja de Minerva só levanta voo ao entardecer. 48 violência exterior, um arrombamento, para poder fugir à grade da representação e desenvolver sua potência transformadora. Se Deleuze (1992) propõe que o essencial da criação são os intercessores (pessoas, coisas, plantas, animais etc.), que precisamos deles para nos exprimir, um ou vários, visíveis ou invisíveis, podemos dizer que, no caso Artaud, o sofrimento do pensar e não pensar que o assalta com frequência seria um dos seus maiores conectores durante toda a sua vida. O sofrimento como intercessor. Esse tema é importante porque abre a possibilidade para Artaud de elaborar uma ideia de religação entre cinema, pensamento, impossibilidade de pensar, criação e, por fim, o sofrimento como resultado de um trabalho cruel de transformação do pensamento. Quem pensa? Quem sofre da impossibilidade de pensar: o eu, o espírito, o corpo, os nervos? A crueldade alia a esses questionamentos o do colapso daquele que seria um sujeito pensante. Sartre (2015) fala de uma ―densidade obscura‖ no modo como alguém compreende a si mesmo. Diz ele: ―faz parte do princípio da subjetividade ativa ser ela não conhecida, ignorada, e, na medida em que o artista projeta, ele não se conhece, mesmo que, em outro plano, ele se conheça muito bem‖ (p. 104). Isso significa que um artista, embora antecipando tendências e captando um algo de novo na cultura que a todas as outras pessoas escapa, nem sempre tem plena consciência (ou apenas uma consciência parcial) daquilo que o leva a criar qualquer coisa de surpreendente, pois é a partir da objetivação do processo criativo que é possível retroagir sobre (e conhecer a) subjetividade, num movimento intermitente de interiorização e exteriorização. Beckett, por exemplo (partindo do pressuposto de que não tenha sido uma simples boutade), quando perguntado quem seria esse Godot que até hoje muitos esperam, afirma que se soubesse teria deixado muito claro desde a primeira linha de sua famosa peça. (HENZ, 2012). Artaud, meu próximo-distante É amplamente conhecida a noção de Giorgio Agamben (2009) sobre o contemporâneo. Se levarmos em conta suas considerações, podemos constatar que Artaud nunca foi tão contemporâneo (o que não significa atual, e pode até mesmo ser o seu contrário) quanto hoje. Suas ideias permanecem mais necessárias que nunca e sua obra vai sendo paulatinamente recuperada para ajudar a pensar justamente o mal-estar 49 na contemporaneidade. Nesse diapasão, podemos mesmo falar de uma inatualidade radical de Antonin Artaud. Essa lembrança veio a propósito da ideia de que o conhecimento não se faz ao meio-dia, mas no lusco-fusco do tempo, no claro-escuro das horas, quando a coruja de Minerva alça seu voo. A primeira indicação de Agamben (2009), no sentido de delinear alguns traços da noção de contemporâneo, afirma que o verdadeiro contemporâneo não coincide perfeitamente com seu tempo, mantendo com ele uma relação de dissociação e anacronismo, mas é por meio dessas duas instancias que ele é capaz de perceber e apreender seu tempo. Nesse ponto, Artaud era tão contemporâneo quanto o intempestivo Nietzsche, seu igual, seu irmão. A segunda indicação talvez seja mais importante para os nossos propósitos. Para Agamben, ―contemporâneo é aquele que mantém fixo o olhar no seu tempo, para nele perceber não as luzes, mas o escuro‖ (p. 62). Seguindo essa linha de ação, podemos concluir que o pensamento cruel significa ainda qualquer coisa que excede a dimensão não apenas do pensamento, mas também do tempo, da época, das luzes e da atualidade. Ele afronta aquilo que vem do exterior dele mesmo, o que não é pensável, que não cessa de ameaçar se manifestando como caos ou desordem, ou seja, significa deixar-se invadir pelo outro, pelo estrangeiro, pelo fora, pelas forças e fluxos que atravessam o corpo e a matéria. E essa violência aplicada ao pensamento assestará seus canhões contra a linguagem, os conceitos, a palavra, as imagens, o corpo, o teatro, o espaço e as formas. Artaud e suas (im)possibilidades Quase todos os comentadores de Artaud afirmam que sua teoria é tão abstrata, tão extrema que não seria realmente aplicável, realizável, objetivável em uma criação artística, ficando sempre aquém da proposta do autor. De fato. Mas aqui é preciso, como recomenda Agamben, procurar perceber a luz no escuro do pensamento artaudiano, mesmo sendo uma luz que se distancia de nós infinitamente. Por isso Kuniichi Uno (2000) sugere que, para ler Artaud é necessário um outro tipo de razão ou de desrazão que introduza a catástrofe no pensamento, na arte e na vida. No caso do teatro, diz Uno (2000), ele (o teatro) ―não existe nem dentro das salas do teatro nem sobre a cena. Artaud descobre o teatro sobre o plano da crueldade 50 que não cessa de trabalhar o pensamento e a impossibilidade de pensar‖19 (p. 46), e temas privilegiados para a crueldade como a guerra e o incesto agiriam sobretudo no sentido de redescobrir e refundar o corpo no jogo terrível das forças de vida e morte: ―Trata-se de fazer vibrar o corpo fora de seus limites orgânicos, socialmente e historicamente organizados‖20 (p. 47) Por ora, nosso movimento tem sido o de cercar a ideia de crueldade, acompanhando seu desenvolvimento até sua extensão ao que chamamos de cinema da crueldade, noção que, por não ter sido tão claramente formulada pelo autor, exige certa paciência e persistência. Escrevendo sobre o teatro da crueldade, Artaud descobre a imagem de um outro corpo que vive sem órgãos e nervos, ou seja, um outro modo de relação com o fora. Em suma, a crueldade seria não somente identificada com o terrível, a catástrofe, mas também com a criatividade como modo de abertura para o mundo e suas possibilidades. Portanto, a crueldade como abertura face ao fora não poderia, devido às suas próprias necessidades internas e incontornáveis (e não estamos entrando numa espécie de teleologia artaudiana), resumir-se somente ao plano do teatro. Uno (2000), por exemplo, constata que, mesmo após deixar os palcos, anos depois, até seus últimos dias de vida, Artaud não para de ampliar a ideia de crueldade, mesmo sem nomeá-la diretamente: Durante o período de internamento que conhecemos, sobretudo, pelas cartas e cadernos de Rodez e, em seguida, por ocasião de sua última temporada em Paris, a crueldade não cessa de trabalhar corpo e alma de Artaud. Ele mesmo não para de trabalhar a crueldade (p. 47). Compulsando sua obra é possível encontrar os traços e rastros dessa ampliação da noção de crueldade, que é primeiramente praticada sem a plena consciência e adquire depois uma objetivação para, em seguida, ser interiorizada e subjetivada de forma mais consciente, ou seja, retotalizada, antes de ser novamente lançada ao mundo, num processo de territorialização e desterritorialização constantes. Todo seu trabalho vai no sentido de uma invenção/reinvenção incansável, buscando redescobrir e refazer um corpo verdadeiro com seu dinamismo puro e sua vitalidade nua, por meio das palavras 19 « Le théâtre n’existe ni dans la salle du théâtre ni sur la scène. Artaud découvre le théâtre sur le plan de a cruauté qui ne cesse de travailler la pensée et l’impossibilité de la pensée ». 20 « Il s’agit de faire vibrer le corps em dehors de ses limites organiques, socialement et historiquement organisées » 51 (glossolalias, por exemplo), desenhos, gritos, experimentações, viagens, uso de drogas, imagens, pensamento, cinema, silêncio... Tudo se passa como se a noção 21 artaudiana de crueldade constelasse (ou atravessasse) todo o seu pensamento, fazendo com que as outras noções (dentre elas corpo sem órgãos, acaso objetivo, surrealismo, atletismo afetivo, duplo etc.) com ela se articulassem ou dela não pudessem ser dissociadas. Mas seu objetivo é fazer com que a vida humana, suas forças vitais, a libido e o desejo possam ser libertos dos moldes das redes sociais de vigilância, organização e exclusão. Estado, sociedade, exército, escola, medicina e cultura são inimigos do corpo. Mas não teria Artaud ido longe demais, ao ponto de chegar à imagem de um corpo irrealizável, vazio de todas as possibilidades reais? Para Uno (2000), é preciso pensar a ideia de corpo em Artaud a partir de sua ―flutuação infinita‖, qualquer coisa que se diferencia de um objeto determinado, que se abre aos agenciamentos e conexões. Para Artaud, diz Uno: O que é infinito é o mais concreto, o mais real. O corpo em sua crueldade não se fecha para as questões da vida (...) mas se abre à virtualidade de uma comunicação aberta e densa ao máximo. A crueldade em sua investigação do corpo se dirige assim no sentido de uma comunidade realizada por meio dos corpos, como novos vasos comunicantes 22 (p. 49, grifo nosso). Inferimos que Uno, a partir de uma leitura de Artaud, pretende introduzir um tema importante, mas pouco discutido e infelizmente logo abortado. Trata-se da discussão, que foge ao nosso objetivo, entre realidade e objetividade ou realidade e finitude em Artaud. Compreendemos que, nesse caso, realidade se confunde com infinitude por trazer em si todas as possibilidades virtuais de acontecimentos, enquanto objetividade ou finitude ligam-se somente àquela parcela da realidade objetivada em ação. As três fases do cinema artaudiano 21 Evitamos falar de conceitos em se tratando de Artaud, já que ele mesmo os criticava como a cristalização do pensamento. 22 « Ce qui est infini est le plus concret, le plus réel. Le corps dans sa cruauté n’enferme pas toutes les questions de la vie (...) mais s’ouvre à la virtualité d’une communication ouverte e dense au maximum. La cruauté dans sa recherche du corps se dirige ainsi vers une communauté réalisée à travers ce corps, comme de nouveaux vases communicants. » 52 Adentrando mais propriamente na chamada sétima arte, Francis Vanoye (2000) pergunta-se o que entendemos exatamente por crueldade em se tratando do cinema artaudiano e se o cinema é ele mesmo compatível com a noção de crueldade. Segundo Vanoye, inicialmente, é preciso considerar a relação de Artaud com o cinema seguindo três etapas (ou estados). Em primeiro lugar, encontra-se a fase do entusiasmo, dos discursos críticos e teóricos acerca da potência criativa e subversiva trazida pela invenção do cinematógrafo, uma arte revolucionária articulando o real e o sonho, um instrumento revelador de coisas escondidas no mundo 23 , do funcionamento do pensamento, das profundezas psíquicas. Sobre isso, há que se fazer uma pequena digressão. A relevância ético-política dessa dimensão esquecida da mente destaca-se quando levamos em conta a constatação de Morin (2011b) de que ―A segunda industrialização, que passa a ser a industrialização do espírito, e a segunda colonização, que passa a dizer respeito à alma, progridem no decorrer do século XX‖ (p. 3), e prosseguem aparentemente com ainda mais força no século que ora se inicia. Ainda seguindo o pensamento de Morin (2012), em termos de números, ―as vias de entrada e de saída do sistema cerebral, que conectam o organismo e o mundo exterior, só representam 2% do conjunto, enquanto que 98% dizem respeito ao funcionamento interior‖ (p. 131). Ou seja, a concepção de homo sapiens-faber-economicus oculta a enorme parte do imaginário humano e do mundo psíquico, carregados de necessidades, sonhos, desejos, ideias, pulsões, vontades, mitos, imagens e fantasias, geralmente mal recuperados e mal explorados nos momentos de sono, aos quais nos entregamos todas as noites, como simples intervalos, para deles sairmos e começarmos mais um dia de trabalho. No entanto, prossegue Morin, a substância do sonho mistura-se com a da realidade sem que disso tenhamos consciência, pois o tecido da vida é feito de sonhos e vice-versa, criando assim uma realidade semi-imaginária. Fim da digressão. Nesse primeiro momento, portanto, embriagado pelo entusiasmo, Artaud (assim como alguns de seus colegas surrealistas como Aragon, Soupault e Cendrars, por exemplo) chega a acreditar no cinema como sendo uma obra de arte total 24 , capaz de 23 Uma bela metáfora para esta última ideia está no filme Blow up - Depois daquele beijo (1966), de Michelangelo Antonioni. 24 Artaud não deve ter se dado conta, mas a ideia de obra de arte total consistiria na própria paralisação do seu pensamento criativo e do movimento que lhe é próprio, pois a totalidade poderia ser considerada como da ordem da completude, do fechamento e, principalmente, da interrupção do Tempo. E o Tempo, como diz Deleuze (1992, p. 76) citando Bergson, é o Aberto. Talvez a noção 53 reunir música, pintura, teatro e poesia, uma arte moderna por excelência, compreendendo velocidade, montagem e interioridade, capaz de escapar à influência da literatura (romance, teatro psicológico) e criar uma linguagem própria passível de percorrer com mais abrangência, eficácia e potência destrutivo-construtiva o universo interior que nos habita. Num segundo momento, há a confrontação com o real, a materialidade do cinema em seus aspectos técnicos e econômicos: as atuações, os roteiros, as tentativas malogradas de constituir uma empresa autofinanciada e produzir seus próprios filmes. Nesse ponto, gostaríamos de introduzir uma dicotomia que, embora não tenha sido elaborada clara e conscientemente por Artaud 25 , não dista sobremaneira de suas concepções sobre o cinema. De qualquer forma, a partir das possibilidades abertas pelo distanciamento temporal e crítico, consideramos que as contingências materiais enfrentadas por ele para a concretização de sua obra fílmica 26 nos permitam concluir que tal dicotomia pode explicar em parte a não consolidação de seus planos para o cinema. Trata-se, portanto, da relação de dualidade nem sempre óbvia, percebida ou trabalhada entre as concepções de filme e cinema, pensadas pelo filósofo Julio Cabrera (TIBURI; CABRERA, 2013), ideia segundo a qual há cinemas abstratos que dispensam filmes concretos (daí a dificuldade de Artaud em realizar filmes concretos a partir de uma noção abstrata), e filmes concretos que dispensam a história do cinema construída em livros e enciclopédias (daí a nossa dificuldade em enquadrar a trajetória de Artaud em alguma fase do cinema, sendo a mais próxima a surrealista, mas que de nenhuma forma se resume a ela, bastando observar algumas de suas participações em filmes ou alguns de seus roteiros). Quem poderia imaginar que haveria um cinema sem filmes? É essa a primeira proposição de Cabrera (2013), quando diz: ―creio que o cinema seja um mecanismo predicativo abstrato que oferece todo o tipo de potencialidades que os filmes concretos que aparecem de fato na história do cinema realizam apenas parcialmente‖ (p. 108). O cinema tomado em sua concepção abstrata, ou seja, naquilo que vincula a imagem ao deleuziana de todo, ou seja, aquilo que atravessa todos os conjuntos e os impede de se fecharem “totalmente” seja mais adequada para compreender o pensamento de Artaud. 25 Cremos que essa dicotomia pode ser extraída das entrelinhas de seu pensamento geral para a arte, embora, como dissemos, pode ter quedado no plano do inconsciente. 26 De resto, se levarmos em conta sua teoria, tal ideia de cinema é quase irrealizável, assim como muitos de seus projetos para o teatro. Por vezes ele parece absolutamente lúcido em relação a isso; por vezes, não. 54 movimento seria então mais antigo do que a própria filosofia ocidental, já presente nos primeiros desenhos humanos nas cavernas, portanto, antecede e ultrapassa a sua objetivação em filmes 27 . Quando Artaud propõe, a partir de uma ideia de ―cinema verdadeiro‖ ainda longe de atingir seu ponto exato 28 , que o cinema pode admitir apenas um certo tipo de filme, aquele onde todos os meios de ação sensual tiverem sido utilizados, implicando uma subversão total de valores e uma desorganização completa da visão, da perspectiva e da lógica, vemos aí duas constatações importantes para a nossa reflexão. Primeiro, que o cinema precisa criar uma nova linguagem de ―subversão‖ e ―desorganização‖. Ao entrarmos numa sala de cinema qualquer, para ver um filme qualquer, a maioria de nós não tem acesso ao cinema como linguagem, da forma como é hoje construída (iluminação, fotografia, montagem, planos e contraplanos, panorâmicas, travellings etc.), diminuindo nossa capacidade de relação com ele, o que implica dizer que, em geral, estabelecemos um compromisso mais fácil com o filme que com o cinema. Da mesma forma, quando lemos um romance raramente nos damos conta da estrutura narrativa elaborada pelo autor e é apenas o enredo que mais ou menos permanece em nossa memória por um certo período de tempo; ou, ainda, quando observamos os quadros de diversas épocas em museus e terceirizamos as análises estruturais e de linguagem para os críticos e especialistas, enquanto nos deixamos apenas tomar pelos afectos e perceptos que a arte nos proporciona 29 . Não obstante, o conhecimento dos códigos permite uma fruição mais completa do objeto de arte ao qual dedicamos nossa apreciação. Mas ao pensar em uma nova linguagem para o cinema, Artaud se insurge contra essa dominação estética. Chegamos então à segunda constatação. Artaud propõe uma nova linguagem, mas que, ao mesmo tempo, contraditoriamente, não apareça ao público como linguagem, criando um córrego, um vazo comunicante, uma comunicação direta com o espectador, com o que 27 Sem falar que alguns filmes parecem ter sido feitos para não serem vistos, mas apenas observados vez por outra, em meio a outros afazeres, enquanto são exibidos, aproximando-se mais da dinâmica dos happenings contemporâneos e das instalações artísticas que propriamente da ideia de cinema. Parece ser esse o caso, por exemplo, do filme Ambiancé, do cineasta e videoartista sueco Anders Weberg. O projeto, que deverá ser finalizado e apresentado ao público no final de 2020, terá 720 horas de duração, o maior longa-metragem da história do cinema, e será apresentado durante 30 dias ininterruptos. Depois da experiência, segundo o autor, o filme será destruído. Sobre isso ver http://oglobo.globo.com/cultura/filmes/cineasta-videoartista-sueco-cria-longa-com-duracao-de-30- dias-ser-destruido-apos-exibicao-13540094, acesso em 7 nov. 2015. 28 Pensamos que esse ponto exato, na perspectiva de Artaud, é por definição e contraditoriamente inatingível, contrariando a própria ideia do autor e, ao mesmo tempo, sendo fiel a ela. 29 Poderíamos estender essa lista indefinidamente, incluindo teatro, música, fotografia etc. 55 ele chama de ―espírito‖, sem a necessidade de passar pelo crivo do intelecto em nenhuma instância: Essa espécie de poder virtual das imagens vai buscar no fundo do espírito possibilidades até agora não utilizadas. O cinema é essencialmente revelador de toda uma vida oculta, com a qual nos coloca diretamente em contato (...) Fazê-lo servir para contar histórias, uma ação exterior, é privar-se do melhor de seus recursos, ir contra sua finalidade mais profunda. Por isso o cinema me parece feito, sobretudo, para exprimir as coisas do pensamento, o interior da consciência e não somente pelo jogo das imagens, mas por alguma coisa de mais imponderável que nos devolve as coisas em sua matéria direta, sem interposições, sem representações (2006a, p. 172, grifo nosso). Talvez essa seja a chave para compreender sua ideia de cinema como obra de arte total, ou seja, ―um meio de ação sensual‖ capaz de ser apreendido (e não racionalizado) imediatamente por ação de uma força que atua diretamente sobre o organismo, as sensações, o corpo, os nervos, a pele, o espírito, a fauna de imponderáveis, de não ditos e não pensados que habitam essa realidade semi-imaginária dentro de cada um de nós. A segunda proposição de Julio Cabrera é a de filmes sem cinema, menos prolífica em relação à primeira no sentido de prover desdobramentos teóricos, mas que pode ser encontrada com mais densidade em Deleuze (1983) quando afirma, no seu Cinema 1, não estar fazendo uma história do cinema, mas uma taxonomia, um ensaio de classificação de imagens e signos. Este pode ser um bom caminho para se pensar a obra cinematográfica de Artaud sem cair na armadilha de enquadrá-lo em alguma escola ou movimento, introduzindo uma série de articulações arbitrárias, quando o mais importante seria captá-lo em meio ao movimento. No mais, como já colocado acima, existe a dificuldade de agrupar o cinema artaudiano em um conjunto compreensível. Talvez Cabrera tenha razão quando afirma que só há filmes, o resto é invenção de eruditos e estudiosos de cinema. Ao insistirmos nessas classificações, seria o caso pelo menos de trabalhar cada tendência no que elas têm de múltiplo. Não um Neorrealismo, mas Neorrealismos; não um Cinema Novo, mas Cinemas Novos; não um Cinema da Crueldade, mas Cinemas da Crueldade. Finalmente, retomando e finalizando as três etapas propostas por Vanoye (2000) sobre a relação de Artaud com o cinema, chegamos à fase da desilusão. Em 1933, 56 Artaud denuncia (precocemente, a nosso ver) o que chamou de A velhice precoce do cinema, acusando o cinema falado de reduzir a nada a poesia e os poderes mágicos do cinema, fazendo com que ele duvidasse mesmo da existência desses poderes. O objeto idealizado, percebido à luz da realidade com toda a sua capacidade de decepcionar, é rejeitado em bloco. O cinema mudo seria uma espécie de objeto perdido; o desejo de se apossar do cinema, tocar, educar e emocionar as massas seria a ilusão perdida. Perseguindo a trilha da dicotomia cinema/filme, podemos imaginar que a categoria cinema abrange as produções mais heterodoxas, experimentais, estranhas, com o objetivo de ensaiar a utilização de outras linguagens não necessariamente ligadas ao dispositivo sensório-motor (DELEUZE, 1983) ou às estruturas de consolação dos roteiros construídos quase como em linha de montagem. Nesse contexto, quanto mais de vanguarda for um filme, quanto mais nos aproximamos de uma ideia de cinema sem mediações, mais o autor se interessará por potencializar e renovar a linguagem cinematográfica, mesmo que o preço a pagar seja a incompreensão e o fracasso de público e crítica. Como afirma Cabrera (2013), a maioria de nós ―não sabe mesmo o que fazer com o cinema quando se defronta com ele sem a mediação de um filme‖ (p. 127). Voos e Os 32: a deseducação do olhar A importância dessa discussão reside não em um debate elitista acerca de quem domina ou não os códigos e, consequentemente, tem acesso às chaves do castelo que guarda o mapa do tesouro onde é possível encontrar a quintessência da arte. Há uma questão política de fundo que diz respeito a todos nós e pode influenciar na forma como nos posicionamos perante a cultura: a experimentação no cinema pode gerar filmes que fogem da prática de um olhar capturado pelos dispositivos de dominação e controle. Eduardo Pellejero (2015) considera que o cinema pode contribuir para o que ele chama de uma ―(des)educação‖ e desnaturalização do olhar e dos modos incorporados que temos de ver, sendo esse um caminho possível para uma verdadeira experiência estética - pois a faculdade da visão mantém uma relação íntima com a afetividade, a memória e a imaginação - e uma proteção contra o bombardeamento diário de imagens lançadas por publicitários e ideólogos. É nesse sentido que Artaud propõe uma ideia de cinema da crueldade, nem sempre agradável (melhor que não o seja), mas expansivo e insólito, capaz de solicitar a dúvida, a interrogação e a especulação, erodindo o terreno mais ou menos estável de nossas percepções. 57 Artaud não costumava elaborar scripts precisos sobre questões mais técnicas, com marcações bem definidas sobre fotografia, enquadramento, indicações de planos ou contraplanos, tipos de imagens, movimentação de câmera etc., mas seus textos para cinema sugeriam quase sempre a perturbação das cenas, a sobreposição e rapidez das imagens, movimentos frenéticos, enfim, a inquietação do olhar e dos sentidos. Vejamos esse exemplo tirado do roteiro Voos (1982, p. 116-117), de 1928: O homem pérfido correndo de igual maneira que os pedestres sobre um terreno deserto, depois pela ladeira de uma colina, depois por um pequeno vale – impressão de sobrevoa-lo, ou de vê-lo descer ao vale desde um ponto elevado. – De novo por uma janela de táxi: a rua, um cartaz: ―CORREIO AÉREO‖, passa rapidamente na rua – mais ruas – pedestres que desfilam rapidamente e se tornam árvores e postes telegráficos – vista de um trem a toda velocidade – De novo a realidade – o taxi para (...)30. Em Os 32 (1982, p. 100), escrito um ano mais tarde, destacamos a seguinte passagem: Todo um mundo parece desfilar pelo espelho, como uma respiração marinha, um mundo aquático cheio de filamentos e bolhas de ar que estouram. Garras nervosas parecem arranhar o vidro, saídas da virtualidade do espelho. Aparece uma cabeça bestial. Uma infinidade de máscaras, de bestas de olhos fosforescentes, todas plenas de uma inquietude, de uma ansiedade incomensurável. Muitas destas cabeças bestiais estão coroadas por tiaras, com grinaldas, ornadas com flores trançadas. Mas todo este mundo se move, se agita, treme como se houvesse quebrado o cimento das coisas. E ainda mais cabeças que se abrem, que explodem. Olhos que cintilam, correm, na borda da água. 31 As duas passagens acima citadas são ilustrativas do pensamento cinematográfico elaborado por Antonin Artaud. Vemos o tempo todo imagens incomuns que escorrem 30 El hombre pérfido corriendo de igual manera que los viandantes sobre um terreno desierto, despúes por la ladera de uma colina, después por um pequeno valle – impresión de sobrevolarle, o de verle descender al valle desde um punto elevado. – De nuevo por uma ventanilla del taxi: la calle, um cartel: “AVIONES CORREO”, passa rapidamente em la calle – más calles – viandantes que desfilan rapidamente y que se vuelven árboles y postes telegráficos – vista de um tren a toda velocidade – De nuevo la realidade – el taxi se detiene (...). 31 Todo um mundo parece desfilar por el espejo, como uma respiración marina, um mundo acuático lleno de filamentos y de burbujas de aire que estallan. Garras nerviosas parecen arañar el vidrio, salidas de la virtualidade del espejo. Aparece uma cabeza bestial. Una infinidade de máscaras, de bestias de ojos fosforescentes, todas llenas de una inquietude, de una ansiedade inconmensurable. Muchas de estas cabezas bestiales está coronadas con tiaras, con guirnaldas, ceñidas con flores trenzadas. Pero todo mundo se mueve, se agita, tiembla como si se hubieran roto los cimientos de las cosas. Y aún más cabezas que se abrem, que estallan. Ojos que centellean, corren, al borde del agua. 58 em choques, sobreposições, justaposições, metamorfoses, desenquadramentos e acelerações. Tais recursos teriam o objetivo de denunciar, desmobilizar e desestabilizar os mecanismos que contribuem para a construção de um certo olhar, abrindo a possibilidade para a experimentação de outros modos de ver. No primeiro trecho imaginamos uma sucessão de câmeras objetivas e subjetivas (quando parecem assumir a perspectiva do personagem) seguindo o desenrolar vertiginoso das paisagens, uma após outra, rapidamente, em tomadas térreas ou panorâmicas, planos fechados e abertos, closes no rosto do homem pérfido, cujo desespero é denunciado por um olhar maníaco, a respiração curta, músculos faciais contraídos, o suor que escorre em fios de água a partir da testa proeminente, enquanto os pedestres sobrevêm com tamanha rapidez até que, de uma hora para outra, já não são mais gente, mas postes, árvores. Não há tempo para formular uma ideia clara, pois o que há são vestígios, fragmentos de uma realidade estilhaçada em milhões de pedaços para ser remontada de uma maneira que não esteja sujeita aos condicionamentos da percepção visual, fazendo nascer a possibilidade de um corpo novo, de uma vida nova. A própria realidade ganha em complexidade. Pessoas não são apenas pessoas, mas plantas, postes, objetos, olhos injetados, velocidade, trem, avião, carro, um sentimento de angústia, um afeto, o impessoal, o imponderável, transmutação entre coisas e seres, a lógica e a hierarquia parecem retroceder ou ganhar outra configuração. No segundo trecho, os mesmos olhos cintilam, olhos que procuram uma saída, um novo olhar, ao mesmo tempo em que o espelho reflete uma outra realidade, distorcida, transformada, reconfigurada, enriquecida com outra associações, uma realidade busca ganhar vida própria por meio de garras nervosas tentando quebrar o vidro das representações. Cabeças bestiais colocadas em contrastes com flores, tiaras, grinaldas, a junção daquilo que não se imagina, cabeças que explodem como bolhas de ar em meio ao caos e ao turbilhão da desordem. É como se Artaud estivesse propondo, a partir do cinema, a ideia de retorno ao caos, no sentido da ―desintegração organizadora‖ da qual fala Edgar Morin (2013a), para quem os tempos de caos não são passados e ultrapassados e tenhamos chegado, enfim, ao reino da ordem; pelo contrário, a Gênese não cessou, e é preciso mostrar a presença permanente e atual do caos, como ―uma ideia de indistinção, de confusão entre poder destrutor e poder criador, entre ordem e desordem, desintegração e organização (...)‖ (p. 80), em suma, em sua plenitude energética, vibrátil e turbulenta. 59 E se levarmos em conta a constatação de Jacques Aumont (2012) de que, no cinema (assim como na fotografia, desenho ou pintura), o enquadramento estabelece uma relação entre um olho fictício e um conjunto organizado de objetos no cenário a partir de uma certa composição elaborada por um dispositivo desnaturalizante de captura do olhar, percebemos, pelo contrário, como o olho humano, no dia a dia, enquanto caminhamos pelas ruas da cidade, trabalha mais frequentemente na perspectiva da câmera subjetiva, do descentramento, ou seja, esvaziamento do centro: não fixamos grandes planos por muito tempo, não compomos imagens buscando ângulos perfeitos e mais apropriados; nosso olho trabalha acompanhando o turbilhão das imagens que nos atravessam, mais próximo das paisagens evanescentes dos roteiros de Artaud do que da perfeição técnica dos filmes de Alfred Hitchcock. Estamos sempre desenquadrando, como também enquadrando de outra maneira, como nos filmes de Jean-Marie Straub e Danièle Huilet. A alma transhistórica É nesse tom que Artaud vai buscar, tanto no teatro quanto no cinema, reencontrar a atualidade do mito, do arcaico, do sonho, da origem, do rito, da magia como aquilo que permanece e nos atravessa, mas carregados de todos os horrores do século XX, o que não significa conservadorismo nem vontade de retorno a um tempo idílico ou harmônico, mas potencialização da força criadora por meio daquilo que é impróprio e incomum. A partir desse trabalho arqueológico sobre a cultura e o olhar seria possível refundar a civilização ocidental bem como criar um humanismo revolucionário que ultrapasse a ideia de individualismo capitalista moderno, ―uma vez que a alma é um bem de todos‖32 (ARTAUD, OC, vol. VIII, p. 241, p. 1980), embora pareça estar passando por um processo inédito de apropriação pelas forças do mercado. Tudo se passa como se a imaginação individual derivasse necessariamente de outra imaginação, mais vasta e antiga do que nós, pertencente a uma trama complexa de relações, e precisasse de exercícios para ganhar musculatura, recuperando sua energia de criação a partir de uma ampliação de suas potencialidades e percepções sobre o mundo, ultrapassando a realidade visível e palpável a qual fomos acostumados, reconquistando a força do que Artaud chama de ―valores incorporais‖, atingindo uma 32 Puisque l’âme c’est le bien de tous. 60 espécie de estado místico sem transcendência, pois ―O místico é aquele que crê nos valores incorporais capazes de superar pouco a pouco os valores deste mundo – e que colocou todas as suas esperanças na emergência de um estado incriado‖33 (ARTAUD, vol. XXV, p. 29, 1990). Desfazendo mal-entendidos: a crueldade de Bazin a Artaud Em 1975, François Truffaut reúne, em livro, alguns artigos do crítico de cinema francês André Bazin sob o signo do que ele chama de crueldade. A coletânea, intitulada O cinema da crueldade (1989), traz pequenos ensaios sobre Eric Von Stroheim, Carl T. Dreyer, Preston Sturges, Luis Buñuel, Alfred Hitchcock e Akira Kurosawa. No prefácio, Truffaut revela sua motivação um tanto vaga afirmando que os textos agrupam ―cineastas que têm em comum o fato de haverem imposto um estilo bem particular e um modo de expressão subversivo‖ (p. XI). Embora não fazendo nenhuma menção a Artaud, os escritos de Bazin trazem algumas características da crueldade vista pela sua perspectiva: o rompimento do verniz de civilidade humana, o furor sexual, a encantação carnal, a objetiva crueldade do mundo, a pulsação ardente do sonho, o sangue pesado do inconsciente que nos inunda, a crueldade da criação e o desvelamento do fundo de realidade que nos habita. Os textos de Bazin editados por Truffaut por vezes se aproximam e se distanciam das Cartas sobre a crueldade (ARTAUD, 2006b) de Antonin Artaud, nas quais ele tenta elucidar as questões nebulosas que cercam a noção de crueldade. Para Artaud, trata-se de considerar a crueldade em um sentido amplo, sem ligação necessária e exclusiva com o sadismo, o gosto de sangue, o cultivo sistemático do horror, o dilaceramento carnal, os suplícios. Do ponto de vista do espírito, Artaud pensa a crueldade como rigor, aplicação e decisão implacáveis, determinação irreversível, absoluta, apetite de vida. Portanto, para manter-se próximo de Artaud é preciso excluir tudo o que é pura e simplesmente representação da crueldade reduzida à violência. Caso contrário, boa parte das produções cinematográficas de hoje que fazem da crueldade objeto de representação para o delírio e conforto do espectador, no sentido da simples purgação de suas paixões, 33 Le mystique est celui qui croit en des valeurs incorporelles capables de supplanter peu à peu les valeurs de ce monde-ci – et qui ont mis leurs espoirs en l’avènement d’un état incrée. 61 teria que entrar nessa conta (incluindo diretores classificados de cult, como Quentin Tarantino) 34 . É necessário, portanto, deslocar a ideia de crueldade para outra seara (mantendo alguns pontos essenciais levantados por Bazin): em primeiro lugar, para que ela não se confunda somente com as denúncias sociais (muito fortes em se tratando de Buñuel), explosões, violências e assassinatos gratuitos que grassam na produção cinematográfica atual, de Hollywood a Bollywood; depois, para que não perca sua potência radical de contestação e transformação. Artaud se preocupa em criar um espetáculo que se dirige a todo o organismo, abordando temas direcionados às questões coletivas, mais urgentes e inquietantes que as individuais. Em O teatro da crueldade (2006b, p. 98), ele propõe outros aspectos da crueldade: ―A participação reduzida do entendimento leva a uma compressão enérgica do texto; a participação ativa da emoção poética obscura obriga a signos concretos. As palavras pouco falam ao espírito; a extensão e os objetos falam; as imagens novas falam, mesmo que feitas com palavras‖. Nesse sentido, há mais dilaceramento interno na crueldade silenciosa das imagens eloquentes de Dolls (2002), do japonês Takeshi Kitano, que em todo o sangue escorrido nos estímulos explosivos da produção mainstream mundial 35 . 34 Edgar Morin (2011) afirma que “Hollywood já proclamou sua receita há muito tempo: a girl and a gun. Uma moça e um revólver. O erotismo, o amor, a felicidade, de um lado. De outro, a agressão, o homicídio, a aventura” (p. 104). Mas ao filósofo francês não escapa a questão mais ampla e primordial que cerca a representação da violência: “há um fundo de violência no ser humano que precede nossa civilização, qualquer civilização, e que não pode ser reduzido definitivamente por nenhum dos modos atualmente conhecidos pela civilização” (p. 111). Essa segunda noção se aproxima mais da crueldade em sentido amplo elaborada por Artaud. Morin chega a resgatar o Artaud de O teatro e seu duplo: “Toda liberdade verdadeira é negra” (p. 107). 35 Uma das tantas indicações de que a relação que Artaud entretém com a crueldade não passa necessariamente pela violência, dor, sangue, sofrimento, embora possa ocasionalmente fazer usos de tais elementos, está em seu Van Gogh: o suicidado da sociedade: “E prefiro, para sair do inferno, as naturezas desse tranquilo convulsionário [Van Gogh] do que as efervescentes composições de Brueghel, o Velho, ou de Jérôme Bosch...” (2006a, p. 272), que são, essas últimas, justamente marcadas por um espírito apocalíptico. 62 Da mesma forma, A paixão de Joana d’Arc (1928), do dinamarquês Carl T. Dreyer, é um filme quase que inteiramente composto por rostos em close, intensidades, sensações, linhas de força (Figura 4). São eles, os rostos, o campo de guerra onde a crueldade dos sentimentos trava sua batalha infinita, um puro combate de almas, uma luta entre forças internas, uma tragédia exclusivamente espiritual. Mas ao mesmo tempo, tanto Joana d‘Arc quanto o irmão Massieu, interpretado por Artaud, se entregam a uma relação de complementaridade entre o realismo e o misticismo. Bazin relata que ―Dreyer proibiu qualquer maquiagem, os crânios dos monges são efetivamente raspados e foi diante de toda a equipe em lágrimas que o carrasco cortou realmente os cabelos de Falconetti 36 antes de conduzi-la à fogueira‖ (1989, p. 18). Artaud descreve o irmão Massieu (Figura 5) como um santo ―pleno de paroxismos e perpetuamente arrancado de si mesmo, mas ainda assim tranquilo‖37 (OC, vol. III, 1978, p. 306), enquanto Dreyer é tido como um homem comprometido em elucidar um dos problemas mais angustiantes que existem: demonstrar em Joana d‘Arc uma vítima da deformação dolorosa de um princípio divino que desfigura os cérebros dos homens, seja na forma de Governo, Igreja ou outra instituição qualquer. Em A paixão de Joana d’Arc, filme mudo, a crueldade não está na violência concreta, mas simbólica, dos sentimentos conflitantes que assomam à tela por meio das expressões faciais, dos objetos (lanças, cruzes, rodas de suplício e instrumentos de tortura), dos espaços e do cenário ligeiramente abstrato, com fundos 36 Renée Jeanne Falconetti, atriz francesa que interpreta Joana d’Arc. 37 Plein de paroxysmes et perpétuellement arraché de lui-même, mais calme au contraire. Figura 4. Joana d’Arc, interpretada por Falconetti. Dilaceramento, misticismo, luz, sobras, closes e desenquadramento da visão. Figura 5. O irmão Massieu, interpretado por Artaud, questiona o juízo de Deus. Vida e obra se conjugam. 63 claros e depurados, inspirado em iluminuras medievais e no expressionismo alemão, dando ao filme a espessura de uma criação mística almejada pelo diretor. Dreyer era um dos poucos diretores (além de Abel Gance e Marcel l‘Herbier) com quem Artaud sentia certa afinidade eletiva, uma irmandade espiritual, interesses estéticos semelhantes. Para Artaud, dotado de um olhar místico expressivo e uma silhueta alongada, não era difícil apreender essa atmosfera de misticismo solicitada pelo dinamarquês. Era, de certa forma, o seu normal. Artaud acabara de filmar Napoleão, cujo personagem interpretado por ele, Jean-Paul Marat, carregava uma aura místico-revolucionária. Artaud entendia-se com estes tipos alucinados e desviantes. Interpretava-os com muita naturalidade. Por todo o tempo, em A paixão de Joana d’Arc, o irmão Massieu construído por Artaud tenta se diferenciar da arrogância dos juízes e do alto clero, sublinhando sua própria compaixão pelo sofrimento de Joana (Figura 6). Daí a percepção de uma comunhão extática e invisível entre ambos, principalmente por ocasião de uma das últimas cenas, quando Massieu pergunta a Joana se ela ainda se crê como uma enviada do céu. Surge ali uma emoção cortante, segundo Artaud, proporcionada pelos fatos e pelo clima da produção, um acontecimento não previsto pelo diretor (teríamos aqui um exemplo de acaso objetivo), mas que ele não poderia impedir que acontecesse. - É curioso notar que, embora interpretando o papel de um religioso, Artaud depara-se com um tema que o perseguirá por toda a vida como uma tomada de consciência a partir de Joana d‘Arc: a necessidade de acabar com o julgamento de Deus. Seria o caso, portanto, de relocalizar o cinema da crueldade artaudiano recuperando sua força artística de deslocamento e dilaceramento, pois uma ideia de crueldade que circula hoje constitui o ordinário da indústria cinematográfica, articulado na cultura tecnológica e midiática, mesmo se incluirmos aqui o cinema considerado ―de arte‖. Amor (2013), de Michael Haneke, por exemplo, pode ser considerado, à primeira vista, um filme acerca da crueldade da existência. Escrito em sangue, amargura, despotismo, angústia, sofrimento, impotência e abandono, conta a história de dois Figura 6. Massieu consola Joana d'Arc. Afinidade espiritual. 64 prisioneiros da condição humana em um ser-para-a-morte partilhado. Anne (Emanuelle Riva) e Georges (Jean-Louis Trintignant), dois amados professores de música, encontram-se na situação paradoxal na qual o amor é o último recurso para uma disposição de matar e morrer, pois só ele pode proporcionar a vida, mas também a possibilidade de uma morte digna. De fato, é uma obra de difícil digestão, muito pouco sentimental. Mas, do ponto de vista da crueldade em Artaud, é um filme sem cinema, pois sua emoção vem mais do mundo do que das inexistentes inovações formais: atuações e direção ortodoxas, roteiro linear, montagem tradicional etc. Muito distante da intenção artaudiana de pensar um cinema no qual as imagens se desenvolvem no sentido de sua significação essencial, íntima, interior. Da mesma forma, se pensarmos em um filme de qualidade inegavelmente superior e de inspiração surrealista, podemos citar Os esquecidos (1950), da fase mexicana de Buñuel, uma história de infância, miséria e violência. Inicialmente, é preciso reconhecer em Artaud e Buñuel mais pontos de contato do que o próprio Artaud estava disposto a reconhecer. Ambos preocupavam-se em atingir uma realidade metafísica transcendente à moral e próxima da brutalidade da condição humana. No entanto, trilhavam caminhos diferentes. No filme acima citado, Buñuel segue a vereda da denúncia social numa tentativa de sondar a crueldade da criação. Segundo Bazin (1989, p. 53), os seres de Os esquecidos ―não têm outra referência além da vida, essa vida que pensamos ter domesticado pela moral e pela ordem social, mas que a desordem social da miséria restitui às suas virtualidades primeiras, a uma espécie de paraíso terrestre infernal‖, cuja saída é interditada. Uma vida restituída às suas virtualidades primeiras: eis um bom exemplo de interseção entre os dois autores; mas o recurso à desordem social da miséria, o gosto pelo horrível, os paroxismos do horror, a representação dos aspectos extremos do ser, da decadência humana, da guerra, da doença, são soluções as quais Artaud não adere completamente. Nesse caso específico, Buñuel, aparentemente contra a sua vontade, acaba criando um cinema visto a partir de uma perspectiva moral, no qual o espectador sente contra o peito o fio frio da lâmina que o incita a sentir-se culpado e responsável pela crueldade e pelo desencadeamento do mal no mundo, uma postura puritana ou cristã não isenta de perversidade. Embora possamos encontrar no cineasta espanhol, assim como 65 em diretores como Ingmar Bergman, David Lynch, Jean-Luc Godard, R. W. Fassbinder, Akira Kurosawa e Marguerite Duras, apenas para citar alguns, fortes traços característicos da crueldade, não se trata necessariamente, do nosso ponto de vista, da crueldade própria de Antonin Artaud. Sobre o que seria um cinema da crueldade puramente artaudiano, alguns autores divergem amplamente. Para estudiosos como Virmaux (2009) e Mèredieu (2011), nem o próprio Artaud obteve sucesso em executar aquilo que elaborava teoricamente no campo da sétima arte, em que pese o fato de ele mesmo ter considerado A concha e o clérigo, à época, como o único filme revelador de uma concepção verdadeiramente nova e profunda de cinema, apenas para renegá-lo depois. Vanoye (2000), por outro lado, está convencido de que, até o começo deste século, apenas um filme foi feito inteiramente dentro das características da crueldade no quadro que aqui tentamos desenvolver: trata-se de Saló ou os 120 dias de Sodoma (1976), adaptação do Marquês de Sade feita pelo cineasta italiano Pier Paolo Pasolini. A obra alia a impassibilidade do ritual de morte e prazer, a cenografia fantasmagórica e a estilização do horror, apresentando o êxtase como inseparável da morte e conjugado ao êxtase do espectador, constrangido a viver a experiência de desejar o ponto de vista dos libertinos-assassinos sem assumir uma perspectiva moral ou moralizante, mas simplesmente no sentido de experimentar no mais profundo aquilo que significa o gozo. Bazin (1989), por sua vez, avalia que a tradição da crueldade no cinema não passa por Artaud, mas inicia-se com o cineasta austríaco Eric Von Stroheim. Se Bazin desconhece completamente a influência de Artaud nesta seara, esta parece ser uma lacuna estratégica para contornar a difícil comparação: são duas visões de crueldade que, senão opostas, pelo menos conflitantes em diversas questões. A obra de Stroheim é dominada pela obsessão sexual, sadismo, violência e crueldade, fazendo dele ―o símbolo do cinema maldito‖. Para Artaud, esse seria um recurso fácil para promover um choque nos espectadores. Principalmente se avaliarmos essa postura à luz do que Lipovetsky e Serroy (2009) caracterizam como o imperativo da ultraviolência na era do hipercinema ou cinema hipermoderno, em sua busca incessante para aumentar o impacto visual e emocional no público, a essa altura já anestesiado e infenso às cada vez maiores investidas dessa droga que lhe é administrada diariamente, hoje com a ajuda da televisão. Não obstante, tal como Artaud, Stroheim insistia na negação dos valores cinematográficos da época e pretendia destruir a linguagem do cinema para construir 66 uma outra por sobre os escombros. Mas, principalmente, ambos eram umbilicalmente ligados por uma questão que aos dois afligia permanentemente: a limitação do aparato tecnológico restringia as possibilidades de criação ao ponto de a tela não conseguir exprimir aquilo que eles queriam fazer o cinema dizer. Crueldade: a cura pela contaminação geral Essa busca obstinada da linguagem cinematográfica própria revela, de certa forma, um vício de origem no pensamento de Artaud. O próprio fato de imaginar a existência de um ―cinema verdadeiro‖ restringiu suas possibilidades de dedicar-se a um ―cinema real‖, capaz de realizar-se simplesmente com aquilo que o autor tinha em mãos. Artaud pode não ter se dado conta, ou apenas parcialmente, mas essa busca estaria fadada ao fracasso. Por dois motivos. Primeiro, porque o ―específico cinematográfico‖ pode não existir, dado que ―o cinema é, visceralmente, desde o nascimento, uma mistura impura, incapaz de qualquer especificidade‖ (TIBURI; CABRERA, 2013, p. 170). Segundo porque, como constataremos em várias oportunidades no decorrer deste trabalho, a própria ideia do cinema da crueldade na obra de Artaud já nasce contaminada pelo teatro da crueldade. As duas reflexões são contemporâneas e organicamente ligadas. 1927, por exemplo, ano de A concha e o clérigo, é igualmente o ano no qual ele funda o Teatro Alfred Jarry. Mas não apenas. Todas as dimensões da vida de Artaud devem ser colocadas no mesmo plano numa dinâmica de recursividade incessante, seja no âmbito da droga, da poesia, do cinema, do teatro, suas peregrinações ao México e à Irlanda, seus textos inqualificáveis, suas investidas no desenho, na pintura e no rádio. Todas estas atividades teriam sido um meio para alcançar um pouco da realidade que lhe escapa, não uma finalidade. O homem está doente porque é mal construído, dizia ele, e o cinema, o teatro, e a poesia seriam um meio terapêutico, ortopédico e cirúrgico na direção de uma cura cruel. Trata-se de desconstruir e reconstruir. Se as ideias artaudianas de cinema não resultaram em grandes desdobramentos, é porque ninguém as ouviu. Desse ponto de vista é possível dizer que a difusão e o relativo sucesso de suas elaborações sobre o teatro prejudicaram a justa apreciação de sua obra, mais particularmente de suas intuições relativas ao cinema. 67 Talvez todos estes autores tenham um pouco de razão; o cinema da crueldade é impossível; ele existe em estado puro em apenas uma ou duas obras do cinema mundial; seus traços estão diluídos em um punhado de filmes, mas não com todos os pressupostos elencados por Artaud. Trabalharemos com todas as hipóteses e mais uma outra: a realização do seu cinema talvez esteja em sua própria impossibilidade, no seu imponderável, no não-dito, no incapturável, no impensável do pensamento. Se o cinema de Artaud não vem até nós, nos propomos em ir até ele, mesmo que o tenhamos de procurar em outro lugar, provavelmente o menos óbvio e mais difícil de ser atravessado, feito de areia movediça, fluxos, sonhos e matéria instável. 68 SEQUÊNCIA II: VIDAS CRUZADAS A biografia de Artaud cruza-se, de certa forma, com o nascimento e desenvolvimento da chamada sétima arte na Europa. A história dessa última começa, se é possível determinar uma data para o seu aparecimento 38 , numa quase sempre fria, mas nem sempre estrelada, noite parisiense, mais precisamente em um 28 de dezembro de 1895, um ano antes de romper a concha maternal aquele que se chamaria Antoine Marie Joseph Artaud, ou simplesmente Antonin Artaud. Nesse dia coberto por estrelas de brilho pálido e uma tímida lua crescente, dezenas de pessoas, aglomeradas em frente ao Salon Indien, localizado no subsolo do Grand Café, no boulevard de Capucines, pagaram o equivalente a um franco para sentar-se em frente a uma tela branca, onde seria exposta a mais nova invenção dos irmãos Auguste e Louis Lumière, a projeção de um sonho, o espetáculo do cinema. Dez filmes de aproximadamente 50 segundos cada, chamados por eles de ―Visões‖39, são projetados nesta mesma noite, o primeiro intitulado La sortie des usines Lumière à Lyon. Os irmãos Lumière tentavam tornar a experiência do cinema um espetáculo de massas. Dentre os motivos que levaram os espectadores àquele local, poderíamos imaginar a curiosidade, a estranheza, o desejo de ver em primeira mão a projeção de imagens animadas em um grande écran, mas, sobretudo, a consciência de pertencer ao ―espírito do tempo‖, de se estar a par dos grandes acontecimentos da época, de testemunhar aquela que seria uma das maiores invenções da história, embora o próprio Louis Lumière demonstrasse apenas uma confiança relativa em seu instrumento, ao confidenciar a um dos seus funcionários: ―... não é uma situação de futuro que nós oferecemos, é mais uma forma de comércio, que pode durar seis meses, um ano talvez, ou até menos...‖ (JEANCOLAS, 2012, p. 12).40 É clássica, por exemplo, a imagem do trem que se aproxima da tela e surpreende os expectadores, alguns fecham os olhos e outros saltam em suas cadeias, ainda tentando adaptar-se àquela inovação, àquela nova experiência subjetiva. 38 Consta que já em 1890, Thomas Edison fazia experiências com projeções de imagens em uma máquina chamada Black Maria, mas em pequenas telas e para uso privado, de uma ou duas pessoas. 39 “De vues”. As traduções são livres e de nossa responsabilidade, salvo caso em contrário, quando a fonte será devidamente citada. Além disso, para ajudar na fluência da leitura, decidimos manter as traduções no corpo do texto e os originais em nota de roda pé, para cotejamento do leitor. 40 Ce n’est pas une situation d’avenir que nous offrons, c’est plutôt un métier de forain, cela peut durer six mois, unne anné peut-être, peut-être moins... 69 Os irmãos Lumière eram, de fato, comerciantes, industriais de Lyon, e seu tipo de cinema será qualificado como cinema documentário. Seu projetor visava rentabilizar os negócios, embora Louis possuísse claramente uma sensibilidade cinematográfica que o permitiu antecipar tendências fartamente utilizadas pelos realizadores seguintes, como senso de imagem, enquadramento, iluminação, movimento, travelling e tensão no interior dos planos. O final do século XIX lega à humanidade dois inventos revolucionários. O primeiro, o avião, pretendia realizar o sonho de Ícaro de conquistar os céus; o segundo, o cinematógrafo, redescobrir a própria terra, no sentido de reproduzi-la e examiná-la com um olho de laboratório, como diz Morin (1958). Nos estertores de 1896, o cinema já era mundialmente conhecido, tornando-se uma espécie de espelho do mundo, invadindo o real, reproduzindo imperceptíveis fragmentos da vida, criando fantasia, produzindo sonhos, introduzindo uma nova forma do olhar, amplificando as sutilezas do cotidiano. O cinema não nasce como espetáculo, mas logo se percebe sua capacidade de ir além de um simples instrumento técnico-científico para sugerir emoções, relatar histórias, mostrar uma vida surreal. Percebe-se então tratar-se de uma nova linguagem, uma linguagem de ideias, uma forma de pensamento, um encantamento das imagens. No entanto, era considerado digno apenas da classe operária, pois ainda muito incipiente, um tipo de diversão rasa e ausente de sofisticação. De fato, mesmo amplamente divulgado, apenas a França, inicialmente, atenta para o potencial dessa indústria em explorar sonhos, sensações e emoções. Pretendia levar os Lumière para o mundo como um dia o fizeram com as Luzes da Revolução Francesa. Diferentemente de seus predecessores, Georges Mèlies era tido como um profissional do espetáculo, prestidigitador e ilusionista. Naquela noite histórica de 1895, ele era um dos primeiros da fila. Ávido espectador e pesquisador dos processos de encantamento do público, decidiu que ali estaria o seu futuro. No dia 10 de junho de 1896 ele apresenta seu primeiro filme, constrói uma sociedade de produção e dois estúdios, onde roda entre 600 e 800 películas e alguns documentários. E casualmente eleva o cinema para outro patamar. Uma falha em seu aparelho faz com que, como mágica, pessoas e carros aparecessem e desaparecessem de cena, sendo assim, por acidente, o primeiro diretor de efeitos especiais da história. Mas estes são apenas alguns dos nomes que alavancaram a indústria cinematográfica francesa no final do século XIX, junto com Charles Pathé, Léon Gaumont entre outros, que 70 ajudaram a transformar o mundo por meio de uma arte até hoje em franco crescimento, cujos limites são impossíveis de determinar. Uma indústria global multimilionária. Caldo de cultura Portanto, é ainda na aurora do cinema, quase concomitantemente ao seu alvorecer, que nasce, ao dia 4 de setembro de 1896, em Marselha, Antonin Artaud, sexto de uma família de oito irmãos, filho de Antoine-Roi, comerciante de origem provençal e marselhesa, e Euphrasie Nalpas, filha de família abastada e culta nascida em Esmirna, antiga cidade porto ligada ao então Império Otomano. Louis Nalpas, tio de Artaud por parte de mãe, comerciante do ramo de importação e exportação de luxuosos produtos europeus, é um dos primeiros, pela sua influência no ramo das artes, a inseri-lo no mundo do cinema. Artaud participa então de um ambiente familiar no contexto de uma burguesia rica e cultivada (na qual os idiomas grego e francês eram fluentes, além de italiano e turco), que provavelmente compreende a revolução artística que se passa em Paris, embora isso não seja determinante para a carreira do recém-nascido, mas que não o retira das condições sócio-econômico- culturais do momento vivido. É preciso não esquecer que seus primeiros 14 anos de vida coincidem com o início e o apogeu do cinema francês no mundo. Mas o começo do século XX foi movimentado também por outros motivos: o primeiro voo de avião, o anúncio feito pelo físico teórico alemão Albert Einstein de que a luz, matéria prima do cinema, era a única constante no universo; a construção e o afundamento do Titanic e a Primeira Guerra mundial. No cinema, surgem ideias inovadoras sobre edição, cortes, novos planos, montagens, e o início do que depois seria conhecido como star system, o universo quase mítico das estrelas de cinema 41 . Nesse período inicial de sua vida, que se confunde com o começo deste mesmo século cheio de atribulações, Artaud já demonstrava tendência aos estudos, principalmente latim e grego, no internato do Sacré-Coeur, onde estudara boa parte da infância e conquistara diversos prêmios em história da França, Geografia, recitação clássica, instrução religiosa, história natural, língua inglesa e francesa, entre outros. 41 Sobre isso, ver A história do cinema : uma odisseia. Inglaterra, 2011. Dir. Mark Cousins. Cor – 15h e MORIN, Edgar. As estrelas : mito e sedução no cinema. 3ª ed. Rio de Janeiro : José Olympio, 1989, que trata do fenômeno do star system no cruzamento de suas dimensões econômicas, sociais, culturais, estéticas e míticas. 71 Portanto, recebe uma formação humanista clássica. Por volta dos 12 anos, em 1908, evidenciava-se cada vez mais seu pendor para a arte da representação, como nos teatrinhos de infância apresentados à família, embora frequentemente estes espetáculos tivessem ―ressonâncias macabras‖ (MÈREDIEU, 2011), como encenar seu próprio velório, com a ajuda dos primos, ou instalar caveiras e velas acesas no quarto de um deles no intuito de assustá-lo (sem o conhecimento de ninguém), enquanto vaporiza perfumes exóticos e recita poemas de Baudelaire, uma de suas mais fortes influências poéticas até o fim de sua vida, ao lado de Edgar A. Poe, Gerard de Nerval, Arthur Rimbaud e outros malditos. Enquanto isso, entre 1907 e 1910, pequenos cinemas para a classe operária começam a surgir na França e várias experiências cinematográficas são levadas a efeito em diversas partes do mundo, principalmente na Escandinávia, mais precisamente em Dinamarca e Suécia. O cinema, antes mais aparentado ao teatro, passa a ganhar certa autonomia e mostrar o mundo exterior, como demonstram os complexos e megalomaníacos experimentos fílmicos de D.W. Griffith, exemplificado em seus projetos intitulados O nascimento de uma nação e (1915) Intolerância (1916), obras ainda hoje consideradas esteticamente monumentais, em que pese seu conteúdo demasiadamente racista e anacrônico. Mas na França, o período entre 1908 e 1912 marca o apogeu do cinema francês e as primeiras ideias acerca de um cinema de arte, feito para um público mais intelectualizado. Até 1905 (mesmo ano de nascimento e morte de Germaine Marthe, irmã de Artaud, evento que o traumatiza para o resto da vida), não havia salas dedicadas especialmente para a projeção de filmes, que era feita dentro de cafés, cervejarias e espaços improvisados, em meio a algazarras. Na primeira década do ano de 1900, entre 60% e 70% dos filmes vendidos no mundo, inclusive no mercado americano, eram franceses, mas era sobretudo um cinema dito cômico. O ano de 1912 prenuncia o início do colapso, que se dará finalmente em 1914 por dois motivos principais: a concorrência dos mercados americano e dinamarquês e o início da Primeira Guerra mundial (1914-1918). Nos primeiros dias de agosto deste ano, a mobilização para o confronto confisca estúdios e máquinas e convoca os principais atores dos maiores estúdios franceses. As usinas de filmes transformam-se em usinas de armamento. Os astros vestem uniforme militar, viram soldados e deslocam-se para o front, onde as balas não são de festim, nem a morte é cenográfica. A produção é interrompida de um dia para o outro. Mas, paradoxalmente, os anos de guerra foram 72 também aqueles da conversão ao cinema de uma geração de jovens intelectuais nutridos de poesia simbolista, que frequentemente se interrogam sobre a sétima arte, tais como Louis Delluc, Abel Gance e Marcel L‘Herbier (JEANCOLAS, 2012, p. 23). Artaud inclusive chega a trabalhar com os dois últimos em duas grandes produções, Napoleão e O Dinheiro (1928) respectivamente. Artaud e o espírito do tempo O ano de 1914 é marcante também para o jovem Artaud, agora com 18 anos. Segundo Florence de Mèredieu (2011), esse ano é triplamente marcado pela puberdade, pela doença e pela guerra. Época conturbada que marcará as mentalidades europeias e se incorporará definitivamente ao pensamento artaudiano, assumindo uma dimensão estrutural ou até mesmo metafísica. A partir de então, sua própria configuração psicológica é a de um ―guerreiro‖, uma máquina de guerra, que trava um combate de princípios contra o mundo, seja o Pai, o Padre, o Patrão, a Política, a Medicina e seus tratamentos, enfim, um ser humano em eterno conflito consigo mesmo e com os outros, fabricando inimigos, travando batalhas, sempre em movimento de transformação (MÈREDIEU, 2013). Em suma, uma catástrofe íntima do ser, um primeiro encontro com uma espécie de crueldade do mundo, de mal primordial. Foram meses de incerteza, angústia e ociosidade. Seu comportamento muda. Torna-se sombrio, hostil, introvertido e com acessos bruscos de selvageria. O jovem Artaud é recrutado e dispensado meses depois, com sintomas de neurastenia aguda e fortes dores físicas. Começam os transtornos de saúde e os périplos por diversas clínicas e casas de repouso que o seguirão eternamente como uma sombra. Em 1915 é diagnosticado com neurastenia aguda, aparentemente relacionada a um esgotamento do sistema nervoso (no ano de 1900 o pequeno Artaud, então com quatro anos, já havia sido medicado com sintomas de meningite por causa de fortes dores de cabeça). Em 18 de dezembro de 1917 é definitivamente reformado. Até 1919, neurastênico, passará seus dias entre casas de tratamento para nervosos e alienados. Era o seu front particular, sua guerra privada apenas começava. O inimigo estava por toda parte. Os impactos da primeira guerra vão repercutir por toda a vida e obra de Artaud, mesmo quando, já dobrando uma das últimas esquinas da existência, em fevereiro de 1945, começa a redigir os Cadernos de Rodez. Segundo o estudo detalhado no qual retoma a influência dos dois conflitos mundiais sobre a psique artaudiana, Florence de 73 Mèredieu (2013) admite que seu esquema corporal e psíquico é de um ser eternamente em choque, abismado (Figura 7). O que faz Mèredieu, portanto, é uma releitura da obra de Artaud levando em conta os dispositivos médico-psiquiátricos de higiene mental montados a partir de 1914 para cuidar dos traumatizados de guerra. O próprio Teatro da Crueldade reenviaria ao processo dos conflitos bélicos presenciados por ele nos campos de batalha. Mas, de outro modo, podemos dizer ainda, partindo da mesma releitura, dessa vez particular, que o intolerável dos horrores presenciados ou mesmo sentidos por Artaud entre as duas guerras fez com que seus escritos assumissem um caráter de amor fati nietzschiano, um dizer sim a vida incondicionalmente, uma procura eterna de uma existência em busca de uma essência do ser, mesmo que para isso seja necessário o uso de uma certa violência cênica, exercida por meio de um choque sensorial no sentido de curar a vida da própria impotência de possuí-la. Portanto, diz ele no prefácio do Teatro da Crueldade, em 1931: ―Nós temos sobretudo uma necessidade de viver e de crer naquilo que nos faz viver...‖42 (OC, vol. IV, 1978, p. 9). Ou ainda: ―Todas as nossas ideias sobre a vida estão por serem retomadas em uma época em que nada mais adere à vida‖43 (Idem, p. 10). Mas embora a questão da guerra seja bastante relevante e transversalize toda a sua obra, do teatro ao cinema, passando pelos poemas e sortis, estamos nos adiantando um pouco e há ainda outros problemas a considerar. Em 1919, no pós-guerra, os cinemas francês e europeu em geral passam por um processo de retomada. Na França, particularmente, introduzem-se elementos artísticos e intelectuais mais fortes do que nunca, atingindo um status de nobre expressão, marcando uma forma de cinema singular e estabelecendo uma tradição de vanguarda cinematográfica, inicialmente em torno do jornalista Louis Delluc. 42 « Nous avons surtout besoin de vivre et de croire à ce que nous fait vivre ». 43 « Toutes nos idées sur la vie sont à reprendre à une époque où rien n’adhère plus à la vie ». Figura 7. Artaud interpreta o soldado Vieublé em A cruz de Madeira (1931). Os traumas de guerra foram estruturantes para a formação de sua psique e, consequentemente, na elaboração de sua obra. 74 Em Los Angeles, o mito de Hollywood acabava de nascer, atraindo estrelas e um desejo de perfeição. Uma fábrica de sonhos pela qual o mundo se apaixonou. Conhecedor da estética americana, Delluc militava por um cinema verdadeiramente francês, advogando uma arte que falasse a linguagem das imagens, ou seja, roteiros originais não adaptados do teatro ou da literatura. Uma ideia que, como veremos depois, Artaud desenvolve e tenta utilizar em sua própria teoria do cinema. Em torno de Louis Delluc poderemos encontrar, por exemplo, Germaine Dulac, com quem futuramente Artaud estabelece conexões para a realização de um dos seus roteiros, A concha e o clérigo. Dulac orienta-se iniciamente para uma vanguarda impressionista, mesma via prenunciada por Delluc, e seus filmes são bastante reconhecidos entre a intelectualidade da época. Em um segundo círculo em torno do qual um novo cinema francês se mobiliza, estarão os já experientes Marcel L‘Herbier e Abel Gance, com os quais Artaud também trabalhará. Gance é o responsável, em 1927, por um dos filmes mais ambiciosos jamais empreendidos na França, o já citado Napoleão, no qual Artaud interpreta o jornalista Jean-Paul Marat (sem dúvida uma das atuações mais marcantes de sua carreira), filme tido na época como genial, hiperbólico, obra de um megalomaníaco, mas de uma potência expressiva única no cinema francês. L‘Herbier, com quem Artaud trabalhará em O dinheiro (1928), assume seu lugar no panteão dos grandes diretores pela sua preocupação obsessiva na plasticidade dos filmes, convocando arquitetos, pintores, decoradores para, juntos, trabalharem as formas de luz e espaços geométricos, que deveriam estar detalhadamente ao seu gosto, pois qualquer gesto dos atores e atrizes, qualquer mudança de cor ou ambiente guarda relação com a história contada. É nessa escola, nesse contexto e com esses autores, que Artaud vai montando o arcabouço de sua teoria do cinema. Delluc morre em março de 1924, mesmo mês e ano em que Artaud participa do seu primeiro papel na indústria cinematográfica, Fait divers (1924), curta-metragem experimental de Claude Autant-Lara. A morte de Delluc ―fecha‖ o período impressionista, abrindo espaço para outras experiências vanguardistas. Entre 1923-1924, aparece uma segunda experiência de vanguarda na França, forjada nas ideias do dadaísmo e do surrealismo, provocante ou insolente, que não alcança jamais o grande público, mas influencia uma nova geração que marcará a história do cinema, incluindo Antonin Artaud, que bebe das novas ideias direto da fonte. 75 Keaton, Chaplin e cia. Os anos 1920 e o início dos anos 1930 são auspiciosos para a sétima arte. Cineastas do mundo todo rebelam-se contra a ideia de cinema como simples forma de escape, de entretenimento. Era necessário explorar todas as suas possibilidades, ir além da fórmula hollywoodiana do cinema romântico, idealizado, superficial e cheio de pudores, enquadrada numa espécie de produção fordista, desde a concepção do roteiro à sua finalização. Em meados da década de 1920 eram produzidos cerca de 700 filmes por ano em Hollywood. Mas mesmo nos EUA as renovações aconteciam. Buster Keaton e Charles Chaplin (Artaud admirava a ambos) elevaram a comédia ao status de clássico. Keaton ajudou a definir o cinema mudo. Era obcecado pela câmera, grandes planos e montagens cômicas inovadoras. Chaplin humanizou as comédias com sua inclinação para compreender os pobres, um mundo que foi o dele mesmo na infância. Conseguia misturar fascismo e balé, e algumas de suas cenas, como nos filmes Tempos modernos (quando engolido pelas engrenagens da máquina, fazendo de ambos uma coisa só, ou seja, a própria alienação do homem) e O grande ditador (seu discurso antifascista, por exemplo) se eternizaram no cinema. Mas outros diretores preferiram sabotar a visão fantasiosa que Hollywood fazia do mundo. Alguns partiram para a não-ficção, como Flaherty e o seu Nanook, o esquimó (1922), que se propôs a mostrar a vida real de um esquimó no Alasca sem brilho ou figurino. Eric Von Stroheim, nascido em Viena, mas trabalhando toda a sua vida nos EUA, despreza a dimensão romântica de Hollywood. Com uma visão ultrarrealista do mundo, seus filmes se tornaram uma espécie de símbolo do cinema maldito, e ele conhecido como um poeta sarcástico e insolente, com uma obra dominada pelo sadismo e a negação de todos os valores cinematográficos, conforme diz André Bazin (1989). Da Dinamarca vem uma das maiores dissonâncias contra os clichês americanos, acabando com o excesso de emoção do cinema mainstream. Carl Theodore Dreyer purifica o cinema de todos os seus penduricalhos e objetos cênicos desnecessários, tentando dar mais realismo na composição dos planos. Denecessário dizer que Artaud não está imune ao ―ar do tempo‖, a tudo que se passa ao redor. Ele participa e reflete atentamente sobre o momento e as inovações do cinema. Enquanto o cinema romântico era otimista, os filmes russos eram lamentos, cheios de pessimismo, e falavam do realismo da tristeza, da perda e da saudade. 76 Destacam-se diretores como Pudovkin, Eisenstein, Dovjenko e Vertov. Eisenstein talvez tenha sido um dos maiores renovadores do cinema de todos os tempos. A cena da chacina na escadaria de Odessa, em O encouraçado Potenkim (1925), é uma das imagens mais marcantes que a sétima arte já produziu. Para criar certa impressão no espectador, Eisenstein usa o que ele chamou de ―montagem de atrações44‖ (o que significa dizer que a contraposição de duas imagens forma uma terceira com qualidade alterada e superior, cujo mecanismo agiria também sobre a consciência do espectador, despertando-o para uma determinada situação, ou seja, desvelando a essência por detrás da aparência), diferentemente da ―montagem paralela‖ elaborada por Griffith. Por exemplo, enquanto em uma cena o exército pisoteia um garoto, em outro, sua mãe desesperada dispara um grito primal, evocando uma poderosa imagem e uma forte sensação de poder, inocência e injustiça. Já na Alemanha, o chamado expressionismo alemão pretende mostrar os aspectos mais profundos da mente, influenciado pelo teatro e a pintura expressionistas. Menos de trinta filmes foram feitos seguindo tal estética, mas alguns deles marcaram definitivamente a história da arte da projeção de imagens. Um dos mais influentes foi, sem dúvida, O gabinete do doutor Caligari (1920), de Robert Wiene, cuja ambientação sombria, angulosa e perturbadora sugere o medo e a loucura a partir da tensão entre o jogo de luzes e sombras e uma narrativa cheia de assassinatos aterrorizantes. Trata-se de um sonâmbulo induzido e hipnotizado que, à noite, desperta para matar os inimigos de seu mestre. A luz natural é substituída por uma pintura cenográfica representando luzes e sombras bem planejadas no sentido de propor uma ideia de consciência e inconsciência, dominação e servidão, um estado mental alterado. A proposta política parece clara: uma Alemanha dominada e uma massa subalterna manipulada. Em Metropolis (1927), um dos filmes mais icônicos da história da sétima arte, Fritz Lang trabalha a ideia tanto do inconsciente quanto da luta de classes. O expressionismo chega também aos EUA, com King Vidor e seu A Turba (1928). Ainda nas décadas de 1920 e 1930, os intelectuais começam a perceber a potência do cinema para pensar e transformar o mundo, radicalizando cada vez mais o seu uso e levando suas possibilidades técnicas às suas fronteiras (sempre ultrapassadas), 44 Sobre isso, diz Deleuze: “Il n’y a pas seulement opposition de la terre et de l’eau, de l’un et de multiple, il y a passage de l’un dans l’autre, et surgessiment soudain de l’autre à partir de l’un ». « Não há somente oposição da terra e da água, do um e do múltiplo, há a passagem de um dentro do outro, e o surgimento repentino do outro a partir do um”. DELEUZE, Gilles. Cinema 1: Image-Mouvement. Les éditions de minuit, Paris, 1983. 77 explorando e reinventando suas propriedades específicas de montagem, percepção, reprodutibilidade, linguagem e projeção, sobre as quais não vamos nos deter por extrapolar os limites deste trabalho 45 . Indo além dos expressionistas alemães, o dadaísmo descobre no cinema um movimento de anarquia, zombaria e contestação social. Francis Picabia, René Clair, entre outros, pretendem renovar a estética cinematográfica. Na França, o brasileiro Alberto Cavalcanti realiza, em 1934 (um ano antes de Artaud abandonar definitivamente o cinema), um filme experimental sobre o domínio do olho e da imagem, sobre poder e vigilância, sobre a força reveladora do próprio olhar, sobre uma sociedade em vias de espetacularização, com suas dezenas de olhos sobrepostos e espalhados pelo écran perseguindo o espectador 46 . No campo do surrealismo, surgido na esteira do dadaísmo, Buñuel e Dali fazem um cinema de livre associação, com o objetivo de decifrar o funcionamento do inconsciente humano. Uma nuvem que risca a lua e o corte para uma mão que transpassa um olho com uma navalha; formigas que saem da mão de um homem e um pulo abrupto para uma axila não depilada de uma mulher, imagem seguida de um ouriço do mar e, logo após, a cabeça cabeluda de um homem, formam uma das sequências mais clássicas da chamada escola surrealista, no filme Um cão andaluz (1929). Sobre esta escola em particular, Artaud reivindica, com certa razão, o seu surrealismo avant la lettre, seu pioneirismo frente ao movimento, a partir do seu roteiro A concha e o clérigo, de 1927, considerado por alguns críticos como o primeiro filme surrealista e que dará origem posteriormente a outros filmes do gênero, como o próprio Cão andaluz (1928) e A idade do ouro (1930), de Buñuel, e O Sangue de um poeta (1932), de Jean Cocteau, embora sem o mesmo espírito. Mas antes de anunciar definitivamente sua ruptura com o cinema, em 1935, com um texto chamado A velhice precoce do cinema, Artaud deixou uma obra considerável de roteiros, atuações em filmes e teorias sobre o cinema. Primeiros contatos 45 Ver, sobre isso, BRENEZ, Nicole. Cinémas d’avant-garde. Collection Cahiers du cinéma, Paris, 2006. 46 A história do cinema : uma odisseia. Inglaterra, 2011. Dir. Mark Cousins. Cor – 15h. 78 Dentre os pensadores rebeldes que buscaram renovar o cinema, Artaud, mergulhado no denso ambiente artístico-intelectual acima descrito, absorvendo diversas influências, trabalhando com alguns dos mais importantes diretores, atentos às possibilidades técnicas da sétima arte e refletindo fortemente sobre elas foi, certamente, um dos mais radicais, cuja densa teoria cinematográfica ainda está por ser descoberta, estudada e, se possível, realizada, pois que ele mesmo não a pode fazer, embora sua concepção do Teatro da Crueldade ainda tenha forte ressonância nos dias atuais. Como vimos anteriormente, as décadas de 1920 e 1930 foram muito produtivas para o cinema mundial. O contexto do pós-guerra permite aos intelectuais pensarem, a partir do cinema, a relação do homem com o mundo e as imagens. São também anos importantes para Artaud. É quando ele começa a travar contato com os grandes artistas da época e conhece mais profundamente o teatro, a literatura, as artes plásticas e o cinema. O ano de 1920 é justamente o de sua chegada à Paris, sob a supervisão médica do Dr. Toulouse e, posteriormente, Dr. Allendy, manifestando o desejo de uma vida artística ativa e boêmia. A referência aos doutores Toulouse e Allendy não é sem relevância. Pelo contrário, trata-se de duas influências importantes para Artaud, devido ao interesse de ambos pelo cinema em sua relação com o subconsciente, embora em registros diferentes. Como observa Mèredieu (2011), a psiquiatria e a medicina veem na técnica cinematográfica uma nova possibilidade de explorar a mente e o corpo. Segundo a autora, para Allendy, ―o que domina é a potência alucinatória das imagens e dos objetos que não possuem nada de real e que sentimos, no entanto ‗como‘ reais‖. No caso de Toulouse, o cinema aparece como uma linguagem fortemente emotiva, ―Sua ‗ação psíquica‘ e seu poder de sugestão são muito intensos‖ (p. 197), atingindo e comovendo o público muito mais que o teatro, por exemplo. As questões de partida do Dr. Toulouse eram duas, e ainda bastante atuais: que ação o cinema pode ter sobre as massas e como pode ele ser integrado aos processos educativos e terapêuticos. Hoje sabemos da importância do tratamento que tanto Lênin quanto Hitler e, atualmente, com muito mais recursos, o império americano, deram e dão ao poder das imagens para promover suas respectivas ideologias. Uma das experiências de Toulouse com alguns espectadores, por exemplo, se empenhava em monitorar as reações respiratórias no decorrer das projeções, trabalho que chegou a ser apresentado em congresso científico no ano de 1920, sugerindo inclusive que algumas pessoas devem se abster, por motivos de saúde, de frequentar salas de projeção. Em 79 comum, ambos interessavam-se em examinar a ação do cinema sobre o organismo, como mudança de frequência cardiorrespiratória, apneias, vertigens etc.; em comum, ambos cuidaram de Antonin Artaud em suas passagens por clínicas psiquiátricas em Paris; em comum, ambos vislumbravam em Artaud uma genialidade a ser trabalhada e compreendida. A intervenção de Louis Nalpas No mesmo ano de sua chegada a Paris, vindo de Marselha, o jovem poeta inicia os seus primeiros contatos com o teatro e a arte da atuação. Lugné-Poe oferece a Artaud um papel em uma peça no Théâtre de l‘Ouvre, que estreia no ano seguinte, em fevereiro de 1921. Em outubro transfere-se para a Companhia teatral de Charles Dullin. Apenas em 1924, por intermédio do tio Louis Nalpas, irmão de sua mãe, diretor artístico da Societé des Cine-romans e, portanto, com certa influência no meio cinematográfico francês, é que Artaud consegue o seu primeiro papel no cinema, vindo de uma experiência de pelo menos quatro anos no teatro. Foi por meio de Louis Nalpas que Artaud fora apresentado ao diretor Claude Autant-Lara. Mèredieu (2011) narra esse encontro no mínimo curioso. Diz o cineasta: ― Eu me encontrei diante de um personagem estranho, um pouco ausente. Ele parecia sempre flutuar a um ou dois metros acima da terra. Dava a impressão de nunca escutar. Na realidade, ele escutava muito bem. Minha proposta o seduziu, e imediatamente ele aceitou fazer o filme comigo‖ (p. 248). O filme era Fait divers (1924), obra de caráter experimental, no qual ele interpreta o papel de Senhor 2. Autant-Lara é, nessa época, um jovem cineasta vanguardista ainda familiarizando-se com as técnicas cinematográficas. O roteiro trata de ciúmes e narra uma relação amorosa triangular entre um homem, sua esposa e o amante, no caso, Antonin Artaud. O plano que associa marido, mulher e amante em sobreposição (figura 8) evoca Picabia, que à época trabalhava um procedimento pictural chamado transparência, significando tanto a tensão quanto a fusão entre os personagens. Figura 8. Artaud interpreta o Senhor 2, seu primeiro filme em que participa como ator. 80 Mas o mais surpreendente foi o uso feito pelo diretor de uma obscuridade da qual emerge o rosto pálido e fantasmagórico de Antonin Artaud. A crítica ressaltava sobretudo a utilização dos planos abertos, a supressão dos subtítulos, o ritmo por vezes rápido, por vezes lento, ziguezagueante, a organização do roteiro, o ralenti e o detalhe da cena final de estrangulamento feita em câmera lenta, considerada uma inovação estética. O Paris Journal de 21 de novembro descrevia a atuação artaudiana como a de um ―sistemático e satânico gigolô de Paris, com um não- sei-o-quê de ressuscitado, tal como um Fausto do parque Monceau 47‖ (FAU, 2006). Em uma carta endereçada à mademoiselle Yvone Gilles, em março de 1924 (OC, vol. III, 1978), portanto durante as filmagens, Artaud informa que participa do projeto no intuito apenas de tornar-se conhecido e ganhar algum dinheiro para sobreviver, pois, nas condições em que se encontrava não possuía recursos sequer para alugar um quarto, buscando abrigo noturno no teatro da trupe Pitoëff: ―Eu participo deste filme onde faço meu primeiro papel para tentar ser mais reconhecido e ganhar logo algum dinheiro. Faz dois messes que sequer tenho um quarto(p. 114)‖48. À época o cinema não era já uma indústria potente e de cachês milionários, criador de mitos e semideuses, sendo ainda considerado uma forma de divertimento menor, um espetáculo de variedades, mas servia para familiarizar alguns rostos, e o modelo do star system apenas engatinhava. Artaud: entre Édipo e Sísifo Mas frases como esta acima citada, proferidas por Artaud mais de uma vez em suas epístolas aos amigos, deram margens a interpretações, acreditamos, em parte equivocadas sobre sua relação com a sétima arte. Artaud era, antes de tudo, um artista completo. Interessava-se por tudo: poesia, prosa, teatro, cinema, dança, desenho ou pintura. Com todas essas manifestações artísticas teve seus altos e baixos, seus arroubos e decepções, suas dores e delícias, e a elas dedicou igualmente tempo, trabalho e saúde. Não atuava por atuar, não escrevia por escrever, não desenhava por desenhar. Todo esse universo fazia parte de sua vida inteira, não aos pedaços. Lendo sua obra, é difícil organizá-las em ordem de importância. Talvez em fases. Por isso, concordamos com Camille Dumoulié (1996) quando afirma que o 47 « systématique et satanique gigolo de Paris, avec un je ne sais quoi de ressuscité, tel un Faust du parc Monceau ». 48 « Je tourne ce film où je fais un premier rôle pour tâcher d’être mis en vedette et gagner bientôt un peu d’argent. Voilà deux mois que je n’ai même plus une chambre. » 81 cinema, para Artaud, não era uma arte secundária em relação ao teatro ou a poesia, mas pelo contrário, mobilizou um interesse considerável por parte do jovem marselhês. A ele dedicou doze anos de sua vida e refletiu sobre todos os seus aspectos com a mesma determinação e o mesmo espírito engajado e inovador. Foi ator, crítico, roteirista e, com afinco, tentou realizar suas ideias. Fracassou, assim como teria fracassado em sua ideia de Teatro da Crueldade? Dependendo do ponto de vista a resposta pode ser sim ou não. Virtude e Fortuna tiveram aqui o seu papel, como sói acontecer com todos nós. Artaud é meio Sísifo, rolando diariamente pedra acima; meio Édipo: morre se não decifra o enigma da esfinge, ou sofre mesmo que o consiga. Conheceu o período fértil do cinema, pelo qual se encantou. Mas também conheceu seus revezes e desilusões. Com pouco mais de 30 anos de idade, a arte do cinema, até então mudo, recebe um duro golpe, transformando seu modo de produção. A 6 de outubro de 1927 surge o primeiro filme falado, O cantor de jazz, de Alan Crossland, que chega a Paris quase 2 anos depois junto com o crash de 1929, mesmo ano em que aparece o primeiro filme 100% francês, Les trois masques. Para alguns era a oportunidade de renovar a produção fílmica; para outros, tratava-se de um verdadeiro desastre. O advento da fala foi impiedoso para uma grande parte dos atores do período mudo. São assim os períodos de transformação. Alguns seguem a vaga enquanto outros naufragam no meio do caminho. Há uma necessidade premente de renovar a linguagem cênica. Os estúdios precisam recrutar novos rostos com belas vozes, sobretudo no teatro. Paradoxalmente Artaud, homem dos palcos, encontra dificuldades em adaptar-se ao novo meio, sobre o qual escreve em 1933 em um texto chamado Os sofrimentos do dubbing 49 (OC, vol. III, 1978), pois inicialmente os filmes estrangeiros (principalmente americanos) exibidos na França eram todos eles dublados. Era penoso assistir ao descompasso entre falas e expressões faciais. Logo ele que vislumbrava constituir uma nova estética teatral ou cinematográfica para além da palavra, com uma linguagem própria, condizente com seus recursos e possibilidades, nada devendo à literatura. Não demoraria a aparecerem a cor, as telas cada vez maiores, as grandes estrelas e outras inovações, enquanto Hollywood vai se estabelecendo como uma usina de sonhos por excelência, onde o público vai buscar sua ração diária de imaginação e evasão. Nesse quadro, os filmes obedecem a um sistema narrativo clássico e simples, 49 Palavra francesa para “dublagem”. 82 fluido, uma estrutura de consolação na qual o espectador, apesar de todos os percalços pelos quais passam seus heróis, sabe que eles sairão vencedores no final. O encadeamento de imagens e a rígida estrutura narrativa fazem com que as histórias se contem quase que por si mesmas. Ora, era justamente isto o que Artaud condenava no cinema. Fazia-se necessário encontrar a sua própria linguagem, um espetáculo não como meio de catarse, mas, pelo contrário, de deslocamento, perturbação dos sentidos, excitação do organismo, um incômodo aos nervos, um desafio ao pensamento, à comodidade, ao status quo. E tudo isso seria feito por meio do que é próprio ao cinema: a manipulação da imagem levada ao limite. Mas a aparição do cinema falado, com suas novas dificuldades e maiores custos, acentua a crise do cinema francês e confirma a hegemonia da indústria de sonhos americana. Para os estúdios franceses, a saída é multiplicar os filmes comerciais em detrimento da chamada vanguarda. E Artaud vive em pleno contexto destas mudanças radicais. Compreende o cinema como meio poderoso de atingir multidões, mas o uso que se faz dele é equivocado. Pensa em arte não como diversão, mas choque, deslocamento. Em meio a tais dificuldades e consciente da realidade, tem como projeto criar uma firma destinada a produzir curtas-metragens baratos e autossustentáveis. Cabe aqui dizer que Artaud não tinha uma ideia elitista de criar o que se convencionou chamar de um ―cinema de arte‖, elaborado para mentes cultivadas, aquelas que dominam os códigos e sinais emanados por uma chamada arte superior, capazes de compreender o que a maioria não compreende. Aliás, todos os seus empreendimentos no campo da arte vão no sentido contrário, o de atingir o maior número possível de pessoas, pois o choque destinado ao organismo vai além da compreensão, passa pelo intelecto e atinge diretamente o corpo, sem o intermédio da razão. Lembremos, quando falávamos dos impactos da primeira guerra na psique e na teoria artaudianas, que a concepção de vanguarda pertence, inicialmente, ao léxico militar, sendo introduzido no vocabulário da estética por volta de 1820 (BRENEZ, 2006). Em 1925, Artaud considera o cinema como a única forma verdadeiramente poética e revolucionária, não no sentido de que ele precise tratar de revolução, mas por revolucionar alguma coisa no mundo, como a organização das ideias, a confrontação com os limites do pensamento, do desconhecido, do impensável, do inadmissível, do intolerável, enfim, lutar contra a resignação a uma ordem superior. Seu desafio maior é 83 romper com a lógica comercial corrente para reinventar e renovar a linguagem propriamente cinematográfica, explorando as propriedades específicas do cinema. As imagens precisam necessariamente passar por uma verbalização ou possuem elas uma semântica própria? É possível reorientar ou mesmo reinventar o cinema? Perguntava-se. Para Artaud, existe uma especificidade da linguagem cinematográfica, mas que está por ser inventada, pois, ao invés de fazer falar sua linguagem própria, os cineastas utilizam o cinema em função de uma estética e de temas que lhes são exteriores. Quer se fale do teatro, do cinema ou da pintura, a ideia de Artaud é sempre a mesma: é preciso encontrar os meios de expressão próprios a cada arte. Por isso acreditamos em um Teatro da Crueldade, um Cinema da Crueldade ou uma Pintura da Crueldade, por exemplo, pois que são atravessados pelas mesmas preocupações. No caso do cinema, a relação entre as imagens desencadearia um poder revelador, uma capacidade de elevar corpo e espírito a um nível superior. Mas antes é preciso saber como revelá-la, não se deixando trair pela técnica ou pelas comodidades do meio. A concha e o clérigo ou o Cinema verdadeiro Quando Virmaux (2009) analisa e enumera as obsessões artaudianas presentes em sua obra teatral (o incesto, a roda, os manequins, as dissonâncias e a atualidade) poderíamos, da mesma forma, classificar os temas recorrentes no cinema artaudiano, da preocupação com a imagem, o corpo, o duplo, o espírito, o ser, a violência, a impotência e, principalmente, a paralisia do pensamento, que geralmente aparecem relacionados. Em Fragmentos de um diário do inferno, por exemplo, Artaud explica que faz muito tempo que eu não comando mais meu espírito, e que meu inconsciente todo inteiro me comanda com impulsos que vem do fundo de minhas raivas nervosas (...). Imagens espremidas e rápidas, e que não pronunciam a meu espírito nada além de palavras de cólera e ódio cegos... (OC, I*, p. 115, grifo nosso) 50 . São questões que levam Artaud a um cinema da crueldade quase que por ato contínuo, ou por desafio. Em 15 de março de 1923, o cineasta René Clair acredita, como Artaud, que poucos são os cineastas que sabem tirar proveito dessa nova forma de arte. 50 « ... mais voilà longtemps que je ne comande plus à mon esprit, et que mon inconsciet tout entier me commande avec des impulsions qui viennent du fond de mes rages nerveuses et du tourbillonement de mon sang. Images pressées et rapides, et qui ne prononcent à mon esprit que des mots de colère et de haine aveugle... ». 84 E, por isso, Clair lança uma enquete para artistas de várias áreas com duas perguntas: 1) De que gênero de filme você gosta; e 2) que gênero de filme você gostaria que fosse criado. Artaud, em resposta, afirma gostar de todos os gêneros, mas o mais importante é que o cinema possuía uma vasta área descolonizada onde praticamente tudo ainda estava por ser feito, uma grande álea vazia e plena de possibilidades a serem exploradas. Como se o cinema de verdade ainda não existisse. E dos dois caminhos que, para ele, estavam abertos ao cinema no momento, nenhum era o verdadeiro. De um lado, o cinema puro e absoluto, tão abstrato que restaria insensível mesmo às mais apuradas das sensibilidades, pois a origem da emoção implica o reconhecimento, o mínimo que seja, de algo substancial que faça vibrar o espírito; por outro lado, o filme de fundamento psicológico, histórias que poderiam perfeitamente permanecer nas páginas de um livro. Artaud, por sua vez, advogava a ideia de um cinema verdadeiro, ―de situações puramente visuais, cujo drama decorreria de um choque infligido aos olhos, tirado, se ousamos dizê-lo, da própria substância do olhar‖ (2006a, p. 159), sem a necessidade de recorrer às circunstâncias discursivas, textuais, mas uma ação imagética intraduzível pela palavra e agindo diretamente sobre o cérebro. Artaud procurou concretizar essas ideias principalmente em seu roteiro A concha e o clérigo (1927). Filmado pela cineasta de vanguarda Germaine Dulac, esse filme gerou discussões e querelas que se desenrolaram anos a fio e que retomaremos no momento oportuno. Mas, à guisa de introdução, podemos dizer que, para o autor do texto, trata-se não da reprodução de um sonho, como anunciado por Dulac quando de sua exibição, em 1928, mas de buscar ―a verdade sombria do espírito através de imagens originadas exclusivamente delas próprias, que não extraem seu sentido da situação em que se desenvolvem, mas de um tipo de necessidade interior e poderosa...‖. (2006a, p. 160). Ora, segundo Artaud, iniciado nas questões candentes da psicanálise da época, os sonhos têm sua lógica, sua própria vida, e não é o caso de seguir nenhuma lógica que não seja a da própria imagem. Se os sonhos possuem suas camadas de significação, o cinema lida com a pele humana das coisas, a derme da realidade. Por quê? Artaud não chega a ser claro sobre esse ponto, mas podemos inferir disso tudo uma espécie de elogio da superfície. É possível, se se considerar que a pele é o mais profundo e o mundo ferve sob essa camada estreita de tecido humano. Artaud fala de pele como quem fala de corpo, e fala de corpo como realidade única e material, que precisa ser refeito e reorganizado em cada processo singular de 85 subjetivação, sem obedecer a nenhuma ordem, organização superior ou um sistema de juízo. Pois o corpo que dança e se liberta não busca uma verdade última e profunda das coisas, mas apenas a alegria de perder-se de si mesmo (e, ao mesmo tempo, encontrar-se a si mesmo), povoar-se de intensidades, desfazer o eu, sair da estratificação. Citaremos uma passagem um tanto longa, mas que julgamos necessária para o esclarecimento deste ponto específico e que talvez corrobore com a nossa interpretação. O cinema, para Artaud, exalta a matéria e a revela para nós em sua espiritualidade profunda, em suas relações com o espírito de onde ela se originou. As imagens nascem, derivam umas das outras enquanto imagens, impõem uma síntese objetiva mais penetrante que qualquer abstração, criam mundos que não pedem nada a ninguém nem a nada. Mas desse puro jogo de aparências, desse tipo de transubstanciação de elementos, nasce uma linguagem inorgânica que mobiliza o espírito por osmose e sem nenhuma espécie de transposição em palavras. E pelo fato de lidar com a própria matéria, o cinema cria situações que provêm do simples choque de objetos, formas, repulsões, atrações. Ele não se separa da vida, mas reencontra a situação primitiva das coisas. (...) uma certa agitação de objetos, formas, expressões, só se traduz bem nas convulsões e sobressaltos de uma realidade que parece se destruir a si mesma com uma ironia na qual ressoa o grito dos confins do espírito. (2006a, p. 161, grifo nosso). Este trecho um tanto denso de sua teoria do cinema é o último parágrafo de um texto chamado Cinema e Realidade, de 1927, escrito como uma espécie de prefácio para A concha e o clérigo, no intuito de resolver alguns mal-entendidos acerca de seu objetivo real ao elaborar o roteiro. Vemos aí, de forma bastante condensada, várias questões importantes que Artaud desenvolve não apenas para pensar o cinema, mas que percorrem toda a sua obra. Dentre elas ―a espiritualidade da matéria‖, construções autônomas que ―não pedem nada a ninguém nem a nada‖, ―puro jogo de aparências‖, ―transubstanciação de elementos‖, ―linguagem inorgânica‖, ―choque de objetos‖, ―situação primitiva das coisas‖ e por aí vai. Como observa Paule Thévenin (2006), quando Artaud diz espírito, trata-se não de um conceito espiritualista, mas emanação de uma força nervosa coagulada em torno dos objetos, pois o espírito pertence à matéria. Portanto, lidamos aqui com um tipo de Mistério, de Inominável ou Insondável, mas imanente ao próprio espírito enquanto vivo na carne, no ser, na vida como experiência outra, transformação e exultação, regozijo, alegria e prazer, mas também dor, sofrimento, choque, esfacelamento, destruição e 86 reconstrução, desterritorialização e reterritorialização, um devir, mulher, animal, criança; enfim, falamos de um cinema nômade. Está n‘O Umbigo dos Limbos: ―Lá onde outros propõem suas obras, eu não pretendo fazer outra coisa senão mostrar meu espírito‖. E, no entanto, Eu não concebo nenhuma obra separada da vida. (...) Eu sofro porque o Espírito não está na vida e porque a vida não seja o Espírito. (...) Eu digo que o Espírito e a vida comunicam em todos os graus. (...) Eu gostaria de fazer um livro que perturbasse os homens, que fosse como uma porta aberta e que os levasse lá onde jamais consentiram em ir, uma porta simplesmente aberta para a realidade (2006a, pp. 207-8). Em suma, o espírito é a carne que pensa, pois o pensamento tem raízes no conhecimento de si mesmo. Portanto, podemos dizer que Artaud é uma espécie de espiritualista-materialista, um metafísico da imanência. Sua transcendência é, pois, imanente, e nada escapa a esse jogo de forças que tornam o corpo indissociável da mente, dos objetos, do espaço. E se citamos um poema artaudiano para embasar sua teoria cinematográfica, é porque acreditamos na indissociação de suas ideias. Mesmo quando se mudam os meios, o objetivo permanece: fazer, como Van Gogh, aquele suicidado, com que enxerguemos mais longe que a real e imediata aparência dos fatos, ou, como no sentido deleuziano (DELEUZE, 2005), encaremos o intolerável, o insuportável. Artaud, um anjo obsceno? Sylvère Lotringer (BAUDRILLARD, LOTRINGER, 2005), observa uma certa aproximação não declarada entre os trabalhos de Baudrillard e o autor de Para acabar com o julgamento de Deus. Uma cena, seja no teatro ou cinema, pressupõe encenação, o pacto tácito de que aquilo que se passa no palco ou na tela não representa o real, mas revela uma distância, uma espécie de jogo de alteridades, de projeção e identificação. De outra forma, no campo da obscenidade, ou seja, da visibilidade total das coisas, não há mais cena, o jogo, e a distância do olhar se desfaz. Ato contínuo, pensamos no teatro político russo, o qual Artaud não ignorava. Sabe-se que participou do filme L’ópera de quat’sous (1931), com direção de Georg Wilhelm Pabst e baseado na obra de Bertold Brecht. Mas o teatro político de um não se 87 opõe nem converge totalmente com o teatro metafísico e mágico do outro. São, talvez, paralelas que se cruzam em alguns pontos. Se pensamos um cinema obsceno artaudiano, é porque percebemos nele a realização do próprio corpo, ou seja, um devir real, sem a dimensão metafórica, como nos cinemas de Lars Von Trier ou Rainer W. Fassbinder, mas no registro da ironia, no sentido de não banalizar a própria obscenidade. Talvez seja nisso que Artaud tenha pensado ao dizer, num texto chamado Feitiçaria e Cinema (2006, LINGUAGEM..., p. 172), que ―o cinema é essencialmente revelador de toda uma vida oculta, com a qual nos colocamos em contato‖. Artaud e Baudrillard Pensar o cinema (ou a arte em geral) é, portanto, tratar de um ―objeto-sujeito‖ por um ―sujeito-objeto‖. Tomemos, como exemplo, a famosa análise de Artaud sobre o quadro de Lucas van den Leyden chamado As filhas de Loth, em O Teatro e seu Duplo (OC, vol. IV, 1978). O texto é A encenação e a metafísica. A obra pode ser examinada de infinitas formas, pois que não cansa de emitir sinais infinitamente. Há nele a questão propriamente técnica da harmonia visual, o tema da sexualidade, do incesto, os efeitos de perspectiva, a ideia de caos e equilíbrio simultâneos, ideias de devir, fatalidade, mito, natureza, cultura etc. Mas digamos de uma vez aquilo que pretendemos: a teoria do cinema artaudiana passa também por um sistema de signos e objetos, cuja relação converge em uma gramática imagética. Por isso o equívoco comum de se pensar que Artaud seria um inimigo figadal da palavra no cinema, o que seria verdade no caso de um cinema falado. Em uma carta a Yvonne Allendy, datada de 10 de abril de 1929, ele adianta: ―farei um roteiro para um filme visual naturalmente. O cinema será sempre visual, mas de tal maneira que se possam acrescentar as palavras sem mudar o desenvolvimento das imagens 51” (OC, vol. III, p. 147. Grifo do autor). Ou seja, a palavra entra aí como signo ou objeto que participa de uma ação sem nenhuma hierarquia, mas num sentido horizontal. 51 « Je ferai le scenário pour um film visuel naturellement. Le cinéma sera toujours visuel, mais de telle sorte qu’on puisse ajouter les paroles sans rien changer au déroulement des images. » 88 Essa digressão vem a propósito da observação de Thévenin sobre o espírito como emanação de uma força nervosa coagulada em torno dos objetos. Ora, se retomarmos a longa citação anterior referente às ―imagens [que] nascem e derivam umas das outras enquanto imagens‖, percebemos aí uma aproximação entre as teorias do cinema artaudiana e do objeto em Jean Baudrillard (2000). Diz o filósofo francês: o que realmente me interessou, não é tanto o objeto fabricado em si mesmo, mas o que eles dizem uns aos outros, o sistema de signos e a sintaxe que elaboram. (...) Para mim, dentro deste mundo de signos, eles escapam rapidamente a seu valor de uso para jogar entre eles, para se corresponderem 52 (pp. 11-2). É como se os objetos ou imagens pudessem ter uma vida própria e íntima, sair da passividade para adquirir um tipo de autonomia ou mesmo uma capacidade de se vingar de um sujeito que mantem a certeza de estar sempre no controle. É nesse sentido que falamos acima sobre o esfumaçamento da fronteira sujeito-objeto na relação com a arte e principalmente com o cinema artaudiano. Pois, para Artaud, o primeiro grau do pensamento cinematográfico parece estar na utilização de objetos e formas existentes aos quais se pode fazer dizer tudo, pois as disposições da natureza são profundas e verdadeiramente infinitas (2006a, p. 176. Grifo nosso). Essa ideia foi desenvolvida sobretudo em A concha e o clérigo, cujas imagens não seguem um ordenamento lógico, mas se combinam intimamente, exprimindo uma significação interior no intuito de desenvolver não uma narrativa linear, mas uma sequência de estados de espírito capaz de forçar o pensamento a buscar uma saída. Consta que teria sido o primeiro filme surrealista da história. Um cineteatro artaudiano? Artaud chega a Paris aos 24 anos de idade, em 1920, época de grande agitação cultural. Frequentava com grande interesse todos os tipos de espetáculos teatrais, e conheceu desde as vanguardas mais ousadas aos vaudevilles mais populares. Neste mesmo ano chega inclusive a fazer figuração em várias peças e escrever críticas de arte 52 Ce qui m’a vraiment intéressé, ce n’est pas tant l’objet fabriqué en soi mais ce que les objets se disaient les uns aus autres, le système de signes et la syntaxe qu’ils élaboraient. (...) Pour moi, dans ce monde de signes, ils échappaient très vite à leur valeur d’usage pour jouer entre eux, pour se correspondre. 89 na revista Demain, fundada pelo Dr. Toulouse. Visita poetas, escritores, salões de artes plásticas, vernissages, mas é sobretudo o teatro, naquele momento, que o move. Artaud ainda não trava contato profundo com o cinema, mas já em torno de 1890, ou seja, cinco anos antes do advento do cinematógrafo, as discussões acerca da renovação da linguagem teatral, divididas principalmente entre as tendências realista e simbolista, estavam bem animadas. E Artaud capta com muita sensibilidade tudo o que se passa ao redor, formulando questões que resultarão futuramente em sua própria teoria do teatro. Segue ativamente e muito de perto a efervescência artístico-intelectual parisiense, e a partir de 1923 passa a cultivar também o gosto pelo cinema (junto com o desenho, a pintura, a literatura, a poesia e a prosa). E logo cedo pensa na possibilidade da relação entre as duas manifestações artísticas (e posteriormente entre todas elas). Não apenas ele. O próprio Charles Dullin, com quem Artaud havia trabalhado em 1921, no Théâtre d’Atelier, e que teve grande influência em sua formação dramática, destacava como o cinema poderia influenciar em uma nova concepção de teatro e sobre o desempenho do ator. O jovem Artaud interessa-se vivamente pelas interpretações obcecadas de Buster Keaton, pela magia de Charles Chaplin e o surrealismo cômico dos Irmãos Marx, aos quais dedicaria, futuramente, um artigo elogioso em referência aos filmes Os galhofeiros (1930) (pleno de surrealismo) e A culpa é do macaco (1931) 53 (cheio de anarquia e revolta total). O humor e a ironia passam a ser desde então dois pilares importantes da crueldade artaudiana. No preâmbulo ao seu livro Artaud e o Teatro (2009), Alain Virmaux responde a algumas questões decisivas para compreender a obra artaudiana, e que logo se colocam a partir mesmo do título de seu texto. Consideramos Artaud um ser inclassificável por excelência. Passeou com certa profundidade por todas as formas de arte as quais dedicava sua vida. Portanto, como falar de seu teatro sem pensar em seu cinema? Como refletir acerca de sua poesia sem chegar aos seus sortis? Como ver seus desenhos divorciados de sua pintura? Olhar Artaud apenas como homem de teatro ou cinema seria talvez o mesmo que deparar-se com um iceberg, cuja parte submersa não pode ser desconsiderada. Seria, portanto, mutilá-lo, perder de vista sua visão global. E isso o autor reconhece, mas defende que ―o mito‖ de seu nome foi assegurado inegavelmente pelos escritos sobre o teatro. E completa: ―talvez o teatro não seja a única chave que permita chegar ao seu 53 No original, respectivamente, Animal Crackers e Monkey Business. 90 universo mental; será para nós, ao menos, uma chave decisiva‖ (VIRMAUX, 2009, p. 6, grifo nosso). Não podemos negar. De fato, são textos de suma importância para compreender Artaud. Mas quando fala de teatro Artaud está falando de teatro? Ou, por contingências da vida ele, o teatro, transformou-se em via privilegiada do autor para comunicar-se com o mundo e revelar suas próprias angústias filosóficas frente à vida e o homem? E quando fala de cinema, é a mesma coisa? Do que se trata, afinal? A primeira edição de Artaud e o Teatro data de 1990. Mas Artaud é alguém que está incessantemente sendo relido, redescoberto e revisitado. E décadas depois (aliás, um movimento que vem acontecendo mesmo antes) podemos dizer que as ―chaves decisivas‖ se multiplicaram em chaves de leitura interdisciplinares. Por óbvio, diante de uma obra tão vasta e sobre temas tão variados é preciso escolher uma toca de entrada e fazer o recorte, mas é quase inevitável cair no rizoma, no platô que leva a outro e assim por diante. É a angústia de enfrentar a complexidade de tal desafio. E uma de nossas hipóteses, neste momento, é que, após a descoberta da chamada sétima arte por Artaud, em 1923, suas reflexões sobre teatro e cinema se retroalimentam de forma concomitante e quase indissociável. Sabemos que são duas linguagens diferentes. Cinema e teatro são capazes de oferecer possibilidades técnicas que o outro não possui. Por exemplo, no palco, temos o corpo vivo presente do ator em possibilidade de interação direta com o público, o que não existe no cinema. No filme O último ato (2015), adaptação do romance do americano Philip Roth A humilhação (2009), o último ato do ator em decadência no qual o protagonista (Al Pacino) se transforma, enquanto encena A Gaivota, de Tchéckov, é o próprio suicídio, real, irrevogável, inimaginável, inesperado. E os grandes planos abertos ou fechados, os travellings e flash-backs, podem o teatro nos oferecer? No final de 1924, Artaud (2006a, p. 170), desiludido com a arte da representação, crê na possibilidade de que um dia o cinema deixará para trás o teatro, relegando-o a um baú de recordações. São os altos e baixos de alguém sempre em busca de algo inominável. O mesmo desgosto ele terá, anos depois, também com o cinema. Mas tratemos das convergências. Não esqueçamos que, enquanto Artaud formula suas questões, em meados da década de 1920, os dados sobre o futuro do cinema ainda estão sendo jogados. Com a introdução do cinema falado na França, em 1929, a indústria passa a recrutar seus atores no teatro, pois as belas faces precisam casar com belas vozes. É a época de ouro do teatro filmado, que durará ainda um longo 91 tempo. Mas para alguns críticos de teatro, os filmes parecem teatros montados em frames por segundo, o que não os agrada. E podemos dizer que, ainda hoje, a discussão persiste, embora como menos fígado e mais fleuma. Décadas depois, André Bazin (1975) sublinha que o teatro permite ver melhor o cinema, pois a partir daquele nos damos conta das operações simples de montagem, pontos de vista, relação entre imagem e som etc., cuja presença nas salas escuras de projeção costumamos ignorar. Curiosamente, encontramos em Bazin uma aproximação importante em relação a Artaud. Pois, escreve Bazin, ―Mais o cinema se propõe em ser fiel ao texto e a suas exigências teatrais, mais necessariamente ele deverá aprofundar sua linguagem‖ (BAZIN, 1975, p. 171)54. Trocando em miúdos, temos aqui dois pontos nevrálgicos: questionar a fidelidade ao texto e aprofundar sua própria linguagem. Ora, são essas duas bases cruciais nas quais Artaud se equilibra para pensar tanto o teatro quanto o cinema. No primeiro caso, ele quer a fidelidade ao corpo, o espaço e os objetos; no segundo, uma fidelidade às imagens e ao imponderável, a um ―não-sei-o-quê‖ que apenas a relação e a fricção entre essas mesmas imagens podem liberar. Podemos, por exemplo, comparar esta frase de Bazin a outra assertiva de Artaud no texto Feitiçaria e cinema (2006a, p. 172): fazer o cinema servir para contar histórias, uma ação exterior, é privar-se do melhor de seus recursos, ir contra sua finalidade mais profunda. Por isso o cinema me parece feito, sobretudo, para exprimir as coisas do pensamento, o interior da consciência e não somente pelo jogo das imagens, mas por alguma coisa de mais imponderável que nos devolve as coisas em sua matéria direta, sem interposições, sem representações. Bazin fala também sobre a fidelidade ao texto. Nesse sentido, se bem o interpretamos, pensamos em termos de subversão das palavras, ou, melhor ainda, em formas outras de comunicação para além delas. Gestos, por exemplo. Expressão corporal. Espaço. Movimento. Luz. Objetos. Mas vejamos apenas uma frase de Artaud, no texto Cartas sobre a linguagem, no livro O teatro e seu duplo (OC, vol. IV, 1978, p. 103,), desta vez, por óbvio, relacionado ao teatro, mas que poderia ser dita tanto por um quanto pelo outro: 54 « plus le cinema se proposera d’être fidéle au texte et à ses exigences théâtrales, plus nécessariament il devra aproffondir son propre langage » 92 Não é absolutamente provado que a linguagem das palavras seja a melhor possível. E parece que sobre a cena que é, antes de tudo, um espaço a preencher e um lugar onde alguma coisa se passa, a linguagem de palavras deve ceder lugar a uma linguagem por signos, na qual o aspecto objetivo é o que nos impressiona mais imediatamente 55 (Grifo do autor). A relação do teatro com o cinema pode ser vista tal como a questão dos meios de comunicação que aparecem regularmente e anunciam o fim de algum outro precedente. O cinema põe fim ao teatro? A televisão ou o DVD marcam a morte do cinema ou do rádio? A internet torna obsoleto o jornal diário em papel? O CD inutiliza o disco em vinil? Hoje sabemos que o surgimento de um novo meio gera, pelo contrário, uma reacomodação ou renovação do antigo em um outro nicho de consumo, em outras experiências de fruição. Lipovetsky e Serroy (2007) refletem sobre o destino da sétima arte no contexto do que eles chamam de uma nova ecranosfera. Segundo os autores passamos, em menos de meio século, do écran-espetáculo para o écran-comunicação e finalmente à era do écran-global. Há telas em todo lugar e a todo momento, para qualquer hora e qualquer situação: lojas, aeroportos, restaurantes e bares, metrô, ônibus, carros, aviões, relógios, celulares, pequenas, médias, grandes, enfim, para todos os gostos e ocasiões. ―O século que se anuncia é aquele do écran onipresente e multiforme, planetário e multimidiático‖ (p. 10)56. Donde uma questão que suscita os autores : será possível que a civilização do écran-global marque a derrocada final do cinema, frente aos seriados, games, filmes projetados para pequenas telas etc.? A resposta: é justamente contra esta ideia melancólica de um pós-cinema que eles se colocam. O verdadeiro cinema 57 , dizem, não está atrás de nós e sim à frente, pois que não cessa de se reinventar, fazendo prova de inventividade, diversidade e vitalidade. Ao lado das grandes produções, os chamados blockbusters, vemos uma grande safra de filmes independentes, de baixo orçamento e grande sucesso, vindos não apenas dos EUA, mas de vários outros países. O anunciado 55 “Il n’est pas absolument prouvé que le langage des mots soit le meilleur possible. Et il semble que sur la scène [teatral] qui est avant tout un espace à remplir et un endroit où il se passe quelque chose, le langage des mots doive céder la place au langage par signes dont l’aspect objectif est ce qui nous frappe immédiatement le mieux (grifo nosso)”. 56 “Le siècle qui s’annonce est celui de l’écran omnipresente et multiforme, planétaire et multimédiatique”. 57 Veremos mais sobre a ideia de cinema verdadeiro na sequência seguinte. 93 crepúsculo das estrelas não aconteceu e o que se vê, na verdade, é a soma de seus cachês subirem a níveis estratosféricos. Da mesma forma, aprendemos a gostar também dos filmes sem estrelas, com pessoas comuns e vidas comuns. Se o cinema pode desaparecer essa ainda é uma questão em aberto, mas avaliando-se pela atual conjuntura a resposta seria um reverberante não. Ao contrário do que possa parecer, a lei de mercado que governa a indústria conduz menos a uma uniformização do que a uma diversificação das ofertas, com filmes mais heterogêneos e imprevisíveis, diz os autores. Afinal de contas, o cinema não saberia se desenvolver sem os filmes inovadores, que alimentam a necessidade do público para a novidade. O mercado também vive de suas contradições, num diálogo entre simetria e assimetria. No auge de sua admiração pelo cinema, Artaud chega mesmo a vislumbrar suas possibilidades futuras, como a mobilidade das câmeras, a velocidade das imagens, o cinema em 3D, as cores, o som, a fala etc. Ele queixava-se, ainda nos anos 1920, que o cinema estava longe de atingir suas possibilidades, talvez já imaginando os problemas que as limitações técnicas poriam ao seu próprio pensamento sobre o meio. Mas à época já se discutia de que forma o cinema teria mais ou menos necessidade do teatro e vice- versa, e em que medida este último ofereceria àquele a possibilidade de refletir sobre a verdadeira natureza do mundo, a partir de um diálogo entre os dois universos e um ponto em comum: a utilização do estúdio, antes do cinema ganhar as ruas. Mas mesmo após essa emancipação, a discussão ainda parece estar longe de ter um fim. São muitos os filmes que se alimentaram do mundo do teatro e o fazem ainda hoje. Lembremos, por exemplo, das películas de Jean Renoir como A regra do jogo (1939) e John Cassavetes em Opening nigth (1977); adaptações teatrais como Um bonde chamado desejo (1951), dirigido por Elia Kazan e baseado na obra de Tennessee Williams; Quem tem medo de Virgínia Woolf? (1966), sob direção de Mike Nichols a partir do texto de Edward Albee, além dos filmes de Roman Polansky, muitos deles originados de peças teatrais, como A pele de vênus (2015), de Sacher-Masoch e O deus da carnificina (2011), de Yasmina Reza. Sem esquecer o emblemático Festim diabólico (1948), de Alfred Hitchcock, praticamente um cineteatro, com planos-sequência de 4 a 10 minutos e apenas 8 cortes, editado de tal forma que sugere a impressão de um único bloco de 77 minutos. Charles Tesson (2007) explica que, no teatro, assim como no início do cinema, este ainda dependente dos estúdios, cujos espaços fechados facilitavam uma dinâmica 94 teatral dos filmes, tudo aquilo que está sobre a cena ou o palco, cenários e acessórios, escolha da iluminação, objetos, tudo desempenha um papel e deve causar um efeito no espetáculo e no espectador. Tocamos, assim, num dos pontos centrais da teoria artaudiana tanto do cinema quanto do teatro, ou seja, a questão do espaço, do diálogo entre os objetos, o som e a iluminação, elementos que concorrem para causar um determinado efeito de dramaturgia. Em Feitiçaria e Cinema (2006, LINGUAGEM, P. 172), mais uma vez, uma de suas mais importantes reflexões sobre o cinema, diz ele: O menor detalhe, o objeto mais insignificante, adquirem um sentido e uma vida que lhes pertencem, intrinsecamente. É isso, excetuando-se o valor de significação das próprias imagens, os pensamentos que elas traduzem, o símbolo que constituem. Pelo fato de isolar os objetos ele lhes dá uma vida à parte, que tende mais e mais a tornar-se independente e a destacar-se do sentido comum desses objetos. Uma folhagem, uma garrafa, uma mão etc., vivem uma vida quase animal, e que pede apenas para ser utilizada. Há também as deformações do aparelho, o uso imprevisto que faz das coisas que registra. No momento em que a imagem acontece, um detalhe no qual não se havia pensado, inflama-se com um vigor singular e vai contra a impressão buscada. Como observa Morin (1958), desde o século XVII, os limites da cena do teatro estão ordenados em um determinado espaço físico. Já o cinema tem a possibilidade de percorrer grandes espaços. No teatro, o espectador vê todo o campo espacial, ou seja, não há o extracampo 58 , como no cinema. Em contrapartida, no teatro, é o olho do espectador, levado pelo processo de projeção-identificação, que funciona como uma câmera, viajando ―móvel, livre, regulando-se permanentemente num quase close-up, em planos americanos, em planos de conjunto, em travellings e panorâmicas” (p. 149, grifos do autor), de acordo com suas escolhas psíquicas proporcionadas pelo ambiente da representação que fixam a atenção do espectador em tal ou qual personagem. Por outro lado, no cinema, temos uma situação inversa. A contínua mobilidade da câmera ―vem precisamente realizar os processos psíquicos do espectador de teatro‖ (p. 150). Para Morin (1958), haveria então uma dialética entre teatro e cinema que se processa na relação psicológica do espectador com a obra. Seria essa unidade da visão psicológica que conferiria um denominador comum entre cinema e teatro. Tudo se passa como se, em contato com uma ou outra destas manifestações artísticas, o observador, 58 Na verdade, há o extracampo, mas em menor medida. 95 mais ou menos conscientemente, complementasse o cinema com o teatro mental e vice- versa, por meio de seus processos perceptivos, racionais e imaginários, como que a priori. Como diz o autor de O cinema ou o homem imaginário, Há, pois, um cinema secreto no teatro, e, de igual modo, uma grande teatralidade a envolver qualquer plano de cinema. No primeiro caso, a visão psicológica cinematomorfiza o teatro; no segundo caso, racionalização e objetivação teatralizam o cinema. No primeiro caso, os quadros racionais e objetivos são fornecidos pelo teatro (unidade de lugar e de tempo); no segundo caso, é a visão psicológica que é fornecida pelo cinema. No primeiro caso, é o pequeno cinema que temos na cabeça que se põe a funcionar sozinho; no segundo caso, é o nosso pequeno teatro a patentear-nos a sua cena e o seu espaço (1958, p. 150, grifo nosso). Artaud aposta por mais de uma década no cinema. Acredita que o cinema pode efetuar uma teatralização mais profunda que o próprio teatro, mesmo sabendo de suas potencialidades e limitações. Por ainda ser mudo, é puramente visual, incapaz de liberar, por exemplo, as potencialidades sonoras do teatro. Quando Artaud descobre o cinema, em 1923, passa a pensar a teoria cinematográfica concomitantemente com suas reflexões sobre o teatro. De 1920 a 1936, contribui amplamente, como ator, diretor e teórico para a renovação teatral. Esse período corresponde igualmente com o desenvolvimento das vanguardas cinematográficas, reunindo, entre outros, Abel Gance, Germaine Dulac, Jean Epstein e Louis Delluc. Entre 1924 e 1935, Artaud colabora também como ator, roteirista, crítico e teórico para o aprofundamento da linguagem cinematográfica. E tenta conciliar os dois ofícios simultaneamente. Há vários registros em cartas enviadas a amigos nos quais afirma estar retido em estúdios ou outros países (Itália, Alemanha, Argélia etc.) por conta de alguma filmagem. Sequer atuou em seu próprio filme, A concha e o clérigo, por estar envolvido em outra produção, A paixão de Joana d’Arc, de Carl Dreyer. No mesmo ano em que funda sua primeira experiência teatral própria, juntamente com Roger Vitrac e Robert Aron, o Teatro Alfred Jarry, em 1926, participa como ator em dois filmes, O judeu errante e Mathusalem (1926). O drama permanente 96 Como sói acontecer em quase qualquer autor com uma obra tão vasta e abrangente, principalmente aquelas construídas em sua grande parte por meio de missivas, ou seja, textos de cunho bastante pessoal e de forma não sistemática e metodológica, é possível encontrar, como no caso de Artaud, do início ao fim de seus escritos, ideias, noções e formulações claudicantes que vão se transformando e buscam um desenho definitivo e um registro acabado antes de serem lançados a apreciação pública, e que podem ser incorporadas ao seu cabedal teórico ou descartadas sem muito alarde logo depois. Ou seja, é possível perceber contradições internas em seus textos de juventude e maturidade ou mesmo durante a produção de uma noção no momento mesmo em que ela se desenvolve. É a angústia do conceito e da criação que acomete os grandes pensadores. No caso de Artaud a questão se torna ainda mais evidente por ser alguém que escreve compulsivamente (em que pese a sua luta constante contra a palavra e a paralisia do pensamento, sendo essa uma de suas contradições) e no calor dos acontecimentos e revoluções internos. Ao ler sua obra, compreendemos o amadurecimento de seu pensamento quase no mesmo instante em que acontece. A incorporação de algumas ideias e o abandono de outras, enquanto vai sendo construída sua autonomia teórica em meio a suas mudanças de influências criativas. Quando dizemos que é difícil separar o autor de suas ideias lembremos que a própria ciclotimia artaudiana o fazia rejeitar ideias construídas em plena efervescência criativa por causa das vacilações de humor causadas por tal ou qual acontecimento, para logo em seguida serem reapreciadas com bastante satisfação. Tudo dependendo do nível de sua potência de agir. Artaud, homem de teatro, da poesia ou do cinema, os amou e os odiou na mesma medida, em pequenos lapsos de tempo. Não obstante, sempre houve algo que permaneceu. Lembremos, por exemplo, de sua famosa troca de correspondências com Jacques Rivière. Seja no teatro, no cinema, na poesia, na pintura, nos desenhos ou sortis, encontramos, do início ao fim, a questão metafísica ou ontológica do ser, do espírito, da impossibilidade de pensar, de encontrar a forma adequada de expressão, de buscar um lugar no mundo, de comunicar-se com o exterior, de revolucioná-lo, de atingir o espírito dos homens e transformá-los, curá-los por meio do que ele chamaria posteriormente de uma cura cruel. Talvez seja esse o ponto que tranversalize todas as suas manifestações artísticas e de pensamento, mesmo apesar de todas as reviravoltas. Sobre Rivière, um dos seus primeiros e principais 97 interlocutores, intelectual francês, editor da revista Nouvelle Revue Française, suas correspondências demarcam este ponto de partida. No ano de 1923, Artaud envia seus primeiros poemas, de cunho surrealista, para Rivière no intuito de serem publicados na Nouvelle Revue Française (doravante, NRF). A resposta é negativa, mas segue-se a ela uma interlocução assaz esclarecedora daquilo que detona doravante o fio condutor de sua vida intelectual. Em carta datada de 5 de junho, diz ele, em réplica a Rivière: Eu sofro de uma terrível doença do espírito. Meu pensamento me abandona em todos os níveis. Desde o fato do pensamento ao fato exterior de sua materialização em palavras. Palavras, formas de frases, direções interiores do pensamento, reações simples do espírito, eu estou à procura constante de meu ser intelectual. Logo que eu consigo capturar uma forma, mesmo imperfeita que ela seja, eu a fixo, amedrontado de perder todo o pensamento. Eu estou aquém de mim mesmo, eu sei, eu sofro (...) É todo o problema do meu pensamento que está em jogo. Não se trata para mim de nada menos que de saber se eu tenho ou não o direito de continuar a pensar, em verso ou em prosa. (OC, I*, 1984 pp. 24-5) 59 . Nesse tom segue o diálogo epistolar. É como se dissesse: por que existe o eu e não o nada? Aliás, por que existo, e como faço para tomar essa existência menos dolorosa? Artaud preocupa-se com o cogito ergo sum, mas, no seu caso, nem o pensamento nem o eu se pronunciam, desfazendo, de certa forma, a velha questão cartesiana. Como existo se não penso, ou meus pensamentos fogem no momento mesmo em que os concebo e não consigo captura-los em nenhuma forma, palavras, imagens, desenhos etc.? No final das contas, Rivière, impressionado com as questões levantadas pelo interlocutor, aventa a possibilidade de publicar, não ainda os poemas, mas a própria troca de cartas, cuja entonação o toca profundamente 60 . Essa digressão vem a propósito da relação entre o cinema e o teatro artaudianos. Nesse contexto ele tenta apreender essas formas de pensamento que o escapam, apreendê-las principalmente em imagens. Em relação ao cinema, ele é imagético por excelência. No caso do teatro, diz ele, é preciso reaprender a 59 Je souffre d’une effroyable maladie de l’esprit. Mas pensée m’abandonne, à tous les degrés. Depuis le fait simple de la pensée jusqu’au fait extérieur de sa matérialisation dans de mots. Mots, formes de phrases, dicrections intérieures de la pensée, réactions simples de l’esprit, je suis à la poursuite constante de mon être intellectuel. Lors, donc que je peux saisir une forme, si imparfaite soit-elle, je la fixe, dans la crainte de perdre toute la pensée. Je suis au-dessous de moi-même, je le sais, j’en souffre (...) C’est tout le problème de ma pensée qui est en jeu. Il nse s’agit pour moi de rien moins que de savoir si j’ai ou non le droit de continuer à penser, en vers ou en prose. 60 As cartas serão publicadas em 1924 na NRF. 98 ―ser místico ao menos de uma certa maneira; e nos aplicando à um texto, nos esquecendo de nós mesmos, esquecendo o teatro, esperar e fixar as imagens que nascem em sua nudez, naturais, excessivas, e ir até o fim dessas imagens‖ (OC, vol. II, p. 11)61. É um ponto de interlocução importante entre as duas artes. Artaud pensa em termos de imagens, e essa é uma das questões sempre presentes em sua obra. Reproduzir sonhos, criar ilusão de realidade mais real que o próprio real, depois vem o acaso, o acaso objetivo 62 , a repetição, o mito, o mítico, a ciência, a técnica, a magia, o signo, a luta contra a palavra, a desintegração do verbo, da imagem, do corpo, reconstruir um corpo, reconstruir a vida, a si mesmo, como alguém que nasce de sua obra, de sua própria dor, e não de papai-mamãe. Cada um de seus projetos, seja no cinema ou teatro, pode ser lido como um drama mental, um movimento pendular entre o sonho e a realidade. Não seria esse mesmo o cerne de ambas as manifestações artísticas? Morin (1958) afirma a realidade semi-imaginária do homem. E o trabalho antropológico de Artaud nesse sentido é continuar o trabalho ancestral de alienação das imagens criadas pela humanidade, seja em pedra, marfim, papiro, teatro ou écran. Pois ―O cinema dá-nos, não só o reflexo do mundo, mas também o do espírito humano‖ (Morin, p. 241). O essencial continua sendo o poder mágico do teatro e do cinema. Mas o mecanismo do sonho para Artaud, paradoxalmente, pode ser melhor explorado por meio da técnica e da ciência aliada à paixão. A iluminação, o som, os objetos, a conformação do cenário, o atletismo afetivo, o conflito de imagens, a montagem, os planos, a indução ao transe, ao confronto com o impensável, o inimaginável, o intolerável etc. Isso, acreditava ele, a máquina de sonhos pode fazer. Martin Esslin (1976, p. 88) evidencia que Autores como Godard e Antonioni produzem profundo drama metafísico através do uso da realidade física, imediata, espontânea e, no entanto, meticulosa e deliberadamente moldada e estruturada. A aparente contradição interna entre a insistência de Artaud na total realidade e espontaneidade, de um lado, e na mais precisa e 61 Être mystique au moins d’une certaine façon; et nous appliquant à un texte, nous oubliant nous- mêmes, oubliant le théâtre, attendre et fixer les images que naîtron en nous nues, naturelles, excessives, et aller jusqu’au bout de ces images . 62 Entre o Teatro Alfred Jarry e o Teatro da Crueldade, a noção de acaso sofre uma transformação. Se no primeiro momento o acaso é imperativo, no segundo seu espaço será reduzido a um acaso objetivo, ou seja, minimamente calculado e quase irrelevante em relação à obra encenada. 99 premeditada maestria artística, do outro, pode ser superada pela combinação do registro da realidade imediata e espontânea pela câmera e sua precisa e deliberada estruturação pela montagem (Grifo do autor). Ora, a técnica nasce porque a sonhamos antes. Diz Morin (1958, p. 250): ―Esforça-se a técnica por dar, na prática, uma forma humana à natureza e um poder cósmico ao homem. (...) Imaginário e técnica apoiam-se um no outro, ajudam-se mutuamente‖. Imaginário e técnica. Das primícias do Teatro Alfred Jarry, passando pelo Teatro da Crueldade, pelo Cinema e chegando ao seu último ato, Para acabar com o julgamento de Deus, transmitido pelo rádio em 1948, pouco antes de sua morte, Artaud desenvolve uma metodologia rigorosamente técnica para a aplicação de sua arte no imaginário coletivo. E no fim das contas, diz ele, ―Se nós fazemos um teatro não é para encenar peças, mas para que aquilo tudo que há de obscuro no espírito, de soterrando, de irrevelado se manifeste em um tipo de projeção material, real‖ (OC, II, 1980, p. 23, grifo nosso) 63 . Como bem observa Virmaux (2009), o que nos oferece A conquista do México, por exemplo, primeiro espetáculo projetado rigorosamente para ser encenado dentro dos moldes do Teatro da Crueldade, cuja temática permitia penetrar no coração da crueldade dos mitos e da história, e de evocar, por meios dos gigantescos movimentos da multidão, o choque entre duas civilizações, enfim, o que ele nos promete é a perspectiva de um teatro sonhado, no sentido do sonho ou do pesadelo, do drama mental, do choque dirigido ao organismo, com uma sistemática semelhante a de seus filmes e roteiros. Daí a semelhança na sugestão imagética. Em A Concha e o Clérigo, para citar apenas um caso, temos ―o rosto do oficial [que] racha, abre, desabrocha. (...)‖ e uma mulher ―ora com a bochecha inchada, enorme, ora mostrando a língua, que se alonga até o infinito‖ (ARTAUD, 2006a, pp. 162-3). Mesma verve poético-imagética encontrada em A conquista do México: ―tudo treme, geme, como se fosse uma vitrina anormalmente abarrotada (...), sombras de cavalos selvagens passam no ar como meteoros longínquos, como o raio sobre o horizonte repletos de miragens, como o vento que se inclina (...)‖ (OC, vol. V, 1979, p. 21) 64 . 63 « Si nous faisons um théâtre ce n’est pas pour jouer des pièces, mais pour arriver à ce que tout ce qu’il y a d’obscur dans l’esprit, d’enfoui, d’irrélévé se manifeste en une sorte de projection matérielle, réelle .» (OC, II, p. 23, grifo nosso). 64 Tradução de Carlos Eugênio Marcondes Moura em Virmaux, 2009. 100 Imagens-sonho-pesadelo reproduzidas em diversos outros escritos, como no pequeno livreto Não há mais firmamento, onde encontramos personagens como ―o grande farejador‖ cujas feições lembram a pintura de Francis Bacon, com um nariz enorme, gigantescas cabeças retorcidas, fervilhando e balançando em todos os sentidos, como já anunciando a noção de corpo sem órgãos, um corpo-cabeça-torço atravessado por intensidades, vibrações, como um devir-animal, deformações que são também como os traços animais da cabeça (DELEUZE, 2007, p. 29), como se Artaud não quisesse representar seres humanos, coisas, objetos, animais, mas apenas forças poderosas e invisíveis, no sentido de torná-las visíveis, para que possamos conhecê-las e enfrenta- las. 101 SEQUÊNCIA III – SURREALISMO AVANT LA LETTRE A Revolução Surrealista – o início Foi a partir da leitura das correspondências trocadas entre Jacques Rivière e Artaud, publicadas em setembro de 1924 na NRF, que André Breton toma conhecimento deste último e o convida para colaborar com o movimento surrealista. Sua reação inicial é de recusa ou estranhamento. Em carta enviada a Mme. Toulouse, em outubro do mesmo ano, Artaud afirma ter sido desde sempre mais surrealista que os próprios surrealistas, exprimindo suas reticências e reivindicando sua singularidade de vida e autonomia de pensamento: ―Sempre fui, e sei o que é o surrealismo. É um sistema do mundo e do pensamento que eu tenho feito desde sempre. Em ato‖ (OC, vol. I**, p. 112, 1976) 65 . Mas pouco depois aceita o desafio e torna-se um dos membros mais ativos da constelação até a sua expulsão do grupo, em 1926. Em janeiro de 1925, na mesma época em que participava de um dos filmes mais importantes de sua carreira, Napoleão, interpretando o médico, filósofo e jornalista Jean-Paul Marat, em uma das atuações mais marcantes de sua vida, é eleito por unanimidade e plenos poderes como diretor do birô de estudos surrealistas. Investido de controle absoluto sobre a publicação do terceiro número da revista Revolução Surrealista, escreve praticamente todos os textos da 3ª edição do dia 15 de abril, intitulada O fim da era cristã. Sua ocupação à frente da revista não dura muito. Como observa Thomas Maeder (1978), Breton confisca o lugar de Artaud com o argumento de que ele havia levado sua experiência longe demais, aliás, como era comum acontecer em todos os terrenos nos quais se aventurava e pudesse liberar suas inspirações, sempre no intuito de chegar ao limite. Para Artaud, o surrealismo era acima de tudo uma tentativa de guerra social e espiritual contra os valores da sociedade ocidental, uma revolta moral, mais que um movimento literário, contra todo tipo de coerção social que impede o indivíduo de liberar suas forças ocultas de revolta. Daí a publicação de textos cheios de furor, como suas cartas endereçadas ao Papa e aos reitores das universidades europeias, o que para Breton tratavam-se apenas de insultos gratuitos. 65 Je suis beaucoup trop surréaliste pour cela. Je l’ai d’ailleurs toujours été, et je sais, moi, ce que c’est le surréalisme. C’est le systéme du monde et de la pensée que je me suis fait depuis toujours. Dont acte. 102 Em novembro de 1926 é desligado definitivamente do movimento, principalmente por posicionar-se contra a decisão do grupo de aderir ao marxismo do Partido Comunista Francês. Uma atitude contra o dogmatismo da política em nome de uma arte cuja principal característica é sua independência em relação aos dogmas, sejam eles quais forem. O anúncio de sua expulsão é feito por meio de uma brochura intitulada Au grand jour 66 , na qual é denunciado como débil mental, autoritário e inconsequente, cujos interesses pessoais e experiências vazias afastam-no do conjunto do movimento. Artaud responde às ofensas em junho de 1927, em um texto chamado A la grand nuit ou le bluff surréaliste 67 (OC, vol. I**, 1976). Breton não deixava de ter razão, pelo menos em parte. Artaud também. Eram de fato duas concepções diferentes de revolução. Artaud não concebia que o surrealismo pudesse se ocupar da realidade, seja por meio das questões do Oriente, judaica, do aborto, das drogas, da política ou da economia, pois tudo isso o afastava das finalidades interiores, superiores, da alma, do espírito, da imaginação, da boa utilização do sonho, tidas por ele como a base do surrealismo, no sentido de criar uma nova maneira de conduzir o pensamento e as transformações sociais. O mais importante, para ele, seria sair do quadro das aparências para atingir a essência do ser. O surrealismo não foi jamais para mim senão um novo tipo de magia. A imaginação, o sonho, toda essa intensa liberação do inconsciente que tem por trazer à superfície da alma aquilo que ela tem por hábito manter escondido precisa necessariamente introduzir profundas transformações na escala das aparências, no valor da significação e no simbolismo da criação 68 (OC, vol. I**, P. 63, 1976). Trata-se, portanto, de uma revolução de essência espiritual, levada a efeito em um nível diferente da realidade, em uma não-realidade, uma sobre-realidade, uma outra realidade. E como seria isso? Zizek (2010), em sua leitura de Lacan, pode ajudar a iluminar este ponto. Por que uma outra realidade? Porque se a realidade, da forma como a experimentamos, é estruturada pela fantasia, sendo esta aquilo que nos protege do ―real cru‖, então a própria realidade serve de anteparo ao encontro mesmo com o real: ―na oposição entre sonho e realidade, a fantasia está do lado da realidade‖. Ou seja, se a 66 No grande dia. 67 Na grande noite ou o Blefe surrealista. 68 Le surréalisme n’a jamais été pour moi qu’une nouvelle sorte de magie. L’imagination, le rêve, toute cette intense libération de l’inconscient qui a pour but de faire affleurer à la surface de l’âme ce qu’elle a l’habitude de tenir caché doit nécessairement introduire de profondes transformations dans l’échelle des apparences, dans la valeur de signification et le symbolisme du crée. 103 realidade, envolvida no simbólico, nos protege do real traumático, é no sonho que nos defrontamos abertamente com ele. Em suas palavras, ―não é que os sonhos sejam para aqueles que não conseguem suportar a realidade, a própria realidade é para aqueles que não conseguem suportar (o real que se anuncia) em seus sonhos‖ (p. 73). O importante, portanto, é criar uma nova realidade, fazer emergir um mundo inédito por meio da arte, do teatro e do cinema. O sonho, para Artaud, não pode ser apenas um decalque da realidade. As imagens no cinema serão lançadas como um sonho, mas apenas no sentido em que sua violência necessária permita liberar a liberdade mágica do sonho, no que tem de terror e crueldade. Para uma Metafísica pouco ortodoxa O termo ―metafísica da Carne‖, desenvolvido inicialmente nos Textos surrealistas, mostra como Artaud inventa uma metafísica pouco ortodoxa que traz em si sua própria contradição. Se por um lado ele busca ―caminhos ocultos‖ aonde se esconderia uma verdade exotérica suscetível de ser revelada pelas ciências ditas ocultas, por outro há essa investigação da carne como uma rede de intensidades e vibrações nervosas na qual se produzem os primeiros signos do pensamento, uma semiótica do corpo, uma impulsividade da matéria que se constitui como experiência na produção de sentidos, uma técnica espiritual como estratégia de conhecimento (Dumoulié, 1996). Artaud não pode ser considerado, portanto, como um irracionalista tout court, ou vice-versa, mas é investido daquilo que Edgar Morin (MORIN; RAMADAN, 2014) chama de razão complexa, a qual compreende também as contradições insolúveis. Em suma, ele aproxima-se de Morin quando este realiza sua distinção entre razão aberta e fechada. Esta última se recusa a ser fecundada por elementos vindos do exterior de um sistema de pensamento, sendo incapaz de se recriar, se renovar, se reabastecer de novos elementos, fechando-se em suas certezas e dogmas, mesmo que ao preço de sua própria morte por inanição. A razão aberta é, por consequência, antidogmática, no sentido em que admite em seu sistema de conhecimento a emergência de novas informações que forçam uma teoria a se reformar, se abrir e se transformar. A razão fechada não pode compreender aquilo que excede sua própria capacidade de conhecer, fazendo com que a racionalidade caia em um racionalismo (que elimina o princípio de contradição) ou uma racionalização 104 (partindo de um pequeno fenômeno a fim de tirar daí uma verdade geral, uma razão delirante). Ambos os autores não separam a obra da vida. Há sempre uma interfecundação prolífica fazendo-os traçar novas estratégias e linhas de fuga 69 . No limite, para Artaud, trata-se de criar uma outra racionalidade, distante da razão instrumental ocidental, causadora de catástrofes e um constante mal-estar na civilização. É nesse sentido que ele adere ao surrealismo, numa tentativa de destruição sobre destruição de verdades acabadas e valores morais, estéticos ou racionais que produziram um homem condicionado e unidimensional, para quem a verdadeira vida escapa por entre os dedos como a água que corre entre as mãos. A metafísica artaudiana configura, portanto, uma ideia ligada à vida, mesmo que a própria noção de vida em Artaud contenha também suas ambiguidades, pois é ela mesma una e dupla. A questão do duplo, como veremos mais à frente, percorre todo o seu pensamento, do começo ao fim de sua jornada. Por um lado, a vida pode ser considerada um impulso para a existência espiritual, a palavra ―espírito‖ evocando concentração e unidade do eu, mas sem referência à razão, como os instantes privilegiados de iluminação e criação poética. Por outro, ela é também a relação entre consciência e inconsciência, àquilo que pode ser calcado na razão, mas que busca a todo o tempo ultrapassá-la. Pois no limbo da consciência há um mundo obscuro e subterrâneo repleto de riqueza energética cujo trabalho é saber como e quando liberá-la. Essa é a questão colocada, por exemplo, na distinção feita por Artaud entre um teatro Ocidental de tendências psicológicas e um teatro Oriental de tendências metafísicas, cujo melhor exemplo encontra-se em seu texto A encenação e a metafísica, em seu livro O teatro e seu duplo. Nele, como explica o autor, o teatro Oriental é pleno de todo esse acúmulo compacto de gestos, de signos, de atitudes, de sonoridades que constitui a linguagem da realização e da cena, essa linguagem que desenvolve todas as suas consequências físicas e poéticas sobre todos os planos da consciência e em todos os sentidos, forçando necessariamente o pensamento a tomar atitudes profundas que são aquilo que podemos chamar de metafísica em atividade. (OC, IV, p. 43, 1978). 70 69 Como explica Morin (2010), a palavra Método, nome de sua obra mais importante, significa trajetória no sentido grego original. 70 Tout cet amas compact de gestes, de signes, d’attitudes, de sonorités, qui constitue le langage de la réalisation et de la scène, ce langage qui développe toutes ces conséquences physiques et poétiques sur 105 A palavra carne é, portanto, relacionada à vida: ―Nada me toca ou me interessa se não for direcionado à minha carne‖71 (OC, vol. I*, p. 116, 1984), diz Artaud em Fragmentos de um diário do inferno. Artaud utiliza o vocábulo para designar a vida tomada como élan vital e, como tal, vislumbrando a possibilidade de uma existência espiritual. As possibilidades do espírito fechadas na carne dão ao poeta a potência de explorar as riquezas de certa vitalidade que borbulham nas profundezas impessoais do eu (GOUHIER, 1974). Fazer renascer as potencialidades adormecidas do espírito é fazê-las reviver no aprimoramento da vida em uma estética da crueldade. E não é preciso recorrer a categorias topológicas de alto e baixo, de hierarquia, um espírito superior à carne ou vice-versa. Trata-se de retroalimentação horizontal, ou mesmo de uma zona de indiscernibilidade. A metafísica artaudiana começa a ser desenvolvida em seus primeiros escritos, para depois ser retomada em suas reflexões sobre o teatro que, por sua vez, realimentam a discussão da metafísica em um modelo mais aberto, em um novo contexto, acrescentando as ideias de criação, caos, força mágica, mito, rito, retomada de antigas cosmogonias e do retorno às origens. Mas, como observa Gouhier (1974, p. 31), No pensamento de Artaud, o original é, de um lado, a via cósmica que é sempre lá, ser do meu ser, constituindo a natureza, natureza hoje escondida pela cultura. Mas original é também o homem das primeiras eras presumivelmente próximo da natureza, anterior ao reino da razão, não desnaturado pela cultura ocidental. 72 A questão das origens não pode, em todo caso, ser relacionada de imediato a um certo conservadorismo artaudiano ou rousseauniano, um sonho de retorno a uma natureza idílica. Pelo contrário, trata-se de uma revisão dos valores e da cultura tradicional do Ocidente. Mas o que seria esse ―sempre lá‖, essa ―natureza escondida, reprimida, recalcada pela cultura‖ às quais se refere Artaud? Se, não tradição bíblica, primeiro fez-se o verbo, para o poeta francês, o corpo é anterior: ―Artaud propõe o tous les plans de la consciencie et dans tous le sens, entraîne nécessariament la pensée à prendre des attitudes profondes qui sont ce que l’on pourrait appeler de la métaphysique en activité. 71 Rien ne me touche, ne m’intéresse que ce que s’adresse directement à ma chair . 72 Dans la pensée d’Artaud, l’originel est, d’une part, la vie cosmique qui est toujours lá, ètre de mon être, constituant la nature, nature aujourd’hui cachée, reprimée, refoulée par la culture. Mais l’originel est aussi l’homme des premiers âges présumé proche de la nature, antérieur au règne de la raison, no denaturé par la culture occidentale. 106 Pensamento como Corpo, e substitui o Pensamento estratificado em conceitos pela palavra Vida‖ (FELÍCIO, 1996, p. 1. Grifo do autor). Daí o recurso, tanto no teatro quanto no cinema, ao pré-verbal, à linguagem corporal, aos espaços, objetos, cenários, iluminação, gestos, gritos, música, signos, símbolos, hieróglifos, duplos, sonhos, mitos e ritos, no sentido de atingir a vida em estado bruto, ainda não eivada de conceitos petrificantes, ainda não separada da natureza. Em uma palavra, Artaud acredita em uma espécie de inconsciente coletivo, primitivo, universal, que nos atravessa e nos une, uma força mágica cuja função da arte é resgatar e exaltar, impulsionando o espírito a um deslocamento constante. No caso do cinema, é a imagem que se torna capaz de buscar no fundo do espírito as possibilidades não utilizadas da potência do ser cujo mistério perdemos em algum lugar, revelando e nos colocando em contato com toda uma vida oculta inexplorada, permeada de sonhos, imaginação, capacidade criativa, revolta, angústias, alegrias e tristezas e cuja libertação pode promover a transformação da existência, uma perda de si e um reencontro consigo mesmo, uma redescoberta do corpo e do espírito, do pensamento e da própria vida, um humanismo revolucionário que escapa ao diagnóstico do individualismo e da fragmentação contemporâneos. Surrealismo, imagem, morte e ressurreição Antes de abordamos a ideia de cinema artaudiano em sua essência, é importante lembrar que a questão do estatuto da imagem, em menor ou maior grau, sempre fez parte das preocupações de Artaud, direta ou indiretamente. Seus poemas são imagéticos, seu teatro e cinema, suas pinturas e desenhos são, por definição, imagéticos. Já em suas primeiras cartas a Jacques Rivière, em 1924, ele proclama ser um espírito ainda não formado, ou seja, existe a procura de uma forma por meio da qual possa ser reconhecido em sua singularidade e especificidade. O pensamento ainda ―deformado‖ faria de Artaud um ser de estatura menor perante o mundo, irreconhecível, invisível. E sabemos como a visibilidade e o reconhecimento social são necessários na construção do que se chama de sujeito. Enquanto isso, ele se vê como alguém inespecífico, sem identidade, sobre quem se pode pensar mesmo que seja um imbecil ou qualquer outra coisa, um louco ou um gênio incompreendido, como se tal julgamento dependesse mesmo da aquisição de um desenho subjetivo/objetivo próprio. 107 ―Eu sou um espírito ainda não formado, um imbecil: pense você de mim o que quiser‖ (OC, vol. I*, p. 33, 1984)73. A frase remete a uma imagem ao mesmo tempo ligada ao pensamento. Artaud reclama em muitas passagens de sua paralisia em relação ao pensamento, de sua incapacidade de apreendê-lo no instante mesmo de sua formação. E quando ele considera ter captado alguma coisa ele se apressa em coloca-la no papel, mas é nesse instante mesmo que essa ―alguma coisa‖ foge, se esconde, tal como a experiência de um elemento físico-químico que muda de composição a partir do olhar do observador no microscópio, como se reagisse ao fato de ser observado e procurasse escapar a observação, a apreensão. Em O pesa-nervos (OC, vol. I*, 1984), um de seus primeiros poemas, Artaud põe em relevo isso que ele chama de absurda possibilidade de fazer nascer um pensamento ao qual possa se agarrar 74 , e diz-se abalado por uma obstinação do espírito em querer pensar em dimensões e espaços, ou seja, topologicamente, como no teatro ou no cinema, e não por conceitos. A inspiração existe, sem dúvida, mas a falta de coordenadas, a incapacidade em transporta-la para um suporte acusa igualmente sua dificuldade em encontrar um lugar no mundo que seria também uma forma de comunicação com os outros, mas sobretudo consigo mesmo. Enquanto isso não acontece, Artaud é constantemente acometido de um sentimento de não pertencimento, de estar existindo mais que vivendo, sempre ao lado da vida, um sonâmbulo, um autômato comandado por inconsciente e pulsões sobre os quais não possui nenhum controle. Por isso, ao responder uma enquete realizada pelos surrealistas sobre se o suicídio é uma opção, Artaud responde ser apenas uma hipótese, mas para morrer é preciso ter certeza de se estar vivo, mesmo ao preço de uma morte em vida, para se reconstituir como um outro. O corpo, os membros, as pernas, os braços, eles se movem. A paralisia é de outra ordem. Espiritual. Mental. E o máximo que seu pensamento pode perceber são imagens fugidias e rápidas, incapturáveis. Mas adiante veremos a influência dessas inquietações de juventude sobre sua própria maneira de pensar o cinema, com uma lógica de imagens que se engendram, se deformam e combinam. Seria isso, pensamos, uma tomada de consciência de uma força 73 Je suis um esprit pas encore formé, um imbécile: pensez de moi ce que vous voudrez. 74 O título do poema revela essa impossibilidade: o que seria um pesa-nervos? Como concebê-lo em imagem ou palavras? Nervos não podem ser pesados por nenhum instrumento de aferição. 108 inexplorada que por ele passava despercebida, mas que o chicoteava constantemente como que reclamando sua presença. Longe de uma resignação, a partir dos textos surrealistas Artaud passa a pensar a questão da imagem mais como potência e menos como paralisia, e isso coincide com o seu interesse crescente pela sétima arte, ou seja, meados da década de 1920. É o que o leva a escrever, em seu Manifesto em linguagem clara (OC, vol. I**, p. 52, 1976): ―Nenhuma imagem não me satisfaz se não for ao mesmo tempo conhecimento, se traz com ela sua substância ao mesmo tempo que sua lucidez‖75. Trata-se de um espírito cansado da racionalidade discursiva ocidental e que busca uma saída para a renovação do pensamento, talvez no sentido de uma desrazão lúcida. Daí nasce, por exemplo, um olhar mais atento e um questionamento sistemático em relação às potencias do sonho. Desmontar a mecânica do sonho, determinar os elementos de seu sistema para tentar estabelecer um novo sistema aplicável em outros domínios como, por exemplo, no cinema. Pois ―Aquilo que é do domínio da imagem é irredutível pela razão e deve permanecer na imagem, sob pena de se aniquilar. Mas, de toda forma, há uma razão nas imagens...‖ 76 (OC, vol. I**, p. 53, 1976). Paule Thévenin (2006) relembra o interesse de Artaud pelos avanços produzidos por Sigmund Freud acerca de regiões inexploradas da mente. E se o sonho pensa, haveria uma linguagem pela qual esse pensamento seria perceptível, tangível, e por isso mesmo passível de ser colocado em relação com estados mais refinados do espírito, ou seja, no sentido de estabelecer outras relações com o homem e a realidade objetiva. O problema estaria em detectar a lógica secreta de uma linguagem que frequentemente se apresenta em uma série de imagens aparentemente desorganizadas, sob forma de hieróglifos, e transportá-la para outro meio. E é justamente nos hieróglifos que Artaud busca inspiração para seu teatro. Mas assim como no teatro, o cinema artaudiano está em busca de uma nova linguagem física à base de signos e não mais de palavras. O próprio ator de cinema seria, sobretudo, um signo vivo, capaz de representar em si mesmo uma ideia, cuja violência seria suficiente para tornar inútil toda tradução numa linguagem lógica e discursiva. É a isso que ele se refere quando afirma que ―no cinema, o ator não passa de um signo vivo. Ele é, sozinho, toda a cena, o pensamento do autor e a sequência dos acontecimentos‖ (2006a, p. 170). 75 Aucune image ne me satisfait que si elle est em même temps Connaissance, si elle porte avec elle sa substance en même temps que sa lucidité. 76 Ce qui est du domaine de l’image est irréductible par la raison et doit demeurer dans l’image sous peine de s’annihiler. Mais toutefois il y a une raison dans les images.... 109 No sonho existiria um liame invisível ligando um signo a outro, assim como o cinema extrai sua linguagem específica e, portanto, seu sentido próprio, do movimento, organização e matéria das imagens. ―Se o cinema não for feito para traduzir os sonhos ou tudo aquilo que na vida desperta assemelha-se ao domínio dos sonhos, o cinema não existe. Nada o diferencia do teatro‖ (ARTAUD, 2006a, p. 172). A partir dos estudos filosóficos e psicanalíticos sobre o inconsciente, o surrealismo se apoia em uma ciência que pretendia compreender o irracional aparente do sonho, para chegar a um melhor conhecimento do inconsciente e das pulsões que agem sobre nós sem que as percebamos. Ou seja, trata-se de submeter o sonho a um exame metódico, conhecer sua mecânica interna, sua lógica interior, investigar no estado de sono àquilo que compõe uma realidade outra e absoluta, no registro do fantástico, que toque a vida em situação de vigília, mas como vasos comunicantes de duas realidades diferenciadas. A concepção de Artaud diverge, de certa, forma, daquela proposta pelo grupo surrealista, que parece, a seus olhos, haver caído em uma espécie de reverência religiosa do sonho. Para ele, o sonho não é um espelho de um mundo maravilhoso, mas sim uma face da morte, a verdadeira realidade. ―Meus sonhos são, antes de tudo, um licor, um tipo de água nauseante na qual eu mergulho e que gira em pedaços sangrentos‖77, afima em O mau sonhador (OC, vol. I**, p, 31, 1976). A arte e a morte (OC, vol. I*, 1984) conta um sonho de angústia e agonia por meio do qual o sonhador opera uma travessia de mortes sucessivas: ―Quem, no seio de certas angústias, no fundo de alguns sonhos, não há conhecido a morte como uma sensação impactante e maravilhosa em relação à qual nada se pode confundir na ordem do espírito?‖78 (p. 123). É como se o surrealismo tivesse sido sobredeterminado pela ideia de sonho, o onirismo e a noção de escrita automática e esquecido, ao mesmo tempo, outras dimensões da vida tão importantes quanto. Em suma, como observa Thévenin (2006, pp. 174-5), o objetivo de Artaud por meio do surrealismo É de compreender onde está a realidade, onde ela está quando não passamos de um corpo deitado sobre o qual passa o absurdo do sonho, que paralisa o absurdo do sonho, como, deste corpo deitado, ele se percebe através deste absurdo, como funciona este absurdo, como, 77 Mes rêves sont avant tout une liqueur, une sorte d’eau de nausée où je plonge et qui roule de sanglants micas. 78 Qui, au sien de certaines angoisses, au fond de quelques rêves n’a connu la morte comme une sensation brisante et merveilleuse avec quoi rien ne se peut confondre dans l’ordre de l’esprit? 110 pelo conhecimento de seu mecanismo ignorado, chegar ao conhecimento deste ainda mais ignorado que é a realidade do corpo deitado?79 Há uma anedota sobre André Breton contando que, todas as noites, ao dormir, ele punha uma placa em sua porta, pelo lado de fora, alertando às visitas: ―Não perturbe, poeta trabalhando‖, uma alusão ao forte papel que o processo do sonho desempenha na concepção do trabalho no surrealismo. Artaud não desconhece a importância dos processos inconscientes no sentido da construção de uma nova realidade, menos ainda o valor da constelação surrealista na edificação do seu pensamento, tanto teatral como cinematográfico, poético ou pictórico. Um ano depois de sua exclusão do grupo, por exemplo, escreve um texto chamado Ponto Final, de 1927, em referência às querelas com André Breton e seus ―discípulos‖, no qual afirma: ―O surrealismo veio a mim em uma época na qual a vida havia conseguido com perfeito sucesso me aborrecer, me desesperar, e não havia mais saída para mim que na loucura ou na morte‖ (OC, vol. I**, p. 67, 1976) 80 . Um testemunho de reconhecimento. Contudo, são todos esses agenciamentos que precisam ser levados em consideração para uma revolta consequente dos espíritos. Pois é disso que se trata: O surrealista está em luta, em insurreição contra todo aspectos possível e impossível da realidade. Todo verdadeiro adepto da revolução surrealista tende a considerar que o movimento surrealista não é um movimento no abstrato e especialmente em certo abstrato poético, do mais execrável, mas é realmente capaz de mudar algo nos espíritos (ARTAUD, apud MÈREDIEU, 2011, p. 280, grifo nosso). ―Mudar algo nos espíritos‖, guardemos essa frase-guia. Se Artaud faz do surrealismo uma investigação da morte, é no sentido de que há uma forte ligação entre ela e a própria vida que não pode ser ignorada. Vivemos de morte e morremos de vida, como as células de um corpo que precisam morrer para dar lugar a novas células que nos permitem viver. O que acontece com nosso corpo deitado e em estado de sono, ou seja, quando sonhamos? Sonhar é acordar para dentro, como dizia Mario Quintana (1997). Morremos 79 Il est de comprendre où est la realité, où elle est quand on n’est plus qu’un corps allongé sur lequel passe l’absurde du rêve, que piétine l’absurde du rêve, comment, de ce corps allongé, elle se perçoit à travers cet absurde, comment fonctionne cet absurde, par la connaissance de son mécanisme ignoré, parvenir à la connaissance de cet encore plus ignoré qu’est la realité du corps allongé ? 79 80 Le surréalisme vint à moi à une époque où l avie avait parfaitement réussi à me lasser, à me desesperer et où il n’y avait plus pour moi d’issue que dans la folie ou dans la mort. 111 um pouco todos os dias, renascemos da mesma forma, e por vezes, adormecidos, não sabemos diferenciar o sonho da realidade. Para Artaud, o nascimento e a morte comunicam desesperadamente 81 . Como num tempo cíclico, um rito, um mito ou um eterno retorno, que se transformarão posteriormente em algumas de suas muitas obsessões. Viver é constantemente morrer e renascer. Tanto literalmente (seres vivos nascem e morrem diariamente), quanto metaforicamente (viver é morrer e renascer diversas vezes ao longo do fio da existência). Não por acaso Olivier Penot-Lacassagne intitula um dos seus livros de Vidas e mortes de Antonin Artaud (2007). Artaud nasce e morre em Marselha, nasce e morre em Paris, assim como no México, na Irlanda, nos asilos, no teatro ou no cinema, buscando traçar uma escritura viva de si, jamais situado, jamais definido, sempre em movimento, em processo, de territorialização e desterritorialização, nunca permanecendo o mesmo. Um ser em metamorfose, embora a própria noção de metamorfose traga em si também a ideia de permanência de traços indeléveis. Como a lagarta que entra em seu casulo e se transmuta em borboleta, mas algo do ser anterior permanece. Assim são os homens. Assim é a natureza. Assim são também as sociedades e a cultura: ―E eu sei como os mortos giram em torno de seus cadáveres desde exatamente trinta e três séculos que o meu Duplo não cessou de voltar... Eu não estou morto, eu estou separado‖82 (OC, vol. VII, 1982, pp. 120-1). Sístole e diástole, separação e reencontro. O velho Artaud foi enterrado. Outro nasceu, se refez, sozinho, sem pai nem mãe. ―Eu, Antonin Artaud, eu sou meu filho, meu pai, minha mãe‖83 (OC, vol. XII, p. 77, 1989). Trata-se da morte como um parto. O nascimento é um processo de separação da mãe e de entrada no mundo e constituição do ser. A morte é uma separação do mundo e do ser. Ambos processos traumáticos. Nascer, morrer, renascer, constantemente, é, portanto, viver no limite da angústia e do desespero. Constantemente encarar o abismo, repetidamente enfrentar o 81 Sobre o tema, ainda no teatro Alfred Jarry, Roger Vitrac escreve uma das peças mais significativas da crueldade, chamada Victor ou as crianças no poder. A pele se aproxima muito das preocupações de Artaud acerca das questões do mito, da narrativa circular, da relação entre vida e morte. Trata-se da história de uma criança que, na mesma noite, comemora tanto seu aniversário quanto um adulto à beira da morte, sendo difícil definir às vezes em que é adolescente e às vezes que se transforma em adulto. Mas isso não importa. O objetivo do autor é fazer com que vida e morte percam suas identidades distintas (TONELLI, 1972). 82 Et je sais comment les morts tournent autor de leurs cadavres depuis exactament trente-trois Siècles que mon Double n’a cessé de tourner (...) Je ne suis pas mort, mais je suis separé. 83 Moi, Antonin Artaud, je suis mon fils, mon père, ma mère. 112 vazio. O vazio e o sem-sentido da existência. E para esse enfrentamento Artaud se utiliza de diversas ferramentas, como o surrealismo, o inconsciente, a magia, o sonho, o mito, a arte, as drogas, o teatro, o cinema, a escrita, a poesia, a pintura. Como pontua Dumoulié (1996b, p. 21), ―Inconsciente, sonho, droga, poesia são tantos dos modos que permitem de captar o ponto no qual a morte e o nascimento se identificam, no qual o ser nasce através da separação e se separa dele mesmo para seu próprio advento‖84. São todas imagens que concorrem para o que futuramente seria o cinema artaudiano. O surrealismo não é apenas um movimento literário ou poético, mas um meio de liberação total do espírito, um grito do espírito que retorna sobre ele mesmo decidido a esmagar desesperadamente seus entraves. E, para isso, todos os meios são necessários e possíveis. Mudar algo nos espíritos. Mudar o mundo. Mudar o pensamento. Construir algo novo. Essa é sua questão principal. Qual outro movimento artístico foi tão longe em sua pretensão? Qual dos surrealistas levou de fato o surrealismo ao limite, vivendo-o intensamente? Uma revolução de papel não é suficiente. Tampouco uma revolução comunista. Não importa se o poder passa das mãos de uma burguesia para o proletariado, preocupado com a socialização dos meios de produção. Todas as experiências nesse sentido falharam fragorosamente. Pelo contrário, criou-se uma casta de privilegiados ainda mais autoritária. Mas a necessidade da revolução persiste, mesmo que por outros meios: ―Há bombas a serem colocadas em algum lugar, na base da maior parte dos hábitos do pensamento presente, europeu ou não‖85 (OC, vol. II, 1980, p. 25). Ao lançar as bases de sua primeira experiência teatral autoral, o Teatro Alfred Jarry, em 1926, Artaud esclarece suas premissas ao mesmo tempo em que absorve e rejeita alguns preceitos surrealistas. O teatro não é um jogo, mas uma realidade, endereçada não somente ao espírito ou aos sentidos do espectador, mas a toda a sua existência. Dá-se o mesmo no caso do cinema. O espectador deve passar por uma verdadeira operação, na qual espírito e carne estão envolvidos e não sairão intactos. Trata-se de operar no público uma cirurgia para extrair o impensável do pensamento. Nesse processo, o inconsciente desempenha o seu papel, embora não seja o de protagonista. Tanto pior para os surrealistas, diz Artaud. Tanto melhor para todo 84 Inconscient, rêve, drogue, poésie sont autant de modes qui permettent de saisir ce point où la mort et la naissance s’identifient, où l’être naît à travers la séparation et se sépare de lui-même par son propre avènement. 85 Il y a des bombes à mettre quelque part, mais à la base de la plupart des habitudes de la pensée presente, européene ou non. 113 mundo. Nesse primeiro momento, Artaud pensa em um teatro puro, sem espetáculo, que deve nascer de uma renúncia a todos os efeitos exteriores, pois, diz ele, os grandes dramaturgos de todos os tempos pensaram fora do teatro. Pelo contrário, exploram ao infinito os deslocamentos interiores. Trata-se, portanto, de relançar o teatro na vida encontrando a vida perdida do teatro: O espectador e nós mesmos não poderemos nos levar a sério se não tivermos muito claramente a impressão de que uma parcela de nossa vida profunda está empenhada nessa ação que tem por quadro a cena. (...) Tal é a angústia humana que o espectador deve sair de nosso espetáculo. Ele será sacudido e arrepiado pelo dinamismo interior do espetáculo que se desenrolará perante seus olhos. E esse dinamismo estará em relação direta com as angústias e as preocupações de toda a sua vida (OC, II, p. 18, 1980, grifo do autor) 86 . Reinjetar o teatro na vida e o retorno à realidade não significam, portanto, que Artaud abra mão do recurso da ilusão. A ilusão aqui funcionando como uma zona de abertura psíquica que nos permite recriar o mundo por meio do sonho, da arte e da permanente reinvenção de si. Trata-se de restituir ao teatro um poder de ilusão perdido. E é preciso reinventar a ilusão quando isto significar uma via em direção àquilo que há de mais real dentro do real, redefinindo sua força comunicativa e a realidade concreta dessa ação sobre o espectador, e inicialmente Artaud encontra na estrutura da obra teatral uma potência destinada a criar essa nova ilusão. E para operar essa participação a uma realidade que é da ordem da vida, de uma vitalidade efervescente, violenta, impessoal e não individualista, as palavras não são evidentemente o meio privilegiado de exprimir e comunicar (GOUHIER, 1974). Como entende Artaud, a palavra cristalizada e o conceito encarcerado paralisam o pensamento e diminuem a capacidade mesma da comunicação. É preciso uma nova semântica, uma nova linguagem, uma epistemologia ampliada para dar conta daquilo que a palavra não pode dizer, para fazer surgir o visível do invisível, o impensado do pensamento, o infalável da fala, do grito, recriar a capacidade de espanto, de assombro, de sobressalto. É nesse sentido que a linguagem cênica torna-se capaz de traduzir diretamente os movimentos da ação dramática, por meio de gestos, iluminação, composição de cenário, relação entre objetos além de diversos outros artifícios. 86 Le spectateur et nous-mêmes, nous ne pourrons nous prendre aux sérieux que si nous avons très nettement l’impression qu’une parcelle de notre vie profonde est engagé dans cette action qui a pour cadre la scène (...) Voilá dans quelle angoisse humaine le spectateur doit sortir de chez nous. Il sera secoué et rebroussé par le dynamisme intérieur du spectacle qui se déroulera devant ses yeux. Et ce dynamisme sera en relation directe avec les angoisses et les préoccupations de toute sa vie. 114 Laços estreitos Em 1925, ainda cerrando fileiras na constelação dos surrealistas, Artaud passa a prestar mais atenção ao cinema. Artaud não era um homem de sua época, e no fundo seu pensamento sobre a sétima arte permanece na vanguarda ainda hoje, à espera das possibilidades de sua realização, embora alguns grandes diretores como Reiner Werner Fassbinder, Jean-Luc Godard, Lars von Trier, Marguerite Duras, David Lynch ou Alain Robbe-Grillet, tenham alcançado uma estética artaudiana mesmo que parcialmente. Tal teoria, se observada em sua totalidade, é de difícil compreensão e quase irrealizável, assim como suas proposições relacionadas ao teatro. Talvez por isso a maior parte dos autores dedicados a estudar o poeta francês em toda sua versatilidade enxerga em suas ousadias artísticas uma sucessão de fracassos. Teria sido, para a época, um incompreendido, um enfant terrible. Ao compulsarmos as obras de seus comentadores vemos, sobretudo, biografias e análises de diversas ordens, sejam elas psicanalíticas, psiquiátricas, filosóficas, linguísticas ou antropológicas, mas pouquíssimos são os que se detém sobre os desdobramentos ou a facticidade de seu arcabouço teórico em sua objetividade prática, ou seja, naquilo que ele efetivamente realizou. De fato, até para o próprio autor, suas excursões pelos palcos e telas quase nunca o agradaram. Primeiro, pela própria complexidade de se realizar aquilo que ele mesmo propunha. Depois, pela constante falta de financiamento a seus projetos tidos como mirabolantes ou demasiado revolucionárias, cuja incerteza do retorno financeiro era fator de insegurança para os investidores. Artaud passa boa parte de sua vida em busca de recursos para financiar suas obras teatrais ou cinematográficas. Ele mesmo diz, em diversas ocasiões, nos dois casos, que é preciso criar um público que ainda não existe. Por último porque de fato suas teorias dão abertura a uma série de interpretações que transbordam e muito a sua obra, pois seus textos podem ser lidos não apenas como um diálogo direto com o cinema ou o teatro, com a poesia ou a pintura, mas com a cultura, a linguagem, o imaginário, o pensamento, as representações sociais, os sentimentos, o ser, a existência ou a vida. Enfim, trata-se não apenas de criar uma obra, mas de mudar as pessoas e o mundo. Era esse o principal desafio. E dada a envergadura de sua missão, a ambição de suas propostas, suas expectativas são fácil e constantemente frustradas. 115 É preciso notar que o próprio movimento surrealista tem uma relação ambivalente com o cinema. Os filmes realizados nessa chave estética são muito poucos. Os expoentes dessa geração, como André Breton, Robert Desnos, Philippe Soupault, entre outros, manifestarão interesse pelo cinema, mas como modo de expressão marginal e baixo, uma arte menor, mero fenômeno de feira. Breton e seus amigos cultivavam o estranho hábito de adentrar as salas de cinema no meio da exibição de um filme qualquer, sem saber sequer o título das películas, saindo pouco tempo depois e continuando o mesmo processo durante um dia inteiro, entre salas e salas e não apreendendo senão fragmentos das obras 87 . Diferentemente, Artaud estabelecerá uma relação mais consistente e visceral com a imagem, mesmo à revelia do grupo. Ele acredita haver uma especificidade na linguagem cinematográfica que precisa ser descoberta ou inventada, pois ao invés de fazer falar sua língua própria, os cineastas utilizam o cinema em função de uma estética e de temas que lhe é exterior. Notemos tratar-se da mesma questão de fundo que Artaud nutria pelo teatro. Se, como ele dizia, é preciso reteatralizar o teatro, reinventá-lo, reinjetá-lo na vida, a mesma coisa se pode dizer do cinema. Curiosamente, essa forma de expressão moderna, inventada primeiramente para propósitos científicos e posteriormente ressignificada pela arte, enfim, essa nova tecnologia permitiria reencontrar uma linguagem mais arcaica, próxima da articulação primeira da vida, aproximando-se da lógica do sonho e da poesia do real. Por vezes, ele acredita que o teatro restará a única arte verdadeiramente capaz de atingir tal propósito. Em outras, pelo contrário, é o cinema o meio mais capaz de revelar toda uma vida oculta, tocar os sentidos, o espírito, e não demorará muito para que ele tome definitivamente o lugar do teatro. É a ciclotimia artaudiana em ação. Essas posições de alternância variam de tempos em tempos. Mas na medida em que as imagens possuem uma potência transgressiva interdita à linguagem articulada, elas serão o lugar privilegiado para a projeção de fantasmas e da lógica do inconsciente. Por isso Artaud coloca-se inicialmente como um inimigo declarado do cinema falado. Mas a opinião de Artaud sobre os filmes sonoros não é absolutamente clara, como pensa Maeder (1978), embora ele próprio tenha afirmado em algumas ocasiões ser o cinema falado a negação mesma do cinema. No entanto, é preciso atentar para a complexidade 87 Jean-Claude Carrière acredita que o advento da TV e do controle remoto tornaram essa prática corriqueira para todos nós: “O zapping se tornou uma forma objetiva de criação. Goste-se ou não disso, o aparelhinho preto de controle remoto é o mais recente instrumento individual de realização de filmes” (2014, p. 25). 116 de seu pensamento e não tomar a parte pelo todo. Ele era consciente que o cinema ainda estava em seus primórdios. Previu a introdução da cor, das três dimensões e muitos outros artifícios técnicos, mas sua essência estava no cinema mudo, e os demais elementos apenas desviariam a atenção do verdadeiro trabalho. Uma de suas mais marcantes interpretações está em um filme com bastantes diálogos, chamado Coup de feu à l’aube (1932), dirigido por Serge de Poligny, no qual interpreta um gangster chamado ―Le trembler” (o trêmulo), um assassino cuja principal característica é ser acometido de uma agitação nervosa que faz o corpo tremer frequentemente, embora seja apenas uma simulação para a polícia que o tem como suspeito de um assassinato, e ele finge não ter capacidade para manejar uma arma. O problema, portanto, não está na fala em si. Trata-se, assim como no teatro, não de conceder ao texto uma superioridade que ele não possui, mas de dar a palavra o sentido de um elemento cênico de igual importância como todos os outros. Permitam-nos uma citação um pouco longa, mas um tanto esclarecedora sobre o papel da palavra no cinema artaudiano. Em sua introdução a um de seus roteiro, A revolta do açougueiro, ele revela que, Em relação ao filme falado, se verá que este filme é falado na medida em que as palavras pronunciadas não estão postas mais que para reanimar as imagens. As vozes estão no espaço como objetos. E devem ser aceitas no plano visual, se assim cabe dizê-lo. Se encontrará neste filme uma organização da voz e dos sons tomados em si mesmos e não como consequência física de um movimento ou de um ato, quer dizer, sem concordância com os fatos. Sons, vozes, imagens, interrupção de imagens, tudo forma parte do mesmo mundo objetivo, onde em última instância é o movimento que conta. E é o olho quem finalmente recompõe e sublinha o resíduo de todos os movimentos 88 (ARTAUD, 1982, p. 109, grifos do autor). O trecho acima revela que, com anos de antecedência, a ideia vanguardista do cinema artaudiano entra no coração daquilo que Gilles Deleuze (2005) vai chamar posteriormente de cinema moderno, feito principalmente a partir do pós-guerra e cujos expoentes são os grandes diretores do neorrealismo italiano, como Michelangelo 88 Em cuanto al film hablado, se verá que este film es hablado em la medida em que las palavras pronunciadas no están puestas más que para reanimar las imágenes. Las voces están en el espacio como objetos. Y deben ser aceptadas en el plano visual, si cabe decirlo así. Se encontrará em este film uma organización de la voz e de los sonidos tomados em sí mismos y no como consecuencia física de um movimento o de um acto, es decir, sin concordancia con los hechos. Sonidos, vocês, imágenes, interrupción des imágenes, todo forma parte del mismo mundo objetivo, donde en última instancia es el movimento el que cuenta. Y es el ojo quien finalmente recompone y subraya el resíduo de todos los movimentos. 117 Antonioni, Roberto Rossellini, Federico Fellini, e da nouvelle vague francesa, como Jean-Luc Godard ou Jacques Rivette. ―A voz e os sons tomados em si mesmos, e não como uma consequência física de um movimento ou ato‖, como diz a citação, revelam, no sentido deleuziano, uma ruptura da ligação do homem com o mundo, o que Artaud já intuía, fazendo com que as situações sensório-motoras, do tipo ação-reação, cedam lugar às situações óticas e sonoras puras. Diz ele: ―Uma situação ótica e sonora pura não se prolonga em ação, tampouco é induzida por uma ação. Ela permite apreender, deve permitir apreender algo intolerável, insuportável‖ (DELEUZE, 2005, p. 28, grifo nosso). Artaud depara-se diuturnamente com o que ele chama em diversos textos de paralisia, incapacidade de agir, de falar, de pensar, de escrever. E quem, à época, mais do que ele, precisou enfrentar o intolerável e o insuportável da vida, desde muito jovem? Artaud foi abalado por duas guerras mundiais e centenas de guerras interiores cuja dimensão é difícil mensurar. Para o momento, retenhamos que a frase de Deleuze atesta a sagacidade alcançada por Artaud em sua teorização sobre o cinema, sua capacidade de captar o espírito do tempo, perceber o abismo que se avizinha e transformar em visível o invisível, o que nos permite afirmar, com certa segurança, que o seu interesse pela sétima arte não apenas não foi secundário, no sentido de ser somente um modo de ganhar algum dinheiro (os salários no cinema ainda não eram astronômicos), adquirir visibilidade para outros trabalhos no teatro e garantir o mínimo de recursos para atender suas necessidades básicas de sobrevivência, mas está na raiz de suas preocupações nada modestas: alcançar o reencontro do homem consigo mesmo e com seu espírito, reconciliá-lo com suas forças mais profundas e escondidas, a fim de construir um humanismo de outra ordem, nada menos que revolucionário. Se ele desiste do cinema assim como do teatro, traído pela técnica ou pela falta de condições de realizar suas propostas, a resposta talvez seja dada por ele mesmo: fazer aquilo que sonha ou não fazer nada. Foi fiel aos seus princípios. Preferiu o nada. Poderia ter se rendido às forças poderosas do mercado. Preferiu o nada. Em verdade, precisou mesmo fazê-lo em determinados momentos, mas achou melhor não insistir naquilo em que não acreditava. Preferiu não. Para acabar com a representação 118 Existem, por óbvio, divergências no pensamento teatral e cinematográfico artaudianos, já que, como vimos acima, ele busca o que há de único em cada linguagem. Mas as convergências nos parecem, no momento, mais prolíficas e, de certa forma, incontornáveis. No teatro há a luta constante contra a representação e a identidade. Jacques Derrida (1967), leitor atento de Artaud, não deixa escapar essa questão: ―O teatro da crueldade não é uma representação. É a vida ela mesma no que ela tem de irrepresentável. A vida é a origem não representável da representação‖ 89 (p. 343, grifo do autor). Mas o mesmo se dá no cinema. Artaud propõe, como entende Vera Lúcia Felício (1996, p. 47), ―uma revolução completa da óptica, da perspectiva e da lógica‖, da mesma forma engajado em uma luta constante contra a representação e a identidade. Primeiro porque as imagens chegam transformadas na tela, ou seja, passam por um recorte executado por uma máquina que funciona como ―olho humano‖, partindo de uma vontade humana arbitrária de mostrar algumas coisas e excluir outras. Por isso, não pode ser uma representação ou uma cópia fiel do que quer que seja. É puramente subjetivo, criando uma realidade válida, embora não exatamente verdadeira, pois seus critérios fundam-se em nossa percepção e nossa sensibilidade, em uma lógica dos sentidos, mais do que no encadeamento de um raciocínio lógico. Em segundo lugar, não existe a noção de causalidade, causa e efeito, imagem-ação, mas uma lógica do pensamento profundo que quebra o princípio lógico de identidade (FELÍCIO, 1996). Derrida (1967) questiona se a forma mais ingênua da representação não seria a noção de mimesis, imitação. Artaud pretende acabar com a concepção imitativa da arte. ―A arte não é imitação da vida, mas a vida é a imitação de um princípio transcendente com o qual a arte nos coloca em comunicação‖ (ARTAUD, OC, vol. IV, p. 242, 1978) 90 , diz ele em Para acabar com as obras-primas. Agosto de 1931 marca para Artaud um choque estético a partir do encontro com o teatro balinês, durante a inauguração da Exposição Colonial. No entanto, desde 1922, as danças cambojanas já o haviam seduzido. Após a aventura anterior com o teatro Alfred Jarry, ele tomará a encenação balinesa como uma das principais referências do novo teatro que pretende fundar, principalmente em dois pontos fundamentais, como constata Mèredieu (2011): o primeiro, no plano técnico, destaca-se pela precisão e pela 89 Le théâtre de la cruauté n’est pas une représentation. C’est la vie elle-même en ce qu’elle a d’irrepreséntable. La vie est l’origine non représentable de la représentation. 90 L’art n’est pas l’imitation de la vie, mais la vie est l’imitiation d’um principe transcendant avec lequel l’art nous remet em communication. 119 matriz gestual dos bailarinos, que ele compara a ―hieróglifos vivos‖, corpos estendidos explorando a dimensão do espaço, dos gestos, dos sons, dos objetos, dos movimentos, da iluminação, das máscaras, vestimentas e, por fim, da metamorfose. O segundo, do ponto de vista metafísico, apela não mais, como no ocidente, ―aos recursos de ordem psicológica, porém aos grandes medos ancestrais, aos sentimentos ‗originais‘ de ordem cosmogônica‖ (p. 429). Em suma, trata-se de um modelo de teatro metafísico ao qual Artaud deseja regressar com mais profundidade e conhecimento: ―os Balinêses realizam, com o mais extremo rigor, a ideia de um teatro puro, onde tudo, concepção como realização, não vale, não existe que pelo seu grau de objetivação sobre a cena‖91 (OC, IV, p. 50, 1978). Trata-se de uma nova linguagem física a base de signos, da qual o teatro ocidental não possui a chave. E não entendamos por linguagem o idioma, mas justamente um tipo de linguagem teatral exterior e anterior a toda língua falada, onde parece encontrar-se uma imensa experiência cênica, plena de possibilidades, por meio da música, gestos, movimentos ou mesmo palavras, quando inseridas como elemento cênico, o que não se trata de dar a ela uma superioridade que ela não possui. Saímos do campo da representação clássica para entrar em um outro, o da representação originária de forças e vibrações, ou da autoapresentação. É o que Derrida (1967, p. 349) entende como ―fechamento da representação‖: Fechamento da representação clássica, mas reconstituição de um espaço fechado da representação originária, de uma arqui- manifestação da força ou da vida. Espaço fechado, quer dizer espaço produzido de dentro de si e não mais organizado desde um outro lugar ausente, uma ilocalidade, um álibi ou uma utopia invisível. Fim da representação, mas representação originária, fim da interpretação, mas interpretação originária que nenhuma palavra controla, que nenhum projeto de controle não irá investir e submeter-se por antecipação. Representação visível, certamente, contra a palavra que furta-se a vista – e Artaud prefere as imagens produtoras sem as quais não existiria mais o teatro (theaomai) – mas a qual a visibilidade não é um espetáculo montado pela palavra do mestre. Representação como auto-apresentação do visível e mesmo do sensível puros. 92 91 Les Balinais réalisent, avec la plus extreme rigueur, l’idée du théâtre pur, où tout, conception comme réalisation, ne vaut, n’a d’existence que par son degré d’objetivation sur la scène. 92 Clôture de la représentation classique mais reconstituição d’un espace clos de représentation originaire, de l’archi-manifestation de la force ou de la vie. Espace clos, c’est a dire espace produit du dedans de soi et non plus organisé depuis un autre lieu absent, une illocalité, un alibi ou une utopie invisible. Fin de la représentation mais représentation originaire, fin de l’interprétation mais interpréation originaire qu’aucune parole maîtresse, qu’aucun projet de maîtrise n’aura investie et 120 Romper a linguagem articulada para alcançar a vida, fissurar a soberania do texto e encontrar uma verdadeira representação. Mas tudo, em última instância, remete a uma forma de criar imagens e fazê-las reverberar na carne. Tudo isso remete, de alguma forma, ao cinema, máquina de criar imagens. No caso do teatro, a representação pura, outra forma de referir-se à representação originária, na expressão de Derrida, utiliza-se de meios materiais contidos nos gestos, no jogo das fisionomias e dos movimentos, no emprego concreto da música, dos objetos, da palavra, a repetição rítmica das sílabas, as modulações particulares da voz encobrindo o sentido preciso da palavra, tudo isso concorre para a precipitação e formação de um grande número de imagens no cérebro, a favor de um estado mais ou menos alucinatório, impondo à sensibilidade e ao espírito uma maneira de alteração orgânica. Artaud tenta dar ―voz‖ aos espaços, às massas e superfícies, enquanto despreza as individualidades psicologizantes. Alex Galeno (2005), ao falar dos ―anjos-demônios- transgressores‖ da categoria de Artaud, Nietzsche, Rimbaud, Baudelaire, Hölderlin, Pessoa ou Nerval, compreende que, ―Em suas singularidades, estão presentes evocações universais sobre acontecimentos da cultura e da sociedade‖ (p. 20), expondo os dramas de si em diálogo constante com o mundo. Artaud, assim como Deleuze ou Kafka, escreve para os analfabetos, ou melhor, no lugar deles, como fator de empoderamento dos sem voz. Por isso que, renunciando ao homem psicológico, aos caracteres e sentimentos bem formados, é ao homem total, e não ao homem social, dividido, fragmentado, parcelarizado, submetido às leis e deformado pelas religiões e outros preceitos, a quem ele se dirige. Trata-se de uma concepção bastante deleuziana do cinema, desenvolvida principalmente em seu Cinema 2 (DELEUZE, 2005). Pois a questão não é de criar uma narrativa linear, reproduzir uma realidade pré-existente, imitar a vida prosaica do cotidiano, mas reencontrar a situação primitiva das coisas e da própria vida, por meio de um cinema cujas situações provenham do simples choque das imagens, dos objetos e das formas, imagens que se confrontam, se harmonizam, se atraem, sobrepõem, derivam umas das outras e criam, assim como no teatro, uma realidade outra. aplatie par avance. Représentation visible, certes, contre la parole qui dérobe à la vue – et Artaud tient aux images productrices sans lesquelles il n’y aura pas de théâtre (theaomai) – mais dont la visibilité n’est pas un spectacle monté par la parole du maître. Représentation comme auto-présentation de visible et même du sensible purs. 121 Por esse motivo, na introdução ao seu roteiro de A concha e o clérigo, ele tenta esclarecer que, ao contrário do que diz a cineasta Germaine Dulac, responsável pela realização do filme, não se trata simplesmente da reprodução de um sonho de Antonin Artaud, pois até o sonho possui sua própria lógica. As imagens devem buscar uma verdade sombria do espírito, mas por meio delas mesmas, de seus recursos internos, extraindo seu sentido pelo contato com um tipo de necessidade interior, poderosa, inapelável e inescapável. É nesse sentido que Artaud compreende o cinema verdadeiro, em sua capacidade de criar mundos que não pedem nada a nada. Portanto, um cinema não da representação, mas da apresentação. Écran: o elogio da superfície E, no entanto, entramos numa contradição aparente, pois ao mesmo tempo em que busca uma verdade profunda, essa mesma verdade deve ser encontrada na superfície, na pele humana das coisas (sob a qual o mundo fervilha), na derme da realidade, em relação com a materialidade das imagens, no puro jogo de suas aparências, na correlação de forças. Pois a questão, nos parece, não é a de encontrar uma verdade última e acabada das coisas e da vida, pois que ela não existe, ou mesmo de fazer uma arqueologia das verdades ou dos valores. O jogo de aparências que Artaud busca no cinema remete, de certa forma, a um jogo de discursos e verdades provisórios que, contudo, tomamos como naturais, eternos, imutáveis. Por isso o recurso à recusa, à revolta, à destruição, ao ataque contra as forças que paralisam as potências do ser, enfim, o recurso à transubstanciação dos elementos, do teatro, da palavra, do conceito, das formas acabadas, do cinema, das imagens, da vida. É preciso acabar com o julgamento de Deus. Pois se existe a verdade última, ninguém a conhece, mas Artaud reconhece a necessidade de transformação urgente de uma sociedade e de um homem ocidentais em constante rota acelerada para o abismo. Pode ser uma questão de crença, não apenas de fatos. Os fatos existem, mas pode estar errados. Em suma, apesar de nossos limites humanos, da razão instrumental, dos perigos da técnica, da ciência e do conhecimento fechados, fragmentados, Artaud compreende a urgência de nos voltarmos para a abertura e ao infinito. E é essa abertura que sempre o caracterizou em sua singularidade, como podemos constatar em um de seus textos mais 122 importantes, Para acabar com o julgamento de Deus (OC, vol. XIII, pp. 91-2, 1974, grifo do autor), escrito em 1947, O que é grave/é que nós sabemos/que por trás da ordem/deste mundo/existe uma outra./Que outra?/Não sabemos./O número e ordem das suposições possíveis/nesse domínio/é justamente/o infinito!/E o que é o infinito?/Não sabemos!/É uma palavras/da qual nos servimos/para indicar/ a abertura/de nossa consciência/em direção a possibilidade/desmedida,/inesgotável e desmedida./E o que é a consciência?/Não sabemos./ É o nada./ Um nada/ do qual nos servimos/para indicar/quando não sabemos alguma coisa/de qual lado/nós não sabemos/e dizemos/ então/ consciência/do lado da consciência/mas há cem mil outros lados 93 . E do que trata esta ―abertura‖ em relação ao cinema? Se as imagens são embebidas de alma, assim é igualmente o espectador. Morin (1958) propõe, a esse respeito, duas entradas, uma microscópica e outra macroscópica, ou seja, o cinema como uma relação incessante de troca entre o homem e o universo, o antropomorfismo e o cosmomorfismo, um intercâmbio incessante entre homens e coisas, rostos e objetos. Assim como os homens, as coisas e objetos possuem uma alma, no sentido metafórico do termo, pois que investidos de uma subjetividade doada pelo espectador. E então os objetos principiam a viver, jogar, falar e agir. Criamos e somos criados por eles, o que interfere diretamente na forma como nos relacionamos e atuamos em um mundo sempre mais enriquecido pela presença dos objetos e das materialidades tecnológicas, entre os quais precisamos nos mover diariamente e muitas vezes sem saber como. O cinema empresta às coisas essa visibilidade escondida, suscita-lhes uma vida especial, estabelecendo um diálogo entre o visível e o invisível, o finito e o infinito, o comunicável e o incomunicável, o homem e as coisas, o homem e o cosmos. O rosto sulcado pelo tempo e pelas agruras da vida de um lavrador, por exemplo, exibe uma imagem de sofrimento ao mesmo tempo particular e universal. E essa mesma imagem pode ser substituída, sem perder sua substância, por uma terra rachada pela seca ou pela 93 Ce qui est grave/est que nous savons/qu’après l’ordre/de ce monde/il y en a un autre/ Quel est- il ?/Nous ne le savons pas./Le nombre et l’ordre des suppositions possibles/dans ce domaine/est justement l’infini !/Et qu’est-ce que l’infini ?/Au juste nous ne le savons pas !/C’est un mot/ dont nous nous servons/pour indiquer/l’ouverture/de notre conscience/vers la possibilité/démesurée,/inlassable et démesuré./ Et qu’est-ce au juste que la conscience ?/Au juste nous ne le savons pas./C’est le néant./Un néant/dont nous nous servons/pour indiquer/quand nous ne savons pas quelque chose/de quel côté/nous ne le savons/et nous disons/alors/consciencie,/du côté de la consciencie,/mais il y a cent mille autres côtés. 123 carcaça do gado morto de fome e sede. Uma câmara que revoluteia e se contorce no ar, como no filme Faits Divers (1924), primeira participação de Artaud no cinema, carregado de imagens que se sobrepõem freneticamente em meio ao caos urbano de Paris da década de 1920, revelam, sem dizer uma palavra, o estado de espírito conturbado de um homem afetado pela traição da mulher e do amigo, culminando em um assassinato. E, dessa forma, um rosto torna-se paisagem e a paisagem torna-se rosto, o mundo contido no interior do homem e o homem espalhado pelas coisas do mundo, ―e veem-se então os planos da natureza alternarem com os planos humanos, como se uma simbiose afetiva ligasse, necessariamente, o antropos e o cosmos‖ (MORIN, 1958, p. 89). Artaud e Eisenstein: entre hieróglifos e ideogramas É nesse pontilhado que Artaud segue a sua saga em busca de uma arte que tenta alcançar o âmago da vida, um tipo de conexão entre todos os elementos, um conhecimento íntimo das coisas e dos homens. E a senda aberta pela ideia de uma composição cênica, cujos atores seriam hieróglifos vivos, remete a concepção de uma linguagem física, do espaço, do singular e do universal, do aqui e agora e do tempo mítico, da atualidade e do inatual, no sentido de que os rituais hieroglíficos mantêm uma abertura corporal e espiritual para um estado extático de comunhão com a natureza, o cosmos, o mito, a água, a terra, o ar, o fogo e a luz. Diferentemente, para ficarmos apenas em um exemplo, do cineasta russo Serguei Eisenstein, que descobre o princípio da montagem no ideograma. Para este último, a combinação de signos é capaz de criar um pensamento imagístico conceitual a partir da relação dialética entre a articulação de imagens, gerando um conceito de dimensão e graus diferentes dos iniciais. Em Artaud, as imagens não são estruturadas em uma cadeia intencional, cuja relação seria desdobrada em uma narrativa linear. Pelo contrário, interessa que as imagens revelem uma combinação inédita de signos no espaço para produzir um novo significado não previsto tanto para o público quanto para o autor. Enquanto a montagem de ideogramas serve para ser decifrada dialeticamente em um nível superior, a linguagem dos hieróglifos não pretende esclarecer um sentido ou mesmo apresentar uma ideia clara, sendo um processo mais aleatório, anárquico, poético e enigmático. Por isso os atores devem fugir de uma composição gestual 124 imitativa ou convencional, a uma ordem discursiva pré-estabelecida, mas compor uma linguagem inaugural e surpreendente de um hieróglifo vivo que deve ser decifrado pelo espectador. É essa a questão principal colocado em seu texto sobre Atletismo Afetivo (OC, vol. IV, 1978). A ideia é lançar uma nova gramática visual capaz de transformar as ideias e conceitos cristalizados, mortos e acabados, em uma experiência de encontro com o impensável do pensamento, o inimaginável. O cinema possui uma linguagem específica, e deve retirar sua qualidade do movimento, da organização e da materialidade das imagens, extraindo as reservas poético-estéticas da prosaica condição humana soterradas sob os estratos de uma razão técnico-científica responsável em grande parte por estabelecer uma monocultura da mente, resistente a quase todo tipo de questionamento que foge aos seus paradigmas, seus padrões de análise e aceitação. A razão discursiva é, então, ultrapassada em proveito de uma vida oculta do pensamento. A relação lógica entre as imagens é substituída por uma interpretação de fundo sensual mais que intelectual, que deve ser buscada nos estratos comuns da tríplice memória ancestral do homem, do indivíduo e da espécie, que partilham um destino comum sobre o planeta, embora o individualismo contemporâneo, a fragmentação das ideias e interesses nos façam acreditar no contrário. Portanto, trata-se de trabalhar com choques de imagens e explosões do espírito, nem que para isso, e essa é a intenção, precisemos mergulhar no mais fundo da vida corpórea: luxúria, incesto, traição, assassinato, enfim, todas as forças primárias que escondemos sob o manto da vida em sociedade e do verniz daquilo que chamamos cultura ou civilização. Pois essas forças, embora adormecidas, não desaparecem, mas são constrangidas a permanecerem sob eterna vigilância. São as pulsões da libido que doravante vão procurar uma saída e serão sublimadas e simbolizadas, por exemplo, por meio do mergulho tenebroso no sonho, quando os constrangimentos sociais afrouxam suas amarras e damos vazão aos nossos desejos mais secretos. Entrando na vereda do sonho O rico domínio das cavernas escuras e viscosas do inconsciente nos escapa no ramerrão do cotidiano em meio aos afazeres da vida prosaica. Diariamente acordamos e saímos aos poucos dos tentáculos da morte. É como o despertar de uma montanha. Abrimos os olhos, movemos um braço, uma perna, lentamente, encaramos o teto por 125 alguns minutos, enquanto o tecido das imagens abundantes produzidas durante o sono vagarosamente vão se apagando, descosturando, esquecidas, abandonadas, recolhidas ao subsolo da consciência. E, no entanto, o sonho é um elemento necessário ao nosso equilíbrio psíquico. Levantamos, finalmente, e como que automaticamente retomamos a nossa rotina. Saímos de casa e cruzamos, na esquina, com a senhora alquebrada que ainda precisa sobreviver oferecendo a mão enrugada aos passantes, em busca de uma moeda ou de um simples olhar que a tire, sem sucesso, de sua invisibilidade social. Caminhamos e vemos o vagaroso despertar da cidade, que em horas ganhará um movimento frenético. Milhares de pessoas vêm e vão, apressadas, ocupadas, preocupadas, tristes ou sorridentes, cujos corpos, veia, coração se dilatam ou contraem ao sabor da temperatura. Um homem passa puxando uma carroça carregada de papelão que ele recolhera a noite anterior. Não sabemos de onde vem ou para onde vai, apenas seguimos nosso caminho. No trânsito, pessoas discutem, talvez a única maneira de forçar um encontro qualquer, enquanto a maioria dos passantes se ignoram, absolvidos em seus gadgets da última geração. Alguns falam sozinhos em seus fones de ouvido e tentam evitar qualquer tipo de contato, visual ou verbal. A moça de cachos vermelhos toma seu café, sozinha, enquanto fita o horizonte com um olhar carregado de pensamento, sobre o passado, sobre o presente ou futuro, sobre a vida, como faz todos os dias. E, no entanto, quando chega a hora de voltar para casa e estender-se no leito, braços ao longo do corpo, cabeça repousada sobre um travesseiro, luz apagada, todos nós sonhamos, somos tragados novamente para o reino dos sonhos, dos quais não temos o controle e sequer sabemos decifrar seu conteúdo manifesto ou latente. O filme, acredita Artaud, deve nos lançar, no estado de vigília, em meio à vibração do nascimento inconsciente do pensamento, dessas imagens aparentemente sem conexão, que parecem derivar apenas de si mesmas, umas das outras, uma colcha de retalhos, mas cujas razões profundas precisam ser investigadas. E isso sem reduzi-lo a uma cópia ou representação fiel do mundo exterior, pois, assim como no cinema, o mecanismo do sonho não está baseado em uma cadeia organizada de raciocínios, mas num conjunto de imagens que se sucedem, sobrepõem, misturam, se chocam e despertam os mais diversos sentimentos, da angústia dilacerante à alegria extasiante, mas, sobretudo, há na sétima arte uma capacidade de revelar a barbárie profunda de nossos atos. Por isso seus filmes podem ser considerados psíquicos, mas não 126 psicológicos, pois não se trata de elaborar um saber científico sobre a alma, mas de apresenta-la em sua pureza. Para Felício (1996), trata-se de uma ―arte como anti-razão, onde o maravilhoso toma corpo nas figuras da alucinação, da magia e do sonho‖ (p. 47, grifo da autora). Ainda segundo ela, o filme, em Artaud, possui duas características importantes: é visionário, no sentido da revelação de um conhecimento oculto, como também uma liberação de um conjunto de estados de espírito ou de pensamentos que não têm como base uma sequência de fatos nem ideias, não sendo, portanto, intelectual ou dramático. Em suma, vivemos uma vida cada vez mais carregada de trabalho, insegurança em relação ao futuro e a busca desenfreada pela sobrevivência em meio à competitividade e às crises cíclicas colocadas pelo sistema capitalista, além do desalento da fragmentação do indivíduo contemporâneo e o esgarçamento do tecido social. Contudo, jamais perdemos a capacidade de sonhar, de criar mitos ou deuses, como é próprio da condição humana. E sonhamos, criamos utopias, mitos e deuses para fugir aos constrangimentos sociais que constantemente sufocam o desejo e as pulsões mais profundas do nosso inconsciente, individual ou coletivo. Não seria o caso, diga-se, de abrir a caixa de pandora e deixar correr os nossos instintos sem freio, mas de retomar, como diz Maria da Conceição de Almeida 94 (2009, p. 2), ―as forças psíquicas de criação não racionalizáveis, imagens mais arquetípicas e não traduzíveis mimeticamente pelas objetivações da realidade‖, ou seja, reencontrar a reserva poética na ordem crescentemente prosaica na vida. E nesse sentido vai a proposta de cinema artaudiana. 94 Conferência proferida na solenidade de instalação do Grupo de Pesquisa Mythos- Logos do Programa de Pós- Graduação em Ciências Sociais. Inédito. Natal, UFRN, 03 de dez 2009. 127 SEQUÊNCIA IV – DO SURREALISMO AO CINEMA DA CRUELDADE Os dezoito segundos e a busca da imagem-carne Em 19 de abril de 1924, ano de sua entrada no movimento surrealista, Artaud publica um artigo intitulado A evolução do cenário (OC, vol. II, 1980), uma de suas primeiras obras teóricas sobre o teatro. Sua principal preocupação consiste em reteatralizar o teatro, encontrar a vida do teatro em toda a sua liberdade. O texto se debruça, em algumas passagens, sobre a questão das imagens. Por coincidência ou não, ele foi lançado justamente no momento em que Artaud descobria a força do cinema. A relação de Artaud com as imagens é, por assim dizer, constante, e está presente desde seus primeiros escritos. Mesmo ao escrever, pois era um escritor compulsivo, sempre acompanhado de um pequeno caderno de anotações, no qual poderia submergir por horas, esquecendo completamente o que se passava em seu entorno, portanto, mesmo ao escrever, ele revela sua preocupação em capturar imagens fugidias e lançá-las precariamente sobre um papel antes que elas desapareçam. Dizemos precariamente porque, em sua luta contra a palavra, em seu combate em busca de uma imagem pura capaz de agir diretamente sobre os sentidos, seja no teatro ou cinema, era a escrita seu primeiro recurso para tentar apreender o inapreensível, antes de alçar suas ideias ao mundo da prática. Em 1924, Artaud concebe o seu primeiro roteiro, Os dezoito segundos, que já revela um sentido inovador de relação com o tempo, o espaço e o pensamento. O filme, projetado para ser rodado durante aproximadamente duas horas, passa-se, como diz o próprio título, em dezoito segundos. Vanguardista avant la lettre, Artaud vislumbrava com muita antecedência o que mais tarde Deleuze (2005) conceituaria como um cinema de situações ópticas e sonoras puras, e alguns cineastas, como Marguerite Duras e Alain Resnais 95 levariam ao limite anos depois. Trata-se da apresentação e da emancipação do tempo puro, não mais subordinado a uma ação, mas a um tempo interiorizado no sujeito. Invertem-se os valores. Tempo do relógio e tempo psicológico não coincidem. Ademais o texto, como fiel à proposta artaudiana de não separar vida e obra, põe em relevo suas próprias preocupações filosóficas e existenciais, aquilo que ele chamava de enfermidade do 95 Veja-se, por exemplo, Hiroshima, meu amor (1959), com roteiro de Marguerite Duras e direção de Alain Resnais. 128 espírito e do pensamento, sua impossibilidade de pensar, de agarrar-se às ideias e às imagens antes que elas escorram pelos desvãos de um pensamento em movimento constante, incapaz de se fixar. O texto narra a história de um ator a ponto de alcançar sua glória e o coração de uma mulher a qual ele deseja desde sempre. (Não seria a história dele mesmo e da atriz Génica Athanasiou, o primeiro e maior amor de sua vida? Temos certeza que sim.) Pois bem, este personagem sofre de uma estranha enfermidade: a paralisia e a incapacidade de concretizar seus pensamentos. Conserva inteiramente sua lucidez, mas quando se apresenta um pensamento, qualquer que seja, é incapaz de dar-lhe uma forma exterior, traduzi-los em gestos, ações, ou palavras apropriados, reduzido a ver desfilar diante de si uma avalanche de imagens contraditórias e sem relação umas com as outras, o que o torna incapaz de compartilhar a vida com os outros ou de dedicar-se a uma atividade. E o único meio de fugir a essa condenação é tirar a própria vida. A partir de 1925, seu encontro com os surrealistas e seu constante trabalho de ator o ajudam a ampliar e desenvolver suas ideias sobre o cinema. Esse ano será marcado pelas atividades do movimento. A concha e o clérigo é uma tentativa de realizar a terceira via idealizada por Artaud para um cinema com situações puramente visuais, no qual as imagens em choque provocam explosões do espírito e falam diretamente aos sentidos, ao mais profundo do inconsciente, reduzindo a ação do intelecto na interpretação de um possível significado. O cinema projetaria sobre o écran não um simples texto, como numa peça de teatro, mas seria a aproximação mais eficaz de uma transposição, mesmo que imperfeita, de palavras em pensamentos e imagens. E mesmo após abandonar o cinema, em 1935, voltando-se novamente para o teatro, Artaud certamente aproveita seus contatos e sua experiência adquiridos no cinema, tanto na realização do cenário quanto na atuação dos profissionais. Mas entre 1924 e 1935, Artaud é capturado também pelo cinema, com alternâncias de mais ou menos entusiasmo. Sente prazer com as imagens desprovidas da mesma concreticidade que revestem os corpos e objetos no teatro. E ainda que sendo um homem do teatro até o fim da vida 96 , vemos aqui uma questão importante que tenta fugir à contradição sempre retomada da relação da carne entre o real do teatro e o virtual do cinema. Pois se o espaço cênico é o lugar privilegiado à encarnação precisa de um 96 Alain Virmaux aponta que, “sendo inviável fazer teatro fora de si, Artaud vai doravante realizá-lo em si” (2009, p. 26), daí o epíteto de homem-teatro dado por Virmaux a Artaud em sua obra Artaud e o teatro. 129 corpo presente, de verdadeiros hieróglifos vivos, possibilitando a singularidade de cada apresentação e a emergência do que ele chama, ainda no Teatro Alfred Jarry, de acaso objetivo (ou seja, a irrupção em cena de situações imprevistas pelo público, pelos atores e até mesmo pelo diretor, embora de forma calculada 97 ), o cinema traz para Artaud a possibilidade de vivenciar outras experiências artísticas não necessariamente ligadas à carne, mas que de certa forma dela não podem ser dissociadas. Primeiro, porque o trabalho do ator de cinema, embora Artaud não tenha jamais teorizado sobre esse assunto especificamente, é também um trabalho do corpo, vide a filmografia de R. W. Fassbinder 98 , cuja apresentação corporal dos atores é baseada na concepção artaudiana desenvolvida no Teatro da Crueldade (DEL RÍO, 2008), ou as atuações de um dos mais artaudianos dos atores de cinema, o alemão Klaus Kinski. Em 1932 (ARTAUD, 1982, P. 44), ao falar, em uma entrevista realizada em Berlin, sobre o cinema feito na Alemanha (e, de fato, o expressionismo alemão, embora em menor proporção que o surrealismo, teve também um papel importante na sua formação cinematográfica), Artaud explica que os filmes e atores de cinema alemães são bons justamente porque provenientes de uma renomada escola de teatro não existente na França, e por isso aportam aos filmes todas as suas qualidades dramáticas e refinamento cultural, atuando de maneira sensível e matizada. Portanto, profissionais de formação teatral consistente seriam imprescindíveis para a realização de bons filmes. A partir dessa declaração, podemos inferir que a ausência de uma teorização objetiva sobre a interpretação do ator no cinema, por Artaud, deve-se ao simples fato de que uma atuação no teatro pode e deve ser transposta para a grande tela sem grandes problemas, e sobre atuação cênica, sim, Artaud refletiu largamente. Em segundo lugar, em Feitiçaria e cinema (2006), Artaud reconhece o cinema como uma linguagem própria em muitos aspectos diferente do teatro, mas com o mesmo valor que a música, a pintura ou a poesia. ―Sempre distingui no cinema uma virtude própria ao movimento secreto e à matéria das imagens (...) Essa espécie de poder virtual das imagens vai buscar no fundo do espírito possibilidades até agora não utilizadas‖ (p. 172, grifo nosso). 97 “E para ilustrar essa quota que ele pretende reservar ao imprevisto, Artaud imagina acrescentar ao terceiro ato a música inexplicável de um acordeão (II, 136). Qualquer possibilidade de improvisação fica assim eliminada. O próprio acaso é codificado com antecipação” (VIRMAUX, 2009, p. 76). 98 O filme Teatro em Transe (1981), de Fassbinder, é dedicado ao Teatro da Crueldade. 130 Ora, temos aqui duas outras questões. De um lado, embora poesia, teatro, cinema, pintura ou música mantenham suas virtudes próprias, ou seja, suas linguagens específicas, nenhuma delas pode ser separada do corpo, ou da vivência do corpo, pois que este, para Artaud, tem uma relação de recursividade com o espírito, e trazemos na carne a marca indelével de nossa existência. Mais do que em suas linguagens idiossincráticas, Artaud pensa em suas possibilidades de relação. Por isso sempre procurou realizar, à maneira de Richard Wagner, a experiência de um espetáculo total. Por outro lado, é a própria possibilidade de mergulhar na virtualidade das imagens o que encanta Artaud nessa etapa da sua vida, pois, como vimos, essa questão está intrinsicamente ligada ao seu pensamento, a possibilidade de apreensão das imagens que lhe escapam a todo instante, se desvanecem no mesmo em que a mão se estica para alcança-las. Se ele diz que essa espécie de poder virtual das imagens vai buscar no fundo do espírito possibilidades até agora não utilizadas (e aqui, como veremos com mais profundidade mais a frente, estamos falando em uma probabilidade da retomada das forças ocultas do espírito), tudo isso só é dotado de sentido no instante mesmo em que reflete sobre a carne, a matéria, o concreto, a totalidade do ser e da vida. São, portanto, questões inseparáveis, por mais que Artaud não as revele diretamente em seus textos sobre cinema. Senão, por que haveria Abel Gance de ver em Artaud a própria encarnação de Jean-Paul Marat ao convidá-lo a representar o revolucionário francês em seu filme Napoleão? Da mesma forma, por que haveria Artaud de ―reivindicar‖ a Jean Epstein e Abel Gance um papel em seu projeto comum do filme A queda da casa de Usher, baseado em um conto de Edgar Allan Poe, senão porque ele o sente física e psiquicamente? Em carta endereçada a Abel Gance, em 27 de novembro de 1927, ele reclama apaixonadamente a personagem: Minha vida é a de Usher e de seu sinistro casebre. Eu tenho a pestilência na alma de meus nervos e eu sofro. Há uma qualidade de um sofrimento nervoso que o maior ator do mundo não pode viver no cinema se um dia ele não o tenha vivido. E eu o vivi. Eu penso como Usher 99 (OC, vol. III, p. 130, 1978, grifo do autor). 99 Ma vie est celle d’Usher et da sa sinistre masure. J’ai la pestilence dans l’âme de mes nerfs et j’en souffre. Il y a une qualité de la souffrance nerveuse que le plus grand acteur du monde ne peut vivre au cinéma s’il ne l’a un jour realisé. Et j’ai le realisée. Je pense comme Usher. 131 Artaud é sombrio como Usher, revolucionário como Marat, e são questões vividas na pele, na vida, na existência, e que podem ser transpostas para o cinema. Ele o sabia. Na pele da Marat, Artaud chegou a ser comparado a Conrad Veidt, ator do cinema expressionista alemão famoso por sua interpretação em O Gabinete do Dr. Caligari (FAU, 2006). Marat, assim como Artaud, foi um homem torturado desde a juventude. Ao escolhé-lo para o papel, Gance procurava justamente alguém que apresentasse certa semelhança física e moral com o líder revolucionário jacobino para a composição de seu afresco histórico. Sua boca e olhos abertos, após seu assassinato por uma jovem girondina (Figura 9), oferecem uma das imagens mais impressionantes da história do cinema. Para Artaud, a intensidade cênica reprovada pela crítica em sua interpretação representa a própria verdade de uma expressão alimentada pela experiência pessoal do ator. Se a virtualidade das imagens não pudesse ser associada à questão da carne, bastaria um ator qualquer para fazê-los. Mais Artaud sabia que era ele. Ele era o próprio Trêmulo de Coup de feu à l’aube, o desajustado de Faubourg Montmartre, o mendigo falsário de L’opéra de quat’sous, o traidor assassinado de Faits Divers, o amante apaixonado de Graziella, o irmão iluminado em A paixão de Joana d’Arc, o intelectual estarrecido de Verdun, visões da história, filme sobre a Primeira Guerra Mundial, a qual Artaud conheceu de perto. Sua versatilidade e capacidade em interpretar certos papéis ele o justifica pelos seus sofrimentos psíquicos que o perseguiram por toda a vida e que o caracterizam especialmente. Os surrealistas não aprovavam as aventuras cinematográficas de Artaud, embora seja esta uma área crucial para se analisar o desenvolvimento de sua criatividade e suas reflexões teóricas acerca da arte e da vida. Portanto, Artaud dedicou-se quase que de Figura 9. Artaud interpreta Jean-Paul Marat, um dos líderes da Revolução Francesa esfaqueado por uma jovem girondina. Imagem marcante da carreira do ator e do cinema. 132 forma solitária a realização de um cinema surrealista sem os surrealistas. Sua produção nesse domínio foi ensombrecida pela figura de Luis Buñuel. Mas A concha e o clérigo (1927) continua sendo reconhecido como um filme pioneiro, um dos três grandes exemplos de produções surrealistas, ao lado de Um cão Andaluz (1929) e A idade do ouro (1930), de Buñuel. Em A concha, Artaud propõe não a tradução de um sonho e seu conteúdo, mas uma investigação exaustiva do sistema do sonho. Nesse sentido, ele procura reconstituir a violência e independência do sonho como um processo diretamente projetado em uma imagem cinematográfica, visando uma reinvenção visceral do cinema. A força dessa nova linguagem emerge de sua densidade. Elementos são suprimidos ou subtraídos para serem rearticulados em outra ordem. A narrativa linear é rompida em benefício de uma sensação visual pura. O choque concentrado que sua concepção de cinema possui jaz no isolamento de elementos impactantes capazes de produzir uma dinâmica espacial das imagens, como, por exemplo, nas palavras lançadas ao acaso em A revolta do açougueiro, que não possuem precedência sobre o conjunto dos outros elementos, mas estão postas apenas enquanto geradoras de choque. Quase todos os seus roteiros projetam uma atmosfera de escuridão, crueldade, loucura, violência e misticismo, não no sentido de colocar e resolver conflitos, mas sim de provocar desconforto e estados alterados de espírito. Para Artaud, o cinema é literalmente um estimulante ou narcótico, agindo diretamente e materialmente sobre o cérebro, o corpo e as sensações (BARBER, 1993). Espaço qualquer e princípio de indiscernibilidade Em A concha e o clérigo Artaud revela a possibilidade do pensamento cinematográfico em dispor da utilização de objetos e formas existentes no sentido de Figura 10. Em Faubourg Montmartre (1931) Artaud interpreta Follestat, um líder revolucionário alucinado e de caracteristicas messiânicas que conduz uma malta colérica em uma fúria patética. A própria composição das imagens oferece uma atmosfera de delírio. 133 fazê-los contar o mistério de suas combinações secretas e inesperadas aos espíritos enclausurados em racionalidades fechadas, que se apegam àquilo que de antemão pode ser compreendido em paradigmas já antes acionados. É preciso despir-se de algumas disposições de espírito e abrir-se a imagens que se desenvolvem no sentido de sua significação íntima, interior. E é do choque das imagens que o pensamento, antes aprisionado, confrontado com uma força obscura cruel, um espelho que devolve um reflexo monstruoso, busca uma saída sutil. O filme desenvolve-se não em uma história linear, mas em uma sequência de estados de espírito em função das formas, volumes, metamorfoses, luz, ar, desejos inconfessáveis, instinto, magia, desejo, sexualidade, fantasmagoria e, sobretudo, o sentimento de uma liberação total e uma sintetização do universal no singular. Além disso, os objetos, meios e ações, conquistam uma realidade material autônoma que os faz valerem por si mesmos: o que se estabelece é uma relação onírica, por intermédio dos órgãos dos sentidos, libertos, que se desenvolvem naquilo que Deleuze (2005) chama de espaço qualquer. Sobretudo nos roteiros artaudianos, as localizações não são precisas, assemelhando-se sobremaneira a uma zona cinzenta, como no próprio A concha e o clérigo (Figura 11). Com exceção de O senhor de Ballantrae, adaptação de Robert Louis Stevenson e que se passa na Escócia, os demais escritos não pretendem especificar suas locações. Quando muito, algo acontece em uma praça, um bar, uma casa, um castelo, uma igreja ou nos confins da Mongólia. Ademais, devido a importância dada por Artaud aos objetos, imagens, movimentos, gestos, luzes, espaços, fica comprometida a separação entre subjetivo e objetivo, à medida que a situação ótica ou descrição visual substituem a ação motora. Nesse ponto, ainda seguindo a intuição deleuziana, caímos em um princípio de indiscernibilidade ou indeterminabilidade: real e imaginário, físico ou mental não apenas são confundidos, refletem um no outro, como sua distinção perde completamente a importância. Sobre experiências incomunicáveis de um dia comum Figura 11 Cena de A concha e o clérigo. A bola de cristal envolvendo uma cabeça empresta ao ambiente uma atmosférica mágica e onírica. 134 Mas Artaud era um surrealista sui generis. Daí suas críticas, misturadas a um sentimento de injustiça, aos dois filmes subsequentes de Buñuel citados acima, além de O sangue do poeta (1932), de Jean Cocteau, também da safra surrealista. Ele reconhece em todos esses filmes uma filiação ao seu A concha e o clérigo, mas a eles, pensa, escapam o espírito de sua criação. Em carta endereçada a Jean Paulhan (OC, III, 1978), em 22 de janeiro de 1932, ele explica que todas essas obras projetam a lógica sombria e secreta do sonho, mas o que lhes falta é uma organização das imagens capaz de se impor ao espírito, e essa é sua razão de ser, a forma pela qual elas se integram. Pois não se trata de lançar imagens como se joga um anzol, ao acaso, pois que elas devem obedecer a uma necessidade interna de extrair seu sentido umas das outras. A finalidade de um filme surrealista seria primordialmente a de revelar uma certa poesia do inconsciente, a única poesia possível e verdadeira. A experiência surrealista foi uma tentativa, para Artaud, de renovar e ampliar o potencial da linguagem aprisionado em suas formas tradicionais, tornando-a capaz de comunicar o verdadeiro movimento da emoção e dos tesouros escondidos da imaginação humana. É enganoso tratar a consciência humana e aquilo que pode ser expresso verbalmente como sendo a mesma coisa. Pois algumas experiências podem ser incomunicáveis. Pensemos num dia comum. Viajamos de trem. Lemos um livro, mas nosso pensamento não para de perambular por outras paragens e a concentração se torna difícil. Repousamos o livro em algum lugar. São três horas de viagem. Vemos a paisagem que escorre num turbilhão, passa desesperadamente, como o movimento mesmo do inconsciente. Sentimentos, emoções e pensamentos vêm e vão a todo instante. Lembramos da infância, nos planos jamais concretizados, na família, nos eternos conselhos da mãe, no trabalho exaustivo e insatisfatório, naquela vida que poderia ter sido e não foi, se nos fosse dada a chance de ser quem somos, no jantar do dia anterior, no amor não correspondido, nas paixões vividas intensamente, mas que acabaram porque tinha de acabar, e todo final é triste, mas as lembranças afloram num clima primaveril, abundantemente, de todas as formas, cheiros, cores e sabores. Temos vontade de chorar, sorrir, sentimos alegria, pensamos naquele verão de uma década atrás, e de repente somos assaltados por um sentimento de tristeza, a morte daquele ente querido, de um amigo que se foi mais cedo do que devia, daqueles que estão vivos e que amamos, mas jamais temos tempo de dar atenção e prometemos que 135 será uma prioridade, e em seguida retomamos uma felicidade temporária, afloram reminescências dos bons momentos, aqueles poucos em que a vida desativa sua capacidade infinita de entristecimento e nos concebe um minuto de paz. Aquela viagem a Paris do ano anterior que jamais será esquecida, os passeios no rio Sena, os vinhos e queijos frescos, as andanças pelas avenidas largas e os becos e ruelas estreitos e inesquecíveis, o frio intenso e cortante, o calor tropical, a chuva fina, as catedrais, castelos e suas torres medievais que de repente se transmutam na imagem do pai que um dia partiu sem deixar notícias. É sempre um turbilhão. Não há ordem, não há lógica, apenas um platô que se liga a outro, um rizoma que não para de estender-se ao infinito. Uma multidão de sonhos nos arrasta ao sabor da imaginação e não temos sequer nenhum controle sobre isso, apenas ilusoriamente. É como se tudo aquilo que um dia vivemos, do primeiro ao último dia, estivesse sempre lá, nunca perdido, guardado em algum escaninho de uma memória pura, esperando um momento qualquer para ser desenterrado. O trem chega à estação, e tudo que pensamos e sentimos se desvanece aos poucos. Precisamos nos concentrar em questões mais concretas e prosaicas, achar a mala, um táxi, descer, seguir nosso destino e, por muito tempo ou definitivamente esqueceremos toda essa sucessão de imagens que se desenrolou em nosso cérebro. Talvez estejam perdidas para sempre. E se nos perguntarem, dificilmente saberemos verbalizar tudo aquilo que nos tocou fortemente em poucas horas, a menos que sejamos um Marcel Proust, James Joyce ou Thomas Mann. ―Não, não sei explicar, é uma sensação indescritível‖. Para Artaud, esses elementos não verbais da consciência tem importância suprema para um artista. Podemos descrever o instante, mas ninguém pode sentir em nosso lugar. Nascemos, vivemos e morremos sós, e o que eu sinto não pode ser transmitido sem que alguma coisa se perca. É o problema da tradução em seu sentido amplo. É o absoluto da subjetividade. Nesse sentido, a crítica de Artaud acerca de Buñuel é de certa forma injusta, se partirmos do pressuposto que não existe apenas um surrealismo, mas vários. E, no entanto, há aproximações e distanciamentos evidentes. O primeiro parte de uma questão, digamos, metafísica. Até onde pode existir um pensamento não formulado e que resiste a ser posto em palavras? Como transpor o abismo que se abre entre suas intuições poéticas não-verbais e a expressão da linguagem? Como traduzir em um choque de imagens a profundeza do que se oculta no subsolo do espírito e liberar as forças de transformação arcaicas presentes em cada um de nós, escondidas sob os 136 substratos da consciência? Artaud percebia como real essa dificuldade em formular o conteúdo interior de um pensamento que poderia existir num estado pré-verbal, não formulado, e tentou encontrar no cinema meios de traduzir e expressar um pensamento amorfo, ainda em vias de ser criado. Daí a dificuldade de seu projeto. Em Buñuel, o artista também visa a crueldade da condição humana, a uma verdade transcendente à moral e à sociologia. Mas o cineasta espanhol está mais próximo da visão do grupo de Breton do que propriamente a de Artaud. Ambos pensam em uma transformação política, em alcançar o fundo da realidade, embora por vias diferentes. Bazin (1989) está inclinado a ver em Buñuel o único a fornecer uma prova estética contemporâneo do freudismo, a restituir as situações psicanalíticas em sua verdade profunda e incontestável. Mas há uma diferença estético-filosófica considerável. Enquanto Artaud pretende mergulhar na alma humana e encontrar sua crueldade metafísica, Buñuel, em Terra sem Pão (1933) ou Os esquecidos (1950), aspira a uma exploração do homem em sociedade. O cinema artaudiano visa um despertar do inconsciente adormecido por meio de um choque de imagens colocadas entre a abstração e o psicologismo. Procura situações psíquicas puramente visuais capazes de alcançar camadas cada vez mais profundas do espírito. Esta é também, de certa forma, a preocupação de Buñuel. Mas suas imagens partem de uma elaboração, digamos, mais concreta da realidade objetiva. Por exemplo, na exploração da miséria humana, da desigualdade social, do crime, da desgraça, da infelicidade, do sentido moral, da maldade, do assassinato, do roubo, da vida sem perspectivas, da anomia, do senso trágico do humano. Em suma, trata-se de um cinema ainda ligado à representação e a um sistema linear de narrativa, menos preocupado com a renovação da matéria plástica das imagens que com a exposição sem filtros da realidade cruel da condição humana, dessa ―vida que pensamos ter domesticado pela moral e pela ordem social, mas que a desordem social da miséria restitui às suas virtualidades primeiras, a uma espécie de paraíso terrestre infernal‖ (BAZIN, 1989, p. 53). Tempo de desilusão Temos, portanto, pelo menos duas concepções diferentes de cinema surrealista. Um estudo mais aprofundando sobre o tema poderia inclusive indicar outras correntes 137 (por exemplo, em Marcel Duchamp ou Man Ray). Contudo, a anterioridade efetiva de Artaud, tanto no surrealismo quanto na ideia da crueldade, é geralmente relegada ao segundo plano ou, quando não, completamente esquecida. Por quê? Vários são os motivos. Em primeiro lugar, a ideia de crueldade em Artaud difere sobremaneira da de outros diretores, pois se trata de uma crueldade ontológica, metafísica se quisermos, mais complexa e heterogênea, pois não se trata de uma crueldade objetiva, sociológica, representando conflitos sociais, a miséria e a maldade humanas, mas seu sentido é mais profundo e, digamos, filosófico. Melhor dizendo, de outra ordem. Em segundo lugar, como já dissemos, o seu A concha e o clérigo logo foi ofuscado pelo sucesso imediato dos primeiros filmes de Buñuel, O cão andaluz e A idade do ouro. Há aqui uma evidente injustiça com relação a Antonin Artaud, e é o caso de se perguntar se não existe uma dívida não declarada daquele em relação a este. Em terceiro lugar, elencamos a questão polêmica e ainda mal resolvida da querela envolvendo Artaud e a diretora Germaine Dulac (Figura 12), responsável pela realização do roteiro. Artaud repudia pública e violentamente o filme de Dulac e a acusa de haver corrompido o seu escrito original, provocando uma ruptura entre ambos. Dulac insiste ter captado o texto em seu sentido correto. Artaud responde que é justamente esse o problema. Trata-se, provavelmente, de uma briga de egos. Artaud pretendia se envolver a fundo na produção do filme, enquanto Dulac preferiu guardar sua independência enquanto diretora. Por isso, fez o possível para afasta-lo das filmagens, o que para ele configurou em uma traição inaceitável. Ao finalizar a película, Dulac a apresenta como ―um sonho de Antonin Artaud filmado por Germaine Dulac‖. Artaud apressa-se em negar a incoerência das imagens pela saída fácil do sonho, pois seu objetivo é liberar a lógica e o ritmo interno próprio do mundo das imagens, privilegiando a dimensão plástica em detrimento de toda narração ou psicologia. E, para esclarecer sua posição, escreve um texto introdutório ao roteiro chamado Cinema e Realidade, no qual explica que o escrito não é a reprodução de um sonho e não deve ser considerado como tal. No dia da projeção do filme no Figura 12. Germaine Dulac. Importante cineasta da vanguarda francesa, diretora de A concha e o clérigo. 138 Stúdio des Ursulines, Artaud e um grupo de surrealistas decidem tumultuar a sessão. ―- Quem fez esse filme?‖ – ―Foi a sra. Germaine Dulac.‖ – ―Quem é a sra. Dulac?‖ – ―É uma vaca.‖ (MERÈDIEU, 2011, p. 360). Os administradores do estúdio não tiveram problemas em reconhecer os agitadores, que logo foram expulsos da sala. Em quarto lugar, os textos artaudianos relativos ao cinema, teorias e projetos de roteiros acabaram por se tornar secundários devido ao seu próprio sucesso em algumas produções cinematográficas na condição de ator e que, salvo Faits Divers, seu primeiro filme, classificado como pré-surrealista, não são ligadas a uma estética surrealista, mas abrangem um leque amplo que vai do expressionismo alemão às comédias de costumes. Ao evocarmos a imagem de Artaud, lembramos quase imediatamente de alguns papeis marcantes em Napoleão ou A paixão de Joana d’Arc, mas quase nunca de A concha e o clérigo. Nesse caso, temos um talentoso ator que acaba por esconder a ele mesmo, um prolífico teórico e roteirista. Em quinto lugar, mesmo entre os franceses, salvo alguns experts, o nome de Artaud é automaticamente relacionado àquele que foi considerado seu livro mais importante, O teatro e seu duplo, no qual desenvolve suas principais teorias teatrais ainda hoje investigadas, exploradas e retomadas por muitos grupos de todo o mundo, como os norte-americanos do Living Theater ou os catalães do Fura dels baus. Mais uma vez, o homem de teatro eclipsa as virtudes do homem de cinema. Por último, podemos elencar a própria expulsão de Artaud da constelação surrealista em 1926, acusado por André Breton de desvirtuar as ideias por ele propostas. Ou seja, suas propostas surrealistas eram estranhamente pouco ortodoxas, daí a dificuldade em classifica-lo como tal. Todas essas razões concorrem para que muitos historiadores da sétima arte resistam a dar um lugar a Artaud na história do cinema. Contudo, A concha e o clérigo, uma história fantasmagórica envolvendo um oficial de polícia, uma mulher e um clérigo, filme dominado por três elementos, rapidez, metamorfose e transparência, foi de importância capital para a sua época. Alain et Odette Virmaux (1976), assim como Ado Kyrou (2005) reconhecem que essa obra pode ter inspirado fortemente os primeiros filmes de Buñuel. O projeto de Dulac, filmado entre julho e setembro de 1927, é lançado em fevereiro de 1928. Neste mesmo ano, alguns meses depois, é projetado, também no Ursulines, Um cão andaluz, parceria entre Buñuel e Salvador Dali. E um estudo atento entre as duas obras pode demonstrar que o filme da dupla espanhola inova relativamente pouco em relação ao A 139 concha, cronologicamente pioneiro em relação ao segundo. As sequências envolvendo desejo, erotismo, metamorfose, sobreposição e justaposição de imagens, violência destrutiva, são possíveis de serem detectadas tanto em um quanto em outro, mesmo que seus filmes posteriores demonstrem um distanciamento progressivo em relação a esses pressupostos. O triplo problema de um surrealista singular Mas podemos dizer que o cinema idealizado por Artaud é de essência surrealista? De fato, na perspectiva artaudiana é possível encontrar pelo menos três tipos de cinema, que por vezes dialogam e por outras não cumprem o desejo do seu realizador. Pois existem aqui três problemas: o do teórico, do roteirista e do ator de cinema. E como se costuma dizer, a teoria nem sempre se coaduna com a prática, e essas três dimensões juntas são de difícil concretização e não podem partir de um simples voluntarismo, dependendo de um contexto não raro contraditório e repleto de interesses diversos. No diálogo com o real, ou seja, com as condições de produção, nas relações sociais engendradas pela complexa indústria cinematográfica, é preciso adaptar-se a certas contingências que nem sempre expressam a verdadeira vontade do autor, salvo em algumas exceções de extrema liberdade atingidas por poucos diretores renomados no mundo. Tudo pode caber em um papel, mas nem tudo é passível de ser levado a efeito. Carrière (2014) esclarece perfeitamente a questão: Em todo caso, sonhar com um tipo de cinema que ainda não existe (embora haja a possibilidade de o estarmos carregando de forma embrionária) significa não o reduzir a uma investigação acerca da forma. Significa tentar abrir alçapões mais perigosos. Significa aceitar antecipadamente o risco, num jogo cujas regras são desconhecidas. Significa lidar com mecanismos secretos cujo movimento não estamos certos de poder retardar ou fazer cessar, uma vez iniciado. E, além de tudo, significa saber desde o início que a realidade vai se opor com toda a sua força (p. 91). Na tentativa de livrar-se dessas amarras, Artaud pensa mesmo em empreender um projeto de constituição de uma firma destinada a produzir filmes de curta-metragem com retorno rápido e seguro, pois um dos principais obstáculos para a realização de um filme é seu alto custo, que pode ser contornado por uma nova fórmula que prevê um 140 autofinanciamento a partir da criação de um consórcio de salas para exibição de filmes de vanguarda ou de outras tendências, de baixo orçamento, cenários simples e de poucos atores, vinculada à formação de um público fiel a essas propostas. A teorização artaudiana sobre o cinema, expressa sobretudo no volume III de suas Obras Completas editadas pela Gallimard, uma coletânea de pequenos textos, roteiros e algumas cartas, esclarece sua posição acerca do que deveria ser o cinema: o encontro com a verdadeira vida; a liberação das forças ocultas do espírito pela descoberta do funcionamento real do pensamento; a crença em um realidade superior de certas formas negligenciadas de associação de imagens; o poder de revelação dos sonhos, do mito, do rito e da crueldade; a destruição de velhos juízos cartesianos e conceitos pré-estabelecidos por meio de um jogo desinteressado do próprio pensamento; a questão de um homem mito-lógico que guarda em si poderes de libertação não realizados; a não-representação e a não-identidade; a criação de novas realidades; uma cura cruel das enfermidades de uma civilização ocidental decadente pseudo-humanista, dedicada a difundir sua própria definição de humanismo às custas de outras concepções de civilização; enfim, ideias que se aproximam do surrealismo ao mesmo tempo em que o ultrapassa. Pois não se trata apenas de uma (re)forma poética, mas ―um grito do espírito que retorna sobre ele mesmo decidido a esmagar desesperadamente seus entraves com a ajuda de martelos materiais‖100 (OC, vol. I**, 1976, p. 30), diz ele, tal qual um filósofo do martelo. É um tipo de ―Revolta‖ ou de ―Revolução‖ (ele usa os dois termos, assim, com iniciais maiúsculas, de forma indiferenciada, embora possam ser usados com conotações diferentes por outros autores), não em termos marxistas, mas ético-estético-filosófico- políticos, cuja intenção jaz na libertação total dos espíritos dos seus condicionamentos sociais, o que passa também por uma reorganização do corpo e da forma como o fomos construindo. E quando dissemos que Artaud absorve as ideias do surrealismo ao mesmo tempo em que as ultrapassa, falamos no sentido em que ele o vive do começo ao fim da vida (das correspondências com Jacques Rivière, no começo dos anos 1920, ao Para acabar com o julgamento de Deus, no final dos anos 1940, passando pelas suas viagens ao México e a Irlanda em meados dos anos 1930), e acrescenta questões que vão além do limite sonhado pelo grupo, formando assim sua singularidade e autonomia em 100 Il est um cri de l’esprit qui retourne vers lui-même et est bien décidé à broyer désespérément ses entraves et au besoin des marteaux matériels. 141 relação a Breton e sua constelação. Era o próprio homem surrealista, dizia. Para ele, não se tratava de uma moda passageira, e sim da essência mesma de seu ser. Por outro lado, temos o Artaud roteirista de sete roteiros conhecidos. Nesse sentido, ele tenta expor seus projetos de filmes baseados em suas teorias, com mais ou menos sucesso. O primeiro deles, Dezoito segundos, datado de 1924-1925, trata de aspectos importantes de suas pesquisas sobre alguns temas recorrentes que ecoam também no teatro, como a questão do duplo, a impossibilidade de expressar o pensamento, a loucura, a ideia de tempo, as imagens que escorrem abundantemente e sua incapacidade de captura-las em uma forma, o sonho, o transe, a metamorfose, a atualidade do mito e outros aspectos que serão desenvolvidos com mais profundidade em A concha e o clérigo, de 1927. Contudo, os roteiros mais tardios assumirão um caráter menos experimentalista e mais comercial. Isto porque, à época, havia um verdadeiro mercado de roteiros devido principalmente à inexistência da especialização de roteiristas profissionais. Atores, diretores ou encenadores distribuem seu tempo entre o trabalho corriqueiro e a escritura de textos para filmes. Atualmente, se formos comparar, a partir de uma ideia tida por um diretor, por exemplo, é possível convocar um grupo de roteiristas profissionais para desenvolver uma história quase como num trabalho em série. Isso, de certa forma, não é novo. Mas o cinema exige outro tipo de técnica e os preços pagos pelos roteiros são considerados bons. Artaud vê aí uma possibilidade de juntar o gosto de ver projetado em uma grande tela seu mundo imaginativo com a necessidade de ganhar algum dinheiro. Conta Mèredieu (2011) que, a partir de 1928, Artaud passa a redigir textos publicitários provavelmente por influência do casal René e Yvonne Allendy, interessados por investigar as relações entre publicidade, cinema e sonho. No entanto, abandona esse projeto pouco depois para se dedicar a roteiros mais importantes, como uma adaptação de O Senhor de Ballantrae, de Stevenson, Os 32 e O avião solar. A dificuldade de enquadrar Artaud em alguma escola, no caso a surrealista, esbarra em alguns obstáculos que são postos logo quando se tenta fazer a correspondência entre a teoria e a prática. Embora haja ressonâncias do surrealismo em alguns dos seus roteiros, outros são escritos, segundo o próprio autor, com fins estritamente comerciais. Mas mesmo nesse caso, é preciso levar em conta algumas nuances. Num roteiro chamado Voos, por exemplo, a ideia parte de um texto simples e linear: um jovem advogado recebe a visita de uma herdeira de grandes terrenos no 142 Oriente ricos em petróleo, cujos pais haviam recentemente falecido. Trava-se uma contenda entre ela e o padrasto que injustamente reivindica a propriedade, pondo em perigo toda a sua fortuna. Por meio de várias manobras judiciais, o padrasto pretende anular o direito da filha aos bens herdados, mas a astúcia do advogado impede, de última hora, que isso aconteça. Seria um belo filme de ação, suspense ou policial, perfeito, talvez, para um Humphrey Bogart. Mas o que anima Artaud a escrever esse texto é uma questão de fundo. Os anos 1920-1930 é o grande período da aviação, marcado pela sua rapidez e a possibilidade de contração do espaço-tempo. E, para Artaud, o cinema joga com essa rapidez e essa multiplicação de imagens, as variações de ritmo e tempo, a aceleração e a desaceleração. Em Voos, o entusiasmo de Artaud pelo aeropostal fica evidente. Uma máquina de voar. O mito de Ícaro realizado. Sua própria ideia de sonho era como um ―Cinematógrafo aéreo‖101 (OC, vol. I**, p. 35, 1976). Em um terceiro momento temos, finalmente, o ator de cinema. Artaud trabalhou com vários dos grandes cineastas da época, da vanguarda francesa ao expressionismo alemão, se destacando em alguns papeis que o marcaram para o resto da vida, como Jean-Paul Marat, em Napoleão e Savonarola, em Lucrecia Borgia (1935), ambos de Abel Gance, e o irmão Messieu, em A paixão de Joana d’Arc, de Carl Th. Dreyer, recebendo críticas muitas vezes positivas, outras nem tanto, devido a sua forma peculiar de interpretação. Mas são imagens até hoje icônicas de sua personagem. Falamos em três momentos apenas para fins de argumentação, mas Artaud desenvolve as três atividades simultaneamente. Teoriza ao mesmo tempo em que escreve e atua. Desenvolve uma obsessão pelo cinema assim como por todas as outras atividades as quais se dedicou. E se decretou a morte do cinema: ―O mundo do cinema é um mundo morto, ilusório e despedaçado‖102 (OC, vol. III, p. 83, 1978), em 1933, também o fez com o teatro: ―Uma ideia do teatro se perdeu‖103 (OC, vol. IV, p. 82, 1978), com a escritura: ―Toda escritura é porcaria‖104 (OC, vol. I*, p. 100, 1984) ou o próprio surrealismo: ―O surrealismo está morto pelo sectarismo imbecil de seus adeptos‖105 (OC, vol. I**, p. 65, 1976). 101 “cinematographe aérien”. 102 Le monde cinématographique est um monde mort, illusoire et tronçonée. 103 Une idée du théâtre s’est perdue. 104 Toute l’ecriture est de la cochonnerie. 105 Le surréalisme est mort du sectarisme imbécile de ses adeptes. 143 E, contudo, acreditava em todos os seus projetos, entusiasmava-se, lançava-se no abismo, no vazio, no desconhecido, sem reservas, sem paraquedas. A problemática, nessa etapa de sua vida, assim como nas outras, consiste em concatenar as contingências da época, as limitações econômicas e culturais, com as ideias revolucionárias que dele jorravam, mas raramente encontravam respaldo social, tanto em termos de mercado quanto de público, sendo até hoje de difícil execução. Por isso sua desilusão com o cinema pouco mais de uma década depois de seu início, que o faz abandonar definitivamente a profissão. Primeiro, como já dissemos, pelo problema de acesso ao financiamento. A empresa autossustentável proposta por ele não obtém sucesso nem adesão. O mercado, francês ou estrangeiro, já dominado pelas produções americanas, como ainda nos dias atuais, é reticente a propostas inovadoras que não seguem uma fórmula consagrada. Em segundo lugar, está a dificuldade em aplicar suas pesquisas como ator de teatro no meio cinematográfico. Ora, Artaud não dirige os próprios filmes em que participa e sequer tem o direito de interferir na elaboração dos roteiros ou da montagem dos filmes, resumindo-se a seguir as marcações que lhe são destinadas. Uma situação frustrante para quem passou a vida investigando a melhor forma possível de atuação, pesquisando desde os gregos antigos, passando pelo teatro oriental, elisabetano, até a vanguarda teatral, o que lhe rendeu atritos com vários realizadores. No cinema, por vezes, a iluminação, um plano, uma relação entre imagens, uma paisagem, um cenário, os objetos cênicos, a música, a edição ou a montagem são capazes de construir ou desconstruir uma ideia de personagem, dando-lhe maior ou menor importância dentro de um determinado contexto. E isso quase nunca está ao alcance do ator-operário. Um personagem a procura de um diretor No entanto, Artaud não poupou esforços para impor a construção de seus próprios personagens. Tanto seus papeis como suas cartas endereçadas aos amigos deixam isso claro. Ele tem consciência daquilo que lhe cabe, ou seja, como desenvolver da melhor forma possível suas figuras dramáticas. Por exemplo, em epístola endereçada ao doutor René Allendy, em 1930, ele pede ao amigo para interceder em seu favor junto a um produtor alemão de filmes policiais chamado E. Pomer. Diz ele, 144 Peço-lhe, pois, como amigo, que intervenha em meu favor acerca de E. Pomer e que lhe diga que, em certos papeis de caráter atormentado, mais ainda que meu físico, minha natureza profunda, minha atividade de escritor e meu temperamento, certos sofrimentos físicos que é preciso suportar, me destacam muito especialmente para representá- los, e me dão, creio, credenciais particulares com vista a sua obtenção. Não é justo que um jovem ator qualquer, a quem a vida não tenha feito sofrer, seja escolhido com preferência a mim. (ARTAUD, 1982, p. 68). 106 É como um personagem a procura de autor. Um homem atormentado que tenta, a todo custo, convergir seu ser, sua vida turbulenta e aplica-la em seu trabalho. Aos poucos seus papeis, embora ainda importantes do ponto de vista de sua própria tentativa de elaboração como ator, vão se reduzindo a pequenas pontas, poucos minutos, aparições cada vez menores, menos importantes, insuficientes para a complexidade que exige a construção de um personagem. Em A cruz de madeira, por exemplo, sua aparição não dura mais que alguns segundos, vestido em uniforme de pele e misturado aos outros figurantes. Sua imobilidade, um tanto absorto em algum pensamento, o denuncia imediatamente, perdido em seus pensamentos, enquanto explodem os canhões (Figura 13). Ademais, os filmes dos quais participa são profundamente heterogêneos: épicos, policiais, românticos ou de humor, não se enquadrando em nenhum gênero específico, em nenhuma de suas concepções próprias roteirizadas ou teorizadas por ele. E sua liberdade criativa vê-se bastante limitada, apesar de suas atuações condizerem, tanto mais ou menos, com sua personalidade torturada. São questões que revelam uma certa 106 Le pido, pues, como amigo que intervenga en mi favor cerca de E. Pomer, y que le diga que em ciertos papeles de carácter y atormentados, más aún que mi físico, mi naturaleza profunda, mi actividad de escritor, mi temperamento, ciertos sufrimientos físicos que he debido suportar, me señalan muy especialmente para representarlos, y me dan, creo, títulos particulares con vista a su obténcion. No es justo que um joven actor cualquiera, a quien la vida no há baqueteado sea escogido con preferencia a mi. Figura 13. Artaud, à direita, parece não participar do mesmo sentimento que move o restante dos soldados. 145 dificuldade em tratar o cinema artaudiano em termos de dadaísmo, surrealismo, expressionismo, futurismo, film noir ou qualquer outra classificação mais específica. Se a expectativa de uma nova experiência estética e inovadora se transforma em um ganha-pão sem perspectiva de futuro, aproxima-se então a hora da cerimônia do adeus, realizada definitivamente em 1935, o abandono do cinema, em que pese o fato de que as questões que o levaram a ele continuem a inquieta-lo, sejam elas o fluxo de imagens, a paralisia do pensamento, as forças ocultas do homem e do inconsciente, o duplo, o transe, o sonho, o misticismo, a impossibilidade de expressar-se, a transformação social por meio da arte ou a renovação da cultura ocidental, enfim, o reencontro com suas raízes, suas origens, levando-se em conta o fato de que as origens estão à frente e não atrás de nós. Trata-se, de certa forma, de um cinema do impossível. Irmãos Marx: crueldade e humor Em suma há, portanto, uma decalagem importante entre o teórico, o roteirista e o ator que é preciso equacionar. Por ora, mantenhamo-nos na perspectiva surrealista artaudiana. É uma questão, de certa forma, freudiana, que traduz o drama da humanidade há séculos. A sociedade se defende eliminando sistematicamente o conteúdo latente da vida a fim de recalcar as fortes pulsões humanas e no que nelas há de transgressivo ou maravilhoso, o que, junto a outros fatores, reflete em uma existência hiperprosaica. E então nos limitamos a viver uma vida cotidiana escrava da ordem social, projetando uma vivência outra em alguma coisa de além. E o máximo que podemos fazer no dia-a-dia é tecer uma rede simbólica que nos proteja do princípio de realidade. Atingir o conteúdo latente da vida não é, portanto, uma fuga no sonho, por exemplo, mas a descoberta, na própria realidade, no inimigo de todos os dias, daquilo que nos impede de destravar nossas potências estético-poéticas da existência. E, por essência, os sonhos que explodem no cinema, na perspectiva surrealista, são os meios de expressão desse conteúdo latente da vida, abrindo a gaiola que impede os espectadores de verem coisas que restam invisíveis no ramerrão do cotidiano. Nesse sentido, o espírito atinge um ponto no qual vida e morte, real e imaginário, passado, presente e futuro, comunicável e incomunicável, alto e baixo deixam de ser percebidos apenas como relações contraditórias. 146 Com o cinema, o conteúdo manifesto da vida é pela primeira vez colocado no mesmo nível que seu conteúdo latente. O sonho deixa de aparecer como um parêntese na vida para tornar-se (uma possibilidade de ser) perfeitamente acessível e aceitável por qualquer pessoa, pois ultrapassa a questão da memória, do intelecto, do conhecimento dos códigos para tornar-se um sonho coletivo, partilhado em uma sala de projeção. Uma revolução social separada de uma revolução moral, espiritual e poética não tem meios de atingir seu objetivo senão pela liberação total do homem, armado de um conteúdo latente da vida que a sociedade tem ferozmente dissimulado, uma tomada de consciência que virá do interior dos homens e cuja via do cinema pode proporcionar, em direção a uma verdadeira vida, capaz de religar prosa e poesia, homem e natureza, carne e espírito. Tudo isso pode tratar-se apenas de uma idealização, mas qual das grandes ideias que revolucionaram o mundo não partiu primeiramente de um sonho, um forte desejo de mudar um estado de coisas? É questão de criar novas brechas no pensamento. Infelizmente, apenas um dos roteiros de Artaud chegou a ser realizado, mas lendo seus projetos fílmicos e teóricos é possível vislumbrar até que ponto ele imaginava alcançar um dia a arte do cinema. Admirava apaixonadamente o ritmo livre e surrealista dos filmes burlescos, principalmente os Irmãos Marx, a quem dedicou um artigo em O teatro e seu duplo, ressaltando suas características de humor poderoso e ironia fina, um êxtase visual e sonoro que os acontecimentos carregam mesmo em sua aparente incoerência, aos quais se pode acrescentar alguma coisa de inquietante e trágico, de uma fatalidade nem feliz ou infeliz, mas de difícil formulação, aliada à revelação de uma doença atroz que se projeta no espírito, mas cujo contorno é de uma beleza absoluta. Um filme como Os galhofeiros é para ele, Como a liberação por meio da tela de uma magia particular que as relações ordinárias de palavras e imagens não revelam habitualmente, e se ele é um estado característico, um grau poético distinto do espírito que possa chamar de surrealismo, Animal Crackers participa dele inteiramente 107 (OC, IV, p. 133, 1978, grifo do autor). Não deixa de ser curiosa a relação que Artaud estabelece entre o surrealismo e o humor, a ironia, aquilo que desloca o sentido das coisas, desorganiza a linguagem e a percepção, revela o que está escondido e não pode ser desvelado salvo por meio deste deslocamento sensorial, do inaudito, do inesperado, da linguagem imprevisível do 107 Comme la libération par le moyen de l’écran d’une magie particulière que les rapports coutumiers des mots et des images ne révèlent d’habitude pas, et s’il est un état caractérisé, un degré poétique distinct de l’esprit que se puisse appeler surréalisme, Animal Crackers y participait entièrement. 147 cômico, da qualidade poética do nonsense e do sarcasmo, do surrealismo das situações inusitadas. Mas Artaud usa a palavra humor não na definição corriqueira, pois que o seu significado está atualmente perdido e é preciso recuperá-lo em outra chave interpretativa, diz ele. Humor, aqui, significa uma liberação total de todo condicionamento social, o rompimento de toda a realidade do espírito em busca de uma realidade de outra ordem, de uma liberdade intelectual de caráter anárquico e destruidor, de revolta integral contra as regras, a moral e os costumes, como é possível observar também nos filmes de Buster Keaton ou Charles Chaplin, cuja finalidade é mostrar, por meio de uma inversão de valores, de um desarranjo narrativo, as chagas abertas de uma sociedade decadente. O humor, como entende Artaud, traduz-se por uma ―certa agitação de objetos, expressões (...) convulsões e sobressaltos de uma realidade que parece se destruir a si mesma com uma ironia na qual ressoa o grito dos confins do espírito‖ (2006b, p. 161, grifo nosso), como ao final de Os galhofeiros, quando, durante uma festa, as coisas se complicam, os objetos, os animais, os sons, os anfitriões, os criados, os convidados, tudo entra em colapso, em uma completa desordem e revolta contra os comentários extasiados, lúcidos e debochados de um dos irmãos Marx, e o inconsciente de cada um dos personagens, reprimido por convenções e costumes, libera suas forças vingativas. Talvez seja nesse sentido que Artaud considere seus roteiros com uma espécie de humor (aliás, contrariando a imagem de homem louco intempestivo que alguns de nós temos dele, alguns amigos relatam seu fino senso de humor) delirante, surreal, embora seus personagens em filmes como Sidonie Panache (1934), uma comédia em forma de opereta, estejam longe de realizar os seus propósitos. Neste filme, rodado parte na Argélia, encontramos um Artaud barbudo, que mede meticulosamente seus gestos. Artaud interpreta um personagem mítico, adepto do sufismo e emir, chamado Abdel- Kader. Seu manto de lã com capuz e sua barba encobrem um rosto marcado pelo calor desértico, que encima o corpo de um homem desfilando a cavalo em meio a balas. Um ser fantasmático, sombrio, escuro e de olhos azuis, mas uma atuação menor em sua carreira. Em seus temas obsessivos que perpassam tanto o teatro quanto o cinema estão, entre eles, o humor e o riso absoluto 108 como formas de contestação, o desenvolvimento de uma noção de ironia que caracteriza uma certa evolução do espírito moderno. Ele 108 Um dos espetáculos apresentados pelo Teatro Alfred Jarry, Ventre brûlé ou la Mère folle trata justamente de uma denúncia bem humorada do conflito entre teatro e cinema. 148 mesmo é consciente da dificuldade de dar uma definição precisa do termo, mas o riso entraria como uma espécie de categoria da sensibilidade que cobre todas as reações da ação dramática, incluindo as lágrimas. Diríamos, com certo risco, tratar-se de um humor trágico, que não chegou a ser plenamente delineado pelo autor. Mas, provavelmente, pretendia levar adiante as lições de humor sarcástico aprendidas com o polêmico dramaturgo dadaísta-surrealista Alfred Jarry, pai de o Ubu Rei, seu texto mais conhecido, uma sátira adaptada de Macbeth, de Shakespeare. Assim como Artaud, Jarry foi um dos que mais trabalharam pela renovação da linguagem teatral. Ambos viam no humor um meio de provocar uma reação à ação dramática pelo fato de agir como um destruidor, um contestador. Uma espécie de humor-destruição, com poder de dissociação física e promoção da anarquia, na medida em que coloca em causa todas as relações de objeto a objeto, objeto e sujeito, das formas e seus significados convencionais. Não é por acaso, diz Gouhier (1974), que Artaud encontra nos filmes dos Irmãos Marx, Chaplin ou Keaton os exemplos daquilo que ele chama de humor, do qual o teatro havia perdido seu segredo. Uma poesia humorística capaz de colocar em causa as relações conhecidas entre os objetos (por exemplo, em A culpa é do macaco (1931), dos Irmãos Marx, um homem que crê receber uma mulher em seus braços têm, na verdade, uma vaca) tirando dessa dissociação uma desintegração integral do real, cujas consequências extremas tornam sensíveis uma certa poesia física do espaço. Portanto, a partir de algumas observações pontuais, esparsas e não propriamente desenvolvidas por Artaud, seria possível retirar algumas conclusões da questão do humor: uma desorganização total do real, uma visão do mundo invertida com relação às visões habituais, fixadas em conceitos e palavras, um humor criador de poesia, inversão de formas, deslocamento de significações e sentidos, uma poesia humorística no espaço, uma afinidade anárquica entre os objetos, pessoas e situações imprevisíveis e inesperadas, transformação radical de um olhar sobre o mundo. 149 SEQUÊNCIA V – UM ENFANT TERRIBLE DO CINEMA Assim como Rimbaud, Baudelaire, Edgar A. Poe, Nietzsche, ou seja, alguns que tiveram ascendência sobre o se pensamento, Artaud era um maldito, alguém que não pertencia à chamada burguesia da época, mas, dotado de uma sensibilidade estética aguçada, tinha certo deleite em viver uma vida longe de todo conforto, desfrutando das dores e prazeres das cidades, perambulando ora por Marselha, muito por Paris, México, Irlanda, à procura de experiências capazes de renovar seu pensamento, suas estratégias existenciais. Era um solitário de espírito aventureiro, pois que resolveu, ainda muito jovem e apesar de todos os problemas de saúde que o acometeram desde cedo, deixar o seio de uma família financeiramente estável para dedicar-se ao mundo das artes, no limite de suas condições financeiras e psicológicas, num dos centros culturais mais importantes do mundo, a capital da França dos anos 1920. Foi aí que conheceu o cinema, uma arte ainda em ascensão e não dotada de nobreza, pois dândis são também aqueles que procuram em objetos e diversões populares aquilo que certa burguesia rejeitava como cultura de massas, dotados de um espírito contestador aos valores artísticos dominantes. O dândi exalta tudo o que o bom gosto despreza, como as salas escuras onde eram exibidos filmes ainda desprovidos de sofisticação, salvo os ainda incipientes filmes de arte. Em 1924, quando Artaud chega à Paris, toda uma fração da juventude se volta para o cinema porque os filmes são os antípodas da cultura burguesa imposta pela época. As classes dirigentes em vão tentam dar ao cinema um status superior, inseri-lo em seu sistema de valores. Aos olhos de muitos intelectuais da época e uma boa parte dos adeptos da revolta, o cinema encarna uma espécie de anticultura. E esse viés iria até à rejeição de uma eventual cultura cinematográfica: não à recuperação de um filme pela arte ou pelos valores consagrados. Ainda nos anos 1920, esse fervor de adoração, às vezes um pouco delirante, congrega uma geração de intelectuais ditos subversivos, mas toca principalmente aos poetas. Muitos deles tornam-se adeptos do cinema. E a fascinação que essa nova tecnologia exerce sobre eles os leva a uma ideia de que cinema e poesia são indissociáveis, uma nova forma de fazer poesia, assim como os poetas da atualidade que recorrem aos meios da computação gráfica para elaborar suas obras. Se homens como Artaud travam relações de certa forma duradouras com o universo cinematográfico é também porque veem o cinema como negócio de poetas. Se 150 os dadaístas ou surrealistas, em menor ou maior proporção, se interessam por este novo meio e o inserem em suas ambições, é porque colocam em questão todas as regras tradicionais da atividade humana, numa tentativa de substitui-las por uma nova escala de valores ou mesmo de vida, como no caso de Artaud. As artes do passado estão em franco declínio e é preciso então inventar, criar novos modos de expressão. Nessa perspectiva, o cinema aparece naturalmente como um meio ideal de investigação do inconsciente, como um veículo privilegiado do imaginário que permite levar às telas o equivalente figurativo da ―escritura automática‖, tão cara aos surrealistas. É como se o cinema tivesse sido feito para eles, para suas intenções, se encaixando perfeitamente em suas pesquisas profundas sobre uma outra visão de mundo, uma realidade escondida. Nesse contexto, surgem algumas perguntas-chaves que Artaud tenta resolver em sua obra: como atingir o inconsciente, uma profundidade espiritual e mais enriquecida? Como renunciar à linguagem e à razão sem abandonar a ambição de comunicar aos outros suas descobertas? A adequação entre um pensamento surrealista e sua colocação em um tipo de forma qualquer não seria já uma traição? Mesmo a escritura automática parece não dar conta desta contradição interna. O cinema parece, pelo menos momentaneamente, uma forma de resolver essas questões, pois que numa sala escura de projeção o espectador se encontra em uma situação particular, a meio caminho entre o consciente e o inconsciente. O filme revela um tipo de alucinação em vigília, permitindo que a linguagem corrente se furte a algum tipo de lógica, como em A concha e o clérigo (Figura 14), quando ―A face do oficial racha, abre, desabrocha; o clérigo já não tem mais nos braços um oficial, mas um padre‖109 (OC, III, p. 21, 1978). Um rosto que racha, se abre, uma metamorfose inesperada acontece, como 109 La face de l’officier se lézarde, bourgeonne, s’épanouit; le clergyman n’a plus dans les bras um officier mais um prêtre. Figura 14. Cena de A concha e o clérigo. O pensamento aprisionado procura uma saída. 151 num sono profundo, num estado de sonho, quando as imagens se chocam e se transmutam ao bel prazer e cuja lógica, se ela há, encontra-se em alguma profundidade obscura. René Clair é um dos que discordam desta aparentemente relação clara entre cinema e a escrita automática. Um diretor, mesmo com uma equipe e material adequados, em um laboratório de edição ou num set de filmagem, deverá sempre lutar contra um atravessamento técnico e humano que impedirá de apresentar as imagens instantâneas que brotam de um pensamento automático. Mas isto seria esquecer as virtudes da montagem, pela qual as imagens ganham uma forma acabada e reencontram uma flexibilidade e espontaneidade bem superior àquela da linguagem, como sugerem Alain e Odette Virmaux (1986). Da mesma forma, a escritura não seria também um trabalho de laboratório, de construção e reconstrução incansável de uma narrativa qualquer? A escritura de uma tese não é, ela mesma, apesar de toda uma metodologia empregada, imprevisível, dependente de resultados, pesquisas e da própria subjetividade de quem a escreve e das variações do próprio sujeito-objeto? Muitos escritores afirmam não possuir o menor domínio sobre a ação de suas criaturas. Balzac discutia obcecadamente entre amigos o destino incerto que daria a seus personagens, pois o fluxo de consciência nos leva a veredas que se bifurcam constantemente, cujo resultado é às vezes imprevisível para o autor. O acaso e a imprevisibilidade também estão presentes no cinema, apesar do seu desenvolvimento técnico. Às vezes, também ao pintar um quadro, um simples traço lançado ao acaso pode determinar a imagem que dali surgirá. Os sonhos são justamente as palavras-chaves de inúmeros textos relativos ao cinema nos anos 1920. Surrealistas ou não, o importante é tentar alcançar a potência poética virtual do cinema e sua capacidade de fazer dançar as imagens e reproduzir sonhos. Mas a ideia do filme concebido como sonho é apenas uma etapa sobre a via do cinema verdadeiramente surrealista. Pois nem todo filme aparece como um sonho e deságua no irracional, sendo logo percebido como um paliativo provisório de extravagâncias estéticas que já não incomodavam a mais ninguém. E nesse sentido o surrealismo não poderia se resignar a apresentar imagens desconexas e delirantes, mas que nada diziam ao público. É nesse cenário que se destacam as formulações artaudianas acerca do cinema, mesmo se já houvesse deixado o grupo de Breton. As relações que Artaud estabelece com a ideia de sonho são ambíguas. Sobre A concha e o clérigo, em um primeiro 152 momento ele deixa entrever tratar-se de um sonho (na verdade, um sonho de Yvonne Allendy relatado a Artaud e transformado em roteiro). Pouco depois, ele se mostra categórico em negar o texto como a reprodução de um sonho. Seu projeto de filme vai além disso. Trata-se de um meio de explorar a vida profunda da consciência, as obsessões e fantasmas em seu surgimento espontâneo e irracional, pesquisar as razões ocultas de nossos atos ditos lúcidos, restituir o trabalho puro do pensamento. A questão do sonho em Artaud aproxima-se, em nosso ponto de vista, da interpretação que Roger Bastide (2006) faz dele, partindo de uma leitura freudiana, bergsoniana e, de certa forma, jungiana, e que pode ajudar a esclarecer esse ponto um tanto obscuro da reflexão artaudiana: o cinema como uma máquina de remontar o tempo. Permitam-nos fazer, portanto, uma razoável digressão que, pensamos, seja importante. Bastide: Freud e Bergson O inconsciente noturno, diz Bastide, são como sedimentos de eras passadas sobrepostos uns aos outros e compactados pelo peso dos séculos. Nossa alma desconhecida acumula camadas análogas às camadas geológicas onde se encontram fossilizadas lembranças de vidas extintas. E é a partir do sonho que acessamos essa caverna obscura onde jazem vestígios de nossos mais antigos ancestrais. O sonho seria, portanto, um remontar da história de trás pra frente, do ―civilizado‖ de hoje ao ―primitivo‖ de ontem, ―desenhando nas paredes da gruta uma cerva ferida com sílex pontudo, ou dançando na clareira da mais densa floresta, em volta de um fogo, as danças rituais de músicas bárbaras‖ (p. 33), ou seja, uma tomada de posse não apenas do passado individual, mas do próprio passado da humanidade, passado coletivo, compartilhado, uma conquista da história humana. Segundo Freud, continua Bastide (2006), no fundo de cada ser existe toda uma série de tendências, desejos e pulsões que constituem a libido, não necessariamente revestida de caráter sexual, mas direcionada a um objeto desejante. No entanto, a sociedade subsiste por meio da repressão dessas forças que, deixadas ao acaso, às tendências egoístas próprias de cada um de nós, possuem um imenso poder de destruição e desagregação social. Desse modo, estabelece-se uma censura. Apenas ascende ao consciente tendências que não causem prejuízos ao convívio social. O 153 mórbido, o imoral, o perigoso, é reprimido e trancafiado em um porão construído por uma sociedade estabelecida como força de repressão. Mas as tendências reprimidas não estão mortas. E tão logo relaxe a censura, como no estado de sonho, elas forçam a porta da consciência no sentido de virem à tona, e a libido se insinua às ocultas em nosso pensamento como uma ―revanche de nossa imoralidade inerente‖ (p. 34), embora apenas de forma enfraquecida, porque ainda assim a sociedade mantém seu poder de coerção. Mas a astúcia de nossos impulsos inconfessáveis se esmera em despistar os obstáculos na forma de simbolização dos desejos, e temos então um estado de sonho que compreende dois níveis sobrepostos: o ―conteúdo manifesto‖ e o ―conteúdo latente‖. E é preciso saber discernir entre estes dois níveis em suas sutilezas, pois as ideias latentes são as únicas explicativas. Em geral, não sonhamos com os desejos em si, mas com as máscaras que elas vestem no sentido de encenar sua tragédia. Mas, Ocorre que a humanidade sempre encenou essa tragédia; as máscaras de que se reveste o Desejo não são obra nossa; são herdadas; são elas que vamos reencontrar agora, cada vez mais arcaicas, através das camadas sucessivas da Memória até que, no mais fundo do poço noturno, deparemos com a Face despida do nosso Desejo (BASTIDE, 2006, P. 35). Isso significa que o sonho propicia dados preciosos sobre os primórdios de nosso desenvolvimento intelectual também em dois níveis: a pré-história individual, a infância, e aquilo que em nós carregamos de universal, o desenvolvimento da espécie humana, ou seja, a pré-história filogenética. Mas, segundo Bastide, é possível reconhecer nas camadas de sonhos alguns caminhos dessa trajetória que vai do individual ao universal. De início, se desenvolvem os mitos gregos: quando nos sentimos voar (Ícaro) ou a sensação de estarmos presos em um lamaçal ou tentáculos que dificultam a nossa caminhada, como demonstra uma passagem do filme Melancolia (2011), de Lars Von Trier, na qual a noiva é impedida de caminhar presa a raízes de árvores ou cipós que retém o seu passo (Figura 15). Figura 15. Cena de Melancolia. 154 E em seguida os mitos gregos, estratificação da civilização ocidental, se dissipam e os sonhos vão na direção de um passado mais longínquo, dando lugar às imagens bíblicas, como a imersão na água, características do nascimento e as lendas que as cercam, até chegarmos aos deuses-animais, os reinos de areia e a crença egípcia da viagem à terra da Morte. Finalmente, no fundo do poço, nas profundezas das trevas ancestrais, eis que desperta o desejo de abraçar a mãe, o culto da terra-nutriz, da geração, da adoração das forças misteriosas desencadeadas pela sexualidade, os ritos selvagens de castração, praticados ainda hoje por certos povos. Nesse ponto, A dança das imagens sagradas se encerra. O feiticeiro subterrâneo que conduz o sonho derrubou as máscaras das mitologias antigas. Estamos agora nesse domínio de pestilência e horror, nesse charco turvo, nos confins do nosso eu, lá onde o homem se arranca de sua animalidade guardando, porém, de suas origens animais, o gosto do sangue, da volúpia e do céu estrelado (...) A noite avançando, o sono se aprofundando, o sonho se prolongando nos levaram, de andar em andar, de camada tenebrosa em camada tenebrosa, para além de qualquer razão, ao exato interior da Libido desenfreada (BASTIDE, 2006, P. 36, grifo nosso). São nessas derradeiras camadas que homem e besta se aliam, por meio do incesto, da carnificina e da crueldade, retomados no sonho por esse encontro com o homem primitivo que nos habita, adormecido, reprimido, censurado, no mais profundo do nosso ser. É uma questão artaudiana por excelência, embora em sua revolta contra a razão, em busca do caos e do informe, da palavra antes da palavra, Artaud não via o sonho apenas como uma relação de imagens dotadas de laços ilógicos. Pretendia ir além da aparência até encontrar esse ser primordial. ―Da boa utilização do sonho poderia nascer uma nova maneira de conduzir o pensamento, de se estar no meio das aparências‖110 (ARTAUD, OC, vol. I**, p. 64, 1976), diz ele. E por mais que sua relação com a psicanálise seja ambígua, pois ele mesmo a rejeitava, não é difícil encontrar relação entre ambos. Por isso, enquanto diretor da central de estudos surrealistas, demandava aos seus membros que anotassem cuidadosamente e analisassem seus próprios sonhos a fim de encontrar uma substância mais densa e profunda do inconsciente, a própria gênese do pensamento mítico, na era em que o homem guardava ainda alguma coisa de sua origem animal. 110 De la bonne utilisacion des rêves pouvait naître une nouvelle manière de conduire sa pensée, de se tenir au milieu des apparences. 155 A potência virtual das imagens, pensa Artaud, vai buscar no fundo do espírito possibilidades até hoje não utilizadas porque escondidas ou mumificadas nos porões do inconsciente. O cinema é essencialmente capaz de nos colocar em relação com toda essa vida oculta do sonho. Em uma carta a seu amigo Louis Jouvet, datada de 7 de março de 1935, ele explica: ―Me parece que todos os públicos do mundo têm um inconsciente que, num período como esse está pronto para quebrar a membrana‖111 (OC, vol. V, p. 184, 1979, grifo nosso). A questão da membrana é levantada em algumas poucas passagens dos textos de Artaud, de forma rápida e pouco desenvolvida, não raro contraditória. Por vezes, é relacionada ao inconsciente, que possui uma força pura, mas cujo acesso só é possível a partir do atravessamento da membrana que impede o inconsciente, ou o corpo, ou a vida, as pulsões, os impulsos, a libido, de se expressarem. Talvez tenhamos aqui uma imagem aproximada do quadro de Salvador Dali (Figura 16) sobre o nascimento do novo homem geopolítico, ou mesmo a imagem de um invólucro, de amarras, formas, conceitos, palavras, instituições que nos envolvem desde o nascimento. E mesmo assim, o inconsciente está por todo o lado, dentro mesmo da sociedade repressora, e que nos une a todos. Mas atravessar a membrana, como ele compreende em A arte e a morte, não é tarefa fácil: é como posicionar os dois pés à beira de um abismo escuro, no qual a vida fora da membrana é sempre insegura, como Em certos medos-pânicos de infância, certos terrores grandes e irracionais onde o sentimento de uma ameaça extra-humana choca [ou seja, está em estado de latência], como o rompimento de uma membrana próxima, como o desvelamento de um véu que é o mundo, ainda informe e inseguro (OC, vol. I*, 1984, p. 125). 112 111 Et il me paraît que tous les publics du monde ont un inconscient qui, dans une période comme celle- ci est tout prêt à crever la membrane. 112 Dans certaines peurs paniques de l’enfance, certaines terreurs grandioses et irracionnées où le sentiment d’une menace extra-humaine couve, il est incontestable que la mort apparaît, comme le déchirement d’une membrane proche, comme le soulèvement d’um voile qui est le monde, encore informe et mal assuré. Figura 16. Criança geopolítica observando o nascimento do homem novo. 156 É como se a membrana, ao se romper, estabelecesse uma comunhão entre os homens, os espíritos e as línguas, ainda presos em suas contingências sociais. Por isso que Artaud busca no cinema uma linguagem que seja universal, uma linguagem perdida, física, gestual, musical, imagética, intraduzível em palavras. O cinema seria uma espécie de membrana vibrátil a ser desvelada pelo espectador. Contudo, essa concepção também não dura muito. Já no final de sua carreira na sétima arte ele acredita que a escritura cinematográfica não escapa aos mesmos limites impostos por um formato rígido e que, ao invés, de libertar, aprisiona o espectador da mesma maneira que um texto qualquer poderia fazer sem recorrer ao écran. De modo que, ao invés de projetar uma cadeia de fluxos e linhas de fuga, ele nos oferece uma visão estratificada e congelada do real, um mundo de ilusão e vibrações fechadas sobre si mesmas. A membrana não como abertura, mas fechamento. Continuando, ainda numa leitura bastidiana, Bergson (sobre quem consta que Artaud também foi um leitor) pensa no sonho enquanto libertação da animalidade, um esforço da alma para escapar à sua prisão corporal. Mas antes de prosseguir nessa senda, vejamos bem, pois que adentramos num terreno aparentemente paradoxal: Artaud participava da ideia, mesmo com uma certa antecendência, daquilo que posteriormente Edgar Morin (2011) chamaria de pensamento complexo, ou seja, em uma palavra, pensamentos que podem e devem ser colocados em relação. É nesse sentido que o poeta de Marselha viaja ao México, em 1936, tentando encontrar aquilo que a cultura europeia não pode mais oferecer. Aliás, seria prolífico um estudo comparativo sobre os dois autores. É interessante observar também como tanto Artaud quanto Morin, cada um em sua época e à sua maneira, vislumbram a ideia de um pensamento do Sul. O que significa dizer que, apesar da monocultura da mente que tenta se impor diuturnamente a partir do processo de globalização, mundialização (Morin confere status diferentes aos dois) e do capitalismo, é preciso buscar em outras culturas àquilo que resiste a este movimento de uniformização e monetarização das relações humanas. O objetivo seria unir o que há de melhor entre todas as culturas, o que implica também o resgate de culturas quase em estado terminal por meio dos epistemicídios perpetrados pelo menos desde as primeiras colonizações. Não se trata de uma luta de civilizações do Sul e do Norte. Contra essa ideia, Morin prefere a palavra Suis, pois que há Sul no Norte como há Norte no Sul. Para perceber isso, basta visitar as periferias dos chamados grandes centros mundiais. 157 Artaud desde sempre reconhece a fratura entre os pensamentos lógico e mítico, arte e ciência, razão e desrazão, vida e obra. Somos seres mito-lógicos, pensava, embora não nesses termos exatos. Suas elaborações artísticas, por exemplo, eram dotadas de uma técnica sofisticada a partir de um grande esforço, treinamento e repetição, como demonstra em seu texto Um atletismo afetivo, em O Teatro e seu Duplo. Não obstante, seu objetivo era alcançar aquilo que no ser resta de intocado sob os estratos da civilização ocidental técnico-científica, fragmentada e altamente especializada. E ao inaugurar uma nova episteme, Morin nos aconselha ―a enfrentar os guardas das fronteiras disciplinares do saber e da vida, para que não deixemos de exercitar uma ética planetária geradora de sujeitos menos fragmentados e alimentada de sonhos e esperanças‖ (GALENO, 2005, p. 89). Ora, ambos se consideram intelectuais exílicos, daqueles que vivem entre fronteiras. Morin é marrano, mas de consistente formação francesa. Artaud descende de uma família de comerciantes na qual a troca cultural era uma constante. E contra a uniformidade da civilização europeia, Artaud busca nutrir-se de uma multiplicidade de civilizações. E se Morin propõe a ideia de uma ética planetária, Artaud entende que a verdadeira cultura pressupõe uma modificação integral e mágica, no homem, entre corpo, alma e natureza, uma integração que poria fim ao individualismo fragmentário contemporâneo. Portanto, a ideia é pensar o lugar da magia, do mito e do imaginário na sociedade do século XX, a qual ele pertencia. Mas precisamos retomar o fio de Ariadne deixado pouco atrás. Freud considerava o sonho enquanto fenômeno de regressão e queda na animalidade. Bergson, pelo contrário, fala do sonho como uma libertação da animalidade, um esforço da alma para escapar de sua prisão corporal. Nada mais distante do que Artaud que, quando constrói sua noção de corpo sem órgãos, retomada com grande eloquência por Deleuze e Guattari (2011) em O Anti-édipo e outros textos, pensa no corpo como a própria libertação a partir de sua reorganização, sua luta não contra os órgãos, mas contra o organismo, ou seja, da forma como fomos construídos socialmente e como se não pudéssemos deixar de sê-lo. Portanto, é como se o próprio corpo, desestruturado e reestruturado, pudesse dar novos significados à vida, desligando-o de uma certa ordem social. Pois o corpo é capaz de multiplicar os planos afetivos, sensoriais, imaginários, racionais, desenvolver a percepção e devolver uma experiência cotidiana modificada. Mas a alma, diferente do corpo, no sentido bergsoniano, é capaz de armazenar uma memória pura. Ou seja, tudo 158 aquilo que vivemos desde o primeiro dia de vida até o fim jaz no inconsciente (por isso que, ao sofrer um acidente quase fatal, dizemos que toda nossa vida passa como um filme em nossa mente), mas sob uma forma puramente espiritual. O corpo seria o responsável, a partir das sensações experimentadas no dia-a-dia, de escolher, entre essa massa de lembranças, àquelas adequadas a guiar nossas ações presentes no mundo, enquanto todo o resto quedaria reprimido. É a partir do sonho que a chamada memória pura ganha certa liberdade de aparecer como fluxo de imagens por meio do relaxamento das influências do corpo sobre o inconsciente. No entanto, a separação corpo/alma ainda subexiste. Nesse sentido, como explica Bastide (2006), o corpo não cria o espírito, mas é a sua própria negação, pois a alma, expandida que está por todos os lados, nele encontra seus limites e obstáculos. Seria impossível uma vida em que todas as lembranças de todos os tempos, perdidas na imensidão do espaço com suas infinidades de sensações e possibilidades possíveis, nos assaltassem com frequência, reduzindo assim nosso próprio poder de ação no mundo, nossa condição de escolher este ou aquele caminho. É a materialidade que nos coloca o esquecimento, como se fosse preciso esquecer para viver. E seria através da morte que a alma se liberta de todas as suas contingências corporais e participa assim de uma realidade universal, sem barreiras, a conquista do desabrochar (e Bastide não afirma, em momento algum, a crença de Bergson na imortalidade da alma, mas apenas como uma possibilidade). E o sonho seria uma espécie de aprendizado da morte, o germe de uma vida eterna. São duas noções de sonho que desembocam em uma encruzilhada: em Freud, vimos a queda em uma animalidade ancestral, pré-histórica, ―Mergulhamos no mais fundo da vida corpórea, luxúria, incesto, crueldade‖ (BASTIDE, 2006, p. 43, grifo nosso), o que resume de certa forma os enredos de Os Cenci ou de Heliogábalo, o anarquista coroado, dois projetos teatrais de Artaud. Em Bergson observamos, pelo contrário, o distanciamento da vida do corpo. Bastide conclama que estabeleçamos uma técnica do sonho, uma ascese, no sentido de permitir o direcionamento de nossa vida noturna, pois a vida do sonho é uma parte importante do nosso inconsciente que procura romper as portas da consciência, mas a qual não damos a devida atenção, preocupados que estamos em conhecer e dirigir apenas nosso estado de vigília. Mas não nos preocupamos em saber o que ela nos conta. Enquanto isso, o sonho permanece ―o lugar privilegiado onde se celebra o casamento do céu e do inferno‖, como diz Bastide (p. 44) retomando as palavras de William Blake. 159 Corpo e crueldade cósmica De alguma forma, a crueldade em Artaud está ligada a este casamento, a um princípio de realidade que não se reduz a uma luta do bem contra o mal, o céu ou o inferno. A crueldade é cósmica, diz ele. Diríamos nós, acrescentando (e ele chega a dizer isso em certas passagens) que pertence também ao caos, em detrimento de uma força superior organizadora da vida. Pois há tempos sabemos que o universo não é um mecanismo do qual todos somos uma peça de uma engrenagem, ou mesmo pertencemos a uma ordem transcendental que destina nosso lugar no mundo. Seria melhor dizer que o céu e o inferno, no sentido metafórico, nos habitam. Primeiro porque o princípio de realidade está diretamente relacionado ao princípio da incerteza ou da liberdade. Não temos nenhuma razão para crer que de uma boa ação surgirá um bom resultado. E vice-versa. Depois, porque o mal habita o bem e o contrário é verdadeiro. Nas palavras artaudianas, o mal é constante, e o bem, resultado de uma ação. Constante por ser uma eterna luta contra a força da inércia, uma eterna projeção da vida em meio a todos os seus obstáculos, contra os quais ele mesmo lutou por toda a existência. O bem seria, portanto, essa tentativa de projeção e criação do ser. Mas no que tange à questão do sonho, Artaud aproxima-se do corpo no sentido em que, para ele, a verdade da vida está nos impulsos da matéria, e o espírito do homem adoece em meio a tantos conceitos petrificados e mortos. Ou seja, corpo e mente não se separam. É nesse sentido que ele se entrega à febre dos sonhos, para deles retirar uma nova lei, um delírio, uma multiplicação do ser, um devaneio, uma espécie de loucura lúcida, porque aquilo que é do domínio das imagens é irredutível pela razão. O que não significa que não haja uma razão nas imagens (daí a lucidez), mas esta mesma razão está na própria vitalidade das imagens, nos estados de espírito provocados por elas, pois Artaud pensava a si mesmo como um estado de espírito sempre em formação, desdobramento, nunca terminado. Sua única ocupação era se refazer: sua vida, sua carne, seu espírito, sua história, seu corpo de homem, mulher ou animal, enfim, entrar no domínio da multiplicidade. Pois no cinema, um certo domínio profundo tende a aflorar à superfície, subvertendo uma ordem e uma clareza às quais estamos habituados, mas de cujas balizas precisamos fugir como numa revolta romântica contra a hiperprosaização do mundo em busca de uma poética da existência. Muitas de suas elaborações teóricas podem ser colocadas na conta do delírio? É possível, mas não apenas. O que seria essa coisa de mais imponderável, de mais 160 profundo e inacessível que o cinema pode nos apresentar? De que natureza seria esse cinema que restitui a matéria direta das imagens, sem interposição, sem representação? Artaud reclama a transmutação do cinema. Ele deve ser de uma outra substância para poder exprimir as coisas do pensamento, o interior da consciência. Tal seria, como adverte Grandieux (2000), o horizonte insensato do cinema, o improvável, o segredo que o assombra. Tal é a energia que o impulsiona, que o anima. É preciso, diz ele, anular a distância entre o si e o corpo. O cinema deve nos envolver no seio da matéria pulsional, nos lançando cada vez mais no interior da caverna, no centro do real. A ficção precisa ser encarnada, feita de sangue e músculos, para que possamos experimentar a potência do desejo e aceder ao interior da consciência sem interposição, sem representação. Seria essa a transubstanciação da imagem em corpo. Para Artaud, esse seria o cinema que nos colocaria em relação com as forças mais arcaicas, com o que nelas há de mais pulsional, tecendo indissociavelmente uma relação entre imagem e corpo, pensamento e afetos, nos colocando sob a ameaça constante do surgimento daquilo que não pode ser nem visto nem entendido. Artaud e seus roteiros Falamos da relativa importância dada ao cinema pelos adeptos do surrealismo. Em compensação, são vários os roteiros deixados por eles e nunca realizados, principalmente pela dificuldade em filma-los e a ausência um mercado consistente e rentável para absorvê-los. Entre 1923 e 1933, não apenas Artaud, mas Robert Desnos, Maurice Henry, Salvador Dali e vários outros produziram inúmeros textos dedicados ao cinema, mas que acabaram sendo colocados na conta dos gêneros literários. Mas em matéria de produção cinematográfica, os projetos abortados foram inúmeros. Para começar, é preciso constatar que a palavra ―roteiro‖, como fazem Suzanne Liandrat-Guiges e Jean-Louis Leutrat (2010), é motivo de uma certa confusão por conter pelo menos três tipos de composições: um tema qualquer, uma história resumida em algumas frases situando suas linhas de força de intenções, personagens e acontecimentos; um organização e um encadeamento de situações entre elas, uma dinâmica dramática; e um script mais acabado, indicando o jogo de cena, os enquadramentos, os deslocamentos, as falas, a iluminação, as posições dos objetos etc. 161 De um certo modo, três atitudes podem aqui ser sumariamente descritas. De início, a mais tradicional, que consiste em ver no roteiro uma etapa prévia à rodagem de um filme. Por outro lado, encontramos disposições de pensamento que consistem em denunciar um roteiro como um entrave à realização do cineasta. O texto não passaria de uma bússola a qual não se trata de consultar obsequiosamente, um tipo de inimigo por excelência do cinema artístico, o que se constitui em uma espécie de antagonismo: de um lado um cinema narrativo, mais comercial, e do outro um cinema não narrativo, mais experimental e de vanguarda. Palavras contra imagens, escritor contra diretor. Uma terceira vertente tende a fazer do roteiro um gênero autônomo, não adotando um ponto de vista do filme como objetivo privilegiado. O roteiro encontra seu próprio fim em si mesmo. Se, de um certo ponto de vista, podemos dizer que os roteiros artaudianos são inacabados, esboços de projetos irrealizados, Suzanne Liandrat-Guiges e Jean-Louis Leutrat (2010) lembram que os trabalhos de Jean-Luc Godard prescindem de roteiros, substituídos por uma enorme quantidade de documentos, imagens e sons que não necessariamente contam uma história, como se o verdadeiro roteiro fosse impossível de escrever e filmar, tais quais os cine-poemas não destinados a serem rodados, mas unicamente para colaborar com a criação de um estado provisório de espírito que a memória consome no próprio ato de ler. O texto nos envia ao cinema assim como uma peça escrita nos remete a uma encenação teatral. Nessa perspectiva, o leitor tenta garantir ao roteiro um acabamento visual do que é posto no papel, uma leitura como experiência de passagem da estrutura literária à estrutura cinematográfica. Daí temos a famosa frase muito ouvida em que alguém diz que o livro é melhor que o filme. E, no entanto, são duas estruturas diferentes. Nesse ponto, Philippe Grandieux (apud LIANDRAT-GUIDES; LEUTRAT, 2010) é mais próximo de Artaud ao afirmar que o filme não é a adaptação de um gênero romanesco, mas a consequência de uma imperiosa necessidade de produzir uma imagem particular. Aquilo que é inicial, que está na origem do filme, paradoxalmente, não é visível. O cenário funcionaria como iluminações de uma imagem invisível ainda a ser construída. As etapas do processo de escritura e realização são facilmente discerníveis. E pela dificuldade de reproduzir seus textos em imagens, os surrealistas não guardavam muitas esperanças, e publicavam seus roteiros em diversas revistas especializadas a fim de lhes assegurar um mínimo de existência. E aos poucos o cinema vai sendo paulatinamente esquecido pelo grupo. 162 Mas o exemplo de Artaud, nesse sentido, é bastante mais significativo. São textos curtos, com poucas indicações de cenários e montagens, com linhas de forças, personagens e força dramática, mas não exatamente terminados. São como fluxos de ideias lançadas em papel como imagens invisíveis e fugidias esperando para serem capturadas e projetadas em telas. O problema de Artaud com Dulac pode ser lido também nesse contexto. Não encontra um fim em si mesmo, como um gênero autônomo, mas são feitos para serem filmados. E Artaud faz o impossível para que isso aconteça. Dulac, cineasta experiente da vanguarda francesa, busca sua liberdade de imagens em relação às palavras. Mas as palavras de Artaud procuram sua tradução em imagens das quais ele mesmo, aparentemente, tem apenas uma noção, pois elas fogem, escapam a todo o momento. Talvez por isso, ao confrontar-se com projeção de A concha e o clérigo, tenha tido sua ponta de decepção. É a questão do invisível tornado visível, colocada por Grandieux. Artaud tentou com afinco realizar alguns de seus roteiros, como Os 32, história de vampiro de viés impressionista, chegando mesmo a contactar um diretor de cena alemão chamado Walter Ruttman. Sua correspondência com alguns interlocutores testemunha esforços inúteis para a realização, por ele mesmo, d‘A revolta do açougueiro, um dos mais importantes de sua carreira como roteirista. Numa carta a Jean Paulham, datada de 23 de março de 1930, ele diz, sobre os obstáculos na realização de A revolta e seu desespero frente às dificuldades de torná-lo possível: ―O tempo passa, os meios e as perspectivas de realização se distanciam. Hoje eu desespero de não realizá-lo jamais‖113 (ARTAUD, OC, vol. III, p. 178, 1978). O texto acabou finalmente por ser publicado na N.R.F. no mesmo ano, para, segundo ele, evitar que suas ideias fossem roubadas. Após o episódio de A concha e o Clérigo, seguido pela projeção de O cão Andaluz e a sensação de injustiça pelo não reconhecimento de sua primazia no cinema surrealista, Artaud alimenta um sentimento de perseguição em matéria de criação cinematográfica, como se uns e outros se valessem de suas ideias não realizadas, o que, segundo Alain e Odette Virmaux (1986), não é totalmente sem fundamento. Seu primeiro roteiro, Dezoito segundos, datado de 1924-1925, por exemplo, repousa sobre a oposição entre tempo real e tempo imaginário e a matéria fugitiva do sonho. Mesmo à época, o tema não era inteiramente novo, mas seria a primeira vez que 113 Le temps passant, les moyens et les perspectives de réalisation s’éloignent. Aujourd’hui je désespère de le réaliser jamais. 163 alguém se propunha a coloca-lo em uma grande tela. Artaud havia imaginado intercalar seu argumento entre duas imagens paralelas, ao começo e ao fim da projeção: imagens de um relógio pendendo da mão de um homem vestido de negro simbolizando que apenas os dezoito segundos escorriam, em que pese os acontecimentos projetados durante este intervalo. Apesar de o roteiro não ter sido rodado, restou a ideia original da dilatação do tempo interior, que foi possível encontrar mais tarde em filmes como O sangue de um poeta, de Jean Cocteau (ALAIN e ODETTE VIRMAUX, 1986). A incomunicação em Duas nações nos confins da Mongólia Mas a versatilidade artaudiana permite ir do onírico ao irônico também em seus roteiros. Duas nações sobre os confins da Mongólia é escrito num registro histórico- burlesco. Duas nações se digladiam por razões impenetráveis aos europeus, sendo inútil a intervenção da instituída Sociedade das Nações, mas que pode se alastrar por todo o extremo Oriente. Depois se sabe que o ouro russo é o motivo de toda a controvérsia. A comicidade de Artaud aparece aqui em toda sua sutileza para a resolução do entrevero diplomático. A única maneira de tentar arranjar as coisas seria enviar rapidamente aos povos em conflito um poema surrealista. Contudo, a ideia falha, o poema é ininteligível, mal compreendido, o que acaba por deixar a situação ainda pior. Envia-se, assim, um cônsul francês no sentido de debelar o fogo. Ele tem a revelação do surrealismo. Ele torna-se o próprio poema-personagem. Avião, vertigem da velocidade, fluxo de imagens, são todos elementos do roteiro. E como pano de fundo, a eterna luta contra a palavra, pois os embates diplomáticos travados pelos representantes das nações não passam de palavras esvaziadas de sentido, pois cada um tem a sua (des)razão e exige que ela seja respeitada. Um diálogo de surdos. Não há acordo possível. O que existe é apenas a impossibilidade da comunicação, contra a qual Artaud pretende criar uma linguagem universal, passível de uma compreensão imediata por todas as partes. ―Esses mongóis,/ esses tártaros,/ esses afeganes,/ vocês creem que eles lutam por minas, por cidades;/ Errado, eles lutam pelas palavras‖114 (ARTAUD, OC, vol. III, p. 16, 1978). Palavras surradas, incompreendidas, fechadas a outras possibilidades de sentido e, consequentemente, a 114 Ces mongols,/ ces tartares,/ ces Afghans,/ vous croyez qu’ils se battent pour des mines, des villes;/ erreur, ils se battent pour de mots. 164 uma impossibilidade de pensar diferentemente. O discurso do próprio cônsul é sintomático: Vocês interpretam uma obra. Dez mil sentidos estão em cima de cada frase, de cada palavra, da menor entonação. Acrescente entonações similares, cultive todas as possibilidades e verão vocês o que pode sair daí. Observem minha cabeça, a mim que estou falando. Todo o interesse do que digo pareceria estar em meu discurso, errado, no menor gesto dos músculos de meu rosto, pode criar-se mundos de imagens, instantâneas, abandonando-me simplesmente a todas as modulações do meu desejo interior, de meu apetite de viver, modelando suas sensações 115 (ARTAUD, OC, III, p. 16, 1978). Antes de continuarmos, abramos um pequeno parêntese sobre o texto acima citado. Esslin (1978) chega a dizer que, em outras épocas, Artaud poderia ser tido como um profeta, embora na primeira metade do século XX, na França, a recompensa pelo seu jeito singular de viver e sua rejeição aos valores tradicionais foram anos e anos de internação e eletrochoques. Mas não deixa de causar espécie um certo tipo de profecia observada nesse roteiro. Como se de fato as palavras perdessem o sentido e a ideia de uma confederação de nações estivesse cada vez mais distante (veja-se a crise na Comunidade Europeia, por exemplo, ou as constantes guerras no Oriente Médio), pois os progressos técnico-científicos são desacompanhados dos, tão importantes quanto, progressos éticos (tanto a auto-ética, quanto a socioética e a antropoética, tríade indissociável para se pensar em uma reforma da política de civilização) (MORIN, 2011a). Não há compreensão possível. As razões são fechadas em suas lógicas internas e a ideia de uma paz perpétua, ironicamente posta por ele na ação de um personagem surrealista, capaz de subverter a ordem das coisas, é facilmente descartada como pura loucura. Acompanhamos os conflitos do mundo e percebemos como os desviantes são tomados apenas como loucos e excluídos das negociações de alta cúpula onde apenas os tecnocratas altamente especializados têm voz, de forma que a própria noção de democracia pluralista perde sua força em meio a tantos entraves burocráticas e devido à vaga incontrolável da economia financeira mundial. 115 Vous jouez une pièce. Diz mille sens sont au-dessus de chaque frase, de chaque mot, de la moindre intonation. Ajoutez des intonations similaires, cultivez tous les possibles et vous verrez ce que cela donnera. Voyez ma tête à moi qui parle. Tout l’intérêt de ce que je dis semblarait être dans mon discours, erreur, elle aussi, dans le moindre des muscles de ma face, je peux vous créer de mondes d’images, instantanés, en me livrant simplement à toutes les modulations de mon désir interne, de mon appétit de vivre, en modelant des sensations. 165 Uma lógica binária sem concessão aos entremeios. Países invadem outros em busca de recursos energéticos e, dependendo de sua força bélica, que no fim dá a última palavra, nem a ONU nem nenhuma ―Sociedade de Nações‖ nada podem fazer, a menos que seus interesses estejam diretamente envolvidos. No fim de Duas nações, o cônsul francês é visto por todos como um completo estúpido e desacreditado pelo próprio país. Enquanto isso, um avião vindo da Inglaterra, carregado de ouro, resolve a questão, e tudo volta a sua ordem normal, o conflito desaparece sumariamente, assim como apareceu, pois o dinheiro não possui ética, e é como se tudo se resumisse a isso, desde a Europa aos confins da Mongólia. Ponto final. A originalidade de Artaud fica evidente em vários de seus roteiros. E embora Duas nações pertença visivelmente à sua veia propriamente surrealista, agregando aqui o riso do humor-destruição, como demonstra a ideia do poema-personagem, seus demais escritos evidenciam a riqueza e a diversidade das pesquisas empreendidas por Artaud e demonstra que ele não foi apenas um anunciador de Buñuel. Mas a proliferação de roteiros como gênero literário, pelo menos no registro surrealista, não dura muito tempo. Todas as esperanças surrealistas a propósito do cinema se diluem pouco a pouco. Apenas Artaud insiste na experiência. E, contudo, vemos ressurgir traços destes experimentos nos dias atuais, como nos filmes de David Lynch. Pelo contrário, aparentemente foi o cinema que deixou traços perceptíveis nas obras literárias, como nos livros Les vases communicants, Nadja e L’amour fou, de André Breton, nos quais ele comenta passagens de algumas obras cinematográficas. Como observam Alain e Odette Virmaux, Descobriremos muito facilmente, nas obras de Desnos, de Péret, de Breton ou de Aragon, uma massa de índices que parecem seguramente advir da linguagem cinematográfica. Efeitos de luz, contrastes, caráter mecânico dos gestos, aumento de detalhes e vida emprestada aos objetos, confusão onírica do real e do imaginário, metamorfoses insólitas ou fantásticas, abolição das limitações de tempo e de espaço... (1976, p. 78) 116 . Sentença que parece mesmo ter sido tirada de A concha, que se utiliza de praticamente todos estes elementos. A experiência do surrealismo foi certamente para 116 On découvrira três facilement, dans les oeuvres de Desnos, de Péret, de Breton ou d‘Aragon, une foule d‘indices que paraîtron relever à coup sûr du langage cinématographique. Effets de lumières, contrastées, caractère mécanique des gestes, grossissement des details et vie prêtée aux objets, superposition et contamination des images, confusion onirique du réel et de l‘imaginaire, métamorphoses insolites ou fantastiques, abolition des limitations d‘espace et de temps... 166 toda uma geração do começo do século XX um evento capital de grandes consequências, na formação dos espíritos contestadores e sua constituição imaginária, um desafio e uma revolta contra a sociedade burguesa do cálculo, do lucro a qualquer preço, da racionalização, da ciência fragmentária que separa o homem da natureza, o mito do logos, a razão da imaginação e da intuição, transformando-nos em seres unidimensionais e incapazes de contestar as estruturas reinantes. Em artigo publicado no jornal Le Monde, em 17 de abril de 2003, Edgar Morin (2014), amigo de André Breton, propõe ao presidente François Mitterrand, sem sucesso, a construção de um Palácio do Surrealismo para abrigar testemunhos e obras de arte daquele que, para ele, foi o acontecimento mais importante do século XX na ordem do espírito, a mais fecunda e admirável aventura intelectual do século passado. Um movimento não apenas literário, mas revolucionário, iconoclasta, multidimensional, ao mesmo tempo poético, político e existencial, um modo de viver, de se perder e se reencontrar. Para além de seus aspectos polêmicos e provocadores, Morin considera o surrealismo profundamente integrador daquilo que até agora estava separado, capaz de reintegrar todas as dimensões essenciais do humano. Em suas palavras, É preciso conceber também que o surrealismo faz confluir aquilo que, em nossa civilização, é separado entre o público e o privado, o politico e o subjetivo. Assim o jovem surrealismo uniu Marx e Freud, concebendo que a infraestrutura da psique humana é tão importante que a infraestrutura econômica, e ligou a revolução poética – mudar a vida – à revolução prática – transformar o mundo. Ele concebeu nossa realidade ‗normal‘ como um intermediário entre o imaginário, aparentemente subrreal, do qual ele reconhece a realidade profunda e, o surreal, que é o domínio da experiência poética. (p. 412) 117 . No mesmo contexto, em entrevista concedida à Revista do Instituto Humanitas Unisinos (IHU) 118 em 3 de agosto de 2015, Edgard de Assis Carvalho contempla a ideia, em leitura moriniana, de que não somos apenas seres racionais, e a ideia hegemônica do homo economicus apequena nossa parte lúdica, e “deixa de lado o amor, 117 Il faut concevoir aussi que le surréalisme fait confluer en lui ce qui, dans notre civilisation, est disjoint entre le public et le privé, le politique et le subjectif. Ainsi le jeune surréalisme a uni Marx et Freud, concevant que l’infrastructure de la psyché humaine est aussi importante que l’infrastructure économique, et a lié la revolution poétique – changer la vie – à la révolution pratique – transformer le monde. Il y a conçu nore réalité « normale » comme une bande moyenne entre l’imaginaire, apparemment sous-réel, dont il reconnaît la réalité profonde, et le surréel, qui est le domaine de l’expérience poétique. 118 CARVALHO, Edgard de Assis. Da crise ecológica ao pensamento complexo. Disponível em http://www.ihuonline.unisinos.br/index.php?option=com_content&view=article&id=6042&secao=469, acesso em 05 de agosto de 2015. 167 a dádiva, a comunhão, a espiritualidade, a convivialidade, a brincadeira‖. E isso no momento em que parecemos viver mais do que nunca no seio da sociedade do espetáculo diagnosticada pelo situacionista Guy Debord já em meados dos anos 1960, quando as máquinas começariam a liberar cada vez mais o tempo do homem para um trabalho de se refazer. E, no entanto, estamos mais pertos de Chaplin em Tempos Modernos do que de Marx. Mas, à diferença do espetáculo integral prognosticado por Artaud, no sentido de introduzir minas em muralhas de rochas sólidas do sistema para produzir, em suas fendas, gêiseres e flores, Debord pensa num imaginário e numa ludicidade aprisionados em um sistema de produção alienante que não deixa espaço a um pensamento autônomo, soterrado sob um pesado entulho de informações, publicidade, propaganda e programas de televisão: ―Toda a vida nas sociedades nas quais reina as condições modernas de produção se anuncia como uma imensa acumulação de espetáculos. Tudo aquilo que era vivido diretamente se distanciou em uma representação 119 » (1992, p. 15, grifo do autor). Contra essa representação, Artaud combateu ardentemente. Pois, segundo Debord, o espetáculo em sua totalidade como um projeto do modo de produção atual não é um suplemento do mundo real, mas o próprio mundo em si. De modo que, dentro de um ambiente onde as imagens ganham cada vez mais autonomia (só existe aquilo que é visível e tem a possibilidade de ser espetacularizado), o espetáculo assume o lugar da própria vida, e aqueles que vivem essa existência são como autômatos não-viventes, como se levassem suas vidas por procuração a partir de fragmentos de imagens que tentam totalizar o mundo por meio de visões parciais da realidade, como fazem diariamente nossos telejornais. E a riqueza das possibilidades do mundo do sonho, da imaginação, da criação, do mito, do diálogo com a natureza, da religação dos saberes é perdida, enquanto o homem se reduz a uma engrenagem descartável do crescimento econômico no qual até o tempo de lazer é controlado e contabilizado. Nesse contexto é possível compreender ainda melhor o fracasso do cinema surrealista, incompatível com o processo de expansão da indústria cinematográfica, principalmente a americana, focada na rentabilidade de suas produções e sufocando a organização dos espetáculos ditos de vanguarda, aliada a existência de um público 119 Toute la vie des sociétés dans lesquelles régnent les conditions modernes de production s’annonce comme une immense accumulation de spetacles. Tout ce qui était directement vécu s’est éloigné dans une représentation. 168 restrito incapaz de garantir um retorno necessário aos produtores e ao nascimento do cinema falado. A resistência de Artaud ao cinema falado reside justamente no fato de que o cinema mudo permitiria assimilar mais facilmente o filme ao sonho e o distinguiria irredutivelmente do teatro tradicional, do qual ele não tinha mais do que desconfiança e desprezo. De outro lado, como no roteiro de Duas nações, no qual a comunicação é impossível, menos pela questão da língua do que pelas razões próprias a cada um dos contendores, o cinema mudo seria uma forma de esperanto, de acesso universal, uma alternativa à Torre de Babel do mundo, enquanto um cinema falado por cada nação poderia servir facilmente, nãos mãos dos governantes, como um aparelho ideológico de dominação. Por isso, para Breton, o mundo do cinema tornou-se, a priori, suspeito, impuro, dominado pelas forças do mercado, infrequentável para um verdadeiro surrealista. E isso incluía um olhar desconfiado em relação ao próprio Artaud, um homem de cinema. E os surrealistas foram se deixando acossar e resignar pela indústria cinematográfica até que desaparecessem como autores, talvez matando grandes produções que dentre eles poderiam ter surgido. Em que pese todas as decepções, o cinema foi para os surrealistas uma descoberta de grande envergadura, uma tentativa de anexar o domínio do sonho ao do surrealismo, uma possibilidade de exprimir, transfigurar e realizar os poderes do inconsciente. Philippe Soupault (1965) confessa que, nos anos 1920-1930, ―Mais ainda que a escritura, mais ainda que o teatro, o filme, a meus olhos, conferia um poder superior ao homem. Tudo parecia ser permitido no cinema‖120 (p. 29), uma maneira inovadora de exprimir mais rapidamente e mais intensamente que a escritura uma forma de lirismo surrealista, pois a objetiva de uma câmera é um olho sobre-humano capaz de ver e projetar coisas que o olho humano não pode fazer. Pensamento muito próximo ao de Artaud, que via no cinema uma possibilidade de ir além das normas próprias à literatura ou ao teatro, além dos interditos e das ideias-tabu. O público adora sonhar, certo, e as salas de cinema são apropriadas para isto. Poltronas acolchoadas, o apagar das luzes, o silêncio, o fio de luz que parte de trás e projeta magicamente numa tela nossos desejos mais profundos, secretos e inconfessáveis, um encontro amoroso em Paris ou a bordo de um cruzeiro no Adriático sob a luz de uma lua cheia e um céu estrelado em um momento único regado a 120 Plus encore que l’écriture, plus encore que le théâtre, le film, à mes yeux, conférait un pouvoir supérieur à l’homme. Tout semblait être permis au cinéma. 169 champanhe, o homem ou a mulher ideais que queremos ser, a coragem que não temos de enfrentar certas situações do dia-a-dia, o heroísmo do mocinho, a bravura do bandido, a luta contra um sistema por vezes injusto, o crimonoso que passamos a admirar ao conhecê-lo em sua complexidade, suas dores e angústias, o vagabundo ao qual viramos o rosto na rua, mas que se mostra em toda a sua humanidade e nos causa compaixão, as projeções e identificações nos personagens que adoramos, tudo isso faz parte da magia própria do cinema. No entanto, para Artaud, o que o cinema feito à época (e também hoje) nos conta são apenas histórias e anedotas superficiais. O importante seria aceder ao universo de possibilidades ao qual ele nos abre, permite e apresenta. Pois o cinema possui uma força extraordinária de emprestar novas dimensões ao surrealismo além do domínio da escritura. É como se ele fosse feito não para um público, mas contra ele. Seu poder virtual é o de mudar as vidas. O filme não deve seguir o espectador, mas se antecipar a ele, causando-lhe surpresa, dor, desespero, mas também alegria e êxtase. A crueldade no cinema artaudiano não é apenas de ordem física, violenta, sangrenta, mas metafísica, ontológica, espiritual. Não apenas para os iniciados das letras, dos simbolismos ou da semiótica das imagens, mas para todos, um veneno subcutâneo que age diretamente sobre o organismo. Por isso sua superioridade à escritura, que depende de uma série de aprendizados. Mais ainda, ele tem o poder de assimilar todas as artes, como a dança, a escultura, a pintura ou o teatro, assim como o de regenerar uma coletividade aprisionada em suas solidões compartidas. Um instrumento potencial de comunhão. Em resumo, o cinema da crueldade manifesta o funcionamento real do pensamento, a vontade de transformação da vida e do mundo e o desejo de forçar, conhecer e explorar os limites do homem, de seu espírito e do inconsciente, ou seja, transfigurar a condição humana. A potência molecular do cinema Mas restam algumas questões incontornáveis as quais Artaud se dedicou a refletir durante todo seu período no cinema e talvez nunca tenha conseguido responder satisfatoriamente pela própria complexidade de seu projeto e envergadura de sua ambição. Pode um filme transformar a vida dos espectadores, revelando todo um campo inexplorado do inconsciente e dos sonhos, de forma que eles possam reaprender a viver 170 suas vidas, incitar alguém a transformar a ordem do mundo, reconciliar as antinomias que encerram sua existência? Se o cinema substitui o real em uma simples duração de uma projeção, um parêntese da vida, alimentando alguns sonhos e desejos sem que eles possam se manifestar de outra forma fora de uma sala escura, em que ele difere de qualquer outro espetáculo cinematográfico? 121 Qual a sua força em realizar a destruição de uma certa ordem no plano simbólico das imagens? Artaud reafirma que o sonho e a vigília são vasos comunicantes. Um está presente no outro, se refletem, completam e enriquecem. Mas se o filme surrealista se crê um análogo do sonho, Artaud pretende ultrapassar a ideia de comércio mental com o mundo para devir uma concentração do irracional, incluindo desencadeamento de desejos, triunfo do acaso, amor louco, subversão das leis da física, do princípio de identidade e encadeamentos de imagens inesperados e fulgurantes. Ora, ninguém, vivendo em sociedade, está inteiramente livre em realidade para satisfazer desejos inspirados pelo écran, o que nos faz entrar numa espécie de paradoxo, um bovarismo surrealista. Os limites de satisfação das vontades são estreitos. Uma das respostas possíveis a esses questionamentos, embora não tenham sido tratados diretamente por Artaud, se dá no sentido de que, se o imaginário é aquilo que tende a devir real, a eficácia própria de um filme surrealista não pode ser medida a não ser pelo tempo de duração difícil de mensurar das metamorfoses humanas, podendo agir na modificação da estrutura do sujeito, suas determinações, economias psíquicas e na dinâmica dos seus vínculos sociais. E podemos conceber, sem cair em um tipo de idealismo grosseiro, que essas transformações terão lugar entre as numerosas revoluções microscópicas nas quais o efeito cumulativo, alimentado e amplificado pelas várias reviravoltas próprias da condição humana e cujo alcance histórico nos escapa. Edgar Morin (1958) chega a dizer que ―as técnicas do cinema põem em ação e solicitam processos de abstração e de racionalização, que irão contribuir para a formação de um sistema intelectual‖ (p. 209, grifo nosso), em outras palavras, uma síntese, um meio de participação total, ou seja, uma nova postura do ser frente ao mundo, uma religação de saberes, de razão, sentimento, intuição, emoção, em suma, o reconhecimento do homem como sapiens-demens, sábio e louco, cuja mente, corpo, espírito, natureza e cosmos estão inevitavelmente conectados em uma ecologia integral. 121 E não negamos, em momento algum, que a maior indústria cinematográfica do mundo, ou pelo menos aquela que tem mais força de distribuição de suas produções, a norte-americana, não produza coisas boas, como os filmes de um Orson Wells ou de um Alfred Hitchcock, por exemplo. O que fazemos é tentar chegar ao cerne do que seria a perspectiva artaudiana de cinema. 171 A questão é de experimentar todos os meios possíveis para ganhar a sensibilidade e operar transformações em mentes e corpos, encetar uma educação também a partir dos signos, das imagens, em suma, da arte, ao ponto em que entre vida e cinema não haja mais solução de continuidade. No limite, uma identificação entre poesia e ciência. Imagens que existem não apenas para o prazer dos olhos, mas visando também uma alteração orgânica por meio de uma consciência multiplicada do mundo. Uma consciência que advém da exploração das possibilidades desinteressadas da potencia poética da vida, ocupada em resgatar o poder da gratuidade. Pois ―a verdadeira beleza nunca nos impressiona diretamente. E um pôr-do-sol é belo por tudo aquilo que nos faz perder‖ (ARTAUD, 2006b, p. 79). A rosa, diz Rimbaud, não tem porquê, não tem propósito. Ela apenas é. E é bela apenas sendo. Se invertermos a perspectiva pessimista de Debord (1992) sobre a sociedade do espetáculo, que ele define não como um conjunto de imagens, mas uma relação social entre as pessoas mediada por imagens, além de sua acepção do espetáculo como uma atividade especializada que fala unilateralmente em nome do conjunto da sociedade, vemos aí duas questões. Primeiro, é preciso pensar numa sociedade cujos experts aprendam a se comunicar e abrir as barreiras que os encerram nessas especializações. Assim, mesmo o espetáculo como atividade especializada dialogaria com outros grupos sociais e garantiria sua visibilidade em um processo de comunicação multilateral. Segundo, se vivemos em uma época de hipertrofia do sentido da visão e do voyeurismo, numa era de imagens que se multiplicam abundantemente, vemos aí uma possibilidade histórica de as próprias imagens, utilizadas de modo não convencional, unicamente para destilar ideologias ou religiões do capital, possam, mesmo que em longo prazo, subverter a ordem de um sistema, funcionando como instrumento de unificação e reestruturação social, espiritual e corporal, como pensava Artaud, mesmo que, como afirma Debord, o espetáculo esteja umbilicalmente ligado a um determinado modo de produção. Mas, da mesma forma, não podemos esquecer que, em uma concepção marxista, a infraestrutura cria a superestrutura que reflete sobre infraestrutura e assim por diante. A originalidade da concepção artaudiana de cinema é evocar menos o mundo conhecido do que aquele que nós podemos conhecer, demonstrar aquilo que a maior parte da indústria cinematográfica feita hoje não pode afirmar. Ele não persuade, mas impõe ao espectador as conclusões que ele não pode combater senão a posteriori. 172 Antes de ser filosófico, ético, estético, é uma experiência de vida. Destruição do real, ilusão verdadeira, instrumento de revelação e penetração, joga um papel antissocial longe das exigências comumente aceitas da razão dominante. O cinema tem virtualmente o poder singular de nos lançar fora de nós mesmos ao mesmo tempo em que desperta as forças que nós ignoramos. Um duplo movimento por meio do qual se opera uma transformação qualitativa do ser e do mundo, uma rejeição de uma ordem estética separada da vida. Exigindo do espírito uma adesão completa, ele afrouxa os constrangimentos do cotidiano e multiplica os campos de possibilidades do espírito. Uma recusa da forma atual do mundo no sentido de fundar uma existência verdadeira, autêntica. Edgar de Assis Carvalho observa o cinema como ―portador de uma densa zona obscura antropocósmica que nunca será inteiramente desvendada‖ (2008, p. 136), capaz de regenerar nossa própria existência, de nos revelar novos níveis de significação a partir da dimensão multidimensional da criatividade, no triplo âmbito do individual, social e planetário, pois ―Somos seres advindos do infinito, ilusionistas do real, que tentamos recuperar o tempo perdido, mesmo que essa missão seja custosa, por vezes desestimulante e desanimadora‖ (p. 140). As paisagens metamórficas de A concha e o clérigo, por exemplo, nos coloca em face de um mundo em transformação sob a pressão do universo inesperado dos impulsos liberados do desejo humano. Não um espaço definido, nem tempo, nem identidades ou heróis absolutos. Uma mobilidade extrema nos transporta de um personagem a outro, de um espaço a outro, de uma imagem a outra, sempre em metamorfose, como num fluxo de consciência. Tal qual um sonho, uma pessoa aparece, e de repente devém outra, que parece familiar, mas não é ela mesma. Os objetos se transfiguram e se transformam e fazem significar coisas completamente diferentes. Conchas nos seios da mulher, rosto que racha, língua que se alonga, bolas de vidro. Uma crítica assaz importante. Um protesto radical contra o mundo atual, de empobrecimento espiritual, no qual as coisas comandam as necessidades dos homens, imobilizando e limitando suas faculdades. Recusando toda a domesticação pelo objeto, Artaud, joga livremente com ele, e o considera apenas em relação ao mundo interior da consciência, subvertendo seu valor de uso, como num exercício imaginativo. O objeto assim recriado seria um revelador de forças obscuras, capazes de despertar no desconhecido do ser ressonâncias mais profundas e assegurar entre os homens uma comunicação mais estreita. Basta pensar no 173 estranhamento causado pelos ready-mades de Marcel Duchamp, seu ferro de passar roupas cravado de pregos ou seu famoso urinol deslocado de sua função. Para Artaud, a finalidade do cinema é de exprimir o interior da consciência, o que há de obscuro (no sentido também de irrevelado) no ser. Além ou aquém do pensamento claro, com o poder de ultrapassar esse limite e atingir a clareira perfeita da vida, seu coração puro e escondido, uma abertura para a verdadeira vida. Essencialmente visual, seu objetivo não é dar uma representação objetiva da realidade, mas criar, pelo choque de imagens, um universo novo. Para além da revolução social apregoada pelos surrealistas, Artaud via no cinema a possibilidade de afirmar no homem o que nele há de maravilhoso, profundo e misterioso. Pois o homem não seria aquilo que pensa ser, senhor em sua própria casa, mas é comandando por instintos submersos e escondidos nas trevas da noite, por vontades e desejos que de tempos em tempos imprimem sua marca. O maravilhoso se exprimiria de uma forma indireta, por meio de um conteúdo latente, um fundo histórico secreto que desaparece por trás da trama dos acontecimentos. E o cinema artaudiano se propõe a nada menos que contestar o todo-poderoso princípio de realidade e lançar as bases de uma nova realidade, na qual as aspirações e possibilidades humanas possam se realizar e se recriar incessantemente. A sétima arte desempenharia um papel primordial nessa recusa da realidade estabelecida, preparando coletiva, imaginária e simbolicamente o advento de uma nova ordem na qual o homem conheceria, enfim, a verdadeira vida. Para além do sonho Em seu Segundo Manifesto do Surrealismo, André Breton (2001) evoca as atividades surrealistas sob a forma de livros, quadros e filmes, o que não seria comum. Pois, como afirma Alain Virmaux (1976), a história do movimento é geralmente contada como sendo literária, mesmo com sua recusa em reduzir-se apenas a isso, embora não o conseguindo de todo. Da mesma forma, existe uma história da pintura surrealista. Mas o mais difícil seria encontrar uma narrativa do surrealismo no cinema. Não que seja impossível consagrar grossos volumes às interseções entre os dois e demonstrar, por exemplo, que um surrealismo difuso banha diversas obras, assim como é possível dedicar uma vasta atenção no sentido da atitude complexa e frutífera dos surrealistas em matéria de cinema. Mas a questão reside no fato de encontrar filmes 174 exclusiva e conscientemente surrealistas, da forma como eles a reivindicavam, eliminando todas as obras de vanguarda que entram na conta de outras influências, como os filmes abstratos, filmes, puros, os dadaístas e os filmes de poeta. Em Surrealismo e Cinema, Ado Kyrou (2005) se aproxima de Artaud ao extrapolar a questão do sonho no cinema surrealista, acrescentando outros elementos tão importantes quanto e que podem ter influenciado diversos outros gêneros cinematográficos: o gosto pelo maravilhoso, o imaginário (filmes de ficção-científica), o fantástico (filmes de terror), a antilógica, o romance popular, a revolta social, a arte, o humor negro, a recusa do exotismo e a convicção de que a banalidade encerra um intenso poder de poesia. Mas quais seriam as condições necessárias para que essas imagens conservem toda a sua força e intensidade provocativas? Seria preciso que nada de exterior, de estranho a elas venha distrair àquele que a elas se abandonam. Um mundo fechado, encerrado sobre si mesmo, rigorosamente cortado do mundo exterior. E nesse sentido podemos encontrar dezenas de filmes nos quais essas temáticas foram e continuam sendo trabalhadas, para além do surrealismo. Em Nosferatu (1922), de F. W. Murnau, um poder maléfico em forma humana procura todas as noites sua ração de carne e captura suas vítimas pelo prazer de se entregar a essas experiências. Já em O ano passado em Marienbad (1961), de Alain Resnais, um casal que se encontra durante uma festa discute se o mesmo encontro haveria acontecido ou não no mesmo lugar há um ano, entre mudanças de tempo e espaço que confundem e causam estranhamento ao espectador. Ele acredita que sim, ela diz que não. Ao final, não se sabe quem tem a razão, pois que a razão não joga aqui um papel primordial. Ou ainda O anjo exterminador (1962), de Buñuel, nos quais os convidados são impedidos, por uma força estranha qualquer, de deixar o recinto no qual se encontram. O processo (1962), de Orson Wells, impõe ao espectador um clima de pesadelo, um tempo indeterminado entre imagens que vão e vêm entre aquilo que é e o que ainda não foi, numa liberdade sem amarras de se passear entre presente, passado e futuro. Em todos esses casos, apenas para ficar em alguns, as imagens se quebram, o choque surge a todo o momento. Poderíamos acrescentar a essa lista Fellini e a produção de seus últimos anos, que restitui com grande liberdade a fantasmagoria de um cérebro que sonha e lembra. Não se trata, portanto, de uma nostalgia romântica, de uma questão de colorir a vida 175 com os sonhos que esquecemos de viver por falta de tempo e outras contingências e que poderiam ter sido mas não foram. Mas é próprio de todo ser-humano possuir, e, no caso do artista, exprimir um universo que não pertence senão a ele mesmo. O irreal é parte integrante do surreal. E constantemente nos defrontamos com o absurdo da vida. Em 8 e ½ (1963), Fellini roda um filme sobre a impossibilidade na qual se encontra um cineasta de fazer seu próprio filme (como Artaud quando escrevia para falar sobre sua impossibilidade de pensar e escrever): crise de ideias, dificuldades de todo tipo, mas sobretudo o esgotamento criador do artista, para quem a única fuga é mergulhar em seu próprio universo, feito de milhões de sonhos, pesadelos, lembranças, meditações entrelaçadas, somados a uma iluminação propícia a criar um clima de irrealidade. Nesse sentido, nos aproximamos de um surrealismo cinematográfico estendido do qual advogava Artaud e que vai muito além do sonho. Falamos bastante sobre o movimento liderado por André Breton e praticamente todos os autores que o estudaram colocam Artaud na filiação do movimento. Ele mesmo jamais o renegou totalmente, mesmo após a ruptura em 1926, como deixa claro nos textos mexicanos escritos 10 anos depois, ou quando, no fim da vida, no asilo de Rodez, diz sentir saudades dos amigos da época. Mas compulsando sua obra é difícil enquadrá-lo em uma escola apenas, qualquer que seja, embora todas elas tenham nele deixado sua marca. Seus textos teóricos sobre cinema ultrapassam a ideia de um surrealismo puro, integrando, como vimos, diversos outros elementos. Os roteiros e filmes são tão diversos quanto seus interesses, indo do surrealismo ao burlesco e o cinema comercial. . O estado lírico Mas como o espectador pode encontrar um conteúdo latente da vida se as imagens artaudianas podem ser tão agressivas? Talvez uma das respostas possíveis esteja na ideia de estado lírico proposta por Tonelli (1972), o lirismo sendo caracterizado por uma ausência de distância entre o sujeito e o objeto (entre o eu e o que está fora do eu) e, por consequência, por uma ausência de distância temporal, a temporalidade do lírico estando no presente, esgotando-se no imediato, coexistindo com duas outras dimensões humanas, o épico e o dramático, que por sua vez correspondem a 176 três essências fundamentais da existência humana: o emocional (lírico), o intuitivo (épico) e o dramático (lógico). Nesse sentido, o que Artaud procura não é a compreensão nem a interpretação, mas o impacto momentâneo sobre a alma, típica do estado lírico de um Rimbaud ou Baudelaire. Ultrapassar a realidade, alcançar o mais profundo, a consciência geral, um contágio coletivo, um delírio comunicativo que é típico da peste, provocando misteriosas alterações no corpo (individual e social) sem o destruir. E na peste, entendida como entidade psíquica, todos os conflitos adormecidos reaparecem com toda a sua força, violentando o repouso dos sentidos, liberando o inconsciente reprimido e suas forças que carregam o espírito ate à fonte de seus conflitos. Em resumo, seria, como a peste, A revelação, a antecipação, o empuxo até o exterior de um fundo de crueldade latente pela qual se localiza sobre um indivíduo ou sobre um povo todas as possibilidades perversas do espírito. Como a peste, chegou o tempo do mal, o triunfo das forças negras, que uma força ainda mais profunda alimenta até a extinção (ARTAUD, OC, vol. IV, p. 29, 1978) 122 . Essa passagem foi retirada de O teatro e seu duplo, obra máxima de Artaud. No palco, essa citação oferece duas consequências. De um lado, implica a destruição da barreira entre espetáculo e espectador, público e autor, para que o contágio possa acontecer livremente, o que não pode ser considerado absolutamente novo. Mas de outro, revela uma cadeia entre a virtualidade do possível e aquilo que existe na natureza. Para passar do mundo das aparências ao do ser, é preciso que o teatro encontre os símbolos-tipos ou mesmo os arquétipos que C. G. Jung (2008) observa na base de toda natureza humana, ou seja, em poucas palavras, alguma coisa que está na base de toda a raça humana, presente não somente nos indivíduos, mas algo que é partilhado por todos. Em suma, o estado lírico possibilita a saída do isolamento do grupo social, um sacrifício do eu em benefício de uma força que obriga a participar, sem nenhuma defesa possível, da desintegração sistemática da individualidade em função de uma absorção em um universo de forças instintivas e primitivas que fazem parte de um cosmos impossível de contemplar sem a sensação de integralidade. 122 La revélation, la mise em avant, la pousée vers l’extérieur d’un fond de cruauté latente par lequel se localisent sur un individu ou sur um peuple toutes les possibilités perverses de l’esprit. Comme la peste il est le temps du mal, le triomphe des forces noires, q’une force encore plus profonde alimente jusqu’à l’extinction. 177 A expressão lírica seria uma forma de exprimir alguma coisa que, em essência, é inexprimível, mas que mesmo assim carrega um caráter universal, uma possibilidade de exprimir de forma não-conceitual um resto de existência paradisíaca que é profundamente ligada ao lírico. Se a poesia e a pintura surrealistas visam a destruir o mundo tal como se apresenta, a começar pela linguagem e o aspecto habitual das coisas, o cinema desempenharia uma dimensão mais precisa e global para despedaçar o quadro social humano. Na pintura ou na poesia, os objetos são mais presentes. Se há a evocação do homem, ele sofre as mesmas transformações àquelas infligidas aos objetos, como nos desenhos e pinturas de Artaud, em muitos casos autorretratos desfigurados (Figura 17). Ao contrário, o homem do cinema surrealista permanece homem, louco, perturbado, inserido em um mundo absurdo e vil, mas ainda assim homem. Mesmo que haja a transfiguração dos objetos, da cena, do som, da iluminação, ele ainda permanece lá, perverso, sádico, satírico, cômico, desiludido, desarranjado, desesperado, irracional, enlouquecido, cruel. Continua nosso semelhante e reconhecemos seu contorno na tela, mas colocado dentro de um contexto voluntariamente estranho ou repugnante. O cinema artaudiano se coloca então como uma linguagem irrealista ou desrrealizante. Figura 17. Autorretrato 178 SEQUÊNCIA FINAL – O CINEMA E SEU DUPLO: CORPO E PENSAMENTO Cinema como diálogo com a cultura Há poucos textos de Artaud consagrados ao teatro que não possam se aplicar igualmente ao cinema e, nos dois casos, o grande inimigo é a linguagem discursiva que não exprime nada além que ideias claras. Quando abandona tanto um quanto outro, Artaud tem em mente o fato de que ambas as expressões artísticas atingiram o limite de sua realização transformadora, principalmente devido à falta de recursos materiais. Mas convém partir de uma constatação de Antonin Artaud, em A encenação e a metafísica, sobre o estado da arte em geral, e que pode facilmente ser estendida ao cinema: ―Para mim, no teatro como em toda parte, ideias claras são ideias mortas e acabadas‖ (2006b, p. 40, grifo nosso), uma denúncia bem como uma proposta para revolucionar a linguagem artística. Mas não apenas. Artaud entretece um diálogo constante com a cultura em geral, ou seja, o estatuto do cinema, do teatro, da pintura ou da poesia como um meio na construção de uma nova humanidade, embora em nenhum momento esta obsessão esteja injetada de moralismo, ou seja, não há uma fórmula para mudar o homem, mas apenas um processo constante de destruição e reconstrução, um movimento incessante, uma tentativa de ―resposta a uma sociedade desorientada‖, tomando emprestada uma proposta de Lipovetsky e Serroy (2011). Pela proximidade que estabelece com o corpo o teatro mobilizará, em Artaud, uma atenção maior que o cinema, mas trata-se, no fundo, da mesma questão, orientada para o mesmo objetivo: refazer o corpo a fim de encontrar o que ele chama de materialidade do espírito, num sentido coerente com sua elaboração teórica de que não há movimento no espaço que não promova também uma mudança na consciência. O que se passa quando um diretor de teatro ou cinema dá prioridade ao texto? Ele impede o espectador de falar, fazendo com que este busque refúgio na passividade. O cinema, enquanto prioriza as imagens e a exploração dos espaços, obriga o espectador a estabelecer ele mesmo a relação entre elas. Jacques Rancière (2012) tem suas objeções sobre a condição passiva do espectador, dando-lhe um papel mais ativo do que comumente se imagina. A distância, 179 diz ele, é a condição normal de toda a comunicação e, não obstante, segundo o filósofo francês, ―o espectador também age, tal como o aluno ou o intelectual. Ele observa, seleciona, compara, interpreta. Relaciona o que vê com muitas outras coisas que viu em outras cenas, em outros tipos de lugares‖ (p. 17). Rancière é vez por outra solicitado para fazer a crítica sobre a ideia artaudiana de abolição das fronteiras entre público e espectador. No entanto, ambos os autores podem estar mais próximos do que se imagina, pois a noção de ―emancipação‖ de Rancière como o embaralhamento dos limites entre os que agem e olham pode muito bem ser aplicada a Artaud, que tenta praticá-la com mais radicalidade. Vejamos uma citação de Rancière mais à frente no mesmo livro: a eficácia da arte não consiste em transmitir mensagens ou modelos de comportamento, mas ―sobretudo em disposições dos corpos, em recorte de espaços e tempos singulares que definem maneiras de ser, juntos ou separados, na frente ou no meio, dentro ou fora, perto ou longe‖ (p. 55)123. A diferença substancial parece estar no fato de que, para Artaud, esse espectador, para utilizar de todo esse potencial emancipatório, precisa ser confrontado com situações novas que o disponham a agir em desconformidade, ou seja, que ampliem suas possibilidades de pensamento e ação, enquanto em Rancière, como, de resto, em boa parte das atuais teorias sobre a recepção, o espectador, inevitavelmente inserido em uma complexa rede de mediações e experiências pessoais e coletivas está apto a formular suas próprias disposições de ação independente da mensagem a qual é exposto. Trabalharemos, portanto, com a hipótese artaudiana que, acreditamos, apresenta uma mudança de grau em relação à Rancière. Mudança de grau porque, se este último propõe a possibilidade de uma inadequação de fundo entre uma mensagem qualquer e sua recepção, Artaud opera com a tentativa de fazer o cinema liberar, em outro nível, as forças de uma vida oculta que estão encerradas no mais profundo dos espíritos, aquilo que atravessa todos os homens e pertence aproximadamente, recorrendo mais uma vez a 123 Há aqui uma pequena divergência em relação a Edgar Morin (2011), para quem “Um gigantesco impulso do imaginário em direção ao real tende a propor mitos de autorrealização, heróis modelos, uma ideologia e receitas práticas para a vida privada” (p. 82, grifo nosso). A sutileza da “pequena divergência” encontra-se no fato de que Morin, segundo o grifo, propõe uma tendência, não um destino. 180 Morin (2011a), ao neoarcaísmo do anthopos comum 124 . Para corroborar essa ideia Artaud vaticina, em Feitiçaria e Cinema, que cada vez mais, a vida, aquilo que chamamos de vida, vai se tornar inseparável do espírito. Um certo domínio profundo tende a aflorar à superfície. O cinema, melhor que qualquer outra arte, é capaz de traduzir as representações desse domínio, pois a ordem estúpida e a clareza habitual são suas inimigas (2006a, p. 173, grifo nosso). Mas como, seguindo o pensamento de Artaud, construir uma linguagem visual capaz de transportar a ação para um plano em que qualquer tradução seja inútil e a ação atue quase instintiva e diretamente sobre a massa cinzenta do cérebro, sem passar pelo intelecto e, consequentemente, pelo gasto e enfastiado jogo das representações? Nesse ponto, encontramos um interlocutor privilegiado em Gilles Deleuze, que em muitos de seus textos se refere direta ou indiretamente ao poeta de Marselha e, de alguma forma, retoma seu pensamento sobre o cinema. Mas vamos por partes. Artaud interessa-se pelo cinema enquanto um devir-universo que inclui o espírito, motivo pelo qual ele não é somente mecânico, de modo que o cineasta atua de alguma maneira como um demiurgo ou um feiticeiro, misturando espaço, movimento e tempo para fazer nascer um mundo, e a consciência que daí emerge não é propriamente humana, mas além do humano, uma espécie de consciência-câmera. A necessidade dessa consciência-câmera 125 se manifesta, em Artaud, já nos primeiros escritos, mesmo antes de sua descoberta das potencialidades do cinema em fazer expandir o impensável do pensamento. Sobre isso, permitam-nos uma citação de Jacques Rancière (2009, pp. 33-34) que pode ajudar a esclarecer esta questão. Diz ele: Existe pensamento que não pensa, pensamento operando não apenas no elemento estranho do não-pensamento, mas na própria forma do não-pensamento. Inversamente, existe não-pensamento que habita o pensamento e lhe dá uma potência específica. Esse não-pensamento não é só uma forma de ausência do pensamento, é uma presença eficaz de seu oposto. Há, portanto, sob um ou outro aspecto, uma identidade entre o pensamento e o não-pensamento, a qual é dotada de uma potência específica. 124 “Procurando o público universal, a cultura de massa se dirige ao anthropos comum, ao tronco universal que é, em parte, o homem arcaico que cada um traz em si mesmo. É esse denominador comum arcaico que chama o neoarcaísmo dos filmes, dos jogos, da música” (2011, p. 56). 125 Talvez o termo “consciência expandida” seja mais adequado, dado que à época o cinema, para ele, ainda era um perfeito estranho. 181 Nesse sentido Artaud, inserido no ambiente da produção cinematográfica francesa e tendo trabalhado com alguns grandes nomes da época, descobre uma percepção molecular, menos que humana, que dissolve a subjetividade no universal 126 , em um universo líquido que abole os pontos de ancoragem sólidos, terrestres, para se conectar a um fluxo, ao mesmo tempo em que abre a subjetividade à simultaneidade do tempo, elevando-o a um movimento mais que humano, absoluto e não sucessivo, puro espiritualismo (MONTEBELLO, 2008). Se Deleuze (2005), num primeiro momento, argumenta que Artaud parece, à primeira vista, retomar os grandes temas da imagem-movimento nas relações com o pensamento, reconhece nele, em seguida, o precursor de um ponto de vista especificamente cinematográfico da imagem-tempo, uma ruptura sensório-motora que trabalha com ―situações puramente visuais, cujo drama resultaria de um choque feito para os olhos, feito, se ousamos dizer, da substancia mesma do olhar‖ (ARTAUD apud DELEUZE, p. 205). A importância dessa virada está na constatação deleuziana de que ―A ruptura sensório-motora faz do homem um vidente que é surpreendido por algo intolerável no mundo, e confrontado com algo impensável no pensamento‖ (Idem). Daí resulta uma petrificação do pensamento que é como sua impotência de funcionar, uma despossessão de si mesmo e do mundo, tornando-se impossível pensar um mundo que seja intolerável, a não ser pensando-o de outra forma. O intolerável do pensamento incidindo sobre um homem que não pode mais pensa-lo faz deste último uma espécie de autômato espiritual, algo próximo a um vidente, ―que enxerga melhor e mais longe na medida em que não pode reagir, isto é, pensar‖ (DELEUZE, 2005, p. 205). A saída seria, então, não uma fuga para fora, mas a crença absoluta de que algo pode ser feito, pois o pensamento encurralado e à procura de uma saída ganha potência frente à dificuldade de pensar o impensável e enfrentar o absurdo, o impossível. De modo que é preciso pensar a impotência como pertence ao pensamento, fazendo dele uma força suplementar de enfrentamento da crueldade da vida. Um dos pontos mais importantes observados por Deleuze, ainda em seu Cinema 2 – imagem-tempo, sugere que a religação do homem com o mundo pode ser pensada a 126 Nem por isso deixando de ser singular. 182 partir da retomada da crença no corpo, pois tudo nele começa e a ele retorna 127 : ―Restituir o discurso ao corpo e, para tanto, atingir o corpo antes dos discursos, antes das palavras, antes de serem nomeadas as coisas: ‗o prenome‘, e mesmo antes do prenome. Artaud não dizia outra coisa: crer na carne‖ (p. 208, grifo do autor), o que significa poetizar radicalmente a existência em todas as suas dimensões: ―o absoluto é meu corpo para mim, Antonin Artaud, com sua cabeça, seu tronco, suas pernas, seus braços e suas mãos. Não há nada além disso – porque ele pensa”128. (ARTAUD, vol. XXV, 1990, p. 72). No final das contas, o corpo é a única realidade, só o corpo é puro, a despeito (ou mesmo por causa) de sua abjeção. Não há outra realidade a se construir que a realidade do corpo, um corpo sem órgãos. Não a uma metafísica que não seja do corpo, um corpo puro. A única mística que Artaud concebe é aquela que permite reconstruir o corpo, fazê-lo evoluir em direção a uma pureza integral, mesmo contra a vontade de Deus, ou melhor, para salvá-lo d‘Ele. Não há outra alquimia que aquela do corpo a ser refeito, um corpo aprisionado aos grilhões do sofrimento. Porque se é o corpo que impede Artaud de ser, o corpo separado da verdadeira vida, é necessário mudá-lo (Figura 18). Para viver, Artaud tem necessidade que o mundo mude. Mas para que ele mude é preciso transformar a relação com o corpo (ANDRÉ-CARRAZ, 1973). As obras do último período de Artaud são aquelas nas quais a revolta contra a miséria física atinge seu paroxismo. Daí que, como afirmam Deleuze e Guattari (2011), um dos traços fortes do sistema da crueldade seja o combate, no sentido de substituir o juízo que impede a chegada de qualquer novo modo de existência, pois que o juízo 127 Foucault, em O corpo utópico; As heterotopias (2013, p. 11), afirma algo semelhante: “Não, verdadeiramente não há necessidade da mágica nem do feérico, não há necessidade de uma alma nem de uma morte para que eu seja ao mesmo tempo opaco e transparente, visível e invisível, vida e coisa: para que eu seja utopia, basta que eu seja um corpo. Todas aquelas utopias pelas quais eu esquivava meu corpo encontravam muito simplesmente seu modelo e seu ponto primeiro de aplicação, encontravam seu lugar de origem no meu próprio corpo. Enganara-me, há pouco, ao dizer que as utopias eram voltadas contra o corpo e destinadas a apaga-lo: elas nascem do próprio corpo e, em seguida, talvez, retornem contra ele”. 128 L’absolu c’est mon corps à moi, Antonin Artaud, avec as tête, son tronc, ses jambes, ses bras et ses mains. Il n’y a rien en dehors de cela – car il pense. Figura 18 “Meu olho é uma boca”. Pintura de Dieter Roth. 183 implica uma verdadeira organização dos corpos, o poder de organizá-los ao infinito: ―Criar para si um corpo sem órgãos é a maneira de escapar ao juízo. Já era esse o projeto de Nietzsche: definir o corpo em devir, em intensidade, como poder de afetar e ser afetado, isto é, Vontade de potência‖ (p. 169, grifo dos autores). As filhas de Loth e a metafísica do corpo Definir o corpo em intensidade é o passo essencial para se fazer a religação entre corpo, imagem e pensamento no cinema da crueldade de Artaud. A análise do quadro de Lucas van de Leyden, As filhas de Loth, coloca em evidência a fascinação do poeta pela potência da imagem, assim como a crítica dos quadros de Van Gogh, Maria Izquierdo, André Masson, Balthus, entre outros. O caso de Lucas van de Leyden, narrado à exaustão em A encenação e a metafísica, aparenta a priori uma fascinação não de um poder intrínseco ao signo, mas de uma rede de agenciamentos dos signos entre eles (CORTADE, 2002). Para Artaud, As filhas de Loth sugere o poder de revelação daquilo que é inexprimível, a partir de um ponto de vista da harmonia formal e exterior da obra, carregada de uma ―linguagem concreta, destinada aos sentidos e independente da palavra, [que] deve satisfazer antes de tudo aos sentidos, [pois] que há uma poesia para os sentidos assim como há uma poesia para a linguagem‖ (2006b, p. 36). Convém ressaltar a importância da citação porque uma das dificuldades em se compreender o cinema artaudiano reside justamente na apreensão do que seria um cinema agindo como um ―notável excitante‖, atuando diretamente sobre o sistema nervoso, renunciando à clareza habitual das coisas. A união das ideias de sensação (DELEUZE, 2007) e corpo sem órgãos talvez seja uma resposta possível. Inicialmente, diz Deleuze (2007), a sensação age imediatamente sobre o sistema nervoso, a carne, enquanto a abstração (e Artaud, como vimos, condenava o cinema puramente abstrato) age por intermédio do cérebro. Uma relação se estabelece: ―ao mesmo tempo eu me torno na sensação e alguma coisa acontece pela sensação, um pelo outro, um no outro‖ (p. 42, grifos do autor), pois o mesmo corpo que dá também recebe a sensação, que é tanto objeto quanto sujeito. A sensação estaria, portanto, mais do lado da experimentação que da representação, ou seja, daquilo que se transmite diretamente sem o desvio da narração, motivo pelo qual, segundo Deleuze, Francis Bacon se considerava cerebralmente pessimista, mas nervosamente otimista. 184 Portanto a crueldade não está naquilo que se pensa, mas no que se sente. Daí a proposta deleuziana de que a violência tem dois sentidos muito diferentes: à violência do representado (o sensacional, o clichê) opõe-se a violência da sensação, que se identifica com sua ação direta sobre o sistema nervoso. Eis o equívoco de se conjugar imediatamente crueldade e violência em Antonin Artaud. De modo que, se fizermos um paralelo com a pintura de Francis Bacon analisada por Deleuze (2007), diríamos que o cinema artaudiano, da mesma forma, inclina-se para a ideia de figura, colocada a meio caminho entre o abstrato e o figurativo, escapando assim da representação. Para isso, a figura demanda duas características. Primeiro, ao invés de remeter a um objeto exterior, ou seja, a um modelo que pretende reproduzir, a figura remete à sensação e age diretamente sobre o sistema nervoso central. Em segundo lugar, mesmo que haja mais de uma figura, como nos famosos trípticos de Bacon, o objetivo não seria encadear as imagens em uma narrativa linear (como também vemos no cinema), estabelecendo uma relação. São corpos que formam uma só figura, um só fato. Existe ainda um terceiro elemento tão importante quanto os outros dois e que, mais uma vez, remete diretamente ao cinema artaudiano: trata-se da relação direta da figura com o corpo não representado como objeto, mas experimentando uma sensação. O corpo é o material da figura, corpo como carne ou vianda que, juntas, formam um corpo sem órgãos. A carne está indissociavelmente relacionada com a vianda. A carne e os ossos (estrutura material do corpo), em tensão constante, parecem a todo o momento querer fugir um do outro, ganhar autonomia, remodelar-se, reformatar-se, expandir-se, encolher-se, como fazem os contorcionistas, a quem dizemos que lhes faltam o esqueleto, ou tal qual a jovem de Degas em Depois do banho (1886), ―cuja coluna vertebral interrompida parece sair da carne, enquanto a carne fica ainda mais vulnerável e engenhosa, acrobática‖ (DELEUZE, 2007, p. 30). A vianda seria como o locus no qual carne e ossos se confrontam localmente. É como se carne e vianda, grosso modo, pudessem ser analisadas à luz dos predicativos matéria/espírito. Carne e ossos estão em tensão material permanente, mas é a partir da vianda que a carne assume um caráter expandido e imaterial: ―A vianda não é uma carne morta, ela conservou todos os sofrimentos e assumiu todas as cores da carne vida‖ (DELEUZE, 2007, p. 31), ou seja, a carne marcada e seviciada que guarda as marcas do tempo e da dor adquire consciência do sofrimento a partir da vianda: todo homem que sofre é vianda. 185 Mas, como observa Roberto Machado (2009), se o estudo da figura privilegia o corpo, o mesmo não se dá com o rosto. Para além (ou por trás) do rosto há a cabeça. O rosto, diz Machado ―é uma organização espacial estruturada que recobre a cabeça, enquanto a cabeça é uma parte do corpo‖ (p. 229), ou seja, a cabeça está compreendida no corpo, mas não o rosto. Em Mil platôs (2012), Deleuze e Guattari desenvolvem essa questão com mais profundidade no platô chamado ―Rostidade‖. Segundo os autores, o rosto faz parte do sistema denominado ―muro branco-buraco negro‖, composto de superfícies e buracos cujos traços e linhas sobredecodificam, ou melhor, rostificam a cabeça ou mesmo todo o corpo (―A mão, o seio, o ventre, o pênis, a vagina, a coxa, a perna e o pé serão rostificados‖ (p. 39)), emprestando-lhe significância e subjetivação como sua forma de expressão determinada. A importância do tema está mais propriamente em suas implicações eminentemente políticas, pois determinados agenciamentos de poder têm necessidade do rosto, ou seja, uma imagem, um padrão, uma estrutura, um arquivo no qual possa inscrever as normalidades e anormalidades, estabelecer regras e reconhecimentos, distinguir os desviantes e prescrever-lhes as medidas corretivas, pois introduzimo-nos em um rosto mais do que temos um. O rosto é uma política, de maneira que, ―em seu novo papel de detector de desvianças, a máquina de rostidade não se contenta com casos individuais, mas procede de modo tão geral quanto em seu primeiro papel de ordenação de normalidades‖ (DELEUZE; GATTARI, 2012, v. 3, p. 50). Galeno (2014) resume bem essa questão quando observa que, na crueldade artaudiana, ―podemos evocar uma arena de experimentação, na qual se trava a luta contra a fixação do corpo-espécie e ou do corpo normalizado‖ (p. 266). Tal constatação leva os autores a defender a destruição do rosto, sua desorganização, sua destituição, seu desfazimento, para dar lugar ao a-significante, o a- subjetivo, traços de rostidade que escapam a organização do rosto. Se o rosto é uma política, desfazê-lo é um ato de subversão por meio do qual se pode chegar aos limites da loucura (assim como Nietzsche, Artaud, Hölderlin, Nerval etc.), da perda de sentido do próprio rosto e dos outros, da paisagem, da linguagem e suas significações dominantes, pois o rosto é uma organização forte. E para desfazê-lo seria necessário construir linhas de fuga a partir da utilização de 186 todos os recursos da arte, e da mais elevada arte. É necessário toda uma linha de escrita, toda uma linha de picturalidade, toda uma linha de musicalidade (...) Mas arte nunca é um fim, é apenas um instrumento para traçar as linhas da vida, isto é, todos esses devires reais, que não se produzem simplesmente na arte, todas essas fugas ativas, que não consistem em fugir na arte, em se refugiar na arte, essas desterritorializações positivas, que não irão se reterritorializar na arte, mas que irão, sobretudo, arrastá-lo consigo para as regiões do a- significante, do a-subjetivo e do sem rosto (DELEUZE; GATTARI, 2012, v. 3, pp. 63-64, grifos do autor). Por meio da relação entre sensação, corpo sem órgãos, carne e vianda, rosto e cabeça, chegamos ao tema introduzido por Deleuze (2007) do devir-animal nas figuras de Francis Bacon, devir entendido como o enlaçamento de duas sensações sem semelhança que cria uma zona de indiscernibilidade entre elas, uma conexão entre heterogêneos, desterritorialização conjugada (MACHADO, 2009), Capitão Ahab e Moby Dick, Gregor Samsa e um inseto. No caso do pintor anglo-irlandês, suas cabeças, segundo Deleuze, constituem uma zona de indecidibilidade entre o homem e o animal: ―não se trata de combinação de formas, mas de um fato comum: o fato comum do homem e do animal‖ (p. 29). O espírito animal do homem pintado por Bacon, espírito- porco, espírito-cachorro, espírito-morcego etc. nada mais pretende do que desfazer o rosto. Por esse motivo o devir-animal seria apenas uma etapa para um devir imperceptível mais profundo no qual a figura desaparece. É nesses termos que podemos nos avizinhar do cinema artaudiano. A obra cinematográfica de Artaud torna-se inapreensível justamente naquilo que possui de original e potencialmente transformador: não trabalha com representações, mas com blocos de sensações; procura estimular o corpo mais do que o intelecto; busca capturar forças invisíveis, intoleráveis; não pretende ser uma máquina de rostidade, mas, pelo contrário, desfazer constantemente o rosto. As imagens elaboradas por ele em seus textos remetem mais à figura de Bacon como forma sensível referida a sensação que à figuração. O objetivo da arte, dizem Deleuze e Guattari (1992), é arrancar o percepto das percepções, o afecto das afeções, como passagem de um estado a outro. Ou seja, extair um bloco de sensações, um puro ser de sensações. A questão já está posta por Artaud em O teatro e seu duplo, quando afirma que é apenas poeticamente, e arrancando dos princípios de todas as artes o que podem ter de comunicativo e magnético, que podemos, através de formas, sons, músicas e volumes, evocar, passando por todas as 187 semelhanças naturais das imagens e das similitudes, não direções primordiais do espírito, que nosso intelectualismo lógico e abusivo reduziria a inúteis esquemas, mas espécies de estados de tão intensa acuidade, de uma argúcia tão absoluta, que é possível sentir através dos estremecimentos da música e da forma as ameaças subterrâneas de um caos tao decisivo quanto perigoso (2006b, p. 52). O cinema de imagens evanescentes de Artaud pode ser mais facilmente apreendido quando compreendemos que a sensação, segundo os autores, não se realiza no material, mas no percepto e no afecto, pois a sensação não é idêntica ao material. O artista cria uma nova linguagem, outra forma de comunicar-se com o mundo e nele acrescenta novas variedades, inventa e mostra novos afectos: ―as figuras estéticas (e o estilo que as cria) não tem nada a ver com a retórica. São sensações: perceptos e afectos, paisagens e rostos, visões e devires‖ (DELEUZE E GUATTARI, 1992, p. 209). É essa a definição de percepto: tornar sensíveis as forças insensíveis que povoam o mundo, os afeta e nos fazem devir. Tarakanova e o cinema inorgânico Em Tarakanova (1929), filme de Raymond Bernard, os inimigos da imperatriz Catherine de Russie, no desejo de derrubá-la, escolhem a bela Elizabeth Tarakanova, sósia de Dosithée, filha da imperatriz e reclusa em um convento, para ajuda-los em seu plano. Por seu turno, prevendo a situação, Catherine encarrega o conde Orlof de seduzir e capturar sua rival para dar fim ao projeto. Artaud (Figura 19) interpreta aqui um cigano louco e apaixonado pela jovem, inalcançável e intempestiva cigana Tarakanova. Seu corpo deformado e seu rosto retorcido pelo sofrimento de um amor não correspondido formam um conjunto carne-vianda-sensação-rostidade-corpo sem órgãos. Como se a carne descesse dos ossos, enquanto os ossos se erguem na carne. É também cabeça e não rosto. A sensação de dilaceração é constante, e a carne que quer fugir do Figura 19. Em Tarakanova, Artaud interpreta um jovem cigano louco e apaixonado. 188 corpo, se retorcendo, é vianda no sentido em que conserva os sofrimentos, como se sofresse a ação de forças invisíveis. Trata-se de pensar o corpo sem reduzi-lo a uma forma orgânica, mas em função de uma lógica de forças. Para Artaud, o órgão é o contrário da vida, e a vida deve ser compreendida como inorgânica. A ideia de corpo sem órgãos está, portanto, ligada aos modos de individuação corporal antes de sua organização centrada. Por outro lado, trata-se de refletir sobre a união entre arte e corpo, pois é a partir da arte que o pensamento, atravessado pelo corpo sem órgãos, ascende à experiência radical de seu impoder. Nem a forma orgânica nem a unidade do sujeito podem ser postulados como anteriores ao processo de individuação. Tanto o sujeito quanto o corpo são compostos de relações de forças múltiplas em devir e não podem ser concebidos como indivíduos pré-formados por um princípio transcendente, seja ele chamado de alma, consciência, sujeito transcendental ou como forma orgânica. O organismo é o inimigo do corpo, na medida em que veicula uma imagem de corpo orgânico, um princípio de unidade corporal. Não se trata, portanto, de rejeitar os órgãos, mas de não relacioná-los a uma forma de hierarquia piramidal. O corpo sem órgãos designa, portanto, uma vida inorgânica, um poder de individuação não ainda atualizado sob a forma de um organismo (SAUVAGNARGUES, 2006). O corpo sem órgãos da crueldade é o campo privilegiado para ser atravessado pelas forças invisíveis da sensação. Deleuze (2007) compreende que na arte não se trata de produzir ou inventar formas, mas justamente captar, mostrar ou inventar forças, na tentativa de torná-las visíveis e, assim , desvelar o combate que o homem precisa travar consigo mesmo, com a cultura, com as forças da natureza, com a sombra, com seus instintos mais primitivos. Pois a força mantém relação estreita com a sensação. Ela atua sobre o corpo justamente para que haja a sensação. A Figura de Bacon é o corpo sem órgãos, pois desfaz o organismo em proveito do corpo, o rosto em proveito da cabeça. Se a sensação age diretamente sobre a onda nervosa por meio da carne, ela deixa de ser representativa e se torna real. Por isso, diz Deleuze, ―a crueldade estará cada vez menos ligada à representação de alguma coisa Figura 20 Cena de A concha e o clérigo. Um corpo que se desfaz na busca irrefreável do objeto de desejo. 189 horrível, ela será apenas a ação das forças sobre o corpo, ou a sensação (o contrário do sensacional)‖ (p. 52, grifo do autor). Em A concha e o clérigo, o corpo que se torna tronco (Figura 20) como que se liquefaz frente a impossibilidade de se possuir integralmente, arrastando e capturado pelas forças do desejo, enquanto a imagem da concha sobre o seio (Figura 21) prefigura o perigo do acesso do desejo ao real. A cabeça-corpo de Artaud em filmes marcantes como A paixão de Joana d’Arc, Napoleão, Lucrécia Bórgia ou Mathusalem (1926) podem ser inscritos naquilo que o próprio autor chama de suppôt 129 (1978, vols. XIV*-XIV**), palavra aparentada com o subjétil de Derrida e Bergstein (1998). Suppôt, nos termos empregados pelo poeta francês, guardaria relação com uma revolta do ser, uma insurreição do corpo, uma espécie de força em suspenso existente antes da constituição do corpo anatômico. É em Suppôts et Suppliciations, afirma Grossman (2002), que se desenha pela última vez a figura que atravessa toda a obra de Antonin Artaud, de um corpo infinitamente plástico e deformável. O homem ator encarnaria essa potência de inacabamento do corpo humano. Nesse ponto, Grossman introduz a ideia de pensar Artaud como sendo um ―alienado autêntico‖ capaz de descarregar uma violência dessubjetivante, pois ―A alienação é a força desfigurante do outro em mim, esse movimento que me agita e me impede de me estabilizar em ‗ser‘, sujeito de uma identidade, mestre de um pensamento (...) O corpo alienado do ator é essa plasticidade em ato‖130 (2002, p. 37), em suma, um espectro plástico jamais (de)terminado. E essa indeterminação inclui a própria relação que estabelecemos entre corpos e objetos em sua dimensão sempre cambiante, inacabada, 129 Palavra retirada do seu conjunto de textos formado por fragmentos, cartas e interjeições e publicado em dois volumes pela Gallimard, chamado Suppôts et suppliciations, traduzido por Jacques Derrida e Lena Bergstein, em Enlouquecer o subjétil (1998), como Subpostos e supliciações. Poderíamos traduzi-lo simplesmente como suporte material, tal qual um porta-retratos que serve de suporte a uma fotografia. Mas segundo o Le Robert Micro – Dictionnaire de la langue française (1998), significa tanto aquele que é partidário de alguma coisa, ou seja, lhe oferece suporte, quanto, no sentido mais literário, diz-se daquele que é ímpio. Em todo caso, mantenhamos o termo sem tradução, pois o sentido empregado por Artaud parece bem diverso dessas definições. 130 L’aliénation ets la force défigurante de l’autre em moi, ce mouvement qui m’agite et m’empêche de me stabiliser en « être », sujet d’une identité, maître de ma pensée (...) Le corps aliéné de l’acteur est cette plasticité en acte. Figura 21. Cena de A concha e o clérigo. A concha que subtrai o homem ao desejo. 190 interior e exterior. Como diz Artaud, ―As coisas não começam pelo nada, simplesmente por que nada são, e nada mais há mais que corpos ou objetos, que não são coisas mais que corpos e objetos inqualificáveis, e tanto mais concretos quanto são indeterminados‖131 (1978, v. XIV**, p. 77). O corpo-cena de Artaud, irrepresentável, molecular e dançante, corpo-teatro, corpo- cinema, plural e inconcebível, impensado, pode ajudar a apreender uma nova concepção de corpo e subjetividade para o século que ora inicia: aquela de um corpo impróprio, pós- identitário, não necessariamente estruturado pelo simbolismo fálico, múltiplo e poroso, nem aberto nem fechado, apenas inacabado, um corpo-multidão inquieto (Figura 22). Se voltarmos ao rompimento de Artaud com os surrealistas veremos, a partir desse ponto de vista, tratar-se de uma incompatibilidade absoluta de suas concepções respectivas ao sujeito. De um lado, um eu coletivo, engajamento político, regras, um quadro, um grupo, uma central, um líder; de outro, um sujeito múltiplo, informe, plástico, impróprio, resistente a toda fixação em uma doutrina. A rebelião do açougueiro e a potência do inumano Nesse sentido, a obra-cena de Artaud, em toda sua radicalidade, pode ser compreendida como uma antecipação da instabilidade das posições ideológicas, políticas e éticas dos atuais sujeitos políticos ―desfigurados‖. Ao mesmo tempo promessa de abertura a uma nova sacralidade 132 da figura humana (a partir, talvez, de uma estetização da vida), um regresso ao irredutível inumano do homem com suas potencialidades aprisionadas e uma ampliação das vias que podem levar do indivíduo à 131 Les choses ne commençant par rien du tout, pour la bonne raison qu’elles ne sont pas, et qu’il n’y a que des corps ou objets, qui ne sont pas choses mais corps et objets inqualifiables, et d’autant plus concrets qu’ils sont indéterminés. 132 Pensamos a “sacralidade” no sentido atribuído por Morin (2011), quando afirma que “A relação estética reaplica os mesmos processos psicológicos da obra na magia ou na religião, em que o imaginário é percebido como tão real, até mesmo mais real do que o real”. Em outras palavras, a estética como uma atualização secular do sagrado. Figura 22. Em Lucrécia Bórgia, Artaud interpreta Savonarola, a aparição mais próxima do devir existencial de Artaud. Sua denúncia contra o Papa Alexandre VI ecoou na vida como uma denúncia incansável do mundo. Um corpo-multidão. 191 espécie, da natureza à cultura, recursivamente, reanimando as forças ilimitadas do homem castradas pela racionalidade ocidental: Heliogábalo, Homem-Deus que nenhuma psicologia pode reduzir e interpretar, ou Montezuma, o rei astrólogo Asteca dividido entre o mito e a história. Como se as verdadeiras dimensões sem limite do corpo e da língua só pudessem ser encontradas após a dissolução do homem psicológico. Mesmo em seus desenhos, Artaud põe lado a lado, no mesmo grau de importância, cabeças humanas, árvores, animais, objetos, justamente por não estar seguro quanto aos limites do corpo humano e suas possibilidades. A espacialidade é um elemento crucial na concepção artaudiana de cinema (Figura 23). Há uma constante preocupação em expandir e manipular a dimensão do espaço sem uma necessária relação com tempo, conduzindo à posterior reflexão de Deleuze sobre a relação imagem-tempo típica do cinema moderno. Tanto no cinema quanto no teatro da crueldade há a mesma vontade de se repensar inteiramente a questão do espetáculo e da representação, com o objetivo de frustrar pela vivacidade do gesto, pela força em ato, a propensão de toda figura a tomar forma, a se solidificar – dito de outra forma, a se cadaverizar (GROSSMAN, 2006, p. 33). Em 1933 Fritz Lang adapta ao cinema a peça teatral Liliom. Artaud interpreta dois personagens, o moleiro e o anjo guardião (Figura 24). Este último, como um espectro, uma pele pálida e olhos profundos, parece não tocar a terra. Um ser prestes a se desmaterializar a todo instante, resistente à petrificação, mas cuja presença concreta preenche todo o ambiente. Na introdução ao roteiro A rebelião do carniceiro do açougueiro, Artaud explica que Figura 23. Exemplo de exploração de espacialidade na concepção de um “espaço qualquer”. Em A concha e o clérigo, o religioso passeia pelo que poderia ser uma igreja, um salão, um corredor ou uma casa. O claro-escuro impede de determinar uma hora aproximada na qual a cena se passa. Figura 24. Artaud em Liliom. Ser poroso e espectral. 192 ―Se encontrará neste filme uma organização da voz e dos sons tomados em si mesmo e não como consequência física de um movimento ou de um ato, quer dizer, sem concordância com os fatos. Sons, vozes, imagens, interrupção de imagens, tudo forma parte de um mesmo objetivo, no qual em ultima instância é o movimento que conta. E é o olho que finalmente recompõe e sublinha o resíduo de todos os movimentos‖133 (1982, p. 109, grifo do autor). ―Sem concordância com os fatos‖ significa a saída da representação, ou seja, o movimento não como resposta a uma ação, mas a entrada no movimento puro, um corpo agenciador de intensidades, espaços, imagens, vozes e sons. A rebelião do açougueiro trata de um homem louco, angustiado e em extrema tensão que espera, na Praça da Alma, a chegada de uma mulher misteriosa. O homem é obcecado pela mulher. Ela não chega. O louco vai a um café. Entra uma mulher desconhecida e acompanhada, provavelmente uma prostituta com seu gigolô. Não se sabe se é a mulher que ele esperava pouco antes. Há uma briga entre o homem louco e o acompanhante da mulher. Ruídos, imagens, espaços que se sucedem. A tensão vibra no ar, quase palpável. Gritos. Aparece outra mulher. Talvez seja a mesma, talvez não. Um açougue. Uma mulher morta, assassinada. A mulher ressuscita e casa-se com o açougueiro. O homem louco aparenta apenas pairar como uma consciência alucinada. A cidade acorre a ver o casamento, antes de cair em um profundo silêncio. Os corpos artaudianos parecem sofrer de uma pesada lucidez que se traduz, paradoxalmente, em uma incapacidade de reagir, uma incurável inabilidade para responder a outros corpos. Mas a passividade emerge, de repente, em inesperadas forças de agressão e transformação. Saímos do cinema da representação para entrar no cinema da crueldade. Tendo o pensamento artaudiano por horizonte, Grossman (2010) pergunta como, a partir da morte de uma figura tradicional de homem, podemos reinventar um novo humanismo que tenha em conta o inumano, que não o recalque nem o negue, mas o incluía em sua potencialidade e violência assustadoras. Nesse contexto, a experiência da angústia e a ruptura traumática dos laços entre o homem e o mundo, retratadas em alguns filmes e roteiros de Artaud, seriam fundamentais para constituir um ser poroso e desarmado: a experiência ontológica da existência vivida como ―desumanização‖, ou seja, experiências psíquicas extremas nas 133 Se encontrarpa em este film una organización de la voz y de los sonidos tomados en sí mismos y no como consecuencia física de un movimento o de un acto, es decir sin concordancia com los hechos. Sonidos, voces, imágenes, interrupción, donde en última instancia es el movimento el que cuenta. Y es el ojo quien finalmente recompone y subraya el resíduo de todos los movimientos. 193 quais o corpo amplia seus limites e pode identificar-se não apenas com outras pessoas (é possível que a mulher, o gigolô e o açougueiro assassino, n‘A revolta do açougueiro, sejam todos projeções do homem louco), mas com coisas e animais, em suma, uma descentralização radical, um resgate das potências impessoais, podendo, a partir daí, operar uma autotransformação. Se tomarmos em conta os enunciados da física contemporânea de que toda forma é uma ilusão, ao descermos às profundezas da matéria percebemos que tudo é agitação, vibração energética, circulação, pulsação, nada parecido com a estabilidade clássica da noção de substância. É preciso pensar esse cinema não por meio da forma, mas - recorrendo ao vocabulário deleuziano - em termos de forças, fluxos, agenciamentos, acontecimentos e desterritorializações. Segundo del Río (2008), tanto para Artaud quanto para Deleuze, o domínio da representação e da moralidade poderiam ser deslocados para o domínio da experimentação ética e performativa, uma geração de possibilidades do que pode existir. O corpo sem órgãos abre esse espaço paradoxal de desenvolvimento: rizoma e não mais organização, fluxo mutante, intenso, convulsivo e criador, operando em constante luta contra os estratos rígidos do organismo, da significação e da subjetivação. Desfazer o organismo não significa matar-se, mas abrir o corpo a outras conexões. Por exemplo, nas palavras de Deleuze e Guattari (2012, p. 13), Por que não caminhar com a cabeça, cantar com o sínus, ver com a pele, respirar com o ventre, Coisa simples, Entidade, Corpo pleno, Viagem imóvel, Anorexia, Visão cutânea, Yoga, Krishna, Love, Experimentação. Onde a psicanálise diz: Pare, reencontre o seu eu, seria preciso dizer: vamos mais longe, não encontramos ainda nosso CsO, não desfizemos ainda suficientemente nosso eu. Substituir a anamnese pelo esquecimento, a interpretação pela experimentação. Encontre seu corpo sem órgãos, saiba fazê-lo, é uma questão de vida ou de morte, de juventude e de velhice, de tristeza e de alegria. É aí que tudo se decide. Sob a pele, o corpo é uma usina superaquecida, diz Artaud em seu texto sobre Van Gogh. E por fora ele brilha por todos os poros (1974, vol. XIII, p. 54). É preciso refazer o corpo, construir um corpo sem órgãos, ou morrer na contemplação de um corpo negado, grotesco, corpo-ventríloquo, corpo-mamulengo: ―Eu?/ Essa língua entre quatro gengivas/ esta carne entre dois joelhos/ este pedaço de buraco/ para os loucos (...)‖134 (1989, v. XII, p. 14). 134 Moi?/ Cette langue entre quatre gencives/ cette viande entre deux genoux/ ce morceau de trou, pour le fous. 194 O resgate da carne na imagem Em seu livro Corpo e imagem (2011), José Bragança de Miranda avalia que vivemos duas crises importantes na modernidade, como indica o próprio nome da obra. Partindo desse princípio, de que corpo e imagem precisam ser repensados em um novo registro de experimentação do sujeito, o pensamento cinematográfico de Artaud mostra- se essencial para essa reflexão. Primeiro porque em uma sociedade dominada pelo sentido da visão, do espetáculo, pela profusão de imagens e telas, a perda da imagem absoluta implica tanto no desabamento da hierarquia em que o absoluto se sustenta quanto na indecisão sobre as imagens que estão por vir. Em segundo lugar porque, como afirma Bragança, ―é inevitável o regresso das imagens arcaicas, a que Freud associa a sensação de perturbação‖ (p. 17). Essas duas questões, como vimos em capítulo anterior, são preocupações de Artaud principalmente em sue período à frente do birô surrealista. Repensar o corpo sem órgãos significa também recuperar a plasticidade do corpo, libertá-lo (tanto a ele quanto às imagens) do controle político, jurídico, econômico e ideológico ao qual está submetido. Isso significa tanto a busca de uma imagem qualquer (em oposição às imagens fortes), quanto no retorno à máxima materialidade da carne. Ao referir-se à carne, Bragança sugere uma disjunção realizada pela cultura entre carne e corpo. O corpo fabricado pelos dispositivos de poder seria nada mais que uma proteção para a carne. A ocultação desta última é condição necessária para o surgimento da ideia de corpo. Pois a carne é do domínio da experimentação, da dor, do sofrimento, do prazer e do possível, enquanto o corpo é o objeto de captura da biopolítica: ―o corpo é uma espécie de alma secularizada‖ (2011, p. 116). Artaud empenha-se em libertar a matéria e a carne das formas e das figuras rígidas herdadas do capitalismo e da cultura ocidental. Para isso, segundo Derrida (2002), é preciso uma insurreição contra A máquina social, médica, psiquiátrica, judiciária, política, ideológica, em suma, uma rede filosófico-política aliada às forças mais obscuras no sentido de reduzir este raio vivo a um corpo assassinado, torturado, dilacerado, drogado, eletrocutado, sobretudo por um sofrimento sem 195 nome, uma paixão inominável a qual não restava senão o recurso de renomear e reinventar a linguagem (p. 20) 135 . Várias vias estéticas estão abertas para se construir uma nova relação com a carne desde que o corpo, se pensarmos com Bragança, entrou em colapso. Isso significa que, após a ruína das grandes narrativas, das grandes utopias e das grandes apostas políticas de transformação do mundo, é sobre o corpo que construímos nossos pequenos espaços utópicos, corpo que, contraditoriamente, transforma-se em uma espécie de santuário sagrado de adoração, mas não de experimentação. É essa utopia que ―alimenta os bodybuilders, os atletas de alta performance, os paraísos artificiais do Prozac, os cyborgs ou a estranha ‗física‘ da virtual reality‖ (p. 135). Em As lágrimas amargas de Petra von Kant (1972), filme de R. W. Fassbinder, vemos uma dessas vias estéticas: os quadros linguísticos e de representação do cinema clássico, baseados na organização do corpo, são absorvidos ou redirecionadas pelo próprio poder de afetação do corpo. Nesse sentido, a orientação geral do filme é essencialmente artaudiana. Como o teatro de Artaud, Petra von Kant se esforça para nos fazer compreender o pensamento (ou melhor, o impensado) no corpo. Um corpo que devém carne. Através desta realização, o filme torna-se um agente de crueldade, pois força a mente a ser ativo e afetado. Fassbinder, como Artaud, pratica crueldade como um método para um despertar mais rigoroso e duradouro. Como tal, os efeitos de crueldade podem ser semelhantes aos do amor (del Río, 2008, p. 91). É importante lembrar que, para Artaud, crueldade consiste mais em uma atitude ética do que em uma ação física literal. Assim, o corpo visado no filme citado não é qualquer corpo particular, mas uma ideia mais abstrata da maneira como em geral nos relacionamos com nossos corpos. O cinema da crueldade revela um duplo circuito de poder: o poder sobre o público, mas também o desejo de mostrar ao público o seu próprio poder. No caso de Fassbinder, seu desejo de empoderar o público pode ser visto como um ato de amor. A crueldade como um ato de amor. O pensamento-cinema de Artaud é, assim como suas aparições em filmes, fulgurante, além de ser um projeto estético revolucionário. Artaud é um alucinado em Faubourg Montmartre e Lucrécia Bórgia, romântico em Grazziela e Surcouf, 135 À la machine sociale, médicale, psychiatrique, judiciaire, policière, idéologique, c’est-à-dire à un réseau philosophico-politique que s’est allié à des forces plus obscures pour réduire cette foudre vivante à un corps meurtri, torturé, déchiré, drogué, eletrocuté surtout par une souffrance sans nom, une passion innommable à laquelle il ne restait que la ressource de renommer et de réinventer le langage. 196 misteriosamente inquietante em Fait Divers e O Judeu errante, cinicamente perverso em Coup de feu a l’aube e Mater dolorosa, intensamente interiorizado em A paixão de Joana d’Arc e Napoleão, marcante em Mathusalem e Koenigsmark (1935), apenas para citar alguns. Sua face cavada, seu nariz agudo, seus olhos como que flutuando na profundidade das órbitas, seu rosto de lobo unindo a resistente juventude da estrutura de seus finos traços com a lembrança de sua destruição precoce é, de fato, impactante quando visto na tela. De modo que os diretores que com ele trabalham preferem mantê-lo em plano fechado (Figura 25). É a cena inteira que é contaminada por seu ritmo nervoso. Infinitamente plástico, deformável, Artaud aplica ao cinema suas visões de Suppôts et suppliciations. Suas interpretações são aquelas de um supliciado, que sofre de um inacabamento essencial. Portanto, a mais original concepção de cinema segundo Artaud é finalmente aquela que emana de sua presença real, na projeção do verdadeiro corpo. Esse fenômeno de projeção é perceptível no conjunto de suas aparições que revelam a dimensão trágica da inquietude artaudiana. O ator é ele mesmo imagem, homem-signo. Mas ele é, na tela, aquilo que é seu corpo, seu olhar, seu gesto, seu movimento, sendo apenas secundariamente porta-voz. Não esperamos que ele discorra sobre nada nem que explicite aquilo que o move, mas apenas que encarne; não que interprete, mas que seja. O homem-imagem no qual Artaud 136 se tornou pode ajudar a nutrir no mundo ocidental, e talvez além, o duplo imaginário concernente a cada um de nós, e que, na maioria dos casos, se recusa a explicitar-se. Olhemos a doçura, a força e a luz mística que envolve Artaud em A paixão de Joana d’Arc de Dreyer; os espasmos, o fogo e os olhos injetados de sangue em Lucrécia Bórgia; o mesmo delírio nos olhos inquietos e no braço que tomba junto com a cabeça para fora da banheira em Napoleão; a silhueta esguia e por vezes patética, um olhar mais ou menos doentio e desfigurado, como uma linha de fuga tentando 136 Referência ao termo “Homem-teatro” proposto por Virmaux (2009). Figura 23. Artaud interpreta o irmão Massieu em A paixão de Joana d'Arc. Figura 25. Artaud em O judeu errante. 197 desesperadamente desfazer o rosto, um ar ao mesmo tempo furibundo e melancólico que jamais saberemos tratar-se ou não das exigências do personagem; os papeis que parecem prendê-lo em uma armadilha inescapável e, ao mesmo tempo, são o que o mantém vivo; um tipo de espectro, de morto-vivo, pálido mas radiante, vindo do além, como em Liliom, de Fritz Lang. O cinema artaudiano, em sentido amplo, poderia sintetizar o momento pelo qual passava a Europa em relação ao movimento cinematográfico, basicamente dividido em três vertentes, quais sejam, o cinema comercial, de vanguarda e experimental, todas elas visitadas e experimentadas por Artaud. Suas atuações em filmes, dada a sua extensão, podem ser reagrupadas em alguns papeis. Vemos em câmera desacelerada o amante estrangulado pelo marido traído em Fait divers, um traidor que finalmente se suicida em Surcouf, e ainda um traidor em La femme d’une nuit (1930); um aprendiz de mendigo em l’Opéra de Quat’sous; chefe de uma gangue que simula um tremor corporal incontrolável no sentido de convencer as autoridades de que não pode manusear uma arma em Coup de feu à l’aube; um cigano torturado pelo amor não correspondido em Tarakanova, estudante boêmio e alcoólatra em l’Enfant de ma soeur (1932), um repentino soldado involuntário que torna-se louco nas trincheiras da Primeira Guerra em A cruz de madeira, além de duas célebres vítimas da história como Marat e Savonarola. Jérôme Prieur e Jean-Paul Morel (1976) sugerem, na contramão de várias interpretações, que a escolha dos papeis vividos por Artaud não estava necessariamente ligada a sua patologia, mas seria antes de tudo uma imagem construída à qual ele gostaria de se ver identificado. Tal sugestão não carece de pertinência, principalmente quando colocada no contexto. Mas Artaud de fato sofria dos problemas que dizia sofrer, sentia seus efeitos e complicações. Sabia-se pronto para desempenhar seu próprio papel. Por outro lado, já era prática corrente dos diretores à época recrutar atores de acordo com um certo grau de ―especialização‖ – os mais divertidos, os mais sombrios etc137, embora durante sua carreira Artaud tenha adquirido alguma versatilidade, principalmente para adequar-se, por pouco que seja, às exigências do mercado. Mas seu abandono do cinema é inelutável. Em primeiro lugar, porque o cinema havia se tornado, em seu ponto de vista, decididamente comercial. Depois porque o 137 A pesquisa de Prieur e Morel (1976) é importante para se conhecer os atores que influenciaram na construção dos personagens de Artaud, como Conrad Veidt (uma das grandes figuras do expressionismo alemão), Lon Chaney (a primeira grande vedete do cinema de terror americano), John Barrymore (alcoólatra desde os 14 anos, interpretava papeis que exigiam disfarces horríveis e exprimiam a desintegração física), Charlot, Fairbanks, Pickford dentre outros. 198 cinema não é capaz senão de oferecer uma visão fragmentária do mundo. Em terceiro lugar, o cinema teria caído definitivamente sob o jugo da linguagem escrita. Por fim, o cinema seria incapaz, por todos estes motivos, de promover a verdadeira poesia da vida. Em suma, o cinema teria atingido sua velhice precoce, tudo dele já fora extraído. O abandono precoce do cinema A própria desilusão de Artaud com o cinema foi de certa forma precoce. O corpo-imagem no cinema estabelece uma forma diferente de relação com o espectador em comparação ao teatro. O ator é o que Artaud chama de ―signo-vivo‖, que é, ―sozinho, toda a cena, o pensamento do autor e a sequência dos acontecimentos‖ (2006a, p. 170). De modo que, sendo uma imagem, está fisicamente ausente, por mais forte que seja sua presença na tela. É o paradoxo presença-ausência. Esse corpo é ao mesmo tempo valorizado pelas técnicas de filmagem, explodido e fetichizado ―que se presta, complacentemente, a todas as fantasias, a todos os fantasmas‖ (ROUBINE, 2001, p. 61). Estranho e belo paradoxo: a exaltação do corpo e do pensamento no cinema artaudiano vem de par com uma perda parcial de si mesmo. O prazer cinemático, como diz Shaviro (2015), não coloca o espectador em uma posição de comando ativo do olhar e, diferentemente do par projeção-identificação elaborado por Morin (2011), não depende necessariamente de uma identificação especular. O prazer pode ser ligado justamente à destruição da identificação e da objetivação, à sabotagem da estabilidade subjetiva. A própria crítica contra as ―ilusões ideológicas da imagem‖ estaria em um medo idealista diante da instabilidade ontológica da imagem. As imagens, longe de serem impotentes, estariam repletas de poder. Shaviro (2015), seguindo as pistas de Foucault, Deleuze e Guattari articula uma micropolítica subversiva do cinema, o que ele chama de ―teoria do fascínio cinemático‖. Ou seja, ao invés de confirmar e reforçar padrões e ideologias opressivas, o aparato cinemático é capaz de multiplicar as ―linhas de fuga‖ em relação a verdades estabelecidas. Como se algumas imagens tivessem o status de acontecimentos. O próprio cinema artaudiano pode ser pensado em termo de acontecimentos, por exemplo, quando afirma que A concha e o clérigo não conta uma história, mas desenvolve uma sequência de estados de espírito que derivam uns dos outros: ―No momento em que a 199 imagem acontece, um detalhe no qual não se havia pensado inflama-se com um vigor singular e vai contra a impressão buscada‖ (2006a, p. 172, grifo nosso). A imagem cinematográfica seria capaz de oferecer um imediatismo e uma violência de sensações capaz de envolver no olhar o corpo do espectador, fugindo de uma ideia de experiência humana fundamentalmente cognitiva, que deixa de fora o corpo e, com ele, o afeto, a excitação, o estímulo, o prazer, a dor etc. Um fluxo de sensações que ameaça desalojar o conforto e a estabilidade do sentido. As imagens em si são imateriais, mas os efeitos são físicos e corpóreos. E então o corpo afetado pelo bloco de sensações do cinema retroage sobre o pensamento e o retroalimenta. No cinema artaudiano, há a ação de um desconhecido do qual não se pode nem escapar nem se apoderar. No roteiro de Os 32, vemos um suspense amplamente inspirada no expressionismo alemão. Trata-se da história de um sombrio e melancólico professor universitário que, à noite, tranca-se em seu laboratório para dedicar-se a atividades misteriosas. A cidade acredita tratar-se de um vampiro, personagem inapreensível por excelência, entre a vida e a morte, a luz e a escuridão, o tempo e sua negação. O texto revela algumas passagens nas quais é possível encontrar aquilo que, segundo Zizek (2010), seria o objeto a em Lacan, facilmente encontrados nos filmes de horror de ficção científica: um estranho órgão magicamente autonomizado e sobrevivendo sem o corpo do qual deveria ser apenas uma parte. De repente uma personagem, mãe de um aluno, desaba acometida de uma convulsão: Seu braço esquerdo se agita incontrolado, depois queda imóvel, tremulo, e no extremo de seu dedo estirado parece coagular-se uma espécie de ponto luminoso que se converte pouco a pouco em um homem. O jovem [professor] olha fixamente o ponto, ma quando o homem está diante dele uma emoção de outro mundo o arrebata, um medo inominável se apodera dele, observável em seus traços imobilizados, seus lábios trêmulos, seu rosto de uma palidez cadavérica, seu olho em branco 138 (ARTAUD, 1982, p. 98). O detalhe do dedo estirado é como o objeto a lacaniano. Um pequeno traço que assume autonomia frente ao circuito dos objetos do qual faz parte (nesse caso, uma parte do corpo), mas cuja presença transubstancia magicamente seu portador em um ser 138 Su brazo izquierdo se agita incontrolado, después queda inmóvil, tembloroso, e no extremo de seu dedo estirado parece coagularse una especie de punto luminoso que se convierte poco a poco en un hombre. El joven mira fijamente el punto, pero cuando el hombre está ante él la emoción del outro mundo le coge a su vez, um miedo innombrable se apodera de él, observable em sus rasgos inmovilizados, sus lábios temblorosos, su rostro de uma palidez cadavérica, su ojoo en blanco. 200 estranho e terrível. Nas palavras de Zizek (2010), ―Isso é objeto a: uma entidade que não tem nenhuma consistência substancial, que em si mesma não é ‗nada senão confusão‘, e que só adquire uma forma definida quando olhada de um ponto de vista enviesado pelos desejos e medos do sujeito (...)‖ (p. 87). Por isso a questão de perda parcial de si. Por isso, também, a relação imagem- corpo-pensamento. Artaud (2006a), num parágrafo retirado de Feitiçaria e Cinema parece resumir bem não apenas este ponto, mas também, de certa forma, tudo o que vem sendo dito até aqui. Diz ele: O cinema me parece feito, sobretudo, para exprimir as coisas do pensamento, o interior da consciência e não somente pelo jogo das imagens, mas por alguma coisa de mais imponderável que nos devolve as coisas em sua matéria direta, sem interposições, sem representações. O cinema acontece numa guinada do pensamento humano, neste momento preciso onde a linguagem gasta seu poder de símbolo, onde o espírito está enfastiado do jogo das representações. O pensamento claro não é suficiente para nós. Situa um mundo gasto até o fastio. O que é claro é o imediatamente acessível: mas o imediatamente acessível é aquilo que serve de cascas à vida. Começa- se a perceber que essa vida demasiado conhecida, que perdeu todos os seus símbolos, não é toda a vida (...) Toda substância insensível toma corpo, procura alcançar a luz. O cinema nos aproxima dessa substância (p. 172, grifo nosso). Ao lado de Rainer W. Fassbinder, o cinema de David Cronemberg é um dos que, atualmente, apresentam algumas características da crueldade artaudiana, principalmente em sua relação visceral com o corpo, esse grande desconhecido, ―continente escuro da cultura‖, nas palavras de Shaviro (2015), articulando uma política, uma tecnologia e uma estética da carne. De certa forma, na maneira de relacionar corpo e revolução, Artaud já adiantava as ideias seminais do que seria uma microfísica do poder. Tanto a noção de crueldade quanto a de corpo sem órgãos vão no sentido de operar uma desconstrução do organismo disciplinar, efetuar a construção de um novo corpo, desfazer o rosto, proporcionar um pensamento e uma atitude renovados frente à cultura (QUILICI, 2004). Deleuze e Guattari (2010) estabelecem essa relação direta entre corpo e crueldade quando afirmam que ―a crueldade nada tem a ver com uma violência natural, com que se explicaria a história do homem; ela é o movimento da cultura que se opera nos corpos e neles se inscreve, cultivando-os‖ (p. 193, grifo nosso). Cronemberg, por 201 exemplo, apresenta o corpo em sua materialidade crua e primordial: corpo vazado, deformado, desarticulado, derretido, em fuga, em fluxo, carne descolada dos ossos, vianda, corpo-palimpsesto, corpo sem órgãos, subjétil traidor. Junte-se a isso a linguagem da imagem trabalhada por Artaud que não busca a segurança dos conceitos, mas sim criar um terreno de liberdade, de vazio, de surgimento de virtualidades, no qual floresçam estados de espírito e latejem princípios e origens (QUILICI, 2004). Ou ainda, na concepção de Lehmann (2010), o choque da imagem pode sugerir uma interrupção, ―fazendo com que a realidade se torne, de repente, uma coisa não mais possível, e que nos faça pensar a respeito disso‖ (p. 238). Corpo sem órgãos, ―linguagem inorgânica que mobiliza o espírito por osmose e sem nenhuma espécie de transposição em palavras‖ (ARTAUD, 2006a, p. 161). Recordemos, em A concha e o clérigo, o rosto do oficial que racha, abre, desabrocha, a mulher que aparece ora com a bochecha inchada, enorme, ora mostrando a língua, que se alonga até o infinito, ora com o seio terrivelmente inchado; lembremos do devir- cidade do clérigo de quem, a partir das profundezas de sua boca entreaberta, do espaço entre seus cílios, desprendem-se vapores resplandecentes que se reúnem em um canto da tela, formando um cenário de cidade ou paisagens extremamente luminosas; ou por último, pensemos na cabeça que sai de dentro da bola de vidro e que dissolve-se numa espécie de liquido turvo. São os primeiros movimentos de Artaud no sentido de constituir um cinema nômade, menor, indisciplinado, gaguejante, conectado a um outro plano de realidade. De fato, o cinema artaudiano preenche as características do que, para Deleuze e Guattari (2014), constitui uma literatura menor: a desterritorialização da língua (nesse caso, da imagem), a ligação do indivíduo no imediato-político e o agenciamento coletivo de enunciação. Em A concha vemos corpos em intensidade, corpos em fuga, imagens produzindo acontecimentos. De forma semelhante, em A mosca (1986), Cronemberg reforça a experiência do corpo a partir do recurso às novas tecnologias do capitalismo tardio, investindo esse corpo de maneiras novas e particularmente intensas. A máquina de teletransporte inventada por Seth Brundle (Jeff Goldblum) é, na verdade, um pretexto para Cronemberg apresentar uma máquina capaz de realizar o devir-animal do homem. Não por acaso o doutor Brundle sofre de uma eterna doença motora. Seu objetivo é justamente ultrapassar os limites impostos pela condição de seu corpo, o que no fundo 202 sugere uma proposta para todos os corpos no sentido de capturar uma conjunção de fluxos de desterritorialização, que transborda a imitação sempre territorial. Assim como Gregor Samsa, em A metamorfose 139 , o corpo de Brundle atravessa o imenso vão separando o humano do inseto, em direção a uma experiência de captura em um devir-mosca. Convém lembrar o que diziam Deleuze e Guattari acerca do devir animal: É precisamente fazer o movimento, traçar a linha de fuga em toda sua positividade, ultrapassar um limiar, atingir um continuum de intensidades que só valem por si mesmas, encontrar um mundo de intensidades puras, em que todas as formas de desfazem, todas as significações também, significantes e significados, em proveito de uma matéria não formada, de fluxos desterritorializados, de signos assignificantes (2014, p. 27). O que se anuncia aqui é a dimensão molecular do devir. Não é o caso de se identificar com o molar da mosca, mas de com ela compor relações moleculares de velocidade e movimento. De modo que o homem não devém um inseto, mas sim, se for possível isolar um momento estático do devir, totalmente outra coisa, ―um monstro‖, no sentido técnico do termo: nem homem nem animal, mas qualquer coisa entre os dois, e que mesmo assim não é conhecido. O devir-animal é, então, criador, emprestando uma linha de fuga onde as identidades e as significações usuais tornam-se caducas. É aqui também que entra em jogo a noção antes anunciada de desterritorialização absoluta: emprestando um devir-animal, nós deixamos um território marcado por significações próprias (―eu sou um homem‖ ou ―eu sou um animal‖) mas não para conquistar um novo. Devir não é mudar. O devir nos faz deixar um território sem por isso encontrar um novo. O devir se exerce sobre uma linha de fuga, necessariamente desterritorializada. O cinema e o duplo Já em Videodrome (1983), a crueldade se apresenta por outros meios: a tecnologia do vídeo destrói formas tradicionais de presença física para encarnar-se em 139 “Gregor torna-se barata, não apenas para fugir a seu pai, mas, antes, para encontrar uma saída lá onde seu pai não soube encontra-la, para fugir ao gerente, ao comércio e aos burocratas, para atingir esta região onde a voz apenas zumbe – ‘Você o ouviu falar? Era uma voz de animal, declarou o gerente’” (DELEUZE; GUATTARI, 2014, p. 28). 203 uma ―nova carne‖. Vemos aqui uma questão (ou melhor, duas) importante para tratar do cinema artaudiano. Entre os temas obsessivos da crueldade estão as ideia de duplo 140 e impoder. ―Encarnar-se em uma nova carne‖, projetar um duplo, estabelecer uma relação com o fora, tal é uma das preocupações constantes na vida de Artaud. Não se trata, antes de tudo, de criar uma ilusão que nos ajude a melhor viver, uma fuga do aqui e agora para um outro lugar, mas, ao contrário, de uma convergência quase mágica de todo o além, ou seja, o imponderável, o impensável, o intraduzível, em direção ao aqui e agora. Os dezoito segundos (1924), primeiro roteiro de Artaud, evoca os pensamentos de um ator durante o período de dezoito segundos, entre o momento em que ele olha para o relógio até seu suicídio no momento final. Uma complexa sequência de imagens aliada a mutações espaciais são arranjados em uma condensada escala de tempo que, segundo suas orientações, pode ser expandida em uma hora ou duas de exibição. O homem se vê, por vários momentos, transformado em demônio, corcunda, rei, louco, maníaco, mulher, como se fosses todos desdobramentos de si mesmo, uma impermanência quase constante. O que seria um duplo na visão de Antonin Artaud? Em poucas palavras, uma força vital transpessoal e anterior ao fechamento em uma forma corporal, escondida por trás da realidade visível. É lá, nesse espectro sem individualidade nem limites que Artaud vai extrair sua força, pois ―quando tudo nos leva a dormir, olhando com olhos atentos e conscientes, é difícil acordar e olhar como num sonho, com olhos que não sabem mais para que servem e cujo olhar está voltado para dentro (ARTAUD, 2006b, p. 6). Ora, diz Artaud, ―Se o cinema não for feito para traduzir os sonhos ou aquilo que na vida desperta assemelha-se ao domínio dos sonhos, o cinema não existe. Nada o diferencia do teatro‖ (2006a, p. 172)141. Lembremos da duplicidade fantasmática de Artaud em Liliom, um moleiro que devém anjo. Ao lado da estrutura metafísica do duplo, que termina por depreciar o real, podemos conceber uma estrutura não metafísica da duplicação, que termina, pelo contrário, por enriquecer o presente de todas as suas potencialidades, tanto passadas quanto futuras. Artaud promove um desdobramento constante de si, uma multiplicação 140 Lembremos que, se em O teatro e seu duplo os próprios títulos dos capítulos denunciam a obsessão pelo duplo (“A encenação e a metafísica”, “O teatro e a peste”, “O teatro e a crueldade” etc.), os textos sobre cinema apresentam as mesmas características (“Feitiçaria e cinema”, “O cinema e a abstração” etc.). 141 Talvez David Lynch seja hoje quem mais se aproxime, no cinema, da temática do sonho e do duplo em Antonin Artaud, principalmente em Império dos sonhos (2006), Cidade dos sonhos (2001), Veludo azul (1986), Twin Peaks (1992) e finalmente o duplo monstruoso em Eraserhead (1977). 204 de suas possibilidades. Quando escreve suas cartas, assina: Antonin Artaud, A.A., Artaud, Arland Antoneo, Antonin Nalpas, Nanaqui, Le Mômo, o Revelado; por vezes, queria mesmo que seu nome desaparecesse diluído como um líquido viscoso na bruma do tempo; em seus últimos dias de Rodez, como que retornando ao lar e se reconciliando com o anfitrião, seus duplos decidem promover a identificação final: Eu sou então material e corporalmente Antonin Artaud, 50 anos de idade vividos no real, dia após dia, contra todos os espíritos que não cessaram de querer suplantá-lo, desde o pai até o filho passando por Lúcifer e o espírito santo, e eu nasci em Marselha, atravessando todos os tormentos do nascimento que eu não cessei de seguir ponto por ponto até a morte: minha vida atual 142 (1990, vol. XXV, p. 289, grifos do autor). O cinema é fabricante de duplos por excelência. Artaud tenta utilizá-lo no sentido de contribuir para uma renovação da matéria plástica das imagens e para a liberação de forças sombrias do pensamento. O paradoxo final de seu cinema é que ele pretende atuar não no registro da projeção-identificação, mas da despossessão. O louco autoproclamado rei de Os Dezoito segundos sofre, como vimos em capítulo anterior, de uma doença bizarra: seus pensamentos fogem, as palavras necessárias faltam, os gestos esperados desaparecem. Dizem que enlouqueceu. O fato é que o louco-rei pensa tudo possuir, salvo o próprio pensamento, salvo a possessão do espírito. Mas o que é o espírito? Em que ele consiste? Segue-se um silêncio particular, que não é exatamente uma ausência de resposta. Há nesta interrogação uma desmesura inumana. A totalidade que ela designa é assustadora, o vazio que ela revela, aterrorizante. O que é o espírito, o que é o pensamento? Essas questões e o silencio que a elas sucede assombraram Artaud durante toda sua vida (PENOT-LACASSAGNE, 2007). Jugnon (2010), por seu lado, vê em Artaud (juntamente com Nietzsche, Debord, Beckett, Ducasse, Céline) um dos grandes videurs 143 da humanidade. O paradoxo está no fato de que a assunção regozijante do eu-mesmo a partir do duplo implica necessariamente a renúncia ao espetáculo da própria imagem, pois a imagem mata o modelo. É este, no fundo, o erro do narcisismo, ao qual Artaud não se 142 Je suis donc bien matériellement et corporellement Antonin Artaud, agé de 50 ans vécus dans le réel jour contre tous les esprits qui n’ont cessé de vouloir le supplanter, depuis le père jusqu’au fils en passant par Lucifer et le saint-esprit, et je suis né aussi à Marseille, passant par toutes les affres de la naissance que je n’ai cessé de suivre par point jusqu’à la mort : ma vie actuelle. 143 Mantivemos a palavra em francês porque as duas acepções do termo encontradas no dicionário Le Robert Micro (1998) podem aqui ser utilizadas: 1. Alguém encarregado de esvaziar alguma coisa, ou seja, um esvaziador; 2. Alguém indesejado. 205 entregou: querer não mais amar-se com excesso, mais, ao contrário, no momento de escolher entre o eu-mesmo e o duplo, dar preferência à imagem. O narcísico sofre de não se amar, pois não ama mais que a sua representação. Amar-se de um amor verdadeiro implica uma indiferença frente a todas as cópias tal como elas aparecem ao outro e, por consequência, para mim. Encontramos aqui, segundo Rosset (1984), o miserável segredo de Narciso: uma atenção exagerada ao outro. O duplo do qual fala Artaud, portanto, não se resume a um desdobramento especular daquilo que seria a ilusão de uma realidade outra chamada a preencher o vazio do presente, com base no eixo ―projeção-identificação‖ promotor de catarse. Seus duplos, pelo contrário, seriam parte da luta de uma alma em contato com um ―além‖ misterioso, um conflito cósmico, concebido à imagem da criação, cujo objetivo seria o de tentar retornar a um estado de caos original, querer, de alguma forma, exprimir esse caos primordial, o que significa também exprimir o inexprimível, visando alcançar uma espécie de inconsciente coletivo. De volta a David Cronemberg, os novos arranjos de uma carne fluida realizados pelo diretor procuram destruir as ―oposições tradicionais binárias entre mente e matéria, imagem e objeto, self e outro, dentro e fora, masculino e feminino, natureza e cultura, humano e inumano, orgânico e mecânico‖ (SHAVIRO, 2015). Sua aproximação com Artaud dá-se justamente neste terreno, ou seja, o colapso das oposições binárias principalmente entre matéria e pensamento, estabelecendo um paralelismo de corpos e mentes. Os processos mentais, como desejos e medos, são diretamente registrados como alterações corpóreas (SHAVIRO, 2015), um olhar cinemático violentamente embutido na carne. Sobre tempo, corpo e pensamento O corpo sem órgãos é um corpo afetivo, intensivo, anarquista, que só comporta polos, zonas, limiares e gradientes, atravessado pelo que Deleuze (2011) chama de vitalidade não orgânica, ou seja, a relação do corpo com forças ou poderes imperceptíveis que dele se apossam ou dois quais ele se apossa. É nesse sentido que, no cinema artaudiano, o ator não desempenha um papel, mas um tema, singularidades comunicantes efetivamente liberadas dos limites do indivíduo, abrindo-se ao papel impessoal e pré-individual (DELEUZE, 2015). 206 ―Eu me sinto um corpo que não me pertence, ao qual eu não adiro e me faz sofrer, e fala baixo – como uma marmota, escondida em mim‖ (ARTAUD, OC, vol. XXIV, 173), diz Artaud. A doença do espírito que paralisa seu pensamento desde cedo está ligada ao sentimento de uma ausência de corpo, esse lugar que ele julga insuportável. Um corpo impróprio ou estrangeiro, que não é o seu, abortado de si mesmo. Uma questão intimamente ligada ao processo do pensamento, pois que ele se refere ao duplo da matéria que é o espírito. Desde cedo, também Artaud se coloca um problema: como fazer nascer o pensamento? A resposta passaria necessariamente pela reconstrução do corpo e, consequentemente, das possibilidades de pensar. Como em Ucello, o pêlo(OC, 1984, vol. I*), seu primeiro poema mental, Artaud pinta não a forma, mas seu desaparecimento, a lenta dissolução dos contornos do eu, o progressivo apagamento dos limites entre o sujeito e o outro. As fronteiras da identidade tornam-se porosas e se dissipam lentamente, produzindo uma concepção de sujeito aberto, múltiplo, transidentitário. Nem a tela de cinema nem a de pintura são superfícies planas onde as imagens vêm nelas se fixar. A superfície se abre e se faz suporte da projeção, abrindo-se do aqui e agora para um outro lugar. Artaud sublinha a vontade de se dissolver em proveito de um jogo articulado de forças em ação. No fundo, Artaud sofre de seus próprios limites: ele era habitado por uma intuição fulgurante de que o homem não é mais que um ser de transição e que traria em si uma virtualidade sobre-humana, um estado superior de clarividência no qual a vida mais luminosa do pensamento fluiria espontaneamente da fonte. A inatualidade de Artaud estaria no fato de que, em seu cinema, o atual não se confunde com o presente, mas unicamente enquanto processo de atualização renovada. Nesse diapasão, o tema do tempo assume uma importância essencial no cinema artaudiano. O tempo, aqui, é indeterminado, suspenso. As regras do tempo cinematográfico não coincidem com o tempo físico. Vejamos novamente Os dezoito segundos. Artaud apresenta dois tempos em relação: o primeiro exterior, real, simbolizado pelo ponteiro do relógio mostrando os dezoito segundos da vida de um homem; o segundo, interior, vivido na cabeça do homem. Aqui se encontra a originalidade principal desse roteiro: o tempo interior é dilatado para relatar aquilo que se passa dentro do espírito do homem. Esse tratamento do tempo não é anódino, mas utilizado para dar conta da perturbação psíquica da 207 personagem. Não há uma narrativa linear, mas um encadeamento de imagens que constituem as visões que refletem o estado interior do homem. De maneira um tanto desarticulada, por vários planos visuais sem nenhum racionalidade nem lógica, Artaud apresenta o caos de espírito de seu personagem, num tipo de montagem rápida, abrupta e sem ligação aparente entre os quadros: um homem no consultório do doutor, que deixa cair seu diagnóstico; uma mulher muito bela e enigmática; um vendedor ambulante no centro de uma bola de cristal (a bola de cristal é recorrente em alguns de seus cenários) e que dela sai como um gênio de uma garrafa. As imagens suscitadas encontram seu sentido no fato de que o homem da história é afetado por uma doença do espírito que o impossibilita de traduzir seus pensamentos em palavras ou gestos, mesmo estando consciente ou lúcido. Trata-se, como já sabemos, do próprio Artaud, utilizando o cinema numa tentativa desesperada de se curar da cultura, penetrar no abismo do espírito humano. Em toda sua obra, Artaud tenta revelar seu(s) duplo(s), como nessa primeira tentativa de escrever um roteiro. A ética da crença A época mudou, pensam Artaud e Deleuze, não por não acreditar mais no cinema dos pioneiros, mas por não acreditar mais na relação do pensamento com o mundo. Karl Marx sentencia, em sua famosa 11ª Tese sobre Feuerbach: ―Os filósofos têm apenas interpretado o mundo de maneiras diferentes, a questão é transformá-lo‖ (2002, p. 111, grifo do autor). Talvez fosse o caso, agora, ao contrário, de retomar o pensamento para tentar compreendê-lo mais uma vez. Chegamos a um momento no qual a impotência do pensamento emerge, justamente pela ruptura de seu laço com o corpo e o mundo. O pensamento é impotente perante um mundo cujas bases é constantemente solapada, como o agir é impotente porque não acreditamos mais poder agir em um mundo que se subtrai a ação. Nos deparamos com o intolerável de estarmos mergulhados em um mundo intolerável. E o resultado são seres humanos paralisados, sem capacidade real de ação transformadora. Nesse contexto, o que o cinema pode oferecer para o pensamento? O cinema artaudiano tenta pensar a ausência do mundo, a descrença no pensamento e a alienação radical do sujeito, no sentido de produzir ferramentas para lidar com essa impotência. Maurice Blanchot (2005, p. 56) observa que, em Artaud, 208 O fato de pensar só pode ser perturbador; que aquilo que existe para ser pensado é, no pensamento, o que dele se afasta, e nele se exaure inesgotavelmente; que sofrer e pensar estão ligados de uma maneira secreta, pois se o sofrimento, quando se torna extremo, é tal que destrói o poder se sofrer, destruindo sempre à frente dele mesmo, no tempo, o tempo em que ele poderia ser retomado e acabado como sofrimento, o mesmo acontece, talvez, com o pensamento. Estranhas relações. Será que o extremo pensamento e o extremo sofrimento abrem o mesmo horizonte? Será que sofrer é, finalmente, pensar? Partindo de Artaud, Deleuze (MACHADO, 2009) imagina uma impotência que existiria no âmago do pensamento, uma ―substância‖ desconhecida que seria justamente o que força a pensar, enquanto o cinema seria capaz de revelar essa impotência. Mas o restabelecimento dos laços do homem com o mundo se daria no nível da crença, não a fé numa transcendência, mas uma fé imanente, uma fé neste mundo. E a restituição dessa fé poderia ser alcançada por meio do cinema: ―é possível servir-se da impotência do pensamento para acreditar na vida e encontrar a identidade do pensamento e da vida‖ (p. 288). Morin (2010a) tem razão ao afirmar que é chegada a hora de abandonar as más utopias, a ideia em uma transformação radical da sociedade, e aderir às boas utopias, pequenas transformações que estão ao alcance da humanidade, embora não imediatamente (como a extinção da fome, por exemplo). É possível refazer nossa arquitetura espiritual. Nada está perdido. No fim, tudo morrerá. Seguindo as orientações de Deleuze em seus ensaios sobre cinema (1983; 2005), vemos que o cinema clássico, de ação, devém um cinema psíquico, que tenta restaurar a crença no mundo. O próprio contexto no qual surgem estas reflexões não é nada favorável. Nos anos 1920-30, os textos, adaptações, atuações e roteiros de Artaud tinham como pano de fundo a depressão econômica, a ascensão da Frente Popular, na França, e o aumento progressivo da força do comunismo, junto com uma luta antifascista que afetava direta ou indiretamente o círculo artístico-intelectual francês. Em Paris, se confinavam emigrantes judeus alemães para, em alguns casos, mandá-los de volta aos seus lugares de origem (entre eles Walter Benjamin e Bertolt Brecht). A repercussão de tais fatos no mundo da arte foram imediatas (WILSON, 2009). Sem dúvida que, em sua revolta, Artaud era profundamente tocado pelo recusa dessa racionalidade técnico-administrativa que muito se aproximava de uma barbárie esclarecida. Para a Modernidade, o louco era aquele para quem as escolhas e os atos não são razoáveis, o qual era preciso corrigir ou curar. Diante de tal ambiente, se a verdade e 209 a racionalidade não dão conta de pensar um mundo melhor, Artaud convoca aquilo que Deleuze (2005) chama de potências do falso, capaz de escapar a ideia de uma narração verídica (cinema clássico) e quebrar o sistema de julgamento, ―uma potência do falso que substitui e destrona a forma do verdadeiro, pois ela afirma a simultaneidade de presentes incompossíveis, ou a coexistência de passados não-necessariamente verdadeiros (p. 161). Em alguns roteiros de Artaud, por exemplo, como o vampiro dos 32, o louco d‘A revolta do açougueiro ou o suicida d‘Os dezoito segundos vemos a figura do autômato espiritual ou mental, uma Múmia, instância desmontada, paralisada, petrificada, congelada, que não se define mais pela possibilidade lógica de um pensamento logicamente encadeado, mas documenta a impossibilidade de pensar que é o pensamento. A múmia não seria a parede intransponível contra a qual se choca o pensamento, mas é o próprio núcleo deste. Ao sonâmbulo expressionista (O gabinete do Dr. Caligari (1920), Nosferatu (1922)) Artaud opõe o seu vigilâmbulo, como em Os dezoito segundo e A concha e o clérigo. O grande tema dos roteiros e textos de Artaud é, portanto, a incapacidade de atingir os pensamentos, a dissociação do pensamento, o pensamento mumificado, o fato de que ainda não pensamos, a impotência tanto para pensar o todo como para pensar a si mesmo, uma luta contra a própria petrificação do pensamento a partir da reconstrução do corpo. Deleuze vê em Artaud ―Um ser do pensamento sempre por vir, é o que Heidegger descobrirá sob uma forma universal, mas é também o que Artaud já viveu como o problema mais singular, seu próprio problema‖ (2005, p. 203). Carl T. Dreyer, em Gertrud (1964), desenvolve algumas implicações da relação entre cinema e pensamento: situação psíquica, ruptura do liame com o mundo, apreensão do intolerável, encontro com o impensável, mumificação da heroína; Rossellini apresenta uma moral capaz de renovar a crença na vida; Godard restitui o discurso ao corpo. Todos eles desenvolvem, em maior ou menor medida, uma série de implicações sobre a nova relação do cinema com o pensamento preconizada por Artaud. As repercussões políticas deste ―cinema menor‖ são classificadas por Roberto Machado (2009) em quatro pontos: 1. O privado se confunde com o social; 2. A possibilidade da revolução é confrontada com a impossibilidade do intolerável; 3. Imagens que correspondem a estados emocionais ou pulsionais destruídos, e; 4. O autor não produz enunciados individuais, mas coletivos, libertando forças potenciais transgressoras. 210 O cinema teria a capacidade de provocar em nós o pensamento, coloca-lo em movimento. É o que Deleuze classifica de noochoque (LACOTTE, 2001), pois a imagem está intrinsicamente relacionada com o movimento próprio ao pensamento. O movimento do pensamento evoca o circuito do espírito que nos faz pensar o todo a partir de suas partes. Pois o todo, diz Deleuze (1992), diferente do conjunto, é da ordem do tempo: ele atravessa todos os conjuntos e os impede de se fecharem completamente, ou seja, é a passagem perpétua de um conjunto a outro, a transformação de um conjunto no outro. Convém relembrar que, para Deleuze (1992), o pensamento não é próprio do filósofo. É possível pensar também pela arte e pela ciência. A filosofia pensa criando conceitos, enquanto a ciência pensa por funções e a arte criando perceptos. Mas Deleuze enxerga a possibilidade da criação de conceitos a partir de imagens e, no interior do cinema, podemos passar dos perceptos aos conceitos. É a partir das reflexões de Artaud que o autor de Crítica e clínica pensa essa relação imagem e pensamento. Pois aquele não concebe o pensamento como uma faculdade todo-poderosa; ao contrário, ele se caracteriza pelo seu impoder, o pensamento jamais teve outro problema. Nesse registro, o pensamento não pode mais pensar o todo, pois ele perde essa potência explicativa abrangente, e devém acima de tudo uma fissura, uma rachadura, de onde brota um impensável do pensamento. A forma do cinema abordar esta questão seria por meio da ruptura do esquema sensório-motor, que emerge a partir da ruptura dos laços entre o homem e o mundo. Assim, o homem devém um clarividente, o pensamento cessa de ser uma faculdade que encadeia logicamente proposições, mas é confrontado àquilo que ele não pode pensar e que é intolerável. O intolerável, diga-se, não reduz nossa faculdade de pensar, mas sua essência é justamente revelar a impotência do pensamento. Artaud jamais compreendeu essa impotência como uma simples inferioridade que nos enfraquece frente ao pensamento. Essa impotência é própria do pensamento. Ela pertence ao pensamento, tanto que deveríamos fazer dela nossa maneira de pensar, sem pretender restaurar um pensamento todo-poderoso. Isso implica no fato de que o conhecimento deveria formar aliança com a crença. O pensamento é inapto a tudo conhecer, pois é da sua natureza ser defeituoso. O liame que nos une ao mundo deve, então, passar pelo restabelecimento de uma crença. Talvez seja essa uma das formas de pensar o conhecimento do conhecimento (MORIN, 2011b) 211 a partir de uma nova linguagem que atribua ao pensamento a possibilidade de pensar aquilo que o ultrapassa. A crueldade é constitutiva do universo, afirma Morin (2010b), ―mas sem a integração da crueldade pela vida, também não haveria vida‖ (p. 272), e foi assumindo tal crueldade que a vida germinou no mundo. As criaturas de carne, alma e espírito são as que mais sentem , sofrem e se horrorizam com a crueldade, a indiferença, a dor, o esquecimento do outro, o ódio, o egoísmo, o desprezo, a tortura, os genocídios e a barbárie generalizada. Artaud assume a crueldade e a pensa como uma força mesma de resistência e de revolta. As guerras continuam fabricando milhões de refugiados. A fome ainda mata milhares de pessoas. A concentração de renda segue incólume seu caminho. O terrorismo não se intimida. O medo destrói os laços sociais. E parece que não mais nos emocionamos com isso. Damos de ombro. A ética da crueldade significa amor à vida, uma necessidade inapelável de lutar contra todos os horrores do mundo, tudo aquilo que rebaixa nossa potência de existir. A fé ética de Morin (2011c), que envolve uma ética da resistência e da solidariedade, do amor e da coragem, é também uma fé no homem e naquilo que nele há de mais singular: amemos, pois, ―o frágil e o perecível, pois o mais precioso, o melhor, inclusive a consciência, a beleza, a alma, são frágeis e perecíveis‖. Nesse sentido, a ética da crueldade em Artaud é também uma ética do amor, o amor como o que há de mais revolucionário, pois que capaz de criar laços fortes ―numa época em que nada adere mais à vida‖, um antídoto contra nossa impotência em possuir a vida. Há um risco de que, num mundo tomado pelo prosaico, pela busca incessante do lucro, da objetivação e precificação de tudo e todos, da racionalidade utilitária e econômica, pensarmos no resgate poético da existência, do viver junto, por meio de uma retomada da força intelectual da arte e, assim, terminar-mos pregando no deserto? Sim, é possível. Sobre isso, gostaríamos de terminar com as palavras do próprio Artaud: Há um risco, mas acho que nas circunstâncias atuais vale a pena corrê- lo. Não creio que consigamos reavivar o estado de coisas em que vivemos nem creio que valha a pena aferrar-se a isso; mas proponho alguma coisa para sair do marasmo, em vez de continuar a reclamar desse marasmo e do tédio, da inércia e da imbecilidade de tudo (2006b, p. 93). 212 CONSIDERAÇÕES FINAIS Em uma de suas Seis propostas para o próximo milênio (1990), sobre a visibilidade, Ítalo Calvino distingue três processos imaginativos mediando a relação do homem com o mundo. O primeiro é o que parte da palavra para chegar à imagem visiva. Lemos romances, contos, crônicas, novelas, reportagens de jornais, ensaios, poesias e, conforme a construção textual, o modo como as palavras se relacionam numa teia de sentidos, somos levados a elaborar mentalmente uma história, um fato, um acontecimento, desenvolvendo, senão toda a cena, pelo menos um ponto ou outro conforme a narrativa nos toca em maior ou menor intensidade. Ao lembrarmos, por exemplo, do Dom Quixote de la Mancha, em geral nos vêm à mente o heroico cavaleiro andante, sonhador e apaixonado, transpassando com sua poderosa lança um gigante amedrontador que, depois, revela-se um inofensivo moinho de vento. Em verdade, este trecho da obra é consagrado em pouquíssimas linhas. Mas essa imagem do bravo aventureiro alucinado, tomado por sua hubris invencível em lutas desproporcionais, esse Aquiles sem brilho aparentado aos tempos modernos mais que o guerreiro homérico, é uma sugestão verbal simples, mas que de certa forma marca o imaginário ocidental contemporâneo. De outro modo, ainda segundo Calvino, há o processo imaginativo que parte da imagem visiva para chegar à expressão verbal. Como no catolicismo da Contrarreforma, as sugestões emotivas da comunicação visual revelam significados as quais o fiel deve ascender, mas sempre a partir de uma imagem dada proposta pela igreja como via de acesso a um conhecimento profundo. O terceiro processo, a ideia original lançada pelo literato italiano é a que mais nos interessa. Para construir seus textos, ele revela partir sempre de uma imagem (um homem dividido em dois que vivem vidas independentes, uma armadura vazia dotada de fala e movimento, cidades invisíveis nas quais, dentro da geometria precisa de seus espaços, ruas, edifícios, há todo um fluxo de corpos e paixões que se entrecruzam e dão sentido às histórias). Trata-se da ―imaginação como repertório do potencial, do hipotético, de tudo quanto não é, nem foi e talvez não seja, mas que poderia ter sido‖ (CALVINO, 1990, p. 106). Sua proposta, portanto, é de uma pedagogia da imagem e da imaginação. Em tempos remotos, o homem criava suas representações visuais influenciado tanto pelo patrimônio de suas experiências diretas quanto por um reduzido repertório de imagens 213 produzidas pela cultura. O modo como esses fragmentos de memórias se combinavam em abordagens inesperadas e sugestivas criava a possibilidade de dar forma aos mitos pessoais. E fomos criando toda uma mitologia. Deuses gregos, cristãos, pagãos e, mais recentemente, nossos ídolos do cinema e da TV. A questão colocada pelo autor de Os amores difíceis diz respeito ao risco de perdermos uma faculdade humana fundamental, a de pensar por imagens. A civilização da imagem estaria, paradoxalmente, embotando nossa capacidade criativa. Os meios de comunicação de massa, sobretudo, inundam o cotidiano com imagens pré-fabricadas, distribuídas uniformemente por todo o mundo ocidental. Principalmente a cultura americana, dotada dos meios políticos, econômicos e ideológicos de fazer difundir o american way of life. O que se nos reserva, portanto, para nós, filhos da civilização da imagem? Alex Galeno (2003, p. 96) questiona ―se não estamos vivendo, atualmente, sob uma nova ‗governamentabilidade‘ dos corpos frente à cultura do zapping e do virtual. Ainda haverá espaço para exercício da alma?‖ Crescemos todos imersos em vidas que não são as nossas e constituem nosso imaginário, consumindo seriados americanos, blockbusters da indústria cinematográfica hollywoodiana, novelas que mostram o Brasil em toda a sua parcialidade, reforçando estereótipos, telejornais que apresentam um mundo ao mesmo tempo homogêneo e fragmentado em dois ou três minutos, enquanto ao lado de uma guerra civil que mata milhares de cidadãos no Oriente Médio somo atraídos, logo em seguida, pela migração dos pinguins ou o nascimento do herdeiro real na Inglaterra, que, a rigor, não se podemos chamar de notícia, aquilo que traz a novidade. Sintomas de esquizofrenia coletiva? ―Os pintores só devem meditar de pincel na mão‖ (BALZAC, 2012, p. 23). Tal é um exemplo da pedagogia da imagem de Balzac em seu pequeno conto A obra-prima ignorada, enquanto medita de pena na mão. Trata-se da história de três pintores, Porbus, Poussin e o velho mestre Frenhofer. Este último, profundo conhecedor dos segredos da arte, obcecado por realizar a obra perfeita. Em uma de suas lições, diz ser preciso captar o espírito, a alma, a fisionomia das coisas; além da vida, é necessário para o artista apreender o seu excesso transbordante, a beleza enquanto ela se revela em um átimo, pois que não a todos foi dada a capacidade de reconhecê-la; podemos espreitá-la e tentar agarrá-la no momento mesmo de sua aparição, obrigando-a a se render. Frenhofer segue em sua obsessão. Afirma ter capturado a beleza em um pulo, mas somente após observá-la e estudá-la em seus movimentos a vida inteira. A 214 perfeição da arte está lá em seu ateliê, escondida debaixo de um pano. Apenas ele a conhece. Mas os jovens pintores insistem e, com algumas artimanhas, conseguem ter acesso a essa verdade profunda. O que seria este belo quadro fruto de uma mente imaginativa, arguta e estudiosa? Por trás de todos os traços caóticos e camadas de leveza, movimento, profundidade, volume, luz e sombra o mistério se dissolve: as curvas da mais bela mulher que jamais existiu na face da Terra. Ou melhor, ela deve estar lá, mas apenas o velho mestre a vê, ninguém mais. No canto da tela desponta um pé descalço, delicioso e vivo, pulsante, como que destacado de uma vênus de mármore, um ―fragmento saído de uma incrível, lenta e paulatina destruição‖ (BALZAC, 2012, p. 36). Nada além de um pé. Frenhofer havia chegado ao ponto no qual a imaginação criativa existe apenas no limite de sua própria destruição. No dia seguinte, a notícia. Frenhofer havia tocado fogo em seu ateliê e morrera queimado junto à sua madona desconhecida. Talvez satisfeito por ter encontrado a beleza suprema; ou insatisfeito por sabê-la inatingível. Em A obra-prima ignorada encontramos, assim como em Artaud, a impossibilidade da perfeição, da mesma forma como foi impossível o teatro da crueldade. Ambos são experiências de intensidade e não discursivas. Ao analisar As filhas de Loth, pintura de Lucas van den Leyden, Artaud (2006b) identifica uma tela que ―impressiona o espírito com uma espécie de harmonia visual fulminante, cuja acuidade age inteira e é apanhada num único olhar‖ (p. 31). Por isso torna-se urgente determinar em que consiste essa linguagem física, material e sólida que, no teatro, pode se distinguir das palavras. Também no filme A Grande Beleza (2013), de Paolo Sorrentino, conhecemos um escritor que vive ainda do sucesso de seu primeiro e único livro, O aparelho humano, considerado um clássico italiano. No decorrer da película, descobre-se que a sua desistência da vida literária deve-se ao desencantamento com a aventura humana, e que a grande beleza estaria definitivamente perdida. Portanto, não há mais sobre o que escrever. Ao final, o escritor percebe que a grande beleza está naquilo que importa a cada um, e decide iniciar um próximo livro, ou seja, ela é universalmente inalcançável e diz respeito a uma experiência intensiva. Como afirma Cioran (2011, p. 24), ―Toda existência subjetiva é um absoluto em si‖, revela algo de incomunicável. Para Calvino (1990), trata-se de uma pedagogia que só podemos aplicar a nós mesmos, seguindo métodos de composição a serem inventados e reinventados constantemente, com resultados imprevisíveis. A importância e a originalidade de sua 215 quarta proposta para este milênio está na constatação de que, com o passar do tempo e a evolução dos media, praticamente onipresentes no ramerrão do cotidiano, sincronizando as existências, fomos sendo absorvidos pelas imagens midiáticas, filmes, novelas, propagandas, seriados, telejornais e, ao mesmo tempo, desaprendendo a pensar por imagens, a cri´z-las, submetendo-nos quase sempre à sua imposição, carregadas de significações, mesmo sabendo da nossa capacidade em ressignificá-las. Mas a margem de manobra parece cada vez mais estreita. Embotamos nossos sentidos, enquanto vivemos outras vidas que se nos mostram em telas cada vez maiores e menores. Como uma mudança no regime de imagem, portanto, poderia alterar a nossa percepção do mundo e nossa própria maneira de atuar sobre ele? O que ela diz sobre o homem contemporâneo? Não nos referimos, claro, apenas às belas imagens, mas sua capacidade intrínseca de nos constituir enquanto sujeitos, pois habitamos o mundo primeiro por imagens. Como propõe a Semiótica da Cultura, é preciso aprender a ler o mundo em sua multiplicidade de perspectivas, em seus diversos níveis textuais, incluindo a natureza, a arquitetura, as obras de arte e toda a simbologia relacionada. Essa leitura competente garantiria pelo menos a consciência de podermos desconstruir a arbitrariedade de uma ordem tida muitas vezes em essência. É no sentido da retomada da potência ao mesmo tempo constitutiva, transgressora, desestabilizadora e criativa das imagens que nos propusemos a estudar o cinema da crueldade de Antonin Artaud. Sua ideia de cinema é de uma pedagogia da imagem embora mais radical, pois tinha em mente a desconstrução e reconstrução do próprio ser, numa perspectiva ontológica. Artaud conhecia por dentro o processo técnico de construção das imagens enquanto ator e roteirista; compreendia os mecanismos do inconsciente enquanto estudioso da psicanálise e paciente de clínicas para doentes mentais; mas, acima de tudo, acreditava numa noção de crueldade como para salvar a existência da tragédia da cultura ocidental envelhecida. Pretendia despertar as forças vitais que, no homem, estão adormecidas. Viveu e morreu por esse ideal. Retomando seu texto sobre A velhice precoce do cinema, percebemos aqui a possibilidade de dar um novo fôlego ao seu arcabouço teórico, no ponto mesmo em que seu pensamento se interrompe, quando acreditou precocemente na velhice precoce do cinema. Mais acima convocamos Deleuze para dar conta do pensamento cinematográfico artaudiano em suas perspectivas de imagem-movimento e imagem- tempo. Mas é possível que essa taxonomia esteja a ponto de ceder espaço ao que Lipovestsky e Serroy (2009) chamam de cinema hipermoderno? Essa probabilidade 216 ainda está em aberto para pesquisas futuras. E dependendo de seu desenvolvimento, é possível que a ideia artaudiana de cinema ganhe ainda mais vigor com o passar do tempo. Segundo esses autores, os três conceitos fundamentais que compõem os processos constitutivos do cinema hipermoderno são a imagem-excesso, a imagem- multiplex e a imagem-distância. O primeiro se caracteriza por uma estética do excesso, uma busca do sem-limite, uma proliferação vertiginosa das imagens: ritmo, sexo, violência, velocidade, busca dos extremos, multiplicação de planos, saturação da faixa sonora etc. O segundo ponto de refere a uma lógica de desregulação e complexificação formal do espaço-tempo fílmico, assinalando um novo espírito do cinema: diversificação nos modos de narrativa, referências atípicas, ambiguidades e mistura de gêneros. Por último, a imagem-distância poderia imergir sensorialmente o espectador no filme, abolindo a distância em relação à imagem, criando uma distância de outra ordem, colocando o espectador tanto dentro como fora dos filmes. Esse contexto levaria a uma relação cada vez menos marcada entre o que chamamos de cinema de arte e cinema comercial, de modo que ―Resnais obtém hoje verdadeiros sucessos públicos, e os blockbusters não se proíbem mais algumas audácias formais. A confusão crescente ligada à aliança dos contrários é uma das tendências da nova era do cinema‖ (LIPOVETSKY; SERROY, 2009, p. 70). O cinema hipermoderno estaria hoje cada vez mais atento ao presente social, levantando questões fundamentais da existência. Portanto, mais uma vez, não estaria o cinema contemporâneo aproximando-se cada vez daquilo que Artaud propõe para o cinema, como vimos exaustivamente no decorrer do texto, e que seria ocioso repetirmos aqui? E isso vindo de alguém que nasceu há exatos 120 anos e conheceu o cinema apenas em seu início! Daí a importância, cremos, de se estudar a atualidade do pensamento cinematográfico artaudiano. Principalmente por que, como diz Morin (1958), o cinema, como um espelho antropológico, reflete os problemas da individualidade humana e do espírito do tempo no qual se insere, retomando contanto com a vida desperta e nos ensinando a viver. Dai a tríade de um cinema que atua sobre a vida que atua no real, e assim recursivamente. 217 BIBLIOGRAFIA DE ARTAUD ARTAUD, Antonin. Oeuvres complètes. Tome I*. Paris: Gallimard, 1984. __________. Oeuvres complètes. Tome I**. Paris: Gallimard, 1976. __________. Oeuvres complètes. Tome II. Paris: Gallimard, 1980. __________. Oeuvres complètes. Tome III. Paris: Gallimard, 1978. __________. Oeuvres complètes. Tome IV. Paris: Gallimard, 1978. __________. Oeuvres complètes. Tome V. Paris: Gallimard, 1979. __________. Oeuvres complètes. Tome VII. 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Atirado ao chão, com o corpo retorcido, convulsionado, como que se mistura ao solo lamacento e arenoso no qual encontra-se deitado. O plano surpreendente empresta uma intensa prefiguração do devir doloroso de seu corpo. Graziella. França/Itália, 1925. Dir : Marcel Vandal. Mudo, P&B. Artaud: Cecco. Sinopse: adaptação de um romance de Lamartine. Dois amigos poetas resolvem deixar o conforto de suas vidas burguesas para se aventurar no mar. O barco no qual viajavam sofre avarias devido a uma tempestade e eles são obrigado a aportar num pequeno vilarejo na costa da Itália. Lamartine se apaixona por Graziella, até então noiva do pescador Cecco. Artaud oferece um rosto conjugando uma melancolia insondável, infinita ternura e um terror sombrio. Napoleón (Napoleão). França, 1925-26. Dir: Abel Gance. Mudo, P&B, 315 min. Artaud: Jean-Paul Marat. Sinopse : conta a história da ascenção de Napoleao I. Considerado um épico do cinema francês, Artaud interpreta aqui o jovem revolucionário Marat, em uma de suas atuações mais marcantes. Le Juif Errant (O judeu errante). França, 1926. Dir: Luitz-Morat. Mudo, P&B, 305 min. Artaud : Gringalet. Sinopse: baseado no livro de mesmo nome escrito por Eugène Süe. Artaud parece sair de uma mistura de um universo do livro e dos filmes de vampiro. Todas as suas aparições parecem carregadas de mistério. Ele é inicialmente muito belo e, ao final, satânico. Mathusalem. França, 1926-27. Dir: Jean Painlevé. Mudo. P&B, 25min. Sinopse: quando havia acabado de filmar A paixão de Joana d’Arc, Artaud foi contactado para atuar em um filme com cenas curtas e mudas para serem projetadas durante a exibição de uma peça. La passion de Jeanne d’Arc (A paixão de Joana d’Arc). França, 1927. Dir: Carl T. Dreyer. Mudo, P&B, 110 min. Artaud: Irmão Massieu. Sinopse : o filme detalha as ultimas horas de vida da heroína francesa Joana d‘Arc, cobrindo sua prisão, tortura, julgamento e execução. Artaud interpreta o irmão Massieu, que contrasta com os outros personagens pela sua juventude e beleza. Trata-se de um marco na história do cinema francês e na carreira de Artaud. 227 Le coquille et le clergyman (A concha e o clérigo). França, 1927. Dir: Germaince Dulac. Mudo, P&B. 31min. Sinopse: filme realizado a partir de um roteiro de Artaud tendo um sonho como ponto de partida. O núcleo central da trama é composto por um homem, uma mulher e um clérigo. O filme é repleto de onirismo e dominado por três elementos: rapidez, metamorfose e transparência. Seu objetivo, com o roteiro, é liberar a lógica e o ritmo interno próprio do mundo das imagens. Verdun, visions d’histoire (Verdun, visões da história). França, 1927. Dir : Léon Poirier. Mudo. P&B. 151min. Artaud : Intelectual. Sinopse: o filme retreaça a Batalha de Verdun, em 1916 por ocasiao de Primeira Guerra mundial. Artaud encarna um papel próximo daquilo que ele realmente era, um intelectual. L’argent (O dinheiro). França, 1928. Dir: Marcel L‘Herbier. P&B. 164min. Sinopse: O roteiro traz a história de um inescrupuloso banqueiro à beira da falência, Saccard, e uma nova oportunidade de se reerguer. Porém, sua ganância o leva a desejar a mulher do homem que poderá ajudá-lo a sair da lama. Artaud interpreta o secretário do banqueiro, Tarakanova. França, 1929. Dir: Raymond Bernard. Mudo. P&B, 120min. Artaud: jovem cigano. Sinopse: os inimigos da imperatriz Catherine de Russie, no desejo de derrubá-la, escolhem a bela Elizabeth Tarakanova, sósia de Dosithée, filha da imperatriz e reclusa em um convento, para ajuda-los em seu plano. Por seu turno, prevendo a situação, Catherine encarrega o conde Orlof de seduzir e capturar sua rival para dar fim ao projeto. Artaud interpreta aqui um cigano louco e apaixonado pela jovem, inalcançável e intempestiva cigana Tarakanova. La femme d’une nuit (A mulher de uma noite). França, 1930. Dir : Marcel L‘Herbier. P&B. Artaud: Iaroslav. Sinopse: em uma noite na floresta surge uma charrete, dirigida por um homem cuja face parece ausente. Artaud é o cocheiro dessa mulher que acabamos por não saber quase nada. L’Ópera de quat’sous (Ópera dos três vintés). EUA, Alemanha. 1930. Dir: Georg Wilhelm Pabst. P&B. 1h44min. Artaud: aprendiz de mendigo. Sinopse: conta a história de Mackie Messer e seu amor por Polly, a filha do inimigo J.J. Peachum. Este, mais conhecido por Rei dos Mendigos, vestia sua gangue como deficientes ou mendigos e os mandava pedir esmolas. Mackie, por seu lado, defendia uma linha mais dura, explorando assaltos e prostituição. Em uma das cenas, Artaud se transforma e compõe seu personagem de mendigo ―ao vivo‖. Faubourg Montmarte. França, 1931. Dir : Raymond Bernard. Mudo. P&B, 115min. Artaud : Follestat, líder revoltado. Sinopse: terceiro filme de Artaud com Raymond Bernard. Duas jovens irmãs originárias de Paris se instalam em uma província para começar uma nova vida, mas Follestat (Artaud), habitante exaltado, decide protestar contra o casamento de uma delas contra um homem rico do país. 228 Les croix de bois (A cruz de madeira). França, 1931. Dir: Raymond Bernard. P&B. 1h46min. Artaud: Vieublé. Sinopse: na França, durante a Segunda Guerra Mundial, alguns amigos se encontram no campo de batalhas. A tranquilidade da vida cotidiana dá lugar aos horrores do conflito os quais eles terão de enfrentar e, consequentemente, à perda de seus ideais. Artaud interpreta um soldado transtornado pelo sem sentido da guerra e da vida. Coup de feu à l’aube (Tiro na madrugada). França. 1932. Dir: Serge de Poligny. P&B. 1h30min. Artaud: le trembleur (o trêmulo). Sinopse: Artaud interpreta Le trembler (o trêmulo), um assassino cuja principal característica é ser acometido de uma agitação nervosa que faz o corpo tremer frequentemente, embora seja apenas uma simulação para a polícia que o tem como suspeito de um assassinato, e ele finge não ter capacidade para manejar uma arma. Mater dolorosa. França, 1932. Dir: Abel Gance. P&B. artaud: d‘Hornis. Sinopse : a mulher de um grande médico vive uma relação extraconjugal. Mas seu amante, dilacerado peo amor impossível, tira a própria vida, deixando a mulher gravida de seu filho. O marido decide então se vingar. Um papel menor na carreira de Artaud. L’enfant de ma soeur (O filho de minha irmã). França, 1932. Dir : Henry Wulschleger. P&B, 90min. Artaud: Loche, estudante de direito. Sinopse: Valerien escreve a seu tio, homem milionário, em busca de dinheiro. Ele encontra um aventureiro que se passa por advogado e propõe que este assuma seu lugar nos exames admissionais para a profissão de advogado. Artaud interpreta um estudante de direito. Sua ruína mental e embriaguez se assemelham a situação em que se encontrará no fim da vida. Liliom (Liliom, coração vadio). França, 1933. Dir: Fritz Lang. P&B. 120min. Antonin Artaud: o anjo da guarda. Sinopse: Liliom, um agitador de um parque de diversão, de temperamento difícil e agressivo, decide viver junto com uma ingênua jovem. O convívio dos dois torna-se insuportável pelas constantes agressões. Quando Julie engravida, Liliom decide dar uma melhor condição de vida para ela e assim entra para o crime. A partir daí sua vida é traçada por tragédias, aonde ele terá a chance de reavaliar sua personalidade e seus atos grosseiros com a ajuda celestial. Sidonie Panache. França, 1934. Dir: Henry Wulschleger. P&B. 120min. Artaud: Abdel-Kader. Sinopse : Artaud interpreta um personagem mítico, adepto do sufismo e emir, chamado Abdel-Kader. Seu manto de lá com capuz e sua barba encobrem um rosto marcado pelo calor desértico, que encima o corpo de um homem desfilando a cavalo em meio a balas. Um ser fantasmático, sombrio, escuro e de olhos azuis. Lucrèce Borgia (Lucrécia Bórgia). França, 1935. Dir : Abel Gance. Mudo. P&B. 93min. Artaud: Savonarola. Sinopse : a história gira em torno das intrigas políticas da família Bórgia. César Bórgia, filho do papa Alexandre VI, pretende casar sua irmã, Lucrécia Bórgia, com fins políticos. Mas Lucrécia se rebela contra seu irmão. Artaud interpreta Savonarola, intelectual e reformar dominicano que denunciava violentamente os crimes do vaticano. 229 Koenigsmark. Grã-Bretanha/França, 1935. Dir: Maurice Tourneur. P&B, 1h36min. Artaud: Cirus Beck, o bibliotecário. Sinopse: a princesa Aurora, acompanhada de seu pai e de sua dama de companhia, chega ao castelo real de Mégranie. O rei, seu tio, gostaria de casá-la com seu herdeiro. Ela é forçada a aceitar, mas previne seu futuro marido de que serão apenas bons amigos. Último filme de Artaud, que interpreta um bibliotecário mais absorvido por seu cachimbo que pelos interlocutores. 230 FILMOGRAFIA CONSULTADA 8 e ½ . Itália/França, 1963. Dir: Federico Fellini. P&B, 138min. A culpa é do macaco (Monkey Business). EUA, 1931. Dir: Norman Z. MacLeod. P&B, 77min. A grande beleza. (La Grande Bellezza). Itália, 2013. Dir. Paolo Sorrentino. Cor – 141 min. A história do cinema : uma odisseia. Inglaterra, 2011. Dir. Mark Cousins. Cor – 15h. A idade do ouro (L’age d’or). França, 1930. Dir: Luis Buñuel. P&B, 1h3min. A mosca (The fly). EUA/Reino Unido/Canadá, 1986. Dir: David Cronemberg. Cor, 96min. A pele de vênus (La Vénus à la fourrure). França, 2015. Dir: Roman Polanski. Cor. 1h33min. A queda da casa de Usher (House of Usher). França, 1928. Dir: Jean Epstein. Mudo. P&B, 63min. A regra do jogo (La régle du jeu). França, 1939. Dir: Jean Renoir. P&B, 1h52min. 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