UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO MESTRADO EM DIREITO INTERINSTITUCIONAL – UFRN/MPRN SASHA ALVES DO AMARAL PAIS E FILHOS… E ESTADO: análise constitucional dos fundamentos e limites da intervenção estatal no direito à convivência familiar NATAL/RN 2016 SASHA ALVES DO AMARAL PAIS E FILHOS… E ESTADO: análise constitucional dos fundamentos e limites da intervenção estatal no direito à convivência familiar Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Curso de Mestrado Interinstitucional – UFRN/MPRN, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Direito. Orientador: Prof. Dr. Leonardo Martins NATAL/RN 2016 Catalogação da Publicação na Fonte. UFRN / Biblioteca Setorial do CCSA Amaral, Sasha Alves do. Pais e filhos… e Estado: análise constitucional dos fundamentos e limites da intervenção estatal no direito à convivência familiar / Sasha Alves do Amaral. - Natal, 2016. 276f. Orientador: Prof. Dr. Leonardo Martins. Dissertação (Mestrado em Direito) - Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Centro de Ciências Sociais Aplicadas. Programa de Pós-Graduação em Direito. 1. Convivência familiar - Dissertação. 2. Liberdade parental - Dissertação. 3. Autonomia da criança - Dissertação. 4. Desenvolvimento da criança - Dissertação. 5. Intervenção estatal subsidiária - Dissertação. 6. Juridicidade - Dissertação. 7. Solidariedade - Dissertação. I. Martins, Leonardo. II. Universidade Federal do Rio Grande do Norte. III. Título. RN/BS/CCSA CDU 347.63 SASHA ALVES DO AMARAL PAIS E FILHOS… E ESTADO: análise constitucional dos fundamentos e limites da intervenção estatal no direito à convivência familiar Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Curso de Mestrado Interinstitucional – UFRN/MPRN, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Direito. Orientador: Prof. Dr. Leonardo Martins Aprovada em: 29 de agosto de 2016 BANCA EXAMINADORA Prof. Dr. Leonardo Martins Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) Presidente Profa. Dra. Cristina Foroni Consani Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) 1ª Examinadora Profa. Dra. Maria Aparecida de França Gomes Universidade Potiguar (UnP) 2ª Examinadora NATAL/RN 2016 AGRADECIMENTOS Existe um provérbio africano que diz: é preciso uma aldeia inteira para educar uma criança. Pois bem. Tendo-me lançado nesta aventura que é a jornada acadêmica – a qual foi ainda mais desafiante com a chegada, no semestre final de qualificação e defesa da dissertação, de minha terceira filha, Helena –, cheguei à conclusão de que é possível estabelecer um paralelo com a frase acima para se afirmar que, sim, também foi preciso de uma aldeia para que eu pudesse escrever este trabalho. Sendo assim, não posso deixar de externar aqui meus agradecimentos àqueles que compuseram a minha pequena-grande tribo, que tanto me apoiou e inspirou ao longo dos meus dois anos de estudo como aluno do curso de mestrado em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Primeiramente, agradeço ao Ministério Público do Estado do Rio Grande do Norte (MPRN) por este projeto pioneiro e audacioso, que promoveu um rico e necessário encontro: do MP com o pensamento crítico da faculdade e da faculdade com os problemas sociais a cuja solução os promotores de justiça se dedicam todos os dias na sua lida ministerial. A minha querida turma de mestrado, feita de pessoas com autêntico prazer e respeito pela pesquisa. Para tudo há um tempo debaixo do céu, e fico muito feliz de ver os rumos que nossas trajetórias pessoais tomaram para que, enfim, vindos de diferentes partes do Brasil, tivéssemos a oportunidade de nos encontrarmos e nos apoiarmos na busca do equilíbrio – nada fácil de alcançar – entre os afazeres domésticos, o trabalho e a Academia. À querida Naide Maria Pinheiro, líder da nossa turma, uma apaixonada pela pesquisa, sempre disposta a se alegrar com nossas conquistas e nos auxiliar em nossos desafios – que, por sinal, não foram poucos. Ao querido amigo, forjado em meios às dores e delícias do mestrado – seminários em dupla, estágio docência e orientador compartilhado –, Mariano Lauria Paganini. Como diz o verso bíblico, é na angústia que se faz o irmão. Aos meus queridos colegas Olegário Gurgel Ferreira Gomes, pelas sempre ricas sugestões e reflexões compartilhadas; Márcio Soares Berclaz, um amigo sempre afetuoso e inspirador; Antônio Cláudio Linhares Araújo, mente instigada, que sempre trouxe um rico contraponto à voz da maioria; Eduardo Medeiros Cavalcanti, por, no início, ter-me despertado para buscar o meu grão de areia, sobre o qual se ergueria meu trabalho; Manoel Onofre de Souza Neto, solícito colega, desde sempre disposto a ajudar, de alguma forma, os que cruzam o seu caminho; André Mauro Lacerda Azevedo, cujo trabalho no Centro de Estudos e Aperfeiçoamento Funcional do MPRN permitiu-me a realização deste mestrado; Morton Luiz Faria de Medeiros, que participou da minha banca de qualificação, incorporando ricas sugestões à pesquisa; Helen Crystine Corrêa Sanches, querida colega de Santa Catarina e incentivadora, que, por pouco, não esteve na minha banca final; Millen Castro Medeiros de Moura e Flávio Okamoto, pela disponibilidade de, mesmo em meio às suas atarefadas vidas, ajudar-me na revisão do texto; à querida Renata Rivitti, que, sempre tão afetuosamente, compartilhou comigo de materiais e vivências na sua descoberta do direito norte-americano da criança, do adolescente e de família, o que refletiu muita luz para esta dissertação; a Aparecida França, por ter aceitado o convite e me dado o privilégio de participar de minha banca de defesa da dissertação, contribuindo para minha pesquisa com o seu olhar psi e sua sensibilidade; e a Nouraide Queiroz, minha revisora gramatical, pelo zelo e carinho com que sempre realizou seu trabalho. Amigos, em algum ponto desta jornada acadêmica, a ajuda de cada um de vocês foi fundamental para que eu completasse este trabalho. Aos meu amigos e colegas do Fórum Nacional de Membros do Ministério Público da Infância e Adolescência (Proinfância), com quem tanto aprendo e divido o fardo de ser promotor numa área tão fundamental – mas, paradoxalmente, ainda tão vilipendiada no Brasil – como o direito da criança e do adolescente: muitas das inquietações que me levaram a esta pesquisa nasceram de nossos debates presenciais ou virtuais. Aos professores que mais contribuíram para o meu pensamento crítico neste mestrado: Ricardo Tinoco de Góes, Cristina Foroni Consani e Leonardo Martins – a quem sou muito grato por ter-me ajudado a encontrar, no meio das minhas inquietações pessoais e profissionais, o objeto desta pesquisa. Ao meu pai Eduardo, a Noélia e Ian, com quem eu, minha esposa e filhas pudemos conviver mais na fase de escrita da dissertação, em Fortaleza/CE, para consolidar nosso apego e afeto. Aos meus irmãos Carol, Levi, Brenda, e à doce sobrinha Olivinha, alegria das priminhas e dos tios, cuja convivência, no primeiro semestre de 2016, foi uma das minhas principais inspirações para escrever cada uma destas linhas, tratando de um tema tão poderoso como o direito à convivência familiar. Aos meus amados sogros Eleazar e Leta, porque, mais uma vez, em um momento tão delicado para minha família, foram nossa fortaleza em Fortaleza e o abrigo dos sonhos de que eu, Karine, Cecília, Alice e Helena somos feitos. A Leni e Lorena, as maquinistas da nossa locomotiva, que cuidaram com tanto zelo e carinho da minha família durante a escrita desta dissertação. A minha querida mãe Célia Alves do Amaral, pessoa 100% coração, porque só cheguei onde cheguei por causa dela. Como eu fui abençoado nas minhas idas semanais à Natal para as aulas do mestrado, quando, então, eu voltava a ser o seu filho único – com muito mimo, com muito amor. Às quatro mulheres da minha vida: Karine, Cecília, Alice e Helena. Simplesmente, faltam-me as palavras para descrever o que vocês são para mim e em mim. Não consigo mais ser quem eu sou sem vocês – e isso me faz pleno. Por fim, ao Autor e Consumador da minha vida e fé, que me deu esta linda aldeia e a fez sempiterna. RESUMO A presente dissertação estuda os limites e fundamentos da intervenção estatal na relação de pais e filhos. Desde a Constituição de 1988, com a adoção pelo Brasil da Doutrina da Proteção Integral, a criança e o adolescente assumiram o status de sujeitos de direitos, o que trouxe consequências jurídicas e éticas para as suas relações sociais, a começar pela redefinição de seu espaço dentro do lar. Como credor de direitos na família, o petiz passa a ter o direito de ter suas opiniões direta e devidamente consideradas nos assuntos referentes a si, e a sua proteção jurídica pelo Estado não mais coincide, necessariamente, com as projeções de seus pais ou responsáveis. A intervenção do poder público junto à família tem apresentado, então, o seguinte desafio epistemológico: à medida que o Estado protege os interesses da infância, diminui-se o raio de liberdade dos pais na sua educação. Sendo, porém, a Lei Fundamental um documento de garantia de liberdades, a ação governamental sobre o lar deve considerar a pluralidade de liberdades ali presentes – no caso deste estudo, as de pais e filhos. Portanto, sem prejuízo da consideração individual dos interesses dos conviventes, necessária também uma abordagem comunitária do direito dos familiares, quando, então, o poder familiar e o direito à convivência familiar deixam de ter, respectivamente, referência unilateral a pais ou a filhos para assumir uma dimensão recíproca, fundada sobre a solidariedade. Por esse prisma, a solidariedade tem papel fundamental não como sucedâneo, mas complemento às teorias tradicionais da justiça e é necessário à ciência do direito o desenvolvimento de métodos que, ao invés de suplantá-la, dialoguem com a ética e a moral, a fim de reduzir o fardo jurídico que se atribui ao direito, de ser panaceia para as injustiças do mundo. Para a realização deste estudo, a metodologia utilizada é de uma pesquisa bibliográfica e documental, por meio de livros, artigos e análise da evolução da jurisprudência e legislação nos Estados Unidos e Europa, investigando a sua influência sobre o direito brasileiro de família e da criança e do adolescente. As conclusões e os conceitos trabalhados ao longo da pesquisa serão aplicados à luz de uma temática – a adoção intuitu personae – que bem ilustra a tensão entre as liberdades de pais e filhos e a intervenção governamental na família. Conclui-se então que, ao contrário do que uma abordagem individualista dos direitos leva a crer, o empoderamento da criança não é inversamente proporcional ao de seus pais, pelo contrário, quanto mais se expandem as liberdades desses, mais disporá o pequeno cidadão de processos e oportunidades para o seu pleno desenvolvimento. A atuação estatal deve-se dar de forma subsidiária à ação parental, a fim de resguardar a intimidade do lar e, quando necessário, dar o apoio adequado aos familiares para o desempenho de suas funções de cuidado e a garantia dos seus direitos. Palavras-chave: Convivência familiar. Liberdade parental. Autonomia e desenvolvimento da criança. Intervenção estatal subsidiária. Juridicidade e solidariedade. ABSTRACT The present master dissertation aims to analyze the limits and foundations of state intervention in the relationship between parents and children. Since the 1988 Constitution, with the adoption of the Integral Protection Doctrine, by Brazil, children and the teenager assumed a rights holder status, which brought legal and ethical consequences for their social relations, starting with the redefinition of its space inside the home. As a rights holder into the family sphere, the infant starts to be allowed to have their own direct opinions which should be duly considered in matters related to themselves, and their legal protection by the state do not necessarily corresponds to the projections of their parents or guardians. The intervention of the public authorities along the family has presented, then, the following epistemological challenge: as the state protects the interests OF children, decreases the radius of parents´ freedom in their education. However, being the Fundamental Law a liberties assurance document, the government actions on the family home should consider the plurality of freedoms presents there - in this particular case, those belonging to the parents and children. Therefore, without prejudice to the individual account of the interests of cohabitants, it is also necessary a communitarian approach of the family members rights, when the family power and the right to family life starts to not have unilateral reference to parents or children, and become to take a reciprocal dimension, based on solidarity. In this light, solidarity plays a key role, not as a substitute but as a complement to traditional legal theories, and is necessary for the science of law the development of methods that, rather than surpass it, hold discussions with the ethics and morality in order to reduce the legal burden assigned to the law, of being a panacea for the world injustices. In this master dissertation was adopted as a research methodology, the bibliographical and documentary research through books, articles and analysis of the jurisprudence evolution and legislation in the United States and Europe, investigating its influence on Brazilian family law and on child and adolescents law. Lastly, the conclusions and concepts developed throughout the research will be applied in the light of a thematic – the intuitu personae adoption – that illustrates the tension between the freedoms of parents and children and government intervention in the family. It concludes, then, that, contrary to what an individualistic rights approach suggests, the child's empowerment is not inversely proportional to their parents', but on the other hand, the more expands the freedom of these, more the small citizen will have at their disposal processes and opportunities to their full development. The state action must occur in a subsidiary manner to the parent action in order to safeguarding the intimacy of the home and, when necessary, provide adequate support to family members to perform their care functions and the guarantee of their rights. Keywords: Family living. Parental freedom. Child´s development and autonomy. Subsidiary state intervention. Juridicity and solidarity. LISTA DE SIGLAS CDC – Convenção sobre os Direitos da Criança CF – Constituição Federal CLT – Consolidação das Leis do Trabalho CNJ – Conselho Nacional de Justiça ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente EUA – Estados Unidos da América GCom – General Comment IDEA – Individuals with Disabilities Education Act ONU – Organização das Nações Unidas PLC – Projeto de Lei da Câmara PNAS – Política Nacional de Assistência Social PNCFC – Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do Direito de Crianças e Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária SINAJUVE – Sistema Nacional de Juventude STJ – Superior Tribunal de Justiça SUAS – Sistema Único de Assistência Social SUS – Sistema Único de Saúde UNESCO – Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura UNICEF – Fundo das Nações Unidas para a Infância USP – Universidade de São Paulo SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO………………………………………...................................... 11 2 O PRINCÍPIO DO INTERESSE SUPERIOR DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE: ORIGEM, EVOLUÇÃO, ESTRUTURA E DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS………………………………………......................... 16 2.1 O MELHOR INTERESSE DA CRIANÇA ENQUANTO INTERESSE DO PAI: A DOUTRINADO PATRIA POTESTAS.................................................... 17 2.2 O MELHOR INTERESSE DA CRIANÇA ENQUANTO INTERESSE DA MÃE: THE TENDER YEARS DOCTRINE......................................................... 20 2.3 O MELHOR INTERESSE COMO UM PARÂMETRO PRÓPRIO DA CRIANÇA............................................................................................................ 22 2.4 O MELHOR INTERESSE DA CRIANÇA COMO CRITÉRIO PERMISSIVO PARA A INTERVENÇÃO ESTATAL NA FAMÍLIA: A DOUTRINA DO PARENS ATRIAE................................................................................................. 24 2.4.1 O Menorismo no Brasil..................................................................................... 29 2.5 O MELHOR INTERESSE DA CRIANÇA COMO PRINCÍPIO PROTETIVO DO DIREITO INTERNACIONAL..................................................................... 32 2.6 A PROCLAMAÇÃO DA CONVENÇÃO SOBRE OS DIREITOS DA CRIANÇA: O INTERESSE SUPERIOR DA CRIANÇA COMO PRINCÍPIO GARANTISTA.................................................................................................... 36 2.7 DOIS DESAFIOS À UNIVERSALIZAÇÃO DOS DIREITOS DA CRIANÇA............................................................................................................ 44 2.7.1 O problema da falta de efetividade das normas de proteção aos direitos da criança…………………………………………………………………........ 45 2.7.2 O apego ao subjetivismo como forma de decidir questões relativas à criança…………………………………………………………………………. 48 2.8 O IMPACTO DO MOVIMENTO DE DIREITOS PARA A CRIANÇA NOS ASSUNTOS DA FAMÍLIA................................................................................. 52 3 AUTONOMIA DOS PAIS……………………………………………………. 55 3.1 O FEMINISMO E SUA INFLUÊNCIA PARA O MOVIMENTO PELOS DIREITOS DA CRIANÇA.................................................................................. 60 3.2 A EFICÁCIA HORIZONTAL DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS E SUA REPERCUSSÃO NO DIREITO DE FAMÍLIA.................................................. 62 3.3 A AUTONOMIA DOS PAIS EM QUESTÃO..................................................... 68 3.4 O DESENVOLVIMENTO DA TEORIA CONSTITUCIONAL DA LIBERDADE PARENTAL NOS EUA................................................................ 73 3.5 O PODER PARENTAL NA ORDEM JURÍDICA BRASILEIRA...................... 80 3.6 PRESSUPOSTOS METODOLÓGICOS E EPISTEMOLÓGICOS À DEFINIÇÃO DA ÁREA DE PROTEÇÃO DO DIREITO À CONVIVÊNCIA FAMILIAR........................................................................................................... 82 3.6.1 Método e parâmetro para análise da intervenção estatal: o processo de justificação constitucional segundo o critério da 85 proporcionalidade.............................................................................................. 3.6.2 O desafio epistemológico inerente à análise das intervenções estatais no direito à convivência familiar........................................................................... 88 3.7 A ÁREA DE PROTEÇÃO DO DIREITO À CONVIVÊNCIA FAMILIAR: ASPECTOS SUBSTANCIAIS E PROCEDIMENTAL....................................... 90 3.8 O STATUS NEGATIVUS DO DIREITO À CONVIVÊNCIA FAMILIAR........................................................................................................... 93 3.9 O PODER FAMILIAR RECÍPROCO E O CONCEITO DE INTEGRIDADE 96 FAMILIAR…………………………………………………………………… 4 AUTONOMIA E DIGNIDADE DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE………………………………………………......................... 105 4.1 A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA INFANTIL: ENTRE A AUTONOMIA E A PROTEÇÃO DA CRIANÇA……………………………... 110 4.2 A AUTONOMIA DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE EM QUESTÃO..... 114 4.3 O DIREITO AO DESENVOLVIMENTO NA TEORIA GERAL DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS……………………………………………....... 119 4.4 A CONTRIBUIÇÃO DE AMARTYA SEN PARA A ABORDAGEM DO DESENVOLVIMENTO E SUA REPERCUSSÃO PARA OS DIREITOS INFANTOJUVENIS............................................................................................ 126 4.5 A ÁREA (OU “AS ÁREAS”) DE PROTEÇÃO DO DIREITO AO DESENVOLVIMENTO INFANTOJUVENIL.................................................... 133 5 INTERVENÇÕES ESTATAIS NO DIREITO FUNDAMENTAL À CONVIVÊNCIA FAMILIAR…………………………………....................... 147 5.1 O DIREITO À CONVIVÊNCIA FAMILIAR E AS LIBERDADES NEGATIVAS E POSITIVAS.............................................................................. 153 5.2 O PRINCÍPIO DA SUBSIDIARIEDADE DA AÇÃO ESTATAL E A GARANTIA DO DIREITO À CONVIVÊNCIA FAMILIAR.......................... 157 A RELAÇÃO COMPLEMENTAR ENTRE A JURIDICIDADE E A 5.3 SOLIDARIEDADE PARA A GARANTIA DO DIREITO À CONVIVÊNCIA FAMILIAR.......................................................................................................... 166 5.4 A SOLIDARIEDADE E O ASPECTO PROMOCIONAL DO DIREITO À CONVIVÊNCIA FAMILIAR............................................................................. 175 6 ANÁLISE TEMÁTICA..................................................................................... 188 6.1 A ADOÇÃO INTUITU PERSONAE................................................................... 189 6.1.1 Escorço histórico sobre a colocação de crianças e adolescentes em lares substitutos.......................................................................................................... 197 6.1.2 A adoção intuitu personae pelo prisma procedimental dos direitos da criança................................................................................................................ 201 6.1.3 A ética e a política pública em torno do cadastro de adoção......................... 213 6.1.4 A adoção intuitu personae pelo ângulo dos genitores biológicos.................... 221 6.1.5 A delicada questão sobre a formação do vínculo afetivo entre a criança e os adotantes........................................................................................................ 230 6.1.6 O cadastro de adoção pelo prisma dos que esperam na fila dos pretendentes à adoção....................................................................................... 244 6.1.7 A titularidade e o conteúdo do direito à convivência familiar como parâmetro de análise dos casos de adoção intuitu personae………………... 247 7 CONCLUSÃO.................................................................................................... 251 REFERÊNCIAS................................................................................................. 258 11 1 INTRODUÇÃO Desde a promulgação da Convenção sobre os Direitos da Criança – e, no caso brasileiro, com a Constituição Federal de 1988, que acolheu integralmente os princípios desse tratado –, tem sido cada vez mais frequente a polarização entre as pretensões do Estado e as dos pais no que toca a decisões fundamentais sobre os direitos da criança e do adolescente. Como credor de direitos na família, o infante passa a ter uma posição de fala: o petiz passa a ter a prerrogativa de ter suas opiniões direta e devidamente consideradas nos assuntos referentes a si, e a sua proteção jurídica pelo Estado não mais coincide, necessariamente, com as projeções externas de terceiros, mesmo que sejam esses seus pais ou responsáveis. A intervenção governamental junto à família tem apresentado, então, o seguinte desafio epistemológico: à medida que o Estado protege os interesses da infância, diminui-se o raio de liberdade dos pais na sua educação. Esse cenário faz com que o direito de família seja um palco em que as concepções públicas e privadas sobre a infância hodierna digladiam-se: ora a criança e o adolescente são tidos, finalmente, como detentores de direitos que por muito tempo lhes foram negados; ora à juventude do mundo contemporâneo são dados direitos demais. A elevação de uma determinada categoria de pessoas a uma posição jurídica ascendente implica, para os integrantes deste grupo social, essencialmente, o direito de ter direitos, e isso termina por redefinir o seu papel na sociedade e, muitas vezes, no próprio espaço doméstico. Esse fenômeno – que se verificou não só com a criança e o adolescente no final do século XX, mas, antes deles, no final do século XVIII e início do século XIX, com a burguesia e os seus novos direitos liberais; o proletariado, com sua pauta de direitos sociais nos séculos XIX e XX, e a mulher, com a sua luta por igualdade e liberação ao longo do XX e XXI –, não raro, vem acompanhado do desconforto da classe tida por dominante e que, até então, desfrutava sem maiores questionamentos de sua posição privilegiada no meio social. No caso da criança, a posição normativa de destaque com que os mais novos adentraram o século XXI acarreta para o direito o desafio de acomodar as liberdades potencialmente em conflito de pessoas, pais e filhos, que dividem o mesmo espaço de convivência e cuja compreensão sobre as bases de sua relação melhor vê-se refletida nos preceitos morais, com os seus códigos de amor e solidariedade, do que propriamente nos parâmetros jurídicos, com a sua lógica de coercibilidade. Em muitos temas regulados pelo Estado, alega-se, a definição primeira sobre a medida cabível deveria competir aos particulares, dentro de sua visão de mundo, e não ao poder público. Por esse prisma, a 12 vulnerabilidade da criança deixa de ser compreendida como um conceito protetivo, para ser vista por seus responsáveis legais de soslaio, como se fosse uma cláusula genérica de permissibilidade irrestrita e atemporal do Estado no lar, um ticket para a intromissão governamental na família. A permissibilidade do uso de castigo físico na criação de filhos; os direitos relacionados à sexualidade infantojuvenil; as discussões de gênero na esfera pública; o corte etário para a matrícula em uma determinada série escolar; a observância ou não de um currículo ou grade específica de instituição do ensino fundamental ou médio; as decisões sobre a sujeição da criança e do adolescente a um determinado tratamento médico ou profilático (transfusão de sangue; aplicação de vacinas; métodos contraceptivos; aborto etc.); a liberdade de religião; a liberdade para se reunir e protestar contra o governo; a limitação para o acesso a determinados bens culturais ou de consumos… Esses temas, se em uma discussão entre adultos já suscitam não pouca polêmica, quando se tem como público-alvo a criança e o adolescente, ganham um tom candente, que dá azo a opiniões apaixonadas nas redes sociais e em fóruns públicos de discussão. A disputa, real ou simbólica, que daí nasce contribui para a refração social ao direito nos assuntos de família, fazendo com que os pais assumam um estado de resistência às políticas públicas de promoção dos direitos da criança e do adolescente. Contudo, é de se questionar se tamanha dissensão entre os setores público e privado encontra eco na legislação brasileira, bem como até que ponto o debate polarizado não tem mais contribuído para o ensimesmamento da família ou, ainda, para a desresponsabilização dos pais para com os direitos de seus filhos, sob uma equivocada compreensão de igualdade entre a maior e a menoridade. A relação tensionada entre o Estado e os particulares, no que diz respeito aos direitos infantojuvenis, nos inquietou suficientemente para dela fazer o nosso grão de areia, a partir do qual construímos esta pesquisa e de onde extraímos a seguinte pergunta que nos servirá de fio condutor doravante: quais são os limites e sobre que fundamentos o Estado pode intervir no espaço doméstico para promover, prover e proteger o direito fundamental à convivência familiar? Para responder a essa questão, necessário será, antes, definir no que consiste a área de proteção desse direito, bem como a quem se refere sua titularidade: aos filhos? Aos pais? a ambos os grupos? Neste trabalho, os capítulos 2 ao 5 tratam do desenvolvimento das bases teóricas e jusfilosóficas necessárias para a reflexão do papel do Estado junto às famílias, mais especificamente no que toca à relação de pais e filhos. O capítulo 6, por sua vez, trata de 13 aplicar os conceitos e institutos aqui elaborados a um tema específico do direito da criança e do adolescente a fim dar ao leitor a dimensão desta pesquisa em movimento, isto é, aplicada a um problema da vida real das pessoas. O capítulo 2 refere-se ao levamento do atual estado do debate doutrinário e legislativo em que esta pesquisa insere-se. Serão estudadas as raízes do direito da infância deste início do século XXI e, para tanto, necessário será se lançar na pesquisa sobre as origens e a evolução do parâmetro jurídico do melhor interesse da criança (best interest of the child) – positivado, na Lei 8.069, de 13 de julho de 1990, como o princípio do interesse superior da criança e do adolescente. É na compreensão histórica do melhor interesse, desde suas origens anglo-americanas nos séculos XVIII e XIX até sua incorporação nos tratados de direito internacional da infância do século XX, que residem muitas explicações sobre o papel sociocultural – e, daí, jurídico – cabível à criança e ao adolescente nas sociedades contemporâneas ocidentais. Dedicar-se-á ainda esse segundo capítulo a estudar a natureza e a estrutura do interesse superior do petiz tal qual delineadas no ordenamento jurídico brasileiro, para, por fim, levantar dois desafios atuais para a plena realização dos direitos da criança no mundo, correlacionando essa leitura ao cenário brasileiro e, ainda, ao objeto desta pesquisa, a relação paterno-filial. No capítulo 3, considerando que os direitos – e, assim, a autonomia – da criança e do adolescente apresentam íntima relação com sua sujeição ao poder externo que compete aos seus pais ou responsáveis, esta pesquisa dedica-se a aprofundar a análise em torno de um tema ainda tão carente de maior reflexão na academia brasileira: as bases constitucionais da liberdade parental. Para tanto, aproxima-se da discussão doutrinária e forense desenvolvida nos Estados Unidos, uma vez que, nesse país, tanto o debate científico, como o jurisprudencial têm raízes muito mais profundas e de longa data do que no Brasil, tendo, inclusive, já se integrado ao cotidiano da sociedade norte-americana. Em seguida, analisa-se se o conceito liberal de integridade familiar, tal qual desenvolvido na obra dos autores Joseph Goldstein, Anna Freud e Albert J. Solnit, encontra respaldo no ordenamento brasileiro e, em sendo afirmativa a resposta, de que forma a abordagem liberal dos direitos fundamentais pode contribuir para o desenvolvimento de uma teoria nacional do direito constitucional de família que mais una os interesses de pais e filhos do que os repila. A pergunta a ser respondida é: haverá um melhor interesse da família? Se sim, de que forma esse instituto deve ser compreendido para que se torne compatível com a noção de interesse superior da criança e do adolescente? 14 Uma vez estabelecidas as premissas teóricas para a análise da autoridade parental, será a vez de, no capítulo 4, dedicar-se ao estudo do tema da autonomia da criança e do adolescente. O desafio, que neste momento caberá, expressa-se na seguinte pergunta: Como falar da liberdade de um ser que é natural (nos seus primeiros anos de existência) e juridicamente (nos seus primeiros dezoito anos de vida) sujeito a um poder alheio, de seus pais ou responsáveis? Responder a essa questão leva ao desafio de situar a autonomia infantojuvenil em algum ponto entre os direitos de proteção e os de liberdade. Nessa parte do trabalho, o referencial teórico de Amartya Sen, com sua análise das liberdades pelo prisma do desenvolvimento, será de grande valia para fazer-se a ligação dos vértices em que se situam os direitos de provisão, proteção e participação do petiz, dentro dos quais a criança e o adolescente desenvolvem sua personalidade e cidadania. Estabelecidos os referenciais teóricos para a análise da autonomia dos pais e de seus filhos, será a hora de, no capítulo 5, apontarem-se os limites e fundamentos para a intervenção estatal no seio doméstico – e estudarem-se os limites do agir público nos lares é, por outro ângulo, investigarem-se os próprios limites do direito na regulação das relações de família. Necessário, então, será estabelecer as bases sobre as quais o Estado age, definindo de que forma a juridicidade do direito pode-se relacionar com a solidariedade da sociedade para potencializar as liberdades sociais e individuais e, no caso deste estudo, dos familiares, tanto enquanto agrupamento, como para cada um de seus membros individualmente considerados. A ideia de atuação estatal subsidiária e, ainda, o fundamento dos vínculos obrigacionais imperfeitos – em contraposição aos liames obrigacionais perfeitos do direito –, tal qual apresentado no pensamento filosófico de matiz kantiana de Onora O´neill, servirão de embasamento teórico para a construção científica nesta parte do trabalho. Ao final, no capítulo 6, aplicar-se-ão os institutos desenvolvidos ao longo da pesquisa a determinado tema do direito da infância e da juventude no qual a relação entre pais e filhos vê-se triangularizada pela intervenção estatal, acarretando não pouco debate no meio doutrinário e jurisprudencial pátrio. Trata-se do fenômeno das adoções intuitu personae, cujas raízes socioculturais seculares no Brasil têm levado ao grau máximo o tensionamento que se pode estabelecer entre as eficácias jurídica e social de um texto normativo. Com isso, pretendemos expor nossas elaborações teóricas e filosóficas à luz de uma temática concreta, o que melhor permitirá aferir a validade das premissas de que partimos e das conclusões a que chegamos. É a aproximação da ciência do direito aos problemas reais da sociedade que permite à produção acadêmica a sua relevância científica, a qual se pode obter tanto pela ratificação das hipóteses apresentadas como pelo seu falseamento. 15 A metodologia desta dissertação consiste no estudo da doutrina e jurisprudência estrangeiras – sobretudo dos Estados Unidos – na área do direito constitucional de família e dos diplomas internacionais do direito da criança e do adolescente, cotejando os dados dessa pesquisa externa com os parâmetros legislativos do direito brasileiro e aferindo em que medida o direito alienígena faz eco ou não com os nossos institutos jurídicos referentes à relação paterno-filial. Este trabalho encontra sua justificativa no fato de que a relação de pais e filhos não recebe a devida atenção na doutrina do direito brasileira, quer civilista, quer constitucional. Esse é o motivo, aliás, por que se reputa que muito do presente debate, em torno dos direitos infantojuvenis, apresenta-se hoje tão fragmentado no meio social, com discursos antagônicos, que ora exaltam o progresso da legislação brasileira – o problema não seria das leis em si mesmas, mas da falta de sua efetividade –, ora pretendem voltar aos tempos de outrora, quando a autoridade dos pais não era passível de questionamento. O debate pendular, entende- se, é tão somente o sintoma – um dos – da falta que a sistematização teórica e a fundamentação constitucional fazem ao direito da criança, do adolescente e de seus pais. E é nessa lacuna que este estudo encontra sua razão de ser. 16 2 O PRINCÍPIO DO INTERESSE SUPERIOR DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE: ORIGEM, EVOLUÇÃO, ESTRUTURA E DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS Discorrer sobre a construção de um ramo do direito voltado especificamente à infância, é, em boa parte, acompanhar a evolução do princípio do melhor interesse da criança (best interest of the child, no direito anglo-americano, seu berço) ou, tal como positivado entre nós no art. 100, parágrafo único, IV, do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), interesse superior da criança e do adolescente.1 Surgido na jurisprudência e doutrina inglesa e desenvolvido no direito norte- americano, o parâmetro do melhor interesse é dos institutos mais polêmicos do direito contemporâneo, em nome do qual muitas injustiças contra crianças e adolescentes já foram cometidas, haja vista, por exemplo, a máxima prender para proteger, que regia a prática judicial sob o manto do extinto Código de Menores2 e que, durante muitos anos no Brasil, afastou infantes de seus pais sem qualquer procedimento judicial do tipo contencioso, colocando os primeiros sob a tutela de instituições estatais ou filantrópicas.3 Entretanto, mesmo hoje, na vigência de uma nova sistemática de direitos, o melhor interesse ainda tem sido objeto de não poucas polêmicas, ao pautar decisões judiciais que, tomando por base esse mesmo princípio, chegam a resultados diametralmente opostos.4 Nesse contexto, a análise da evolução do standard do interesse superior da criança – desde suas origens anglo-americanas até sua incorporação nos diplomas de direito internacional – torna-se premente para qualquer pesquisa que tenha como objeto de estudos não só os direitos da criança e do adolescente, mas também os de seus pais, quando na relação com sua prole, pois, desse modo, poder-se-á compreender tanto o que esse princípio representa hoje, como também o que ele não pode voltar a ser: uma porta sem travas a permitir práticas arbitrárias por parte do Estado ou dos particulares contra os direitos fundamentais dos mais novos. 1 BRASIL. Lei 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Disponível em: . Acesso em: 27 jun. 2016. 2 BRASIL. Lei 6.697, de 10 de outubro de 1979. Institui o Código de Menores. Disponível em: . Acesso em: 27 jun. 2016. 3 Nesse sentido, rico é o relato produzido em: LEITE, Ligia Costa. Meninos de rua: a infância excluída no Brasil. São Paulo: Atual, 2001. 4 Um dos casos mais emblemáticos dessa divergência jurisprudencial na área da infância são as, assim denominadas, adoções intuitu personae sobre as quais discorre-se no capítulo 6 deste estudo. 17 2.1 O MELHOR INTERESSE DA CRIANÇA ENQUANTO INTERESSE DO PAI: A DOUTRINA DO PATRIA POTESTAS Se, no âmbito da ciência política, os filósofos do direito natural do século XVIII tiveram grande influência para desconstruir o Establishment do poder monárquico vigente,5 no âmbito das relações familiares, ao contrário, o paradigma do poder absoluto do patriarca permanecia intocado. 6 Isso porque o liberalismo, na sua vertente original, receoso das interferências estatais no âmbito da autonomia burguesa, foi hábil em separar o espaço público do privado, deixando a família à margem de reflexões então vigentes no âmbito da ciência política. Sendo assim, o lar permanecia um espaço sob o domínio e direção do homem e, dessarte, enquanto o direito natural servia para externamente ao lar questionar o despotismo no espaço público, entre quatro paredes consolidava, paradoxalmente, a figura do monarca- pai de família, senhor absoluto nos assuntos domésticos.7 No direito de família, tal compreensão cristalizou-se no instituto do patria potestas: os rumos do lar eram aqueles mesmos ditados pelo chefe de família, não havendo que se buscar uma compreensão doméstica a partir do prisma da mãe e, muito menos, de seus filhos. Na Inglaterra do início do século XVII, nas disputas familiares em torno da guarda de crianças, o conceito de patria potestas foi-se firmando de forma plena.8 Sendo o poder paterno uma decorrência da própria lei da natureza, não caberia ao direito questionar tal estado de coisas, mas sim preservá-lo e reproduzi-lo. Tal raciocínio implicava uma pretensa esfera de proteção da mulher e sua prole, a partir da qual não se haveria de buscar interesses que lhes fossem próprios, pois seus anseios amalgamavam-se e expressavam-se pelos de seu protetor, o homem. 5 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 6. ed. São Paulo: Malheiros, 1996. 6 Nesse sentido, Will Kymlicka, quando da análise da importância do movimento feminista para a filosofia política contemporânea, aduz que os liberais clássicos relutaram em julgar as relações familiares à luz de um padrão de justiça. Isso porque, entendia-se, a família era uma unidade biológica determinada e a justiça se referiria ao domínio público. As relações familiares, sendo privadas, seriam governadas pelo instinto ou pela solidariedade natural. KYMLICKA, Will. Filosofia política contemporânea. Tradução: Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 317. 7 Nesse sentido, a clássica obra de Robert Filmer, Patriarcha, de 1680, tida por sistematizadora do patriarcalismo então vigente, na qual se sustenta a teoria do poder monárquico e patriarcal sobre as mesmas bases, divinais. FILMER, Robert. Patriarcha, or the natural power of kings. London: Richard Chiswell, 1680. Contra essa visão John Locke, teórico do iluminismo, insurgir-se-ia posteriormente. Cf. LOCKE, John. Two treatises of government. Disponível em: . Acesso em: 6 mar. 2016. 8 Nesse sentido, KOHM, Lynne Marie. Tracing the foundations of the best interests of the child standart in american jurisprudence. Journal of law and family studies, v. 10, n. 2, 2008. Utah: University of Utah, p. 337-381. Disponível em: . Acesso em: 11 fev. 2016. 18 Essa concepção androcêntrica foi decisiva para alocar o conceito de melhor interesse da criança dentro da esfera de interesses de seu pai. Essa concepção estabeleceu-se claramente no direito anglo-saxão do século XVIII, vindo a ganhar novo prisma somente a partir da evolução da jurisprudência da então recém-independente nação norte-americana novecentista até que o melhor interesse fosse incorporado nos tratados internacionais de direitos da infância do século XX, conforme veremos a seguir.9 A influência do postulado do patriarcado sobre as cortes britânicas mostra-se historicamente em casos como o De Manneville v. De Manneville, de 1804. 10 Ali, a jurisprudência inglesa, em uma disputa em torno da custódia de uma criança de 11 meses, reconheceu ao pai o direito de guarda, retirando-a dos cuidados de sua genitora sob o argumento de que “o direito é claro: a custódia de uma criança, qualquer que seja sua idade, pertence ao pai, se assim ele escolher” (tradução livre).11 Em seus estudos, Lynne Marie Kohm aponta três casos do direito inglês do final do século XVIII (Rex v. Mansfield, de 1763; Blisset´s Case, de 1774 e Powel v. Cleaver, de 1789) que esboçavam uma tendência de se considerar os interesses da criança nas situações em que os interesses do pai francamente entravam em rota de colisão com os de sua prole – notadamente no terceiro caso, Powel v. Cleaver. Porém, como bem demonstra o caso De Manneville v. De Manneville, cronologicamente posterior, tais casos eram exceções que apenas confirmaram a regra do patriarcado na jurisprudência anglo-saxã, cujo parâmetro permanecia bem firme na mente dos magistrados britânicos. No mesmo sentido, Noblet e Reardon asseveram que a jurisprudência inglesa, apenas do final do século XVIII, teria chegado a mitigar a regra de common law do interesse primordial do pai, porém só nos casos cuja direção do genitor sobre seus filhos foi evidentemente imoral ou herética. Para os demais casos, vigia a presunção da supremacia dos interesses masculinos no lar.12 Do outro lado do Atlântico, porém, na recém-proclamada república americana de final do século XVIII e início do século XIX, a jurisprudência do direito de família, oriunda do direito inglês, evoluía em uma direção, que, apesar de não romper inteiramente com o 9 Cf. o estudo a respeito da gênese e evolução do standard do melhor interesse da criança na jurisprudência angloamericana feito por Lynne Marie Kohm. KOHM, op. cit. 10 KOHM, op. cit. 11 No original: “The law is clear, that the custody of a child, of whatever age, belongs to the father, if he chooses”. KOHM, op. cit., p. 356-358. 12 REARDON, Kathleen Kelley; NOBLET, Christopher T. Childhood denied: ending nightmare of child abuse and neglect. Los Angeles: Sage Publications, 2009. p. 91. 19 primado do patriarcalismo, relia-o, dando-lhe uma conformação mais condizente com os tempos que se descortinavam perante a novel nação estadunidense. Se, na esfera social, a Revolução Industrial do início do século XIX dava ao movimento liberal a força econômica de que precisava para fazer valer a visão e o modo de vida burgueses, no campo político, os anseios liberais levavam à queda dos regimes absolutistas, fazendo com que o direito dos cidadãos ganhasse proeminência nas Constituições dos novos regimes e freassem os avanços do Estado sobre a vida privada e o patrimônio dos cidadãos. Nessa nova ordem em que os direitos humanos pretendiam-se universais, 13 o pensamento judicial dos Estados Unidos passou a rever alguns dos seus tradicionais postulados. Era o reflexo das ideias circulantes na classe média desse país. Nascia então a tendência judicial do direito norte-americano denominada patriarcado judicial (judicial patriarchy), a qual se definia como “uma versão legal e refinada da distinção entre a autoridade masculina para governar o lar e a responsabilidade feminina para administrá-lo”.14 Baseado na ideia de que às mulheres casadas faltava a necessária independência intelectual e, daí, econômica do varão, era necessário conferir àquelas uma especial proteção contra os abusos de que fossem vítimas. Enquanto no século XVIII às esposas não eram conferidos direitos destacados de seu marido, “o direito de família do século XIX reconhecia às mulheres direitos na dependência – ou talvez, mais propriamente, direitos que não os de propriedade”.15 Isso levou o governo americano a lançar políticas ambivalentes nas temáticas de gênero: apesar de a mulher ganhar espaço na ordem legal no que se referia a “poderes domésticos” (domestic powers) isso não se traduzira em políticas externas ao lar ou em emancipação econômica.16 Para fazer valer a ideologia do patriarcado judicial, laborou então o Judiciário estadunidense sob o pálio da discricionariedade, podendo, assim, com maior liberdade, reler alguns dos postulados da common law britânica no direito de família. Era necessário se buscar 13 A declaração de direitos do homem e do cidadão, fruto da Revolução Francesa, proclamava em seu primeiro artigo “Os homens nascem e são livres e iguais em direitos. As distinções sociais só podem fundamentar-se na utilidade comum”. DECLARAÇÃO de direitos do homem e do cidadão, de 26 de agosto de 1789 (França). Universidade de São Paulo – USP, Biblioteca Virtual de Direitos Humanos. Disponível em: . Acesso em: 27 jun. 2016. 14 Tradução livre. No original: “The judicial patriarchy represented a refined and revised legal version of the distinction between the male authority to govern the home and the female responsability to maintain it”. GROSSBERG, Michael. Governing the heart: law and family in nineteenth century America. Carolina do Norte. The University of North Carolina Press, 1985. p. 298. 15 Ibid., p. 298. 16 Ibid., p. 300. 20 um novo local para a mulher, também uma cidadã, na família, sem contudo se atentar contra a ordem natural das posições sociais. Era necessário reler a posição feminina nos seus lares, porém de uma forma tal que o status quo do governo masculino permanecesse. E em que tema não teria maior poder a mulher senão na sua posição de mãe? A partir dessa constatação passou a ser revisto um dos pilares do patriarcado: aquele atinente à guarda e criação dos filhos nas ações de divórcio. Era o nascimento da Tender Years Doctrine (em uma livre tradução: Doutrina da Tenra Idade), que, ao desapegar os interesses da mulher dos de seu marido, levou a reboque a destacar deste também a posse sobre os interesses de seus filhos. Assim, a Tender Years Doctrine representou um movimento inicial para a construção de um novo parâmetro para a constituição do princípio do melhor interesse da criança. 2.2 O MELHOR INTERESSE DA CRIANÇA ENQUANTO INTERESSE DA MÃE: THE TENDER YEARS DOCTRINE Enquanto a questão da criança trabalhadora e sua exploração no âmbito laboral foi uma das primeiras preocupações decorrentes de todo o impacto social gerado pela Revolução Industrial na Europa – com seus processos de mecanização, de êxodo rural, de explosões demográficas nos principais centros urbanos etc. –, na recém-nascida república dos Estados Unidos do início do século XVIII, essa questão trabalhista tornou-se menos urgente para um número crescente de famílias. Ganhava, em vez disso, uma visão romântica que dava destaque a questões em torno dos cuidados maternos para com sua prole. 17 Tal fator contribuiu para a formulação de uma teoria no direito de família norte-americano em que a preferência da guarda, nas ações de separação, passava a ser dada à mulher nas ações cujo objeto fosse a custódia de crianças menores de sete anos. Nascia a Tender Year Doctrine, a qual representava uma ruptura com a anterior Doutrina do Patria Potestas. Dessarte, em 1809, a Suprema Corte do Estado de Carolina do Norte negou a um pai que vivia em ostensivo adultério o direito de guarda sobre sua filha, que vivia bem adaptada com sua genitora.18 Os argumentos foram construídos no sentido de que o parâmetro até então hegemônico da potestade paterna levaria a injustiças para com a menina. Apesar de não terem nominado um interesse superior da criança, o prisma da petiz foi devidamente considerado no 17 Cf. REARDON; NOBLET, op. cit., p. 87. 18 KOHM, op. cit. 21 caso concreto.19 Em 1815, em uma disputa em que, desta vez, o cônjuge virago era o acusado de adultério, a Suprema Corte do Estado da Pensilvânia, apesar de ter conferido ao pai o direito a uma guarda futura de suas filhas, manteve a prole com sua genitora em virtude da sua tenra idade.20 Três anos mais tarde, quando chamado a rever a guarda, uma vez que superada a pouca idade, o colegiado advertiu as partes a tomarem cuidado quanto a abruptas mudanças de custódia a fim de que fosse evitado “violento choque tanto para as crianças quanto para sua mãe”.21 Em 1834, a Suprema Corte do Estado de Massachusetts, em Commonwealth v. Wales Briggs, numa ação ajuizada pelo pai visando a retomar a guarda do filho que fora subtraído pela genitora em virtude dos alegados destemperos do marido, a corte alegou que, nas disputas de guarda, tanto as regras do common law – então calcadas sobre o postulado do patria protestas – como as da Tender Years Doctrine deveriam ter como principal diretriz o bem-estar da criança. A corte, porém, deixou claro que o melhor interesse não se tratava de um fator dissociado do interesse dos pais, mas sim de um parâmetro inerente ao poder familiar de que eles estavam revestidos.22 Finalmente, em 1840, no Estado de Nova Iorque discutiu-se uma causa, Mercein v. Barry, que terminaria na mais alta Corte dos Estados Unidos.23 No cerne da demanda estava a disputa pela guarda de uma bebê. No Tribunal a quo, o colegiado, na linha do que já se vinha esboçando na jurisprudência norte-americana, estabeleceu que os interesses dos pais deveriam ceder diante do bem-estar da criança nas disputas de guarda. A Suprema Corte federal, por sua vez, ao analisar o caso em 1847, diferenciando os direitos de bem-estar (welfare rights), de conteúdo provisional, dos de liberdade (liberty rights), vinculou o standard do melhor interesse aos primeiros. E, no caso, em virtude da tenra idade da criança e dos cuidados que sua criação inspiravam naquela fase de sua vida, a petiz permaneceu com sua genitora.24 O caso Mercein, teve, portanto, dois grandes significados. Em primeiro lugar, sacramentou a jurisprudência que se vinha desenhando nas cortes estaduais dos EUA que começava a chamar a atenção para os interesses da criança nas lides envolvendo adultos. Enquanto uma nova visão, para as questões em torno do petiz, evoluía nos Estados Unidos do 19 KOHM, op. cit., p. 359. 20 KOHM, op. cit. 21 KOHM, op. cit., p. 359; 360. 22 KOHM, op. cit., p. 362; 363. 23 KOHM, op. cit. 24 KOHM, op. cit., p. 363-365. 22 século XIX, no mesmo período na Inglaterra, os tribunais, ainda presos ao parâmetro do patria potestas, “aplicavam as regras do common law perto do absurdo”, distanciando-se do senso comum de justiça que clamava pela reforma daquelas normas.25 Em segundo lugar, Mercein lançou as bases para o desenvolvimento de uma teoria constitucional que comporia a identidade americana do direito da criança, de lógica provisional, pautada sobre os direitos de bem-estar (welfare rights), mas não nos de liberdade. Dessa forma, privilegiavam-se os anseios da criança na lide, sem, contudo, desapegá-los dos interesses de seus pais, uma vez que eram esses os primeiros a garantir o cuidado infantil. Mesmo que se atente para a crítica de alguns autores a essa concepção welfarista do melhor interesse,26 o desenvolvimento da Tender Years Doctrine contribuiu, de todo o modo, para a constituição de um novo parâmetro para o melhor interesse, permitindo que o direito da mulher e da criança estabelecesse um ponto de inflexão no pensamento andrógeno até então vigente no direito de família anglo-americano, o que exerceria uma considerável influência por longos anos na jurisprudência norte-americana do direito de família.27 2.3 O MELHOR INTERESSE COMO UM PARÂMETRO PRÓPRIO DA CRIANÇA Nos Estados Unidos de meados do século XIX, o melhor interesse foi-se gradualmente constituindo como um parâmetro referido à criança, apto a guiar o juiz na análise do caso concreto. Como informam Noblet e Reardon: A lei da parentalidade mudou da perspectiva de enfatizar os direitos de propriedade do pai (e, posteriormente, de ambos os pais) sobre seus filhos para a de ver as crianças como pessoas individualizadas com interesses e 25 KOHM, op. cit., p. 363. 26 Nesse sentido, para Dayana Wright, a concepção welfarista do melhor interesse mostrou-se incapaz de separar o desejo da criança do de seus pais. Tería aí, então, mais uma fachada do que uma efetiva mudança na concepção do infante: na verdade, era do querer dos adultos de que tratava esse melhor interesse. WRIGHT, Dayana C. Manneville v. De Manneville: rethinking the birth of custody law under patriarchy. Disponível em: . Acesso em: 5 abr. 2016. p. 247-249. 27 Como informa Kohm sobre a influência da Tender Years Doctrine nas ações de guarda dos Estados Unidos: “A preferência paterna se dissipou no final dos anos 1890 ante a presunção de que as crianças, na sua tenra idade, precisam mais de suas mães (do que de seus pais) […] Essa presunção, que só poderia ser superada pela evidência de inidoneidade, continuou a ser a regra em muitas jurisdições até o final dos anos 1980” (tradução livre). No original: “Paternal preference completely gave way in late 1890s to the presumption that children need their mothers more (than fathers) in tender years. […] This presumption, which could only be overcome by evidence of unfitness, continued to be the law in many jurisdictions until the 1980s”. KOHM, op.cit., p. 371. A partir da década de 1980, a visão de igualdade entre os gêneros passou a equalizar as questões de guarda da criança, dando-se, então, preferência não mais a um genitor conforme seu sexo, mas sim ao que efetivamente desempenhasse o papel de primeiro cuidador do petiz (primary caregiver). KOHM, op.cit., p. 372. 23 direitos. Ademais, desde a metade do século XIX, as decisões em torno da guarda, de forma crescente, passaram a se basear no melhor interesse da criança.28 (Tradução livre) A visão da Tender Years Doctrine continuou tendo forte influência sobre os magistrados americanos, muito do que se justifica pelo fato de o direito de família da época ser uma área tão dada a discricionariedades, tornando-a mais suscetível às visões de mundo e ideologias do julgador. Porém, cada vez mais era o prisma dos cuidados da criança que ganhava relevo, em detrimento de uma postura apriorística em favor de quaisquer de seus ascendentes. United States v. Green (1824) é tido como um dos primeiros casos da jurisprudência ianque a trazer parâmetros próprios de análise da lide pelo prisma da criança.29 A Suprema Corte de Rhode Island não deu guarida ao direito de o pai ter a custódia de seu filho, pois, apesar de, em termos genéricos, o genitor ter a potestade da guarda sobre seus descendentes, na análise do caso concreto, tal direito não se fazia absoluto, pois correlato ao dever de proporcionar o bem-estar de sua prole. Na decisão, o colegiado apontou, ainda, que, se o infante fosse de suficiente capacidade, deveria também ter sua opinião considerada para balizar a decisão do magistrado.30 Assim, à medida que o prisma do melhor interesse do petiz evoluía, o mesmo ia-se incorporando à lógica jurisprudencial norte-americana e, assim, institucionalizava-se. Nesse sentido, a lógica da proteção primordial da criança formatou o primeiro estatuto de adoção elaborado nos EUA, no Estado de Massachussets, em 1851.31 Com isso, o instituto da adoção mudava sobremodo sua feição clássica, pois dali em diante tratar-se-ia precipuamente do cuidado da criança, e não mais, como ocorrera no direito romano, da mera preocupação de perpetuar, pela transmissão hereditária, o patrimônio de um adulto. O conceito de melhor interesse da criança permitiu que a colocação em família substituta visasse não mais ao bem-estar da família (no seu aspecto patrimonial), mas sim aos interesses 28 No original: “The law of parenthood has shifted from emphasizing fathers’ (and later both parents’) property rights over children, toward seeing children as individual persons with interests and rights. Furthermore, that since the mid 19th century, custody decisions have increasingly been based on the best interests of the child”. REARDON; NOBLET, op. cit., p. 43. 29 KOHM, op. cit. 30 KOHM, op. cit., p. 362. 31 A informação é trazida em: KOHM, op. cit., p. 366, e devidamente confirmada na página em inglês do Wikipedia sobre o tópico adoption (adoção), bem como na sítio eletrônico do Adoption History Project (Projeto da História da Adoção), da Universidade de Oregon, nos Estados Unidos. Links disponíveis, respectivamente nas páginas: . e . Acesso em: 23 mar. 2016. 24 essenciais da criança, no que toca à sua vida e personalidade.32 Como visto no item anterior, a lógica que inspirou a configuração do melhor interesse nos Estados Unidos foi a da proteção, e não a da liberdade da criança, e isso implicava duas questões. A primeira era que tal concepção tornara o melhor interesse, apesar de agora visto pelo prisma da criança, praticamente indissociável do de um adulto-cuidador – em regra, seus pais –, pois a esse incumbiria em primeiro plano a proteção indispensável ao desenvolvimento de sua prole. Como veremos no capítulo 3 deste estudo, tal tradição explica em boa parte por que, ao longo do século XX, a jurisprudência americana desenvolveu-se no sentido de privilegiar a autonomia parental, sendo, porém, resistente em conferir à criança e ao adolescente um status próprio de titulação de direitos, especialmente no que se refere aos direitos de liberdade. Em segundo lugar, atribuir ao melhor interesse uma conotação eminentemente protetiva terminou por reaproximar o Estado das questões domésticas, na medida em que caberia aos agentes governamentais garantir, em última instância, a vida e a liberdade dos cidadãos, quando isso não ocorresse de forma espontânea no lar, com especial enfoque para o interesse das pessoas tidas por incapazes, tal como uma criança. Era o ressurgimento, no início do século XX, da Doutrina do Parens Patriae como uma face bem específica para as problemáticas da infância, conforme veremos a seguir. 2.4 O MELHOR INTERESSE DA CRIANÇA COMO CRITÉRIO PERMISSIVO PARA A INTERVENÇÃO ESTATAL NA FAMÍLIA: A DOUTRINA DO PARENS PATRIAE Fazendo uma breve retrospectiva histórica, constata-se que a Doutrina do Parens Patriae deita raízes no feudalismo, quando, diante da morte do servo, os filhos desse e sua terra passavam ao controle do senhor feudal.33 Em tais ocasiões, cabia à Coroa a proteção dos 32 Em seu estudo sobre a evolução do instituto da adoção nos Estados Unidos, Fred L. Kuhlman aduz: “A lei romana reconhecia a adoção como uma método conveniente de prover a família de um herdeiro para salvá-la da extinção e perpetuar os direitos de honras religiosas da família. [...] É de se notar que os romanos usavam a adoção como um artifício para promover o bem-estar da família enquanto unidade mais do que o bem-estar da criança ou da sociedade em geral”. No original: “The Roman law recognized adoption as a convenient method of providing a family heir to save the family from extinction and to perpetuate the rights of family religious worship. […] It should be noted in passing that the Romans used adoption as a device to promote the welfare of the family as a unit rather than the welfare of the child or of the society in general”. KUHLMAN, Fred L. Intestate Succession by and from the Adopted Child. Washington University Law Review, v. 28, n. 4, jan. 1943, p. 220-250. Disponível em: . Acesso em: 23 mar. 2016. 33 Cf. LOWE, N; WHITE, R. Wards of the Court. 2. ed. Londres: Barry Rose, 1986.el em: Disponív em: . Acesso em: 6 abr. 2016. BARTON, Chris; 25 bens dos órfãos abastados contra o eventual e indevido mau-uso por parte de guardiões ou outros parentes. Em caso de morte do suserano, assumia a realeza os cuidados da pessoa e o patrimônio do infante, o que terminava sendo um negócio bastante lucrativo para o Estado. Entre a Idade Média e a atualidade, na Inglaterra dos séculos XVIII e XIX, por influência da filosofia política do utilitarismo,34 começou-se a desenvolver a preocupação com a criança na qualidade de futuro adulto, participante de uma sociedade organizada. Nessa perspectiva, formar adequadamente os de menor idade deixava de ser uma preocupação exclusiva dos pais, para ser também, em última instância, do próprio Estado. Dessarte, as Doutrinas do Patria Potestas e do Tender Years passaram a dividir espaço com a atuação protetiva do Estado junto a criança, uma vez constatada a inadequação parental para cuidar de sua prole. O poder público deteria então o poder de, em nome dos interesses últimos da nação, intervir na família para proteger seus futuros cidadãos. Era a Doutrina do Parens Patriae (do latim, que significa Pai da Pátria), pela qual o Estado levantava-se como o grande tutor da nação – ou, nos termos de Noblet e Reardon, uma espécie de Superpai.35 Entretanto, a tutela dos hipossuficientes pelo Estado deparava-se, no espaço doméstico, com os limites decorrentes da aversão burguesa à invasividade pública sobre os assuntos de família. No âmbito jurisdicional, tal receio liberal fez com que, paralelamente à perda de poder dos regimes absolutistas europeus durante o século XVIII, estabelecessem-se novos postulados teóricos para o processo, calcados agora sobre a tradição civilista da DOUGLAS, Gillian. Law and Parenthood. Londres: Butterworth, 1995. p. 324. HIMES, Jay L. State Parens Patriae Authority: the evolution of the state attorney general’s authority. Miami, Flórida: The Institute for Law and Economic Policy Symposium Protecting the Public: The Role of Private and Public Attorneys’ General, 2004. Disponível em: . Acesso em: 6 abr. 2016. 34 Em sua formulação original, a doutrina utilitarista, de matriz aristotélica (por prever a proeminência da comunidade política sobre suas partes individuais, os cidadãos) e sistematizada inicialmente por Jeremy Bentham (1748-1832) no final do século XVIII e desenvolvida por John Stuart Mill (1806-1873) ao longo do século XIX, vê na utilidade “o princípio que estabelece a maior felicidade de todos aqueles cujo interesse está em jogo, como sendo a justa e adequada finalidade da ação humana, e até a única finalidade justa, adequada e universalmente desejável”. Desse modo, no utilitarismo, a soma do número de interesses individuais afetados “constitui a circunstância que contribui na maior proporção para formar a norma em questão – a norma do certo e do errado”. ARAÚJO, Cícero. Bentham, o Utilitarismo e a Filosofia Política Moderna. In: BORON, Atilio A. Filosofia política moderna: de Hobbes a Marx. São Paulo: USP; DCP-FFLCH; CLACSO, 2006. Assim, pela quantificação dos interesses majoritários, tem-se a configuração da melhor regra de conduta a ser observada tanto pelos governantes como pelos governados. Daí porque Will Kymlicka aduz que “o utilitarismo, na sua formulação mais simples, afirma que o ato ou procedimento moralmente correto é aquele que produz a maior felicidade para os membros da sociedade”. KYMLICKA, op. cit., p. 11. 35 NOBLET; REARDON, op.cit., p. 93; 94. 26 codificação e do Estado de Direito.36 Nesse cenário, o temor pela interferência do Estado (aqui incluso o Estado-Juiz) sobre a liberdade dos particulares era afastado pelo primado exegético da legalidade: aos magistrados era conferido tão somente o papel de serem a boca da lei, despidos de capacidade criativa que lhes permitisse adequar as cláusulas genéricas das regras de direito às particularidades do caso concreto. Nos Estados Unidos, contudo, o domínio judicial era uma realidade fundamental no século XIX. A desconfiança do cidadão americano do século XIX para com o Estado mostrava-se especialmente para com os poderes Executivo e Legislativo – este inicialmente inerte no âmbito do família –, sendo, contudo, o Poder Judiciário o local de preservação do status libertatis dos individuos, em que os direitos consagrados na Bill of Rights seriam tutelados contra a atividade invasiva do Estado.37 Nesse contexto, os juízes americanos eram vistos como os legítimos representantes do Estado para regular os assuntos do coração na família norte-americana. Havia uma crença dos tribunais, “na legitimidade, inclusive superioridade, do método de decisão da commmon law como uma fonte de políticas governamentais”.38 Em sua atividade, os magistrados estadunidenses extraíram então o seu poder regulatório dos princípios da common law para, evoluindo o conceito de parens patriae, usarem amplamente da sua discricionariedade a fim de ditar as regras do direito de família. A análise era caso a caso, de forma que se permitisse o seletivo influxo de novas ideias no direito americano, sem importar, porém, numa alteração significativa do status quo de uma sociedade ainda patriarcal, tal como se viu com a construção da Tender Years Doctrine. No direito de família norte-americano a discricionariedade era, pois, bem-vinda.39 Durante a chamada Era do Progresso (Progressive Era), ocorrida nos Estados Unidos de 1890 a 1920, nasce o movimento denominado Save the Children (Salvar as Crianças), tendo como foco, sobretudo, os infantes oriundos de famílias carentes. Em virtude das necessidades de um país em desenvolvimento, a questão criança passa a ser um tema de primeira ordem para os EUA, e a Doutrina do Parens Patriae ressurge como um reforço à 36 Cf. ALVIM, Arruda. A evolução do direito e a tutela de urgência. In: ARMELIN, Donaldo (coord.). Tutelas de urgência e cautelares. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 152-175. 37 Cf. GROSSBERG. op. cit., p. 288. 38 GROSSBERG. op. cit., p. 290. 39 Conforme afirmara Joel Prentiss Bishop, advogado com profícua atividade literária, na segunda metade do século XIX nos EUA, ao atacar a intrusão legislativa no direito de família em detrimento da common law e do trabalho das cortes: “a experiência prova que os hábitos fazem a lei, não a lei os hábitos” (tradução livre). No original: “Experience proves that the habits make the law, and not the law the habits”. GROSSBERG, op. cit., p. 290. 27 atividade tutora do Estado. O conceito de melhor interesse da criança estende-se às crianças pobres, porém agora com diferentes implicações práticas, tal como decidir com quem a ela iria morar. Segundo Noble e Reardon: Assumindo esse papel o Estado, o Estado finalmente cindiu a relação entre pais e filhos decorrente da common law. […] O direito de custódia, outrora absoluto, poderia agora ser cindido se o pai ou mãe fizessem mal uso de sua autoridade de forma abusiva ou negligente. Finalmente, a obrigação de educar passa dos pais para o Estado. O professor público, não mais o pai ou a mãe, iria controlar a educação da criança e uma boa parte da sua socialização.40 (Tradução livre). A ação protetora do Estado ganha então uma força sem precedente junto às famílias carentes. A preocupação com o bem-estar dos mais novos configura as políticas voltadas à criança, e os agentes públicos passam a agir em nome deste Superpai que é o Estado, intervindo com muito mais vigor junto aos lares de famílias qualificadas como disfuncionais. Ocorre, porém, que tal agir terminava por ter como foco primordial as famílias desfavorecidas economicamente, fazendo com que a ação estatal se tornasse higienista. Nessa medida, a pobreza, sendo motivo de exclusão social, tornara-se também causa de marginalização jurídica, com muitas crianças sendo afastadas de seus lares em virtude de uma suposta inadequação dos seus genitores para com o desempenho do seu papel parental. Porém, verificou-se que tais afastamentos muitas vezes não ocorriam por questões de pura inidoneidade moral, mas, sobretudo, por causas relacionadas ao desamparo social das famílias de baixa renda.41 E, mesmo quando o Estado provia suporte econômico ao lar, mais ainda o poder público via-se livre para intervir no seio doméstico “ditando estritos padrões de comportamento para a maioria das famílias pobres”.42 As ações governamentais em direção à família “não eram necessariamente uma dádiva do Estado para o bem-estar da criança”, mas antes “uma série de políticas pelas quais o Estado poderia legitimamente intervir na família, de forma a controlá-la”.43 O discurso dos direitos da criança, antes de implicar uma atitude garantista para com os cidadãos no lar, significava um mecanismo de controle para os indigentes e uma espécie de catálogo de 40 No original: “In assuming this role, the state finally shattered the common law relationship between parents and children. […] The right to custody, once absolute, could now be severed if the father or mother misused their authority in an abusive or neglectful manner. Finally, the obligation to educated passed from the parent to the state. The public school teacher, not the father or mother, would control the child’s education and good deal of the child’s socialization”. REARDON; NOBLET, op. cit., p. 94. 41 Cf. REARDON; NOBLET, op. cit. 42 REARDON; NOBLET, op. cit., p. 100. 43 COCKBURN, Tom. Rethinking children´s citizenship. Basingstoke: Palgrave Macmillan, 2013. p. 156. 28 deveres da família, dentro da qual o filho tornara-se um “precioso peso, um pretexto e um refém”.44 Desse modo, num campo da vida em que as relações sociais entre os particulares eram guiadas pelo coração, o método de decisão dos juízes também se deixou guiar pelos sentimentos, e as partes passavam a laborar nos autos com fundamentações que nem sempre primavam pela técnica, mas tinham antes um apelo mais sentimental, tão somente para sensibilizar o julgador de acordo com sua visão de mundo. Nesse sentido, Joanne Ross Wilder critica o fato de tanto subjetivismo ter legado ao parâmetro do melhor interesse da criança uma natureza amorfa no direito norte-americano: Todo litigante, na área de família, sabe que o juiz é a mais importante testemunha em qualquer ação que discuta a guarda de uma criança e se esforça severamente (o litigante) para identificar, entender e destacar as influências que o magistrado traz para o seu processo de elaborar uma decisão. Isso pode não ser uma situação desejável, mas é a realidade.45 (Tradução livre). Sendo o direito norte-americano herdeiro de uma tradição que se apegava ao direito natural e aos costumes na regulação das relações de família, as decisões judiciais nos Estados Unidos construíram-se sob uma diretriz aberta, cuja concreção fazia-se mais com base na prudência dos juízes do que em uma elaboração dogmática em torno de um sistema de direitos – e isso mais ainda potencializava os danos à criança e aos seus pais, sobretudo, os que viviam à margem da sociedade. No que toca às famílias de classes abastadas, a intervenção estatal mostrava-se mais ponderada, ocorrendo principalmente diante da abertura espontânea do lar pelos pais nos casos de divórcio e disputa pela custódia dos filhos. Nesse outro contexto, diante do maior acesso das partes aos bens da vida necessários para a constituição de um efetivo contraditório, constituiu-se, ao longo do século XX, uma sólida teoria constitucional do poder parental na jurisprudência da Suprema Corte dos EUA, na qual se privilegiava (e ainda se o faz) a não- intervenção estatal em detrimento da autonomia dos pais na condução do lar, conforme discorreremos no próximo capítulo. Tudo isso fez com que o direito americano de família da virada do século XIX e 44 MEYER, Philippe. The Child and the State: The Intervention of the State in Family Life. Cambridge: Cambridge University Press, 1977. p. 11. 45 No original: “Every custody litigator knows that the judge is the most important witness in any custody case and strives hard to identify,understand and address the biases which the judge brings to the decision-making process. While this may not be a desirable situation, it is a reality”. WILDER, Joanne Ross. Religion and best interest in custody cases. Journal of the American Adacemy of Matrimonial Lawyers, v. 18, 2002, p. 214; 215. Disponível em: . Acesso em: 24 mar. 16. 29 primeira metade do século XX fosse “um amálgama de complexas, e não raro contraditórias, políticas forjadas no meio de inconstantes preocupações voltadas a governar cada aspecto da vida familiar – do namoro a questões testamentárias”.46 A visão estigmatizante da pobreza começou, aos poucos, a ser combatida por reformadores do movimento Save the Children. Em 1909, a Casa Branca, por iniciativa do então presidente Theodoro Roosevelt, promoveu a primeira Conferência sobre o Cuidado de Crianças Dependentes e declarou que a pobreza, por si só, não seria motivo para se afastar uma criança de sua família.47 Com isso, colocavam-se limites à ação do Estado, na mesma medida em que se adensava o conteúdo do melhor interesse, informando até onde poderia ir sua concretização. De todo modo, ao longo dos séculos XIX e XX, a interferência estatal na família estadunidense, por meio do Judiciário, cresceu exponencialmente, ora em virtude de uma pauta de proteção às crianças (sobretudo, as vindas de famílias carentes), ora em virtude mesmo do aumento das taxas de divórcio ocorrido a partir da edição de leis admitindo os divórcios sem culpa (no-fault divorce) na segunda metade do século XX nos EUA. 48 Ganhava, assim, importância a discussão sobre o que implica e no que consiste o melhor interesse da criança. 2.4.1 O Menorismo no Brasil O Brasil, ainda que com uma tradição político e institucional bem distinta da dos Estados Unidos – cujas diferenças remontam desde os tempos coloniais, no qual os dois países viveram modelos distintos de colonização (do tipo exploratório, no primeiro; de povoamento, no segundo) –, presenciou na sua história para com a criança e o adolescente a aparição de um movimento, denominado Menorismo, com fortes semelhanças ao que viveram os Estados Unidos do início do século XX. 46 Tradução livre. No original: “American family law was not easily reducible to a set of clear and certain propositions. It was an amalgam of complex, often contradictory policies devised amid shifting concerns to govern every aspect of family life from courtship to probate”. GROSSBERG, op. cit., p. 287;288. 47 Nesse sentido, cf. a página da Universidade de Oregon sobre a história da adoção nos Estados Unidos. Disponível em: . Acesso em: 26 mar. 2016. 48 Noblet e Reardon informam que, a partir dos anos 1960 – quando os estados americanos começaram a admitir os divórcios sem culpa (no-fault divorce) –, verificou-se um elevado incremento nas taxas de divórcio na família americana. A intervenção do Estado no lar então atingiu seu grau máximo. Não mais, porém, por conta da pobreza ou da hipossuficiência de uma das partes, mas sim porque os agentes públicos eram chamados a decidir os rumos familiares. Segundo os autores, uma criança nascida em 1990, nos EUA, teria aproximadamente 50% de chance de terminar em numa corte de justiça para que se decidisse onde e com quem ela viveria dali pra frente. REARDON; NOBLET, op. cit., p. 100. 30 As proximidades entre os modelos brasileiro e norte-americano davam-se notadamente no que se refere à forma de controle judicial das famílias carentes e dos jovens marginalizados. Mesmo não sendo o escopo deste trabalho estudar as origens e as influências ainda hoje exercidas entre nós pelo Menorismo,49 é interessante, inda que brevemente, cotejá- lo com o direito estadunidense e verificar o papel que o princípio do melhor interesse desempenhou entre nós para a elaboração de uma teoria da decisão judicial no direito da criança e do adolescente. O Menorismo ganhou expressão jurídica no Brasil com o Código Mello Mattos, de 1927,50 e posteriormente com o Código de Menores, de 1979.51 Tratava-se de uma corrente do direito desenvolvida sob o aporte teórico da Doutrina da Situação Irregular, por meio da qual a marginalização social gestada ainda nos tempos escravagistas institucionalizou-se no ordenamento jurídico pátrio. Viviam os infantes brasileiros debaixo de um fosso legislativo que separava as crianças de classes abastadas das oriundas de famílias carentes: para as do primeiro grupo, o Código Civil; para as do segundo, o Código de Menores.52 Nos arquétipos sociais, consolidou-se a figura do menor, ser em desenvolvimento e à margem da sociedade, passível de vigilância e correção.53 Apesar de o Código de Menores prever em seu artigo primeiro “medidas preventivas” para “todo menor de dezoito anos, independente de sua situação”, ao se analisar acuradamente essa lei, percebe-se que ali não se positivava nenhuma medida com tal característica, mas tão somente paliativos. Sobretudo, não havia nesse diploma o que seria o instituto de prevenção por excelência em uma democracia: um rol de direitos consagrados no 49 Para o aprofundamento do estudo sobre o Menorismo, sua relação com o movimento Save The Children, suas raízes e influências no Brasil, cf. RIZZINI, Irene. O século perdido: raízes históricas das políticas públicas para a infância no Brasil. São Paulo: Cortez, 2011. 50 BRASIL. Decreto 17.943-A, de 12 de outubro de 1927. Consolida as leis de assistência e proteção a menores. Disponível em: . Acesso em: 27 jun. 2016. 51 BRASIL. Lei 6.697, de 10 de outubro de 1979... 52 Já em seu art. 1º, I, o Código de Menores destacava seu público alvo: “Art. 1º Este Código dispõe sobre assistência, proteção e vigilância a menores: I - até dezoito anos de idade, que se encontrem em situação irregular”. 53 Sobre a construção social e jurídica em torno do conceito de menor, assim ministra Ângela Pinheiro: “Até o início do século XX, o termo ‘menor’ utilizado, no Brasil, no plano jurídico, para fazer referência a quem não havia atingido a maioridade. É com a formulação de uma legislação específica para os menores de idade, o Código de Menores de 1927, que a nominação ‘menor’ é institucionalizada, consagrando-se como uma classificação com forte teor discriminatório. Refere-se basicamente à infância e à adolescência pobres, enquadrando os seus integrantes em uma das seguintes subcategorias: carente, abandonado ou infrator. ‘Menor’ é, portanto, um conceito institucionalizado a partir de uma lei, o Código de Menores, e que institui exclusões e práticas jurídicas, por meio da criação de instituições e da formulação de políticas públicas”. PINHEIRO, Ângela. Criança e adolescente no Brasil: por que o abismo entre a lei e a realidade. Fortaleza: Editora da UFC, 2006. p. 70. 31 ordenamento jurídico. Dessarte, diferentemente do que faz atualmente o ECA – que nos seus arts. 7º ao 69 trata de concretizar o catálogo de direitos fundamentais previstos no art. 227 da Constituição Federal –, o Código de Menores não trazia um elenco de direitos voltados ao público infantojuvenil em sua especificidade. Como agravante, na Lei 6.697/79 não havia diferença ontológica entre as medidas de proteção e as sanções de natureza penal ali previstas: as duas categorias recebiam a mesma natureza, de suposta “assistência e proteção”.54 Pela sistemática menorista, medidas tão drásticas como o afastamento de uma criança do lar ou a prisão de um adolescente poderiam ser vistas menos como uma intervenção estatal na liberdade do infante, a ser devidamente justificada, do que como um favor do Estado em prol de uma juventude desvalida. As garantias processuais e o contraditório minguavam sob a lógica da benemerência num processo de suposta jurisdição voluntária, por meio do qual muitas crianças eram afastadas arbitrariamente de seu meio.55 Na sistemática menorista, a ferramenta metodológica de que se valia o juiz para elaborar suas decisões era o melhor interesse da criança. Dessarte, assim prescrevia o art. 5º da Lei 6.679/79: “Na aplicação desta Lei, a proteção aos interesses do menor sobrelevará qualquer outro bem ou interesse juridicamente tutelado”. Como se vê, o interesse não necessariamente equivaleria a bens juridicamente tutelados, o que terminava por privilegiar juízos de equidade em detrimento de uma sistemática de direitos da criança ou da família. O juiz de menores tinha então ampla margem de discrição para decidir, amparado tão somente em suas próprias convicções quanto ao que fosse o melhor para os que se encontravam sob o pálio de sua jurisdição. Esse tipo de jurisprudência fez com que surgisse no mundo um movimento propugnando uma abordagem do interesse da criança pautada numa lógica de direitos. Os interesses dos pequenos não mais poderiam depender da voluntariedade de um terceiro, quer seu pai, sua mãe ou um agente estatal. 54 Nesse sentido, o art. 14 da Lei 6.697/79 que previa, indistintamente, como medidas aplicáveis ao menor em situação irregular, providências com finalidades tão díspares como a colocação em família substituta e sanções privativas de liberdade. 55 A propósito, Emílio García Méndez, discorrendo sobre o menorismo na América Latina, informa sobre a prática vigente na Inglaterra do final do século XIX, pela qual o governo local, calcado na Doutrina do Parens Patriae, retirava os meninos vindos de famílias inadequadas, a fim de emigrá-los em massa para o Canadá. Tal prática, segundo o autor, era denominada sequestro filantrópico. MÉNDEZ, Emilio García. Infancia, ley y democracia: una cuestión de justicia. Justicia y derechos del nino, n. 1. Santiago de Chile: Unicef, 1999, p. 30 e 31. 32 2.5 O MELHOR INTERESSE DA CRIANÇA COMO PRINCÍPIO PROTETIVO DO DIREITO INTERNACIONAL Como visto anteriormente,56 o melhor interesse teve na sua gênese um olhar de proteção à criança, não propriamente de sua liberdade – vista aqui como emancipação –, pois, diferentemente do que ocorrera com os movimentos feministas do início dos séculos XIX e XX, não se poderia falar propriamente em liberação de um ser que é essencialmente dependente de seus cuidadores. E foi assim que, espelhando uma construção teórica de índole protetiva, o parâmetro do melhor interesse da criança ganhou expressão mundial no início do século XX. Com as experiências tormentosas da I Guerra Mundial – sobretudo para o público infantojuvenil, mais vulnerável –, em 1924, a Liga das Nações adotou o primeiro documento internacional de proteção à infância, a Declaração de Genebra dos Direitos da Criança ou, simplesmente, Carta de Genebra.57 Fruto do trabalho da inglesa Englantyne Jebb à frente da União Internacional de Proteção à Infância (Save the Children Internacional Union), o documento continha cinco princípios de proteção, voltados a salvaguardar os interesses dos petizes, notadamente em contextos de guerras ou calamidades. Entretanto, em decorrência das fragilidades socioeconômicas oriundas da Grande Depressão, em 1929, sucedida essa pela segunda grande guerra do século XX, a Declaração de 1924 teve o mesmo fim que os demais trabalhos sociais da Liga das Nações: perdeu força e feneceu.58 Posteriormente, com o fim dos horrores advindos da II Guerra Mundial, seu nefasto legado de regimes totalitários e genocídios, ganhou força o pensamento humanista de matiz kantiana, cuja motriz axiológica era fornecida pelo princípio da dignidade da pessoa humana. Tratava-se do movimento de internacionalização dos direitos humanos, cuja etapa inicial foi inaugurada com a criação da Organização das Nações Unidas (ONU), em 1945, seguida da proclamação da Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 1948. 59 56 Item 2.2, ao tratarmos do caso Commonwealth v. Wales Briggs, de 1834. 57 GENEVA Declaration of the Rights of the Child (1924). Disponível em: . Acesso em: 27 jun. 2016. 58 Nesse sentido, COCKBURN, op. cit., p. 166. 59 Nesse sentido, a lição colhida em José Carlos Viera de Andrade: “Embora já no tempo da Sociedade das Nações se tivesse revelado a necessidade de garantir internacionalmente certo direitos (fundamentais) de grupos minoritários, religiosos, culturais ou rácicos, foi durante a II Guerra Mundial que se sentiu de modo particularmente intenso a necessidade de criar, ao nível da comunidade internacional, mecanismos jurídicos capazes de proteger os direitos fundamentais dos cidadãos nos diversos Estados. A experiência da guerra e dos totalitarismos, sobretudo num momento em que se anunciava uma nova ordem social e já não é possível condenar à abstenção o Estado – definitivamente consagrado administrador da sociedade –, impôs que se 33 A segunda etapa do movimento de internacionalização dos direitos humanos foi a de elaboração de tratados específicos que levassem em conta a tipologia dos direitos envolvidos – tal como o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos60 e o Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais,61 ambos de 1966 – ou grupos específicos de titulares de direitos, tais como a criança, a mulher,62 e mais recentemente, as pessoas com deficiência.63 Nessa segunda fase, a construção dos direitos partiu então de um núcleo genérico para se desdobrar em especificações, conforme as necessidades especiais dos seus titulares.64 A noção de direitos, outrora assentada sobre uma concepção estática, herdeira de uma tradição jusnaturalista do século XVII – na qual, supunha-se, os direitos descobririam-se de forma autoevidente –, começou a adquirir, com os movimentos sociais dos séculos XIX e XX, uma perspectiva evolutiva.65 No cenário pós-II Guerra, as crianças ganham destaque, ao se lhes conceber uma segunda declaração de direitos, proclamada pela ONU em 1959, em que foram estabelecidos dez princípios atinentes à infância – o dobro, portanto, dos que constavam da Carta de aproveitassem os laços internacionais, entretanto criados, para declarar um certo núcleo fundamental de direitos internacionais do homem”. ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos fundamentais na Constituição portuguesa de 1976. 3. ed. Coimbra: Almedina, 2004. p. 25; 26. 60 BRASIL. Decreto 592, de 6 de julho de 1992. Atos Internacionais. Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos. Promulgação. Disponível em: . Acesso em: 27 jun. 2016. 61 BRASIL. Decreto 591, de 6 de julho de 1992. Atos Internacionais. Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Promulgação.Disponível em: . Acesso em: 27 jun. 2016. 62 Nesse sentido, BRASIL. Decreto 4.377, de 13 de setembro de 2002. Promulga a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, de 1979, e revoga o Decreto no 89.460, de 20 de março de 1984. Disponível em: . Acesso: 27 jun. 2016. 63 Nesse sentido, BRASIL. Decreto 6.949, de 25 de agosto de 2009. Promulga a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo, assinados em Nova York, em 30 de março de 2007. Disponível em: . Acesso: 27 jun 2016. 64 Na visão de Norberto Bobbio, “Essa multiplicação (ia dizendo “proliferação”) ocorreu de três modos: a) porque aumentou a quantidade de bens considerados merecedores de tutela; b) porque foi estendida a titularidade de alguns direitos típicos a sujeitos diversos do homem; c) porque o próprio homem não é mais considerado como ente genérico, ou homem em abstrato, mas é visto na especificidade ou na concreticidade de suas diversas maneiras de ser em sociedade, como criança, velho, doente, etc. Em substância: mais bens, mais sujeitos, mais status do indivíduo. É supérfluo notar que, entre esses três processos, existem relações de interdependência: o reconhecimento de novos direitos de (onde “de” indica o sujeito) implica quase sempre o aumento de direitos a (onde “a” indica o objeto). Ainda mais supérfluo é observar, o que importa para nossos fins, que todas as três causas dessa multiplicação cada vez mais acelerada dos direitos do homem revelam, de modo cada vez mais evidente e explícito, a necessidade de fazer referência a um contexto social determinado”. BOBBIO, Norberto. A Era dos direitos. 19. ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 1992. p. 68. 65 Para Tom Cockburn, “Muitos direitos ainda estão sendo descobertos”. COCKBURN, op. cit., p. 166. 34 Genebra.66 Percebe-se, no documento de 1959, a preocupação em se veicularem mais direitos para as crianças e mais crianças para o direito: a Declaração referia-se agora não apenas aos petizes que vivessem em cenários conflagrados ou calamitosos, mas também em contextos de normalidade cívica. Assim, a par de sua feição clássica, o direito à proteção recebe outras acepções tais como  o direito à previdência social, com os respectivos cuidados de saúde pré e pós-natal ao bebê e sua mãe (princípio 4);  o direito à educação é adensado, mediante a previsão de ensino público gratuito e obrigatório pelo menos durante o primeiro grau (princípio 7);  uma idade mínima para o trabalho, em condições que não prejudiquem a saúde ou educação do petiz (princípio 9);  o direito à convivência familiar (princípio 6); dentre outros aspectos inovadores com relação à Declaração de 1924. No que se refere ao princípio do melhor interesse da criança, vê-se que o instituto faz-se presente na Declaração de 1959 em dois momentos: o primeiro, na sua acepção de origem, relativa à Tender Years Doctrine;67 o segundo, de forma expressa, quando se lhe atribui uma função-diretriz na relação dos adultos com o petizes, tanto no espaço público (especialmente no que se refere à atividade legiferante) como no privado, mediante expressa referência aos pais.68 Porém, apesar da evolução que a Declaração de 1959 representou para a infância – na medida em que adensara o conteúdo dos seus direitos com relação à Carta de 1924 –, algumas lacunas permaneciam abertas na proteção jurídica dos pequenos, gerando críticas e insatisfações. A primeira e principal delas dizia respeito ao fato de a Declaração não ser um 66 DECLARATION of the Rights of the Child. Proclaimed by General Assembly Resolution 1386 (XIV) of 20 november 1959. This was the basis of the basis of the Convention of the Rights of the Child adopted by the UN General Assembly 30 years later on 20 November 1989. The Convention on the Rights of the Child was entered into force on 2 september 1990. Disponível em: . Acesso em: 29 mar. 2016. 67 Trecho do Princípio 6 da Declaração de 1959: “A criança de tenra idade não deverá, salvo circunstâncias excepcionais, ser separada de sua mãe”. No original: “A child of tender years shall not, save in exceptional circumstances, be separated from his mother”. DECLARATION of the Rights of the Child... 68 Nesse sentido, assim dispunha a Declaração de 1959: “A criança gozará proteção social e ser-lhe-ão proporcionadas oportunidades e facilidades, por lei e por outros meios, a fim de lhe facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, de forma sadia e normal e em condições de liberdade e dignidade. Na instituição das leis visando este objetivo levar-se-ão em conta sobretudo, os melhores interesses da criança” (princípio 2). (Grifo nosso). Por sua vez, quanto ao espaço privado, o princípio 7 assim dispunha: “Os melhores interesses da criança serão a diretriz a nortear os responsáveis pela sua educação e orientação; esta responsabilidade cabe, em primeiro lugar, aos pais”. DECLARATION of the Rights of the Child... 35 documento de conteúdo vinculante, mas, antes, ter um apelo mais ético do que propriamente jurídico (soft law).69 Nesse sentido, o próprio preâmbulo da Carta de 1959 apelava – literalmente – “a que os pais, os homens e as mulheres em sua qualidade de indivíduos, e as organizações voluntárias, as autoridades locais e os governos nacionais reconhecessem os direitos ali constantes e se empenhassem pela sua observância através de medidas legislativas e de outra natureza, a serem progressivamente adotadas”.70 Sintomático era, pois, o fato de a Declaração de 1959 não conter qualquer mecanismo de monitoramento do grau de implementação dos direitos ali previstos junto aos países integrantes das Nações Unidas, o que terminava por fragilizar qualquer pretensão de coercibilidade de suas normas. A segunda crítica referia-se ao fato de a Declaração de 1959, sendo um reflexo do estado de discussão vigente à época, só ter privilegiado aspectos relativos à proteção e ao bem-estar dos mais novos, tendo, entretanto, silenciado quanto aos direitos voltados ao seu empoderamento e à conquista da autonomia – a qual, inda que somente plena no futuro, deveria, para tanto, abranger atualmente categorias como direitos civis e políticos.71 Tais insatisfações fizeram com que, a partir da década de 1960, tivesse início um movimento pelo qual a criança seria vista como uma específica categoria de sujeitos de direito, para a qual se fazia necessária a construção de uma sistemática jurídica própria, em que seus interesses fossem capazes não só de se desatrelar do dos adultos, mas também de vinculá-los. Crescia uma consciência de direitos da criança em nível internacional.72 Essa tendência ganhou corpo em 1979, quando as Nações Unidas, em comemoração ao 20º aniversário da Declaração dos Direitos da Criança de 1959, proclamaram o ano 69 Cf. ALSTON, Philip; TOBIN, John. Laying the foundations for children´s rights: an independent study of some key and institutional aspects of the impact of the Convention on the Rights of the Children. Florence: United Nations Children´s Fund (UNICEF), 2005. p. 3-8. 70 “Call upon” é a expressão constante do original em inglês da Declaração de 1959 na chamada aos atores públicos e privados para reconhecerem os direitos constantes daquele documento. Segundo o dicionário Michaelis, call upon significa “recorrer a”, “apelar para”, “rogar a”, o que demonstra, de fato, o conteúdo mais ético do que propriamente jurídico desse documento. WEISZFLOG. Walter. Michaelis Moderno Dicionário de Português e Inglês. Versão 2.3, edição para iPad. Melhoramentos: São Paulo, 2015. No original: “The General Assembly Proclaims this Declaration of the Rights of the Child to the end that he may have a happy childhood and enjoy for his own good and for the good of society the rights and freedoms herein set forth, and calls upon parents, upon men and women as individuals, and upon voluntary organizations, local authorities and national Governments to recognize these rights and strive for their observance by legislative and other measures progressively taken in accordance with the following principles”. DECLARATION of the Rights of the Child... 71 Nesse sentido, ALSTON, Philip; TOBIN, John. Laying the foundations for children´s rights: an independent study of some key and institutional aspects of the impact of the Convention on the Rights of the Children. Florence: United Nations Children´s Fund (UNICEF), 2005. p. 5; 6. 72 Nesse sentido, ALSTON; TOBIN, op. cit., p. 6. 36 Internacional da Criança. Na ocasião, o governo da Polônia, aproveitando a abertura na agenda da ONU, apresentou uma moção visando a incorporar aos instrumentos internacionais de direitos humanos um tratado sobre os direitos da criança com caráter vinculante, o que representaria um avanço com relação à carta de 1959.73 Iniciava-se, então, um decênio de franco debate, que, em 1989, culminaria com a proclamação da Convenção dos Direitos da Criança da ONU, hoje em vigor. 2.6 A PROCLAMAÇÃO DA CONVENÇÃO SOBRE OS DIREITOS DA CRIANÇA: O INTERESSE SUPERIOR DA CRIANÇA COMO PRINCÍPIO GARANTISTA A Convenção sobre os Direitos da Criança74 (doravante, Convenção ou CDC) foi forjada ainda no período da Guerra Fria, sendo proclamada no mesmo mês em que caiu o Muro de Berlim, em novembro de 1989.75 Esse contexto fez com que os trabalhos do grupo de expertos encarregados de preparar a Convenção andasse lentamente nos seus primeiros anos. A tensão ideológica manifestava-se de maneira especial na preferência, por parte do grupo de países soviéticos, para com os direitos econômicos e sociais, ao passo que os países ocidentais, liderados pelos EUA, apenas reconheciam como legítimos direitos humanos os de caráter civil e político.76 Porém, à medida que a Guerra Fria caminhava para seu desfecho, a comunidade das nações escolheu o respeito aos direitos humanos como o principal ethos dos novos tempos e, nesse ambiente, um movimento em prol dos direitos das crianças parecia se adequar perfeitamente aos postulados que então se erigiam na ordem mundial.77 O processo de abertura do leste europeu terminou por diminuir a distância entre o reconhecimento dos direitos de cunhos social e liberal e, na CDC, essa tensão foi superada.78 73 O registro dessa década de discussão é feito com bastante riqueza por Francisco Pilotti em seu estudo produzido para a Cepal no ano de 2001. PILOTTI, Francisco. Globalización y Convención sobre los derechos del Niño: el contexto del texto. Santiago de Chile: Naciones Unidas, 2001. 74 BRASIL. Decreto n. 99.710, de 21 de novembro de 1990. Promulga a Convenção sobre os Direitos da Criança. (Decreto que incorporou a Convenção, a qual entrou em vigor internacional em 02 de setembro de 1990). Disponível em: . Acesso em: 1º jul. 2016. 75 O Muro de Berlim foi derrubado em 9 de novembro de 1989; a Convenção sobre os Direitos da Criança foi adotada pela Assembleia Geral da ONU em 20 de novembro de 1989, onze dias depois, portanto, desse evento. 76 Cf. PILOTTI, Francisco. Globalización y convención sobre los derechos del niño: el contexto del texto. Santiago do Chile: Nações Unidas, 2001. 77 ALSTON; TOBIN, op. cit., p. 6. 78 Refere-se à superação dessa tensão em termos legislativos. Na prática, ao contrário, muita polêmica instaurou- se a partir da tentativa de conciliar, na figura da criança, direitos de liberdade com direitos da proteção, conforme será visto no capítulo 4 deste estudo. 37 Para Maria Grahn-Farley, o maior avanço representado pela Convenção foi o de se ter adotado uma visão interdependente entre direitos civis/políticos e direitos socioeconômicos/culturais.79 De fato, a Convenção vai além de uma proposta welfarista para os interesses infantojuvenis, pois compreende a criança não apenas na condição de sujeito recipiente de direitos, mas também de agente. E, na CDC, sua agência diz respeito à fruição não só futura, mas também atual de liberdades. Dessarte, a Convenção prevê, além dos direitos de proteção e provisão, os assim denominados direito de participação, sobre cujas complexidade e implicações para o cotidiano discorre-se no capítulo 4 deste estudo. Identificando na CDC uma nova estrutura tridimensional de direitos para a criança, a que a doutrina refere-se como os 3Ps da Convenção (diretos de proteção, provisão e participação), 80 o atual tratado coloca-se como um documento mais denso de proteção jurídica com relação aos que lho antecederam: além de ter previstos ali mais direitos fundamentais para as crianças do mundo – tais como a liberdade de pensamento, de consciência e de crença; a liberdade de associação e manifestação pacífica e garantias no âmbito do processo pena 81 –, os direitos ali contemplados tiveram os requisitos configuradores de sua área de proteção fortalecidos, de forma a aumentar o nível de exigência para tê-los por implementados. Um exemplo eloquente desse adensamento histórico é o direito à educação, o qual, inicialmente não previsto na Declaração de 1924, passou a constar na de 1959 – em que se falou da obrigatoriedade e gratuidade da educação primária e de escopos gerais do processo educativo (capacitar a criança a desenvolver suas aptidões)82 – para, em 1989, além desses aspectos, referir-se também ao ensino secundário e superior; a medidas aptas a incrementar a frequência escolar e diminuir a evasão escolar; à cooperação internacional visando a ampliar o acesso a uma educação de qualidade e a propósitos específico do processo educacional, tal 79 GRAHN-FARLEY, Maria. Neutral law and eurocentric lawmaking: a postcolonial analysis of the U.N. Convention on the Rights of the Child. Brooklyn Journal of International Law. v. 34. n. 1. Nova Iorque: Brooklyn Law School, 2008, p. 11. Disponível em: . Acesso em: 7 abr. 2016. 80 Nesse sentido, BARTHOLET, Elizabeth. Ratification by the United States of the Convention on the Rights of the Child: pros and cons from a child´s rights perspective. The Annals of the American Academy of Political and Social Science, jan. 2011. v. 633, n. 1, p. 1-22 Disponível em: . Acesso em 13 fev. 2016. 81 Respectivamente, os artigos 14, 15 e 40 da CDC. 82 Princípio 7 da Declaração de 1959. 38 como imbuir na criança o respeito ao meio ambiente, dentre outros.83 Ademais, a CDC significou um importante avanço em termos de garantias procedimentais. Previram-se, no tratado, instrumentos de monitoramento do grau de implementação da Convenção junto aos países que a ratificaram, bem com a criação de comitê específico para tal fim.84 O principal objetivo da declaração era o de fornecer arquétipo (framework), a partir do qual os países signatários pudessem rever suas legislações e adaptá-las aos novos padrões da Carta de 1989.85 Passada, portanto, a fase de proclamação, seguiram-se as adesões dos países e, posteriormente, a adaptação interna dos respectivos ordenamentos jurídicos ao novo padrão internacional dos direitos das crianças. A adesão à Convenção foi maciça, totalizando 193 países. A CDC é o tratado de direitos humanos mais aceito da história, havendo apenas apenas um país integrante das Nações Unidas que não ratificou a convenção: os Estados Unidos. 86 Há mais países signatários da Convenção do que Estados-Membros na ONU.87 A CDC foi também o tratado internacional a mais rapidamente entrar em vigor na história dos pactos globais de direitos 83 Nesse sentido, os arts. 28 e 29 da CDC. 84 Arts. 42 a 45 da Convenção. Em dezembro de 2011, tais garantias foram reforçadas com a adoção do terceiro protocolo facultativo à CDC pela Assembleia Geral das Nações Unidas, referente aos procedimentos de comunicação dos casos de violação de direitos de indivíduos ou grupos de indivíduos. ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Convenção sobre os Direitos da Criança. In: MINISTÉRIO Público do Estado do Paraná. Convenção sobre os Direitos da Criança. MPPR: Caopcae, Área da Criança e do Adolecente. Disponível em: . Acesso em: 28 jun. 2016. 85 Nesse sentido, conferir o estudo realizado por Philip Alston e John Tobin a pedido do Unicef sobre os impactos gerados pela Convenção sobre os Direitos da Criança a partir da análise das Constituições dos países signatários deste tratado. Na sua pesquisa, dividem os autores os países em três categorias: a) países com “Constituições de Crianças Invisíveis” (Invisible Children Constitution) – ou seja, países cujas Leis Fundamentais não trazem nenhuma previsão específica de direitos para a criança; b) países com “Constituições de Proteção Especial” (Special Protection Constitution), sendo os países onde as Cartas Magnas tratam da criança para lhes fornecer uma proteção jurídica específica, em virtude de sua peculiar fase de desenvolvimento – os autores situam o Brasil neste grupo; c) países com “Constituições de Direitos da Criança”, para se referir às nações que incorporam em suas Leis Fundamentais um discurso próprio de direitos da criança, “enquanto oposto a meras preocupações de lhes garantir cuidado e proteção”. Um exemplo de país com este tipo de Constituição é a da Colômbia onde ali se previu, no seu artigo 45, a par do direito de proteção, o direito à participação dos jovens nos organismos públicos e privados que tenham a cargo a proteção, educação e progresso da juventude. ALSTON; TOBIN, op. cit., p. 21 et seg. 86 Informações constantes do site do Unicef no Brasil. Disponível em: . Acesso em: 30 mar. 2016. No endereço eletrônico, há a informação de que existiriam dois países que não teriam ratificado a Convenção: os EUA e a Somália. Entretanto, essa informação está defasada, uma vez que, em 2015, o governo da Somália ratificou a Convenção, conforme se pode verificar em: UN News Centre. ONU elogia Somália como país ratifica tratado de direitos marco infantil. Disponível em: . Acesso em: 13 ago. 2016. / Os motivos por que os EUA não ratificaram a CDC serão analisados no capítulo 3 deste estudo. 87 Informações constantes em: UNICEF (Brasil). Texto acerca da Convenção dos Direitos da Criança. Disponível em: . Acesso em: 30 mar. 2016. 39 humanos e ajudou a abrir as portas para a passagem do direito internacional nessa e em outras temáticas em muitos países recém-saídos de regimes ditatoriais. 88 Enquanto o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos e o Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, ambos de 1966, levaram dez anos para atingir o número mínimo de ratificações aptas a dar-lhes vigência, a Convenção atingiu semelhante quórum tão somente nove meses após sua proclamação pela Assembleia Geral da ONU.89 Tais números, apesar de serem vistos com ressalvas por alguns estudiosos – na medida em que representariam uma ideologia, a dos “novos direitos da criança”, e que, como tal, seria avessa ao debate crítico e científico90 – também mostram, por outro lado, a enorme legitimidade com que o movimento em prol dos direitos da criança ergueu-se no mundo na segunda metade do século XX. A partir da década de 1990, muitas nações passaram pelo processo de adequação das suas legislações internas aos parâmetros da Convenção.91 Os princípios da CDC irradiaram especial força sobre a atividade legiferante na América Latina, onde grande parte dos países chegou aos anos 1990 recém-saída de regimes ditatoriais e em processo de revisão democrática de suas leis, inclusive a Constituição. Como apontam autores latino-americanos do direito, um dos principais impactos que a Convenção teve sobre a região foi o de romper com o fosso institucional que separava a infância em duas categorias jurídicas: as abastadas, cuidadas sob a proteção de seus pais e em situação de regularidade; e as pobres, em situação de risco social.92 Para as do primeiro grupo, valia o primado dos direitos; para as do segundo, a lógica era a da benemerência, sendo satisfeita, na esfera pública, mediante ações caritativas e, no âmbito do processo, pela 88 Nesse sentido, Alston e Tobin consideram a influência que a CDC teria tido para aumentar a taxa de ratificação da Convenção da ONU sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, de 1979. Cf. ALSTON; TOBIN, op. cit., p. 10. 89 ALSTON; TOBIN, op. cit., p. 9; 10. 90 Irène Théry, discorrendo sobre a força com que o movimento em prol da adoção da CDC dominou as discussões na França, assevera: “A força desta inscrição mítica no desenrolar do progresso é a da intimidação: em que campo você estará? O dos antigos ou o dos modernos? O dos nostálgicos envergonhados, da patria potestas organizada, ou o dos homens e mulheres de amanhã, assinando “contrato”, com base na confiança, com crianças enfim libertadas? A partir daí, que debate é possível?”. THÉRY, Irène. Novos direitos da criança – poção mágica. Tradução: Jean Louis Pandelon e Sonia Altoé. In: ALTOÉ, Sônia. A Lei e as leis: direito e psicanálise. Rio de Janeiro: Revinter, 2007. p. 143. 91 Cf. ALSTON; TOBIN, op. cit., 92 Cf. MÉNDEZ, op. cit.; BELOFF, Mary. La protección de los niños y las políticas de la diferencia. Lecciones y Ensayos, n. 89, 2012, p. 405-420. Disponível em: . Acesso em: 24 jan. 16. No Brasil, AMIN, Andréa Rodrigues. Doutrina da proteção integral. In: MACIEL, Kátia Regina Ferreira Lobo Andrade. Curso de direito da criança e do adolescente: aspectos teóricos e práticos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. 40 discricionariedade do julgador.93 Detinha o magistrado liberdade para preencher o conteúdo do melhor interesse conforme melhor lhe indicasse seu senso de equidade e arbítrio, apartando-se de uma construção dogmática dos direitos. No sistema dos Códigos de Menores, a lógica era a do não-direito, de um favor que se expressava pela subjetividade do julgador. Ali, o interesse da criança não era sindicável, o que lhe destinava a um hiato de desproteção jurídica. Segundo a posição assumida no 8º Congresso da Associação Internacional de Juízes de Menores, ocorrido em Genebra em 1959 – mesmo ano de edição da Declaração dos Direitos da Criança da ONU – restou assentado o entendimento pelo qual: Não era função do Poder Judiciário assegurar à criança direitos tão amplos como o direito ao nome, à nacionalidade, à saúde, à educação, ao lazer e ao tratamento médico dos deficiente. A posição majoritária, defendida por Alyrio Cavallieri, e que redundou na adoção da Doutrina da Situação Irregular, era no sentido de a Justiça de Menores limitar-se à aplicação do Direito do Menor, relegando os Direitos da Criança para a competência do Poder Executivo.94 Para Mary Beloff, no sistema revogado da Doutrina da Situação Irregular o marco teórico era um “positivismo etiológico”, voltado, pois, às enfermidades sociais, mas não à sua prevenção.95 No Brasil, Andrea Rodrigues Amin assevera que a ação do juiz de menores restringia-se ao binômio carência/delinquência, sendo que “todas as demais questões que envolvessem crianças e adolescentes deveriam ser discutidas nas Varas de Família e regidas pelo Código Civil”.96 Com a Convenção sobre os Direitos da Criança, superou-se a concepção anterior vigente na América Latina, pela qual a Constituição “não deveria interferir nas tarefas socialmente fragmentadas de ‘compaixão-repressão’ do (não) direito e das políticas de menores”.97 A Carta de 1989 introduziu, portanto, nos dizeres de Alegre, Hernández e Roger, um “câmbio epistemológico”, com especiais consequências para a leitura e concretização do 93 Daí porque Emilio García Méndez compara o movimento em prol de direitos para a infância promovido pela Convenção com uma “Revolução Francesa que, com duzentos anos de atraso, chega para todas as crianças e adolescentes”. MENDEZ, op. cit., p. 40. 94 SILVA, Roberto da. A construção do Estatuto da Criança e do Adolescente. Âmbito Jurídico, Rio Grande, II, n. 6, ago. 2001. Disponível em: . Acesso em: 31 mar. 2016. 95 BELOFF, op. cit., p. 408. 96 AMIN, Andréa Rodrigues. Doutrina da proteção integral. In: MACIEL, Kátia Regina Ferreira Lobo Andrade. Curso de Direito da criança e do adolescente: aspectos teóricos e práticos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. p. 15. 97 MENDEZ, op. cit., p. 25. 41 interesse da criança.98 Na desenvolvimento do instituto do melhor interesse na América Latina – onde o conceito veio a ser mais comumente designado como “interesse superior da criança e do adolescente”99 (ou “interés superior del niño”, em sua grafia espanhola) –, os interesses do público infantojuvenil passam a se referir a um específico rol de direitos para a infância. Conforme o magistério de Miguel Cillero Bruñol, o interesse superior passa então a ser lido como princípio garantista, não comportando mais leitura apartada dos direitos previstos na Convenção: O conteúdo do princípio (do interesse superior da criança) são os próprios direitos; interesse e direitos, neste caso, se identificam. Todo “interesse superior” passa a estar mediado por referir-se estritamente ao “direito declarado”; por sua vez, só o que é considerado direito pode ser “interesse superior”.100 Tal compreensão foi oficialmente adotada pelo Comitê da ONU de monitoramento da Convenção sobre os Direitos da Criança (doravante Comitê/CDC), ao tratar, na sua Observação Geral nº 14 (General Comment nº 14, de 2013 – doravante GCom 14)101 do melhor interesse da criança, previsto no art. 3.1, da CDC. Segundo o Comitê/CDC, a primeira acepção a ser desenvolvida para o conceito de melhor interesse é a de compreendê-lo como “direito substantivo”,102 de tal forma que “uma aplicação plena do conceito de melhor interesse da criança requer o desenvolvimento de uma 98 ALEGRE, Silvina; HERNÁNDEZ, Ximena; ROGER, Camille. El interés superior del niño. Interpretaciones y experiencias latinoamericanas. Buenos Aires: Unicef, 2014. p. 27. 99 Essa expressão foi a escolhida para ser positivada no ECA (art. 100, parágrafo único, IV), com a alteração feita no Estatuto pela Lei 12.010/09. 100 No original: “El contenido del principio son los propios derechos; interés y derechos, en este caso, se identifican. Todo "interés superior" pasa a estar mediado por referirse estrictamente a lo "declarado derecho"; por su parte, sólo lo que es considerado derecho puede ser ‘interés superior’”. BRUÑOL, Miguel Cillero. El interés superior del niño en el marco de la Convención Internacional sobre los Derechos del Niño. Justicia y derechos del niño, n. 1. Santiago de Chile: 1999, p. 54. 101 As General Comments (Observações Gerais) da ONU são espécies de notas técnicas elaboradas pelo Comitê vinculado ao monitoramento da CDC, nos termos do artigo 43 daquele diploma. A fim de uniformizar entendimentos e interpretações das normas da Convenção, o Comitê expede suas observações a partir da análise dos relatórios que os Estados signatários da Convenção lhes remetem de tempos em tempos. O acesso às Observações Gerais do Comitê/CDC pode ser feito através do site: . 102 As demais acepções desenvolvidas pelo Comitê/CDC para o melhor interesse são as de tê-lo como um princípio de interpretação legal e uma regra de procedimento (itens 6, “a”, “b” e “c”, da GCom 14). Sobre essas acepções discorreremos no próximo tópico, mas, por hora, ressalta-se que, para o Comitê/CDC, sempre é a lógica dos direitos deve nortear a construção do melhor interesse qualquer que seja sua acepção (nesse sentido, os itens 5 e 32 da GCom 14). ESTADOS UNIDOS. Comitê on the rights of the children. General comment nº 14 (2013) on the right of the child to have his or her best interests taken as a primary consideration (art. 3, para. 1). (Convenção sobre os direitos da Criança). Disponível em: . Acesso em: 2 mar. 2016. 42 abordagem baseada em direitos”.103 E, mesmo nas demais acepções desenvolvidas na GCom 14 para o melhor interesse – quais sejam: a de que tal parâmetro também funcionaria como princípio para a interpretação legal e regra de procedimento (nesse sentido, itens 6, “b” e “c”, da GCom 14) –, o Comitê/CDC sempre afirma que a lógica dos direitos deve nortear a construção do melhor interesse qualquer que seja sua acepção. Nessa perspectiva, o item 32 da GCom 14 afirma que “em ambas as situações, o acesso e determinação do melhor interesse devem ser executados com total respeito aos direitos previstos na Convenção e seus protocolos facultativos”.104 A conversão dos interesses da criança para uma linguagem jurídica teve o condão de liberar os seus direitos de construções eminentemente subjetivas. Mesmo sabendo que as regras jurídicas precisam da atividade jurisdicional para se amoldarem às peculiaridades da situação vivida, quando então se tornarão justas (ajustadas) ao caso concreto, esse processo de concretização não pode ser uma escusa para que o jurista circunscreva a interpretação normativa aos estreitos limites de sua pré-compreensão – território onde vicejam ideologias e preconceitos –, à margem, de qualquer vínculo com o denominado “programa normativo”105 da regra de direito em questão. A estrutura da normatividade jurídica deverá ser, pois, analisada sob os aspectos do âmbito e programa normativos. O pensamento axiomático e o pensamento problemático não se podem separar um do outro e a norma, em sua expressão positivada, deixa de ser “mero fator parcial intercambiável, a serviço da solução adequada de problemas, mas meta da elaboração metódica dos aspectos materiais problemáticos”.106 Atualmente no Brasil, poucos temas ilustram tão bem a tensão entre âmbito e programa normativo como a polêmica em torno das adoções intuitu personae, sobre a qual discorreremos no capítulo 6. Mas, por hora, tão somente adiantamos que, se se abdicar de um sistema de direitos em prol da discricionariedade, já traz riscos para a segurança jurídica em 103 Nesse sentido, os itens 5 e 6 da GCom 14. No original: “The full application of the concept of the child's best interests requires the development of a rights-based approach”. ESTADOS UNIDOS. Comitê… 104 Tradução livre. No original: “In both cases, assessment and determination should be carried out with full respect for the rights contained in the Convention and its Optional Protocols”. ESTADOS UNIDOS. Comitê... 105 Baseamo-nos aqui na ideia de Friedrich Müller em sua Teoria Estruturante do Direito. Ali, o juscientista alemão afasta-se dos extremos interpretativos representados pelo positivismo clássico e o realismo jurídico, para cujos teóricos teria prevalência na determinação da norma do caso concreto, respectivamente, ou o texto em sua expressão linguística abstrata ou os fatos sociais que se poderiam sobrepor ao dever-ser da norma. Müller, por sua vez, alia o processo hermenêutico tanto às peculiaridades do caso concreto – o assim denominado de âmbito normativo – como também ao estado de coisas futuro buscado pela atividade legislativa, denominado pelo mestre alemão como “programa normativo”. MÜLLER, Friedrich. Teoria estruturante do Direito. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. 106 MÜLLER, op. cit., p. 199; 200. 43 geral, com muito mais ênfase isso ocorre quando o thema decidendum refere-se ao público infantojuvenil, pois ali se discute o interesse de pessoas que, no mais das vezes, não têm voz própria na lide – em total descompasso, aliás, com o que determina a legislação em vigor no Brasil.107 Com a edição da Lei 12.010, de 03 de agosto de 2009,108 o melhor interesse foi expressamente reconhecido em nosso ordenamento jurídico sob a designação de “interesse superior da criança e do adolescente”, sendo incluído dentre os demais princípios que regem a aplicação de medidas de proteção aos petizes.109 A referida legislação tratou de reforçar a compreensão do interesse superior como princípio garantista, na medida em que previu como primeiro princípio orientador da aplicação de medidas de proteção aos mais novos o da “condição da criança e do adolescente como sujeitos de direitos”, pelo qual “crianças e adolescentes são os titulares dos direitos previstos nesta e em outras Leis, bem como na Constituição Federal”.110 O referencial teórico para essa nova configuração do interesse da criança é dado pela denominada Doutrina da Proteção Integral, cuja epistemologia afasta-se da retórica das necessidades infantis para abraçar a proteção jurídica alicerçada sobre um sistema de direitos “amplo, abrangente, universal e, principalmente, exigível”111 e bem se expressa na tríade constante do art. 227 da Constituição Federal brasileira: todos (família, sociedade e Estado) têm a obrigação de garantir a todas as crianças e adolescentes todos os direitos fundamentais ali previstos.112 A Proteção Integral é, pois, teoria garantista, cujos destinatários são os atores públicos e privados. 107 Nesse sentido, o princípio da oitiva obrigatória e participação da criança e do adolescente, previsto no art. 100, parágrafo único, XII, do Estatuto da Criança e do Adolescente, bem como a sistemática das Ações de Família do Código de Processo Civil, pela qual as ações que versem sobre o interesse de criança ou de adolescente “observarão o procedimento previsto em legislação específica” – qual seja, o ECA –, “aplicando-se, no que couber, as disposições deste Capítulo” (art. 693, parágrafo único). Cf. BRASIL. Lei 13.105, de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil. Disponível em: . Acesso em: 28 jun. 2016. 108 Brasil. Lei 12.010, de 3 de agosto de 2009. Dispõe sobre adoção; altera as Leis nos 8.069, de 13 de julho de 1990 - Estatuto da Criança e do Adolescente, 8.560, de 29 de dezembro de 1992; revoga dispositivos da Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002 - Código Civil, e da Consolidação das Leis do Trabalho - CLT, aprovada pelo Decreto-Lei no 5.452, de 1o de maio de 1943; e dá outras providências. Disponível em: . Acesso em: 28 jun. 2016. 109 ECA, art. 100, parágrafo único. 110 ECA, artigo 100, parágrafo único, I. 111 AMIN, op. cit., p. 16. 112 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: . Acesso em: 1º jul. 2016. 44 2.7 DOIS DESAFIOS À UNIVERSALIZAÇÃO DOS DIREITOS DA CRIANÇA Apesar dos avanços que o movimento em prol da internacionalização dos direitos da criança e do adolescente representou para a elaboração de um sólido corpo internacional e nacional de normas jurídicas de proteção e promoção dos direitos infantojuvenis, é notório que há ainda um grande déficit de implementação das diretrizes legais da Convenção sobre os Direitos da Criança e, entre nós, do Estatuto da Criança e do Adolescente. Essa questão tem sido objeto de reflexão não só no Brasil, mas também, como veremos no próximo tópico, em outras partes do mundo. O abismo social entre a lei e a realidade seria sinal então de que a normativa em vigor é utópica ou, na melhor das hipóteses, ingênua? Ou, ao contrário, temos uma legislação com forte potencial transformativo, porém que, como tantos outros diplomas relativos a direitos fundamentais, queda refém dos fisiologismos de nossa classe política? À reboque da falta de eficácia social de nossa legislação, tem-se seguido o clamor popular em prol do recrudescimento de leis de cunho penal-repressivo. Passados 28 anos da promulgação da Constituição Federal e 26 anos da edição da Lei 8.069/90 – quando então a nova legislação fora recebida no país em meio a forte clima de ressurgimento das esperanças de uma nação que renascia democraticamente, após um longo e duro regime militar113 –, o fato é que, apesar dos muitos avanços institucionais que a Proteção Integral proporcionou entre nós,114 ainda temos um sério quadro de injustiças sociais a que se soma os alarmantes 113 Nos termos do discurso do então presidente Fernando Collor de Melo, pronunciado em 31 de maio de 1990 – a pouco mais de um mês antes da promulgação do ECA: “Temos que dizer basta! Não podemos continuar a ser o Brasil das carências inaceitáveis e desumanas que afetam nossas crianças. Não podemos ser o Brasil dos “pixotes”. Nada justifica a aceitação pacífica dessa vergonha que não pode e não haverá de perdurar. A democracia só floresce e frutifica numa sociedade em que as virtudes cívicas são cultivadas e prevalece na forma de interesse pelo bem comum. Ora, o conceito de bem comum corresponderá a permanência de cenas chocantes de pobreza, sofrimento e criminalidade infantis que se multiplicam em nossas cidades? […] Por isso estou convocando a nação, cada brasileiro, a engajar-se de corpo e alma na luta pela criança. Precisamos de todos: do cidadão, das famílias, das igrejas e organizações religiosas, dos empresários, dos trabalhadores, dos partidos políticos, dos organismos representativos da sociedade, dos veículos de comunicação. O Brasil, enfim, tem de se conscientizar de que ou salvam-se as crianças ou perde-se o País”. MELLO, Fernando Collor de. O “Ministério da Criança”: discurso pronunciado ante todo o Ministério, em 31 de maio de 1990, quando anunciou à Nação que a criança e o adolescente passavam a ser prioridade absoluta do Governo. In: RIVERA, Deodato (Org.). Brasil, criança, urgente: a Lei 8.069/90. São Paulo: Columbus, 1990, p. 13. 114 Referimo-nos aqui, sobretudo, à lógica descentralizada do atendimento aos petizes, não mais concentrado na figura de um único agente estatal, o juiz de menores, mas agora partilhada entre os profissionais da rede de proteção relacionados com a garantia do direito tratado. Nesse sentido, BRASIL. Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente. Resolução 113, de 19 de abril de 2006. Dispõe sobre os parâmetros para a institucionalização e fortalecimento do Sistema de Garantia dos Direitos da Criança e do Adolescente. Disponível 45 índices de violência urbana. A insatisfação com a baixa efetividade das normas de promoção dos direitos infantojuvenis é uma realidade não só brasileira, mas também de outros países com histórico precário de amadurecimento de suas instituições. Os dilemas entre a saída legal e a saída real são questões com as quais todos os que atuam na área do direito da criança e do adolescente no Brasil deparam-se diariamente. A seguir, partindo da análise de dois desafios a serem transpostos para a almejada alteração do quadro social vigente, refletiremos sobre tais inquietações. 2.7.1 O problema da falta de efetividade das normas de proteção aos direitos da criança As Nações Unidas, promoveram em Nova York/EUA, em maio de 2002, doze anos e meio após a proclamação da Convenção sobre os Direitos da Criança (CDC), o primeiro encontro mundial de instituições de defesa dos direitos humanos das crianças, do qual participaram representantes de mais de trinta países. Ao final do evento, foi produzido um manifesto a ser lido, no dia seguinte, perante a Assembleia Geral da ONU – quando então se iria realizar uma sessão especial daquele colegiado voltada a discutir a temática da infância. Logo em suas linhas iniciais o documento asseverava: Nós não podemos tolerar outra década de descaso para com a Convenção sobre os Direitos da Criança. Nós iremos continuar trabalhando arduamente em nossos Estados para garantir que os governos honrem suas obrigações sob a Convenção. Depois de décadas de atividades voltadas a estabelecer parâmetros internacionais e ratificar tratados de direitos humanos, os governos devem agora focar na sua total implementação. Ter direitos no papel significa pouco ou nada quando estes são desconhecidos ou não podem ser exigidos.115 (Grifo nosso) Entretanto, percebe-se hoje que, passados vinte e seis anos da proclamação da Convenção sobre os Direitos da Criança, muitos dos dramas expressos na moção de 2002 ainda se fazem presentes no mundo atual, com especial força nos países em desenvolvimento ou subdesenvolvidos. Em seu estudo inerentes ao impacto da CDC sobre os ordenamentos em:. Acesso em: 28 jun. 2016 . 115 No original: “We cannot tolerate another decade of non compliance with the Convention on the Rights of the Child. We will continue to work hard within our States to make sure that governments honor their obligations under the Convention. After decades of international standard-setting activities and ratifying human rights treaties, governments must now focus on their full implementation. Having rights on paper means little or nothing when they are not known about or cannot be enforced”. UNICEF. First Global Meeting of Independent Human Rights Institutions on Children: Statement to United Nations General Assembly Special Session on Children. Disponível em: . Acesso em: 2 abr. 2016. 46 jurídicos dos países signatários da Convenção, Philip Alston e John Tobin constatam uma relação inversamente proporcional entre reconhecimento dos direitos das crianças nas Constituições e a sua efetiva implementação: “Em outras palavras, quão mais bonitas as formulações, mais provavelmente elas eram ignoradas. Por outro lado, em alguns Estados com as políticas mais favoráveis à criança, nem uma única palavra da Constituição é endereçada a elas”116 .(Tradução livre) Muitas dessas críticas aplicam-se à realidade brasileira. Com uma lei especial de proteção e promoção dos direitos da criança e do adolescente, que vige há praticamente o mesmo tempo que a Convenção – de 20 de novembro de 1989; o Estatuto da Criança e do Adolescente, de 13 de julho de 1990 –, persiste entre nós o hiato de exclusão social dos tempos menoristas, ao qual se soma o subproduto da violência incontida das três últimas décadas, com impacto contundente sobre a população jovem e negra do país.117 Na leitura de Mary Bellof, o desapego entre a realidade e as leis – bem evidente na América Latina – decorre da ausência de mecanismos de exigibilidade da Convenção e de leis correlatas, notadamente no que toca aos direitos de cunho prestacional. Segundo a autora, apesar de a CDC ter tido o mérito de ser o primeiro diploma a reconhecer os direitos de primeira geração aos mais novos (os direitos civis e políticos), quanto aos direitos de segunda e terceira geração – os quais, em regra, demandam ações e programas gradativos de implementação –, foi feita uma série de concessões no processo de elaboração deste tratado. Tal estratégia visava a garantir uma ampla aceitação para a Convenção (o que, de fato, ocorreu), porém indaga Bellof se, afinal, tal sacrifício dos direitos sociais não teria representado para a infância mais uma vitória de Pirro.118 O descompasso entre leis e realidade gera um quadro de crescente descontentamento 116 No original: “In other words, the more beautiful the formulations, the more likely that they were ignored. Conversely, in some of the States with the most child-friendly policies, not a single word of the constitution was addressed to children.” ALSTON; TOBIN, op. cit., p. 30. 117 Nesse sentido, num estudo cujo critério foi o número de mortes decorrentes do emprego de arma de fogo, a pesquisa Mapa da Violência 2015 coloca o Brasil como o 11º país mais violento do mundo por esse prisma. Aqui, as armas de fogo vitimizaram, em 2012, quase quarenta mil pessoas, numa proporção de 21,9 mortes a cada 100.000 habitantes (na Argentina, a título de comparação, o número é 5,6 mortes por arma de fogo a cada 100.000 habitantes). A população jovem e negra revela-se como a maior parte das vítimas: foram mortos um total de 10.632 brancos e 28.946 negros (número 142% maior para a população negra), índice que tem vertiginoso crescimento a partir dos 16 anos: enquanto a média nacional – já altíssima – é de 21,9 mortes por arma de fogo a cada 100.000 habitantes, a partir dos 16, tal número sobe para 37,1 mortes; aos 17 vai para 55,6; aos 18 chega aos 57,6; e, aos 19, atinge seu cume: 62,9 mortes a cada 100.000 habitantes. Nesse sentido, cf. WAISELFISZ, Júlio Jacobo. Mortes matadas por armas de fogo: mapa da violência 2015. p. 73; 80; 97. Disponível em: . Acesso em: 2 abr. 2016. 118 BELOFF, op. cit., p. 415-418. 47 na população que dá força àquilo que se tem denominado de substancialismo jurídico: o argumento de que é melhor se ter leis despretensiosas, mas efetivas, do que diplomas ousados, porém inexequíveis – mas que, para Emílio García Méndez, termina sendo uma forma de dominação política pela resignação cidadã e manutenção do status quo.119 Com a figura do menor ainda presente no imaginário social – e, aliás, não só no imaginário, mas também enquanto categoria socialmente construída e bem representada nos sinais, nas ruas e cracolândias do país –, os apelos pela revogação das normas de garantias dos direitos infantojuvenis ganham cada vez mais força na sociedade, acompanhados de propostas legislativas de maior rigor sancionatório, tal como a redução da maioridade penal.120 Como resposta, a fisiológica classe política sul-americana tem respondido favoravelmente a mudanças numa legislação que, em muitos aspectos, jamais foi implementada. Não se procede, porém, a um balanço para se perquirir até que ponto a realidade não permanece a mesma – ou, em alguns casos, até piorou (como na questão da violência urbana) – mais em virtude da falta de vontade de Constituição de nossa classe dirigente, nos termos de Konrad Hesse121, do que propriamente de uma inidoneidade da legislação para tratar de temas sociais tão sensíveis como saúde, educação, assistência social e segurança pública. Em vez de se buscar equilíbrio entre sanção justa e digna, iguala-se no discurso popular a defesa de direitos humanos com a defesa de bandidos e qualquer argumento em prol de medidas proporcionais é logo tachado, pejorativamente, de “Garantismo” – como se o Garantismo fosse em sua origem algo dissociado do interesse da população.122 Para Alston e 119 Nesse sentido, MENDEZ, op. cit., p. 27. 120 Segundo o Datafolha, em pesquisa no país realizada em junho de 2015, 87% da população se mostra favorável à redução da idade penal. Disponível em: . Acesso em: 3 abr. 2016. 121 “Mas, a força normativa da Constituição não reside, tão-somente, na adaptação inteligente a uma dada realidade. A Constituição jurídica logra converter-se, ela mesma, em força ativa, que se assenta na natureza singular do presente (individuelle Beschaffenheit der Gegenwart). Embora a Constituição não possa, por si só, realizar nada, ela pode impor tarefas. A Constituição transforma-se em força ativa se essas tarefas forem efetivamente realizadas, se existir a disposição de orientar a própria conduta segundo a ordem nela estabelecida, se, a despeito de todos os questionamentos e reservas provenientes dos juízos de conveniência, se puder identificar a vontade de concretizar essa ordem. Concluindo, pode-se afirmar que a Constituição converter-se-á em força ativa se fizerem-se presentes na consciência geral — particularmente, na consciência dos principais responsáveis pela ordem constitucional —, não só a vontade de poder (Wille zur Macht), mas também a vontade de Constituição (Wille zur Verfassung)”. HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Porto Alegre: Sérgio Fabris Editor, 1991. p. 19. 122 Como informa Claus Roxin, o Garantismo está algo vinculado em suas origens com a defesa da liberdade pessoal contra os arbítrios do Estado. ROXIN, Claus. Política criminal e sistema jurídico-penal. Tradução de Luís Greco. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. Porém, na mesma medida em que o Garantismo limita a ação do Estado, ele também a impõe quando para proteger o indivíduo em seus direitos fundamentais, sobretudo, em virtude de ameaças provenientes de outros particulares, desenvolvendo a doutrina o conceito de dever estatal de tutela. Nesse sentido, cf. DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo. Teoria geral dos direitos fundamentais. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2012. p. 114-122. Nos dias atuais, portanto, a leitura 48 Tobin, neste cenário pode-se esperar uma diminuição no nível de consciência em torno dos direitos humanos por parte dos governos, uma crescente hesitação dos grupos de defesa de direitos humanos em insistir no seu respeito em face de novas ameaças, reais ou imaginárias, e uma crescente tolerância da opinião pública para com medidas que relativizem o gozo de direitos fundamentais em nome da segurança e objetivos coletivos correlatos.123 Trata-se, pois, de um grande desafio para um ramo do direito que, numa perspectiva histórica, ainda dá seus primeiros passos – e, mesmo assim, parafraseando os versos de Lulu Santos, “com passos de formiga e sem vontade” de Constituição.124 2.7.2 O apego ao subjetivismo como forma de decidir questões relativas à criança Além da citada problemática de efetividade a que nos referimos – denominada por Emílio García Méndez como crise de implementação, de natureza estrutural (e estruturante) –, um segundo desafio para a universalização das normas de proteção aos direitos das crianças é aquilo que professor argentino define como crise de interpretação, esta de natureza político- cultural.125 Para Méndez, a Doutrina Proteção Integral desenvolve uma teoria da justiça que, por estar calcada sobre a lógica dos direitos, afasta-se da lógica das decisões calcadas não só sobre a má, mas também – e com especial ênfase – sobre a boa vontade.126 Quando os elementos que compõem o melhor interesse decorrem mais das necessidades do tutelado do que de seus direitos, estar-se-á a um passo de decisões voluntariosas, que, pela falta de sistematização, não se poderão combater com argumentos dotados de suficiente cientificidade. A partir de estudo produzido no Reino Unido cujo objeto eram políticas desenvolvidas pelo prisma das necessidades da criança, constatou-se, por exemplo, que os profissionais que trabalham nos organismos de promoção dos direitos infantojuvenis tendem a reinterpretar as demandas de bem-estar dos mais novos a partir de sua própria agenda institucional.127 garantista bem pode ser desenvolvida para uma proteção do cidadão contra o arbítrio de qualquer tipo opressor, público ou particular. 123 Cf. ALSTON; TOBIN, op. cit., p. 8. 124 SANTOS, Lulu. Assim caminha a humanidade. Rio de Janeiro: BMG, 1994. (Álbum: Assim caminha a humanidade). 125 MÉNDEZ, Emílio García. Adolescentes e responsabilidade penal: um debate latino americano. Justiça 21, Porto Alegre, RS. Disponível em: . Acesso em: 3 abr. 2016. 126 Cotejando a lógica da moral com a jurídica, Mendez conclui: “No amor não há limites, na justiça sim. Por isso nada contra o amor quando o mesmo se apresenta como complemento da justiça”. MÉNDEZ, ibid. 127 COCKBURN, op. cit., p. 143; 144. 49 O raciocínio da benemerência não se trata de uma singela relíquia de tempos remotos, mas é um fator ainda bem presente nos dias atuais, que subsiste – e resiste – à sistemática dos direitos da criança. As representações sociais da infância que se emergiram ao longo da nossa história (desde os menores, enquanto objetos de controle social, até as crianças e os adolescentes como sujeitos de direitos) não se sucedem e suplantam no espaço público, mas ali coexistem para travar uma disputa simbólica no imaginário coletivo e individual.128 Esse é o motivo por que João Batista da Costa Saraiva vê o interesse superior com certa desconfiança, pois tal conceito pode não representar nada mais do que uma simples visão corporativa “do Poder Judiciário, do Ministério Público, de parcela de representantes de organismos não governamentais” – e da Defensoria Pública, nós também a inserimos neste rol129 – e, dessarte, ser um retrocesso em termos dos direitos já reconhecidos.130 Da mesma forma, causa estranhamento ao autor o fato de o Superior Tribunal de Justiça (STJ) ter editado, após dezessete anos de vigência do ECA, a súmula 342, pela qual “No procedimento para aplicação de medida sócio-educativa, é nula a desistência de outras provas em face da confissão do adolescente”.131 De fato, assiste razão ao autor no seu estranhamento para com a aprovação tardia de tese do tipo, que, para o público adulto, já fora há muito consolidada. Um dos desdobramentos do princípio da legalidade no direito da criança e do adolescente é que, em matéria penal, os de menor idade não podem receber tratamento mais gravoso do que 128 Ângela Pinheiro identifica as seguintes representações sociais da infância ao longo da história do Brasil: a) criança e adolescente como objetos de proteção social, vigente no século XVIII; b) criança e adolescente como objetos de controle e disciplinamento social, nascida durante o final do século XIX e início do século XX; c) criança e adolescente como objetos de repressão social, que se emerge com o início do processo célere e desordenado de urbanização no Brasil, durante as décadas de 1930 e 1940 ; d) criança e adolescente como sujeitos de direitos, que emerge na década de 1970 e culmina na década de 1980. Ainda, colhe-se na obra da professora cearense: “Percorrendo a história da vida social brasileira, identifico quatro representações sociais mais recorrentes da criança e do adolescente. Cada uma dessas representações emerge em um cenário sócio-histórico específico. À medida que tais representações sociais vão emergindo e se consolidando, verifica-se uma simultânea coexistência entre elas, marcadas pela disputa simbólica”. PINHEIRO, Ângela. Criança e adolescente no Brasil: por que o abismo entra a lei e a realidade. Fortaleza: Editora da UFC, 2006, p. 50. 129 Em virtude de disputas por espaços de poder, a Defensoria Pública e o Ministério Público brasileiro têm, cada vez mais, em nome de uma concepção própria do “melhor interesse da criança”, travado debates institucionais – tais como o da tese do “curador especial” (cf. REsp nº 1.481.533, DJe 21.08.2015; REsp nº 751.530, DJe 02.09.2015 e REsp nº 309.803, DJe 25.08.2015) – que, ao final, mais fragilizam do que contribuem para a construção de pauta nacional em torno da efetividade dos direitos fundamentais da criança e do adolescente. E isso num tempo em que graves e recorrentes investidas têm sido feita contra os avanços obtidos com a Constituição e o Estatuto da Criança e do Adolescente no início dos anos 90. 130 SARAIVA, João Batista da Costa. O superior interesse: o menor, a criança, a lei e os tribunais. Revista de Direito da Infância e Juventude, ano 1, n. 2. jul./dez. 2013. São Paulo: Revista dos Tribunais/Associação Brasileira de Magistrados, Promotores de Justiça e Defensores Públicos da Infância e Juventude, p. 67. 131 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Súmula 342. DJ de 13.08.2007, p. 581. 50 aquele dispensado aos adultos.132 Outro exemplo eloquente de como a mentalidade do favor ainda se sobrepõe ao direito na área da infância é visto na necessidade de, passados dezenove anos de vigência do ECA, o legislador ter modificado essa lei para acrescentar-lhe o parágrafo único ao art. 153 – que fala das hipóteses de atuação de ofício (atípica) do juiz de direito – , nestes termos: “O disposto neste artigo não se aplica para o fim de afastamento da criança ou do adolescente de sua família de origem e em outros procedimentos necessariamente contenciosos”. 133 A finalidade da lei com tal dispositivo foi a de acabar com alguns costumes arbitrários, ainda verificados na vigência do ECA, tal como o afastamento de crianças e adolescentes de seus pais dentro de procedimentos de suposta jurisdição voluntária, o que, apesar de ser uma prática comum do Menorismo, permanecia, paradoxalmente, em vigor não na ordem jurídica, mas no ordenamento mental dos operadores do direito.134 Não se trata, portanto, como afirma Méndez, de trocar um “mau subjetivismo” por um “bom subjetivismo”, pois a mera “transformação das pessoas” não é suficiente num Estado Democrático de Direito. 135 Trata-se, isso sim, de uma mudança política sob o paradigma dos direitos, capaz de avaliar o melhor interesse da criança pelo prisma garantista. O paradoxo, contudo, que se vivencia nesse segundo desafio é que a mudança institucional precisa ser assimilada pelo sujeito cognoscente do fenômeno jurídico, sob pena de ineficácia do sistema. Portanto, nesse aspecto, o direito no Brasil ainda espera pelo amadurecimento institucional da discussão jurídica na área da criança, de uma forma muito próxima ao que se 132 Esse princípio veio a ser positivado no art. 35, I, da Lei do Sinase. BRASIL. Lei 12.594, de 18 de janeiro de 2012. Institui o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase), regulamenta a execução das medidas socioeducativas destinadas a adolescente que pratique ato infracional; e altera as Leis nos 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente); 7.560, de 19 de dezembro de 1986, 7.998, de 11 de janeiro de 1990, 5.537, de 21 de novembro de 1968, 8.315, de 23 de dezembro de 1991, 8.706, de 14 de setembro de 1993, os Decretos-Leis nos 4.048, de 22 de janeiro de 1942, 8.621, de 10 de janeiro de 1946, e a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), aprovada pelo Decreto-Lei no 5.452, de 1o de maio de 1943. Disponível em:. Acesso em: 29 jun. 2016. 133 Parágrafo único do art. 153 do ECA, acrescentado pela Lei 12.010, de 13 de agosto de 2009. 134 Sobre os procedimentos de pretensa jurisdição voluntária, assim escreve Murillo Digiácomo: “Os famigerados ‘procedimentos de verificação de situação de risco’, ‘pedidos de providência’ ou similares, que não mais podem ser utilizados quando em jogo se encontram direitos indisponíveis e/ou quando, ainda que por presunção, há conflito de interesses. O afastamento da criança ou do adolescente de sua família é medida extrema e excepcional, que somente terá lugar quando plenamente justificada pelas circunstâncias, sendo obrigatória a indicação, na ação judicial a ser proposta (e na decisão que a determina) dos fundamentos jurídicos respectivos, dando aos pais ou responsável condições para o exercício do contraditório e da ampla defesa”. DIGIÁCOMO, Murillo José. Breves considerações sobre a nova Lei Nacional de Adoção. Disponível em: . Acesso em: 4 abr. 2016. 135 MENDEZ, op. cit. 51 verificou na Alemanha na década de 1970 com a chegada de Konrad Hesse ao Tribunal Constitucional Federal desse país. 136 Na ocasião, foi-se, pouco a pouco, abandonando métodos subjetivistas de elaboração da decisão – calcado, então, na teoria axiológica137 –, o qual se tornou prescindível à medida que progredia uma elaboração dogmática de conteúdos normativos próprios de cada direito. Assim, para a superação desse segundo desafio, necessário é vencer o cenário atual de estagnação da elaboração dogmática dos direitos da criança, sob pena de vir-se a questionar, tal como o fizeram nos Estados Unidos Noblet e Reardon, a serventia de um conceito tão arbitrário de melhor interesse.138 Visando a diminuir as arbitrariedades do subjetivismo exarcebado ainda vigente, o Comitê da ONU de monitoramento da Convenção sobre os Direitos da Criança expediu a General Comment 14 (GCom 14)139, o qual busca aclarar a estrutura, função e natureza do melhor interesse da criança, previsto art. 3º da CDC. Na nota técnica, o Comitê estabelece que o melhor interesse é, além de um direito substantivo, também, uma regra de procedimento, a qual, para ser acessada e determinada, requer garantias procedimentais que importem na demonstração do direito que foi levado em conta na decisão do caso concreto.140 Sobre tais procedimentos, diz ainda a GCom 14, no seu item 94, que o acesso e determinação do melhor interesse implicam a necessidade de a norma de decisão ser exarada num ambiente seguro e amigável, em que o magistrado não decida isoladamente, mas com o apoio de uma equipe técnica multidisciplinar.141 136 GUTIÉRREZ, Ignacio Gutiérrez. Dignidade de la persona y derechos fundamentales. Madrid/Barcelona: Marcial Pons, 2005. p. 27. 137 Segundo explica Leonardo Martins, a problemática da teoria axiológica reside no fato de, em última instância, a liberdade não existir mais apenas enquanto simples livre-arbítrio do sujeito, mas, antes, só pode ser tida como digna de proteção a liberdade valorada por um terceiro que lhe reconhece valor no respectivo exercício. Só a liberdade identificada como tal e assim confirmada pelo Estado (o referido “terceiro”) passa a ser garantida na ordem jurídica de valores. MARTINS, Leonardo. Liberdade e Estado Constitucional: leitura jurídico-dogmática de uma complexa relação a partir da teoria liberal dos direitos fundamentais. São Paulo: Atlas, 2012. p. 14. Tal compreensão da liberdade se mostra deveras temerária para a dignidade humana, aqui entendida enquanto liberdade própria do sujeito, não instrumentalizada por outrem, conforme veremos no capítulo 3. 138 “O termo ‘melhor interesse’ deve ser abandonado, a menos que façamos um melhor trabalho em torná-lo significativo”. No original: “The best interests term itself should be abandoned unless we do a better job of making it meaningful”. REARDON, Kathleen Kelley; NOBLET, Christopher T. op. cit, p. 47. 139 Sobre as General Comments do Comitê/CDC, cf. a nota de rodapé 101, p. 40. 140 Nesse sentido, o item 6, “c”, da GCom 14. Disponível em: . Acesso em: 2 mar. 2016. 141 No sentido de aplicar tal compreensão (do melhor interesse como regra de procedimento) a um caso prático, paradigmática foi a decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso Fornerón e Hija v. Argentina. Ali, a Corte reviu a decisão da justiça argentina, onde o pai fora afastado peremptoriamente de sua filha, sem que as normas procedimentais da fixação do direito de guarda e o correlato direito de visitação fossem estabelecidas pelos magistrados. A Corte Interamericana conferiu ao melhor interesse esta 52 Tudo isso a fim de retirar a judicatura do solipsismo típico do regime menorista, em que, na expressão de Álvaro Ricardo de Souza Cruz – referindo-se à crítica de Habermas à filosofia da consciência de Husserl – a linguagem do “eu” sempre se impõe: ou de forma direta ou disfarçada num “nós transcendental”, mas que, ao fim e ao cabo, nada mais é do que um mero disfarce de linguagem monológica.142 Portanto, vê-se que esse segundo desafio, de índole hermenêutica, permanece bem posto para o Brasil, onde, passados hoje 26 anos de promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente, o Poder Judiciário brasileiro continua desrespeitando as normas de proteção estatutária, e não conferindo aos seus magistrados o necessário amparo de equipe técnica e uma formação apropriada para ler as demandas que se lhes apresentam na seara infantojuvenil, o que diminuiria os riscos de uma leitura isolada da lide.143 Como ponto favorável, registre-se que, pelo menos, de vasto arcabouço institucional de que já dispõe, sobretudo, após a publicação da Lei 12.010/09, que, ao positivar, no art. 100, parágrafo único do ECA, os princípios norteadores de aplicação das medidas de proteção aos petizes, trouxe uma série de parâmetros materiais e procedimentais para a construção da norma de decisão no caso concreto, tais como: a condição da criança e do adolescente como sujeitos de direitos; a necessidade de sua oitiva obrigatória e participação; a proporcionalidade; a responsabilidade parental; a prevalência da família e, nesse contexto de direitos, o interesse superior da criança e do adolescente. Resta tirá-los do papel. 2.8 O IMPACTO DO MOVIMENTO DE DIREITOS PARA A CRIANÇA NOS ASSUNTOS DA FAMÍLIA Ao nos debruçarmos com mais vagar sobre o instituto do melhor interesse da criança, podemos perceber que a definição de o que era melhor para a criança mudava à medida que se mudava a própria concepção da infância e do espaço que lhe competia na acepção procedimental para revisar a decisão da justiça de origem. Cf. ALEGRE; HERNÁNDEZ; ROGER, op. cit., p. 26. 142 Como diz o autor, trata-se da leitura da “objetividade, a partir da subjetividade monológica da consciência de si”. CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza. Hermenêutica jurídica e(m) debate: o constitucionalismo brasileiro entre a teoria do discurso e a ontologia existencial. Belo Horizonte: Fórum, 2007. p. 26. 143 Sobre os riscos do isolacionismo judicial com enfoque para as tutelas de urgência da criança, cf. AMARAL, Sasha Alves do; SOUZA NETO, Manoel Onofre de. A tutela de urgência e a criança e o adolescente: em defesa de uma atuação especializada e efetiva. Revista de Direito da Infância e Juventude, ano 1. n. 1. jan./jun. 2013. São Paulo: Revista dos Tribunais/Associação Brasileira de Magistrados, Promotores de Justiça e Defensores Públicos da Infância e Juventude. 53 sociedade – nem sempre, porém, numa linha contínua de progresso.144 Desse modo, da figura do infante – que, segundo a raiz latina da palavra, significa “que não fala”, “incapaz de falar”145 – para a da criança sujeito de direitos perpassa a humanidade por períodos cuja atitude vai desde negar aos mais novos um olhar de especificidade146, atravessa outros em se começa a ver no petiz interesses próprios, inda que atrelados ao de um adulto – seu pai ou mãe (com as doutrinas, respectivamente, do patria potestas e da tenra idade) – até a época atual em que a criança ganha posição de destaque na sociedade e no ordenamento jurídico, sendo credora de prioridade absoluta nas ações governamentais e sociais.que Iniciou-se, então, uma tendência nas políticas voltadas à criança e ao adolescente que busca emancipá-los, libertando-os de práticas opressoras que lhes cassem, no espaço público ou privado, o direito de se expressar e participar. Tal visão, porém, acarreta uma série de desafios, na medida em que se observa que, sendo a família o primeiro espaço de socialização e proteção dos pequenos, a relação com os pais passa a ter uma especial relevância para as ações governamentais, restando os limites entre os assuntos públicos e privados cada vez mais tênues. Tem sido cada vez mais frequente nos dias atuais o tensionamento do debate sobre os direitos da criança entre a sociedade e o Estado. No meio, põe-se o infante boquiaberto, ora à margem da discussão, ora com fala mimetizada pela de um adulto (não necessariamente seus pais, mas também por meio de agências governamentais ou privadas de proteção – o que faz nascer, segundo informa Théry (não sem crítica) o conceito de infância enquanto lobby147), mas poucas vezes com voz própria. 144 Nesse sentido, a pesquisa de Hugh Cunningham sobre a evolução histórica do conceito de criança na Inglaterra, da Idade Média aos dias atuais. Em seus estudos, o autor britânico relata o fato de, apesar de a idade de responsabilização penal ser a de doze anos na Inglaterra medieval, foram encontrados registros do século XVIII – em pleno século do Iluminismo – dando conta do enforcamento de uma criança de sete anos pelo roubo de uma saia na cidade inglesa de Norwich. CUNNINGHAM, Hugh. The invention of childhood (ePub). Londres: BBC Books, 2006. 145 FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário eletrônico Aurélio (Mobile) versão 2.0. São Paulo: Positivo, 5. ed. 146 Nesse sentido, as obra de Neil Postman e Philip Ariès, autores que, no seus campos de estudo (respectivamente, a Comunicação Social e a História) chegaram a conclusões semelhantes: até o final da Idade Média não havia qualquer concepção de desenvolvimento infantil e a criança era um ser invisível em tal sociedade. Tal realidade começa a mudar com a invenção da prensa tipográfica, a necessidade de se formar leitores e, então, a criação de uma instituição própria de repasse de conhecimentos não mais de uma forma oral, mas sistematizada. POSTMAN, Neil. O desaparecimento da infância. Rio de Janeiro: Grafia, 2012. SARMENTO, Manoel Jacinto. As culturas da infância nas encruzilhadas da segunda modernidade. Disponível em: . Acesso em: 6 maio 2014. 147 THÉRY, op. cit., p. 159. 54 Enfrentar tais dilemas implica adentrar em debate sinuoso, no qual a infância descortina-se como etapa da vida onde o dilema proteção versus emancipação faz-se presente de uma forma especial e cujo fiel inclina-se para um lado ou o outro a depender da ideologia de quem fala. Nesse contexto, a intervenção estatal – enquanto ação oriunda de um ente que busca a neutralidade do ponto de vista moral – enfrenta o desafio de responder à seguinte questão: afinal, a intervenção na família é no interesse de quem: da criança, dos seus pais, da sociedade, do governo ou de um modismo? Nos próximos capítulos, trataremos dessa discussão pelo prisma tanto dos pais, procurando entender as origens, o alcance e as aplicações no Brasil da teoria constitucional do poder familiar – desenvolvida de forma mais proeminente nos Estados Unidos ao longo dos séculos XIX e XX –, como também pela perspectiva da criança e do adolescente, momento em que analisaremos a influência que o movimento europeu em prol dos direitos da criança teve (e ainda tem) no Brasil. Para isso, tomaremos como mote de discussão, no capítulo sexto, um tema da atualidade do direito da criança e do adolescente – o polêmico instituto da adoção intuitu personae – que bem ilustram o tensionamento do binômio proteção-liberdade da criança a fim de que, ao final, possamos refletir sobre a seguinte questão: até onde, de que forma e com que fundamentos pode o Estado intervir na família em nome da proteção e emancipação de um ser que é naturalmente dependente dos seus pais? 55 3 AUTONOMIA DOS PAIS O movimento francês da codificação teve considerável influência na história do direito brasileiro, tendo contribuído para a consolidação de uma forte tradição civilista, pela qual muitos dos institutos jurídicos brasileiros foram concebidos, lidos e relidos. Em um contexto no qual os códigos predominavam e as disciplinas jurídicas tinham uma realidade estanque, limitadas em si, o direito constitucional era mais um dentre os outros ramos do direito, com pouca influência interpretativa sobre o ordenamento.148 Com o fim do regime militar nos anos 1980 e o fazimento de uma nova Constituição, começa a se desenvolver no país, de forma mais profícua, uma teoria constitucional em que a Lei Fundamental é postada no ápice da ciência do direito e, dali, configura os limites e escopos dos ramos infraconstitucionais das demais disciplinas jurídicas. Na célebre máxima de Paulo Bonavides, com referência ao movimento constitucionalista, “Ontem os Códigos; hoje, as Constituições”149, a partir da Carta de 1988, a Lei Fundamental recebe a devida posição de destaque em nosso sistema legal, sendo, pois, a base normativa e axiológica de todo o ordenamento. A partir de então, no Brasil, a doutrina constitucional passa a se desenvolver sob o marco teórico de um movimento a que se tem denominado neoconstitucionalismo.150 Como características marcantes desses novos tempos, os teóricos do direito, muito sob a influência do direito alemão, identificam: a força normativa da Constituição – não mais vista apenas como um documento político-programático, mas, outrossim, de carga vinculante; a elevação dos princípios à categoria normativa, com status ao superior às regras de direito; uma 148 Nesse sentido, não deixa de ser sintomática a forma horizontal com que o direito constitucional era tratado com relação aos demais campos da ciência jurídica na clássica obra do professor Miguel Reale, Lições Preliminares do Direito, cuja primeira edição foi lançada no auge da ditadura militar, em 1973. In verbis: “Pois bem, quando várias espécies de normas do mesmo gênero se correlacionam, constituindo campos distintos de interesse e implicando ordens correspondentes de pesquisa, temos, consoante já assinalamos, as diversas disciplinas jurídicas, sendo necessários apreciá-las em seu conjunto unitário, para que não se pense que cada uma delas existe independentemente das outras. Não existe um Direito Comercial que nada tenha a ver com o Direito Constitucional. Ao contrário, as disciplinas jurídicas representam e refletem um fenômeno jurídico unitário que assim precisa ser examinado. Um dos primeiros objetivos da Introdução ao Estudo do Direito é a visão panorâmica e unitária das disciplinas jurídicas”. REALE, Miguel. Lições preliminares de Direito. 22. ed. São Paulo: Saraiva, 1995. p. 6. 149 BONAVIDES, Paulo. Prefácio à obra de: TRINDADE, André Karam; GUBERT, Roberta Magalhães. Revista do Instituto de Hermenêutica Jurídica. Porto Alegre: Instituto de Hermenêutica Jurídica, 2004. 150 Cf. BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do Direito no Brasil: o triunfo tardio do direito constitucional no Brasil. Disponível em: . Acesso em: 11 abr. 2016. Cf. também REGLA, Josep Aguiló. Do Império da Lei ao Estado Constitucional. Dois paradigmas jurídicos em poucas palavras. In: MOREIRA, Eduardo Ribeiro. Argumentação e Estado Constitucional. São Paulo: Ícone, 2012. 56 compreensão dos direitos fundamentais para além de sua feição clássica subjetiva – isto é, enquanto normas invocáveis pelos titulares de direito em face de eventuais agressões do Estado aos seus bens jurídicos fundamentais –, para serem dotados, também, de uma eficácia objetiva, a partir da qual representam os valores da ordem constitucional vigente e, desse modo, reorientam a interpretação jurídica nos mais diversos ramos do direito.151 O corolário dessa feição objetiva atribuível aos direitos fundamentais é o de que tais normas, exercendo influência direta sobre todos os campos do direito, passam, segundo os teóricos do neoconstitucionalismo, a se referir não mais tão somente à ordenação da atividade do Estado perante o indivíduo, mas também incidem diretamente sobre as relações sociais como um todo, públicas ou privadas. Desenvolve-se então, a par da clássica compreensão da eficácia pública das normas de direito fundamental, o seu conceito de eficácia privada ou horizontal, pelo qual elas teriam incidência também na relação entre particulares.152 Essa discussão, como veremos mais adiante neste capítulo, guarda muita pertinência com o objeto desta pesquisa – a relação de pais e filhos – e tem dado a margem à grande debate na doutrina, especialmente no que se refere à forma como se dá a incidência da norma jusfundamental na relação privada: se mediata ou imediatamente, ou seja, se mediada ou não a aplicação da Constituição à relação entre particulares por via de alguma legislação infraconstitucional.153 151 Nesse sentido, o magistério de Luiz Guilherme Marinoni: “A norma de direito fundamental, independentemente da possibilidade de sua subjetivação, sempre contém valoração. O valor nela contido, revelado de modo objetivo, espraia-se necessariamente sobre a compreensão e a atuação do ordenamento jurídico. Atribui-se aos direitos fundamentais, assim, uma eficácia irradiante”. MARINONI, Luiz Guilherme. Técnica processual e tutela dos direitos. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. p. 131. 152 Nesse sentido, segundo Marinoni, “A norma de direito fundamental, ao instituir valor, e assim influir sobre a vida social e política, regula o modo de ser das relações entre os particulares e o Estado, assim como as relações apenas entre os sujeitos privados. Nessa última perspectiva, é possível pensar na eficácia dos direitos fundamentais diante das relações entre os particulares”. (MARINONI, op. cit., p. 131-132). Ressalta-se que a tese da eficácia horizontal imediata dos direitos fundamentais tem sido seguida pela maioria da doutrina no Brasil e o fato de termos uma Constituição do tipo analítica – que, como tal, regula diretamente diferentes institutos de vários ramos do direito (desde o direito propriamente constitucional até o direito administrativo, ambiental, processual civil, processual penal, da criança, do idoso, da assistência social, da saúde, da educação, de propriedade, contratual, de família, de sucessões, dentre outros) mais ainda colaborou para a recepção dessa tese entre nós. cf. SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 11. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012. MARINONI, op. cit.; BARROSO, op. cit., dentre outros. 153 Mesmo não sendo o escopo deste trabalho discutir a forma com que tais conceitos do direito constitucional tem-se desenvolvido entre nós, deve-se registrar que não são poucos os doutrinadores que se têm levantado, questionando a forma pouco consistente com que os institutos do direito germânico foram importados à discussão nacional, e isso tanto pela compreensão equivocada da argumentação jurídica pautada na valorização dos princípios (como se, em nome de um dito principiologismo, qualquer solução jurídica fosse possível de ser alcançada no caso concreto), como também da eficácia horizontal das normas de direitos fundamentais e ainda do próprio positivismo, que há muito já se teria afastado de uma visão caricatural da atividade interpretativa como mera atividade exegética. Em crítica ao principiologismo tal qual exercido no debate jurídico nacional, cf. ÁVILA, Humberto. Neoconstitucionalismo: entre a Ciência do Direito e o Direito da Ciência. Disponível em: . Acesso em: 11 abr. 2016. Em crítica à concepção caricatural com que o positivismo é retratado no Brasil, cf. DIMOULIS, Dimitri. Positivismo jurídico. São Paulo: Método, 2006. Em crítica à forma como a eficácia horizontal foi recebida entre nós, cf. DIMOULIS; MARTINS, op. cit 154 Em regra, a doutrina civil limita-se a, após analisar sua evolução desde o direito romano, a informar que o poder familiar é o conjunto de direitos e deveres dos pais para com os filhos, configurando mais um múnus do que propriamente um “poder”, sem contudo analisar a dimensão prática e seu tensionamento com os direitos filiais decorrentes do exercício deste encargo parental. Nesse sentido, GONÇALVES, Carlo Roberto. Direito civil brasileiro. Direito de Família. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. v. 6. CARVALHO FILHO, Milton Paulo de. Família. In: PELUSO, César (Coord.). Código Civil comentado. 8. ed. Barueri: Manole, 2014. RODRIGUES, Sílvio. Direito Civil. 28. ed. Atualização de Francisco José Cahali. São Paulo: Saraiva, 2004. Mesmo em obras de autores civilistas de geração mais recente, percebe-se o vácuo doutrinário em torno de maiores problematizações sobre o poder parental. Cf., por exemplo, a lacuna na obra de Farias e Rosenvald, que dentre tantos ricos capítulos e temas tratados, não dispõem de um voltado à análise do poder parental. FARIAS, Cristiano Chaves; ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil : Famílias. Salvador: Juspodium, 2013. v. 6. 58 têm desenvolvido as implicações cotidianas que o seu status de sujeitos de direitos importa para a sua vivência social e relação com os adultos. É como se o afirmar que crianças e adolescentes são sujeitos de direitos fosse, por si só, capaz de explicar todas as possíveis situações em que os direitos dos mais novos entram em rota de colisão com o de outras pessoas, notadamente os seus responsáveis. Ainda carece, pois, de melhor fundamentação a seguinte questão: sobre que fundamentos constitucionais e com que extensão desenvolve-se o direito à liberdade da criança? A resposta a tal questionamento resta, pois, lacônica, e sua construção dogmática tem sido protagonizada muito mais por teóricos do direito civil, com suas teorias sobre a capacidade jurídica – insuficientes para abordar a complexa questão da liberdade infantil –, do que pela teoria constitucional. Na ausência de uma fundamentação constitucional consistente para temas tão sensíveis, o vácuo teórico vem sendo preenchido – de uma forma não raro atravessada – nas redes sociais e nos periódicos do país, quando, diante de intervenções do Estado na familia, têm-se debatido os limites da intervenção pública no espaço privado. Tal forma de debate público, apesar de seu valor democrático, mais tem contribuído para dividir opiniões – morais ou partidárias – do que para sistematizar saberes à luz do conhecimento científico. Esse é, pois, o paradoxo do direito à convivência familiar na atualidade: de tão natural, é tão pouco considerado pelos teóricos constitucionais. Como aponta o psicólogo inglês John Bowlby – numa crítica que bem cabe ao direito constitucional brasileiro – “os serviços habitualmente prestados pelos pais a seus filhos são de tal maneira considerados naturais que sua grandiosidade é esquecida”.155 As maiores problematizações em torno do direito à família têm sido deixadas para outros campos do conhecimento humano, tais como a psicologia, a antropologia, a sociologia ou a pedagogia. Para o debate jusfundamental do Brasil, os direitos da criança, do adolescente e de seus pais têm representado temas de somenos importância. Se é pacífico que a função precípua dos direitos fundamentais é limitar a ação do Estado – quer para lhe impedir a ação invasiva (direitos de resistência), quer para lhe desautorizar a inação (direitos prestacionais) –, a elevação do direito à convivência familiar a um status constitucional156 traz implicações para a forma com que tanto os pais como as crianças passam a se relacionar com o poder público. Quais são os reais poderes de que dispõe 155 BOWLBY, John. Cuidados maternos e saúde mental. Tradução: Vera Lúcia Baptista de Souza e Irene Rizzini. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 70. 156 Nesse sentido, os arts. 226 e 227 da Constituição (1988). 59 a família contra interferências externas? Nos últimos anos, o que se tem percebido – não raro, com a alegada melhor das intenções – é a banalização do espaço familiar em detrimento de ações exógenas, públicas ou privadas. Tal situação, em se tratando de famílias carentes – contra as quais, dadas as fragilidades socioeconômicas de seus membros, o aparato estatal bem se pode levantar sem maiores questionamentos – ganha ares de ainda maior dramaticidade, por estar acompanhada, muitas vezes, de sérias (e silentes) violações de direitos fundamentais.157 Bastante diferente tem sido o debate em torno do poder parental e da autonomia da criança nos Estados Unidos, onde, a partir de uma forte tradição constitucionalista construída há mais de um século, tem-se atribuída a tais temas determinada concepção jusfundamental que tem guiado o debate tanto na jurisprudência norte-americana em torno do direito de família, como na própria sociedade em diversos espaços, desde o parlamento até as famílias e organizações civis.158 Diante da carência nacional de discussão jurídica em torno do poder familiar, afigura- se-nos, então, de suma importância verificar em que medida o debate ocorrido nos Estados Unidos pode influenciar os rumos da discussão nacional, procurando identificar pontos de contato entre o direito norte-americano e o brasileiro, bem como em que medida tal congruência não é possível, por ter nossa legislação indicado outro caminho na relação entre pais e filhos. Necessário é, pois, adensar o estudo das raízes constitucionais do poder parental em sua interface com a autonomia da criança. Para tanto, trataremos de definir, neste capítulo, o conteúdo do direito à convivência familiar de pais e filhos – tanto em seu aspecto substancial como procedimental – a fim de que possamos analisar de que forma e sob que pressupostos pode o Estado intervir no ambiente doméstico. 157 Cf., a propósito, AMARAL; SOUZA NETO, op. cit., p. 43-81, p. 68-69. 158 Nesse sentido, muitas instituições e organizações sociais norte-americanas se posicionaram favoravelmente à adoção pelos EUA da CDC. Segundo Klicka e Estrada, mais de 150 grupos organizados manifestaram-se favoravelmente à adesão pelo governo dos EUA à Convenção sobre os Direitos da Criança, dentre os quais a Associação Nacional de Educação, o Conselho Nacional de Igrejas, o Conselho Americano de Serviços Sociais, o Comitê Nacional sobre os Direitos da Criança, a Associação Nacional de Escola de Psicologia, a Associação Americana de Advocacia e a Academia Americana de Pediatras. Cf. KLICKA, Christopher J.; ESTRADA, William A. The UN Convention on the Rights of the Child: the most dangerous attack on parental rights in the history of the United States. Disponível em: http://nche.hslda.org/cap/un_treaty_31607.pdf. Acesso em: 1 mar. 2016. 60 3.1 O FEMINISMO E SUA INFLUÊNCIA PARA O MOVIMENTO PELOS DIREITOS DA CRIANÇA Como analisado, no item 2.1, por um longo período na história do direito, o espaço privado foi deixado à margem das reflexões políticas relativas às teorizações sobre a justiça. Os debates conduzidos pelos teóricos do Iluminismo eram um reflexo da lógica de gênero masculina e, nesse sentido, reproduziam as preocupações decorrentes da estrutura patriarcal de poder. O discurso da igualdade só se fazia, então, necessário para rediscutir as relações de poder onde tal discussão convinha: na esfera pública, lócus em que era necessário colocar freios no absolutismo do monarca e minar os privilégios da aristocracia em seu entorno. Não havia, entretanto, o interesse de fossem rediscutidas as bases das relações domésticas, pois, cabendo ao chefe de família a definição do que era melhor para o seu clã, tal estado de coisas não trazia inquietudes para os teóricos da época. Ao longo do século XIX, a Revolução Industrial, se por um lado solidificou os ideias iluministas da burguesia em ascensão, por outro, com a exclusão social da nova classe proletária, colocou em evidência a necessidade de repensarmos os laços de poder para além da relação pública Estado versus cidadão. Agora, o opressor do homem não era mais um ente governamental abstrato, mas sim o próprio particular que, pela busca desenfreada do lucro, poderia oprimir os seus iguais. Nesse cenário, ganharam corpo as reinvidicações da classe economicamente desfavorecida, o proletariado, e questões como a insalubridade do meio ambiente do trabalho e jornada laboral passaram a ocupar o cerne da discussão sindical. Nesse novo cenário urbano, o interior da fábrica revelava condições laborais degradantes, as quais afetavam com maior impacto as mulheres e as crianças. Dentre os movimentos sociais que se destacaram no final do século XIX, o feminismo redefiniu o papel da mulher na sociedade, não mais restrito às quatro paredes do lar. Com a sua força de trabalho empregada na indústria – onde não importava o gênero das mãos fabris –, a figura da mulher desapegava-se do quadrante doméstico para, ao longo do século XIX e início do século XX, lançar-se no espaço público. Iniciava-se então o debate que, por um lado, propugnava para a mulher a superação de sua condição doméstica para ter não só direitos de proteção na sua atividade laboral, mas também, desfrutar de outros bens fundamentais tais como a igualdade de salários com seus parceiros, a propriedade e os de natureza política. Só mediante o alcance de tais liberdades poderia o ser feminino ter condições de interferir na estrutura de poder e formatar as 61 estruturas de um sistema que lhe era opressor. O próprio conceito de igualdade foi então questionado, na medida em que se percebia que os elementos constitutivos do que constituiria o padrão de isonomia não fora estabelecido com a participação da mulher, mas sim segundo uma lógica de gênero própria do mundo masculino.159 Era uma causa, portanto, com apelos não somente conjunturais, mas que, sobretudo, visava a rediscutir a superestrutura da sociedade, reflexo do poder dominante. A causa da infância foi fortemente beneficiada com o movimento em prol dos direitos femininos, a começar pelo fato de que muito do debate acerca do reconhecimento de direitos para a criança foi liderado por mulheres, tal como a inglesa Englantyne Jebb, que, à frente da União Internacional de Proteção à Infância (Save the Children Internacional Union), desempenhou papel fundamental na elaboração da 1ª Declaração Internacional dos Direitos da Criança – a Carta de Genebra, de 1924.160 Na jurisprudência, com o desenvolvimento da Tender Years Doutrine (discutida no item 2.2), o interesse da esposa destacava-se dos de seu marido e, junto com a mulher, também se desenlaçavam os interesses da prole dos de seu pai. Estabelecia-se, portanto, um ponto de inflexão para o até então inquestionável poder patriarcal sobre os assuntos do lar, inclusive, no que dizia respeito ao destino de seus rebentos. No campo legislativo, muitas das primeiras normas de proteção da infância foram gestadas no mesmo contexto das de proteção à mulher, sobretudo na regulação do meio ambiente do trabalho, tratando de questões como idade mínima, condições materiais e jornada laboral apropriada.161 Mas, sobretudo, o grande impacto do feminismo foi o de permitir às teorias da justiça da época o ingresso no espaço familiar, até então apartado da discussão política. A ciência do direito, outrora monotematizada pelo olhar masculino, passou a ser discutida sobre outras bases, nas quais o papel da mulher na sociedade era revisto tanto dentro como fora do lar.162 159 Nesse sentido, cf. Will. Filosofia política contemporânea. São Paulo: Martins Fontes, 2006. 160 Tom Cockburn informa ainda que, apesar de o grupo da Liga das Nações que trabalhou a redação da 1ª Declaração Internacional dos Direitos da Criança – a Carta de Genebra, de 1924 – ser composto tão somente por homens, os seus assessores eram franca e majoritariamente do sexo feminino. Em 1932, no Comitê de Bem-Estar da Criança da Liga das Nações, apesar de os seus 12 integrantes governamentais serem todos do sexo masculino, dos seus 13 assessores, 10 eram mulheres. COCKBURN, Tom. Rethinking children´s citizenship. Basingstoke: Palgrave Macmillan, 2013. p. 164. 161 COCKBURN, op.cit., p. 164. 162 Como informa Will Kymlicka, o movimento feminista logo descobriu que, para garantir a participação igualitária da mulher no mercado de trabalho ou na política, não era suficiente uma simples regra de não discriminação: necessário seria também se definir questões mais frugais, tal como: “quem vai cuidar das crianças?”. Do contrário, pouco adiantaria a vedação de atitudes discriminatórias se não se ofereciam às mulheres as mesmas oportunidades para concorrer em igualdade de condições com os homens nos espaços 62 Portanto, a redistribuição de poderes entre homens e mulheres tanto na esfera pública como na privada foi um fundamental precedente que o movimento feminista legou para a causa da infância, na medida em que demandava a alteração do status quo relativo aos papeis desempenhados por cada um dos membros do lar. A discussão pública adentrava os claustros domésticos e isso, como veremos, redefiniria também o lugar da criança na família e na sociedade. 3.2 A EFICÁCIA HORIZONTAL DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS E SUA REPERCUSSÃO NO DIREITO DE FAMÍLIA A influência dos movimentos sociais do século XX para o desenvolvimento de teorias da justiça com abrangência sobre os espaços privados teve grande repercussão também na teoria constitucional, especialmente no que se refere à redefinição dos destinatários das normas de direitos fundamentais. Classicamente, as normas jusfundamentais referem-se à relação de prerrogativas que detêm os cidadãos frente ao poder do Estado. 163 Tal pensamento deita raiz na tradição iluminista forjada durante a primeira fase do liberalismo político, em que a teoria do direito construiu seus pensamentos visando a por fim na influência eclesiástica sobre os negócios do Estado e do Estado deste sobre a vida privada. A perspectiva tradicional refere-se, então, ao conceito de eficácia vertical das normas jusfundamentais: o poder público, instância maior, atua sobre a vida das pessoas para garantir-lhes a liberdade, e ao mesmo tempo, limitá-la, quando necessário à convivência social. Porém, ao regular a conduta humana, a ação governamental também precisa de fiscalização e limites a fim de não agir em excesso contra a liberdade individual, maior razão de ser do aparato governamental. Com a complexificação das relações sociais, a globalização e o surgimento de grandes empresas multinacionais com poderio econômico equivalente ao de muitos Estados, o direito passa também a se preocupar com as relações de poder tanto quando o Estado ocupa um dos polos da relação frente ao particulares, como também quando nos dois polos encontram-se entes privados, porém, em enorme desvantagem socioeconômica de um para com o outro. Nesse contexto, discutimos, então, se as normas de direitos fundamentais poderiam ter como destinatários também o particular, numa construção dogmática que profissionais. KYMLICKA, Will. Filosofia política contemporânea. Tradução: Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2006. 163 Nesse sentido, Leonardo Martins e Dimitri Dimoulis: “A relação jurídica própria dos direitos fundamentais só é tecnicamente viável entre os tradicionais e formalmente desiguais, quais sejam: o particular e o Estado”. DIMOULIS; MARTINS, op. cit., p. 101. 63 abrangesse outros entes que não os de natureza pública. Com isso, desenvolve-se a tese da eficácia horizontal das normas constitucionais. Porém, ao nos aproximarmos do debate em torno da eficácia horizontal, veremos que o cerne da discussão na doutrina nacional e estrangeira não diz respeito propriamente à horizontalidade em si da vinculação constitucional, mas à forma como essa manifesta-se, ou seja: se trata-se de uma eficácia horizontal imediata, vinculando diretamente os particulares às normas de direito constitucional, ou mediata, hipótese em que tal incidência é mediada pelo Poder Judiciário.164 O efeito mediato ocorre quando a aplicação da norma constitucional alcança os particulares não de forma direta, mas pela intermediação do Poder Judiciário, que, ao exarar a norma de decisão para os particulares, deve interpretar as normas de direito privado, segundo os princípios e valores da Lei Fundamental. Nesse prisma, quem está vinculado diretamente à norma constitucional não são os particulares, mas o Estado-juiz. Os particulares estão vinculados entre si por meio das normas infraconstitucionais de direito privado, e a Justiça, ao interpretar tais normas – notadamente por meio dos seus conceitos jurídicos indeterminados (tais como a boa-fé e o equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores165; a noção do conceito de desenvolvimento da criança, previsto nos arts. do ECA que tratam de sua saúde, liberdade e educação166; a extensão do poder parental dos pais para com seus filhos de “dirigir-lhes a criação e a educação”167, cujo conteúdo é genérico e deve ser precisado no caso concreto etc.) –, deve fazê-lo segundo as diretrizes estabelecidas pelas normas de direitos fundamentais.168 Pela teoria da incidência mediata, as cláusulas gerais e os conceitos jurídicos indeterminados das normas de direito privado constituem as janelas, através das quais os direitos fundamentais irradiam seus efeitos para o ordenamento infraconstitucional (o chamado efeito de irradiação – no original, em alemão, Ausstrahlungwirkung).169 Em não 164 Cf. SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 11. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012. 165 Código de Defesa do Consumidor, art. 4º, III. BRASIL. Lei 8.078, de 11 de setembro de 1990. Dispõe sobre a proteção do consumidor e dá outras providências. Disponível em: . Acesso em: 30 jun. 2016. 166 Arts. 3º, 7º, 15 e 53, dentre outros. 167 Código Civil, art. 1.634, I. BRASIL. Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Disponível em: . Acesso em: 30 jun. 2016. 168 Segundo Leonardo Martins e Dimitri Dimoulis (ao tratarem, a título ilustrativo, das normas privadas de caráter contratual): “O efeito horizontal se traduz como vínculo específico do Judiciário de interpretar tais cláusulas contratuais e o direito privado de maneira orientada pelas normas de direito fundamental”. DIMOULIS; MARTINS, op. cit., p. 99. 169 DIMOULIS; MARTINS, op. cit. 64 havendo tais janelas, as normas constitucionais não chegam ao caso concreto. Ou mais apropriadamente: chegam, mas não para regular diretamente o caso, mas sim para dar ampla liberdade às partes privadas para contratar livremente, sem qualquer ingerência da jurisdição constitucional sobre seu negócio. A ausência de tais janelas é, pois, um silêncio eloquente, sinal de que o legislador teria privilegiado a liberdade das partes contratantes.170 Tal raciocínio é corolário do livre desenvolvimento da personalidade (art. 5º, caput, da Constituição Federal, doravante CF) e livre associação (art. 5º, XVII, da CF).171 Por sua vez, para os partidários do efeito imediato, a vinculação dos particulares à norma jusfundamental dá-se de forma direta, sem ser necessária a mediação de qualquer ente governamental. Segundo informa Ingo Wolfgang Sarlet, a tese da eficácia horizontal imediata, encabeçada na Alemanha por Nipperdey e Leisner, fundamenta-se no princípio da unidade da ordem jurídica e da força normativa da Constituição, não se podendo aceitar “que o direito privado venha a formar uma espécie de gueto à margem a ordem constitucional”.172 Uma questão que surge no debate sobre a eficácia direta ou indireta, diz respeito à presença de uma relação jurídica do tipo indivíduo-poder. Se na relação privada há um desequilíbrio de força entre os particulares, detendo uma das partes elevado poder social, há relativo consenso na doutrina quanto à possibilidade de se aplicar diretamente as normas de direito fundamental a tais relações.173 Questão mais tormentosa surge, porém, quando se está diante de situações entre particulares que não configuram as hipóteses de relação indivíduo- poder. Estando os particulares em posição de relativa igualdade, parte da doutrina tende a restringir a eficácia das normas de direito fundamental à sua forma indireta, lançando mão da suprarreferida tese da eficácia irradiante (mediata), pois se preservaria, com isso, a liberdade 170 É por esse motivo que Dimoulis e Martins criticam a decisão do Supremo Tribunal Federal no Recurso Extraordinário 161.243-6/DF (conhecido como caso Air France), de 1996, no qual o tribunal, aplicando diretamente a norma constitucional de igualdade (CF, art. 5º, caput), não deu guarida às normas de direito privado da empresa que davam tratamento salarial diferenciado a pessoas prestadoras de serviços de mesma natureza, complexidade e jornada, usando como critério de discrímen tão somente a nacionalidade francesa ou não do empregado. Segundo os autores essa decisão foi, numa perspectiva jurídico-dogmática, equivocada, pois “Caso o dever de igual remuneração de trabalhadores de nacionalidade diferente se encontre proclamado em normas infraconstitucionais (contrato, estatuto da empresa, convenções coletivas, legislação trabalhista), não há necessidade de invocar normas constitucionais que proclamem igualdade. Se, ao contrário, a obrigação de igual tratamento de trabalhadores de nacionalidades diferentes não estiver prevista nas normas infraconstitucionais, não temos lacuna jurídica, nem se aplica diretamente a Constituição”. DIMOULIS; MARTINS, op. cit., p. 107. 171 Nesse sentido, DIMOULIS; MARTINS, op. cit., p. 107. 172 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 11. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012. p. 387-388. 173 Nesse sentido, SARLET, op. cit. 65 individual e a autonomia privada.174 Feitas essas considerações iniciais, necessário é atentar para o objeto do presente estudo, qual seja, a relação entre pais e filhos para perquirir de que forma dá-se ali a incidência das normas constitucionais: mediata ou imediatamente? Temos ali uma relação entre iguais ou ela mais se configura como uma relação indivíduo-poder? Nosso entendimento é o de que, apesar de a relação pais e filhos dá-se entre particulares, temos ali, efetivamente, uma relação do tipo indivíduo-poder. Aliás, é justamente isto que torna complexa a análise constitucional da condição jurídica da infância: um sujeito de direitos, livre, mas cujo raio de liberdade depende de um poder alheio, de natureza parental.175 Como já apontamos, a doutrina constitucional consolidou-se em seus primórdios numa relação jusfundamental que postava o indivíduo como o titular do direito e o Estado como seu garantidor – ora como provedor (dos direitos de prestação), ora como não-limitador (dos direitos de resistência do cidadão). Porém, como demonstrou o surgimento do Estado de Bem-Estar Social, o homem também poderia ser um potencial violador das liberdades fundamentais de seus concidadãos e, nesse prisma, os direitos de primeira geração (os direitos civis e políticos) não seriam suficientes para se garantir uma almejada igualdade – aqui compreendida em termos de oportunidades. O capitalismo globalizado só ratificou a ideia de que os particulares podem ter força semelhante à de um Estado.176 Ademais, ao longo da história da humanidade, por várias vezes, o ser humano já deu mostras de que ele pode ser o principal opressor do seu semelhante, como demonstram questões tais que o racismo, a sujeição das mulheres no lar, a exclusão social das pessoas com deficiência, dentre outras. No campo filosófico, por sua vez, como visto no item anterior, os teóricos clássicos 174 Nesse quadrante, segundo Ingo Wolfgang Sarlet, situam-se as posições de José Carlos Vieira de Andrade e V. M. P. D. Pereira da Silva. SARLET, op. cit., p. 390. 175 Feliz síntese é feita por John Locke a respeito da condição da criança sob o poder parental, no seu Segundo tratado sobre o governo civil, de 1689: “Admito que as crianças não nascem neste estado de plena igualdade, embora tenham nascido para isso. Seus pais têm uma espécie de governo e jurisdição sobre eles quando eles vêm ao mundo e durante algum tempo depois, mas é apenas temporário. Os laços desta sujeição são como as fraldas que eles vestem e protegem a fragilidade de sua infância. A idade e a razão, à medida que elas crescem, pouco a pouco as liberta delas, até o dia em que caem completamente e deixam o homem absolutamente livre”. LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo civil. Disponível em: . Acesso em: 13 abr. 2016. 176 Enquanto escrevemos estas páginas tem sido matéria de destaque nos jornais dos Estados Unidos, o embate, em pé de igualdade, entre o Federal Bureau of Investigation (FBI) e a empresa norte-americana Apple em torno do direito de privacidade dos seus clientes à luz da necessidade de medidas de combate ao terrorismo pelo governo estadunidense. Notícia disponível em: . Acesso em: 30 jun. 2016. 66 acomodaram-se em discutir as relações de poder no âmbito da família, pois, sendo em sua maioria do sexo masculino, não lhes era difícil – mas sim para suas esposas – acessar bens fundamentais tais como o patrimônio, a livre expressão e o voto. O disciplinamento das relações públicas de poder tinha como cerne a proteção dos cidadãos – com destaque para os do gênero masculino – frente ao Estado e com tal finalidade as normas constitucionais eram concebidas. Porém, com o feminismo tornou-se premente a rediscussão das relações de poder também no âmbito da família. A evolução do pensamento filosófico e da ciência política leva- nos a crer, portanto, que a tese da eficácia mediata da Lei Fundamental é datada. E, ainda, agora a partir de uma análise jurídica, se atentarmos para a nossa Constituição Federal, constataremos que ela é bem clara, no seu art. 227, em identificar como destinatários das normas de proteção e promoção dos direitos das crianças não só o Estado, mas, antes dele, a família e a sociedade. Da mesma forma, quando fala do direito de educação, em seu art. 205, nossa Lei Fundamental aloca-o como dever do Estado e da família. Pode-se, então, criticar a conveniência ou não de ter a Carta de 1988 colocado, ao lado do Estado, os particulares como garantidores finais da norma constitucional, mas não se pode fugir do caráter cogente das palavras usadas pelo legislador constituinte, que vinculou diretamente os particulares à realização de relevantes bens fundamentais das crianças e dos adolescentes.177 Outro aspecto a ser considerado é que, com a segunda fase do processo de internacionalização dos direitos humanos – referente à especificação dos sujeitos de direito178 –, os atores do espaço doméstico não mais se poderiam furtar a ser destinatários da proteção jurídica de categorias tais como a mulher, a criança, o idoso e as pessoas com deficiência, dentre outros. Com isso, a distinção entre direito público e privado ficou cada vez mais tênue: enquanto o direito de família pode ser defendido por alguns como direito privado, a relação com os filhos, em boa parte conformada pelo ECA, já não mais o é. Parece-nos então assistir razão a Nipperdey e Leisner em propugnar a eficácia direta a partir da unidade lógica da ordem jurídica. Não se nos afigura razoável decompor o ordenamento em duas partes – constitucional e não-constitucional –, laborando o magistrado, numa lide entre particulares, tão somente com sua parte infraconstitucional. Seria, com a devida vênia, reduzir a importância da Lei Fundamental. 177 No mesmo sentido, Sarlet, Canotilho e Jorge Miranda entendem que, diante de um comando constitucional diretamente dirigido aos particulares (pais com relação aos filhos; empregadores, com relação às normas de proteção aos trabalhadores etc.) a questão da eficácia imediata encontra-se equacionada. SARLET, op. cit., 385. 178 Sobre o processo de especificação dos sujeitos de direito na ordem internacional, cf. item 2.5 deste estudo. 67 Ademais, dizer que a eficácia horizontal é indireta, porque intermediada pelo Poder Judiciário, também não nos convence, pois, se assim o fosse, o próprio direito privado teria de ser considerado como de aplicação mediata, já que, por exemplo, mesmo havendo a violação de um contrato firmado entre particulares e regido por norma infraconstitucional, o Poder Judiciário também deverá ser chamado a decidir, sob pena de se configurar algum mecanismo de autotutela, o que não é aceito, em regra, por nosso ordenamento jurídico. Necessário, porém, nesta altura, um ponto de inflexão. Analisando as aplicações práticas dos partidários da eficácia horizontal mediata e imediata, não vemos tanta relevância nessa discussão para além de um debate teórico. Em nosso sentir, ambas as visões muito aproximam-se no caso concreto – e mais ainda quando se está diante de direito fundamental da criança ou do adolescente. Isso porque, por um lado, mesmo os partidários da aplicação imediata entendem que as normas fundamentais têm um conteúdo normativo limitado, necessitando da mediação do legislador ordinário na sua atividade de concretização do ordenamento constitucional.179 Pouca eficácia haveria, por exemplo, na norma constitucional que prevê como direito fundamental da criança e do adolescente o direito à convivência familiar e comunitária, se o legislador ordinário não tivesse editado a Lei 8.069/90 para garantir que: a) nenhuma criança pode ser afastada de seus pais por motivo de pobreza180; b) o acolhimento institucional é medida excepcional e provisória181; c) o afastamento da criança de seus pais ou responsável pressupõe o contraditório e ampla defesa182 etc. Nessa perspectiva, a força da aplicação direta será, pois, tão maior quanto mais o processo hermenêutico for mediado pela atividade do legislador infraconstitucional. Por outro lado, os partidários da aplicação mediata das normas de direito fundamental propugnam que o efeito de irradiação dessas normas sobre o ordenamento jurídico traz toda uma nova dimensão para as normas de direito privado.183 Portanto, especificamente em matéria de direito da criança e do adolescente, diante do 179 Nesse sentido, cf. SARLET, op. cit. 180 ECA, art. 23. 181 ECA, art. 34, § 1º. 182 ECA, art. 101, § 2º. 183 Nesse sentido, sobre os efeitos de irradiação das normas constitucionais de proteção à infância, Martins e Dimoulis asseveram: “Em vista da ampla proteção da criança e do adolescente na Constituição Federal e em se entendendo tal proteção como configuração específica dos direitos fundamentais sociais do art. 6º da CF e não apenas como possíveis limites constitucionais de direitos fundamentais de status negativus, as leis que regulamentam a situação dos menores na família, na escola, no trabalho etc. devem ser interpretadas no sentido da maior proteção do menor (status positivus)”. DIMOULIS; MARTINS, op. cit., p. 106. 68 vasto arcabouço legislativo de que dispõe o Brasil – tanto no ordenamento nacional, como nas normas internacionais incorporadas entre nós –, certamente o que não nos falta são janelas a permitir a ampla incidência da luz constitucional sobre os mais variados direitos da criança (convivência familiar, saúde, educação, assistência social, segurança alimentar, lazer, profissionalização etc.) e isso mais ainda aproxima, em termos práticos, os partidários das correntes mediata e imediata da eficácia horizontal. Assim, apesar de defendermos a eficácia horizontal direta das normas constitucionais, entendemos também que a repercussão da discussão sobre horizontalidade e verticalidade das normas jusfundamentais apresenta poucas implicações em termos práticos, especialmente na área do direito da criança e do adolescente. 3.3 A AUTONOMIA DOS PAIS EM QUESTÃO O feminismo levou a filosofia política para a sala de estar da família. O processo de especificação dos sujeitos de direitos decorrente do movimento de internacionalização dos direitos humanos mais ainda acelerou a publicização de um tema tão privado como a família. Passou-se a discutir os tradicionais papeis dos sujeitos do lar, ora para repactuar-se a relação homem-mulher, ora para, mais atualmente, rediscutirem-se as bases da relação entre pais e filhos. A elevação da criança e do adolescente à condição de sujeitos de direitos tem, diversamente do que propõem alguns doutrinadores, um impacto muito maior na realidade do que uma mera figura performática.184 A promulgação e adesão à Convenção sobre os direitos da Criança e do Adolescente (CDC) transmuda o outrora infante – cuja etimologia, como já dito, aponta para a imagem de alguém sem fala185 – em pessoa titular de direitos, capaz de alcançar uma voz e querer próprios, não se lhe concebendo a instrumentalização por outrem, mesmo que seus responsáveis. 184 John P. Humphrey, durante os trabalhos de redação da Declaração dos Direitos da Criança da ONU escreveu: “Eu duvido se o propósito a que a Declaração servirá poderia possivelmente justificar o tempo e esforço que as Nações Unidas devotaram ao tratado. Trata-se, eu suspeito, de um paliativo que estava sendo usado para dar a impressão de que o Comitê de Direitos Humanos estava fazendo algo. Havia certamente outros assuntos mais importantes que precisavam de atenção. No original: “I doubted whether the purpose (such a declaration) would serve could possibly justify the time and effort the United Nations was devoting to it. It was, I suspected, a stopgap which was being used to give the impression that the Human Rights Commission was doing something. There were certainly other more important matters that needed attention”. HUMPHREY, John P. Human Rights and the United Nations: A Great Adventure. New York: Dobbs Ferry, 1984, p. 231. 185 Cf. nota de rodapé 145, p. 52. 69 Por esse motivo alguns doutrinadores e algumas associações, em favor dos direitos dos pais, veem com desconfiança as campanhas formuladas em prol da adesão dos países à CDC. Na França, Irène Théry reclama que os “novos direitos da criança”186 nada mais são do que “o cavalo de Tróia de uma incrível imisção do Estado nas famílias e na vida privada”.187 Nos Estados Unidos, o manifesto da Associação em Defesa do Ensino Doméstico (Home School Legal Defense Association) intitulado A Convenção da ONU sobre os Direitos da Criança: o mais perigoso ataque sobre o direitos dos pais na história dos Estados Unidos (tradução livre), elenca diversos aspectos, tanto no âmbito das políticas públicas como da autoridade parental, em que a Convenção muda as regras do jogo na relação pais e filhos188 e Estado-criança.189 Mesmo que se questione a premissa de que partiram tais autores – pois a CDC também privilegia a autoridade parental e reconhece o direito dos pais na educação de seus filhos (cf., nesse sentido, arts. 2; 3; 5; 18.1, segunda parte, dentre outros) –, os fatos comprovam o enorme impacto que a CDC teve sobre os assuntos domésticos, como bem ilustra o movimento dos organismos internacionais de direitos humanos voltados a erradicar a palmada como método válido de educação pelos pais. O Conselho Europeu de Direitos Humanos censurou a França por não adotar as medidas legislativas cabíveis a fim de banir o uso da palmada por parte dos genitores190; a ONU advertiu o Reino Unido191 e o Canadá192 na 186 A autora critica a tipologia dos direitos na Convenção, muitos dos quais seriam absolutamente não sindicáveis, tal como o direito a um “nível de vida adequado”, previsto no artigo 27 deste tratado. Trata-se, para Théry, de pseudodireitos. THÉRY, op. cit., p. 149. 187 THÉRY, op. cit., p. 154. 188 Dentre os aspectos em que a CDC atinge o poder parental, Klicka e Estrada informam que este tratado, ao garantir à criança direitos de liberdade de expressão (art. 12); de pensamento, consciência e crença (art. 14); de privacidade (art. 16); de educação (arts. 28 e 29); de não serem submetidas à violência física ou mental (art. 19), dentre outros aspectos, afetará a liberdade dos pais, na medida em que os pequenos, doravante, poderão ouvir rock, assistir televisão, ter acesso à pornografia; não se submeter à orientação religiosa oferecida por seus pais; decidir, sem a notificação dos responsáveis, sobre práticas abortivas; decidir sobre acessar ou não a educação pública; não serem submetidos à palmada como método educativo na escola ou por seus pais e, finalmente, irá de encontro à uma longa e forte tradição norte-americana de privilegiar a liberdade parental na educação de sua prole. KLICKA, Christopher J.; ESTRADA, William A. The UN Convention on the Rights of the Child: the most dangerous attack on parental rights in the history of the United States. Disponível em: . Acesso em: 01 mar. 2016. 189 No âmbito da relação criança-Estado, segundo o manifesto, a Convenção retiraria a liberdade dos estados americanos de conformar a relação entre pais e filhos no seu ordenamento local; forçaria o governo norte- americano a instituir um seguro nacional de saúde para as crianças; levaria ao estabelecimento de um currículo nacional de ensino; forçaria o poder público a instituir e aumentar medidas de seguridade social em prol das famílias carentes; todos os estados deverão implementar medidas para registrar o nascimento da criança logo após o parto; levaria a que os agentes governamentais, e não mais os pais, decidissem o que é melhor para a criança, dentre outros aspectos. KLICKA; ESTRADA, op. cit. 190 Cf. a notícia da BBC, datada de 05 de março de 2015. Disponível em: . Acesso em: 14 abr. 2016. 70 mesma questão; o Brasil aderiu à tendência internacional de erradicar a palmada como método de ensino com a edição da Lei 13.010, de 26 de junho de 2014 (a assim denominada Lei da Palmada), sobre a qual discorreremos mais adiante neste capítulo. A proteção da criança comporta, então, um notável desafio epistemológico para a ciência do direito: à medida que se preveem no campo normativo medidas de proteção e promoção ao desenvolvimento da criança – o que engloba, conforme veremos no próximo capítulo, aspectos protetivos, provisionais e de participação –, há uma tendência de diminuir- se o espaço de autonomia parental na educação de seus filhos. Esboça-se um sistema de freios e contrapesos (checks and balances) no lar: quanto mais o Estado, na qualidade de parens patriae, intervier na família para proteger a criança e promover seus direitos, mais isso se fará em detrimento do poder familiar e mais esmaecida ficará a área de proteção do direito dos pais previsto no art. 1.634, I, do Código Civil.193 A Lei 13.010, de 26 de junho de 2014 (Lei da Palmada) é um exemplo eloquente disso. Porém, se é certo que a criança, como ser biologicamente vulnerável, precisa de proteção diferenciada, é pertinente indagarmos a partir de que ponto a perda de uma parcela do poder parental na condução dos seus filhos não termina por trazer consequências negativas para o petiz, ao se borrar na sua mente os necessários limites de sua autonomia – limites esses que são, primeira e mais efetivamente, colocados por meio do apego que o ser infantil nutre por seus pais.194 Devemos verificar se a forma com que o poder público intervém na família – o que tende a ocorrer com maior força junto às famílias de baixa renda – não pode contribuir para a desresponsabilização parental, na medida em que um ser exógeno à família, o Estado, dita as regras do lar.195 191 Nesse sentido, a notícia no site do jornal O Globo, de 24 de julho de 2015. Disponível em: . Acesso em: 14 abr. 2016. 192 Nesse sentido, KLICKA; ESTRADA, op. cit. 193 “Art. 1.634. Compete a ambos os pais, qualquer que seja a sua situação conjugal, o pleno exercício do poder familiar, que consiste em, quanto aos filhos: I - dirigir-lhes a criação e a educação”. 194 Nesse sentido, John Gottman, discorrendo sobre a importância da figura paterna na educação de sua prole, destaca o campo das interações domésticas como um espaço eminente da socialização humana: “Ela (a criança) aprende coisas importantes em matéria de controle social com a receptividade do pai. Aprende que pode afetar a maneira como ele a trata, que a maneira como ela se comporta pode influenciar outras pessoas”. GOTTMAN, John. Inteligência emocional e a arte de educar nossos filhos. 22. ed. Rio de Janeiro: Objetiva, 1997. p. 179. 195 A desresponsabilização é verificada com especial força em famílias carentes de recursos básicos para sua sobrevivência. Ali a atuação exagerada do Estado como parens patriae pode aumentar o ciclo de exclusão social em que estão imersas essas família, num fenômeno denominado no campo das ciências sociais, invisibilidade familiar. Segundo Silva e Micheli: “Dependendo do contexto no qual está inserida, a família fica prejudicada em suas tarefas básicas em relação ao cuidado, fenômeno conhecido como invisibilidade familiar e social. Estudos com grupos de pessoas, incluindo famílias vivendo na marginalidade, apontam 71 Por outro lado, é inegável que a titulação jurídica da criança e do adolescente transforma-os, para além de sujeitos de desejos, também em sujeitos de direitos, cuja opinião passa a trazer consequências jurídicas para seus responsáveis.196 Se não é bom que os pais vejam-se órfãos de uma teoria constitucional que lhes respalde o exercício do poder familiar, também não deve o exercício desse poder deixar de ser temperado pela noção da criança como credora de direitos fundamentais. Isso implica a reorganização da dinâmica familiar como espaço cultural de distribuição de poderes entre pais e filhos. Entretanto, defender o desenvolvimento de uma teoria da justiça no âmbito da família – em que os laços serão analisados pelo prisma dos direitos – não implica, necessariamente, asseverar que os vínculos ali existentes serão analisados da mesma forma que na relação indivíduo-Estado, a começar pelo fato de que, enquanto o paternalismo é visto com ressalvas, quando o agente protetor é o poder público197, no âmbito doméstico, porém, tal conceito é tido como natural e, até certo ponto, estimulado.198 Ademais, o poder parental do Estado e dos pais é distinto, pois, enquanto para estes suas obrigações alicerçam-se primariamente sobre a solidariedade, nas relações públicas as obrigações têm fundamentação eminentemente jurídica. Isso não significa, porém, que não haja elementos de juridicidade e solidariedade, respectivamente, na relação pais e filhos e Estado e cidadãos199. Contudo, o enfoque primário dos vínculos constituídos em uma ou outra situação é diverso. Isso tem especial relevância quando se analisa a aplicação do princípio do interesse superior da criança e do adolescente no âmbito da família, o qual, como visto, tem uma que elas passam por um processo de desfiliação, predispondo-as a riscos significativos. A desfiliação é um fenômeno de desqualificação, dissociação e invalidação social na maneira como a sociedade vai determinando o lugar que cada um ocupa em seu meio. Nesse cenário, as famílias, principalmente as de classes socialmente desfavorecidas, foram, em um passado recente, demasiadamente culpabilizadas e julgadas em sua ‘falta’ de competência nas tarefas de cuidar, quando, na verdade, não haviam aprendido esse exercício em razão de contextos variados e adversos. Ambiente familiar vulnerável, pais que abusam de drogas, falta de autoridade e de envolvimento afetivo dos pais e outros fatores de natureza macrossocial estão associados a fatores de risco que, em um ciclo contínuo, predispõem crianças e jovens à desfiliação, e o abuso de drogas faz parte da trajetória para a marginalidade e exclusão social”. SILVA, Eroy Aparecida da; MICHELI, Denise de. Família: uso e abuso de drogas – entre o risco e a proteção. In: ANDRADE, Arthur Guerra de (Coord.). Integração de competências no desempenho da atividade judiciária com usuários e dependentes de drogas. Brasília: Ministério da Justiça, Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas, 2011. p. 217. 196 Segundo o art. 12 da CDC, a opinião da criança em condições de formular seus próprios juízos deve ser levada em consideração. Mesmo que sua vontade não seja atendida, há uma dimensão ética e jurídica que aponta a necessidade de se colher a visão da criança nos assuntos a si relacionados. 197 A Doutrina do Parens Patriae, como se viu (item 2.4), desenvolveu-se a fim de limitar o agir do Estado como Superpai junto à família. 198 Nesse sentido, o ECA estabelece como um dos princípios norteadores da aplicação das medidas de proteção o da responsabilidade parental, pelo qual “a intervenção deve ser efetuada de modo que os pais assumam os seus deveres para com a criança e o adolescente”. BRASIL. Lei no 8.069, de 13 de julho de 1990 – Estatuto da Criança e do Adolescente. Art. 100, parágrafo único, IX. 199 Sobre a relação entre juridicidade e solidariedade, retornaremos a discuti-la com maior vagar no capítulo 5. 72 estrutura garantista – i.e., referente a um rol de direitos fundamentais.200 Dessarte, mesmo que se reconheça – como o faz o art. 18.1, parte final, da CDC201 – a possibilidade de o melhor interesse ser extensível à família, a sua aplicação no âmbito doméstico, justamente por ali ser um local em que muito dos deveres perfazem-se por meio de obrigações morais202, requer uma série de adaptações, quando comparadas à realização do melhor interesse pelo Estado.203 Outro ponto que mostra como a construção de uma teoria da justiça para a família demanda adaptações refere-se à pretendida eficácia horizontal direta das normas constitucionais e a subsequente aplicação de regra da proporcionalidade. Como veremos adiante, a proporcionalidade serve de critério para analisar as intervenções do Estado na vida privada, porém, quanto às intervenções feitas pelos particulares sobre outros – como no caso da família –, esse método demanda cautelosa análise sobre a extensão de sua aplicação. Assim, a título de exemplo, se é plenamente viável, a análise sobre a rigidez do poder público com a edição da Lei da Palmada pelo viés da sua necessidade – que importa na averiguação, com base em dados técnico-científicos, quanto à onerosidade da medida, indagando se não haveria outras menos gravosas para os particulares, aptas a alcançar o fim buscado204 –, parece-nos que tal critério demanda maior cautela quando referido ao âmbito doméstico. Como discutir com a família sobre o rigor do castigo físico pelo prisma da necessidade jurídica, quando as relações ali travadas têm como fundamento primeiro a solidariedade? Como discutir com os pais à luz de dados científicos, quando o código primordial de comunicação na família é marcado pela moralidade e solidariedade? É viável 200 Cf. item 2.6. 201 “Os Estados Partes envidarão os seus melhores esforços a fim de assegurar o reconhecimento do princípio de que ambos os pais têm obrigações comuns com relação à educação e ao desenvolvimento da criança. Caberá aos pais ou, quando for o caso, aos representantes legais, a responsabilidade primordial pela educação e pelo desenvolvimento da criança. Sua preocupação fundamental visará ao interesse maior da criança”. (Grifo nosso). 202 Sobre o impacto das obrigações morais (imperfeitas, segundo a filosofia kantiana) no universo do direito de família, discutiremos esse questão no capítulo 5. 203 A peculiaridade ínsita à aplicação do interesse superior no âmbito privado é reconhecido na Orientação Geral 14/2013 do Comitê da ONU de Monitoramento da CDC, itens 86 e 87, ao explanar que, enquanto para o Estado há a obrigação de se desincumbir da definição do melhor interesse por meio de regras de procedimento conformadas em duas etapas – acesso e determinação –, para aquelas pessoas que lidam com a criança diariamente (pais, guardiões, professores etc) tais etapas não precisam ser seguidas rigorosamente, apesar de que suas decisões devem, ainda assim, refletir o melhor interesse da criança. Sobre as Orientações Gerais da ONU, cf. a nota de rodapé 101, p. 40. 204 Segundo Martins, ao discorrer sobre a análise da onerosidade (necessidade) da medida: “Verificar a necessidade do meio utilizado significa verificar a não existência de outro meio ou estado de coisas que o Estado possa sem maiores investimentos, conseguir que seja, a um só tempo, menos gravoso para o titular da liberdade intervinda e que tenha, igualmente, com o estado de coisas no qual o propósito possa ser considerado realizado a aludida conexão intermediada por hipóteses comprovadas sobre a realidade”. MARTINS, Leonardo. Liberdade e Estado Constitucional: leitura jurídico-dogmática de uma complexa relação a partir da teoria liberal dos direitos fundamentais. São Paulo: Atlas, 2012, p. 145-146. 73 discutir a onerosidade da palmada com pais que acreditam piamente no seu valor? Como deve então ser a postura do Estado diante de tais impasses? No capítulo 6, serão discutidas questões em torno da Lei da Palmada, bem como, no capítulo 5, o tema da solidariedade como complemento às teorias tradicionais da justiça. Antes, porém, é necessário discutir o que a autonomia da criança implica para os pais – e isso será o objeto do próximo capítulo, o 4 –, bem como o que o poder parental importa para a autonomia dos seus filhos – o que será o objeto dos próximos tópicos. 3.4 O DESENVOLVIMENTO DA TEORIA CONSTITUCIONAL DA LIBERDADE PARENTAL NOS EUA A jurisprudência norte-americana desenvolveu a teoria sobre os direitos da criança a partir de uma concepção welfarista, na qual se reconhecia aos mais novos, quando muito, direitos relativos à sua dependência, mas não direito de liberdade.205 Vinculando o exercício pleno da cidadania ao domínio da razão, a compreensão dominante nos Estados Unidos construiu-se no sentido de que, não sendo o infante dotado de maturidade suficiente, não se lhe poderia reconhecer a aptidão para titularizar determinados tipos de direitos fundamentais, notadamente os que pressupusessem a sua autonomia e participação. É o legado da denominada impaired choice theory (teoria da escolha debilitada) para a concepção norte-americana da condição jurídica da criança, que muito aproxima-se das teorias das capacidades de nosso direito civil.206 Por esse prisma, a menoridade é vista como etapa na qual o desenvolvimento infantil dá-se sob o manto protetor de seus genitores, e a cidadania do pequeno pressupõe a integração pela representação de seus pais ou responsáveis. A ideia da dependência da criança, fundante da impaired choice theory, complementa-se na jurisprudência dos Estados Unidos pelo privilégio dado à autonomia dos pais na educação de sua prole, segundo os valores e a visão de mundo que lhes pareçam mais apropriados. A visão da Constituição como um estatuto de preservação das liberdades negativas dos cidadãos – valores tão caros à sociedade norte-americana – manifestou-se no lar na posição destacada que a autoridade parental recebe quando em discussão os direitos dos 205 Cf. item 2.2. 206 Sobre a impaired choice theory, cf. DAILEY, Anne C. Children´s constitutional rights. In: Minnesota Law Review, v. 95, n. 06. Minneapolis: University of Minnesota Law School, 2011, p. 2099-2179. DAILEY, Anne C. Children´s constitutional rights. In: Minnesota Law Review, v. 95, n. 06. Minneapolis: University of Minnesota Law School, 2011, p. 2099-2179. Disponível em: . Acesso em : 10 fev. 2016. 74 pais na criação dos seus filhos frente a intervenções externas, públicas ou privadas. Isso foi ratificado em várias ocasiões e à luz de diversos direitos fundamentais pela jurisprudência da Suprema Corte daquele país. Em Wisconsin v. Yolder (1972), o estado norte-americano de Wisconsin processou pais amish por violarem uma lei estadual que determinava que os jovens de até dezesseis anos deveriam frequentar a escola pública.207 Os genitores negavam-se a cumprir a lei, alegando que os valores do ensino médio conflitavam com suas crenças religiosas. A Suprema Corte americana, de forma unânime, com base na primeira emenda à Constituição dos EUA – na parte que outorga ao cidadão a liberdade de crença –, deu ganho de causa aos pais, asseverando que a liberdade de sua religião sobrepunha-se ao interesse do Estado de tornar obrigatório o ensino médio aos adolescentes. Alegou, ainda, que os valores e programas da escola secundária estavam “em franco conflito com o modelo de vida determinado pela religião amish”.208 Em Smith v. Organization of Foster Families For Equality and Reform (1977), uma associação de foster parents – em uma tradução livre, pais cuidadores – questionou a constitucionalidade de uma lei do Estado de Nova York que, regulando o programa de Foster Care, privilegiava medidas acautelatórias do direito à convivência familiar dos pais biológicos em detrimento do interesse dos pais cuidadores e das crianças sob sua tutela.209 207 Disponível em: . Acesso em: 30 jun. 2016. 208 Wisconsin v. Yolder. Disponível em: https://www.oyez.org/cases/1971/70-110. Acesso em: 17 abr. 2016. 209 Tentando traçar um paralelo com o direito brasileiro, o Foster Care é uma medida de proteção à criança e ao adolescente que se aproxima dos programas de acolhimento familiar, previstos no ECA, art. 101, VIII. No caso brasileiro, ao invés de o Poder Judiciário acolher os pequenos em um abrigo – as unidades de acolhimento institucional –, eles são encaminhados para acolhimento junto a famílias cadastradas no programa. Da mesma forma, porém, que o acolhimento institucional, o acolhimento familiar é excepcional e provisório (ECA, art. 101, §1º), pois, segundo nossa lei, o afastamento da criança de sua família de origem deve ser excepcional e provisório (ECA, art. 19, caput e § 3º). Entre nós, o acolhimento familiar tem preferência sobre o institucional, pois entendeu o legislador que isso é menos prejudicial para o desenvolvimento da criança (ECA, art. 34, § 1º). No mesmo sentido, BOWLBY, John. Cuidados maternos e saúde mental. Tradução: Vera Lúcia Baptista de Souza e Irene Rizzini. São Paulo: Martins Fontes, 2006. Pela lei do estado de Nova York, a criança poderia ser colocada sob o programa de Foster Care de forma voluntária, por seus pais, ou mediante ordem judicial, em caso de maus-tratos. Na forma voluntária, o programa é visto como uma medida provisória de proteção e apoio à família, diante da momentânea dificuldade dos pais biológicos de criar temporariamente seus filhos. Os adultos que cuidam diretamente da criança, denominados foster parentes – algo como “pais cuidadores” –, o fazem através de contrato com a agência que cuida do programa. A criança sob Foster Care pode ser removida do lar tanto por pedido dos pais biológicos, dos cuidadores ou por decisão da própria agência. No Foster Care, a lei transfere para a agência que cuida do programa a guarda da criança, mas a maioria das funções relativas ao cuidado diário são exercidas por seus pais cuidadores. Os pais cuidadores não detêm formalmente todos poderes decorrentes da guarda legal da criança, apesar de, na prática, exercer sua parcela. No acolhimento voluntário, os pais biológicos retém parte dos seus poderes e têm a obrigação de visitar o seu filho e planejar seu futuro. No caso de acolhimento por ordem judicial, os pais têm seus poderes familiares suspensos e, portanto, não têm à sua disposição a decisão em torno do momento em que a criança deve retornar para o lar. Informações disponíveis em: . Acesso em: 17 abr. 2016. E ainda: . Acesso em: 17 abr. 2016 210 Disponível em: . Acesso em: 17 abr. 2016. 76 cuidado, custódia e controle sobre seus filhos – é talvez o mais velho dos interesses de liberdade fundamental reconhecidos por esta corte”.211 Em Winkelman v. Parma City School District (2007), a Suprema Corte conferiu aos pais de uma criança com deficiência o direito de, em nome próprio – e não como simples representação processual – e sem advogado, postular na justiça o direito ao atendimento educacional especializado que fora negado ao seu filho na instância escolar.212 Segundo o tribunal, a lei em questão (Individuals with Disabilities Education Act – IDEA) conferia tal direito aos pais. Também se reconheceu na decisão que o direito à educação especial era um direito não só dos filhos com deficiência, mas também dos seus pais. Interessante notar que, em Winkelman, a Corte Suprema reconheceu à criança com deficiência direitos próprios, no sentido de ter mais direitos que as crianças sem deficiência, de forma que poderiam essas ter seus interesses diretamente considerados213 – o que, a contrario sensu, significa afirmar que tal prerrogativa não é extensível ao restante da população infantil e, portanto, tratava-se de uma exceção que só confirma a regra dos direitos na dependência dos petizes norte- americanos. Decisões como essas delinearam o pensamento dominante na jurisprudência norte- americana relativa à liberdade parental na educação dos filhos. Liberdade, essa, que se sobrepõem tanto perante terceiros de fora do lar – sejam representantes do Estado, sejam demais parentes integrantes da família extensa – como também, ressalte-se, perante a própria criança ou adolescente. Por esse motivo, quando da análise do caso Michael H. v. Gerald D. (1989), no qual se discutia a paternidade socioafetiva frente à paternidade biológica de uma menina, o acórdão da Suprema Corte apontou que o direito da criança restringia-se, quando muito, a observar o direito dos pais em disputa.214 Nas questões de família, o prisma de análise da Suprema Corte dos Estados Unidos dá-se, então, com foco no interesse dos adultos, não no da criança. Isso faz com que parte da doutrina norte-americana critique tal linha jurisprudencial, uma vez que, ao privilegiar os 211 Disponível em: . Acesso em: 17 abr. 2016. 212 Disponível em: . Acesso em: 30 jun. 2016. 213 Nesse sentido, GODSOE, Cynthia. All in the Family: towards a new representational model for parents and children. In: The Georgetown Journal of Legal Ethics, v. 24. Washington: Georgetown University Law Center, 2011, p. 303-355. Disponível em: . 13 abr.2016. 214 Disponível em: . Acesso em: 30 jun. 2016. / A partir desse caso, Dailey conclui que: “A proposição de que as crianças têm um direito constitucionalmente independente de manter relações fundamentais de afeto nunca foi abertamente aceita pela maioria da Suprema Corte”. (Tradução livre). No original: “The proposition that children have an independent constitutionally protected right to maintain primary caregiving relationships has never been openly accepted by a majority of the Supreme Court”. DAILEY, op. cit., p. 2162. 77 interesses dos maiores, deixa-se de analisar a lide também pelo prisma dos pequenos.215 Para Dailey, casos como Yoder ou Smith, nem chegaram a cogitar quais impactos a decisão traria para o desenvolvimento da criança e os vínculos afetivos que constituíra com seus cuidadores216. A visão dominante da liberdade parental na jurisprudência estadunidense é apontada por alguns autores como um dos principais motivos para a não adesão dos EUA à Convenção sobre os Direitos da Criança e do Adolescente.217 Apesar de ter participado ativamente dos trabalhos preparatórios do texto da Convenção,218 os Estados Unidos – que na administração Clinton chegaram a assiná-la, demonstrando interesse em ratificar o tratado219 – até a presente data não a ratificaram por causa da resistência de setores mais conservadores da sociedade americana. As razões para a não incorporação da CDC pelos EUA decorreriam sobretudo de dois motivos: a) a preservação da soberania do Estado – aqui entendida enquanto descentralização do poder decisório do governo federal para os governos estaduais, onde cada ente da federação tem uma larga margem de discricionariedade para formular as leis que melhor atendam aos interesses da comunidade local; b) uma larga tradição da teoria constitucional do direito de família norte-americano, que privilegia o poder parental em detrimento da autonomia da criança.220 Pergunta-se então: os casos analisados teriam a mesma solução no direito brasileiro? Em uma primeira análise, parece-nos que não, pois, desde 1988, com a acolhida em nossa Lei Fundamental da Doutrina da Proteção Integral, a teoria e, sobretudo, a legislação 215 Cf., a propósito, DAILEY, op. cit.; e BARTHOLET, Elizabeth. Ratification by the United States of the Convention on the Rights of the Child: pros and cons from a child´s rights perspective. BARTHOLET, Elizabeth. Ratification by the United States of the Convention on the Rights of the Child: pros and cons from a child´s rights perspective. In: The Annals of the American Academy of Political and Social Science, jan., 2011. v. 633. n. 1, p. 80-101. Disponível em: . Acesso em 13 fev. 2016. 216 DAILEY, op. cit. / Também criticando a jurisprudência adultocêntrica dominante nos EUA e demonstrando em que sentido a adesão pelos EUA à Convenção sobre os Direitos da Criança traria uma visão mais balanceada para as lides, envolvendo direitos de pais e crianças, v. BARTHOLET, op. cit. 217 Cf. ALSTON; TOBIN, op. cit. KLICKA; ESTRADA, op. cit. ARANTES, Esther Maria de Magalhães. Inquirição de crianças: um debate necessário. . Acesso em: 10 set. 2015. 218 Cf. ARANTES, op. cit. 219 No início do governo Obama, o governo norte-americano manifestou interesse em retomar a discussão com o Congresso visando à ratificação da CDC. Nesse sentido, cf. BLANCHFIELD, Luisa. The United Nations Convention on the Rights of the Child: background and policy issues. Disponível em: . Acesso em: 30 mar. 2016. 220 Para uma análise mais detalhada dos motivos por que os EUA não ratificaram a Convenção, vide ALSTON; TOBIN, op. cit. E KLICKA; ESTRADA, op. cit. 78 nacional desenvolveram-se visando a aferir o olhar da criança nas lides em torno de si. Em 2009, com a edição da Lei 12.010221, de 3 de agosto, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) passou a ter como um dos princípios para a aplicação de medidas de proteção aos petizes a sua “oitava obrigatória e participação”.222 No mesmo sentido, o novo Código de Processo Civil223, em seu art. 693, parágrafo único, assevera que, nas Ações de Família, quando em discussão o interesse de criança ou de adolescente, deverá ser observado o procedimento previsto na legislação específica, ou seja, no ECA. Assim, no ordenamento brasileiro, na interpretação das normas infraconstitucionais – as janelas, segundo os teóricos da eficácia horizontal mediata – que tratam da condição da criança e do adolescente como sujeitos de direito, os mais novos têm o direito de serem ouvidos sobre a medida de proteção a ser aplicada em seu favor e de terem sua opinião devidamente considerada nas disputas processuais que digam respeito a si, como dispõe o ECA, art. 100, parágrafo único, XII. Trata-se de uma decorrência de status da criança e do adolescente como sujeitos de direitos e da Doutrina da Proteção Integral, acolhida na Constituição. Ademais, diante da literalidade dos arts. 205; 206, I; e 208, I, da Lei Fundamental brasileira – os quais dispõem que a educação é dever do Estado e da família (art. 205); sobre a igualdade de condições para o acesso e permanência na escola (art. 206, I); sobre a obrigatoriedade da educação básica dos 04 aos 17 anos (art. 208, I) –, parece-nos difícil sustentar, como no caso Yoder, a pura prevalência da autonomia parental frente ao direito público subjetivo à educação da criança. De igual modo, as decisões obtidas nos casos Smith e Granville, provavelmente, seguiriam outro percurso, considerando a conformação infraconstitucional dada entre nós ao direito à convivência familiar da criança, que implica, além da proteção à familia nuclear (pais e descendentes), a garantia para o petiz da família extensa ou ampliada.224 Ainda, o direito fundamental à educação tem sido tematizado em 221 BRASIL. Lei 12.010, de 3 de agosto de 2009. Dispõe sobre adoção; altera as Leis nos 8.069, de 13 de julho de 1990 – Estatuto da Criança e do Adolescente, 8.560, de 29 de dezembro de 1992; revoga dispositivos da Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002 - Código Civil, e da Consolidação das Leis do Trabalho - CLT, aprovada pelo Decreto-Lei no 5.452, de 1o de maio de 1943; e dá outras providências. 222 BRASIL. Lei no 8.069, de 13 de julho de 1990 – Estatuto da Criança e do Adolescente. Art. 100, parágrafo único, XII. 223 BRASIL. Lei 13.105, de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil. Disponível em: . Acesso em: 30 jun. 2016. 224 Nesse sentido, o ECA, art. art. 25, caput e parágrafo único, define a família natural in verbis: “Entende-se por família natural a comunidade formada pelos pais ou qualquer deles e seus descendentes. Parágrafo único. Entende-se por família extensa ou ampliada aquela que se estende para além da unidade pais e filhos ou da unidade do casal, formada por parentes próximos com os quais a criança ou adolescente convive e mantém vínculos de afinidade e afetividade”. 79 nossa jurisprudência como um direito próprio da criança, sem relação intitulatória com o direito de seus pais.225 Entretanto, é necessário cautela antes de se repudiar a serventia dos fundamentos das decisões da Suprema Corte dos Estados Unidos em torno da autonomia parental para o direito brasileiro. É de se ver se, e em que medida, as razões da jurisprudencia americana supracitada poderiam também contribuir para uma leitura mais balanceada da relação entre o poder parental e a condição da criança e do adolescente como sujeitos de direitos. Pois, talvez por figurar no rol dos direitos fundamentais da criança, o direito à convivência familiar é pouco discutido entre nós pelo prisma dos pais, aos quais ainda falta o desenvolvimento de uma teoria constitucional que lhes melhor respalde o exercício do poder familiar.226 Analisar o alcance dos direitos dos pais não significa abdicar das conquistas alcançadas com a implementação da Convenção sobre os Direitos da Criança – afinal, a liberdade parental também integra os direitos da CDC, tal como estabelecem seus arts. 3.2; 5; 9.1; 14.2; 18.1; 29.1, c, dentre outros –, mas sim a busca de um sempre necessário equilíbrio nas relações jurídicas públicas ou privadas. A título de ilustração, entendemos que algumas razões do caso Smith – notadamente as referentes à validação constitucional das cautelas adotadas pela lei de Nova York visando a evitar a formação de vínculo afetivo entre a criança e os seus cuidadores – bem poderiam 225 Nesse sentido, conferir ARE 639.337-AgR, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 23.08.2011, Segunda Turma, DJE de 15-9-2011; RE 464.143-AgR, Rel. Min. Ellen Gracie, julgamento em 15.12.2009, Segunda Turma, DJE de 19-2-2010; RE 594.018-AgR, Rel. Min. Eros Grau, julgamento em 23.06.2009, Segunda Turma, DJE de 07.08.2009. 226 Mesmo em um famoso julgado recente do STJ onde foi propalada a autonomia dos pais na condução da educação dos seus filhos (Recurso Especial 1558086, DJe de 15.04.2016), entendemos que a liberdade parental não foi de fato posta em questão. Não se tratava, em nosso sentir, de um hard case, pois o que se discutia ali era a autonomia parental, de um lado, e um anúncio publicitário, do outro. A intervenção realizada na liberdade dos pais fora cometida por meio de um particular (a empresa fornecedora do produto), que abusivamente tentava estimular o consumo excessivo do público infantil. Fosse, porém, a ação praticada pelo Estado em prol do direito da criança – a possível colisão de direitos seria então entre pais e filhos –, pensamos que a liberdade parental não restaria tão decantada como foi naquele acórdão. Nos termos do voto do Ministro Herman Benjamim: “Nós temos uma publicidade abusiva, como afirma o eminente relator na parte que ele não leu do voto, por ser dirigida à criança, e dirigida à criança do que tange a produtos alimentícios. E aqui, ao contrário do que foi dito da Tribuna, não se trata de paternalismo sufocante nem de moralismo demais, é o contrário, significa reconhecer que a autoridade para decidir sobre a dieta dos filhos, é dos pais. E que nenhuma empresa comercial, e nem mesmo outras que não tenham interesse comercial direto, têm o direito constitucional legal assegurado de tolher a autoridade e o bom senso dos pais. Então este acórdão recoloca a autoridade dos pais, e, nesse sentido, é que poderia ser paternalista, porque põe os pais na posição que eles têm em relação a tudo e ainda em relação ao futuro. Então este é o primeiro aspecto que eu queria ressaltar. Decisão sobre alimento como medicamento não é para ser tomada pelos fornecedores. Eles podem oferecer os produtos, mas sem retirar a autonomia dos pais, e mais do que tudo, não dirigir esses anúncios às crianças e, pela porta dos fundos, de novo tolherem esta autonomia dos pais”. Disponível em: . Acesso em: 17 abr. 2016. 80 contribuir para a discussão tão candente no Brasil em torno das colocações de crianças recém- nascidas em família substituta, na modalidade de guarda de fato, para fins de adoção intuitu personae. Os fundamentos do caso Granville e Yoder, ao levarem ao limite os poderes inerentes à autoridade parental – mesmo que não se concorde com o resultado da decisão –, fazem refletir sobre a importância de se privilegiar a família como espaço primeiro de proteção à criança – embora não o único. E, no caso Winkelman, são trazidos interessantes aspectos relativos a uma leitura comunal da família, em que ela é vista como um espaço de construção de projetos individuais sim, mas que guardam forte relação com os anseios compartilhados pelos integrantes do lar. Necessário, enfim, é se aferir o quão receptiva é a ordem jurídica brasileira à liberdade dos pais na criação dos seus filhos, analisando o raio de alcance do poder parental, bem como, de forma correlata, definindo área de proteção do direito à convivência familiar – visto aqui como um direito não só dos pais ou dos filhos, mas de todos os que compartilham dos projetos e do afeto caseiro. Uma vez estabelecida a área de proteção do direito fundamental à família é que a ciência do direito poderá aferir se as intervenções estatais, que ali ocorrem, justificam-se pelo critério da proporcionalidade, sendo, portanto, constitucionais, ou, ao contrário, são desmedidas e, portanto, injustificáveis pelo prisma da Lei Fundamental. Sobre tais questões, discorre-se a seguir. 3.5 O PODER PARENTAL NA ORDEM JURÍDICA BRASILEIRA Uma primeira leitura sobre o delineamento do poder parental na ordem jurídica brasileira aponta como limites de sua potestatividade os deveres de cuidado para com a prole. Nesse sentido, o art. 226 da Constituição dá destaque à responsabilidade dos pais de “assistir, criar e educar os filhos menores”. No mesmo sentido, é a análise de nossa doutrina civilista em sua maioria. Não se estabelece, pois, para os filhos, nenhum dever atual, mas tão somente futuro de, quando maiores, assistirem os pais na velhice, carência ou enfermidade. O estatuto da menoridade funciona, pois, como contrapeso ao poder dos genitores: a autoridade destes só se justifica na medida em que garantem os direitos fundamentais de sua prole. Como os interesses do público infantojuvenil recebem na Convenção sobre os 81 Direitos da Criança uma dimensão, além de individual227, também coletiva228, a infância enquanto grupo tem destacadas suas pretensões das de seus pais, quando, então, a lógica dos direitos têm-se prestado a diminuir o espaço de autonomia parental. Essa tendência faz com que a família seja vista como palco de antagonismos entre o querer de maiores e menores.229 Entretanto, apesar de o art. 229 da Constituição dar ênfase às obrigações decorrentes do poder parental, uma leitura sistemática de nossa Lei Fundamental indica também para aspectos ativos na posição jurídica dos genitores, como deixa entrever o seu art. 226, § 5º, na parte em que fala dos “direitos referentes à sociedade conjugal”. Dessarte, é importante avaliar se a construção de uma teoria constitucional que empodere não só as crianças, mas também seus pais, pode ser desenvolvida de forma satisfatória ou, ao contrário, se, na prática, os direitos de um grupo tendem a anular os do outro. Indaga-se, então: é possível se falar em um melhor interesse da família? Isso mais colabora ou prejudica a garantia dos interesses da criança – que, como vimos, com não pouco esforço, veio a se afastar dos tratamentos subjetivistas empreendidos por adultos para se vincular a uma abordagem de direitos da criança? Um olhar comunitário pode tornar a criança novamente numa infante no lar – “aquela que não tem fala”?230 A resposta a tais questões passa pela análise e definição da área de proteção do direito à convivência familiar – previsto como um dos direitos fundamentais da criança e do adolescente no rol do art. 227 da Constituição –, analisando se há em nosso ordenamento jurídico aspectos que sobrelevem nesse direito não só a titularidade jurídica da criança, mas também a de seus pais. Neste estudo, abraçamos a tese de que a ordem jurídica brasileira redefine a estrutura do poder familiar, para agora, abandonando uma abordagem unilateral (vinculada aos genitores ou responsáveis231), referir-se à posição jurídica de pais e filhos em nosso sistema 227 O caráter individual do melhor interesse é ressaltado no ECA, cuja redação aponta, precipuamente, para a aplicação do princípio diante de casos concretos. ECA, art. 100, parágrafo único, IV. 228 A General Comment 14/2003 do Comitê da ONU de monitoramento da CDC, em seu item 19, atribuiu este duplo significado, individual e coletivo, ao melhor interesse da criança. Disponível em: http://www.refworld.org/pdfid/51a84b5e4.pdf. Acesso em: 2 mar. 2016. Sobre as General Comments, v. a nota de rodapé 101, p. 40. / Criticando a visão da infância enquanto grupo, o que estaria transformando os direitos dos mais novos em lobby nas mãos de agências adultas, cf. THÉRY, op. cit., p. 159. 229 Discorrendo sobre o caráter dual da visão da família na contemporaneidade, ora para lhe atribuir um papel opressor aos seus membros vulneráveis, ora sendo um espaço eminente de solidariedade e afeto, cf. POSTER, Mark. Teoria crítica da família. Rio de Janeiro: Zahar, 1978. p. 10. 230 Sobre a origem da palavra infante, v. nota de rodapé 145, p. 52. 231 É, a propósito, a estrutura unilateral do poder familiar – referida classicamente aos pais – que causa desconforto em alguns autores do direito civil na sua referência de poder. Entendem tais doutrinadores que melhor seria se falar em dever familiar, ou seja, dever jurídico dos pais de cuidar de sua prole. Cf. GONÇALVES, op. cit. e CARVALHO FILHO, op. cit. 82 legal. Falaremos então da existência de um poder familiar recíproco, que melhor acomoda as condições de ascendentes e descendentes como sujeitos do lar. Reputamos não só juridicamente possível, mas também mais apropriada para tratar das questões de família uma epistemologia jurídica que contribua para, a partir da Constituição, aproximar as regras do Código Civil às do Estatuto da Criança e do Adolescente. Historicamente, o conceito de poder familiar evoluiu de poder vinculado ao chefe do lar (o pátrio poder, assentado sobre a Doutrina do Patria Potestas, referida no item 2.1), passando por poder referido, em igualdade de condições, ao homem e à mulher232, até ganhar, pela evolução da jurisprudência pátria, a forma de um poder relativo a quaisquer dos pais ou mães, independentemente do seu gênero.233 Resta aferir se uma nova leitura para o poder familiar como a ora defendida – poder de qualquer integrante do lar, no complexo de direitos e deveres afetos a si – sustenta-se em nosso ordenamento. Antes de se proceder a essa tarefa, devem-se discutir, no próximo item, alguns pressupostos metodológicos e epistemológicos necessários à definição da área de proteção do direito à convivência familiar. 3.6 RESSUPOSTOS METODOLÓGICOS E EPISTEMOLÓGICOS À DEFINIÇÃO DA ÁREA DE PROTEÇÃO DO DIREITO À CONVIVÊNCIA FAMILIAR Algumas considerações iniciais são necessárias antes de nos lançarmos à tarefa de definir a área de proteção do direito à convivência familiar da criança e, ressaltando desde já o aspecto mutual desse direito, de seus pais. Em primeiro lugar, registramos que não nos passa despercebido o fato de que a Constituição garante à criança, ao adolescente e ao jovem, em seu art. 227, o direito à convivência familiar e comunitária. Entretanto, apesar da importância que a dimensão comunitária tem para o desenvolvimento infantil, não iremos, nesta parte da pesquisa, explorar esse aspecto da convivência humana. Dada a necessidade de delimitarmos o objeto deste estudo, enfocaremos aqui o direito fundamental à convivência familiar, na perspectiva das relações de pais e filhos. 232 CF, art. 226, § 5º. 233 Nesse sentido, a decisão do Supremo Tribunal Federal na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 132/RJ julgada em conjunto com a Ação Direta de Inconstitucionalidade 4277/DF. Disponíveis, respectivamente em: e . Acessos em: 30 jun. 2016. 83 As relações comunitárias, em regra, quando não decorrem de vínculos de parentesco, baseiam-se na solidariedade e, portanto, não estabelecem vínculos obrigacionais de natureza jurídica para as pessoas envolvidas. Assim, apesar de haver o direito individual de pertencer a uma dada comunidade, isso não implica, por si só, que os laços ali mantidos acarretarão obrigações bilaterais de direito.234 Porém, mesmo não explorando, neste primeiro momento, as implicações da dimensão comunitária para a convivência familiar, há de se reconhecer o acerto do legislador constituinte ao conferir garantia constitucional à dimensão social das relações humanas. A convivência em comunidade tem notável importância tanto para o desenvolvimento da criança, como para propiciar aos pais e filhos um ambiente seguro e de apoio para desenvolverem plenamente sua relação. Por esse motivo, as denominadas redes sociais de apoio tiveram seu papel reconhecido no Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do Direito de Crianças e Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária (PNCFC), o que ganha especial relevância em contextos de fragilidade social.235 Uma segunda observação prévia à análise do direito à convivência familiar é que, para os fins do corte epistemológico desta pesquisa, nós iremos analisar tal direito sob o prisma da criança e do adolescente, deixando de fazê-lo no que se refere ao jovem, sujeito de direitos, incorporado no art. 227 da nossa Lei Fundamental, pela Emenda Constitucional 65, de 13 de julho de 2010 (por coincidência, o dia de promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente). Procedemos assim, pois, como o objeto deste estudo diz respeito aos limites do poder familiar – e esse só se verifica durante a menoridade, nos termos do Código Civil, arts. 1.630 e 1.635, III –, a esta relação jurídica não se submete o jovem adulto (pessoas de dezoito anos completos aos vinte e nove anos236). 234 Nesse sentido, o Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do Direito de Crianças e Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária, após reconhecer a importância da dimensão comunitária para a vivência humana e familiar, afirma, por outro lado, que seus laços não configuram de per si laços de juridicidade: “É preciso lembrar, nestes casos, que se as obrigações mútuas construídas por laços simbólicos e afetivos podem ser muito fortes, elas não são necessariamente constantes, não contam com reconhecimento legal e nem pressupõem obrigações legais”. BRASIL. Conselho Nacional... 2006. p. 24-25. 235 Segundo o PNCFC: “[...] as “redes sociais de apoio” são uma frente importante para o trabalho com inclusão social da família e com a proteção, defesa e garantia dos direitos das crianças e adolescentes à convivência familiar e comunitária. Isto porque os vínculos afetivos e simbólicos podem ser reconhecidos, mobilizados e orientados no sentido de prover apoio às famílias em situação de vulnerabilidade, de prestar cuidados alternativos às crianças e aos adolescentes afastados do convívio com a família de origem, e, finalmente, para tomar decisões relativas à atribuição de guarda legal e adoção”. BRASIL. Conselho Nacional ..., op. cit., p. 25. 236 Nos termos do art. 1º, § 1º, do Estatuto da Juventude, são consideradas jovens as pessoas entre 15 e 29 anos. Tal diploma concretiza o conceito de jovem a que se refere o art. 227 da Constituição. BRASIL. Lei 12.852, de 5 de agosto de 2013. Institui o Estatuto da Juventude e dispõe sobre os direitos dos jovens, os princípios e diretrizes das políticas públicas de juventude e o Sistema Nacional de Juventude - SINAJUVE. Disponível 84 Abrindo breve parêntese, registramos que, apesar de compreendermos a preocupação do legislador constituinte em ampliar rol de proteção constante do art. 227, da Constituição para ali incluir os jovens, o fato é que, ao se tencionar a ampliação dos titulares positivados no artigo em destaque, necessário seria aferir se os sujeitos contemplados originalmente na Lei Fundamental – crianças e adolescentes – já haviam tido os seus direitos fundamentais minimamente assegurados na sociedade – e isso, como já analisado no item 2.7.1, ainda é uma distante realidade no país. A proliferação de direitos ou de titulares, se não amparada em medidas concretas de implementação, torna-se mera inflação legislativa, dando azo a discursos que questionam a força normativa da Constituição e as liberdades fundamentais. Dessarte, não deixa de ser paradoxal o movimento da política brasileira de expandir titulares de direitos para além dos da Convenção sobre os Direitos da Criança – que por criança refere-se precipuamente a “todo ser humano com menos de dezoito anos de idade” (art. 1º) –, mas, ao mesmo tempo edita, neste ano de 2016, o Estatuto da Primeira Infância237 em que se cria um novo conceito: o de máxima prioridade no atendimento de crianças na primeira infância (petizes com até seis anos completos, nos termos do art. 2º da Lei), conforme inclusão feita no art. 13, § 2º, do ECA. Com tantas prioridades – sem falar na prioridade devida ao idoso, à gestante, à pessoa com deficiência etc. – é de se questionar se ainda temos uma que seja absoluta. Fechamos parêntese. A importância da definição da área de proteção de um direito fundamental reside no fato de que, sempre que ali ocorrer uma intervenção do Estado, necessário será se deflagrar um processo de justificação constitucional, que, por seu turno, deverá atender ao critério da proporcionalidade, a ser adiante explanado, mas que colocamos em termos introdutórios sob tal forma: “a intervenção estatal junto ao direito fundamental foi proporcional?” A título de ilustração, em temas do direito da criança e do adolescente, a pergunta se daria nestes termos: A proibição, constante da Lei da Palmada238, vedando o uso de qualquer tipo de castigo físico em:. Acesso em: 30 jun. 2016. 237 BRASIL. Lei 13.257, de 8 de março de 2016. Dispõe sobre as políticas públicas para a primeira infância e altera a Lei no 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente), o Decreto-Lei no 3.689, de 3 de outubro de 1941 (Código de Processo Penal), a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), aprovada pelo Decreto-Lei no 5.452, de 1o de maio de 1943, a Lei no 11.770, de 9 de setembro de 2008, e a Lei no 12.662, de 5 de junho de 2012. Disponível em: . Acesso em: 30 jun. 2016. 238 BRASIL. Lei 13.010, de 26 de junho de 2014. Altera a Lei no 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente), para estabelecer o direito da criança e do adolescente de serem educados e cuidados sem o uso de castigos físicos ou de tratamento cruel ou degradante, e altera a Lei no 9.394, de 20 85 por parte dos pais, foi proprocional? A previsão do crime de estupro de vulnerável239, ao desconsiderar indiscriminadamente o consentimento do adolescente de 13 anos para com um ato libidinoso, é proporcional? A intervenção estatal com a vedação das adoções intuitu personae é proporcional? Para responder tais questões, necessário é dispor de método e parâmetros de constatação próprios, conforme demonstraremos no capítulo 6. Por sua vez, quando a intervenção estatal se der fora da área de proteção do direito analisado, ali não se fará necessário ao Estado dar início a um processo de justificação240 – apesar de isso não significar, obviamente, um aval para o poder público agir arbitrariamente. Uma reunião não pacífica não goza de proteção constitucional, por força do art. 5º, XVI, da CF, em uma leitura a contrario sensu desse dispositivo. De igual modo, uma relação familiar pautada pela violência não goza de proteção constitucional, e a ação do Estado aqui não demanda o desdobramento de uma atividade justificatória, já que as razões encontram-se na cessação do próprio estado de violência não albergado pelas normas fundamentais do art. 226, caput e § 8º. Dito isso, faz-se necessário tecer alguns comentários propedêuticos à definição da área de proteção do direito à convivência familiar. 3.6.1 Método e parâmetro para análise da intervenção estatal: o processo de justificação constitucional segundo o critério da proporcionalidade Para se aferir se uma intervenção estatal, na área de proteção de direito fundamental, é constitucional necessário é saber, no que toca ao aspecto material, se ela foi ou não proporcional, observando, pois, o princípio do devido processo legal em sua acepção substantiva.241 Para tanto, deverá o jurista lançar mão de algumas ferramentas metodológicas que permitirão embasar ou, ao contrário, afastar a justificativa apresentada pelo poder público para a ação limitadora de liberdade. Segundo Martins e Dimoulis, a análise da proporcionalidade de uma intervenção do de dezembro de 1996. Disponível em: . Acesso em: 12 ago. 2016. 239 Código Penal, art. 217-A. 240 Nesse sentido, DIMOULIS; MARTINS, op. cit., p. 130. 241 Como informa Leonardo Martins, numa análise histórica da evolução do aspecto substancial do devido processo legal na Alemanha do início do século XX, os direitos fundamentais, em sua acepção clássica, eram entendidos e protegidos como simples reserva de lei. Isso se devia ao fato de a classe burguesa se vê representada bem no parlamento germânico. Porém, com a pulverização da representação democrática no pós-I Guerra Mundial, os direitos fundamentais evoluíram de garantias de reserva de lei para garantias de reserva de lei proporcional. MARTINS, Leonardo. Liberdade e Estado Constitucional. São Paulo: Atlas, 2012, p. 181; 183. 86 Estado junto à vida dos particulares implica um processo trifásico.242 Na primeira etapa, proceder-se-á à análise do objeto tutelado pelo direito fundamental, em que se deverá responder à questão: no que consiste a área de proteção do direito fundamental em jogo? Na segunda fase, analisar-se-á a intervenção estatal em si, a fim de saber sob que forma e em que contexto a mesma ocorreu. Por fim, na terceira etapa, dar-se-á a aplicação da proporcionalidade propriamente dita, em que será aferida a intervenção à luz desse critério, para indagar se a intromissão estatal é justificada – ou seja, proporcional – ou não. Quanto à primeira fase, relativa à definição da área de proteção do direito fundamental, neste estudo o direito fundamental à convivência familiar será o referencial de análise. Entretanto, tal objeto, como já se afirmou, irá ganhar uma dimensão bilateral para se referir tanto ao direito dos filhos – tal como estabelece o art. 227 da Constituição – como também ao de seus pais. A convivência familiar ganha, pois, uma dimensão de reciprocidade, e a intervenção estatal deverá levar em conta esse direito dentro de uma perspectiva bidirecional, de genitores e prole, e não apenas de um dos lados. Necessário, então, será saber se e em que medida nossa ordem jurídica admite tal abordagem mutual. Sobre a segunda fase, relativa à análise da intervenção estatal em si, é de se ver que ela pode se dar em abstrato, pelo legislador, ou in concreto, pela via administrativa ou judicial para ordenar o exercício dos direitos, limitando-os. São quatro as hipóteses autorizadoras da intervenção243: a) o comportamento restringido está fora da área de proteção do direito analisado: é o caso do exemplo já dado quando da análise do direito à convivência familiar, onde, na sua área de proteção, estão as relações familiares marcadas por laços de consanguinidade ou pela afinidade e afetividade244, não se situando ali as atitudes de abuso e maus-tratos entre os seus membros, como clarificam os arts. 226, § 8º; e 227, parte final, da Constituição; b) a própria Constituição autoriza o legislador a, posteriormente, com a edição de norma infraconstitucional, restringir o direito fundamental: é o caso do direito ao sigilo das comunicações telefônicas, em que a Constituição autoriza a edição 242 MARTINS,op. cit., p. 130. 243 A divisão das hipóteses aqui realizada é feita a partir da obra do professor Leonardo Martins. Na verdade, o juscientista apresenta três hipóteses, mas, aqui, por mera preferência pessoal, opta-se por elencá-las em quatro, dividindo o seu terceiro caso em dois – “c” e “d”, acima. Cf. MARTINS, Liberdade... 2012, p. 181; 183. 244 Nesse sentido, o ECA, art. 25, que, no caput, refere-se aos laços formais de parentesco e, no seu parágrafo único, dá destaque também ao aspecto material da vivência familiar, relativa à afinidade e afetividade. 87 posterior de lei para regular a possibilidade de sua quebra, desde que mediante ordem judicial e para fins de investigação criminal ou instrução de processo penal;245 c) para compatibilizar interesses de pessoas em rota de colisão: caso, por exemplo, do art. 17 do Estatuto do Idoso, que faculta ao ancião, no gozo de suas faculdades mentais, o direito de escolher o tratamento que julgar mais favorável a si. Aqui, tanto a lei, abstratamente, privilegia a vontade do idoso, como, no caso concreto, o aplicador da norma – que tanto pode ser um juiz de direito como a equipe médica do caso – haverá de dar prevalência à vontade do ancião manifestada de forma lúcida, ainda que em desacordo com a de seus familiares; d) para os casos em que o que está em rota de colisão é o direito de um indivíduo, de um lado, e o interesse público do outro: é o caso das correspondências remetidas aos presidiários, para as quais se admite, no caso concreto, a sua violabilidade por razões de segurança pública. Quanto à terceira fase, relativa à aplicação da regra da proporcionalidade propriamente dita, segundo Martins, ela se constitui de quatro elementos:246 a) licitude do propósito perseguido com a intervenção; b) licitude do meio utilizado; c) adequação do meio utilizado; d) necessidade do meio utilizado. 247 Tais elementos têm caráter de sucessividade e prejudicialidade com relação aos demais, de forma que, se uma intervenção tiver propósito ilícito (por exemplo, segregar pessoas por conta da cor de sua pele), a análise dos restantes elementos será dispensada. Da mesma forma, se uma invasão se der em virtude de um legítimo propósito, mas o meio utilizado for ilícito – por exemplo, a elucidação de crimes (propósito lícito) mediante tortura (meio ilícito) –, não haverá por que seguir na análise da adequação e da necessidade do meio utilizado e assim por diante. Quanto ao terceiro elemento, o da adequação do meio utilizado, ele refere-se ao 245 CF, art. 5º, XII. 246 Nesse sentido, MARTINS, Leonardo. op. cit., p. 141 et seg. 247 Não abraçamos o conceito de proporcionalidade em sentido estrito adotado por maior parte da doutrina no Brasil. Como, porém, este assunto refoge ao objeto deste estudo deixamos de o analisar aqui. Para a leitura de uma posição contrária à proporcionalidade em sentido estrito, cf. MARTINS, Leonardo. Liberdade e Estado Constitucional. São Paulo: Atlas, 2012. Para uma posição favorável, cf. SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 11. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012. 88 “controle de viabilidade (isto é, da idoneidade técnica) de que seja em princípio possível alcançar o fim almejado por aquele(s) determinado(s) meio(s)”.248 É, pois, a relação de causa e efeito entre o meio e o fim perseguido, pela qual se responde à pergunta: o meio utilizado é viável para alcançar o fim perseguido? Se estivermos diante de uma ação em abstrato por parte do Estado (o caso das atividades legiferantes, como o ora analisado), a pergunta se dará nestes termos: o meio utilizado é viável em tese para alcançar o fim perseguido? Se, porém, estivermos diante de uma ação concreta por parte da administração, a indagação se dará assim: o meio utilizado foi efetivamente adequado para alcançar o fim perseguido? Quanto ao quarto e último elemento da proporcionalidade, relativo à necessidade, o mesmo vem a ser a “opção pelo meio restritivo menos gravoso para o direito objeto da restrição”.249 Nesse sentido, e considerando que, no que toca aos direitos da liberdade, a ascensão do Estado de Direito visou a permitir uma intervenção excepcional do governo junto à vida dos particulares – e, mesmo assim, de forma democraticamente justificada (daí a incorporação do qualificativo Democrático a esse modelo de Estado),– essa “excepcionalidade” da ação governamental importa também asseverar que o meio utilizado há de ser o menos gravoso para a autonomia humana. São estas, pois, as ferramentas de que nos valeremos para, no capítulo 6, construir a metodologia de análise do tema escolhido para ilustrar o debate em torno da autonomia da criança relacionada a de seus pais, propondo respostas. Necessária agora outra consideração, desta feita de ordem epistemológica, sobre o peculiar caráter que a intervenção governamental, no âmbito da família, importa para a ciência do direito. 3.6.2 O desafio epistemológico inerente à análise das intervenções estatais no direito à convivência familiar Nas intervenções do poder público no direito fundamental à convivência familiar da criança, a posição do Estado muito se aproxima à sua clássica função de parens patriae250, em que, então, como pai da nação, adjudica, em defesa da menoridade, decisões ao lar. Dessarte, a tutela da criança pelo poder público não raro implica a subtração, em alguma medida, da liberdade parental. Problematizando ainda mais a análise jurídica do agir público sobre família, em 248 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 11. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012, p. 406 e 407. 249 Ibid., p. 407. 250 Sobre a Doutrina do Parens Patriae, cf. item 2.4. 89 muitas dessas intervenções não se verifica a colisão de direitos em sua forma clássica de pretensões resistidas – como, por exemplo, quando a liberdade de expressão de um conflita com a intimidade e honra de outrem. No direito constitucional de família, não são poucas as situações em que os parentes não se percebem em rota de colisão, mas, ainda assim, o Estado ali intervém para avocar a si o poder de, em defesa do membro tido por hipossuficiente, definir determinados aspectos da relação jurídica entre os particulares. O fato de não existir uma impressão de conflito entre os familiares não significa que não haja ali uma questão de justiça, na medida em que os critérios desta última baseiam-se em injustiças objetivas mais do que em dores subjetivas.251 Mas, mesmo assim, as hipóteses de intervenção estatal, na família, têm ocorrido com frequência considerável nos últimos tempos e verificam-se com maior frequência em contextos de vulnerabilidade social, por meio de medidas concretas ou normativas, como demonstram, dentre outros, os temas da criminalização do estupro de vulnerável, da proibição da palmada e do corte etário no ensino infantil e fundamental. Nesses momentos, o Estado optou por adentrar a esfera de proteção de um ser que já se encontra sob a proteção de outras pessoas, seus pais ou responsáveis, e isso desencadeia uma relação complexa do ponto de vista epistemológico, filosófico e científico. Mesmo que se alegue que, em tais situações, não haja nada de peculiar com relação a outros tipos de intervenções estatais – já que a colisão de direitos na família é presumida, na medida em que o direito da criança não mais se identifica com o de seus pais e, portanto, pode-se contrapor aos mesmos –, o fato é que, para muitos particulares, o conflito, se existente, não é entre os membros da família (pais e filhos, no caso), mas sim entre o Superpai – o Estado – e os membros da família. E, assim, para enfrentar o desafio epistemológico em tela, o jurista haverá de definir a que titular de direitos refere-se a liberdade atingida pela intervenção estatal: Aos pais? À criança? A ambos? E, se for a criança, de que criança estamos tratando: da criança concreta – que pode, por exemplo, consentir com (ou ser manipulada para aceitar) a palmada – ou da infância enquanto categoria – quando sua integridade física tornar-se-ia abstrata e, daí, inegociável? São esses, pois, os desafios epistemológicos para análise da intervenção estatal na relação entre pais e filhos, sobre os quais se refletirá com mais vagar no capítulo 5. 251 Sobre as éticas do cuidado e da justiça, com seus referenciais respectivos de dor subjetiva e injustiça objetiva, discorre-se com maior vagar no capítulo 5 deste estudo, ao tratar do valor político da solidariedade. 90 3.7 ÁREA DE PROTEÇÃO DO DIREITO À CONVIVÊNCIA FAMILIAR: ASPECTOS SUBSTANCIAIS E PROCEDIMENTAL O objeto deste estudo é o direito fundamental à convivência familiar, regulado no art. 226 e seguintes da Constituição. Apesar de tal direito referir-se, inicialmente, a todos os graus de parentesco verificados na família, para os propósitos desta pesquisa, nosso foco, como já dito alhures, serão as relações que se estabelecem entre os genitores e sua prole. Na Constituição Federal, a família recebe capítulo próprio, no título referente à “Ordem Social”, denominado “Da Família, da Criança, do Adolescente, do Jovem e do Idoso”, e é proclamada como “a base da sociedade”, à qual cabe “especial proteção do Estado”.252 Quanto à sua titularidade, o direito à convivência familiar vem positivado no art. 227 de nossa Carta Magna, como um dos direitos fundamentais da criança, do adolescente e do jovem. Porém, há também nesse direito um aspecto de reciprocidade, pois, além de ser um direito dos descendentes, sua titularidade refere-se também aos pais, com a mesma intensidade e sem distinção de gênero253 ou de outra natureza – tal como orientação sexual.254 Quanto ao seu conteúdo, a definição da área de proteção do direito à convivência familiar é feita pelo nosso legislador constituinte de forma negativa, para deixar de fora dali as relações familiares em que a violência esteja presente, tal como afirma a parte final do § 8º, do art. 226, da Constituição. Portanto, a privacidade familiar não pode mais funcionar como escusa para o cometimento de atos abusivos por seus integrantes, não tendo mais guarida no ordenamento teses que, até não muito tempo atrás, legitimavam de algum modo a violência intrafamiliar – tal como a exclusão de ilicitude nos crimes de homicídio passional, praticados em suposta legítima defesa da honra.255 Quanto, porém, à definição de um conteúdo positivo específico para a convivência familiar, nossa Lei Fundamental não é minudente, o que, portanto, dá maior espaço de conformação desse direito ao legislador ordinário e, a partir daí, aos seus intérpretes. Num primeiro momento, o ordenamento infraconstitucional dá destaque à convivência familiar na sua dimensão biológica, como preceitua o art. 1.593, do Código Civil; e o art. 25, do Estatuto da Criança e do Adolescente, caput. A jurisprudência e doutrina, por 252 CF, art. 226. 253 Nesse sentido, CF, art. 226, §§ 4º e 5º. 254 Aqui, em virtude da cláusula geral de igualdade constante do art. 5º, caput, da Constituição (“todos são iguais perante a lei”), tal como reconhecido pelo STF no julgamento da ADI 4.277 e ADPF 132. 255 Cf. CRISTINO, Fernanda da Rosa. Ilegítima defesa da honra. Disponível em: http://www.ambito- juridico.com.br/site/index.php?n_link=artigos_leitura_pdf&artigo_id=2966.>. Acesso: 21 abr. 2016. 91 sua vez, de forma salutar, têm evoluído o conceito de convivência familiar para, além da dimensão biológica, destacar cada vez mais o aspecto psíquico como traço marcante da família.256 O afeto, então, tem ganhado relevo na doutrina como o elemento primordial do vínculo familiar257 – embora não o único.258 A partir de então, os tribunais têm reconhecido vínculos parentais, mesmo na ausência de laços consanguíneos, criando institutos não previstos no ordenamento legal, mas reconhecidos como direito pela jurisprudência, tal como a posse do estado de filho, a filiação socioafetiva e a adoção intuitu personae. Um tema, porém, a que pouco se dedica a doutrina brasileira diz respeito ao aspecto procedimental do direito à convivência familiar. Apesar da grande receptividade que o afeto tem recebido em nossa doutrina e jurisprudência, são necessárias cautelas na sua análise, pois, quando em disputa o direito de uma criança, o vínculo afetivo precisa ser recebido com certo cuidado, sob pena de se preterirem os laços biológicos de genitores a que não foram dadas as oportunidades para a formação de apego. Assim, uma leitura apressada do art. 13, parágrafo único, do ECA – que fala da necessidade de a Justiça acolher as gestantes ou mães que manifestem o desejo de entregar seus filhos em adoção – pode levar o Poder Judiciário a não atentar para o fato (óbvio, porém não raro esquecido) de que o recém-nascido tem uma família paterna que pode estar disposta a receber o petiz ou, pior, simplesmente desconhecer o intento da genitora em abdicar do laço materno.259 256 Nesse sentido, dentre outros, cf. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial 1.128.539/RN. Relator(a) para acórdão: Minha. MARCO BUZZI, Quarta Turma, 18/08/2015, DJe 26.08.2015. Disponível em: . Acesso em: 1 jul. 2016. / Conforme, também SANCHES, Helen Chrystine Corrêa; VERONESE, Josiane Rose Petry. Dos filhos de criação à filiação socioafetiva. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2012. CUNHA, Rodrigo Pereira da. Princípios fundamentais norteadores do direito de família. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. DIAS, Maria Berenice. Famílias modernas: (inter)secções do afeto e da lei. Disponível em: http://mariaberenice.com.br/uploads/3_- _fam%EDlias_modernas__inter_sec%E7%F5es_do_afeto_e_da_lei.pdf.. Acesso em: 05 maio 2016. 257 Nesse sentido, Maria Berenice Dias assevera que, em respeito ao principio da dignidade da pessoa humana, a nenhuma espécie de vínculo que tenha por base o afeto pode-se deixar de conferir o status de família. DIAS, Famílias modernas... 258 Além da afetividade em si, a doutrina aponta ainda, como outros elementos para a configuração de laços familiares extrabiológicos, a ostentabilidade e a estabilidade. LÔBO, Paulo Luiz Netto apud PEREIRA, Rodrigo Pereira da. 259 Em nossa atuação como promotor de justiça do Estado do Rio Grande do Norte, já lidamos com um caso, dramático, em que a exclusão do pai do processo de adoção ocorreu e o Poder Judiciário, em nosso sentir de forma açodada, recebeu a petição inicial sem tomar as devidas cautelas para aferir se o pai da criança estava efetivamente de acordo ou, pior, se sequer sabia daquela gravidez. O desfecho foi dramático e envolveu, como se pode antever, uma “escolha de Sofia” às avessas. Para decidir o futuro de uma criança, a justiça teve que negar totalmente a pretensão de um dos lados da lide: ou o adotante com vínculos já formados ou o pai biológico revoltado com a perda de sua filha. Deixamos, porém, de analisar o caso aqui de forma minuciosa, visando a resguardar a intimidade das partes envolvidas, sobretudo a da criança. 92 Como já demonstrado anteriormente 260 , o interesse superior da criança guarda também um aspecto procedimental e isso tem como corolário, dentre outros aspectos, o fato de que os interesses fundados no sangue devem ser preservados, como potentia, para um futuro afeto. Nesse sentido, a decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso Fornerón e Hija v. Argentina261 e ainda o caso Smith v. Organization of Foster Families For Equality and Reform, referido no item 3.4, no qual a Suprema Corte dos EUA referendou a lei do estado de Nova York que, dentre outras questões, autorizava cautelas visando a evitar a formação de vínculos afetivos das crianças inseridas em um programa de acolhimento familiar (foster homes) com seus cuidadores, o que poderia impedir um futuro retorno dos mais novos aos seus lares de origem. Por força então do interesse superior da criança e do adolescente, o direito à convivência familiar deve-se referir, além de aspectos substanciais – laços de sangue ou laços afetivos –, também e com igual importância, a uma dimensão procedimental. A criança, como ser em desenvolvimento, pode ter sua vontade manipulada por um adulto, sobretudo quando tenha com este laços de afinidade. Por isso, o Terceiro do Protocolo Facultativo à Convenção sobre os Direitos da Criança, adotado pela Assembleia Geral da ONU em dezembro de 2011 para tratar dos procedimentos de comunicação de violação da CDC ao seu Comitê de monitoramento262, após ratificar, no seu art. 2º, o melhor interesse da criança, afirma logo em seguida, no seu art. 3.2: “O Comitê incluirá em suas regras de procedimento salvaguardas para prevenir e evitar a manipulação da criança por aqueles que agem em nome dela e pode se recusar a examinar qualquer comunicação que considere não ser no melhor interesse da criança”. É necessário, portanto, atentar para o fato de que o afeto não pode ser uma escusa para acobertar fraudes – no que incluímos as tentativas de alienação parental e toda ação açodada que casse, no nascedouro, as oportunidades futuras de afeto dos demais parentes da criança – e, nesse sentido, o aspecto procedimental da convivência familiar aponta para a necessidade de cautelas na análise desse direito, mais do que sua recepção efusiva e, muitas vezes, turva pela emoção. 260 Cf. item 2.6. 261 Citado na nota de rodapé 141, p. 50. 262 ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Convenção sobre os Direitos da Criança. In: MINISTÉRIO Público do Estado do Paraná. Convenção sobre os Direitos da Criança. MPPR: CAOPCAE, Área da Criança e do Adolecente. Disponível em: . Acesso em: 1º jul. 2016. 93 Tais assertivas têm importância, sobretudo, em contextos de fragilidade social na qual os familiares veem-se inseridos, o fenômeno da invisibilidade familiar263 faz-se presente, e a lógica dos direitos logo pode ser transmutada para a da benemerência. Às famílias socialmente vulneráveis devem, pois, ser oferecidas oportunidades e processos para o fortalecimento dos vínculos de seus membros, tal como indica o art. 3º do ECA, ao falar em segurança de oportunidades e facilidades. O aspecto procedimental do interesse superior muito contribui para isso, em que pese a pouca atenção que lhe dá a doutrina brasileira. Essas questões serão debatidas no capítulo 5, tendo como mote a polêmica questão da adoção intuitu personae. 3.8 O STATUS NEGATIVUS DO DIREITO À CONVIVÊNCIA FAMILIAR No que toca ao direito à convivência familiar da criança e do adolescente previsto no rol de direitos fundamentais do art. 227, vê-se que, para os filhos, sua garantia fundamenta-se tanto pela importância da família em seus aspectos subjetivos, como espaço de trocas afetivas, como também territorialmente264, enquanto habitat da socialização e do desenvolvimento humanos. Outrossim, como referido no item 3.8, é necessário também conferir a esse direito uma acepção procedimental a fim de resguardar plenamente a proteção dos pequenos. Com relação aos pais, porém, em um primeiro contato com a Constituição, a Carta Magna lhes dá uma acepção restritiva para esse direito, dando mais destaque aos seus deveres de assistência, criação e educação dos filhos menores.265 Trata-se, pois, de uma delimitação aos direitos dos pais enfeixados no poder parental. É necessário, contudo, analisar em que medida o direito à convivência familiar, apesar de encartado no rol de direitos infantojuvenis, deve ser também interpretado, para que tenha máxima eficácia, como um direito de duas faces, que também se refere aos pais. Essa é a compreensão que abraçamos neste estudo e entendemos que ela tem impacto na própria conceituação do poder familiar – visto atualmente como uma potestade inerente aos pais –, bem como na concretização do direito à convivência familiar – concebido como uma titulação referente aos filhos –, para aferir a ambos os institutos uma feição mutual, de reciprocidade paterno-filial. 263 Sobre a invisibilidade familiar, v. nota de rodapé 195, p. 69. 264 Nesse sentido, cf. BRASIL. Conselho Nacional... Plano..., 2006. 265 CF, art. 229. 94 Em termos prestacionais, o modelo de representação comunitária da família não apresenta maiores questionamentos nas nossas políticas de Estado. Nesse sentido, a Política Nacional de Assistência Social (PNAS) prevê como diretriz primeira para a gestão do Sistema Único de Assistência Social (SUAS) a matricialidade sociofamiliar, conceito que aponta para a necessidade de a ação pública de assistência social ter como destinatário a família como um todo, em que o indivíduo é visto como membro de um corpo familiar e, assim, propõe-se a superação de atendimentos fragmentados.266 Porém, no que toca a uma feição liberal – de cunho, portanto, não intervencionista para o Estado –, o modelo de representação comunitária da família traz alguns desafios para a implementação do direito à convivência familiar, sobretudo pelo prisma da criança, que pode ter sua pretensão submersa na de seus pais. Tais desafios precisam ser equacionados a fim de se proceder a uma proteção idônea dos interesses do petiz. A compreensão de um direito fundamental sob o prisma liberal significa analisá-lo como um direito de resistência do cidadão em face de intervenções estatais em sua esfera de proteção. Daí ser uma análise na qual o direito é visto em seu estado negativo (status negativus). Segundo Leonardo Martins e Dimitri Dimoulis: Os direitos de resistência correspondem à concepção clássica liberal que procura impor limitações à atividade estatal, para preservar a liberdade pessoal que inclui a atuação econômica e o usufruto da propriedade. Dessa forma, objetiva-se afastar quaisquer possibilidades de intervenções arbitrárias na esfera individual.267 Vislumbrar na convivência familiar uma acepção negativa não significa negar-lhe valor à sua dimensão prestacional.268 Como já bem assentado na teoria constitucional, a evolução histórica dos direitos fundamentais permite, a cada nova dimensão historicamente firmada, contemplarem-se novas perspectivas para os velhos direitos, o que lhes expande a área de proteção, ao passo que importa também em desafios para sua implementação.269 266 Sobre a matricialidade familiar, assim diz o PNAS: “Por reconhecer as fortes pressões que os processos de exclusão sócio-cultural geram sobre as famílias brasileiras, acentuando suas fragilidades e contradições, faz- se primordial sua centralidade no âmbito das ações da política de assistência social, como espaço privilegiado e insubstituível de proteção e socialização primárias, provedora de cuidados aos seus membros, mas que precisa também ser cuidada e protegida”. BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Plano Nacional de Assistência Social. Brasília: Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, 2004. p. 41. 267 DIMOULIS; MARTINS, op. cit., p. 51. 268 Sobre a concepção interacional entre status positivus e negativus dos direitos fundamentais, retornar-se-á a falar no capítulo 5 deste estudo. 269 Daí porque o professor Willis Santiago Guerra Filho prefere utilizar a expressão dimensão ao invés de geração para os direitos fundamentais. GUERRA FILHO, Willis Santiago. Direitos fundamentais, processo 95 Assim, cada direito fundamental pode apresentar mais de uma faceta, como bem ilustra o desenvolvimento histórico do direito de propriedade, que, originalmente visto como um direito liberal de resistência, passou a ter a si associada uma dimensão social (relativa à segunda geração dos direitos fundamentais) para, enfim, adquirir no final do século XX uma dimensão ambiental (relativa a uma, assim definida, terceira geração dos direitos fundamentais270). Há, portanto, uma dimensão prestacional do direito à convivência familiar e esta pesquisa não pretende falsear tal assertiva, mas, pelo contrário, tem-na como pressuposto. Esta parte do estudo trata da convivência familiar enquanto liberdade negativa, pois a isso pouca atenção têm dado a doutrina e jurisprudência nacionais – talvez por ser o Brasil um país emergente, em que a perspectiva social dos direitos fundamentais tem sido um dos principais reclamos de nossa população desde a redemocratização nos anos 1980. Os aspectos prestacional e promocional da convivência familiar serão abordados no capítulo 5 desta pesquisa. A questão é que uma geração de direitos não anula a anterior. Como os direitos fundamentais foram concebidos no nascedouro do Estado moderno primeiramente como direitos de liberdade frente ao governo, a essa acepção sempre é necessário voltar a fim de evitarem-se posturas paternalistas e dar ao homem a autonomia de que necessita para levar uma a contento. Ademais, a compreensão mutual do poder familiar e do direito à convivência familiar faz com que esses conceitos sejam um poder e um direito de toda a família, e não mais tematizados de acordo com seus titulares, respectivamente pais e filhos, como fazem em regra a jurisprudência e doutrina nacional. Como consequência, quando analisamos o direito à convivência familiar como um direito de status negativus, a ingerência do Estado sobre a vida privada pode ser resistida em nome dos interesses não só dos pais, como também de seus filhos. Por esse prisma, a leitura da “especial proteção do Estado” de que goza a família (CF, art. 226, caput), sem prejuízo de seus aspectos provisionais, representa, antes de tudo, uma atuação não exagerada – ou seja, e princípio da proporcionalidade. In: GUERRA FILHO, Willis Santiago (Coord.). Dos direitos humanos aos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do advogado, 1997, p. 11-29. 270 Nesse sentido, o constitucionalista cearense Paulo Bonavides associa a evolução histórica dos direitos fundamentais ao trilema da Revolução Francesa, “liberdade, igualdade e fraternidade”, como paralelo ao surgimento dos direitos de primeira, segunda e terceira geração, respectivamente. BONAVIDES, op. cit., p. 516. 96 proporcional – do Estado junto ao lar no interesse de todos os seus membros.271 Sob esse prisma pode-se desenvolver então o conceito de melhor interesse da família. Por outro lado, deve-se ter cautela na construção de uma compreensão comunal do melhor interesse a fim de evitar que as opiniões da criança não soçobrem em um aspecto difuso do querer familiar, que nada mais pode ser do que a pretensão dos adultos que lha representam e supostamente falam em seu nome. Assim, sem perder de vista todas as conquistas que o movimento internacional em prol dos direitos da criança representou, doravante passa-se à tarefa de analisar o direito à convivência familiar enquanto um direito de resistência e com feição recíproca entre pais e filhos a fim de verificar em que medida o nosso ordenamento jurídico dá guarida a essa tese. 3.9 O PODER FAMILIAR RECÍPROCO E O CONCEITO DE INTEGRIDADE FAMILIAR Nos Estados Unidos, em 1973, foi escrito o primeiro livro de uma trilogia que redefiniu a jurisprudência em torno da custódia da criança, ao focar a construção do seu melhor interesse pelo prisma das necessidades psíquicas infantis – e não mais dos adultos que lhe estavam ao redor. Escrita a seis mãos por autores do direito, da psiquiatria e da psicologia – respectivamente, Joseph Goldstein, Albert J. Solnit e Anna Freud –, o livro chamava-se Beyond the best interest of the child (Além do melhor interesse da criança) e tinha por objeto os problemas relativos aos petizes que já se encontravam sob o sistema judicial de proteção. O prisma adotado na obra era o da criança. Em 1979, os mesmos autores escrevem então uma segunda obra, Before the best interests of the child (Antes do melhor interesse da criança), a que tivemos acesso para proceder a esta parte da pesquisa, na qual analisam em que medida as necessidades psicológicas da criança estão atreladas à própria necessidade de ter pais autônomos na condução de sua educação. Segundo Lynne Marie Kohm, nesse segundo estudo, os escritores tentaram trazer o pêndulo de volta para uma abordagem mais balanceada entre os pais e seus filhos.272 271 A essa dimensão, de resistência, o legislador infraconstitucional se refere no art. 1.513 do CC, in verbis: “Art. 1.513. É defeso a qualquer pessoa, de direito público ou privado, interferir na comunhão de vida instituída pela família”. Na parte do direito da criança e do adolescente, essa acepção negativa vislumbra-se no princípio da intervenção mínima, positivado no art. 100, parágrafo único, VII: “a intervenção deve ser exercida exclusivamente pelas autoridades e instituições cuja ação seja indispensável à efetiva promoção dos direitos e à proteção da criança e do adolescente”, o qual modula o princípio da proporcionalidade, também positivado no ECA (art. 100, parágrafo único, VIII). 272 KOHM, op. cit., p. 337-381. 97 Em Before the best interests of the child, a questão que move os autores é analisar não mais a criança dentro do sistema de justiça, mas, de forma bastante percuciente, fora dele. A preocupação de Goldstein, Solnit e Freud é desenvolver linhas para definir o que vem antes do melhor interesse da criança, ou seja: o que deve ser respeitado na família antes de o Estado decidir nela intervir. Isso porque a obra defende que o parâmetro do melhor interesse da criança é um vetor a nortear as ações do Estado junto à família, não, porém, um princípio aplicável aos pais para regulá-los na interação com suas crianças. Logo em sua folha de rosto, o livro inicia com a seguinte afirmação: Enquanto a criança é parte de uma família viável, seus próprios interesses estão amalgamados com aqueles dos demais membros. Apenas depois de a família falhar na sua função é que o interesse da criança se torna um assunto para a intromissão estatal.273 (Tradução livre). Tal é a concepção dos autores por entenderem que o respeito à privacidade da família é fundamental para a construção do afeto e a socialização humana. Na perspectiva da criança, a liberdade do espaço familiar, livre de ingerências externas, permite que a desproteção típica da menoridade, ao encontrar amparo no cuidado parental, conduza a família à constituição de afeto e cumplicidade, sem os quais a própria socialização humana restaria deficiente.274 Quanto aos pais, a autonomia da família visa a permitir que eles tenham a oportunidade de conhecer as necessidades de desenvolvimento emocional e psíquico de seus filhos, em um processo diário de descoberta que permitirá a construção de laços afetivos, críticos para o desenvolvimento sadio do bebê.275 Nesse sentido, asseveram os autores: 273 o original: “So long as the child is part of a viable family, his own interests are merged with those of the other members. Only after the family fails in its function should the child's best interests become a matter for state intrusion”. GOLDSTEIN, Joseph; FREUD, Anna; SOLNIT, Albert J. Before the best interests of the child (ePub). Nova Iorque: The Free Press, 1979. Observação: Em decorrência de a obra a que se teve acesso, nesta pesquisa, tratar-se de publicação em e-book, restará prejudicada a citação das respectivas páginas. 274 Em uma tradução livre: “A impotência requer cuidados plenos e, com o tempo, se transforma em necessidade ou desejo de aprovação e amor. Ela nutre a vontade de agradar através da cumplicidade com o desejo dos pais. Ela provê uma base para o desenvolvimento sobre a qual repousa a receptividade da criança aos esforços educacionais. O amor pelos pais leva à identificação com os mesmos, um fato sem o qual o impulso de controle e socialização restaria deficiente”. No original: “Helplessness requires total care and over time is transformed into the need or wish for approval and love. It fosters the desire to please by compliance with parent’s wishes. It provides a developmental base upon which the child’s responsiveness to education efforts rests. Love for the parents leads to identification with them, a fact without with impulse control and socialization would be deficient”. GOLDSTEIN; FREUD; SOLNIT, op. cit. 275 Assim, o primeiro propósito que identificam os autores para a concepção do direito dos genitores de educarem sua prole livres da interferência estatal é o de “munir os pais com a oportunidade incessante de conhecer as necessidades psíquicas e emocionais de seu filho, de forma a estabelecer os laços familiares, críticos para o crescimento e desenvolvimento sadio de qualquer criança”. No original: “to provide parents with an uninterrupted opportunity to meet the developing physical and emotional needs of their child so as to establish the familial bonds critical to every child’s healthy growth and development”. GOLDSTEIN; 98 Estes complexos e vitais processos de desenvolvimento requerem a privacidade da família, sob a guarda de pais que são autônomos. Quão mais nova a criança, maior é a necessidade por seus pais. Quando a integridade da família é quebrada ou enfraquecida pela intromissão estatal, suas necessidades são frustradas e sua crença na onisciência e onipotência dos pais é prematuramente abalada. O efeito dessa ação é, invariavelmente, prejudicial ao desenvolvimento infantil. A necessidade da criança de segurança no âmbito de sua família deve ser satisfeita pela lei através do reconhecimento da privacidade da família como a barreira para a intervenção estatal sobre a autonomia dos pais na educação de seus filhos.276 (Tradução livre). Ademais, em Before the best interests of the child, apresenta-se uma justificativa adicional para uma política de intervenção mínima do poder público na família: o fato de o Estado não dispor de mecanismos para satisfazer às necessidades de afeto da criança em uma base individual e no tempo e na intensidade que o pequeno requer, com demandas sempre cambiantes. Por outro lado, ao petiz também falta a habilidade “para responder aos comandos advindos de uma vara judicial impessoal ou de entidades sociais de atendimento da mesma forma como responde aos estímulos de figuras parentais pessoais”.277 Tais conclusões são reverberadas nos estudos do psicólogo inglês John Bowlby, o qual dedicou sua vida acadêmica a investigar os laços que a criança estabelece com seus pais (notadamente, na figura da mãe), na corrente que veio a ser denominada Teoria do Apego (Attachment Theory). Em uma de suas obras, Bowlby analisou várias pesquisas realizadas ao redor do globo sobre o desenvolvimento de crianças que viveram longos períodos de sua infância em instituições de acolhimento. Em uma delas, feita a partir da análise comparativa entre petizes que viviam em abrigos e outros que residiam em lares onde as mães trabalhavam fora e cujos termos de moradia eram, com frequência, muito insatisfatórios, percebeu-se que “o desenvolvimento médio das crianças que estavam com a família mostrou-se normal, enquanto as outras apresentaram atraso no desenvolvimento”.278 De forma geral, constata Bowlby que às crianças acolhidas falta “exatamente o tipo de cuidado que uma mãe dá sem FREUD; SOLNIT, op. cit. 276 No original: “These complex and vital developments require the privacy of family life under guardianship by parents who are autonomous. The younger the child, the greater is his need for them. When family integrity is broken or weakened by state intrusion, his needs are thwarted and his belief that his parents are omniscient and all-powerful is shaken prematurely. The effect on the child’s developmental progress is invariably detrimental. The child’s need for safety within confines of the family must be met by law through its recognition of family privacy as the barrier to the state intrusion upon parental autonomy in child rearing”. GOLDSTEIN; FREUD; SOLNIT, op. cit. 277 Tradução livre. No original: “The child lacks the capacity to respond to the rulings of an impersonal court or social service agencies as he responds to the demands of personal parental figures”. GOLDSTEIN; FREUD; SOLNIT, op. cit. 278 BOWLBY, John. Cuidados maternos e saúde mental. Tradução: Vera Lúcia Baptista de Souza e Irene Rizzini. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 14 e 15. 99 pensar” 279 , o que termina por afetar seu processo de desenvolvimento, autoestima e socialização. Sobre as crianças que viviam nos orfanatos diz ainda o autor britânico: Estas crianças foram privadas de todas as carícias e brincadeiras, da intimidade da amamentação através da qual a criança conhece o conforto do corpo materno, dos rituais do banho e do vestir com os quais, através do orgulho e carinho materno para com seus pequenos membros, o bebê aprende seu próprio valor.280 Assim, diante da clara insuficiência de o desenvolvimento infantil dá-se de forma plena fora do espaço familiar, Goldstein, Freud e Solnit dão prevalência às relações domésticas para desenvolver o conceito de integridade familiar (family integrity), a qual se desdobra em três princípios: autonomia dos pais para educar seus filhos; direitos dos filhos a pais autônomos e privacidade. A defesa da autonomia dos pais para criar seus filhos importa em reconhecer que estes terão a liberdade para educar sua prole conforme os valores que melhor julgarem, tendo o direito de, inclusive, errar nesse processo em busca do necessário equilíbrio na relação com seus rebentos – pois é entre erros e acertos que bons pais são forjados.281 Tudo isso colabora para a formação da identidade não só das crianças, mas também de seus pais, criando as dinâmicas próprias de cada lar – pois, ao contrário do que anotara o narrador na abertura de Anna Kariênina, nem todas as famílias felizes se parecem.282 Reconhecem, porém, os escritores de Before the best interests of the child que a autonomia dos pais para educar seus filhos pode se deparar com situações abusivas que atentem contra os direitos fundamentais dos pequenos. Daí porque, na segunda parte da obra citada, procura-se tratar das hipóteses em que é cabível a intervenção pública junto ao seio familiar. Desenvolve-se, então, o conceito de parâmetros para a intervenção (grounds for intervention) do Estado, no intuito de aclarar as situações em que a intromissão no espaço familiar faça-se necessária, fugindo-se, ao máximo, das valorações subjetivas do aplicador da norma, passíveis de estarem impregnadas por seus preconceitos. Mas, sobretudo, o que emerge no texto é a preocupação de reclamar daqueles que têm força para adjudicar decisões ao ambiente doméstico que se desincumbam da necessidade 279 BOWLBY, op. cit., p. 8. 280 Ibid., loc. cit. 281 Como dizem os autores, na busca da justa medida para a avaliar o momento e a forma adequada da intervenção na vida de uma criança, os seus responsáveis se veem diante dos seguintes pontos cardeais “muito cedo/muito tarde; muito forte/muito fraco” (Tradução livre). GOLDSTEIN; FREUD; SOLNIT, op. cit. 282 A referência aqui é feita à luz da frase de abertura do livro Anna Kariênina, de Liev Tolstói: “Todas as famílias felizes se parecem, cada família infeliz é infeliz à sua maneira”. TOLSTÓI, Liev. Anna Kariênina (ePub). Tradução Rubens Figueiredo. São Paulo: Cosac Naif, 2013. 100 de atender a um pesado dever de prova (heavy burden of proof), devendo ficar cabalmente demonstrada a necessidade da intromissão no lar. Diante disso, defendem os pesquisadores que, na dúvida, não deve o Estado intervir: Porque o dano é inerente a toda violação da integridade familiar, nós decidimos errar em prol da não invasividade. […] A partir da perspectiva da criança como membro de uma família, nós buscamos sempre restringir as intervenções coercitivas aos casos de fundada suspeita e danos reais, sobre os quais haja um consenso e uma razoável expectativa de que a intromissão no lar será mais benéfica do que injuriosa para a criança.283 Tais reflexões, mais do que estarem circunscritas à realidade do liberalismo político norte-americano, não só têm relevância em matéria de direito comparado, como encontram, inclusive, espaço de aplicação no ordenamento jurídico brasileiro, especialmente após a edição da Lei 12.010/09, que incorporou ao ECA importantes normas de orientação da aplicação de medidas de proteção pelo Estado à criança e ao adolescente. Nesse sentido, nossa legislação informa as seguintes diretrizes, dentre outras: o melhor para a criança é a permanência junto à sua família;284 é da responsabilidade dos pais a condução da criação de seus filhos e qualquer intervenção que se faça no espaço privado deve levar a esse fim de autonomia, não de paternalismo; 285 a atuação do Estado deve-se dar em uma linha de intervenção mínima e proporcional;286 em qualquer intervenção – e, preferencialmente, antes dela – os petizes e seus responsáveis deverão ter sua privacidade resguardada; 287 é expressamente necessário que o afastamento da criança de sua família de origem deva ser precedido de “procedimento judicial contencioso, no qual se garanta aos pais ou ao responsável legal o exercício do contraditório e da ampla defesa”.288 A Convenção sobre os Direitos da Criança, incorporada ao ordenamento pátrio por meio do Decreto 99.710, de 21 de novembro de 1990, também dá guarida à concepção da autonomia parental, ao asseverar em seu art. 18.1, segunda parte, que: 283 No original: “Because harm is inherent in every violation of family integrity, we decided to err on the side of non intrusiveness. […] From the child’s vantage point as a member of a family, we sought always restrict coercive intervention to actual and threatened harm about which there is a consensus and about which there is a reasonable expectation that intrusion will be more beneficial than injurious to the child”. GOLDSTEIN; FREUD; SOLNIT, op. cit. 284 ECA, arts. 19 e 100, parágrafo único, X (princípio da prevalência da família). 285 ECA, art. 100, parágrafo único, IX (princípio da responsabilidade parental). 286 ECA, art. 100, parágrafo único, VII e VIII (princípio da intervenção mínima e da proporcionalidade e atualidade, respectivamente). 287 Nesse sentido, o ECA, art. 100, parágrafo único, V (princípio da privacidade). 288 ECA, art. 101, § 2º. Em igual sentido, o art. 153 do ECA, parágrafo único. 101 Os Estados Partes envidarão os seus melhores esforços a fim de assegurar o reconhecimento do princípio de que ambos os pais têm obrigações comuns com relação à educação e ao desenvolvimento da criança. Caberá aos pais ou, quando for o caso, aos representantes legais, a responsabilidade primordial pela educação e pelo desenvolvimento da criança. Sua preocupação fundamental visará ao interesse maior da criança. (Grifo nosso). Ao educar seus filhos, os pais têm a liberdade de orientá-los, segundo sua concepção da vida. Nesse sentido, o maior interesse da criança é buscado a partir da visão de mundo própria dos pais, que, nesse contexto, têm a obrigação de dar orientação e suporte aos seus filhos. O ceticismo moral cabe ao Estado, não aos particulares, que têm liberdade de crença e pensamento. O desenvolvimento da criança parte, pois, da proteção e provisão oferecidas por seus genitores. À medida que o petiz ganha, porém, autonomia, a ingerência dos pais sobre a sua vida deve diminuir e aos mais novos é garantido o direito de ter sua opinião direta e devidamente considerada.289 Como veremos no próximo capítulo, isso importa uma nova dimensão ética e jurídica das relações familiares. A privacidade do espaço familiar não deve significar, porém, uma blindagem doméstica a desfocar ações de violência ocorridas no lar e, tampouco, importa o ressurgimento, com ares pós-modernos, da Doutrina do Patria Potestas. As situações de desamparo aos infantes e maus-tratos continuarão a ser motivo para a intervenção do Estado no espaço privado. Ocorre, porém, que, sendo a família a base da sociedade – conforme reza nosso texto constitucional, no seu art. 226 – a ingerência no seu núcleo pelo poder público há de se dar diante de situações claras, justificadas e excepcionais, valendo aqui o princípio distributivo, pelo qual é o Estado que está obrigado a justificar sua intervenção no exercício da liberdade – aqui, a liberdade parental e familiar –, e não o titular do direito, o seu exercício.290 Portanto, mesmo diante do eventual risco que uma compreensão liberal da família possa acarretar, é de se ver que muito maiores seriam os riscos que a permissão irrestrita para as intervenções estatais junto aos lares acarretaria. A imisção governamental na família representa uma política de redução de danos: considerando que o Estado não dispõe dos meios para suprir plenamente as necessidades da criança e do adolescente, toda a intervenção que os retire da autoridade parental comporta um prejuízo inerente e deve, portanto, representar um mal menor do que a permanência do petiz junto aos seus responsáveis. O conceito de integridade familiar ora discutido apresenta facetas que não se 289 CDC, art. 12. 290 Nesse sentido, a lição de Leonardo Martins ao apontar o princípio distributivo como vetor da relação do Estado para com o cidadão. MARTINS, Liberdade... 2012, p. 29. 102 relacionam sectariamente a interesses paternos ou filiais. Por esse prisma, antes de estarem em polos opostos das obrigações morais e jurídicas, ascendentes e descendentes têm interesses que são, prima facie, lados da mesma moeda, o que leva a defender-se um direito à convivência familiar também de caráter recíproco O ECA, em seu art. 19, ao concretizar o direito à convivência familiar previsto no art. 227 da Constituição, dá margem para tal compressão mutual, na medida em que estipula como direito fundamental da criança e do adolescente o “direito a ser criado e educado no seio da sua família”. Assim, se por um lado os pais dispõem de liberdade para educar seus filhos – nos termos da Constituição, art. 5º, caput, refletido sobre o art. 1.634, I, do Código Civil – os filhos também têm o direito de ser educados por pais livres. Tal visão enxerga o núcleo familiar como um ambiente de construção de cumplicidade e solidariedade, em que a incompletude de cada um de seus membros encontra, na disposição do outro para amar, um canal de troca que fortalece o desenvolvimento humano e, em última instância, contribui para a vida em sociedade.291 Munidos de tais informações, temos como plenamente possível, do ponto de vista jurídico, ir além de uma tradicional compreensão do poder familiar como um poder unilateral – dos pais para com os filhos – para, em uma perspectiva constitucional de liberdade, tê-lo como um poder mutual, referente a todos os que participam da ambiência doméstica. Os poderes em diálogo, inerentes à parentalidade e à filiação, configuram o que se denomina poder familiar recíproco. Essa compreensão mutual do poder familiar afigura-se mais apropriada para lidar com a dinâmica das relações do lar do que a sua clássica visão unilateral, vinculada tão somente à potestade dos pais. Da mesma forma, o direito à convivência familiar deixa de se atrelar exclusivamente à criança e ao adolescente, para ter como referencial tanto os pais como os seus filhos, de onde se defende um direito à convivência familiar também recíproco. Mesmo que o desdobramento dessa ideia não leve à plena igualdade entre pais e filhos – o que equivaleria a negar a menoridade da criança e, assim, desprotegê-la –, as 291 Nesse sentido, o Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do Direito de Crianças e Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária (PNCFC), de 2006, informa: “Tanto a imposição do limite, da autoridade e da realidade, quanto o cuidado e a afetividade são fundamentais para a constituição da subjetividade e desenvolvimento das habilidades necessárias à vida em comunidade. Assim, as experiências vividas na família tornarão gradativamente a criança e o adolescente capazes de se sentirem amados, de cuidar, se preocupar e amar o outro, de se responsabilizar por suas próprias ações e sentimentos. Estas vivências são importantes para que se sintam aceitos também nos círculos cada vez mais amplos que passarão a integrar ao longo do desenvolvimento da socialização e da autonomia”. BRASIL. Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente. Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do Direito de Crianças e Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária. Brasília: Conanda, 2006. 103 vantagens de se aferir uma feição bilateral ao poder familiar decorrem do fato de o Estado, no processo de justificação constitucional da intervenção realizada, dever considerar os interesses da família enquanto coletivo de desejos e aspirações – e não apenas de um só membro, tal como ocorrera no Doutrina do Patria Potestas ou na Tender Years Doctrine.292 Sob um prisma liberal – que, como já afirmamos, não precisa ser o único adotado (haja vista a importância da dimensão social-prestacional, sobretudo, às famílias menos favorecidas economicamente), mas, certamente, não pode ser esquecido –, a área de proteção do direito à convivência familiar refere-se ao direito dos que compõem o espaço doméstico de resistir a ingerências externas que se façam ou de forma injustificada ou por quem procure impor uma determinada concepção de bem para seus membros.293 Pois, como alerta Irène Théry, o risco de se ver a infância enquanto lobby decorre de esta virar pauta ideológica de outras agências e isso funcionar como um cavalo de Tróia para a interferência estatal na família.294 Ao tomar o direito dos pais e de seus filhos como direito de criarem e serem criados em liberdade, o poder familiar passa a ter uma acepção recíproca e a convivência familiar recebe um indispensável status negativus. Importante, contudo, gizar desde logo que a compreensão do poder familiar como um poder de toda a família não visa a fragilizar a autoridade dos pais em detrimento de uma alegada autocracia dos filhos – que se expressa hodiernamente em frases do tipo “crianças e adolescentes são sujeitos de direitos; os pais, só de deveres”295 –, nem, por outro lado, abafar os desejos e direitos da criança sob a voz de seus representantes legais. Antes, o que se busca aqui é a proteção, sob um prisma republicano, do núcleo familiar de preferências exógenas ao seio doméstico. 292 Cf., respectivamente, itens 2.1 e 2.2. 293 Nesse sentido, Leonardo Martins, ancorado nos ensinos de Stefan Huster, ressalta a necessidade liberal de o Estado se guiar pela tríade da legitimidade, igualdade e ceticismo político, a fim de “não abraçar ‘verdades’, sobretudo no que concerne a uma ‘concepção de bem’ que fosse divulgada pelo Estado”. MARTINS, Liberdade..., 2012. 294 THÉRY, op. cit., p. 135-161. 295 Ao temor tão atual de perda de autoridade dos pais se contrapõe a constatação de que o respeito da criança por seus cuidadores nasce primeiro não dos mandamentos, mas de uma relação afetiva, onde o petiz percebe, desde tenra idade, que deve ouvir a quem a ama, num contexto em que a autoridade paterna e materna surge como uma expressão maior de cuidado e amor. Nesse sentido, Gottman escreve: “Aceitação, obediência e responsabilidade vêm do amor e da ligação que a criança sente em sua família. Assim, as interações emocionais entre os membros da família passam a ser a base da transmissão de valores e da formação correta de pessoas. A criança se comporta de acordo com padrões familiares porque seu coração lhe diz que o bom comportamento é o que se espera; que quem pertence ao clã tem de viver de acordo com determinados padrões”. GOTTMAN, John. Inteligência emocional e a arte de educar nossos filhos. 22. ed. Rio de Janeiro: Objetiva, 1997, p. 17 104 A compreensão liberal para o direito à convivência familiar (direito de resistência) e mutual para o poder familiar (poder de todos os integrantes da família de resistir em face de intervenções estatais injustificadas) afigura-se como plenamente sustentável em nosso ordenamento jurídico. Obviamente, tal concepção não implica negar responsabilidades provisionais do Estado para com a família, notadamente as mais carentes.296 Nesses casos, a ação governamental visará ao empoderamento familiar, ou seja, levar a família a um patamar de desenvolvimento em que o poder familiar de seus membros possa desenvolver-se com a liberdade requerida por sua dignidade humana. Isso, porém, sem redundar em ações paternalistas ou ingerências sobre a vida dos que participam do ambiente doméstico, quer sejam abastados ou não.297 296 Sobre a importância das prestações estatais para a garantia do direito à convivência familiar, discorreremos mais pausadamente no capítulo 5 desta pesquisa. 297 Uma das diretrizes nacionais para a construção de políticas de promoção e proteção dos direitos da criança e do adolescente à convivência familiar é o “reconhecimento das competências da família na sua organização interna e na superação de suas dificuldades”. BRASIL. Conselho Nacional..., Plano..., 2006, p. 70. 105 4 AUTONOMIA E DIGNIDADE DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE O princípio da dignidade da pessoa humana constituiu-se na matriz axiológica do movimento de internacionalização dos direitos humanos298 na segunda metade do século XX. Devido aos horrores produzidos pelos regimes totalitários que o final da II Grande Guerra desvelou, passaram as nações a buscar um conteúdo apto a inspirar as legislações vindouras com um ethos que impedisse a norma jurídica, em sua expressão positiva, de tornar-se refém de interpretações que aferissem ao ser humano uma posição indigna, subumana. Nessa nova ordem, a garantia de direitos implicava para o indivíduo a aquisição de personalidade jurídica internacional própria, destacável da personalidade do Estado. 299 Buscava-se, por assim dizer, um direito justo, e o primado da dignidade da pessoa humana bem se amoldava às necessidades de um novo pacto social mundial em prol de direitos fundamentais, com pretensões universalizantes. Porém, como demonstra a própria história da humanidade, a tarefa de se definir a dignidade, atribuir-lhe um conteúdo e, portanto, uma delimitação, comporta significativos desafios não só para a ciência do direito, mas também para a filosofia e a própria antropologia, uma vez que tais reflexões implicam a definição não só do que é digno, mas também de quem o é. Assim, o primeiro uso do termo dignidade esteve associado não a um traço universal do ser humano, mas à alta função, ao cargo ou título iminente.300 Não se tratava, pois, de algo inerente à espécie humana, mas sim de um status social, que, dentro de dado contexto cultural, era atribuído distintivamente às pessoas, conforme sua posição no estamento público. Isso ajuda a explicar por que os povos da Antiguidade à Era Moderna conviveram e se serviram de uma classe vivendo sob o jugo da escravidão; por que a segregação racial foi uma política de Estado institucionalizada nos Estados Unidos até meados da década de 1970 (separate but equal) e por que às mulheres brasileiras, até 1965, não era permitido o voto 298 Ou constitucionalização do direito internacional, como preferem alguns. Cf. TRINDADE, Otávio Cançado. A constitucionalização do direito internacional: mito ou realidade? Disponível em: Disponível em: . Acesso em: 25 abr. 2016. 299 Ibid. 300 Nesse sentido, MAURER, Béatrice. Notas a respeito da dignidade da pessoa humana… ou pequena fuga incompleta em torno de um tema central. In: SARLET, Ingo Wolgang (Coord). Dimensões da dignidade: ensaios de filosofia do direito e direito constitucional. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013. p. 122. 106 universal, mas sim censitário, conforme tivessem ou não uma profissão remunerada.301 No direito contemporâneo, uma das tentativas pioneiras de se definir no que consistia a dignidade da pessoa humana deu-se na Alemanha pós-II Guerra. Ali, diante da dificuldade de se atribuir um conceito positivo à dignidade humana – a dignidade em si –, optou-se por defini-la negativamente: ao invés de buscar-lhe um conteúdo, passou-se a identificar as situações em que ela restaria violada 302 Desenvolveu-se então a fórmula de não- instrumentalização ou fórmula-objeto (Objektformel), cujo referencial epistemológico obteve- se a partir do pensamento do filósofo iluminista Immanuel Kant, cujos ideias foram recebidas no direito constitucional alemão por meio da obra do publicista Günter Dürig, sendo de forma imediata consagrados pela jurisprudência germânica.303 Para Kant, a dignidade do ser humano restaria violada quando esse fosse tratado como objeto, um meio para os fins de outrem. Segundo o filósofo: “No reino dos fins tudo tem ou um preço ou uma dignidade. Quando uma coisa tem um preço, pode por-se em vez dela qualquer outra como equivalente, mas quando uma coisa está acima de todo o preço, e portanto não permite equivalente, então ela tem dignidade”304. Em Kant, a dignidade do homem equivale à sua autonomia e essa se assenta sobre a sua razão. A dignidade, pois, tem por base a capacidade humana de raciocínio, que serve de fundamento para o acesso e a determinação de normas éticas e jurídicas. Segundo o filósofo, o contrário da autonomia – e, portanto, da dignidade – é a heteronomia, condição em que o homem sujeita-se a “uma regra de conduta que tem seu fundamento em algo externo, que pode ser a tradição, mandamentos divinos ou interesses englobados em uma certa concepção 301 Informação disponível em: . Acesso em: 26 abr. 2016. 302 Segundo informa Martins, a acepção negativa foi abraçada inicialmente na jurisprudência e doutrina alemã nos anos 1950, em virtude do ceticismo inicial de se definir um conteúdo para o conceito de dignidade humana, dado o seu alto grau de abstração. Pela acepção negativa, procurou-se, então, se definir a dignidade humana não a partir de um conteúdo próprio e universal, mas pelo “enfrentamento casuístico de claras hipóteses de sua violação; isto é, centrando-se o objeto da análise na ação violadora e não na ontologia do conceito”. (MARTINS, Leonardo. Bioética à luz da liberdade científica: estudo de caso baseado na decisão do STF sobre a constitucionalidade da Lei de Biossegurança e no direito comparado alemão. São Paulo: Atlas, 2014, p. 59). Como veremos mais adiante neste capítulo houve evolução no conceito de dignidade humana para abranger também o direito a prestações. Porém, tal evolução não implicou a negação do conceito anterior, de índole negativa, mas sim sua mais larga amplitude. 303 Nesse sentido, GUTIÉRREZ, Ignacio Gutiérrez. Dignidade de la persona y derechos fundamentales. Madrid/Barcelona: Marcial Pons, 2005, p. 29. 304 KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. Disponível em: . Acesso em: 26 abr. 2016. 107 de felicidade”.305 O uso da razão deve levar o homem à superação de sua menoridade autoimposta. Essa menoridade difere da biológica, pois a primeira dá-se “por culpa própria, se sua causa não residir na carência de entendimento, mas na falta de decisão e de coragem em se servir de si mesmo, sem a guia de outrem”.306 A razão humana, sendo universal, formula o fundamento das normas morais – que, para Kant são de dois tipos: normas éticas (relativas ao fórum interno da pessoa) e normas jurídicas (referente ao fórum externo) – por meio da máxima do imperativo categórico, que pode ser expresso, em uma de suas formulações, nestes termos: “Age apenas segundo uma máxima tal que possa ao mesmo tempo querer que ela se torne uma lei universal”. Será, pois, moral a norma que tanto respeita ao ser que a enuncia como, de igual modo, ao meu semelhante, e é esse juízo intersubjetivo o que lhe permite alcançar a universalidade. Ou, em termos mais prosaicos, trate seu semelhante conforme você espera ser tratado. A correção do direito verifica-se, pois, segundo essa máxima universal de caráter interpessoal – daí se dizer que a moral kantiana é do tipo procedimental307 –, sempre que se garanta a liberdade de ambos os participantes da relação jurídica, sem a sobreposição de um sobre o outro: “É correta toda ação que permite, ou cuja máxima permite, à [sic.] liberdade do arbítrio de cada um coexistir com a liberdade de todos segundo uma lei universal”.308 A razão é, pois, o fundamento do direito e, portanto, o verdadeiro fundamento do contrato social firmado para a fundação do Estado. Sendo o intelecto extensível a todos os homens, todos são igualmente dignos da proteção jurídica. O não-direito é o direito que objetifica o ser humano, o instrumentaliza em detrimento de projetos alheios. A justeza do direito verifica-se, pois, em prol da liberdade do homem – compreendida aqui como autonomia e essa, por sua vez, como dignidade: “A autonomia é, pois, o princípio da dignidade da natureza humana, bem como de toda natureza racional”.309 A filosofia de Kant não deve operar a partir das capacidades intelectuais, morais ou emocionais do indivíduo, relativamente mensuráveis310 – e variáveis, portanto. A dignidade da pessoa não admite gradações. A dignidade kantiana deve ser compreendida em termos 305 TERRA, Ricardo. Kant e o Direito (ePub). Rio de Janeiro: Zahar, 2004. 306 KANT, Immanuel. Resposta à pergunta: o que é Iluminismo? Disponível em: Acesso em: . Acesso em: 26 abr. 2016. 307 TERRA, Ricardo. op. cit. 308 KANT, Immanuel. Metafísica dos costumes (ePub). Rio de Janeiro: Vozes, 2013. 309 KANT, Fundamentação… 310 Nesse sentido, GUTIÉRREZ, op. cit., p. 31. 108 abstratos, a partir das capacidades potenciais do homem em atingir sua autodeterminação, o que, dessarte, permite estendê-la aos incapazes de toda forma – no que se incluem as crianças e o adolescentes.311 Entretanto, no desenvolvimento do conceito de dignidade na Alemanha, para parte da doutrina, a simples proibição da instrumentalização não seria suficiente para identificar a contento a dignidade da pessoa humana.312 Necessário seria estabelecer para o termo um âmbito positivo proteção. O direito desempenharia uma função menor se se restringisse tão somente a identificar uma conduta lesiva à dignidade. Hegel costuma ser apontado como o contraponto filosófico à visão de Kant. Na filosofia hegeliana, a dignidade, para além de algo inato ao ser humano, é um conceito a ser construído por ele. O homem, pois, não nasce, mas se faz digno ao longo de sua existência, passando a o ser no momento em que assume a condição de cidadão.313 A compreensão hegeliana indica, pois, um aspecto menos idealista e mais cultural da dignidade e, nessa medida, aloca o conceito para dentro de uma construção social: ali, a dignidade recebe uma dimensão ética, na medida em que implica o reconhecimento recíproco dos membros da comunidade de direitos.314 Para Hoffman, a dignidade não pode ser pensada à margem de uma concreta comunidade de reconhecimento recíproco e, nessa medida, não se refere à humanidade como um todo, mas, antes, é contextualizada dentro de uma comunidade política delimitada.315 O próprio Estado funda-se sobre tal reconhecimento dos cidadãos: “A dignidade é aquilo que, no ato fundacional do Estado, os homens se atribuem reciprocamente, aquilo que se prometem como membros de uma comunidade de direitos. Na promessa recíproca se fixa um espírito comum”.316 Portanto, esse novo fundamento para a dignidade distancia-se do contratualismo clássico de matiz individualista e racional de Kant, bem como do seu imperativo categórico, já que não se lhe atribuem pretensões de universalidade: “a promessa fundacional de respeito 311 Nesse sentido, SARLET, Ingo Wolgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. 9. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012, p. 56. 312 Cf. GUTIÉRREZ, op. cit. E ainda, MARTINS, Leonardo. op. cit. 313 HEGEL. 314 Por isso, Sarlet informa que a filosofia de Hegel é precursora da ideia de dignidade enquanto reconhecimento, desenvolvida por autores como Axel Horneth, tendo influenciado ainda a vertente relacional da dignidade apresentada por Habermas, com sua teoria comunicativa, Hasso Hofmann e Peter Häberle. SARLET, op. cit. 315 Apud GUTIÉRREZ, op. cit., p. 56. 316 HOFMANN apud GUTIÉRREZ, op. cit., p. 57. 109 recíproco necessita de contínua renovação”.317 Por esse motivo, Gutiérrez aponta que a compreensão social da dignidade implica o desafio decorrente de ela ter uma concepção diferente em cada Estado, a partir das diversas experiências morais de cada sociedade, as quais haverão de ser condensadas no texto constitucional. A interpretação dos princípios constitucionais deve, pois, levar em consideração o debate público no seu entorno, de forma que o apelo ao direito comparado resulte justificado em contextos culturais homogêneos, mas mesmo assim sendo posto à prova nos processos públicos de decisão.318 Segundo Häberle a grande vantagem na teoria da dignidade enquanto reciprocidade reside no fato de que nela o Estado não é mais sobrecarregado com o inexorável ônus de ter que garantir a dignidade do homem. O papel dos direitos fundamentais seria, sim, o de assegurar as condições para tanto, mas tal tarefa seria, em última instância, alcançada pelo próprio homem, que, por suas prestações, tanto poderia construir sua dignidade, como também perdê-la.319 Sarlet aponta, porém, que a fragilidade teórica da construção comunitária de dignidade – cujo principal expoente no direito contemporâneo seria Niklas Luhmann – reside no fato de expor a concepção intrínseca do valor humano a riscos desnecessários, na medida em que destaca a proteção do indivíduo pelo Estado com foco apenas no resultado, e não tanto em seu processo.320 Por outro lado, uma contribuição favorável da compreensão cultural da dignidade é que essa recebe um aspecto fenomenológico que a aproxima da realidade social e, nesse sentido, chama a atenção para as ameaças que as intervenções externas podem trazer para si. Ademais, apesar dos riscos de paternalismo e moralismo que uma compreensão comunitária da dignidade pode implicar321 – privilegiando-se uma dignidade “para nós” mais do que a dignidade “para si”322 –, tal acepção também, ao dar destaque à sua dimensão socializante, aponta para os deveres as responsabilidades do Estado e da sociedade no reconhecimento e 317 HOFMANN apud GUTIÉRREZ, op. cit., p. 57. 318 GUTIÉRREZ, op. cit., p. 57 e 58. 319 HÄBERLE, Peter. A dignidade humana como fundamento da comunidade estatal. In: SARLET, Ingo Wolgang (coord). Dimensões da dignidade: ensaios de filosofia do direito e direito constitucional. 2ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013, p. 73. 320 SARLET, op. cit. 321 Nesse sentido, demonstrando tais riscos e definindo parâmetros para uma aplicação da dignidade enquanto valor comunitário, sem, porém, implicar o cerceamento da liberdade humana, v. BARROSO, Luís Roberto. A dignidade da pessoa humana no direito constitucional contemporâneo: a construção de um conceito jurídico à luz da jurisprudência mundial. Belo Horizonte: Fórum, 2013, p. 87-98. 322 V. MAURER, op. cit., p. 128-131, ao tratar dos conceitos de dignidade “para si”, “para nós” e “em si”. 110 na garantia dos direitos fundamentais do ser humano, como pessoa nascida e destinada à liberdade. O ideal kantiano da autonomia faz-se em meio ao convívio social e, nesse sentido, precisa ser resguardado. Lançadas essas bases, necessário avaliar as implicações que o princípio da dignidade da pessoa humana importam para a criança e o adolescente. 4.1 A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA INFANTIL: ENTRE A AUTONOMIA E A PROTEÇÃO DA CRIANÇA A criança é um ser livre, porém, como proteção mesmo de sua liberdade, está sujeita a um poder alheio – o poder parental. Sendo assim, a observância da dignidade infantil reclama tanto uma dimensão individual (autonomia), como também relacional (heteronomia). A liberdade infantil perfaz-se, sobretudo, nos primeiros anos de vida, por meio do cuidado, da proteção e orientação que os pais fornecem aos seus filhos. Assim, tanto as referências para si como para o outro dão à dignidade dos petizes um sentido próprio, compatível com a sua condição peculiar de pessoas em desenvolvimento, nos termos do art. 6º, in fine, do ECA. O art. 5º da Convenção sobre os Direitos da Criança, ao dispor que os Estados Partes haverão de respeitar os direitos e deveres dos pais ou responsáveis de proporcionar à criança a instrução e orientação adequadas e acordes com a evolução da capacidade dos mais novos para o exercício de seus direitos, é complementado com a segunda parte do art. 18 do mesmo tratado, que diz caber aos pais ou, conforme o caso, aos representantes legais, “a responsabilidade primordial pela educação e pelo desenvolvimento da criança”. Trata-se da dimensão heterônoma da dignidade, que, nesse ponto, é destacada na CDC. Porém, da mesma forma que a CDC dá guarida à concepção da dignidade para os outros da criança – no caso, os seus pais ou responsáveis –, o documento também coloca como contraponto a essa dimensão comunitária a noção de que a criança tem direitos que lhe são próprios (art. 5, parte final) e o seu melhor interesse – que, como visto no item 2.7.2, é na CDC um princípio garantista, ou seja, referente a um catálogo de direitos – será a preocupação fundamental dos pais (art. 18, in fine). De igual modo, pelo prisma dos pais, a definição do que consiste a sua responsabilidade (art. 5 da CDC) – ou seja, o seu poder parental – não é aclarada na Convenção, mas, como apontam os supracitados arts. 5 e 18, o conceito de responsabilidade é 111 contrabalançado pelo direito de seus filhos323 – o que mais ainda reforça a ideia de um poder familiar recíproco, tal qual defendido no capítulo anterior deste estudo. Vê-se, portanto, que, no direito de família, a autonomia de pais e filhos é sempre associada à heteronomia, respectivamente, de filhos e pais. Os próprios teóricos do direito constitucional esforçam-se em corrigir eventuais concepções extremistas das filosofias kantiana e hegeliana, aproximando-as. Assim, Barroso informa haver na filosofia kantiana uma dimensão comunitária, pois o imperativo categórico aponta, em todas as suas formulações, para a vivência social: como derivação da sua racionalidade, o homem, ao construir as máximas que regem suas condutas, está obrigado a considerar o direito do seu semelhante.324 Só após a validação intersubjetiva da conduta, a máxima moral325 do indivíduo poder-se-á fazer universal. Esse o motivo por que a moral kantiana é identificada como procedimental326, o que aponta para seu aspecto comunitário. Por sua vez, no que se refere à filosofia hegeliana, Kurt Seelman aduz que o aspecto heterônomo ali conferido à dignidade humana não nega a ideia de autonomia, antes, pelo contrário, parte justamente da ideia kantiana de autorreferência para, após, abraçar a concepção comunitária com vistas a colocar a dimensão subjetiva protegida, por meio das normas jurídicas, do estado de servidão oriundo da mediação entre os homens.327 A filosofia hegeliana, portanto, não impede que o ser humano seja reconhecido de forma independente a suas relações sociais, mas teria tal assertiva como pressuposto. No direito da criança, a vantagem de se visualizar a dignidade enquanto autonomia – 323 Nesse sentido, HODGKIN, Rachel; NEWELL, Peter. Implementation handbook for the Convention on the Rights of the Child. Genebra: UNICEF, 2007. p. 76. 324 BARROSO, op. cit. Aqui, uma nota se faz necessária. Parece-nos que o esclarecimento de Barroso não quer apontar que haja na filosofia kantiana uma dimensão comunitarista, mas sim comunitária. Tais conceitos não são equivalentes. Assim, nos parece que o juscientista carioca quer se referir à dimensão procedimental da filosofia kantiana, da qual tratamos neste parágrafo. Assim, as normas morais, éticas e jurídicas, na filosofia de Kant, sempre levam em consideração o respeito ao outro sujeito moral, enquanto ser dotado da mesma racionalidade – e, portanto, dignidade –, que o ser formulador das máximas do imperativo categórico. Isso não equivale a afirmar que haja na filosofia kantiana uma dimensão comunitarista, pois isso efetivamente não seria possível já que o comunitarismo, enquanto corrente filosófica, permite a adoção de uma “concepção moral vigorosa”, a ponto de suplantar a dimensão subjetiva das decisões humanas. Como afirma Gargarella, ao traçar um paralelo entre o comunitarismo e o republicanismo – que não adota uma concepção moral forte, mas atrelada a certos valores “institucionalmente circunscritos”: “O comunitarismo, em contrapartida, não se mantém indiferente àquelas áreas da moral: as escolhas mais intimamente vinculadas com minha vida privada podem ser, em princípio, aceitáveis ou reprováveis, de acordo com o mundo moral onde estou inserido”. GARGARELLA, Roberto. As teorias da justiça depois de Rawls: um breve manual de filosofia política. Tradução: Alonso Reis Freire. São Paulo: Martins Fontes, 2008. p. 209. 325 Como visto no tópico anterior deste capítulo, a moralidade de Kant se refere tanto à ética como ao direito e propende, a partir do imperativo categórico, para a universalidade. 326 TERRA, op. cit. 327 SEELMAN, Kurt. Pessoa e dignidade da pessoa humana na filosofia de Hegel. In: SARLET, Ingo Wolgang (Coord). Dimensões da dignidade: ensaios de Filosofia do Direito e Direito Constitucional. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013. p. 112 e 113. 112 dignidade para si – afigura-se na adoção da fórmula-objeto, a qual desafia as posturas que tão somente olham para os petizes como objetos de tutela. Foi a instrumentalização da criança e do adolescente que fez com que eles, sob o primado de um suposto melhor interesse seu, sofressem intervenções judiciais sem maiores questionamentos ou necessidades de justificações. Prender para proteger era a máxima menorista por meio da qual se afastavam crianças e adolescentes de suas famílias de origen, sem qualquer processo judicial do tipo contencioso e dentro de uma política governamental de cunho higienista. Tais eram os riscos inerentes que a objetificação dos mais novos – inda que para lhes fazer um suposto bem – acarretava para os seus direitos fundamentais, como a liberdade de ir e vir e a convivência familiar e comunitária. Por outro lado, a dignidade enquanto heteronomia é uma dimensão não só necessária, mas também inescapável ao ser humano infantil, credor que é de cuidados por parte de seus genitores. Se a pessoa adulta é um ser que se desenvolve na coletividade – a qual ora lhe fornece um ponto, ora um contraponto à formação da identidade –, com maior ênfase tal evocação diz respeito à criança e ao adolescente: seu processo de desenvolvimento encontra, na dependência de seus familiares e do meio social em que estão inseridos, a garantia de seus direitos fundamentais e, nessa medida, de sua dignidade. Mais do que se excluírem, as dimensões individual e comunitária da dignidade fornecem, pela sua soma, uma melhor posição para a análise do raio de liberdade da criança relacionada com a liberdade parental a que se encontra sujeita. Aqui, a lógica é a mesma da teoria geracional dos direitos fundamentais: cada acepção, ao invés de suplantar a anterior, mais a potencializa, trazendo-lhe novas percepções, tal como ocorreu com o direito de propriedade, primeiramente um típico direito liberal, depois ganhando uma feição social e, por fim, ambiental. Contudo, se a dignidade da pessoa humana infantil aponta para harmonia entre os conceitos de dignidade para si e para o outro, por outro lado, nem sempre essa composição é fácil de ser equacionada na prática. Desde temas frugais do cotidiano familiar até uma dimensão política dos direitos da personalidade, a tensão entre a proteção e a autonomia da infância se estabelece: uma menina de três anos pode escolher a roupa com que quer sair de casa (mesmo estando a indumentária, na opinião de seus pais, em total descompasso imagético)?; Um petiz de dois anos pode optar por não comer na hora do jantar frutas e legumes (escolhendo, em vez disso, balas e doces)?; Um garoto de dez anos pode decidir, contra a vontade dos seus responsáveis, fazer aulas de dança contemporânea, e não de karatê?; A regulamentação da propaganda comercial para a 113 criança e o adolescente viola a liberdade deles enquanto consumidores?328; Uma moça de treze anos tem o direito de namorar e se relacionar – inclusive sexualmente – com um jovem adulto de dezoito sem que isso configure o crime de estupro de vulnerável, previsto no art. 217-A do Código Penal?; Um rapaz de dezessete anos pode decidir mudar de sexo mesmo sem o consentimento de seus genitores?329 Considerando que a Convenção sobre os Direitos da Criança estabelece em seu art. 15.1 o direito da criança “à liberdade de associação e à liberdade de realizar reuniões pacíficas”, o adolescente tem o direito de participar de protestos de rua contra o governo mesmo contra a vontade de seus guardiões? A resposta a tais questões aponta para um tensionamento que importa em duas leituras da Convenção sobre os Direitos da Criança. Aos que buscam liberar crianças e adolescentes das amarras sociais a que estão sujeitas por laços jurídicos, Irène Théry denomina-os como “Children´s Liberationists”. Para esses, segundo a autora, “longe de serem direitos específicos, os ‘direitos da criança’ são, ao contrário, direitos desespecificados”.330 Aqui, a luta é por igualar o direito da criança aos do mundo adulto. Em outro giro, uma segunda leitura das normas do direito da criança contempla aos mais novos direitos específicos, compatíveis com sua proteção diferenciada: os direitos da menoridade. Essa proteção diferenciada decorre da não-autonomia da criança, sendo que sua incapacidade jurídica nada mais é do que “o direito à irresponsabilidade, isto é, o direito a não ser submetido aos deveres que a capacidade implica”.331 Equacionar as questões relativas aos direitos da menoridade (direitos na dependência) e direitos de liberdade (direitos à independência) é tarefa tormentosa para a ciência jurídica, sobretudo quando se percebe que a voz da criança é passível de ser manipulada por parte de um adulto – e isso, tanto numa dimensão individual, quando o petiz está sujeito ao poder parental, como também coletiva, momento em que a “criança” é 328 Atualmente, essa questão se encontra posta em discussão no Brasil através da Resolução 163, de 13 de março de 2014, do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente. Cf. BRASIL. Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente. Resolução 163, de 13 de março de 2014. Dispõe sobre a abusividade do direcionamento de publicidade e de comunicação mercadológica à criança e ao adolescente. Disponível em: . Acesso em: 5 jul. 2015. 329 Essa discussão, da permissividade da mudança de sexo por adolescentes mesmo diante de discordância dos pais, foi posta recentemente no Brasil, através do PL 5.002/13, de autoria dos deputados federais Jean Wyllys e Érika Kokay, o chamado “PL da identidade de gênero” ou “Lei João W. Nery”, o qual “Dispõe sobre o direito à identidade de gênero e altera o artigo 58 da Lei 6.015 de 1973”. Disponível em: . Acesso em: 28 nov. 2014. 330 THÉRY, op. cit., p. 139. 331 Ibid., p. 138. 114 visualizada enquanto categoria e é pauta de uma agência adulta – porém não necessariamente vinculada aos anseios infantis.332 Uma resposta capaz de enfrentar o tensionamento proteção versus autonomia da infância deve, portanto, analisar, de um lado, a extensão do poder parental – o que fizemos no capítulo anterior –, como também, do outro, o conteúdo dos direitos enfeixados sob a condição de sujeitos de direito da criança e do adolescente. 4.2 A AUTONOMIA DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE EM QUESTÃO Discorrendo sobre o lugar que cabe à criança no mundo contemporâneo, Clarice Cohn compara o ser infantil a um fotograma em negativo do mundo adulto.333 Não raramente, a imagem do petiz põe-se socialmente como um contraponto à cultura adulta, ora como encantamento – onde se recita a pureza dos mais novos – ora como interdito – quando os infantes são vistos como seres irracionais e passíveis de orientação e disciplina. A relação que daí se estabelece é a de uma imagem não-autônoma da infância, mas, pelo contrário, sempre associada ao universo adulto, quer para lhe servir de escapismo aos dramas cotidianos, quer para ter nos maiores o modelo de racionalidade futura. Porém, desde o início do século XX, quando os estudos de Sigmund Freud ressaltaram a dimensão subjetiva – portanto, ativa – do petiz já em sua primeira infância334, passando pelos ensinos de Piaget e Vygostsky sobre a intervenção que a criança faz sobre o mundo ao seu redor para ressignificá-lo335, a imagem do infante, como ser passivo, foi minguando em prol de uma percepção que lhe atribui uma postura protagonista perante o mundo que se lhe descortina. Tais pesquisas engendraram uma mudança cultural sobre o que é infância ao longo do século XX. De categoria inespecificada dos tempos remotos, perdida entre os adultos,336 aos mais novos foram conferidos espaço e voz próprios na sociedade contemporânea, o que leva Maria Luiza Belloni a afirmar: 332 Por esse motivo, Théry critica o conceito de infância enquanto lobby. THÉRY, op. cit., p. 135-161. 333 COHN, Clarice. Antropologia da criança. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2009. p. 7 e 8. 334 Nesse sentido, ZORNIG, Silvia Maria Abu-Jamra. As teorias sexuais infantis na atualidade: algumas reflexões. Disponível em: . Acesso em: 03 mai. 2016. 335 ANTUNES, Celso. Piaget, Vigotsky, Paulo Freire e Maria Montessori em minha sala de aula. São Paulo: Ciranda Cultural, 2008. 336 Nesse sentido, conferir os estudos de Neil Postman e Philip Ariès, referidos na nota 123 do capítulo 2. 115 As transformações relativas à infância estão entre as mais significativas mudanças socioculturais ocorridas ao final do século XX: mudaram os valores, as representações e os papeis atribuídos às crianças nas sociedades ocidentais. Doravante, a criança é reconhecida como um valor em si, no presente, não mais como uma promessa para o futuro (da nação, da família): a criança é desejada, amada, protegida, consultada.337 Assim, o pensamento de muitos teóricos das ciências sociais foi convergindo para atribuir ao ser infantil uma diferença para com o mundo adulto que não é de ordem cognitiva, mas qualitativa: a criança não sabe menos com relação aos maiores, sabe outra coisa.338 Quanto ao direito, sendo um campo do saber que não só é referido a um determinado contexto social, mas também influenciado por ele339 – cujas leis são uma das formas de expressão cultural de um povo –, tais pesquisas tiveram considerável impacto sobre a ciência jurídica, sobretudo a partir da década de 1960, quando se buscou aperfeiçoar a normativa internacional em vigor para a infância.340 A proclamação pela Organização das Nações Unidas, em 1989, da Convenção sobre os Direitos da Criança representou, para o direito, o auge da tendência científica e cultural de atribuir uma identidade própria à criança na sociedade. Como corolário, no campo das normas jurídicas, a criança341 se posta na qualidade de sujeito de direitos, com pretensões que vão para além dos clássicos e já reconhecidos direitos de proteção e provisão, mas agora engloba também os de natureza participativa. Isso implica uma nova postura ética para com a criança, que demanda dos adultos que se lhes considere a voz própria nos assuntos relacionados ao petiz342 – o que, portanto, pode levar a uma eventual e potencial distensão na relação paterno- filial.343 Este novo referencial para a infância – relativo a sujeitos de direitos – vai além do conceito civilista da simples titularidade jurídica, pois, enquanto essa segunda dimensão 337 BELLONI, Maria Luiza. O que é sociologia da infância. Campinas: Autores Associados, 2009, p. VII. 338 Nesse sentido, COHN, op. cit., p. 33 - 36. 339 Cf. MARQUES NETO, Cícero Ramalho. A ciência do Direito: conceito, objeto, método. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. 340 Sobre esse movimento de reformulação da legislação internacional para a infância, que culminou com a proclamação da Convenção sobre os Direitos da Criança, da ONU, de 1989, vide itens 2.5 e 2.6 desta pesquisa. 341 Na CDC, o conceito de criança abrange o de adolescente. Nos termos do artigo 1 do tratado, “Para efeitos da presente Convenção considera-se como criança todo ser humano com menos de dezoito anos de idade, a não ser que, em conformidade com a lei aplicável à criança, a maioridade seja alcançada antes”. 342 Nesse sentido, por exemplo, os arts. 12, 13, 14 e 15 da CDC consagram ao petiz as liberdades de expressão, de pensamento, de consciência, de crença e de associação. 343 Daí porque a associação norte-americana em defesa do ensino doméstico (Home School Legal Defense Association) referiu-se à Convenção como “o mais perigoso ataque aos direitos dos pais na história dos Estados Unidos”. Cf. KLICKA, Christopher J.; ESTRADA, William A. The UN Convention on the Rights of the Child: the most dangerous attack on parental rights in the history of the United States. Disponível em: http://nche.hslda.org/cap/un_treaty_31607.pdf. Acesso em: 1º mar. 2016. 116 contenta-se com a expressão da voz dos incapazes pela de seus representantes legais – nos termos do art. 1.634, VII, do Código Civil –, na primeira, os que lidam com a criança – na Justiça ou fora dela – devem-se esforçar para desenvolver metodologias que busquem alcançar diretamente os anseios dos mais novos, tal qual estabelecem os princípios da “condição da criança e do adolescente como sujeitos de direitos” e da “oitiva obrigatória e participação”, positivados no ECA, art. 100, parágrafo único, respectivamente, I e XII. Portanto, o atual marco legislativo global, além de levar a uma nova estrutura para o princípio do melhor interesse da criança – desatrelando-o do prisma subjetivo adultocêntrico344 –, também importou em uma nova epistemologia para a teoria dos direitos da criança. Como visto no item 3.4, nos Estados Unidos dos séculos XIX e XX, a teoria constitucional dos direitos da criança veiculou para os mais novos a tese da impaired choice (escolha debilitada) – pela qual se negava a condição de agente ao petiz em virtude da sua vulnerabilidade para decidir autonomamente (as crianças tinham direitos na dependência). Por sua vez, no Brasil, tal qual ocorrera com relação aos direitos parentais, a problemática da titularidade de direitos da criança foi relegada historicamente à tradição civilista, na qual não se aprofundaram maiores reflexões em torno da liberdade e da autonomia dos mais novos, mas contentava-se a doutrina com a teoria das incapacidades e o suprimento da vontade débil do petiz pela racionalidade de seu representante legal. Porém, a partir da década de 1990, com a vigência da Convenção sobre os Direitos da Criança, um olhar europeizado345 estabeleceu um novo paradigma para os debates jurídicos em torno da criança e do adolescente entre nós. As políticas de proteção e promoção dos direitos dos petizes passaram então a se desenvolver sob um prisma binário: a tutela jurídica dos mais novos demanda tanto a atenção à sua atual condição de menoridade, como também à sua futura perspectiva de cidadãos autônomos. Esse novo olhar para a infância importa na substituição da fundamentação teórica que conferia aos petizes um status menor na ordem constitucional, a partir do qual a leitura de seus direitos fundamentais desenvolvia-se com referência constante ao seu estado de 344 Cf. item 2.6. 345 Defendendo a influência do pensamento europeu para o movimento de internacionalização do direito da criança, cf. GRAHN-FARLEY, Maria. Neutral law and eurocentric lawmaking: a postcolonial analysis of the U.N. Convention on the Rights of the Child. In: Brooklyn Journal of International Law. v. 34, n.1. Nova Iorque: Brooklyn Law School, 2008, e COCKBURN, Tom. Rethinking children´s citizenship. Basingstoke: Palgrave Macmillan, 2013. p. 160. 117 vulnerabilidade e, portanto, sempre subjugados à liberdade de seus pais.346 A tutela da criança era defendida e promovida pelo viés dos adultos-postulantes sob o olhar do adulto-julgador. Passa-se, então, a questionar a compatibilidade da teoria da escolha imperfeita (impaired choice theory) para uma leitura constitucional atualizada dos direitos da criança. Sob o viés da Doutrina da Proteção Integral e do seu corolário referente ao status de sujeito de direitos auferido pelos mais novos, propugna-se a superação do modelo anterior centrado na racionalidade. Critica-se, em primeiro lugar, o fato de a tese da escolha débil fundamentar-se excessivamente sobre o ideal iluminista de centralidade da razão para, então, construir toda a sua teoria do direito, dando, porém, pouco espaço aos aspectos não-cognitivos que uma escolha autônoma implica, tal como as capacidades emocionais, imaginativas e intuitivas.347 Em segundo plano, questiona-se o fato de uma teoria construída sobre a capacidade jurídica do agente não dar conta da evolutiva aptidão da criança para uma decisão autônoma348 – e, nesse sentido, não desempenharia uma função emancipativa do ser humano, fim último de todo o direito constitucional. A partir dos estudos de Piaget demonstrando que a maturidade humana é alcançada de forma gradual, e não por meio de etapas fixas, propõe-se a releitura da menoridade: ela já não é simples fase de interdição de direitos, mas antes período de elaboração evolutiva da cidadania presente e futura.349 Nesse sentido, a Convenção sobre os Direitos da Criança,350 ao reconhecer os direitos e deveres dos pais ou responsáveis de orientar a criança com relação ao exercício de seus direitos, também informa que isso deve ocorrer de maneira acorde com a evolução de sua capacidade (do petiz). Trata-se do princípio da autonomia progressiva da criança, que conforma as relações éticas e jurídicas que o ser infantil estabelece como mundo adulto. Por fim, a fragilização da titularidade de direitos da criança pelo critério da racionalidade adulta mostra-se incoerente na medida em que “mesmo as crianças mais novas 346 Daí porque, como já demonstrado no item 2.2, a Suprema Corte dos Estados Unidos, desde sua decisão no caso Mercein v. Barry (1847), sempre foi zelosa em dar destaque aos direitos de proteção e bem-estar dos mais novos – tutelados por seus pais – mais do que em seus direitos de autonomia (liberty rights). 347 Nesse sentido, DAILEY, Anne C. Children´s constitutional rights. Minnesota Law Review, v. 95, nr. 06. Minneapolis: University of Minnesota Law School, 2011, p. 2099-2179. Disponível em: . Acesso em : 10 fev. 2016. 348 Nesse sentido, DAILEY, op. cit., p. 2142 e 2143. 349 Confirmando a crítica que uma leitura estanque da agência individual (capacidade versus incapacidade) implica para os direitos da personalidade, Piaget demonstrou em seus estudos que a aptidão humana para aprender não se dá como que atravessando uma determinada fase “divisor de águas” – antes da qual se é imaturo; após o que, maduro –, mas, ao contrário, evolui progressivamente. Cf. ANTUNES, op. cit., p. 21. 350 CDC, art. 14.2. 118 são capazes de racionalidade e autonomia, enquanto os adultos, por outro lado, são suscetíveis de vulnerabilidade, emoção e irracionalidade”.351 Outro aspecto da personalidade infantil que fragiliza a impaired choice theory decorre do fato de que a criança desempenha, tanto em sua família como na sociedade, um papel bem mais ativo do que supõem em regra os adultos. Tanto na construção dos vínculos familiares, como enquanto produtores culturais na sociedade, várias pesquisas têm demostrado que os petizes são mais do que simples partes passivas nas relações humanas de que participam.352 A ética do cuidado que vige no âmbito familiar aponta para uma relação interdependente e recíproca, mais do que unilateral. Nesse admirável mundo novo que se descortina para as crianças no campo das ciências sociais neste início de século XXI, a infância passa a ser compreendida como uma etapa peculiar do desenvolvimento humano, que se situa entre a interdição de direitos – ou mais propriamente do exercício de alguns deles – e a sua autonomia, ora alcançada, ora buscada. A teoria do direito constitucional da criança e do adolescente deve, pois, dar conta de uma fundamentação que una essas duas etapas da vida humana, a menor e a maioridade. Uma abordagem atualizada dos interesses infantojuvenis deve ter em consideração esse aspecto desenvolvimentista de sua personalidade – na esteira do que estabelece a parte final do art. 6º do Estatuto da Criança e do Adolescente.353 O estudo do desenvolvimento enquanto direito fundamental – ou, mais propriamente, como veremos, a abordagem desenvolvimentista dos direitos fundamentais – muito pode colaborar para o desafio de se estruturar, na teoria constitucional, a posição subjetiva da 351 No original: “Even the youngest children are capable of rationality and autonomy, as adults, on the other hand, are susceptible to vulnerability, emotion and irrationality”. COCKBURN, Tom. Rethinking children´s citizenship. op. cit., p. 190. 352 No âmbito socioculutral, cf. o trabalho de Clarice Cohn ao tratar, pelo olhar da antropologia, da criança atuante e da criança como produtora de cultura na sociedade. COHN, Clarice. op. cit., p. 27-41. No âmbito das convivência familiar, cf. o estudo realizado por Ruth Evans e Saul Becker, analisando o cuidado proporcionado pelas crianças aos pais soropositivos para o vírus da AIDS. Para os autores, crianças e adolescentes nas relações familiares, além de serem cuidadas, também desempenham papel de cuidado para com seus genitores, no que se fortalecem os vínculos familiares através de troca de cuidado e cumplicidade. EVANS, Ruth; BECKER, Saul. Children caring for parentes with HIV and AIDS: global issues and policy responses. Bristol: The Policy Press, 2009. Ainda, estudando a atitude proativa de crianças de classes populares diante da publicidade dos brinquedos da TV para ressignificar a exposição a que estão sujeitas através da recriação das brincadeiras nos espaços públicos das ruas ou da sua imaginação, cf. ALVES, Anna Karine Gurgel de Castro. Os brinquedos da TV no olhar de crianças dos setores populares. In: SAMPAIO, Inês Sílvia Vitorino; CAVALCANTE, Andréa Pinheiro Paiva; ALCÂNTARA, Alessandra Carlos. Mídia de chocolate: estudos sobre a relação infância, adolescência e comunicação. Rio de Janeiro: E-papers, 2006. p. 111-122. 353 “Art. 6º Na interpretação dessa Lei levar-se-ão em conta os fins sociais a que ela se dirige, as exigências do bem comum, os direitos e deveres individuais e coletivos, e a condição peculiar da criança e do adolescente como pessoas em desenvolvimento”. (Grifo nosso). 119 criança perante si e os outros – quer sejam tais outros seus pais, a sociedade ou o Estado. A perspectiva desenvolvimentista se nos afigura da grande relevo para ligar as dimensões aparentemente paradoxais do cuidado e da autonomia cabíveis aos mais novos, facilitando o correlacionamento do direito dos pais com o de seus filhos. Assim, cumpre-se estudar o direito ao desenvolvimento da criança e do adolescente, alocando-o na teoria geral dos direitos fundamentais e definindo sua área de proteção. 4.3 O DIREITO AO DESENVOLVIMENTO NA TEORIA GERAL DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS Após a proclamação da Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 1948, do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos e do Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (ambos de 1966), o direito internacional teria, nesses três documentos, a sua Carta Internacional de Direitos Humanos (International Bill of Human Rights 354 ), uma referência básica de bens fundamentais para todas as nações, a serem tutelados de forma universal. Como um reflexo da construção teórica então vigente no direito, os dois pactos de 1966 representavam o que, na teoria constitucional, denominavam-se classicamente direitos de primeira e segunda geração355, respectivamente: a) os direitos civis e políticos – também denominados direitos de resistência e; b) os direitos sociais (tais como saúde, educação, assistência social e cultura), também designados direitos prestacionais. Na sua formulação clássica, a tipologia dos direitos fundamentais desenvolveu-se a partir da concepção política de Estado vigente – primeiramente, o Liberal, no início do século XIX e, posteriormente, o Social, no final do século XIX e início do século XX.356 Desses dois paradigmas, surgiram as teorias sistematizadoras dos direitos fundamentais respectivamente pelo viés negativo e positivo da atuação governamental: a teoria liberal dos direitos fundamentais e a teoria social-estatal.357 354 Cf. . Acesso em: 08 maio 2016. 355 Considerando a finalidade imediata do presente trabalho trabalho, deixamos, neste instante, de proceder a considerações semânticas em torno do designação mais adequada para a tipologia dos direitos fundamentais – se “gerações” (BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 6. ed. São Paulo: Malheiros, 1996), “dimensões” (GUERRA FILHO, Willis Santiago. Direitos fundamentais, processo e princípio da proporcionalidade. In: ______ (Coord). Dos direitos humanos aos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997) ou “categorias” (DIMOULIS; MARTINS, op. cit.). 356 Nesse sentido, BONAVIDES, op. cit. 357 Robert Alexy, valendo-se dos ensinos de Ernst-Wolfgang Böckenförde, aponta cinco vertentes sob as quais se desenvolve a teoria dos direitos fundamentais: a teoria liberal ou do Estado de Direito Burguês; a teoria 120 Os direitos fundamentais de primeira geração – também designados de direitos de defesa, de status negativus ou de resistência358 – foram concebidos classicamente à luz da concepção negativa do Estado, típica do movimento liberal de fins do século XVIII e início do século XIX, a partir da qual se propugnava uma intervenção governamental mínima na vida dos cidadãos. O prisma liberal pressupunha – e ainda o faz359 – a autonomia do indivíduo como ponto de partida para a construção da teoria política de governo.360 Porém, com o estabelecimento do Estado Liberal e a ascensão da burguesia enquanto nova elite dominante, as fragilidades verificadas no desenvolvimento do modo de produção capitalista do início do século XIX fizeram com que, no campo da filosofia política, fossem questionados os postulados do absenteísmo estatal. O liberalismo político e econômico, ao invés de gerar a tão almejada emancipação do homem, teria tão somente substituído a relação de opressão estabelecida pela realeza sobre a plebe, por uma nova configuração, ainda excludente, entre burguesia e proletariado.361 Partindo do pressuposto de que, para se chegar à tão almejada liberdade, necessário seria garantir os mínimos sociais para todos os cidadãos – sobretudo os menos favorecidos – desenvolvem-se, no campo da ciência jurídica, as teorias que impelem o poder público a um agir proativo, por meio de prestações veiculadoras de políticas socializantes. 362 Era o surgimento do Estado de Bem-Estar Social ou Estado- Providência do final do século XIX e primeira metade do século XX. Nesse cenário, desenvolve-se o conceito de direitos fundamentais de segunda geração, ligados à busca de institucional; a teoria axiológica; a teoria democrático-funcional e a teoria social-estatal. Neste estudo, porém, lançaremos mão de analisar tão somente o desenvolvimento histórico da primeira e da última corrente teórica. ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2014, p. 562 e 563. 358 Segundo Leonardo Martins e Dimitri Dimoulis, “os direitos de resistência correspondem à concepção clássica liberal que procura impor limitações à atividade estatal, para preservar a liberdade pessoal que inclui a atuação econômica e o usufruto da propriedade. Dessa forma, objetiva-se afastar quaisquer possibilidades de intervenções arbitrárias na esfera individual”. DIMOULIS; MARTINS, op. cit., p. 51. 359 Nesse sentido, a lição de Leonardo Martins ao apontar o princípio distributivo como norte da relação indivíduo-Estado. Cf. nota 141, no capítulo 3. 360 Nesse sentido, ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos fundamentais na Constituição portuguesa de 1976. 3. ed. Coimbra: Almedina, 2004, p. 51. 361 Na célebre frase do escritor francês Anatole France (1844-1924) sobre o primado da legalidade no Estado Liberal: “Em sua igualdade majestática a lei proíbe tanto ao rico quanto ao pobre dormir embaixo da ponte, esmolar nas ruas e furtar pão”. FRANCE, Anatole. O lírio vermelho. Rio de Janeiro: Irmãos Pongetti, 1957. 362 Segundo o professor lusitano José Carlos Vieira de Andrade: “As transformações sociais e econômicas ligadas ao processo de industrialização quebram o encanto liberal da ‘sociedade de infinitamente pequenos’, homogênea e pacífica. O poder político é reinvidicado pelas classes não-proprietárias e o mundo burguês tem de pactuar com o ‘quarto estado’. [...] Este processo de democratização (política) não poderia deixar de influenciar decisivamente a matéria dos direitos fundamentais, precisamente na medida em que fez sobressair as garantias de igualdade no contexto das relações indivíduo-Estado”. ANDRADE, op. cit., p. 54. 121 igualdade material, e não somente formal, perante a lei.363 Entretanto, mal fora tal construção bigeracional acolhida pelas Nações Unidas nos dois Pactos de 1966, já se esboçava no direito internacional a discussão em torno do desenvolvimento de uma nova categoria de direitos fundamentais364, os assim chamados direitos fundamentais de terceira geração – também designados direitos da solidariedade ou da fraternidade.365 Em junho de 1978, a Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO) promoveu em Paris um encontro para discutir os direitos humanos à luz da “nova ordem internacional econômica”. 366 Durante o colóquio, registrou-se o desenvolvimento de uma nova e terceira geração de direitos fundamentais, então denominados direitos de solidariedade (solidarity rights). No evento, foram identificados, nessa tipologia, os seguintes direitos: direito ao desenvolvimento; direito à paz; direito a um meio ambiente saudável e equilibrado; direito a um patrimônio comum da humanidade, dentre outros.367 Registrou-se ainda na ocasião que essa nova modalidade de direitos refletiria uma particular concepção humana de vida comunitária, na qual a noção de solidariedade destacava-se como base para o desenvolvimento de uma teoria de justiça. Desse modo, para a realização plena dos direitos de fraternidade necessária seria “a junção de esforços de todos os que representam os interesses sociais envolvidos: indivíduos, Estados e outras entidades públicas ou privadas”. (Tradução livre).368 Assim, enquanto os direitos de primeira e segunda geração apontam invariavelmente 363 No magistério de Leonardo Martins e Dimitri Dimoulis, os direitos de segunda geração representam uma “categoria dos direitos de status positivus, também chamados de direitos sociais ou a prestações, engloba os direitos que permite aos indivíduos exigir determinada atuação do Estado, no intuito de melhorar suas condições de vida, garantindo pressupostos materiais necessários para o exercício da liberdade, incluindo liberdades de status negativus”. Podem-se consubstanciar tanto em prestações materiais, “que podem consistir, primeiro, no oferecimento de bens ou serviços a pessoas que não podem adquiri-los no mercado (alimentação, educação, saúde etc) e, segundo, no oferecimento universal de serviços monopolizados pelo Estado (segurança pública)”, como também em prestações normativas “que consistem na criação de normas jurídicas que tutelam interesses individuais”. DIMOULIS ; MARTINS, op. cit., p. 51; 52. 364 Nesse sentido, Philip Alston informa que, apesar de a genealogia dos direitos de terceira geração não ser clara, um de seus primeiros registros se deu em 1971, através da obra do seu maior proponente, o Dr. Karel Vasak, então consultor da Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco). ALSTON, Philip. A third generation of solidarity rights: progressive development or obfuscation of international human rights law?. Netherlands International Law Review. Dordrecht: Martinus Nijhoff Publishers, 1975, p. 309. 365 BONAVIDES, op. cit., p. 523. 366 O´BRIEN. Peter. Expert meeting on human rights, human needs and the establishment of a new international economic order: final report. Paris: Unesco, 1978. Disponível em: . Acesso em: 2 maio 2016. 367 Ibid. 368 Ibid., p. 90. Do original: “[…] the joint efforts of all those representing the social interests involved”. 122 para direitos em colisão, os direitos de terceira geração dão relevo a pretensões não colidentes, mas confluentes. No relatório final do encontro de 1978, apontou-se que, mesmo sendo a noção de solidariedade importante para a formulação de todos os direitos, no caso dos direitos da fraternidade, eles só podem ter alguma substância (content) se houver um esforço comum.369 Assim, inverte-se a lógica contida no lema revolucionário francês da liberdade, igualdade e fraternidade, sob o qual se haveria previsto a própria evolução histórica dos direitos humanos (direitos da liberdade, no século XVIII; direitos da igualdade, no século XIX; direitos da fraternidade, no século XX)370: considerando que os direitos humanos são interdependentes e os problemas individuais inserem-se de uma escala maior, global, é a fraternidade que precede a liberdade e a igualdade, e não o contrário.371 Ao final do relatório, os expertos registraram a importância de melhor desenvolverem-se algumas questões referentes aos direitos de terceira geração, notadamente: em que níveis a noção de solidariedade poder-se-ia fazer operacional; meios coletivos para examinar as várias questões relativas à solidariedade; clarificação dos sujeitos, objetos e conteúdo dos direitos de solidariedade etc.372 Dando sequência às reflexões geradas naquele primeiro congresso, a Unesco, então, promove, em 1980, um encontro voltado a discutir alguns direitos específicos de terceira geração. Era o Colóquio sobre os Novos Direitos Humanos, ocorrido na cidade do México. Nesse segundo momento, os especialistas debruçaram-se sobre o conteúdo dos direitos: à comunicação; a ser diferente; ao meio ambiente equilibrado; à paz; ao desenvolvimento; ao patrimônio comum da humanidade.373 Reafirmou-se, na ocasião, o postulado de que a ideia de solidariedade subjaz à noção de qualquer direito. Ainda, identificou-se que os direitos de terceira geração teriam um aspecto tanto individual como coletivo, bem como combinariam elementos passivos (compreendidos aqui como o direito do cidadão, das pessoas ou das nações de receber uma prestação) e ativos (referentes ao dever cabível a entidades governamentais e privadas de 369 O´BRIEN, op. cit., p. 91. 370 Para o constitucionalista cearense Paulo Bonavides, “Em rigor, o lema revolucionário do século XVIII, esculpido pelo gênio político francês, exprimiu em três princípios cardeais todo o conteúdo possível dos direitos fundamentais, profetizando até mesmo a sequência histórica de sua gradativa institucionalização: liberdade, igualdade e fraternidade”. BONAVIDES, op. cit., p. 516. 371 Nesse sentido, O´BRIEN, op. cit., p. 91. 372 Ibid., p. 92. 373 MÉXICO. Matías Romero Institute of Diplomatic Studies of the Secretariat for External Affairs of Mexico. Colloquium on the New Human Rights. Cidade do México: Unesco, 1980. Disponível em: . Acesso em: 05 maio 2016. 123 prestar e garantir um determinado direito). Reafirmou-se, ainda, o caráter indivisível dos direitos humanos, qualquer que fosse sua geração. Por fim, asseverou-se que os direitos da fraternidade, diferentemente dos direitos liberais e sociais, permaneciam em regra fora do marco de uma regulação adequada, o que deveria ser corrigido.374 Entretanto, os registros do colóquio de 1980 também apontam para dissensões entre os presentes no que toca à viabilidade do desenvolvimento de uma terceira tipologia de direitos fundamentais. Já na abertura do seu relatório, destacou-se a reserva feita por algumas das autoridades presentes no que diz respeito à noção imprecisa de direitos da solidariedade. Seria então necessário melhor precisar-se a natureza deste tipo de direito e, mais particularmente, seu conteúdo econômico e social.375 Ressaltou-se ainda a preocupação de a tendência evolutiva das gerações dos direitos levar a uma plasticidade tal de seu conteúdo que se poderia permitir o afrouxamento da coercibilidade tanto dos novos direitos, como também dos já reconhecidos e positivados pelas nações.376 377 Em artigo posterior à sua participação no encontro de 1980, Philip Alston indaga se haveria efetivamente direitos de terceira geração, ou se essa tendência não seria mais um novo enfoque para os direitos já reconhecidos. Questiona ainda o professor australiano se é possível desenvolver-se o conceito de direitos coletivos sem se perder de vista a essencial dimensão individual dos direitos humanos.378 Apesar de reconhecer a importância da solidariedade no 374 MÉXICO, op. cit., p. 26. 375 Como apontou um dos participantes do colóquio, não identificado no relatório final do encontro: “Impossível contemplar laços de solidariedade entre exploradores e explorados ou entre racistas e suas vítimas”. No original: “it was impossible to contemplate defining links of solidarity between exploiters and exploited, or between racists and their victims”. Ibid., p. 4. 376 “O conteúdo destes novos direitos dá azo a questões. É questionável se é apropriado se considerar a formulação de novos parâmetros ao tempo em que os direitos mais fundamentais da Declaração Universal e dos Pactos Internacionais são sistematicamente desconsiderados e violados em boa parte dos países”. No original: “The content-of these new rights gives rise to questions. It is also asked whether it is appropriate to consider the formulation of new standards, at a time when the most fundamental rights of the Universal Declaration and the International Covenants are systematically flouted and violated in a good many countries”. SENARCLENS, Pierre de. Colloquium on the New Human Rights (Anexo IV). Cidade do México: Unesco, 1980. 377 A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, a propósito, tem acolhido a perspectiva evolutiva e não exauriente dos direitos fundamentais: “Enquanto os direitos de primeira geração (direitos civis e políticos) – que compreendem as liberdades clássicas, negativas ou formais – realçam o princípio da liberdade e os direitos de segunda geração (direitos econômicos, sociais e culturais) – que se identificam com as liberdades positivas, reais ou concretas – acentuam o princípio da igualdade, os direitos de terceira geração, que materializam poderes de titularidade coletiva atribuídos genericamente a todas as formações sociais, consagram o princípio da solidariedade e constituem um momento importante no processo de desenvolvimento, expansão e reconhecimento dos direitos humanos, caracterizados, enquanto valores fundamentais indisponíveis, nota de uma essencial inexauribilidade” (Grifos nossos). BRASIL. Supremo Tribunal Federal. MS 22.164. Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 30-10-1995, Plenário, DJ de 17-11- 1995. Disponível em: . Acesso em: 6 jul. 2016. 378 ALSTON, op. cit., p. 321. 124 direito das nações, o autor formula quatro críticas às fundamentações juscientíficas calcadas sobre este valor: a) a solidariedade teria um sentido vago, quase metafísico, de modo que tanto poderia ser usada para amparar condutas virtuosas, como também para evitar qualquer comprometimento tangível; b) a atribuição do termo solidariedade à uma determinada geração de direitos ofuscaria o fato de que esse seria, na verdade, um valor comum à realização e promoção de qualquer direito sob análise; c) a solidariedade seria percebida como um ideal utópico para muitos autores, de relevância muito limitada no direito internacional; d) seria questionável se a solidariedade poderia ser o denominador comum de direitos tão díspares como o direito ao desenvolvimento e o direito a ser diferente: no primeiro, a solidariedade desempenharia um papel bem mais substancial do que no segundo.379 A fim de testar a validade científica do desenvolvimento de novas gerações de direitos humanos, Alston indica algumas diretrizes aptas a validar ou não uma suposta nova categoria de direito: a) se as novas abordagens são compatíveis – e não desvalorizadoras – com os direitos já existentes; b) se o enfoque desejado não pode ser alcançado com a evolução hermenêutica das normas já existentes; c) se a abordagem e terminologia empregadas estão em consonância com os tradicionais requerimentos da teoria dos direitos humanos. Passados quase quarenta anos desses debates iniciais, o conceito de direitos da solidariedade permanece impreciso – e mais ainda no Brasil, onde o conteúdo dignidade da pessoa humana tem-se constituído no debate jurisprudencial de modo, não raro, amorfo, e isso muito em nome de sua acepção solidária.380 381 Em 2007, a Fundação Friedrich Ebert, de origem alemã, promoveu um evento paralelo à quarta sessão do Conselho de Direitos Humanos da ONU, cujo objeto era o debate sobre os direitos de terceira geração. Na ocasião, destacou-se o aspecto eminentemente coletivo dos direitos da solidariedade, apesar de essa feição também se apresentar nos direitos de primeira e segunda geração. O delineamento transindividual dos direitos de terceira 379 ALSTON, op. cit., p. 318; 319. 380 O uso excessivo do princípio da dignidade da pessoa humana na jurisprudência brasileira foi debatido pelo Ministro Dias Toffoli, no Recurso Extraordinário 363.889/DF. Para o magistrado, a dignidade estaria-se tornando “em verdadeira panacéia de todos os males”, o que representa um risco para ela, pois “se para tudo se há de fazer emprego desse princípio, em última análise, ele para nada servirá”. É preciso então “salvar a dignidade da pessoa humana de si mesma”. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário 363.889/DF. Plenário. Rel. Min. Dias Toffoli. Plenário. Data do julgamento: 02/06/2011. DJe 16/12/2011. Disponível em:. Acesso em: 6 jul. 2016. 381 Criticando a “profusão principiológica” que acomete o debate jurídico brasileiro, cf. GODINHO, Robson Renault. A autonomia das partes e os poderes do juiz entre o privativo e o publicista do processo civil brasileiro. Revista Jurídica do Ministério Público: edição comemorativa, Rio de Janeiro, v. 1, n. 1, p. 1169- 1204, jan./jun. 2015. 125 geração seria complementar à sua dimensão individual. Em sede de conclusão, o encontro apontou que, apesar de não se questionar sobre a existência de tal categoria de direitos, ainda era necessário melhor formularem-se os aspectos referentes aos seus sujeitos obrigacionais ativos e passivos, bem como quanto ao seu conteúdo.382 Estabelecido esse panorama, alinha-se o entendimento de que, de fato, há nos direitos da solidariedade um aspecto de novidade no que se refere não tanto ao estabelecimento de uma nova geração de direitos fundamentais, mas, sobretudo, no enfoque dado às gerações anteriores. Em sua essência, todo o direito constitucional diz respeito a um único e supremo bem: a liberdade. A liberdade humana é o fundamento da dignidade e valor regente da relação Estado-cidadão. Assim, enquanto os direitos da primeira geração tratavam da liberdade em si, os de segunda destacaram a necessidade de se discutir os pressupostos sociais sine qua non para o seu alcance. Nessa perspectiva evolutiva, os direitos de terceira geração elevam a importância da dimensão ética para a realização do direito, especialmente no que toca à cooperação entre as nações e os seres humanos. As novas abordagens e fundamentações, o olhar científico e o falseamento das hipóteses até então tidas por absolutas são inerentes ao pensamento dialético do universo jurídico e, nessa medida, permitem a contextualização e relevância social do direito. Nesse percurso, o debate deve ser sistematizado e validado dentro de uma teoria juscientífica, na qual, sem prejuízo de uma abordagem coletiva, não se pode perder de vista a clássica e sempre necessária dimensão individual dos direitos fundamentais. Por outro lado, mesmo que se critique o uso da solidariedade como fundamento para as relações jurídicas, entendemos que, se ela é insuficiente para fundamentar de per si uma teoria da justiça – especialmente no que se refere ao momento coercitivo do direito –, ela pode, contudo, contribuir significativamente para complementar as teorias da justiça tradicionais, reduzindo o fardo jurídico que o direito teria de carregar se operasse isoladamente na regulação das condutas sociais.383 No que toca ao objeto deste estudo, a perspectiva da solidariedade – no prisma complementar a que nos referimos – também muito pode contribuir para a análise da relação entre pais e filhos, pois é um valor inerente às relações familiares, tal como deixa entrever os 382 SEHMER, Carolin. Report of the Parallel Event “Third Generation” Human Rights: Reflections on the Collective Dimension of Human Rights. Geneva: Friedrich Ebert Stiftung, 2007. Disponível em: . Acesso em: 7 maio 2016. 383 Essa discussão será retomada no próximo capítulo. 126 arts. 226, § 7º, 229 e 230 c/c art. 3º, I, da Constituição Federal, dentre outros. A perspectiva da solidariedade, então, ajuda a elucidar de que forma e sob que fundamentos o Estado pode atuar junto das famílias, conforme discorreremos com maior vagar no próximo capítulo. No que se refere aos específicos direitos de terceira geração, o direito ao desenvolvimento traz uma fundamental perspectiva tanto para a leitura da condição da criança como sujeitos de direitos, bem como para a análise da relação de cuidado que ela requer de seus cuidadores. Assim, se, por um lado, o poder familiar abrange o rol de direitos atribuíveis aos pais na relação com seus filhos, o direito ao desenvolvimento infantojuvenil tem o condão de destacar a dimensão do poder familiar da criança na relação com seus pais, que implica o seu direito de ser cuidada para que se possa bem desenvolver. Nesse encontro de poderes – dos pais (no que toca ao seu poder parental) e de seus filhos (no que diz respeito ao seu desenvolvimento) – melhor embasamos o conceito já defendido no capítulo anterior (item 3.9): o poder familiar deve ser analisado sob um prisma mutual, relativo à ideia de poder familiar recíproco, ou seja, poder não só dos adultos, mas, outrossim, de sua prole. Antes, porém, de definir a área de proteção do direito ao desenvolvimento da criança e do adolescente, necessário é se estabelecer seu objeto e fundamentos. Para tanto, a teoria formulada pelo indiano Amartya Sen traz interessantes contributos para o embasamento científico do desenvolvimento como um todo e, com especial relevância, quando se trata dos direitos da população infantojuvenil. 4.4 A CONTRIBUIÇÃO DE AMARTYA SEN PARA A ABORDAGEM DO DESENVOLVIMENTO E SUA REPERCUSSÃO PARA OS DIREITOS INFANTOJUVENIS No encontro promovido pela Unesco em 1980, o direito ao desenvolvimento – assim como os demais direitos de terceira geração – foi tido como um direito de duas faces (two fold aspect): havia nele tanto uma dimensão individual como outra coletiva. Como corolário, o desenvolvimento deixou de ser visto como atrelado simplesmente aos aspectos do crescimento econômico de uma nação para assumir uma feição multidimensional, que aponta para a ideia de completude (fullness).384 Em virtude da novidade dos debates, o conteúdo do direito ao desenvolvimento restou pouco delineado no encontro da Unesco de 1980. Porém, como demonstrado no tópico 384 MÉXICO. Matías Romero Institute of Diplomatic Studies of the Secretariat for External Affairs of Mexico. op. cit., p. 23. 127 anterior, esse quadro de incerteza conteudística permanece e isso termina por dificultar o estabelecimento de uma área de proteção para o direito fundamental ao desenvolvimento e, na medida dessa dificuldade, termina por desprotegê-lo – pois, quanto menos se define o cerne de um direito, mais esse quedará suscetível a violações por parte do Estado ou de particulares. Sem o estabelecimento de uma área limite (justamente a área de proteção de um direito), a partir de onde toda a intervenção estatal requer, nos termos do princípio distributivo, o anterior processo de justificação – sob pena de falta de fundamentação e, portanto, inconstitucionalidade –, o bem fundamental torna-se vulnerável. Como já asseveramos no tópico anterior, os direitos de terceira geração são, mais do que novos direitos, novos enfoques para os direitos já reconhecidos – os direitos civis e políticos, por um lado, e sociais, econômicos e culturais, por outro. Isso tem especial aplicação quando se tem em vista a definição da área de proteção do direito ao desenvolvimento. Desenvolvendo melhor o aspecto de completude do direito ao desenvolvimento, a obra de Amartya Sen trouxe significativo aporte teórico à sua fundamentação e sistematização.385 O projeto de Sen visa a desvincular a análise do desenvolvimento pelo prisma unicamente econômico, no qual o julgamento do progresso de uma nação afere-se pelo tamanho do seu produto interno bruto. Trazendo uma abordagem mais condizente com a perspectiva integral dos direitos de terceira geração e mais humanizada, o direito ao desenvolvimento é visto na perspectiva da liberdade nos seus mais variados aspectos, que, somados, implicam o empoderamento do ser humano. Com isso, o indivíduo poderá levar o tipo de vida que julgue melhor para si. Por esse prisma, a liberdade, na perspectiva do desenvolvimento, tem um papel não só constitutivo, mas também instrumental. As liberdades constitutivas incluem desde condições elementares de subsistência – que impliquem, por exemplo, uma vida sem fome, morte prematura, subnutrição, dentre outras vulnerabilidades –, passam por liberdades associadas às capacidades de, por exemplo, saber ler e fazer cálculos matemáticos e confluem nas liberdades de ter participação política e expressão.386 O desenvolvimento então “é o processo de expansão das liberdades humanas, e sua avaliação tem de basear-se nessa consideração”.387 As liberdades instrumentais incluem os direitos de natureza política, as facilidades 385 Cf. SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. Tradução: Laura Teixeira Motta. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. 386 Ibid., p. 55. 387 Ibid., loc. cit. 128 econômicas, as oportunidades sociais, as garantias de transparência e seguridade social.388 Elas criam as condições necessárias ao desenvolvimento do potencial humano, garantindo os “mínimos sociais”389 para a autonomia do ser e a busca da felicidade. Há uma forte relação entre as liberdades políticas, o direito à vida e os direitos da personalidade, na medida em que a democracia funciona como mecanismo de controle e avaliação dos governos eleitos. As liberdades instrumentais então suplementam-se umas às outras, aumentando as capacidades das pessoas.390 O núcleo do direito ao desenvolvimento, por esse prisma, não se refere a um direito específico, mas à soma de direitos, sendo, portanto, aferido por critérios multifacetados, como anota Sen: Quando nos concentramos nas liberdades para avaliar o desenvolvimento, não estamos sugerindo que existe algum “critério” de desenvolvimento único e preciso segundo o qual as diferentes experiências de desenvolvimento sempre podem ser comparadas e classificadas. Dada a heterogeneidade dos componentes distintos da liberdade, bem como a necessidade de levar em conta as diversas liberdades de diferentes pessoas, frequentemente haverá argumentos em direções contrárias. A motivação que fundamenta a abordagem do “desenvolvimento como liberdade” não consiste em ordenar todos os estados – ou todos os cenários alternativos – em uma “ordenação completa”, e sim chamar a atenção para aspectos importantes do processo de desenvolvimento cada qual merecedor de nossa atenção.391 A riqueza de se analisar os direitos fundamentais, sob a lógica do desenvolvimento, reside no fato, pois, de que aí cada liberdade é analisada não apenas isoladamente, mas também enfeixada a outras, que trabalham de forma complementar e instrumental umas às outras. Nesse sentido, falar em direito ao desenvolvimento é tratar do processo de desenvolvimento – tanto social, como individual – para a realização dos direitos fundamentais. O desenvolvimento representa, pois, um direito em construção e guarda forte relação com os processos (tal como o exercício do voto) e oportunidades (tal como a de viver sem fome) geradores de liberdade.392 Além de o direito ao desenvolvimento apresentar uma dimensão processual em si, ele também projeta tal perspectiva para os demais direitos fundamentais. Destacam-se, então, o 388 Sen se refere à seguridade social como “segurança protetora”. SEN, Desenvolvimento... 2010. 389 Usamos a expressão, no sentido empregado entre nós pela Lei Orgânica da Assistência Social, a qual estabelece, em seu artigo 1º, que a assistência social é política de seguridade social não contributiva, que provê os mínimos sociais, aptos o atendimento das necessidades humanas básicas. BRASIL. Lei 8.742, de 7 de dezembro de 1993. Dispõe sobre a organização da Assistência Social e dá outras providências Disponível em: . Acesso em: 11 maio 2016. 390 SEN, Desenvolvimento... 2010, p. 61. 391 Ibid., p. 52. 392 Ibid., p. 32. 129 processo da educação, o processo da saúde, o processo da formação dos vínculos familiares etc. No caso do direito à convivência familiar, a sua dimensão processual, como já apontamos no subitem 3.7, é pouco discutida no Brasil. Aqui, o viés substancial do vínculo familiar – ora ligado aos laços biológicos, ora ao afeto – é proeminentemente enfocado. No mais das vezes, a discussão restringe-se a uma análise consequencial sobre poder ou não poder o infante permanecer com seus cuidadores, mas pouco atenta-se para as oportunidades (alcançadas por meio de prestações e cautelas) e o processo de formação do vínculo afetivo, os quais demandam do Estado condutas positivas e negativas no seio familiar.393 O direito ao desenvolvimento afasta-se, portanto, de inferências pontuais para abranger uma análise global e gradual dos direitos fundamentais: as liberdades protegem-se em conjunto e em perspectiva (atual e futura). Isso tem o condão de fazer com que a proteção do ser humano pelo Estado tenha uma faceta ambivalente, pela qual se exige, primeiro, “a maior medida possível de não-afetações” e, segundo, “a maior medida possível de não eliminação de posições jurídicas do titular do direito fundamental”.394 Por sua essência gradual, a abordagem desenvolvimentista acopla perfeitamente os status jurídicos presente e futuro da criança e do adolescente, como “pessoas em peculiar condição de desenvolvimento”395 , cujos direitos exercem-se atualmente com o apoio de outrem, mas, gradualmente, vão-se constituindo cada vez mais por meio de um olhar próprio do sujeito de direitos infantojuvenil. O ordenamento jurídico brasileiro, apesar de não consagrar o direito ao desenvolvimento no rol dos direitos fundamentais da criança previstos no art. 227, da Constituição Federal, abraça claramente a abordagem desenvolvimentista na formação de sua titularidade jurídica. Dessarte, essa noção ganha posição de destaque na concretização pelo ECA dos direitos fundamentais à vida e à saúde396; à educação397; à convivência familiar398; à profissionalização399; à liberdade, respeito e dignidade400, dentre outros. Tais direitos sempre 393 Os casos Fornerón e Smith, apresentados, respectivamente, na nota de rodapé 141, p. 50 e no item 3.4, bem ilustram a importância do aspecto processual do direito de família. Ainda, as limitações do debate nacional em torno das adoções intuitu personae – sempre focadas no aspecto material (laços biológicos versus laços afetivos) e pouco detida no viés processual do direito à convivência familiar – também denotam a falta de uma perspectiva desenvolvimentista na discussão pelo viés procedimental. 394 Nesse sentido, Robert Alexy, ao tratar do direito geral de liberdade, mas cujo raciocínio adéqua-se à ideia de direito a oportunidades e processos, típico do desenvolvimento. ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2014, p. 352. 395 ECA, art. 6º. 396 ECA, art. 7º. 397 ECA, art. 53. 398 ECA, art. 19. 399 ECA, art. 63, II e 69, I. 130 se protegem e exercem, tendo em vista a garantia do desenvolvimento do petiz, assim estabelece a lei. Isso reforça a ideia já defendida quanto aos demais direitos de terceira geração401: mais do que se tratar propriamente de um novo direito, o desenvolvimento é essencialmente uma nova abordagem para os direitos já positivados, de primeira e segunda geração. Tal assertiva em nada coloca o desenvolvimento em uma posição inferior, mas, pelo contrário, o qualifica, assim como fortalece os demais direitos fundamentais analisados sob os influxos desenvolvimentistas. No ECA, o desenvolvimento é tido como um dos elementos identificadores da condição humana da criança e do adolescente: em virtude do peculiar estado do petiz, a lei atrela o gozo dos seus direitos fundamentais à garantia de “oportunidades e facilidades” a fim de lhes facultar o “desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade”.402 A visão das liberdades associadas a oportunidades e processos constitui o cerne do que se define como abordagem das capacidades, também ínsita à análise desenvolvimentista.403 Por tal prisma, as capacidades dizem respeito às oportunidades da liberdade dadas às pessoas para que elas possam fazer coisas que tenham razão para valorizar. Tal prisma chama então a atenção menos para os resultados de culminação do que para os resultados abrangentes: os primeiros dizem respeito ao resultado concreto da escolha, em que prevalece uma análise do que vem à tona, sendo, assim, quantificável; os segundos, por sua vez, referem-se à “forma como a pessoa atinge a situação culminante (por exemplo, quer através de sua própria escolha, quer por meio dos ditames de outros)”.404 Há, por exemplo, uma diferença marcante entre uma pessoa que decide ficar no domingo em casa por opção própria da que fica porque fora trancafiada no lar por assaltantes: apesar de o resultado culminante ser o mesmo (ficar em casa), o prisma abrangente das duas situações, o que analisa o processo de escolha como um todo, é substancialmente diverso na primeira situação – inclusive porque ali há espaço para aspectos relativos a escolhas potenciais, tal como o direito de mudar de opinião e, então, sair de casa.405 400 ECA, art. 15. 401 Cf. item, 4.3. 402 ECA, art. 3º. 403 SEN, Amartya. A ideia de justiça. Tradução: Denise Bottmann e Ricardo Doninelli Mendes. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p. 265-269. 404 SEN, A ideia… 2011, p. 264. 405 Esse exemplo, singelo, mas esclarecedor, foi colhido na obra de SEN, A ideia… 2011. 131 No caso da criança e do adolescente, a definição do que é melhor para si tem, pelo prisma dos resultados abrangentes, uma perspectiva mais condizente com sua condição de sujeito de direitos em estágio de desenvolvimento, pois: a) os resultados abrangentes redefinem o interesse superior do petiz tomando por base tanto o tempo presente como o futuro406; b) a abordagem abrangente acarreta para o processo de construção das decisões em torno dos interesses dos mais novos a sua necessária participação, não se satisfazendo com os resultados de culminação que sejam a mera adjudicação de um querer adulto; c) os resultados abrangentes chamam melhor a atenção para o fato de que, a cada decisão que toma a criança, por mais simples que seja, está-se treinando sua autonomia atual e futura e isso, portanto, implica uma construção cotidiana de sua cidadania, das decisões mais simples às mais complexas, segundo o grau de maturidade do petiz. Desse modo, tanto as pequenas tarefas do dia a dia doméstico – decidir que roupa quer usar; ajudar os pais na arrumação da residência; responsabilidades para com o asseio pessoal – até atividades externas ao lar – participação no grêmio da escola, exercício do voto, manifestação contra o governo – são momentos necessários à futura emancipação humana e, nesse sentido, redefinem a cidadania da criança, que, assim, não mais é vista como iniciando aos 16 ou 18 anos com o voto, mas se afirma desde os seus primeiros dias de vida. Nesse sentido, a Suprema Corte dos Estados Unidos, no caso Tinker v. Des Moines Independent Community School District (1969), reconheceu o direito de expressão de um grupo de adolescentes que, contra a vontade dos diretores de sua escola, insistiam em usar braçadeiras em um protesto simbólico contra a Guerra do Vietnã.407 No julgado, mesmo não se tendo reconhecida aos mais novos a liberdade de expressão em toda a extensão constante da Primeira Emenda à Constituição americana, distinguiu o tribunal a expressão do pensamento em palavras (speech) da realizada por meio de ações (actions), tendo, assim, os jovens pleno direito à primeira acepção, que em nada interferia com as dinâmicas escolares. Dailey aponta que, em decisões desse tipo, a corte constitucional dos EUA, mesmo sem abandonar a teoria clássica da escolha sobre a qual se assenta a titularidade limitada de 406 A perspectiva do resultado futuro é definido na obra de Olegário Gurgel, com base no pensamento de John Eekelar, como “juízo hipotético”, onde “a ideia tem por base a afirmação de que a criança tem capacidade de escolha, o que demanda limitar a intervenção em sua autonomia a situações em que suas opções conflitam com o suposto ponto de vista que ela adotaria se tivesse maturidade. Em outras palavras, a decisão parte de um juízo hipotético: o que a criança decidiria se ela fosse madura?”. GOMES, Olegário Gurgel Ferreira. Justiça juvenil: socioeducação como prática da liberdade. Curitiba: Juruá, 2014, p. 45. A concepção de juízo hipotético coincide com a noção de paternalismo em Rawls: “escolher pelos outros como nós temos razão para acreditar que eles escolheriam por si mesmos se estivessem na idade da razão, decidindo racionalmente”. Apud DAILEY, op. cit., p. 2108. 407 Disponível em: . Acesso em: 13 maio 2016. 132 direitos da criança408, asseverou que o papel da escola é o de estimular o pensamento crítico da criança: enquanto aos pais cabe educar seus filhos sob uma particular visão de mundo, as instituições de ensino devem dar aos seus alunos as condições para que, no futuro, escolham livremente sua própria concepção de bem, funcionando, pois, o colégio como um mercado de ideias (marketplace of ideas).409 No campo judicial, a abordagem do desenvolvimento faz com que a aplicação de medidas de proteção aos mais novos demande do jurista o necessário momento de escuta e consideração da vontade do petiz, tal qual determina a lei.410 Para os pais, o direito ao desenvolvimento de seus filhos significa o dever de proteção, sem, contudo, implicar a negação ou desconsideração dos interesses dos mais novos. A abordagem das capacidades e a escolha vista pelo prisma dos resultados abrangentes tratam de dar aos pequenos as ferramentas de que necessitam para, livre e responsavelmente, desenvolverem sua personalidade. A autonomia conferida à criança não pode, pois, distorcer- se nem em irresponsabilidade dos adultos – quer por entregar suas crias à própria sorte, quer por não lhes ministrar os cuidados necessários –, nem, por outro, fazer com que a tutela parental torne-se uma caixa de acrílico dentro da qual os jovens são incapazes de dar seus primeiros voos-solo na vida. A noção de capacidades inerente à abordagem desenvolvimentista traz, portanto, essa imprescindível percepção da gradualidade das decisões, ressignificando as teorias dos direitos da criança fundadas sobre a racionalidade da escolha final (“tem capacidade quem escolhe racionalmente e, como a criança não é capaz de uma escolha racional, ela não tem capacidade”) para dar relevo ao processo de formação das escolhas. Nesse sentido, ganha relevo a responsabilidade de se trabalhar a condição de agente da criança e do adolescente (“a criança têm uma razão própria e sua capacidade atual deve ser cotidianamente treinada e amadurecida”) . Como se vê, a abordagem do desenvolvimento na obra de Amartya Sen traz um importante chão científico para a construção de uma teoria de direitos voltada para a criança e o adolescente. Definidas, pois, tais bases passa-se a discutir, doravante, o impacto da abordagem pelo desenvolvimento dos direitos fundamentais da criança e do adolescente. 408 Sobre a impaired choice theory, v. item 3.4. 409 DAILEY, op. cit. 410 ECA, art. 100, parágrafo único, XII. 133 4.5 A ÁREA (OU AS ÁREAS) DE PROTEÇÃO DO DIREITO AO DESENVOLVIMENTO INFANTOJUVENIL O desenvolvimento diz respeito não a uma liberdade específica, mas a uma gama de direitos com os quais se relaciona para garantir o empoderamento e a autonomia do ser humano. Daí se dizer que o desenvolvimento é o “processo de expansão das liberdades reais de que as pessoas desfrutam”411, as quais são, concomitantemente, seu fim primordial e o seu principal meio.412 Assim, por se referir a uma pluralidade de direitos, o direito ao desenvolvimento não tem em si mesmo uma área de proteção, mas sim refere-se a diversas áreas de proteção – e esse é o motivo por que acreditamos ser mais correto, do ponto de vista metodológico, falar-se em abordagem do desenvolvimento do que propriamente em direito ao desenvolvimento.413 E a que direitos refere-se o desenvolvimento da criança? A resposta a essa questão foi sintetizada em uma ação civil pública do Ministério Público do Estado do Rio Grande do Norte, ajuizada pelo promotor de justiça Olegário Gurgel Ferreira Gomes: “O mundo infanto- juvenil tem uma peculiaridade jurídica que se revela única, porquanto todo direito fundamental de criança e adolescente não contemplado por inteiro é direito por inteiro violado.414 Como já foi dito anteriormente,415 a proteção integral diz respeito a uma tríade que indica a titularidade de todos os direitos fundamentais para todas as crianças e os adolescentes, sendo esse papel assegurado por todos (família, sociedade e Estado). Desse modo, a abordagem desenvolvimentista refere-se à gama de todos os direitos fundamentais infantojuvenis. Se essa ideia já encontra amparo na própria ideia de integralidade dos direitos fundamentais, mais ainda respalda a titularidade dos direitos da criança e do adolescente, em virtude do seu peculiar estágio de desenvolvimento. 411 Cf. SEN, Desenvolvimento... 2010, p. 16. 412 Ibid., p. 55. 413 A propósito, designando o desenvolvimento como direito, cf. BONAVIDES, Paulo. op. cit. O´BRIEN, op. cit. MÉXICO. Matías Romero Institute of Diplomatic Studies of the Secretariat for External Affairs of Mexico. op. cit. 414 BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Norte. Consultas processuais. Autos nº 0007116- 52.2010.8.20.0106. Disponível em: . Acesso em: 6 jul. 2016. 415 Item 2.6. 134 À luz da Convenção sobre os Direitos da Criança, a doutrina tem enfeixado o complexo de direitos fundamentais dos petizes sob a expressão “‘3P’s’ da Convenção”: direitos à proteção, à provisão e à participação.416 No que se refere aos direitos de proteção e provisão, esses não suscitam maiores debates epistemológicos, na medida em que já se encontram há muito reconhecidos nos documentos internacionais referentes à infância. Assim, enquanto na Declaração de Genebra (1924) – a que se refere no item 2.5 – havia previsões de um mínimo de proteção para situações de guerra ou calamidades, na Declaração dos Direitos da Criança (1959) – sobre a qual se trata nesse mesmo item – foram ampliadas as previsões de proteção e incorporadas outras de caráter provisional, tal como os direitos à educação, saúde e convivência familiar. Em 1989, com a Convenção sobre os Direitos da Criança, como já demonstrado417, os direitos de proteção foram ampliados, passando a se referir a uma série de situações tais como todas as formas de violência418 e de exploração419, com destaque para as de natureza sexual420; proteção no trabalho421; proteção contra as drogas422; proteção na manutenção da relação com seus pais 423; proteção das minorias424, dentre outras. Da mesma forma, os direitos de provisão foram adensados na Carta de 1989, com a positivação e o detalhamento dos direitos de saúde425; educação426; descanso, lazer, divertimento e cultura427, dentre outros. O direito fundamental à vida é abordado, na Convenção, pelo prisma desenvolvimentista, tal como anuncia o seu art. 6, segunda parte: Artigo 6 1. Os Estados Partes reconhecem que toda criança tem o direito inerente à vida. 2. Os Estados Partes assegurarão ao máximo a sobrevivência e o desenvolvimento da criança. (Grifos nossos). 416 Cf. BARTHOLET, Elizabeth. Ratification by the United States of the Convention on the Rights of the Child: pros and cons from a child´s rights perspective. BARTHOLET, Elizabeth. Ratification by the United States of the Convention on the Rights of the Child: pros and cons from a child´s rights perspective. In: The Annals of the American Academy of Political and Social Science, jan. 2011. v. 633.1., p. 80-101. Disponível em: . Acesso em: 13 fev. 2016. 417 Item 2.6. 418 CDC, art. 19. 419 CDC, art. 36. 420 CDC, art. 34. 421 CDC, art. 32. 422 CDC, art. 33. 423 CDC, art. 9. 424 CDC, art. 30. 425 CDC, art. 24. 426 CDC, arts. 28 e 29. 427 CDC, art. 31. 135 Há forte relação entre o desenvolvimento humano e a proteção e provisão que a criança recebe em seus primeiros anos de sua vida.428 Nesse sentido, a proteção da relação entre os pequenos e seus pais (seus primeiros cuidadores) é privilegiada na CDC em artigos como o 5 e 27.2, que tratam do direito do petiz de ser criado por seus genitores, a quem lhes cabe prover, em primeira instância, os bens materiais e imateriais de que necessitam, dentro da sua concepção moral da vida. Na relação paterno-filial, a primeira obrigação do Estado é, pois, de status negativo, não lhe cabendo interferir indevidamente – daí falar o art. 5 da CDC em respeito, por parte dos Estados Partes, das responsabilidades, dos direitos e deveres dos pais – e, em sendo necessário, como segunda obrigação, dar o apoio aos genitores ou responsáveis para cumprir sua função parental, tal como anunciam os arts. 18.2, 18.3, 27.3 e 27.4 da Convenção, dentre outros. Ademais, como já visto, a intervenção estatal na família, restringindo o direito dos pais, só se justifica uma vez desincumbindo-se o poder público de um pesado dever de prova (heavy burden of proof), dentro de processo contencioso em que se demonstre que há um mal menor para a criança em ser afastada de seus pais do que permanecer com eles.429 Essa compreensão é reverberada no ECA, notadamente por meio do princípio da responsabilidade parental, a qual indica que “a intervenção deve ser efetuada de modo que os pais assumam os seus deveres para com a criança e o adolescente”.430 Apesar de a redação estatutária dar destaque aos deveres dos pais, essa previsão normativa há de ser interpretada sobre o prisma constitucional da liberdade – aqui, a dos pais –, de forma que a intervenção governamental na família deve levar os pais a assumirem o complexo não só de deveres, mas também de direitos que lhes competem no poder familiar. Esse é o conceito de empoderamento familiar e integridade familiar a que se referiu anteriormente,431 o qual aponta também para o interesse dos filhos em terem pais independentes que lhes provejam cuidado e orientação. No entendimento abraçado neste estudo, o poder familiar é visto não só como 428 Cf., a propósito, WINNICOTT, Donald W. A família e o desenvolvimento individual. 4ª ed. Trad. Marcelo Brandão Cipolla. São Paulo: Martins Fontes, 2011 e BOWLBY, John. Cuidados maternos e saúde mental. São Paulo: Martins Fontes, 2006. 429 Como já foi asseverado (cf. item 3.9), trata-se aqui de uma política de redução de danos, já que, todo afastamento de criança de seus pais sempre implica algum dano emocional aos mais novos. Nesse sentido, cf. o estudo de John Bowlby. BOWLBY, John. Cuidados maternos e saúde mental. Tradução: Vera Lúcia Baptista de Souza e Irene Rizzini. São Paulo: Martins Fontes, 2006. 430 ECA, art. 100, parágrafo único, IX. 431 Cf. item 3.9. 136 relacionado unilateralmente aos interesses dos pais, mas também aos da própria criança. O poder dos filhos diz respeito à sua titularidade de liberdades fundamentais e, no que toca especificamente à convivência familiar, a noção de integridade familiar apresentada no item 3.9 implica para os mais novos o seu direito de terem pais autônomos e, nessa medida, permite à família a constituição de uma identidade própria, tão necessária à socialização humana. O direito a pais autônomos é, pois, uma das facetas do poder familiar da criança, sendo a outra a sua individualidade e o rol de direitos que sua condição de sujeito de direitos importa para si e para seus responsáveis. A proteção e provisão são, pois, direitos fundamentais para a efetivação do poder familiar da criança e do seu desenvolvimento, estando, por isso, albergados na normativa nacional e internacional sob o manto de privacidade432 – que, para ser quebrada, demanda rigoroso processo de justificação constitucional. Como lembra Dailey, o fato de o direito constitucional dizer respeito, em primeira instância, a um regime de liberdades negativas para os adultos não preclui o reconhecimento de direitos afirmativos para as crianças.433 Os direitos infantojuvenis de status positivo e as prestações sociais e governamentais a si relacionadas tratam-se, na verdade, de uma condição sine qua non para a subsistência humana. Nesse sentido, o princípio da condição da criança e do adolescente como sujeitos de direitos confere-lhes um regime próprio de titularidade jurídica em que, paralelamente aos direitos humanos universais, se lhes reconhecem uma categoria especial de direitos que lhes suportam e protegem o desenvolvimento – daí a plausibilidade jurídica dos seus direitos de proteção e provisão.434 Do ponto de vista epistemológico, tem sido mais complexa a abordagem pela doutrina dos direitos de participação da criança e do adolescente. Alguns teóricos veem tais tipos de direito com desconforto quando relacionados à infância435 e, até mesmo, como 432 Sobre o direito à privacidade, apesar de o mesmo ter uma feição mais unilateral no direito pátrio, ligado, pois, ao direito da criança e do adolescente (ECA, art. 100, parágrafo único, V), a Convenção sobre os Direitos da Criança, em redação mais consentânea com o conceito de integridade familiar, relaciona também a intimidade da criança à intimidade do conjunto familiar: “Nenhuma criança será objeto de interferências arbitrárias ou ilegais em sua vida particular, sua família, seu domicílio ou sua correspondência, nem de atentados ilegais a sua honra e a sua reputação”. (Grifo nosso). 433 Nesse sentido, DAILEY, op. cit., p. 2169. 434 Nesse sentido, o artigo 100, parágrafo único, I, do ECA: “condição da criança e do adolescente como sujeitos de direitos: crianças e adolescentes são os titulares dos direitos previstos nesta e em outras Leis, bem como na Constituição Federal”. (Grifos do autor). 435 Cf. KLICKA; ESTRADA, op. cit. 137 formas de desproteção dos mais novos.436 Uma das principais novidades da Convenção sobre os Direitos da Criança foram os direitos de participação, cuja tipologia não fora estatuída nos tratados de 1924 e 1959. Na CDC, foram reconhecidos à criança e ao adolescente: o direito de formular seus próprios juízos e expressar livremente suas opiniões nos assuntos a ele relacionados, levando em consideração sua maturidade 437 ; o direito à liberdade de expressão 438 ; a liberdade de pensamento, consciência e crença439; a liberdade de associação e a liberdade de realizar reuniões pacíficas,440 dentre outros. Tudo isso resguardado pelo direito à intimidade.441 Seguindo a lógica da Convenção, muitos países que proclamaram novas Constituições após 1989 previram o direito à participação como um direito fundamental da criança e do adolescente.442 436 Cf. THÉRY, Irène. op. cit. 437 CDC, art. 12. 438 CDC, art. 13. 439 CDC, art. 14. 440 CDC, art. 15. 441 CDC, art. 16. 442 A Constituição do Equador, de 2008, prevê, em seu artigo 45, como direito fundamental da criança e do adolescente, o direito de participação social, bem como a liberdade de expressão e associação, o funcionamento livre dos conselhos estudantis e demais formas associativas. Disponível em: . Acesso em: 15 maio 2016. A Constituição da República do Paraguai, de 1992, prevê em seu artigo 56 que deverão ser promovidas as condições para a participação da juventude no desenvolvimento político, social, econômico e cultural do país. Disponível em: . Acesso em: 15 maio 2016. Constituição Política da Colômbia, de 1991, prevê, no seu artigo 45, que o Estado e a sociedade deverão garantir a participação ativa dos jovens nos organismos públicos e privados que tenham como escopo a proteção, educação e o progresso da juventude. Disponível em: . Acesso em: 15 maio 2016. A Constituição da República da Polônia, de 1997, em seu artigo 72.3, estabelece o dever de os órgãos públicos e as pessoas responsáveis pelas crianças, no curso das ações voltadas a estabelecer os seus direitos, considerar e, na medida do possível, dar prioridade às visões dos mais novos. Disponível em: . Acesso em: 15 maio 2016. A Constituição da República de Angola, de 2010, estabelece, em seu art. 81, itens 3 e 4, respectivamente, que “a política de juventude deve ter como objectivos prioritários o desenvolvimento da personalidade dos jovens, a criação de condições para a sua efectiva integração na vida activa, o gosto pela criação livre e o sentido de serviço à comunidade” e que “o Estado, em colaboração com as famílias, as escolas, as empresas, as organizações de moradores, as associações e fundações de fins culturais e as colectividades de cultura e recreio, fomenta e apoia as organizações juvenis na prossecução daqueles objectivos, bem como o intercâmbio internacional da juventude”. Disponível em: . Acesso em: 15 maio 2016. A Constituição da Romênia, de 1992, estabelece, em seu art. 45.5, que as autoridades públicas estão vinculadas a contribuir para assegurar condições para a livre participação dos jovens na vida política, social, econômica, cultural e esportiva do país. Disponível em: . Acesso em: 15 maio 2016. A Constituição da Finlândia, de 1999, estabelece, em sua seção seis, que as crianças devem ser tratadas com igualdade e lhes deve ser permitido a oportunidade de influenciar nos assuntos relacionados a si, de acordo com o seu nível de desenvolvimento. Disponível em: . Acesso em: 14 maio 2016. A Constituição Federal da Confederação Suíça, de 1999, estabelece, em seu art. 11, que crianças e jovens têm o direito a 138 A Constituição brasileira não chegou a prever o direito de participação para o público infantojuvenil no rol dos direitos fundamentais do art. 227, mas isso não significa que, numa leitura sistemática, o nosso ordenamento jurídico não o assegure aos mais novos. Primeiramente, porque, em uma interpretação que busque a máxima eficácia para a Doutrina da Proteção Integral albergada no art. 227 da CF, a condição da criança e do adolescente como sujeitos de direitos significa que eles são titulares de liberdades previstas tanto na Lei 8.069/90, como também em outras leis e, sobretudo, na própria Constituição Federal.443 Assim, o rol de liberdades do art. 5º da Lei Fundamental – dentre as quais se encontra a liberdade de consciência e crença, de expressão e de associação444 – diz respeito não só aos adultos, mas também aos petizes, tal como indica o caput do dispositivo: “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza [...]”. A garantia de participação aos mais novos não significa que algumas de suas exteriorizações não lhes possam ser, temporariamente, vedadas, tal como ocorre, por exemplo, com o próprio direito ao voto até os dezesseis anos. Na medida, porém, em que se compreende que o sufrágio é apenas uma das manifestações de cidadania e o estado de cidadão da criança e do adolescente não é uma simples expectativa futura, mas sim condição presente, a potencialidade participativa da criança pode ser estimulada desde tenra idade, tanto nos assuntos mais simples do seu cotidiano até temas coletivos que lhes digam respeito. Tudo isso como forma de embalar o direito de participação do petiz e lhe expandir a vivência democrática plena na infância, puberdade e vida adulta. Sensível à importância da democracia para o desenvolvimento humano, o ECA estabelece que o direito de liberdade da criança e do adolescente importa em aspectos de participação: Art. 16. O direito à liberdade compreende os seguintes aspectos: I - ir, vir e estar nos logradouros públicos e espaços comunitários, ressalvadas as restrições legais; II - opinião e expressão; III - crença e culto religioso; IV - brincar, praticar esportes e divertir-se; V - participar da vida familiar e comunitária, sem discriminação; VI - participar da vida política, na forma da lei; VII - buscar refúgio, auxílio e orientação. (Grifo nosso) especial proteção de sua integridade e ao encorajamento de sua personalidade (item 1) e que eles devem, pessoalmente, exercitar seus direitos na extensão do que o seu poder de decisão lhes permitir. Disponível em: . Acesso: 15 maio 2016. 443 Nesse sentido, abrangente, a própria redação do ECA, art. 100, parágrafo único, I, ao tratar do princípio da “condição da criança e do adolescente como sujeitos de direitos”, pelo qual “crianças e adolescentes são os titulares dos direitos previstos nesta e em outras Leis, bem como na Constituição Federal”. 444 Respectivamente, CF, art. 5º, VI, IX e XVII. 139 O exercício da cidadania leva, pois, à expansão da liberdade da criança, e essa expansão, por sua vez, “melhora o potencial das pessoas para cuidar de si mesmas e para influenciar o mundo, questões centrais para o processo de desenvolvimento”.445 Os direitos de participação também se fazem presentes na concretização do direito de educação da criança e do adolescente, o qual visa “ao pleno desenvolvimento de sua pessoa” e ao “preparo para o exercício da cidadania e qualificação para o trabalho”. Dessarte, o direito de educação desdobra-se, dentre outros, nos direitos “de organização e participação em entidades estudantis”, “de contestar critérios avaliativos, podendo recorrer às instâncias escolares superiores” e “de ser respeitado por seus educadores”.446 O direito de ser respeitado por seus educadores traduz-se, dentre outras acepções possíveis, em uma concepção fundamental aos direitos de participação dos mais novos: para os adultos, há o dever de os pequenos terem sua opinião devidamente considerada nas decisões referentes a eles próprios, tal como indica o princípio da oitiva obrigatória e participação, positivado no art. 100, parágrafo único, XII, do ECA, combinado com o art. 28 da mesma lei. Por outro lado, a expressão devidamente considerada, constante de tais dispositivos legais, qualifica a forma como se dará o respeito à opinião da criança e do adolescente: seus interesses haverão de ser tomados segundo o seu estágio de desenvolvimento e grau de compreensão sobre as implicações da medida discutida.447 Isso indica a via de mão dupla que há entre os direitos de participação, por um lado, e os direitos de proteção e provisão, por outro: da mesma forma que os primeiros importam em novos conteúdos para os segundos – tal como visto, no que se refere, por exemplo, à dimensão cidadã do direito de educação –, estes também ressignificam aqueles. Dessarte, logo após o caput do art. 53, do ECA, estabelecer o conteúdo do direito à educação – no qual se ressaltam seus aspectos participativos –, o parágrafo único dessa regra estabele: “É direito dos pais ou responsáveis ter ciência do processo pedagógico, bem como participar da definição das propostas educacionais”.448 A leitura dos direitos fundamentais por sua integralidade é um dos fundamentos da 445 SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. Tradução: Laura Teixeira Motta. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. 446 ECA, art. 53, II, III e IV. 447 No mesmo sentido, o art. 12.1 da CDC estabelece: “Os Estados Partes assegurarão à criança que estiver capacitada a formular seus próprios juízos o direito de expressar suas opiniões livremente sobre todos os assuntos relacionados com a criança, levando-se devidamente em consideração essas opiniões, em função da idade e maturidade da criança”. 448 Parágrafo único do art. 53 do ECA. 140 teoria geral dos direitos fundamentais449 e é reforçada pela abordagem desenvolvimentista abraçada neste estudo.450 O desenvolvimento, então, significa para a criança e o adolescente tanto sua emancipação, como também sua proteção e provisão. Para Winnicott, “a independência (da criança) é algo que se realiza a partir da dependência” e, apesar de o autor reconhecer em seus estudos a tendência inata ao desenvolvimento humano, tal crescimento não se constata na ausência de condições suficientemente boas.451 Trata-se, pois, de uma leitura que faz com que os interesses dos filhos sejam confluentes aos de seus pais e reforça as ideias – agora pelo prisma da criança – de integridade familiar e poder familiar recíproco, apresentadas no capítulo anterior.452 Como já asseverado, a abordagem correlacional do direito de família ou da própria dignidade da pessoa humana infantil não implica a negação do ser humano em sua individualidade, mas é antes uma leitura indispensável para resguardar a convivência familiar como garantia do espaço primeiro de realização do desenvolvimento humano. A interferência do Estado no cotidiano doméstico, se por um lado é possível como forma de resguardar os direitos da criança e do adolescente em face de abusos, sob outro ângulo requer também a clara demonstração de dano ou suspeita de dano que justifiquem a invasividade governamental no seio familiar. Resta, pois, analisar os alegados riscos do direito de participação. Irène Théry crítica o fato de a Convenção sobre os Direitos da Crianças estipular aos mais novos, de forma indistinta, tanto os clássicos direitos de proteção e provisão (que destacam os aspectos da vulnerabilidade ínsita à menoridade, dando à criança o privilégio da irresponsabilidade) como também os direitos de participação (que, por sua vez, pressupõem aspectos de capacidade jurídica e, portanto, da responsabilidade) sem que se proponha solução alguma a tal contradição. 453 A partir dessa incongruência, uma determinada 449 Nesse sentido, cf. BONAVIDES, op. cit. 450 Em seus estudos, Amartya Sen correlaciona as diferentes liberdades como fator de complementaridade para o desenvolvimento humano. “A criação de oportunidades sociais por meio de serviços como educação pública, serviços de saúde e desenvolvimento de uma imprensa livre e ativa pode contribuir para o desenvolvimento econômico e para uma redução significativa das taxas de mortalidade”. SEN, op. cit., p. 61. 451 WINNICOTT, op. cit., p. 5. 452 Nesse sentido, a propósito, a Constituição da Finlândia informa que “a criança adquire cidadania finlandesa no seu nascimento e por meio da cidadania de seus pais, nos termos da lei” (seção 5). No original: “A child acquires Finnish citizenship at birth and through the citizenship of its parents, as provided in more detail by an Act”. Disponível em: . Acesso em: 14 maio 2016. 453 THÉRY, op. cit., p. 135-161. 141 concepção da infância – defendida pelos que a autora denomina como Children’s Liberationists – passa a enxergar na criança não a titularidade de direitos específicos (direitos da menoridade), mas, pelo contrário, direitos desespecificados (direitos à igualdade) com relação ao mundo adulto e, que, nesse sentido, procuram emancipar os pequenos do status de objeto a que foram subjugados ao longo da história. Aqui, diz a socióloga, a hermenêutica privilegia a autodeterminação da criança pela ênfase dada aos art. 12 a 15 da Convenção, os quais tratam dos direitos de participação dos mais novos. De fato, nos dias atuais o discurso de liberação da infância tem servido a uma série de pautas políticas e econômicas que, se, por um lado, privilegiam a autodeterminação dos mais novos, por outro também lhes coloca em risco o processo de desenvolvimento por lhes conferir um peso à decisão – algumas das quais irreversíveis – cuja maturidade pode não o comportar. O discurso da liberação da criança, lastreado no seu direito de participação, tem sido, não raras vezes, utilizado pelo mercado publicitário a fim de reclamar liberdades negativas para os infantes enquanto pequenos consumidores (eles seriam sujeitos de direito ao consumo).454 A autonomia do adolescente foi ainda destacada no Projeto de Lei da Identidade de Gênero (cognominado Lei João W. Nery), de autoria dos deputados federais Jean Wyllys e Érika Kokay, cujo art. 5º estabelece: Artigo 5º - Com relação às pessoas que ainda não tenham dezoito (18) anos de idade, a solicitação do trâmite a que se refere o artigo 4º deverá ser efetuada através de seus representantes legais e com a expressa conformidade de vontade da criança ou adolescente, levando em consideração os princípios de capacidade progressiva e interesse superior da criança, de acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente. § 1° Quando, por qualquer razão, seja negado ou não seja possível obter o consentimento de algum/a dos/as representante/s do Adolescente, ele poderá recorrer a assistência da Defensoria Pública para autorização judicial, mediante procedimento sumaríssimo que deve levar em consideração os princípios de capacidade progressiva e interesse superior da criança. § 2º Em todos os casos, a pessoa que ainda não tenha 18 anos deverá contar com a assistência da Defensoria Pública, de acordo com o estabelecido pelo Estatuto da Criança e do Adolescente”.455 (Grifo nosso) 454 Tratando do uso da linguagem dos direitos para fundamentar os discursos de hibridização no mercado publicitário, em que o uso de conceitos antagônicos – a criança como um ser vulnerável, mas que, em sua vulnerabilidade, necessita do empoderamento advindo do consumo de bens – tem servido para, mimetizando uma fala de proteção, desproteger o infante, cf. GUEDES, Brenda Lyra. Publicidade e infância: representações e discursos em uma arena de disputas de sentido. In: ______. Publicidade e consumo: entretenimento, infância mídias sociais. Recife: Editora UFPE, 2016, p. 113-214. 455 BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei 5002/2013. Dispõe sobre o direito à identidade de gênero e altera o art. 58 da Lei 6.015 de 1973. Disponível em: 142 A lógica da emancipação também tem servido para fragilizar garantias constitucionais da população infantojuvenil como indica a discussão atual sobre a ab-rogação do art. 228 da Constituição – que estabelece a idade de responsabilização penal aos 18 anos – e, ainda, para desproteger jovens em contexto de exploração sexual sob o argumento de sua aquiescência ao ato negocial do seu corpo.456 Os argumentos que aqui se elevam remetem para o senso comum, pelo qual a infância de hoje não é mais a mesma de antigamente. Entretanto, mesmo que haja tais riscos no exercício dos direitos de participação, sob outro aspecto, é de se ver que, se tal tipo de liberdade, na medida em que se pode prestar a igualar os desiguais (no caso, crianças e adultos), pode de fato representar potencial de risco à infância, verifica-se também que a existência de eventuais danos não é exclusividade dessa categoria específica de direitos. Os riscos aos mais novos pelo mau uso de liberdades também se configura nos direitos de proteção e provisão, e nem por isso se questiona sua existência ou titularidade pelos pequenos. Tanto o excesso de proteção pode levar a uma heteronomia sufocante à autodeterminação humana457, como também a provisão em excesso pode atrofiar, no futuro, o pleno exercício da autonomia da criança.458 Pierre Legendre tensiona os limites da representação processual de adultos em prol de seus filhos – uma dimensão provisional do cuidado parental no campo judicial. O autor . Acesso em: 28 nov. 2014. Como cito um PL? 456 Essa foi a lógica do julgado do STJ, no conhecido caso Zequinha Barbosa, que, em 2009, inocentou o ex- atleta do crime previsto no então vigente art. 244 do ECA, pelo qual configurava crime “Art. 244-A. Submeter criança ou adolescente, como tais definidos no caput do art. 2o desta Lei, à prostituição ou à exploração sexual: Pena – reclusão de quatro a dez anos, e multa”. Como não havia “submissão”, numa perspectiva volitiva – apesar de haver num prisma sociocultural e de proteção, não considerados no caso –, não haveria o crime. Cf. TJ absolve Zequinha Barbosa por exploração sexual de menores. CORRÊA, Hudson. Disponível em: ; STJ mantém absolvição de Zequinha Barbosa e assessor. CORRÊA, Hudson. Disponível em: ); Colega reforça que Zequinha Barbosa abusou de menores . CORRÊA, Hudson. Disponível em: . Acessos em: 30 abr. 2014 457 Nesse sentido, Barroso informa sobre a crítica mundial endereçada à decisão da Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas no famoso Caso do Arremesso do Anão. No julgado, o órgão internacional deu ganho de causa à decisão do prefeito da cidade francesa de Morsang-sur Orge que proibira o espetáculo oferecido em um bar da cidade cuja finalidade era a de arremessar um anão contra um alvo. Nesse caso, o próprio tutelado, o anão, recorrera contra a decisão do prefeito, alegando que a mesma invadira sua autonomia e prejudicara seu sustento laboral. BARROSO, Luís Roberto. A dignidade da pessoa humana no direito constitucional contemporâneo: a construção de um conceito jurídico à luz da jurisprudência mundial. Belo Horizonte: Fórum, 2013. 458 Apontando os riscos da denominada “parentalidade excessiva” (overparenting) para o processo educativo cf. MARQUES, Alcione. A parentalidade excessiva e as implicações na aprendizagem. Disponível em: . Acesso em: 13 maio 2016. 143 analisa um caso do Canadá em que uma mãe mudara de sexo e, posteriormente, entrou com ação de adoção de seu filho de catorze anos, a fim de tê-lo, então, na condição de seu novo gênero parental, de pai. Indaga o autor a partir de que ponto a criança não pode se tornar objeto de toda sorte de pretensão jurídica por parte de seus responsáveis, onde a referência do que é justo ou não, pretendido ou não, pelo infante é estabelecida monológica e soberanamente por seus pais, que podem funcionar como miniEstados soberanos perante sua prole.459 A questão que se destaca na crítica de Legendre – crítica essa que se refere à dimensão provisional do cuidado parental no campo judicial – mostra-se na seguinte questão: é no interesse de quem que se postula judicialmente?460 Ademais, o risco da integração entre direitos protetivos, provisionais e participativos, apesar de se manifestar com especial força na infância, está presente não só quando em discussão os direitos infantojuvenis, mas também sempre que se coloca em discussão a autonomia do ser humano diante das intervenções estatais no seu direito de liberdade. A dicotomia proteção-emancipação é, portanto, pano de fundo para assuntos tão diversos como o da liberação das drogas (proteção da saúde pública versus autonomia do usuário), de regime de bens no casamento de pessoas idosas acima de 70 anos (proteção do patrimônio individual e familiar versus autonomia do idoso)461, da regularização da prostituição como atividade laboral (autonomia das pessoas no mercado do sexo versus sua proteção) etc. Se o fato de haver choque entre direitos fundamentais de um determinado titular com a sua autonomia não serve para colocar em discussão a existência do direito de participação dos adultos – enquanto expressão de sua autodeterminação –, da mesma forma não há razão 459 Para o autor, as referências simbólicas do mundo da criança submergiram na pretensão de sua mãe, novo pai, não tendo sido o interesse do petiz devidamente investigado pela justiça canadense: “A mãe desempenhou suas identificações selvagemente à custa da criança e, em última instância, com o aval de uma Justiça sem bússula”. LEGENDRE, Pierre. Poder Genealógico do Estado. Tradução: Laurice Levy. In: ALTOÉ, Sônia (Org.). Sujeito do Direito, Sujeito do Desejo: Direito e Psicanálise. 2. ed. Rio de Janeiro: Revinter, 2004, p. 79-87. 460 Sobre a questão das disputas judiciais de família em que se discuta o interesse da criança ou do adolescente, o novo Código de Processo Civil respeita a condição própria dos petizes de sujeitos de direitos, pretensões e desejos próprios, ao dispor que as ações que versarem “sobre interesse de criança ou de adolescente observarão o procedimento previsto em legislação específica, aplicando-se, no que couber, as disposições deste Capítulo” (Novo CPC, art. 693, parágrafo único). A legislação específica a que se refere a lei é o ECA, com seus princípios, dentre os quais o da oitiva obrigatória e participação (ECA, art. 100, parágrafo único, XII). 461 Segundo o Código Civil, art. 1.641, II: “É obrigatório o regime da separação de bens no casamento: II - da pessoa maior de 70 (setenta) anos”. A redação original do dispositivo estabelecia a idade de sessenta anos para a autonomia quanto à definição do regime de bens do casamento, o que mostra o reflexo na lei da evolução do debate em torno da liberdade da pessoa idosa. Sobre a autonomia e liberdade do idoso, discutindo a possibilidade de exercer ou não o seu direito fundamental à vida , cf. PINHEIRO, Naide Maria. Liberdade: direito de viver e de morrer. In: ROSÁRIO, José Orlando Ribeiro et al. (Orgs). Temas de Direito e de Justiça. Natal: EDUFRN, 2016 (no prelo). 144 para se questionar a viabilidade de se conferir tal gama de direitos aos mais novos. O potencial dano no mal uso de uma liberdade reside menos em sua qualificação como direito do que na peculiar situação de desenvolvimento do seu titular – aqui, a criança e o adolescente. Melhor do que deixar de endereçar um determinado tipo de direito fundamental aos mais novos, é mais útil à discussão mudar o foco para tratar de metodologias apropriadas para se empoderar a população infantojuvenil quanto aos seus direitos fundamentais, de uma forma tal que se lhes permita o desenvolvimento seguro, minimizando os riscos quer da tutela desmedida, quer da desresponsabilização negligente. Assim como a doutrina traz abordagens distintas para as questões relacionadas aos direitos de status positivus e negativus – sem, contudo negar-lhes a existência, porém tratando dos desafios epistemológicos específicos na realização de cada qual462 –, da mesma forma a realização dos direitos fundamentais de participação da e pela criança comporta desafios e metodologias próprios que, ao invés de negar-lhes a titularidade, tem a sua afirmação como pressuposto, para então buscar-lhes a implementação adequada.463 Além da dimensão jurídica, o direito de participação comporta uma esfera ética para os adultos que lidam com as crianças, na medida em que reformula as bases do processo educativo em termos menos adjucatórios e mais orientadores. Dessarte, as decisões em torno dos interesses fundamentais dos petizes devem permanecer, da forma mais ampla possível, com as portas abertas, a fim de lhes permitir o exercício futuro de suas próprias decisões.464 462 Nesse sentido, tratando do problema específico da eficácia dos direitos sociais na sua dimensão prestacional, cf. SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 11. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012. 463 A título de ilustração de uma metodologia voltada a trabalhar os direitos de participação dos mais novos, o Ministério Público do Estado do Pará tem desenvolvido o Projeto Estágio Cidadão, o qual estimula o raciocínio crítico dos alunos do ensino médio, ajudando-os a identificar os problemas de sua escola e levá- los à discussão e resolução no âmbito do Conselho Escolar. Com isso, trabalha-se a noção de cidadania na juventude à luz do protagonismo infantojuvenil, bem como se fortalecem importantes mecanismos de controle social. Cf. FREIRE, Mônica Rei Moreira; NEVES, Marcos Antônio Ferreira das. Projeto Estágio Cidadão. Revista do 5º Congresso Brasileiro de Gestão do Ministério Público: Gestão por Resultados. Brasília: Conselho Nacional do Ministério Público, 2014, p. 21-25. 464 Joel Feinberg, tratando da fundamentação teórica da titularidade jurídica da criança, classifica os direitos em quatro grupos: i) direitos que adultos e crianças têm em comum: por exemplo, direito de não serem agredidos ou assaltados; ii) direitos que são, em geral, mais relativos às crianças, em virtude de sua peculiar condição: são os chamados “direitos da dependência” (direito à alimentação, ao cuidado e à proteção); iii) direitos que são exercitáveis apenas pelos adultos – ou, quando muito, pelos petizes quando mais próximos da vida adulta, tal como os adolescentes: por exemplo, direito ao voto ou à religião (este último, por ser dificilmente exercido por crianças pequenas): iv) finalmente, os direitos em confiança (rights-in trust) ou “direitos de autonomia por antecipação” (anticipatory autonomy rights), direitos que deverão ser guardados para a criança até que ela se torne um adulto. Nestes últimos, a criança tem o direito a “ter essas futuras opções mantidas em aberto até ela ser um adulto plenamente formado, autodeterminado, capaz de decidir em meio a outros adultos”. No original: “His right while he is still a child is to have these future options kept 145 Os pais têm plena liberdade para influenciar sua prole com uma determinada concepção de moral, da família, de religião, enfim, de bem; mas também haverão de respeitar a futura possibilidade de seus filhos estabelecerem suas próprias escolhas e traçarem seus caminhos, ainda que isso vá contra a visão de mundo dos seus genitores e desde que isso não lhes coloque em risco – quando então o dever de proteção deverá ser afirmado. Essa é uma decorrência do princípio da autonomia progressiva do petiz, cujo impacto, tal como reconhecido na Convenção sobre os Direitos da Criança, faz-se sentir na forma como os pais devem educar seus filhos.465 Sob esse prisma ético é que se propõe a leitura da Convenção sobre os Direitos da Criança, na parte em que aponta a aplicação do melhor interesse na relação pais e filhos: “Caberá aos pais ou, quando for o caso, aos representantes legais, a responsabilidade primordial pela educação e pelo desenvolvimento da criança. Sua preocupação fundamental visará ao interesse maior da criança”.466 O melhor interesse, como já visto (subitem 2.6), trata-se de um princípio garantista e, nesse sentido, refere-se ao complexo de direitos das crianças, dentre os quais o de, estando capacitada, expressar sua opinião, a qual deve ser devidamente considerada nos assuntos relativos a elas – inclusive no lar.467 Contudo, a aplicação do melhor interesse no âmbito doméstico não se dá da mesma forma como quando aplicado pelo Estado.468 No lar, o conceito de melhor interesse desenvolve-se a partir de uma dimensão ética, pois, sendo a família um sistema de ligações humanas baseado sobre o afeto, os códigos entre os seus membros constituem-se primordialmente pelo binômio amor-desamor e a solidariedade é o fundamento primeiro das relações ali mantidas. No espaço familiar, o código open until he is a fully formed, self-determining adult capable of deciding among them”. FEINBERG, Joel. Freedom and fulfillment: philosophical essays. Princeton: Princeton University Press, 1994, p. 77. 465 Segundo a CDC, art. 14.2, “Os Estados Partes respeitarão os direitos e deveres dos pais e, se for o caso, dos representantes legais, de orientar a criança com relação ao exercício de seus direitos de maneira acorde com a evolução de sua capacidade”. (Grifos nossos) 466 CDC, art. 18, segunda parte. 467 CDC, art. 12. 468 A propósito, a própria Orientação Geral (General Comment) 14/2013 do Comitê da ONU de Monitoramento da CDC informa, em seu art. 86, que há diferença na forma como as autoridades públicas e organizações acessam e determinam o melhor interesse da criança daquela como as pessoas que tomam decisões diárias com relação ao petiz fazem-no (pais, guardiões, professores etc.). Desses não se espera o atendimento estrito do procedimento bifásico de definição do melhor interesse (acesso e determinação), apesar de as decisões deverem respeitar e refletir tal parâmetro. (Committee on the Rights of the Children. General comment No. 14 (2013) on the right of the child to have his or her best interests taken as a primary consideration (art. 3, para. 1). Disponível em: . Acesso em: 2 mar. 2016). Em nosso sentir, a diferença na realização do melhor interesse dentro e fora do lar deve-se ao fato de as relações internas e externas à família fundarem-se prima facie sobre o solidariedade e a juridicidade, respectivamente. Sobre esse tema, retornar-se-á no próximo capítulo. 146 do direito (lícito-ilícito) e a lógica da coercibilidade aplicar-se-á subsidiariamente, uma vez verificado o abuso.469 Intercambiar os códigos públicos e privados, lendo pela juridicidade relações pautadas primeiramente pela solidariedade, faz com que o Estado regule de forma cogente assuntos cujo foro primeiro é o coração, gerando excessos.470 A perspectiva da integração entre os direitos fundamentais da criança à proteção, provisão e participação comporta vultosos desafios epistemológicos, tanto pela dificuldade de compatibilizar direitos que se exteriorizam de formas tão díspares – mas que, nem por isso, anulam-se, antes, pelo contrário, em uma abordagem desenvolvimentista, potencializam-se –, como também porque sua concreção requer, paralelamente, a discussão acerca da liberdade dos pais na criação de seus filhos. A abordagem do desenvolvimento tratada neste tópico contribui para trazer ao lume a importância da realização tanto imediata quanto gradual dos direitos fundamentais da criança e do adolescentes, em que são requeridas metodologias apropriadas, aptas para gerar a expansão contínua da sua autonomia e liberdade. Abdicando de uma construção téorica do direito firmada, exclusivamente, sobre a racionalidade da decisão pelo prisma adulto, o desenvolvimento importa numa nova ética da justiça, na qual ganham relevo não só aspectos cognitivos do processo decisório, mas também intuitivos, imaginativos e emocionais. Neste prisma, a criança é vista como detentora de uma racionalidade própria, que lhe fundamenta a titularidade jurídica tanto presente como futura, afastando-se a ciência do direito de uma simples interdição utilitarista da liberdade infantil. Em outras palavras, na abordagem desenvolvimentista, a cidadania deixa de ter uma feição consequencial – definida a partir de sua serventia ou não para os interesses da coletividade ou do Estado – e passa a ser valorada por sua aptidão para expandir as liberdades, capacidades e oportunidades do indivíduo. 469 Sobre os códigos dos sistemas jurídicos e políticos (respectivamente, lícito/ilícito e poder superior/inferior) e sua relação com demais sistemas – econômico, amoroso, moral, artístico, religioso etc. – e respectivos códigos (ter/não ter; amor/desamor; consideração/desprezo; belo/feio; transcedente/imanente), a partir da obra do sóciologo alemão Niklas Luhmann, cf. NEVES, Marcelo. Entre Têmis e Leviatã: uma relação difícil. São Paulo: Martins Fontes, 2012. 470 Sobre a solidariedade como complemento – e não sucedâneo – à teoria de justiça, discorrer-se-á no próximo capítulo. 147 5 INTERVENÇÕES ESTATAIS NO DIREITO FUNDAMENTAL À CONVIVÊNCIA FAMILIAR A elevação do Estado de Bem-Estar Social e o consequente desenvolvimento de uma dimensão positiva para as liberdades fundamentais importa para a filosofia política a seguinte questão: o ser humano pode ser livre fora do Estado? Por esse prisma, investiga-se precipuamente a proteção jurídica do cidadão diante não tanto da invasidade estatal na vida humana (prisma liberal), mas, sobretodo, nas hipóteses em que, ao contrário, o que viola o bem fundamental é justamente a inação do poder público. Desde a Antiguidade, a relação entre a liberdade humana e o seu fomento pelo Estado foi objeto de reflexão por parte de filósofos e cientistas sociais. Para Aristóteles, o ser humano é um animal essencialmente social e, portanto, sua liberdade só se faz plena na polis. A filosofia aristotélica desenvolve-se dentro do prisma prático da existência, afastando-se assim da matriz idealista de seu mestre Platão.471 E, nesse plano empírico de análise, o Estado, mais do que uma contingência, é uma necessidade da natureza humana. O aparato estatal e as leis existem para garantir a soberania individual, devendo a política se distinguir como arte de governar homens livres.472 É, pois, a natureza racional, livre e gregária do homem o que fundamenta a origem e as funções estatais. O Estado é uma necessidade natural na filosofia aristotélica e, sendo o homem arrastado naturalmente para a associação política, o todo é superior aos indivíduos que o integram.473 Essa mesma ideia da dependência do homem ao Estado foi retomada na primeira fase do humanismo renascentista italiano dos séculos XIV a XVI, no movimento denominado 471 “Aristóteles define seu objetivo como eminentemente prático e critica a concepção platônica de forma, ou ideia, do Bem, por seu sentido genérico, excessivamente abstrato e distante da experiência humana”. MARCONDES, Danilo. Textos básicos de ética: de Platão a Foucalt (ePub). 4. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2008. 472 Para Aristóteles, o homem racional, que na sua associação política está no topo da escala natural, pode porém ser “o último dos animais quando vive sem lei e sem justiça” (tradução livre). No original: “es el último quando vive sin leves y sin justicia”. ARISTÓTELES. Política (ePub). [s. l.] E-artnow, 2013. Não tem cidade… Comprei no Kindle. 473 “O que prova claramente a necessidade natural do Estado e sua superioridade sobre o indivíduo é que, se não se o admitisse, resultaria que pode o indivíduo então bastar-se a si mesmo, afastado assim do todo como do resto das partes. Porém, aquele que não pode viver em sociedade e que, no meio de sua independência não tem necessidades, não pode nunca ser membro do Estado: é um bruto ou um deus” (tradução livre). No original: “Lo que prueba claramente la necesidad natural del Estado y su superioridad sobre el individuo es que, si no se admitiera, resultaría que puede el individuo entonces bastarse a sí mismo aislado así del todo como del resto de las partes; pero aquel que no puede vivir en sociedad y que en medio de su independencia no tiene necesidades, no puede ser nunca miembro del Estado; es un bruto o un dios." ARISTÓTELES. Política (ePub). [s. l.] E-artnow, 2013. Não tem cidade… Comprei no Kindle. 148 “humanismo cívico”.474 Nesse contexto, a liberdade do homem foi pensada de forma atrelada à sua convivência com outros homens dentro das cidades-Estado, nas quais se lhes devia proporcionar proteção tanto contra os signori como contras os poderes da Igreja. Por isso, em Maquiável, o bem comum só pode ser considerado nas repúblicas e o benefício de se viver num Estado livre do despotismo é que ali o homem é capaz de usufruir sem nenhum temor de suas próprias possessões.475 Posteriormente, na Grã-Bretanha do início da Idade Moderna, autores identificados como neoromanos defenderam que o homem só poderia almejar a liberdade se vivesse em um Estado livre, no qual vigesse “o império das leis e não dos homens”.476 Esse pensamento desenhou um forte vínculo entre liberdade humana e os sistemas representativos de governo. Com isso, questionavam os pensadores do neoromanismo os governos de sua época em que o mero consentimento não se mostrava suficiente para garantir a legitimidade governamental, pois a anuência poderia decorrer mais do medo do que da disposição para a concordância com as decisões tomadas pelo governante.477;478 Mais recentemente, no final dos anos 1970, a ideia da vida em um Estado livre foi retomada por teóricos do movimento identificado como republicanismo.479 A tese subjacente na teoria dos autores neoromanos, de que a vontade da maioria representada democraticamente é melhor do que o querer despótico do príncipe, é retomada pelos teóricos republicanos para dar ênfase aos interesses coletivos, na medida em que estes melhor permitem a realização do bem comum. Ainda, a esta ideia de bem comum, buscado pela 474 Nesse sentido, CAVALCANTI, Thaís Novaes. Direitos fundamentais e princípio da subsidiariedade. Osasco: Edifeo, 2015, p. 38; e GARGARELLA, Roberto. As teorias da justiça depois de Rawls: um breve manual de filosofia política. Trad. Alonso Reis Freire. São Paulo: Martins Fontes, 2008, p. 183. 475 Apud SKINNER, op. cit. p. 214 e 215. 476 HARRINGTON, James. The Commonwealth of Oceana and A System of Politics. Cambridge: Cambridge University Press, 1992, p. 8. 477 Segundo Skinner, “a estratégia seguida pelos teóricos neo-romanos (Milton, Harrington, More, Sidney, Nedham etc) foi a de apropriar-se do valor moral supremo da liberdade e aplicá-lo exclusivamente a certas formas um tanto radicais de governo representativo. Isto acabou permitindo-lhes estigmatizar, com o ignóbil nome de escravidão, a um número de governos – como o Ancien Régime na França e o domínio britânico na América do Norte – que eram considerados legítimos e até progressistas”. SKINNER, Quentin. Estados livres e liberdade individual. In: Direito e Legitimidade: escritos em homenagem ao Prof. Dr. Joaquim Carlos Salgado, por ocasião do seu Decanato como Professor Titular de Teoria Geral e Filosofia do Direito da Faculdade de Direito da UFMG. Tradução: Tito Lívio Cruz Romão. MERLE, Jean-Christophe; MOREIRA, Luiz (Orgs). São Paulo: Landy Livraria, 2003, p. 212-230, p. 212. 478 Philip Pettit retoma no século XX a ideia de democracia como capacidade de contestar decisões do governo mais do que a simples concordância com elas, pois “a não arbitrariedade requer menos consentimento e mais contestabilidade”. Cf. PETTIT, Philip. Democracia e contestabilidade. In: Direito e Legitimidade: escritos em homenagem ao Prof. Dr. Joaquim Carlos Salgado, por ocasião do seu Decanato como Professor Titular de Teoria Geral e Filosofia do Direito da Faculdade de Direito da UFMG. Tradução: Tito Lívio Cruz Romão. MERLE, Jean-Christophe; MOREIRA, Luiz (Orgs). São Paulo: Landy Livraria, 2003, p. 370-384. 479 Nesse sentido, GARGARELLA, op. cit., p. 183. 149 coletividade dos cidadãos ativos, os teóricos do republicanismo identificaram e destacaram também uma abordagem motivacional, na medida em que também propugnavam a defesa e o desenvolvimento de certos valores cívicos nas pessoas. Retomando o ideal aristotélico da virtude como fonte de justiça social 480 , no republicanismo a preservação da liberdade demanda qualidades intrínsecas dos cidadãos e, portanto, o bom governo deve se engajar em promover as precondições políticas e econômicas necessárias para o desenvolvimento de tais valores: Os pensadores ligados a essa corrente tenderam a exaltar, antes de mais nada, valores como a coragem (para defender a própria comunidade contra ataques externos) e a prudência (para participar do governo da comunidade). Essa lista de virtudes, entretanto, pode ser facilmente ampliada com outros valores também defendidos pelos republicanos: a igualdade, a simplicidade, a honestidade, a benevolência, a moderação, o patriotismo, a integridade, a sobriedade, a abnegação, a laboriosidade, o amor à justiça, a generosidade, a nobreza, a solidariedade e, em geral, o compromisso com o destino dos demais. […] Apenas desse modo – apenas graças à presença de cidadãos assim disponíveis para a sua comunidade – a república teria a oportunidade de sobreviver a contratempos incontestáveis.481 A fiscalização do poder de ação dos indivíduos torna-se, pois, central para os teóricos do republicanismo antigo e moderno. As soluções para esse problema organizam-se no ideal republicano por mecanismos externos e internos de controle.482 Os primeiros consistem em fazer com que uma instância externa, como o Estado, limite a liberdade dos cidadãos e das ações do poder público, o que se daria por meio de leis legitimamente promulgadas por representantes do povo. Por sua vez, a solução internalista do republicanismo refere-se ao incentivo à autodisciplina dos cidadãos por meio do fomento pelo Estado de virtudes cívicas. Do entrelaçamento de leis eficazes e cidadãos virtuosos, ergue-se, então, a república.483 480 Em Política, Aristóteles afirma: “O homem recebeu da natureza as armas da sabedoria e da virtude, que deve emperrar sobre tudo para combater as más paixões. Sem a virtude é o ser mais perverso e mais feroz, porque só tem os arrebatou brutais do amor e da fome. A justiça é uma necessidade social, porque o direito é a regra de vida para a associação política, e a decisão do justo é o que constitui o direito” (tradução livre). No original: “El hombre ha recibido de la naturaleza las armas de la sabiduría y de la virtud, que debe emplear sobre todo para combatir las malas pasiones. Sin la virtud es el ser más perverso y más feroz, porque sólo tiene los arrebatos brutales del amor y del hambre. La justicia es una necesidad social, porque el derecho es la regla de vida para la asociación política, y la decisión de lo justo es lo que constituye el derecho”. ARISTÓTELES. op. cit. 481 GARGARELLA, op. cit., p. 187. 482 Discorrendo sobre o externalismo e o internalismo típicos do republicanismo cf. PINZANI, Alessandro. Republicanismo(s), democracia, poder. Veritas – Revista Quadrimestral de Filosofia da PUCRS, v. 52, n. 1, mar. 2007. Porto Alegre: PUCRS, p. 5-14. 483 Segundo Pinzani: “Na tradição republicana, assiste-se normalmente a uma mistura destas duas soluções: uma república precisa de leis eficazes e cidadãos virtuosos. Este que pode parecer um círculo vicioso (sem leis eficazes os cidadãos não seriam mais virtuosos, mas as leis são eficazes só se os cidadãos são virtuosos) é considerado, pelo contrário, um círculo virtuoso pelos republicanos. A interação destes dois elementos fortalece a república”. Ibid., p. 7. 150 Dessarte, pelo prisma republicano, a liberdade natural, perdida no estado da natureza, dá lugar, na formação do Estado, à liberdade civil do homem, limitada e coordenada com a de seus semelhantes, sob o amplexo do poder público. A vivência em comunidade requer o estabelecimento de normas de conduta a fim de evitar a subjugação dos mais fracos pelos mais fortes, o que comprometeria a liberdade – e, portanto, a dignidade – dos primeiros. A função do Estado é, pois, resguardar a liberdade humana e, para tanto, ordena as ações de seus cidadãos – e ordenar é, essencialmente, limitar. A solução republicana para a questão da liberdade humana, porém, é, desde sua retomada com os neoromanos até mais presentemente, criticada por outros pensadores que compreendem que há no republicanismo uma confusão entre o conceito de liberdade e garantias da liberdade.484 Assim, para Thomas Hobbes, em crítica à teoria neoromana: A liberdade à qual se encontram tantas e tão honrosas referências nas obras de história e filosofia dos antigos gregos e romanos, assim como nos escritos e discursos dos que deles receberam todo o seu saber em matéria de política, não é a liberdade dos indivíduos, mas a liberdade do Estado.485 Para Pinzani, o problema da solução republicana decorre da redução que ela faz do poder, ao considerá-lo tão somente quando exercido pelo aparato estatal, na sua expressão política ou jurídica.486 Semelhante crítica levou Michel Foucault, na fase genealógica de suas pesquisas, a querer estudar as relações de poder para além do quadrante da dominação estatal (“No pensamento e na análise política ainda não cortaram a cabeça do rei”, asseverou Foucalt).487;488 Faltaria, pois, aos republicanos, a capacidade para “lidar com a transformação em poder político de outros poderes”, o que “exclui aspectos centrais da vida dos indivíduos, como os ligados à economia, à produção e difusão de saber e de tecnologias, à religião”.489 Estabelecidas essas premissas do debate filosófico e da ciência política, em torno da 484 Nesse sentido, William Paley apud SKINNER, op. cit., p. 222. 485 HOBBES, Thomas. Leviatã ou matéria, forma e poder de um Estado eclesiástico e civil. Trad. João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva. Disponível em: . Acesso em: 13 jun. 2016. 486 PINZANI, op. cit., p. 13. 487 FOUCAULT, Michel. História da sexualidade 1: a vontade de saber. 2. ed. Trad. Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. São Paulo: Paz e Terra, 2015, p. 97. 488 Sobre a análise do poder na fase genealógica da obra de Foucault, cf. POGREBINSCHI, Thamy. Foucault, para além do poder disciplinar e do biopoder. Disponível em: . Acesso em: 13 jun. 2016. E ainda: DANNER, Fernando. A Genealogia do Poder em Michel Foucault. Disponível em: . acesso em: 13 jun. 2016. 489 PINZANI, op. cit., p. 13. 151 marca do Estado na liberdade humana, temos por um lado que, se, em uma perspectiva jurídica, a liberdade humana vê-se vinculada à existência do aparato governamental – pois é, justamente, uma liberdade juridicamente adjetivada e, portanto, limitada e garantida por normas de direito490 –; por outro ângulo, ela supera a presença burocrática, pois é a condição natural do homem racional e a base para a fundação e elevação do Estado. Nesse sentido é a afirmação de Skinner491: O grau de liberdade de um indivíduo enquanto cidadão depende do grau em que o aparelho coercitivo da lei não o coíbe de exercer seus poderes segundo seu livre- arbítrio. Contudo, isso significa que o importante para os direitos políticos fundamentais não é quem cria as leis, mas simplesmente quantas leis são criadas e, portanto, quantas ações do indivíduo realmente são impostas.492 Assim, não só em em uma perspectiva filosófica, mas também política, a autodeterminação humana ultrapassa a do Estado. Estabelecer uma relação de continência da liberdade de pessoas físicas na de pessoas jurídicas equivale a confundir conteúdo com instrumento; principal com acessório. Porém, para além do debate filosófico, é inegável que a presença do Estado é relevante para a vida humana e tem especial destaque na vida de uma criança e de seus pais. No seu papel de terceiro acima das relações entre os cidadãos, o Estado, além de prestador de bens e serviços, é também o garante dos papéis simbólicos desempenhados pelos particulares em sua vida pública ou privada. Para Pierre Legendre, no caso da criança, além de sua fundação por seus pais, há ainda a sua fundação simbólica por parte das autoridades governamentais, onde o petiz é reconhecido e recebido pela Lei como ser humano e cidadão com seus direitos de filiação.493 Trata-se do que o autor define como os dois tempos do poder genealógico: no primeiro, ele é exercido pelos pais; no segundo, pelo Estado. Finalmente, para que se possa abrir, para a criança, a via da identidade, é preciso que esta criança esteja ligada a um sistema institucional que a estruture. […] O sistema jurídico do Direito das pessoas depende da 490 O que levam Holmes e Sustein, numa análise sobre o impacto orçamentário dos direitos, a afirmar: “A ausência de Estado quer dizer a ausência de direitos” (tradução livre). No original: “Statelessness spells rightslessness”. HOLMES, Stephen; SUSTEIN, Cass R. The Cost of Rigths: Why Liberty depends on Taxes (ePub). Nova Iorque/Londres: W.W. Norton & Company, 1999. 491 Roberto Gargareja aloca o posicionamento teórico de Skinner como republicanismo do tipo instrumental: “Autores como Skinner defendem uma versão do republicanismo que alguns chamaram de ‘republicanismo instrumental’, ou seja, um republicanismo que valoriza a participação ativa dos cidadãos em política, não como algo bom em si mesmo, mas como um meio – um instrumento – adequado para a manutenção de uma sociedade livre”. Cf. GARGARELLA, op. cit., p. 187. 492 SKINNER, op. cit., p. 222. 493 LEGENDRE, Pierre. Poder Genealógico do Estado. Tradução: Laurice Levy. In: ALTOÉ, Sônia (Org.). Sujeito do direito, sujeito do desejo: Direito e Psicanálise. 2. ed. Rio de Janeiro: Revinter, 2004, p. 79-87. 152 autoridade do Estado. Ideologicamente, o Estado pode ser destituído ou refutado desta função de garantir; política e juridicamente, ele não o é, sob todos os regimes constitucionais.494 (Grifo nosso) O desejo da criança e o seu posterior acolhimento nos braços de seus pais é, pois, o primeiro ato do estabelecimento humano. Posteriormente, o Estado recepciona o petiz por meio do registro de sua chegada e assim o tem por juridicamente constituído: esse é o poder simbólico de fundação humana perante um sistema de regras válidas e reconhecidas pela comunidade. Tais símbolos constituem-se a partir da posição ocupada por adultos e crianças na sociedade, e ao poder público compete resguardar os papéis de uns e outros, ora provendo serviços, ora intervindo para lhes negar uma determinada posição495 ou situação injusta496, ora simplesmente não intervindo. Mas, além do simbolismo, há ainda o aspecto material de garantia da titularidade de direitos fundamentais. A liberdade é o bem supremo no Estado constitucional contemporâneo e nela está a essência do princípio da dignidade da pessoa humana, cujas acepções negativa (de não-intervenção) e positiva (de prestação) visam, respectivamente, a respeitar e dar meios para a emancipação do ser.497 Dessa forma, interessa a esta pesquisa não só o estudo das intervenções estatais pelo prisma liberal – de que lançamos mão com maior ênfase no capítulo 3, ao tratamos da autonomia parental –, mas também para se que faça pleno o direito humano à convivência familiar, pelo viés social, em que o poder público, além de não intervir demasiada e injustificadamente na área de proteção de um direito, também o deve promover e empoderar seus titulares. Não se malfere uma liberdade apenas por intervir demasiadamente nela, esmagando-a. Maltrata-a também a omissão violadora, que, por não lhe dar as condições mínimas de subsistência, esmaece-a. Não se trata aqui, como veremos adiante, de se defender 494 LEGENDRE, op. cit., p. 85. 495 Como no caso da proibição do incesto através da vedação de matrimônio entre pais e filhos, nos termos do art. 1.521, I, do Código Civil. 496 Como, por exemplo, no caso da violência doméstica, onde a ordem jurídica não a compreende como integrante da área de proteção do direito à convivência familiar, nos termos do art. 226, § 8º, da CF. 497 Nesse sentido, Martins explica a tutela da dignidade humana prevista no art. 1, I, da Lei Fundamental alemã: “‘A dignidade do ser humano é intocável. Observá-la e protegê-la é obrigação de toda autoridade estatal:’ Os caminhos e motivos que levaram o constituinte alemão à prescrição, nesta forma de sentença indicativa, da dignidade humana, com os expressos deveres a serem observados (omissivamente) ou configurados (comissivamente) em normas, cogentemente obrigatórias, são amplamente conhecidos e já foram muitos discutidos”. MARTINS, Leonardo. Bioética à luz da liberdade científica: estudo de caso baseado na decisão do STF sobre a constitucionalidade da Lei de Biossegurança e no direito comparado alemão. São Paulo: Atlas, 2014, p. 58. 153 um Estado mínimo ou agigantado, mas sim um Estado necessário, que, guiado pelo princípio da subsidiariedade, não se superpõe ao dinamismo familiar, mas permite a acomodação da liberdade dos conviventes domésticos na comunidade em que estão inseridos e, quando preciso, suplementa-lhes as necessidades no que não pôde a empreitada humana alcançar. A abordagem prestacional e promocional da convivência familiar e a importância de sua dimensão comunitária serão, pois, a parte complementar da exposição liberal e nuclear desse direito que expusemos anteriormente, no capítulo 3. A essa tarefa e a esse olhar nos lançamos doravante. 5.1 O DIREITO À CONVIVÊNCIA FAMILIAR E AS LIBERDADES NEGATIVAS E POSITIVAS As políticas de família em vigor no país explicitam a importância do Estado para criar as condições apropriadas para que as relações entre os parentes possam-se desenvolver plenamente. As duas primeiras diretrizes do Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do Direito à Convivência Familiar de Crianças e Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária (PNCFC) consistem na “centralidade da família nas políticas públicas” e na “primazia da responsabilidade do Estado no fomento de políticas integradas de apoio à família”.498 Ademais, no Estatuto da Criança e do Adolescente, o Estado assume o papel de garante primário dos direitos fundamentais da criança e do adolescente.499 Como indica a ideia de integralidade dos direitos fundamentais, cada uma das liberdades e bens constitucionais implicam, em alguma medida, uma proteção tanto do tipo negativa, como também de caráter prestacional. Uma concepção pura das liberdades, quer para lhes aferir um status negativus ou positivus, mostra-se frágil no mundo contemporâneo e na teoria constitucional moderna, na medida em que se percebe que tanto as primeiras requerem, para sua viabilização prática, provisões, como as segundas demandam, em alguma 498 Pela primeira diretriz, “diante de situações de risco social e vulnerabilidades vividas pelas fami ́lias brasileiras, principalmente por pressões geradas pelos processos de exclusão social e cultural, essas fami ́lias precisam ser apoiadas pelo Estado e pela sociedade, para que possam cumprir suas responsabilidades”; pela segunda, “o Estado deve se responsabilizar por oferecer serviços adequados e suficientes à prevenção e superação das situac ̧ões de violacã̧ o de direitos, possibilitando o fortalecimento dos vi ́nculos familiares e sócio-comunitários” (os grifos foram acrescidos pelo autor, a fim de dar destaque, desde já, à dimensão de um Estado assistencial sim, mas não assistencialista, em que as medidas de provisão se ajustam às necessidades dos assistidos e buscam contribuir para o desenvolvimento de suas potencialidades humanas e autonomia). BRASIL. Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente. Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do Direito de Crianças e Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária. Brasília: Conanda, 2006, p. 69-70. 499 É o princípio da “responsabilidade primária e solidária do poder público” para com os direitos da criança e do adolescente, previsto no art. 100, parágrafo único, III, do ECA. 154 medida, não-intervenções ou, pelo menos, não-intervenções excessivas, mas sempre justificadas do ponto de vista constitucional. Stephen Holmes e Cass R. Sustein, em sua obra The Cost of Rigths: Why Liberty depends on Taxes500, fragilizam a distinção clássica entre direitos positivos e negativos. A proteção ao direito de liberdade contratual nos Estados Unidos – um tradicional direito negativo – implica não menos custos públicos do que os cuidados relativos à saúde. O direito de expressão, por seu turno, acarreta não menos gastos do que a promoção de uma moradia digna. Por isso, concluem os autores: “todos os direitos importam em reivindicações sobre o Tesouro”.501 Com o mesmo pensamento, Marcus Aurélio de Freitas Barros aduz: Pouco importa a natureza do direito, se de defesa ou prestacional, terá sempre uma contrapartida maior ou menor em gastos públicos, nem que seja com o aparato judicial para a defesa destes direitos. Todos os direitos, portanto, em maior ou menor grau, dependendo do ângulo em que são observados, exigem dispêndio para sua realização.502 E não apenas em termos formais, mas também conteudísticos, os direitos fundamentais apontam para uma necessária redução entre os polos positivo e negativo de sua classificação teórica. Dessarte, a liberdade de expressão – tido como um tradicional direito de resistência, de status negativus –, para que se possa configurar em sua integralidade, demanda a prévia ministração de conteúdos e formação de habilidades no cidadão que, no futuro, irão se exteriorizar sob as mais diversas formas (escrita, verbal, gestual etc.), todas tuteladas sob a área de proteção do art. 5º, IV, da CF. O exercício da cidadania por meio do sufrágio, para ser pleno, requer o voto consciente, o que se alcança por meio da educação das pessoas; pela garantia de emprego e renda, que permitirão a autonomia do eleitor e a quebra das amarras paternalistas e fisiológicas que o podem levar a votar por favores menores (cestas básicas, próteses dentárias, alguns trocados ou outros bens materiais); e, finalmente, por meio do aparato da justiça eleitoral que permitirá a exteriorização fidedigna da vontade do eleitorado, sem fraudes ou coação. Trata-se, pois, de uma leitura condizente com a abordagem do desenvolvimento, abraçada neste estudo na análise da condição de sujeitos de direitos da criança e do adolescente e, agora, no que se refere à relação existente entre direitos de 500 Numa tradução livre: “O custo dos direitos: por que a liberdade depende de impostos”. HOLMES; SUSTEIN, op. cit. 501 No original: “All rights make claims upon public treasure”. Ibid. 502 BARROS, Marcus Aurélio de Freitas. Controle jurisdicional de políticas públicas: parâmetros objetivos e tutela coletiva. Porto Alegre: Sérgio Fabris, 2008, p. 93. 155 liberdade formal e material.503 As liberdades positivas e negativas requerem no seu processo de implementação tanto ações como não-ações para com sua área de proteção. Daí porque não se justificam, por exemplo, intervenções estatais para com o direito à saúde de uma gestante que, em nome de um bem maior, tal como a saúde pública ou até mesmo o melhor interesse da criança, ignorem a vontade da mulher para lhe sujeitar à esterilização forçada em caso de dependência química correlacionada a sucessivas gestações.504 Também não se justifica a retirada abrupta de bebês da companhia de pais com problemas de dependência química, sem que se verifique previamente o grau de apego entre eles e a real existência de danos efetivos ao petiz ou, pelo menos, uma fundada suspeita, não sendo permitido, por força do princípio do elevado peso de prova (hard burden of proof) para a intervenção estatal na família505, o afastamento da criança do seu lar de origem com base em danos presumidos.506 No caso do direito objeto desta pesquisa – o direito à convivência familiar –, ele tem, dito no capítulo 3, tanto um prisma negativo como também positivo. Assim, a “especial proteção” de que fala o art. 226 da Constituição assume precipuamente a forma de não- 503 Sobre a abordagem desenvolvimentista a partir do estudo de Amartya Sen, cf. subitem 4.4. 504 Nesse sentido, a propósito, cf. a Nota Técnica do Ministério da Saúde sobre “Diretrizes e Fluxograma para a atenção integral à saúde das mulheres e das adolescentes em situação de rua e/ou usuárias de crack/outras drogas e seus filhos recém-nascidos”. BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de atenção à Saúde. Nota Técnica Conjunta nº 001 – SAS e SGEP, de 16 setembro de 2015. Disponível em: . Acesso em: 30 maio 2016. Ajeitar referência, não sei se está correta a designação do órgão. 505 Sobre o conceito de elevado peso de prova (hard burden of proof), cf. item 3.9. 506 A propósito, a Lei 13.257, de 8 de março de 2016, que dispõe sobre o Estatuto da Primeira Infância, modificou o artigo 19 do ECA para revogar a menção à retirada da criança de ambientes em que estivessem presentes pessoas dependentes de substâncias entorpecentes. A redação anterior do citado artigo 19 do ECA era: “Art. 19. Toda criança ou adolescente tem direito a ser criado e educado no seio da sua família e excepcionalmente, em família substituta, assegurada a convivência familiar e comunitária, em ambiente livre da presença de pessoas dependentes de substâncias entorpecentes” (grifos acrescidos). Atualmente, porém, é: “Art. 19. É direito da criança e do adolescente ser criado e educado no seio de sua família e, excepcionalmente, em família substituta, assegurada a convivência familiar e comunitária, em ambiente que garanta seu desenvolvimento integral”. A redação da lei, de fato, sugeria, numa interpretação apressada, uma relação de automaticidade entre a presença de pessoas com dependência química no lar e a retirada do petiz, o que poderia acarretar ações açodadas e estigmatizantes. Apesar de a adicção ser, não raro, fator de desestabilização das relações domésticas, o afastamento da criança e adolescente do lar demanda a demonstração de um “pesado dever de prova” (heavy burden of proof), como demonstramos no item 3.9. Trata-se, como já dito de uma política de redução de danos: considerando que todo afastamento do lar gera, no mínimo, um dano emocional à criança, essa medida deve implicar um mal menor do que sua permanência com seus responsáveis. Cf. BRASIL. Lei 13.257, de 8 de março de 2016. Dispõe sobre as políticas públicas para a primeira infância e altera a Lei no 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente), o Decreto-Lei no 3.689, de 3 de outubro de 1941 (Código de Processo Penal), a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), aprovada pelo Decreto-Lei no 5.452, de 1o de maio de 1943, a Lei no 11.770, de 9 de setembro de 2008, e a Lei no 12.662, de 5 de junho de 2012. Disponível em: . Acesso em: 30 maio 2016. 156 intervenção estatal ou, quando muito, uma limitação justificada pelo prisma jurídico- constitucional.507 Entretanto, há também na defesa do lar um status positivus, que indica o aspecto prestacional e promocional do direito à convivência familiar. No caso da criança e do adolescente, essa prestação ocorre tanto por ação dos pais para com os filhos, bem como da sociedade e do Estado para com os membros da família. Finalmente, vê-se que a própria intervenção em uma liberdade negativa é, em si, uma prestação estatal positiva, na medida em que aí a limitação no direito fundamental se faz ou para proteger um bem público (caso da limitação do direito de se comunicar com o ambiente externo de um presidiário), ou o direito de um outro titular em rota de colisão (caso da fixação de danos morais por dano à honra alheia). Dessarte, percebe-se que mesmo a análise do móvel estatal e seus instrumentos aproxima os direitos positivos e negativos. Tais conclusões não significam, porém, que a classificação dos direitos fundamentais entre positivos e negativos não se revista de valor. Tal distinção – que remete à sistematização operada por Georg Jellinek508 – tem sua relevância na medida em que dá conta de aspectos proeminentes de referidas liberdades na sua relação com o Estado. Porém, essa separação não pode levar a uma singela dicotomia dos direitos, pois, sem a sua contextualização política – política aqui referida enquanto políticas públicas (policies), ou seja, bens, programas e serviços necessários à plena realização dos direitos fundamentais –, a ciência jurídica é levada a um reducionismo que, como tal, não dá conta da magnitude do problema a ser estudado. Portanto, como dito anteriormente, ao objeto deste estudo – as relações de família mantida entre pais e filhos – importa tanto os eventuais excessos do Estado na sua invasidade ao lar, como também os abusos que o poder público pode cometer por omissão. Não só a intervenção ativa desafia um processo de justificação: também a omissão estatal é passível de ser sindicalizada no âmbito do Poder Judiciário como forma de dar melhor guarida aos direitos fundamentais. Dessarte, tanto a intervenção estatal nas liberdades precipuamente negativas, como a não-intervenção para fomentar as liberdades positivas carecem de justificação, sendo passíveis do engendrar o vício da inconstitucionalidade se não se desincumbirem do ônus argumentativo de apresentar razões plausíveis para, respectivamente, sua ação ou inação. 507 Cf. item 3.8. 508 A obra de Jelinek realizou uma classificação trialista dos direitos fundamentais, em que, além dos status positivos e negativos, ainda foram as liberdades sistematizadas em uma terceira categoria, relativa aos direitos de status cívico, político ou de participação. Nesse sentido, cf. DIMOULIS; MARTINS, op. cit. 157 5.2 O PRINCÍPIO DA SUBSIDIARIEDADE DA AÇÃO ESTATAL E A GARANTIA DO DIREITO À CONVIVÊNCIA FAMILIAR No que diz respeito ao núcleo familiar, o aspecto prestacional da convivência ganha relevo, sobretudo, diante das famílias em situação de vulnerabilidade social, em que as políticas sociais de amparo perfazem um importante papel para que os genitores possam bem desempenhar as funções parentais que deles se esperam. No Brasil, as políticas do Sistema Único de Assistência Social (SUAS) – cujo primeiro princípio é o da “matricialidade sociofamiliar” 509 –, diferentemente das do Sistema Único de Saúde (SUS), não são universais510, mas são prestadas “a quem dela necessitar”.511 Se a dimensão negativa do direito à convivência familiar implica o risco de o não- fazer estatal descurar da proteção dos membros mais vulneráveis512, tal risco é temperado pela 509 A matricialidade familiar indica que “para a família prevenir, proteger, promover e incluir seus membros é necessário, em primeiro lugar, garantir condições de sustentabilidade para tal. Nesse sentido, a formulação da política de Assistência Social é pautada nas necessidades das famílias, seus membros e dos indivíduos”. BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Plano Nacional de Assistência Social. Brasília: Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, 2004. p. 41. 510 A universalidade é um dos princípios do SUS contidos na Constituição (art. 196, ao falar em “acesso universal de todos às ações e serviços de saúde) e “Significa que o Sistema de Saúde deve atender a todos, sem distinc ̧ões ou restrições, oferecendo toda a atenção necessária, sem qualquer custo”. BRASIL. Ministério da Saúde; Conselho Nacional dos Secretários Municipais de Saúde. O SUS de A a Z: garantindo saúde nos municípios. Brasília: Ministério da Saúde, 2005. p. 246. 511 CF, art. 203, caput. 512 Bastante ilustrativa das limitações que a acepção negativa dos direitos fundamentais, se lida isoladamente, pode representar na prática foi a decisão da Suprema Corte dos Estados Unidos no caso DeShaney v. Winnebago County Department of Social Services (1989). (Disponível em: . Acesso em: 14 jun. 2016). No caso, uma criança de quatro anos, Joshua DeShaney, entrou em coma e, posteriormente, apresentou sério retardo mental em virtude dos maus-tratos sofridos por um longo período por parte de seu pai. O serviço de proteção social do Condado de Winnebago, após ter recebido várias reclamações da mãe sobre o abuso paterno, tomou vários passos para a proteção da criança, mas não atuou, contudo, para retirar o menino da custódia de seu genitor. A mãe de Joshua processou então o Estado, alegando que o Departamento de Serviços Sociais do Condado de Winnebago teria contribuído para a violação da integridade corporal de seu filho ao falhar na intervenção para proteger o petiz da violência parental, o que infringiria a cláusula do devido processo legal na sua acepção substantiva. Em seu julgado, a corte suprema dos EUA não reconheceu na cláusula do devido processo legal a responsabilidade do Estado por omissão caso a violência proviesse de atores particulares, e não do próprio poder público. Outro caso emblemático, com repercussões internacionais, foi Castle Rock v. Gonzales (2005). (Disponível em: . Acesso em: 14 jun. 2016). Ali, a sra. Jéssica Gonzales conseguira nas instâncias ordinárias da justiça a guarda de suas três filhas, em que se fixou a proibição de seu ex-marido vê-las fora dos horários de visita. Posteriormente, o genitor raptou as três meninas, o que levou a mãe a procurar reiteradamente a polícia a fim de prender seu ex- cônjuge a trazer suas filhas de volta. Os policiais de Castle Rock, entretanto, negaram-se a fazê-lo, orientando a sra. Gonzalez a esperar até mais tarde para ver se o genitor devolveria espontaneamente suas filhas. Entretanto, durante a noite, o pai matou as três crianças e, logo em seguida, morreu numa troca de tiros com a polícia. A mãe então processou o Estado, alegando que a polícia de Castle Rock teria violado os seus direitos fundamentais albergados sob a cláusula do devido processo legal, em virtude da negligência das autoridades públicas para com sua ordem de restrição (restraining order) contra o pai em virtude do seu direito de custódia sobre as filhas. Chegando o caso à corte suprema dos EUA, o colegiado em sua maioria (7 a 2) não reconheceu na cláusula do devido processo legal a responsabilidade do Estado. Para o tribunal, as ordens de restrição não importam na necessária tomada de uma medida de proteção específica: a ação específica fica sob a discrição da autoridade policial. O desfecho do caso se deu em nível internacional, quando, em agosto de 2011, a Corte Interamericana 158 sua acepção prestacional, que indica ao Estado tanto um dever de proteção à família – nos termos do art. 226, § 8º, que determina ao poder público a postura ativa para estabelecer mecanismos de coibição da violência no âmbito doméstico –, como também de prover suporte aos pais que tenham dificuldades, sobretodo, socioeconômicas, de desempenhar sua função parental, a fim de protegê-los de violações aos seus direitos e aos de sua prole. Porém, a acepção prestacional do direito à convivência familiar também apresenta riscos próprios inerentes à sua implementação pelo Estado. Referimo-nos, especialmente, à tentação de o poder público terminar tutelando em demasia os membros do lar e isso lhes atrofiar as potencialidades, gerando sua acomodação ao recebimento de benesses governamentais. Isso, porém, não significa a desqualificação da importância de uma abordagem social-democrática para a proteção do direito à convivência familiar, mas demanda a atenção do Poder Público a fim de evitar eventuais distorções no fornecimento de prestações ao lar. Assim, tanto a dimensão negativa como a positiva dos direitos fundamentais devem- se somar e contrabalançar para a garantia plena do direito à convivência familiar. Sempre que se estiver diante de prestações estatais para com o direito à convivência familiar, a leitura liberal da Constituição terá sua importância como contrapeso para o estabelecimento da medida suficiente para a emancipação do homem nos seus diversos papéis sociais, o mesmo valendo para a atuação negativa do Estado, que deve ser equilibrada pelas exigências sociais do fazer governamental. Mas, o que é uma prestação suficiente para a garantia do direito à convivência familiar? Analisando a feição dada às garantias desse direito no seu processo de concretização infraconstitucional, parece-nos que a prestação suficiente é a menor prestação possível para gerar o empoderamento de pais e filhos. Dessarte, o Estatuto da Criança e do Adolescente estabelece em seu art. 100, parágrafo único, VII e IX, dentre os princípios que regem a aplicação de medidas de proteção de Direitos Humanos decidiu que o Estado americano teve responsabilidade na violação dos direitos fundamentais de Jéssica Gonzales – então Jessica Lenahan – e de suas três filhas assassinadas. Ademais a Corte expediu sete recomendação aos EUA a fim de tanto reparar o dano individual à sra. Jessica Lenahan, como também para adotar medidas legislativas e administrativas aptas a combater a violência no lar (dentre elas a de agir para redefinir os esteriótipos que se constroem em torno das vítimas da violência doméstica e combater a discriminação contra elas). Isso fez com que várias organizações em defesa dos direitos das mulheres e das crianças ganhassem força nos Estados Unidos para definir estratégias de implementação das recomendações da Corte Interamericana e de mobilização para a melhor proteção do lar contra a violência doméstica. Nesse sentido, cf. SCHENEIDER, Elizabeth M.; BETTINGER-LOPEZ, Caroline; GOLDSCHEID, Julie; PARK, Sandra S.; DIKE; Ejim; JACOBS, Lisalyn R.; DREW, Margaret; HAVILAND, Mary. Implementing the Inter- American Commission on Human Rights’ Domestic-Violence Ruling. Disponível em: . Acesso em: 15 jun. 2016. 159 por parte dos atores governamentais junto ao lar, o da responsabilidade parental e o da intervenção mínima, pelos quais, respectivamente, “a intervenção deve ser efetuada de modo que os pais assumam os seus deveres para com a criança e o adolescente” e “a intervenção deve ser exercida exclusivamente pelas autoridades e instituições cuja ação seja indispensável à efetiva promoção dos direitos e à proteção da criança e do adolescente”. Pelo prisma da criança e do adolescente, não é o poder público que deve precipuamente garantir suas necessidades básicas, mas sim os seus pais ou responsáveis. Como já firmamos posição no capítulos 3 513 , entendemos que os atores privados estão diretamente vinculados à norma constitucional, como, aliás, demonstra a própria dicção do art. 227 da Constituição (“É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade” os direitos fundamentais ali referidos). E, considerando que as necessidades da criança envolvem um complexo de relações e trocas que vão muito além do que permite a dimensão jurídica – pois envolvem também laços cognitivos, emocionais, intuitivos e imaginativos, que a perspectiva jurídica, tutora de um mínimo de proteção, não pode por si só suprir514 – a prestação estatal nas políticas de família não deve substituir a figura de responsabilidade parental, mas, antes, estimulá-la e apoiá-la no que for preciso. Os limites necessários para a socialização humana são fixados primariamente nas relações domésticas e, nesse contexto, um ambiente arejado de ações exógenas permite melhor o estabelecimento do vínculo e da cumplicidade necessários à constituição do apego entre adultos-cuidadores e petizes.515 Não se trata aqui de negar a importância do Estado para a garantia e expansão da liberdade dos seus cidadãos. É inegável que, tanto no desempenho do seu poder simbólico como num prisma material, o aparato governamental é chamado a proteger, por meio de prestações diretas e indiretas, o desenvolvimento humano. Entretanto, antes de ofertar diretamente um bem ou serviço, o poder público deve verificar em que medida não há nas próprias forças sociais os meios para atingir os fins almejados para uma vida boa na linha defendida por Sustein e Holmes: “a liberdade pessoal, como os americanos valorizam e a experimentam, pressupõe cooperação social manejada pelo governo”.516 513 Item 3.2. 514 Sobre os limites da juridicidade e sua relação com as obrigações morais e a solidariedade, nós discorremos mais adiante neste capítulo. 515 Cf., a propósito, item 3.9, ao tratarmos do conceito de integridade familiar e da sua importância para a consolidação da intimidade e dos vínculos paterno-filiais. 516 No original: “Personal liberty, as Americans value and experience it, presupposes social cooperation managed by government officials”. HOLMES; SUSTEIN, op. cit. 160 O princípio da subsidiariedade da ação estatal para a garantia da liberdade humana pode servir de fundamentos às normativas que orientam as políticas de apoio às famílias no Brasil. Dessarte, os supracitados princípios da “intervenção mínima” e da “responsabilidade parental”, previstos no art. 100, parágrafo único, VII e IX do ECA, e as diretrizes da “matricialidade sociofamiliar” e da “primazia da responsabilidade do Estado no fomento de políticas integradas de apoio à família”, constantes, respectivamente, do Plano Nacional de Assistência Social e do Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do Direito à Convivência Familiar de Crianças e Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária, podem encontrar na noção de subsidiariedade um modelo de ressonância com impacto para a condução dos negócios estatais ao lado da sociedade e dos particulares nas suas dimensões mais específicas. O princípio da subsidiariedade da ação governamental apresenta duas acepções, uma vertical e outra horizontal.517 Na primeira, a subsidiariedade refere-se às atividades prestadas diretamente pelo Estado, porém da forma mais descentralizada possível pela delegação de funções da comunidade maior à comunidade menor.518 Aqui, impende que as ações sejam levadas a cabo preferencialmente pelo ente mais próximo à realidade da pessoa: O princípio da subsidiariedade indica que os entes maiores (a União, por exemplo) não deve fazer aquilo que o Estado pode fazer, assim como o Estado não deve fazer o que o Município pode fazer. A finalidade dos entes maiores é oferecer ajuda ou facilitar, criar mecanismos, para que os entes menores possam realizar ações e políticas públicas que estejam mais próximas das pessoas.519 Já a subsidiariedade horizontal significa que “o auxílio é prestado pela própria sociedade, organizada e estruturada, que, com o apoio do Estado, atua em socorro e apoio das pessoas”.520 A dimensão horizontal aponta, pois, para uma ideia de reciprocidade entre os cidadãos, que cabe ao Estado fomentar. A ideia de subsidiariedade permite a definição do interesse público a partir da ótica do próprio cidadão e dos corpos sociais intermediários, tais como “a família, as autarquias locais, as comunidades religiosas, os sindicatos e as associações empresariais, os partidos políticos, as Universidades etc.”.521 Significa que, sempre que possível, o Estado não deve simplesmente assumir uma atividade, mas sim contribuir para a sua realização pela própria 517 Cf. CAVALCANTI, op. cit., p. 51 a 56. 518 Cf. QUADROS, Fausto de. O princípio da subsidiariedade no direito comunitário após o tratado da união europeia. Coimbra: Almedina, 1995. 519 CAVALCANTI,op. cit., p. 53. 520 Ibid., p. 54. 521 QUADROS, op. cit., p. 18. 161 sociedade, mais apta a definir o que é para si o bem comum. Segundo Thaís Cavalcanti: O Estado subsidiário atua em favor da pessoa, considerando-a capaz de fazer, de escolher, de forma solidária e em favor de toda a sociedade. Quanto mais o Estado pretender substituir a pessoa, mais afastará a formação de uma base social capaz de resolver seus próprios problemas.522 Não nos parece, contudo, que o princípio da subsidiariedade equivalha a uma repaginação da versão primária do laissez-faire liberal, já que a ideia de prestação estatal subsidiária, além de se coadunar com o ideal republicano de autogoverno – pois ali o poder público colabora com a sociedade para a consecução do bem comum –, também permite a aproximação do republicanismo com o liberalismo em sua vertente igualitarista. A ação estatal subsidiária pode-se mostrar imprescindível, em que ganha importância a preocupação com a liberdade em seu aspecto positivo (prestacional).523 Assim, a ideia de ação pública subsidiária não é necessariamente incompatível com um modelo social de governo,524 já que não trata, em princípio, de um determinado tipo de Estado “mínimo ou máximo, mas sim do Estado necessário”.525 Na área do direito da criança e do adolescente, tem-se que o princípio da subsidiariedade encontra espaço de aplicação no ECA, e isso tanto em sua acepção vertical como também na horizontal. Na primeira, vê-se que a diretriz inaugural das políticas de atendimento aos direitos da criança e do adolescente é a da “municipalização do atendimento”, nos termos do art. 88, I, do ECA, 526 e que consiste em uma importante 522 CAVALCANTI, op. cit., p. 55. 523 Discorrendo sobre a aproximação das correntes teóricas do republicanismo e do liberalismo em sua vertente igualitária, Gargarella aduz: “A preocupação do igualitarismo com a liberdade ‘positiva’ das pessoas leva seus defensores a comprometer o Estado, por exemplo, com o fornecimento de certos bens básicos para cada um. Esse fornecimento de bens seria indispensável para que cada pessoa assegure de fato sua autonomia. Essa ideia tão ‘vigorosa’ de autonomia, valorizada pelo liberalismo igualitário e tão exigente em suas demandas com o Estado, é que amplia e aprofunda as áreas de coincidência entre liberais e republicanos”. GARGARELLA, op. cit., p. 214. 524 Segundo José Alfredo de Oliveira Baracho, “A subsidiariedade não deve ser interpretada como um princípio que propõe o Estado mínimo e débil, que se retrae a simples funções de vigilância, resguardo ou arbitragem. Com isto estaria declinando de toda promoção do bem estar, de toda presença ativa para orientar e articular as atividades humanas. Não objetiva destruir as competências estatais, mas reordená-las, de maneira idônea e responsável. O princípio de subsidiariedade não pode converter-se em seu oposto, isto é, o de ante- subsidiariedade. Nesse último, o homem e as sociedades intermediárias não deveriam fazer tudo que é capaz de fazer o próprio Estado. A inversão da fórmula, contrariando a subsidiariedade, leva a uma posição estatista”. BARACHO, José Alfredo de Oliveira. O princípio da subsidiariedade: conceito e evolução. Belo Horizonte: Movimento Editorial da Faculdade de Direito da UFMG, 1995, p. 48. 525 MONTORO, André Franco. Federalismo e o fortalecimento do poder local no Brasil e na Alemanha. Rio de Janeiro: Fundação Konrad Adenauer, 2002. p. 59. 526 Edson Sêda, em publicação lançada à época da promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente, discorre sobre a virada socioassistencial que a Lei 8.069/90 representou para o atendimento dos petizes com relação ao modelo anterior do Código de Menores, onde a atenção era centralizada: “Havia até agora um 162 mudança na feição das prestações estatais com relação ao revogado sistema do Código de Menores, em que os infantes e jovens de cidades de pequeno e médio porte eram transferidos para as grandes capitais a fim de receber atendimento em serviços, não raro, afetos diretamente à União e aos estados.527 Ademais – e agora numa análise horizontal da subsidiariedade – em nenhum momento, as políticas infantojuvenis e de família em vigor no país autorizam o Estado a prescindir dos recursos disponíveis na comunidade para a solução dos conflitos com os quais se depara. Aliás, a lógica é justamente a oposta: os atores sociais precisam dialogar e descobrir as potencialidades das chamadas “redes sociais de apoio”528 a fim de colaborar com as decisões e a construção das soluções no caso concreto. Como informa o Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do Direito de Crianças e Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária (PNCFC): O cotidiano das famílias é constituído por outros tipos de vínculos que pressupõem obrigações mútuas, mas não de caráter legal e sim de caráter simbólico e afetivo. São relações de apadrinhamento, amizade e vizinhança e outras correlatas. Constam dentre elas, relações de cuidado estabelecidas por acordos espontâneos e que não raramente se revelam mais fortes e importantes para a sobrevivência cotidiana do que muitas relações de parentesco. Aos diversos arranjos constituídos no cotidiano para dar conta da sobrevivência, do cuidado e da socialização de crianças e adolescentes daremos o nome de no ‘rede social de apoio’ para diferenciá-la de ‘família’ e ‘família extensa’. É preciso lembrar, nestes casos, que se as obrigações mútuas construídos por laços simbólicos e afetivos podem ser muito fortes, elas não são necessariamente constantes, não contam com reconhecimento legal e nem problema do menor abandonado (ou infrator) que era federal. Para isso havia uma Política de Bem-Estar do Menor que era federal, mas devia ser executada pelos Estados. Mas, é claro, os Estados pediam “ajuda” aos municípios. E havia um “órgão executor” para essa política”. (SÊDA, Edson. A mutação municipal. In: RIVERA, Deodato (Org.). Brasil, criança, urgente: a Lei 8.069/90. São Paulo: Columbus, 1990. p. 13; 55). Conforme esclarece Sêda, na sistemática do ECA, “O município se governará em função dos interesses dos munícipes, seus habitantes, captando recursos e tomando decisões publicas em relação às questões que lhe são afetas. O Estado fará a mesma coisa na defesa dos interesses dos municípios que o compõem. E a União governará os assuntos que realizam aspirações comuns a todos os brasileiros, respeitadas as peculiaridades dos Estados e dos municípios”. Ibid., p. 55. 527 Nesse sentido, DIGIÁCOMO, Murillo José; DIGIÁCOMO, Ildeara de Amorim. Estatuto da Criança e do Adolescente anotado e interpretado. 5. ed. Natal: Ministério Público do Estado do Rio Grande do Norte, 2013. Ainda segundo os autores, “a ‘municipalização’ não é sinônimo de ‘prefeiturização’, ou seja, de que é o município que deve arcar sozinho” com a atenção pública, mas se refere à uma responsabilidade descentralizada, porém também compartilhada, com as demais pessoas jurídicas de direito público, quais sejam a União e o estado respectivo. Ibid., p. 117. 528 Sobre o valor das redes sociais para a efetivação de políticas de promoção dos direitos humanos, informa Paulina do Carmo Arruda Vieira Andrade: “O conceito de rede social, como o conjunto de relações interpessoais concretas que vinculam indivíduos a outros indivíduos, vem se ampliando dia a dia, à medida que se percebe o poder da cooperação como atitude que enfatiza pontos comuns em um grupo para gerar solidariedade e parceria”. ANDRADE, Paulina do Carmo Arruda Vieira. Redes sociais. In: ANDRADE, Arthur Guerra de (Coord.). Integração de competências no desempenho da atividade judiciária com usuários e dependentes de drogas .Brasília: Ministério da Justiça, Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas, 2011. p. 235. 163 pressupõem obrigações legais.529 Por esse motivo a Constituição Federal, em seu art. 227, caput, reconhece à criança e ao adolescente o direito fundamental à convivência comunitária como um complemento de sua vivência familiar e, à luz da norma constitucional, a todo momento o PNCFC reconhece a importância do entorno social para proporcionar um ambiente de segurança afetiva para a família, no qual o meio acolhe os pais e os pais acolhem os filhos.530 Do Estado, pois, se espera que supra as necessidades dos pais no que de “mínimo social”531 falte-lhes, mas, ainda assim, identificando na comunidade as forças necessárias a colaborar para o fortalecimento dos vínculos familiares, sempre privilegiando algo mais do que a concessão de bens fungíveis, ou seja, o oferecimento de meios e oportunidades para os genitores desenvolverem suas aptidões parentais, ou de outro tipo que potencializem sua função cuidadora. Como visto anteriormente, 532 porque os profissionais e equipamentos governamentais não dispõem do tempo, meios ou sensibilidade necessários para suprir a contento as necessidades socioafetivas sempre cambiantes da criança e do adolescente, nossas políticas para o público infantojuvenil sempre privilegiam a sua manutenção em um lar, primeiramente o natural, depois o substituto e, mesmo em caso de imprescindível abrigamento do petiz, o acolhimento numa família tem privilégio sobre o institucional.533 Não se trata, aquí, de justificar a escusa estatal em não ofertar serviços essenciais para a população infantojuvenivel, mas tão somente estabelecer a premissa de que o governo não pode tudo e, portanto, o período das instituições totais está esgotado em matéria de assistência social aos mais novos e suas famílias. A partir da noção de incompletude 529 BRASIL. Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente. Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do Direito de Crianças e Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária. Brasília: Conanda, 2006. p. 34-35. 530 Segundo o PNCFC: “Os espaços e as instituições sociais são, portanto, mediadores das relações que as crianças e os adolescentes estabelecem, contribuindo para a construção de relações afetivas e de suas identidades individual e coletiva. Nessa direção, se o afastamento do convívio familiar for necessário, as crianças e adolescentes devem, na medida do possível, permanecer no contexto social que lhes é familiar. Além de muito importante para o desenvolvimento pessoal, a convivência comunitária favorável contribui para o fortalecimento dos vínculos familiares e a inserção social da família”. BRASIL. Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente. op. cit., p. 32. 531 Nesse sentido, o art. 1º da Lei Orgânica de Assistência Social estabelece que “A assistência social, direito do cidadão e dever do Estado, é Política de Seguridade Social não contributiva, que provê os mínimos sociais, realizada através de um conjunto integrado de ações de iniciativa pública e da sociedade, para garantir o atendimento às necessidades básicas”. Disponível em: . Acesso em: 1º jun. 2016. 532 Cf. item 3.9. 533 Nesse sentido, cf. ECA, art. 19, caput; e 34, § 1º. 164 institucional é que se propõe, por exemplo, que os serviços de acolhimento institucional de crianças e adolescentes (abrigos, casas-lares, repúblicas e famílias acolhedoras) não funcionem como uma ilha, mas se abram e se sirvam dos serviços, públicos e privados, da comunidade em que estão inseridas.534 A partir dessas constatações, pode-se investigar melhor em que medida deve ser lida a responsabilidade primária do poder público para com a família e os direitos infantojuvenis a que se refere o ECA em seu art. 100, parágrafo único, III. Tal responsabilidade não autoriza os atores governamentais a um agir isolacionista, de que se adjudicam decisões ao lar. Responsabilidade primária não é o mesmo que responsabilidade privativa. Para os membros da família, a dignidade da pessoa humana, na sua acepção não- instrumentalizadora, visa à sua emancipação. Contudo, em seu viés relacional, como já visto, a dignidade indica a necessidade de prestações complementares que forneçam aos membros do lar os meios materiais aptos à construção de uma vida digna. E tais prestações, pelo princípio administrativo da subsidiariedade, apontam para um Estado que se reconhece incompleto e, portanto, precisa dos esforços sociais e da solidariedade para promover consigo os direitos fundamentais a que está constitucionalmente obrigado. Portanto, é no sentido de um benéfico reconhecimento de sua incompletude institucional que deve ser lida a responsabilidade primária do poder público para com a garantia dos direitos fundamentais da criança, do adolescente e de sua família. A atuação subsidiária do Estado, ao permitir o arejamento das ações públicas para dar espaço à participação da sociedade, melhor contribui para a concretização da pluralidade de expectativas em torno de um ideal de vida para os seres humanos. 535 Diferentes comunidades, mesmo que sob a mesma ordem jurídica, permitirão que cada indivíduo se 534 Segundo as Orientações Técnicas para os Serviços de Acolhimento para Crianças e Adolescentes, no capítulo referente às “Orientações Metodológicas” para o reordenamento dos serviços, uma das diretrizes do atendimento é a da “Articulação Intersetorial”, pela qual “Os Serviços de Acolhimento integram o Sistema Único de Assistência Social (SUAS), tendo interface com outros serviços da rede socioassistencial, quanto com demais órgãos do Sistema de Garantia de Direitos. Sua atuação deve basear-se no princípio da incompletude institucional, não devendo ofertar em seu interior atividades que sejam da competência de outros serviços. A proteção integral a que têm direito as crianças e os adolescentes acolhidos deve ser viabilizada por meio da utilização de equipamentos comunitários e da rede de serviços local”. BRASIL. Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Orientações Técnicas para os Serviços de Acolhimento para Crianças e Adolescentes. 2. ed. Brasília: Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome, 2009. p. 43. 535 Como informa Nozick, sobre o tipo de sociedade ideal, a questão é que essa não existe de forma objetiva, mas conformes os valores e preceitos de vida de cada indivíduo: “A conclusão a tirar é que não haverá um único tipo de comunidade nem um único modo de vida a viver na utopia. A utopia consiste de utopias, de muitas e diferentes comunidades, nas quais as pessoas levam modos diferentes de vida sob instituições diferentes”. NOZICK, Robert. Anarquia, Estado e utopia. Trad. Rui Jugmann. Rio de Janeiro: Zahar, 1991. p. 337. 165 integre àquela que mais se aproxima do seu ponto de vista entre valores sociais concorrentes. E o Estado, de per si, não tem condições de representar a pluralidade de ideias circulantes no meio social, pois essas podem-se desenvolver dentro e fora do tanger público. O governo pode, quando muito, observá-las e proteger, naquilo que não atentarem contra alguma liberdade constitucional. Por esse prisma, é de se pensar até que ponto um aparato governamental acostumado a adjudicar decisões à sociedade ou ao lar não termina por atrapalhar a formação de uma coesão social calcada em laços de solidariedade, tão importantes para a constituição de um Estado com pretensões sociais como o brasileiro.536 O uso dos códigos do direito, atrelado ao seu binômio de licitude e ilicitude, é insuficiente de per si para atender ao primeiro objetivo da República Federativa do Brasil, que é a construção de “uma sociedade livre, justa e solidária”537. Se justiça requer o direito, a solidariedade, demanda argumentos outros que não os de coercibilidade, pois, caso se imponha a alguém a obrigação de ser solidário com outrem, o resultado em si será um contrassenso à virtude da solidariedade – a qual, por se referir ao foro íntimo de cada um, não pode ser sindicalizada com critérios de externalidade como os do direito. Do entrelaçamento entre justiça e solidariedade – mas não dá substituição de uma por outra, como por vezes ocorre no âmbito do direito de família, como será visto no próximo capítulo –, é que se poderá alcançar o ideal de liberdade, a qual pressupõe fatores externos e internos de regulação social. Considerando, pois, a importância do valor político da participação social para as políticas da família, bem como por reconhecer que a dimensão jurídica é, por si só, insuficiente para atender a todo o complexo de necessidades inerentes ao pleno desenvolvimento da criança e do adolescente, faz-se necessário que, estabelecida a noção de subsidiariedade do agir estatal perante a sociedade, investigue-se agora como a solidariedade e as obrigações morais podem-se relacionar com o direito para melhor garantir os direitos fundamentais dos pequenos. Esse é um tema que é pouco estudado. Mas, é justamente por isso – e já aproximando-se do desfecho da fundamentação teórica percorrida ao longo desta pesquisa – que aqui se quer destacá. 536 Sobre o valor político da solidariedade, descorrer-se-á mais adiante neste capítulo. 537 CF, art. 3º, I. 166 5.3 A RELAÇÃO COMPLEMENTAR ENTRE A JURIDICIDADE E A SOLIDARIEDADE PARA A GARANTIA DO DIREITO À CONVIVÊNCIA FAMILIAR Partindo de uma concepção kantiana das obrigações morais, a filósofa Onora O’Neill defende que os interesses da criança estão melhor resguardados se a sua fundamentação teórica se der precipuamente a partir de uma concepção ético-moral das obrigações do que propriamente de cunho jurídico.538 Na sistematização de Kant, a moral é o gênero que se especifica em normas de direito e normas éticas.539 Dessa forma, as normas reguladoras da conduta humana são, genericamente, normas morais e podem-se referir tanto à orientação externa das ações (caso das regras de direito) como à normatização interior do agente (caso das normas éticas). Nas primeiras, a conduta regula-se exógena e objetivamente; nas segundas, os ditames ocorrem no foro íntimo do indivíduo e se referem à assimilação por si da retidão conduta, que o fazem se portar conforme tal compreensão, tornando, assim, virtuosa sua ação. O cumprimento de um contrato, por exemplo, mesmo que realizado espontaneamente pelo devedor, inda que com má vontade, não o sujeita a qualquer sanção jurídica. Entretanto, sob uma perspectiva ética será possível questionar o virtuosismo de tal conduta. Se, porém, a pactuação é cumprida tanto voluntariamente como de bom grado, há aí uma aproximação entre o dever jurídico (coercível) e o dever de virtude (não-coercível). As obrigações éticas são denominadas, na teoria kantiana, imperfeitas. Tal imperfeição, porém, não significa que elas sejam moralmente insuficientes, mas tão somente que lhes faltam os mecanismos de verificação e exigibilidade presentes nas normas de direito – que, nesse sentido, representam obrigações perfeitas, ou, mais propriamente, capazes de se aperfeiçoarem no plano objetivo através da coerção sancionatória.540 As obrigações imperfeitas, portanto, referem-se às ações virtuosas, pois nelas o agente porta-se positivamente para com a norma não em decorrência de uma regulação externa, mas antes porque a conduta é devida no seu foro íntimo e desejada por si. O direito, 538 O’NEILL, Onora. Children’s rights and children’s rights. In: ALSTON, Philip; PARKER, Stephen; SEYMOR, John. Children, rights, and the law. New York: Cleareador Press, 1992. p. 24-42. 539 Cf. TERRA, Ricardo. Kant e o direito (ePub). Rio de Janeiro: Zahar, 2004. 540 Segundo Kant: “Quanto mais amplo o dever, tanto mais imperfeita, portanto, é a obrigação do ser humano para a ação. Quanto mais, porém, o ser humano aproxima do dever estrito (jurídico) a máxima de observância do dever (em sua intenção [Gesinnung]), tanto mais perfeita é sua ação virtuosa. Os deveres imperfeitos são, portanto, unicamente deveres de virtude. O cumprimento dos mesmos é mérito (meritum) = + a; sua transgressão, porém, não é imediatamente demérito (demeritum) = -a, mas antes apenas ausência de valor moral = 0, a menos que para o sujeito seja um princípio não se conformar àqueles deveres” (Grifos nossos). KANT, Immanuel. Metafísica dos costumes (ePub). Tradução: Clélia Aparecida Martins. Rio de Janeiro: Vozes, 2013. Comprei via Kindle, não dá para indicar as páginas. 167 por sua vez, rege as ações em sua externalidade e, por ser o cumprimento ou descumprimento de suas regras objetivamente aferível, o inadimplemento de uma obrigação jurídica pode desencadear mecanismos exteriores para a implementação da conduta. Daí porque Hans Kelsen refere-se às normas de direito como sendo um “comando despsicologizado”.541 As obrigações éticas, por seu turno, regulam um espaço que o direito não pode alcançar: o reino das intenções. As obrigações jurídicas, por se referirem aos elementos exógenos da conduta – as cogitações do autor não interessam ao direito enquanto não dão à luz uma determinada ação542 –, referem-se a atos humanos específicos, que serão taxados a partir dos códigos de licitude e ilicitude do sistema jurídico. As obrigações morais, entretanto, dão ao agente uma larga margem de adimplemento, pois lhe permitem o alcance de um determinado fim por meio de um sem número de ações disponíveis. Um pai, por exemplo, tem o dever legal de alimentar sua prole (campo de licitude), e, se não o fizer, sua desídia é facilmente observável e o poderá levar a sofrer uma sanção jurídica. Entretanto, quando se analisa o dever de esse pai ser amoroso, por mais que afirmemos que há para a sua criança o correspondente direito de ser amada, vê-se que a satisfação da obrigação daí decorrente comporta uma variedade de atitudes, que suscitariam não pouco debate sobre o que efetivamente constituiria uma ação de amor. Por exemplo: um pai que não sabe expressar afeto infringe uma norma moral de amor? Uma mãe que não escuta devidamente sua filha pode sofrer algum tipo de reprovação? Um pai que, até meados de 2014 (antes da aprovação da Lei da Palmada), se utilizasse de castigos físicos moderados na educação de seus filhos infringiria algum tipo de regra moral? Essas questões não comportam uma resposta unívoca, pois os deveres de cunho ético permitem amplas formas de cumprimento, já que, diferentemente das regras de direito – que, com seu binômio de sim e não, apontam para o que é justo, ou seja, objetivamente esperado do ser humano conforme regras previamente estabelecidas –, as normas morais pautam-se em valores cujos códigos de análise das condutas (amor, afeto, solidariedade etc.) são elásticos e variáveis caso a caso.543 Se se partir do pressuposto de que no amor não há limites, torna-se 541 Aduz o filósofo austríaco: “Se a regra jurídica é um comando, ela é assim um ‘comando despsicologizado’, um comando que não implica uma vontade no termo psicológico do termo. A conduta prescrita pela regra de Direito é ‘exigida’ sem que nenhum humano tenha de ‘querê-la’ num sentido psicológico”. KELSEN, Hans. Teoria geral do Direito e do Estado. 3. ed. Trad. Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 49. 542 Segundo o brocardo latino, Cogitationis poenam nemo patitur (“Ninguém pode sofrer pena pelo pensamento”). 543 Por isso, para Kant: “Os deveres éticos são de obrigação ampla, ao passo que os deveres jurídicos de obrigação estrita". KANT, op. cit. 168 assaz problemático estabelecerem-se limites para as obrigações daí decorrentes. E é justamente pelo caráter amplo das obrigações imperfeitas e por as mesmas não se contentarem tão somente com um mínimo existencial que O’Neill prefere-as como fundamento obrigacional primeiro da relação entre adultos e crianças. Para a autora, as obrigações morais imperfeitas são mais aptas do que as obrigações jurídicas para atender às necessidades de amor, carinho e atenção de que a criança carece para o seu pleno desenvolvimento, pois, enquanto as segundas estabelecem patamares mínimos de aferição – que simplesmente não satisfazem as demandas exigíveis pelo afeto –, as primeiras apontam para o máximo, o melhor, que se pode esperar da conduta humana: Os direitos assim institucionalizados não irão exaurir o conteúdo de uma obrigação imperfeita fundamental. As obrigações de papeis como o de pais ou professor ou assistentes sociais são comumente tomadas como requerendo mais do que a conformidade com aqueles direitos institucionalizados para o respectivo papel. […] Em particular, pais ou professores que perfazem tão somente suas obrigações perfeitas irão falhar enquanto pais ou professores. Eles não iriam simplesmente falhar em ser pais ou professores santos ou heróicos, quer dizer, em se omitir para com ações supersacrificiais. Eles falhariam em muito do que consideramos claramente obrigatório para pais e professores.544 (Tradução livre) A distinção feita por O’Neill, remete ao que a filosofia política distingue como ética do cuidado e ética da justiça.545 Em linhas gerais, pode-se dizer que, enquanto a primeira remete a normas construídas a partir da especificidade dos sujeitos relacionais, a segunda refere-se a relações identitariamente inespecificadas, e isso como um ditame decorrente da justiça. Na ética do cuidado, a intermediação entre os sujeitos dá-se com atenção às particularidades de cada um dos agentes relacionais. Tais relações são calcadas em valores como a solidariedade, o afeto, a fraternidade, tratando de valorizar o indivíduo em sua subjetividade e características próprias. Por isso, a referência ética aqui tratada tem especial pertinência para a convivência familiar, em que os laços afetivos que ligam atores do lar desenvolvem-se com atenção às características pessoais de cada um dos participantes da 544 No original: “The rights so institutionalized will not exhaust the content of a fundamental imperfect obligations. The obligations of roles such as parent or teacher or social worker are commonly taken to require more than meeting those rights which are institutionalized with the role. [...] In particular parents or teachers who meet only their perfect obligations would fail as parents or teachers. They would not merely fail to be saintly or heroic parents or teachers, that is, omit supererogatory action. They would fail in much that we take to be straightforwardly obligatory for parents and teachers”. O’NEILL, op. cit., p. 27. 545 Discorrendo sobre as éticas do cuidado e da justiça no âmbito do feminismo – mas cujos desdobramentos guardam forte pertinência não só para as discussões de gênero, mas outrossim para as relações familiares –, cf. KYMLICKA, Will. Filosofia política contemporânea. Tradução: Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes. 2006. 169 relação doméstica. Um pai ou uma mãe aprendem, por exemplo, a lidar com a característica de cada filho e vão adaptando a si e ao processo educativo conforme o temperamento, a idade, o modo de ser, enfim, do rebento. Da mesma forma, os filhos também aprendem desde cedo a conhecer os traços da personalidade de seus genitores e então passam a construir uma identidade relacional própria com cada um de seus cuidadores, ora tendo um como referência, ora o outro, ora ambos. Por sua vez, a ética da justiça aponta precipuamente para relações abstratas, em que os direitos e os ônus da relação são previamente estabelecidos, segundo normas firmadas, quer no plano legislativo, quer no plano contratual, por sujeitos autônomos sem dar atenção precipuamente a suas características pessoais. O foco aqui desloca-se mais para o conteúdo da obrigação do que, propriamente, para as peculiaridades dos atores em si. Quando as pessoas firmam um contrato de compra e venda de um automóvel, por exemplo, elas fazem-no levando em consideração o objeto da avença – qual seja o veículo e o valor a ser quitado –, e não tanto a subjetividade, o temperamento, os gostos pessoais dos convenentes. Mesmo que se levem em conta alguns aspectos pessoais, por exemplo, do comprador – tal como a sua situação no mercado, sua renda mensal, a existência de bens de raiz em seu nome etc. –, as mesmas não são levantadas com atenção à sua subjetividade psíquica, mas sim em referência à sua subjetividade jurídica, isto é, de pessoa física, sujeito de direito obrigacional, que se desatrela da imagem concreta de um ser com desejos e anseios. Argumenta-se que a regulação das relações entre os indivíduos não pode se dar com foco para as dores subjetivas dos contratantes, pois, se assim o fosse, o cumprimento das obrigações assumidas ficaria sujeito a fatores imprevisíveis, tal como o humor, o temperamento e outras contingências humanas.546 Por esse prisma, vê-se que a lógica da solidariedade, se aplicada univocamente às relações contratuais, levaria a um estado tal de incerteza jurídica que colocaria em risco a harmonia social buscada pelo direito. Pois, enquanto a ética da justiça pauta as ações na busca de um mínimo de bens à disposição do desenvolvimento humano, no cuidado, em virtude da solidariedade, do afeto e amizade que lhes são inerentes, as ações apontam para o máximo, o melhor que de si o ser humano pode extrair, especialmente, em contexto de relações familiares. Por esse motivo, O’Neill, mesmo sem negar a importância da retórica dos direitos para a criança, entende que a abordagem das suas necessidades pelo prisma das obrigações 546 KYMLICKA, op. cit. 170 imperfeitas, em que os códigos das relações constroem-se a partir da ética particularizadora do cuidado – diferentemente dos princípios de indiferenciação relativos à ética da justiça –, melhor atende aos interesses dos petizes: Nossa capacidade de agência é vulnerável aos outros de muitas formas – e mais particularmente em certos estágios de nossas vidas. A menos que as crianças recebam tanto o cuidado como a socialização adequados, elas não sobreviverão. Se elas meramente sobreviverem, elas não se tornarão agentes competentes: sem educação e instrução apropriadas para a vida em sociedade, faltarão às crianças as capacidades de si requeridas para atuar no seu contexto social específico. Uma pluralidade de seres racionais que são também vulneráveis não pode, portanto, agir universalmente com base em princípios de indiferença mútua.547 (Tradução livre) Entretanto, as lógicas do cuidado e da justiça não representam categorias tão antagônicas como uma apresentação dual de suas respectivas éticas dá a entender.548 Will Kymlicka demonstra em seus estudos como uma visão dicotômica do cuidado e da justiça deixa de captar as nuances de cada uma em seus desdobramentos. Dessarte, por exemplo, o olhar da especificidade, típico do cuidado, interessa à teoria da justiça, na medida em que amplia a capacidade moral do agente julgador: Mesmo que a justiça envolva a aplicação de princípios abstratos, as pessoas só desenvolverão um “senso de justiça” eficaz se adquirirem um amplo leque de capacidades morais, entre elas a capacidade de percepção solidária e imaginativa das exigências da situação específica.549 Negar o desenvolvimento de tais capacidades significaria o fracasso de uma teoria da justiça na sua perspectiva moral, pois não se pode esperar que os deveres sociais sejam levados a cabo “por um agente moral frio e sem sentimento”.550 Ademais, mesmo construções teóricas como a de John Rawls, referentes, segundo seus críticos, a um “outro generalizado” – que na sua posição original está jungido ao seu “véu da ignorância” –, em oposição a um “outro concreto”551, “é, ela própria, centralmente dependente da capacidade das pessoas morais de se interessarem pelos outros e demonstrarem 547 No original: “Our agency is vulnerable to one another in multiples ways, and particularly vulnerable at certain stages of our lives. Unless children receive both physical care and adequate socialization, they will not survive; if they merely survive they may not become competent agents: without education and instruction appropriate to their society they will lack capacities to act that are needed to function in the specific contexts available to them. A plurality of distinct rational beings who are also needy cannot therefore universally act on principles of mutual indifference”. O’NEILL, op. cit., p. 34. 548 Para Carol Gilligan, por exemplo, as “vozes” decorrentes de uma ética do cuidado e de uma ética da justiça são “fundamentalmente incompatíveis”. Apud KYMLICKA, op. cit., p. 341. 549 Ibid., p. 344. 550 SOMMERS, apud KYMLICKA, op. cit., p. 345. 551 Nesse sentido, BENHABIB, apud KYMLICKA, op. cit., p. 353. 171 cuidado por eles” 552 , como, a propósito, demonstra o ideal do liberalismo igualitário, preocupado com a liberdade das pessoas enquanto valor positivo. Por outro lado, para a ética do cuidado, o valor da justiça também representa a importação de valores significativos para a garantia da dignidade humana em sua subjetividade. É a partir da ideia de valorização das injustiças objetivas – ao invés da dor subjetiva – operada pelos teóricos da justiça que se pôde questionar posições de injustiça na sociedade inda que no bojo da relação concretamente considerada o ser oprimido assim não se visse.553 Um escravo do século XVIII se poderia ver acomodado à sua posição social; uma mulher do século XIX se poderia se conformar à posição de sujeição para com seu marido. Entretanto, a ausência de dor subjetiva verificável não impediu a rediscussão da essência da dignidade humana e dos valores étnicos ou de gênero, segundo critérios equânimes de justiça.554 Tudo isso demonstra que, no trato social, não raramente a resposta adequada passa por um olhar generalizado ao invés de um contemplar específico. E, mesmo que na filosofia política exista certo consenso em torno da melhor acomodação da ética do cuidado no trato com as crianças555, isso não significa que ali os valores da justiça não tenham pertinência. Como informa Kymlicka: “Deveríamos dizer que o cuidado se aplica a relações com dependentes ao passo que a justiça se aplica a relações com adultos autônomos? Um problema é que a distribuição do cuidado é, ela própria, uma questão de justiça”556. Temos então que é mais producente ao direito a compreensão de que o valor do cuidado – que ora representa-se como os laços de solidariedade – e o valor da justiça – a que 552 OKIN, S. apud KYMLICKA, Will. op. cit., p. 354. 553 Nesse sentido, KYMLICKA, Will. op. cit. 554 Segundo afirma Kymlicka, “A visão de que as dores subjetivas sempre dão origem a direitos morais não é apenas injusta, ela pode ocultar a opressão. As dores subjetivas estão ligadas a expectativas, e sociedades injustas criam expectativas injustas. […] Os homens esperam que as mulher cuidem de suas necessidades e, portanto, sentem-se subjetivamente magoados sempre que se requer que compartilhem os fardos da vida doméstica. […] Os opressores sentirão agudamente qualquer perda de privilégio, ao passo que os oprimidos são muitas vezes socializados para que não sintam dor subjetiva pela sua opressão”. KYMLICKA, op. cit., p. 362. 555 Kymlicka informa que a rejeição da dor subjetiva como a base para os direitos morais na obra de John Rawls é plausível contanto que a abordagem se faça com base na relação de adultos interagindo na vida pública, “ao passo que os indefesos, os doentes e os jovens são mantidos seguramente fora da visão”. Ibid., p. 369. Tal conclusão leva a crer que há uma aproximação entre os ensinos de Rawls e os de O’Neill, ao apontarem que a ética do cuidado, com sua base epistemológica das obrigações imperfeitas, tem uma particular importância no que se refere à condição da criança nas suas interações com o mundo adulto. Segundo O’Neill: “Há boas razões para pensar que o paternalismo é muito do que é eticamente necessário para lidar com as crianças, mesmo que ele seja inadequado para lidar com pessoas e jovens maduros” (tradução livre). No original: “There are good reasons to think that paternalism may be much of what is ethically required in dealing with children, even if it is inadequate in dealings with mature and maturing minors”. O’NEILL, op. cit., p. 40. 556 Ibid., p. 370. 172 se referirá como laços de juridicidade – não precisam necessariamente ser teorias contrapostas das relações humanas, mas, pelo contrário, podem representar momentos de abordagens distintas tanto para a relação mantida entre as pessoas na sua vida cotidiana, como também para as relações que os particulares mantêm verticalmente com o Estado. Tanto se podem verificar as caraterísticas da solidariedade no trato horizontal das pessoas físicas assim como os da juridicidade. De igual modo, na ligação vertical entre os cidadãos e o poder público podem também coexistir ambos os valores. A questão que se afigura primordial então não é mais saber qual o fundamento da relação, mas sim investigar sobre que bases ela se assenta precipuamente – se em bases de juridicidade ou de solidariedade – e de que forma o fundamento contraposto informa o vínculo concretamente considerado. Quando particulares firmam um negócio – manutenção do carro, construção de um imóvel, compras no supermercado etc. –, trata-se de uma pactuação em que os fundamentos jurídicos nela são os proeminentes: espera-se, de parte a parte, o cumprimento das obrigações assumidas. Mas a solidariedade e os valores da subjetividade também podem-se fazer presentes na relação. Pode-se esperar, por exemplo, o empenho e a diligência dos contratantes em adimplir para com seus débitos, dando o melhor de si; pode-se almejar o bom desempenho moral no perfazimento da obrigação contratual, mediante cordialidade e solicitude. Esses valores, apesar de não serem fortes o suficiente para fundamentar a relação jurídica, por certo podem-na informar e arejar, o que terminará criando um cenário favorável para que outros contratos jurídicos possam-se firmar. Aliás, em tempos de redes sociais, os valores da juridicidade e solidariedade estão cada vez mais integrados nos negócios jurídicos firmados virtualmente, em que cada uma das partes da avença avalia (literalmente) a outra ao final das tratativas e isso fica publicizado nos respectivos sites de compra, através do “perfil” ou “histórico” do vendedor e comprador. Nas relações familiares e de amizade, por sua vez, os vínculos ali estabelecidos têm para as partes uma especial fundamentação sobre a solidariedade. O amor dos pais para com seus filhos não se desenvolve precipuamente por conta de suas obrigações jurídicas. E, por outro lado, a dependência física e afetiva de uma criança aos seus cuidadores não ocorre por respeito a uma determinada norma de direito, mas, primeiramente, em virtude de uma normativa natural calcada sobre o afeto.557 557 Por normas naturais, refere-se aquí, específicamente, ao conceito de dupla dependência a que Winnicott se refere como sendo o duplo grau de dependência de um bebê para com seus pais: primeiramente, por precisar 173 Enquanto sentimento, os valores do afeto não são forçados externamente: são, nos termos kantianos, virtudes. Entretanto – e então enfocam-se os aspectos jurídicos das relações de cuidado –, podem-se criar, e inclusive forçar oportunidades para o desenvolvimento afetivo (caso do direito de visita assegurado judicialmente) ou para o afastamento de empecilhos para a sua gênese (caso do enfrentamento à alienação parental). Assim, mesmo que se confirme a fundamentalidade das obrigações imperfeitas para a análise dos laços de pais e filhos, isso não implica negar a importância da dimensão do direito para tal relação, pois será a juridicidade que, em última instância e de forma subsidiária, resguardará o lar como um espaço de construção e consolidação do afeto, sempre que o cuidado entre os familiares mostrar-se ou insuficiente ou inexistente. Sempre que o Estado trabalha com as regras da solidariedade e as da juridicidade não como complemento umas das outras, mas como sucedâneo, há aí atores do poder público o considerável risco de atuarem ou excessivamente (quando os fundamentos da solidariedade são trocados pelos do direito) ou tibiamente (quando os fundamentos do direito são trocados pelos da solidariedade) sobre as relações sociais, laborando de um excesso ao outro, mas longe de um almejado equilíbrio. Não se pode esperar que obrigações sociais regidas por normas de justiça fundamentem-se primordialmente sobre a solidariedade. O fundamento primeiro de um contrato de compra e venda é a sua base jurídica, que dá proteção às eventuais pretensões resistidas das partes. Não fosse assim, tería-se uma perigosa lacuna para a estabilização social e haveria uma proteção fraca para as relações de direito. É essa crítica, a propósito, que faz com que alguns teóricos, tal como apontado no item 4.3, tomem como frágil a fundamentação teórica em torno dos direitos de terceira geração, os direitos da solidariedade: neles, há uma expectativa pueril de que a solidariedade possa regular a interação entre partes com interesses opostos e, não raro, forças distintas. Os direitos, como afirmam Sustein e Holmes, precisam ter “dentes”.558 Do mesmo modo, querer que os códigos da juridicidade regulem relações primariamente calcadas sobre valores como o afeto, a solidariedade e a amizade pode importar no efeito reverso ao pretendido: o ato liberal de amor – juridicamente imperfeito, o neonato do cuidado adulto para sobreviver; em segundo lugar, por sequer ter o petiz consciência de tal dependência. WINNICOTT, Donald W. A família e o desenvolvimento individual. 4. ed. Trad. Marcelo Brandão Cipolla. São Paulo: Martins Fontes, 2011. 558 “Os direitos, num sentido legal, têm ‘dentes’. Eles são, portanto, tudo menos inofensivos ou inocentes” (tradução livre). No original: “Rights in the legal sense have ‘teeth’. They are therefore anything but harmless or innocent”. HOLMES; SUSTEIN, op. cit. 174 mas virtuoso e espontâneo – pode se colocar em confronto com a política governamental por não ver nela o referencial adequado para sua relação. É isso o que leva a tecer uma crítica à ideia republicana que, numa perspectiva internalista, admite o uso do aparato estatal, inclusive no plano coercitivo, para o cultivo de certas virtudes formadoras do bom cidadão.559 Para o republicanismo, o homem publicamente virtuoso é aquele que se coloca preocupado com o bem comum, sabendo, portanto, distinguir e dar prevalência aos interesses da coletividade antes dos seus. Entretanto, quando se parte da ideia de que as normas de direito, com seus dentes, podem-se colocar como uma ferramenta forjadora de virtudes, é de se perquirir se não há aí um contrassenso para com a realização de um valor tão espontâneo como a solidariedade: o cidadão solidário o é sponte propria ou o é por medo? A solidariedade pode ser artificialmente produzida mediante sanções? Trabalhando os conceitos de justiça moral e justiça cívica, Pinzani propõe a complementação – e não a substituição – das teorias da justiça tradicionais por uma teoria da solidariedade. Enquanto a justiça cívica se refere às obrigações imperfeitas, relativas à ética, a justiça moral aponta para os deveres incondicionados ou perfeitos, tais como os de natureza jurídica. Para o autor, mesmo não se tratando de deveres incondicionados, os laços da solidariedade são politicamente relevantes.560 Concordamos com a ideia de Pinzani. A importância política da solidariedade apresenta-se de forma complementar à do direito, cabendo àquela o arejar das obrigações jurídicas, trazendo-lhes fundamentos outros que não os de imperatividade, capazes de diminuir o fardo normativo e de se integrarem aos mecanismos de regulação da vida em sociedade. A integração entre juridicidade e solidariedade aqui defendida não equivale, porém, a fazer desta um valor puramente jurídico, com seus comandos coercitivos (seus dentes), o que importaria numa negação da própria ideia de solidariedade em si, que é, antes de tudo, uma virtude.561 559 Nesse sentido, cf. GARGARELLA, op. cit. 560 PINZANI, Alessandro. Reconhecimento e solidariedade. ethic@ – Revista Internacional de Filosofia Moral. v. 8, n. 3, maio 2009. Florianópolis: Núcleo de Ética e Filosofia Política da UFSC, p. 101-113. 561 A mistura dos fundamentos dos conceitos de juridicidade e solidariedade, por exemplo, parece ocorrer na obra de Rodrigo Pereira da Cunha, que, ao tratar do princípio da solidariedade no direito de família, cita Paulo Lôbo, para quem: “A solidariedade, como categoria ético e moral que se projetou para o mundo jurídico, significa um vínculo de sentimento racionalmente guiado, limitado e autodeterminado que compele à oferta de ajuda, apoiando-se em um mínima similitude de certos interesses e objetivos, de forma a manter a diferença entre os parceiros na solidariedade”. (Grifos nossos). Apud CUNHA, Rodrigo Pereira da. Princípios fundamentais norteadores do direito de família. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 225. Se por compelir se quer referir ao comando moral, voltado ao foro interno da pessoa e que a move a um fim, a conclusão é plausível. Entretanto, se o compelir aqui empregado recebe uma dimensão jurídica, o valor da 175 Se o Estado, porém, insiste em trocar os códigos de relações humanas específicas, há o risco de se desnaturar a essência dos laços tratados. Pois, ao se intentar fazer da solidariedade o fundamento do direito ou o direito o da solidariedade, pode-se fazer com que, no primeiro caso, o direito se afrouxe e deixe de ser directo, e, no segundo, a solidariedade se enrijeça e deixe de ser solidariedade. Uma abordagem que não entrelace os aspectos da justiça e do cuidado inerentes às relações familiares é incapaz de dar conta das relações estabelecidas entre pais e filhos, no bojo das quais as éticas pública e privada ali presentes não se anulam, mas dão passagem às reflexões e aos empuxos de sua contraparte. Pensamos que muito da inefetividade da Lei da Palmada deve-se a isto: o Estado quis regular proibitivamente aspectos importantes de uma relação cuja ética normativa é precipuamente a da solidariedade, não a do direito. O resultado então foi uma regulação excessiva e de baixa efetividade – pelo menos, até este momento. Tais excessos tendem a ocorrer com maior frequência sempre que na relação privada regulada pelo Estado houver traços de hipossuficiência em um dos sujeitos de direito e o poder público colocar-se na condição de seu tutor (parens patriae). Portanto, a abordagem complementar entre ética e justiça interessa a este estudo, pois essa interação melhor permitirá a aproximação do Estado aos assuntos da família, na medida em que integra importantes aspectos do direito e da solidariedade que definem os papéis dos atores do lar. A família é um espaço de solidariedade sobre a qual a juridicidade se faz presente a fim de garantir os mínimos de cuidado e as posições sociais dos atores domésticos reconhecidas pela ordem jurídica. Cumpre então, antes de debruçar-se sobre temas específicos e ver como os conceitos e institutos tratados ao longo desta pesquisa podem influenciar a resposta jurídica dos temas analisados, empreender uma análise teórica final, relativa ao valor político da solidariedade e sua importância para a garantia do direito à convivência familiar, notadamente, em seu aspecto promocional. 5.4 A SOLIDARIEDADE E O ASPECTO PROMOCIONAL DO DIREITO À CONVIVÊNCIA FAMILIAR O estudo do direito pelo prisma das ilicitudes tem posição destacada na jusciência contemporânea. Arnaldo Vasconcelos vê na obra de Hans Kelsen a fonte de que deflui tal solidariedade deixa de se referir a uma virtude interna e passa a ser externamente controlado – sendo, portanto, uma não-virtude. 176 tendência. Para o professor cearense: Normativista ortodoxo, Kelsen estuda o Direito a partir da norma jurídica, que o constitui. Em oposição ao imperativismo de Karl Binding, ao qual se opõe frontalmente, a norma kelseniana assuma a forma de juízo hipotético, expresso nos seguintes termos: dada a não-prestação, deve ser a sanção; dado o fato temporal, deve ser a prestação. Comporta esse juízo desdobramento em duas normas: a primária, jurídica por excelência, e mediante a qual se prevê a sanção; e a secundária, despida de qualquer interesse para o Direito, e através da qual se prediz a realização voluntária da prestação. Kelsen inverte a solução do problema. A maneira exclusiva, portanto, de uma conduta penetrar no mundo do Direito é ser-lhe imputada uma sanção, donde o destaque ímpar ao ilícito. E nisso consistiu o giro doutrinário do fundador da Teoria Pura. Como ele, e depois dele, o ilícito vai ocupar posição intra-sistemática no Direito. Antes de aparecer como negação do Direito, assim erroneamente identificado pelos tempos afora, passa o ilícito a ser pressuposto dele; “e, então – diz Kelsen – mostra-se que o ilícito não é um fato que esteja fora do Direito e contra o Direito, mas é um fato que está dentro do Direito, e é por este determinado, que o Direito, pela sua própria natureza, se refere precisa e particularmente a ele”.562 De fato, não é inexpressivo o número de juristas para os quais o direito, enquanto ciência, só tem relevância se se referir ao estudo da violação das normas jurídicas. Para Leonardo Martins e Dimitri Dimoulis, por exemplo, “Do ponto de vista jurídico-dogmático, os direitos fundamentais tornam-se relevantes somente quando ocorre uma intervenção em seu livre exercício”. 563 De pouca efetividade seriam, pois, as reflexões teóricas se se limitassem a descrever o conteúdo das regras de direito, sem, contudo, estudar as tensões decorrentes das lides que se desenvolvem diariamente em torno da (in)aplicação da lei.564 Por esse prisma, a jusciência refere-se a uma teoria da decisão em cujo cerne se destaca o momento da juris-dicção, ou seja o instante em que o Poder Judiciário diz qual é a norma aplicável ao caso concreto e, dentre as pretensões resistidas, qual é a justa do ponto de vista do ordenamento legal.565 Mesmo sem descurar do importante papel desempenhado pelas normas de direito como um escudo protetor dos bens fundamentais, concorda-se com as críticas feitas por Vasconcelos ao apego da jusciência ao momento sancionatório da norma. Tão importante quanto à violação da lei deve ser também para a ciência jurídica o estudo dos momentos em 562 VASCONCELOS, Arnaldo. Teoria Geral do Direito. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 1993. p. 36-37. 563 DIMOULIS; MARTINS, op. cit., p. 123. 564 Ainda segundo Martins e Dimoulis: “[…] Um estudo de direitos fundamentais que se limite à interpretação dos conceitos implicados e, na melhor das hipóteses, de sua estrutura sistêmica, é insuficiente e, em face dos problemas concretos (patologia), absolutamente inútil”. DIMOULIS; MARTINS, op. cit., p. 124. 565 Para Hamesser, a teoria do direito é, em primeira linha, “o debate da polarização entre norma posta e sentença judicial”. Apud MARTINS, Leonardo. Liberdade e Estado Constitucional: leitura jurídico- dogmática de uma complexa relação a partir da teoria liberal dos direitos fundamentais. São Paulo: Atlas, 2012. p. 7-8. 177 que a norma é deliberamente promovida tanto por particulares como por agentes públicos. E isso porque o direito pode funcionar não só em estado reativo, mas também como um canal indutor da promoção das liberdades. Para tanto, as normas jurídicas podem criar mecanismos e instituições que promovam tanto os direitos em si como também colaborem para o perfazimento das obrigações imperfeitas a eles atreladas e que potencializam a fruição dos bens fundamentais. A alusão a um aspecto promocional dos direitos fundamentais não se confunde aqui com seu caráter prestacional, relativo ao enfoque positivo das liberdades, mas a engloba e ultrapassa. Isso porque a não-prestação estatal do aspecto positivo de uma dada liberdade representa a violação da norma, dado o caráter cogente com que surge no texto legal a obrigação ativa do Estado. É o caso dos direitos à educação ou à saúde públicas a cujas prestações o Estado é constitucionalmente vinculado. A ideia de promoção dos direitos fundamentais, por sua vez, estabelece uma relação de continência com a de prestação governamental – a primeira contém a segunda –, pois aponta para um agir estatal que vai além do mínimo existencial e refere-se aos esforços para exaurir o potencial transformador da norma de direito. A questão, portanto, que se assoma na promoção dos direitos fundamentais é que, nesse prisma, o só fato de não existir uma violação a um bem jurídico não quer dizer que o estado potencial da norma de direito já foi exaurido ou satisfatoriamente realizado. O fato de não haver uma violação de direitos não quer dizer que o estado atual de coisas seja suficiente ou que não haja injustiças espalhadas pelo mundo. Pois injustiças podem haver que não aparecem no filtro de identificação da norma de direito. No caso da criança e do adolescente, como visto quando da análise de sua autonomia pela ótica do desenvolvimento566, a expansão de suas liberdades fundamentais – e, portanto, seu empoderamento – depende em grande medida da integração entre os direitos de proteção e provisão com os direitos de participação. E os direitos de participação, por sua vez, guardam forte ligação com o aspecto promocional das políticas voltadas para o público infantojuvenil. É muito pouco, por exemplo, para a proteção integral imaginar que a garantia da dignidade infantil e o seu direito de participação se veem preservados com a criação de um título específico no Código Penal para tratar dos crimes sexuais contra os vulneráveis. Apesar da importância da norma penal para a tutela, como ultima ratio, da integridade física e psíquica do ser infantil, o fato é que muitas crianças ainda são vítimas de abuso à sua 566 Item 4.4. 178 sexualidade por conta do despreparo informacional para com seus direitos básicos, sua sexualidade, sua integridade física e ainda sobre a existência de uma rede de proteção que se coloca à sua disposição e não é composta apenas por órgãos públicos (Polícia, Conselho Tutelar, Ministério Público etc.), mas também por pessoas de sua confiança, tais como seus familiares e professores.567 Dessarte, conformar-se o direito com o estabelecimento de um sistema de persecução penal tal qual o que se tem no Brasil – que investiga indistintamente os crimes sexuais praticados contra adultos e petizes –, é muito pouco para uma abordagem realmente protetiva dos direitos infantojuvenis. Isso porque, se tais delitos já causam considerável dano à integridade física e psíquica de um adulto, mais ainda o fazem em se tratando da criança e do adolescente, que, além do dano decorrente do crime, deverão sofrer novos prejuízos, ao passar por oitivas, acareações, perguntas e investigações feitas por profissionais e um sistema de justiça despreparado para lhe dar os devidos cuidados terapêuticos e jurisdicionais. Repare-se então que, no tema em análise, não se vislumbra qualquer violação, no sentido liberal clássico, a um direito fundamental do petiz, já que não se tem ainda no Brasil nenhuma regra específica de direito estabelecendo, por exemplo, um sistema de persecução penal e oitiva diferenciada para as crianças e adolescentes vítimas de violência.568 Entretanto, pelo prisma promocional, o sistema de proteção penal da criança e do adolescente no Brasil é ainda muito falho, pois estruturado a partir de um modelo adultocêntrico de embate de teses – e, mesmo assim, com não poucas áreas de desproteção para as vítimas em geral. 567 Patrícia Balbinotti discorre sobre o impacto psicológico da violência na vida da criança e do adolescente, demonstrando como isso a expõe, não raro, a uma cadeia de desproteção. Tal cenário colabora para a perpetuação da “síndrome do segredo”, a qual “Consiste na ocultação da verdade dos fatos, tanto pela criança quanto pelos próprios familiares (quando cientes), com o intuito velado de manter inalterada a rotina doméstica”. Em seu estudo, a autora identifica o sentimento de culpa da vítima, associada ao medo das consequências da violência para si e seus familiares como um dos fatores de desproteção. (Cf. BALBINOTTI, Patrícia. A violência sexual infantil intrafamiliar: a revimização da criança e do adolescente vítimas de abuso. Direito e Justiça – Revista de Direito da PUCRS, v. 35, n. 1, jan./jun., 2009. Porto Alegre: Faculdade de Direito Pontíficia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, p. 5-21. Disponível em:. Acesso em: 6 jul. 2016). Tal quadro demonstra a necessidade de preparo para a acolhida da criança e do adolescente em casos de violência, bem como de práticas de prevenção ao dano. Tal prevenção começa, sobretudo, por meio de técnicas informacionais que, através de esclarecimentos quanto à integridade e intangibilidade de seu corpo, bem como quanto à identificação de pessoas e atores de proteção, empoderem o petiz. 568 A propósito, existe no Brasil um Projeto de Lei da Câmara (PLC nº. 35, de 2007) que busca estabelecer um procedimento específico, no âmbito do processo penal, para a colheita do depoimento infantojuvenil. Todavia, tal projeto encontra-se parado. Há uma forte resistência em face do mesmo por parte do Conselho Federal de Psicologia. Sobre o relatório de audiência pública ocorrida no Senado que pontuou os rumos e os porquês desta iniciativa de lei. (Cf. BRASIL. Senado Federal. Resumo de audiência referente à Audiência Pública realizada no Senado Federal no dia 1º de julho de 2008, sobre o procedimento relativo à inquirição judicial de crianças e adolescentes, para instruir o Projeto de Lei da Câmara no 35, de 2007. Disponível em: . Acesso em: 24 jun. 2016. 179 A partir de uma abordagem promocional dos direitos infantojuvenis, o Conselho Nacional de Justiça expediu a Recomendação 33, de 23 de novembro de 2010, cujo objeto se refere à proposta de criação, no âmbito do Poder Judiciário, de serviços especializados para escuta de crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência nos processos judiciais.569 Trata-se, pois, de um ato do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) que, em virtude da ausência de uma norma legal determinando ao Poder Judiciário o estabelecimento de formas especiais de colheita do depoimento infantojuvenil – quando então tería-se uma obrigação de cunho prestacional –, tem cunho eminentemente promocional. A ideia de proteção integral da criança e do adolescente aponta, sobretudo, para a necessidade de ações preventivas de resguardo de suas liberdades fundamentais, e tal prevenção dá-se eminentemente no campo das políticas de Estado que se antepõem à prática do ilícito e, portanto, dão destaque ao aspecto promocional dos direitos.570 Assim, a abordagem liberal clássica, apesar de sua inegável relevância e atualidade para a teoria jurídica, não dá conta suficientemente do aspecto promocional das políticas, pois limita seu foco ao estudo das violações ou intervenções diretas na área de proteção de um direito, e isso é muito pouco quando se está diante de omissões violadoras ou faltas que, mesmo não sendo de per si lesivas a bens fundamentais, restringem sobremodo o exercício de direitos – sobretudo, quando em enfoque os de crianças e adolescentes. É a inquietação decorrente da necessidade de promoção dos direitos que faz com que se desenhem políticas em torno de temas sensíveis para a liberdade humana. São essas políticas que propõem o agir estatal antes da ocorrência do ilícito, por meio da investigação dos motivos de sua incidência em determinadas áreas, para então propor caminhos e soluções inteligentes e criativas. De igual modo, o móbil promocional estimula ainda o Estado a acompanhar, partilhar e replicar experiências exitosas em temas relevantes para a vida social. O agir preventivo não se refere apenas aos órgãos do Executivo ou do Legislativo, mas podem também se referir a ações realizadas pelos órgãos da justiça, tanto em nível processual – caso da tutela inibitória571 –, como também extrajudicialmente, como forma de 569 Cf. BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Recomendação 33, de 23 de novembro de 2010. Recomenda aos tribunais a criação de serviços especializados para escuta de crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência nos processos judiciais. Depoimento Especial. Disponível em: . Acesso em: 24 jun. 2016. 570 Não à toa o plano nacional que trata da garantia do direito à convivência familiar da criança e do adolescente chama-se Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do Direito de Crianças e Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária. 571 Sobre o caráter preventivo e inovador da tutela inibitória, por se voltar a um momento anterior à ocorrência do ilícito, e sobre o fato de isso causar estranhamento no meio jurídico, por se pensar aqui num modelo de 180 discutir com a sociedade e demais órgãos do poder público estratégias de prevenção de danos.572 Por esse prisma, os órgãos governamentais de justiça deixam de ser expectadores passivos das violações perpetradas contra os direitos humanos e passam a ter um desempenho proativo e preventivo para com a sua garantia, como demonstra, dentre outras instituições, o perfil promocional de atuação do Ministério Público conferido ao órgão pela Constituição de 1988.573 A promoção dos direitos implica ainda, dentre outras questões, o monitoramento, inclusive, pelos órgãos de justiça, das previsões e gastos orçamentários, o que envolve um tipo de acompanhamento para o qual nem a sociedade, nem as instância de controle, nem a ciência do direito estão devidamente preparados.574 Tem-se, então, que muito da “vontade de Constituição”, com que trabalha Hesse575, refere-se à ideia de promoção dos direitos, quer dizer, a uma predisposição do agente público ou privado para guiar seu agir, conforme a Lei Fundamental, dando-lhe efetividade por meio de suas ações. E é justamente nesse prisma promocional que os agentes e as instituições públicas serão avaliados pela população. A investigação do aspecto promocional do direito não se trata, portanto, de um mero estudo descritivo, de obviedades ou desprovido de qualquer relevância. Antes, pelo contrário, implica uma pesquisa complexa e de extrema relevância para a vida social, que importa, inclusive, no reconhecimento das limitações da juridicidade para a promoção da felicidade humana e, daí, no próprio redimensionamento do papel do Estado perante a vida dos particulares – o que remete, novamente, à ideia do Estado subsidiário. ação que atua antes da violação da norma. (Cf. MARINONI, Luiz Guilherme. Tutela inibitória e tutela de remoção do ilícito. Disponível em: . Acesso em: 22 jun. 2016.) Para o autor, “A ação inibito ́ria é consequ ̈ência necessária do novo perfil do Estado e das novas situacõ̧ es de direito substancial”. Ibid. 572 Nesse sentido, o Projeto Transformando Destinos do Ministério Público do Estado do Rio Grande do Norte, que visa a levar para o espaço municipal a discussão e a definição de estratégias intersetoriais de enfrentamento ao uso abusivo de drogas. Disponível em: . Acesso em: 22 jun. 2016. E: . Acesso em: 22 jun. 2016. 573 Dentre as funções constitucionais do Parquet brasileiro está a de “zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados nesta Constituição, promovendo as medidas necessárias a sua garantia”. (Grifos nossos). CF, art. 129, II. 574 Como informam Sustein e Holmes na sua clássica obra “The cost of rights: why liberty depends on taxes” (O custo dos direitos: por que a liberdade depende de impostos), ao analisar as implicações orçamentárias para as liberdades clássicas como os direitos de propriedade e de expressão: “Os gastos públicos com a Polícia ou o Corpo de Bombeiros contribuem essencialmente para o ‘perímetro de proteção’ que torna possível usufruir e exercer nossos direitos constitucionais e de outras espécies” (tradução livre). No original: “The public costs of police and fire departments contribute essentially to the ‘protective perimeter’ that makes it possible to enjoy and exercise our basic constitutional and other right”. HOLMES; SUSTEIN, op. cit. 575 Sobre o conceito de vontade de Constituição na obra de Hesse, cf. nota de rodapé 121, p. 46. 181 A subsidiariedade da ação governamental, como visto, aponta para um Estado que não alimenta expectativas de ser o provedor principal dos bens materiais e imateriais de que necessita o ser humano para a construção de sua liberdade, porém se sabe indispensável para ajudá-lo nessa tarefa. Para tanto, o poder público pode tanto agir diretamente – quer por meio de intervenções limitadoras de outros direitos, quer por meio de suas prestações –, como indiretamente – pela organização do poder social disperso para a construção do bem comum –, ou, por fim, simplesmente, não intervindo, para dar margem à definição do projeto de vida pelos cidadãos diretamente interessados. A incompletude do Estado – e, portanto, de suas prestações –, reforça a importância da dimensão promocional subsidiária das liberdades fundamentais, pois, num contraponto à redução do “fardo moral” com que o direito labora na obra de Habermas576, as normas jurídicas, se fossem as únicas responsáveis pela harmonização social, carregariam um insustentável fardo – o fardo jurídico – de ser panaceia para os problemas do mundo. E, portanto, a subsidiariedade aponta para uma necessária e salutar relação complementar entre moral e direito; éticas do cuidado e da justiça; solidariedade e juridicidade; Estado e sociedade como responsáveis pela garantia e promoção dos direitos fundamentais. A ideia de subsidiariedade leva o Estado a confiar na sociedade para a promoção consigo dos direitos fundamentais, o que o conduz ao valor político da solidariedade como forma de complementar – e não substituir, como já dito no tópico anterior – as obrigações decorrentes da juridicidade, pois os laços sociais firmam-se com base nestes dois sistemas, de 576 Em Habermas, o direito surge como elemento de estabilização social numa sociedade pós-moderna que já não conta com um ethos único, de natureza consuetudinária ou transcendental, para a regulação das condutas intersubjetivas. Às normas jurídicas cabe então esse papel de ordenar a vida em sociedade, que outrora competia exclusivamente à moral – e que para ela consistia nesse fardo moral. Como informam Keinert, Hulshof e Melo a relação que se estabelece entre o direito e a moral na obra do filósofo alemão é de complementaridade, em que ao primeiro cabe compensar as fraquezas regulatórias da norma moral: “Podemos entender assim a relação sociológica complementar entre moral e direito como uma compensação em que o direito aliviará a pessoa moral das altas exigências a que está submetida para julgar e agir moralmente, reduzindo-a a uma pessoa de direito”. (KEINERT, Maurício Cardoso; HULSHOF, Monique; MELO, Rúrion Soares. Diferenciação e complementaridade entre direito e moral. In: NOBRE, Marcos; TERRA, Ricardo (Org.). Direito e democracia: um guia de leitura de Habermas. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 80.) No que toca ao direito, a estabilização social por si pretendida não se baseia tanto na força, mas antes disso na legitimidade da norma jurídica: “A positividade do direito não pode fundar-se somente na contingência de decisões arbitrárias, sem correr o risco de perder seu poder de integração social. O direito extrai sua força muito mais da aliança que a positividade do direito estabelece com a pretensão à legitimidade”. (Cf. HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre faticidade e validade. Trad. Flávio Beno Siebeneicheler. Rio de Janeiro: Tempo brasileiro, 1997, p. 60.) Essa legitimidade em Habermas, segundo informa Góes, dá-se no encontro discursivo dos atores sociais, cambiando as cosmovisões individuais para dar lugar à alteridade; migrando “do subjetivismo da consciência monológica à intersubjetividade da linguagem dialógica”. GOÉS, Ricardo Tinôco de. Democracia deliberativa e jurisdição: legitimidade da decisão judicial a partir e para além da teoria de J. Habermas. Curitiba: Juruá, 2013, p. 43. 182 solidariedade e juridicidade, variando a intensidade dos mesmos conforme o tipo de relação analisada. No caso da família, temos que a ética do cuidado (fundada sobre solidariedade) precede a da justiça (alicerçada sobre a juridicidade), mas não a dispensa, pois dela precisa para a preservação dos vínculos afetivos estabelecidos. É a ideia de promoção dos direitos, mais do que a de sua violação, que impulsiona a realização do direito por mecanismos não só de juridicidade, mas também por instrumentos da solidariedade e das forças correlatas que se encontram dispersas no meio social, cabendo ao Estado promover o seu encontro – sem prejuízo de suas atuações diretas, sempre que necessário. Como informam Sustein e Holmes: Quando estruturado constitucionalmente e sendo democraticamente responsivo – relativamente falando –, o governo é um dispositivo indispensável para mobilizar e canalizar com efetividade os recursos difusos da comunidade, trazendo-os para se relacionar com os problemas, em operações específicas, sempre que eles subitamente ocorrem.577 (Tradução livre). O reconhecimento da insuficiência estatal não é demérito para o direito, antes, pelo contrário, significa dar a devida importância a outros fatores de estabilização social que não só os jurídicos, tal como os da solidariedade. Nesse sentido, Pablo Lucas Verdú, a partir da obra do filósofo alemão Heller, também destaca o papel compensatório que os elementos extrajurídicos cumprem (aqui inclusos os de natureza psicológica) ao lado dos fatores jurídico-normativos, sendo aqueles condições imprescindíveis para o alcance de uma democracia equilibrada e duradoura.578 No âmbito da família, a relação complementar entre fazer estatal e fazer societário é tão importante para a sustentabilidade do lar que o caráter de fundamentalidade foi estendido às relações sociais que se estabelecem no entorno doméstico: o direito da criança e do adolescente previsto no art. 227 da Constituição refere-se à sua convivência familiar e comunitária. Dessarte, considerando a natureza gregária da espécie humana, tão importante como a mãe acolher a criança, é saber como o pai acolhe a esposa e sua prole; a família extensa acolhe os pais; a comunidade acolhe a família e o Estado acolhe a comunidade. 577 No original: “When structured constitutionally and made (relatively speaking) democratically responsive, government is an indispensable device for mobilizing and channeling effectively the diffuse resources of the community, bringing them to bear on problems, in pinpoint operations, whenever these unexpectedly flare up”. HOLMES; SUSTEIN, op. cit. 578 VERDÚ, Pablo Lucas. O sentimento constitucional: aproximação ao estudo do sentir constitucional como de integração política. Rio de Janeiro: Forense, 2004. 183 Porque “crianças não são criadas por programas, mas por pessoas”579, nesses círculos concêntricos de apoio se amalgamam laços de solidariedade e juridicidade que serão importantes, ambos, para orientar os atores públicos na busca de soluções sempre que se depararem com situações de violação dos direitos no seio doméstico. Dessarte, por exemplo, em caso de inevitável afastamento da criança de seus pais, não se deve cogitar o acolhimento institucional do petiz, quando existam na família extensa ou na própria comunidade pessoas com quem o pequeno tenha laços de afetividade constituídos e caso sua colocação nessa família substituta o coloque em segurança, assim como seus novos cuidadores.580 A importância da solidariedade para potencializar os horizontes da juridicidade, sobretodo, em matéria de direito de família, sempre se eleva, quando a justiça está diante de uma decisão sobre o futuro de uma criança que precisa ser afastada provisoriamente do seu lar de origem: “– Temos um lugar para onde encaminhar essa criança, que não o abrigo?”, perguntam-se o juiz e o promotor de justiça. Como em tantos estudos já realizados com crianças e adolescentes em instituições de acolhimento institucional, Juliana Fernandes Pereira e Liana Fortunato da Costa perceberam certa constante no caso de crianças abrigadas: nesses casos, não raro faltavam aos seus pais o suporte da família extensa ou rede social de apoio para o desempenho de sua função parental. E mais: faltava também aos próprios órgãos públicos um maior contato e traquejo com os atores sociais da comunidade a fim de identificar e buscar soluções outras que não a institucionalização do petiz.581 Os laços espontâneos de solidariedade firmados pelos atores sociais privados servirão como veias irrigando o coração do direito à convivência familiar e, em caso de interrupção ou arritmia no ciclo de afeto presente no lar, funcionarão como canais colaterais 579 SHONKOFF, Jack. P. In: RENNER, Stela. O começo da vida. São Paulo: Maria Farinha Filmes, 2016. Minuto: 1:20:40 580 Nesse sentido, é que o art. 101, § 6º, III, do ECA estabelece que, logo que uma criança seja afastada de seus pais e levada a acolhimento, deverá ser elaborado seu plano individual de atendimento, no qual deverá constar, dentre outras questões: “a previsão das atividades a serem desenvolvidas com a criança ou com o adolescente acolhido e seus pais ou responsável, com vista na reintegração familiar ou, caso seja esta vedada por expressa e fundamentada determinação judicial, as providências a serem tomadas para sua colocação em família substituta, sob direta supervisão da autoridade judiciária”. (Grifos nossos). Essa família substituta pode ser tanto familiares biológicos da criança como pessoas da sua comunidade, desde que, numa situação ou outra, o petiz tenha laços de afinidade e afetividade já constituídos. O que guia aqui a colocação na família substituta é o princípio do interesse superior da criança – porém, sempre dentro de um prisma garantista, tal como trabalhado no capítulo 2, item 2.6, deste estudo, ou seja: a colocação da criança no lar substituto é guiada não só por aspectos psíquicos dos interessados, mas também procedimentais, visando a resguardar os direitos dos envolvidos. Voltar-se-á a esse tema no próximo capítulo. 581 PEREIRA, Juliana Fernandes; COSTA, Liana Fortunato. O ciclo recursivo do abandono. Psicologia.pt – o portal dos psicológos, 2004. Disponível em: . Acesso em: 23 jun. 2016. 184 para bombear o afeto de que precisa a criança para se desenvolver: a hospitalização (aqui entendida como abrigamento) para tratar da patologia (aqui entendida como rompimento dos vínculos familiares) não é a medida indicada, caso seja possível ao petiz ser cuidado em uma outra família que o proveja o apoio e suporte emocional de que precisa para o seu desenvolvimento biopsíquico. Analisar o direito por sua violação não é suficiente, portanto, para a proteção da infância – apesar de que é, sem dúvida, uma dimensão importante das relações jurídicas. Ao Estado é importante atuar por meio de políticas que promovam os laços de solidariedade que funcionarão como anteparo ao lar, aos pais e aos seus filhos nos momentos de turbulência que a vida em família implica, em maior ou menor medida. A negligência não precisa ser pensada, segundo informa Vera Iaconelli, na relação de “um para um”, pois envolve uma rede maior de (des)amparo, que culmina na negligência pontual dos pais para com seus filhos.582 A relação complementar entre solidariedade e juridicidade permite a integração da força obrigacional perfeita do direito com o amparo potencializador das obrigações imperfeitas. Enquanto a juridicidade visa ao resguardo do mínimo de bens, recursos e oportunidades, a solidariedade aponta para o máximo – e é ali que se aloca o afeto em sua dimensão existencial e jurídica, tão fundamental para o desenvolvimento infantil. Por esse prisma, O’Neill, partindo de uma abordagem construtivista dos vínculos interpessoais 583 , aduz que o Estado pode-se fazer atento à importância das obrigações imperfeitas para então criar mecanismos que estimulem o seu aparecimento na sociedade: Entretanto, se um argumento construtivista demonstrar que a indiferença universal em ajudar os outros e a negligência universal em desenvolver as capacidades humanas são questões para as obrigações imperfeitas, nós teremos motivos para agir visando a tentar promovê-las. Em particular, nós teremos razões para construir e dar suporte a instituições que realizem e deem amparo à satisfação de tais obrigações.584 (Tradução livre). No caso das crianças, segundo a autora, o argumento por trás dos seus direitos estatuídos deverá se desenvolver pela combinação das obrigações perfeitas e imperfeitas a fim 582 IACONELLI, Vera. In: RENNER, Stela. O começo da vida. São Paulo: Maria Farinha Filmes, 2016. Minuto: 1:24:30 583 A abordagem construtivista a que se refere a autora é a que oferece, em primeiro plano, para as relações intersubjetivas não a fundamentação pelo direito, mas sim pelo prisma das obrigações imperfeitas. O’NEILL, op. cit., p. 25. 584 No original: “However, if a constructive argument shows that universal indifference to helping others and universal neglect to develop human capacities for action are matters of (imperfect) obligations we will have reason to act to try to further these obligations. In particular we will have reason to construct and support institutions that realize and foster the discharge of these obligations”. Ibid., p. 35. 185 de usá-las em conjunto para avaliar como as práticas institucionalizadas de cuidado e educação dos mais novos numa dada sociedade precisam ser desenvolvidas ou modificadas.585 E isso faz com que se destaque novamente a importância de uma abordagem promocional das liberdades, pois esta se refere também à ideia de solidariedade, o que complementa e potencializa a garantia do desenvolvimento social por meio do direito, cuja proteção dá-se por meio de obrigações perfeitas, porém insuficientes para a promoção do bem-estar humano. A criação e manutenção de uma praça, de uma brinquedoteca, de centros culturais, por exemplo, podem configurar linhas de ação políticas, por meio das quais o Estado busca estimular a solidariedade, o uso do espaço público, a sensação pública de pertencimento a uma comunidade e, no caso da criança, seu direito ao lazer, à brincadeira e à diversão, os quais são vitais para o seu desenvolvimento e configuram aspectos de sua liberdade.586 O gestor público que deixa de tomar algumas dessas iniciativas pode, casuisticamente, não violar regra de direito alguma. Entretanto, no aspecto promocional, sua inércia tem um peso para a realização dos direitos e, provavelmente, será sob esse prisma que sua administração será politicamente avaliada pela população. Mesmo compreendendo que a negativa dos direitos no seu aspecto promocional acarreta ônus prioritariamente políticos para o administrador público, parece-nos equivocada a compreensão de que o que resta para a ciência jurídica é primordialmente a análise da violação da regra de direito. Apesar da clara importância que a dimensão sancionatória da norma tem para o universo forense, enquanto o foco da fenomenologia jurídica for unicamente o fato ilícito, os profissionais da justiça serão tão somente atores passivos da desordem generalizada da sociedade – e isso é muito pouco em se tratando, por exemplo, de uma instituição com a magnitude constitucional (e promocional, como visto na análise do art. 129, II, da CF) do Ministério Público. A dimensão promocional do direito remete então ao conceito de “sociedade decente” com que trabalha Martha Nussbaum, na qual a dignidade dos seus membros garante-se “não somente de forma negativa, omitindo ações diretamente humilhantes, mas também de forma positiva”, através da criação de um ambiente que possibilite o desenvolvimento do respeito de si.587 585 O’NEILL, op. cit., p. 35. 586 Nesse sentido, o ECA informa que, dentre outros aspectos, a liberdade da criança e do adolescente compreende a brincadeira, a prática do esporte e a diversão. Cf. ECA, art. 16, IV. 587 Apud PINZANI, Alessandro. Reconhecimento e solidariedade. In: ethic@ – Revista Internacional de Filosofia Moral. v. 8, n. 3, maio 2009. Florianópolis: Núcleo de Ética e Filosofia Política da UFSC, p. 101- 113, p. 107. 186 Se atentarmos para o aspecto promocional das liberdades públicas, pensamos que ali encontra eco a pretensão de Peter Häberle em imaginar uma sociedade aberta de intérpretes das normas constitucionais.588 Apesar de o espaço plural da sociedade não ser responsável pela aplicação das normas jurídicas em última instância, no caso concreto (de fato essa função cabe privativamente ao Poder Judiciário), a dimensão promocional ora defendida comporta a realização dos bens fundamentais de forma espontânea e não há razão plausível por que as ciências política e jurídica devam se mostrar desinteressadas para com as situações em que o direito realiza-se fora das sendas judiciais. Muito pelo contrário, a investigação dos momentos de realização espontânea ou criativa da norma deveria, tanto quanto a sua violação, ocupar um campo de estudo central nas ciências do direito, do Estado e da sociologia.589 Essa dimensão promocional, a propósito, tão importante para a garantia dos direitos humanos foi apontada na decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos no já referido caso Lenahan v. United States. 590 Como apontamos anteriormente, naquela decisão, o colegiado internacional condenou o governo dos Estados Unidos a tomar medidas tanto no campo da juridicidade – ao estabelecer punições em virtude da falta do Estado americano –, como também visando a fomentar ações de cuidado junto à sociedade, calcadas na solidariedade, por meio de medidas legislativas e administrativas aptas a combater a violência no lar em sua gênese, para redefinir os esteriótipos que se constroem em torno das vítimas da violência doméstica e, assim, afastar a discriminação contra elas. Mesmo que não se possa esperar que com tais medidas o Estado americano irá mudar a mentalidade das pessoas a respeito da violência de gênero ou doméstica, é plausível esperar que o poder público desenvolva ações tanto de proteção como de conscientização da 588 Para Häberle, a ideia de uma sociedade aberta de intérpretes da Constituição “significa que a teoria da interpretação deve ser garantida sob a influência da teoria democrática. Portanto, é impensável uma interpretação da Constituição sem o cidadão ativo e sem as potencias públicas mencionadas. Todo aquele que vive no contexto regulado por uma norma e que vive com esse contexto é, indireta, ou até mesmo diretamente, um intérprete dessa norma. O destinatário da norma é participante ativo, muito mais ativo do que se pode supor tradicionalmente, do processo hermenêutico. Como não são apenas os intérpretes jurídicos da Constituição que vivem a norma, não detêm eles o monopólio da interpretação Constitucional”. 589 Sob esse prisma promocional dos direitos, repete-se, aquí, o que já foi asseverado alhures: “Portanto, na perspectiva pluralista da hermenêutica jurídica, a questão se apresenta não mais restrita apenas àqueles que emitem as normas de decisão, os juízes de direito. Ganha os espaços das calçadas, das ruas, das praças, das casas, das famílias, das escolas, dos shoppings, da televisão, enfim, do mundo. […] Revelam muita pretensão – e um tanto de ingenuidade – aqueles que pensam que o direito é dito exclusivamente por parte dos tribunais. O direito é realizado pelo mundo. Mesmo que muitos não tenham consciência, a todo momento a Constituição está sendo realizada consensualmente entre os cidadãos. Do mesmo modo, muitas violações aos propósitos constitucionais ocorrem sem que se chegue às sendas judiciais”. AMARAL, Sasha Alves do. Crianças e adolescentes são sujeitos de direitos: implicações éticas desta afirmação à luz dos direitos fundamentais de terceira geração (os direitos da fraternidade). In: ROSÁRIO, José Orlando Ribeiro et al. (Orgs.). Temas de Direito e de Justiça. Natal: EDUFRN, 2016 (no prelo). 590 Cf. nota de rodapé 512, p. 156. 187 população a respeito do direito e do cuidados de pessoas que são, num dado contexto, mais vulneráveis que outras. São aspectos relevantes que se colocam a par dos aspectos individuais indenizatórios do caso Lenahan para se referirem a um aspecto promocional, vital para as políticas de garantia dos direitos fundamentais. A democracia, portanto, refere-se não só a normas jurídicas, mas também às normas morais e, na verdade, é, em boa parte, sobre esse aspecto que os homens e as mulheres públicos terão seus governos e suas ações avaliados. É o aspecto promocional de sua atuação que se destacará nos anais da história de seu povo. Não se trata aqui de pura especulação filosófica – apesar de que, sim, em grande medida de cunho filosófico –, mas também de uma análise teórica que tem forte impacto em temas ligado ao direito da criança, do adolescente, de seus pais e da sua família. Para analisar a influência dos conceitos de solidariedade, promoção dos direitos, subsidiariedade e o de tantos outros tratados nesta pesquisa, passar-se-á ao próximo capítulo, em que, a partir de um tema específico do direito infantojuvenil, pode-se vislumbrar em que medida a reflexão teórica e filosófica desenvolvida ao longo do estudo pode impactar as respostas dadas pela ciência do direito nos delicados casos que cuidam da relação de pais e filhos. 188 6 ANÁLISE TEMÁTICA Sendo o direito uma ciência aplicada, o juscientista é, a todo instante, chamado a dar respostas para problemas concretos vivenciados pela sociedade em que está inserido. Porém, como toda ciência, o direito sofre os influxos do seu tempo, e as respostas alcançadas pelas pessoas da justiça são fruto das especulações teóricas e filosóficas que os circundam. Ao longo desta pesquisa, debate-se sobre questões ora de índole teórica, ora de natureza filosófica, bem como desenvolvem-se institutos, que devem, agora, ser vistos na sua dimensão prática. É necessário aferir em que medida os conceitos desenvolvidos neste estudo podem influenciar as respostas dadas pelo direito nos casos concretos em que se depara com a distensão dos interesses de pais e filhos. É importante, pois, aferir de que forma a noção de interesse superior da criança e do adolescente como um princípio garantista591; do aspecto procedimental, a par do substantivo, do direito à convivência familiar592; de poder familiar recíproco593; de integridade familiar594; de desenvolvimento tal qual desenvolvido por Amartya Sen595; da subsidiariedade da ação estatal 596 ; da solidariedade como complemento às teorias tradicionais da justiça 597 ; da dimensão promocional do direito598, dentre outras, podem apontar caminhos para os delicados casos com que a ciência jurídica depara-se, quando em discussão a relação jurídica de pais e filhos e a sua regulação pelo Estado. É necessário então aplicar os conceitos e institutos trabalhados ao longo da pesquisa, a fim de saber em que medida os mesmos podem funcionar como princípios que conduzirão a decisão em torno de problemas específicos do direito da criança, do adolescente e de seus pais em certo sentido.599 Tendo sido estabelecidos, ao longo do trabalho, os referenciais teóricos necessários para a análise das autonomias parental e infantojuvenil, bem como tendo sido delineados os 591 Item 2.6. 592 Item 3.7. 593 Item 3.9. 594 Item 3.9. 595 Item 4.4. 596 Item 5.2. 597 Item 5.3. 598 Item 5.4. 599 A ideia de princípio aqui referida é semelhante a de Ronald Dworkin: “Um princípio como ‘nenhum homem pode beneficiar-se de seus próprios delitos’ não pretende [nem mesmo] estabelecer condições que tornem sua aplicação necessária. Ao contrário, enuncia uma razão que conduz o argumento em uma certa direção, mas [ainda assim] necessita de uma decisão particular”. DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Trad. Nelson Boeira. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 41. 189 fundamentos jusfilosóficos para a atuação do Estado junto à família, partir-se-á, agora, para a análise de problema específico, verificando sua repercussão no âmbito da doutrina e da jurisprudência, bem como na sociedade. Nesta parte do trabalho, proceder-se-á então à seguinte metodologia: será analisado um tema bastante representativo para a elaboração de uma teoria constitucional que leve em conta a liberdade da criança em relação com a de seus pais na criação de sua prole, qual seja, a adoção intuitu personae. Para tanto, o referencial-mor da análise será o direito fundamental à convivência familiar, o qual, como dito, adquire, neste trabalho, uma dimensão de reciprocidade, referente não somente aos filhos, nem isoladamente aos pais, mas a ambos em sua vivência diária. 6.1 A ADOÇÃO INTUITU PERSONAE Em seus 26 anos de vigência, a principal alteração legislativa operada no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) foi feita pela Lei 12.010, de 3 de agosto de 2009, que veio a ser designada como Lei Nacional da Adoção.600 Qualificar a lei de 2009 com o adjunto da adoção, parece um equívoco na definição do seu nome de fantasia, pois, diferentemente do que ele sugere, a finalidade precípua da norma não é tratar do instituto da adoção, mas sim do direito à convivência familiar da criança e do adolescente. Dessarte, logo em seu art. 1º, a lei é bastante clara, ao afirmar que sua finalidade primordial não é a de promover a inserção de crianças e adolescentes em famílias substitutas, mas sim fazer com que a intervenção estatal seja “prioritariamente voltada à orientação, apoio e promoção social da família natural, junto à qual a criança e o adolescente devem permanecer, ressalvada absoluta impossibilidade, demonstrada por decisão judicial fundamentada”.601 A diretriz de privilegiar a manutenção da criança e do adolescente junto à sua família de origem é um aprendizado que a má experiência anterior do menorismo legou com suas políticas higienistas de família. Ali, como já analisado602, ao proteger a criança, o Estado fazia 600 BRASIL. Lei Lei 12.010, de 3 de agosto de 2009. Dispõe sobre adoção; altera as Leis nos 8.069, de 13 de julho de 1990 – Estatuto da Criança e do Adolescente, 8.560, de 29 de dezembro de 1992; revoga dispositivos da Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002 – Código Civil, e da Consolidação das Leis do Trabalho – CLT, aprovada pelo Decreto-Lei no 5.452, de 1o de maio de 1943; e dá outras providências. Disponível em: . Acesso em: 24 jun. 2016. 601 Art. 1º da Lei nº 12.010/09. 602 Item 2.4. 190 as vezes de um Superpai (ou Parens Patriae – pai da pátria) e, para tanto, substituía-se aos genitores em sua função parental para adjudicar decisões ao lar. Tal postura, não raro, levava à institucionalização do petiz de forma arbitrária, sem maiores contraditórios ou cuidados promocionais para a garantia dos seus direitos e de seus familiares. Desde a promulgação do ECA, e mais ainda agora com as inclusões feitas pela Lei 12.010/09, a colocação do petiz em um lar substituto demanda dos atores governamentais o agir responsável não só do ponto de vista ético, mas também, sobretudo, legal. Isso implica a necessidade de se exaurir 603 todas as medidas socioassistenciais necessárias ao empoderamento dos pais, na sua função de cuidado, a fim de que o petiz tenha a oportunidade de permanecer em sua família natural – ou, num prisma mutual, defendido neste estudo, a família natural tenha a oportunidade de permanecer com sua criança. Nesse sentido, o princípio da prevalência da família, também incorporado ao ECA pela Lei 12.010/09, estabelece que “na promoção de direitos e na proteção da criança e do adolescente deve ser dada prevalência às medidas que os mantenham ou reintegrem na sua família natural ou extensa ou, se isto não for possível, que promovam a sua integração em família substituta”.604 Em não respondendo os pais às intervenções recebidas e não havendo algum familiar idôneo com quem a criança ou o adolescente tenham laços de afinidade e afetividade constituídos, só então se deve cogitar a colocação do petiz num lar substituto, tal qual estabelece o art. 41, § 1º, do ECA: “A adoção é medida excepcional e irrevogável, à qual se deve recorrer apenas quando esgotados os recursos de manutenção da criança ou adolescente na família natural ou extensa, na forma do parágrafo único do art. 25 desta Lei” (grifos nossos). Assim, não deixa de ser paradoxal que uma lei que muitos juristas criticam pelo fato de ter dificultado as adoções605 tenha recebido o nome de Lei Nacional da Adoção. Teria sido 603 O uso da expressão exaurir aponta tanto para o esgotamento das medidas de proteção cabíveis aos familiares como também para o seu acompanhamento na sua evolução ou involução para com os planos de atendimento da família firmados com os órgãos socioassistenciais e da justiça. Porém, a expressão não dá conta do dilema que é para os órgãos de proteção encontrar o equilíbrio entre o tempo de recuperação dos pais e o tempo da criança, pois para esta, dada a sua peculiar condição de desenvolvimento, as medidas devem ser, não raro, céleres, enquanto para os seus pais, graduais. Entretanto, a celeridade que se requer não se pode confundir com açodamento, e as decisões em torno da manutenção da criança em sua família de origem requerem um olhar interprofissional acurado e refletido, à luz do histórico familiar. Considerando o objeto deste estudo, não se pode discorrer sobre tal dilema. Sobre o assunto, porém, já se tratou em artigo anterior. Cf. AMARAL, Sasha Alves do; SOUZA NETO, Manoel Onofre de. A tutela de urgência e a criança e o adolescente: em defesa de uma atuação especializada e efetiva. Revista de Direito da Infância e Juventude, ano 1. n. 1. jan./jun. 2013. São Paulo: Revista dos Tribunais/Associação Brasileira de Magistrados, Promotores de Justiça e Defensores Públicos da Infância e Juventude. 604 ECA, art. 100, parágrafo único, X. 605 Nesse sentido, cf., por exemplo, Maria Berenice Dias para quem a Lei nº 12.010/09 deveria se chamar “lei anti-adoção”, tendo em vista que o diploma teria complicado sobremaneira a realização dessa modalidade de colocação de criança em família substituta. DIAS, Maria Berenice. Adoção: entre o medo e o dever. 191 mais condizente com o espírito da Lei 12.010/09 chamá-la de Lei da Convivência Familiar – e é nesses termos que, doravante, ela será referida –, em virtude das várias ocasiões em que ela ratificou a ideia de apoio inicial e esgotamento das possibilidade de colocação da criança na sua família natural para, só depois, poder a justiça cogitar a possibilidade de sua adoção.606 Dentre as muitas novidades que a Lei da Convivência Familiar incorporou ao ordenamento jurídico, a de maior polêmica refere-se à priorização do cadastro de adoção como instrumento para a colocação da criança e do adolescente nessa modalidade de família substituta. O art. 50 do ECA, que trata do cadastro, continha na sua redação original um caput e dois parágrafos, mantidos intactos até hoje, in verbis: Art. 50. A autoridade judiciária manterá, em cada comarca ou foro regional, um registro de crianças e adolescentes em condições de serem adotados e outro de pessoas interessadas na adoção. § 1º O deferimento da inscrição dar-se-á após prévia consulta aos órgãos técnicos do juizado, ouvido o Ministério Público. § 2º Não será deferida a inscrição se o interessado não satisfazer os requisitos legais, ou verificada qualquer das hipóteses previstas no art. 29. Em 2009, com a alteração legislativa citada, foram incorporados no Estatuto mais doze parágrafos a fim de mais detalhadamente disciplinar o funcionamento do cadastro.607 O debate doutrinário e jurisprudencial se instaura-se principalmente em virtude do parágrafo 13, pelo qual: § 13. Somente poderá ser deferida adoção em favor de candidato domiciliado no Brasil não cadastrado previamente nos termos desta Lei quando: I - se tratar de pedido de adoção unilateral; II - for formulada por parente com o qual a criança ou adolescente mantenha vínculos de afinidade e afetividade; III - oriundo o pedido de quem detém a tutela ou guarda legal de criança maior de 3 (três) anos ou adolescente, desde que o lapso de tempo de convivência comprove a fixação de laços de afinidade e afetividade, e não seja constatada a ocorrência de má-fé ou qualquer das situações previstas nos arts. 237 ou 238 desta Lei. A regra legal é bastante rigorosa na imposição da opção do legislador em prol do Disponível em: . Acesso em 5 maio 2016. 606 Cf., nesse sentido, dentre outros, os princípios da responsabilidade parental e da prevalência da família (arts. 100, parágrafo único, IX e X), incorporados ao ECA pela Lei nº 12.010/09. 607 Além dos parágrafos acrescidos ao artigo 50, a Lei nº 12.010/09 ainda incorporou ao ECA outras normas instrumentais visando ao aperfeiçoamento da sistemática do cadastro de adoção, tais como a previsão de um procedimento específico para a habilitação dos pretendentes à adoção (arts. 197-A a 197-E) e uma infração administrativa para as hipóteses em que a autoridade competente (o juiz de direito da Comarca) deixe de providenciar a instalação e operacionalização do cadastro de adoção, bem como o de crianças e adolescentes acolhidos. Considerando, porém, a necessidade de delimitar a abordagem ao objeto deste estudo, deixa-se aqui de tecer maiores considerações sobre tais regras. 192 cadastro de adoção. Pela literalidade da lei (“Somente poderá ser deferida adoção em favor de candidato domiciliado no Brasil não cadastrado previamente nos termos desta Lei quando…”), apenas nos três casos previstos pode-se cogitar a relativização da regra do cadastro. Se as duas primeiras hipóteses de exceção não dão azo a grandes altercações na doutrina e jurisprudência – o inciso I trata da hipótese da adoção pelo padrasto ou madrasta de seu(sua) enteado(a), e o II, da adoção intrafamiliar, desde que observadas as vedações relativas ao parentesco com irmãos e avós, nos termos do ECA, art. 42, § 1º608 – o mesmo não se pode dizer do inciso III, que ora enfocamos. Pela lei, ressalvadas as hipóteses dos incisos I e II do § 13, do art. 50, do ECA, a adoção dirigida ou intuitu personae – ou seja, direcionada a uma determinada pessoa, e não a partir da regra abstrata e impessoal do cadastro de adoção – só pode-se dar diante destes requisitos, os quais são cumulativos:  postulante deve estar com a guarda ou tutela legal – isto é, referendadas diretamente pela lei ou por uma autoridade judiciária –, e não, simplesmente, de fato – ou, num termo popular, de boca – da criança ou adolescente;  se for criança, esta deverá ser maior de 3 anos;  tempo de convivência entre os adotandos e os pretendentes à adoção deve ser suficiente para comprovar a fixação de laços de afinidade e afetividade;  não seja constatada má-fé no recebimento da criança (o que significa, dentre outras questões, a intenção de burlar a lógica do cadastro) ou as hipóteses dos crimes dos arts. 237 e 238, do ECA, que tratam dos delitos de subtração de criança e adolescente para fins de colocação em família substituta e de comercialização de filho ou pupilo com os mesmos intentos. Vê-se, desse modo, que a vedação legal atinge a imensa maioria das adoções realizadas no Brasil, uma vez que, em regra, os postulantes recebem diretamente a criança quer das mãos dos genitores – em regra, a mãe –, quer pela intermediação de outros atores sociais (profissionais da saúde, da assistência social, pessoas da comunidade dos genitores 608 Mais uma vez, tendo em vista a necessidade de delimitar o objeto deste estudo, não se podererão, aquí, desenvolver maiores análises colaterais. Entretanto, deve-se registrar que o fato de os incisos I e II não importarem em tantos casos conflitivos para a jurisprudência, isso não quer dizer que não haja desafios ou debates em torno deles. Assim, no caso da adoção unilateral, por exemplo, há a discussão sobre as denominadas adoções aditivas, em que, ao invés de se retirar o nome dos pais biológicos da certidão de nascimento da criança, o que se faz é aditar no registro de nascimento o nome do pai ou mãe socioafetivos. No caso da adoção intrafamiliar, há também o debate sobre a possibilidade de se permitir, mesmo contra legem, a adoção por parte de parentes vetados a adotar, nos termos do ECA, art. 42, 1º. Tais questões, porém, como já dito, não poderão ser objeto de reflexões neste momento. 193 etc.), não dispondo da guarda legal da criança, mas sim de fato, cuja idade, em regra, é tenra, bem menor do que os três anos a que a lei se reporta.609 O rigor da lei tem sido referendado pelos órgãos correcionais do Poder Judiciário brasileiro, impelindo os magistrados à observância dessa nova diretriz normativa.610 A partir dessa alteração legislativa, grande e acalorado debate instaurou-se em nossa doutrina. Para alguns autores, a atual regra em torno do cadastro de adoção é fruto de um dirigismo estatal, uma “onda fundamentalista e conservadora”611, influenciada por um “grupo que deseja controlar a tudo e a todos”.612 Maria Berenice Dias critica a Lei 12.010/09 por tentar manter, a todo custo, a criança junto à sua família natural, mesmo que isso seja prejudicial ao petiz em virtude do tempo que isso toma.613 Para a autora, tal quadro acarreta graves prejuízos aos mais novos, pois, diante de tamanha burocracia para disponibilizar crianças à adoção “quando finalmente isso acontece, muitas vezes ninguém mais as quer. Os candidatos a adotá-las perderam a delícia de 609 Diante da comum escassez de dados por parte dos órgãos de justiça brasileiros, essas informações são colhidas a partir do ponto de vista empírico deste autor – portanto, passíveis de correção científica –, fruto de atuação como promotor de justiça da infância e juventude no Rio Grande do Norte há catorze anos, destes há quatro na Comarca de Mossoró. Ali, de todos os casos de adoção em que se atuou, a lógica do cadastro de adoção foi observada em apenas um deles. Em todos os demais, a adoção ocorreu na modalidade intuitu personae. Temos ainda percebido, agora a partir da participação como membro do Fórum Nacional de Membros do Ministério Público da Infância e Adolescência (Proinfância), que essa realidade repete-se na maioria das Comarcas do país. Os dados aqui, faz-se interessante repetir, são feitos a partir de uma constatação carente de cientificidade – estão à espera de entabulamento e sistematização científica, a qual não foi possível realizar neste estudo –, entretanto decorrem, em grande medida, de um fato público e notório. Basta olhar o leitor ao redor e se perguntar: “dos casos de adoção de que tenho conhecimento, quantos se deram na modalidade dirigida e quantos se deram via cadastro local de adoção?”. 610 Nesse sentido, a Recomendação nº 8 da Corregedoria Nacional de Justiça, órgão correcional do Conselho Nacional de Justiça, cujo artigo primeiro recomenda “aos juízes com jurisdição na infância e juventude que ao conceder a guarda provisória, em se tratando de criança com idade menor ou igual a 3 anos, seja ela somente concedida a pessoas ou casais previamente habilitados nos cadastros a que se refere o art. 50 do ECA, em consulta a ser feita pela ordem cronológica da data de habilitação na seguinte ordem: primeiro os da comarca; esgotados eles, os do Estado e, em não havendo, os do Cadastro Nacional de Adoção”. BRASIL. Corregedoria Nacional de Justiça. Recomendação nº 08, de 7 de novembro de 2012. Dispõe sobre a colocação de criança e adolescente em família substituta por meio de guarda. Disponível em: . Acesso em: 23 jul. 2016. 611 DIAS, Maria Berenice. Adoção e o direito constitucional ao afeto. Disponível em: . Acesso em: 5 maio 2016. 612 Cf. BORDALLO, Galdino Augusto Coelho. Adoção. In: MACIEL, Kátia Regina Ferreira Lobo Andrade. Curso de direito da criança e do adolescente: aspectos teóricos e práticos. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 333. 613 In verbis: “Outrossim, a Lei Nacional da Adoção, na injustificável tentativa de manter a criança ou adolescente com a família biológica, se olvida de que esta é a pior solução. Antes do ingresso do processo de destituição do poder familiar, tenta-se toda sorte de medidas para manter a criança junto à família biológica. Ainda que esta postura pareça correta e necessária, em grande parte dos casos, esta tentativa demora muito e acaba dando ensejo a novas situações de abuso e maus-tratos”. DIAS, op. cit. 194 compartilhar da primeira infância do filho que esperaram durante anos na fila da adoção”.614 Ainda segundo Dias, outra injustiça da Lei da Convivência Familiar decorre do fato de nela a genitora não poder escolher a quem quer entregar o filho que gerou.615 Tal proceder, para Bordallo, anula os interesses dos pais biológicos, pois a sua participação na escolha das pessoas habilitadas para cuidar de seu rebento os poderia auxiliar na superação do seu período de luto pela perda de um filho. Ademais, segundo o autor, a priorização legislativa da adoção cadastral termina por violar a liberdade individual e o poder familiar dos pais de escolherem com quem deve ficar seu bebê, o que revela “um quê de inconstitucionalidade neste dispositivo”.616 Por outro lado, para Murillo Digiácomo, a edição do Estatuto da Criança e do Adolescente, lei alicerçada sobre a Doutrina da Proteção Integral, visou a abolir a sistemática menorista na qual os infantes eram tratados como objetos, e não sujeitos de direitos. No âmbito da adoção, as práticas anteriores “reduziam crianças e adolescentes à condição de objetos de livre disposição de seus pais, como não passassem de uma espécie de ‘bem’ a estes ‘pertencente’ que, como tal, podiam ser ‘transferidos’ a terceiros, não raro, sem qualquer controle judicial do respectivo ‘ato negocial’”.617 Digiácomo parte da premissa de que o direito à convivência familiar previsto no art. 227 da Constituição “tem como titular a criança ou o adolescente – e não os seus pais”618, de forma que a pretensão destes de dispor do seu filho, escolhendo com que ele deve ficar, não pode ser juridicamente tutelável. Portanto, para o autor, a prática da adoção intuitu personae revela um caminho de má-fé por quem o percorre e os órgãos de justiça não devem compactuar com o mesmo.619 Na jurisprudência, a discussão também tem sido candente desde antes da promulgação da Lei 12.010/09, havendo teses, muitas vezes do mesmo Tribunal, que embasam tanto a pretensão pró620 como também a contra621 o cadastro, e cada parte – em 614 DIAS, op. cit. 615 Ibid. 616 BORDALLO, op. cit., p. 334. 617 DIGIÁCOMO, Murillo José. Da impossibilidade jurídica da adoção intuitu personae no ordenamento jurídico brasileiro à luz da Lei nº 12.010/2009 e da Constituição Federal de 1988. In: Direito, comunidade e Ministério Público: infância e juventude. Natal: Ministério Público do Estado do Rio Grande do Norte, 2011. p. 561-592, p. 562. 618 Ibid., p. 563. 619 “O sentido da lei é claro, e dispensa maiores comentários: se os interessados em adotar agem de má-fé, buscando obter a guarda de crianças para fins de adoção por meios escusos e/ou ao arrepio da sistemática estabelecida pela legislação, ou pior, chegam ao ponto de praticar crimes para obtenção da criança adotanda, não podem ter sua conduta ‘chancelada’ pelo Poder Judiciário”. Ibid., p. 574. 620 Favorável ao cadastro: “AGRAVO DE INSTRUMENTO. ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. GUARDA E ADOÇÃO. NECESSIDADE DE OBSERVÂNCIA DA LISTA DE ADOÇÃO. Em que pese a possibilidade de se superar os requisitos formais da adoção (Lista de 195 regra, a defesa, em prol da adoção dirigida, e o Ministério Público, favorável ao cadastro – arrola decisões em um ou outro sentido, conforme melhor caiba em sua concepção de melhor interesse da criança. No âmbito do Superior Tribunal de Justiça, a tese prevalente tem sido a da relativização da exigência do cadastro, tal como sinaliza o seguinte acórdão da sua 3ª Turma: RECURSO ESPECIAL - AFERIÇÃO DA PREVALÊNCIA ENTRE O CADASTRO DE ADOTANTES E A ADOÇÃO INTUITU PERSONAE - APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DO MELHOR INTERESSE DO MENOR - VEROSSÍMIL ESTABELECIMENTO DE VÍNCULO AFETIVO DA MENOR COM O CASAL DE ADOTANTES NÃO CADASTRADOS - PERMANÊNCIA DA CRIANÇA DURANTE OS PRIMEIROS OITO MESES DE VIDA - TRÁFICO DE CRIANÇA - NÃO VERIFICAÇÃO - FATOS QUE, POR SI, NÃO DENOTAM A PRÁTICA DE ILÍCITO - RECURSO ESPECIAL PROVIDO. I - A observância do cadastro de adotantes, vale dizer, a preferência das pessoas cronologicamente cadastradas para adotar determinada criança não é absoluta. Excepciona-se tal regramento, em observância ao princípio do melhor interesse do menor, basilar e norteador de todo o sistema protecionista do menor, na hipótese de existir vínculo afetivo entre a criança e o pretendente à adoção, ainda que este não se encontre sequer cadastrado no referido registro; II - É incontroverso nos autos, de acordo com a moldura fática delineada pelas Instâncias ordinárias, que esta criança esteve sob a guarda dos ora recorrentes, de forma ininterrupta, durante os primeiros oito meses de vida, por conta de uma decisão judicial prolatada pelo i. desembargador- relator que, como visto, conferiu efeito suspensivo ao Agravo de Instrumento n. 1.0672.08.277590-5/001. Em se tratando de ações que objetivam a adoção de menores, nas quais há a primazia do interesse destes, os efeitos de uma decisão judicial possuem o potencial de consolidar uma situação jurídica, muitas vezes, incontornável, tal como o estabelecimento de vínculo afetivo; III - Em razão do convívio diário da menor com o casal, ora recorrente, durante seus primeiros oito meses de vida, propiciado por decisão judicial, ressalte-se, verifica-se, nos termos do estudo psicossocial, o estreitamento da relação de maternidade (até mesmo com o Habilitados), isso só se dará em situações especialíssimas, quando se puder verificar inequivocamente o laço de afetividade formado entre a criança e os pais substitutos, o que não ocorre no caso dos autos. RECURSO IMPROVIDO”. (Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Agravo de Instrumento nº 70024692675. Oitava Câmara Cível. Relator: Claudir Fidelis Faccenda. Data do julgamento: 14/08/2008. DJ 22/08/2008). Disponível em: . Acesso em: 12 jul. 2016. 621 Contrário ao cadastro: “AGRAVO. ADOÇÃO. IDADE DOS ADOTANTES. Mais importante que a idade dos adotantes e a inclusão, ou não, em lista de habilitação à adoção, é o fato incontrastável de que a criança está com os adotantes desde os primeiros dias de vida e, já passados quatro meses, desenvolveu vinculação afetiva essencial à formação da sua personalidade. Neste cenário, constitui verdadeira crueldade o rompimento desses vínculos que vêm propiciando ao menor um desenvolvimento saudável, conforme constatado pelo Estudo Social. DERAM PROVIMENTO. UNÂNIME”. (SEGREDO DE JUSTIÇA) (Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Agravo de Instrumento nº 70011994670. Sétima Câmara Cível. Relator: Luiz Felipe Brasil Santos. Data do julgamento: 10/08/2005. DJ de 17/07/2005). Disponível em: . Acesso em: 12 jul. 2016. 196 essencial aleitamento da criança) e de paternidade e o consequente vínculo de afetividade; IV - Mostra-se insubsistente o fundamento adotado pelo Tribunal de origem no sentido de que a criança, por contar com menos de um ano de idade, e, considerando a formalidade do cadastro, poderia ser afastada deste casal adotante, pois não levou em consideração o único e imprescindível critério a ser observado, qual seja, a existência de vínculo de afetividade da infante com o casal adotante, que, como visto, insinua-se presente; V - O argumento de que a vida pregressa da mãe biológica, dependente química e com vida desregrada, tendo já concedido, anteriormente, outro filho à adoção, não pode conduzir, por si só, à conclusão de que houvera, na espécie, venda, tráfico da criança adotanda. Ademais, o verossímil estabelecimento do vínculo de afetividade da menor com os recorrentes deve sobrepor-se, no caso dos autos, aos fatos que, por si só, não consubstanciam o inaceitável tráfico de criança; VI - Recurso Especial provido.622 Como se vê pelos acórdãos relacionados, a questão central nos casos concretos diz respeito, em regra, à formação de vínculo afetivo entre a criança e os adotantes. Em se verificando a constituição do laço afetivo, há certo consenso na jurisprudência sobre a necessidade de se relativizar o cadastro de adoção por respeito ao interesse superior da criança – e do adolescente, cabe lembrar, apesar de praticamente inexistir debate forense sobre os seus direitos na temática da adoção dirigida, o que é sintomático de uma demanda geral por crianças mais novas. Se a discussão perante os tribunais, premidos que estão pelo clamor do caso concreto, se dá em termos de sim ou não – “relativizar ou não relativizar o cadastro, eis a questão” – para a ciência do direito constitucional é importante que ao debate sejam incorporados outros elementos que permitam a análise do thema decidendum não só pelo prisma dos resultados de culminação, mas sobretudo pelos resultados abrangentes.623 Assim, importa ao direito aferir não só o momento em si da entrega da criança, mas, também, dentre outros elementos, quem são os titulares da relação jurídica discutida (a criança? Seus pais? Os adotantes?), a natureza e intensidade dos vínculos constituídos, e, ainda, em virtude do aspecto procedimental que o conceito de interesse superior comporta, toda a cadeia de fatos que levaram a família a abdicar dos seus laços parentais. A análise criteriosa é uma exigência da dimensão garantista do interesse superior da criança e do adolescente. Estando os interesses do petiz atrelados a um rol de direitos fundamentais, a análise subjetiva e emocional das partes ou do julgador isoladamente, apesar de configurar um elemento hermenêutico importante, que não deve ser menosprezado – pois é 622 Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial 1172067/MG. Rel. Min. Massari Ueda. Julgamento: 18/03/2010. DJe: 14/04/2010. Disponível em: . Acesso em: 12 jul. 2016. 623 Sobre a relevância dos resultados abrangentes e culminação, a partir da abordagem desenvolvimentista, para a garantia dos direitos fundamentais da criança e do adolescente, cf. item 4.4. 197 de gente, e não de coisas que tratam os direitos humanos –, é insuficiente para resguardar, em sua plenitude, as posições jurídicas dos envolvidos. É necesario, então, antes de procurarmos as respostas do caso concreto, abrir o foco de nossa objetiva hermenêutica para que, em grande angular, alarguemos o campo visual que se desenha perante os órgãos jurisdicionais, olhando a lide para além do que resta asseverado pelas partes. Tal agir nos conduz tanto a uma análise indutiva (dos fatos à norma), como também dedutiva (das normas ao fato), em que o programa normativo e as políticas públicas circundantes à lide devem orientar a dicção do direito tanto no caso concreto como nos feitos futuros que lhe sucederão. A leitura dos elementos concretos é, sem dúvida, importante, pois sem eles a justeza da decisão que se busca pode desaguar em uma aplicação mecânica da lei que coloca em risco os bens fundamentais a que se busca proteção. Porém, por outro lado, a análise dos órgãos da justiça devem incorporar outros fatores de análise que não sejam a mera acomodação dos interesses alegados dos postulantes – todos adultos –, sob pena de a discussão mascarar, sob uma imagem mimetizada do melhor interesse da criança, pretensões que são, ao fim e ao cabo, manifestações centradas nos interesses dos adultos que disputam o petiz. A seguir, lança-se, então, à tarefa de, à luz dos conceitos e institutos desenvolvidos ao longo desta pesquisa, buscar outros parâmetros de constatação para as demandas em torno dos casos de adoção intuitu personae, parâmetros esses que não se reduzam a uma análise pontual sobre a prevalência ou não do cadastro, pois esta não é a questão: a questão é, anterior, e aponta para a melhor definição da titularidade e do conteúdo do direito à convivência familiar. Eis a questão! 6.1.1 Escorço histórico sobre a colocação de crianças e adolescentes em lares substitutos Antes de enfrentar a questão acima, faz-se necessária uma breve digressão histórica sobre o instituto da adoção e a colocação de crianças e adolescentes em lares substitutos, vez que esse recorte é importante para a compreensão holística tanto da política atualmente em vigor para a garantia do direito fundamental à convivência familiar, como da ferramenta do cadastro de adoção. Em suas origens romanas, o instituto da adoção destinava-se a tutelar mais os interesses da família do que propriamente os do pupilo.624 Era para a proteção da linhagem ou 624 Nesse sentido, cf. nota de rodapé 32, p. 23 . 198 do patrimônio familiar que se adotavam os infantes. No Brasil, em nossos primeiros cinco séculos como nação, desde a colonização até a edição do Estatuto da Criança e do Adolescente, em 1990, o destino das crianças e adolescentes cujos pais abdicavam de seu poder parental ou não podiam exercê-lo foi ditado mais por meio da lógica da benemerência do que propriamente a do direitos. Assim, desde 1550, com a chegada dos primeiros órfãos vindos de Portugal, com a finalidade de, por assimilarem mais facilmente as novas línguas e os costumes dos índios, poderem funcionar como ferramenta para a evangelização das crianças indígenas pelos jesuítas, o Brasil começou a tratar da infância desvalida, ou seja, desprotegida ou sem valor.625 Posteriormente, no século XVIII, com a chegada das Casas da Roda no Brasil, a infância abandonada passou a ser atendida em instituições caritativas ligadas à Igreja Católica. Segundo Lígia da Costa Leite, tais instituições foram criadas na Europa do século XVII e serviam como Asilo de crianças abandonas ou órfãs. Estas eram depositadas, geralmente à noite, numa espécie de caixa giratória, instalada numa das paredes do edifício para impedir que se soubesse quem havia abandonado a criança. O portador colocava o “exposto” numa roda, girava-a, tocava a campanhia para que uma ama viesse apanhar o bebê e partia, incógnito. Instituída no Brasil por um certo Romão de Matos Duarte e mantida pela Santa Casa de Misericórdia, a Casa da Roda existiu inicialmente nas cidades de Salvador, Rio de Janeiro e São Paulo, espalhando-se depois por outros lugares do Brasil. O objetivo formal da Roda era “salvar a vida de crianças que eram deixadas nas portas de casas ou igrejas”, oferecendo-as para adoção de famílias bem constituídas. Só bebês ou crianças muito pequenas podiam ir para lá, e os que atingissem os sete anos sem serem adotados eram removidos para outros locais. Quem eram os bebês ali depositados? Era em sua maioria, órfãos e filhos da pobreza, para quem a Roda estava naturalmente destinada. Mas havia também muitos filhos repudiados, por vezes adulterinos, de mulheres que não podiam assumir publicamente a condição de mãe. Eram os “filhos proibidos”, frutos de relações ilícitas, ou porque a mãe era muito jovem e solteira, ou porque os pais não eram casados um com o outro.626 Ainda segundo Leite, outro público que se destinou à Roda dos Expostos era composto por filhos de mulheres negras escravas, muitas das quais engravidavam dos seus senhores, sendo então motivo de desonra para a família que as possuía. Em 1869, já próximo do final do Segundo Reinado e com a iminente aprovação do Lei do Ventre Livre (em 1871) “tornou-se crescente o número de bebês depositados na Roda por ordem dos senhores escravagistas, que faziam isso com o intuito de alugar as mães das crianças expostas (suas 625 O registro histórico do tratamento à infância abandonada no Brasil, desde os tempos coloniais até o período republicanos pós-1988 é feito pela pedagoga Lígia da Costa Leite. LEITE, Lígia da Costa. Meninos de rua: a infância excluída no Brasil. São Paulo: Atual, 2001. 626 Ibid., p. 11. 199 escravas) como amas-de-leite na própria Roda”.627 A abordagem filantrópica manteve-se no período republicano, em que a criança e o adolescente abandonados eram acolhidos em instituições fechadas com abordagem mais aproximada do campo repressivo da justiça e do assistencialismo do que de áreas preventivas do direito, tais como a educação, a saúde e a própria assistência social no que há de caráter promocional de sua política.628 Era o tempo das instituições totais, com propostas pedagógicas voltadas ao meio fechado, como forma de retirar o infante do contexto de vulnerabilidade social em que estava inserido, porém sem trabalhar adequadamente suas perspectivas de retorno à vida em sociedade, o que gerava tanto o seu isolamento como também o dos serviços que lhe acolheram e dos profissionais que ali estavam. E, como analisado no item 2.4.1, o afastamento dos petizes das ruas ou de suas famílias dava-se sob o marco da subjetividade e discricionariedade do julgador, com baixa referência a um rol de direitos fundamentais ou ao devido processo legal. A abordagem caritativa da convivência familiar, mais como favor e menos como direito público subjetivo, nos legou um ranço social bastante complacente com a circulação de crianças e adolescentes não só entre as instituições como, sobretudo, entre as famílias. Por muito tempo, a figura do filho de criação firmou-se no meio social como a imagem do infante criado como se fosse um filho, mas sem os direitos decorrentes da filiação, desprotegido em sua definição civil. Recebidas sob laços de solidariedade, as crianças que circulam de lar em lar – ora na casa dos pais biológicos, ora na de parentes, ora na de pessoas próximas à família, ora nas ruas – são recebidas por um ato de bondade dos seus cuidadores, sem que, contudo, se estabeleça um feixe de direitos e deveres que as liguem, por meio da guarda legal, a um adulto, o que, portanto, termina por afetar a própria constituição de laços afetivos duradouros, necessários para a garantia do desenvolvimento infantil. Questionando no interesse de quem tal ato de solidariedade opera, Helen Sanches e 627 LEITE, op. cit., , p. 12. 628 Na verdade, no que toca à assistência social no Brasil, o seu caráter prestacional e promocional, objeto de uma política de Estado com foco nos direitos fundamentais da população, remonta a períodos bem recentes de nossa história, sobretudo a partir da edição da Lei Orgânica da Assistência Social, de 1993, cuja política socioassitencial foi configurada a partir da instituição da Política Nacional de Assistência Social, de 2004, promulgada pela Resolução 145, de 15 de outubro de 2004 do Conselho Nacional de Assistência Social. Cf. BRASIL. Lei 8.742, de 7 de dezembro de 1993. Dispõe sobre a organização da Assistência Social e dá outras providências. Disponível em: . Acesso em: 13 jul. 2016. E, ainda, BRASIL. Conselho Nacional de Assistência Social. Resolução 145, de 15 de outubro de 2004. Aprova a Política Nacional de Assistência Social. Disponível em: < https://www.google.com.br/url?sa=t&rct=j&q=&esrc=s&source=web&cd=1&ved=0ahUKEwi13uD98vDN AhUFQ5AKHTpbAtAQFggeMAA&url=http%3A%2F%2Fwww.mds.gov.br%2Fcnas%2Flegislacao%2Fre solucoes%2Farquivos-2004%2FCNAS%25202004%2520-%2520145%2520- %252015.10.2004.doc&usg=AFQjCNFMFXi3SSpq8_gM8szEdoftGhX4CQ >. Acesso em: 13 jul. 2016. 200 Josiane Veronese, a partir de estudos realizados com infantes colocados em sucessivos lares – fenômeno que identificam as autoras, a partir da obra de Cláudia Fonseca629, como circulação de crianças, para designar a prática de transferir, parcial e provisoriamente, de um adulto para outro a responsabilidade por um petiz –, levantam a seguinte questão: Das pesquisas realizadas sobre a circulação de crianças, observa-se, nesse sentido, que a solidariedade humana que fundamenta as relações entre a família extensa e terceiros que as acolhem, na verdade, em sua maioria revela razões fundamentadas nos interesses dos adultos, como o reconhecimento pelo grupo familiar, a gratificação pela companhia de uma criança, a possibilidade de ser por ela amparado na velhice ou o interesse em ter filhos que a natureza negou.630 Bastante comum entre famílias de classes populares, a circulação de crianças e adolescentes é um dos legados de séculos da política governamental absenteísta para com a garantia dos direitos infantojuvenis. Tal fenômeno – que muitas vezes ocorre com o beneplácito de atores do Sistema de Garantia dos Direitos da Criança e do Adolescente – representa uma gradual violação de direitos dos mais novos que, com o tempo, à medida que o petiz cresce desgarrado de referências paterna e materna seguras, vai-se avolumando e soma-se, não raro, a outras violações – evasão escolar; problemas com álcool ou outras drogas; más influências relacionais etc. – até o ponto em que o adulto cuidador desresponsabiliza-se para com um filho que simplesmente não é seu.631 No Código de Menores, a prática de circulação de crianças fora institucionalizada por meio da figura jurídica da Delegação do Pátrio Poder, previstos nos arts. 21 a 23 desse diploma.632 Por meio desse instituto, os pais abdicavam do seu poder perante o juiz de menores, sem que apontasse a lei qualquer metodologia apta a aferir, dentre outras questões, o contexto em que tal renúncia se dera, a existência de familiares próximos dispostos a ficar com o petiz e, em especial, qual a opinião da criança em torno dessa medida. No sistema anterior, o marco legal conformava o agir resignado da justiça menorista diante do desfazimento dos laços paterno-filiais. Mesmo que o órgão jurisdicional do caso concreto investigasse as causas de rompimento do vínculo jurídico-familiar, isso se o fazia 629 FONSECA, Cláudia. Caminhos da adoção. São Paulo: Cortez, 2002. 630 SANCHES, Helen Chrystine Corrêa; VERONESE, Josiane Rose Petry. Dos filhos de criação à filiação socioafetiva. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2012, p. 151. 631 Inquietas com os males gerados pela circulação precária de crianças, Sanches e Veronese dedicam o desfecho de sua obra conjunta para propor, em tais situações, a atuação segura dos órgãos de defesa dos direitos da criança e do adolescente, a fim de se preservar o direito infantojuvenil à convivência familiar e comunitária. Cf. SANCHES; VERONESE, op. cit. 632 Nos termos do art. 21 do Código de Menores: “Art. 21. Admitir-se-á delegação do pátrio poder, desejada pelos pais ou responsável, para prevenir a ocorrência de situação irregular do menor”. 201 mais pelas próprias virtudes do magistrado, do que pelo dever jurídico de observância de um procedimento específico. Nesse contexto, o prisma da criança e do adolescente, enquanto credores de direitos, não era considerado. A intervenção mínima do Estado definia-se a partir da liberdade dos pais, não a do filhos. 6.1.2 A adoção intuitu personae pelo prisma procedimental dos direitos da criança Com a incorporação da Doutrina da Proteção Integral na Constituição Federal de 1988 e a consequente elevação da criança e do adolescente à condição de sujeitos de direitos, a implicação primordial desse novo paradigma epistemológico foi a de que os petizes passaram a ter o direito de ter os seus interesses jurídicos não só destacados dos de seus pais, como também – e justamente por isso – de participarem e expressarem sua opinião na definição das medidas de proteção que lhes dissessem respeito. Daí porque a sistemática atual para a colocação da criança ou do adolescente em família substituta aponta para a necessidade de se observarem, nesse procedimento, as regras do art. 28 do ECA, pelas quais “Sempre que possível, a criança ou o adolescente será previamente ouvido por equipe interprofissional, respeitado seu estágio de desenvolvimento e grau de compreensão sobre as implicações da medida, e terá sua opinião devidamente considerada” e “Tratando-se de maior de 12 (doze) anos de idade, será necessário seu consentimento, colhido em audiência”.633 A partir de então, a definição do que é mínimo para exigir a intervenção estatal deixa de ser aferido exclusivamente pelo prisma adulto e passa a importar também para a justiça o olhar da criança e do adolescente na lide. Se os pais pretendem abdicar dos seus direitos parentais, esse ato volitivo não é, por si só, suficiente para a justiça tarimbar tal pretensão. Como visto, o direito fundamental à convivência familiar é um direito de duas faces: refere-se tanto aos pais como também aos filhos.634 Isso gera impacto na própria configuração do poder familiar, que deixa de ser entendido como um poder relativo unilateralmente aos pais, para se referir também aos filhos, donde o redefinimos como poder familiar recíproco. Portanto, no caso concreto, o momento de renúncia dos pais ao poder familiar não mais se conforma à manifestação unilateral dos genitores, mas os órgãos de justiça devem 633 ECA, §§ 1º e 2º do art. 28. 634 Cf. item 3.9. 202 também investigar toda a dinâmica da vida doméstica e comunitária envolta naquela decisão. Esse proceder, mais do que uma faculdade, é uma decorrência ética da condição da criança e do adolescente como titulares de direitos, o que, como visto, constitue o cerne do seu interesse superior.635 O fato de o melhor interesse da criança ter ganho em sua evolução ocidental uma natureza principiológica – tal como se verifica entre nós, com a sua positivação como um dos princípios vetores da aplicação de medidas de proteção aos petizes636 – não significa que esse instituto deva funcionar como uma Caixa de Pandora, validando atuações discricionárias, à margem da lei e de uma sistematização de direitos. Ao contrário, é justamente a natureza garantista do interesse da criança e do adolescente que demanda dos órgãos de proteção um agir responsável para com seus direitos, o que, por sua vez, indica a necessidade de procedimentos, metodologias e sistematização próprios aptos a captar o querer infantojuvenil. Não se trata aqui de rigor tecnicista ou formalismo vazio, mas sim de cautelas, as quais constituem o cerne do devido processo legal para a criança e o adolescente. Em tratando a lide de direito da criança e do adolescente, a leitura do caso não se adstringe à análise dos seus elementos clássicos (partes, causa de pedir e pedido), mas passa por questões outras que vão além do que alegam as partes – especialmente se considerarmos que há demandas em que os petizes não são, tecnicamente, partes, mas tão somente os seus pais. Dessarte, importa investigar as circunstâncias em que a ação chegou à justiça tais como: as condições de vida da criança ou do adolescente; a aptidão dos pais no seu cuidado; a existência de outros familiares ou pessoas da comunidade com quem os pequenos tenham laços de afinidade e afetividade constituídos; o acesso ou não da família às políticas intersetoriais relacionadas à infância e juventude etc. Isso porque, sendo a demanda relativa a direito infantojuvenil, necessária é a leitura não só das linhas, como também das entrelinhas do processo. O devido processo legal, na perspectiva da criança e do adolescente, demanda dos operadores do direito um olhar arguto, que não queda passivo diante das alegações das partes, mas sim investiga o texto e o contexto da lide, o que se diz e se deixa de dizer nos autos – mas eventualmente, fora deles, pode gritar. Tal postura se deve à elevação do status da criança e do adolescente à condição de sujeito de direitos, os quais, se por um lado são compreendidos em sua titularidade normativa, por outro, revelam um peculiar perfil no exercício desta 635 Cf. item 2.6. 636 Cf. ECA, art. 100, parágrafo único, IV, que trata do princípio do interesse superior da criança e do adolescente. 203 condição, uma vez que se tratam de pessoas em desenvolvimento. Considerando que não raramente a criança e o adolescente postam-se em juízo não a partir de suas próprias falas, mas pelas de um adulto, tal fato pode implicar, inclusive, uma violação de direito, na medida em que a fala do ser capaz não reproduz com fidedignidade os anseios dos que estão sob sua tutela. No Direito da Criança e do Adolescente, a construção da prova – e, a partir desta, do ato judicial decisório – há de obedecer parâmetros específicos de constituição que busquem garantir aos mais novos o direito de efetivamente acessar o Judiciário, como sujeitos de direitos próprios (e não a partir do que dizem os seus responsáveis), contribuindo materialmente para a definição dos rumos futuros da demanda. É disso, afinal, que trata o princípio da oitiva obrigatória e participação previsto no ECA.637 A necessidade de critérios e procedimentos próprios para a leitura das demandas em torno dos direitos fundamentais dos petizes é também, como já visto638, uma decorrência da acepção procedimental que também recebe o interesse superior da criança. Dessarte, segundo o Comitê da ONU de monitoramento da Convenção sobre os Direitos da Criança, o melhor interesse é, além de um direito substantivo, também, uma regra de procedimento, a qual, para ser acessada e determinada, requer garantias procedimentais que importem na demonstração do direito que foi levado em conta na decisão do caso concreto.639 Sobre tais procedimentos, diz ainda o Comitê que o acesso e determinação do melhor interesse implicam a necessidade de a norma de decisão ser exarada num ambiente seguro e amigável, onde o magistrado não decida isoladamente, mas com o apoio de uma equipe técnica multidisciplinar.640 Portanto, diante das hipóteses de renúncia dos pais ao poder familiar, essa manifestação de vontade não tem efeitos por si só ab-rogatórios para o direito à convivência familiar da criança e do adolescente. Isso, porque, a extensão da família da criança e do adolescente, tal qual concretizado no art. 25, caput e parágrafo único, do Estatuto da Criança e do Adolescente, não se subsume ao seu núcleo familiar, nem tem inferência unilateral aos adultos, mas é (também) um direito do petiz que abrange sua família extensa, nestes termos: 637 ECA, art. 100, parágrafo único, XII. 638 Cf. item 2.6. 639 Nesse sentido, o item 6, “c”, da Observação Geral 14 (General Comment 14), a qual busca aclarar a estrutura, função e natureza do melhor interesse da criança, previsto no art. 3º da CDC. Disponível em: . Acesso em: 2 mar. 2016. Sobre as General Comments (GCom) do Comitê/CDC, cf. a nota de rodapé 101, p. 40. 640 Cf. item 94 da GCom 14. 204 Seção II Da Família Natural Art. 25. Entende-se por família natural a comunidade formada pelos pais ou qualquer deles e seus descendentes. Parágrafo único. Entende-se por família extensa ou ampliada aquela que se estende para além da unidade pais e filhos ou da unidade do casal, formada por parentes próximos com os quais a criança ou adolescente convive e mantém vínculos de afinidade e afetividade. (Grifos nossos). Com relação à preocupação externada por Maria Berenice Dias – pela qual a Lei da Convivência Familiar insiste a todo custo na colocação do petiz junto à sua família biológica, mesmo que isso seja contrário aos seus interesses641 –, entende-se que essa crítica pode ser minimizada, na medida em que, mesmo sendo um importante alerta, ela não encontra respaldo na proposta do Estatuto da Criança do Adolescente, pois a permanência do petiz em sua família ampliada pressupõe, como informa a lei, a existência de “parentes próximos com os quais a criança ou adolescente convive e mantém vínculos de afinidade e afetividade”.642 Não encontra, portanto, respaldo legislativo os atos irresponsáveis de largar a criança ou entregá-la à força aos cuidados de um parente consanguíneo com quem tenha poucos ou nenhum laço afetivo em detrimento de uma terceira pessoa que voluntariamente disponha-se a ficar com a guarda do pequeno, pois tal agir automatizado equivaleria a objetificar o infante, instrumentalizando-o em prol de uma proteção aparentemente célere, mas, materialmente, açodada. É de “reintegração familiar”643 que fala a lei, e não de enxerto familiar. Pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, diferentemente da legislação civilista, a noção de família recebe um elemento calcado não só em dados objetivos – a consanguinidade e os graus de parentesco644 – mas também em elementos anímicos, fundados sobre o afeto. Neste ponto, uma ressalva se faz necessária. Quando se asevera que o ECA traz ao conceito de família elementos não só objetivos – o legado genético – mas também subjetivos – o legado afetivo –, não estamos a afirmar que a consanguinidade seja fator de menor valor como um dos elementos determinantes para a colocação em família substituta. Isso porque, 641 Segundo a autora: “É absolutamente equivocado o prestígio que se empresta à família natural, quando se busca manter, a qualquer preço, o vínculo biológico, na vã tentativa de manter os filhos sob a guarda dos pais ou dos parentes que constituem a chamada família estendida”. DIAS, Maria Berenice. Adoção e o direito constitucional ao afeto. Disponível em: . Acesso em: 5 maio 2016. 642 ECA, art. 25, parágrafo único. 643 Nesse sentido, os arts. 19, §§ 1º e 3º; 88, VI; 90, § 3º, III; 92, I; 93, parágrafo único; 100, parágrafo único, X; 101, §§ 1º, 3º, 4, 6º, 7º, 8º, 9º e 11, todos do ECA. O fato de, no cotidiano forense e dos órgãos de proteção, se verificarem inserções açodadas de crianças na sua família, que não resolvem a situação de fragilidade social de fundo, não quer dizer que tal prática seja referendada no Estatuto, mas decorre, antes, de uma aplicação distorcida da lei. 644 Nesse sentido, os arts. 1.591 a 1.595 do CC. 205 considerando a tenra idade do ser infantil e o seu caminho de desenvolvimento, muito de seus direitos devem ser considerados não só atualmente, mas também em perspectiva. Tal análise é especialmente relevante em se tratando da discussão de direitos fundamentais de crianças na primeira infância645, em que, dada sua pouca idade, muitos de suas liberdades devem ser analisadas não retroativamente – pois isso equivaleria a um olhar adultocêntrico, já que, pelo pouco tempo de vida do petiz, não há muito background a ser considerado –, mas sim de forma prospectiva. Portanto, é importante se atentar para o fato de que, se a consanguinidade não é, de per si, elemento determinante para a reinserção familiar, por outro lado, ela também não é um fator de somenos importância e, portanto, deve ser considerada nestes momentos, na medida em que aponta para um estado potencial de afeto, que precisa ser preservado e verificado se fará brotar entre o petiz e seus familiares biológicos o tão almejado amor de que carece a espécie humana. Desconsiderar a perspectiva futura do potencial afetivo dos familiares poderia levar a justiça a práticas higienistas, tão comuns nos tempos do menorismo, de retirar sumariamente crianças de seus pais, negando-lhes a perspectiva de contato com outros familiares, eventualmente, idôneos e dispostos a ficar com o petiz, mas que, por um motivo ou outro, não tiveram oportunidade de se aproximar de seu pequeno neto, sobrinho ou irmão. Deve-se lembrar que, conforme apontou-se anteriormente 646 , as famílias, em situação de vulnerabilidade social ou violação de direitos, estão isoladas de um contexto maior de proteção familiar ou social e, nesse prisma, indicar caminhos com base tão só no que se vê a olhos nus – e não no estado potencial de afeto que se pode desenvolver a partir dos laços biológicos – pode levar a injustiças latentes, uma vez que referentes a um estado de coisas que não se vê, mas que deixará de existir enquanto caminho possível no futuro da criança. Foi essa dimensão potencial, a propósito, que fez com que a Corte Interamericana de Direitos Humanos revisse a decisão da justiça argentina no caso Fornerón, em que um pai a que não foi assegurado o direito de visitas a seu filho obteve ganho de causa na instância internacional, pois, ao não se lhe garantir os processos para a formação do vínculo afetivo, isso equivaleria à negação de um direito existente em estado latente.647 Decisões como essa demonstram que o agir da justiça da infância e juventude não se pode dar tão somente pela 645 Nos termos do art. 2º do Estatuto da Primeira Infância (Lei 13.257/16), entende-se por primeira infância a fase da vida que abrange os primeiros seis anos completos da criança. 646 Item 5.4. 647 Cf. nota de rodapé 141, p. 50. 206 conformação com o atual estado de coisas, o que equivaleria a um agir complacente e resignado diante de uma série de violações de direitos infantojuvenis, notadamente sabendo que o petiz, como ser vulnerável, pode ser manipulado por pessoas maiores com quem tenham afeto. O desafio que resta, então, nessas situações, é o de a justiça trabalhar dentro de um prisma de celeridade que atente para a oportunização de chances para o desenvolvimento afetivo intrafamiliar potencial, porém atento ao tempo da criança, que é urgente e cujo decurso traz maiores impactos para ela do que para os adultos. A reintegração à família, nuclear ou ampliada, representa um processo complexo, pois se trata da aproximação entre pessoas com demandas, necessidades e expectativas próprias. Mesmo nas hipóteses em que existe vínculo afetivo entre o petiz e sua família natural, o desafio da recolocação familiar mostra-se delicado, pois, em tais demandas judiciais, encontramo-nos diante de três tempos, que coexistem em permanente estado de tensão: o tempo das instituições (com destaque aqui para o Poder Judiciário); o tempo dos pais; e o tempo da criança. Enquanto o tempo da justiça tende a ser bastante moroso – sobretudo, no Brasil, onde as Varas da Infância e Juventude são, em regra, mal estruturadas quanto às suas equipes técnicas648 –, o tempo dos adultos tem um timing diverso do do universo infantil. Como asseveram Goldstein, Freud e Solnit: Diferentemente dos adultos que aprendem a prever o futuro e assim a saber esperar, as crianças têm um senso interior de tempo baseado na urgência de suas necessidades instintivas e emocionais. […] Assim, o sentido da passagem do tempo para a criança depende da parte da mente que faz a medição. Pode ser a parte sensível, racional, que aceita as leis do mundo exterior, ou a parte impulsiva, egocêntrica, que ignora as coisas em torno e que está voltada exclusivamente para a busca do prazer. A criança pequena parte, desta última forma, de seus impulsos, sendo incapaz de tolerar atrasos e esperas. O protelamento de ações e a previsão das consequências são adquiridos muito gradativamente, acompanhando o amadurecimento da personalidade. Uma criança experimentará um dado período de tempo não de acordo real, medida objetivamente pelo calendário e o relógio, mas de acordo com seus sentimentos puramente subjetivos de impaciência e frustração.649 Para os pequenos, o tempo corre, pois, mais veloz e traz maiores impactos para o seu desenvolvimento. Quando se está diante de demandas cujo objeto se relacione com o desfazimento do vínculo familiar entre pais e filhos, a perspectiva do tempo alcança maior grau de dramaticidade, uma vez que a demora dos pais em responder às medidas de proteção 648 Nesse sentido, cf., a seguir, item 6.1.3. 649 GOLDSTEIN, Joseph; FREUD, Anna; SOLNIT, Albert J. No interesse da criança? Tradução: Luis Cláudio de Castro e Costa. São Paulo: Martins Fontes, 1987, p. 29-30. 207 eventualmente aplicadas a si diminuem as possibilidades de a criança encontrar a disponibilidade de terceiros para recebê-la em adoção. O grande desafio da atenção judicial ou extrajudicial à criança e ao adolescente decorre do fato de que, se, por um lado, o atendimento deve ser feito considerando o conjunto de membros do lar, por outro, os direitos ali discutidos referem-se a titulares cujas respectivas noções de tempo são substancialmente diversas umas das dos outros. Uma tutela adequada ao petiz implica, em regra, o cuidado de seus pais. Entretanto, o fornecimento de meios para que os genitores possam superar as dificuldades socioeconômicas ou biopsíquicas que lhes acometem pode representar um tempo enorme para a criança, como, por exemplo, os casos de tratamento em saúde mental para o pai ou a mãe com problemas de dependência química. O equilíbrio entre os interesses das instituições, dos adultos e das crianças não é fácil e reclama dos atores sociojurídicos a sensibilidade para, primeiro, priorizar na lide a demanda de tempo mais urgente, a da criança, e, a partir daí, estabelecer metodologias, prazos e procedimentos apropriados para dar vazão aos anseios infantojuvenis.650 É importante que os atores da justiça que tratam com causas que versem sobre a garantia do direito à convivência familiar estejam atentos à necessidade de trâmite prioritário para esses feitos, onde sejam ofertadas aos familiares, por um lado, as oportunidades necessárias à superação das limitações impostas ao lar, mas, por outro ângulo, a devida celeridade no impulso processual da causa. Uma segunda ressalva nesta altura se faz necessária. O só fato de o tempo do petiz ser urgente – daí o estabelecimento da prioridade absoluta constitucional para a efetivação dos seus direitos – não deve autorizar a justiça a tomar medidas açodadas que, para proteger um interesse, solapam uma série de procedimentos e direitos previstos na legislação infancista. O que deve ocorrer é a observação do procedimento legal célere651, pautado nos princípios da 650 Nesse sentido, é de se ver que o ECA estabelece, por exemplo, prazos próprios para as ações que tratem da destituição do poder familiar dos pais (cento e vinte dias, nos termos do seu art. 163) e do acolhimento institucional de crianças e adolescentes (seis meses, cf. art. 19, § 1º). De igual modo, são previstos procedimentos próprios para esses feitos (ECA, 155 a 163, sobre as ações de destituição do poder familiar, e art. 101, § 1º e ss., sobre o acolhimento institucional), bem como metodologias próprias, constantes, dentre outros, do art. 100, parágrafo único, da Lei 8.069/90. 651 Pela lei, a ação de destituição do poder familiar deve ser concluída em um prazo de 120 (cento e vinte) dias. Esse procedimento judicial deve representar a última fase de atendimento à família, pois decorre – ou deve decorrer – do prévio acompanhamento extrajudicial da família, desde o qual se tenha oportunizado à família o fornecimento de serviços públicos aptos a superar a situação de violação de direitos verificada. Na prática profissional como promotor de justiça, esse prazo dificilmente é observado, ora pela estrutura deficitária dos órgãos de defesa dos direitos infantojuvenis – aqui incluso os órgãos jurisdicionais –, ora pelo tempo que se espera muitas vezes para a recuperação dos genitores. Mesmo querendo evitar soluções aritméticas para problemas complexos de direitos humanos, tem-se que, contando o tempo processual, de cento e vinte dias, e o tempo extrajudicial, em que o Ministério Público discute junto com a rede de proteção os encaminhamentos protetivos devidos à família, o ideal é que, em um ano, a situação jurídica da criança já esteja definida ou próxima de definição, tendo em vista os impactos que o decurso do tempo causam para si, 208 intervenção precoce e da atualidade652, num contexto em que os direitos são observados, e as oportunidades sejam asseguradas aos familiares. Um agir contrário a tais premissas, pode levar a justiça da infância e juventude – cujo público atendido é, em sua maioria, composto por famílias de baixa renda e inseridas em ciclos históricos de violação de direitos – a resvalar em práticas higienistas, pelas quais, diante da fragilidade educacional e material dos genitores biológicos, retiram-se sumariamente os infantes de suas famílias desestruturadas, alocando-os em outros lares ou em abrigos, sem aferir antes se os direitos violados foram compensados por medidas reparadoras do dano. Não deixa de ser curioso o fato de que, apesar de a teoria liberal estar ligada em sua origem à ascensão da classe burguesa – daí a ênfase às clássicas liberdades econômicas e de propriedade653 –, ela tenha, atualmente, especial relevância para famílias menos abastadas, em que, por conta de históricas, intergeracionais e cíclicas fragilidades socioeconômicas, o grau de vulnerabilidade de seus membros é tamanho que, durante as audiências judiciais, os pais apresentam-se tão apáticos, que, praticamente, resignam-se a tudo que lhes possa ser imposto pelo Estado – inclusive a eventual perda do seu poder familiar ou sanções administrativas, cíveis ou penais. Nesse cenário, sem a combatividade do seu cliente, não raro faltarão ao advogado os subsídios de que necessita para promover uma defesa substanciosa. E some-se a isso um cenário institucional em que se verifica a baixa implementação da Defensoria Pública no país, e as consequências podem ser ainda mais desastrosas. A atuação jurisdicional mais voltada à pauta das carências da criança do que a de seus direitos – dentre os quais o direito à convivência familiar e comunitária, o que, como visto, num viés prestacional, significa o empoderamento dos atores do lar para com sua função de autocuidado e cuidado dos demais654 – pode fazer com que a justiça resvale em práticas benemerentes, em que as respostas fazem-se resignadas perante negações de direitos que, antes de serem recebidas com certa naturalidade, deveriam ser, pelo menos sobretudo se afastada de um lar e acolhida em uma instituição. É por esse motivo que o ECA, com a alteração promovida pela Lei da Convivência Familiar, estabelece que o prazo máximo para o acolhimento institucional deve ser de dois anos, “salvo comprovada necessidade que atenda ao seu superior interesse, devidamente fundamentada pela autoridade judiciária” (art. 19, § 2º, do ECA). Mas, para que os prazos da lei sejam obedecidos, é fundamental que a intervenção seja tão mais precoce quanto possível, nos termos do ECA, art. 100, parágrafo único, VI, o que, por sua vez, aponta para a necessidade de os atores integrantes do Sistema de Garantia dos Direitos da Criança e do Adolescente – do qual, nos termos da Resolução 113/2006 do Conanda, fazem parte não apenas os órgãos de defesa (Judiciário, Ministério Público, Delegacias, Conselhos Tutelares etc.), mas também os de promoção dos direitos, tais como a saúde, a educação e a assistência social – atuarem de forma articulada e integrada. Quão mais amplo o olhar de proteção – o que aponta para uma abordagem descentralizada do Judiciário –, mais precoce tende a ser a intervenção. 652 ECA, art. 100, parágrafo único, VI e VIII. 653 Cf. DIMOULIS; MARTINS, op. cit. 654 Itens 5.1 e 5.2. 209 judicialmente, enfrentadas a fundo. Em tais tipos de demanda, faltará, pois, a almejada paridade das armas na construção probatória, restando pavimentada a via para a vitória fácil de uma das partes processuais sobre a revelia material da outra. Daí porque, nos feitos da infância e juventude, a construção probatória digna passa pela própria ressignificação do papel dos pais na vida de seus filhos – ressignificação, essa, que deve ocorrer não só na mente dos próprios genitores, como também na dos atores do direito que com aqueles tratam. Dessa ressignificação, poderá ser reelaborado o papel parental dentro da disputa judicial em que os pais estão inseridos, em que eles serão menos réus e mais coautores da transformação de que a família precisa. A célula familiar passa então a ser vista como um núcleo revestido de proteção jurídica, no qual toda intervenção do poder público desafia o correlato processo de justificação constitucional. Não se trata aqui de mera retórica ou ideologia, mas sim de um dos princípios para a aplicação de medidas de proteção à criança e ao adolescente, o da responsabilidade parental, pelo qual “a intervenção deve ser efetuada de modo que os pais assumam os seus deveres para com a criança e o adolescente”.655 Não estamos a afirmar que a justiça há de ser condescendente com cenários de violação de direitos por parte de pais negligentes, oportunizando-lhes um prazo sem fim, ou ainda deva passar a mão na cabeça de delinquentes – críticas comuns ao Estatuto da Criança e do Adolescente. Não. O que se afirma aqui é tão somente que se deve oportunizar às famílias e às pessoas que ingressam em demanda perante a Justiça da Infância e Juventude algo que talvez jamais lhes tenha sido oportunizado: as condições objetivas que compõem os mínimos sociais a que se refere a Lei Orgânica de Assistência.656 Assim, no Direito da Criança e do Adolescente, produzir a prova importa, primeiro, em acolher a criança, o adolescente e sua família. Na justiça da infância, portanto, o conceito paridade das armas ganha uma acepção para além da processual: a paridade que se deve buscar é, também, material. É fundamental indagar se aos pais ou parentes foram garantidas as oportunidades para o desenvolvimento dos vínculos afetivos, o que aponta não só para os aspectos subjetivos de cada familiar – que não raro se distorcem numa análise eivada de preconceito do operador do direito em torno da má índole dos envolvidos –, mas também para a aferição das condições objetivas do entorno doméstico, em que se deve aferir o grau de acesso dos membros do lar às redes sociais de apoio e aos serviços públicos essenciais para o alcance de uma vida digna. 655 ECA, art. 100, parágrafo único, IX. 656 Cf. art. 1º da Lei 8.742, de 07 de dezembro de 1993. 210 Tal agir é um direito da criança e do adolescente, não um favor. Caso, porém, uma vez ofertadas as condições materiais para a mudança de rumo da família, os pais mostrem-se recalcitrantes em não abdicar de uma postura negligente para com sua prole ou, no caso da adoção intuitu personae, resolutos na decisão de entregar seu filho, nesse momento, a justiça há de tomar em conta a possibilidade de, agora responsavelmente, colocar o pequeno em uma família substituta. Porque esta pesquisa abraça o referencial teórico do desenvolvimento, tal qual desenvolvido na obra de Amartya Sen657, em que se dão destaque aos resultados abrangentes (no caso, a leitura do contexto sociofamiliar que levou os pais a abdicar do poder familiar de sua criança, indagando os porquês da negativa da família nuclear e extensa) mais do que aos resultados de culminação (que vem a ser o momento judicial em que os genitores dizem “sim” ou “não” para a entrega de seu filho em adoção), a garantia do direito à convivência familiar importa, na perspectiva da criança e do adolescente, a necessidade de se aferir não só o estado atual de coisas, mas também o futuro, para que se possa dar à família as oportunidades e facilidades de que trata o art. 3º do ECA, necessárias ao desenvolvimento afetivo familiar. Tal abordagem é uma decorrência do estado de autonomia progressiva da criança – que aponta para as suas liberdades atuais, graduais e futuras – e, consequentemente, implica também para os atores da justiça uma exigência ética de os petizes terem as portas de suas futuras decisões abertas.658 Como titulares de direitos, a criança e o adolescente são credores, portanto, de um agir estatal responsável para com suas liberdades, sobretudo a familiar, e, portanto, os órgãos de proteção devem desenvolver técnicas e sensibilidade para olhar a demanda pelo prisma dos mais novos. Receber a justiça apressadamente a tratativa extrajudicial das partes sobre a adoção de uma criança, sem as devidas cautelas processuais, pode facilmente migrar o referencial de análise dos direitos para os da benemerência e, assim, a medida de colocação em família substituta de uma criança deixa de ser um interesse seu juridicamente tutelado e passa a funcionar como um favor que se faz ao petiz, um ato de bondade que não carece de maiores questionamentos ou cuidados. Assim, a título de ilustração, à prática ainda tão comum de exposição de crianças na porta de pretendes à adoção deve a justiça se antepor a fim de resguardar os interesses do petiz. Se um dos genitores – em regra, a mãe – opta por colocar seu filho na porta de terceiras 657 Item 4.4. 658 Cf., a propósito, nota de rodapé 464, p. 143. 211 pessoas, esse ato não deveria ser suficiente para a justiça, por si só, dar guarida à relação que daí se estabelece, sobretudo, se provocada celeremente, antes da formação de vínculo afetivo entre o petiz e os adotantes659. Isso porque, sendo o recém-nascido sujeito de direitos, como já visto, os seus interesses não necessariamente coincidem com o de seus pais e, diante de situações de fragilização dos seus direitos por conduta dos pais, o Estado deve intervir na relação a fim de resguardar a posição de vulnerabilidade em que se encontrar a criança. A prática de expor a criança para a adoção perante terceiros com quem ela ou seus pais não tenham qualquer relação de afinidade e afetividade previamente constituída não condiz com o status de sujeito normativo do petiz e, na medida em que se abdicam das necessárias cautelas que a sua colocação em família substituta implica – que, nos termos do ECA, art. 101, IX, configura uma medida de proteção e, nesse sentido, deve ser aplicada e acompanhada pela autoridade competente, qual seja: o juiz de direito, exclusivamente660 –, se perpetua uma prática já revogada pela qual se desconsidera a proteção jurídica do infante pelo seu próprio prisma, tornando a sua tutela uma mera projeção do ato de disposição parental, sem maiores questionamentos a partir princípio do superior interesse da criança e do adolescente. E isso é, essencialmente, um ato de objetificação do ser, instrumentalizando-o em nome do interesse de outrem, dentro de uma perspectiva adultocêntrica da demanda. Como vimos no item 3.9, apesar de a doutrina civilista nacional referir-se ao poder familiar como um feixe de direitos e deveres relativos unilateralmente aos adultos, sob o prisma constitucional, entendemos que, a partir da noção de integridade familiar, tal qual definida na obra de Goldstein, Freud e Solnit, esse instituto pode receber uma dimensão de reciprocidade para se referir ao complexo de direitos não só dos pais, mas também de seus filhos. Nesse prisma, o poder familiar da criança constitui-se do seu rol de direitos fundamentais, dentre os quais o direito de ter pais autônomos. Entretanto, essa autonomia parental, se, por um lado, é do interesse dos filhos, por outro ângulo, também tem limites e não se pode elevar a um ponto tal em que se fragilizam as liberdades fundamentais do petiz ou sua condição de sujeito de direitos para objetificá-lo. 659 Sobre a questão da formação do vínculo, discorre-se mais adiante, no item 6.1.5. 660 Nesse sentido, verifique-se que, segundo o Estatuto da Criança e do Adolescente, dois órgãos da rede de proteção receberam competência para aplicar as medidas de proteção aos petizes: administrativamente, o Conselho Tutelar e, judicialmente, a Vara da Infância e Juventude. Entretanto, no rol de atribuições do Conselho Tutelar relativos às medidas de proteção (art. 136, I, do ECA), verifica-se que a única medida para a qual não lhe foi conferida atribuição de aplicação é justamente a constante do inciso IX do art. 136 da Lei 8.069/90, relativa à colocação em família substituta. Essa sistemática é justamente para evitar os males, sobre os quais já se tratou anteriormente (cf. item 6.1.1), da circulação de crianças, fenômeno que lhes colocam em situação de incerteza civil e torna o seu direito à convivência familiar ilíquido e incerto. 212 A condição de sujeito de direitos da criança demanda então para o Judiciário o dever não só ético, mas também – para os que precisam da coercibilidade para adotar práticas responsáveis – legal, pelos quais se devem investigar questões tais como: quem está abdicando da criança? Apenas um dos genitores (em regra, a mãe)? E onde está o pai ou a família paterna do bebê? Por que os pais abdicam da criança? Em recebendo os genitores o suporte de programas governamentais, eles teriam disposição para ficar com seu filho? Há na família extensa pessoas dispostas a ficar com o pequeno com quem este ou, em se tratando de bebês, os seus pais já tenham laços de afeto e afinidade constituídos? A perspectiva procedimental do melhor interesse, sobre a qual falamos no item 2.7.2, representa uma garantia para o direito criança e do adolescente e indica para os atores da justiça um caminho pontuado de cautelas, a fim de que suas decisões não se baseiem exclusivamente nas asserções de quem tem capacidade processual ou postulatória – e, não raro, financeira –, mas também nos interesses daqueles que materialmente participam da demanda: as crianças e adolescentes. No caso do direito à convivência familiar, essa liberdade, na perspectiva do petiz, requer dos atores da justiça que, diante da decisão dos pais em abdicar de seus laços parentais e da disponibilidade de terceiras pessoas em receber a criança recém-nascida, verifiquem-se uma série de outras questões que não somente o aceite dos adultos falantes. É importante aferir o contexto em torno deste “sim, renúncio”. Não se trata aqui de defender a desconsideração da vontade dos genitores – sobre essa questão discorremos mais adiante661 –, nem de um olhar insensível para com o ato de amor e solidariedade que é receber uma bebê em adoção, mas sim de respeito à condição de sujeito de direitos das crianças (não só das mais novas, mas também das mais velhas, apesar de dificilmente ocorrer um caso de adoção dirigida tratando dessas últimas) e dos adolescentes, condição esta que não se reduz a uma simples retórica performática, mas demanda efetivamente uma série de cautelas processuais e análises fundamentadas. Ademais, a análise cautelosa das adoções intuitu personae faz-se devida não só por respeito ao status de sujeitos de direitos das crianças, mas também ao de seus genitores – que não raro abdicam de seus filhos em contexto de fragilidades socioeconômicas ou emocionais662 –, pois, muitas vezes, na pressa de se receberem recém-nascidos, o tempo dos adotantes solapa o dos genitores e a oportunidade que aí se estabelece é pautada mais no anseio de ter filhos dos primeiros, o qual, apesar de justo e legítimo, pode ser incompatível 661 Cf. item 6.1.4. 662 Cf, a propósito, GUEIROS, Dalva Azevedo. Adoção consentida: do desenraizamento social da família à prática da adoção aberta. São Paulo: Cortez, 2007, p. 111. 213 com o direito da família, os processos e as oportunidades que esta requer e com os desejos mais profundos dos pais. A celeridade da justiça não se pode, portanto, confundir com pressa. E o ato de solidariedade, fundamental à promoção dos direitos da criança e do adolescente, não pode ser usado como desculpa para fragilizá-los. 6.1.3 A ética e a política pública em torno do cadastro de adoção Do debate doutrinário e jurisprudencial em torno do cadastro de adoção, parece claro para as correntes pró e contra a observância dessa ferramenta que há nela uma importante dimensão ética para o direito da criança e do adolescente. A polêmica, como visto, refere-se não tanto à valia do cadastro, mas sim à sua estrita observância, nos termos do ECA, art. 50, § 13, ou, ao contrário, à possibilidade de sua flexibilização no caso concreto. Entretanto, mesmo havendo relativo consenso quanto à serventia de uma lista de adoção, é de se ver que tão ou mais delicada quanto à discussão em torno da relativização do cadastro é a análise dos pressupostos dessa ferramenta e do que ela requer para uma implementação à altura da proteção integral. Por isso, no presente tópico, não se pretende discutir os pressupostos, legais ou não, para a relativização do cadastro, mas sim para a sua existência – tema a que pouco se dedica a doutrina nacional e, menos ainda, o Poder Judiciário, enquanto função estatal a quem caberia desenvolver políticas relacionadas ao melhoramento da atividade jurisdicional. Tem-se que qualquer pesquisa que se dedique ao estudo do direito à convivência familiar da criança, do adolescente e de seus pais deve atentar não só para os resultados de culminância – no caso, a decisão sobre relativizar ou não a lista de adoção –, mas também para o resultado em sua perspectiva abrangente, quando se deve atentar para a política, principal, na qual o cadastro insere-se e é daquela um acessório. A essa tarefa lança-se nesta parte do trabalho. A ideia motriz em torno do estabelecimento de uma lista de crianças e adolescentes em condições de serem adotados e de pessoas interessadas em adotar visa a permitir que tanto o momento do desfazimento dos vínculos paternos ou maternos, como o da inserção de petizes em lares substitutos sejam acompanhados pela justiça, a fim de evitar os males da circulação precária de crianças, sobre os quais discute-se no item 6.1.1. Entre as normas de caráter público, de observação cogente, e as de feição privada, mais adaptáveis aos intentos dos covenentes, a decisão de desfazimento do vínculo familiar, por se tratar de um laço bilateral, referente a pais e filhos – e não mais, portanto, atrelado tão somente ao interesse dos 214 genitores, como ocorria no Código de Menores, com o instituto da Delegação do Poder Familiar663 –, coloca tais situações na esfera de regulação do primeiro grupo normativo. O cadastro de adoção visa a manter o olhar da justiça com o foco primeiro nos direitos da família e, em seguida, preenchidos os pressupostos jurídicos para o término dos laços paterno- filiais, no desejo dos adotantes de desenvolver sua parentalidade. As cautelas legais visam a evitar que a criança torne-se objeto da mercantilização do desejo de ter filhos ou ainda que os familiares vejam-se desamparados pelo Estado na garantia do seu direito à convivência familiar e comunitária. Como ferramenta, o cadastro busca evitar que a ética do cuidado, de natureza privatista, suplante a ética da justiça, a qual, em matéria de direitos da infância, dado o peculiar estágio de desenvolvimento da criança e do adolescente, apesar de não anular a primeira, deve necessariamente antecedê-la.664 A ética do cadastro aponta então, primeiramente, para um sistema de normas reguladas precipuamente pelo ideal de justiça com atenção aos interesses infantojuvenis. Afasta-se com o cadastro de um agir pautado pela benemerência para com a criança, em que o olhar afrouxa-se e, com ele, os direitos. A Lei da Convivência Familiar vai de encontro a uma tradição secular de exposição de crianças – outrora na Roda dos Expostos, posteriormente mediante a circulação dos pequenos em famílias substitutas – e de complacência com a violação dos direitos fundamentais dos seus genitores. Por muito tempo, a ausência do Estado brasileiro na garantia dos direitos fundamentais infantojuvenis e a compreensão absenteísta do Poder Judiciário no controle de políticas públicas deixou à sociedade, sob um viés caritativo, a prática de acolhimento de crianças e adolescentes e a definição de sua colocação em famílias substitutas. É ainda muito comum no país – especialmente na região Nordeste, de onde é realizada esta pesquisa – a pactuação privada em torno da adoção de crianças, à margem de qualquer acompanhamento governamental. Há uma forte cultura enraizada no meio social pela qual os laços de solidariedade têm definido e conformado os vínculos jurídicos que se estabelecem entre pais e filhos adotivos. Mudar tal cenário, implica não só o estabelecimento de novos procedimentos e formas, mas também a mudança de mentalidade da população em geral e, até, o estabelecimento de uma nova cultura para com os direitos da criança e do adolescente. Implica, portanto, a compreensão de que a questão da adoção não se restringe ao debate em torno da observância de um acessório – o cadastro –, mas sim que ele se insere 663 Cf. item 6.1.1. 664 Sobre a interrelação da ética do cuidado com a da justiça, cf. capítulo 5, item 5.3. 215 dentro de um contexto maior, principal, relativo ao estabelecimento de uma política pública de promoção, proteção e defesa do direito fundamental de crianças e adolescentes à convivência familiar e comunitária. Dessarte, conforme esclarece o Comitê da ONU de monitoramento da Convenção sobre os Direitos da Criança, ao analisar o art. 3.1 da CDC, que trata do parâmetro do melhor interesse da criança, informa que esse pode tanto receber uma acepção individual, como também coletiva. 665 E elaboração coletiva em torno do melhor interesse aponta necessariamente para a definição e consecução de políticas públicas que concretizarão os ditames relativos ao interesse e à prioridade absoluta dos direitos da criança e do adolescente. No caso da adoção, é esse enfoque coletivo do melhor interesse que fez com que se criasse a ferramenta do cadastro de adoção, preocupando-se o legislador como uma nova ética, pautada sobre os direitos da criança e do adolescente, no que toca à medida de proteção relativa à sua colocação em família substituta, que deve ser acompanhada pelos órgãos de proteção aos direitos infantojuvenis. E é ainda esse olhar transindividual que também faz com que o cadastro seja uma ferramenta apta a aproximar, responsavelmente, os desejos de pessoas que sonham em ser pai, mãe e filho e, assim, poderiam constituir uma família. Trata- se, portanto, de um instrumento apto a permitir, em tese, a agilidade na recolocação familiar dos pequenos. Em tese… Sim, em tese, pois não se deve perder de vista que o cadastro de adoção é apenas uma ferramenta, um acessório a serviço de um principal, que vem a ser a política de garantia do direito à convivência familiar e comunitária. E quando se fala em política, não se está a referir tão somente ao Poder Executivo, mas também a uma política intersetorial, abrangente também do Estado-Juiz, normalmente esquecido – ou se deixando esquecer – em matéria de políticas governamentais de promoção do direito infantojuvenil à convivência familiar e comunitária. Na esfera de prevenção, o Poder Judiciário tem um papel que não se restringe à sua clássica função jurisdicional, mas lhe demanda um esforço bem maior. 665 Segundo o Comitê, “o termo ‘crianças’ implica que o direito de ter seu melhor interesse devidamente considerando se aplica não apenas às crianças individualmente consideradas, mas também em geral ou enquanto grupo. Desta forma, os Estados têm a obrigação de acessar e tomar como consideração primordial o melhor interesse das crianças enquanto grupo ou em geral em todas as ações relacionadas a elas” (Tradução livre). No original: “However, the term ‘children’ implies that the right to have their best interests duly considered applies to children not only as individuals, but also in general or as a group. Accordingly, States have the obligation to assess and take as a primary consideration the best interests of children as a group or in general in all actions concerning them”. 216 Nesse sentido, por exemplo, o art. 88, VI, do ECA, que dispõe sobre as diretrizes da política de atendimento dos direitos da criança e do adolescente, estabelece como uma delas [...] integração operacional de órgãos do Judiciário, Ministério Público, Defensoria, Conselho Tutelar e encarregados da execução das políticas sociais básicas e de assistência social, para efeito de agilização do atendimento de crianças e de adolescentes inseridos em programas de acolhimento familiar ou institucional, com vista na sua rápida reintegração à família de origem ou, se tal solução se mostrar comprovadamente inviável, sua colocação em família substituta, em quaisquer das modalidades previstas no art. 28 desta lei. No mesmo sentido, quando o Estatuto fala, a partir do acréscimo feito pela Lei 12.010/09, dos cursos preparatórios para os pretendentes à adoção, informa que eles serão oferecidos pela Justiça da Infância e da Juventude “preferencialmente com apoio dos técnicos responsáveis pela execução da política municipal de garantia do direito à convivência familiar”.666 Por esse motivo, na Convenção sobre os Direitos da Criança, o melhor interesse da criança, quer em sua concepção individual, quer coletiva, tem como destinatário as três funções governamentais clássicas, a legislativa, a administrativa e a judiciária. 667 A perspectiva coletiva do interesse superior do petiz implica o desenvolvimento de planejamento, preparo e estrutura de apoio. Importa, em resumo, o desenvolvimento de políticas voltadas à sua implementação, e, nesse ponto, tem-se uma séria lacuna ainda aberta pela omissão do Estado brasileiro e, com especial ênfase, de nosso Poder Judiciário. A plena efetivação da atividade jurisdicional no direito da infância e juventude pressupõe uma estrutura de apoio que lha antecede e é pressuposto para o seu bom exercício. Sendo o direito da infância uma área da ciência jurídica que é iminente interdisciplinar, o agir da justiça pautado tão somente pelo prisma solipsista dos juristas termina por reduzir os problemas sociais com que eles lidam a respostas formatadas, segundo os limites de sua pré- compreensão, deixando, assim, de compreender plenamente as causas multifatoriais para os dramas familiares com que se deparam em sua atividade forense – e, sem conhecerem as causas das patologias sociais, não se poderá chegar a soluções para o seu tratamento. A cognição de um fenômeno complexo tal como a falência das funções de cuidado parental em um lar demanda do jurista que ele possa reconhecer as limitações que há na subjetividade de seu olhar para que assim se abra a uma abordagem mais objetiva, advinda do 666 ECA, art. 197-C, §1º. 667 In verbis: “Artigo 3.1. Todas as ações relativas às crianças, levadas a efeito por instituições públicas ou privadas de bem estar social, tribunais, autoridades administrativas ou órgãos legislativos, devem considerar, primordialmente, o interesse maior da criança”. (Grifos nossos). 217 contato de sua subjetividade com outras tantas oriundas de outras áreas do conhecimento humano, cujo encontro de visões vai-se orientando sistematicamente tanto pelos postulados da ciência do direito, como também pelos da psicologia, do serviço social, da pedagogia, da antropologia, da sociologia, da história, dentre outros. No caso do presente tema, a redução da discussão do desfazimento dos laços paterno-filiais à simples discussão sobre a observância ou não do cadastro de adoção, sem verificar quais são as causas para a ruptura dos vínculos e a exposição da criança à boa vontade de terceiros desconhecidos, implica uma análise deslocada e reducionista da garantia do direito à convivência familiar e comunitária. Isso porque as discussões jurisprudências em torno da adoção intuitu personae deixam, na maioria das vezes, de atentar para toda o contexto familiar, social e institucional, ao redor do ato de entrega da criança. Familiar, porque deixa-se de verificar adequadamente as potencialidades da família nuclear ou extensa para ter consigo seu filho. Social, porque não se analisam e trabalham adequadamente os vínculos comunitários da família, que poderiam colaborar com perspectiva de empoderamento dos genitores em sua função parental. E institucional, porque, por mais que se tenha como inescapável a relativização da regra do cadastro de adoção em virtude da formação de vínculos afetivos entre o petiz e os adotantes, o Poder Judiciário, enquanto administração superior, continua deixando de atentar para o que se deixou de fazer, em termos de políticas jurisdicionais, para um agir preventivo para com aquela entrega e negociação à margem da justiça sobre a colocação da criança em um lar substituto de pessoas com quem nem ela, nem seus pais tinham qualquer tipo de relação anterior de afeto, mas cuja aproximação deu-se de forma interessada pela busca de um filho para os adotantes. Enfrentar seriamente uma cultura secular de exposição de bebês e resignação de rompimento dos vínculos entre pais e filhos demanda um agir, sobretudo, preventivo por parte do poder público e, no caso do Poder Judiciário, isso requer a pré-disposição para um novo agir, menos restrito ao espaço dos fóruns. Demanda uma atuação da justiça mais aberta ao desenvolvimento de projetos, programas e parcerias com instituições locais (equipamentos de saúde, de assistência social e educacionais), governamentais e da sociedade civil, visando ao esclarecimento em torno dos direitos da criança, do adolescente, de seus pais, à luz da Doutrina da Proteção Integral – que para ser integral, precisa ser integrada a outros espaços de discussão que vão muito além do gabinete e da sala de audiência do juiz de direitos. Quanto mais olhares de proteção houver, melhor serão as identificações de vulnerabilidades sociais, que, assim, não evoluirão para a violação de direito ou porque a família teve sua função de cuidado recomposta ou porque, caso isso não ocorra, a criança foi afastada do lar 218 antes que seus direitos fossem malferidos de forma profunda e, não raro, irremediável. Como se viu no capítulo 5, em pesquisas realizadas com crianças e adolescentes acolhidos, tem-se verificado que a superação do problema torna-se mais dificultosa tanto pela inexistência de uma atuação preventiva por parte dos atores incumbidos da proteção à família, como também porque os equipamentos da justiça estão, em regra, desarticulados dos serviços e programas de promoção dos direitos, bem como das redes sociais de apoio ao lar.668 E, então, sem a aproximação das redes de promoção dos direitos e de solidariedade que se formam ao redor da família, faltará à juridicidade as vias de colaterais de cuidado que, em caso de obstrução de um dos canais de afeto parental, poderiam trazer maiores perspectivas para a garantia do direito à convivência familiar do petiz. A solidariedade potencializa então a intervenção precoce que se espera da rede de proteção aos direitos infantojuvenis, tal qual preconiza o ECA, art. 100, parágrafo único, VI. Sendo assim, caso os juízes não disponham de uma estrutura de apoio adequada, composta por profissionais de áreas interdisciplinares ao direito, eles não terão condição de realizar o trabalho de prevenção que se requer da jurisdição na garantia dos direitos fundamentais da criança e do adolescente. Quedarão os magistrados isolados em seu gabinete, tentando, em vão, indeferir práticas sociais de destinação irregular de bebês, sem ter como se antepor aos potenciais danos e trabalhar a prevenção do rompimento do vínculo parental-filial e a colocação responsável da criança num lar. O juiz será um mero expectador da pactuação e da exposição privada de neonatos. Sem o assessoramento adequado, as Varas da Infância e Juventude do país não terão como apoiar iniciativas forjadas no seio social, como os grupos de apoio às adoções regulares, ou ainda alimentar e manter atualizado o Cadastro Nacional de Adoção, realizando as buscas ativas necessárias para aproximar crianças e adolescentes de pessoas dispostas a adotar, os quais, dada a precariedade da estrutura dos órgãos jurisdicionais, quedam em uma lista de espera sem a perspectiva de satisfação dos seus legítimos desejos de formar e integrar uma família. Apesar de os arts. 150 e 151 do ECA preverem a obrigação para o Poder Judiciário de criar e implementar as equipes interprofissionais, cujas funções são as de “fornecer subsídios” aos magistrados, bem como “desenvolver trabalhos de aconselhamento, orientação, encaminhamento, prevenção e outros” (grifos nossos) sob supervisão da autoridade judiciária, é fato público e notório para os que trabalham com a justiça da infância e juventude que, passados, neste momento, 26 anos de vigência do Estatuto da Criança e do Adolescente, 668 Cf. item 5.4. 219 muito pouco do ditame legal foi observado pelos Tribunais de Justiça do Estados – sob cuja jurisdição se desempenha a maior parte da competência relativa ao ECA. Exatamente por isso, uma das primeiras recomendações do então recém-criado Conselho Nacional de Justiça – editada em 2006, após dezesseis anos de vigência do Estatuto da Criança e do Adolescente – foi para que os Tribunais de Justiça implantassem “em todas as comarcas do Estado” as equipes técnicas interprofissionais de que trata o Estatuto da Criança e do Adolescente.669 Entretanto, mesmo após a recomendação – que nada mais fez do que repetir o que já constava, de forma cogente, na lei –, se atentar-se para os estudos e levantamentos que se produziram deste então, percebe-se claramente que muito pouco foi feito pela justiça brasileira a fim de atender aos ditames legais, num total descompasso com a prioridade absoluta que a Constituição dedica, em seu art. 227, aos interesses da infância e da juventude. Nesse sentido, conferir dois estudos realizados em momentos distintos no Brasil – respectivamente, em 2008 e 2014 – primeiramente pela Associação Brasileira de Magistrados, Promotores de Justiça e Defensores Públicos da Infância e da Juventude e, depois, pelo Conselho Federal de Serviço Social, que apontam no mesmo sentido: o Poder Judiciário brasileiro no âmbito dos Estados não provê as Varas da Infância e Juventude do país com estrutura de apoio adequada.670 O desamparo da atividade jurisdicional no âmbito da infância e juventude gera então um duplo efeito perverso para as políticas públicas de promoção e garantia dos direitos dos mais novos: tanto a atividade jurisdicional se empobrece – pois enfrenta fenômenos cuja complexidade e resolução vai bem além do olhar jurídico –, como também sobrecarrega e desvirtua as equipes municipais socioassistenciais, que deveriam estar na ponta do atendimento desenvolvendo a prevenção e o fortalecimento dos vínculos familiares, mas, muitas vezes, deixam de fazê-lo para atender a demanda de órgãos de defesa dos direitos da criança e do adolescente, dentre os quais as varas judiciais da infância, família, idoso, as promotorias e os conselhos tutelares.671 Da mesma forma, o cadastro de adoção, se operacionalizado por pessoas 669 BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Recomendação nº 2, de 24 de abril de 2006. Disponível em: . Acesso em: 26 jul. 2016. 670 Cf. Associação Brasileira de Magistrados, Promotores de Justiça e Defensores Públicos da Infância e da Juventude. O Sistema de Justiça da Infância e da Juventude nos 18 anos do Estatuto da Criança e do Adolescente: desafios na especialização para a garantia dos direitos de crianças e adolescentes. Brasília: ABMP, 2008. E Conselho Federal de Serviço Social. Ofício CFESS Nº 041/2014. Brasília: CFESS, 2014. Disponível em: . Acesso em: 26 jul. 2016. 671 Cf. Conselho Federal de Serviço Social, op. cit. 220 despreparadas e desconecto da política local de promoção, proteção e defesa do direito à convivência familiar, nada mais é do que uma formalidade, da qual fazem partes pessoas iludidas, que provavelmente jamais serão contempladas em seu desejo de ser ou ter filhos. Mantido o atual cenário, tanto os cursos preparatórios como o acompanhamento das famílias que adotaram as crianças restarão de baixa efetividade e não haverá significa diferença entre as adoções acompanhadas pela justiça e o laissez-faire típico da exposição de crianças ainda tão comum no meio social. Tudo se reduz em importância e no seu potencial transformador da realidade e o que permanecesse é a complacência do Estado e da jurisdição com a prática de circulação de crianças, objetificando-as e instrumentalizando-as ao interesse de ter filhos de pessoas afastadas de sua ambiência doméstica. Deve-se também gizar que outra diretriz da política de atendimento aos direitos infantojuvenis é a da “mobilização da opinião pública para a indispensável participação dos diversos segmentos da sociedade”.672 Trata-se de um importante norte da lei, pois, o direito, por si só, é insuficiente para modificar uma cultura, principalmente quando sobre ela foi forjada toda uma prática social configuradora das colocações de crianças de tenra idade em lares substitutos. Porém, novamente, o implemento desse vetor legislativo requer planejamento, preparo e estrutura de apoio. Falta de profissionalismo e amadorismo com as políticas de promoção e proteção dos direitos humanos é uma marca bem presente na história do Estado brasileiro e sua superação exige o compromisso dos homens e mulheres públicos para com aquilo que Hesse chamou de vontade de Constituição.673 Sem isso não haverá como mudar a cultura e a mentalidade que não são de hoje. A lei, por si só, é insuficiente para enfrentar a realidade a que se refere. Do comprometimento com a norma constitucional nasce a sua força normativa; da sua falta, resta morta a letra. Resta então a pergunta: por mais quantos anos o Estado brasileiro – com destaque neste momento para o Poder Judiciário – continuará sendo objeto de estudos de aniversários emblemáticos do ECA em que se apontem a sua ineficiência e despreparo para com a garantia dos direitos fundamentais da criança e do adolescente? Não é preciso esperar o aniversário de trinta, quarenta ou cinquenta anos do Estatuto da Criança e do Adolescente – caso, é claro, em virtude de tantos movimentos reacionários à proteção integral, essa lei dure até lá –, pois, como diriam os iconoclastas personagens da série televisiva dos anos 1980, Juba e Lula, que expressaram os sonhos e anseios da última geração de jovens vivendo sob o pálio do 672 ECA, art. 88, VII. 673 Cf. nota de rodapé 121, p. 46. 221 menorismo: para os direitos infantojuvenis, “a hora é agora; o momento é já”. Desde 1988… Oxalá esta pesquisa seja, daqui a vinte e seis anos, apenas o defasado registro de um triste momento histórico das políticas de justiça para a infância e juventude no Brasil. Mas, olhando para o passado recente, ver-se-á que a tendência é que o quadro de inércia judicial – que se deveria dar tão somente em termos de processo, mas não de aprimoramento dos serviços jurisdicionais e outros essenciais – permaneça por mais algum tempo vigorando. 6.1.4 A adoção intuitu personae pelo ângulo dos genitores biológicos Considerando que a criança e o adolescente são sujeitos de direitos e a colocação em família substituta é, pela lei, medida relativa à proteção infantojuvenil674 – que, como tal, implica, para o bem ou para o mal, todo um novo horizonte de vida para o petiz – é de se perguntar se é juridicamente viável se discutir a adoção intuitu personae pelo prisma dos seus pais biológicos ou se, ao contrário, o instituto da adoção relaciona-se exclusivamente com o direito à convivência familiar de seus filhos. O art. 227 da Constituição, ao encartar a convivência familiar como um direito infantojuvenil, faz com que não pouca doutrina e jurisprudência tendam a vê-lo com referência à titularidade de direitos da criança e do adolescente, cujos interesses, como sujeitos autônomos de direitos que são, podem não coincidir com os de seus pais e, nesse sentido, opor-se a eles.675 674 As providências constantes do art. 101 do ECA, dentre as quais a colocação em família substituta (inciso IX), estão no capítulo do Estatuto referente às “medidas específicas de proteção” da criança e do adolescente. 675 Nesse sentido, cf. a referência feita à lição de Murillo Digiácomo no item 6.1, bem como a seguinte decisão do STJ, em cujo voto do relator trabalha-se a partir desta premissa unilateral do direito à convivência familiar: “AGRAVO DE INSTRUMENTO. REGULAMENTAÇÃO DE VISITAS. VISITAS POR AVÓS PATERNOS. DECISÃO QUE DEFERIU O ACOMPANHAMENTO POR PSICÓLOGA PARTICULAR. PEDIDO DE RECONSIDERAÇÃO QUE NÃO SUSPENDE O PRAZO PARA INTERPOSIÇÃO DE RECURSO. PRECLUSÃO. NECESSIDADE DE SUBMISSÃO DAS PARTES A PRÉVIO ESTUDO SOCIAL E PSICOSSOCIAL. SITUAÇÃO QUE PODE TER SIDO MODIFICADA. DEMONSTRAÇÃO DE SATISFAÇÃO E HARMONIA DA INFANTE NA COMPANHIA DA FAMÍLIA PATERNA. RECURSO CONHECIDO EM PARTE E, NA PARTE CONHECIDA, PARCIALMENTE PROVIDO. O principal objetivo da regulamentação de visitas é atender aos interesses do menor. Portanto, este direito não é inerente aos pais, mas consiste em um direito da criança, de crescer e se desenvolver em um ambiente de convivência saudável e harmoniosa com todos os seus familiares, de forma a propiciar ao menor crescimento satisfatório e equilibrado. […] Em determinados casos, a efetivação de novo estudo social ou psicossocial torna-se imprescindível como forma de assegurar proteção mais abrangente ao menor, especialmente após decorrido um certo período de tempo. A necessidade de realização de novo estudo social e psicossocial, por pessoa especializada e competente para o desenvolvimento de tal atividade, constitui o elemento de maior importância para a formação do convencimento do juiz, em especial pelo fato de que tal material traz subsídios indispensáveis para constatação de ser ou não saudável ao desenvolvimento emocional, psicológico e social da criança e a mantença do direito de visitas dos avós 222 Entretanto, esta pesquisa parte de outra premissa: a premissa de que tanto o direito à convivência familiar e como o instituto do poder familiar dizem respeito a uma titularidade de direitos referida não só ao petiz, mas também a seus pais e vice-versa. A investigação feita nesta pesquisa buscou então verificar em que medida essa premissa encontra respaldo em nossa legislação, o que nos validaria a afirmar a existência de um poder familiar e direito à convivência familiar recíprocos. Para tanto, partimos do conceito de integridade familiar, apresentado por Goldstein, Freud e Solnit, pelo qual a família é vista como um espaço de construção da intimidade, em que tanto os pais têm direito a criar seus filhos com liberdade, bem como a criança tem o direito a ter pais autônomos, para, então, concluir que a ideia subjacente a este estudo, de mutualidade do direito à convivência familiar, encontra respaldo no ordenamento jurídico.676 O fato de o art. 19 do ECA, ao concretizar o direito fundamental à convivência familiar e comunitária, referir-se ao mesmo como sendo o “direito da criança e do adolescente de ser criado e educado no seio de sua família” não deveria autorizar interpretações que tendem a ver este direito de forma unilateral, pois isso equivale a reduzir o alcance constitucional da liberdade parental e, de forma indireta, da própria liberdade da criança. A uma, porque o direito dos pais de criar seus filhos encontra fundamentação constitucional primeira na cláusula geral de liberdade constante do art. 5º, caput – que garante aos brasileiros e estrangeiros residentes no país o direito à liberdade, dentre outros bens fundamentais –, e se adensa, mais adiante, no capítulo que trata da família e cujo art. primeiro trata dos “direitos e deveres referentes à sociedade conjugal”677, dentre os quais está, como concretiza o Código Civil, o direito de “criar os filhos e dirigir-lhes a educação”.678 Ademais – a duas –, o fato de o ECA estabelecer como um dos princípios para a paternos, bem como genitor que não exerce o direito de guarda. Se do exame dos autos, notadamente de suas peculiaridades, quais sejam, a inexistência de conciliação das partes acerca da regulamentação de visitas ao menor, bem como o fato (incontroverso) de que não houve ainda nenhuma convivência direta entre o genitor e a criança, após a realização dos primeiros estudos realizados, ainda que por oposição da mãe, impõe a submissão das partes a novo estudo social e psicossocial a ser designado pelo juiz. Visitas dos avós paternos realizadas em finais de semana, período em que os psicólogos do quadro oficial do Tribunal de Justiça não estão a serviço, geraram situação excepcional, com a necessidade de acompanhamento por psicólogo particular. Estudo social e psicossocial deve ser realizado por profissionais do quadro oficial do Tribunal de Justiça. Recurso conhecido em parte e, na parte conhecida, parcialmente provido” (Grifo nosso). BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1.402.818 - MS. Rel. Min. Raul Araújo. Data do julgamento: 24/06/2014. DJe: 01/08/2014. Disponível em: . Acesso em 26 jul. 2016. 676 Cf. item 3.9. 677 CF, art. 226, § 5º. 678 CC, art. 1.634, I. 223 aplicação de medidas de proteção o da prevalência da família indica que essa preferência constitui-se, então, como um direito de todos os membros do lar – inclusive dos pais – de desenvolverem os laços afetivos que podem advir do parentesco civil.679 A Convenção sobre os Direitos da Criança e do Adolescente – ratificada pelo Brasil680 e, portanto, recebida como norma em nosso ordenamento jurídico – tem uma redação mais feliz e indica o caminho da mutualidade no direito à convivência familiar, ao se referir expressamente à vontade dos pais de terem consigo seus filhos – o que, portanto, aponta para um interesse juridicamente tutelado não só da criança como também de seus responsáveis: Os Estados Partes deverão zelar para que a criança não seja separada dos pais contra a vontade dos mesmos, exceto quando, sujeita à revisão judicial, as autoridades competentes determinarem, em conformidade com a lei e os procedimentos legais cabíveis, que tal separação é necessária ao interesse maior da criança. Tal determinação pode ser necessária em casos específicos, por exemplo, nos casos em que a criança sofre maus tratos ou descuido por parte de seus pais ou quando estes vivem separados e uma decisão deve ser tomada a respeito do local da residência da criança”.681 (Grifos nossos). O art. 14 da Convenção, ao tratar da liberdade de pensamento, consciência e crença da criança, estabelece que “Os Estados Partes respeitarão os direitos e deveres dos pais e, se for o caso, dos representantes legais, de orientar a criança com relação ao exercício de seus direitos de maneira acorde com a evolução de sua capacidade” (grifos nossos).682 No mesmo sentido, o art. 18.1, segunda parte, da CDC, que, ao estabelecer que “Caberá aos pais ou, quando for o caso, aos representantes legais, a responsabilidade primordial pela educação e pelo desenvolvimento da criança. Sua preocupação fundamental visará ao interesse maior da criança”, aponta para uma dimensão de direitos dos pais na condução da educação de seus filhos, pois o reconhecimento de uma responsabilidade a alguém equivale a atribuir-lhe um complexo não só de deveres, mas também de direitos para o desempenho do múnus conferido. Por esse motivo, a Convenção também estabelece como dever dos Estados a prestação de “assistência adequada aos pais e aos representantes legais para o desempenho de suas funções no que tange à educação da criança e assegurarão a criação de instituições, instalações e serviços para o cuidado das crianças”.683 O papel do Estado é, pois, fortalecer os 679 Cf. ECA, art. 100, parágrafo único, X. 680 BRASIL. Decreto 99.710, de 21 de novembro de 1.990. Promulga a Convenção sobre os Direitos da Criança. Disponível em: . Acesso em: 27 de jul. 2016. 681 CDC, art. 9.1. 682 CDC, art. 14.2. 683 CDC, art. 18.2. 224 pais na sua função de cuidado e, nesse sentido, ampliar o seu rol de capacidades para o desempenho da sua parentalidade. Dessarte, a análise sistemática do ordenamento brasileiro leva a ver no princípio da responsabilidade parental, positivado no ECA, uma referência não só aos deveres dos pais – tal qual expresso na lei –, mas também aos seus direitos.684 Vê-se então que a normativa do direito nacional e internacional da infância referenda a ideia apresentada por Goldstein, Freud e Solnit, já discutida, pela qual é do interesse da criança a autonomia dos seus pais: o petiz tem direito a ter pais autônomos, o que contribui para o firmamento de um lar onde as decisões estão arejadas das adjudicações oriundas de vontades externas e, neste sentido, a ambiência doméstica colabora para a construção da afetividade, intimidade, cultura, tempo, dinâmica, enfim, da identidade própria daquela família – e isso é fundamental para a formação dos laços afetivos paterno-filiais, tão importantes para o desenvolvimento humano e, mais especificamente, do ser infantil.685 Analisando os parâmetros normativos, portanto, conclui-se que não se justificam hipóteses que postulem uma relação de proporcionalidade inversa entre o direito de pais e filhos (“quanto mais liberdades para estes, menos para aqueles e vice-versa”). A ligação entre pais e filhos desafia, isto sim, uma relação jurídica de direta proporcionalidade, ou seja: de quanto mais liberdades, positivas e negativas, gozarem os pais para criação de seus filhos, maior será a capacidade de a família estabelecer vínculos afetivos entre seus membros e, daí, maior será a possibilidade de a criança e o adolescente desenvolverem, ao longo de sua vida, suas liberdades fundamentais. É por isso que a legislação brasileira apregoa o dever de o Estado empoderar os pais para sua função de cuidado e, ainda, estabelece, no Estatuto da Criança e do Adolescente, o postulado da mínima intervenção estatal nos assuntos da família686, o que não prejudica a intervenção governamental junto ao lar, quando os direitos fundamentais da criança e do adolescente estiverem ameaçados de violação – hipótese em que, como visto, o que será demando será então a demonstração da justa causa (o hard burden of proof) para a invasividade pública na família.687 684 O ECA estabelece que o princípio da responsabilidade parental significa que “a intervenção deve ser efetuada de modo que os pais assumam os seus deveres para com a criança e o adolescente” (Grifos nossos). ECA, art. 100, parágrafo único, IX. 685 Cf. item 3.9. 686 “Intervenção mínima: a intervenção deve ser exercida exclusivamente pelas autoridades e instituições cuja ação seja indispensável à efetiva promoção dos direitos e à proteção da criança e do adolescente” (ECA, art. 100, parágrafo único, VII). 687 Cf. o conceito de hard burden of proof, trabalhado no item 3.9. 225 Definida, portanto, como uma das premissas desta pesquisa, o duplo aspecto da titularidade do direito à convivência familiar, é de se investigar em que medida isso pode influenciar as decisões jurisprudenciais em torno das adoções dirigidas. Pergunta-se: há – ou dever haver – alguma hipótese, além das do art. 50, § 13, do ECA, em que o ato volitivo de entrega e escolha de adotantes feita pela própria genitora da criança (ou pelo genitor, aspecto que muitas vezes não é tomado com a devida consideração) deva ser reconhecido como válido pelo direito a ponto de autorizar a inobservância do cadastro? Se se analizar a questão pelo prisma constitucional da liberdade parental, entende-se que a resposta é sim: há uma situação, não prevista no art. 50, § 13, do ECA, em que o Estado deve reconhecer os limites para a sua ingerência no âmbito familiar e reconhecer que o mínimo que se requer de sua intervenção implica para ele o dever de não interferir no ato de entrega espontânea da mãe a terceiras pessoas escolhidas por ela. Mais especificamente, refere-se àquelas hipóteses em que os genitores já tenham anteriores e legítimos vínculos afetivos e de confiança com pessoas da sua vivência, por meio de laços que se estabeleceram previamente de forma desinteressada e, como visto no item 5.4, são de suma relevância para a promoção dos direitos da criança, do adolescente e de sua família. As relações comunitárias verificadas no entorno do lar advêm de vínculos calcados sobre a solidariedade, construídos com as redes sociais de apoio e que, apesar de não estabelecerem, de per si, laços de juridicidade, podem constituir importantes vias tanto para o fortalecimento do núcleo familiar como para a garantia futura de um direito infantojuvenil ameaçado ou violado. Refere-se a uma espécie de parentesco, de natureza sociafetiva, o que nos leva a construir o conceito de família extensa socioafetiva, a qual tem as mesmas características do ECA, 25, parágrafo único, com a exceção de que ali a relação nasce e se desenvolve não por meio partir de liames biológicos, mas sim existenciais. São os tipos de relações nas quais as pessoas, apesar de não serem parentes de sangue, se veem como parentes de alma, onde vida as presenteiam com um irmão ou irmã não gerado do mesmo útero, mas das mesmas experiências, tristes ou alegres, do cotidiano. Esse conceito novo que ora é apresentado parece plenamente defensável à luz do ordenamento jurídico brasileiro e da construção jurisprudencial e doutrinária, que há muito vem reconhecendo, como já visto anteriormente, o elemento anímico das relações humanas 226 como fator, a par do critério biológico, para o estabelecimento de relações familiares.688 A ideia de família extensa socioafetiva é possível de ser alcançada, pois, se a própria paternidade já tem sido dessa forma reconhecida na doutrina e jurisprudência nacional, não se vê razão para que esse raciocínio não seja expandido para o alcance de outras linhas e graus de parentesco. Algumas adaptações, porém, são necessárias. Se, em virtude do instituto forense da posse do estado de filho, o reconhecimento da paternidade socioafetiva tem levado não poucos doutrinadores a defender o estabelecimento de vínculos jurídicos obrigacionais de forma independente da vontade do cuidador adulto,689 não se afigura razoável a hipótese de alguém demandar um amigo ou um vizinho em, por exemplo, uma ação de alimentos, alegando uma pretensa posse do estado de parente. Aqui, haverá as limitações decorrente de uma relação calcada sobre a solidariedade e não sobre a juridicidade, conforme o Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do Direito de Crianças e Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária já apontou.690 Entretanto, se a solidariedade verificada entre os familiares socioafetivos é insuficiente para estabelecer liames obrigacionais sem o querer de uma das partes, entende-se que ela pode sim gerar laços jurídicos se, sinalagmaticamente, os dois lados assim o desejarem. A figura do padrinho e da madrinha, por exemplo, tão fortes no Nordeste, representa uma cultura legítima de amparo da família nuclear feito pelo meio social e é deveras importante como mecanismo de fortalecimento dos vínculos paterno-filiais: trata-se de pessoas que se dispõem a acompanhar os genitores no seu papel de cuidador, provendo co- orientação e amparo mútuo. Em rico estudo feito a partir de dados obtidos na Comarca de São Paulo/SP, feito antes da Lei 12.010/09 – o que é importante ressaltar, uma vez que a pesquisa foi gerada em um ambiente normativo que, dado o silêncio da lei, era mais complacente com as adoções dirigidas –, Dalva Azevedo Gueiros aproximou-se das famílias que abdicavam do laço parental com suas crianças para constatar que, na maioria dos casos (41%), as adoções referiam-se a colocações em famílias substitutas que, de alguma forma, tinham relações diretas com a família biológica da criança: 688 Cf. item 3.7. 689 Cf., nesse sentido, SANCHES, Helen Chrystine Corrêa; VERONESE, Josiane Rose Petry. Dos filhos de criação à filiação socioafetiva. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2012; e FARIAS, Cristiano Chaves; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil: famílias. v. 6. Salvador: Juspodium, 2013. 690 Cf. nota de rodapé 234, p. 82. 227 Parcela mais significativa de adotantes (23%) está entre aqueles que são vizinhos, amigos ou conhecidos da mãe, do pai ou de outro familiar da criança, o que significa pertencimento à rede social imediata da família biológica. Nem sempre esses adotantes têm relações estreitas com a mãe/pai da criança, mas o acesso entre uns e outros fica mais facilitado por ambos pertencerem à mesma rede social. Da mesma forma, as adoções intrafamiliares e aquelas que se processaram através das relações de trabalho do pai, da mãe ou de outro familiar da criança, guardam essa característica de possibilidade de acesso entre as duas famílias. Se somarmos as três modalidades, obteremos 41% de adoções realizadas com famílias substitutas que, de alguma forma, têm relações diretas com a família biológica da criança, o que se poderá constituir em adoções abertas. Nelas, é mais provável que a criança adotiva saiba, desde cedo, de sua condição, conheça sua história pré-adotiva e a família de origem.691 Tem-se, então, no reconhecimento dos laços de solidariedade que se formam ao redor dos vínculos jurídicos, uma importante camada de proteção das relações familiares da criança, camada esta que a lei, por si só, é incapaz de conferir: o direito, como visto no item 5.4, aponta para um mínimo de proteção às relações sociais; a solidariedade, para o máximo. E é por isso que não só a convivência familiar em si recebeu o status de bem fundamental no art. 227 da Constituição, mas também a convivência comunitária, tal qual previsto nesse dispositivo. É de se indagar se a justiça, ao não atentar para as relações sociais que se estabelecem legitimamente no entorno do lar, desconsiderando a vontade dos genitores, não termina por resvalar em uma ação elitista para com esses pais. E o que é pior: a mesma justiça que não reconhece nos autos do processo o direito da mãe e do pai de entregarem seu filho em adoção para uma pessoa em quem tenham confiança, na maioria das vezes, fez pouco – para não dizer nada – para se aproximar preventivamente dessa mãe, dada a gritante desestrutura com que os juízes de direito são obrigados a exercer as suas atribuições na área da infância e juventude no Brasil.692 É a realidade a que se refere o item anterior. Nesse cenário, enquanto aos juízes de primeiro grau resta o papel, menor, de interditar sem maiores critérios as adoções consentidas pelos pais, o segundo grau recursal reforma as decisões monocráticas com base no entendimento do STJ, e as administrações superiores do Judiciário estadual dão de ombros para com a implementação efetiva de uma estrutura de apoio aos magistrados. 691 GUEIROS, Dalva Azevedo. Adoção consentida: do desenraizamento social da família à prática da adoção aberta. São Paulo: Cortez, 2007, p. 111. 692 A propósito, entende-se que foi sintomática a mudança recém-promovida no ECA pela Lei da Primeira Infancia, ao incluir o § 1º do art. 13 do Estatuto que “As gestantes ou mães que manifestem interesse em entregar seus filhos para adoção serão obrigatoriamente encaminhadas, sem constrangimento, à Justiça da Infância e da Juventude”. (Grifos nossos). 228 A propósito, nesse contexto de tanta fragilidade institucional das políticas de promoção dos direitos humanos da criança e do adolescente, alguém já se perguntou o que representa para a mãe um ato desumano de largar o seu filho em adoção? O que é, na mente dessa genitora, a reedição da Roda dos Expostos: entregar o seu bebê para um casal conhecido em quem confia ou, com o filho nos braços, levá-lo perante uma repartição pública com que nunca teve contato algum para ali depositar sua prole? Ora, nada atualmente representa melhor a Roda dos Expostos do que forçar a gestante a entregar seu filho perante uma vara impessoal da infância, distante da sociedade, com uma estrutura precária e composta por profissionais que não estão preparados para atender esse tipo de demanda – uma vez que não se articularam com os programas municipais de atendimento à família. Há notícia em estudo realizado pelo Conselho Nacional de Justiça de outros sistemas judiciais ao redor do mundo em que se reconhece aos pais o direito de participação na escolha das pessoas com quem seu filho deva ficar.693 Por que, então, não poderia o debate nacional evoluir nesse sentido, indagando realisticamente em que medida a liberdade parental pode ser considerada no momento assaz delicado da decisão sobre o desfazimento dos vínculos paterno-materno-filiais? Algumas ressalvas, porém, fazem-se aqui necessárias. Primeiramente, temos que a vontade dos pais a ser considerada deve estar lastreada, como já afirmamos, num contexto socioafetivo autêntico, onde já existam traços de confiabilidade, afinidade e afetividade previamente estabelecidos. Portanto, o presente entendimento não autoriza a prática tão comum de exposição de crianças e da busca interessada de neonatos por pessoas que não têm qualquer vínculo anterior com a família do bebê. Como visto no item 6.1.2, semelhante prática representa a objetificação da criança perante o desejo alheio de ter filhos e, por não ser acompanhada pelos órgãos de proteção e promoção dos direitos infantojuvenis, representa risco tanto para os direitos do petiz, como os de seus pais. Uma segunda ressalva é a de que a hipótese ora defendida – de participação dos pais no ato de escolha dos adotantes de seu filho – pressupõe, como também falamos no item 693 Segundo rico estudo produzido pelo Conselho Nacional de Justiça, o Canadá “apresenta adoção aberta, em que os pais biológicos conhecem e decidem sobre a escolha dos candidatos. A eles deve ser oferecido, obrigatoriamente, aconselhamento jurídico e psicológico, ao mesmo tempo em que são obrigados a apresentar histórico médico. Depois de assinado o consentimento para adoção, a família tem ainda um período para repensar, podendo mudar de ideia. Esse tempo, em geral, é de 30 dias. É preciso esperar de 1 a 2 anos pela conclusão do processo de adoção de crianças mais novas, enquanto para as mais velhas – de 2 a 18 anos – e deficientes, o processo é bem mais rápido. Também é oferecida uma rede de assistência e até suporte financeiro para quem adota crianças com deficiência”. NUNES, Marcelo Guedes et al. (Coord.). Processos relacionados à adoção no Brasil: uma análise sobre os impactos da atuação do Poder Judiciário. Brasília: Conselho Nacional de Justiça, 2015. p. 37. 229 6.1.2, que aos genitores tenha sido oportunizada a garantia dos mínimos sociais, a que se refere a Lei Orgânica de Assistência Social, para o desenvolvimento de sua maternagem ou paternagem. A colocação em família extensa, biológica ou socioafetiva, não quer dizer que não se deva atentar para os caminhos de cautela e de promoção social da família, se a isso se dispuserem os pais. A terceira e última ressalva é a de que sabemos que a tese ora defendida, de validação jurídica à realidade das famílias extensas socioafetivas, por implicar o reconhecimento de laços jurídicos a partir de elementos subjetivos – e não em dados objetivos, como são os da consanguinidade – pode dar margem a muitas fraudes perante a justiça, por meio de adoções intentadas por pessoas de pouco escrúpulo, alegando a existência de uma tal socioafetividade, que, na verdade, nunca existiu. Mesmo assim, entende-se que esse risco deve ser enfrentado por parte da justiça, pois trata-se, enfim, da tutela da autonomia dos genitores, cujo fundamento, como visto no item 5.9, encontra-se na Lei Fundamental – apesar dos poucos estudos teórico-constitucionais sobre a liberdade parental. As famílias extensas socioafetivas e as redes sociais de apoio são uma realidade que se constituem de forma espontânea e legítima e, nesse ponto, parece que não é a vida, em toda sua cor e dinâmica, que se deve sujeitar ao direito, mas o direito à vida. Negar irrestritamente uma adoção aberta à decisão dos pais, por receio de uma burla ao cadastro, equivale a incorrer no erro expresso no antigo adágio inglês de origem germânica pelo qual se dizia que “não se deve jogar fora o bebê junto com a água do banho”.694 Ademais, é certo que os eventuais riscos de burlas – que, aliás, já ocorrem, com bastante frequência, atualmente, e nem por isso se cogita na revogação da Lei da Convivência Familiar – poderão ser minimizados no momento em que o Poder Judiciário melhor se aparelhar e, por meio de suas equipes técnicas, tiver melhor condições de se articular com os serviços da política municipal de garantia do direito à convivência familiar, atuando de forma preventiva e precoce às violações de direito. O reconhecimento de um interesse legítimo dos genitores em proteger sua família, 694 Curiosa e coincidentemente, a expressão teve origem, pelo que se pode constatar em pesquisa na internet, na prática adultocêntrica e patriarcal do banho medieval, em que, sendo o chefe do lar o primeiro a ter direito a se lavar na banheira doméstica, aos infantes pequenos era reservada a última das posições, após o asseio da mulher e dos filhos mais velhos. Nesse momento, com a água já turva e suja, falava-se ironicamente do maior risco de os pequenos serem descartados junto com o líquido usado. Em inglês, a expressão é “Don’t throw the baby out with the bathwater”; em alemão: “Das Kind mit dem Bade ausschütten”. Pesquisa feita nos seguintes sites: , e . Todos os acessos em: 28 jul. 2016. 230 inda que seja abdicando de seu direito parental, porém de forma responsável, selecionando com cuidado quais das pessoas dentre aquelas do seu círculo de convivência serão merecedoras de dar continuidade às relações familiares de sua criança, decorre do fato de que, nesse ato de amor, os interesses dos pais confluem ao de seus filhos, sendo, portanto, uma atitude digna de proteção jurídica, donde se pode vislumbrar o conceito de melhor interesse da família. 6.1.5 A delicada questão sobre a formação do vínculo afetivo entre a criança e os adotantes Outra questão tormentosa na discussão sobre a observância do cadastro de adoção – e que é uma constante no debate jurisprudencial – diz respeito à existência ou não de vínculo afetivo entre o petiz e os adotantes, o que, se verificado, configuraria motivo para, em nome do interesse superior da criança, não autorizar a sua retirada da família substituta que a acolhe. A questão do vínculo, realmente delicada, demanda a análise da adoção intuitu personae nestes dois aspectos: 1º) Na perspectiva de quem o vínculo que deve ser considerado: do bebê ou dos adotantes?; 2º) A partir de que momento o vínculo deve ser tido como forte o suficiente a ponto de não permitir a sua alteração – ou, pelo menos, não permitir a sua alteração em sede de cognição sumária, nas tutelas de urgência? Enquanto a essas questões não for dada a devida importância teórica e, a partir dela, prática, com a aproximação de referenciais vindos de outras áreas que não só os do direito, muitas das medidas relativas à lista de adoção restarão inócuas e restará tão somente a interpretação ilhada da jusciência em torno art. 50, § 13, do ECA, cujo inciso III, tal qual posto, apresenta um rigor tal que coloca sob sérios riscos os interesses – e, portanto, os direitos – da criança. Isso porque, numa aplicação literal e a contrario sensu desse disposto, é possível se admitir a retirada de bebês de famílias substitutas que com eles estejam há vários meses e até anos, pois a regra desse inciso só admite a relativização da regra do cadastro quando feito o pedido por quem detenha “a tutela ou guarda legal de criança maior de 3 (três) anos ou adolescente”. Entretanto, a retirada de um bebê de uma família que com ele se encontre há, por exemplo, dois anos, soa como uma dramática repaginação da tragédia grega vivida por Antígona diante do edito do rei Creonte que a impedia de sepultar o irmão, Polinice, devendo, 231 pela lei posta, expô-lo aos abutres. 695 O agir da justiça em total desatenção ao vínculo formado entre o petiz e os seus cuidadores, ainda que oriundo de uma adoção irregular, traz sérios riscos ao direito à convivência familiar de que a criança se faz credora e, dado o tensionamento entre a lei a e realidade, reaviva a disputa que, se outrora se estabeleceu entre o direito natural e o positivo, hoje se dá pelo retesamento na escolha de qual das duas espécies normativas serão aplicadas ao caso concreto: ou as regras (do cadastro), ou os princípios (decorrentes da proteção integral e do interesse superior da criança e do adolescente). Uma ressalva aqui se faz necessária. Quando se refere a uma “total desatenção da justiça ao vínculo formado entre o petiz e os seus cuidadores”, está a se referir a todas as decisões dos órgãos jurisdicionais que sejam automáticas, pré-constituídas, eminentente empíricas e, assim, não expressem nada mais do que a mera e anterior disposição mental do julgador, pronta para se externar diante de todo caso concreto de adoção intuitu personae que lhe chega, sem ter norte ou critério algum que vá além de sua própria pré-compreensão, para orientar suas razões. Ou seja: são alvo de crítica tanto as decisões que apressadamente retiram o petiz sem maiores critérios, como também as que deixam de fazê-lo, quando isso seria possível. É necessário, portanto, o delineamento de alguns parâmetros prévios para a análise do caso concreto: é necessário definir, como já dito, de quem e a partir de quanto tempo o vínculo deve ser considerado. Analisa-se , a seguir, a primeira questão. Como já asseverado diversas vezes neste estudo, o direito à convivência familiar é um direito de referência aos filhos e aos pais. Esse direito não se refere inicialmente a terceiras pessoas fora do lar e, mesmo quando o faz (ao falar a norma constitucional em direito à convivência comunitária), essa acepção social refere-se, conforme apontado no item 6.1.4, aos vínculos estabelecidos espontânea, prévia, legítima e desinteressadamente entre os familiares naturais e os substitutos, dentro da lógica das redes sociais de apoio. Portanto, o prisma de análise, tal qual determina a lei, deve levar em conta precipuamente o direito da criança exposta em adoção perante terceiros, e isso por força de seu interesse superior, o qual, segundo a lei indica, importa para o Estado que “a intervenção deve atender prioritariamente aos interesses e direitos da criança e do adolescente, sem prejuízo da consideração que for devida a outros interesses legítimos no âmbito da pluralidade 695 SÓFOCLES. Antígone. Tradução: J. B. de Mello e Souza. Disponível em: . Acesso em: 28 jul. 2016. 232 dos interesses presentes no caso concreto”.696 O vínculo afetivo constituído deve, pois, ser aferido pelo prisma da criança. Quanto aos adotantes, entende-se que seus interesses não configuram inicialmente estes “outros legítimos interesses” a que se refere a lei, caso a aproximação deles com a criança ou seus pais se tenha feito com o intuito tão somente de receber um bebê para adoção. Isso porque, se a justiça toma, nos casos de adoção dirigida, como referência inicial de análise o ângulo dos adotantes, a sentimentalidade dos que esperam uma criança em adoção pode turvar a consideração de importantes cautelas que o aspecto procedimental do superior interesse e a condição de sujeito de direitos da criança demandam. Nesse sentido, pelo prisma dos adotantes, um breve instante em contato com o petiz pode já ser suficiente para a formação de um forte laço afetivo, mas que, por outro lado, desconsidera questões de suma importância para a convivência familiar da criança, tais como a situação psicossocial dos pais na entrega do seu filho em adoção, o seu real querer ou ainda a verificação de familiares extensos, biológicos ou socioafetivos, que poderiam ou ajudar os pais no seu encargo, ou ficar com a criança, garantindo a sua permanência e cuidado na sua comunidade de origem e, ainda, o próprio contato com seus genitores biológicos, caso isso atenda ao interesse do petiz. Não se está aqui a negar o valor do afeto constituído entre os adotantes e o bebê recebido, mas sim a ponderar que pautar a análise jurídica pelo referencial dos pretendentes à adoção pode levar à desconsideração de importantes cautelas que a condição da criança neonata – portanto, incapaz de se expressar –, enquanto titular de direitos, demanda. Portanto, não sendo os pretendentes à adoção pessoas do convívio do bebê ou de seus pais, tem-se que a eles não deve ser reconhecida preferência na colocação da criança em sua família substituta, uma vez que, nesse caso, o que se tem aí é uma intermediação que, além de ocorrida fora do acompanhamento dos órgãos de proteção à criança e ao adolescente, não justifica a quebra da isonomia que o cadastro de adoção possibilita àqueles que esperam a realização do sonho de ter um filho em adoção. A não ser que o decurso do tempo aponte em outro sentido. Sim, temos aí o desafio da questão temporal. É necessário analisar agora esta segunda questão, relativa ao lapso de dias, para aferir em que medida o fator tempo pode influenciar na quebra da regra de igualdade prevista com o cadastro de adoção. A jurisprudência tem reconhecido majoritariamente que o decurso do tempo pode resguardar os vínculos já formados pela criança com os seus cuidadores, e quanto a isso 696 ECA, art. 100, parágrafo único, IV. 233 parece não haver profundo dissenso no debate nacional. O próprio Ministério Público, instituição a que compete a defesa dos interesses sociais e indisponíveis, reconheceu, por meio do Fórum Nacional dos Membros do Ministério Público da Infância e Adolescência – Proinfância –, no seu III Congresso, ocorrido em abril e maio de 2016, em Brasília/DF, por meio do seu enunciado nº 04, a necessidade de se reconhecer a relevância jurídica desse vínculo: Enunciado n° 04 - O Ministério Público deve implementar ações preventivas no sentido de evitar a ocorrência de adoções diretas, inclusive acerca da possibilidade da entrega voluntária de crianças para adoção (art. 13, § 1º, do ECA), como forma de se prestigiar o cadastro de adotantes. Somente nas hipóteses em que a adoção direta representar o interesse superior da criança/adolescente em razão de vínculo pré-constituído, devidamente comprovado nos autos, poderá o Ministério Público manifestar-se favoravelmente.697 Na análise do fator temporal, o ponto que se revela mais tormentoso não tem tanto a ver com o seu reconhecimento, mas sim com a sua quantidade. Em outras palavras, o desafio que cabe aqui ao jurista é decidir a partir de quanto tempo o vínculo formado entre o petiz e seus cuidadores deve ser reconhecido como forte o suficiente, a ponto de conferir proteção jurídica a uma relação que, originalmente, seria espúria ao direito. Responder tal questão é uma tarefa por demais complexa para que o seu encargo seja entregue à ciência do direito isoladamente. Definir esse quantum de tempo pelo prisma dos adotantes, como já afirmado, é um método deveras arriscado, pois a subjetividade e ansiedade daqueles em ter um filho provavelmente os levará a afirmar que poucos segundos já são suficientes para o estabelecimento de laços sempiternos. Pelo ponto de vista dos juristas, o risco que aí reside é o de a sua decisão refletir tão somente o limite estreito e apriorístico de sua pré-compreensão, a qual faz da lei uma mera tabula rasa sobre a qual se depositam os seus juízos de valor. Com isso, afasta-se o direito de qualquer contribuição de outras áreas do conhecimento humano, tais como a medicina, a psicologia e o serviço social, que poderiam auxiliar a justiça na construção de parâmetros de constatação da prova mais condizentes com o direito da criança e do adolescente, uma área da jusciência que é essencialmente interdisciplinar. Artur Thompsen Carpes, ao colocar em evidência a importância do direito 697 Fórum Nacional dos Membros do Ministério Público da Infância e Adolescência. Enunciado nº 04. Disponível em: . Acesso em: 29 jul. 2016. 234 fundamental à prova, discorre sobre a necessidade de se estabelecerem parâmetros adequados para a sua construção, adaptáveis às peculiaridades do caso concreto, os quais denomina o autor como modelos de constatação ou módulo de prova.698 Tais modelos configuram-se critérios para orientar a análise probatória, sua suficiência, sendo, pois, “pautas que dirigirão o raciocínio judicial, permitindo o seu melhor esclarecimento quanto ao misterioso momento de valoração da prova, de forma a facilitar o controle da decisão judicial”.699 Ainda segundo Carpes: O direito fundamental à prova não pode ser compreendido de modo que sua observância seja posta em termos meramente residuais. Com efeito, entre inúmeras técnicas processuais probatórias destinadas à sua implementação prática, coloca-se aquele que se refere à adequada eleição do modelo de constatação a ser utilizado pelo órgão julgador logo anteriormente à sua decisão.700 No Estatuto da Criança e do Adolescente o parâmetro de constatação passa, necessariamente, pela constituição de um módulo de prova interdisciplinar – daí o caráter cogente (e urgente) da norma que estipula a obrigatoriedade das equipes técnicas para o exercício da atividade judicante.701 Qualquer modelo que se conforme com menos do que a interdisciplinaridade empobrece a construção probatória no direito da infância e, com ela, a qualidade da resposta jurisdicional. Portanto, o julgamento dos casos de adoção dirigida pelo ângulo tão somente da ciência do direito não permite a realização de uma tutela adequada e plenamente satistativa dos interesses infantojuvenis. Tal quadro só piora quando se percebe que, se, pelo lado abstrato da lei, a orientação do Estatuto é muito pobre em fornecer melhores elementos de flexibilização da regra do cadastro (que são necessários, pois, quem terá coragem de, numa aplicação a contrario sensu, do ECA, art. 50, § 13, determinar, por exemplo, a retirada de uma criança de dois anos que, desde o seu nascimento, esteja sob os cuidados de uma família substitua que não dispõe de sua tutela ou guarda legal?), pelo lado da realidade, a definição de critérios mais elásticos é deixada à discricionariedade ilhada de juízes, promotores e advogados que, não raramente, estão mal assessorados e mal formados para a interdisciplinaridade que o exercício da atividade de garantia dos direitos infantojuvenis 698 CARPES, Arthur Thompsen. Direito fundamental ao processo justo: notas sobre os modelos de constatação nas decisões liminares. In: ARMELIN, Donaldo (Coord.). Tutelas de urgência e cautelares: estudos em homenagem a Ovídio A. Baptista da Silva. Saraiva: São Paulo, 2010. p. 180. 699 CARPES, op. cit., p. 180. 700 Ibid., p. 180. 701 Nesse sentido, cf. item 6.1.3. 235 pressupõe.702 A questão do vínculo há de ser analisada, portanto, pelo prisma de quem mais importa: a criança e o adolescente, pois é do seu destino que trata, em primeira e última instância, o instituto da colocação em família substituta (guarda, tutela e adoção). A partir dos estudos da Teoria do Apego (Attachment Theory), alguns autores têm defendido o período por volta de seis meses como prazo válido para a justiça intervir nos lares adotivos para dali retirar a criança que lá esteja em desacordo com as regras do cadastro de adoção.703 John Bowlby, psicólogo inglês tido como precursor e pai da Teoria do Apego704, em sua clássica trilogía, em que sistematizou seu conhecimento sobre os laços estabelecidos pela criança em seus primeiros anos de vida com os seus cuidadores – com destaque para a mãe – delineou quatro fases para a formação e consolidação dos vínculos afetivos paterno-filiais.705 Na Fase 1 – Orientação e sinais com discriminação limitada de figura –, que vai do nascimento até não menos que oito semanas de vida e, mais usualmente, até cerca de doze semanas, o bebê responde e interage com os estímulos do ambiente, dirigindo o olhar, balbuciando, estendendo os braços, agarrando etc. O recém-nascido dá respostas amistosas em suas interações com os seres humanos ao seu redor, sem, contudo, se atar emocionalmente a uma determinada pessoa.706 Na Fase 2 – Orientação e sinais dirigidos para uma figura discriminada (ou mais de uma) –, que vai do fim da Fase 1 até cerca de seis meses, o bebê “continua comportando-se em relação às pessoas do mesmo modo amistoso que na fase 1, mas o faz de maneira mais 702 A propósito, outra diretriz da política da política de atendimento dos direitos da criança e do adolescente – ainda pouco efetivada entre nós – consiste na “formação profissional com abrangência dos diversos direitos da criança e do adolescente que favoreça a intersetorialidade no atendimento da criança e do adolescente e seu desenvolvimento integral”, o que, obviamente, inclui as instituições jurídicas, notadamente aquelas que lidam direta e rotineiramente com o direito da criança, tais como o Poder Judiciário, o Ministério Público, a Defensoria Pública, a advocacia privada, as Polícias Civil e Militar e o Conselho Tutelar, dentre outros. 703 Nesse sentido, cf. ALMEIDA, Júlio Alfredo de. Adoção Intuitu Personae: uma proposta de agir. Disponível em: < https://www.google.com.br/url?sa=t&rct=j&q=&esrc=s&source=web&cd=1&ved=0ahUKEwjqxZLj- JjOAhXLkZAKHXiOCZUQFggeMAA&url=http%3A%2F%2Fwww.mpsp.mp.br%2Fportal%2Fpage%2Fp ortal%2Finfanciahome_c%2Fadocao%2FDoutrina_adocao%2FADO%25C3%2587%25C3%2583O%2520I NTUITU%2520PERSONAE.doc&usg=AFQjCNGScta_xUlKZKr1mTWAGLT2xSmWJg >. Acesso em: 29 jul. 2016. É importante, contudo, gizar que este estudo foi produzido no ano de 2002 – muito antes, portanto, da Lei 12.010/09. 704 Em estudo que investiga as origens e o desenvolvimento da Teoria do Apego, Adriana Albuquerque Gomes e Lígia Ebner Melchiori informam que esta teoria começou a ser elaborada na segunda metade do século XX por John Bowlby e Mary Ainsworth, tendo o primeiro como seu legítimo fundador, pois teria o médico e psicólogo inglês revolucionado o pensamento cientifico sobre a natureza do vínculo mãe-criança. Cf. GOMES, Adriana Albuquerque; Lígia Ebner. A teoria do apego no contexto da produção científica contemporânea. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2012. (iBooks Store). 705 BOWLBY, John. Apego e perda: apego. v. 1. Tradução: Álvaro Cabral. São Paulo: Martins Fontes, 2002. 706 Ibid., p. 331. 236 acentuada em relação à figura materna do que a outras”.707 Na Fase 3 – Manutenção da proximidade com uma figura discriminada por meio de locomoção ou de sinais –, segundo Bowlby: Um bebê não é só cada vez mais discriminatório no modo como trata as pessoas, mas o seu repertório de respostas amplia-se para incluir agora o movimento de seguir a mãe que se afasta, de recebê-la efusivamente quando ela regressa, e de usá- la como base para explorações. Concomitantemente, as respostas amistosas algo indiscriminadas a todas as pessoas também declinam. Certas pessoas são escolhidas para tornar-se figuras subsidiárias de apego; outras não o são. Os estranhos passam a ser tratados com crescente cautela e, mais cedo ou mais tarde, é provável que provoquem alarma e retraimento. Durante esta fase, alguns dos sistemas mediadores do comportamento de um bebê em relação à mãe tornam-se organizados em termos de correção para uma meta, e torna-se então evidente o apego do bebê à figura materna. A fase 3 inicia-se comumente entre os seis e sete meses de idade, mas pode ser retardada até depois do primeiro aniversário, especialmente em bebês que tiveram pouco contato com uma figura principal. Continua provavelmente durante todo o segundo e parte do terceiro ano.708 A Fase 4 – Formação de uma parceria corrigida para a meta – é a fase de refinamento do apego estabelecido entre o adulto e a criança. Nessa fase, segundo Bowlby: A criança passa a adquirir um discernimento intuitivo sobre os sentimentos e motivos da mãe. Uma vez atingido este ponto, estão lançadas as bases para o par desenvolver um relacionamento mútuo muito mais complexo, ao qual dou o nome de parceria. Trata-se de claramente uma nova fase. Embora as evidências sejam ainda escassas, o que se sabe – por exemplo, em Bretherton e Beeghly-Smith (1981) – indica que, para algumas crianças, ela já se encontra bem delineada na metade do terceiro ano de vida.709 Registra, contudo, o autor britânico – e isto é importante gizar – que o desenvolvimento e passagem de uma fase a outra não é estanque.710 Essa conclusão nos parece decorrente do fato de que o que temos aqui é um campo de estudo cujo objeto é composto por relações humanas, as quais, apesar de apresentarem certos padrões em seus elementos formativos, são também variáveis no tempo e no espaço, conforme as condições socioambientais e estímulos em derredor. Por se referir o apego a relações regidas por leis da natureza e do afeto, a análise cartesiana não representa a melhor forma de abordar o caráter evolutivo do vínculo estabelecido entre pais e filhos. Ainda segundo Bowlby: 707 BOWLBY, op. cit., p. 331. 708 Ibid. p. 331-332. 709 Ibid., p. 332-333. 710 “No capítulo 11, apresentamos um esboço do modo como o comportamento de apego se desenvolve no ser humano. Para os fins de análise mais minuciosa, é conveniente dividir esse desenvolvimento num certo número de fases, embora deva-se reconhecer que não existem fronteiras nítidas entre elas” (Grifo nosso). Ibid., p. 330. 237 É inteiramente arbitrário apontar por que fase uma criança tornou-se apegada. É evidente que não existe apego na fase 1, ao passo que é igualmente evidente sua existência na fase 3. Se em em que medida se pode afirmar que uma criança está apegada durante a fase 2 é uma questão de como definimos apego”.711 (Grifos nossos). É por essa evidência científica de apego na fase 3 (a partir dos seis meses de vida) que Júlio Alfredo de Almeida, em estudo pioneiro no país, elaborado em 2002 – bem antes, portanto, da promulgação da Lei 12.010/09 –, propugnou o respeito aos vínculos estabelecidos nesse período. Entende o autor que, diante de uma colocação irregular de criança em família substituta, o agir enérgico da justiça em sede de tutela provisória só é pertinente até o final da Fase 2 – ou seja, antes de atingido o sexto mês de vida –, variando essa energia entre o sexto e o oitavo mês de vida, após o que a intervenção já não seria mais devida, em virtude inescapável constatação de formação dos vínculos afetivos.712 Neste estudo, porém, abraça-se uma definição de apego mais elástica para proteger também os vínculos formados na Fase 2. Para isso, como visto na última citação de Bowlby de que, aquí, lançou-se mão, tem-se margem científica suficiente, dada a indefinição científica sobre a certeza ou não da constatação de apego nessa fase. O critério que aqui nos guia é: in dubio pro vinculu. Para tanto, o olhar da precaução serve para estabelecer razoavelmente a presunção – refutável, mas, ainda assim, uma presunção – de que o esboço de apego verificável na Fase 2 pode gerar para o petiz o direito à preservação de um status quo afetivo, que implica para a justiça a não-intervenção momentânea, em sede de tutelas de urgência, uma vez verificado que a criança está, desde o nascimento, em contato com seus cuidadores adultos e, portanto, em processo de vinculação emocional-afetiva já delineado. O uso do termo precaução aqui não é aleatório. É retirado propositalmente do ramo do direito ambiental, cujo um de seus princípios, o da precaução, de origem alemã, se refere às hipóteses de proteção jurídica não só em face dos perigos já comprovados, mas também contra os riscos presentes num cenário de incerteza científica, insuficiente para apontar, de 711 BOWLBY, op. cit., p. 333. 712 Em sede de conclusão, o autor aponta em seu trabalho que a justiça deve: “Agir sem vacilação para romper imediatamente a convivência entre criança colocada irregularmente em família substituta, desde que não tenha completado ainda seis meses de vida, pois seguramente ainda não formados os vínculos. É o caso da utilização do remédio processual da ação de busca e apreensão de pessoa. Em a criança tendo entre seis e oito meses de idade, de imediato investigar se ela criou vínculo com os adotantes, para, em caso negativo, buscar a cessação judicial da convivência indevida, e, se formados, investigar se os adotantes estão efetivamente aptos à maternidade/paternidade ficta, procedendo às avaliações técnicas indispensáveis a apurar as boas condições sociais, físicas e psíquicas. Após os oito meses de vida e convivência, tão somente aquilatar se os adotantes não estão inseridos nos casos de destituição ou suspensão de poder familiar, pois cientificamente já com tempo suficiente à formação dos vínculos”. ALMEIDA, op. cit. 238 forma definitiva, por que e de que forma um bem resta danificado por uma ação de impacto tanto atual como gradual. Como informam Nicolas Treich e Gremaq: O mundo da precaução é um mundo onde há a interrogação. Onde os saberes são colocados em questão. No mundo da precaução há uma dupla fonte de incerteza: o perigo ele mesmo considerado e a ausência de conhecimentos científicos sobre o perigo. A precaução visa a gerir a espera de informação. Ela nasce da diferença temporal entre a necessidade imediata de ação e o momento onde nossos conhecimentos científicos vão modificar-se.713 Pensa-se que esta lição aplica-se ao estudo a respeito dos vínculos afetivos entre a criança e seus cuidadores na referida Fase 2 do processo de formação do apego. Esse é um momento das relações humanas em que, assim como a planta cresce na direção do sol, os laços de afeto do bebê voltam-se a determinada pessoa que lhe dá carinho e proteção. A falta de certezas e a espera de informação sobre a constituição do afeto nessa etapa acarreta para a justiça uma fumaça de interesse a ser juridicamente respeitado em sede de cognição sumária, interesse, esse, que é da própria criança recém-nascida, não dos adultos que dela cuidam. Dessarte, a só possibilidade de já se poderem vislumbrar, mesmo que tenuamente, traços de apego na Fase 2 – que pode começar do terceiro mês e ir até por volta do sexto – já estabelece para o direito um ponto de inflexão no ônus da prova em sede de tutela não- exauriente. Em outras palavras, o fato de uma criança, findo o seu segundo mês de vida, já ter uma atenção dirigida mais particularmente a uma pessoa, demanda cuidado da justiça na adoção de medidas cautelares. O esboço de apego apresentado após dois meses de convivência entre o petiz e o seu cuidador requer cuidado e respeito. A defesa de um status quo afetivo da criança, mesmo que singelo, decorre da premissa teórica desenvolvimentista abraçada neste estudo a partir da obra de Amartya Sen.714 Como visto, a noção de desenvolvimento importa para os direitos fundamentais da criança e do adolescente a proteção relativa não só às liberdades constituídas, mas também, com a mesma ênfase, ao processo de formação dessas mesmas liberdades, de onde fala-se não só em direito à educação, à saúde e à convivência familiar, mas também em processo de educação, processo de saúde e processo de formação dos vínculos familiares. O só fato de à criança faltar a mesma complexidade emocional dos vínculos afetivos de uma pessoa adulta não que dizer que o seu apego – que, como visto, pode-se ter constituído mesmo que nos estágios iniciais da vida humana –, careça de tutela. Aliás, a proteção integral 713 Apud MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito ambiental brasileiro. 10. ed., rev., atual. e amp. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 55. 714 Cf. item 4.4. 239 aponta justamente em sentido contrário: a defesa da criança e do adolescente, enquanto sujeitos em desenvolvimento, demanda uma espécie de tutela processual em prospeção. Ou seja: protegem-se as posições jurídicas subjetivas do petiz não só em atenção ao estado atual de coisas, mas também ao potencial. É disso de que trata o processo de desenvolvimento a que se refere a obra de Sen, bem como a criação de oportunidades e facilidades a que se refere o ECA, art. 3º. A título de ilustração, o argumento de que a retirada de uma criança de quatro meses de vida – portanto, no meio da Fase 2 – da guarda irregular de seus cuidadores não lhe traria maiores prejuízos, pois, sendo ela um ser resiliente e de tenra idade, não guardaria o trauma da busca e apreensão eventualmente realizada, se se afigura assaz adultocêntrico. Tal raciocínio deixa de considerar os interesses do bebê, os quais, mesmo frágeis – fragilíssimos, na verdade –, inaudíveis e inexprimíveis, são tão dignos de tutela jurídica quanto os de um adulto. O próprio conceito de resiliência, oriundo da física e da engenharia – portanto, relativo ao estudo da deformação plástica de objetos inanimados715 –, demanda bastante cautela quando aplicado ao campo de estudo referente às ciências humanas. Não à toa, as pesquisas mais recentes têm apontado a característica relativa da resiliência humana, “uma vez que suas bases são tanto constitucionais como ambientais, e que o grau de resistência não tem quantidade fixa, mas varia de acordo com as circunstâncias”.716 É, pois, de crianças e adolescentes que se está tratando, não de bolas de borracha – e isso, ainda mais, leva a observar o princípio da precaução. Portanto, a eventual defesa do esquecimento do bebê, como argumento para permitir a busca e apreensão de infantes que estejam em situação irregular de adoção intuitu personae, representa uma forma de enxergar a demanda de cima para baixo, pelo prisma adulto. Na perspectiva da criança na lide – de baixo para cima –, a resposta, parece, deve ser constituída de forma diversa: se há a chance de o bebê, após dois meses completos e ininterruptos de convivência, já ter constituído com seu cuidador um laço de afeto, esse vínculo, mesmo que frágil, deve ser respeitado pelo direito, sobretodo, quando se está em sede de tutela provisória. Não conferir força suficiente ao vínculo débil formado pela criança representa não só uma prática adultocêntrica, mas também desrespeita o direito de participação do petiz, que 715 Nesse sentido, cf. DELVAN, Josiane da S.; BECKER, Ana Paula S.; Braun, Karoline. Fatores de risco no desenvolvimento de crianças e a resiliência: um estudo teórico. Revista de Psicologia da IMED, v. 2, n. 1. Porto Alegre: 2010, p. 349-357. Disponível em: . Acesso em 1 ago. 2016. 716 Ibid., p. 354. 240 deve ser lido não apenas em termos de manifestações racionais – como costuma fazer a jurisprudência norte-americana, ao reconhecer aos mais novos tão somente “direitos na dependência” (cf. item 2.2) –, mas também por meio de exteriorizações afetivas, calcadas sobre o apego, ainda que seja este tênue. O próprio ordenamento pátrio é explícito em ratificar a ideia de que o direito de participação previsto no ECA, arts. 16, V e VI, e 53, IV, também se pode referir às crianças de tenra idade. Nesse sentido, o recém-promulgado Estatuto da Primeira Infância – Lei 13.257/16 –, estabelece que as políticas públicas voltadas ao atendimento dos direitos das crianças de zero aos seis anos serão elaboradas e executadas de forma a atender ao seu interesse superior e à sua condição de sujeito de direitos e de cidadã, bem como deverão “incluir a participação da criança na definição das ações que lhe digam respeito, em conformidade com suas características etárias e de desenvolvimento”.717 Como visto, ao abraçar a perspectiva da liberdade pelo prisma dos resultados abrangentes718, o direito de participação para crianças e adolescentes protege-se, em grande medida, pela projeção em perspectiva de seus direitos. Essa projeção leva a dar relevância ao afeto mesmo em seu estágio inicial, referente à Fase 2 da Teoria do Apego de matiz bowlbiana. Numa expressão mais poética, cantada por Paulinho Moska, “O amor nasce pequeno, cresce e fica estupendo”. 719 Ora, para se bem proteger o apego em sua etapa estupenda, necessário também lhe conferir proteção e legitimidade na sua fase pequena. A garantia de participação de um ser em peculiar fase de desenvolvimento demanda a atenção e o liame entre o presente e o futuro. O raciocínio ora defendido traz, então, uma nova problemática e, a partir dela, um novo desafio para o direito. Refere-se ao fato de que, se o ônus situacional da prova inverte-se a partir da Fase 2 – quando a constituição de laços de afeto, mesmo que tênues, pode demandar da justiça a observância da relação já estabelecida –, a tutela processual deve então ser extremamente urgente a fim de evitar que haja formação do vínculo afetivo entre a criança e seus cuidadores antes do perfazimento dos dois meses de vida do bebê. Para que as regras do cadastro de adoção e as cautelas procedimentais e materiais necessárias à responsável colocação de crianças em familia substituta sejam observadas a justiça tem de agir com a celeridade devida. Essa observação é de suma importância, uma vez que, considerando a velocidade 717 Lei 13.257/16, art. 4º, I e II. 718 Item 4.4. 719 DUNKAN, Zélia; MOSKA, Paulinho. O tom do amor. In: Pouco. Rio de Janeiro: Biscoito Fino, 2010. 241 com que o apego se estabelece entre o bebê e os seus cuidadores, não são poucas as lides em que a análise de mérito, relativo à colocação responsável de um petiz num lar substituto, já se tem por prejudicado diante da constatação do vínculo. Por isso, não raramente, nos processos que combatem os males da adoção intuitu personae, a sentença é dada, na prática, em sede liminar. O cuidado com o tempo da criança é deveras importante para a ciência do direito, especificamente no que se refere ao ramo do direito processual, pois, dada a celeridade com que os vínculos afetivos se estabelecem – a partir da nona semana de vida –, a decisão final em torno da viabilidade ou não da adoção intuitu personae ocorre, em termos práticos, em sede de tutelas provisórias, nas quais as decisões liminares que consentem com a irregularidade praticamente sacramentam o destino da criança. Reverter o quadro inicial de formação de vínculos após o fim do processo, com seu trânsito em julgado, é uma tarefa não só inconsequente, como impossível, já que a demora da causa termina por consolidar os vínculos que foram originalmente estabelecidos de forma irregular. Tal fato deveria fazer com que os magistrados de primeiro e segundo grau laborassem com maior cuidado, ao lidar com os conceitos de periculum in mora e periculum in mora reverso, pois, se a tutela emergencial de retirar a criança de um lar em que esteja sob guarda irregular não impede que esta providência seja revertida posteriormente, o mesmo não se pode dizer da decisão que opta liminarmente por ali manter o bebê, pois, no futuro, em constatada a fraude ou a não garantia adequada do direito à convivência familiar e comunitária, o vínculo já formado praticamente inviabilizará a reversão do quadro inicial.720 A busca de uma tutela adequada à proteção das liberdades fundamentais de um ser em peculiar estágio de desenvolvimento implica a sua tempestividade, o que, por sua vez, requer o desenvolvimento de – e o comprometimento com – técnicas processuais de defesa do direito em disputa que atendam ao princípio da intervenção precoce, previsto no ECA.721 Desconsiderar o tempo e os interesses infantojuvenis é desconsiderar os seus direitos mais básicos. Dessarte, assim asseveram Goldstein, Freud e Solnit: “Como o sentido de tempo de uma criança está diretamente relacionado com a sua capacidade de enfrentar quebras de continuidade, torna-se um fator para se determinar se, quando e com que urgência a lei deve 720 A propósito, sobre a tomada de providência para evitar a formação de vínculos entre a criança e família substituta, cf. a decisão da Corte Suprema dos EUA no caso Smith, referida no item 3.4. 721 “Intervenção precoce: a intervenção das autoridades competentes deve ser efetuada logo que a situação de perigo seja conhecida”. ECA, art. 100, parágrafo único, VI. 242 agir”.722 Não são os pequenos que se devem, portanto, sujeitar às contingências dos órgãos da justiça, mas são estes últimos que se devem adaptar às necessidades e etapas da vida da criança, desenvolvendo métodos e técnicas apropriadas de aproximação. E, nesse ponto, retomamos a importância da constituição de equipes técnicas de apoio ao juiz de direito na sua atividade de dizer o direito da criança. Quão melhor aparelhada e capacitada estiver a justiça para o exercício de suas funções, mais integrados os magistrados estarão aos profissionais, serviços e equipamentos de promoção dos direitos fundamentais, notadamente, os da assistência social e os da saúde. Só a partir dessa aproximação é que a proteção às famílias poderá almejar a precocidade a que a lei se refere. Sem a intersetorialidade entre a justiça e os outros serviços públicos essenciais, o “logo que a situação de perigo seja conhecida”, a que se refere o art. 100, parágrafo único, VI, do ECA, significará sempre um chegar atrasado do poder público junto ao lar, apenas para constatar que os vínculos paterno-filiais já foram rompidos e nada mais há a ser feito que não seja o menear afirmativo da cabeça do magistrado para com as colocações irregulares de neonatos em famílias substitutas. A ideia de intervenção precoce importa uma virada epistemológica e metodológica para o exercício da jurisdição na área do direito da criança e do adolescente. Trata-se de novas bases para a atividade de dizer o direito, em que a tutela no espaço forense mostra-se insuficiente e os operadores do direito percebem-se menos autossuficientes, o que colabora para a integração das políticas sociais básicas e da justiça. Essa integração é uma como condição sine qua non para a garantia dos bens fundamentais infantojuvenis, a mobilização da sociedade e a mudança da cultura – ainda tão presente em nossa sociedade – de instrumentalização dos interesses infantojuvenis. Se, contudo, houver a intervenção precoce, deve a justiça agir com a devida celeridade a fim de evitar a formação de indevidos vínculos afetivos, que, se verificados, farão soçobrar todas as garantias procedimentais relativas ao direito à convivência familiar, pautando o direito da criança e de seus pais pelo prisma dos adultos adotantes. Algumas ressalvas finais fazem-se necessárias neste tópico. A primeira é a de que o enfrentamento à formação de vínculos indevidos de afeto entre a criança e uma família substituta se refere às situações em que os pais não tinham anteriores vínculos de confiança com aquele lar e a aproximação deu-se de forma interessada em receber um bebê em adoção, o que termina por instrumentalizar a família biológica e o 722 GOLDSTEIN; FREUD; SOLNIT, op. cit., p. 30. 243 bebê em prol de um interesse exógeno ao lar. Não se referem, portanto, estas linhas àquilo chamado no item 6.1.4 de “família extensa socioafetiva”, pois aí entende-se que aos genitores é dada a liberdade constitucional de participar da escolha de pessoas do seu círculo de confiança para receber o seu filho. Entende-se que o não-constrangimento das “gestantes ou mães que manifestem interesse em entregar seus filhos para adoção”, previsto no ECA, art. 13, § 1º, deveria fazer com que a justiça desenvolvesse modelos em que à mãe – e ao pai – fosse conferida maior participação nesse processo de escolha de um lar para o seu filho, desde que tal escolha se dê em um ambiente de laços afetivos e de confiança previamente estabelecidos. Como já dito anteriormente, negar a justiça o interesse dos pais e querer que estes depositem seus filhos perante varas judiciais – na maioria dos casos, mal aparelhadas –, equivale, isso sim, a uma reedição pós-moderna da Roda dos Expostos. A segunda ressalva é a de que o respeito aos vínculos formados na Fase 2 não se sustenta perante adoções intuitu personae que decorram de situações de fraude ou coação, tais como aquelas em que a genitora quis se arrepender oportunamente da entrega de seu filho e isso não lhe foi permitido pela família substituta ou, ainda, em que o pai ou a família extensa sequer souberam da gravidez e da entrega indevida. Nesses casos, apesar de não se defender um agir automatizado da justiça para a retirada da criança do lar substituto, por outro lado, entende-se que o olhar do Judiciário há de ser menos condescendente do que naquelas situações em que os vínculos, mesmo que indevidos, formaram-se a partir de um contexto de entrega voluntária do bebê por seus pais. Em casos de fraude ou coação, tem-se por razoável se cogitar a aplicação literal do ECA, art. 50, § 13, notadamente, o seu inciso III, em todo o seu rigor. Essas situações de fraude ou coação representam um enorme drama para a justiça, notadamente quando se vê, de um lado, o interesse do genitor lesado e, de outro, o da criança com vínculos já firmados com os seus adotantes. Esses casos requerem dos atores jurídicos uma decisão salomônica e a tragédia que daí advirá para a parte perdedora, se impossível de ser minimizada no caso concreto – mas tão somente compartimentada no polo sucumbente da ação –, deveria, pelo menos, trazer maior reflexão sobre as bases, bastante precárias, sobre as quais a jurisdição da infância tem sido exercida no Brasil. Por fim, a terceira ressalva é de índole política e institucional. O comprometimento com o direito da criança e do adolescente deve atrelar a disposição subjetiva dos atores sociais 244 a um contexto institucional, que juntos haverão de perfazer a “vontade de Constituição” a que Hesse se referiu.723 Porém, tanto o compromisso pessoal, como o institucional devem estar lastreados em bases científicas de discussão a fim de evitar o amadorismo e os achismos que, por tanto tempo, impeliram a justiça a uma atuação mambembe para com os direitos infantojuvenis. Se o Judiciário se acomodar, no julgamento das adoções intuitu personae, a uma leitura tão somente discricionária do julgador e não enfrentar efetivamente, quer na esfera coletiva (deixando de dar estrutura adequada de apoio aos juízes de direito), quer na individual (resignando-se o magistrado a ler os processos de adoção intuitu personae pelas falas dos adultos que com a criança estão), nada ou muito pouco irá mudar na cultura de fragilização do direito à convivência familiar de crianças e adolescentes, ainda tão presente na sociedade. Neste ponto, impossível deixar de registrar que é de todo lastimável a postura do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Norte, Estado de onde se produziu esta pesquisa, o qual, quer por meio de sua administração superior, quer por meio dos seus órgãos de segundo grau, pouco tem feito para mudar a realidade social em torno da adoção e da circulação irregular de crianças e adolescentes potiguares.724 6.1.6 O cadastro de adoção pelo prisma dos que esperam na fila dos pretendentes à adoção Além da questão ética – e legal – referente à devida proteção do direito à convivência familiar da criança, do adolescente e de seus pais, uma segunda dimensão ética do cadastro de adoção, para a qual a jurisprudência e a doutrina nacional pouco atentam, diz respeito à garantia de isonomia para os que, desejando ter um filho, dispõem-se a ser preparados e 723 Cf. nota de rodapé 121, p. 46. 724 A crítica aqui feita tem por base, em seu aspecto institucional, as informações constantes do procedimento Reclamação para Garantia das Decisões nº 0005472-89.2012.00.0000, instaurado perante a Corregedoria Nacional de Justiça – órgão do Conselho Nacional de Justiça –, no bojo do qual se constatou o fato (público e notório) de que a larga maioria dos juízes do Estado do Rio Grande do Norte com jurisdição para a tutela dos direitos da criança e do adolescente trabalha sem o assessoramento de equipe técnica interprofissional. E, mesmo nas comarcas que as têm (Natal e Mossoró), esse quadro é composto ou por servidores em desvio de função ou por funcionários cedidos do município – caso de Mossoró, onde o autor desta pesquisa atua como promotor de justiça perante a Vara da Infância e Juventude dessa Comarca. No aspecto funcional, a crítica é feita a partir de processos tais como o Agravo de Instrumento 2015.017739-0 (em segredo de justiça), no qual se discutia a colocação irregular para fins de adoção de um criança de dois meses que estava com a família substituta há apenas um mês. No caso, no qual este autor atuou como membro do Ministério Público no primeiro grau, o relator, não atento à base científica da discussão em torno do apego, nem ainda ao aspecto procedimental do direito à convivência familiar, decidiu por manter o bebê em seu lar adotivo, praticamente inviabilizando, dali pra frente, quaisquer medidas acautelatórias ou de observância do cadastro de adoção, pois o decurso do tempo fatalmente colaborará para a formação de vínculos afetivos entre a criança e seus cuidadores. 245 acompanhados pela justiça da infância e juventude, vindo a integrar a lista de pessoas habilitadas a adotar.725 Conforme asseverado anteriormente 726 , entende-se que a liberdade parental na criação dos filhos autoriza os pais a, indo além das hipóteses previstas no art. 50, § 13, do ECA, escolherem as pessoas a quem eles pretendem entregar seu rebento em adoção, desde que tais pessoas integrem o conceito de família extensa socioafetiva, compondo o círculo social de confiança dos genitores. Essa entrega configura um ato de amor dos pais – talvez o último –, e não deve o direito se negar a reconhecer valor a esse encaminhamento e, em defesa dos interesses da criança, acompanhar o subsequente processo de inserção do petiz em família substituta. Querer que os pais abdiquem dessa liberdade para entregar seus filhos perante órgãos da justiça com os quais nunca tiveram contato equivale a repetir o erro grotesco das Rodas dos Expostos, apenas retirando a sua institucionalização dos espaços filantrópicos para as alocar no campo da justiça. Por outro lado, se não havia entre os pais biológicos e os pretendentes à adoção dirigida anteriores vínculos de afeto ou de confiança estabelecidos, mas a aproximação deu-se tanto somente intermediada pelo desejo de alguém de fora do lar de ter um filho, não haverá, nessa hipótese, interesse a ser juridicamente protegido, pois não havia relações afetivas ou de confiabilidade anteriores à entrega. A aproximação interessada em ter filhos não raro retira o foco dos direitos da criança e os de sua família – notadamente em seu aspecto procedimental, – para dar destaque, prioritariamente, aos interesses de pessoas de fora da ambiência doméstica e, portanto, sem qualquer compromisso com a análise, garantia e fomento às liberdades decorrentes dos vínculos paterno-filiais. Portanto, tais situações de adoção intuitu personae não devem receber proteção judicial – a menos que, como visto no item 6.1.5, o decurso do tempo, em virtude da formação de vínculos afetivos entre a criança e os seus pretendentes à adoção, já aponte para outro sentido. Sob outro prisma – agora o das pessoas que estão na fila de adoção da Comarca –, privilegiar o interesse de adultos externos ao lar que dali se aproximam tão somente movidos pelo desejo de receber uma criança em adoção termina não só por obscurecer os direitos da família biológica, mas também atenta contra o direito daqueles que estão esperando de forma legítima no Cadastro Nacional de Adoção. Se a justiça acolhe irrestritamente as adoções intuitu personae, isso equivale a uma 725 Cf. arts. 197-A a 197-E do ECA. 726 Cf. item 6.1.4. 246 prática inconstitucional em virtude da quebra da cláusula geral de igualdade constante do art. 5º, caput, da Constituição, pelo qual “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”. Robert Alexy, ao tratar da busca de um critério válido de discrímen que autorize um tratamento desigual, aduz: A necessidade de se fornecer uma razão suficiente que justifique a admissibilidade de uma diferenciação significa que, se uma tal razão não existe, é obrigatório um tratamento igual. Essa ideia pode ser expressa por meio do seguinte enunciado, que é um refinamento da concepção fraca do enunciado geral de igualdade […]: “Se não houver razão suficiente para a permissibilidade de um tratamento desigual, então, o tratamento igual é obrigatório”. Não existe uma razão suficiente para a permissibilidade de uma diferenciação quando todas as razões que poderiam ser cogitadas são consideradas insuficientes. Nesse caso, não há como fundamentar a permissibilidade da diferenciação. Com isso, como já salientado diversas vezes, o enunciado geral de igualdade estabelece um ônus argumentativo para o tratamento desigual.727 No caso, o ônus argumentativo que se estabelece para os que receberam em adoção de forma irregular uma criança – ou seja, em desatenção às regras do ECA, artigo 50, § 13 – significa que os adotantes haverão de demonstrar uma destas duas situações: ou que estavam no círculo de afeto da família biológica, ou que os vínculos entre eles e o petiz já se têm por constituídos, porque passada a Fase 2 do apego, segundo a teoria desenvolvida por John Bowlby, referida no item anterior. Caso não estejam os adotantes em alguma dessas situações, entende-se que o reconhecimento jurídico de sua situação configura uma injustiça para com os que se encontram – muitas vezes, por anos – nas filas de adoção do país, mas cujo desejo de ter um filho jamais será contemplado pelo Poder Judiciário, em virtude de sua leniência com a indevida circulação de bebês no meio social. Os pretendentes à adoção habilitados perante o Juizado da Infância e Juventude local encontram-se, substancialmente, na mesma situação em que os adotantes irregulares: as pessoas de ambos os grupos acalentam o desejo de serem pais e mães e não têm vínculos de afeto ou confiança pré-estabelecidos com a criança adotanda ou com os seus genitores. Se a situação é, pois, a mesma, não há critério de discriminação satisfatório, o tratamento desigual não é legítimo, e o que se deve respeitar é o critério do cadastro de adoção. Em tais situações, serão cabíveis as medidas cautelares urgentes de busca e apreensão da criança que esteja em situação de ilegal colocação em família substituta a fim de se evitar a formação do vínculo afetivo, com o subsequente acompanhamento da família de 727 ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2014. p. 408-409. 247 origem e, se for o caso, a posterior colocação em adoção no lar de pessoas previamente habilitadas na Comarca, pessoas que passaram por curso e orientação perante a Vara da Infância e Juventude da Comarca e serão acompanhadas e orientadas no seu estágio de convivência com o petiz. A prática ainda tão comum na jurisprudência de chancelar irrestritamente adoções intuitu personae, acompanhada do descaso das administrações superiores do Poder Judiciário brasileiro em fornecer adequadas condições laborais para os magistrados da infância, termina por referendar a lógica de um mercado de adoção que prega o deixai fazer; deixai passar no meio social e privilegia a escolha de uma determinada tipologia de crianças: as recém-nascidas, sem deficiência e, se da cor branca, ainda melhor. Entrementes, os cadastros de adoção tornam-se peças bolorentas nos fóruns e nas comarcas do país, compostos, numa ponta, por meninas e meninos à espera de um lar, e, na outra, por pessoas iludidas que veem a livre circulação de bebês ao seu redor, com a vergonhosa complacência dos órgãos de justiça. O instituto da adoção visa a resguardar os direitos da criança e do adolescente e, a partir daí, também o de seus genitores – pois, como foi visto, a ideia de integridade familiar aproxima o direito de pais e filhos.728 A colocação em família substituta não se refere ao interesse de terceiras pessoas que não fazem parte da ambiência doméstica do petiz. O prisma dos postulantes à adoção, quando considerado, aponta para a ética da justiça e do cadastro de adoção, o que implica o respeito à isonomia de tratamento para as demais pessoas que se encontram na mesma posição jurídica material. O desejo por um filho de quem está na fila de adoção é tão legítimo quanto o daqueles que deliberadamente burlam as regras do cadastro e, sendo assim, por um imperativo de justiça, deve ser dada prevalência ao interesse das pessoas que integram o primeiro grupo. 6.1.7 A titularidade e o conteúdo do direito à convivência familiar como parâmetro de análise dos casos de adoção intuitu personae Diante do exposto neste capítulo, na análise do tema das adoções intuitu personae, à luz da teoria e dos conceitos desenvolvidos ao longo desta pesquisa, entende-se que: 1) o direito à convivência familiar é um direito de dupla face em sua titularidade, de modo que se refere não só aos filhos, mas também aos pais. Isso implica, para a ciência do 728 Cf. item 3.9. 248 direito, o desafio de analisar as intervenções e omissões estatais para com a liberdade familiar sob esse aspecto ambivalente de sua titulação; 2) na perspectiva da criança e do adolescente, a adoção, enquanto medida de proteção, é, nos termos do ECA, art. 101, IX, providência relativa especificamente ao público infantojuvenil, cuja competência para aplicação é privativa da autoridade judiciária. Dessarte, a colocação em família substituta atende ao interesse superior do petiz se atentar para as cautelas e os procedimentos necessários para uma inserção responsável e consequente; 3) tais cautelas e procedimentos apontam para a necessidade de ser oportunizada a devida “orientação, apoio e promoção social da família natural, junto à qual a criança e o adolescente devem permanecer, ressalvada absoluta impossibilidade, demonstrada por decisão judicial fundamentada”.729 Tal proceder é um direito da criança, do adolescente e de seus pais e resguarda a liberdade da família em sua dimensão positiva; 4) a criação de oportunidades para a família da criança e do adolescente implica o reconhecimento do direito à convivência familiar tanto junto à sua família nucelar, como também à sua família extensa, nos termos do ECA, art. 25, caput e parágrafo único; 5) a criança e o adolescente têm, portanto, o direito a ter contato com sua família extensa, e esse aspecto deve ser aferido quando da discussão sobre o afastamento do pequeno de seus genitores: desse direito os pais não podem abdicar em nome dos filhos. Assim, apesar da importância do reconhecimento do afeto como elemento de caracterização das relações familiares, aos vínculos anímicos que podem advir do parentesco biológico, mesmo que numa análise potencial, também devem ser conferidas as chances para o desenvolvimento afetivo. Isso é uma decorrência da abordagem desenvolvimentista dos direitos fundamentais da criança e do adolescente, o que implica uma análise gradual dos direitos fundamentais, em perspectiva tanto atual como também futura; 6) no prisma dos pais, a sua autonomia parental, de assento constitucional, lhes confere o direito à convivência familiar com seus filhos, cujo um de seus desdobramentos implica a liberdade de escolher as pessoas que irão criar seus filhos, caso decidam pelo desfazimento do seu vínculo paterno. Para tanto, as pessoas escolhidas haverão de configurar o que neste estudo denominamos como família extensa socioafetiva, isto é: pessoas que, mesmo sem apresentarem os elementos de consanguinidade necessários para a caracterização legal de família extensa – ECA, art. 25, parágrafo único –, preenchem os requisitos subjetivos de afeto e afinidade prévia, espontânea e desinteressadamente estabelecidos. Os pais têm o 729 Lei 12.010/09, art. 1º. 249 direito de escolher quem, dentre as famílias do seu círculo de confiança, deverá dar continuidade às relações familiares tão importantes para o desenvolvimento de sua criança. Tais situações o direito deve reconhecer como válida e necessariamente acompanhar. Almejar a justiça que os pais entreguem seus filhos perante varas judiciais impessoais, mal estruturadas e distantes do meio social, equivale a reeditar a extinta prática da Roda dos Expostos; 7) os casos de adoção intuitu personae que não se refiram às hipóteses do ECA, art. 50, § 13, nem ainda ao conceito de família extensa socioafetiva aqui desenvolvido, deverão ser tidos como circulação indevida de criança e colocação irregular em lar substituto, o que desafia o uso de tutelas provisórias, visando a retirar o petiz daquele ambiente antes que se dê a formação do vínculo afetivo entre o bebê e os seus cuidadores; 8) o tempo da criança demanda o desenvolvimento de técnicas processuais altamente céleres, tanto em primeiro grau de jurisdição, como também em sede recursal, a fim de evitar que o mero decurso do tempo do processo seja, em virtude da configuração de vínculo afetivo entre a criança e os seus pretendentes à adoção, o fator determinante para o julgamento da causa, em prejuízo de qualquer análise de mérito relativa à garantia do direito à convivência familiar da criança e de seus pais; 9) os órgãos da justiça devem, ainda, adotar medidas de prevenção e articulação com os serviços públicos de atendimento à família – tais como a Saúde e a Assistência Social –, visando a prevenir o rompimento dos vínculos familiares, bem como identificar precocemente os casos em que os pais – em geral, a mãe – estejam na iminência de abdicar de seus vínculos paterno-filiais. Do contrário, o agir da justiça sempre estará a um (ou a vários) passo(s) das intermediações privadas referentes à circulação precária de bebês; 10) a partir da Teoria do Apego desenvolvida por John Bowlby, entende-se que, a partir da nona semana de vida da criança (final da Fase 2 do apego e início da Fase 3), estabelece-se uma presunção de formação de vínculos entre o bebê e os cuidadores que com ele estão desde o seu nascimento. Tal presunção demanda maior cautela no uso de tutelas de urgências, em respeito ao interesse superior da criança; 11) Entretanto, diante de casos de fraude ou coação para com o direitos dos pais ou da família extensa, o critério da formação dos vínculos entre a criança e sua família substituta deve ser mitigado em prol da verdade e da justiça. Nessas hipóteses, entende-se plausível cogitar-se a aplicação literal do ECA, art. 50, § 13 – notadamente do seu inciso III –, em todo o seu rigor; 12) diante de adoções intuitu personae irregulares em que o vínculo afetivo da 250 criança com seus cuidadores ainda não se tenha formado, o beneplácito da justiça configura também uma violação ao direito das pessoas integrantes do cadastro local ou nacional de adoção; 13) as intervenções realizadas pelo Poder Judiciário visando à retirada de bebês deverão atentar para o direito dos filhos (à promoção social de sua família natural) e dos pais (à garantia dos mínimos sociais necessários para o exercício de sua função parental e, caso isso não seja possível, à seleção de pessoas integrantes de sua família extensa socioafetiva). Tais intervenções, aplicando a regra de proporcionalidade sobre que tratou-se no item 3.6.1, têm um propósito lícito (combater a indevida e precária circulação de crianças, assim como oportunizar à família natural a orientação, o apoio e a promoção social devidos), se fazem por meios lícitos (a tutela processual) e são adequadas para alcançar o fim a que se propõem. Restará, contudo, aferir a sua necessidade – que, como visto, vem a ser a opção pelo meio restritivo menos gravoso para o direito objeto da restrição; 14) para a criança, a medida restará extremamente grave – portanto, desproporcional – caso os vínculos já se tenham formados entre ela e os seus cuidadores. Para os pais, a medida não atenderá ao critério da necessidade se lhes for negado o direito de ter reconhecidas as relações sociais de afeto e afinidade que, de forma solidária, construíram ao longo de sua existência no meio social em que estão inseridos; 15) não havendo vínculo ainda formado entre o petiz e os seus guardiões de fato, nem se verificando os anteriores laços de amizade entre a família natural e a adotiva, a colocação em família substituta deve ser considerada irregular, de forma que não justifica a quebra da regra de isonomia do cadastro de adoção. Nessa hipótese, a intervenção da justiça para retirar a criança do lar adotivo para inseri-la em uma família habilitada no Cadastro Nacional de Adoção é necessária – logo, proporcional – para resguardar o direito à convivência familiar e comunitária do petiz. 251 7 CONCLUSÃO A disputa entre pais e Estado em torno dos interesses da criança e do adolescente foi o que primeiro impulsionou a jornada acadêmica que esta pesquisa representou. Por esse motivo, o primeiro esforço teórico foi o de definir, no capítulo 2, no que, afinal de contas, consistia o propalado melhor interesse – ou, superior interesse – da criança e do adolescente, pelo qual tanto se debate na doutrina e jurisprudência nacional e estrangeira. Foi então necessário dirigir a pesquisa ao berço moderno desse conceito jurídico, o direito anglo-americano, em que o conceito de melhor interesse da criança (best interest of the child) configurou-se e desenvolveu-se ao longo dos séculos XVIII e XIX antes de vir a ser um princípio do direito internacional da infância. Pelo que constata-se no capítulo 2, não soa exagerado dizer que o que se definiu como infância nos últimos duzentos anos encontra, no princípio do melhor interesse, um espelho fidedigno da imagem sociocultural e do papel que se estabeleciam para a criança e o adolescente no Ocidente. Pôde-se concluir que o conceito de superior interesse da criança e do adolescente foi-se, pouco a pouco, desapegando do interesse de seus pais – primeiro, os do patriarca; depois os de sua mãe –, posteriormente atrelou-se, para em seguida desatrelar-se, aos interesses do Estado, e, então, passou-se a referir a um rol de direitos próprios assegurados no ordenamento jurídico ao petiz. A partir de então, à criança e ao adolescente foi conferida, nas suas relações sociais, uma voz e um querer próprios, aos quais se dá um verniz jurídico que altera o modo de ser de suas relações intrafamiliares e com o próprio poder público. Entretanto, no momento em que a criança e o adolescente passaram a ser vistos como credores de direitos no lar, as posições do jogo de poder inverteram-se no imaginário social: são os pais que se tornam os reféns dos (direitos dos) seus filhos, e não mais o contrário. Nesse contexto, revelou-se importante investigar em que medida a percepção de que os pais estão órfãos de autoridade parental encontra respaldo em nosso ordenamento jurídico. Para tanto, entende-se que, se nos aproximássemos da Constituição Federal usando as lentes de uma teoria constitucional de matiz liberal, o resultado poderia ser enriquecedor, tanto para os pais, como para os filhos, para a releitura do instituto do poder familiar . Nascia, assim, o capítulo 3 deste estudo. Ali, procede-se à análise da evolução do conceito de liberdade parental na teoria constitucional do direito norte-americano, uma vez que foi nos Estados Unidos onde, provavelmente, o direito de liberdade dos pais na educação de seus filhos desenvolveu-se com maior pujança no direito comparado. Em seguida, coube analisar em que 252 medida a teoria liberal encontra respaldo no ordenamento jurídico brasileiro para trazer luz ao direito constitucional de família. Concluiu-se, então, a partir do referencial teórico de Joseph Goldstein, Anna Freud e Albert J. Solnit, em sua clássica obra Before the best interest of the child, que a ideia de integridade familiar indica que não é bom para a criança despir seus responsáveis de poder perante as interferências externas, com destaque para aquelas oriundas do grande Pai da Pátria (Parens Patriae), o Estado, pois isso terminaria por afetar – como, de fato, afetou ao longo da história – o processo de construção dos vínculos afetivos entre pais e filhos. Como visto, a integridade familiar implica tanto o direito de os adultos gozarem de autonomia na educação de seus rebentos, como também, para a própria criança, o direito de ter pais autônomos, pois isso não é só bom, mas necessário para que a intimidade do lar seja o espaço para a construção e consolidação do apego, tão caro ao desenvolvimento humano. Como visto, qualquer intervenção que se faça no seio da família deve atender a um elevado peso de prova (hard burden of proof) a fim de que a privacidade do lar, se for para ser quebrada, que o seja de forma consequente e responsável. Na retirada da criança de sua família natural, a lógica em muito se aproxima de uma política de redução de danos: deve ser menos prejudicial para o filho ser retirado do convívio dos seus pais do que permanecer com eles. Se não for assim, então, deve o petiz permanecer com seus parentes, pois toda medida institucionalizante representa, de per si, prejuízos na vida de uma criança. Também se concluiu que o conceito de integridade familiar encontra respaldo em nosso ordenamento jurídico, como se vê pelos princípios da intervenção mínima, da proporcionalidade, da responsabilidade parental e da prevalência da família, todos positivados no art. 100, parágrafo único, do ECA. Finalmente, outra conclusão a que se chegou no capítulo 3 foi a de que o conceito de integridade familiar ainda permite enxergar tanto o direito à convivência familiar, como também o clássico do poder familiar – outrora, pátrio poder – de uma nova forma, indo além da tradicional concepção unilateral desses institutos (de referência, respectivamente, só aos filhos ou só aos pais). Nesta pesquisa, a convivência e o poder familiares são conceitos relacionados tanto aos ascendentes como também aos descendentes, e isso permite, dentre outras consequências, a melhor defesa da intimidade paterno-filial contra ingerências externas, uma vez que esta resistência passa a ser feita, prima facie, em prol do interesses de todos os membros do lar. Nesse prisma, a primeira dimensão de que trata a proteção do art. 226, caput, da Constituição teria natureza liberal (direito de resistência) – o que não prejudica a compreensão positiva das liberdades familiares, conforme se vê mais adiante no capítulo 253 5 –, e, para a tutela das liberdades negativas da família, toma-se como parâmetro de análise da invasividade governamental o uso da regra da proporcionalidade, tal qual apresentada na obra de Leonardo Martins. Por outro lado, a noção de integridade familiar, aqui abraçada, acarretou um novo desafio: o de analisar a liberdade da criança pelo prisma da sua própria autonomia. Se a esta tarefa não se lançasse este estudo, esta pesquisa poderia significar para o petiz o retorno à clausura teórica do menorismo, em que, sob um discurso de pseudodireitos, a liberdade do infante era satisfeita pela singela projeção dos interesses de um adulto (ou os seus responsáveis ou o juiz de menores), e isso poderia ser até pior do que a negação dos direitos da criança. O progresso fingido pode ser até mais nocivo do que a manutenção do status quo e a descompromissada afirmação de garantias dos direitos é fruto do cinismo político – que, não raramente, faz-se acompanhar da estagnação das instituições e dos debates. Portanto, imbuindo-se da preocupação de dar um lugar para a liberdade da criança nesta pesquisa, o capítulo 4 foi desenvolvido tendo como norte o desafio de situar a autonomia – e, portanto, num prisma kantiano, a dignidade – do petiz entre os direitos de proteção e os direitos de liberdade, indagando de que forma esses polos relacionam-se para garantir a emancipação de um sujeito que está provisoriamente, nos seus primeiros dezoito anos de existência, sujeito a uma autoridade de outrem, mas que, pouco a pouco, vai-se dela desvencilhando. O referencial teórico de Amartya Sen, com sua abordagem das liberdades humanas pelo prisma do desenvolvimento, trouxe muita luz para enfrentar a problemática referente à autonomia da criança no quarto capítulo. A partir da abordagem das capacidades – que se liga intimamente ao aspecto de oportunidade da liberdade –, tal qual propugnada pelo autor indiano, pôde-se analisar o desenvolvimento como sendo um conceito referido a um rol de direitos em constante estado de integração, de forma de garantir os processos e as oportunidades necessárias para a expansão da liberdade humana. É esta interação entre os diferentes aspectos da liberdade – proteção, provisão e participação política – que permite ao indivíduo alcançar o tipo de vida que ele tenha razão para valorizar. Para o público infantojuvenil, a abordagem de sua liberdade pelo prisma desenvolvimentista permite um novo olhar para a dicotomia estabelecida entre os direitos de proteção e os de liberdade, ultrapassando a compreensão de que essas categorias normativas encontram-se em constante estado de colisão e aniquilamento. A situação peculiar de desenvolvimento da criança e do adolescente leva à ideia de que a sua plena liberdade não refrata, mas, pelo contrário, integra os seus direitos de proteção, provisão e participação – os 254 3Ps da Convenção sobre os Direitos da Criança –, e isso se torna um pressuposto metodológico para se permitir aos mais novos todas as oportunidades e facilidades para a construção de sua cidadania atual e futura, tal qual preceitua o ECA, em seu art. 3º. O só fato de haver desafios epistemológicos referentes à implementação especificamente dos direitos de participação da criança não deve ser motivo para a sua negação ou deboche, na medida em que os direitos de proteção e os de provisão também apresentam problemáticas próprias para a sua realização e jurídica social. Sendo assim, como um reflexo da autonomia atual e futura da criança e do adolescente, sua condição de sujeitos de direitos acarreta para os pais obrigações tanto de ordem ética como também jurídica, a fim de lhes resguardar e contribuir para a integração de seus direitos à proteção, provisão e participação. Contudo, a afirmação de que há para os pais obrigações éticas e jurídicas para com seus filhos levaria a uma nova e última inquietação, sobre a qual nos lançaríamos para estruturar um pensamento que respondesse à seguinte pergunta: de que forma a moral e o direito relacionam-se para garantir a liberdade da criança? Esta pergunta apresenta-se de diferentes formas – ora para se referir à relação que se estabelece entre o direito e a moral; ora entre a juridicidade e a solidariedade; ora entre o público e o privado –, e muito de sua resposta tem a ver com o objetivo primeiro de nossa república: a construção de uma “sociedade livre, justa e solidária”, nos termos do art. 3º, I, da Constituição Federal. Firmava- se, assim, a justificativa teórica do capítulo 5. Analisou-se então, no quinto capítulo, de que forma o direito e a moral relacionam-se para garantir e potencializar os direitos fundamentais da criança e do adolescente. Já no capítulo 4, havia-se percebido, no debate constitucional estrangeiro, certo desconforto em acomodar as obrigações jurídicas sob fundamentos estritamente morais – referindo-se, mais particularmente, aos direitos da solidariedade ou de terceira geração –, pois, tendo o direito dentes, a ideia de coercibilidade parece não contribuir para a prática de atitudes virtuosas, referentes ao foro íntimo da pessoa. Os referenciais teóricos dos filósofos políticos Alessandro Pinzani, Onora O´neill e Will Kymlicka foram decisivos para acomodar conceitos aparentemente tão incongruentes como a força do direito e a virtude da fraternidade. Pinzani, com uma só ideia – a de que a solidariedade não precisa ser um fundamento concorrente das teorias tradicionais de justiça, podendo funcionar melhor como seu complemento – , começou a abrir um horizonte de possibilidades para a integração entre a moral e o direito. 255 A tese de Pinzani encontrou na visão de O´neill sobre a fundamentação axiológica das obrigações dos adultos para com crianças um fértil canal de intercâmbio filosófico. A ideia da autora britânica é a de que as obrigações imperfeitas (morais) melhor acomodam as obrigações dos adultos responsáveis pelos mais novos do que as obrigações perfeitas do direito, pois é nas primeiras que se situam as virtudes do amor, do carinho e da solidariedade, tão importantes para o desenvolvimento infantil. E, então, nessa altura do quinto capítulo, a análise de Kymlicka relativa às limitações da ética do cuidado (calcada sobre as ideias da solidariedade e da especificidade dos sujeitos obrigacionais) e da ética da justiça (cuja lógica, dos direitos, funda-se nas noções de juridicidade e da abstração identitária dos sujeitos relacionais) forneceu um poderoso argumento de que o esgotamento das possibilidades do direito e da moral, ao invés de repelir cuidado e justiça, tinha, justamente, o efeito contrário: o da atração. A integração entre juridicidade e solidariedade, advinda do reconhecimento recíproco das limitações de cada qual, melhor fundamenta as obrigações humanas, pois, onde ao direito falta o máximo a que o amor é capaz de chegar, à moral, quando inexistente ou insuficiente o afeto para garantir o desenvolvimento humano, faltaria o direito com os seus mínimos existenciais. Essa noção de integração entre o direito e a solidariedade fez então propugnar para o Estado um novo tipo de agir, de índole subsidiária. O conceito de subsidiariedade da ação estatal não aponta para um modelo de Estado mínimo ou máximo, mas sim suficiente para atender às necessidades humanas de justiça e solidariedade dentro de um modelo colaborativo com a sociedade. Reconhecer a insuficiência do poder público para garantir desenvolvimento social fez, assim, valorizar a ideia de promoção dos direitos, conceito que ultrapassa as noções de prestação e intervenção estatal, pois dá destaque à efetivação das liberdades fundamentais para além do seu mínimo. Em matéria de direito da criança e do adolescente, a perspectiva da promoção dos direitos tem ainda maior relevância, uma vez que, sendo muitas de suas necessidades fundamentais atendidas a partir da construção dos laços afetivos com seus pais, a ação social participativa pode colaborar enormemente para a consolidação de uma cultura de reflexão e diálogo sobre os direitos infantojuvenis, fazendo com que a imisção governamental nos lares assuma a devida proporção, em menor escala e com menos soberba. Por fim, a ideia de promoção dos direitos permitiu superar a mirada do fenômeno jurídico tão somente pelo prisma das violações às normas jurídicas, para dar destaque, também, aos momentos em que a lei é espontaneamente cumprida no meio social. Esse 256 fenômeno deve ser, cada vez mais, objeto da jusciência, a fim de que se estudem as condicionantes e situações nas quais a justiça se estabelece deliberadamente na sociedade, bem como se possibilite uma maior integração dos juristas com a sociedade civil organizada e outros profissionais oriundos de áreas afins ao direito – tais como a educação, a assistência social, a medicina, a psicologia, a sociologia e a comunicação social, dentre outras. Estabelecidas as premissas teóricas do trabalho, pôde-se então adentrar na reflexão de uma discussão específica, relativa ao polêmico instituto da adoção intuitu personae, em que o tensionamento que se pode verificar na relação tricotômica entre pais, filhos e o Estado atinge o seu ápice. Reputa-se de fundamental importância que a ciência do direito dê maior atenção a uma temática tão importante a colocação da criança e do adolescente em família substituta, uma vez que tem-se aí uma medida de proteção que definirá não só atualmente o direito infantojuvenil à convivência familiar e comunitária, mas também todo o futuro e projetos de vida do petiz. Os conceitos trabalhados ao longo da pesquisa foram então aplicados no capítulo 6, quando se pôde verificar que as reflexões teóricas empreendidas nesta dissertação trouxeram muitos novos parâmetros e fundamentos para a análise de um tema tão importante como a adoção. A conclusão a que se chegou no capítulo sexto foi, em linha geral, a de que há ainda espaço no debate doutrinário e jurisprudencial para a expansão da liberdade conferida tanto aos filhos como aos seus pais na temática da adoção intuitu personae. Pelo viés da criança, a sua condição de sujeito de direitos chama a atenção para o aspecto procedimental do seu direito à convivência familiar e comunitária, o que implica a necessidade de se garantir previamente a promoção social de sua família – tanto a natural, como a extensa – antes de se cogitar o desfazimento dos vínculos paterno-filiais. Pelo prisma dos pais, as ideias desenvolvidas neste estudo levam-nos a ter maior protagonismo na decisão sobre o destino do seu filho, desde que se vejam configuradas as redes sociais que denomina-se como família extensa socioafetiva. Se respeitados tais requisitos, além dos outros positivados no ECA, art. 50, § 13, a intervenção estatal não é devida para retirar o bebê de um lar substituto; se não configurados, a imisção estatal será proporcional para atingir esta finalidade – desde que, como visto, o lapso de tempo ainda não tenha firmado os vínculos de afeto entre a criança e seus adotantes, quando, então, o interesse do petiz pode demandar a preservação do apego já constituído. Tomando este trabalho dentro de um panorama geral, a conclusão a que se chegou foi a de que não encontra respaldo científico o discurso que prega a relação inversamente proporcional entre a liberdade de pais e filhos. O que se verificou foi justamente o contrário: 257 apesar dos tensionamentos (naturais) que podem existir entre ascendentes e descendentes, a relação de liberdade que se estabelece entre os genitores e sua prole é diretamente proporcional. Ou seja: quanto mais liberdades – negativas e positivas – os pais receberem para educar seus filhos, melhor será o desenvolvimento do afeto no lar e, assim, das capacidades da criança, passando ela a ter mais oportunidades da liberdade ao longo da sua vida. Apesar de a lógica dos direitos diminuir, em princípio, a autonomia das partes relacionais (sobretudo, no que se refere à autonomia imposta de uma sobre a outra), isso não quer dizer que haja uma diminuição da liberdade em si, mas, pelo contrário, o que ocorre é a acomodação dos direitos de pais e filhos visando à garantia de padrões mínimos de bens materiais e imateriais essenciais ao desenvolvimento humano. Neste cenário, garantida a privacidade do lar nos moldes apresentados neste estudo, a atuação estatal subsidiária colabora para formação de uma sociedade na qual, a partir das famílias, garantam-se às crianças, aos adolescentes, aos pais e aos demais familiares, as oportunidades para a formação de vínculos afetivos, tão importantes para a expansão das liberdades no quadro geral das relações humanas. Finalmente, registra-se que todas as reflexões que foram emprendidas, ao longo desta pesquisa, fizeram concluir que, numa caminhada como esta, em nível de mestrado, nem sempre mudou aquilo que inicialmente se pensava – afinal, a finalidade do método científico não é necessariamente negar ideias, mas sim testá-las à luz de um conhecimento sistematicamente organizado para as confirmar ou não. A principal virada ocorreu na fundamentação das ideias e hipóteses do pesquisador desta dissertação: aí a mudança foi substancial, quer para confirmar as teses anteriores – mas, agora, assentadas sobre novos fundamentos –, quer para minimizar sua força, quer para as afastar como hipótese válida. Dessa inferência, pôde-se concluir que tão ou mais importante do que a parte dispositiva das decisões da justiça e do pensamento científico deve ser a sua fundamentação, pois é, a partir dela que o direito expõe-se para além dos pré-julgamentos dos seus operadores e coloca-se perante a comunidade social e científica para crítica e debate. 258 REFERÊNCIAS ALEGRE, Silvina; HERNÁNDEZ, Ximena; ROGER, Camille. El interés superior del nino: interpretaciones y experiencias latinoamericanas. Buenos Aires: Unicef, 2014. ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2014. ALMEIDA, Júlio Alfredo de. Adoção intuitu personae: uma proposta de agir. Disponível em: . 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