UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA MESTRADO EM ÉTICA E FILOSOFIA POLÍTICA Cláudio Ananias Alves Dos Santos KANT E O MAL: A impossibilidade de uma vontade diabólica na natureza humana NATAL/RN 2018 1 CLÁUDIO ANANIAS ALVES DOS SANTOS KANT E O MAL: A impossibilidade de uma vontade diabólica na natureza humana Dissertação apresentada como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Filosofia pelo Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Orientadora: Profª. Drª. Cinara Maria Leite Nahra NATAL/RN 2018 Santos, Claudio Ananias Alves dos. Kant e o mal: a impossibilidade de uma vontade diabólica na natureza humana / Claudio Ananias Alves dos Santos. - 2018. 113f.: il. Dissertação (mestrado) - Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes. Programa de Pós-Graduação em Filosofia. Natal, RN, 2018. Orientadora: Prof.ª Dr.ª Cinara Maria Leite Nahra. 1. Kant, Immanuel, 1724-1804. 2. Lei moral. 3. Moral. 4. Maldade. 5. Vontade diabólica. I. Nahra, Cinara Maria Leite. II. Título. RN/UF/BS-CCHLA CDU 17.023 Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN Sistema de Bibliotecas - SISBI Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes - CCHLA Elaborado por Ana Luísa Lincka de Sousa - CRB-CRB-15/748 3 CLÁUDIO ANANIAS ALVES DOS SANTOS KANT E O MAL: A impossibilidade de uma vontade diabólica na natureza humana Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte para obtenção do grau de mestre em Filosofia COMISSÃO EXAMINADORA Professora Dra. Cinara Maria Leite Nahra Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN Orientadora Professora Dra. Maria de Lourdes Alves Borges Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC Membro Externo Professor Dr. Sérgio Eduardo Lima da Silva Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN Membro Interno 4 DEDICATÓRIA À Igreja Evangélica Assembleia de Deus em Soledade 2, Natal-RN 5 AGRADECIMENTOS Expresso minha gratidão: A Deus, incomensurável, magnificentíssimo, ente infinito e causa necessária de todas as coisas. Aos meus pais, Antônio Adelino e Socorro Santos, por todo suporte nos mais diversos momentos em que precisei e preciso. As minhas irmãs, Ana Cláudia e Rute, pelo mesmo motivo acima exposto. A minha esposa, Karitana Souza, por toda devoção e apreço nos projetos que são nossos. Aos meus filhos, Heitor Petrus e Nícolas Adriel, pelo constante aprendizado no exercício da paternidade. Aos meus amigos e colegas de trabalho e estudo. Do PPGFIL – UFRN e do Curso de Ciências da Religião – UERN, pelos freqüentes diálogos nos corredores do Setor 2 (UFRN) e no saguão do Complexo Cultural da UERN. Aos meus professores do PPGFIL: Cinara Nahra, orientadora e pessoa amiga (quem a conhece logo se encanta com sua personalidade). Todas as orientações foram objetivas, efetivas e assaz relevantes. Professores das disciplinas que participei: Antônio Basílio, Joel Klein, Maria Cristina, Daniel Durante, Leonel Ribeiro e Cinara Nahra, por todos os ensinos úteis para esta formação. Aos professores participantes do exame de qualificação, Cinara Nahra, Maria José Souza Vidal e Joel Thiago Klein por todas as dicas e correções necessárias. Por fim, minha gratidão aos professores participantes da banca de defesa desta dissertação: Cinara Nahra, Maria de Lourdes Borges e Sérgio Eduardo Lima da Silva. 6 “Deus só criou enigmas. Os extremos se tocam, as contradições vivem juntas [...] É o duelo do diabo e de Deus, sendo o coração humano o campo de batalha”. Fiódor Dostoiévski. Os Irmãos Karamázovi. 7 RESUMO A temática do mal na filosofia kantiana decorre da sua abordagem da moralidade cujo conceito do mal, em suma, é ir contra a lei moral, conquanto o mal esteja na realização de uma ação que não é uma ação moral, uma vez que a lei moral almeje a realização do mais elevado bem possível por meio de nós. Kant aborda objetivamente o mal na sua obra A Religião nos Limites da Simples Razão, de 1793, e, para tal, apresenta-o em três níveis: o mal da fraqueza, o mal da impureza e a malignidade. No entanto, ele indica o conceito de um quarto nível que não seria possível, a saber, uma vontade diabólica. A fraqueza seria uma inclinação para uma ação que contraria às próprias máximas, sendo fraco e agindo inversamente à lei moral. A impureza está numa ação correta que, no entanto, não tem como fundamento a lei moral. A malignidade seria a decisão de fazer o mal, tendo as intenções e motivações egoístas na frente da lei moral. Mas, o quarto nível de mal, que para Kant não seria possível de existir, consiste numa ação maligna em que uma vontade puramente diabólica se estabelece. O mal nesse sentido, diabólico, propõe sua querência a partir de uma corrupção natural da vontade. Kant apresenta este conceito, porém entende que ele não é possível, pois as ações humanas desse tipo de mal seriam justificadas na própria razão, uma vez que tal maldade seria a disposição de ânimo admitindo como motivo o mal enquanto mal na própria máxima. Posto que Kant entenda que o homem não alcança a condição de uma vontade diabólica, a presente pesquisa pretende investigar porque, em Kant, o mal diabólico (no sentido de uma desumanidade inata, ou num prazer natural na maldade) não seria possível. Partindo dos conceitos chaves que discute a moral em Kant, como liberdade, imperativo categórico, vontade, intenção, bem e mal, pretende-se analisar a impossibilidade dessa pura maldade na natureza humana. Palavras-chave: Kant. Lei. Moral. Maldade. Vontade diabólica. 8 ABSTRACT The theme of evil in Kantian philosophy stems from its approach to morality whose concept of evil, in short, is to go against the moral law, although evil is in the performance of an action that is not a moral action, since the moral law to achieve the highest possible good through us. Kant objectively approaches evil in his work, Religion within the Boundaries of bare Reason, 1793, and for this he presents it on three levels: the evil of weakness, the evil of impurity and malignity. However, it indicates the concept of a fourth level that would not be possible, namely a diabolical will. Weakness would be a penchant for an action that goes against our own maxims, being weak and acting inversely to the moral law. The impurity is in a correct action that, however, is not based on the moral law. Malice would be the decision to do evil, having selfish motives and intentions in front of the moral law. But the fourth level of evil, which for Kant would not be possible to exist, consists in a malign action in which a purely devilish will is established. Evil in this sense, diabolical, proposes its desire from a natural corruption of the will. Kant presents this concept, but understands that it is not possible, since human actions of this kind of evil would be justified in reason itself, since such evil would be the disposition of spirit admitting as a motive evil as evil in its own maxim. Since Kant understands that man does not attain to the condition of a diabolic will, the present research seeks to investigate why in Kant the diabolical evil (in the sense of innate inhumanity or a natural pleasure in evil) would not be possible. Starting from the key concepts that discusses morality in Kant, such as freedom, categorical imperative, will, intention, good and evil, we intend to analyze the impossibility of this pure evil in human nature. Keywords: Kant. Law. Moral. Evil. Devilish will. 9 SISTEMA DE CITAÇÕES E ABREVIAÇÕES A lista de abreviações das obras de Kant referidas nesta pesquisa está em conformidade com o critério apresentado pela Akademie-Ausgabe (AA), e como sugerido pela Kant Studien – Kants Gesammelte Schriften, Berlim, 1900ff. Anth Anthropologie in pragmatischer Hinsicht (Antropologia de um ponto de vista pragmático) MAM Mutmaßlicher Anfang der Menschheitsgeschichte (Começo conjetural da história humana) KrV Kritik der reinen Vernunft (Crítica da razão pura A/B) KpV Kritik der praktischen Vernunft (Crítica da razão prática) RGV Die Religion innerhalb der Grenzen der bloßen Vernunft (A religião dentro dos limites da simples razão) GMS Grundlegung zur Metaphysik der Sitten (Fundamentação da metafísica dos costumes) MS Die Metaphysik der Sitten (Metafísica dos costumes) ZeF Zum ewigen Frieden (A paz perpétua) Acrescento à lista o escrito pré-crítico de Kant, Ensaio sobre as doenças da cabeça de 1764 ENSAIO (Ensaio sobre as doenças da cabeça) 10 LISTA DE QUADROS Quadro 1 - Objetos da razão prática ........................................................................ 39 Quadro 2 - Comparação do bem e do mal com o prazer e a dor ............................. 51 Quadro 3 - Definições de propensão, instinto, inclinação e paixão .......................... 54 Quadro 4 - Relação entre razão, lei moral e inclinação ........................................... 56 Quadro 5 - Onomástica das deficiências da cabeça – ENSAIO .............................. 88 Quadro 6 – Onomástica das deficiências da cabeça – ANTROPOLOGIA............... 91 Quadro 7 – Seqüência a partir dos princípios práticos ............................................ 94 11 SUMÁRIO 1. INTRODUÇÃO ....................................................................................................... 12 2. A LEI MORAL COMO IMPULSORA PARA AS AÇÕES ....................................... 17 2.1. O conceito de Lei Moral ....................................................................................... 18 2.2. Lei prática e máxima ............................................................................................ 23 2.3. A liberdade ........................................................................................................... 25 2.4. O imperativo categórico ...................................................................................... 28 2.5. A vontade .............................................................................................................. 33 2.6. O conceito de santidade ...................................................................................... 35 2.7. O bem e o mal como objetos da razão prática ................................................... 36 2.8. Por que uma Lei Moral e não um fundamento para o mal? .............................. 40 3. O CONCEITO DE MAL EM IMMANUEL KANT ..................................................... 45 3.1. O problema do mal em Kant ................................................................................ 48 3.1.1. A escolha pelo bem ou pelo mal ............................................................................ 50 3.1.2. A Lei moral como impulsora do arbítrio .................................................................. 52 3.1.3. Disposição para o bem e propensão para o mal .................................................... 53 3.1.4. O terceiro nível de mal: a malignidade ................................................................... 57 3.2. A ideia do mal radical .......................................................................................... 59 3.3. A essência do mal radical ................................................................................... 62 4. UMA VONTADE PURAMENTE DIABÓLICA ........................................................ 67 4.1. Vícios, crueldade ou força maligna .................................................................... 67 4.2. Um quarto degrau para o mal .............................................................................. 71 4.3. Por que este mal não seria possível? ................................................................. 75 4.3.1. Liberdade e intenção (Gesinnung) ......................................................................... 76 4.3.2. Razão e patologia .................................................................................................. 78 4.3.2.1. Graus mais leves da patologia ............................................................................... 85 4.3.2.2. Graus mais pesados da patologia .......................................................................... 86 4.3.3. A sensibilidade ....................................................................................................... 92 5. QUESTÃO CONTEMPORÂNEA DO MAL E DA MORAL ..................................... 97 5.1. Hannah Arendt ..................................................................................................... 97 5.2. Ernest Tugendhat ............................................................................................... 101 6. CONCLUSÃO ...................................................................................................... 105 REFERÊNCIAS ................................................................................................................. 111 3 12 13 1. INTRODUÇÃO A motivação para pesquisar o tema do mal em Kant advém de um projeto inicial de pesquisa sobre a religião na filosofia kantiana, nomeadamente o projeto de racionalização da religião como pretendido em sua obra A religião nos limites da simples razão. O contato com esta obra aguçou a curiosidade no sentido de entender de que maneira a religião em todos seus meandros poderia ser explicada pela via racional, não somente a tentativa de explicá-la racionalmente como os filósofos fizeram ao longo da história, mas explicá-la dentro do sistema kantiano da filosofia moral, em que a religião é um produto da razão prática, tendo seu fundamento nos postulados da lei moral que objetivamente se afirma através da razão prática. Ao iniciar a leitura da Religião, o leitor logo é surpreendido com a temática do mal, mas não a discussão do mal com o enfoque que é dado na Crítica da razão prática (KpV), em que o conceito de bem e mal são postos como esquemas derivados da lei moral. Na KpV, o ato de seguir a lei moral faz a ação ser boa, e quando a lei moral não é seguida a ação é má. O bem e o mal são definidos como conceitos que explicam quando as ações se estabelecem como boas ou más, ações conformes ou contrárias a lei moral. O bem como derivado da lei moral, e o mal quando oposto a ela. Na Religião, o enfoque é distinto, pois o problema do mal se insere na análise da natureza do indivíduo, em seu caráter. Visa identificar como é possível as ações serem tomadas, por que as ações são tomadas de uma forma ou de outra. Enquanto na KpV o foco está nas ações (ações boas ou más), na Religião o foco é o indivíduo (indivíduo bom ou mau). Ambas as análises estão interligadas, uma vez que a disposição para o bem gera boas ações, e a propensão para o mal gera ações más. Porém, cada obra segue seu problema específico de análise. Dessa forma, como objetivo precípuo desta pesquisa, está a apresentação do conceito de mal em Immanuel Kant, bem como a discussão dos desdobramentos que sua tese proporcionou em alguns casos específicos, e especialmente no que se refere ao entendimento a partir da perspectiva de que não há uma vontade diabólica no ser humano. 14 Para o foco inicial que analisa a concepção do mal em Kant, como indicamos anteriormente, tomamos como base a obra A religião nos limites da simples razão em sua primeira parte quando Kant disserta a respeito da morada do princípio mau ao lado do bom no homem, em cuja discussão se apresenta o conceito de mal radical na natureza humana. Posto que o desenvolvimento desse tema traga alguns conceitos particulares, próprios do estilo do filósofo em apreço que usa um vocabulário autoral intenso, na medida em que adentramos em sua exposição da condição humana, nos confrontamos com a apresentação teórica de uma disposição originária para o bem na natureza humana que, quanto a finalidade de suas ações, podem ser agrupados em três classes que apontam para três tipos de necessidades: a necessidade de sobrevivência e segurança (animalidade), a necessidade de igualdade entre os homens (humanidade), e a necessidade social que se extrai da disposição pela lei moral como de um motivo por si mesmo suficiente (personalidade). Também nos é apresentado o tópico sobre a propensão para o mal na natureza humana, e é neste que Kant insere o conceito de propensão (Hang), em contraponto ao conceito de disposição (Gesinnung), conquanto a disposição seja para o bem e a propensão para o mal, e apresenta os três graus dessa propensão: a debilidade na observância das máximas morais (fragilidade), a inclinação para misturar motivos morais com imorais (impureza), e a inclinação para a adoção de máximas más (malignidade). Como a proposição de Kant da propensão para o mal não oferece uma quarta classificação do mal, que estaria no sentido de haver ainda uma vontade diabólica, nossa pesquisa busca verificar essa noção da impossibilidade de um quarto degrau para a maldade no ser humano. A pesquisa está dividida em quatro partes. Na primeira – A lei moral como impulsora para as ações – como o tema do mal está em sintonia com o conceito de moralidade desenvolvido por Kant, a fim de esclarecer os termos utilizados em sua filosofia moral, com base na Religião nos limites da simples razão, na Fundamentação da metafísica dos costumes e na Crítica da razão prática, apresento os conceitos básicos que estão nos subtópicos: o conceito de lei moral, lei prática e máxima, a liberdade, o imperativo categórico, a vontade, o conceito de santidade, o 15 bem e o mal como objetos da razão prática, e o porquê de uma lei moral e não um fundamento para o mal na teoria kantiana da moralidade. Na segunda parte – O conceito de mal em Immanuel Kant – introduzo a discussão propriamente da tese do mal em Kant, a partir dos subtemas escolhidos: o problema do mal em Kant, a escolha pelo bem ou pelo mal, a lei moral como impulsora do arbítrio, a disposição para o bem e a propensão para o mal, o terceiro nível de mal – a malignidade, a ideia do mal radical, e a essência do mal radical. Na terceira parte – Uma vontade puramente diabólica – discuto a maldade no mundo considerando inicialmente os problemas dos vícios, da crueldade e da maldade sob a perspectiva conceitual de força maligna; em seguida, trabalho os subtemas: um quarto degrau para o mal, por que esse mal não seria possível, liberdade e intenção, razão e patologia, e a sensibilidade. Por fim, a última parte da pesquisa traz um capítulo que considera a questão contemporânea do mal e da moral, tendo em vista dois filósofos mais recentes que dialogam com a tese de Kant, embora discordando dela ou mostrando que a mesma não é suficiente para solucionar certas questões particulares que se evidenciam no contexto histórico mais próximo. São os temas da banalidade do mal, com Arendt, e do fundamento da moral, com Tugendhat. 16 17 2. A LEI MORAL COMO IMPULSORA PARA AS AÇÕES Na discussão sobre o mal na concepção kantiana, em seus níveis de fraqueza, impureza e malignidade (desenvolvidos na parte dois dessa pesquisa), que estabelece a impossibilidade de uma pura maldade na natureza humana, e que traz um referencial moral do homem tanto para as boas ações quanto para as ações más, o estudo da Lei Moral é importante na medida em que Kant estabelece a mesma como impulsora das ações: ... Mas a lei moral é em nós motivo impulsor = a; por conseguinte, a falta de consonância do arbítrio com ela (= 0) só é possível como conseqüência de uma determinação realiter oposta do arbítrio, i. e., de uma resistência deste = - a (RGV, 2008, p. 26). A Lei Moral, portanto, é posta não apenas como referencial, mas também como impulsora do arbítrio. Para Kant, a Lei Moral é referencial para as ações, expondo na razão o que seriam as boas ações, e conseqüentemente indicando as más ações. No entanto, como vimos, ela também seria um motivo impulsor do arbítrio, e quando o arbítrio não entra em consonância com a lei moral, o mal é instituído. Em sua Fundamentação da Metafísica dos Costumes, ele estabelece a lei moral como uma lei cuja representação determina a vontade para que a vontade seja boa absolutamente e sem restrições, sendo essa lei independente de um efeito que dela se espera e cuja vontade é despojada dos estímulos advindos da obediência a qualquer lei. Então, a lei moral é posta como uma lei universal de ações que servem como único princípio para a vontade: “devo proceder sempre de maneira que eu possa querer também que a minha máxima se torne uma lei universal” (GMS, 2007, p. 33). E na Crítica da Razão Prática, ele estabelece essa lei moral indicada pelo imperativo categórico como lei universal: "A razão pura é prática unicamente por si mesma e fornece (ao homem) uma lei universal, que nós denominamos lei moral" (KpV, 2016, p. 51). Desse modo entendemos a lei como um referencial. Mas, de que forma ela também se estabelece como motivo impulsor, impulsionando as ações para o bem? Como a lei moral favorece o bem no sentido de impulsioná-lo? Esse estímulo seria apenas em decorrência do seu conteúdo bom 18 (da lei moral), tendo em vista que, caso o motivo impulsor ajudasse a natureza do homem na escolha do bem, aí haveria contradição com a liberdade? Na verdade, conforme a expressão de Herrero, “Não existe liberdade sem relação com a lei moral” (HERRERO, 1991, p. 22). Então, é preciso identificar em que sentido a lei moral determina as ações e qual o seu conteúdo para ser realizado, bem comover em sua definição as características do princípio fundamental da moralidade, e como se caracteriza sua universalidade (sendo a lei moral um fato da razão) e sua imputabilidade (porque a lei se impõe de maneira incondicional). 2.1. O conceito de Lei Moral Na Fundamentação da Metafísica dos Costumes, de 1785, Kant apresenta a necessidade de uma lei moral que possa referenciar universalmente as ações humanas, o que seria uma “pura Filosofia Moral” não sendo afetada pela influência somente empírica. E essa necessidade, de haver tal filosofia moral, conforme ele discorre, é evidente pela “ideia comum do dever e das leis morais” (GMS, 2007, p. 15). A lei moral, portanto, é um princípio universal que não permite a sua contradição e cuja fórmula obedece a lei suprema que exige ações que possam ser universalizáveis. O princípio da lei suprema é este: Age sempre segundo aquela máxima cuja universalidade como lei possas querer ao mesmo tempo; esta é a única condição sob a qual uma vontade nunca pode estar em contradição consigo mesma, e um tal imperativo é categórico. (GMS, 2007, p. 80). Sendo este princípio consonante com a vontade, de maneira que a vontade considera a si mesma legisladora universal por intermédio de suas máximas, ele se interpõe sempre como determinante nas ações humanas. Ampliando esse conceito, ao introduzi-lo em sua Crítica da Razão Prática, Kant explica que “a razão se ocupa com os fundamentos de determinação da vontade, que é uma faculdade ou de produzir os objetos correspondentes às representações ou de determinar a si mesma, isto é, sua causalidade, para a efetivação desses objetos” (KpV, 2016, p. 29). Isso está em consonância com o que já havia sido delineado na Crítica da Razão Pura, quando Kant concluiu: “O arbítrio humano é, sem dúvida, um arbitrium 19 sensitivum, mas não arbitrium brutum; é um arbitrium liberam porque a sensibilidade não torna necessária a sua ação e o homem possui a capacidade de determinar-se por si, independentemente da coação dos impulsos sensíveis” (KrV, 2001, B 562). E Caygill explica que “Esse poder de autodeterminação, manifesto no “dever-ser” (ein Sollen), é a vontade” (CAYGILL, 2000, p. 318). Conforme se observa na sua Crítica da razão pura, a afirmação de Kant sobre o mal moral é que o mesmo se posiciona na realidade metafísica (no seu próprio termo, noumenal) e difere do princípio do bem. Mas, ao conjeturar posteriormente sobre o tema da moralidade, admite que a realidade metafísica torna-se acessível pela lei moral. Tal acesso pela via prática se insere num espaço positivo do mundo inteligível regido pela razão. E a lei moral, junto à liberdade, mostra-nos a causalidade tangível do inteligível. Dessa forma, embora não conheçamos a nossa liberdade, a consciência dela nos é dada pela obrigação moral. Buscando a diferença entre ratio essendi e ratio cognoscendi, temos: a liberdade é a ratio essendi (razão de ser) da moralidade; e a moralidade é a ratio cognoscendi (razão de conhecer) da liberdade. Conforme aponta Beck, conquanto a lei moral seja apresentada como um fato que aparentemente não pode ser deduzido, devendo fornecer as bases de uma dedução da liberdade, a lei moral, o fato da razão, é usado como “o prius para deduzir outra coisa, a saber, a liberdade que é sua ratio essendi” (BECK, 1963, p. 172, tradução nossa). A interpretação dessa proposição de Kant ressaltará a conjecturada existência de uma lei moral universal e necessária. Assim, existe um princípio satisfatório, considerando que o imperativo categórico não pode ser deduzido, e não é compreendido da mesma forma que o são os fatos do mundo da experiência. Ademais, o imperativo categórico é um fato, como colocado, “fato da razão” que está presente na razão, por isso noumenal. Dessa forma, a lei moral se apresenta como um dado imediato e necessário, sendo, portanto a priori. Ora, comentando sobre a “Dedução Transcendental” do Princípio da Razão Prática Pura, que Kant desenvolve em sua Segunda Crítica, Beck explica que o fato da razão, que antes era apenas um ponto de vista metodológico, que a consciência moral assumia, funciona como uma premissa real do argumento, embora Kant tenha reconhecido que poderia ser ilusório. Na KpV, Kant escreve 20 Pode se denominar a consciência dessa lei fundamental um fato da razão, porque não se pode inferi-la sutilmente a partir de dados precedentes da razão, por exemplo, da consciência da liberdade (pois esta não nos é dada previamente), mas porque ela se impõe a nós por si mesma como proposição sintética a priori que não está fundada em nenhuma intuição, nem pura, nem empírica (KpV, 2016, p. 51). Beck comenta que esta análise prova que a razão pura pode ser prática, isto é, ela própria, independentemente do todo empírico, pode determinar a vontade. E isto acontece através de um fato em que a razão pura se mostra realmente prática. Assim, “Esse fato é a autonomia no princípio da moralidade” (BECK, 1963, p. 166). Mas, há ainda dois questionamentos a respeito desse “fato”, colocados por Beck. O primeiro é sobre que fato é realmente este? E o segundo é se o fato da razão é uma base válida para aquilo que Kant pretende construir sobre ela. Quanto à primeira questão, parece que o próprio Kant não decidiu a melhor forma de expressá-lo. Há vários significados no próprio texto: consciência da lei, a própria lei, ou a autonomia. Uma vez que Kant identificou a liberdade como autonomia com a lei moral (33 [122]), talvez o segundo e o terceiro possam ser considerados como um só. Mas existe uma distinção prima facie entre a "consciência da lei moral", que certamente pode ser dito existir como um fato (quer que desejemos chamá-lo de "fato da razão" ou não), e a própria lei, da qual nós estamos conscientes (cuja "fatualidade" está sub judice). (BECK, 1963, p. 167). Mas, caso essa distinção prima facie seja válida, o argumento de Kant não se torna circular. E isso permite que o fato no primeiro sentido realmente exista, não implicando o “fato” no segundo sentido. Porém, é esse segundo sentido que é essencial para o argumento de Kant. Quanto à segunda questão, se esse é realmente um “fato” no sentido exigido, Beck esclarece que não há motivo para rejeitá-lo por não poder ser explicado, pois alguns fatos são inexplicados. Mas, por que Kant coloca esse fato, ao invés de algum outro que possa ser incompatível com ele? Será que existe uma intuição fundamental ou uma visão de sua verdade? Para Beck, Kant acreditava que essa intuição existe, embora ele não tenha chamado de “intuição”, pois ideias fundamentais e intuições não parecem ser diferentes do tipo de evidência que Kant já admitiu que pudesse ser errada. 21 Um apelo à percepção ou intuição é uma confissão de falha em encontrar um argumento ou premissa a partir do qual alguma verdade possa ser derivada, sendo também uma falta de vontade de render-se, apesar disso. Em princípio, algum tipo de intuição é necessária ou indubitável; mas pode estar errado. (BECK, 1963, p. 167). Nesse sentido, Beck pergunta: pode ser que a lei moral seja o tipo de fato que deve ser assumido caso queiramos explicar e tornar inteligível a nossa experiência moral? Ora, se esse for o significado, dificilmente merece o nome de fato, mas apenas uma suposição, visto que a experiência que está suposta fica sub judice e pode, talvez, ser organizada a partir de outros pressupostos como, por exemplo, a psicanálise. Mas, ainda em comentário à interpretação de Beck sobre o tema, Chagas escreve que “a consciência da lei moral consiste no único fato que não é empírico, mas a priori, a saber, o fato da razão” (CHAGAS, 2010, p. 186). Embora se verifique, conforme sugere na interpretação de Beck, que há uma distinção entre a lei e a consciência da lei. Beck tem razão em diferenciar o fato da razão considerado sob a perspectiva a priori e objetivamente válido, isto é, como um princípio de validade necessária e universal e como um fato empírico, ou seja, como a consciência empírica e contingente de um princípio moral. É verdade que o fato da razão, considerado sob a perspectiva objetiva, deve se manifestar mediante a consciência a priori do dito princípio, pois este consiste em uma lei da liberdade, isto é, um princípio moral puramente racional, a priori, atemporal; logo não se trata de uma legislação que rege e determina os fenômenos – mas que deve determinar (ficando sempre em aberto se, de fato, a representação desta lei determina as ações humanas). (CHAGAS, 2010, p. 188). Assim, pela distinção que encontramos entre a lei e a consciência da lei, o fato da razão pode nos indicar um princípio de validade universal como sendo a consciência empírica desse princípio moral – e não a própria lei que determina os fatos. Na explicação de Borges, Kant busca provar o fato da razão argumentando que a razão prática pode ser determinada sem os móbeis da sensibilidade, pela consciência da lei moral, sem dados que antecedem a razão. O fato da razão, portanto, é “a consciência da lei moral, a qual é denominada fato porque “não pode 22 ser obtida a partir de dados antecedentes da razão, por exemplo, pela consciência da liberdade, vista que ela não é dada anteriormente”” (BORGES, 2012, p. 30). Na verdade, enquanto ratio essendi, “a liberdade é a razão de ser da moralidade”, e enquanto ratio cognoscendi, a moralidade “é a razão de conhecer da liberdade” (BORGES, 2012, p. 30). A moral, portanto, está fundada na razão pura, pois enquanto a razão é uma faculdade legisladora, que dá a si mesma sua lei, consequentemente dá ao homem uma lei universal, a lei moral, tendo esta lei a forma do imperativo categórico. É dessa forma que Kant apresenta a autonomia da vontade. E a razão prática deve encontrar os fundamentos de determinação da vontade. A dificuldade, no entanto, reside na indicação possível dessa consciência do dever, como essa consciência da lei moral se funda. Nahra assim apresenta: “A dificuldade para realizar esta tarefa está em que a consciência da lei moral não pode ser obtida de nenhum dado anterior da razão e não está fundada sobre nenhuma intuição pura ou empírica” (NAHRA, 2008, p. 39). Assim, a dedução e a observação empírica não tornam possível esse conhecimento. Essa menção a um “fato da razão pura” tem sido uma das passagens mais importantes da Crítica da razão prática, mas também é uma passagem bem controversa, tendo Kant introduzido a consciência da lei moral como sendo um “fato”, e por meio desse fato, ser possível provar a efetividade da razão pura prática, bem como a realidade dos conceitos admitidos por ela. Em seguida, na KpV, Kant coloca uma questão: se a razão pura por si só é suficiente para a determinação da vontade, ou se apenas enquanto empiricamente condicionada pode ser fundamento de determinação da vontade. Então, ele logo recorre ao conceito de liberdade, como conceito de causalidade e propriedade pertencente de fato à vontade humana que, neste caso, estabelece a razão pura como incondicionalmente prática. Dessa forma, sua tarefa na segunda Crítica consiste em “afastar a razão empiricamente condicionada da presunção de querer fornecer sozinha, exclusivamente, o fundamento de determinação da vontade” (KpV, 2016, p. 30), pois, enquanto o uso da razão pura é imanente, o uso da razão prática é transcendente, sendo “o uso empiricamente condicionado que se arroga poder absoluto... e se expressa mediante imposições e comandos que ultrapassam totalmente seu domínio”, (KpV, 2016, p. 30). Dessa forma, a Lei Moral é estritamente 23 racional e universal, não estando restrita a preceitos de caráter subjetivo ou hábitos culturais ou sociais. É da racionalidade humana que se derivam os valores éticos, sendo os princípios da moral o tratamento do uso prático e livre da razão. A moralidade, portanto, como resultado da razão prática, é aplicada universalmente, a todos os indivíduos seja em qualquer circunstância. 2.2. Lei prática e máxima Outro conceito relevante é apresentado no tocante à diferença entre lei prática e máxima. Kant diz que uma ação realizada por dever deve eliminar totalmente a influência da inclinação, bem como todo o objeto da vontade. De forma que há duas determinações da vontade: a lei (objetivamente), e o puro respeito por essa lei prática (subjetivamente). E, por conseqüência, “a máxima que manda obedecer a essa lei, mesmo com prejuízo de todas as minhas inclinações” (GMS, 2007, p. 31). Em nota, ele explica Máxima é o princípio subjetivo do querer; o princípio objetivo (isto é o que serviria também subjetivamente de princípio prático a todos os seres racionais, se a razão fosse inteiramente senhora da faculdade de desejar) é a lei prática. (GMS, 2007, p. 31). A lei prática, como princípio objetivo “representa uma ação possível como boa e por isso como necessária para um sujeito praticamente determinável pela razão” (GMS, 2007, p. 50). Ora, a razão pura contém em si um fundamento prático, suficiente para determinação da vontade, e isso indica a existência de leis práticas. Mas, caso não fosse assim, os princípios práticos seriam apenas máximas, máximas particulares porque definidas pelo indivíduo conforme a particularidade da situação. A lei prática, no entanto, está definida nos imperativos categóricos (regras designadas pelo verbo “dever”) que “determinam apenas a vontade, seja ela suficiente ou não para o efeito” (KpV, 2016, p. 35), são regras corretas praticamente. Dessa forma, as máximas são princípios e a leis práticas imperativos. Como exemplos de ambas, temos dois casos: (1) Para as máximas, alguém pode adotar não receber nenhum insulto sem se vingar, isso se constitui máxima particular e não está em consonância com a lei prática; (2) Para as leis práticas, alguém pode adotar nunca fazer promessas mentirosas, mesmo isso se constituindo algo referente à 24 vontade privada dessa pessoa, o descobrimento dessa regra como correta praticamente a faz uma lei, por ser um imperativo categórico. No sentido de distinguir a lei prática da máxima, vemos que há dois aspectos da vontade (Wille), o aspecto legislador de onde procedem as leis, e o aspecto do arbítrio (Willkür) de onde procedem as máximas. Esses dois aspectos são complementares da vontade humana, pois enquanto na primeira temos o poder legislativo, ao referir-se à capacidade da vontade de editar as próprias leis, na segunda temos o poder executivo, referindo-se às ações. Assim, a primeira se faz necessária, mas o arbítrio é livre para obedecer ou não a lei. A propósito disso, o problema do mal radical se inscreve nessa possibilidade do arbítrio humano. A relação entre princípios práticos subjetivos e leis práticas como estabelecido nessa dinâmica mostra que os princípios práticos que pressupõem um objeto da faculdade de desejar como fundamento de determinação da vontade são empíricos e, por isso, não podem fornecer leis práticas (a faculdade de desejar é o objeto cuja efetividade é desejada). Segue-se que, se o desejo pelo objeto precede a regra prática e é condição para adotá-la como princípio, nesse caso o princípio será empírico, visto que a representação do objeto é o fundamento de determinação do arbítrio. E quando o objeto é efetivado, a relação com o sujeito se chama prazer, o prazer pressuposto como condição de possibilidade da determinação do arbítrio. Mas Kant logo indica que não é possível saber a priori se a representação do objeto estará ligada ao prazer, ao desprazer ou à indiferença. Por isso, o fundamento de determinação do arbítrio é empírico. Outro ponto de destaque refere-se aos princípios práticos materiais como duma mesma espécie e sob o princípio geral do amor de si mesmo ou da própria felicidade. Nesse ponto se insere o conceito de prazer fundamentado na receptividade do sujeito, pertencente ao sentido ou sentimento e não ao entendimento. O prazer se torna prático somente porque a determinação da capacidade de desejar é dada pela sensação de agrado que o sujeito espera da efetividade do objeto. Assim, Kant insere a expressão faculdade de desejar inferior como o fundamento de determinação da vontade colocado nela (nessa faculdade inferior) pelas regras práticas materiais, mas já desfaz a possível noção duma faculdade de desejar superior que se fundamenta nas leis meramente formais da vontade, visto que esta última tem uma base apenas na intensidade, duração, 25 facilidade de aquisição e freqüência de repetição do agrado. Chega-se à conclusão que o princípio da felicidade própria, apesar de ser usado o entendimento ou razão, não teria outro fundamento de determinação da vontade que não o da faculdade de desejar inferior, sendo, portanto, a razão pura prática unicamente por si, podendo determinar a vontade unicamente pela forma da regra prática, ausente de quaisquer representações do que seria agradável ou desagradável, pois tais representações são condicionadas empiricamente. Até aqui, Kant está evidenciando o fato de que o fundamento de determinação da vontade, ao ser empírico, não é possível considerá-lo uma lei, “pois essa lei, enquanto objetiva, tem de conter em todos os casos e para todos os seres racionais precisamente o mesmo fundamento de determinação da vontade” (KpV, 2016, p. 42). Na sequência de sua abordagem, Kant apresenta essa evidência de forma cíclica e com acréscimo de outros exemplos e particularidades. A conclusão a que se chega é: “se de uma lei abstrai-se toda a matéria, isto é, todo objeto da vontade (enquanto fundamento de determinação), nada resta dela senão a mera forma de uma legislação universal” (Ibid., p. 44). A lei moral, portanto, é uma lei que determina o agir em conformidade com aquilo que a vontade deseja que se torne uma lei válida universalmente. Ou seja, todos os indivíduos portadores de uma vontade podem escolher a regra que tenha validade para todos. 2.3. A liberdade Nessa escolha da regra válida para todos encontramos o problema da liberdade em Kant, que, conforme Herrero (1991) indicou, é um problema de ordem transcendental, visto que não pode receber qualquer objeto na experiência, e não é da experiência que se pode ter o seu conhecimento. Esse problema da liberdade já estava posto em sua terceira antinomia. Ali, Kant colocava na tese: “A causalidade segundo as leis da natureza não é a única de onde podem ser derivados os fenômenos do mundo no seu conjunto. Há ainda uma causalidade pela liberdade que é necessário admitir para os explicar”; e na antítese: “Não há liberdade, mas tudo no mundo acontece unicamente em virtude das leis da natureza” (KrV B 472/473). E em defesa da tese, a colocação estava na suposição de que a cadeia de causas de um certo acontecimento não tinha um primeiro membro. Assim, essa cadeia de causas seria infinita, não tendo o acontecimento 26 nenhuma causa suficiente, o que se configura impossível. Então, como a suposição se mostra falsa, concluímos que há uma primeira causa de cada acontecimento. E essa causa, na assertiva de Kant, é uma “espontaneidade absoluta”, iniciada por si mesma. Herrero escreve que Kant “mais tarde a chama de “começo absoluto”, e conforme sua nova terminologia da razão, “liberdade transcendental”. Assim, o próprio conceito de causalidade segundo a natureza exige o princípio de uma causalidade por liberdade” (HERRERO, 1991, p. 12). Ora, não seria o caso de explicar o “primeiro começo absoluto” do decorrer sucessivo do mundo, isto é, o começo temporal, na medida em que a causalidade por liberdade entra na tese como uma necessidade da compreensão, por parte da razão, da série do mundo, como o problema da primeira causa da origem ou começo dinâmico de uma sequência que, a partir dele, será limitada, e não de um começo temporal. No exemplo que Kant dá (KrV B 478), fica clara essa explicação: ao levantar- se de uma cadeira, nesse fato começa uma série precedente segundo o tempo. Mas, quando esse ato é realizado por uma decisão ele não é conseqüência de outro acontecimento antecedente. “O ato de levantar-se segue as causas naturais determinantes, mas não se segue delas e por isso pode chamar-se “começo absoluto” o ato de decisão que inicia a série de fenômenos, não com relação ao tempo, mas à causalidade”. (HERRERO, 1991, p. 12). É dessa forma que se entende que os fatos podem ser efeitos da liberdade, e o ato da faculdade é livre das condições da natureza. Mas, no que concerne a causalidade, toda causalidade opera segundo uma lei, e as causas operantes tem um caráter, que é a “lei de causalidade”. E esse caráter da causalidade por liberdade se mostra inteligível. Dessa forma, o sujeito está livre de todo influxo da sensibilidade e determinação por parte dos fenômenos. Nesse sentido, Herrero explica “Mas tarde dir-se-á que o homem pode decidir-se por motivos, aos quais é próprio um caráter de dever, uma lei que surge em face das leis da natureza. A necessidade do dever não ocorre na natureza. O que deve ser não é a experiência que o determina, mas só uma razão que quer determinar a realidade da experiência por meio de ações, iniciar uma série de efeitos, fazer dos motivos do dever causas de uma configuração da realidade. Por isso Kant pode dizer que “o conceito prático de liberdade se fundamenta nessa ideia transcendental de liberdade” (KrV B, 61), pois essa ideia deixa o caminho aberto à lei do dever” (HERRERO, 1991, p. 14). 27 Dessa forma, é no reconhecimento da possibilidade de escolha da regra válida para todos que Kant insere o problema da liberdade, pois a vontade livre que não dependa de uma base na experiência tem que ser determinável, encontrando um fundamento de determinação na lei. A conclusão a que Kant chega é de que liberdade e lei prática incondicionada se relacionam de forma recíproca. Mas, o conhecimento disso não começa pela liberdade, primeiro, porque o seu primeiro conceito é negativo e, segundo, porque não é possível inferi-lo da experiência na medida em que a experiência só fornece a lei dos fenômenos com seu mecanismo natural oposto à liberdade. Então, resta-nos a consciência da lei moral se apresentando primeiramente e conduzindo ao conceito de liberdade, visto que “a razão apresenta essa lei moral como um fundamento de determinação que não deve ser superado por quaisquer condições sensíveis e que é, portanto totalmente independente delas” (KpV, 2016, p. 48). Em síntese, temos numa seqüência: a razão, a lei moral e a liberdade, em que uma conduz à outra. Borges resume da seguinte forma A liberdade é a razão de ser da moralidade, enquanto esta é a razão de conhecer da liberdade. Na ordem do ser, a liberdade é primeira, na ordem do conhecer, a moralidade é primeira. Se conhecermos a moralidade, podemos obter a liberdade. (BORGES, 2012, p. 30). Seguindo essa proposição, temos a lei moral como parte da natureza da razão, entretanto não o entendimento da natureza humana enquanto finita e não seguidora necessariamente dessa lei. O que existe é uma tensão que atravessa toda a teoria moral de Kant significando que, nos seres finitos essa lei produzida pela vontade pode ou não determinar o arbítrio. Isso ocorre porque, ao aceitar a determinação que vem de fora, o homem elimina sua vontade como vontade, não podendo facultar a si a determinação da ação, comprometendo sua autonomia. Dessa forma, o homem está sendo heterônomo, considerando que a heteronomia é uma sujeição a uma lei exterior, e a determinação da vontade ocorre por representações materiais, sendo a lei que produz os efeitos uma lei da necessidade da natureza. E a moral que se baseia na ideia de prêmio ou castigo também é heterônoma, sendo o móvel da ação posto na sensibilidade. Em contraponto a isso, a autonomia torna possível ao homem poder determinar as 28 normas de conduta, sendo livre de qualquer dependência que difere da razão. A realização pessoal, ou essencial ocorre na obediência à lei que é própria da vontade humana. Em síntese, teríamos três situações de existência: (1) o animal que é determinado pela sensibilidade; (2) o ser divino que só é determinado pela razão; e (3) o ser humano que é um ser híbrido, ao mesmo tempo razoável e sensível. Nesta condição, ele pode optar pelo procedimento que lhe aprouver, não estando restrito à um único proceder, como a condição do animal, mas, enquanto ser sensível, sua vontade lhe faculta a escolha de uma máxima que tanto pode estar de acordo ou desacordo com o princípio moral. É assim que o mesmo homem, através da sua liberdade pertence ao mundo inteligível. E por sua natureza, ao mundo sensível. E nessa condição, o homem age como ser livre, ou pode agir como ser livre, realizando sua própria existência. E sendo esta a sua essência,o homem tem na lei moral uma lei que determina o agir em conformidade com aquilo que a vontade deseja que se torne uma lei válida universalmente, mas não se estabelece aqui contradição com a liberdade, pois o impulsionar é no sentido de motivá-lo para aquela ação conforme o bem da conduta moral, de forma que, ainda assim, o homem sempre pode escolher o mal, pode escolher não seguir a lei moral, a despeito desta motivação para o bem. 2.4. O imperativo categórico A lei moral, portanto, como indicada na Crítica da Razão Prática, como uma Lei fundamental da razão prática pura, tem como definição: “Aja de modo que a máxima de sua vontade possa sempre valer ao mesmo tempo como princípio de uma legislação universal” (KpV, 2016, p. 49). Assim, como inferência dessa afirmação anterior, ele escreve: “A razão pura é prática unicamente por si mesma e fornece (ao homem) uma lei universal que nós denominamos lei moral” (Ibid., p. 51). Esse conceito foi apresentado também na Fundamentação da Metafísica dos Costumes, de 1785, com um conceito referente à uma lei cuja representação determina a vontade para que esta possa ser chamada absolutamente boa e sem restrições. Valendo-se dos mesmos termos, ali está expresso: “devo proceder sempre de maneira que eu possa querer também que a minha máxima se torne uma lei universal” (GMS, 2007, p. 33). Antes, na Crítica da Razão Pura, ao trabalhar o 29 conceito de liberdade, Kant também tinha indicado que um arbítrio que pode ser determinado independentemente de impulsos sensíveis, atrelado aos motivos representados unicamente pela razão, se chamaria livre arbítrio e tudo relacionado ao mesmo, como princípio ou consequência, seria chamado prático. Assim ele expôs Também possuímos um poder de ultrapassar as impressões exercidas sobre a nossa faculdade sensível de desejar, mediante representações do que é, mesmo longinquamente, útil ou nocivo; mas estas reflexões em torno do que é desejável em relação a todo o nosso estado, quer dizer, acerca do que é bom e útil, repousam sobre a razão. Por isso, esta também dá leis, que são imperativos, isto é, leis objetivas da liberdade e que exprimem o que deve acontecer, embora nunca aconteça, e distinguem-se assim das leis naturais, que apenas tratam do que acontece; pelo que são também chamadas leis práticas (KrV, 2001, B 830). A lei prática, por conseguinte, indica a necessidade de a conduta humana estar subordinada a máximas morais. Ou seja, como Kant explica: “o princípio objetivo (isto é o que serviria também subjetivamente de princípio prático a todos os seres racionais, se a razão fosse inteiramente senhora da faculdade de desejar) é a lei prática” (GMS, 2007, p. 31). E, diferente de um imperativo conjectural ou hipotético, que traz a necessidade prática de agir conforme o que se quer, o imperativo que é auto definível e indubitável, ou na assertiva de Kant, categórico, “seria aquele que nos representasse uma ação como objetivamente necessária por si mesma, sem relação com qualquer outra finalidade” (GMS, 2007, p. 50). Este é o Imperativo Categórico, uma lei que é formal, não estando interessada em realizar qualquer fim particular, mas atrelada à forma e ao princípio derivados dela mesma, e, assim sendo, universal. No caso de a ação ser apenas boa como meio para qualquer outra coisa, o imperativo é hipotético; se a ação é representada como boa em si, por conseguinte como necessária numa vontade em si conforme à razão como princípio dessa vontade, então o imperativo é categórico (GMS, 2007, p. 50). Nessa distinção dos imperativos em categóricos e hipotéticos, entende-se que, caso a ação esteja baseada numa finalidade particular, como meio de se alcançar aquilo que se deseja, este é o caso do hipotético. Mas, o imperativo 30 categórico representa uma ação objetivamente necessária por si mesma, sem estar relacionada com qualquer outra finalidade. Em comentário à Kant nesse quesito, Wood explica Os imperativos hipotéticos pressupõem um fim já definido e uma ação como um meio para esse fim. Sua restrição da vontade é, portanto, condicionada ao fato de o agente ter definido o fim em questão. Os imperativos categóricos não são dependentes dessa maneira; eles exigem o desempenho de ações (e a configuração de extremidades) sem estarem condicionados a qualquer configuração anterior de uma finalidade. (WOOD, 1999, p. 61, tradução nossa). Para Wood, Kant percebe que o conceito de imperativo categórico pode ser questionado, e afirma que nenhuma experiência nos oferece qualquer exemplo de um imperativo categórico, e, portanto, qualquer princípio deve ser a priori. Então, seu objetivo é investigar a possibilidade de um imperativo categórico, determinando quais princípios podem ser imperativos categóricos, caso haja algum. Uma vez que um imperativo categórico deve restringir a vontade sem referência a qualquer objeto de desejo, deve ser a priori, pois o prazer ou o descontentamento associados à representação de tais objetos fornece apenas motivos empíricos para a vontade. Por uma razão similar, no entanto, um imperativo categórico deve ser sintético e não analítico... Esses princípios começam com o conceito de uma vontade que definiu um fim e extrai do próprio conceito dessa volição a restrição de que o uso dos meios necessários para o fim também deve ser desejado. Mas no caso de um imperativo categórico, nenhuma volição prévia de qualquer tipo pode ser pressuposta. A conexão da vontade com qualquer ação ou finalidade que deve ser desejada deve, portanto, ser sintética. (WOOD, 1999, p. 71). Posto que Wood faça essa ponderação, há uma longa tradição da filosofia ocidental da qual Kant faz parte que propõe a ideia de que a moralidade é fundamentada na razão. Do mesmo modo, a imoralidade envolve um fracasso da razão (como se fosse uma espécie de irracionalidade). Mas, como Wood salienta, isso não seria o mesmo que dizer que a perversidade seria uma forma de insanidade, na verdade as pessoas podem exibir um alto grau de racionalidade na busca dos fins do mal. Logo, o imperativo categórico, como lei prática, serve de princípio para a vontade, em conformidade com a razão humana que sempre está de posse desse princípio. 31 Ademais, numa crítica a Kant, Conche (2006) introduz uma definição da moral recorrendo ao fato da liberdade, das escolhas que se dão por preferências e que, mesmo assim, podem acarretar prejuízo e até autodestruição. Mas, nesses casos, não ocorre uma falha moral visto que todos fazem escolhas à vontade considerando o que é bom para si, obviamente, como acrescenta Conche, dentro de certos limites. É a crítica de que, na medida em que determinadas ações ocorrem a partir das escolhas preferenciais, se estas escolhas são feitas objetivando aquilo que seria bom para si, dentro dos limites estabelecidos em que se avalia a relação entre as pessoas no contexto das ações, então não haveria aí uma falha moral, pois as ações estariam em consonância com aquilo que é estabelecido como certo por todas as pessoas daquele contexto. Em determinadas situações, verifica-se uma confrontação com a consciência comum que incorre numa reprovação, consciência essa que se apresenta como aparentemente universal. E isso incide sobre a avaliação de que as pessoas não têm o direito de fazer julgamento sobre o que devem fazer ou não à sua maneira particular, nessas situações de confronto com essa consciência universal. Para a consciência comum, então, se exige uma verdade, uma verdade moral. O problema do “fundamento da moral”, então, estaria no aspecto legítimo dessa verdade moral. A pergunta, então seria: o que é que define de maneira real a verdade moral? Onde ou em quê essa verdade estaria justificada? A moral, nesse caso, estaria fundamentada num sistema de regras que espera a conduta humana a partir do conceito do bem e do mal, mas esses preceitos seriam sistematizados no universal, numa exigência comportamental para todos, ou seja, “como todos os outros deveriam comportar-se em seu lugar, em suma, a exigência de universalidade” (CONCHE, 2006, p. 3). A crítica a Kant está no sentido de que, aqui ainda não se está fundamentando a moral, se está colocando apenas a sua forma, que é o reconhecimento de que a consciência comum tem o direito de fazer juízos morais. Mas, seria preciso ainda justificar esse juízo moral. Este é o problema do “fundamento” da moral. Trata-se de manter um discurso cuja finalidade será justificar o juízo moral, isto é, o juízo que aprecia as condutas humanas do ponto de vista do bem e do mal, e validar a moral, isto é, o sistema de regras que, do mesmo ponto de vista, restringem as escolhas individuais aos limites do permitido (CONCHE, 2006, p. 2). 32 Dessa forma, em conformidade com tal asserção, a moralidade se imprime numa consciência universal que estabelece leis permitindo e restringindo o comportamento dos indivíduos. Daí, torna-se legítimo falar em justificação de juízos morais objetivos, cuja exigência é, por conseguinte, de universalidade. Aquilo que Kant chamou de imperativo categórico. No entanto, a crítica que Conche faz é que o significado de fundamentar a moral, fundamentar o direito de fazer juízos morais, passa pela consideração da forma e do conteúdo desses juízos. E, nesse sentido, observa-se a mistura que Kant fez com ambos. Referente à noção kantiana de lei moral, Conche analisa da seguinte forma: Efetivamente, achamos que sua análise é correta no que diz respeito à forma da consciência comum. Mas conviria distinguir bem o conteúdo e a forma e não misturá-los, como ele misturou. A forma da consciência comum é por toda parte e sempre a mesma a partir do momento em que há juízo moral, mas seu conteúdo é variável: a consciência comum pagã não é a consciência comum cristã, etc. (CONCHE, 2006, p. 4). É nesse sentido que vem a crítica à Kant, porque quando ele diz que “... nada é possível pensar que possa ser considerado como bom sem limitação a não ser uma só coisa: uma boa vontade” (GMS, 2007, p. 21), na explicação de Conche, Kant está analisando a consciência comum cristã ou uma que seja influenciada pelo cristianismo. Por conseguinte, a análise kantiana da noção de boa vontade conforme se encontra na consciência comum, reduz essa consciência à ideia de uma vontade que age por puro dever, por puro respeito pela lei. Nesse caso, a pergunta que se faz é: Kant não está substituindo os juízos da consciência comum, mesmo cristã, pelos seus próprios juízos morais? Mas, o que seria o conteúdo dessa fundamentação da moral, se o estabelecimento do direito de julgar as ações humanas é apenas de ordem formal? Na indicação de Conche para a distinção entre forma e conteúdo, ele logo aponta o conteúdo como a admissão principal de que “tudo se reduz ao respeito ou à falta de respeito aos “direitos” do homem” (CONCHE, 2006, p. 5). No entanto, não é a isso mesmo que o imperativo categórico se refere? Nas palavras do próprio Conche Kant soube esclarecer bem o que está implicado na consciência comum moderna; soube formular bem (segunda fórmula do imperativo categórico) a exigência que está nela de que o homem 33 jamais seja tratado como um simples meio, mas sempre como uma pessoa, ou seja, como objeto de respeito, e de que trate sempre a si mesmo com respeito (CONCHE, 2006, p. 5). Ora, a possibilidade de fundamentar universalmente a moral tem a ver com o tratamento igualitário dos homens enquanto pessoas. É o fornecimento dum valor universal para a consciência comum. Apesar de que, para Conche, estamos falando de princípio para a moral e não de fundamento, pois o princípio tem uma razão que é o seu fundamento. E o próprio Kant identifica a diferença ao explicar que “determinamos claramente e para todas as aplicações, o que já é muito, o conteúdo do imperativo categórico que tem de encerrar o princípio de todo o dever (se é que, em verdade, há deveres)” (GMS, 2007, p. 64). E Conche acrescenta aí que “a moral só é efetivamente fundamentada em um sentido absoluto se for possível dar-lhe o fundamento” (CONCHE, 2006, p. 21). Considerando que esse fundamento da moral deve estar em algo que forneça valor universal às exigências da consciência, não só à consciência comum moderna (como parece querer Conche), mas à consciência comum geral, a tese da lei moral em Kant, como um dado a priori, indica ser ela mesma este fundamento. Ou seja, o fundamento da doutrina dos costumes na metafísica se torna próximo de nós quando, usando a própria expressão de Kant, subimos até aos princípios da razão pura (GMS, 2007). A crítica que Conche faz de fundamentar a moral no imperativo categórico tem a ver com a questão de se máximas subjetivas não estariam sendo universalizadas com o imperativo categórico. Então, seria preciso fazer a diferença entre forma (consciência comum, imperativo categórico, universalidade) e conteúdo (a igualdade dos homens enquanto pessoas, os verdadeiros direitos do homem). No entanto, essa é apenas uma evidencia crítica à tese kantiana do imperativo categórico, visto que em Kant o fundamento da moralidade das ações está na racionalidade, isto é, na autonomia da vontade, tendo por implicação o cumprimento do dever por dever, independente das disposições sensíveis. 2.5. A vontade O conceito de vontade está ligado a determinação completa por princípios a priori e sem quaisquer móbiles empíricos, que Kant chama de vontade pura. A vontade, então, é a faculdade de escolher o que a razão conhece como 34 praticamente necessário, independente das inclinações. Seria a capacidade que o homem tem de “determinar-se por si, independentemente da coação dos impulsos sensíveis”, e como interpretado por Caygill (2000, p. 318), um poder de autodeterminação manifesto no “dever-ser”, e associado à liberdade e autonomia. Em Kant, a vontade é diferente do arbítrio, conquanto o arbítrio seja ligado à escolha e a vontade à razão pura prática, ou seja, à lei moral. A razão pura prática dá a si mesmo uma lei que é a vontade, e esta não se corrompe, diferente do arbítrio que é onde se estabelece a máxima, e onde o mal se insere. Na Fundamentação, a explanação de Kant sobre os exemplos da moderação nas emoções, do autodomínio e da calma, mostra que tais qualidades podem se reverter se não tiverem os princípios duma boa vontade. Com efeito, sem os princípios duma boa vontade, podem elas tornar- se muitíssimo más, e o sangue--frio dum facínora não só o torna muito mais perigoso como o faz também imediatamente mais abominável ainda a nossos olhos do que o julgaríamos sem isso. (GMS, 2007, p. 22). A boa vontade, portanto, não é boa por aquilo que causa ou consegue, pela capacidade de alcançar qualquer finalidade proposta, ela é boa em si mesma, somente pelo querer, quando considerada em si mesma. O princípio da moralidade, isto é, o princípio objetivo que é a lei prática, de caráter universal e fundamento de determinação formal da vontade, conforme sugere Kant, é racional e universal porque possui em geral uma vontade, “uma faculdade de determinar sua causalidade pela representação de regras e, portanto, na medida em que são capazes de ações segundo princípios e, por conseguinte, também segundo princípios práticos a priori” (KpV, 2016, p. 52). E, sendo dessa forma, ele não está restrito simplesmente aos homens, sendo estendido a todos os seres finitos possuidores de razão e vontade, incluindo até mesmo o ser infinito enquanto inteligência suprema. Considerando a condição racional do homem, a forma de imperativo que a lei tem é decorrente de uma vontade pura, mas não santa (como se nunca entrasse em conflito com a lei moral) visto que está afetada pelas falhas e motivos da sensibilidade. Então, a lei moral existe para os homens como um imperativo absoluto por ser uma lei incondicionada. A vontade se relaciona com essa lei na 35 forma de dependência, como que necessitando dela, apesar da lei objetiva para a ação ter intrínseca as pretensões originárias das causas subjetivas, tendo a possibilidade de ser contrária ao fundamento objetivo de determinação. Consequentemente, informa Kant, ela precisaria de uma resistência da razão prática, “enquanto necessitação moral, resistência que pode ser designada uma coerção interna, mas intelectual.” (KpV, 2016, p. 53). Mais uma vez, em sintonia com a expressão da KrV B 562, a vontade, então, seria a capacidade que o homem tem de “determinar-se por si, independentemente da coação dos impulsos sensíveis”, e como interpretado por Caygill (2000), um poder de autodeterminação manifesto no “dever-ser”, e associado à liberdade e autonomia. Em Kant, temos a razão por si só como legisladora, como autônoma e determinante da vontade. A autonomia da vontade a faz se autodeterminar, de estabelecer a sua lei, sem atrelar-se ou depender do querer. É uma vontade livre, com base apenas na lei moral. 2.6. O conceito de santidade Como Kant indicou que o princípio de moralidade não estaria restrito simplesmente aos homens, mas, além de se estender a todos os seres finitos possuidores de razão e vontade, incluía também o ser infinito enquanto inteligência suprema, neste caso a representação do arbítrio ocorre no conceito de santidade acima das leis restritivas, da obrigação e do dever. Essa santidade da vontade é todavia uma ideia prática que tem de servir necessariamente como arquétipo, com relação ao qual só resta aos seres racionais finitos aproximar-se infinitamente, e é uma ideia que mantém perante os olhos, de maneira constante e certa, a lei moral pura, que por isso mesmo é chamada de santa (KpV, 2016, p. 53). Dessa forma, a ideia de santidade como arquétipo, ao manter sempre diante dos nossos olhos a lei moral pura, faz a razão prática finita assegurar-se dessa vontade num progresso infinito e contínuo de suas máximas objetivando uma progressão permanente, e o bem estaria exatamente nesse progresso, como virtude, na busca por conformar-se à correção e ao que é desejável do ponto de vista moral, em conformidade com o bem, com a excelência moral ou de conduta. 36 Por conseguinte, a virtude se dá na realização da liberdade no mundo, dirigida pela lei da liberdade interna, sob a representação de seu dever segundo a lei formal. Como Kant diz na Metafísica dos Costumes, “Virtude é a força das máximas de um ser humano no cumprimento de seu dever” (MS, 2003, p. 238). Herrero esclarece que a força moral supera a inclinação contrária à lei pela razão legisladora enquanto se constitui um poder executivo da lei. Dessa forma, “a virtude é o firme propósito do homem de resistir a suas inclinações naturais” (HERRERO, 1991, p. 38). A conclusão que se chega é que a liberdade interna só é possível na forma de virtude. O que parece a nós como bom e desejável é essa condição suprema, de forma que Kant chama a Virtude de “Bem Supremo”. (HERRERO, 1991, 38). Mas, apesar da virtude ser esse propósito firme para com a razão prática, para com a lei moral, a posição de Borges quanto à sua eficácia está restrita ao primeiro grau de propensão ao mal, a fraqueza, se considerarmos que a virtude se coloca como necessária para o sentido moral. (Detalhamos os três graus para o mal apresentados por Kant no subtópico disposição para o bem e propensão para o mal da segunda parte dessa pesquisa: O conceito de mal em Immanuel Kant). A virtude seria então, uma superação da contingência moral, formando um caráter que nos daria uma constância na ação moral e que requer força contra as inclinações que permanecem, mesmo depois de termos feito uma escolha pela moralidade. Nesse sentido, a virtude é um progresso no tempo. A fraqueza, o primeiro grau de propensão ao mal, poderia, nesta visão, ser superada pela virtude. A virtude, enquanto uma força individual,pode agir como cura da fraqueza da vontade, controlando-as no tempo. (BORGES, 2014, p. 17). A virtude, seguindo essa posição, significa a escolha da lei moral como o princípio que nos acompanha e nos direciona nas ações, sendo também um poder que nos mantém nessa nossa resolução. A virtude é a força que nos possibilita lutar contra as inclinações que nos sugerem o contrário. No entanto, considerando a malignidade, o terceiro grau para o mal, como veremos, a virtude não é, ou não tem, força suficiente para combatê-lo. 2.7. O bem e o mal como objetos da razão prática 37 Kant entende um conceito da razão prática como “a representação de um objeto como um efeito possível pela liberdade” (KpV, 2016, p. 85). E os únicos objetos de uma razão prática são o bem e o mal. O bem como um objeto necessário da faculdade de desejar, e o mal um objeto da faculdade de aversão, embora ambos ocorram conforme um princípio da razão. E, por ser princípio da razão, está descartado a derivação do mesmo da experiência, visto que a razão é quem julga a relação entre bom (meio para o agradável) e mau (causa do desagrado). Ora, para não haver confusão entre os termos, aqui Kant faz distinção entre bem e bem-estar, e mal e mal-estar. O bem-estar ou o mal-estar relaciona-se ao estado de agrado ou desagrado, isto é, referido no tocante à sensibilidade. Já o bem e o mal diz respeito à vontade que é determinada pela lei da razão para a adoção de algo como seu objeto, de forma que a vontade é “uma capacidade de fazer de uma regra da razão a causa motriz de uma ação” (KpV, 2016, p. 88). É por isso que Aquilo que devemos designar como bom tem de ser, no juízo de cada ser humano racional, um objeto da faculdade de desejar e o mal tem de ser, aos olhos de cada um, um objeto de aversão; por conseguinte, para esse julgamento é preciso, além dos sentidos, também razão (KpV, 2016, p. 89). Como exemplo, Kant usa o caso de alguém que passa por um procedimento cirúrgico e sente um mal-estar, mas sabe que é uma ação boa, e o caso de alguém que recebe uma surra por perturbar as pessoas pacíficas e sente um mal-estar sabendo que seu castigo foi correto. A suma, portanto, da consideração estabelecida sobre o bem e o mal, recebe aprovação hermenêutica nos termos em que “um princípio racional já é pensado como sendo, por si mesmo, fundamento de determinação da vontade” (KpV, 2016, p. 90), e nesse caso o tal princípio é uma lei prática a priori e a razão pura também é por si mesma prática. A seqüência, portanto, é esta: (1º) a lei determina imediatamente a vontade → (2º) a ação que é conforme a lei é boa em si mesma → (3º) uma vontade cuja máxima é sempre conforme a essa lei, é boa absolutamente e em todos os propósitos → e, por isso, (4º) é a condição suprema de todo o bem. O conceito de bem e mal, portanto, é determinado não antes da lei moral, mas apenas depois dessa lei e por ela. Não é o conceito de bem que determina e torna possível 38 a lei moral, mas o inverso, a lei moral determina e torna possível primeiramente o conceito de bem. Ao pontuar essa questão, mais necessariamente à abordagem feita por Kant na Religião, em que o conceito de bem e mal é vigorosamente analisado em relação com a lei moral, Spinelli mostra que, no tocante à disposição para o bem e a propensão para o mal [...] embora se constituam em modos humanos de recepcionar a lei moral e, portanto, não possam ser extirpadas, elas estão intimamente vinculadas a um ato [Tat] do arbítrio. Ou seja, é próprio da natureza humana ser constituída por uma propensão para o mal e uma disposição para o bem, no entanto, no que diz respeito à atualização (vinculada ao agir) de um desses dois modos de abordar a lei moral, cabe ao homem, livremente, escolhê-la e edificá-la. (SPINELLI, 2013, p. 134). Como já observamos, a escolha do homem pela prática da lei moral ocorre em virtude da sua liberdade, sendo ela a razão de ser da moralidade. E esta moralidade é conhecida através da consciência da lei moral, sendo obtida pela concepção de ser racional. Mas, conquanto a razão prática tenha como objetos o bem e o mal, e, embora a disposição para o bem e a propensão para o mal estejam sempre originárias na natureza humana, a condição suprema de todo bem existe na vontade cuja regra de conduta está em conformidade com a lei moral. No entanto, é importante ressaltar que o bem não se estabelece como melhor do que o mal porque se vincula ao agradável, mas porque é bom. Há uma distinção importante acerca do bem e do mal como objetos da razão pratica em que somente o bem se caracteriza como objeto da razão pura prática. Conforme explica Nahra (2008), a respeito dos objetos da razão prática, a razão tem um uso lógico, e através desse uso lógico ela faz inferências; mas tem também um uso puro, que através dele produz conceitos da razão, ideias transcendentais. Esses dois usos da razão (lógico e puro) se aplicam aos dois domínios do conhecimento, o teórico (que exprime o que é, não o que deve ser) e o prático (que se exprime nos imperativos). A razão, no uso lógico, se aplica nos dois domínios: no teórico ela faz inferências lógicas; no prático ela faz derivar ações de leis, elabora regras de ação, fornece imperativos. E, no uso puro, a razão também se aplica aos dois domínios: no teórico, fornece as ideias de Deus, liberdade e imortalidade; no prático, dá a lei moral que serve como princípio para as ações. Daí, 39 temos a importante distinção entre razão prática (que tem seu uso lógico no campo prático, derivando as ações de princípios empíricos ou racionais) e razão pura prática (que tem seu uso também no campo prático, mas com um princípio racional prático que é a lei moral). Vejamos a síntese no quadro a seguir. Quadro 1 - Objetos da razão prática OBJETOS DA RAZÃO PRÁTICA Uso lógico da razão Uso puro da razão Inferências Teoria → inferências lógicas Prática → imperativos Ideias transcendentais Teoria → Deus, liberdade, imortalidade Prática → lei moral Razão prática Razão pura prática Ações derivadas de princípios empíricos ou racionais Princípio racional prático = lei moral Fonte: Nahra, 2008. A partir dessa distinção, entende-se que as ações podem estar baseadas tanto em princípios empíricos ou racionais quanto no princípio racional prático que é posto como a lei moral. Uma vontade que age baseada em princípios estabelecidos pela razão pura prática é uma vontade que não apenas deriva ações de princípios (coisa que diz respeito ao uso lógico da razão prática e que todo ser humano faz), mas que age segundo os princípios da razão pura, e não segundo os princípios empíricos da felicidade ou do amor de si. (NAHRA, 2008, p. 80). Por conseguinte, é apontado três tipos de objetos, oriundos da razão teórica, da razão prática e da razão pura prática. Para a razão teórica, os objetos são dados pela sensibilidade (que fornece intuições) e são pensados pelo entendimento gerando conceitos. Ou seja, a intuição sensível dá o objeto e a razão no seu uso teórico se relaciona com eles gerando o conhecimento. Para a razão prática, os objetos são constituídos pelo bem e pelo mal. E, para a razão pura prática, o objeto é o Soberano Bem. Em vista disso, a vontade humana no uso da razão realizará 40 seus objetos agindo bem ou mal, e no seu uso puro terá a indicação da lei moral. Em suma Quando a vontade humana agir tomando em consideração unicamente esta lei moral fornecida pela razão prática em seu uso puro, ela estará agindo bem, ou seja, ela estará concretizando um dos objetos da razão prática, que é o bem. Quando a vontade humana, ao contrário, agir em desacordo com esta lei ela estará agindo mal, ou seja, estará concretizando o mal enquanto objeto da razão prática. (NAHRA, 2008, p. 81). A lei moral, portanto, é a definidora do bem e do mal, e estes objetos não poderão ser determinados precedendo a mesma. Nesse sentido, tendo feito a distinção entre razão prática e razão pura prática, enquanto o bem e o mal são objetos da razão prática, temos somente o bem como objeto da razão pura prática. 2.8. Por que uma Lei Moral e não um fundamento para o mal? No tópico sobre o conceito de liberdade, indicamos a questão do por que o estímulo (motivo impulsor) da lei moral, em decorrência do seu conteúdo bom, não entra em contradição com a liberdade no sentido de fornecer ajuda à natureza do homem na escolha do bem, visto que esse estímulo apenas o motiva para a ação em conformidade com o bem da conduta moral, podendo ainda assim escolher não seguir a lei moral. Mas, quanto a questão da existência de uma lei moral como impulsora das ações para o bem e não a existência de um fundamento para o mal em lugar dessa lei, no sentido de haver no homem um fundamento, ou um estímulo para o mal em lugar da lei moral, algo que impulsionasse as ações para o mal, o acréscimo da ideia do mal radical não poderia parecer sugerir certa contradição com a impulsão do arbítrio para o bem? Na verdade, observamos que, conforme apresenta a Crítica da razão prática, a lei moral como uma lei prática e formal, sendo incondicionada e determinando objetivamente a vontade, ao não se ligar a nenhuma condição empírica, e servindo como legislação universal, está em sintonia com o dever cognoscível a todo ser humano, como exposto na sua asserção da GMS de que o conhecimento daquilo que cada homem deve fazer e saber pertence a cada um, até mesmo ao mais 41 comum deles. O acréscimo de um elemento em contraposição à essa lei e à esse dever, como o caso do mal radical, apenas propõe que, para a dinâmica da ação humana no uso da sua liberdade, se faz necessária a coexistência da lei moral e do caráter inato do mal radical. Ao procurar agir mal, o homem o faz tendo consciência da lei moral. Na Religião, lemos que O homem (inclusive o pior), seja em que máximas for, não renuncia à lei moral, por assim dizer, rebelando-se (com recusa da obediência). Pelo contrário, a lei moral impõe-se-lhe irresistivelmente por força da sua disposição moral; e, se nenhum outro móbil atuasse em sentido contrário, ele admiti-la-ia na sua máxima suprema como motivo determinante suficiente do arbítrio, i.e., seria moralmente bom” (RGV, 2008, p. 42-43). Dessa forma, tendo o mal moral a sua realidade metafísica heterogênea ao princípio do bem, e este último sendo acessível pela obrigação moral, e sendo não teórico mas prático, encontra seu lugar positivo no inteligível. De maneira que, a lei moral revela um caráter inteligível da causalidade da liberdade que, pela obrigação da lei moral, nos faz conhecê-la. É entendido aqui a existência de uma lei moral universal e necessária que, pela razão prática se determina sem os móbeis da sensibilidade, sem dados anteriores à razão. Na assertiva de Kant, “que não deve ser superado por quaisquer condições sensíveis e que é portanto totalmente independente delas” (KpV, 2016, p. 48). Assim, a moral se funda na razão pura, razão esta que é uma faculdade legisladora, que produz para si mesma a sua lei e a entrega ao homem, como lei universal, lei moral, e que se expressa na forma do imperativo categórico. Mas, quando Kant expõe o seu conceito da própria ética nos termos: “Numa filosofia prática, em que não temos de determinar os princípios do que acontece, mas sim as leis do que deve acontecer, mesmo que nunca aconteça, quer dizer leis objetivas-práticas” (GMS, 2007, p. 66). Para Schopenhauer, Kant está pisando em falso ao fazer uma “petitio principii” [petição de princípio], pois já parte do princípio de que tal filosofia prática é verdadeira (SCHOPENHAUER, 2001, p. 23). Então Schopenhauer pergunta: “quem nos diz que há leis às quais nossas ações devem submeter-se, ou quem diz que deve acontecer o que nunca acontece?” (SCHOPENHAUER, 2001, p. 23). Conforme ele aponta, é preciso saber o que dá o direito de antecipar o que deve acontecer e o 42 que impõe essa ética na forma legislativo-imperativa como a única que é possível para nós. Ele contrapõe Kant afirmando que, quanto à prerrogativa do filósofo e do ético, há uma limitação de ambos no que concerne à ética, de forma que ambos devem contentar-se com a explicação e o esclarecimento do dado, com aquilo que é, com o que acontece realmente, a fim de poder chegar ao entendimento disso. No caso de Kant, ele vai, além disso, fundamentando todo seu sistema ético antes de qualquer investigação, admitindo, a partir dessa petição de princípio, que existem leis morais puras. Por conseguinte, depois de estabelecer um primeiro conceito de lei, limitado à lei civil, Schopenhauer apresenta um segundo significado que se aplica à natureza, metaforicamente chamado leis da natureza, e explica que tal significado guarda uma parte bem pequena que tem a ver com o a priori, “e é isso que constitui o que Kant isolou de modo perspicaz e excelente e reuniu sob o nome de Metafísica da natureza” (SCHOPENHAUER, 2001, p. 24). Por outro lado, Schopenhauer interpreta que na vontade humana há uma lei, considerando que o homem pertence à natureza, que pode ser demonstrável, mas que não necessita de um imperativo categórico, sendo uma necessidade efetiva. Ele a chama de lei da motivação porque cada ação só se dá como conseqüência de um motivo suficiente. Conche, no entanto, diz que Schopenhauer faz confusão entre a causa e o fundamento da moral, embora ele faça a distinção entre princípio e fundamento. Como a moral não tem segundo ele [Schopenhauer] relação com a maneira como os homens devem se comportar, e sim com a maneira como se comportam, a chamada questão do “fundamento” é reconduzida à questão da causa das ações moralmente boas, isto é, ações não egoístas. Schopenhauer entende que o fundamento da ética só pode ser descoberto pelo caminho da experiência. A questão exige a busca de atos de justiça espontânea, caridade pura e atos inspirados numa verdadeira nobreza de sentimentos, em que se reconheçam um valor moral verdadeiro. E esses atos devem ser tratados como fenômenos dados que deverão ser explicados corretamente, num reconhecimento de suas verdadeiras causas. Dessa forma, para Schopenhauer, o fundamento da moral, é a compaixão, pois ela é, por excelência, o motor da moralidade. Porém, na crítica de Conche, há de se concordar que a compaixão pode ser o móvel de inúmeras ações morais, assim como o amor, a indulgência, o respeito pela lei moral, etc. Mas, observar isso não é responder a 43 questão do fundamento da moral, pois o fundamento não deve ser confundido com a causa das ações. Conche questiona, então: Por que, de fato, reconhecer “um valor moral verdadeiro” aos atos não egoístas? Em virtude do princípio da moral: “Não faça mal a ninguém, etc.” Sua crítica a Schopenhauer é que ele não fundamentou esse princípio, apenas deu a causa de ações em que esse princípio é aplicado. O questionamento, então, refere-se ao valor do principio, o que vale o próprio princípio? “Que seja verdadeiro, ninguém duvida. No entanto ainda é preciso estabelecer seu valor de verdade, e isso só pode ser feito por uma razão, não por uma causa. Porque a causa explica o fato, enquanto a razão estabelece o direito.” (CONCHE, 2006, p. 22). Mas, ainda assim, em Kant, diante do fundamento da moral na razão pura que é uma faculdade legisladora e que produz para si mesma sua lei moral universal, verifica-se que uma inversão moral da lei, ou melhor, no lugar da lei moral a existência de um fundamento para o mal que, ao invés de impulsionar o homem para o bem, o estimulasse para o mal, não poderia ocorrer, por vários motivos. Em primeiro lugar, a razão como uma faculdade legisladora dá a si mesma sua lei, uma lei universal que está na forma do imperativo categórico. Como a lei moral é estritamente racional e universal, não condicionada por caráter subjetivo, os valores éticos ou princípios morais são tratados livremente pela razão sendo aplicados universalmente. Em segundo lugar, a lei prática definida nos imperativos categóricos, ao determinar a vontade suficiente ou não para o efeito, são regras corretas praticamente e designadas pelo verbo “dever”. Dessa forma, se o conteúdo da ação moral já é sugerido pela necessidade de agir de tal forma, a inversão do princípio ocasionaria a inversão também do conteúdo da lei moral. Em terceiro lugar, a condição suprema do bem existe na vontade cuja regra de conduta se conforma à lei moral que adverte o marco entre a disposição para o bem e a propensão para o mal originárias à natureza humana. E em quarto lugar, o mal radical não se contradiz com o fato da razão na medida em que ele não interfere na liberdade, mas é essencial para o uso da liberdade, podendo o homem escolher os móbeis da inclinação. 44 Dessa forma, em consonância com a proposta de Kant no que concerne à lei moral, não há como se estabelecer uma inversão teórica dessa relação, ou seja, de um fundamento para o mal que se encontrasse no lugar da lei moral. 45 3. O CONCEITO DE MAL EM IMMANUEL KANT Dos três grandes temas da filosofia de Immanuel Kant, sintetizados nas três perguntas: O que posso saber? O que devo fazer? O que me é permitido esperar? (Expostas na segunda sessão do Cânone da Razão Pura, em sua Crítica da razão pura B833) o último deles traz necessariamente em seu desenvolvimento sobre a religião a conceituação dos princípios do bem e do mal. Esses termos já haviam sido referenciados na obra que visou responder à segunda questão (O que devo fazer?)1. Mas, como o tema é caro na filosofia prática de Kant, além do problema do mal ter sido pontuado em sua Crítica da razão prática, de 1788, foi desenvolvido assaz em A Religião nos limites da simples razão, de 1793. A respeito da obra A Religião, Caygill sugere que “O texto de Kant sobre teologia filosófica pode ser lido como suplemento a CRPr” (CAYGILL, 2000, p. 279). Conforme chama a atenção Höffe, a filosofia da religião e da moral em Kant estão em consonância visto que “ele projeta um conhecimento filosófico de Deus que se funda no conceito de moralidade” (HÖFFE, 2005, p. 278). É nesse sentido que, para Kant, Deus é um postulado da razão prática pura. E, ao apresentar essa religião da razão prática nas suas duas últimas críticas (na Dialética da Crítica da razão prática e na Crítica da faculdade do juízo), Kant amplia a abordagem na Religião, em que “O ponto decisivo é formado pelos conceitos do sumo bem e do mal” (HÖFFE, p. 279). Então, a concepção religiosa do sumo bem é refletida a partir da relação existente entre o princípio bom e mau presente na natureza humana. Como ponto de partida para a investigação da religião sob sua perspectiva filosófica, Kant utiliza a noção de liberdade (o homem é livre pois concede a si mesmo a lei) e de moralidade (quando, por sua liberdade, o homem segue os princípios da moral). A moralidade, neste caso, se associa a concepção do sumo bem, analisada a relação entre os princípios bom e mau na natureza humana e o surgimento do conceito de “mal radical”, bem como a relação entre liberdade humana e o mal. Kant vai apresentar o conflito dos princípios bom e mau, e distinguir sua posição da dos estóicos “que viram a “luta moral” sendo travada entre 1 Ao colocar as três perguntas, O que posso saber?O que devo fazer? e Que me é permitido esperar? Kant não desenvolveu o segundo questionamento em sua primeira Crítica, e explicou que “A segunda interrogação é simplesmente prática. É certo que, como tal, pode pertencer a razão pura, mas não é transcendental, é moral, e, por conseguinte, não pode em si mesma fazer parte da nossa crítica” (KrV, 2001, B 833). 46 o dever e as inclinações; para ele, a luta desenrola-se, antes de tudo, entre as máximas livremente adotadas que determinam a vontade” (CAYGILL, 2000, p. 279). De fato, como item indispensável na interpretação da conduta humana, cujo aspecto fundamental da vida prática é a moralidade, o problema do mal é necessário à abordagem religiosa e exige sua investigação. Como uma base para a religião, a teoria do mal radical e da moral em Kant é posta exatamente nesse sentido contrário: o fundamento da moral não está na religião, mas a religião se funda e se elucida na moral. Essa temática do mal na filosofia kantiana obrigatoriamente passa pela abordagem da moralidade nos moldes admitidos por Kant cujo conceito do mal, em suma, é ir contra a lei moral, pois o mal está na realização de uma ação que não é uma ação moral, já que “a lei moral quer que se realize por meio de nós o mais elevado bem possível” (RGV, 2008, p. 12). A abordagem objetiva do mal na perspectiva kantiana que é encontrada na sua obra A Religião nos Limites da Simples Razão, publicada em 1793, apresenta três níveis, ou degraus, de maldade, quais sejam: o mal da fraqueza, o mal da impureza e a malignidade, bem como a indicação de um quarto nível que para ele não seria possível, mas se estabelece também como um conceito de mal, a saber, uma vontade diabólica. A fraqueza seria um impulso, uma inclinação para uma ação contrária às máximas inerentes. Objetivamente, o homem escolhe e decide pela moralidade, mas num determinado momento é fraco e age contrariamente à lei moral. A impureza está na ação correta mas não pelo móbil, não tendo como fundamento a lei moral. E a malignidade seria a decisão de fazer o mal, quando realmente se coloca as intenções e motivações egoístas na frente da lei moral (a inversão da máxima moral sugerindo a inclinação para adotar as máximas más). Como exemplo, alguém pode tornar-se homicida por querer o que a vítima possui, ou ladrão por desejar os bens de outro, assim, essa realização do mal é no sentido de desejar conseguir algo, não é uma ação maligna de um mal como uma vontade puramente diabólica. Uma ação maligna nesse sentido seria o último mal, ou um quarto degrau da maldade, o mal diabólico, que em outros termos seria a querência do mal a partir de uma corrupção natural da vontade. Kant apresenta este conceito, quando escreve que o fundamento do mal não pode estar numa “corrupção da razão moralmente legisladora, como se esta pudesse aniquilar em si a autoridade da própria lei” (RGV, 47 2008, p. 41, 42) e negando também a obrigação procedente dela. Em suma, ele mostra que ... uma razão que liberta da lei moral, uma razão de certo modo maligna (uma vontade absolutamente má), contém demasiado, porque assim a oposição à própria lei se elevaria a móbil (já que sem qualquer motivo impulsor se não pode determinar o arbítrio) e, por isso, se faria do sujeito um ser diabólico (RGV, 2008, p. 42). Dessa forma, ele entende que esse mal não é possível. O mal no sentido de uma desumanidade natural em que o motivo para as ações já seria oposto à lei moral. Kant entende que o homem não alcança essa condição, que, nos termos propostos, seria o mal de uma vontade diabólica. Dessa forma, a vontade diabólica estaria na escolha inversa à lei moral pela própria razão pura. Mas, antes de adentrar propriamente na investigação proposta, podemos ainda assinalar a recepção negativa que a obra de Kant A Religião obteve (sobre tal tema do mal radical), no sentido de que o mal radical pôde competir com o resto de toda sua doutrina. Comentando sobre essa recepção negativa da obra A Religião, Spinelli aponta o teor de certa carta de 1793, que Goethe escreveu a um amigo, com o seguinte comentário notabilizado: “Depois de ter dedicado uma longa vida de homem limpando seu manto filosófico de muitos preconceitos, Kant deploravelmente o sujou com a mancha do mal radical...” (GOETHE apud Spinelli, 2013, p.131). Além disso, a admissão da existência de um mal radical na natureza humana poderia estar a ferir diretamente os princípios da Aufklãrung que Kant expunha com grandeza. Sobre isso, Spinelli puxa uma nota explicativa: “O iluminismo comportou várias abordagens ao longo do tempo, com efeito, todas conservaram as suas características originais, a saber: a confiança no progresso e na razão e o incentivo à liberdade de pensamento” (2013, p.131). Ainda sobre essa recepção negativa, Borges salienta em artigo sobre o mal e a coerência do sistema kantiano que a obra A Religião nos limites da simples razão ... acaba deixando descontentes tanto os religiosos, porque Kant racionaliza a fé, quanto os entusiastas do iluminismo, pois este texto parece ser um passo atrás de uma filosofia do esclarecimento... Goethe está entre os vários autores que se escandalizara pela proposta de Kant na Religião, por considerá-la um passo atrás na proposta da Aufklãrung. (BORGES, 2017, p. 58). 48 Mas, como obra do período da maturidade de Kant, A Religião “aborda problemas e oferece soluções que pareciam estar longe do horizonte possível de qualquer pensamento iluminista” (BORGES, 2017, p. 57). Na verdade, com base nos desdobramentos que a pesquisa tem nos levado, a posição que identificamos é que o mal radical não seria um retrocesso de Kant, sendo ele defensor do esclarecimento. É perfeitamente possível a tese do mal se encaixar na filosofia de Kant dentro do contexto da Aufklãrung. O filósofo do esclarecimento pode, coerente com seu sistema, defender essa ideia do mal. Por conseguinte, nosso foco inicial é esta análise da concepção do mal na filosofia kantiana, que é encontrada na obra já referenciada, enfocando o entendimento indicado, da proposição dos três degraus para a expressão do mal, fragilidade, impureza, malignidade, e a verificação da noção kantiana para a impossibilidade deste quarto degrau para a expressão do mal, i.e., a realização do mal como propósito numa inversão deliberada da máxima moral indicada como uma pura malignidade, como uma vontade diabólica, o que não ocorreria no homem como ser racional. Seria necessário, então, verificar qual o fundamento para a impossibilidade desse mal puro (ou diabólico) se apresentar no ser humano, ou porque essa vontade diabólica se configura impraticável. 3.1. O problema do mal em Kant Discutir o mal em Kant é considerar também o caráter ou o estatuto teórico de sua tese. Se ela está no âmbito da filosofia transcendental, da filosofia pura, sendo uma tese a priori, de um juízo analítico, inserida na sua discussão da moralidade, da teoria moral, ou se trata de uma questão antropológica, uma tese a posteriori, de um juízo sintético, no âmbito das relações sociais, visto que somos seres sensíveis e finitos. Tal questão tem divido os comentadores de Kant. Como exemplo, vejamos o caso de Allison. Comentando sobre a ideia da propensão para o mal analisada por Allison, o qual entende essa propensão como uma máxima num nível mais alto, ou metamáxima (uma forma de classificar os motivos nas máximas de primeira ordem), Borges (2017) apresenta a questão que se estabelece diante desse entendimento do mal ser essa meta-máxima: como se explica essa ideia de que há uma propensão para o mal e não uma propensão para o bem? Daí, a resposta que Allison apresenta é de ordem empírica: os exemplos 49 que a experiência nos apresenta das ações humanas. Ou seja, ele começa com uma explicação transcendental, o mal com uma raiz inteligível, mas responde a questão mostrando que a propensão para o mal é um fato observado. No entanto, para Wood o mal se origina na insociável sociabilidade. Apresentando o entendimento de Muchnik sobre os dois âmbitos em que se pode situar a posição dos comentadores a respeito da tese kantiana para o mal, Borges resume: Por um lado, Allen Wood, que encontra na Ideia para uma história universal do ponto de vista cosmopolita a chave para entender a propensão ao mal, reduzindo-o à indissociável sociabilidade. Por outro lado, a tentativa de Allison de uma absorção do conceito de mal no cerne da teoria noumenal (ou a priori) de Kant. (BORGES, 2017, p. 62). Kant escreve, na primeira parte da obra A religião nos Limites da Simples Razão, que é antiga a queixa de que o mal é real no mundo. Ele, então, indica que embora se comece pelo bem a abordagem do início do mundo, logo é lembrado que o mal nele entrou trazendo consigo a desgraça cada vez maior dos seus últimos habitantes. Em seguida, é colocado o pressuposto de bondade natural implantada no ser humano, e que foi configurada na opinião de filósofos e pedagogos de que há uma progressão para o bem, mesmo que seja historicamente imperceptível. Assim, a própria natureza propiciaria o desenvolvimento da disposição moral para o bem. Mas, segundo ele, essa opinião seria apenas uma “hipótese benevolente” dos moralistas. Por outro lado, Kant já insere sua posição de que não existe uma maldade inata no ser humano, na medida em que, segundo sua proposição, não se pode estabelecer com segurança, a partir da experiência, que o autor de certos atos maus seja um mau homem, pois para tal seria necessária uma máxima má como fundamento que levaria à um princípio geral de máximas más inerentes ao sujeito. Dessa forma, ele expõe Assim pois, para chamar mau a um homem, haveria que poder inferir-se de algumas acções conscientemente más, e inclusive de uma só, a priori uma máxima má subjacente, e desta um fundamento, universalmente presente no sujeito, de todas as máximas particulares moralmente más, fundamento esse que, por seu turno, é também uma máxima. (RGV, 2008, p. 24). 50 Tal assertiva é logo fundamentada no uso do arbítrio, pois para o fundamento da escolha do homem, ou pelo bem ou pelo mal, é indicada a sua liberdade, pois, caso contrário, não se poderia usar os predicados de moralmente bom e moralmente mau. E, ainda, o fundamento subjetivo de sua liberdade precede os fatos que são apresentados ao seu sentido. Se não fosse assim, “o uso ou abuso do arbítrio do homem, no tocante à lei moral, não se lhe poderia imputar, e o bem ou o mal chamar-se nele moral” (RGV, 2008, p. 24). Assim, o homem tem liberdade para escolher entre o bem ou o mal, pois ele usa os atributos de moralidade boa ou má. Como fundamento para essa liberdade, algo anterior se apresenta, se não, ele não poderia ser responsabilizado pelo uso ou abuso do seu arbítrio. Mas aí, uma questão se apresenta: Por que o homem escolhe o bem e não o mal? Ou vice- versa? 3.1.1. A escolha pelo bem ou pelo mal Em primeiro lugar, a resposta no que concerne à escolha pelo bem ou pelo mal, não pode estar no instinto natural porque o uso da liberdade fica comprometido, a liberdade entraria em contradição com as causas naturais. Em segundo lugar, só é possível falar em bondade ou maldade do homem a partir da sua admissão de máximas boas ou más permitidas por um princípio primeiro que é insondável (insondável porque é remetido à uma série anterior infinita de princípios determinantes subjetivos). E em terceiro lugar, na doutrina dos costumes não há espaço para se adotar nenhum termo médio moral que considere a ação humana ao mesmo tempo como boa ou má, ou nem boa nem má. Como há fundamentos para o bem e para o mal no homem, conquanto tenhamos de um lado a disposição para o bem e de outro lado a propensão para o mal, o homem pode ser visto como bom ou mal a partir de suas ações. Se o bem = a, o seu oposto contraditório é o não bem. Ora este é consequência de uma simples carência de fundamento do bem = 0, ou então a consequência de um fundamento positivo da sua contrapartida = – a. No último caso, o não bem pode chamar-se igualmente o mal positivo. (Em relação ao prazer e à dor existe um [termo] médio semelhante, de modo que é o prazer= a, a dor = – a, e o estado em que nenhum dos dois é encontrado, a indiferença = 0). Ora se a lei moral não fosse em nós um motivo impulsor do arbítrio seria o bem moral (a consonância do arbítrio com a lei) = a, não bem 51 = 0, sendo este a simples consequência da carência de um motivo impulsor moral= a x 0. Mas a lei moral é em nós motivo impulsor = a; por conseguinte, a falta de consonância do arbítrio com ela (= 0) só é possível como consequência de uma determinação realiter oposta do arbítrio, i. e., de uma resistência deste = - a, isto é, só mediante um arbítrio mau; e, portanto, entre uma má e uma boa disposição de ânimo (princípio interno das máximas), segundo a qual se deve igualmente julgar a moralidade da acção, nada há, pois, de intermédio (RGV, 2008, p. 27). Kant ainda conclui em sua nota que se houvesse uma ação moralmente indiferente (adiaphoron morale) ela seria o resultado apenas de leis naturais não tendo relação com a lei moral enquanto lei da liberdade, e, dessa forma, essa ação não seria “facto algum e por não ter lugar nem ser necessário relativamente a ela nem mandamento, nem proibição nem sequer licença (autorização legal)” (RGV, 2008, p. 27). Resumidamente, tal nota assim pode ser esquematizada: Quadro 2 - Comparação do bem e do mal com o prazer e a dor O BEM E O MAL COMPARADO AO PRAZER E A DOR O bem = a O mal positivo = - a O não bem = 0 O prazer = a A dor = - a A indiferença = 0 A LEI MORAL COMO IMPULSORA DO ARBÍTRIO O bem moral = a Não bem = 0 Carência de motivo impulsor moral = a x 0 A lei moral estimula o arbítrio “é motivo impulsor” (= a). A falta de harmonia entre a Lei Moral e o Arbítrio (= 0) é consequência da oposição de algo (real) ao arbítrio (= - a), um “arbítrio mau”. Não há meio termo entre uma má e uma boa disposição de ânimo. Fonte: RGV, 2008. Dessa forma, a escolha pelo bem está atrelada à impulsão do arbítrio. 52 3.1.2. A Lei moral como impulsora do arbítrio Mas, em que sentido a lei moral é em nós um motivo impulsor? Ou por que ela assim procede? Para tal compreensão, temos em Kant o entendimento de lei, de lei moral e o significado da razão prática pura que ele estabelece. Conforme a análise da temática observada na primeira parte dessa pesquisa, o sentido da lei como impulsora do arbítrio está no fato da lei moral servir de princípio para a vontade, se harmonizando com a razão humana que sempre está de posse desse princípio. A lei moral é indicada na Crítica da Razão Prática, como uma Lei Fundamental da Razão Prática Pura, e tem como definição: “Age de tal modo que a máxima de tua vontade possa sempre valer ao mesmo tempo como princípio de uma legislação universal” (KpV, 2016, p. 47). E, como dedução de sua asserção precedente, Kant escreve: “A razão pura é por si mesma prática facultando (ao homem) uma lei universal que denominamos lei moral” (KpV, 2016, p. 48). Apontada como lei universal, já havia sido apresentada na Fundamentação da Metafísica dos Costumes, de 1785, com um conceito referente à uma lei cuja representação determina a vontade para que esta possa ser chamada absolutamente boa e sem restrições. Valendo-se dos mesmos termos, ali está expressa: “devo proceder sempre de maneira que eu possa querer também que a minha máxima se torne uma lei universal” (GMS, 2007, p. 33). Essa lei, portanto, serve de princípio para a vontade, em conformidade com a razão humana que sempre está de posse desse princípio. A indicação de que esta lei é boa também se explicita nos termos “aquilo que deve ser moralmente bom não basta que seja conforme a lei moral, mas tem também que cumprir-se por amor dessa mesma lei” (GMS, 2007, p. 16). Se não fosse assim, ou seja, ações por amor à lei, haveria incerteza e contingência, e várias ações conformes ou contrárias à lei estariam sendo produzidas. A pura conformidade à lei, sem o cumprimento por amor dessa lei, é apenas contingente e incerta porque, como explica Kant, se de vez em quando as ações conformes à lei moral poderão ser produzidas por um princípio imoral, mais vezes ainda o princípio imoral produzirá “ações contrárias a essa lei” (GMS, 2007, p.17). 53 3.1.3. Disposição para o bem e propensão para o mal Na sequência de sua abordagem na Religião, Kant discorre sobre a disposição original para o bem na natureza humana, e lista três disposições determinantes do homem: animalidade (amor a si mesmo, físico e mecânico – que pode conter vícios de brutalidade da natureza, vícios bestiais como gula, luxúria e da selvagem ausência de lei em relação à outros homens); humanidade (amor de si em comparação com outros, igualdade – que contém vícios como inveja e rivalidade); e personalidade (como um motivo suficiente do arbítrio reverenciando a lei moral). Considerando essas disposições, a primeira, animalidade, não tem por raiz razão alguma; a segunda, humanidade, tem por raiz a razão prática; e a terceira, personalidade, tem por raiz a razão incondicionalmente legisladora, razão prática também. Por conseguinte, antes de apresentar os três degraus do mal, ele escreve que a propensão para o mal moral é contingente (tem a possibilidade, com determinação do livre-arbítrio) bem como a escolha pela lei moral na sua máxima. “Pode acrescentar-se ainda que a capacidade ou a incapacidade do arbítrio para acolher ou não a lei moral na sua máxima - capacidade ou incapacidade que brota da propensão natural - se denomina bom ou mau coração” (RGV, 2008, p. 35). E este coração humano, ou natureza humana, portanto, tem propensão para o mal diante da máxima da lei moral que se lhe apresenta, nos três níveis ou degraus, a saber: fragilidade da natureza humana ou debilidade do coração humano (na observância das máximas), impureza (que é a inclinação para misturar móbiles imorais com morais), e malignidade da natureza humana ou do coração humano (que é a inclinação para adotar as máximas más). (RGV, 2008, p. 35). Porém, antes que a ideia de uma pura malignidade possa ser concebida a partir dessa concepção de uma “inclinação para adotar as máximas más”, no sentido de inverter por querer a máxima moral, Kant explica que por propensão ao mal ele entende “o fundamento subjetivo da possibilidade de uma inclinação (desejo habitual, concupiscentia), na medida em que ela é contingente para a humanidade em geral” (RGV, 2008, p. 34). Ou seja, existe a predisposição para desejar um prazer, porém, esta só produzirá a inclinação, ou a “concupiscentia”, quando o indivíduo experimentar aquele determinado prazer. Em nota, Kant explica que 54 “Propensão é, em rigor, apenas a predisposição para a ânsia de uma fruição” (RGV, 2008, p. 34). Ali, há o exemplo da embriaguez, e a inserção de outros elementos nessa dinâmica de propensão ao mal, a saber, o instinto e a paixão. No caso do instinto, ele está entre a propensão e a inclinação, sendo uma necessidade sentida de realizar algo cujo conceito ainda não está formado. Já a paixão, é uma inclinação que exclui o domínio sobre si mesmo. Na tabela a seguir, apresentamos estas definições: Quadro 3 - Definições de propensão, instinto, inclinação e paixão Propensão (Fundamento subjetivo da possibilidade de uma inclinação) Inclinação (Desejo habitual, concupiscentia) Instinto (Necessidade sentida de fazer algo sem conceito formado) Paixão (Inclinação que exclui o autodomínio) PROPENSÃO → INSTINTO → INCLINAÇÃO → PAIXÃO Fonte: RGV, 2008. Na Antropologia Kant também apresenta esses conceitos de propensão, instinto, inclinação e paixão. Assim ele expressa A possibilidade subjetiva do surgimento de um certo desejo, que precede a representação de seu objeto, é propensão (propensio); a coação interna da faculdade de desejar para possuir esse objeto, antes de conhecê-lo, é instinto (como impulso de acasalamento ou impulso paternal dos animais de proteger suas crias etc.). – O desejo sensível que serve de regra (hábito) ao sujeito chama-se inclinação (inclinatio). – A inclinação pela qual a razão é impedida de comparar essa inclinação com a soma de todas as inclinações em vista de uma certa escolha, é a paixão (passio animi). (Anth, 2006, p. 163). A ideia de Kant é que, se percebe que as paixões são prejudiciais à liberdade, visto que se unem à uma reflexão tranqüila e não são passageiras, mas podem fincar suas raízes e coexistir mesmo quando a argumentação perspicaz é feita. Ele entende também que a paixão é como o câncer da razão. “As paixões são cancros para a razão prática pura e na sua maior parte incuráveis” (Anth, 2006, p. 164). Isto ocorre porque o doente não quer ser curado, se distanciando da ação do princípio único por meio do qual poderia receber a cura. 55 Quanto às definições na Religião, Stroud escreve em seu artigo Kant sobre a propensão ao mal, que “o uso do termo propensão (Hang) é confuso, visto que Kant pretende distingui-lo de predisposição (Anlage)” (STROUD, 2004, p. 26). Em seu comentário, Stroud diz Como as predisposições para o bem, a propensão para o mal marca um traço da existência humana que pode, porém não necessariamente, levar à “má” ação. A principal diferença está na valência por detrás do incentivo. Como observa Kant, a propensão ao mal ressalta a probabilidade de uma certa experiência (álcool para um alcoolista, por exemplo) de, uma vez desfrutada, crescer e aumentar na qualidade de desejo habitual – uma inclinação é alimentada por esse ato. Tal inclinação para uma atividade específica não está inicialmente presente na sua forma plena, mas somente em potencial, no ser humano (STROUD, 2004, p. 26). Ou seja, conforme apresenta Kant, a distinção entre a disposição para o bem e a propensão para o mal, que mostra a diferença entre o homem ser bom ou mau “... deve residir, não na diferença dos móbiles, que ele acolhe na sua máxima (não na sua matéria), mas na subordinação (forma da máxima): de qual dos dois (móbiles ele transforma em condição do outro” (RGV, 2008, p. 43). Spinelli explica: É contrapondo a disposição para o bem (cujas propriedades se encontram inativas na natureza humana) e a propensão para o mal dominante nos atos humanos, que Kant chega a conclusão que o “homem é mau” [der Mensch ist Bose] ou que nele reside um “mal radical”. Tal maldade é por ele situada no domínio do seguimento da máxima, ou seja, no modo como o indivíduo hierarquiza a lei moral e as inclinações enquanto incentivos de uma ação. (SPINELLI, 2013, pág. 134). Assim, de um lado temos a disposição original para o bem, como se o bem tivesse uma maior caracterização da natureza humana, enquanto que de outro lado temos a lei moral fixa funcionando como causa acessória a ser requisitada nas ações a fim do homem tornar-se bom, numa aderência à lei no tocante ao seguimento das máximas. Spinelli explica ainda que em Kant se observa sinais de que a situação da maldade enraizada na natureza humana apresenta uma forma de resolver-se na medida em que a disposição para o bem é originária e que a propensão ao mal não torna o homem diabólico o fazendo opor-se à lei como móbil. 56 Ainda no que tange à disposição para o bem e à propensão para o mal é interessante afirmar que, embora se constituam em modos humanos de recepcionar a lei moral e, portanto, não possam ser extirpadas, elas estão intimamente vinculadas a um ato [Tat] do arbítrio. Ou seja, é próprio da natureza humana ser constituída por uma propensão para o mal e uma disposição para o bem, no entanto, no que diz respeito à atualização (vinculada ao agir) de um desses dois modos de abordar a lei moral, cabe ao homem, livremente, escolhê-la e edificá-la. (SPINELLI, 2013, p. 134). Dessa forma, a superação da propensão ao mal será posta na consecução da inerente e anterior disposição para o bem, vinculada à lei moral, pois o homem como agente da lei moral estará ligado de forma dependente ao bem, em consonância com esta lei moral fundamentada na razão. Quadro 4 - Relação entre razão, lei moral e inclinação Razão A lei moral → Disposição para o bem Inclinação (concupiscência) → Propensão para o mal Arbítrio (adoção) Lei moral → Bem Inclinações → Mal Fonte: Spinelli, 2013. Em síntese: a lei moral ordena a ação pelo bem, mas a inclinação ou concupiscência sugere a adoção de máximas más. Cada uma das vertentes pode ser tomada pelo arbítrio a partir de uma colocação hierárquica. Ao adotar a lei moral, o bem se estabelece. Ao adotar o móbil das inclinações, o mal se estabelece. Dessa forma, o mal não pode ser concebido fora do arbítrio, mas em consequência dele. É nele que se inverte a adoção dos valores morais, pois a lei fica subordinada às inclinações e não as inclinações à lei. Kant ainda utiliza a expressão “peccatum originarium” referente à inclinação para o mal como ato do uso da liberdade “acolhida no arbítrio a máxima suprema (conforme ou adversa à lei)” e é, ao mesmo tempo, “o fundamento formal de todo ato... contrário à lei, ato que, quanto à matéria, é antagônico à mesma lei e se chama vício (peccatum derivativum)” (RGV, 2008, p. 37). Pavão explica a expressão peccatum originarium, utilizada por Kant, “como um ato que é aplicável ao uso da 57 liberdade do arbítrio ao acolher a máxima suprema visto que a propensão moral do arbítrio é o “fundamento que precede todo o ato”” (PAVÃO, 2007, p. 173). Daí o peccatum originarium ser expressão que designa a propensão para o mal posta como fundamento formal de todo ato. 3.1.4. O terceiro nível de mal: a malignidade Quanto aos níveis elencados do mal, temos a seguinte descrição: Para à fragilidade, Kant traz a referência do apóstolo Paulo (na expressão da Epístola aos Romanos 7:18) ao dizer “Tenho, sem dúvida, o querer, mas falta o cumprir”, e interpreta: “admito o bem (a lei) na máxima do meu arbítrio; mas o que objectivamente na ideia (in thesi) é um móbil insuperável é, subjectivamente (in hypothesi) quando a máxima deve ser seguida, o mais fraco (em comparação com a inclinação)” (RGV, 2008, p. 35). Para a impureza, ele coloca que o coração humano é impuro porque, considerando que a máxima é boa (conforme o intento da lei), e suficientemente forte para o seu cumprimento, ela não é puramente moral porque não concebe a lei como motivo suficiente para a realização dela; ao contrário, diz ele, quase sempre, ela precisa de outros motivos que determinem ao arbítrio aquilo que é exigido pelo dever. Concernente à malignidade, ou, na sua própria expressão, o estado de corrupção do coração humano, ela é a inclinação da vontade (ou arbítrio) para máximas que adiam o motivo derivado da lei moral para outros motivos não morais. É a perversidade do coração humano que inverte a ordem moral. E mesmo que existam ações boas, ou legais, a maneira de pensar está corrompida na sua raiz (na intenção moral), e por isso o homem é designado como mau. No entanto, esse estado corrupto do coração humano, mesmo como sugerido na expressão “o homem é mal por natureza”, significa que, mesmo conhecendo a lei moral, o homem acolhe ocasionalmente desviar-se dela. Não há uma dedução da maldade inata como conceito específico de sempre voltar-se para o mal por querer o mal pelo mal, o que se configuraria um quarto degrau de mal. A inclinação é considerada moralmente má e não como disposição natural da vontade. Nesse sentido, Kant diz que “podemos então chamar a esta propensão uma 58 inclinação natural para o mal, e, visto que ela deve ser, no entanto, sempre autoculpada, podemos denominá-la a ela própria um mal radical inato (mas nem por isso menos contraído por nós próprios) na natureza humana” (RGV, 2008, p. 39). Ora, depois de indicar a prova formal da inclinação corrupta do homem, seja nas civilizações primitivas, seja no “estado civilizado” e também no “estado dos povos nas suas relações externas” (cuja proposta de uma paz perpétua entre os povos se mostra ridicularizada e fanática), ele afirma que o fundamento deste mal (1) não se encontra na sensibilidade do homem nem nas inclinações decorrentes dela (porque o homem opera livremente e, por isso, é culpado de suas ações), e (2) não está na corrupção da razão moralmente legisladora como se essa razão aniquilasse a autoridade de sua própria lei negando a obrigação que dela flui, sendo isso pura e simplesmente impossível. Conforme aponta Herrero, “Nesta está incluída também a explicação do mal motivada pela inclinação de algum instinto natural para o mal. E é igualmente rejeitada porque exclui a imputabilidade da ação moral” (HERRERO, 1991, p. 78). Wood, ao comentar esse ponto, da impossibilidade duma razão corrompida, mostra que essa seria uma forma de dar ao mal uma aparência de inteligibilidade, representando-o como algo para o qual o homem poderia ter uma razão genuína e suficiente. Seria atribuir à vontade humana um incentivo original de ir contra a lei moral. Para Kant, “seria contraditório pensar em um ser racional vinculado à lei moral, mas sem qualquer incentivo racional para obedecê-la ou possuir um incentivo racional para desobedecê-la” (WOOD, 2014, p. 34). Por isso, Kant conclui que “A sensibilidade contém demasiado pouco” (RGV, 2008, p. 42) para fornecer uma base de mal moral no ser humano. Como visto, Kant argumenta que tanto a sensibilidade do homem como uma vontade absolutamente má não são fundamentos para o mal moral no homem. A sensibilidade não pode ser esse fundamento porque faz do homem um ser simplesmente animal. E, uma razão maligna (uma vontade absolutamente má que se configuraria como um quarto degrau para o mal) “contém demasiado, porque assim a oposição à própria lei se elevaria a móbil (já que sem qualquer motivo impulsor se não pode determinar o arbítrio) e, por isso, se faria do sujeito um ser diabólico. – Mas nenhuma das duas coisas é aplicável ao homem” (RGV, 2008, p. 42). 59 3.2. A ideia do mal radical Seguindo a própria proposição de Kant, no que concerne à malignidade, e de que “Este mal é radical, pois corrompe o fundamento de todas as máximas” (RGV, 2008, p. 44), Bassoli indica-o como o terceiro grau de propensão para o mal, sendo “chamado malignidade ou perversidade do coração humano, porque inverte a ordem moral dos motivos no arbítrio, corrompendo, em seu fundamento, a maneira de pensar, razão pela qual é chamado de mal radical” (2010, p. 730). Aqui, parece ser possível confundir a ideia do mal radical (terceiro nível) com a ideia de um quarto degrau de mal, ou seja, aquele mal posto na sensibilidade do homem ou em suas inclinações retirando a liberdade para uma ação boa. Pinheiro faz essa confusão ao comentar que Nos dois primeiros graus da propensão (fragilidade e impureza), Kant supõe que a suficiência da lei moral como móbil era (de certo modo) admitida ou reconhecida (em termos de consciência), mas não efetivada. Ele supõe que a determinação do arbítrio pela lei da moralidade visava essa suficiência, porém, tinha como obstáculos a fragilidade e a impureza do coração humano. Quanto ao terceiro grau da propensão para o mal, Kant o rejeita porque a malignidade contradiz a disposição originária para o bem. Ocorre que, enquanto que nos dois primeiros graus de propensão, a lei moral estava presente como móbil na máxima (ainda que sua importância estivesse submetida a outros móbiles), no terceiro grau de propensão, o da malignidade, o móbil para a máxima é, em primeiro plano, contrário à lei moral. (2007, p. 42, grifo meu). Ora, não parece ser isso que Kant apresenta, mas, a inclinação para o mal considerada como moralmente má por ser o homem culpado de suas ações na medida em que ele utiliza-se de sua liberdade para determinar a escolha pela ação má. Tal máxima do arbítrio contraria a lei e, por ser auto culpada é denominada por Kant de mal radical inato. Essa noção de mal radical, como explica Correia, “não se refere a alguma forma particular de mal ou a alguma de suas manifestações nas ações dos homens, mas mais propriamente ao fundamento da possibilidade de todo mal moral” (CORREIA, 2005, p. 84). Como encontramos na interpretação de Ricoeur, o mal é a “máxima suprema que serve de fundamento subjetivo último a todas as máximas más de nosso livre arbítrio; esta máxima suprema fundamenta a propensão (Hang) ao mal em todo o gênero humano... ao encontro da predisposição (Anlage) ao bem, constitutiva da vontade boa.” (RICOEUR, 1988, p. 38). 60 Höffe explica que este mal “... tem também a propensão fundante de tornar as inclinações naturais fundamento determinante último de seu agir. Com isso, ele põe-se em contradição com a lei moral [...]” (HÖFFE, 2005, p. 285). Isso é posto porque se adéqua à teoria kantiana de considerar, na ideia de uma concepção humana com disposição originária para o bem (tendo uma intenção puramente boa), que essa natureza primeiramente boa foi corrompida para o mal, de forma que não haveria uma pura malignidade inata (conforme desenvolveremos na terceira parte). Ao se opor à lei moral, não há simplesmente a fragilidade (o desejo sem a condição de realizá-lo) ou a impureza (necessitando de outros motivos para a determinação do arbítrio), mas a malignidade como sendo “a propensão a admitir máximas más” (HÖFFE, 2005, p. 286). É, então, na malignidade que se encontra o verdadeiro mal. Como analisa Borges As paixões parecem ser a causa da perversidade ou malignidade, enquanto os afetos seriam responsáveis pela mera fraqueza. Para Kant, tanto os afetos quanto as paixões são prejudiciais à execução das ações morais e ambos são constitutivos do mal; entretanto, os afetos são responsáveis pelo primeiro momento do mal, a fraqueza, enquanto as paixões são a causa da malignidade. Se os afetos podem levar à não execução das ações morais, isso se dá pela fraqueza. A lei moral, nesse caso, é tomada como motivo e há uma decisão pela realização da ação moral, porém, tomado por uma forte emoção, ainda que passageira, o agente falha em executar a ação pretendida. As paixões são mais perniciosas, pois elas são tomadas na máxima do agente que decide agir contrariamente à lei moral. (BORGES, 2016, p. 576). Quanto ao desdobramento dessa teoria do mal radical, ela se associa à noção do ser humano como um ser dotado de racionalidade e, por conseguinte, livre. Isto é, ele tem posse tanto da capacidade para o mal quanto da própria prática do mal. Höffe indica ainda que a tese de Kant para o mal radical é oposta as respostas oferecidas a questão do sofrimento inculpado (que um Deus onipotente e bondoso poderia e deveria impedir o sofrimento), como apresentadas por Leibniz em sua Teodicéia, e pelos epicuristas e estóicos. E sobre a noção de que o mundo progride do mau para o melhor, quando Kant diz que tal opinião é “provavelmente apenas um pressuposto benévolo dos moralistas, de Sêneca à Rousseau, para incitar ao cultivo infatigável do gérmen do bem” (RGV, 2008, 23), para Höffe “A doutrina kantiana do radicalmente mau contém 61 uma crítica clara a um pensamento utópico de tal tipo” (HÖFFE, 2005, p. 287). No entanto, não parece que a tese de Kant se opõe à crença de Rousseau na natureza boa que se corrompe, mas apenas Kant a referencia para demonstrar a morada do princípio mau ao lado do bom, visto que ele logo escreve: ... dado ser imperioso aceitar o homem por natureza (i.e., tal como ele habitualmente nasce) como são quanto ao corpo, não há causa alguma para não o aceitar igualmente como são e bom por natureza, segundo a alma. Pelo que a própria natureza nos seria propícia para em nós desenvolver esta disposição moral para o bem. (RGV, 2008, p. 23). Então, na verdade, Kant está parecido com Rousseau. E o mal surge na relação com os seres humanos. Ele não existe sozinho, mas a partir das relações que os seres humanos estabelecem uns com os outros, sendo uma decisão humana. Surge da relação social, não tendo a natureza culpa. Ainda sobre isso, Kant escreve que “o homem encontra-se nessa situação pejada de perigos por sua culpa própria” (RGV, 2008, p. 107) e, por conseqüência, segundo sua capacidade, está obrigado a se esforçar para livrar-se dela. Mas, acrescenta-se também que, conforme Höffe interpreta, a crítica de Kant atinge até a doutrina moral que coloca os aspectos maus ou negativos da existência humana como força de superação dos aspectos bons ou positivos, o pessimismo que degenera o homem no mal, visto que a origem do mal se configura na liberdade e que esta (liberdade) possibilita a superação do mal. Ora, como está na perspectiva de Kant, da luta do princípio bom com o mau pelo domínio sobre o homem, ele critica os “moralistas antigos, sobretudo os Estóicos” que procuravam para a liberdade uma independência do poder das inclinações com seu princípio moral de dignidade natural. Porém, este mal “é um inimigo, por assim dizer invisível, que se esconde por detrás da razão” (RGV, 2008, p. 65). E, enquanto esses filósofos colocavam a liberdade como independente do poder das inclinações, pois seu princípio moral é posto na dignidade da natureza humana, o erro reside na atribuição ao homem de uma vontade não corrompida que acolhe sem vacilação as leis morais nas suas máximas. Kant explica que nosso estado moral não é íntegro, pois o mal já está instalado. Devemos, portanto, começar por expulsá-lo, visto que o acolhemos em nossas máximas, e “o primeiro bem verdadeiro que o homem pode fazer é sair do mal, o qual não se deve buscar 62 nas inclinações, mas na máxima pervertida e, portanto, na própria liberdade” (RGV, 2008, p. 66). 3.3. A essência do mal radical Há quatro pontos fundamentais na primeira parte da Religião que propõem responder a essência do mal radical, fazendo apontamentos para a concepção da natureza do homem e de como o mal está inscrito nela. São eles: (1) Da disposição original para o bem na natureza humana; (2) Da propensão para o mal na natureza humana; (3) O homem é mal por natureza; e (4) Da origem do mal na natureza humana. Quanto ao primeiro ponto, a disposição original para o bem tem o significado de uma disposição inicial, que se remete ao início da história humana. Nesse início, o homem era bom, tinha uma tendência para o bem. O termo “original” refere-se ao pertencimento da possibilidade da natureza humana. E a “natureza” do homem, como escreve Kant, significa o “fundamento subjetivo do uso de sua liberdade (sob leis morais objetivas) que antecede toda a ação que cai nos sentidos” (RGV, 2008, p. 24), de forma que tal disposição para o bem é originária porque pertence à possibilidade da natureza humana. Kant escreve: “... dado ser imperioso aceitar o homem por natureza (i.e., tal como ele habitualmente nasce) como são quanto ao corpo, não há causa alguma para não o aceitar igualmente como são e bom por natureza, segundo a alma” (RGV, 2008, p. 23). Referente ao segundo ponto, está claro em Kant que o conflito entre o bem e o mal moral se inscreve no contexto da liberdade. Em seu texto Começo conjetural da história humana, ele indica que ... a história da natureza começa do bem, pois é uma obra de Deus; a história da liberdade começa do mal, pois é uma obra do homem. Para o indivíduo, que no uso de sua liberdade olha apenas para si mesmo, tal mudança foi uma perda; para a natureza, que no caso do homem direciona o seu fim à espécie, foi um ganho. Por isso o indivíduo tem motivos para atribuir a si mesmo a culpa por todos os males que o afligem e por todo mal que perpetra (MAM, 2009, p. 116-117). Dessa forma, o bem moral e o mal moral são confirmados pela liberdade, mas o último, coloca em risco a liberdade. Como a vontade é livre para determinar- 63 se, aí temos o bem como atrelado ao significado de liberdade. E o mal relacionado à liberdade ocorre no sentido de abandonar a liberdade, buscando sua satisfação imediata. Mas, como a liberdade não está no mundo empírico, não pode ser perscrutada ou conhecida teoricamente. É apenas um postulado, como fato da razão prática e no plano da realidade noumenal. Portanto, temos na proposição de Kant Da propensão para o mal na natureza humana, o esclarecimento de que essa propensão resulta da liberdade, sendo uma propensão moral, não por resultado sensível, considerando que aquilo que é moralmente mau refere-se à ação humana, podendo assim ser visto como algo que deve ser imputável ao homem, de sua responsabilidade. Propensão, então, diz respeito ao fundamento subjetivo da possibilidade de se apartar das máximas da lei moral, algo cuja plausibilidade deve estar necessariamente no livre arbítrio. E é nesse sentido que a propensão ao mal já se configura como o mal. Não o mal em seu sentido lato, mas o mal na possibilidade de desviar-se da lei moral, o que ocorre na admissão pelo livre arbítrio, nesse caso, como procedendo da liberdade. Como na Religião, a natureza está referindo-se ao “fundamento subjetivo do uso da sua liberdade em geral (sob leis morais objetivas), que precede todo o fato que se apresenta aos sentidos, onde quer que tal fundamento resida” (RGV, 2008, p. 24), e, conseqüentemente tal fundamento subjetivo seja sempre um ato da liberdade, “uso ou abuso do arbítrio”, pois do contrário não se poderia falar em termos de moralidade ou responsabilidade do homem, tendo assim o conceito de natureza uma aplicação ampla para o gênero humano, o mal é entendido como uma realidade universal. De forma que o mal é intrínseco à natureza humana, está arraigado nela como essencial, não podendo, portanto, ser erradicada. Num adendo à sua teoria do mal radical, Kant utiliza a expressão bíblica de Paulo (Romanos 3:23), ressaltando o fato de que “todos pecamos em Adão”, acrescentando que “ainda pecamos” (RGV, 2008, p. 50) para demonstrar o fato de que, enquanto no primeiro homem não se pressupõe a inclinação inata para a transgressão, o que se denomina inocência, nos demais homens a inclinação inata está posta. Se, no primeiro homem, a transgressão recebe o nome de queda, nos demais ela é resultado da malignidade inata na natureza. Mas, Kant esclarece que para tentar explicar o mal segundo o seu começo temporal, se faria necessário retroceder em cada transgressão premeditada até o tempo em que o uso da razão 64 não estava desenvolvido, perseguindo a fonte do mal até se chegar a uma propensão inata, “o que no primeiro homem, representado já com a plena capacidade do seu uso da razão, não é necessário, nem sequer exequível” (RGV, 2008, p. 51). Isto devido ao fato de que, se a propensão má fosse praticável no primeiro homem, ela deveria ter sido criada. Mas, nesse caso, este primeiro pecado é apresentado como suscitado a partir da inocência. Não obstante, Kant lembra ainda que não se deve buscar origem temporal de uma qualidade moral imputada a nós, quando queremos explicar a sua existência contingente. Foi a vista disso, e em consonância com nossa fraqueza, que a Escritura representou dessa forma. Quanto ao termo radical, ele teria o significado de limitatio devido a condição finita original do ser humano. Mas, o mal não é apenas a ausência do bem, como visto em Leibniz (Discurso de Metafísica) e Agostinho (Confissões), com seu caráter puramente negativo, mas ele deve ser pensado como resistência ao bem, tendo como fonte dessa positividade (mal positivo, como na nota sobre o bem e o mal comparado ao prazer e a dor) a própria vontade do homem, daí, atrelada à sua liberdade. Ao tratar do tema O homem é mau por natureza, Kant procura esclarecer seu entendimento desse aspecto da seguinte forma: o homem tem consciência da lei moral, porém acolhe na máxima não respeitá-la. E essa inclinação considerada como moralmente má, justamente pela escolha, pode ser imputada a ele, pois são máximas do arbítrio contrárias a lei. É esta inclinação natural para o mal que, também devido ser sempre auto culpada, pode ser denominada de mal radical inato na natureza humana. Mas, de novo, não se deve confundir essa asserção com o caráter do que é maligno, o mal pelo mal. Nesse caso, temos a perversão do coração, pois o mal radical sendo universal, faz parte da natureza humana, no entanto,em conformidade com sua limitação, visto que da mesma forma, a disposição originária para o bem não foi extinta. Ora, a perversão do coração pode ser superada porque “por um lado, ele define a disposição para o bem como originária [ursprüngliche], portanto, mais característica do homem; por outro, ele admite que o homem só é propenso ao mal e não é diabólico, isto é, não toma a própria oposição à lei como móbil” (SPINELLI, 2013, p. 134). Esse mal radical, então, pode assim, ser explicado: De um lado, o homem tem uma disposição para o bem, em consonância com a lei moral, e do outro, uma propensão para o mal, em 65 oposição à lei moral. O mal radical, então, se efetiva na ação decorrente da escolha pelo lado da propensão. Ademais, como Kant não aceita o mal fundamentado numa sensibilidade animal, nem em uma vontade diabólica, o mal radical, ou a propensão para o mal, se situa entre ambas. Referente ao tema Da origem do mal na natureza humana, Kant mostra que, independente da forma com que a origem do mal moral na natureza humana seja estabelecida, o modo mais inconveniente seria o de representar sua chegada a nós partindo dos primeiros pais por herança, pois a sua origem está no arbítrio, mesmo no primeiro homem. Seja qual fosse o seu comportamento anterior ou as causas naturais que tiveram influência sobre ele, a sua ação foi livre, ocasionada pelo arbítrio, “pois, por nenhuma causa no mundo pode deixar de ser um ser livremente operante” (RGV, 2008, p. 48). Borges explica que O mal é radical, pois deve-se buscar sua origem no próprio arbítrio humano, estando como que enraizado na própria vontade livre e consistindo num fundamento subjetivo de afastamento das máximas em relação à moralidade. Esse mal pode coexistir como uma boa vontade. A vontade diabólica, ao contrário, tem como móbil o mal enquanto mal (BORGES, 2016, p. 577). Dessa forma, o mal radical, já não confuso com os conceito de instintos maus ou de uma vontade diabólica, consiste na essência da natureza humana que tem uma vontade livre capaz de escolher distanciar-se daquilo que a lei moral promulga. 66 67 4. UMA VONTADE PURAMENTE DIABÓLICA Considerando que, conforme Kant, não existe uma maldade inata no ser humano, de maneira que não há como afirmar pela experiência que o autor de certos atos maus seja um mau homem, possuindo uma máxima má como fundamento que o direciona ao princípio geral de máximas más intrínsecas ao sujeito; considerando que a inclinação para adotar as máximas más não estabelece a ideia de uma pura malignidade, pois essa inclinação é a concupiscentia ou “desejo habitual”, essencialmente o seu conceito de propensão como “fundamento subjetivo da possibilidade de uma inclinação” (RGV, 2008, p. 34), sendo contingente para a humanidade em geral; considerando ainda que tal possibilidade de uma vontade puramente diabólica no homem o faria decidir-se racionalmente a buscar o mal pelo mal, a fim de nortear a busca por uma compreensão da noção kantiana para a não possibilidade de uma pura maldade na natureza humana, como sendo um quarto nível para o mal, analisaremos ainda três aspectos dessa questão que podem ser observados empiricamente e que, de forma habitual e em linguagem comum, se inserem nos termos dos vícios, da crueldade e da força maligna, e veremos como os conceitos de liberdade, intenção, racionalidade e sensibilidade podem ajudar nesse tema. 4.1. Vícios, crueldade ou força maligna A maldade no mundo pode ser observada sob vários aspectos, dentre os quais, podemos indicar os concernentes aos vícios, aqueles que nos chocam como a crueldade, e as ações manifestas com certa aparência de força maligna sobrenatural ou, como algumas religiões costumam nomear, “possessão demoníaca”. No que concerne aos vícios, que neste caso se diria “incontroláveis” por se adequar à noção de defeito, imperfeição ou deformação cuja alteração funcional traria conseqüências ruins, seria um mal ligado a possibilidade de sua execução como resultado da experimentação e repetição excessiva. Seria o mal que ocasiona tipos de dependência. Como exemplos, podemos elencar o consumo excessivo de drogas, bebidas alcoólicas, internet e pornografia, dentre outros. Tais situações ocasionam prejuízos extremos que comprometem a condição mental e acarretam a 68 deterioração do corpo, trazendo dificuldades, dor e sofrimento não só para os próprios usuários ou dependentes desses vícios, mas também para aqueles que os circundam, como familiares e amigos. Na assertiva de Kant, quando escreve sobre as três classes de disposição originária para o bem na natureza humana, para a disposição animalidade ele alega que nela podem inserir-se vícios que podem ser chamados da brutalidade da natureza e, quando estão em seu desvio intenso, vícios bestiais. Os exemplos elencados são os vícios da gula, da luxúria e da selvagem ausência da lei (na relação a outros homens). Como já observamos, Kant amplia essa ideia de propensão para o mal chamando tais vícios de inclinação ou “concupiscentia” que incide na paixão, a qual exclui o autodomínio. É nesta observação que está o exemplo da propensão para coisas inebriantes: Uma vez que muitos homens não conhecem a embriaguez, eles não têm esse apetite, mas basta provar uma vez a bebida alcoólica que neles se produz um apetite que dificilmente poderá ser extirpado. Assim, os vícios estariam como uma inclinação possível que poderia ser alimentada pelo ato. É a evidência da probabilidade de se aumentar certo desejo habitual por uma experiência que foi desfrutada pela primeira vez. Conforme interpreta Stroud Tal inclinação para uma atividade específica não está inicialmente presente na sua forma plena, mas somente em potencial, no ser humano. Dada a experiência certa que irá nutrir essa propensão, a inclinação em foco começa a ficar cada vez mais forte, no sentido de desejar ainda mais a atividade e a força a ser despendida para resistir a tal ímpeto. (STROUD, 2004, p. 26). Assim, temos um primeiro aspecto do mal no mundo. E, diante dele, vale ressaltar que sua responsabilidade não é da própria inclinação, mas o homem livremente escolhe incorporá-lo em sua máxima (princípio subjetivo da vontade, neste caso a inclinação). É nesse sentido que o homem se torna mau. Ele poderá desenvolver a propensão, aumentando ou não sua capacidade de adotar a lei moral como principal incentivador para suas máximas, tendo assim um bom ou mau coração. Conforme Kant diz, “pode acrescentar-se ainda que a capacidade ou a incapacidade do arbítrio para acolher ou não a lei moral na sua máxima - capacidade ou incapacidade que brota da propensão natural - se denomina bom ou mau coração” (RGV, 2008, p. 35). 69 Quanto à crueldade, ou como se coloca seu significado, o prazer em realizar o mal, é possível percebermos ações que se mostram com essa qualificação. No entanto, é preciso em tais situações uma análise cuidadosa para depreender delas se as ações de fato caracterizam-se pela condição de crueldade, se esta categoria da maldade realmente se apresenta como legítima. Arendt, em seu livro Eichmann em Jerusalém, procura identificar, a partir de uma situação específica, como se caracteriza a condição humana para os atos de crueldade. Partindo de sua observação e análise do julgamento de Adolph Eichmann, bem como de sua indagação da dimensão do mal radical, vemos que ela entende que as ações de crueldade ali avaliadas não se amparariam num mal oriundo de uma vontade diabólica, ou de um puro desejo pela realização do mal, mas “esse mal radical surgiu em relação a um sistema no qual todos os homens se tornaram igualmente supérfluos” (ARENDT, 1989, p. 510). Quer dizer, o mal foi proveniente de certa fraqueza decorrente das falhas de pensamento e julgamento. Na última parte desta pesquisa, questão contemporânea sobre o mal, delineamos esse tema, ou seja, a perspectiva desse tipo de mal em Hannah Arendt. Mas, concernente à resposta que a pensadora alemã apresenta, no caso específico analisado, essa possibilidade de resposta à versão de crueldade indicada, também destoa da perspectiva de Kant, pois nele tal maldade é posta duma forma que atrela à condição de maldade os chamados vícios diabólicos que podem surgir da segunda disposição para o bem que ele indicou, a saber, a humanidade. Kant supõe que o mal se junta à essa disposição, que se refere ao amor de si, e a perverte fazendo um mau uso dela, pois as inclinações são procedentes desse amor de si. Aqui, a saber, na inveja e na rivalidade podem implantar-se os maiores vícios de hostilidades secretas ou abertas contra todos os que para nós consideramos estranhos, vícios que no entanto não despontam por si mesmos da natureza como de sua raiz, mas, na competição apreensiva de outros em vista de uma superioridade que nos é odiosa, são inclinações para alguém, por mor da segurança, a si mesmo a proporcionar sobre outros, como meio de precaução: já que a natureza só queria utilizar a ideia de semelhante emulação (que em si não exclui o amor recíproco) como móbil para a cultura. Os vícios que se enxertam nesta propensão podem, pois, denominar- se também vícios da cultura; e no mais alto grau da sua malignidade (pois então são simplesmente a ideia de um máximo de mal, que ultrapassa a humanidade), por exemplo, na inveja, na ingratidão, na alegria malvada, etc., chamam-se vícios diabólicos. (RGV, p. 32-33). 70 Mas, ainda que se chamem vícios diabólicos, é preciso estar atento ao significado dessa expressão, pois, em Kant, o mal pelo mal, ou o fundamento das ações morais na sensibilidade, não pode ser aplicado ao homem tornando-o bestial, e muito menos essa concepção duma razão maligna a qual se oporia à lei moral como motivo em sua máxima. Como vimos, para Kant, a falha humana ocorre por fraqueza, por impureza ou por malignidade (inversão da ordem moral concernente aos motivos do livre arbítrio), mas nunca ocorre por uma pura maldade. Nesse sentido, ele também escreve que a malignidade da natureza humana não deve chamar-se maldade “se esta palavra se toma em sentido estrito, a saber, como uma disposição de ânimo (princípio subjetivo das máximas) de admitir como móbil o mal enquanto mal na própria máxima (pois ela é diabólica)” (RGV, 2008, p. 44). Em conformidade com a expressão de Kant de que os vícios da cultura podem enxertar-se nessa propensão e ocorrer no mais alto grau da sua malignidade, a crueldade poderia encaixar-se no nível da malignidade, no mal radical em um alto grau, como na ideia desse máximo de mal que ultrapassa a humanidade. E, como alegria malvada, na medida em que o indivíduo sente prazer em sua ação cruel, ele não estaria desejando o mal pelo mal, mas por prazer. Caso ele não sentisse prazer não agiria de forma perversa. Nesse sentido, a crueldade não estaria no conceito de uma vontade diabólica, apenas elevando sua máxima acima da lei moral. A pura maldade também poderia estar ligada às manifestações de ações que parecem ter por trás certa força maligna sobrenatural, como a chamada possessão demoníaca, em que a pessoa estaria possuída ou dominada por uma força ou espírito maligno, que as crenças cristãs remetem às religiões de transe ou de possessão, como os espíritos das trevas situados no escalão mais baixo da evolução espiritual (PIERUCCI, 2005). Mas, o controle de um indivíduo por um ser sobrenatural, tanto para o bem quanto para o mal, colocaria as ações humanas justificadas neste controle, o que entra em conflito com o conceito kantiano fundamental da liberdade, e no desdobramento da temática do mal que postula as duas condições originárias da natureza humana: a disposição para o bem e a propensão para o mal. Ao tratar, na Religião, sobre o direito do princípio mau ao domínio sobre o homem, e da luta de ambos os princípios entre si, em sua observação geral no final 71 do capítulo, Kant introduz a discussão dos milagres que se julgam necessários para validar determinada religião, identificando-os como milagres teísticos (ou divinos) e milagres daimônicos (ou demoníacos), a fim de demonstrar que os milagres demoníacos seriam os mais incompatíveis com o uso da nossa razão, pois os teísticos teriam um critério negativo para seu uso (de serem concebidos como ordenação divina mesmo se opondo à moralidade), mas os demoníacos não teriam esse critério (se incitassem uma ação boa não poderia ser de um espírito mau, mas o mesmo poderia enganar dissimulando-se em anjo de luz). Dessa forma, Kant conclui que os milagres não podem ser contados no uso da razão, justificando a não possibilidade desse controle diabólico. Um exemplo objetivo dado é o de um juiz que (embora creia nos milagres da igreja) não considera a alegação de um delinqüente sobre as tentações diabólicas sofridas. 4.2. Um quarto degrau para o mal Acerca da vontade diabólica, de uma razão maligna, há passagens da Religião em que Kant argumenta em favor da não existência desse quarto degrau de mal na natureza humana. Ele advoga que no ser humano não deve existir essa vontade absolutamente má, pois a mesma excluiria a vontade boa, deixando o homem na condição de um ser diabólico, pois seria uma razão liberta da lei moral, e a oposição à própria lei seria erguida como motivo ou causa “já que sem qualquer motivo impulsor não se pode determinar o arbítrio” (RGV, 2008, p. 42). Assim, o homem pode ser mau diante da moralidade ao não agir de forma eficiente para com ela, por fragilidade, conhecendo os princípios que deve seguir mas sem encontrar forças para adotá-los, por impureza, tendo suas motivações confusas, maculadas e contrárias aos princípios que a lei moral estabelece, e por malignidade, em que o coração humano corrompido se afeiçoa de máximas que desprezam o motivo derivado da própria lei moral, aderindo aos motivos não morais e cujo máximo de mal são exemplificados por Kant na inveja, ingratidão e alegria malvada. No entanto, o homem não pode ser mau no sentido de possuir uma razão maligna. Kant escreve: ... uma razão que liberta da lei moral, uma razão de certo modo maligna (uma vontade absolutamente má), contém demasiado, porque assim a oposição à própria lei se elevaria a móbil (já que sem qualquer motivo impulsor se não pode determinar o arbítrio) e, por 72 isso, se faria do sujeito um ser diabólico. – Mas nenhuma das duas coisas é aplicável ao homem (RGV, 2008, p. 42). Assim, como assegurado nessa assertiva, não é possível estabelecer certamente, tendo como base a experiência, que alguém que pratique o mal seja um mau homem em termos absolutos, pois dessa forma seria necessária uma máxima má como fundamento, levando à um princípio geral de máximas más inerentes ao sujeito. Antes, Kant havia exposto: Assim pois, para chamar mau a um homem, haveria que poder inferir-se de algumas acções conscientemente más, e inclusive de uma só, a priori uma máxima má subjacente, e desta um fundamento, universalmente presente no sujeito, de todas as máximas particulares moralmente más, fundamento esse que, por seu turno, é também uma máxima. (RGV, 2008, p. 24). Em sua obra A Paz Perpétua, escrita em 1795, Kant explicou que a maldade da natureza humana pode ser vista às claras na livre relação dos povos, sendo que no Estado legal-civil ela é ocultada através da coação do governo. Em uma nota da mesma obra, disse que é possível “duvidar de uma certa maldade radicada na natureza dos homens que convivem num Estado” (ZeF, 2008, p. 40), e, ao contrário, conduzir a explicação daquela maldade, ainda que de forma aparente, à carência de uma cultura que não se desenvolveu de forma suficiente (uma cultura bárbara) e com isso pode se manifestar de uma forma contrária ao direito. No entanto, nas relações externas dos Estados entre si, tal maldade é manifesta de modo patente e incontestável. Mas, este seria mais um exemplo da malignidade, ou do mal radical que “corrompe o fundamento de todas as máximas” (RGV, 2008, p. 44) que naturalmente não é exterminado pelas forças humanas, mas que não se constitui um mal diabólico ou uma razão maligna. Ainda se poderia falar no termo teológico de pecado original que, segundo Kant, tal doutrina é interpretada como o mal radical em nós, cuja tendência é a de nos impelir ao desvio da lei moral que é um fato da razão (a lei moral como mostrada na sua Crítica da Razão Prática). Mas, dessa inclinação para o mal, o homem poderia ser liberto usando sua liberdade para vencer essa inclinação básica, através de uma revolução na forma de pensar. Dessa forma, para vencer este mal radical, o homem se colocaria perseverante para adequar sua conduta de vida com a santidade da lei, tendo a religião como um referente de modelo da perfeição moral. 73 Ademais, sendo o bem fundamental para a conformação com a liberdade, a existência de um princípio contrário a ele, que tivesse êxito em extinguir essa relação entre bem e liberdade, indicaria a própria extinção da liberdade. Partindo desse pressuposto, temos em Kant a eliminação dessa hipótese a qual põe o mal como originário ou partindo de uma corrupção da razão legisladora, e que alçaria a oposição à lei moral para uma categoria de móbil supremo, fazendo do homem um ser diabólico. Há uma crítica importante à Kant sobre esse tema do mal que Schopenhauer faz, a partir da sua fundamentação da moral, que visa estar em sintonia com sua base para a ética. Antes de mostrar onde se encontra a explicação para a maldade humana, Schopenhauer diz que não está sugerindo, mas provando a única motivação moral genuína e possível. Para tal, ele estabelece as premissas, em número de nove (as duas últimas como explicações): (1) nenhuma ação pode acontecer sem motivo suficiente; (2) esse motivo suficiente pode não se efetuar se um contramotivo mais forte ocorrer; (3) todo motivo se refere ao bem-estar e ao mal- estar (ou contra ou a favor da vontade); (4) toda ação refere-se a um ser capaz de adotar o bem-estar ou mal-estar como seu fim último; (5) como a ação acontece para o dano ou proveito do agente (ou de um outro ser), ele (o agente ou o outro ser) participam da ação passivamente; (6) a ação cujo objetivo é o bem-estar ou o mal-estar do próprio agente é uma ação egoísta; (7) todas as premissas anteriores valem igualmente para as omissões de tais ações, para as quais existem motivos e contramotivos; (8) consequentemente, egoísmo e valor moral são auto excludentes; (9) o significado moral de uma ação só existe na relação com outros. É preciso uma referência aos outros para haver valor (ou condenação) moral, numa ação de justiça e caridade ou o posto de ambas. Na explicação de Schopenhauer, sobre o fato das ações serem egoístas, isso ocorre porque no fundamento delas há um motivo interessado. Como exemplos têm- se os casos de ações efetuadas para proveito próprio e vantagens, ações em que se espera honra, respeito, fama entre as pessoas, ou algum êxito distante para si neste mundo ou num outro. Também há um motivo interessado no caso de ações que visam obedecer um mandamento absoluto provindo de um poder superior desconhecido. Tal obediência ocorre pelo temor das conseqüências de se 74 desobedecer. De forma que, ações egoístas não têm valor moral. Schopenhauer entende que só há um caso em que o valor moral pode ser impresso na ação. ... quando a última razão para uma ação ou omissão está direta e exclusivamente vinculada ao bem-estar ou mal-estar de alguma outra pessoa que dela participa passivamente. Portanto, a parte ativa no seu agir ou omitir só tem diante dos olhos o bem-estar ou mal-estar de um outro e nada almeja a não ser que aquele outro permaneça são e salvo ou receba ajuda, assistência e alívio. Somente esta finalidade imprime numa ação o selo do valor moral, que, portanto, repousa exclusivamente no fato de que a ação aconteça ou não aconteça para proveito e contentamento de um outro. (SCHOPENHAUER, 2001, p. 135). Ou seja, a única motivação moral admitida é a compaixão, visto que tal se dá como participação no sofrimento de um outro, impedindo ou suprimindo este sofrimento. Para ele, “Esta compaixão sozinha é a base efetiva de toda a justiça livre e de toda a caridade genuína. Somente quando uma ação dela surgiu é que tem valor moral” (SCHOPENHAUER, 2001, p. 136). É a partir desse contexto apresentado para a única fonte das ações dotadas de valor moral, que Schopenhauer vai apresentar o que antagoniza essa motivação, a saber, a maldade. Enquanto a compaixão visa o prazer ou contentamento alheio, a maldade tem como seu fim último a dor alheia. Portanto, diante do argumento apresentado para as motivações fundamentais das ações humanas, Schopenhauer as sintetiza em três: egoísmo, maldade e compaixão. O egoísmo, uma vez que quer o seu próprio bem, e é ilimitado; a maldade, posto que quer o mal alheio, chegando até a mais extrema crueldade; e a compaixão, que visa sempre o bem-estar alheio, chegando até a nobreza moral e a generosidade. Percebe-se que, no caso da maldade, para Schopenhauer ela pode ser estendida, ou elevada até o nível das ações cruéis, impiedosas e que em sua desumanidade representa a frieza de espírito. Numa crítica a Kant pelo tratamento que deu à mentira, mas sem apresentar nenhum fundamento para sua condenação, Schopenhauer aponta a alegria maligna como tendo essa origem diabólica. Para ele “É esta [a alegria maligna], e não a mentira, o vício propriamente diabólico, pois ela é o oposto exato da compaixão e não é senão a crueldade impotente, grata ao acaso que fez por ela o sofrimento que ela, com tanto gosto, observa e que foi incapaz de causar”. (SCHOPENHAUER, 2001, p. 158). 75 Mas, em Kant, até aqui, a partir de qualquer via, seja pelos vícios, pela crueldade, pela ação demoníaca, pela maldade humana na relação dos povos, pelo conceito de mal radical ou pecado original, uma pura malignidade, uma vontade diabólica ou a realização do mal como inversão absoluta da máxima moral (ao invés de haver a lei moral para o bem, no lugar dela haveria esse fundamento para o mal), é algo que não existe no homem, sendo impossível aos seres racionais possuir esta vontade puramente diabólica. No entanto, haveria mais para ser colocado em relação a como ou porque essa vontade diabólica se configura impossível? 4.3. Por que este mal não seria possível? Ora, de um lado temos a admissão de uma propensão para o mal na natureza humana, assegurando a maldade por uma corrupção do coração; e, de outro lado, é negado a malignidade na natureza humana consistindo em ter o mal como causa para a máxima. Conforme Pinheiro escreve, Kant “se nega, porque se a maldade fosse concebida como uma disposição da natureza humana, o homem perderia em sua origem a sua conotação de divino convertendo-se em diabólico; teria a sua origem não propriamente em Deus (no bem), mas no diabo (no mal)” (PINHEIRO, 2007, p. 43). Em suma: a vontade boa do homem é excluída se o coração dele for portador de uma pura maldade inata, o fazendo ser diabólico. Mas, mesmo assim, o mal radical é encontrado no homem, deixando-o frágil (pois não tem força para observar os princípios adotados) e impuro (por confundir as causas oriundas das inclinações da lei moral que deve ser tomada como móbil suficiente) diante da moralidade. A lei moral, portanto, é um elemento que não pode ser excluído dessa proposição, e o mal radical, nos termos propostos, é deduzido da afirmação dessa lei. Sendo a lei moral um dever incondicional diante das ações humanas, o mal diabólico não se encaixa nessa tese. É também nesse sentido que uma vontade diabólica, tendo como fundamento a razão, não se encaixa na análise de ações morais, uma vez que a escolha estaria amparada numa razão que exigiria ações voltadas para o mal. Mas, outras sugestões poderiam ser colocadas nessa abordagem para o mal, em que um ser totalmente mal, sem nenhuma prerrogativa de bondade não poderia existir. 76 Algumas indicações postas, como a relação entre liberdade e intenção (Gesinnung), a concepção da racionalidade e mesmo da sensibilidade humana poderiam ser desenvolvidas. 4.3.1. Liberdade e intenção (Gesinnung) No primeiro capítulo, subtópico 3, mostramos que em Kant a liberdade é um elemento essencial de relação com a lei prática incondicionada. Ou seja, é necessário haver uma vontade livre que não tenha dependência numa base de experiência. Conforme apresenta Vaysse (2012), no Vocabulário de Immanuel Kant, na filosofia de Kant a distinção do conceito de liberdade se dá entre a liberdade transcendental (causalidade pensada absolutamente) e a liberdade prática, que é a autonomia da vontade. Tomando como referência a antinomia da razão no que concerne a liberdade e tendo o exemplo de uma ação má que compreende a prática da mentira, poderíamos substituir o exemplo da mentira pelo próprio mal (numa paráfrase de Vaysse sobre o verbete liberdade): poderíamos considerar o mal por dois pontos de vista, o empírico e o inteligível. Do ponto de vista empírico, uma ação má seria um efeito determinado por uma série de causas anteriores que remetem a uma causalidade que desculpa; mas, do ponto de vista inteligível, a ação má será considerada decorrente de um sujeito livre que, por seu ato, inaugura uma série de consequências que ele poderia prever, remetendo a uma causalidade que acusa. Vaysse conclui: “A liberdade prática é, então, a liberdade efetiva própria do homem enquanto ser racional dotado de um caráter inteligível e capaz de fornecer a si próprio a lei de seu agir” (VAYSSE, 2012, p. 47). Então, em sintonia com essa interpretação, não há espaço para a ideia do homem como um ser diabólico, pois o mal embora não proceda da animalidade, tampouco faz do homem um ser diabólico que procura o mal pelo mal. O fundamento do mal reside na tendência a enganar a si próprio por mentiras na interpretação da lei moral. Por isso a mentira é o paradigma do mal, pois há nela uma negação do imperativo categórico que consiste em simular a submissão a este último (VAYSSE, 2012, p. 48). 77 Essa negação do imperativo categórico, que ocorre pelo arbítrio, também acontece por uma disposição de ânimo, ou, intenção (Gesinnung). Considerando que o homem não possui uma intenção que automaticamente se realiza no bem, mas apenas tem disposição para tal (a disposição originária para o bem na natureza humana), e que o mal radical está à espreita, a sua intenção para a realização de algo é que determinará o acolhimento da disposição (para o bem) ou da propensão (para o mal), e é a partir desse resultado que se aplica as expressões boa ou má intenção. Para superar o mal radical, a intenção é que se mostra determinante, não apenas a melhora dos costumes ou a disciplina das inclinações (HÖFFE, 2005). Discutindo sobre o tema da propensão universal para o mal, e a confusão que pode surgir das diferentes noções de disposição e propensão ao mal, Muchnik (2010) mostra que há distinção entre ambas. A intenção indica a visão moral fundamental de um agente individual, enquanto que a propensão refere-se ao caráter moral imputável a toda a espécie humana. Essa distinção também auxilia na justificativa de um caráter a priori (necessário e universal) da atribuição de uma propensão ao mal nos seres humanos, e implica no reflexo da liberdade sobre si mesma, ao mostrar como o agente usará sua liberdade nas decisões, o que implica sua condição de ser imputável. A constituição do caráter moral do indivíduo se dá na escolha da regra que ele preferirá. É aqui que se insere a noção de intenção como o princípio subjetivo do agente na adoção das máximas. O Gesinnung de um agente é bom ou mau de acordo com o princípio da seleção da máxima que ele escolheu, ou seja, de acordo com a tendência deliberativa fundamental expressa em sua máxima de segunda ordem (MUCHNIK, 2010, p. 119, tradução nossa) 2. Essa noção, no sentido em que está posta, vai coincidir como o que Kant chamou de vontade boa ou má, e tal conceito indica que um Gesinnung maligno não se torna problemático para Kant, pois ele vai introduzir os termos da justificação das máximas e da constituição moral dos agentes. Isso já se torna claro no uso do adjetivo “radical”, que Kant expressa, não o grau de imoralidade ou a intensidade dos danos causados pelas ações dum agente, mas a localização da fonte ao nível da intenção (Gesinnung) do indivíduo, que seria a raiz invisível do mal. A intenção, 2Texto original: “An agent’s Gesinnung is good or evil according to the principle of maxim-selection she has chosen, i.e. according to the fundamental deliberative tendency expressed in her second- order maxim”. 78 portanto, ocorre como propósito do agente, como disposição ou pretensão de realizar algo, estando diante dos dois princípios (bom ou mau). Vemos, portanto, que essa distinção entre intenção e propensão vai mostrar o sentido da imputabilidade da espécie humana, firmada na liberdade, pois a propensão universal ao mal é parte da composição da espécie humana e revela o obstáculo subjetivo fundamental que o ser humano enfrenta ao longo de seu desenvolvimento moral. Conforme Muchnik aponta, “Na racionalização de Adão, nós reconhecemos a nós mesmos” (2010, p. 123), pois na Religião vemos a síntese kantiana da origem do mal: A Lei Moral estava posta. Mas, em vez de segui-la simplesmente (como móbil suficiente), o homem buscou outros motivos (que só podem ser bons condicionalmente), e pela liberdade usou como máxima seguir a lei do dever não por dever, mas em vista de outros propósitos. Este seria o segundo degrau do mal na natureza humana, a saber, a impureza, visto que nela a máxima é boa estando em conformidade com o intento da lei, mas não é puramente moral, pois o homem usa outros motivos para determinar seus atos. Como Kant afirma: “... acções conformes ao dever não são feitas puramente por dever” (RGV, 2008, p. 36). Dessa forma, colocou em dúvida o rigor do mandamento independente de outro motivo e sua obediência ficou condicionada (pelo princípio do amor de si, de um meio). A partir daí, acolheu na máxima da ação os impulsos sensíveis acima do móbil derivado da lei, e, como resultado, cometeu pecado. E nesse sentido, Kant recorre a expressão bíblica: “Todos pecamos em Adão” (RGV, 2008, p. 50). 4.3.2. Razão e patologia Concernente a asserção de que a razão prática é determinada sem os móbeis da sensibilidade, sem dados que antecedem a razão, mas somente pela consciência da lei moral, e de que se acresce a esse dado o mal radical na natureza humana, conquanto seja inclinado a negligenciar tal comando moral em suas ações por vias que se colocam na condição de móbiles sensíveis do arbítrio, ainda poderíamos questionar: haveria abertura para inferir alguma situação particular em que a sensibilidade se evidenciasse na composição do mal? 79 Na Crítica da razão prática, ao introduzir o conceito de causalidade, cuja justificativa está na Crítica da razão pura, apesar de não poder ter apresentação empírica concernente ao conceito de liberdade, ele coloca que ... se nós podemos agora encontrar fundamentos para provar que essa propriedade pertence de fato à vontade humana (e assim também à vontade de todos os seres racionais), então com isso será exposto não apenas que a razão pura pode ser prática, mas que só ela, e não a razão restringida empiricamente, é incondicionalmente prática. (KpV, 2016, p. 29). Aqui, se insere uma expressão que perpassa boa parte do texto subsequente: “e assim também à vontade de todos os seres racionais”. Que quer dizer Kant com seres racionais? Na Fundamentação da metafísica dos costumes, ao colocar o dever como necessidade prática-incondicionada da ação, Kant disse que ele deveria valer para todos os seres racionais, e como seres racionais entende “os únicos aos quais se pode aplicar sempre um imperativo” (GMS, 2007, p. 64). Por conseguinte, ele explica Tudo o que, pelo contrário, derive da disposição natural particular da humanidade, de certos sentimentos e tendências, mesmo até, se possível, duma propensão especial que seja própria da razão humana e não tenha que valer necessariamente para a vontade de todo o ser racional, tudo isso pode na verdade dar lugar para nós a uma máxima, mas não a uma lei; pode dar-nos um princípio subjetivo segundo o qual poderemos agir por queda ou tendência, mas não um princípio objetivo que nos mande agir mesmo a despeito de todas as nossas tendências, inclinações e disposições naturais (GMS, 2007, p. 64). Ou seja, caso a justificativa de certos atos se apóie em sentimentos e tendências, devemos conceber esse apoio numa máxima (princípio subjetivo do querer), não em uma lei. Portanto, não na razão prática que contém a lei moral. Por conseguinte, as proposições que determinam a vontade, se configuram objetivas quando tem validade para a vontade de todo ser racional, mas são subjetivas se a condição for considerada apenas para uma vontade particular. Assim, ele explica Princípios práticos são proposições que contêm uma determinação geral da vontade, determinação que compreende sob si várias regras práticas. Elas são subjetivas, ou máximas, se a condição é considerada pelo sujeito como válida apenas para a sua vontade; 80 mas são objetivas, ou leis práticas, se a condição é reconhecida como objetiva, isto é, como válida para a vontade de todo ser racional (KpV, 2016, p. 33, 34). Vemos, então, esse dado que persiste: “válida para a vontade de todo ser racional”, na medida em que um ser irracional se configuraria como afetado patologicamente em sua vontade sem discernir a lei prática. Ou seja, a afetação patológica da vontade deve causar um conflito entre as máximas e as leis práticas que são reconhecidas pelo próprio ser. Sobre esse ponto, há o caso da pessoa adotar alguma máxima para sua ação, ao mesmo tempo em que discerne que tal ação não estaria conforme a lei prática, mas apenas conforme sua máxima, no entanto, pode haver o caso de alguém que adota alguma máxima para sua ação sendo afetado patologicamente em sua vontade, mas que não discerne a lei prática, apenas a máxima. De forma que, o que discerne, é um ser racional, e o que não discerne, é irracional. Sabemos que, conforme Kant demonstra, essa máxima particular não pode entrar em consonância consigo mesma em uma única máxima “enquanto regra para a vontade de todo ser racional” e, “Em uma vontade patologicamente afetada de um ser racional, pode ser encontrado um conflito opondo as máximas às leis práticas reconhecidas por ele próprio” (KpV, 2016, p. 34). E, por isso mesmo, “A regra prática é sempre um produto da razão, porque ela prescreve a ação, como meio, em vista do efeito, como propósito” (KpV, 2016, p. 35) Assim, na vontade patologicamente afetada de um ser racional, o conflito se estabelece colocando as máximas em confronto com às leis práticas que são reconhecidas pelo próprio ser. Mas, tal expressão “vontade patologicamente afetada de um ser racional”, não possibilitaria a inferência da ideia de que a adoção de uma máxima má, para uma ação má, também pode ocorrer por um ser não racional, na junção de duas condições: uma vontade afetada patologicamente em um ser irracional? Embora admitamos que, na assertiva de Kant, a vontade está diretamente ligada ao ser racional. Como Höffe escreveu A vontade não é nada de irracional, nenhuma “força obscura desde a profundidade oculta”, mas algo racional [Rationales], a razão [Vernunft] com respeito à ação. Pela vontade um ente dotado de razão como o homem distingue-se de simples entes naturais como os animais, que agem somente segundo leis dadas naturalmente, e não também segundo leis representadas. (HÖFFE, 2005, p. 188). 81 Numa crítica aos conceitos de bom e mau, Tugendhat (1996) insere na discussão o fenômeno chamado “Lack of moral sense” que é conhecido na psicopatologia. Seria uma falta de consciência moral que se encara como um fenômeno patológico em que a pessoa não quer se entender como membro do cosmos moral. Conforme ele indica, na primeira infância, quando se diz “eu não quero” o “eu quero” está fixo no fundamento de assumir para si a consciência moral. Assim, “Quem não tem senso moral não se pode envergonhar moralmente nem se indignar com outrem. Pode apenas desenvolver um comportamento instrumental para com as normas morais” (TUGENDHAT, 1996, p. 61). Ao associar isso à Freud, que denominou a consciência moral de superego (e o superego só se forma se se formar o ideal do ego: para o menino o pai é este ideal, a criança diz “quero ser assim”) Tugendhat explica que “Parece ser logicamente forçoso que somente se alguém se identifica pode dizer sim à instância punitiva, e somente então esta se pode tornar uma sanção interna” (TUGENDHAT, 1996, p. 60). Então, a identificação com aquilo que o faz ter consciência moral é o que permite a aceitação da punição como conseqüência de sua ação, havendo, portanto a possibilidade de uma não identificação a partir da ausência de senso moral. Quando esta falta de consciência moral surge na socialização, a psicopatologia a entende como, de fato, um fenômeno patológico. E, no que concerne especificamente a essa questão moral, o lack of moral sense não se concebe apenas como um acidente. Tugendhat explica, reforçando sua crítica a Kant: Compreendendo que a consciência moral é somente o resultado de um “eu quero” – naturalmente não imotivado -, superamos a posição feita por quase todas as éticas tradicionais – especialmente pela kantiana –, de que a consciência moral seria algo fixado em nossa consciência pela natureza. Foi esta suposição que levou a querer de algum modo deduzir a moral, seja da “natureza” humana, seja de um aspecto dela, como a “razão”. Considero a ideia de um tal ser-fixado um resíduo teológico. Somos na realidade mais livres, nossa autonomia vai mais longe do que é visto por tais abordagens, e veremos que esta circunstância tornará essencialmente mais complicada a questão da fundamentação de uma consciência moral em geral e de uma moral moderna em particular. O que se tem de compreender aqui, sobretudo, é que um “eu tenho de” não apoiado em um “eu quero” sempre implícito é, encarado logicamente, um absurdo (unding). (TUGENDHAT, 1996, p. 61-62). 82 O que se percebe, nessa interpretação de Tugendhat, é que a obrigação para com alguma ação (o “eu tenho de”) precisa de um apoio em um fundamento que assume para si a consciência moral (que ele chama de “eu quero”). Ou seja, no final, é preciso estar consciente da obrigação moral, não sofrer da “lack of moral sense”. Mas, a margem para tal inferência (de uma possibilidade da afetação patológica em um ser que não está em seu pleno exercício racional) pode estar em consonância com um texto da juventude de Kant, um texto pré-crítico, sobre as patologias psicológicas. É o seu Ensaio sobre as doenças da cabeça, publicado em 1764. Neste Ensaio, Kant coloca uma das peças fundamentais da sua psicologia empírica e também psicopatológica que será exposta em sua última obra Antropologia de um ponto de vista pragmático, escrita em 1798. No âmbito da psicopatologia, ele analisa no Ensaio a questão da “doença da razão”, fazendo uma analogia entre o fenômeno da loucura e o da metafísica dogmática. É uma busca por compreender fenômenos distintos da psicose patológica numa relação paralela com o excêntrico da metafísica ou religião. Na introdução ao Ensaio de Kant, Panarra explica que “... a razão humana tem uma inclinação intrínseca para um estado que se assemelha ao delírio, o qual conduz à construção de doutrinas e hipóteses metafísicas sem sustentação racional e com uma natureza delirante” (PANARRA, 2010, p. 206). Em seguida, ele resume a proposição kantiana nestes termos: A aproximação que Kant faz entre o delírio patológico e o delírio da metafísica dogmática... é um prelúdio à consideração de uma espécie de patologia da razão, que dará origem ao diagnóstico que apresenta a razão humana como contendo em si própria elementos constitutivos ilusórios e delirantes, com uma importância tão decisiva que sem o seu concurso não haveria razão no sentido mais lato, nem razão enquanto faculdade particular, no sentido mais restrito. A petição totalizadora e sistemática que caracteriza a razão entendida como faculdade restrita e que conduz ao excesso e à perda de noção dos limites tem diversos elementos em comum com o delírio da loucura (PANARRA, 2010, p. 206-207). Nesse Ensaio sobre as doenças da cabeça, Kant diferencia as enfermidades em dois tipos, colocando-as como as doenças do coração (perversão da vontade) e da faculdade do conhecimento (incapacidade de conhecer). A consciência e o 83 conhecimento do ser humano são apresentados conforme um entendimento ingênuo, que antecede a validade do aspecto transcendental. E a concepção epistemológica ingênua desse Ensaio é regulado pelo conceito de continuidade entre interior e exterior. Como explica Panarra, a perturbação dessa continuidade entre interior e exterior é manifesta na forma de descontinuidade e “é introduzida pelo mecanismo de inversão entre percepcionado e fantasiado, de acordo com a terminologia deste escrito” (PANARRA, 2010, p. 208). Mas, a razão é um componente que faz a mediação entre o interior e o exterior estabelecendo os limites das fronteiras entre a realidade e a fantasia, regendo o equilíbrio entre os dois planos. Por outro lado, as paixões são as forças primitivas que movem a vontade. E aí, se inserem dois graus dessa patologia: um mais leve, com a inversão da relação entre as paixões e a razão, em que a razão não domina a paixão (e o exemplo dado é o da soberba, pois tem um alcance mais moral que cognitivo), e um outro grau em que ocorre o fenômeno de adulteração do domínio da sensibilidade. O que provoca este último caso é uma alteração da correlação de forças entre o imaginado e o percebido (o exemplo dado é o do delírio). Kant chama esse mecanismo de inversão. “A inversão é o princípio que tem a pretensão de apresentar a lógica de desenvolvimento da perturbação do espírito, seja do desarranjo, seja de qualquer outra forma de patologia” (PANARRA, 2010, p. 209). Nesse sentido, questionamos se este conceito de inversão, em seu grau mais elevado, não poderia ser aplicado ao quarto degrau para a maldade, o mal diabólico, em que um ser estaria de tal forma afetado patologicamente pela adulteração do domínio da sensibilidade que agiria com base nessa condição? A fim de buscarmos o entendimento dessa possibilidade, conforme esse texto da juventude de Kant em que ele oferece uma lista de nomes para a designação das doenças da cabeça, vamos analisá-lo mais detalhadamente no que concerne à nomenclatura oferecida. Kant já começa seu Ensaio indicando que um formoso véu de decoro pode esconder as deficiências ocultas da cabeça e do coração que geram tipos engenhosos e espertalhões, intrujões e tolos, dando uma aparência de sensatez ou decência que bem podem dispensar o entendimento e a retidão. Dito isto, para que alguém fale sobre a razão e a virtude não é preciso que seja instruído ou bem educado, uma vez que “... todas as pessoas anseiam muito mais pelas vantagens do 84 entendimento do que pelas boas qualidades da vontade” (ENSAIO, 2010, p. 213). Para exemplificar, ele mostra que, se compararmos a estupidez e a malícia, as pessoas se pronunciarão sem hesitar um só momento em favor da última. E isso, em vista de que a malícia precisa do entendimento, enquanto que o estúpido não o tem. Em seguida, ele informa que, a exemplo dos médicos, apresentará uma lista de nomes das doenças da cabeça, numa seqüência gradual que vai desde a imbecilidade até à loucura. E, como forma de mostrar um começo gradativo para essas doenças, apresenta os graus mais leves, da idiotia à estultícia, até as mais repugnantes. Kant faz ainda uma comparação entre dois tipos dos graus leves: o obtuso e o imbecil. O obtuso (ou rude) não tem engenho, e o imbecil não tem entendimento. Daí, alguém que não seja imbecil, pode, apesar de tudo, ser um obtuso. Mas, dentre essa nomenclatura kantiana para as doenças da cabeça, vemos ambas esquematizadas da seguinte forma: os graus mais leves da patologia – que se denominam insensatez e estultícia; e os graus mais pesados – que são de dois tipos: impotência ou idiotia, e inversão ou ânimo perturbado. Neste último caso, as deficiências da inversão são ordenadas segundo três divisões: o desarranjo, o delírio e a insânia. Para os graus leves das doenças, Kant argumenta que eles são oriundos dos impulsos da natureza humana, ou das paixões em grande intensidade que se tornam as forças motrizes da vontade. Segundo ele, nessas situações “o entendimento só intervém para avaliar a soma total da satisfação de todas as inclinações, a partir das finalidades representadas, e para encontrar os meios necessários para as concretizar” (ENSAIO, 2010, p. 214). Ou seja, o entendimento não fica comprometido mas também não pode superar o poder da paixão. Ele explica da seguinte maneira: Quando... uma paixão é especialmente poderosa, então o entendimento pouco consegue contra ela; pois a pessoa enfeitiçada não deixa de ver as razões contrárias à sua inclinação preferida, só que se sente impotente para as pôr em prática. Quando esta inclinação é boa em si e, se além disso a pessoa é sensata, sucede apenas que a inclinação prevalecente trava o desfecho que parece inevitável por ter em conta as consequências nefastas, então a este estado da razão agrilhoada chama-se insensatez (ENSAIO, 2010, p. 214). 85 É dessa forma que Kant inicia sua onomástica das deficiências da cabeça, apresentando a primeira sob o nome de insensatez. Vejamos cada uma delas. 4.3.2.1. Graus mais leves da patologia Insensatez – esta é a condição de alguém que tem sua razão acorrentada e, por isso, torna-se incapaz de se ver livre do domínio da paixão. Ao descrever o estado em que se encontra o insensato, Kant diz que o mesmo pode ter juízo sobre suas ações insensatas, e por isso merecer essa designação. Quem sofre de insensatez pode ser um ótimo conselheiro para os outros, apesar de seu conselho não funcionar para ele próprio. E também, o insensato só avalia as consequências de seus atos quando sofre certos prejuízos ou quando está em idade avançada, embora a circunstância da velhice muitas vezes só retire uma loucura para colocar outra em seu lugar. Sua síntese é: “Desde que o mundo é mundo que a paixão amorosa, ou um grau elevado de ambição, transformaram muito boa gente sensata em insensata” (ENSAIO, 2010, p. 215). E no caso da “gente sensata”, em sua assertiva irônica, esta seria a condição do sábio, um ser que poderia ser procurado na lua, lugar onde talvez o ser humano careça de paixão e possua um juízo infinito. Estultícia – é o estado em que a razão se encontra invertida, sendo a paixão dominante algo odioso e repelente. Uma diferença posta entre o insensato e o estulto é que o primeiro compreende bem o alvo de sua paixão mesmo tendo sua razão aprisionada por ela, enquanto o segundo se encontra num estado tão estúpido que acredita possuir algo que deseja sem o tê-lo. A origem da estultícia está na soberba e na avareza, inclinações injustas e detestadas. Quanto ao soberbo, esse ostenta um ar de superioridade sobre os outros, desdenhando-os. E acredita ser alguém honrado quando, na verdade, está sendo vaiado. Já o avarento, sente a necessidade de possuir muitos bens e, mesmo não podendo dispensar nenhum deles, os dispensa a todos pois não consegue desfrutar deles por sua mesquinhez. Outras diferenças entre a insensatez e a estultícia são: o insensato não é sábio, mas o estulto não é inteligente. O insensato chama sobre si um escárnio divertido e inofensivo, mas o estulto merece o tormento mais satírico mesmo não o sentindo. O insensato pode se tornar sensato algum dia, mas o estulto não pode reverter sua condição. A explicação para essa última diferença é que, no caso do insensato ele 86 tem uma inclinação verdadeira e natural que, no máximo, pode aprisionar a razão, mas no estulto existe uma quimera tola que inverte os princípios de sua razão. 4.3.2.2. Graus mais pesados da patologia Diferentemente dos graus leves das doenças da cabeça, que Kant os situa nos impulsos da natureza humana chamados paixões, sendo elas as mais comuns nas relações existentes no estado civil, deficiências da cabeça que são desprezadas e escarnecidas, e “que não suprimem a sociedade civil livre” (ENSAIO, 2010, p. 216), os graus pesados das doenças da cabeça referem-se aquelas doenças que comumente são vistas com pena, que ficam sob a competência das autoridades para que se possa tomar as disposições necessárias. Como vimos, elas estariam divididas em dois tipos: impotência e inversão. Analisemos cada tipo. Impotência ou idiotia – a condição do idiota é de impotência da memória, do entendimento e das sensações. Na maior parte dos casos, é um mal incurável. Incurável porque, se já é difícil retirar a desordem do cérebro perturbado quanto mais encher de vida nova os seus órgãos que deixaram de funcionar. Os infelizes que padecem dessa fraqueza nunca podem sair da condição infantil. Inversão ou ânimo perturbado – quanto a esse tipo de deficiência, Kant já informa que há uma variedade de categorias, mas ele as ordena em três divisões: (1) desarranjo, como a inversão dos conceitos empíricos; (2) delírio, como a faculdade de julgar posta em desordem pela experiência empírica; e (3) insânia, em que a razão se inverte quanto aos juízos mais universais. Para essa classificação, ele explica Todas as demais manifestações do cérebro doente podem ser entendidas, no meu parecer, quer como graus diferentes dos estados referidos, quer como uma infeliz combinação destes males entre si, ou ainda como resultado do enxerto em paixões fortes, de maneira que as podemos subornar à classificação anterior (ENSAIO, 2010, p. 217). Buscando compreender essas manifestações do cérebro enfermo, em seus graus diferentes, que também podem ser combinados ou enxertados em paixões fortes, vejamos cada uma das divisões: 87 Quanto ao (1) Desarranjo – todas as pessoas no uso de sua psique, mesmo em seu estado mais saudável, costumam representar imagens de coisas que não se fazem presentes ou então complementar às coisas presentes imperfeitas com imagens criativas por meio de algum traço fantasioso e poético inscrito na representação sensível. Kant considera o caso da vigília e do sono, colocando ambos subordinados à mesma lei das impressões sensíveis. Na vigília, a intensidade das impressões sensíveis obscurece as difusas imagens quiméricas, e não o contrário. Por isso, os sonhos são tomados por experiências verdadeiras de coisas reais. No estado do sono as representações mais fortes da psique equivalem às sensações no estado de vigília. Se alguma quimera afetar um qualquer órgão do cérebro, de modo que a impressão que ela causar seja profunda e efetiva da forma que uma sensação é capaz de ser, temos nesse caso a fantasia tomada como uma experiência real, ainda que a pessoa seja saudável em sua razão. Se torna inútil colocar em oposição justificativas racionais diante de uma representação sensível, porque os sentidos gravam a respeito das coisas reais uma convicção superior a qualquer raciocínio, e a pessoa que estiver enfeitiçada por essa fantasia não será levada, pela via racional, a duvidar do fato colocado pela pretensa percepção. Uma pessoa perturbada nessas condições está sofrendo do desarranjo. Kant diz que quem sofre de desarranjo é alguém que sonha acordado. E quem sofre num grau mais elevado dessa inversão é um lunático. A quimera pode ser dominada ou não. Quando não, é o caso do lunático. Mas Kant conclui que, no caso do desarranjo, a mente perturbada não atacou a faculdade de entendimento, considerando que o erro reside apenas nos conceitos, “e se quisermos tomar as sensações erradas como verdadeiras, os juízos podem ser corretos e até mesmo invulgarmente racionais” (ENSAIO, 2010, p. 220). Quanto ao (2) Delírio – é o caso em que há uma perturbação do entendimento, e ele consiste no ato de produzir juízos de experiência de forma invertida. Mesmo nos juízos mais próximos da experiência, essa doença atenta contra as regras gerais do entendimento. Quem delira tem a lembrança dos objetos com a mesma certeza que qualquer pessoa com saúde, mas nesse caso ele vai interpretar o comportamento dos outros como relacionado a ele mesmo por consequência de uma ilusão. Quem ouvir o delirante terá a impressão de que a cidade toda só se ocupa dele. Os mercadores ao olharem pra ele cismam um 88 atentado, e o guarda-noturno se aproxima dele para o caçoar. Por todo lado ele só percebe conspiração em seu prejuízo. E quando um melancólico sofre do delírio, torna-se mal-humorado. Mas, também existe delírios prazerosos. E quem apaixona- se pode bajular-se ou se aborrecer atribuindo significados variados e apavorantes semelhantes ao delírio. De certa forma, um soberbo que pensa estar sendo admirado quando é objeto de escárnio, é também um delirante. E quanto à (3) Insânia – é uma perturbação da mente referente à faculdade superior de conhecimento em que a razão é posta em desordem, se perdendo de modo incoerente em juízos construídos de forma até delicada sobre conceitos gerais. É a demência ou loucura. Kant traduz essa condição explicando que em seu grau mais elevado se descrevem intuições incontáveis e agudas que se aglomeram no cérebro efervescente: “o comprimento dos mares, a decifração de certas profecias, e sabe-se lá que mistura de quebra-cabeças fúteis” (ENSAIO, 2010, p. 220). Este é o caso do indivíduo que não tem mais a capacidade de ponderar sobre à experiência. Quando ele se baseia em um grande número de juízos de experiência corretos, mas sua sensibilidade se extasia pela novidade e pelo acompanhamento de efeitos apresentados por seu espírito, deixa então de atentar na correção da articulação lógica e produz a insânia. Tal desvario pode coexistir com um grande gênio na medida em que a razão em sua condição lenta não acompanha o espírito agitado. Quadro 5 - Onomástica das deficiências da cabeça – ENSAIO GRAUS LEVES INSENSATEZ ESTULTÍCIA GRAUS PESADOS IMPOTÊNCIA OU IDIOTIA INVERSÃO OU PERTURBAÇÃO Desarranjo Delírio Insânia Fonte: KANT, Ensaio sobre as doenças da cabeça, 2010. 89 Por fim, Kant conclui mostrando ainda duas distinções entre os que têm o espírito perturbado: (1) aqueles que deduzem representações corretas a partir de representações falsas; e (2) aqueles que deduzem representações incorretas a partir de representações corretas. Os primeiros são os lunáticos, cujo entendimento, no fundo, não sofre, apenas sua psique desperta os conceitos que a faculdade de julgar se serve para comparar posteriormente. Os segundos são os delirantes e os insanos, pois o seu próprio entendimento está atacado. Sobre este segundo caso, Kant dá a seguinte opinião Não só é insensato raciocinar com eles, mas também muito nocivo (não seriam delirantes se fossem capazes de apreender estes motivos racionais). Assim dá-se às suas mentes invertidas novos motivos para produzir disparates; a contradição não os melhora, só os excita, e é indispensável que se tenha no trato com eles uma atitude impassível e benevolente, como se não se desse conta, de que há alguma coisa errada no seu entendimento (ENSAIO, 2010, p. 222). Diante disso, podemos supor alguns casos para a vontade diabólica. Primeiro, apesar de Kant localizar a estultícia entre os graus leves no seu índice onomástico das doenças da cabeça, perguntamos se essa não seria uma possibilidade de inserir o mal diabólico nessa condição, visto que, nesse caso, a razão se encontra invertida e a paixão que tem o domínio é posta como algo odioso e repelente. Além disso, o estulto acreditar possuir algo que não tem, sua origem está em inclinações injustas e detestadas como a soberba e a avareza, e ele não pode reverter sua condição, pois convive com uma fantasia ingênua que inverte os princípios de sua razão. Segundo, como Kant pontuou a respeito da inversão que as manifestações do cérebro doente também podem ser entendidas como uma infeliz combinação dos males entre si, ou também como resultado desses males enxertados em paixões fortes, perguntamos se aqui também não se insere a possibilidade duma vontade diabólica, ou seja, a combinação entre algum tipo da inversão (desarranjo, delírio ou insânia) e uma paixão forte. Como o Ensaio é um texto do período pré-crítico de Kant, a título de comparação, vemos que em sua Antropologia também há um imenso índice onomástico para as enfermidades da alma. De forma que, o estudo da loucura precisa ser comparado sistematicamente com os capítulos paralelos da Antropologia de um ponto de vista pragmático de 1798, pois em ambos os escritos há o 90 desenvolvimento de um processo de apresentação das perturbações psicopatológicas, e que são paralelos, mantendo semelhança entre ambos no que concerne à aparência mais imediata e à estrutura interna da taxonomia. (PANARRA, 2010). Na Antropologia, há um capítulo sobre as fraquezas e enfermidades da alma em relação a sua faculdade de conhecer, em que Kant apresenta os defeitos da faculdade de conhecer em dois tipos: fraquezas ou enfermidades da mente. As enfermidades da mente ficam em dois gêneros: hipocondria e perturbação mental. Na hipocondria, o enfermo tem consciência de que o curso de seus pensamentos não vai bem, e sua razão não tem poder suficiente sobre si mesma para dirigir, deter ou impulsionar o andamento deles. Nela, “certas sensações corporais internas não descobrem tanto um verdadeiro mal existente no corpo... só trazem apreensão a seu respeito, acentuando ou tornando persistente o sentimento de certas impressões locais” (Anth, 2006, p. 110). E a perturbação mental, é um curso arbitrário de seus pensamentos, que tem sua regra própria (subjetiva), e essa regra é contrária às regras (objetivas) que concordam com as leis da experiência. A perturbação mental também se divide em demência – quanto à representação sensível. Para ele a superstição estaria aqui comparada ou expressa; e em insânia – como perversão do juízo e da razão. Nesse caso, o fanatismo também estaria aqui expresso. Kant ainda desenvolve a perturbação mental no que chamou de delírio ou loucura. E o louco seria aquele “para quem a palavra perturbado é só uma expressão atenuada” (Anth, 2006, p. 111). Sobre a loucura É difícil introduzir uma divisão sistemática naquilo que é desordem essencial e insanável... Entretanto exige a antropologia... que ao menos se tente um esboço geral desta que, embora proveniente da natureza, é a mais profunda degradação da humanidade (Anth, 2006, p. 112). A divisão que Kant faz da loucura em geral recebe três classificações: tumultuosa, metódica e sistemática. Para a loucura tumultuosa ele apresenta a Amência, ou a incapacidade de colocar suas representações tão somente na conexão necessária para a possibilidade da experiência. 91 Para a metódica ele apresenta a Demência (tudo o que o louco conta está conforme às leis formais do pensamento, mas em representações criadas por uma falsa imaginação), e a Insânia (perturbação do juízo que distrai a mente com analogias que se confundem com conceitos de coisas semelhantes entre si, a imaginação simula um jogo semelhante ao do entendimento). E para a loucura sistemática ele separa a Vesânia, doença de uma razão perturbada. Esse doente psíquico sobrevoa a série inteira da experiência, busca princípios que possam dispensar totalmente a pedra de toque da experiência e presume conceber o inconcebível. Sobre a Vesânia ... nessa última espécie de perturbação mental não há mera desordem e desvio de regra do uso da razão, mas também desrazão positiva, isto é uma outra regra, um ponto de vista inteiramente diverso, ao qual, por assim dizer, a alma foi transportada e desde o qual vê de outro modo todos os objetos; e se acha transportada (daí a palavra distúrbio mental) para um lugar distante do sensorio communi. (Anth, 2006, p. 114). E Kant ainda mostra que a desrazão (que é algo positivo, e não uma mera falta de razão) “é, tanto quanto a razão, uma simples forma à qual os objetos podem se adaptar, e ambas se referem ao universal” (Anth, 2006, p. 115). Quadro 6– Onomástica das deficiências da cabeça – ANTROPOLOGIA DEFEITOS DA FACULDADE DECONHECER Fraquezas Enfermidades da mente → 1. Hipocondria 2. Perturbação mental ↓ Demência Insânia Delírio ou Loucura Tumultuosa ↓ Metódica ↓ Sistemática ↓ Amência Demência Insânia Vesânia Fonte: KANT, Antropologia de um ponto de vista pragmático, 2006. 92 Assim, temos essa coleção de nomes próprios de autoria do próprio Kant que, à semelhança dos médicos, dá nome a cada doença. E, nesse ínterim, podemos supor a probabilidade de um encontro entre a inversão da razão e a paixão que domina, quando tal condição fica irreversível e irreversível também os princípios da razão, conquanto a Insânia seja essa perturbação do juízo que distrai a mente com analogias que se confundem com conceitos de coisas semelhantes entre si, e que pode ocasionalmente cair num juízo perverso para ações más. 4.3.3. A sensibilidade Diante do que já foi exposto do discurso kantiano sobre o mal moral, percebemos que ele não é definido por meio de uma simples aceitação da sensibilidade. Ao contrário, a lei moral é sempre colocada na relação com a natureza humana, ambas coexistindo na determinação das ações. Para Kant, a maldade humana não se apresenta em demasia, como quer a pura noção teológica, mas se extrai da noção de ordem moral dos móbiles. Dessa forma, ele admite a existência da maldade na natureza humana, mas que a mesma não se ampara apenas nas inclinações. Por outro lado, o motivo humano de simples oposição à lei não é o único elemento explicativo para a adoção de ações más, como se o homem fosse diabólico. Ele é propenso ao mal, mas nele também existe uma disposição original para o bem. A lei moral, por conseguinte, é que se impõe como motivo suficiente para o seguimento do princípio subjetivo do querer, as máximas. Dessa forma, o bem é restaurado a partir da disciplina que o homem tem para com as suas inclinações. No entanto, como vimos no subtópico anterior, se seguirmos a conjectura hermenêutica ali descrita, encontramos alguma indicação da possibilidade de um desvirtuamento moral a partir do aspecto patológico. Naquela passagem outrora indicada da Crítica da razão pura sobre a capacidade humana de determinar-se por si, independentemente da coação dos impulsos sensíveis, encontramos também a colocação a respeito do arbítrio ser patologicamente afetado pelos móbiles da sensibilidade: É sobretudo notável que sobre esta ideia transcendental da liberdade se fundamente o conceito prático da mesma e que seja esta ideia 93 que constitui, nessa liberdade, o ponto preciso das dificuldades que, desde sempre, rodearam o problema da sua possibilidade. A liberdade no sentido prático é a independência do arbítrio frente à coação dos impulsos da sensibilidade. Na verdade, um arbítrio é sensível, na medida em que é patologicamente afetado (pelos móbiles da sensibilidade); e chama-se animal (arbitrium brutum) quando pode ser patologicamente necessitado. O arbítrio humano é, sem dúvida, um arbitrium sensitivum, mas não arbitrium brutum; é um arbitrium liberam porque a sensibilidade não torna necessária a sua ação e o homem possui a capacidade de determinar-se por si, independentemente da coação dos impulsos sensíveis (KrV B 562). Conforme vemos, a decisão depende apenas da vontade excluir o empenho dos impulsos da sensibilidade. E assim, o arbítrio só se define como sensível se for afetado patologicamente. Ainda na KrV, Kant escreveu que um arbítrio é simplesmente animal “quando só pode ser determinado por impulsos sensíveis, isto é, patologicamente” (KrV, B 830). Um arbítrio qualificado como livre só o é quando se determina independente dos impulsos sensíveis, por motivos representados unicamente pela razão. Então, nesse caso, como indicamos no tópico anterior, poderíamos inferir uma possibilidade para o mal a partir de uma determinação sensível, restringida à condição patológica. Conforme consta na KpV, Mas para um ser em que a razão não é unicamente o fundamento de determinação da vontade essa regra é um imperativo, isto é, uma regra que é designada pelo verbo “dever”, que expressa a necessitação objetiva da ação e significa que, se a razão determinasse totalmente a vontade, a ação ocorreria infalivelmente segundo essa regra (KpV, 216, p. 35). Mas, a razão não determina totalmente a vontade, pois os impulsos da sensibilidade estão presentes. Quando Kant indicou, na KpV, que a Lei Moral teria que determinar suficientemente a vontade enquanto vontade, independentemente de se perguntar sobre a capacidade exigida para o efeito desejado ou aquilo que seria necessário para produzi-lo, ele disse que essa lei deveria ser categórica e prática, e “independente de condições patológicas e, portanto, de condições que aderem de maneira contingente à vontade” (KpV, p. 35). Ora, se “tem de ser independente de condições patológicas”, e as condições patológicas podem alterar a ação que seria decorrente das leis práticas, dos imperativos categóricos, temos aí a sensibilidade como fator determinante das ações, podendo estabelecer pelo menos o mal radical, 94 não o mal diabólico em que a oposição à Lei Moral se colocaria como motivo impulsor. A ideia desse conseqüente mal radical também está posta conquanto não haja vontade santa na medida em que a sensibilidade se apresenta ao lado do imperativo. Kant escreve: “... enquanto ser afetado por carências e causas motrizes sensíveis, não podemos pressupor nenhuma vontade santa, isto é, uma vontade tal que seria incapaz de máximas conflitantes com a lei moral” (KpV, 2016, p. 52, 53). Ou seja, mesmo a razão determinando a vontade pelos imperativos, e, conquanto “a representação da lei só se realize no ser racional” (GMS, 2007, p. 32), a motivação de nossas ações ocorreria no sentido da razão formular as regras para o como agir em quaisquer situações, mas que esse agir seria heterônomo tendo como motivação também a sensibilidade que se situa nos princípios práticos. No que se refere aos princípios práticos e leis práticas, expostos na analítica da crítica da razão prática pura (KpV, 2016, p. 37), por conseguinte, temos: os princípios práticos que pressupõem um objeto da faculdade de desejar como fundamento de determinação da vontade (que são empíricos e não podem fornecer leis práticas); a faculdade de desejar (o objeto cuja efetividade é desejada); e o prazer (pressuposto de possibilidade da determinação do arbítrio, depois que o objeto é efetivado). Mas, não é possível saber a priori se a representação do objeto estará ligada ao prazer, ao desprazer ou à indiferença, visto que o fundamento de determinação do arbítrio é empírico. Quadro 7– Seqüência a partir dos princípios práticos Princípios práticos (presume o objeto da faculdade de desejar) ↓ Faculdade de desejar (objeto cuja efetivação é desejada) ↓ Prazer (depois que o objeto é efetivado) Conclusão: Os princípios práticos são empíricos, se amparam na sensibilidade, pois a representação do objeto fundamenta a determinação do arbítrio. Fonte: KpV, 2016. 95 Dessa forma, mesmo enquanto a Lei Moral é uma lei que determina o agir em conformidade com aquilo que a vontade deseja que se torne uma lei válida universalmente, e todos os indivíduos portadores de uma vontade, que se torna boa exatamente porque ele escolhe seguir a lei moral, cuja regra que tem validade para todos, ao lado dessa configuração se apresenta a sensibilidade atrelada ao mal radical que tem a propensão de admitir máximas más. E, conquanto a consciência moral tenha amparo na Lei, os princípios práticos se estabelecem também como motivos para a ação. Parece então que, em tom de conclusão, embora não tenhamos em Kant uma indicação objetiva para uma possibilidade duma vontade diabólica, e isso se dá em consonância com o estatuto metafísico da sua teoria do mal, se formos pela via antropológica podemos inferir que tal possibilidade se estabeleça. Apesar de sermos seres racionais, também somos seres sensíveis. E, se da razão pura se origina um sentimento único que nos faz seguir a lei moral, em respeito à lei moral, a sensibilidade também surge como fator determinante do mal, funcionando nos casos específicos: (1) fragilidade, em que o coração humano se ver debilitado ao observar as máximas; (2) impureza, cuja inclinação mistura os móbiles morais com morais; (3) mal radical, cuja propensão objetiva adotar as máximas más; e (4) mal diabólico, apenas nos casos da afetação patológica da sensibilidade, em que a oposição à Lei Moral se elevaria à móbil para as máximas. 96 97 5. QUESTÃO CONTEMPORÂNEA DO MAL E DA MORAL Como todos os temas da filosofia, seja no âmbito da teoria do conhecimento, metafísica, lógica, política, ética e estética, a abordagem da teoria moral e seus temas decorrentes dela, como a questão do mal, não foram e não podem ser esgotados pelos sistemas filosóficos. Abrimos este capítulo a fim de pontuar essa evidência a partir de dois autores mais próximos da nossa contemporaneidade que dialogam com a tese kantiana discordando dela ou mostrando que a mesma não é suficiente para solucionar certas questões particulares que se evidenciam na perspectiva desse tempo hodierno. Arendt (1906-1975) com a questão da banalidade do mal, e Tugendhat (1930-) com o fundamento da moral. 5.1. Hannah Arendt A tentativa de buscar um fundamento para o mal instiga os filósofos. E ainda mais as atitudes maléficas extremas como a crueldade. O tema não se esgota, mas se amplia nas possibilidades de resposta. Como exemplo a investigação de Arendt se apresenta a partir de um caso específico: o julgamento de um carrasco nazista. A reflexão filosófica que Arendt faz visa compreender a forma mecânica referente às diretrizes legais que o sistema de Hitler legitimou, e como a compreensão de Eichmann para o mal se sucumbiu diante duma ponderação de suas ações como simples dever profissional. A banalização do mal, portanto, se pensa também por uma fundamentação teórica em que a pura obrigação profissional promove o mal e o institucionaliza sistematicamente. A pesquisa de Arendt contribui para o entendimento de como o Estado pode transformar certos atos violentos e cruéis na simples realização de metas e objetivos organizacionais. No livro Eichmann em Jerusalém, escrito em 1963, encontra-se uma alternativa para uma situação particular que, em primeira instância, teria a qualificação de crueldade. Após testemunhar o julgamento de Adolph Eichmann, um dos responsáveis pelo holocausto judeu, a autora concluiu que o mal não seria oriundo da malevolência ou de um puro desejo de fazer o mal, porém, essa maldade deveria ser proveniente de um sucumbir às falhas de pensamento e julgamento. 98 Conforme depreende ali, como há no ser humano uma tendência para essas falhas, os sistemas políticos opressivos tiram vantagens disso e possibilitam a aparência normal de certos atos que, em sã consciência, seriam considerados impensáveis. Dessa forma, considera-se todos como capazes de agir mal, uma vez que a banalidade do mal não priva os atos maléficos de seu horror, mas nos faz recusar a imagem daqueles que cometem os atos terríveis como simples “monstros”. Ela lembra uma das falas de Eichmann nesse sentido, quanto à sua consciência: “ele se lembrava perfeitamente de que só ficava com a consciência pesada quando não fazia aquilo que lhe ordenavam” (ARENDT, 1999, p. 37). E ressalta também que a figura de Eichmann no banco dos réus era própria de alguém normal, visto que “meia dúzia de psiquiatras haviam atestado a sua “normalidade”” (Idem). Ainda na mesma obra, no capítulo sobre Deveres de um cidadão respeitador das leis, Arendt conclui: E assim como a lei de países civilizados pressupõe que a voz da consciência de todo mundo dita “Não matarás”, mesmo que o desejo e os pendores do homem natural sejam às vezes assassinos, assim a lei da terra de Hitler ditava à consciência de todos: “Matarás”, embora os organizadores dos massacres soubessem muito bem que o assassinato era contra os desejos e os pendores normais da maioria das pessoas (ARENDT, 1999, p. 167). No caso analisado dos horrores do Holocausto, em contraposição à uma pura malignidade, possivelmente tais horrores tenham sido oriundos dessa inversão de valores em conseqüência das falhas de pensar e julgar. Arendt indica que a tentação como a qualidade pela qual a maioria das pessoas reconhecem o mal havia sido perdida, e os alemães e nazistas possivelmente foram tentados a não cometer tais atrocidades, mas quando o fizeram, foi em função desse impulsionar equivocado de julgamento. Para ela No Terceiro Reich, o Mal perdera a qualidade pela qual a maior parte das pessoas o reconhecem — a qualidade da tentação. Muitos alemães e muitos nazistas, provavelmente a esmagadora maioria deles, deve ter sido tentada a não matar, a não roubar, a não deixar seus vizinhos partirem para a destruição (pois eles sabiam que os judeus estavam sendo transportados para a destruição, é claro, embora muitos possam não ter sabido dos detalhes terríveis), e a não se tornarem cúmplices de todos esses crimes tirando proveito deles. Mas Deus sabe como eles tinham aprendido a resistir à tentação (ARENDT, 1999, p. 167). 99 Essa seria, portanto, uma resposta à questão do mal. Apesar de que, ao considerar essa possibilidade para o mal, Arendt explica no pós-escrito que “... quando falo da banalidade do mal, falo num nível estritamente factual, apontando um fenômeno que nos encarou de frente no julgamento” (ARENDT, 1999, p. 310). Ao comentar as colocações de Arendt para o mal, Souki escreve que (...) não se trata de explicar o fenômeno focando-se na questão moral ou na antropologia, mas sim de compreender, num enfoque político, como um Estado pode ser capaz de produzir agentes heterônomos que funcionam, tão eficientemente, como agentes reprodutores de seus objetivos (SOUKI, 1998, p. 34). Para Arendt, o nível estritamente factual de tal crueldade pôde receber esse tipo de resposta compreensiva. A biógrafa de Arendt, Laura Adler, realça essa interpretação ao comentar sobre a obra Origens do Totalitarismo: Tecido de questões existenciais, esse tratado do totalitarismo também é um mergulho na fábrica dos elementos do mal, uma tentativa, para além das categorias de verdadeiro e falso, de humano e inumano, de compreender: não condescender ou rejeitar, mas se eximir de qualquer preconceito para desenhar as linhas de força desse império do terror, em que a dignidade do homem foi manchada para sempre (ADLER, 2014, p. 321). Dessa forma, Arendt procurou decifrar a ruptura que o mundo sofreu a partir do totalitarismo e que provocou aquele nível de maldade debaixo de um império de propaganda. Mas, como propriamente analisamos nessa pesquisa, a compreensão desse tipo de mal destoa do mal radical proposto em Kant, ou, em certa medida, transcende os limites do que Kant definiu ... pois trata-se de uma “nova espécie de agir humano”, uma forma de violência que “vai além dos limites da própria solidariedade do pecado humano”, de “um mal absoluto porque não pode ser atribuído a motivos humanamente compreensíveis”. O fenômeno totalitário revelou que não existem limites às deformações da natureza humana e que a organização burocrática de massas, baseada no terror e nas ideologias, criou novas formas de governo e dominação, cuja perversidade não se pode medir (SOUKI, 1998, p. 33). 100 Então, na explicação de Arendt, o verdadeiro mal radical “surgiu em um sistema onde todos os homens se tornaram “supérfluos”, isto é, eles se tornaram meios” (SOUKI, 1998, p. 34). E a condição desse caráter desnecessário nos homens alcançou a todos, seja os que foram vítimas da maldade, seja os que foram algozes. Borges (2016), em artigo que analisa a capacidade do conceito do mal em Kant para explicar atrocidades contemporâneas, como genocídio e terrorismo, apresenta duas interpretações: uma que considera o conceito do mal radical como possível para explicar essas barbáries, e outra que entende tal conceito impotente para fornecer explicação. Quanto à interpretação de que a teoria kantiana sobre o mal é impotente para explicar a sua razão, há o fato de que não é suficiente a constatação do mal, mas se quer saber a sua razão, o porquê dele se apresentar no ser humano. E assim, a teoria de Kant parece não dar conta de uma resposta satisfatória. Borges mostra que para os autores que pensam dessa maneira sobre a proposição de Kant (como Arendt, Card e Bernstein), o amor de si não é uma base garantida para causalidade do mal, caso se queira explicar os atos desumanos da atualidade. O mal em Kant ... seria por demais superficial e insuficiente para dar conta da magnitude dos fenômenos contemporâneos. Por ser apenas a submissão da lei moral às máximas do amor de si, o mal em Kant seria demasiado fraco, sendo impotente para dar conta das figuras contemporâneas do mal, presente no genocídio, terrorismo e totalitarismo. (BORGES, 2016, p. 580). Porém, quanto ao entendimento de que o tema do mal em Kant torna possível a explicação das atrocidades contemporâneas, autores como Louden e Anderson-Gold vão mostrar que o amor de si não se iguala ao egoísmo, mas tem motivos amplos para as ações. Borges apresenta o exemplo que Sharon Anderson mostra de que, “se entendemos o amor de si como um interesse de grupo, podemos dar conta inclusive do genocídio” (BORGES, 2016, p. 581), pois a noção do mal radical é abrangente para tal. E sobre o genocídio, como uma ação que visa extinguir a identidade cultural de determinados povos, é um ato de rejeitar a humanidade de outras identidades culturais. Partindo desse entendimento 101 A natureza terrível desses crimes levou os comentadores a negar que o mero amor de si, o qual seria tão hedonista e domesticado, pudesse dar origem a crimes tão bárbaros. Pareceria que seria necessário algo inumano para a existência dessas atrocidades. Anderson-Gold objeta a este argumento, lembrando que pessoas comuns são capazes de cometer crimes bárbaros e nos remete ao próprio Eichmann em Jerusalém de Hannah Arendt. (BORGES, 2016, p. 581). Então, mesmo nessas situações de extrema barbárie, parece possível perceber uma resposta a partir da concepção kantiana, de forma que o amor de si é capaz de responder a questão do mal em suas figuras superlativas sem necessariamente recorrer a alguma coisa inumana. Mas, no que concerne ao porquê, à razão das escolhas pelo mal, a pergunta ainda permanece. E em Kant, a resposta se encontra na liberdade. Na assertiva de Borges, a tentativa de entender essa razão da escolha livre pelo mal, como em algo que esteja além da própria liberdade “seria – tal qual na metáfora de Santo Agostinho – tentar enxergar a escuridão ou ouvir o silêncio” (BORGES, 2016, p. 582). 5.2. Ernest Tugendhat Outra forma de discutir a questão do mal, e necessariamente a relação com a discussão sobre a moral, parte da perspectiva crítica que Tugendhat faz em relação a Kant. Assim como Schopenhauer, Tugendhat não só procura interpretar, mas propõe corrigir Kant, divergindo do seu fundamento para a moral unicamente na razão. Em sua critica a Kant, ele escreve Kant pensou poder solucionar o problema como o ovo de Colombo, ao propor fundamentar o juízo moral em uma premissa que simplesmente representa a própria idéia do estar fundamentado, a razão. Seria possível resumir sua idéia do seguinte modo, caso sejamos racionais de um modo geral, então deveríamos reconhecer a validade dos juízos morais, respectivamente, daqueles juízos morais que Kant considera corretos. Veremos que esta idéia, que também é representada atualmente e uma forma modificada pela ética do discurso, é em verdade genial, mas é um equívoco. Da idéia do estar fundamentado enquanto tal, caso se possa imaginar algo por isto, não pode derivar nada de conteúdo. Além disto, também veremos que é igualmente absurda não apenas a idéia de um estar fundamentado ‘de cima’,não mais condicionado, mas também a idéia de que o dever ou o ter-de moral possua um sentido não condicionado, que pesaria sobre nós de alguma forma absoluta, como uma voz secularizada de Deus – e a idéia de Kant de uma 102 razão não relativa conduz aproximadamente a isto – não é possível. (TUGENDHAT, 1996, p. 24). Tugendhat faz a mesma crítica que Conche (2006) fez: se não se pode derivar nada de conteúdo dessa ideia, então Kant está confundindo a forma com o conteúdo. E isso na medida em que não se pode ter um fundamento incondicionado, nem um dever moral incondicionado, pois tal se apresenta como referencial divino. A moral definida por Tugendhat refere-se aos juízos morais dispostos por alguém ou um grupo, de forma que sua origem está na relação social, e, portanto, nessa relação os elementos racionais e emocionais se interligam. Ou, como apresentado em sua preleção sobre o problema da moral, num primeiro sentido a moral seria “um sistema de obrigações intersubjetivas”, e num segundo sentido, “comportamento altruísta” (TUGENDHAT, 2003, p. 13). Então, os sentimentos não são descartados como elementos necessários para a explicação do fundamento da moral. A sensibilidade, e nos termos kantianos, os princípios práticos, se assentam também como motivos para a ação. Esse aspecto externo se apresenta na colocação de Tugendhat, quando ele diz que pode se chamar de formação da consciência moral a sanção interna em que “todos exigem reciprocamente o comportamento moral” (TUGENDHAT, 1996, p. 58) significando que “cada um tem de ser assim, como membro da sociedade, independentemente de se quer ser assim”. Em sua ideia, naquela relação do “eu quero” com “eu não quero” da consciência moral, A formação da consciência moral, segundo vejo a conexão, consiste em que o indivíduo, de sua parte, se queira entender como membro da comunidade. Este “eu quero” é naturalmente diferente daquele de que se fala no caso das capacidades especiais. Nele está implicado, em primeiro lugar, que o indivíduo assume em sua identidade (isto é, naquilo com o qual ele se quer entender) este ser assim (So-sein) como membro da sociedade ou parceiro cooperador, a que pertence a escala do “bom” e “mau” entendidos de modo gramaticalmente absoluto; e, em segundo lugar, isso significa então que ele se entende como pertencente a uma totalidade de pessoas que, mediante a sanção interna da indignação e da vergonha, exigem reciprocamente umas das outras que estas normas constitutivas da identidade não sejam feridas (TUGENDHAT,1996 , p. 59). Dessa forma, o ser humano assume na sua vontade de “querer ser” a noção de bondade associada ao seu desejo. Então, não é que o indivíduo já queira ser 103 bom, ele assume essa qualificação ao desejar pertencer ao mundo moral (definido por todos a sanção interna de serem bons membros da sociedade, num certo sentido de “bom”). Sendo assim, quando o indivíduo não quer ser bom, ou seja, pertencer ao mundo moral, ele não sente vergonha ao ferir as regras adequadas à comunidade, e nem se indigna ao ver outros ferirem. Nesse sentido, o dever está relativizado. Já estava relativizado no primeiro caso em que se estabeleceu o “tem de” do comportamento moral como membro da sociedade. O acréscimo do seu “eu quero” é a segunda relativização, cuja sanção “pertencente ao cosmos moral tem de ser interna, já que a indignação não pode ocorrer sem a internalização através da vergonha” (TUGENDHAT, 1996, p. 60). Outro ponto que Tugendhat trata diz respeito ao resultado que a fundamentação da consciência moral nessas exigências recíprocas (a sanção interna definida por todos) pode dar. Ele questiona se isso “não levaria a uma compreensão conservadora da moral ou, antes, a uma moral da adaptação social?” (TUGENDHAT, 1996, p. 62). Como exemplo para clarificar o sentido de sua compreensão de uma moral socialmente vinculada ou não, ele apresenta Jesus de Nazaré como que relativizando e suplementando a moral então existente de seu povo. Caso ele tivesse retirado aquela moral e colocado outra no lugar, não teria êxito como reformador. Contextualizando e parafraseando o Cristo O que o reformador diz é o seguinte: os conteúdos sobre os quais vos indignais e envergonhais não são aqueles que merecem estes sentimentos; os novos conteúdos que exijo são aqueles cuja observação deveríeis exigir uns dos outros reciprocamente. (TUGENDHAT, 1996, p. 63). Outro exemplo dado é o da ética animal. Quando uma pessoa diz que os outros podem fazer o que quiserem com os animais, mas que ela não suporta que animais sejam maltratados, essa pessoa não está a defender uma posição moral, pois uma posição moral só é defendida na exigência de que os outros achem o mesmo – que os outros assumam o novo conteúdo em sua consciência moral. Então, só quem não compreende a moral estruturada socialmente é que possibilita uma reforma. E para que uma atitude seja moral, ela precisa se situar na estrutura intersubjetiva da exigência. Vemos então que, em Tugendhat, os conceitos de “bom” e “mau” não podem ser dados a priori, mas, antes, devem ser buscados na 104 discussão em sociedade, nessa intersubjetividade, posto que ele apresenta a consciência moral sustentada não em um fundamento absoluto, mas em fundamentos (no plural) que justificam uma ação, ou modo de ação, pela aceitação de um “sistema moral”. 105 6. CONCLUSÃO A tese do mal em Kant, a partir do ponto de vista transcendental, como tese a priori, no âmbito do juízo analítico, e inserida em sua teoria moral, não afasta o diálogo com a perspectiva a posteriori, de um juízo sintético, tanto no que se refere ao âmbito das relações sociais quanto concernente à sensibilidade vista na direção de uma afetação sensível quando a propensão se desencadeia no instinto e na paixão, enquanto esta é descrita como a inclinação pela qual a razão é impedida de comparar essa inclinação com a soma de todos os desejos sensíveis. Dessa forma, a paixão entendida como um estado intenso que altera o comportamento ao movimentar impetuosamente o entendimento, é, nos termos de Kant na Antropologia, o câncer da razão, pois ele assim a qualifica: “As paixões são cancros para a razão prática pura e na sua maior parte incuráveis, porque o doente não quer ser curado e se subtrai à ação do princípio unicamente por meio do qual isso pode ocorrer” (Anth, 2006, p. 164). Portanto, a propensão para o mal como uma máxima em um nível mais elevado, mesmo tendo uma explicação transcendental, uma vez que sua raiz está no inteligível, também pode ser apontada como um fato observado nas ações humanas, podendo abrir espaço para uma resposta também de ordem empírica, pelos exemplos da experiência. Posto que o diálogo entre as duas perspectivas da natureza do mal se mostre fecundo, encontramos base para sugerir uma resposta ao problema pesquisado, sem ferir a coerência do sistema kantiano, e, ao contrário, evidenciando sua metafísica que faz um caminho amplo pelos princípios universais da razão ao mesmo tempo em que delimita as possibilidades de conhecimento. O tratamento dado na Religião ao tema do mal, em que a moralidade se associa a concepção do sumo bem pela análise da relação entre os princípios bom e mau que estão na natureza humana, e sua inserção do conceito do mal radical, bem como a relação proposta entre a liberdade humana e o mal, pode perfeitamente ser visto como suplemento à Crítica da razão prática, que ali traz uma abordagem do tema sob o ponto de vista das ações morais. A complementação se dá no sentido de ser a Religião um tratado que inclui o entendimento da natureza humana, enfocando nessa natureza o problema do mal no indivíduo, buscando identificar os motivos que levam às ações, o porquê da adoção desse ou daquele comportamento. A bondade 106 e a maldade, o bem e o mal, são discutidos sob perspectivas diferentes em cada obra, mas a relação intrínseca entre ambas está posta como necessária e complementar. Sobre o conceito do mal radical como sugerindo um desvio ou contradição com a filosofia do esclarecimento, na verdade, a percepção do conflito entre a disposição para o bem e a propensão para o mal, que é uma luta moral travada entre o dever e as inclinações, demonstra a coerência com a filosofia moral de Kant. O desenvolvimento da pesquisa nos conduziu a posição de perceber a consonância entre o tema do mal e o sistema crítico. Assim, a tese do mal se encaixa na filosofia de Kant dentro do contexto da Aufklarung. No que concerne as situações particulares oriundas do mal, como os vícios, a crueldade e as ações com aparência de força maligna, bem como o conceito de vontade diabólica que para Kant não é possível, o entendimento é de que cada situação no contexto do mal, observada em seu todo, pode ter uma resposta pela ótica do sistema kantiano. No caso dos vícios, a explicação se insere na explanação da disposição originária para o bem na natureza humana, pois na animalidade podem inserir-se vícios próprios da brutalidade da natureza que, em seu desvio intenso, tornam-se vícios bestiais, dando-nos como exemplos, os vícios da gula, da luxúria e da selvagem ausência da lei (na relação a outros homens). É a propensão para o mal cujos vícios são a inclinação ou “concupiscentia” que incide na paixão, a qual exclui o autodomínio. A crueldade poderia se adequar ao nível da malignidade, em seu alto grau, como na ideia desse máximo de mal que ultrapassa a humanidade. E, na medida em que o indivíduo sente prazer em sua ação cruel, ele não estaria desejando o mal pelo mal, mas pelo prazer que a ele é proporcionado, e nesse caso particular, ocorre a elevação da sua máxima acima da lei moral. Quanto à vontade diabólica, a tese do mal em Kant a rejeita, como exposta na Religião, uma vez que as ações humanas malignas estariam justificadas na própria razão, sendo a razão pura o fundamento do mal, e essa maldade seria a disposição de ânimo para admitir como motivo o mal enquanto mal na própria máxima. A boa vontade do indivíduo, portanto, seria excluída na medida em que o seu coração se encontrasse como portador de uma pura maldade inata, o fazendo ser diabólico. 107 No entanto, conforme apontamos que a tese do mal pode ser explicada no diálogo entre o fundamento no inteligível e a ordem empírica, notadamente na sensibilidade, quando desenvolvemos a sensibilidade vista na direção de uma afetação sensível, no sentido da propensão se desencadear no instinto e na paixão, trazemos para esse entendimento o fenômeno patológico da falta de senso moral (lack of moral sense) conhecido na psicopatologia como uma falta de consciência moral em que a pessoa não quer se entender como membro do cosmos moral. Também conectamos o lack of moral sense aos textos de Kant sobre as patologias da cabeça ou doenças da faculdade de conhecer, uma vez que a vontade diabólica estaria no sentido de uma corrupção da razão moralmente legisladora como se essa razão aniquilasse a autoridade de sua própria lei negando a obrigação que dela flui, sendo isso pura e simplesmente impossível. A hipótese que apresentamos, embora não tenha um desenvolvimento profundo nessa pesquisa, e que pretendemos ampliá-la em projeto posterior, é a de que, considerando o conceito da vontade diabólica, em que as ações malignas se fundamentariam na razão pura, e posto que a disposição de ânimo admitisse como motivo impulsor o mal enquanto mal na própria máxima, verificamos a impossibilidade duma vontade diabólica em virtude do entendimento de que somente nos seres racionais se pode aplicar sempre um imperativo, pois as leis práticas têm a condição objetiva como válida para a vontade de todo ser racional. E um ser afetado patologicamente em sua vontade, não sendo capaz de discernir a lei prática, seria, portanto, irracional. De forma que, a afetação patológica da vontade causaria um conflito entre as máximas e as leis práticas que seriam reconhecidas pelo próprio ser. Tomando o desenvolvimento de Kant das doenças da cabeça, em seu Ensaio e também na Antropologia, no que concerne ao conceito de estultícia, em que a razão se encontra invertida e não pode reverter essa condição, perguntamos se haveria condições em que uma afetação patológica se alinhasse à essa inversão para, então, obtermos a situação de ações más cujo motivo impulsor seria o mal enquanto mal na própria máxima. Ou seja, situações em que a afetação patológica se alinhasse ao conceito de uma razão invertida cuja paixão domina como algo odioso e repelente, no caso da estultícia, pois o estulto acredita possuir algo que não 108 tem, e sua origem está em inclinações injustas e detestadas como a soberba e a avareza, não podendo o mesmo reverter sua condição fantasiosa e ingênua que inverte os princípios de sua razão. Nossa hipótese também se desdobra a partir da asserção de Kant de que na inversão, que estaria nos graus mais pesados da patologia, as manifestações do cérebro doente também podem ser entendidas como uma infeliz combinação dos males entre si, ou também como resultado desses males enxertados em paixões fortes, a combinação entre algum tipo da inversão (desarranjo, delírio ou insânia) e uma paixão forte. Ou seja, supomos a probabilidade de um encontro entre a inversão da razão e a paixão que domina, quando tal condição fica irreversível e irreversível também os princípios da razão, conquanto a Insânia seja essa perturbação do juízo que distrai a mente com analogias que se confundem com conceitos de coisas semelhantes entre si, e que pode ocasionalmente cair num juízo perverso para ações más. Quando lemos na Antropologia o conceito de Vesânia, que Kant descreve como uma perturbação mental em que há uma desrazão, ou “uma outra regra, um ponto de vista inteiramente diverso, ao qual, por assim dizer, a alma foi transportada e desde o qual vê de outro modo todos os objetos” (Anth, 2006, p. 114), podemos supor que seria apenas nessa condição, em que o entendimento se transporta para outra regra, para um lugar distante do senso comum, que teríamos a evidência de uma possibilidade para a vontade diabólica. Mas aqui, a razão está patologicamente comprometida. Portanto, a hipótese que apresentamos para a impossibilidade duma vontade diabólica na natureza humana é assim posta em vista da consonância com a qualidade racional dos seres, em seu uso saudável da razão. E somente a partir do aspecto doentio, duma afetação patológica, seria possível falar em termos de desvirtuamento moral na raiz do entendimento, quando a oposição à lei moral se elevaria à móbil para as máximas, o que se configuraria como a vontade diabólica. Considerando as questões que se alinham com as fraquezas e enfermidades da alma em relação a sua faculdade de conhecer, apresentadas por Kant na Antropologia, e no seu Ensaio sobre as doenças da cabeça, é na perspectiva dessa sensibilidade que a ideia de uma vontade diabólica se enquadraria, sobretudo no conceito de uma razão invertida dominada pela paixão, cujo fundamento das ações 109 ainda se ampararia na razão, mas numa razão afetada, e a maldade estaria na disposição de ânimo que admitiria como motivo o mal em sua própria máxima. Parece-nos que, partindo dessa hipótese, o sistema filosófico de Kant ainda permanece coerente. 110 111 REFERÊNCIAS ADLER. Laure. Nos passos de Hannah Arendt. Rio de Janeiro: Record, 2014. ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. ______. Origens do totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. BECK, Lewis White. A Commentary on Kant´s Critique of Practical Reason. Chicago & London: The University of Chicago Press, 1963. BORGES, Maria de Lourdes. Razão e emoção em Kant. Pelotas: Editora e Gráfica Universitária, 2012. ______. A (in)capacidade explicativa do conceito do mal em Kant. Rev. Filos., Aurora, Curitiba, v. 28, n. 44, p. 573-582, maio/ago. 2016. ______. Para todo mal, a cura. Con-Textos Kantianos. International Journal of Philosophy Nº 01, pp. 10-22, Noviembre, 2014. ______. O mal e a coerência do sistema kantiano. Studia Kantiana v. 15, n.1, p 57- 66, abr. 2017. BASSOLI, Selma Aparecida. O mal radical segundo Kant e Schopenhauer. In: SANTOS, Leonel Ribeiro et al. Was ist der mensch? / Que é o homem? – Antropologia, estética e teleologia em Kant. Lisboa, CFUL, 2010, p. 725-738. CHAGAS, Flávia Carvalho. Beck, Guido de Almeida e Loparic: sobre o fato da razão. Revista Veritas, Porto Alegre, v 55, n. 3, Set./Dez. 2010, p. 186-201. CORREIA, Adriano. O conceito de mal radical. Revista Trans/Form/Ação, São Paulo, 28(2): 83-94, 2005. CAYGILL, Howard. Dicionário Kant. Tradução Álvaro Cabral; revisão técnica Valério Rohden. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000. 353 p. (Dicionários de filósofos). CONCHE, Marcel. O fundamento da moral. São Paulo: Martins Fontes, 2006. HÖFFE, Otfried. Immanuel Kant. Trad. Christian Viktor Hamm, Valério Rohden. São Paulo: Martins Fontes, 2005. HERRERO, Francisco Javier. Religião e história em Kant. São Paulo: Loyola, 1991. KANT, Immanuel. Antropologia de um ponto de vista pragmático. São Paulo: Iluminuras, 2006. 112 ______. A religião nos limites da simples razão. Tradução de Artur Morão. Covilhã: Universidade da Beira Interior, 2008. ______. A paz perpétua: um projeto filosófico. Tradução de Artur Morão. Covilhã: Universidade da Beira Interior, 2008. ______. Crítica da razão prática. Tradução de Monique Hulshof. Petrópolis, RJ: Vozes; Bragança Paulista, SP: Editora Universitária São Francisco, 2016. ______. Crítica da razão pura. Tradução Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Morujão. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001. ______. Fundamentação da metafísica dos costumes. Trad. Paulo Quintela. Lisboa: Edições 70, 2007. ______. A metafísica dos costumes. Tradução de Edson Bini. Bauru, SP: EDIPRO, 2003. ______. Começo conjetural da história humana. Cadernos de Filosofia Alemã nº 13 – p. 109-124 – jan.-jun. 2009. ______. Ensaio sobre as doenças da cabeça de 1764. Revista Filosófica de Coimbra — n.o 37 (2010) pp. 201-224. Tradução de Pedro Miguel Panarra. MUCHNIK, Pablo/ANDERSON-GOLD, Sharon. Kant´s Anatomy of Evil. New York: Cambridge University Press, 2010. NAHRA, Cinara. Uma introdução à filosofia moral de Kant. Natal, RN: EDUFRN – Editora da UFRN, 2008. PANARRA, Pedro Miguel. Immanuel Kant: ensaio sobre as doenças da cabeça de 1764. Revista filosófica de Coimbra – nº 37, 2010. p. 201-224. PAVÃO, Aguinaldo. Filosofia da religião e mal radical em Kant. Kant e-Prints. Campinas, Série 2, v. 2, n. 2, p. 171-179, jul.-dez., 2007. PIERUCCI, Antônio Flávio. As religiões no Brasil. In: GAARDER, Jostein et al. O livro das religiões. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. p. 300-323. PINHEIRO, Letícia Machado. "O Conceito Kantiano de Mal Radical e o Resgate da Disposição Originária para o Bem". Dissertação de Mestrado em Filosofia. Universidade Federal de Santa Maria, 2007. RICOEUR, Paul. O mal: um desafio à filosofia e a teologia. Campinas, São Paulo: Papirus, 1988. SCHOPENHAUER, Arthur. Sobre o fundamento da moral. São Paulo: Martins Fontes, 2001 113 STROUD, Scott R.. Viciado em suas próprias inclinações? Kant sobre a propensão ao mal. Temple University Philadelphia, Pennsylvania/EUA, Tradução de João José Rodrigues L. de Almeida (Unicamp). Impulso, Piracicaba, 15(38): 23-33, 2004. SOUKI, Nádia. Hannah Arendt e a banalidade do mal. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1998. SPINELLI, Letícia Machado. A religião nos limites da simples razão. Kant e-Prints. Campinas, Série 2, v. 8, n. 1, p.127-151 jan.– jun., 2013. TUGENDHAT, Ernst. Lições sobre ética. Petrópolis, RJ: Vozes, 1996. ______. O problema da moral. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2003. VAYSSE, Jean-Marie. Vocabulário de Immanuel Kant. São Paulo: Martins Fontes, 2012. WOOD, Allen W. Kant´s Ethical Thought. Cambridge: Cambridge University Press, 1999. ______. The evil in human nature. In: Michalson, Gordon E. et al. Kant´s Religion whitin the boundaries of mere reason: a critical guide. Cambridge: Cambridge University Press, 2014, p. 31-57.