UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE – UFRN CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES - CCHLA DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA DEUS, MENTE E MUNDO: SOBRE OS CONCEITOS DE COMPLICATIO, IMAGO E EXPLICATIO A PARTIR DO DIÁLOGO “DE MENTE” DE NICOLAU DE CUSA Osvaldo Ferreira de Andrade Filho NATAL / RN 2013 OSVALDO FERREIRA DE ANDRADE FILHO DEUS, MENTE E MUNDO: SOBRE OS CONCEITOS DE COMPLICATIO, IMAGO E EXPLICATIO A PARTIR DO DIÁLOGO “DE MENTE” DE NICOLAU DE CUSA Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Filosofia, linha de pesquisa, Metafísica. Orientador: Prof. Dr. Oscar Federico Bauchwitz. NATAL / RN 2013 PÁGINA DESTINADA A FOLHA DE CATALOGAÇÃO OSVALDO FERREIRA DE ANDRADE FILHO DEUS, MENTE E MUNDO: SOBRE OS CONCEITOS DE COMPLICATIO, IMAGO E EXPLICATIO A PARTIR DO DIÁLOGO “DE MENTE” DE NICOLAU DE CUSA A dissertação apresentada por Osvaldo Ferreira de Andrade Filho, como parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de Mestre em Filosofia, foi aprovada pela banca examinadora, constituída pelo Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Data de aprovação: Natal, 23 de dezembro de 2013. BANCA EXAMINADORA: Prof. Dr. Oscar Federico Bauchwitz – UFRN Presidente Prof. Dr. Edrisi de Araújo Fernandes – UFRN Membro Interno Prof. Dr. José Teixeira Neto – UERN Membro Externo AGRADECIMENTOS Agradeço a Deus por sua infinita misericórdia que me sustentou durante todo esse caminho. Sua providência manifestada via São José foi determinante para a conclusão desse trabalho. Ao professor Oscar Federico Bauchwitz que me apresentou o pensamento de Nicolau de Cusa e me ofereceu todos os meios acadêmicos necessários para adentrar em sua filosofia. Também lhe agradeço pela disponibilidade, atenção e paciência, que foram de suma importância para mim. Ao professor José Teixeira Neto pelo seu companheirismo, incentivo, disponibilização de bibliografia e interesse pela minha formação. À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior-CAPES, pelo apoio financeiro. Ao Programa de Pós-graduação em Filosofia – UFRN, em especial à Thiare Pacheco. Amigos da Comunidade Católica Shalom pelo apoio. Por fim, e com mais apreço, à minha família, cuja contribuição é inestimável. À Maria, Paula e Luciene. Jamais algum daqueles que saborearam as palavras da vida pôde te abandonar. Quem pode separar o urso do mel, depois de ele ter saboreado a sua doçura? De visione Dei, n. 107 RESUMO ANDRADE FILHO, Osvaldo Ferreira de. Deus, mente e mundo: sobre os conceitos de complicatio, imago e explicatio a partir do diálogo “De mente” de Nicolau de Cusa. 2013. 105f. O presente trabalho versa sobre como os três temas centrais da metafísica tradicional, a saber, Deus, o homem e o mundo, são repensados pela especulação filosófica do cardeal alemão Nicolau de Cusa (1401-1464). Devido à abrangência dessa temática, nossa dissertação teve como ponto de partida e referencial constante o livro que o filósofo escreveu em 1450, Idiota. De mente, segundo escrito que compõe a série de diálogos do Idiota (Idiotae libri), e cuja discussão se desenvolve em torno ao tema da mente humana. A partir do diálogo De mente nós construímos a nossa reflexão tomando algumas questões e fundamentações teóricas apresentadas no Idiota. De sapientia e no De docta ignorantia, estendendo-a a pouco mais que isso. De acordo com Nicolau de Cusa, a mente humana, em seu caráter criativo à imagem da mente divina, transcende as considerações puramente funcionais que geralmente lhe são atribuídas, isto é, no que se refere à sua natureza cognitiva e ao seu papel epistemológico. Para além desses aspectos, o Cusano entende a humana mens como um ponto de articulação dos outros dois temas que protagonizam a sua metafísica: Deus e o mundo. Neste contexto, através dos conceitos de complicatio-explicatio e imago, bem como da intercessão entre o tema do homem imago Dei e o motivo do microcosmo, nós apresentamos aqui uma introdução à filosofia cusana. Palavras-chave: Nicolau de Cusa. Metafísica. Deus. Universo. Mente humana. ABSTRACT ANDRADE FILHO, Osvaldo Ferreira de. God, mind and world: on the concepts of complicatio, imago and explicatio from the dialogue “De mente” of Nicholas of Cusa 2013. 105f. This work deals with the way how the three themes of traditional metaphysics, namely, God, man, and the world, are rethought through the philosophical speculation of German cardinal Nicholas of Cusa (1401-1464). Due to the comprehensiveness of this subject, our dissertation had as a starting point and constant reference the book that the philosopher wrote in 1450, Idiota. De mente, the second written work that makes up the series of the Idiota (Idiotae libri), whose discussion is developed around the theme of the human mind. From the dialogue of the mind we have built our reflection on some issues and theoretical foundations presented in Idiota. De sapientia and De docta ignorantia, extending it to little more than that. According to Nicholas of Cusa, the human mind, in its creative character in the image of the divine mind, transcends the purely functional considerations commonly assigned to it, that is, those that regard its cognitive nature and epistemological role. In addition to these aspects, Cusanus understands the humana mens as a point of articulation of two other main themes of his metaphysics: God and the world. In this context, through the concepts of complicatio- explicatio and imago, as well as with the intercession between the themes of man as imago Dei and the reason of the microcosm, we present here an introduction to Cusan metaphysics. Keywords: Nicholas of Cusa. Metaphysics. God. Universe. Human mind. SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................10 2 A MENTE DIVINA COMO UNIDADE ABSOLUTA E O MUNDO COMO PLURALIDADE.....................................................................................................................18 2.1 A Unidade infinita e a pluralidade dos entes a partir dos princípios matemáticos.............18 2.2 A humana mens e a imposição dos nomes divinos e conjecturais. ....................................25 3 DEUS COMO COMPLICATIO MUNDI E O MUNDO COMO EXPLICATIO DEI....39 3.1 Os fundamentos da doutrina da complicatio-explicatio. ....................................................39 3.2 O problema dos Universais e a doutrina da contractio. .....................................................53 4 A HUMANA MENS COMO VIVA IMAGO DEI ..............................................................74 4.1 Características essenciais da viva imago que é o homem...................................................76 4.2 Da noção de homem-imagem ao motivo do microcosmo. .................................................82 4.3 O idiota e a arte de fabricar colheres: ars imitatur naturam. .............................................89 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS..............................................................................................96 REFERÊNCIAS .....................................................................................................................99 10 1 INTRODUÇÃO Tentar delimitar o pensamento de Nicolau de Cusa (1401-1464) na história da filosofia é sem dúvida uma tarefa controversa. Ao longo de quatro séculos a sua filosofia permaneceu numa obscuridade que lhe rendeu o quase total anonimato1, de modo que não é exagero afirmar que a sua obra “é uma descoberta tardia da nossa consciência histórica” (GADAMER, 19642 apud TEIXEIRA NETO, 2012, p. 20), e talvez esse seja o primeiro motivo a contribuir para a atual dificuldade de lhe fixar um lugar dentro dessa história. Todo o esforço que a historiografia filosófica dos séculos XIX-XX, em suas mais distintas vertentes, fez para vincular ou mesmo limitar a filosofia cusana a algum período bem definido da história da filosofia ocidental não parece ter gerado um consenso. Quer dizer, seria algum tema, conceito ou problema sobre o qual se debruçou o cardeal, ou mesmo o seu modo próprio de tratar um desses, o que tem dificultado o trabalho de seus comentadores nessa tentativa de defini-lo? Ao postular uma resposta, ao mesmo tempo em que alguns não viram nele nada além do que um filósofo medieval, outros o consideraram um renascentista, e outros ainda, fizeram dele um precursor da Modernidade. Sabemos que Nicolau de Cusa se situa justamente no ponto de passagem do “Outono” da Idade Média para a “Primavera” do mundo moderno, e decerto, este é outro fator, ainda mais imediato, a ser considerado na busca por sua definição, isto é, por determinar o espaço que lhe é devido na história da filosofia. Colomer3 (1964, p. 390), buscando compreender o pensamento cusano, afirma que esta “peculiar situação de fronteira, que Nicolau de Cusa ocupa entre o mundo medieval e o moderno, [...] é a chave não só da exata compreensão do 1 Cf. ANDRÉ, João Maria. Sentido, Simbolismo e interpretação no Discurso Filosófico de Nicolau de Cusa. Coimbra: Fundação Calouste Gulbenkian / Junta Nacional de Investigação Científica e Tecnológica, 1997, p. 22- 44. André em sua tese faz um levantamento histórico da interpretação do pensamento de Nicolau de Cusa. Ele apresenta essa história dividindo-a em dois momentos: 1. O esquecimento de um pensador; 2. A recuperação de um pensador. No que se refere a este segundo momento ele distingue quatro etapas, das quais queremos destacar as duas primeiras: “A primeira etapa, [...], corresponde à redescoberta deste autor e à renovação do interesse pelos estudos cusanos a partir do movimento neotomista do século passado [leia-se século XIX]” (Ibid., p. 31); “A segunda etapa tem início com a descoberta de Nicolau de Cusa pelos neokantianos no princípio deste século [leia-se século XX]. Referimo-nos nomeadamente às interpretações de E. Cassirer e do seu discípulo J. Ritter. A eles se deve, por um lado, o mérito de resgatar o pensamento de Nicolau de Cusa da polêmica teísmo-panteísmo e transcendência-imanência divinas e, por outro lado, a abertura do seu pensamento para a filosofia moderna, com o intuito de nele detectar traços prefiguradores dessa mesma filosofia” (Ibid., p. 34-35) apud TEIXEIRA NETO, José. Nexus: da relacionalidade do princípio à “metafísica do inominável” em Nicolau de Cusa. Natal: Universidade Federal do Rio Grande do Norte – BSE/CCHLA, 2012, p. 21 (Tese de doutorado). 2 GADAMER, Hans-Georg. Nicolás de Cusa y la Filosofía del Presente. In: Folia humanística 2 (1964), p. 929- 937. 3 COLOMER, Eusebio. Nicolau de Cusa (1401-1464): Um pensador na fronteira de dois mundos. In: Revista Portuguesa de Filosofia. Tomo 20, fascículo 4. Braga: Faculdade de Filosofia de Braga, 1964, p. 387-435. 11 homem e da obra, mas também, e sobretudo, da sua atualidade cada vez mais reconhecida”. Uma simples análise do período renascentista revela que o pensamento filosófico-teológico emergente, de modo especial no Século XV, é tecido por uma vasta e complexa abertura de tendências e caminhos. Note-se, por exemplo, que “à dissolução da escolástica, o desenvolvimento da mística, do nominalismo e do humanismo nascente” associava-se a um “especial despertar da autoconsciência e um novo sentido do valor do indivíduo e da importância da experiência, que estas correntes traziam consigo” (COLOMER, 1964, p. 388). Considerando-se isso, ainda que por alguns motivos a fecundidade desses caminhos abertos não tenha sido respeitada no processo histórico posterior, como bem aponta André4 (1999, p. 7), o labor filosófico de Nicolau de Cusa tem sido redescoberto na contemporaneidade como um exemplar significativo de tal riqueza5. Segue-se daí que se somarmos o fator histórico característico a outro fator que confere a este ainda mais relevância, a saber, a singularidade e originalidade do pensamento de Nicolau, nós vemos que não arbitrariamente a obra cusana pode ser qualificada como um capítulo emblemático da história da filosofia ocidental. Cassirer6 (2001, p. 13), confirmando este último ponto em um importante trabalho do início do século passado, dimensiona a importância do pensamento cusano em relação às questões e aspirações filosóficas que despontavam no contexto histórico em que vivia: “é o único pensador que concebe a totalidade dos problemas fundamentais da época a partir de um só princípio metodológico, e que, graças a este princípio, consegue se assenhorar deles”. Certamente ele se refere ao conceito de docta ignorantia e à doutrina da coincidentia oppositorum, que se constrói a partir deste. Em seguida, valorizando a grandeza do sistema filosófico do cardeal, o comentador (2001, p. 13) destaca como a filosofia cusana “abrange ainda, de acordo com o ideal medieval de totalidade, o conjunto formado pelo cosmos espiritual e físico, e não se detém diante de particularidades”. 4 ANDRÉ, João Maria. O homem como microcosmo: da concepção dinâmica do homem em Nicolau de Cusa à inflexão espiritualista da antropologia de Ficino. In: Philosophica, nº 14. Lisboa: Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa – Departamento de Filosofia, 1999. De acordo com o comentador (1999, p. 7) “se à fragmentação operada sobre a mundividência medieval se seguiu uma abertura plural de tendências em que o homem se potenciou como criador de si próprio e do seu destino, os primeiros passos após a revolução científica do Século XVII nem sempre respeitaram a fecundidade dos caminhos abertos, estreitando unidimensionalmente uma razão atuante sobretudo a partir da sua operacionalidade técnica e, por isso, configuradora de uma racionalidade mecanicística e funcional na interpretação do homem e da natureza e, consequentemente, no exercício das relações do primeiro com a segunda”. 5 Para Colomer (1964, p. 390) “é vantajoso para a grandeza e proximidade histórica de um pensador o fato de que ele não pertença total e definitivamente nem ao mundo medieval nem ao moderno e que apresente ainda unido aquilo que, depois dele, se separou e que os melhores espíritos de hoje se esforçam por unir outra vez: ciência e crença, sobriedade crítica e eros metafísico, humanismo e teologia”. 6 CASSIRER, Ernst. Indivíduo e Cosmos na Filosofia do Renascimento. Tradução de João Azenha Jr. e Mario Eduardo Viaro. São Paulo: Martins Fontes, 2001 (Original em língua alemã de 1927). 12 Por tudo isso, mais significativo que o período histórico no qual nasce Nicolau de Cusa, o que nos surpreende é a singularidade e distinção de sua filosofia. Se por um lado é inegável e determinante a influência da tradição neoplatônica medieval em seu pensamento, a começar por Proclo (412-485) e Dionísio Pseudo-Areopagita (séc. V-VI), até os chamados “albertistas7”, que davam continuidade à doutrina de Alberto Magno (1193/1206-1280). Por outro lado, a originalidade própria de seu enfoque, por exemplo, no tocante a aspectos essencias de sua teoria do conhecimento8, ou mesmo a peculiaridade de suas soluções para as questões que a polêmica acerca do panteísmo suscitou em sua época9, parecem anunciar a modernidade iminente10. Dentro dos limites tanto dessa relação que Nicolau possui com a filosofia que lhe é posterior como da sua vinculação a uma determinada tradição filosófica e teológica, os principais comentadores do cardeal alemão, no curso de suas interpretações, o definiram como o “primeiro dos modernos”, “o último dos medievais” ou ainda “um homem na fronteira de dois mundos”. De qualquer forma, não nos interessa aqui abrir espaço para realizar uma crítica à história das interpretações do pensamento cusano, e tampouco nos 7 Os “sucessores” de Alberto Magno são contados entre muitos nomes célebres, tais como: Ulrico de Strasburg, Dietrich de Freiberg, Mestre Eckhart, Bertoldo de Moosburg e João de Nova Domo. 8 Um desses aspectos essenciais se constitui a partir do esforço que Nicolau realiza para demonstrar os limites que o pensamento racional impõe ao discurso acerca do Absoluto. No proceder dessa investida é moldado no pensamento cusano o conceito de docta ignorantia, elemento essencial de sua teoria do conhecimento, e do qual resulta improfícuo qualquer pretensão de conhecimento absoluto seja sobre Deus ou as coisas criadas. 9 Sobre esse assunto confira o capítulo 2 de nosso trabalho: “Deus como complicatio mundi e o mundo como explicatio Dei”. 10 Cf. CASSIRER, Ernst. El problema del conocimiento en la filosofía y en las ciencias modernas I. Traducción de Wenceslao Roces. México: Fondo de Cultura Económica, 1953 (Original em língua alemã de 1906). Sobre esse assunto Cassirer afirma que “Nicolau de Cusa é considerado como o fundador e o antecipador da filosofia moderna, mas este juízo não pode apoiar-se, certamente, na peculiaridade e no conteúdo objetivo dos problemas que em sua doutrina se expõem e se desenvolvem. [Com ele] nos encontramos com os mesmos problemas que preocuparam toda a Idade Média: as relações entre Deus e o mundo seguem-se consideradas desde o especial ponto de vista da doutrina cristã da redenção e como o centro de todas as investigações. [...]. O característico da posição histórica do sistema é que não se orienta diretamente para o novo conteúdo, mas que introduz na mesma matéria tradicional uma mudança e um desenvolvimento que a faz exequível às exigências de um novo modo de pensar e de uma nova colocação do problema” (1953, p. 65, tradução nossa). E em outra ocasião ele acrescenta: “As primeiras considerações do De docta ignorantia deixam entrever um pensamento que aponta para uma orientação intelectual inteiramente nova, Também neste caso, o ponto de partida é a oposição entre o ser do absoluto e o ser do empiricamente condicionado, do infinito e do finito. Tal oposição, contudo, não mais é colocada de forma simplesmente dogmática, mas deve ser compreendida em toda a sua profundidade, deve ser entendida a partir das condições do conhecimento humano. Esta atitude diante do problema do conhecimento caracteriza Nicolau de Cusa como o primeiro pensador moderno. Seu primeiro trabalho consiste em um questionamento que ele se faz não apenas sobre Deus, mas também sobre a possibilidade de se conhecer Deus. E no que respeita a essa questão fundamental, não lhe satisfaz nenhuma das respostas que tinham sido dadas até então pela filosofia e pela teologia especulativa. Nenhuma delas é capaz de se sustentar do momento em que se tem consciência do simples conceito do conhecimento e dos pressupostos que nele estão contidos.” (2001, p. 18). 13 preocuparemos em demonstrar qual lugar da história da filosofia lhe é mais conveniente11. Apesar disso, é indiscutível que quando se pretende interpretar qualquer obra filosófica não é possível se abster de uma posição, isto é, sempre nosso olhar já está direcionado por determinada perspectiva ou influência. Sendo assim, em concordância com a postura que Colomer (1964, p. 388) assume em relação a essas questões, acreditamos que no cerne da “duplicidade” que caracteriza a filosofia cusana reside um sistema filosófico multiforme, ao mesmo tempo em que coeso, no qual Idade Média e Renascimento em muitos aspectos coexistem. Mas, no que é específico a este trabalho, deixaremos de lado o possivelmente novo ou “moderno” de sua especulação, e voltaremos nossa atenção sempre que necessário para a tradição da qual Nicolau se servia ativa e profundamente. Pois, no modo como o próprio comentador conclui e define o pensamento cusano, “a verdadeira pátria do seu espírito continua a ser a velha fé da Igreja e ao lado dela a dupla corrente do neoplatonismo cristão e da metafísica filosófica que, mais ou menos, irmanados, tinham fecundado toda a Idade Média” (1964, p. 389). Agora bem, dentre as diversas influências que vinculam Nicolau de Cusa à tradição filosófica medieval, aquela recebida quando em sua breve passagem (1424-1425) pela Universidade de Colônia é bastante significativa para nosso trabalho. Sem ela certamente o pensamento filosófico e teológico de Nicolau não poderia ter se desenvolvido, uma vez que é por meio da relação com seu mestre em teologia, Heimerich van de Velde, que ele se envolve definitivamente com as obras de importantes nomes do neoplatonismo cristão, tais como Alberto Magno, Raimundo Lúlio (1232-1315) e Dionísio Pseudo-Areopagita, as reconhecendo como fontes fundamentais para a construção de sua filosofia. Além disso, é nessa Universidade, na qual predominava a via antiqua, que Nicolau se aproxima do exemplarismo e do essencialismo, e também passa a ter interesse pelos procedimentos simbólicos aplicados aos problemas filosófico-teológicos, em particular os símbolos procedentes da matemática. Essa última inclinação mais tarde se tornará uma preferência, e um importante método para tratar das realidades que em si mesmas se mostram de difícil compreensão. Seguramente, se há uma realidade que o filósofo de Cusa busca investigar e que mais do que qualquer outra escapa à nossa capacidade de lhe conferir total inteligibilidade, é a 11 Sobre esses dois pontos, para uma visão mais estrita do problema e da bibliografia relacionada. Cf. TEIXEIRA NETO (2012, p. 20-32). 14 relação12 existente entre Deus, mundo e homem, temas basilares da sua metafísica. Em nossa dissertação acreditamos que para esclarecer os fundamentos que determinam essa relação, segundo o pensamento cusano, é necessário o aprofundamento dos conceitos de complicatio- explicatio, contractio e imago, no modo como eles estão articulados em sua obra. Antes de tudo, trata-se de entender que tipo de relação une a multiplicidade das coisas com sua verdade ou exemplar, isto é, admitindo-se a existência da unidade e a pluralidade, cabe esclarecer o vínculo entre ambas. É isso o que faremos, na primeira parte da segunda seção de nosso trabalho, desde a perspectiva da linguagem matemática para o âmbito ontológico da questão. Em seguida, na segunda parte da segunda seção, seremos conduzidos a compreender que pensar uma relação entre Deus, que é unidade absoluta, e a humana mens, que está inserida na multiplicidade que o mundo significa, exige, em nível de linguagem, o esclarecimento de como é possível que aquele que permanece inefável e inominável seja considerado, compreendido ou definido por algum conceito finito e nome proveniente da nossa razão. Tendo em vista que Deus é absoluto, isto é, não dependente, não limitado a nada, a seipsum, e por isso mesmo desvinculado de qualquer coisa, referência ou contração13, parece não ser possível negar que ele é totalmente alheio aos nossos discursos. Ou seja, transcendendo o nosso intelecto, ele sempre se mostra simples e absolutamente maior do que pode ser compreendido por nós. Nesse sentido, tomando como base os dois primeiros diálogos do Idiota, a saber, De sapientia e De mente, assim como alguns passos fundamentais 12 A palavra “relação” em se tratando de um possível vínculo existente entre Deus e a sua criação deve sempre ser tomada com ressalva, uma vez que sendo Deus absoluto, em sua unidade nada lhe é exterior e, por conseguinte, não lhe cabe qualquer relação. Ao longo de nosso trabalho acreditamos que ficará demonstrado em que sentido é possível pensar em uma “relação” Criador-criatura. 13 Citaremos no rodapé o texto em latim do De docta ignorantia a partir da seguinte edição: NICOLAI DE CUSA. De docta ignorantia. Opera omnia. Iussu et auctoritate Academiae Litterarum Heidelbergensis ad codicum fidem edita. Vol. I. Hamburgi: Felicis Meiner, 1932 (sigla: h). Para as citações no texto utilizaremos a seguinte tradução: NICOLAU DE CUSA. A douta ignorância (De docta ignorantia). Tradução, introdução e notas de João Maria André. Lisboa/Portugal: Fundação Calouste Gulbenkian, 2003. Além dessa tradução tomaremos como referencial sempre que for necessário as seguintes traduções: NICHOLAS OF CUSA. Nicholas of Cusa on learned ignorance (De docta ignorantia). In: HOPKINS, Jasper. A Translation and an Appraisal of De docta ignorantia. Translated into English by Jasper Hopkins. Second edition, 1985. Minneapolis: The Arthur J. Banning Press, 1985. Disponível em: ; NICOLAS DE CUES. De la docte ignorance (De docta ignorantia). Traduction par Moulinier. Introduction par Abel Rey. Avant-propos par Bernard Dubant. Paris: Guy Trédaniel-éditions de la Maisnie, 1979; NICOLÁS DE CUSA. Acerca de la docta ignorancia (De docta ignorantia). Libro I: Lo máximo absoluto. Introducción, traducción y notas de Jorge M. Machetta y Claudia D’Amico. Buenos Aires: Biblos, 2003 (Edición bilíngüe); NICOLÁS DE CUSA. Acerca de la docta ignorancia (De docta ignorantia). Libro II: Lo máximo contracto o universo. Introducción, traducción y notas de Jorge M. Machetta, Claudia D’Amico y Silvia Manzo. Buenos Aires: Biblos, 2004 (Edición bilíngüe). NICOLÁS DE CUSA. Acerca de la docta ignorancia (De docta ignorantia). Libro III: Lo máximo absoluto y a la vez contracto. Introducción de Klaus Reinhardt. Traducción y notas de Jorge M. Machetta y Ezequiel Ludueña. Buenos Aires: Biblos, 2009 (Edición bilíngüe). Para o texto citado acima conferir: De docta ignorantia. h I. L. I, cap. 2, n. 5, p. 7, linhas 6-8: “[...]ab omni respectu et contractione universaliter est absoluta, nihil sibi opponi manifestum est [...]” (A douta ignorância, p. 5). 15 da Docta ignorantia, pretendemos refletir neste tópico sobre o alcance semântico de nossa linguagem sobre Deus, e por meio disso pensarmos sobre como é possível falar de uma relação em nível ontológico entre Deus, o homem e o mundo. A terceira seção, por sua vez, estará estruturada em dois momentos distintos, porém complementares. No primeiro tópico veremos que o entendimento de como é concebível que a pluralidade seja na unidade, sem ser a unidade mesma, determina ao mesmo tempo a distinção e a não separação do mundo com respeito a Deus. No modo como Deus não é idêntico às coisas criadas e tampouco contraposto a elas, e com o intuito de superar o dualismo sem cair em um monismo panteísta, Nicolau de Cusa esclarece o laço que une a unidade infinita e a pluralidade finita formulando a sua original doutrina da complicatio- explicatio, cujos princípios fundantes se encontram na postulação do máximo absoluto, infinito e uno como coincidentia oppositorum. Quanto à temática desenvolvida no segundo tópico é preciso de antemão levar em conta outro aspecto da influência que a Universidade de Colônia exerce sobre a doutrina de Nicolau e somá-la a formação que ele adquire em Heidelberg. De acordo com a sua biografia, antes de se estabelecer em Colônia o cardeal já havia passado por outros dois grandes centros de estudos, Heidelberg e Pádua. Considerando-os em ordem cronológica descendente, Nicolau permanece seis anos (1417-1423) no clima averroísta da Universidade de Pádua, no qual tem o seu primeiro contato com a Itália renascentista e com as novas correntes da ciência e do humanismo. E antes disso ele se inscreve na recém-fundada Universidade de Heidelberg (1416-1417), principal referência na Alemanha da via nova, a qual ele se aproxima através de seu contato com o reitor, Marsílio de Inghem14. Como fruto das doutrinas que Nicolau recebe em Heidelberg e em Colônia, cremos que florescem no seu pensamento as atribuições de “peripatéticos” e “acadêmicos” para designar respectivamente as influências recebidas nessas Universidades. Pois bem, a Querela dos Universais designa a controvérsia que surgiu na escolástica do século XII sobre o status ontológico dos gêneros e espécies e que se tornou uma das mais notáveis questões da historiografia medieval. Considerado pela maioria dos comentadores como o principal problema lógico e metafísico da Idade Média ocidental, essa discussão suscitou para a sua resolução duas teses fundamentais: o nominalismo e o realismo. Ainda que o término dessa disputa, cujo itinerário é instaurado pela Isagoge (Introdução) de Porfírio 14 Para a apresentação destes momentos históricos do itinerário intelectual de Nicolau de Cusa no curso dessa Introdução. Cf. COLOMER (1964, p. 391-392). 16 no século III, seja comumente associado à refutação sistemática do realismo e a consequente defesa do nominalismo feita por Guilherme de Ockham (~1285-1347/9) durante o século XIV, a questão dos universais se propagou de forma contundente até o fim do Medievo, ressoando depois, com formas pouco diferentes, na Modernidade, e até os nossos dias. Considerando-se a sua relevância, esta problemática não poderia ficar alheia ao pensamento de Nicolau de Cusa, que também formula sua resposta para ela. A solução postulada pelo Cusano, entretanto, não milita indiscriminadamente em favor de qualquer perspectiva já defendida, senão que propõe uma concordantia philosophorum e busca dissolver o antagonismo entre as seitas dos “acadêmicos” e dos “peripatéticos15”. Este será, pois, o tema a ser tratado na parte final do segundo capítulo. Nós pretendemos a partir dessa discussão apresentar alguns aspectos centrais da relação de causalidade entre o ser do mundo e do seu Criador, dentro da perspectiva cusana que postula um único exemplar ou complicatio absoluta para a diversidade das coisas em razão de seu caráter de infinita coincidência dos opostos. Por fim, é preciso esclarecer que as considerações que nos propomos a fazer nessa dissertação terão como referência principal o Idiota. De mente, segunda obra e mais importante da trilogia de diálogos conhecida como “Idiota”, que foi escrita por Nicolau de Cusa em 1450. Esse livro, concluído em 23 de agosto no Mosteiro Camaldolese em Val di Castro na Itália, se apresenta dez anos após sua primeira grande obra de espessura filosófica, De docta ignorantia (1440), e se situa na segunda metade da produção total do cardeal. Além do De mente a série de livros do Idiota consta ainda de um escrito Acerca da sabedoria (Idiota. De sapientia), composto por dois diálogos, e outro dedicado aos “experimentos pesáveis” (Idiota. De staticis experimentis). A doutrina que compreende a mente humana como uma viva imagem de Deus (viva imago Dei) se constitui como um dos temas centrais abordados pelo Cusano nesse seu terceiro diálogo do Idiota, cujo título versa sobre a humana mens. Em diversos capítulos ao longo do De mente, Nicolau desenvolve essa doutrina articulando-a com outros temas já apresentados 15 Citaremos no rodapé o texto em latim do Idiota. De mente a partir da seguinte edição: NICOLAI DE CUSA. Idiota. De mente. In: Opera omnia. Iussu et auctoritate Academiae Litterarum Heidelbergensis ad codicum fidem edita. Vol. V. Hamburgi: Felicis Meiner, 1983, p. 81-218 (sigla: h). Para as citações no texto faremos nossa tradução para o português a partir da edição em latim (h) citada acima, e tomaremos como referência as seguintes traduções: NICOLÁS DE CUSA. Un ignorante discurre acerca de la mente (Idiota. De mente). Traducción de Jorge M. Machetta. Introducción de Jorge M. Machetta y Claudia D’Amico. Notas del círculo de Estudios cusanos de Buenos Aires. Buenos Aires: Editorial Biblos, 2005 (Edición bilíngüe); NICHOLAS OF CUSA. The layman on mind (Idiota. De mente). In: HOPKINS, Jasper. Nicholas of Cusa on wisdom and knowledge. Translated into English by Jasper Hopkins. Minneapolis: The Arthur J. Banning Press, 1996, p. 527- 601. Disponível em: . Para o texto citado acima conferir: Idiota. De mente. h V. cap. 2, n. 66, p. 103, linhas 19-20: “PHILOSOPHUS: Mirabiliter omnes omnium tangis philosophorum sectas, Peripateticorum et Academicorum” (Un ignorante discurre acerca de la mente, p. 53). 17 em obras anteriores, e que por já terem sido discutidos, não possuem tanto enfoque e não são aprofundados pontualmente, ainda que constantemente sejam retomados no decorrer da obra. Esses temas “secundários” de forma alguma são menos relevantes quando considerados no contexto geral da filosofia do cardeal, e de igual modo não ficarão em segundo plano nessa dissertação. Na verdade, é precisamente a associação do tema da humana mens enquanto imago dei com a relação complicatio-explicatio entre Deus e o mundo, exposta fundamentalmente no De docta ignorantia, o que vai constituir o objeto de reflexão de nossa dissertação. A mente humana não é apenas uma questão central do Idiota. De mente; entendida como uma imagem viva de Deus, ela se situa exatamente no cerne da antropologia cusana. Para além dos limites de uma filosofia que a resuma ao simples plano cognitivo, a mente em Nicolau de Cusa é de modo mais fundamental aquele lugar no qual se articulam de forma definitiva os temas que protagonizam a metafísica tradicional: Deus, o homem e o mundo. “E por este motivo, não é possível tratá-la com independência deles, [isto é], sem dar-lhes inteligibilidade” (RIENZO, 2005, p. 163)16. Apesar disso, devido à abrangência desses tópicos e a amplitude dos seus campos de referência, não nos deteremos em cada um deles no tocante a obra completa de Nicolau, o que resultaria em um trabalho quase inesgotável, mas, delimitando a abordagem, nossas considerações estarão centradas no livro que o filósofo escreveu Sobre a mente (Idiota. De mente), segundo escrito que compõe a série de diálogos do Idiota (Idiotae libri). Sendo assim, antes de desenvolvermos categoricamente a concepção de mente como viva imago Dei, o que faremos na quarta seção, conforme proponho no Sumário, nos preocuparemos em demonstrar, a partir da exposição da original doutrina cusana da complicatio-explicatio que tipo de relação une a multiplicidade das coisas com sua verdade ou exemplar, isto é, como Nicolau de Cusa compreende o laço que une o causado com o seu Princípio-causa. O desenvolvimento das questões que serão abordadas na segunda e terceira seção nos dará os fundamentos metafísicos necessários para no capítulo final refletirmos sobre como Nicolau de Cusa entende a diferença fundamental que existe entre a relação que liga a humana mens à unidade infinita e aquela outra que existe entre a multiplicidade que o mundo significa e essa mesma unidade. 16 Cf. RIENZO, Romina Di. Notas complementarias. 3. La mente: viva imagen de Dios. In: CUSA (2005. p. 163-170). 18 2 A MENTE DIVINA COMO UNIDADE ABSOLUTA E O MUNDO COMO PLURALIDADE. 2.1 A Unidade infinita e a pluralidade dos entes a partir dos princípios matemáticos. Para o pensamento cusano unidade e pluralidade não são termos contrapostos. Não existe a unidade de um lado e do outro a pluralidade, como se fosse possível que fora da unidade alguma coisa pudesse haver. Tudo está contido na unidade, pois ela é como que “a entidade absoluta pela qual todas as coisas são aquilo que são17”. Nesse sentido, a pluralidade das coisas está para a unidade infinita, da qual ela deriva, de um modo tal que sem ela não pode existir, pois, de fato, como seriam as coisas sem o ser?18. Essa questão também será aprofundada quando a abordarmos sob a perspectiva da peculiaríssima doutrina cusana da complicatio-explicatio na terceira seção de nossa dissertação. Mas, agora, tendo em vista que Nicolau sempre se vale de uma linguagem viável para poder expressar de alguma maneira aquilo que em si se mostra inatingível para nós, partiremos da relação unidade-número, ponto- linha etc., isto é, de uma linguagem matemática, que é a “mais conveniente por causa da sua incorruptível certeza19”, para melhor elucidar o modo pelo qual da mente divina deriva a multiplicidade da realidade, uma vez que a pluralidade das coisas não é senão o seu modo de entender20. No primeiro livro do De Docta ignorantia Nicolau de Cusa explica que a atividade cognoscitiva da mente humana opera sob dois elementos principais, a proporção e a comparação. Para ele, o entendimento se constitui como um processo discursivo que sempre se realiza numa dinâmica de comparação de tipo proporcional. Tomando esses dois elementos, a proporção e a comparação, em suas peculiaridades nós podemos perceber melhor seus traços específicos dentro do processo cognoscitivo. A comparação, considerada por si mesma, se efetua pela relação entre o objeto da investigação que se busca conhecer e o 17 De docta ignorantia. h I. L. I, cap. 2, n. 6, p. 7, linhas 16-17: “sicut absoluta maximitas est entitas absoluta, per quam omnia id sunt, quod sunt” (A douta ignorância, p. 6). 18 Cf. Ibid. h I. L. I, cap. 5, n. 14, p. 13, linhas 9-11: “[...] ita rerum pluralitates ab hac infinita unitate descendentes ad ipsam se habent, ut sine ipsa esse nequeant; quomodo enim essent sine esse?” (Ibid., p. 12). 19 Cf. Ibid. h I. L. I, cap. 11, n. 32, p. 24, linhas 6-9: “Hac veterum via incedentes, cum ipsis concurrentes dicimus, cum ad divina non nisi per symbola accedendi nobis via pateat, quod tunc mathematicalibus signis propter ipsorum incorruptibilem certitudinem convenientius uti poterimus” (Ibid., p. 25). 20 Cf. Idiota. De mente. h V. Cap. 6, n. 94, p. 140, linhas 10-11: “IDIOTA: [...] pluralitatem rerum non esse nisi modum intelligendi divinae mentis” (Un ignorante discurre acerca de la mente, p. 77). 19 conhecimento já adquirido, pois o que se pretende conhecer não pode ser compreendido senão a partir do que já se conhece. A proporção, por sua vez, é o meio utilizado para o estabelecimento de tais comparações e pelo qual a mente pode investigar. Ela exprime concordância por um lado e por outro aponta a diferença, daí que surge o número, “pois não pode haver proporção sem o número21”. Desse modo, o elemento constituinte das proporções, que por meio da comparação a mente pode por medida em todas as coisas, não pode ser senão o número. De acordo com o Cusano, toda “igualdade é gradual”, de forma que a coincidência que se consta nos termos comparados é sempre uma simples semelhança de mais ou de menos, e por isso “sempre pode ser uma vez mais repensada de um modo mais amplo” (BAUCHWITZ, 2009, p. 470, tradução nossa)22. Uma coisa pode coincidir com outra neste ou naquele aspecto, segundo o gênero, a espécie, o lugar, o tempo etc., mas nunca em todos os aspectos, isto é, de uma maneira absoluta. Dessa maneira, em toda investigação a medida e o medido são sempre no fundo “improporcionados”. Considerando isso, se em qualquer comparação a proporção encontrada nunca encerra na igualdade, é fácil deduzir que todas as coisas finitas admitem o número, pois são susceptíveis à proporção. Por conseguinte, o número se mostra como a base de constituição das proporções e o elemento original na constituição da atividade mental. Contudo, para o cardeal de Cusa “o número não está apenas no âmbito da quantidade, que cria proporção, mas em todas as coisas que, de qualquer modo, possam concordar ou diferir em substância ou em acidente23”. Parece-nos que através desta compreensão, mais do que indicar o caráter aritmético que a unidade possui enquanto componente básico da atividade cognoscitiva da humana mens, e como elemento mais simples no processo de numeração, do qual todos os números 21 Ibid. h V. Cap. 6, n. 92, p. 136, linha 6: “IDIOTA: [...] non enim potest esse proportio sine numero” (Ibid., p. 75, tradução nossa). 22 BAUCHWITZ, Oscar Federico. Nicolás de Cusa y los nombres de lo divino: Una metafísica de la alteridad. In: BAUCHWITZ, Oscar Federico; BEZERRA, Cícero Cunha (organizadores). Coleção Metafísica. Vol. 10, Tomo I. Atas do I Simpósio Ibero-Americano de Estudos Neoplatônicos: Imagem e Silêncio. Natal: Editora da UFRN, 2009, p. 469-487. 23 Para todo esse parágrafo e o anterior. Cf. De docta ignorantia. h I. L. I, cap. 1, n. 3, p. 6, linha 2-8: “Proportio vero cum convenientiam in aliquo uno simul et alteritatem dicat, absque numero intelligi nequit. Numerus ergo omnia proportionabilia includit. Non est igitur numerus in quantitate tantum, qui proportionem efficit, sed in omnibus, quae quovismodo substantialiter aut accidentaliter convenire possunt ac differre. Hinc forte omnia Pythagoras per numerorum vim constitui et intelligi iudicabat” (A douta ignorância, p. 4); Também Cf. Ibid. h. L. I, cap. 3, n. 9, p. 9, linha 3-9: “Et quoniam aequalitatem reperimus gradualem, ut unum aequalius uni sit quam alteri secundum convenientiam et differentiam genericam, specificam, localem, influentialem et temporalem cum similibus: patet non posse aut duo aut plura adeo similia et aequalia reperiri, quin adhuc in infinitum similiora esse possint. Hinc mensura et mensuratum, quantumcumque aequalia, semper differentia remanebunt” (Ibid., p. 7). 20 são um composto, o filósofo aponta para uma compreensão ontológica da unidade24, isto é, do número como elemento intrínseco às coisas, o que remete seu pensamento ao modo como Pitágoras entendia os números, a saber, que todas as coisas eram constituídas e entendidas pela força deles25. O desenvolvimento dessa compreensão, a partir da perspectiva cusana, nos permitirá explicar a distinção e a multiplicidade dos seres enquanto provenientes de um único princípio anterior à diversidade principiada. No capítulo 6 do Idiota. De mente, o Cusano trata desta função do número matemático como elemento constitutivo do ato proporcional da atividade mental, em comparação com o papel ontológico fundamental que lhe é conferido pela tradição dos filósofos pitagóricos. Essas duas interpretações serão expostas a diante. Considerando o número como um “ente da razão forjado pela nossa capacidade de distinguir através de comparações26”, podemos dizer que ele não constitui senão o modo de compreensão da humana mens. O número é “o exemplar das concepções de nossa mente” e nada pode ser entendido ou fazer-se sem ele. É por ele que se realiza a assimilação, a medição, a noção e separação entre as coisas comuns, as quais não poderiam ser entendidas e discernidas como singulares sem a ação numérica. “Sem o número nós não podemos entender que a substância é uma coisa, quantidade é outra coisa, e assim por diante em relação às outras (categorias)27”. Sendo assim, vemos que a constituição de proporções por meio do 24 Citaremos no rodapé o texto em latim do Idiota. De sapientia a partir da seguinte edição: NICOLAI DE CUSA. Idiota. De sapientia. In: Opera omnia. Iussu et auctoritate Academiae Litterarum Heidelbergensis ad codicum fidem edita. Vol. V. Hamburgi: Felicis Meiner, 1983, p. 3-80 (sigla: h). Para as citações no texto faremos nossa tradução para o português a partir da edição em latim (h) citada acima, e tomaremos como referência as seguintes traduções: NICOLÁS DE CUSA. Un ignorante discurre acerca de la sabiduría (Idiota. De sapientia). Introducción, traducción y notas de Jorge M. Machetta e Claudia D’Amico. Buenos Aires: Eudeba, 1999 (Edición bilíngüe); NICHOLAS OF CUSA. Idiota. De sapientia (The layman on wisdom). In: HOPKINS, Jasper. Nicholas of Cusa on wisdom and knowledge. Translated into English by Jasper Hopkins. Minneapolis: The Arthur J. Banning Press, 1996, p. 493-526. Disponível em: ; Nos três textos que vamos mais enfaticamente trabalhar nessa dissertação, a saber, De mente, De sapientia e De docta ignorantia, Nicolau, para falar da unidade, se utiliza de dois termos: “unitas” e “unum”. Apesar de, quando literalmente traduzidos para o português, esses termos significarem respectivamente: “unidade” e “um”, sabemos que ambos se referem ao mesmo sentido, como fica claro na seguinte passagem: “[...] unitas non attingitur numero, quia numerus est post unum” (Idiota. De sapientia. h V. L. I, n. 6, p. 11, linhas 11-12). Tendo isso em vista, faremos a utilização dos termos “unidade” e “um” nas citações do corpo do texto de acordo com a correspondência literal em latim, e fora das citações utilizaremos preferencialmente o termo “unidade” para traduzir tanto “unitas” como “unum”, de forma que se evite a alusão ao primeiro número aritmético. 25 Cf. ARISTÓTELES. Metafísica. L. I, cap. 5, 985b 25-26. Introducción, traducción y notas de Tomás Calvo Martínez. Madrid: Gredos, 2003, p. 89. 26 De docta ignorantia. h I. L. I, cap. 5, n. 14, p. 13, linhas 6-7: “Nam uti numerus, qui ens rationis est fabricatum per nostram comparativam discretionem” (A douta ignorância, p. 12) 27 Cf. Idiota. De mente. h V. Cap. 6, n. 95, p. 141, linhas 3-10: “IDIOTA: Pariformiter dico exemplar conceptionum nostrae mentis numerum esse. Sine numero enim nihil facere potest; neque assimilatio neque notio neque discretio neque mensuratio fieret numero non exsistente. Res enim non possunt aliae et aliae et discretae sine numero intelligi. Nam quod alia res est substantia et alia quantitas et ita de aliis, sine numero non 21 número não se relaciona tão somente com a esfera do conhecimento da matemática, mas se relaciona em geral com a tarefa mais ampla que consiste em estabelecer diferenças e concordâncias, sejam estas entre substâncias, entre acidentes ou entre uns e outras. Por outro lado, Nicolau reconhece a seriedade e a sabedoria dos filósofos pitagóricos que afirmavam não somente que o número é um ente matemático procedente da razão humana, mas que todas as coisas são a partir do número. Certamente esta tradição sabia como distinguir muito bem essas duas concepções do número. Na primeira definição é evidente que o número não pode ser princípio de coisa alguma, pois é finito e provém da humana mens. Já na segunda compreensão, o número da mens finita se relaciona de maneira simbólica com o número da mens infinita, o qual não é propriamente número, pois é anterior a toda quantidade. Esta tradição que encontra suas raízes na escola pitagórica e cujos pensadores investigavam tudo por meio do número entende que o número matemático é imagem do número procedente da mente divina28, de modo que, no seu ser imagem, o número de nossa mente é o exemplar das noções ao passo que o número divino é o exemplar das coisas29. Ao aprofundar essa compreensão do número pertencente à mens infinita, que deve ser entendido desde uma perspectiva ontológica, Nicolau sempre se vale da noção de número proveniente da mens finita, sustentado pela sua convicção, expressa no De docta ignorantia, de que as coisas visíveis são como que imagens do invisível. Para o Cusano, “este fato de que as coisas espirituais, em si por nós inatingíveis, possam ser investigadas simbolicamente, tem a sua raiz” em certo paralelismo observado entre as realidades finitas e as infinitas, visto que, “todas as coisas têm entre si reciprocamente certa proporção, embora oculta e incompreensível para nós30”. Esse paralelismo deve ser entendido, então, mais do ponto de vista da linguagem humana e do modo simbólico investigativo pelo qual o homem busca compreender o que é inefável, do que sob a pretensão de se conhecer ontologicamente as intelligitur. Unde cum numerus sit modus intelligendi, nihil sine eo intelligi potest” (Un ignorante discurre acerca de la mente, p. 79, tradução nossa). 28 Cf. Ibid. h V. Cap. 6, n. 88, p. 133, linhas 12-18: “IDIOTA: Arbitror autem viros Pythagoricos, qui ut ais per numerum de omnibus philosophantur, graves et acutos. Non quod credam eos voluisse de numero loqui, prout est mathematicus et ex nostra mente procedit – nam illum non esse alicuius rei principium de se constat –, sed symbolice ac rationabiliter locuti sunt de numero, qui ex divina mente procedit, cuius mathematicus est imago” (Ibid., p. 73). 29 Cf. Ibid. h V. Cap. 6, n. 95, p. 141, linhas 10-11: “IDIOTA: Numerus enim nostrae mentis cum sit imago numeri divini, qui est rerum exemplar, est exemplar notionum” (Ibid., p. 79). 30 Cf. De docta ignorantia. h I. L. I, cap. 11, n. 30, p. 22, linhas 4-11: “Consensere omnes sapientissimi nostri et divinissimi doctores visibilia veraciter invisibilium imagines esse atque creatorem ita cognoscibiliter a creaturis videri posse quasi in speculo et in aenigmate. Hoc autem, quod spiritualia – per se a nobis inattingibilia – symbolice investigentur, radicem habet ex hiis, quae superius dicta sunt, quoniam omnia ad se invicem quandam – nobis tamen occultam et incomprehensibilem – habent proportionem, ut ex omnibus unum exsurgat universum et omnia in uno maximo sint ipsum unum.” (A douta ignorância, p. 22-23). 22 coisas como elas são em si, pois esta dimensão da realidade se mostra sempre para além da nossa compreensão. Se considerarmos as coisas como são em si é inconcebível que haja proporção do infinito ao finito, pois Deus é justamente caracterizado como absoluto, e carece de toda relação, de modo que nada se lhe opõe. A unidade absoluta, que é o princípio absoluto de todas as coisas “é aquilo por meio do qual, no qual, e a partir do qual todo o inteligível é entendido, e é, no entanto, inalcançável com o intelecto31”. Dessa forma, é inconcebível que a unidade seja alcançada pelo número, posto que o número é posterior a ela; contudo, é perceptível como que se produz no pensamento do cardeal uma assimilação de nomes, tanto quando ele nomeia como número aquilo que é antes da quantidade como quando ele chama com o nome de mente aquela mente divina que nos é imperscrutável32. Este paralelismo entre os nomes só é possível tendo em vista a razão humana, que em seu modo de operar admite uma “relação” entre as coisas inefáveis e as tangíveis. Nessa segunda seção, a relação que estamos abordando e que se encontra estabelecida na filosofia de Nicolau é entre o número infinito e o finito. Mais adiante no trabalho, será abordada a relação entre a humana mens e a mente divina, quando novamente discorreremos sobre esse assunto. De volta à discussão que o Cusano estabelece no capítulo VI do Idiota. De mente, e diante da solicitação da personagem do filósofo que pede que sejam aprofundados os motivos que conduzem alguém a chamar os números de princípios das coisas, Nicolau explica pela boca do ignorante que, tendo em vista que só há um único princípio infinito, este necessariamente deve ser infinitamente simples. Somente o primeiro princípio possui essa característica, e, por conseguinte ela não pode ser encontrada em mais nada, nem mesmo no primeiro principiado, de tal forma que, não sendo simples, o primeiro principiado tem de ser composto de outros. Diante disso, a questão que se apresenta é: de que maneira o primeiro principiado pode ser composto, tendo em vista que ele é o primeiro na ordem do principiado, e não há outro que o precede por natureza e o componha? Somente admitindo-se convenientemente que o primeiro principiado seja composto, não de outros, mas de si mesmo, é que podemos justificar sua composição, e o único o qual a finitude de nossa mente 31 Idiota. De sapientia. h V. L. I, n. 8, p. 14, linhas 7-9: “IDIOTA: Ipsum est, per quod, in quo et ex quo omne intelligibile intelligitur, et tamen intellectu inattingibile” (Un ignorante discurre acerca de la sabiduría, p. 29, tradução nossa). 32 Cf. Idiota. De mente. h V. Cap. 6, n. 88, p. 133, linhas 18-22: “IDIOTA: Sicut enim mens nostra se habet ad infinitam aeternam mentem, ita numerus nostrae mentis ad numerum illum. Et damus illi numero nomen nostrum sicut menti illi nomen mentis nostrae, et delectabiliter multum versamur in numero quasi in nostro proprio opere” (Un ignorante discurre acerca de la mente, p. 73). 23 reconhece como composto de si mesmo é o número, “pois do número par e impar está composto todo número33”. Desse modo, vemos como o número matemático proveniente da humana mens se constitui como a imagem mais próxima do primeiro principiado, o qual é nomeado simbolicamente de “número”, pois, como foi dito, ambos são compostos de si mesmos. Apesar de não termos como nos aproximar da quididade do primeiro principiado de outra forma a não ser considerando o número, essa nomeação pode ser mais bem esclarecida e justificada se o tomarmos em análise enquanto exemplar-número procedente do intelecto divino. Para Nicolau, somente a mente numera, seja a humana ou a divina. Com efeito, só podemos numerar pelo um, pois “por meio do um se constitui todo número. [...] o um é princípio do número34”. Em outras palavras, o número “pressupõe necessariamente a unidade como seu princípio, de tal maneira que sem ela seria impossível haver número”, e a unidade é “o princípio de todo número porque é o mínimo e o fim de todo o número porque é o máximo35”. Ora, segundo o Cusano, da mesma forma “como o número provém de nossa mente em virtude do fato de que nós compreendemos o que é comumente unidade como individualidade de muitos”, assim também “a pluralidade das coisas provém da mente divina, na qual há muitas coisas sem pluralidade porque estão na unidade complicante36”. Se isto é assim, ou seja, se a pluralidade das coisas provém da mente divina do mesmo modo como o número provém de nossa mente, então não é difícil concluir que a mente divina e a humana mens são unidades complicantes que possuem o número como os 33 Cf. Idiota. De mente. h V. Cap. 6, n. 89, p. 133-134, linhas 1-11; n. 90, p. 134, linhas 1-3: “PHILOSOPHUS: Explana quaeso motiva, quae quem movere possunt ad dicendum rerum principia numeros. / IDIOTA: Non potest esse nisi unum infinitum principium, et hoc solum est infinite simplex. Primum autem principiatum non potest esse infinite simplex, ut de se patet. Neque potest esse compositum ex aliis ipsum componentibus; tunc enim non foret primum principiatum, sed componentia ipsum natura praecederent. Oportet igitur admittere, quod primum principiatum sic sit compositum, quod tamen non sit ex aliis, sed ex se ipso compositum. Et non capit mens nostra aliquid tale esse posse, nisi sit numerus vel ut numerus nostrae mentis. Nam numerus est compositus et ex se ipso compositus – ex numero enim pari et impari est omnis numerus compositus –: sic numerus est ex numero compositus” (Un ignorante discurre acerca de la mente, p. 73, tradução nossa). 34 Cf. Idiota. De sapientia. h V. L. I, n. 5, p. 9-10, linhas 13-14; 19; n. 6, p. 10, linha 1: “IDIOTA: Recte dicis. Per quae autem discretio? Nonne per unum numeratur? [...] / IDIOTA: Per unum igitur fit omnis numerus? [...] / IDIOTA: Sicut igitur unum est principium numeri [...]” (Un ignorante discurre acerca de la sabiduría, p. 25, tradução nossa). 35 De docta ignorantia. h I. L. I, cap. 5, n. 14, p. 12, linhas 24-25; p. 13, linhas 7-9: “[...] sed est principium omnis numeri, quia minimum; est finis omnis numeri, quia maximum”; “[...] praesupponit necessario unitatem pro tali numeri principio, ut sine eo impossibile sit numerum esse” (A douta ignorância, p. 12) 36 Ibid. h I. L. II, cap. 3, n. 108, p. 70, linhas 19-23: “Sicut igitur ex nostra mente, per hoc quod circa unum commune multa singulariter intelligimus, numerus exoritur: ita rerum pluralitas ex divina mente, in qua sunt plura sine pluralitate quia in unitate complicante” (Ibid., p. 77). 24 seus modos de entender. Em outras palavras, assim como o número é a “explicação” da unidade, a pluralidade das coisas é a “explicação” da mente divina. Pois bem, no caso da mente divina, na qual entender e ser são o mesmo37, o seu número é a própria pluralidade das coisas. Disso resulta que todas as coisas criadas não possuem outro ser senão o ser devido à própria unidade, como se Deus, que é a unidade, se multiplicasse nas coisas. Além disso, considerando-se que “as coisas não podem participar igualmente da própria igualdade de ser38”, pois “a própria forma infinita não é recebida senão de modo finito” e diverso, então vemos como Deus comunica “o ser a todas as coisas do modo como pode ser recebido39”, isto é, ele entende uma coisa de um modo e outra coisa de outro modo, de onde surge a pluralidade, que nela é a unidade40. Com isso, vemos como o número não é outra coisa senão as próprias coisas enumeradas, isto é, entre a mente divina e as coisas não há a intervenção do número atualmente existente, uma vez que o número das coisas são as coisas mesmas41, o que endorsa a influência da filosofia pitagórica no pensamento de Nicolau. Vale ainda destacar que tudo isso se nos faz compreensível a partir da linguagem simbólica da matemática, pela qual o Cusano nos mostra como é que pelo ‘uno’, isto é, pela mente divina, se faz a produção das coisas e como a proporção é o lugar, ou melhor, a região da forma, e o lugar da proporção é a matéria42. Por tudo o que foi dito, podemos então retornar à questão do primeiro principiado e entender com mais precisão que este é denominado número somente enquanto sujeito das coisas reais fora da mente humana, isto é, sujeito da proporção na qual reluz a forma. Uma vez que “a proporção é o lugar da forma, pois sem a proporção adequada a forma não pode reluzir”, vemos que “a proporção é como a aptidão própria da superfície de um espelho para o resplendor da imagem”. Se não há a proporção é impossível que haja a forma, assim como a 37 Cf. Ibid. h I. L. II, cap. 3, n. 109, p. 70, linhas 30-32: “Quis rogo intelligeret, quomodo ex divina mente rerum sit pluralitas, postquam intelligere Dei sit esse eius, qui est unitas infinita?” (Ibid., p. 77). 38 Ibid. h I. L. II, cap. 3, n. 108, p. 70, linhas 23-24: “Per hoc enim, quod res non possunt ipsam aequalitatem essendi aequaliter participare” (Ibid., p. 77). 39 Ibid. h I. L. II, cap. 3, n. 104, p. 68, linhas 17-18; 23-24: “Quoniam ipsa forma infinita non est nisi finite recepta [...]”; “Communicat enim piissimus Deus esse omnibus eo modo, quo percipi potest” (Ibid., p. 74-75). 40 Cf. Idiota. De mente. h V. Cap. 6, n. 94, p. 140, linhas 9-10: “IDIOTA: Ex eo enim, quod mens divina unum sic intelligit et aliud aliter, orta est rerum pluralitas” (Un ignorante discurre acerca de la mente, p. 77). 41 Cf. Ibid. h V. Cap. 6, n. 96, p. 144-145, linhas 14-17: “IDIOTA: Conspicis etiam, quomodo non est aliud numerus quam res numeratae. Ex quo habes inter mentem divinam et res non mediare numerum, qui habeat actuale esse, sed numerus rerum res sunt” (Ibid., p. 81). 42 Cf. Ibid. h V. Cap. 6, n. 88, p. 132, linhas 7-9: “PHILOSOPHUS: Apte applicasti. Et quando ‘unum’ dicis, intellectum aperis quomodo fit rerum productio ac quomodo proportio est locus orbis seu regio formae et locus proportionis materia” (Ibid., p. 73). 25 representação, e então, a imagem perece. Nesse sentido, explica o cardeal, podemos compreender comparativamente como “a unidade exemplar infinita não pode resplandecer senão na proporção adequada, em que está presente em termos de número”, isto é, do mesmo modo como um músico que quer fazer sensível seu conceito, pois tendo em mãos a diversidade dos sons ele precisa articulá-los em certa proporção para que surja a harmonia, ou melhor, “para que em tal proporção a harmonia resplandeça doce e perfeita”, e assim, ainda que distintos, os sons encontrem o seu lugar na devida proporção dentro da harmonia43. Na mente divina o número é o primeiro exemplar das coisas, o que é evidenciado “pela beleza agradável que está presente em todas as coisas, e que consiste na proporção44”. E por fim, fica claro que não é possível haver a alteridade e a pluralidade dos entes sem a inteligibilidade do número, pois “de onde [...] se extrai a unidade, desaparece toda multiplicidade45”, ordem, proporção e harmonia. 2.2 A humana mens e a imposição dos nomes divinos e conjecturais. No segundo diálogo do Idiota, cuja temática se desenvolve em torno ao conceito de mens, ainda antes de finalizar o primeiro capítulo o personagem do ignorante é questionado pelo filósofo sobre se ele possui alguma “conjectura sobre a mente” e se para ele mens e anima são distintos. Ao ouvir que a mente “se diz pelo medir” e que é sim diferente da alma46, 43 Cf. Ibid. h V. Cap. 6, n. 92, p. 136-138, linhas 1-19: “IDIOTA: Habemus igitur, quomodo primum principiatum est, cuius typum gerit numerus. Neque ad quiditatem eius aliter ac propius accedere possumus, cum praecisio quiditatis cuiuscumque rei sit per nos inattingibilis aliter quam in aenigmate vel figura. Primum enim principiatum vocamus symbolice numerum, quia numerus est subiectum proportionis; non enim potest esse proportio sine numero. Et proportio est locus formae; sine enim proportione apta et congrua formae forma resplendere nequit, uti dixi proportione apta cocleari rupta non posse formam manere, quia non habet locum. Est enim proportio quasi aptitudo superficiei specularis ad resplendentiam imaginis, qua non stante desinit repraesentatio. Ecce quomodo unitas exemplaris infinita non potest resplendere nisi in proportione apta, quae proportio est in numero. Agit enim mens aeterna quasi ut musicus, qui suum conceptum vult sensibilem facere. Recipit enim pluralitatem vocum et illas redigit in proportionem congruentem harmoniae, ut in illa proportione harmonia dulciter et perfecte resplendeat, quando ibi est ut in loco suo, et variatur harmoniae resplendentia ex varietate proportionis harmoniae congruentis, et desinit harmonia aptitudine proportionis desinente. Ex mente igitur numerus et omnia” (Ibid., p. 75-77, tradução nossa). 44 Ibid. h V. Cap. 6, n. 94, p. 140, linhas 13-14: “IDIOTA: Hoc ostendit delectatio et pulchritudo, quae omnibus rebus inest, quae in proportione consistit” (Ibid., p. 77, tradução nossa). 45 Ibid. h V. Cap. 9, n. 118, p. 174 linhas 15-16: “IDIOTA: Unde si tollis punctum, deficit omnis magnitudo, si tollis unitatem, deficit omnis multitudo” (Ibid., p. 103, tradução nossa). 46 Cf. Ibid. h V. Cap. 1, n. 57, p. 90-91, linhas 1-8: “PHILOSOPHUS: Dic igitur, idiota – ita tu tibi nomen esse ais –, si quam de mente habes coniecturam. / IDIOTA: Puto neminem esse aut fuisse hominem perfectum, qui non de mente aliqualem saltem fecerit conceptum. Habeo quidem et ego: mentem esse, ex qua omnium rerum 26 o filósofo que desconhece essa etimologia solicita que tal determinação lhe seja esclarecida. A partir daí, se inicia o desdobramento de um dos núcleos temáticos centrais da antropologia cusana, aquele que versa sobre a imposição dos nomes, tema que também será abordado na quarta seção desse trabalho, mas sob a perspectiva da arte humana como imagem da arte divina. Com efeito, nosso propósito para agora não é discutir o caráter conjectural do entendimento humano desde uma perspectiva “positiva”, isto é, que destaque o aspecto transcendental do homem enquanto imago Dei, no seu conhecer, criar e expressar-se; trata-se de estabelecer os limites e as condições de possiblidade da nossa linguagem, enquanto produto da humana mens, para a nomeação do divino e do mundo. Pois bem, Nicolau afirma então, pela boca do ignorante, que “esta força que reside em nós, a qual complica nocionalmente os exemplares de tudo” chama-se mens, ainda que de nenhuma maneira esse nome lhe seja o mais próprio. Pois, para ele, do mesmo modo como a razão humana não alcança a quididade das obras de Deus, também não lhe é possível alcançar o nome preciso para nomeá-las47. Vejamos então, avançando no pensamento do filósofo de Cusa, como é que a partir do conhecimento do modo próprio pelo qual a nossa mente opera vamos entender que não nos é acessível este nome verdadeiro ou natural, como Nicolau costuma dizer. A humana mens no seu processo de imposição dos nomes toma as coisas que são apreendidas pelos sentidos e busca por um movimento da razão estabelecer as devidas relações de proporção e comparação a fim de encontrar os nomes mais convenientes48. A razão “utiliza o sentido como instrumento para discernir (discretio) o sensível, mas é ela que discerne no sentido o sensível49”, isto é, a partir da mensuração das concordâncias e das terminus et mensura. Mentem quidem a mensurando dici conicio. / PHILOSOPHUS: Putasne aliud mentem, aliud animam? / IDIOTA: Puto certe” (Ibid., p. 43, tradução nossa). 47 Cf. Ibid. h V. Cap. 2, n. 58, p. 92-93, linhas 9-13: “IDIOTA: Si de vi vocabuli diligentius scrutandum est, arbitror vim illam, quae in nobis est, omnium rerum exemplaria notionaliter complicantem, quam mentem appello, nequaquam proprie nominari. Quemadmodum enim ratio humana quiditatem operum dei non attingit, sic nec vocabulum” (Ibid., p. 45, tradução nossa). 48 Cf. Ibid. h V. Cap. 2, n. 64, p. 99, linhas 7-10: “IDIOTA: Impositio igitur vocabuli fit motu rationis. Nam motus rationis est circa res, quae sub sensu cadunt, quarum discretionem, concordantiam et differentiam ratio facit [...]” (Ibid., p. 49-51). 49 Citaremos no rodapé o texto em latim do De coniecturis a partir da seguinte edição: NICOLAI DE CUSA. De coniecturis. Opera omnia. Iussu et auctoritate Academiae Litterarum Heidelbergensis ad codicum fidem edita. Vol. III. Hamburgi: Felicis Meiner, 1972 (sigla: h). Para as citações no texto faremos nossa tradução para o português a partir da edição em latim (h) citada acima, e tomaremos como referência a seguinte tradução: NICHOLAS OF CUSA. De coniecturis (On surmises). In: HOPKINS, Jasper. Nicholas of Cusa: Metaphysical speculations, volume two. Six Latin Texts Translated into English by Jasper Hopkins. Minneapolis: The Arthur J. Banning Press, 2000, p. 160-297. Disponível em: . Para o texto citado acima conferir: De coniecturis. h III. L. I, cap. 8, n. 32, p. 38, linhas 7-10: “Quapropter sensus ut sic non negat, negare enim discretionis est; tantum enim affirmat sensibile esse, sed non hoc aut illud. Ratio ergo 27 diferenças dos objetos sensíveis a razão impõe os nomes convenientes às coisas e cria os gêneros e espécies (enquanto entia rationis50) segundo relações que pressupõe o número. Pois, como já vimos51, o número “é um ente da razão forjado pela nossa faculdade de distinguir através de comparações52”. A partir disso, entendemos que pela mensura da mente “nomeamos uma coisa com um determinado nome e por certa razão, e a mesma coisa com outro nome e por outra razão, [...] dado que a propriedade dos nomes recebe o mais e o menos53”. Nessa perspectiva e retomando a temática abordada no tópico anterior, podemos perceber então que “a precisão na combinação das coisas corpóreas e a adaptação exata do conhecido ao desconhecido ultrapassam de tal maneira a razão humana54” que estes nomes, podendo ser mais ou menos adequados, caracterizam-se como conjecturas e opiniões, e o nome preciso é ignorado. Dito de outra forma, se nós considerarmos que, de acordo com Nicolau de Cusa, todas as coisas, exceto Deus, admitem relações de comparação e graus de perfeição, então não é difícil perceber que naquelas coisas acerca das quais se ocupa a razão não é possível encontrar a forma em sua verdade, isto é, em si mesma, e então a razão sucumbe na conjectura e na opinião55. Em consequência disso, conclui-se que o nome preciso e natural concorda com a forma simples, absoluta e infinita. E essa forma inefável de nenhuma maneira pode ser alcançada pela mente humana, pois nocionalmente, através dos nomes impostos pela razão, não há como se compreender ou atingir aquilo que é infinito56. Em consequência desse raciocínio Nicolau afirma que também não nos é possível formar um conceito acerca de Deus a partir daquilo que pode receber o mais ou o menos, pois sensu ut instrumento ad discernendum sensibilia utitur; sed ipsa est, quae in sensu sensibile discernit” (On surmises, p. 178, tradução nossa). 50 Sobre o modo como Nicolau de Cusa aborda e compreende o tema dos universais (gêneros e espécies) confira a seção 3.2 do nosso trabalho, quando na exposição das posições dos acadêmicos e dos peripatéticos. 51 Confira a seção 2.1 do nosso trabalho. 52 De docta ignorantia. h I. L. I, cap. 5, n. 14, p. 13, linhas 6-7: “Nam uti numerus, qui ens rationis est fabricatum per nostram comparativam discretionem [...]” (A douta ignorância, p. 12). 53 Idiota. De mente. h V. Cap. 2, n. 58, p. 93, linhas 13-18: “IDIOTA: Sunt enim vocabula motu rationis imposita. Nominamus enim unam rem vocabulo uno et per certam rationem et eandem alio per aliam, et una lingua habet propriora, alia magis barbara et remotiora vocabula. Ita video, quod, cum proprietas vocabulorum recipiat magis et minus, vocabulum praecisum ignorari” (Un ignorante discurre acerca de la mente, p. 45, tradução nossa). 54 De docta ignorantia. h I. L. I, cap. 1, n. 4, p. 6, linhas 9-10: “Praecisio vero combinationum in rebus corporalibus ac adaptatio congrua noti ad ignotum humanam rationem supergreditur” (A douta ignorância, p. 4). 55 Cf. Idiota. De mente. h V. Cap. 2, n. 64, p. 99-100, linhas 11-14: “Sic igitur vocabula imponit et movetur ratio ad dandum hoc nomen uni et aliud alteri rei. Verum cum non reperiatur forma in sua veritate in his, circa quae ratio versatur, hinc ratio in coniectura et opinione occumbit” (Un ignorante discurre acerca de la mente, p. 51). 56 Cf. Ibid. h V. Cap. 2, n. 67, p. 103-104, linhas 7-10: “Quam quidem infinitam formam nulla ratio attingere potest. Hinc per omnia vocabula rationis motu imposita ineffabilis non comprehenditur” (Ibid., p. 53). 28 sendo infinito ele supera toda razão de semelhanças, permanecendo necessariamente desconhecido57. Esta compreensão se fundamenta naquele princípio essencial que o próprio Cusano descreve no De docta ignorantia, a saber, que “não há proporção do infinito ao finito”, pois em qualquer coisa “onde for possível encontrar excedente e excedido não se chega ao máximo de modo simples, pois tanto o que excede como o que é excedido são finitos58”. Sendo assim, Deus não pode ser pensando em uma dimensão comparativa e por isso não pode ser alcançado pela nossa razão, e “ambos, o eterno nome natural e a forma essencial, são conhecidos precisamente somente por ele” (HOPKINS, 1996, p. 593, nota 10). Apesar de na forma como estamos conduzindo nossa reflexão se destacar mais o aspecto insuficiente ou “negativo” da nossa capacidade de falar sobre Deus, na verdade, como ressalta Bauchwitz (2009, p. 473, tradução nossa) em um importante artigo sobre os nomes do divino em Nicolau de Cusa, “afirmar ou negar se encontram no mesmo âmbito no que se refere ao infinito”. Mas como isso é possível? Se de fato em relação ao discurso sobre a realidade divina não há diferença entre afirmação e negação, como é possível então que falemos qualquer coisa sobre Deus ou o definamos de alguma maneira por meio de nossa mente finita? Sem dúvida, a superioridade da natureza divina e a consequente transcendência do seu nome em relação tanto à afirmação quanto à negação evidencia o limite de nossa inteligência e “parece esgotar os recursos a que possa apelar a mente humana para tentar dizer algo válido sobre o divino” (MACHETTA; D’AMICO, 1999, p. 98, tradução nossa)59. Apesar disso, no De sapientia Nicolau toma essa questão e servindo-se das perguntas que o orador direciona ao idiota ele busca apontar um caminho que nos leve ao nome do inominado. O segundo livro do De sapientia se inicia com a personagem do orador questionando o idiota sobre como se poderia formar um conceito acerca de Deus tendo em vista que Deus é maior do que se possa conceber60. A resposta que o orador recebe é no mínimo surpreendente: “Em toda pergunta acerca de Deus pressupõe-se o que se pergunta, e isto é o que há de responder-se61”. Essa afirmação de Nicolau não pode ser entendida apenas como fruto “de um 57 Cf. Idiota. De sapientia. h V. L. II, n. 38, p. 70, linhas 1-2: “ORATOR: In his igitur, quae recipiunt magis et minus, non est de deo conceptus formandus?” (Un ignorante discurre acerca de la sabiduría, p. 85). 58 De docta ignorantia. h I. L. I, cap. 3, n.9, p. 8-9, linhas 20-22; 1: “Quoniam ex se manifestum est infiniti ad finitum proportionem non esse, est et ex hoc clarissimum, quod, ubi est reperire excedens et excessum, non deveniri ad maximum simpliciter, cum excedentia et excessa finita sint.” (A douta ignorância, p. 7). 59 MACHETTA, Jorge M; D’AMICO, Claudia. Notas Complementarias. In: CUSA (1999, p. 52-69; 96-107). 60 Cf. Idiota. De sapientia. h V. L. II, n. 28, p. 59, linhas 12-13: “ORATOR: Ut mihi dicas: Ex quo deus est maior quam concipi possit, quomodo de ipso facere debeam conceptum?” (Un ignorante discurre acerca de la sabiduría, p. 71). 61 Ibid. h V. L. II, n. 29, p. 60, linhas 18-19: “IDIOTA: Omnis quaestio de deo praesupponit quaesitum, et id est respondendum” (Ibid., p. 73, tradução nossa). 29 pressuposto inevitável que justifique o poder vincular com legítima logicidade o perguntado à pergunta que lhe é direcionada” (MACHETTA; D’AMICO, 1999, p. 96, tradução nossa), mas que, para além disso, possui sua raiz mais profunda na compreensão de Deus como entitas absoluta. Vejamos; esse raciocínio se fundamenta na seguinte intelecção: perguntar sobre a existência de algo é pressupor a entidade, e perguntar sobre quem é o alguém que existe é pressupor a quididade. Pois bem, se o objeto da pergunta é uma realidade infinita, em tais questões se encontram pressupostas a entidade absoluta e a quididade absoluta, que não são outras coisas senão o próprio Deus. Sendo assim, quando se pergunta qualquer coisa sobre Deus, seja no que se refere à possibilidade de sua existência ou quando se pretende denominá- lo por algum conceito reto, justo, verdadeiro e qualquer outro, nós devemos então nos voltar para a própria existência, retitude, justiça e verdade, pois Deus é “significado em toda a significação dos termos, ainda que seja ele mesmo não significável62”. A relação lógica que se estabelece nesse raciocínio se funda então na realidade mesma, pois o que se evidencia e se pressupõe em qualquer pergunta que possa ser formulada sobre Deus é justamente “o ‘esse’ do que se pergunta” (MACHETTA; D’AMICO, 1999, p. 96, tradução nossa), que, por sua vez, está assumido na entitas absoluta. Desse modo, fica demonstrado com maior nitidez como a resposta à pergunta feita pelo orador já se encontrava na própria pergunta. Cabe considerar, entretanto, que o desenvolvimento dessa compreensão no decorrer do De sapientia leva o Cusano a concluir que se a resposta a qualquer pergunta que possa ser formulada a respeito de Deus já se encontra pressuposta na própria pergunta então não é possível que haja alguma pergunta propriamente falando sobre Deus, já que a pergunta coincide com a resposta. Dito de outra maneira, sendo Deus a absoluta pressuposição de todas as coisas não há como em nosso entendimento haver espaço para qualquer dúvida referente a ele, seja no que diz respeito à sua verdade, à sua bondade, e de igual modo em todos os casos. Somando-se a isso, vale notar que Nicolau consegue chegar a essa mesma conclusão partindo de outra perspectiva, a saber, tendo-se em vista a praecisio enquanto predicação de Deus. Para 62 Cf. Ibid. h V. L. II, n. 29, p. 60-61, linhas 3-21: “ORATOR: Quid tunc per me agendum est, quando de deo rectum conceptum facere propono? / IDIOTA: Tunc te ad rectitudinem ipsam convertas. / ORATOR: Et quando verum de deo conceptum facere nitor, quid tunc agendum? / IDIOTA: Ad veritatem ipsam inspicias. / ORATOR: Quid, si iustum conceptum facere proposuero? / IDIOTA: Ad iustitiam te convertas. / ORATOR: Et quando quaesivero, quomodo bonum attingam de deo conceptum, quid tunc agam? / IDIOTA: Ad bonitatem mentis oculos attolle. / ORATOR: Miror, quo me in omnibus remittas. / IDIOTA: Vide, quam facilis est difficultas in divinis, ut inquisitori semper se ipsam offerat modo, quo inquiritur. / ORATOR: Nihil indubie mirabilius. / IDIOTA: Omnis quaestio de deo praesupponit quaesitum, et id est respondendum, quod in omni quaestione de deo quaesitio praesupponit, nam deus in omni terminorum significatione significatur, licet sit insignificabilis” (Ibid., p. 75, tradução nossa). 30 ele, toda pergunta formulada sobre Deus ou resposta a essa pergunta não pode ser nem própria nem precisa, pois a precisão mesma é infinita e inalcançável. Nossas conjecturas apenas participam da resposta absoluta que é infinitamente precisa63, pois, como já comentamos, naquilo que pode receber o mais ou menos não é possível que seja formulado um conceito sobre Deus. Não obstante, mesmo que sob estas perspectivas não haja qualquer sentido em buscar por meio da razão descobrir ou determinar as características, qualidades ou os conceitos de Deus a partir da ascensão ou descensão dos nomes finitos ao infinito, o que a resposta dada pelo idiota no início do diálogo nos possibilita entender é que as nossas concepções ou nomes atribuídos a Deus alcançam sua significância e seu valor “quando os consideramos desde a realidade absoluta na qual se dão com absoluta plenitude”. Ou seja, “se nos mantemos na órbita dos conceitos absolutos podemos falar de Deus”, pois, nessa perspectiva não se trata mais de simplesmente tentar vincular um conceito nosso à predicação do divino, buscando por meio de analogias avançar no conhecimento, “desde o imperfeito para o perfeito em uma progressão que siga as pautas do entendimento humano” (MACHETTA; D’AMICO, 1999, p. 96-97, tradução nossa) senão que, ao inverso, é o próprio Deus que facilita as coisas manifestando-se a si mesmo “como algo que não tem nome, [mas] que em todas as coisas que são ele mesmo é” (BAUCHWITZ, 2009, p. 469, tradução nossa), pois Deus é “conceptionum conceptus” (conceito dos conceitos64) e por isso in omni conceptu concipitur inconceptibilis” (em todo conceito é concebido o conceito inconcebível). Dessa forma, vemos como Deus é o conceito absoluto e a absoluta precisão na qual estão complicados todos os nomes. Ele é a precisão de todas e de cada uma das coisas que podem ser concebidas. Por conseguinte, uma vez que todo conceito provém de uma mente, e sendo Deus o conceito de tudo o que é conceituável, então nós deduzimos que, de fato, existe um conceito de Deus, ainda que indubitavelmente esse conceito não possa ser gerado por nossa mente, já que é absoluto; todavia, é plausível que a sua origem se deva à própria mente divina. Logo, tendo em vista a mente divina que é a forma de todo o formável, ou ainda, a 63 Cf. Ibid. h V. L. II, n. 31, p. 62, linhas 1-10: “ORATOR: Si id, quod in omni quaestione praesupponitur, est in theologicis ad quaestionem responsio, tunc nulla est de deo propria quaestio, quando in ea coincidit responsio. / IDIOTA: Optime infers. Et adice quod, cum deus sit infinita rectitudo et necessitas absoluta, hinc dubia quaestio eum non attingit, sed omnis dubitatio in deo est certitudo. Unde sic et omnis de deo ad quaestionem responsio non est propria et praecisa responsio, cum praecisio non sit nisi una et infinita, quae est deus. Omnis enim responsio participat de absoluta responsione, quae est infinite praecisa” (Ibid., p. 75-77). 64 Isto é, o Verbo de Deus, o conceito absoluto, ou ainda, o conceito per se. Confira o parágrago seguinte. 31 forma ideal de todas as coisas que podem ser concebidas, esse conceito chama-se Verbo de Deus ou razão65. O Verbo divino, por sua vez, enquanto forma infinita e exemplar simplíssimo, pode ser chamado pelo nome de todas as coisas na medida em que olhamos para as suas imagens, isto é, se temos em vista as criaturas. “Todos esses nomes são nomes que explicam a complicação do único nome inefável. E, pelo fato de o nome próprio ser infinito, assim ele complica tais nomes, em número infinito, de perfeições particulares”. Ou seja, Deus pode ser legitimamente denominado por todos os nomes ainda que, reafirmando o que já foi dito, não haja nenhum que alcance a sua praecisio, dado que “qualquer um desses nomes está para o nome próprio e inefável como o finito está para o infinito66”: Ignorante: Portanto, uma é a palavra inefável, a qual é o nome preciso de todas as coisas na medida em que estas são tomadas por um nome através da operação da razão. Certamente este nome inefável a seu modo resplandece em todos os nomes (impostos), porque é a infinita nominabilidade de todos os nomes e é a infinita vocabilidade de tudo o que é exprimível por meio da voz, para que assim todo nome seja imagem do nome preciso. E nenhuma outra coisa todos buscaram dizer, ainda que talvez aquilo que disseram poderia ser dito melhor e mais claramente. Pois todos necessariamente concordaram que a virtude infinita é uma, a qual nós chamamos Deus; nela necessariamente tudo se complica67. 65 Cf. Idiota. De sapientia. h V. L. II, n. 34-35, p. 66-67, linhas 1-14; 1-3: “ORATOR: Revertamur nunc quaeso ad ea, quae superiori loco a te praemissa sunt, et ex ordine explana. Primo loco aiebas conceptum de conceptu, cum deus sit conceptionum conceptus, esse de deo conceptum. Nonne mens est quae concipit? / IDIOTA: Sine mente non fit conceptus. / ORATOR: Concipere igitur cum sit mentis, tunc concipere absolutum conceptum non est nisi artem absolutae mentis concipere. / IDIOTA: Prosequere, quia in via es. / ORATOR: Sed ars absolutae mentis non est nisi forma omnium formabilium. Sic video, quomodo conceptus de conceptu non est nisi conceptus ideae divinae artis. Si verum dico, responde. / IDIOTA: Immo optime. Nam absolutus conceptus aliud esse nequit quam idealis forma omnium, quae concipi possunt, quae est omnium formabilium aequalitas. / ORATOR: Hic conceptus, ut puto, dei verbum seu ratio dicitur. / IDIOTA: Qualitercumque a doctis dicatur, in eo conceptu sunt omnia” (Un ignorante discurre acerca de la sabiduría, p. 79-81). 66 De docta ignorantia. h I. L. I, cap. 25, n. 84, p. 53, linhas 1-6: “Quae quidem omnia nomina unius ineffabilis nominis complicationem sunt explicantia; et secundum quod nomen proprium est infinitum, ita infinita nomina talia particularium perfectionum complicat. Quare et explicantia possent esse multa et numquam tot et tanta, quin possent esse plura; quorum quodlibet se habet ad proprium et ineffabile, ut finitum ad infinitum” (A douta ignorância, p. 60-61). 67 Idiota. De mente. h V. Cap. 2, n. 68, p. 104, linhas 1-9: “IDIOTA: Unum est igitur verbum ineffabile, quod est praecisum nomen omnium rerum, ut motu rationis sub vocabulo cadunt. Quod quidem ineffabile nomen in omnibus nominibus suo modo relucet, quia infinita nominabilitas omnium nominum et infinita vocabilitas omnium voce expressibilium, ut sic omne nomen sit imago praecisi nominis. Et nihil aliud omnes conati sunt dicere, licet forte id, quod dixerunt, melius |et clarius dici posset. Omnes enim necessario concordarunt unam esse infinitam virtutem, quam deum dicimus, in qua necessario omnia complicantur” (Un ignorante discurre acerca de la mente, p. 53, tradução nossa). 32 Sendo assim, os nomes formados pela humana mens são, a partir do mesmo movimento de imposição, imagens e “explicações” do Verbo divino que resplandece em todos os nomes como seu exemplar simples e inefável. As duas instâncias problematizantes que orientam a nossa reflexão em torno da imposição dos nomes podem agora ser bem definidas. A determinação é representada neste âmbito pelo nome imposto, uma vez que “todos os nomes são impostos por certa singularidade própria da razão, em virtude da qual se faz a distinção entre uma coisa e outra”, enquanto a indeterminação está representada pelo nome natural, pois não é difícil concluir que “onde todas as coisas são uma só, nenhum nome pode ser próprio68”. É interessante notar que tanto na construção dessas conjecturas sobre o nome de Deus no Idiota. De mente quanto na elaboração de sua doutrina dos nomes divinos no De docta ignorantia, Nicolau faz referência ao pensamento de Hermes Trismegisto. No De mente, o cardeal acentua o caráter complicativo e explicativo do nome natural, isto é, que Deus pode ser nomeado com os nomes de tudo e tudo pode ser nomeado com o nome de Deus69. Já na segunda obra, Nicolau destaca o aspecto complicativo e inefável do nome divino, uma vez que sendo Deus “a totalidade das coisas nenhum nome lhe é apropriado, porque seria necessário chamar a Deus todos os nomes ou chamar tudo com o nome de Deus, na medida em que ele complica na sua simplicidade a totalidade de todas as coisas”. Pois bem, tomando essas considerações, o que Nicolau busca nos fazer entender é que a partir de seu próprio nome Deus deve ser interpretado como “uno e tudo”, ou “tudo de um modo uno”, ou ainda, de um modo mais apropriado, como “unidade”. Mas isso não quer dizer que a unidade seja o nome de Deus; não o é, pelo menos no modo como a compreendemos, porque assim como Deus supera toda razão, assim também supera a fortiori todo nome. Entretanto, se com o mais alto intelecto contemplamos o ser nomeado e o nomear complicados na coincidência70, então, vemos claramente que Deus é “a unidade à qual não se opõe a alteridade, a pluralidade ou a multiplicidade. Este é o nome máximo que complica todas as coisas na simplicidade da sua unidade; é este o nome inefável e que está acima de toda a intelecção71”. 68 De docta ignorantia. h I. L. I, cap. 24, n. 74, p. 48, linhas 10-12: “Omnia enim nomina ex quadam singularitate rationis, per quam discretio fit unius ab alio, imposita sunt. Ubi vero omnia sunt unum, nullum nomen proprium esse potest” (A douta ignorância, p. 55). 69 Cf. Idiota. De mente. h V. Cap. 3, n. 69, p. 105-106, linhas 6-8: “PHILOSOPHUS: Mirabiliter Trismegisti dictum dilucidasti, qui aiebat deum omnium rerum nominibus ac omnes res dei nomine nominari” (Un ignorante discurre acerca de la mente, p. 55). 70 Cf. Ibid. h V. Cap. 3, n. 69, p. 106, linhas 9-10: “IDIOTA: Complica nominari et nominare in coincidentiam altissimo intellectu, et omnia patebunt” (Ibid., p. 55). 71 Para todo esse parágrafo. Cf. De docta ignorantia. h I. L. I, cap. 24, n. 75-76, p. 48-49, linhas 13-25; 1-13: “Unde recte ait Hermes Trismegistus: «Quoniam Deus est universitas rerum, tunc nullum nomen proprium est 33 Se Deus é uno e simples então não é difícil compreender como também o seu nome inefável possui essas características. Na realidade, este caminho que seguimos para falar do conceito absoluto e que nos conduz à unidade nos outorga a justificação do uso dos outros termos, visto que “no pensamento do Cusano as distinções conceituais estão orientadas a serem admitidas na unidade” que é o Verbo. Ou seja, “falar de precisão segundo seu próprio significado, em sentido absoluto, isto é, sem diminuição nem aumento, não pode senão implicar os demais conceitos” (máximo, unidade, verbo, complicatio absoluta etc.). Dessa forma, vemos como a teologia cusana é circular, e nela o caráter absoluto “de um predicado de Deus se verifica em todos os demais” (MACHETTA; D’AMICO, 1999, p. 99-100, tradução nossa). Por isso, como bem explica Bauchwitz (2009, p. 473, tradução nossa), tendo em vista a Unidade-múltipla que é Deus, tanto a teologia afirmativa quanto a negativa “incidem no mesmo, em uma unidade que, como esfera, reúne todas as coisas sem alteridade”. Nicolau entende essa unidade de tal maneira que se fosse possível alcançar a forma como o nome preciso de alguma coisa, então também se conheceria simultaneamente a quiditas de todo ser e o nome inominável de todo o ente, “por que a precisão não está fora de Deus. Disso, quem alcança uma precisão alcança a Deus, que é a verdade de tudo o que pode ser conhecido”. Para Nicolau de Cusa, Deus é, de fato, “a precisão de qualquer coisa. De modo que, se tivéssemos a ciência precisa de uma coisa, necessariamente teríamos a ciência de tudo72”. O desenvolvimento dessa tese no terceiro capítulo do De mente parte da solicitude da personagem do ignorante frente à lentidão do orador em compreender sua argumentação, o eius, quoniam aut necesse esset omni nomine Deum aut omnia eius nomine nuncupari», cum ipse in sua simplicitate complicet omnium rerum universitatem. Unde secundum ipsum proprium nomen – quod ineffabile per nos dicitur et tetragrammaton sive quattuor litterarum est et ex eo proprium, quia non convenit Deo secundum aliquam habitudinem ad creaturas, sed secundum essentiam propriam – interpretari debet ‘unus et omnia’ sive ‘omnia uniter’, quod melius est. Et ita nos repperimus superius unitatem maximam, quae idem est quod omnia uniter; immo adhuc videtur nomen propinquius et convenientius ‘unitas’ quam ‘omnia uniter’. Et propter hoc dicit propheta, quomodo «in illa die erit Deus unus et nomen eius unumcf. Zachar.» Et alibi: «Audi Israel (id est Deum per intellectum videns), quoniam Deus tuus unus est.» Non est autem unitas nomen Dei eo modo, quo nos aut nominamus aut intelligimus unitatem, quoniam, sicut supergreditur Deus omnem intellectum, ita a fortiori omne nomen. Nomina quidem per motum rationis, qui intellectu multo inferior est, ad rerum discretionem imponuntur. Quoniam autem ratio contradictoria transilire nequit, hinc non est nomen, cui aliud non opponatur secundum motum rationis; quare unitati pluralitas aut multitudo secundum rationis motum opponitur. Hinc unitas Deo non convenit, sed unitas, cui non opponitur aut alteritas aut pluralitas aut multitudo. Hoc est nomen maximum omnia in sua simplicitate unitatis complicans, istud est nomen ineffabile et super omnem intellectum” (A douta ignorância, p. 55-56). 72 Cf. Idiota. De mente. h V. Cap. 3, n. 69, p. 106, linhas 10-15: “IDIOTA: Nam deus est cuiuscumque rei praecisio. Unde si de una re praecisa scientia haberetur, omnium rerum scientia necessario haberetur. Sic si praecisum nomen unius rei sciretur, tunc et omnium rerum nomina scirentur, quia praecisio citra deum non est. Hinc qui praecisionem unam attingeret, deum attingeret, qui est veritas omnium scibilium” (Un ignorante discurre acerca de la mente, p. 55, tradução nossa). 34 que leva Nicolau de Cusa a mais uma vez se utilizar da arte matemática, tendo-se em vista que dentre as artes finitas ela é a única capaz de fazer visível, mediante a representação, as realidades invisíveis. Para o cardeal de Cusa, a humana mens somente pode alcançar “certa” precisão do nome através dessa arte conjectural por excelência, isto é, através dos signos matemáticos. Construindo sua reflexão nessa perspectiva, Nicolau se vale dos signos matemáticos, que são em si mesmos finitos, para operar desde eles o que o próprio filósofo denomina como uma transsumptio in infinitum: Assim, porque todos os elementos matemáticos são finitos e não podem, também, ser imaginados de outro modo, se queremos usar elementos finitos como exemplos para ascender ao máximo simples, é necessário considerar primeiro as figuras matemáticas finitas com as suas paixões e razões, trensferir correspondentemente estas razões para figuras infinitas e depois, em terceiro lugar, transpor as próprias razões das figuras infinitas para o infinito simples tatalmente liberto de qualquer figura. E então a nossa ignorância será incompreensivelmente ensinada sobre o modo como nós, que penamos no enigma, devemos pensar mais reta e verdadeiramente acerca do Altíssimo73. Este procedimento “não é, no entanto, para o Cusano uma forma de conhecimento senão uma maneira de pensar”, isto é, “um autêntico método que se oferece como alternativa a aquele que deve ser descartado, o da similitude ou analogia”. Nesta forma de pensar por meio dos signos matemáticos “é possível dar o salto por sobre o abismo que separa o finito do infinito, o contraído do absoluto” (MACHETTA; D’AMICO, 1999, p. 105, tradução nossa) tocando assim o enigma da verdade desde a douta ignorância. Pois bem, estabelecido o método, Nicolau, pela boca do ignorante, passa a esclarecer suas ideias: 73 Cf. De docta ignorantia. h I. L. I, cap. 12, n. 33, p. 24, linhas 16-25: “Nam cum omnia mathematicalia sint finita et aliter etiam imaginari nequeant: si finitis uti pro exemplo voluerimus ad maximum simpliciter ascendendi, primo necesse est figuras mathematicas finitas considerare cum suis passionibus et rationibus, et ipsas rationes correspondenter ad infinitas tales figuras transferre, post haec tertio adhuc altius ipsas rationes infinitarum figurarum transsumere ad infinitum simplex absolutissimum etiam ab omni figura. Et tunc nostra ignorantia incomprehensibiliter docebitur, quomodo de altissimo rectius et verius sit nobis in aenigmate laborantibus sentiendum” (A douta ignorância, p. 25-26). 35 Tu sabes, orador, como nós produzimos as figuras matemáticas pela força da mente. Disso, quando quero fazer visível a triangularidade confecciono uma figura na qual constituo três ângulos de maneira que, então, na figura, assim habilitada e proporcionada, reluza a triangularidade com a qual está unido o nome que estabeleça que há três ângulos. Digo, portanto, se “trígono” é o nome preciso da figura triangular, então sei o nome preciso de todos os polígonos. Pois sei, então, que o nome de uma figura quadrangular dever ser “tetrágono” e a de cinco ângulos “pentágono”, e assim as demais74. A diferença que existe entre as entidades matemáticas e os outros símbolos é que é próprio das figuras matemáticas que as suas essências coincidam com as suas definições, o que lhes confere uma precisão que não é possível de ser encontrada nas outras figuras representativas. “No caso do triângulo, por exemplo, o nome coincide com a essência. Quando expressamos o termo ‘triângulo’ estamos no mesmo vocábulo precisando” (GONZÁLEZ RÍOS, 2005, p. 157, tradução nossa)75 a sua definição, a qual não procede senão da humana mens, e a sua essência. Dessa forma, uma vez que na figura finita de três ângulos se explica e reluz de maneira singular e contraidamente aquela forma complicante, que é todas as figuras possíveis, e se nós alcançamos o vocábulo “trígono” como o nome preciso dessa forma, então do conhecimento desse único nome nós apreendemos simultaneamente quatro coisas: (1) a figura nomeada, (2) todos os nomes de todos os polígonos possíveis que complicadamente não são senão uma e a mesma palavra, (3) as suas diferenças e concordâncias, e (4) tudo o mais que possa ser conhecido em relação a esta matéria. De igual modo, por meio de uma transsumptio in infinitum, diz o Cusano, o conhecimento do nome preciso de apenas uma obra de Deus nos concederia o conhecimento dos nomes de todas as suas obras. Pois assim como o Verbo de Deus é a precisão de todo nome que possa ser nomeado, também nele e somente nele subsiste todo o conhecimento possível sobre todas as coisas76. 74 Idiota. De mente. h V. Cap. 3, n. 70, p. 106-107, linhas 2-10: “IDIOTA: Tu nosti, orator, quomodo nos exserimus ex vi mentis mathematicales figuras. Unde dum triangularitatem visibilem facere voluero, figuram facio, in qua tres angulos constituo, ut tunc in figura sic habituata et proportionata triangularitas reluceat, cum qua unitum est vocabulum, quod ponatur esse ‘trigonus’. Dico igitur: Si ‘trigonus’ est praecisum vocabulum figurae triangularis, tunc scio praecisa vocabula omnium polygoniarum. Scio enim tunc, quod figurae quadrangularis vocabulum esse debet ‘tetragonus’ et quinquangularis ‘pentagonus’ et ita deinceps” (Un ignorante discurre acerca de la mente, p. 55, tradução nossa). 75 Cf. GONZÁLEZ RÍOS, José. Notas complementarias. 2. La imposición de nombres. In: CUSA (2005, p. 155- 163). 76 Cf. Idiota. De mente. h V. Cap. 3, n. 70, p. 107, linhas 10-17: “IDIOTA: Et ex notitia nominis unius cognosco figuram nominatam et omnes nominabiles polygonias et differentias et concordantias earundem et quidquid circa hoc sciri potest. Pariformiter aio, quod, si scirem praecisum nomen unius operis dei, omnia nomina omnium dei operum et quidquid sciri posset non ignorarem. Et cum verbum dei sit praecisio omnis nomi nis 36 Com efeito, a humana mens, que opera por meio de analogias, não pode chegar a conhecer a verdade das coisas nem muito menos a verdade de Deus. Isto implica que a verdade enquanto tal, na sua precisão, permanece sempre intangível. Sendo indivisível e incompatível com o mais ou o menos, nada pode medi-la com precisão, a não ser o próprio verdadeiro. Pensando em termos comparativos, é da mesma forma como o polígono não consegue medir com precisão o círculo, por mais que multipliquemos o número dos seus ângulos de modo que proporcionalmente seja cada vez mais semelhante ao círculo, nunca será igual, a menos que se resolva na identidade com ele. Desse modo, vemos como é que no processo de apreensão do conhecimento das coisas, “medida e medido, por mais iguais que se sejam, permanecem sempre diferentes” e o processo comparativo pelo qual se move o nosso conhecimento não é capaz de nos conduzir a uma precisão total, senão porque a comparação mesma neste caso é impossível. Assim, pois, conclui o cardeal que “o intelecto que não é a verdade jamais compreende a verdade de modo tão preciso que ela não possa ser compreendida de modo infinitamente mais preciso77”, ao passo que o nome preciso, isto é, a quididade das coisas que é a verdade dos entes, permanece em si inatingível à nossa razão, a qual se satisfaz em produzir conjecturas. Dessa forma, afirma Álvarez-Gómez78 (2004, p. 14-15), todo o nosso saber se mostra como “ignorância”. Não que o comentador pretenda com isso defender uma postura cética frente à possibilidade de se conhecer algo, mas unicamente no sentido de que nossas afirmações sobre a verdade se situam abaixo da verdade mesma como conjecturas do verdadeiro79. Para Nicolau de Cusa, quanto mais profundamente formos doutos nesta ignorância tanto mais nos aproximaremos da própria verdade, de tal forma que este nominabilis, solum in verbo omnia et quodlibet sciri posse constat” (Un ignorante discurre acerca de la mente, p. 55-57). 77 Cf. De docta ignorantia. h I. L. I, cap. 3, n. 9-10, p. 9, linhas 8-28: “Hinc mensura et mensuratum, quantumcumque aequalia, semper differentia remanebunt. Non potest igitur finitus intellectus rerum veritatem per similitudinem praecise attingere. Veritas enim non est nec plus nec minus, in quodam indivisibili consistens, quam omne non ipsum verum existens praecise mensurare non potest; sicut nec circulum, cuius esse in quodam indivisibili consistit, non-circulus. Intellectus igitur, qui non est veritas, numquam veritatem adeo praecise comprehendit, quin per infinitum praecisius comprehendi possit, habens se ad veritatem sicut polygonia ad circulum, quae quanto inscripta plurium angulorum fuerit, tanto similior circulo, numquam tamen efficitur aequalis, etiam si angulos in infinitum multiplicaverit, nisi in iden titatem cum circulo se resolvat. Patet igitur de vero nos non aliud scire quam quod ipsum praecise, uti est, scimus incomprehensibile, veritate se habente ut absolutissima necessitate, quae nec plus aut minus esse potest quam est, et nostro intellectu ut possibilitate. Quidditas ergo rerum, quae est entium veritas, in sua puritate inattingibilis est et per omnes philosophos investigata, sed per neminem, uti est, reperta; et quanto in hac ignorantia profundius docti fuerimus, tanto magis ipsam accedimus veritatem” (A douta ignorância, p. 7-8). 78 ÁLVAREZ GÓMEZ, Mariano. Nicolás de Cusa: Coincidentia oppositorum e infinitud. In: ______. Pensamiento del ser y espera de Dios. Salamanca: Sigueme, 2004, p. 13-41. 79 De coniecturis. h III. L. I, prologus, n. 2, p. 4, linhas 8-9: “[...] infirmae apprehensionis incertus casus a veritatis puritate positiones nostras veri subinfert coniecturas” (On surmises, p. 163, tradução nossa). 37 reconhecimento é o único horizonte dentro do qual nós podemos conhecer algo. E é por essa razão que devemos entender a douta ignorância não apenas como um ponto de partida ou método do conhecimento, mas, para além disso, como fonte positiva do mesmo. Em suma, “a douta ignorância determina o caráter conjectural de todo conhecimento humano” (ÁLVAREZ GÓMEZ, 2004, p. 15, tradução nossa). Seguindo nessa mesma linha interpretativa, Bauchwitz (2009, p. 471-472, tradução nossa) busca elucidar essa perspectiva da ignorância no pensamento de Nicolau de Cusa. Para ele, a douta ignorância não pode ser entendida como uma negação do conhecimento, isto é, como que visando sublinhar a fraqueza do processo cognoscitivo humano. De acordo com a interpretação que ele faz, “Nicolau salva o conhecimento humano de toda restrição e o fortalece na medida em que conhecimento é conjectura e define a mente humana em sua dinâmica de semelhança com o próprio Deus”. Ou seja, ainda que a douta ignorância revele a incompletude do nosso conhecimento, não o faz por deficiência do mesmo, “senão em virtude daquilo que em toda investigação se dá por pressuposto: o inominado de todo nome”. Por meio dessas considerações, se por um lado vai se nos tornando mais claro que no modo como a humana mens impõe os nomes conjecturais a todas as coisas que ela busca conhecer, o “nosso conhecimento não é absoluto a respeito de nenhuma verdade”, seja em relação às rebus divinis ou mesmo em relação às res materiales. Por outro lado, vemos como é possível que tudo o que conhecemos participe em certa medida da verdade infinita e absoluta, somente própria ao intelecto divino. Quer dizer, nosso entendimento, ainda que não esteja “em posse da verdade mesma, [assegura-se] de uma ‘similitudo veritatis’” (ÁLVAREZ GÓMEZ, 2004, p. 15, tradução nossa). A esta participação do nosso conhecimento na unidade da verdade, via a forma da alteridade, Nicolau chama de conjectura, “conjectura é uma afirmação positiva que participa da verdade, enquanto alteridade80”, esta sententeça resume a sua compreensão sobre o assunto. No De venatione sapientiae, a partir da interpretação do pensamento de Proclo, Nicolau expressa rapidamente como ele entende a relação entre o uno, que é Deus, e a multiplicidade, que é a criação: “parecia para Proclo que a quididade, isto é, aquilo que existe primeiramente, que é a coisa mais difícil de tudo para descobrir, nada mais é do que o Uno- múltiplo: uno em essência, múltiplo na potencialidade81”. Ao mesmo tempo, ele aponta o 80 Ibid. h III. L. I, cap. 11, n. 57, p. 58, linhas 10-11: “Coniectura igitur est positiva assertio, in alteritate veritatem, uti est, participans” (Ibid., p. 190, tradução nossa). 81 Citaremos no rodapé o texto em latim do De Venatione Sapientiae a partir da seguinte edição: NICOLAI DE CUSA. De venatione sapientiae. In: Opera omnia. Iussu et auctoritate Academiae Litterarum Heidelbergensis 38 caráter quase que inescrutável da quididade. Tendo em vista estas questões, Bauchwitz (2009, p. 472, tradução nossa) afirma que “havendo o Uno-múltiplo, o conhecimento do próprio Uno se transforma em uma atividade aparentemente paradoxal”. Essa aparente contradição e busca descabida pelo conhecimento da unidade tem seu motivo no fato de que humana mens, uma vez que pertence à multiplicidade que é o mundo, permanece sempre distante da unidade absoluta. Apesar disso, para Nicolau de Cusa, por meio da alteridade da conjectura o nosso entendimento pode conhecer a verdade simples e infinita82 que é o Verbo divino, ainda que não em si mesmo, mas em seu caráter de incompreensibilidade. Sem dúvida, para Nicolau de Cusa Deus carece de toda relação e por isso a sua verdade, tomada tal como é e sem defeitos, só pode ser considerada em si mesma e nunca em relação a qualquer outro ser. O que é máximo não pode ser considerado como um “mais que”, pois isso contradiria a sua própria natureza. Logo, é importante destacar que a “relação” que existe entre a multiplicidade das coisas e o seu Exemplar absoluto, inclusive no que diz respeito à participação dos nomes impostos pela humana mens, enquanto imagens do nome natural, na unidade simples da verdade, assim como aquela precisão dos conceitos matemáticos na mesma unidade, deve ser pensada da explicatio para a infinita unidade, da imago para o exemplar. Até mesmo porque o nome de Deus é o próprio Deus que é a seipsum, isto é, não contraído a coisa alguma; a unidade entendida como tudo, máxima e mínima, ainda que pareça o nome mais aproximado de Deus, dista infinitamente do seu verdadeiro nome, que é o próprio máximo, inefável, inominável e conhecido somente por si mesmo. Assim sendo, se pela douta ignorância atingimos o entendimento de que somente a mente divina conhece o nome “Deus” porque é ele mesmo o Verbo, é por si evidente que qualquer nome afirmativo que atribuímos a Deus não lhe convém senão tendo-se em conta as criaturas, de modo que somente contemplando estas características podemos falar de uma ‘relação’ entre Deus, a humana mens e o mundo. ad codicum fidem edita. Vol. XII. Hamburgi: Felicis Meiner, 1982, p. 3-113 (sigla: h). Para as citações no texto faremos nossa tradução para o português a partir da edição em latim (h) citada acima, e tomaremos como referência a seguinte tradução: NICHOLAS OF CUSA. On the pursuit of wisdom (De venatione sapientiae). In: HOPKINS, Jasper. Nicholas of Cusa: Metaphysical speculations. Six Latin Texts Translated into English by Jasper Hopkins. Minneapolis: The Arthur J. Banning Press, 1998, p. 1275-1381. Disponível em: . Para o texto citado acima conferir: De venatione sapientiae. h XII. Cap. 12, n. 31, p. 32, linhas 16-18: “Visum est Proclo, quomodo quid sit id quod est principaliter, omnium repertu difficillimum, non esse aliud quam unum plura: unum in essentia, plura in potentia” (On the pursuit of wisdom, p. 1298, tradução nossa). 82 Cf. De coniecturis. h III. L. I, prologus, n. 2, p. 4, linhas 9-11: “Cognoscitur igitur inattingibilis veritatis unitas alteritate coniecturali atque ipsa alteritatis coniectura in simplicissima veritatis unitate” (On surmises, p. 163). 39 3 DEUS COMO COMPLICATIO MUNDI E O MUNDO COMO EXPLICATIO DEI 3.1 Os fundamentos da doutrina da complicatio-explicatio. Trataremos dessa dimensão da filosofia cusana a partir de duas questões levantadas pelo filósofo, que, embora em obras distintas, nos remetem para a mesma reflexão. A primeira questão encontra-se no Idiota. De sapientia e pergunta: “Como há um único absoluto exemplar das tantas variedades na universalidade das coisas?83”. A segunda questão situa-se no De docta ignorantia e refere-se à pergunta fundamental que leva Nicolau de Cusa a fazer sua exposição doutrinal da complicatio-explicatio quando em sua segunda consideração acerca da maximitas, isto é, enquanto máximo contraído ou universo. Ele interpela: “Quem pode entender como todas as coisas são imagem daquela forma única infinita [...]?84”. O desenvolvimento dessas questões nos permitirá esclarecer o vínculo que une a multiplicidade das coisas com a sua verdade ou exemplar, agora tendo em vista o aprofundamento da relação complicatio-explicatio. Partindo da primeira questão, que é proposta pela personagem do orador no De sapientia, Nicolau através do ignorante formula uma resposta que, levando-se em conta o que já refletimos no tópico anterior, se configura como mais um importante passo elucidativo quanto à possiblidade de se nomear o divino, assim como um momento introdutório para a explicação dos fundamentos da doutrina da complicatio/explicatio. O que nos interessa pensar a partir disso é justamente como Nicolau de Cusa constrói a sua metafísica de tal forma que Deus e o mundo se relacionam numa dinâmica de pertencimento mútuo, e cujos princípios podem ser entendidos desde a categoria complicatio e explicatio. Somando-se a isso a compreensão da humana mens enquanto imago Dei e correlativamente como ponto de articulação dos outros dois temas que protagonizam a metafísica cusana, Deus e o mundo, está constituída a temática que dá motivo ao nosso trabalho. Para Nicolau, o Verbo não é senão a mais adequada medida de todo modo de medida; nele não compete nem o ser grande e nem o ser pequeno; nele está complicado tudo o que 83 Idiota. De sapientia. h V. L. II, n. 39, p. 71, linhas 1-2: “ORATOR: Audire te in hoc valde desidero, quomodo unum est absolutum exemplar tantarum varietatum rerum universarum” (Un ignorante discurre acerca de la sabiduría, p. 85, tradução nossa). 84 De docta ignorantia. h I. L. II, cap. 2, n. 104, p. 68, linhas 14-15: “Quis ista intelligere posset, quomodo omnia illius unicae infinitae formae sunt imago” (A douta ignorância, p. 74). 40 pode ser exemplar, aquele de todos os quais é a precisão. Sendo o exemplar absoluto só lhe toca a precisão e a verdade, de tal modo que ele não pode ser nem mais nem menos que aquilo do que é exemplar85. Em consequência disso se produz no pensamento do cardeal o nome de Deus, que complica e une em si todas as realidades, até mesmo as opostas, e que por isso se denomina coincidentia oppositorum: [...] aquilo que não pode ser menor o denominamos mínimo e este é o maximamente pequeno. E aquilo que não pode ser maior, o denominamos máximo e este é o maximamente grande. Desvincula, portanto, a maximidade do maximamente pequeno e do maximamente grande de modo que intuias a mesma maximidade em si, não contraída no pequeno ou no grande, e assim verás a absoluta maximidade de tal forma perante o grande e o pequeno, que não pode ser maior ou menor, senão que é o máximo no qual coincide o mínimo. Portanto, este máximo, enquanto é exemplar absoluto, não pode ser maior ou menor para qualquer possível ente exemplificado. Agora bem, aquilo que não é nem maior nem menor o chamamos igual. Portanto, o absoluto exemplar é a igualdade, a precisão, a medida ou a justiça; isto quer dizer que é não somente a verdade senão também a bondade, tal é a perfeição de todos os exemplares possíveis86. As nomeações de Deus como coincidentia oppositorum, complicatio absoluta, unidade absoluta e máximo, são todas complementares, pois o modo como a coincidência dos opostos se assenta no máximo “não somente põe em evidência sua absoluta unidade e simplicidade, senão que também conduz necessariamente a não deixar nada de fora dele, isto é, a caracterizá-lo como Complicatio absoluta de todas as coisas” (MACHETTA; D’AMICO, 1999, p. 102, tradução nossa). 85 Cf. Idiota. De sapientia. h V. L. II, n. 39, p. 71-72, linhas 5-8: “IDIOTA: Complicat enim absolutum exemplar, quod non est nisi absoluta praecisio, rectitudo, veritas, iustitia seu bonitas, omnia exemplabilia, quorum omnium est praecisio, rectitudo, veritas, iustitia et bonitas”; Ibid., n. 40, p. 73, linhas 5; 11-12; 14-16: “ORATOR: [...] adaequatissima mensura omni modo mensurae [...]. / IDIOTA: [...] illud enim nec est magnum nec parvum. [...] Quapropter absolutum exemplar, quod nec magis nec minus recipit, cum sit praecisio et veritas, non potest esse nec maius nec minus exemplato” (Un ignorante discurre acerca de la sabiduría, p. 85- 87). 86 Ibid. h V. L. II, n. 40-41, p. 73-74, linhas 16-18; 1-10: “IDIOTA: Id enim, quod non potest esse minus, minimum dicimus, et hoc est maxime parvum. Id, quod non potest esse maius, maximum dicimus, et hoc est maxime magnum. Absolve igitur maximitatem a maxime parvo et maxime magno, ut ipsam maximitatem intuearis in se, non in parvo aut magno contractam, et videbis absolutam maximitatem sic ante magnum et parvum, ita quod non potest esse maior aut minor, sed est maximum, in quo coincidit minimum. Quare hoc tale maximum ut est absolutum exemplar non potest esse cuicumque dabili exemplato maius aut minus. Id autem, quod non est nec maius nec minus, vocamus aequale. Est igitur absolutum exemplar aequalitas, praecisio, mensura seu iustitia, quod idem est et veritas et bonitas, quae est perfectio omnium exemplabilium” (Ibid., p. 87- 89, tradução nossa). 41 Em sua obra capital, De docta ignorantia, Nicolau de Cusa opta por não privilegiar qualquer nome para designar Deus; no entanto, é impossível não perceber que desde os primeiros capítulos da obra um nome se destaca: “máximo”. Logo no início do primeiro livro, ao buscar determinar o que esse nome significa, Nicolau o articula a dois outros termos, “absoluto” e “uno”, e a partir da combinação dos seus conceitos ele chega a uma definição síntese: “Chamo máximo àquilo relativamente ao qual nada pode ser maior. Mas a plenitude convém ao uno. [...]. Assim, o máximo é o uno absoluto, porque é tudo e nele está tudo porque é o máximo87”. Sendo absoluto, Deus está desligado universalmente de qualquer referência e contração, nada contrai das coisas e todas dele derivam, ou seja, enquanto absoluto, o máximo é omne id, quod esse potest, est penitus in actu88. André (2003, p. 9, nota 10)89 afirma que a melhor tradução para esta passagem seria: “tudo aquilo que pode ser, é completamente em ato”, em vez de “tudo aquilo que ele pode ser, é completamente em ato”, pois esta última não considera a total abrangência da natureza do máximo90. Segundo ele, uma tradução que atribui ao máximo “não só a sua plena possibilidade, mas a absoluta possibilidade de todas as coisas, é mais correta” desde o ponto de vista filológico “como sob uma perspectiva intertextual”. Além disso, no que diz respeito à plena coincidência entre potência e ato, que é atribuída pelo Cusano ao máximo absoluto e que está indicada em ambas as possibilidades de interpretação, quando André (2003, p. XXIV)91 opta por preterir o “ele” da sua tradução, sua intenção é mostrar que tal coincidência não se dá “apenas entre a sua [do Máximo] potência e a sua atualidade, mas mais radicalmente e de forma abrangente entre toda a potência ou a potência de todas as coisas e a sua [do Máximo] atualidade”. Com efeito, é justamente isso o que quer indicar a fórmula possest92 que Nicolau utilizará posteriormente como nome divino93. 87 De docta ignorantia. h I. L. I, cap. 2, n. 5, p. 7, linhas 4-5; 8-9: “Maximum autem hoc dico, quo nihil maius esse potest. Habundantia vero uni convenit.[...]. Maximum itaque absolutum unum est, quod est omnia; in quo omnia, quia maximum” (A douta ignorância, p. 5). 88 Ibid. h I. L. I, cap. 4, n. 11, p. 10, linhas 12-13 (Ibid., p. 9). 89 Esta referência não remete a uma obra específica de André, mas indica a tradução (2003) que ele faz do De docta ignorantia para o português; a esta tradução ele acrescenta uma introdução e notas explicativas, das quais a uma eu me refiro. 90 Jasper Hopkins (inglês), Moulinier (francês), Jorge M. Machetta e Claudia D’Amico (espanhol) seguem essa mesma tradução. 91 ANDRÉ, João Maria. Introdução. In: CUSA (2003, p. V-XLII). 92 Citaremos no rodapé o texto em latim do Trialogus de possest a partir da seguinte edição: NICOLAI DE CUSA. Trialogus de possest. Opera omnia. Iussu et auctoritate Academiae Litterarum Heidelbergensis ad codicum fidem edita. Vol. XI. Fasciculus 2. Hamburgi: Felicis Meiner, 1973 (sigla: h). Para as citações no texto faremos nossa tradução para o português a partir da edição em latim (h) citada acima, e tomaremos como referência as seguintes traduções: NICHOLAS OF CUSA. On actualized-possibility (De possest). In: HOPKINS, Jasper. A concise introduction to the philosophy of Nicholas of Cusa. Third Edition. Translated into English by Jasper Hopkins. Minneapolis: The Arthur J. Banning Press, 1986, p. 912-962. Disponível em: http://jasper- 42 A coerência da tradução feita por André, e que nos leva a concordar com ele, se mostra no desenvolvimento mesmo do pensamento do cardeal. Em determinado momento o Cusano afirma, por exemplo, que “essa maximidade absoluta é de modo absoluto aquilo que são todas as coisas, é o princípio absoluto em todas, o fim das coisas e a entidade94”. Em outra passagem do De Docta ignorantia Nicolau entende o “ser em ato tudo o que pode ser” com o conceito de complicatio divina: “Deus complica infinitas coisas, tanto as que acontecem como as que não acontecem, mas podem acontecer, e ainda as coisas contrárias, do mesmo modo que o gênero complica as diferenças contrárias”, e de forma distinta de como acontece com a matéria, na qual há muitas coisas possíveis que nunca acontecerão, na providência de Deus, tudo o que é possível de acontecer, ou “vir a ser”, já o é em ato95. Se tomarmos ainda os conceitos tanto de “máximo” como de “mínimo”, concebidos como atualmente existentes, por definição esses devem ser necessariamente infinitos, uma vez que todo e qualquer ser que é finito está suscetível ao maior e ao menor, isto é, excedens admittunt et excesum96, o que não se aplica às referidas noções. Não sendo possível, então, que a partir das coisas finitas se chegue ao máximo ou ao mínimo de modo simples, pois entre o infinito e o finito não há proporção97, e tendo em vista que “é impossível que haja vários infinitos realmente distintos”, pois se assim fosse “um seria finito em relação ao outro98”, conclui-se que o máximo absoluto, ao qual nada se opõe, coincide necessariamente com o hopkins.info/DePossest12-2000.pdf; NICOLAS DE CUES. Trialogus de possest. Traduction et notes par P. Caye, D. Larre, P. Magnard e F. Vengeon. Paris: Vrin, 2006 (Édition bilingue). Para o texto citado acima conferir: De possest. h XI/2. n. 8, p. 9, linhas 5-7: “CARDINALIS: Cum potentia et actus sint idem in deo, tunc deus omne id est actu, de quo posse esse potest verificari. Nihil enim esse potest, quod deus actu non sit” (On actualized-possibility, p. 917). 93 Cf. Ibid. h XI/2. n. 14, p. 17-18, linhas 3-10: “CARDINALIS: Esto enim quod aliqua dictio significet simplicissimo significato quantum hoc complexum ‘posse est’, scilicet quod ipsum posse sit. Et quia quod est actu est, ideo posse esse est tantum quantum posse esse actu. Puta vocetur possest. Omnia in illo utique complicantur, et est dei satis propinquum nomen secundum humanum de eo conceptum. Est enim nomen omnium et singulorum nominum atque nullius pariter” (Ibid., p. 921). 94 De docta ignorantia. h I. L. II, cap. 4, n. 113, p. 73, linhas 11-12: “[...] quae absolute est id, quod sunt omnia, in omnibus absolutum principium atque finis rerum atque entitas” (A douta ignorância, p. 80). 95 Cf. Ibid. h I. L. I, cap. 22, n. 68, p. 45, linhas 1-4; 8-11: “Sicut igitur multa sunt in materia possibiliter, quae numquam evenient, ita per contrarium, quaecumque non evenient, sed evenire possunt, si in Dei sunt providentia, non sunt possibiliter, sed actu”; “[...] ita Dei providentia infinita complicat tam ea, quae evenient, quam quae non evenient, sed evenire possunt, et contraria, sicut genus complicat contrarias differentias” (Ibid., p. 50-51). 96 Cf. Ibid. h I. L. I, cap. 4, n. 11, p. 10, linhas 6-8: “Nam cum non sit de natura eorum, quae excedens admittunt et excessum, super omne id est, quod per nos concipi potest” (Ibid., p. 8-9). 97 Cf. Ibid. h I. L. I, cap. 3, n. 9, p. 8, linhas 20-22; p. 9, linha 1: “Quoniam ex se manifestum est infiniti ad finitum proportionem non esse, est et ex hoc clarissimum, quod, ubi est reperire excedens et excessum, non deveniri ad maximum simpliciter, cum excedentia et excessa finita sint” (Ibid., p. 7). 98 Idiota. De mente. h V. cap. 2, n. 60, p. 94, linhas 10-12: “IDIOTA: Impossibile est autem plura esse infinita realiter distincta. / PHILOSOPHUS: Et hoc ipsum fateor, quoniam alterum foret in altero finitum” (Un ignorante discurre acerca de la mente, p. 47, tradução nossa). 43 mínimo, se configurando como a própria unidade absoluta99. O máximo, subsistente em si mesmo, é em ato o princípio e o fim de todas as coisas finitas; ele é o único princípio infinito e absoluto, o qual é sem princípio, e do qual todo o finito é principiado100; por isso, ele “existe necessariamente de tal maneira que é a necessidade absoluta101”. Desse modo, vemos que em sua unicidade Deus não somente é em ato aquilo que ele pode ser, mas contém em si absolutamente todas as coisas possíveis e atuais; nele toda a realidade se encontra complicada, ao passo que ele mesmo é em ato toda a realidade. Nada pode ser concebido que delimite a sua potência102. Se o máximo uno e absoluto complica tudo em si e une todas as coisas de tal forma que supera toda oposição, inclusive a própria oposição entre máximo e mínimo, então não é difícil entender como é que, para o pensamento de Nicolau de Cusa, Deus se encontra para além de toda oposição, contradição e comparação. Ou seja, nele não há contraposição e em relação a ele não cabe oposição alguma, tanto em relação a si mesmo como em relação às criaturas. E é nesse sentido que devemos compreender a coincidentia oppositorum. Álvarez Gómez (2004, p. 19, tradução nossa) aprofunda detalhadamente essa questão e nos chama a atenção para considerar o seguinte: “não significa que em Deus existam de fato realidades opostas que paradoxalmente coincidam. Nesse caso, Deus seria oposto a si mesmo e em último termo contraditório”. Realidades opostas como o máximo e o mínimo, o todo e o nada ou o ser e o não ser, “aparecem opostas somente no âmbito da razão”, mas em Deus elas deixam de se opor entre si e são uma mesma coisa. Se pensarmos então a coincidentia oppositorum em termos de quantidade podemos perceber que pelo mesmo motivo que Deus é máximo ele também é mínimo, e por isso pode ser também caracterizado como aquilo inferior ao qual nada pode haver, ou seja, o maximamente pequeno. Desse modo, nada se lhe opõe sob qualquer ponto de vista, pois ele 99 De docta ignorantia. h I. L. I, cap. 5, n. 14, p. 12, linhas 25-26: “Est igitur unitas absoluta, cui nihil opponitur, ipsa absoluta maximitas” (A douta ignorância, p. 12). 100 Cf. Idiota. De mente. h V. cap. 2, n. 61, p. 95, linhas 1-8: “IDIOTA: Si igitur hoc sic est, nonne solum absolutum principium est infinitum, quia ante principium non est principium, ut de se patet, ne principium sit principiatum? Hinc aeternitas est ipsa sola infinitas seu principium absolutum. / PHILOSOPHUS: Admitto. / IDIOTA: Est igitur sola et unica absoluta aeternitas ipsa infinitas, quae est sine principio. Quare omne finitum principiatum ab infinito principio” (Un ignorante discurre acerca de la mente, p. 47, tradução nossa). 101 De docta ignorantia. h I. L. I, cap. 6, n. 17, p. 14, linhas 18-19: “[...] maximum simpliciter necessario esse, ita quod sit absoluta necessitas (A douta ignorância, p. 14). 102 Cf. Ibid. h I. L. II, cap. 1, n. 96, p. 64, linhas 10-11: “Nihil est itaque dabile, quod divinam terminet potentiam” (Ibid., p. 69). 44 coincide necessariamente com seu oposto, o mínimo absoluto103. Em termos mais precisos pode-se afirmar que o máximo e o mínimo não são senão formas de caracterizar uma mesma e única identidade absoluta, cuja eficácia de sua força infinita antecede e conduz as realidades mais diferentes e distantes à infinita coincidência, isto é, à unidade absoluta que se chama Deus104. A partir desse rápido esclarecimento que fizemos da nomeação de Deus como coincidentia oppositorum nós vemos emergir uma interpretação feita por André (2003, p. XXI) quando ele afirma que “o conceito de máximo mais que sobredeterminar os outros conceitos acaba por ser sobredeterminado, por um lado pelo conceito de coincidência e, por outro, pelo conceito de infinito105”. De fato, Nicolau de Cusa, ao longo do De Docta ignorantia estabelece os fundamentos para a construção de uma hermenêutica dos nomes divinos que será desenvolvida ao longo de suas obras. Observando de perto essa hermenêutica, André (2003, p. XXIII) afirma que para além do conceito de máximo ou do conceito de coincidentia oppositorum “a fecundidade do conceito de infinito para nomear, sem nomear, a divindade106” representa uma abertura plural para os diferentes nomes que podem ser teorizados para designar Deus, ao mesmo tempo em que resguarda o caráter inefável e inominável daquele que é alheio a “todas as coisas que possam ser ditas ou pensadas, porque está desligado de tudo aquilo que possa cair no conceito de quem quer que seja107”, e dessa maneira representa também a possibilidade de falarmos “sem” restrições de sentido de uma complicatio absoluta articulada aos conceitos de Deus como máximo, unidade absoluta, exemplar absoluto e coincidentia oppositorum, que são os nomes “divinos” com os quais conduzimos nossa reflexão até aqui, e a partir dos quais vamos nos aprofundar nessa 103 Cf. De docta ignorantia. h I. L. I, cap. 4, n. 11, p. 10, linhas 13-16: “[...] et sicut non potest esse maius, eadem ratione nec minus, cum sit omne id, quod esse potest. Minimum autem est, quo minus esse non potest. Et quoniam maximum est huiusmodi, manifestum est minimum maximo coincidere” (A douta ignorância, p. 9). 104 Cf. Ibid. h I. L. II, cap. 4, n. 113, p. 73, linhas 8-11: “Deus est absoluta maximitas atque unitas, absolute differentia atque distantia praeveniens atque uniens, uti sunt contradictoria, quorum non est medium” (Ibid., p. 80). 105 ANDRÉ (2003, p. XXI). 106 Idem (2003, p. XXIII). 107 Citaremos no rodapé o texto em latim do De visione Dei a partir da seguinte edição: NICOLAI DE CUSA. De visione Dei. Opera omnia. Iussu et auctoritate Academiae Litterarum Heidelbergensis ad codicum fidem edita. Vol. VI. Hamburgi: Felicis Meiner, 2000 (sigla: h). Para as citações no texto utilizaremos a seguinte tradução: NICOLAU DE CUSA. A visão de Deus. Tradução de João Maria André. Prefácio de Miguel Baptista Pereira. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1998. Além dessa tradução tomaremos como referencial sempre que for necessário a seguinte tradução: NICHOLAS OF CUSA. De visione Dei (The vision of God). In: HOPKINS, Jasper. Nicholas of Cusa’s dialectical mysticism: Text, translation and interpretive study of De Visione Dei. Second Edition. Minneapolis: The Arthur J. Banning Press, 1988, p. 675-743. Disponível em: < http://jasper- hopkins.info/dialecticalmysticism.pdf>. Para o texto citado acima conferir: De visione Dei. h VI. Cap. 13, n. 51, p. 44, linhas 17-19: “Separat enim murus omnia, quae dici aut cogitari possunt, a te, quia tu es ab his omnibus absolutus, quae cadere possunt in conceptum cuiuscumque” (A visão de Deus, p. 180). 45 relação que une Deus, a humana mens e o mundo. Esses são temas fundamentais da metafísica cusana e que estão de tal forma entrelaçados que não é possível pensar em um com independência dos outros dois, isto é, sem dar-lhes a devida inteligibilidade. Em sua simplicidade a unidade infinita engloba a possibilidade absoluta de todas as coisas, por isso também a podemos chamar complicatio de tudo. “Complicatio” é uma palavra latina que de modo geral quer dizer dobradura ou envoltura e deriva do verbo “complicare”, que significa dobrar, pregar. Hopkins (1985, p. 74) traduz “complicare” para o inglês como “to enfold”; dentro da gama de significados que lhe podem ser atribuídos108, o que é próprio da língua inglesa, “envolver” ou “abarcar” se aproximam mais do sentido latino da palavra. Quanto ao verbo “explicare”, Hopkins (1985, p. 66) traduz como “to unfold”, que do ponto de vista etimológico e semântico se aproxima mais do termo latino quando entendido como “desdobrar” ou “desplegar” em espanhol. De um modo geral, os comentadores latinos traduzem explicatio para o espanhol ou como “explicación” (CUSA, 2005, p. 59109; 2001, p. 65110) ou como “despliegue” (CUSA, 2009, p. 83 e 97)111; com efeito, ambas as palavras evocam o mesmo sentido (D’AMICO, 2005, p. 22)112. No tópico anterior vimos que na filosofia cusana todas as categorias humanas somente podem aplicar-se ao infinito de maneira aproximativa, porque este transcende nossa capacidade finita de nomear. De fato, todos os conceitos que já utilizamos (máximo, unidade, coincidentia oppositorum, exemplar, complicatio etc.) e os que serão acrescentados adiante, “cada um a seu modo postula o caráter inalcançável e inapreensível da praecisio, a qual reluz de maneira variada em todas as coisas finitas, mas que em si mesma, enquanto está desvinculada do magis et minus, do que excede e é excedido, é imensurável” (RUSCONI; GONZÁLEZ RÍOS, 2005, p. 172)113. Somente considerando-se essa perspectiva é que podemos afirmar que o infinito entendido como princípio simplicíssimo da multiplicidade, complica ou reúne o ser das coisas em sua unidade, uma vez que até mesmo a doutrina da complicatio-explicatio, no modo como ela se realiza, excede a nossa compreensão. 108 “Enfolding” (wrap, cover, embrace, squeeze etc.); “Unfolding” (reveal, open, confide, spread, display etc.). 109 Veja, por exemplo, a preferência de Machetta por esse termo nesta sua tradução do Idiota. De mente. 110 Confira o uso frequente desse vocábulo nas seguintes traduções feitas por Luis González: CUSA, Nicolás de. Diálogos del idiota; El Possest; La cumbre de la teoría. Introducción, traducción y notas de Ángel Luis González. Navarra: Ediciones Universidad de Navarra, S.A. (EUNSA), 2001. 111 Refiro-me ao uso que Luis González faz desse termo na seguinte tradução do De visione Dei: CUSA, Nicolás de. La visión de Dios. Traducción e introducción de Ángel Luis González. Navarra/España: Ediciones Universidad de Navarra, S.A. (EUNSA), 2009. 112 D’AMICO, Claudia. Introducción. El diálogo Idiota. De mente: su lugar en la obra cusana. In: CUSA (2005, p. 21-27. 113 RUSCONI, Cecilia; GONZÁLEZ RÍOS, José. Notas complementarias 4. La mente: Medida e término. In: CUSA (2005, p. 170-179). 46 Feita essa observação, podemos entender melhor como é que Nicolau, no Idiota. De mente, não hesita em afirmar que Deus é a unidade complicante e o mundo, isto é, a pluralidade das coisas, é a explicação (explicatio) dessa divina complicação114, de modo que, no capítulo 9 do diálogo De mente, ao tratar da complicatio absoluta e sua explicatio através do simbolismo do ponto e da linha, o Cusano, articulando-os à noção de complicatio, ainda acrescenta os conceitos de terminus, perfectio e totalitas. Pois bem, “termo”, “perfeição” e “totalidade” são os três nomes com os quais Nicolau se refere à complicatio no De docta ignorantia115, mas que voltam a ser pensados no De mente. Todas as coisas estão complicadas em Deus, pois nele encontram seu termo, perfeição e totalidade. De modo análogo, o ponto é a complicação do explicado pela linha e a linha está complicada sem sucessão, sem diferenciação, sem continuidade, no ponto: Filósofo: É o ponto a finalização da linha, uma vez que é o término dela? Ignorante: É a sua conclusão e totalidade, que complica em si a linha. Porque pôr um ponto é delimitar a coisa mesma. Agora bem: onde se coloca a finalização, ali se conclui. Por outra parte, sua conclusão é a sua totalidade. De modo que o ponto é o termo da linha, sua totalidade e também conclusão, a qual complica em si a linha mesma, assim como a linha explica o ponto. Por exemplo, quando na geometria eu digo que a perfeição total de uma linha é a partir do ponto A até o ponto B, então com referência aos pontos A e B eu designei a totalidade da linha, isto é, que a linha não deve prolongar- se mais além. De modo que encerrar, seja atualmente ou na intelecção, a totalidade de uma coisa entre este ponto e aquele, é complicar a linha no ponto. Agora bem, explicar a linha é traçá-la parte por parte desde o ponto A até o ponto B. Dessa maneira a linha explica o que o ponto complica116. 114 Cf. Idiota. De mente. h V. cap. 4, n. 74, p. 114, linhas 21-22: “IDIOTA: Post imagines sunt pluralitates rerum divinam complicationem explicantes” (Un ignorante discurre acerca de la mente, p. 59). 115 Cf. De docta ignorantia. h I. L. II, cap. 3, n. 105, p. 69, linhas 17-20: “Nec est plus quam unus punctus, qui non aliud quam ipsa unitas infinita, quoniam ipsa est punctus, qui est terminus, perfectio et totalitas lineae et quantitatis, ipsam complicans” (A douta ignorância, p. 76). 116 Idiota. De mente. h V. cap. 9, n. 120, p. 174-175, linhas 1-12: “PHILOSOPHUS: Estne punctus lineae perfectio, cum sit eius terminus? / IDIOTA: Est eius perfectio et totalitas, quae lineam in se complicat. Punctare enim est rem ipsam terminare; ubi autem terminatur, Ibidem perficitur. Perfectio vero eius est ipsius totalitas. Unde punctus est terminus lineae et eius totalitas ac perfectio, quae ipsam lineam in se complicat, sicut linea punctum explicat. Cum enim perfectionem totalem lineae in geometricis dico esse ex a puncto in b, tunc ante protractionem lineae de a ad b per puncta a b totalitatem lineae designavi, scilicet quod linea non debet ultra protrahi. Unde quod est actu vel intellectu rei totalitatem ab hoc in hoc includere, hoc est lineam in puncto complicare. Explicare autem est de a in b particulatim lineam trahere. Sic linea explicat complicationem puncti” (Ibid., p. 105, tradução nossa). 47 Sendo o ponto o termo da linha, ele pode ser encontrado em qualquer lugar da linha, onde quer que a divida, pois o ponto está explicado na linha. Não obstante, não há na linha, senão um só ponto, que estendido é a linha. No decorrer de todo o capítulo 9 desse diálogo Nicolau busca por meio de diversos exemplos fazer visível a natureza da relação complicatio-explicatio, que foi exposta fundamentalmente no De docta ignorantia, II, cap. 3, n. 105 e seguintes. Para o cardeal de Cusa, da mesma forma como o ponto é a complicação da linha, o “agora” é a complicação do tempo, ao passo que por ele se explica. Quer dizer, o passado enquanto explicatio foi presente, assim como o futuro também como explicatio será presente, e assim passado e futuro são as explicationes da complicatio do “agora”. Por isso, “nada se encontra no tempo senão o agora”. Já a quietude é a unidade complicante do movimento, o qual é, à sua vez, explicação da quietude. Trata-se de um passar de um estado estático a outro, ou seja, o movimento é “quietudes ordenadas em série”, de modo que “nada se encontra no movimento senão a quietude. É em decorrência dessa compreensão que o Cusano afirma que o mover-se, entendido como partir de um estado imutável para outro, também significa mudança, transformação, e como ele mesmo diz, “é a separação do uno. Visto que o ser movido é por um, e isto é em ordem a outro117”. Agora bem, se levarmos em conta esses exemplos parece-nos que há várias complicações que se distinguem uma das outras de acordo com a multiplicidade das coisas, isto é, como se fosse possível haver uma complicação da substância, outra da qualidade, outra da quantidade e assim sucessivamente; no entanto, uma vez que a unidade infinita é a complicação de tudo não há mais que uma complicatio absoluta, pois, como já foi dito, não pode haver vários princípios infinitos das coisas. Por conseguinte, o ponto, o “agora” e a quietude chamam-se unidade, uma vez que não há senão um só ponto, “agora” e quietude, que não é diferente da própria unidade infinita, porque ela é o termo, a perfeição e a totalidade de todas as coisas. Visto isso, podemos por analogia afirmar que assim como o presente é em todos os tempos e o ponto está em qualquer parte da linha, também “a unidade, sem a qual o 117 Ibid. h V. cap. 9, n. 121-122, p. 175-176, linhas 1-8; 1-7: “PHILOSOPHUS: Putabam punctum complicationem lineae sicut unitatem numeri, quia nihil in linea reperitur nisi punctus ubique sicut in numero nihil nisi unitas. / IDIOTA: Non male considerasti. Idem est in diversitate modi dicendi, et modo, quo dixisti, in omnibus complicationibus utere. Nam motus est explicatio quietis, quia nihil reperitur in motu nisi quies. Sic nunc explicatur per tempus, quia nihil reperitur in tempore nisi nunc. Ita de aliis. / PHILOSOPHUS: Quomodo ais in motu non nisi quietem reperiri? / IDIOTA: Cum movere sit de uno statu in alium cadere, quia, quamdiu res se habet in uno statu, non movetur, sic nihil reperitur in motu nisi quies. Motus enim est discessio ab uno. Unde moveri est ab uno et hoc est ad aliud unum. Sic de quiete in quietem transire est movere, ut non sit aliud movere nisi ordinata quies sive quietes seriatim ordinatae” (Ibid., p. 105-107, tradução nossa); Confira também: De docta ignorantia. h I. L. II, cap. 3, n. 106. 48 número não seria número, é na pluralidade, de modo que explicar a unidade significa que tudo é na pluralidade118”. Nicolau de Cusa conduz esse pensamento à sua consumação afirmando que “não há senão um só máximo com o qual coincide o mínimo em que a diversidade explicada não se opõe à identidade complicante119”. A partir dessa passagem do De Docta ignorantia e tomando, a seguir, a interpretação feita por Álvarez Gómez, nós poderemos concluir essa reflexão sobre como a coincidentia oppositorum é o princípio fundante da doutrina da complicatio-explicatio. Vejamos; por um lado, como afirma Álvarez Gómez (2004, p. 33, tradução nossa), “a complicatio é consequência da coincidentia oppositorum”, tendo em vista que se “o múltiplo existe, e não como contraposto a Deus, ele deve estar unificado, ‘complicado’ nele”. Por outro lado, “a inseparabilidade, a não distinção entre Deus e o mundo, e em último termo a coincidentia oppositorum, exige que o mundo, suposto que é, não possa conceber-se senão como uma explicatio da máxima unidade”. Ou seja, Deus “complica” o mundo pelo fato de que tudo está nele, e o “explica” pelo fato de que ele está em tudo120. Dito de outra maneira, a unidade infinita complica em si a pluralidade, e esta por sua vez a explica, e “da mesma forma como no número que explica a unidade não se encontra senão a unidade, assim em todas as coisas que são não se encontra senão o máximo121”. A complicação do múltiplo na unidade e o seu oposto, a explicação da unidade no múltiplo, são, pois, realidades simultâneas, a tal ponto que, para Bauchwitz (2009, p. 469, tradução nossa), “Deus não é outro que o que é visto e que geralmente é chamado de alteridade”. Nesse sentido, isto é, como resultado da imanência do mundo em Deus, e de sua imanência no mundo, podemos considerar esta filosofia cusana, seguindo na esteira dos comentários de Álvarez-Gómez e também Bauchwitz122, como uma metafísica da alteridade, de onde surge o problema da identidade e diferença que iremos anunciar a seguir. 118 De docta ignorantia. h I. L. II, cap. 3, n. 108, p. 70, linhas 27-29 “Unitas igitur, sine qua numerus non esset numerus, est in pluralitate; et hoc quidem est unitatem explicare, omnia scilicet in pluralitate esse” (A douta ignorância, p. 77). 119 Ibid. h I. L. II, cap. 3, n. 107, p. 70, linhas 8-10: “[...] quoniam non est nisi unum maximum, cum quo coincidit minimum, ubi diversitas complicata identitati complicanti non opponitur.” (Ibid., p. 76). 120 Cf. Ibid. h I. L. II, cap. 3, n. 107, p. 70, linhas 14-16: “Deus ergo est omnia complicans in hoc, quod omnia in eo; est omnia explicans in hoc, quod ipse in omnibus” (Ibid., p. 77). 121 Ibid. h I. L. II, cap. 3, n. 105, p. 69, linhas 12-13: “et sicut in numero explicante unitatem non reperitur nisi unitas, ita in omnibus, quae sunt, non nisi maximum reperitur” (Ibid., p. 76). 122 A discussão em torno de uma metafísica da alteridade no pensamento cusano é tematizado por Oscar Federico Bauchwitz em seu artigo: “Nicolás de Cusa y los nombres de lo divino: Una metafísica de la alteridade” (2009). Neste trabalho Bauchwitz reflete sobre os princípios dessa metafísica a partir de uma hermenêutica dos nomes do divino. Note-se que uma versão ampliada desse artigo foi publicada em 2006. Cf. BAUCHWITZ, Oscar Federico. O inominado dos nomes como o sem-nome vindouro: Eriúgena e Nicolau de Cusa. In: Scintilla. 49 Resta-nos então saber como a pluralidade pode ser na unidade sem ser a unidade mesma e como é que Deus nem é distinto do mundo, como foi afirmado, e nem pode ser idêntico a ele, uma vez que é seu princípio e origem. Esse paradoxo do pensamento cusano lhe rendeu por mais de uma ocasião a acusação de panteísmo, da qual o próprio filósofo se defendeu julgando-a como infundada123. A questão é que se tomarmos algumas de suas expressões de maneira literal e desconectadas da intenção geral dos textos em que estão inseridas, de fato seremos levados a interpretar erroneamente a sua doutrina, ao ponto que muitas de suas afirmações parecerão justificar os tendenciosos julgamentos de alguns de seus contemporâneos, dos quais o mais famoso e equivocado é aquele proferido pelo professor de teologia da Universidade de Heidelberg, João Wenck de Herrenberg124. No trecho a seguir da Apologia Doctae Ignorantiae (1449) fica evidente o real sentido do pensamento cusano e a consequente oposição à perspectiva panteísta. Note-se que na Apologia, Wenck é referido como “Adversário” e Nicolau como “Professor”: Eu continuei com a leitura, [lendo em voz alta a passagem], onde o nosso adversário diz: Venho agora, através de teses e corolários, tratar mais especialmente das suas declarações. Primeira tese: Todas as coisas coincidem com Deus. Isto é evidente porque ele é o máximo absoluto, que não pode ser comparativamente maior e menor. Portanto, nada se opõe a ele. Consequentemente, Deus, por conta de uma ausência de divisão, é a totalidade das coisas. E nenhum nome pode convir a ele adequadamente, pois a concessão de um nome se baseia em uma determinada qualidade na qual o nome é concedido. Mestre Eckhart faz alusão a esta [tese]. [Nosso adversário] acrescenta que o bispo de Estrasburgo condenou aqueles que afirmavam (1) que Deus é, formalmente, todas as coisas e (2) que estas eram Deus, não sendo distintas dele na natureza. Em seguida, atacando o que sustenta a razão, ele diz: se não houvesse nenhuma distinção nem oposição de relações em Deus, o que viria a seguir seria totalmente absurdo, pois nesse caso a [doutrina] da Trindade seria abolida, etc. Ao que o Professor Revista de Filosofia e Mística Medieval, vol. 3, nº 1. Curitiba: Faculdade de Filosofia São Boaventura, 2006, p. 25-55. 123 Para o aprofundamento da refutação cusana à acusação de panteísmo feita por J. Wenck. Cf. HOPKINS, Jasper. Nicholas of Cusa and John Wenck's Twentieth-Century Counterparts. In: A miscellany on Nicholas of Cusa. Part One: Critical Analyses. Minneapolis: The Arthur J. Banning Press, 1994, chapter 1, p. 1-38; 247-255. Disponível em: < http://jasper-hopkins.info/CusanusandWenck.pdf>. 124 J. Wenck era um aristotélico, professor de teologia da Universidade de Heidelberg, onde também foi reitor por três vezes. Em 1442 ou 1443 ele escreveu um texto intitulado De Ignota Litteratura, no qual tece uma série de críticas ao pensamento de Nicolau de Cusa apresentado dois/três anos antes no De docta ignoratia (1440). Em sua obra Wenck chama Nicolau de falso apóstolo e o acusa de heresia e panteísmo, o que gera indignação no cardeal. Como resposta aos insultos recebidos de Wenck, principalmente no que se refere a completa distorção de suas doutrinas, Nicoalu escreve a Apologia Doctae Ignorantiae (1449), sob a forma de carta de um discípulo a outro discípulo, nessa obra o autor justifica e clarifica as suas ideias, revelando a total imprecisão e presunção da interpretação feita pelo Teólogo de Heidelberg. 50 [respondeu]: “Não deveria este falsificador ser ridicularizado, em vez de refutado? Por que ele não indica o lugar onde estas teses são encontradas nos livros da Douta Ignorância?”. E eu: “Ele foi incapaz de indicar [o lugar], porque esta [tese] não é encontrada em nenhum canto dessa obra. Pois eu tenho lido com muito cuidado e não me lembro de alguma vez ter encontrado [a declaração] que todas as coisas coincidem com Deus. (No segundo [livro] da Douta Ignorância eu, aliás, encontrei [a declaração] que a criação não é nem Deus, nem nada). Eu não entendo o que o nosso adversário pretende, e possivelmente ele também não entende o seu próprio propósito. Pois eu achei ser necessário (e é isso o que eu li [lá no segundo livro]) que todos os atributos divinos coincidam em Deus e que toda a teologia seja organizada em um círculo, de modo que em Deus a justiça é a bondade, e, inversamente, (e de modo similar para os outros atributos). Todos os santos que têm considerado a simplicidade infinita de Deus concordam sobre este ponto125”. Nos três livros do De Docta ignorantia, assim como nas outras obras escritas por Nicolau de Cusa, não se encontra qualquer sentença na qual ele identifique de forma objetiva Deus com a criação ou a criação com Deus. Não obstante, é inevitável que algumas de suas formulações, tais como esta que é discutida na Apologia e cuja real intenção é aclarar a coincidentia oppositorum, possam ser mal interpretadas ou até mesmo distorcidas, como o fez J. Wenck, caso não sejam consideradas estritamente como foram concebidas. Como foi explicado no trecho acima, Wenck leu no De Docta ignorantia que todas as coisas coincidem com Deus e não que todas as coisas coincidem em Deus, como de fato está 125 Citaremos no rodapé o texto em latim da Apologia Doctae Ignorantiae a partir da seguinte edição: NICOLAI DE CUSA. Apologia doctae ignorantiae. Opera omnia. Iussu et auctoritate Academiae Litterarum Heidelbergensis ad codicum fidem edita. Vol. II. Hamburgi: Felicis Meiner, 2007 (sigla: h). Para as citações no texto faremos nossa tradução para o português a partir da edição em latim (h) citada acima, e tomaremos como referência a seguinte tradução: NICHOLAS OF CUSA. A defense of learned ignorance from one disciple to another (Apologia Doctae Ignorantiae). In: HOPKINS, Jasper. Nicholas of Cusa's Debate with John Wenck: A Translation and an Appraisal of De Ignota Litteratura and Apologia Doctae Ignorantiae. Translated into English by Jasper Hopkins. Third edition. Minneapolis: The Arthur J. Banning Press, 1988. Disponível em: . Para o texto citado acima conferir: Apologia doctae ignorantiae. h II. n. 32-33, p. 22-23, linhas 9-19; 1-14: Continuavi ego lecturam, ubi dicit adversarius: «Venio nunc specialius ad eius dicta per conclusiones et correlaria. Prima conclusio: Omnia cum Deo coincidunt. Patet, quia est maximum absolutum non admittens excedens et excessum, ergo nihil sibi oppositum; et per consequens ob defectum discretionis ipse est universitas rerum, et nullum nomen potest ei proprie convenire, cum impositio nominis sit a determinata qualitate eius, cui nomen imponitur; cui alludit magister Eckardus.» Subiungit episcopum Argentinensem condempnasse eos, qui dice-bant Deum esse omnia formaliter et se esse Deum sine distinctione per naturam. Deinde contra probationem dicit absurdissimum esse, quod sequeretur, si nulla esset distinctio nec relationis oppositio in divinis; sublata enim tunc foret Trinitas, et cetera. Ad quae praeceptor: «Nonne falsarius iste potius ridendus quam confutandus esset? Cur non dicit locum, ubi in libellis Doctae ignorantiae haec conclusio reperitur?» Et ego: «Quia nusquam reperitur, dicere non potuit. Legi enim ego quam diligenter et non memini umquam repperisse, quod omnia cum Deo coincidunt. Repperi bene in secundo Doctae ignorantiae creaturam non esse Deum nec nihil; neque capio, quid velit adversarius dicere, neque forte ipse se intelligit. Nam omnia attributa divina coincidere in Deo et totam theologiam esse in circulo positam, sic quod iustitia in Deo est bonitas et e converso – ita de reliquis –, necessarium comperi et ita legi; et in hoc concordant omnes sancti, qui ad infinitam Dei simplicitatem respexerunt»” (A defense of learned ignorance from one disciple to another, n. 22-23, p. 475, tradução e grifo nosso). 51 escrito. Com a primeira afirmação não poderíamos entender outra coisa senão que Deus e o universo se resolvem na identidade, o que significa que eles seriam uma mesma coisa. Já a segunda e verídica afirmação aponta para a circularidade da teologia cusana126 e também para um aspecto da unidade divina enquanto complicatio absoluta que ainda não aprofundamos, a saber, que omnia in Deo Deus. Vejamos então quais as conclusões que são possíveis de se extrair dessas duas características da doutrina cusana e se a partir delas podemos inferir algum traço da perspectiva panteísta indicada por Wenck. A ideia de teologia circular, de acordo com Hopkins (1985, p. 55, nota 112), possivelmente chegou ao pensamento de Nicolau de Cusa através de Raimundo Lúlio. Essa influência é assegurada por André (2003, p. 49, nota 61), convencido pelo que demonstrou Colomer127 (1961, p. 56, 86-89) em um de seus trabalhos. O fato é que, na maneira como é entendida pelo Cusano, “toda a teologia tem uma natureza circular”, o que significa que todas as coisas que se afirmam de Deus não diferem entre si, isto é, cada atributo divino implica os demais e todo nome predicado pode ser dado a partir de qualquer outro128. Segundo Nicolau, “ainda que, por razões diferentes, atribuamos a Deus nomes sempre diferentes. Deus, porém, na medida em que é a razão absoluta de todas as razões formáveis, complica em si todas as razões”. Dessa forma, porque Deus “é a razão absoluta na qual toda a alteridade é unidade e toda a diversidade identidade, então a diversidade das razões, que não é a própria identidade de acordo com a qual nós concebemos a diversidade, não pode existir em Deus129”. Por 126 De docta ignorantia. h I. L. I, cap. 21, n. 66, p. 44, linhas 3-7 “Hoc tantum notatum esse admoneo, quomodo omnis theologia circularis et in circulo posita existit, adeo etiam quod vocabula attributorum de se invicem verificentur circulariter: ut summa iustitia est summa veritas, et summa veritas est summa iustitia, et ita de omnibus” (A douta ignorância, p. 49). 127 COLOMER, Eusebio. Nikolau von Kues und Raimund Llulls aus Handschriften der Kueser Bibliothek. Berlin: Walter de Gruyter, 1961. 128 Cf. Idiota. De sapientia. h V. L. II, n. 36, p. 68-69, linhas 4-13: “IDIOTA: Nec credas me dicere velle modo, quo tota theologia est in circulo posita, ut unum de attributis de alio verificetur, sicut dicimus ex necessitate simplicitatis dei infinitae dei magnitudinem esse dei potentiam et e converso et dei potentiam esse dei virtutem et ita de cunctis essentiae dei per nos attributis. Sed haec, de quibus nunc sermo, experimur in nostro communi sermone coincidere. Quando enim audimus aliquem rem uti est exprimere, unus dicit exprimentem praecise expressisse, alius recte, alius vere, alius iuste et alius bene. Ita quidem in cotidiano experimur sermone” (Un ignorante discurre acerca de la sabiduría, p. 83). 129 De visione Dei. h VI. Cap. 3, n. 8, p. 12-13, linhas 3-18: “Consequenter attendas omnia, quae de deo dicuntur, realiter ob summam dei simplicitatem non posse differre, licet nos secundum alias et alias rationes alia et alia vocabula deo attribuamus. Deus autem cum sit ratio absoluta omnium formabilium rationum, in se omnium rationes complicat. Unde quamvis deo visum, | auditum, gustum, odoratum, tactum, sensum, rationem et intellec tum et talia attribuamus secundum alias et alias cuiuslibet vocabuli significationum rationes, tamen in ipso videre non est aliud ab audire et gustare et odorare et tangere et sentire et intelligere. Et ita tota theologia in circulo posita dicitur, quia unum attributorum affirmatur de alio et habere dei est esse eius et movere est stare et currere est quiescere et ita de reliquis attributis. Sic licet nos alia ratione attribuamus ei movere et alia stare, tamen quia ipse est absoluta ratio, in qua omnis alteritas est unitas et omnis diversitas identitas, tunc rationum diversitas, quae non est identitas ipsa, prout nos diversitatem concipimus, in deo esse nequit” (A visão de Deus, p. 141). 52 conseguinte, “a distinctio rationis de que fala o Cusano é puramente nominal” (ÁLVAREZ GÓMEZ, 2004, p. 25, tradução nossa). Com efeito, Deus complica todos os entes e todos os nomes; e se os consideramos no modo como são em Deus, isto é, inseridos em sua suprema unidade e simplicidade, vemos que o máximo é idêntico a ambos, logo também a si mesmo. A unidade infinita inclui em si todo ser sem composição alguma, “pois em Deus todas as coisas são Deus130”; ele é o lugar “onde não há o outro ou o diferente, onde o homem não difere do leão, e o céu não difere da terra, e onde, todavia, cada uma destas coisas é verdadeiramente ela própria, não segundo a sua finitude, mas [enquanto é] de um modo complicado a própria unidade máxima131”. Estar em Deus não é senão ser Deus mesmo, enquanto complicadas em uma causa que é coincidentia oppositorum, as coisas são alí sem alteridade, una e a mesma com sua causa; é nesse sentido que devemos entender a sentença omnia in Deo Deus. Certamente a crítica que o professor de Heidelberg faz ao Cusano não se resume a esses trechos do De Docta ignorantia; todavia, os aspectos apresentados neles foram tomados como ponto de partida teórico para toda a sua má interpretação. Ao longo dos escritos de Nicolau encontramos outros trechos que nos apresentam elementos para pensar essa suposta identificação entre Deus a criação. Tomemos, por exemplo, os capítulos dois e três do livro II do De Docta ignorantia quando o cardeal afirma: “Pois retira Deus da criatura e nada permanece. Retira a substância do composto e não permanece acidente algum, e assim nada permanece132”. De imediato o que fica-nos evidente a partir dessa construção é a total imanência de Deus nas criaturas e, por conseguinte, a sua não distinção com relação a elas parece inevitável. Se considerarmos ainda os conceitos de complicatio e explicatio, por meio dos quais o Cusano, de modo geral, entende a relação Criador-criatura, como não concluir facilmente que 130 Apologia doctae ignorantiae. h II. n. 39, p. 22, linhas 1-4: “Ad quae praeceptor: «Nescio, quid velit per ‘universalizantes’. Hoc notum est ex Paulo apostolo et omnibus sapientibus Deum esse in omnibus et omnia in ipso. Per hoc tamen nemo ponit compositionem in Deo, quia omnia in Deo Deus” (A defense of learned ignorance from one disciple to another, n. 27, p. 478, tradução nossa). 131 De docta ignorantia. h I. L. I, cap. 24, n. 77, p. 49, linhas 14-19: “Quis enim intelligere possit unitatem infinitam per infinitum omnem oppositionem antecedentem, ubi omnia absque compositione sunt in simplicitate unitatis complicata, ubi non est aliud vel diversum, ubi homo non differt a leone et caelum non differt a terra, et tamen verissime ibi sunt ipsum, non secundum finitatem suam, sed complicite ipsamet unitas maxima?” (A douta ignorância, p. 56); O ponto de interrogação no final da citação em latim está grifado em negrito para indicar que ele está omitido na tradução que fizemos do trecho para o português e que se encontra no corpo do trabalho. Nosso intuito é tão simplesmente adequar a tradução do latim ao contexto do nosso parágrafo e a intenção comunicativa do período no qual a inserimos. 132 Ibid. h I. L. II, cap. 3, n. 110, p. 71, linhas 21-23 “Tolle Deum a creatura, et remanet nihil; tolle substantiam a composito, et non remanet aliquod accidens et ita nihil remanet” (Ibid., p. 78). 53 complicatio e explicatio são equivalentes, uma vez que o máximo é todas as coisas e que este máximo infinito se explicita no finito, de forma que a pluralidade é a unidade mesma explicativa e a unidade é a pluralidade complicativa? E, por conseguinte, como não deduzir que Deus é idêntico à sua criação? Resulta, pois, imprescindível nos aprofundarmos na segunda questão que propomos para esse tópico e que embora tenha sido enunciada no início dessa seção não a tocamos ainda em sua total abrangência, isto é, sobre como é possível que todas as coisas sejam imagem de uma única forma ou exemplar infinito. A resposta para essa pergunta nos remeterá de maneira mais decisiva aos fundamentos dos laços que unem Deus, o homem e o mundo, pondo em jogo, junto às noções de complicatio e explicatio, outra típica noção cusana: a contração (contractio), que iremos abordar tendo em vista a solução proposta pelo cardeal para a célebre disputa dos universais, que no Idiota. De mente é encabeçada pelas perspectivas filosóficas dos “acadêmicos” e dos “peripatéticos”133. Pelo menos é assim que nesse diálogo o Cusano rotula aqueles pensadores que representavam à via antiqua e a via nova respectivamente. 3.2 O problema dos Universais e a doutrina da contractio. No decorrer da história da filosofia muitos autores buscaram determinar a “natureza” dos universais se empenhando em precisar que classe de entidades são eles ou qual a sua forma peculiar de “existência”. Na Idade Antiga, por exemplo, podemos encontrar junto aos filósofos gregos do período clássico, especialmente em Platão (428-348 a.C.) e Aristóteles (384-322 a.C.), o substrato conceitual que fundamentou as posteriores reflexões, tanto de medievais como de modernos, sobre essas questões. Não é por acaso que exatamente a partir da Isagoge de Porfírio às Categorias de Aristóteles e pelos comentários de Boécio134 (480- 133 Se tomarmos a tradução para a língua inglesa do Idiota. De mente (CUSA, 1996) feita por Jasper Hopkins, vemos que em suas notas de rodapé (cf. notas 19, 21 e 22) o comentador não encontra problema em tratar os acadêmicos e peripatéticos, assim são denominados por Nicolau, como Platônicos e Aristotélicos. Cf. CUSA (1996, p. 539-540); No entanto, para José González Ríos (2005, p. 157, tradução nossa), essas duas tendências da disputa “não podem travestir-se com os rótulos de ‘platônicos’, por um lado, e ‘aristotélicos’, por outro, não somente pela dubiedade das nomenclaturas assim utilizadas senão também pela sua imprecisão; pois o que o cusano entende por uns e outros, e expressa através de seu ignorante representa uma perspectiva fundamental no processo sincrético da constituição de seu pensamento”. 134 Cf. BOETHII, Anicii M. T. Severini. Isagogen Porphyrii comenta. Ed. Samuel Brandt [“Corpus Scriptorum Ecclesiasticorum Latinorum”, vol. 48.2]. Vienna: F. Tempsky, 1906. 54 524) a ela direcionados que eclodiram os debates sobre o status ontológico dos universais, estendendo-se por boa parte da Idade Média. Como as disputas foram intensas e o problema dos universais foi amplamente discutido no período medieval somente coloca-se neste a origem e o fim explícito da chamada “Querela dos Universais”; entretanto, cabe considerar que se trata de um tema muito presente na antiguidade clássica, discutido na filosofia moderna e que de algum modo continuou e continua gerando interesse na contemporaneidade. Como indicativo do vigor dessa temática na Idade Antiga basta notar sua importância nos escritos de Aristóteles e Platão. A começar por Aristóteles135 (2003, p. 515, tradução nossa), em determinado momento da Metafísica ao refletir sobre a origem da doutrina das ideias, ele atribui a Sócrates a descoberta do universal: “Duas, são, pois, as coisas que cabem atribuir em justiça a Sócrates: os raciocínios indutivos e as definições universais. E ambas estão, certamente, no princípio da ciência”. Em outro momento, no seu tratado Sobre a Interpretação, obra que compõe o Organon136, Aristóteles137 (1995, p. 44, tradução nossa) apresenta o seu tão famigerado conceito de “universal”: “chamo universal o que é natural que se predique sobre várias coisas”, definição esta que foi quase universalmente aceita na história da filosofia. Um conceito ainda mais acabado do universal aristotélico, que deixa ver não somente o seu aspecto lógico, mas também o seu caráter ontológico, pode ser encontrado em outro tratado constituinte do Organon, nos Analíticos posteriores. Nessa obra Aristóteles138 (1995, p. 324, tradução nossa) afirma: “chamo universal o que se dá em cada um em si e enquanto tal. Por tanto é evidente que todos os universais se dão por necessidade nas coisas”. Outro expoente não menos importante e cujo pensamento se tornou ponto de partida ou pelo menos referencial obrigatório para todos os que se detiveram nessa temática é Platão. Tendo sido o primeiro a pensar o universal, Platão139 (1988, p. 46-47, tradução nossa), refletindo-o sob uma perspectiva ontológica, fez do universal socrático a própria realidade. De acordo com ele o universal é a forma, a ideia ou a essência que pode ser partilhada por várias coisas e que confere às coisas a natureza ou o caráter que têm em comum. O belo, o bom e o 135 ARISTÓTELES. Metafísica. L. XIII, cap. 4, 1078b 28-31. 136 Nome tradicional atribuído ao conjunto das obras sobre lógica que abre o Corpus aristotelicum. 137 ARISTÓTELES. Sobre la Interpretación. 7, 17a 39. In: Tratados de Lógica (Órganon). Introducciones, traducciones y notas por Miguel Candel Sanmartín. Volumen II. Madrid: Gredos, 1995, p. 35-81. 138 Idem. Analíticos segundos. L. I, 4, 73b 25ss. In: ______. Tratados de Lógica (Órganon). Introducciones, traducciones y notas por Miguel Candel Sanmartín. Volumen II. Madrid: Gredos, 1995, p. 299-440. 139 PLATÓN. Parmênides. 132a. In: ______. Diálogos V: Parmênides; Teeteto; Sofista; Político. Traducciones, introducciones y notas por Maria Isabel Santa Cruz; Alvaro Vallejo Campos; Néstor Luis Cordero. Madrid: Gredos, 1988, p. 7-136. 55 grande, por exemplo, são “entidades”, “substâncias”; não são simples conceitos ou representações mentais, mas realidades no sentido forte do termo, realidades absolutas, aquilo que é objeto do pensamento quando liberto do sensível, e nesse sentido podem ser denominados como “o belo, o bom e o grande em si”. O universal ou a ideia é, com efeito, a estrutura metafísica ou a essência das coisas, aquilo que faz com que cada coisa seja aquilo que é, em outros termos, a sua verdade, o seu verdadeiro ser. Para Platão140 (1972, p. 112- 114) “tudo o que é belo é belo em virtude do belo em si” de forma que “o que é belo é belo por meio do Belo”. Por conseguinte, afirmar que as ideias existem “em si e por si” significa afirmar que elas nem estão sujeitas às determinações da razão humana e nem são dependentes do gerar-se e corromper-se das coisas. Logo, não são relativas a nada e não lhes toca o devir que arrasta todas as coisas sensíveis. “Quando, além do belo em si, existe outro belo, este é belo porque participa daquele, apenas por isso e por nenhuma outra causa”. Ainda que a simetria de certa pintura seja bela apenas para a perspectiva de alguns homens, mas não de outros, ou mesmo que a sua beleza venha a estragar-se com o desgaste do tempo e a má conservação, segundo Platão, a causa do belo, ou seja, a ideia do belo, não pode ela mesma sofrer mudança, uma vez que esta se impõe ao sujeito de modo absoluto e existe “em si e por si”, ao contrário, não seria a sua razão última e suprema, de natureza exclusivamente inteligível. Realizando agora um salto para além do medievo até a Modernidade, um exemplo a ter-se em conta e, que evidencia a amplitude que essa questão dos universais alcança, é Thomas Hobbes (1588-1679). Adotando uma perspectiva extrema do nominalismo, Hobbes afirma não apenas que o universal é simplesmente um nome, mas também que a verdade em si mesma é composta pelos nomes e que esta depende da vontade humana, uma vez que a verdade depende da definição do termo e a definição do termo depende, ao seu passo, do arbítrio humano141. 140 PLATÃO. Fédon. 99d – 101b. In: PESSANHA, José Américo Motta (org.). Os pensadores: Diálogos - O Banquete; Fédon; Sofista; Político. Traduções de José Cavalcante de Souza; Jorge Paleikat e João Cruz Costa. São Paulo: Abril Cultural, 1972, p. 62-132. 141 Citamos no rodapé o texto em latim da Elementorum philosophiae section prima De corpore a partir da seguinte edição: HOBBES, Thomae. Elementorum philosophiae section prima De corpore. In: Opera Philosophica. Vol. I. Quae letine scripsit. Studio et labore Gulielmi Molesworth. Londini: Joannem Bohn, 1839. Para a nossa elucidação tomamos como referência a seguinte tradução: HOBBES, Thomas. Elements of Philosophy. Concernig body. In: The English works of Thomas Hobbes of Malmesbury. Vol. I. Now first collected and edited by Sir William Molesworth. London: John Bohn, 1839. Para a referência citada no texto conferir: De corpore. I, cap. 3, n. 7, p. 31-32: “Tertia distinctio est, quod alia vera est, alia falsa. Vera est cujus praedicatum continet in se subjectum; sive cujus praedicatum nomen est uniuscujusque rei, cujus nomen est subjectum; ut homo est animal, vera propositio est, propterea quod quicquid vocatur Homo, idem vocatur quoque Animal. Et quidam homo est aegrotus vera est, cum sit cujusdam hominis nomem Aegrotus. Quae autem 56 Para qualquer historiador da filosofia é indubitável que a reflexão em torno aos universais não se esgota na Idade Média, mas ao contrário, aflui para os séculos seguintes. Mugnai142 (2000, p. 7-10), ressaltando essa propensão que a temática possuía para o posterior desdobramento na modernidade, afirma, por exemplo, que para Leibniz (1646-1716) a escola nominalista “não somente é a mais profunda entre aquelas que se enraizou na filosofia medieval como também a mais adequada para se integrar com a nova mentalidade filosófica e científica desenvolvida com o fim da escolástica”. Em outro momento, o comentador destaca ainda as contestações que Leibniz faz a Hobbes e a Nizolio (1498-1567) no que diz respeito às nuances conceituias presentes nos seus “nominalismos”, e que o levam a lhes direcionar algumas obras de caráter crítico, revivificando assim, de certo modo, as “disputas sobre os universais”. Por tudo isso, entendemos que é impossível não perceber a vigência ou pelo menos a influência das tradições antigas, especialmente da tradição platônico-aristotélica e da estoica, ao longo de todo esse itinerário de reflexão a respeito da questão dos universais. E na Idade Média podemos notar isso de forma ainda mais nítida. Basta considerar que a querela medieval sobre os universais na realidade é a disputa entre essas duas tradições fundamentais: a platônica-aristotélica e a estoica. Por um lado o realismo representando a primeira dessas tradições e por outro o nominalismo, representando a segunda. De uma maneira geral podemos definir essas duas vertentes da seguinte forma: para o realismo o universal é, além de conceptus mentis, a essência necessária ou a substância das coisas, já para o nominalismo o universal não é senão um signo das coisas. Realismo e nominalismo constituem, portanto, as duas soluções típicas e iniciais da disputa dos universais durante o período medieval. Pois bem, ainda que a grande maioria daqueles que se debruçaram sobre esse tema durante a Idade Média tenham se referido a posições já adotadas pelos filósofos gregos, o ponto de partida para o exame do assunto foi quase que exclusivamente a forma em que este foi “colocado” por Porfírio na sua Isagoge e os subsequentes comentários a ela proferidos por vera non est, sive cujus praedicatum non continet subjectum, ea Fala appellatur, ut homo est saxum. Voces autem hae verum, veritas, vera propositio, idem valent. Veritas enim in dicto, non in re consistit: nam etsi verum opponatur aliquando apparenti, vel ficto, id tamen ad veritatem propositionis referendum est; nam ideo simulachrum hominis in speculo, vel spectrum, negatur esse verus homo, propterea quod haec propositio, spectrum est homo, vera non est; nam ut spectrum non sit verum spectrum, negari non potest. Neque ergo veritas, rei affectio est, sed propositionis. Quod autem a metaphysicis dici sole tens unum et verum idem sunt, nugatorium et puerile est; quis enim nescit, hominem, et unum hominem et vere hominem idem sonare” (Concernig body. p. 35-36). 142 MUGNAI, Massimo. Introduzione. In: LEIBNIZ, Gottfried Wilhelm. Scritti Filosofici (Classici della filosofia). A cura di Massimo Mugnai ed Enrico Passini. Volume primo: Scritti giovanili; Elaborazioni private; Il nuovo sistema. Torino: UTET, 2000, p. 6-15. 57 parte de Boécio, e é isso o que realmente nos interessa desse brevíssimo levantamento histórico que fizemos da amplitude que a questão dos universais alcançou. Porfírio expõe a problemática nos seguintes termos: Sendo mister, Crisaórios, para aprender a doutrina das Categorias de Aristóteles, conhecer o que é gênero, o que é diferença, o que é espécie, o que é próprio (a propriedade), e o acidente, e que este conhecimento também é necessário para as definições, e de maneira geral para tudo quanto concerne à divisão e à demonstração, cuja teoria é de grande utilidade, farei para ti uma breve exposição, e tentarei em poucas palavras, como numa espécie de introdução, examinar o que disseram os antigos filósofos, abstendo-me de pesquisas muito aprofundadas, e tocando apenas em certa medida nas que são mais simples. Quanto ao que concerne aos gêneros e às espécies, o problema de saber (1) se são realidades subsistentes em si mesmas, ou apenas simples concepções do espírito, e, admitindo serem realidades substanciais (2) se são corpóreas ou incorpóreas, (3) se, enfim, estão separadas ou se subsistentes apenas nas coisas sensíveis, e junto a elas, evitarei falar em tais coisas143. Nesse trecho da Isagoge nós destacamos três perguntas dispostas por Porfírio que serão fundamentais à compreensão de como Nicolau de Cusa entende essa matéria dos universais, muito embora, tais preocupações tenham sido descartadas por Porfírio como objetos de reflexão para sua obra, tendo em vista a profundidade e a vastidão da problemática e a consequente exigência de estudos aprofundados e uma pesquisa mais extensa. Na primeira pergunta, pretende-se saber se os gêneros e as espécies são realidades per se e in se, isto é, se podemos considerá-los como substâncias, ou de outro modo, se são apenas entes da razão, noções do espírito. Considerando-se que sejam substâncias, a segunda pergunta busca saber se são realidades corpóreas ou incorpóreas. E por fim, partindo da premissa anterior, com a terceira pergunta pretende-se definir se tais espécies de realidades se 143 Citamos no rodapé o texto em latim da Isagoge a partir da tradução feita por Boécio e que é apresentada na seguinte edição: PORPHYRE. Isagoge. Texte grec et latin. Introduction et notes par Alain de Libera. Traduction par Alain de Libera et Alain-Philippe Segonds. Paris: Vrin, 1998. Para a citação no corpo do trabalho tomamos como referência a seguinte tradução: PORFÍRIO. Isagoge. Introdução às categorias de Aristóteles. Tradução, notas e comentários de Mário Ferreira dos Santos. São Paulo: Matese, 1965. Para o texto citado acima conferir: Isagoge. Prefácio, I, 1-10, p. 143: “Cum sit necessarium, Crysaori, et ad eam quae est apud Aristotelem praedicamentorum doctrinam, nosse quid genus sit e quid differentia quidque species et quid proprium et quid accidens, et ad definitionum assignationem et omnino ad e aquae in divisione vel demonstratione sunt, utili hac istarum rerum speculatione, compendiosam tibi traditionem faciens tentabo breviter velut introductionis modo e aquae ab antiquis dicta sunt agredi, altioribus quidem quaestionibus abstinens, simpliciores vero mediocriter coniectans. Mox de generibus et speciebus illud quidem sive subsistunt sive in solis nudis purisque intellectibus posita sunt sive subsistentia corporalia sunt an incorporalia, et utrum separata an in sensibilibus et circa ea constantia, dicere recusabo” (Isagoge. Introdução às categorias de Aristóteles, p. 19-20). 58 dão per se e separadas das coisas, ou ao contrário, in re, na coisa apenas. Vemos que Porfírio constrói a sua reflexão formulando perguntas antagônicas que como tais se limitam a duas respostas possíveis. Posteriormente, durante o medievo, essas possiblidades de resposta serão efetivadas cada qual com o surgimento de uma tendência filosófica, e que juntas representam bem essa grande dificuldade para determinar a natureza dos universais. São elas: a via nova, como se denominava o pensamento dos nominalistas (nominales), e oposto a essa a via antiqua, cujos representantes eram os realistas (reales). De fato, estando situado na segunda metade do século XV, Nicolau de Cusa não toma a Isagoge de Porfírio como referencial direto para sua reflexão, e tão pouco se remete a ela em seu diálogo De mente; no entanto, acaba por tratar das questões que se delineiam em seu prefácio, ao considerar as reverberações filosóficas que a obra do filósofo de Tiro suscitou ao longo da Idade Média. E isso ele o faz primeiramente sob o ponto de vista dos peripatéticos e em seguida desde os acadêmicos, para, por fim, postular uma solução propriamente sua para essa questão, buscando conciliar ambas as seitas. Olhando para a biografia do cardeal, mais especificamente para a sua formação intelectual, vemos que na Universidade de Heidelberg, onde se inscreve em 1416, ele recebe a orientação doutrinal de Marsilio de Inghem, primeiro reitor dessa universidade e um dos maiores representantes do nominalismo do século XIV, o que o leva a aproximar-se da obra de Ockham. Esta influência recebida em sua formação na via nova constituiu a visão cusana sobre o que ele chamaria mais tarde de “peripatéticos”. Já na Universidade de Colônia, que era um centro albertista, Nicolau ingressa em 1425 para cursar a Faculdade de Teologia e permanece lá até 1428. A formação adquirida nessa Universidade aproxima Nicolau ao exemplarismo e essencialismo próprios da via antiqua. Também nesse período, através das relações acadêmicas que Nicolau mantém com importantes nomes daquela época, lhe chega o conhecimento de um neoalbertismo afetado pelo emanatismo neoplatônico desenvolvido no De universal reali de João de Maisonneuve (?-1418), assim como pela presença de Proclo e do Pseudo Dionísio. É, pois, em relação a esta influência que Nicolau atribui o nome de “acadêmicos”144. Agora bem, no Capítulo 2 do Idiota. De mente dando sequência ao desenvolvimento da temática relativa à imposição dos nomes conjecturais, Nicolau passa a apresentar a sua “saída” para o problema geral dos gêneros e espécies (universais). A exposição de sua solução 144 Sobre esse levantamente histórico. Cf. COLOMER (1964, p. 387-435); GONZÁLEZ RÍOS (2005, p. 158- 159). 59 parte de como ele entende essas duas correntes ou perspectivas distintas que se formaram durante a Idade Média, isto é, aquela assumida pelos acadêmicos e a outra defendida pelos peripatéticos, ou se preferir, nominalistas de um lado, pois os peripatéticos são para Nicolau de Cusa nominalistas, e realistas do outro. Os “peripatéticos”, tal como são apresentados pela personagem do ignorante no desenvolvimento do De mente, defendem que gêneros e espécies, enquanto tomados por um nome, são entia rationis (entes da razão), criações conjecturais da humana mens “as quais a razão fez para si a partir da concordância e da diferença das coisas sensíveis”. De um modo geral, sabemos que para essa linha de pensamento o universal é algo de comum a diversas coisas, sem constituir, no entanto, a substância desses muitos aos quais pertence. E é tendo isso em vista que gêneros e espécies não são considerados “reais”, isto é, não são naturezas comuns a determinados objetos em um sentido metafísico particular, constituindo-os enquanto substâncias, senão que existem posteriores às coisas sensíveis (universalia post rem), das quais são similitudes145. É sob o conhecimento desses fundamentos que Nicolau de Cusa descreve a sua visão da doutrina peripatética. No Compendio, por exemplo, lemos que “nada há na imaginação que antes não estivera nos sentidos, como se vê que um cego de nascença não tem uma imagem da cor e tampouco pode imaginá-la146”. Essa compreensão é reafirmada e ampliada no De mente quando o Cusano afirma que “nada pode estar no intelecto que não esteja na razão” assim como “nada pode estar no intelecto que previamente não tenha passado pelo sentido147”. Ou 145 Para todo esse parágrafo Cf. Idiota. De mente. h V. Cap. 2, n. 65, p. 100, linhas 1-4: “IDIOTA: Unde genera et species, ut sub vocabulo cadunt, sunt entia rationis, quae sibi ratio fecit ex concordantia et differentia sensibilium. Quare, cum sint posterius natura rebus sensibilibus, quarum sunt similitudines, tunc sensibilibus destructis remanere nequeunt” (Un ignorante discurre acerca de la mente, p. 51, tradução nossa). 146 Citaremos no rodapé o texto em latim do Compendium a partir da seguinte edição: NICOLAI DE CUSA. Compendium. Opera omnia. Iussu et auctoritate Academiae Litterarum Heidelbergensis ad codicum fidem edita. Vol. XI. Fasciculus 3. Hamburgi: Felicis Meiner, 1964 (sigla: h). Para as citações no texto faremos nossa tradução para o português a partir da edição em latim (h) citada acima, e tomaremos como referência as seguintes traduções: NICHOLAS OF CUSA. Compendium (Compendium sive compendiosissima directio). In: HOPKINS, Jasper. Nicholas of Cusa on wisdom and knowledge. Translated into English by Jasper Hopkins. Minneapolis: The Arthur J. Banning Press, 1996, 1382-1419. Disponível em: ; NICOLÁS DE CUSA. Compendium. In: Thémata, revista de filosofia. nº3. Traducción y notas de Juan García Gonzáles. Sevilla: Universidad de Sevilla, 1986. p. 151-167. Para o texto citado acima conferir: Compendium. h XI/3. Cap. 4, n. 9, p. 8, linhas 5-7: “Nihil enim est in phantastica, quod prius non fuit in sensu. Ideo caecus a nativitate non habet phantasma coloris et imaginari nequit colorem” (Nicolás de Cusa. Compendium, p. 156, tradução nossa). 147 Cf. Idiota. De mente. h V. Cap. 2, n. 65, p. 100-101, linhas 4-12: “IDIOTA: Qui cumque igitur putat nihil in intellectu cadere posse, quod non cadat in ratione, ille etiam putat nihil posse esse in intellectu, quod prius non fuit in sensu. Et hic necessario dicere habet rem nihil esse nisi ut sub vocabulo cadit, et huius studium est in omni inquisitione quid nominis profundare. Et haec inquisitio grata est homini, quia motu rationis discurrit. Hic negaret formas in se et in sua veritate separatas esse aliter quam ut sunt entia rationis, et exemplaria ac ideas nihili faceret” (Un ignorante discurre acerca de la mente, p. 51, tradução nossa). 60 seja, essa tendência nega que as formas em si e em sua verdade, isto é, enquanto separadas da matéria, existam de outra maneira senão como entes de razão, de forma que a coisa não é nada além daquilo que é enquanto tomada por um nome148. Em outras palavras, uma coisa não é nada além daquilo que o seu nome significa, e por isso, destruídas as coisas sensíveis gêneros e espécies não mais subsistem. Usando “termos nominalistas” podemos dizer ainda que os universais são apenas palavras que designam as coisas, designatum das coisas. De acordo com Hopkins (1996, p. 539, nota 17, tradução nossa), Nicolau caminha na mesma perspectiva defendida por Anselmo149 (1033-1109) e também por outros pensadores anteriores “ao considerar os conceitos dos objetos materiais como imagens mentais desses objetos”. Quer dizer, se uma determinada espécie de objetos sensíveis deixasse de existir, então não poderíamos mais considerar uma imagem mental desses objetos. Do mesmo modo que “um retrato de um homem cremado não é mais dito, estritamente falando, como sendo sua imagem. Além do mais, ninguém ao vê-lo poderia por muito tempo formar uma ideia dele” (HOPKINS, 1996, p. 539, nota 18, tradução nossa). Apesar disso, vale ressalvar que Nicolau, de forma distinta de Anselmo, não considera que um conceito seja um nome natural, isto é, o nome preciso, pois este é reservado ao conhecimento divino. O que o Cusano busca nessa primeira exposição é, na verdade, apresentar os gêneros e espécies (universais) em sua dimensão gnosiológica e linguística, isto é, entendidos como aquilo que se predica de muitos, e por isso toda essa explicação a respeito daquilo que ele considera ser o núcleo da posição assumida pelos peripatéticos. 148 Cf. Ibid. h V. Cap. 14, n. 153, p. 208, linhas 1-2: “IDIOTA: Aristoteles autem, qui omnia consideravit ut sub vocabulo cadunt, quae motu rationis sunt imposita” (Ibid., p. 139). 149 Citamos no rodapé o texto em latim da De divinitatis essentia monologium a partir da seguinte edição: S. ANSELMI CANTUARIENSIS ARCHIEPISCOPI. Monologion. In: Opera omnia, ad fidem codicum recensuit Franciscus Salesius Schmitt, OSB. Vol I. Edinburgh: Thomas Nelson & Sons, 1946, p. 7-87. Para a nossa elucidação tomamos como referência a seguinte tradução: ANSELM OF CANTERBURY. Monologion. In: HOPKINS, Jasper. A New, Interpretive Translation of St. Anselm's Monologion and Proslogion. Minneapolis: Arthur J. Banning Press, 1986, p. 1-87. Para a referência citada no texto conferir: Monologion. X, p. 24, linhas 24-31; p. 25, linhas 1-9: “llla autem rerum forma, quae in eius ratione res creandas praecedebat: quid aliud est quam rerum quaedam in ipsa ratione locutio, veluti cum faber facturus aliquod suae artis opus prius illud intra se dicit mentis conceptione? Mentis autem sive rationis locutionem hic intelligo, non cum voces rerum significativae cogitantur, sed cum res ipsae vel futurae vel iam existentes acie cogitationis in mente conspiciuntur. Frequenti namque usu cognoscitur, quia rem unam tripliciter loqui possumus. Aut enim res loquimur signis sensibilibus, id est quas sensibus corporeis sentiri possunt sensibiliter utendo; aut eadem signa, quae foris sensibilia sunt, intra nos insensibiliter cogitando; aut nec sensibiliter nec insensibiliter his signis utendo, sed res ipsas vel corporum imaginatione vel rationis intellectu pro rerum ipsarum diversitate intus in nostra mente dicendo. Aliter namque dico hominem, cum eum hoc nomine, quod est, homo', significo; aliter, ecum idem nomen tacens cogito; aliter, cum eum ipsum hominem mens aut per corporis imaginem aut per rationem intuetur. Per corporis quidem imaginem, ut cum eius sensibilem figuram imaginatur; per rationem vero, ut um eius universalem essentiam, quae est .animal rationale mortale', cogitat” (HOPKINS. Monologion, p. 20-21). 61 O segundo passo da reflexão cusana, ainda no capítulo 2 do De mente, é a exposição da perspectiva defendida pelos realistas. Em oposição aos “peripatéticos” e tendo Nicolau como portavoz, os acadêmicos dizem que a verdade das formas que reluz nas coisas sensíveis é inefável e por isso permanece separada dos sentidos e da razão. Para eles, “os exemplares precedem, por natureza, as coisas sensíveis, como a verdade à imagem150”, ou segundo a fórmula tradicional, universalia ante rem, o que justifica a afirmação de que destruídas as imagens permanecem em si as formas. Em termos gerais, para os realistas os universais possuem uma existência real, universalia sunt realia, mas não ao modo das coisas corpóreas ou dos entes situados no espaço e submetidos ao tempo, pois se assim fosse os universais estariam condicionados às mesmas contingências que os entes empíricos e, consequentemente, não seriam universais. No realismo dito “moderado”, por exemplo, os universais existem somente enquanto formas das coisas particulares, isto é, possuindo seu fundamento na coisa: universalia in re. Já no realismo agostiniano os universais são concebidos enquanto arquétipos das coisas e existentes em Deus. O que Nicolau pretende com a enunciação da posição dos acadêmicos, a princípio, é “oferecer uma consideração dos universais desde o ponto de vista da dimensão ontológica do problema, isto é, a universalidade concebida desde a constituição ontológica dos entes, que dá o fundamento in re dos gêneros e espécies”. Tendo feito isso, ele passa então a atribuir um sentido propriamente seu a esta tendência, o que faz com a formulação dos “graus de contração do universo”, que é um aspecto de sua “doutrina da contração” (GONZÁLEZ RÍOS, 2005, p. 159-160, tradução nossa) apresentada no Livro Segundo do De Docta ignorantia. Pois bem, assim diz o cardeal no De docta ignorantia: “é difícil atingir a natureza da contração desconhecendo o exemplar absoluto”, uma vez que, “todo causado é inteiramente pela causa e nada tem a partir de si, e acompanha a origem e a razão pela qual é o que é do modo mais próximo e semelhante que pode151”. Nicolau retoma essa ideia no capítulo 10 do De mente ao refletir sobre a natureza da verdade tendo em vista as noções de multiplicidade e magnitude. Valendo-se da imagem do artesão e sua arte de confeccionar colheres, que é um 150 Idiota. De mente. h V. Cap. 2, n. 65, p. 101, linhas 12-16: “IDIOTA: Qui vero in mentis intelligentia aliquid esse admittunt, quod non fuit in sensu nec in ratione, puta exemplarem et incommunicabilem veritatem formarum, quae in sensibilibus relucent, hi dicunt exemplaria natura praecedere sensibilia sicut veritas imaginem” (Un ignorante discurre acerca de la mente, p. 51, tradução nossa). 151 De docta ignorantia. h I. L. II, prólogo, n. 90, p. 59, linhas 6-9: “Cum autem causatum sit penitus a causa et a se nihil et originem atque rationem, qua est id quod est, quanto propinquius et similius potest, concomitetur: patet difficile contractionis naturam attingi exemplari absoluto incognito” (A douta ignorância, p. 65). 62 referencial simbólico comum a essa obra, ele explica essa perspectiva com os seguintes termos: Filósofo: Se a magnitude discerne a integridade do todo, nada pode ser conhecido se não for conhecido o todo. / Ignorante: É verdade o que dizes. Pois não se sabe a parte a não ser que se saiba o todo, visto que o todo mede a parte. Quando da madeira extraio, por partes, a colher, considero a parte adaptando-a ao todo, de modo que produza uma colher bem proporcionada. Desta maneira toda a colher que concebi com a mente é o exemplar para o qual me volto quando trabalho a parte. E então posso confeccionar a colher perfeita quando cada uma das partes conserva sua proporção na ordem do todo. De modo similar, quando uma parte se une a outra estas devem respeitar a integridade do todo. Disso será necessário que a ciência de uma parte preceda a ciência do todo e de suas partes152. Esse exemplo redimensiona de certa forma a temática desenvolvida nos primeiros parágrafos do terceiro capítulo do Idiota. De mente, que, embora já discutida153, a retomaremos dentro dessa nova articulação. No modo como a reflexão foi apresentada nesse referido início do De mente, estar em posse da ciência precisa de uma determinada coisa implica necessariamente deter a ciência de tudo. Essa afirmação, pensando desde os princípios da ontologia cusana, encontra seu fundamento na doutrina da contractio. Veja bem, tomando a arte do ignorante ainda nos termos desse décimo capítulo, e considerando-se que no conhecimento da praecisio de uma parte a verdade do todo necessariamente se revela, então, podemos deduzir que um elemento qualquer da colher fabricada possui de certa forma a estrutura total, quer dizer, qualquer parte da colher contém de forma contraída a colher como um todo. Por outro lado, o caminho inverso também parece ser possível, ou seja, para Nicolau o conhecimento do todo se mostra imprescindível para o descobrimento da parte, uma vez que aquele é a sua medida. E se este todo for o próprio Verbo divino, e se nos fosse possível conhecê-lo tal como ele é, este saber 152 Idiota. De mente. h V. Cap. 10, n. 127, p. 179-180, linhas 12-16: “PHILOSOPHUS: Si magnitudo integritatem ab omnibus discernit, nihil ergo scitur, nisi omnia sciantur. / IDIOTA: Verum dicis. Nam non scitur pars nisi toto scito; totum enim mensurat partem. Quando enim coclear per partes ex ligno exscindo, partem adaptando ad totum respicio, ut coclear bene proportionatum eliciam. Sic totum coclear, quod mente concepi, est exemplar, ad quod respicio, dum partem fingo. Et tunc possum perfectum coclear efficere, quando quaelibet pars proportionem suam in ordine ad totum reservat. Similiter pars ad partem comparata suam integritatem debet observare. Unde necesse erit, ut ad scientiam unius praecedat scientia totius et partium eius. Quare deus, qui est exemplar universitatis, si ignoratur, nihil de universitate, et si universitas ignoratur, nihil de eius partibus sciri posse manifestum. Ita scien|tiam cuiuslibet praecedit scientia dei et omnium” (Un ignorante discurre acerca de la mente, p. 111, tradução nossa). 153 Confira a seção 2.2 de nossa dissertação: “A humana mens e a imposição dos nomes divinos e conjecturais”. 63 seria suficiente para o conhecimento de qualquer coisa, como ficou demonstrado na seção 2.2 de nossa dissertação. A partir dessas considerações, vemos que o termo “mensura”, dentro do léxico cusano, não deve ser reduzido ao seu aspecto quantitavo, pois, para além desse sentido parece evidente que se trata de um conceito de transcência metafísica. Clauda D’Amico154 (1991, p. 55, tradução nossa) corrobora com essa ideia afirmando que a “medida é aquilo que contém uma pluralidade e constitui, ao mesmo tempo, sua plenitude”. É, pois, nesse sentido que devemos entender a forma pela qual aquilo que mede contém seu mensurado, a saber, complicativamente. Tomando essa compreensão, se voltamos à atividade do artesão, torna-se mais claro ao nosso entendimento de que maneira qualquer parte constituinte da colher é a colher toda de um modo contraído, ao mesmo tempo em que a própria colher não é nenhuma das partes em particular, senão um todo complicativo que mede cada parte. Ademais, assim como a medida enquanto modelo deve necessariamente ser anterior ao mensurado, também o todo, enquanto medida, deve ser anterior às partes. Agora bem, transferindo esses raciocínios para a perspectiva ontológica da relação entre o máximo absoluto, o máximo contraído e cada ente particular, não é difícil compreender que para o cardeal de Cusa, da mesma forma como não é possível conhecer a parte ignorando o todo, nada podemos saber acerca do universo, se Deus, que é o seu exemplar, permanece ininteligível. O conhecimento do múltiplo exige como condição o conhecimento do uno, e por esse mesmo princípio, desconhecendo-se o universo também ignoramos suas “partes”. Com isso duas considerações lógicas sobressaem aos nossos olhos. A primeira é que toda essa interdependência seja no plano ontológico entre Criador e criatura, ou, seja no âmbito da relação mente humana-mundo em termos de medida-medido, possui como elemento constituinte a noção de contractio, e deve ser entendia a partir da dinâmica inerente ao esquema complicatio-explicatio, uma vez que esta a configura. Como bem nota Álvarez Gómez (2004, p. 34, tradução nossa) é o próprio cardeal quem afirma155 que a doutrina da contractio é “a melhor aclaração, sem sair-se da incompreensibilidade fundamental, da complicatio-explicatio”. 154 D’AMICO, Claudia. Nicolás de Cusa, “De mente”: la profundización de la doctrina del hombre-imagen. In: Patristica et Mediaevalia. Volumen XII, Buenos Aires, 1991, p. 53-67. 155 Cf. De docta ignorantia. h I. L. II, cap. 4, n. 114, p. 73, linha 22: “Unde, quando recte consideratur de contractione, omnia sunt clara” (A douta ignorância, p. 81). 64 A segunda consideração é que, admitindo-se Deus como complicatio absoluta e o mundo como uma explicatio Dei na forma de uma contractio absoluti, uma vez que a contractio é o modo próprio da explicatio Dei, acreditamos ter em mãos todos os elementos necessários para explicar “o trânsito do idêntico ao explicado, do absoluto ao contraído” (ÁLVAREZ GÓMEZ, 2004, p. 36, tradução nossa), o que faremos a seguir tendo em vista a doutrina dos universais que é um aspecto da doutrina da contractio. No desenvovimento dessa reflexão veremos o quanto é insustentável a tentativa de atribur à filosofia cusana um emanatismo panteísta, assim como o dualismo que, em maior ou menor medida, dominou toda a filosofia antiga, No início dessa terceira seção da nossa dissertação vimos que somente Deus é de forma plena tudo aquilo que pode ser, por isso o entendemos como absoluto, algo que tem sua procedência a partir de si mesmo (a seipsum). Para o pensamento cusano, no máximo simples, “a partir de si (a se), por si (per se) e para si (ad se) são o mesmo, ou seja, o próprio ser absoluto, e que é necessário que tudo aquilo que é seja, devido a ele (ab ipso esse), o que é enquanto é156”. Todas as outras coisas devem ser, portanto, entendidas como não absolutas, isto é, a criação como um todo se configura como uma contractio absoluti. Com essa distinção entre a natureza do criador e a criação fica evidente que também o universo não subsiste em si, isto é, sendo não absoluto ele nada possui a partir de si, mas somente à partir de outro (ab alio). O que, no entanto, não resulta em considerá-lo como um ser de razão, ou mesmo, o conjunto indiferenciado de todos os indivíduos. De que maneira então, em conformidade com o pensamento de Nicolau de Cusa, poderíamos definir ou caracterizar o universo? Qual é o seu fundamento e como ele se realiza? Como vimos, não há dúvidas que a causa e o princípio do universo é o máximo absoluto. Agora, dentro da sistemática da criação pensada por Nicolau, o melhor caminho para caracterizar o universo parte do conceito de contractio, que nas suas próprias palavras “significa, relativamente a uma coisa, o ser isto ou aquilo157”; e daí o universo se realizar sempre em algo determinado. Para o cardeal, a unidade universal de ser que deriva da maximidade absoluta e que abraça tudo o que não é Deus existe de modo contraído como universo. Não sendo Deus, mas sim uma criatura, o universo está “fora” da unidade desse máximo do qual provém, ao passo que não pode subsistir sem a pluralidade na qual se apresenta, e é por isso que o Cusano 156 Ibid. h I. L. II, cap. 2, n. 98, p. 65, linhas 13-16: “Docuit nos sacra ignorantia in prioribus nihil a se esse nisi maximum simpliciter, ubi a se, in se, per se et ad se idem sunt: ipsum scilicet absolutum esse; necesseque esse omne, quod est, id quod est – inquantum est –, ab ipso esse” (Ibid., p. 70-71). 157 Ibid. h I. L. II, cap. 4, n. 116, p. 75, linhas 12-13: “Contractio dicit ad aliquid, ut ad essendum hoc vel illud” (Ibid., p. 83). 65 designa o universo como “máximo contraído” e não absoluto. Uma vez que a unidade do universo se encontra “contraída na pluralidade sem a qual não pode ser”, Nicolau deixa bem claro que o universo, se bem que abrace todas as coisas, “de tal maneira que todas as coisas que derivam do absoluto sejam nele e ele próprio seja em todas as coisas, não tem, porém, subsistência fora da pluralidade, na qual é, não existindo sem contração, da qual não se pode separar158”. Nas palavras de Álvarez Gómez (2004, p. 34, tradução nossa), o universo “consiste nesse ‘contrair-se’ da essência absoluta no conteúdo entitativo de cada ser particular”, quer dizer, ele se faz presente em cada ente sendo na coisa concreta a própria coisa concreta, mas de um modo contraído. Na pedra ele é pedra e no cachorro ele é cachorro, o que nos leva a entender como “a quididade contraída de uma coisa não é diferente dela própria159”, e como “o universo é a própria quididade contraída160”. De modo geral, o universo pode ser caratecrizado e definido à imagem de Deus. “Efetivamente, esse máximo contraído ou concreto, tendo do absoluto tudo aquilo que é, imita então quanto pode este máximo maximamente absoluto161”. Tudo o que convém ao máximo absoluto convém contraidamente ao máximo contraído, e suas semelhanças, traçadas fundamentalmente no Livro Segundo do De Docta ignorantia, podem ser percebidas, por exemplo, no modo como ambos se “realizam” na pluralidade: Assim como Deus, sendo imenso, não é nem no sol nem na lua, embora, neles seja o que são de modo absoluto, assim o universo não é nem no sol nem na lua, mas neles é o que são de modo contraído. E porque a quididade absoluta do sol não é diferente da quididade absoluta da lua, porque é o próprio Deus que é a entidade e a quididade absoluta de todas as coisas, e a quididade contraída do sol é diferente da quididade contraída da lua, [...] torna-se então claro que, como o universo é uma quididade contraída, que é contraída de um modo no sol e de outro modo na lua, então a identidade do universo existe na diversidade, tal como a unidade na pluralidade162. 158 Ibid. h I. L. I, cap. 2, n. 6, p. 7, linhas 16-25: “Secundo loco, sicut absoluta maximitas est entitas absoluta, per quam omnia id sunt, quod sunt, ita et universalis unitas essendi ab illa, quae maximum dicitur ab absoluto, et hinc contracte existens uti universum; cuius quidem unitas in pluralitate contracta est, sine qua esse nequit. Quod quidem maximum, etsi in sua universali unitate omnia complectatur, ut omnia, quae sunt ab absoluto, sint in eo et ipsum in omnibus, non habet tamen extra pluralitatem, in qua est, subsistentiam, cum sine contractione, a qua absolvi nequit, non existat. De hoc maximo, universo scilicet, in secundo libello pauca quaedam adiciam” (Ibid., p. 6). 159 Ibid. h I. L. II, cap. 4, n. 115, p. 74, linha 16: “Ita contracta non est aliud quam ipsa” (Ibid., p. 82). 160 Ibid. h I. L. II, cap. 4, n. 116, p. 75, linha 12: “universum vero est ipsa quidditas contracta” (Ibid., p. 83). 161 Ibid. h I. L. II, cap. 4, n. 112, p. 73, linhas 2-4: “Nam ipsum contractum seu concretum cum ab absoluto omne id habeat, quod est, tunc illud, quod est maximum, maxime absolutum quantum potest concomitatur” (Ibid., p. 80). 162 Ibid. h I. L. II, cap. 4, n. 115, p. 74, linhas 9-19: “Nam sicut Deus, cum sit immensus, non est nec in sole nec in luna, licet in illis sit id, quod sunt, absolute: ita universum non est in sole nec in luna, sed in ipsis est id, quod sunt, contracte. Et quia quidditas solis absoluta non est aliud a quidditate absoluta lunae – quoniam est ipse 66 O desenvolvimetno da doutrina da contractio nos revela como a pluralidade tem sua razão de ser mesmo dentro de uma perspectiva filosófica que notadamente privilegia a unidade, como é comum nas metafísicas neoplatônicas. E não apenas isso, é imprescindível e ainda mais importante notar que o conceito de contractio junto à noção de universo, enquanto unidade da multiplicidade, constituem os elementos fundamentais para a explicação da mediação que o máximo contraído realiza. Como afirma Flasch163 (2003, p. 176, tradução nossa), na maneira como é concebido por Nicolau de Cusa, o universo “desempenha um papel importante como instância mediadora entre a unidade de Deus e a coisa concreta”, isto é, trata-se de “uma espécie de intermediário entre a unidade do Máximo e a pluralidade das coisas existentes” (ANDRÉ, 2003, p. XXVII), e por isso o nosso interesse em o investigarmos nesse momento da nossa dissertação. O primeiro aspecto a ser levado em conta para o esclarecimento dessa intermediação é a noção de contração, que acreditamos já ter sido bem apresentada. O segundo é a concepção do universo como unidade da multiplicidade, da qual surge a ideia de relacionalidade. Ora, sabemos que o universo não deve ser entendido como um ser concreto, pois como define o Cusano, “universo significa universalidade, ou seja, unidade de muitas coisas164”, ou seja, podemos afirmar que o universo não se limita a estar neste ou naquele individuo, mas “é em cada um destes, de uma maneira contraída, tudo o que os demais indivíduos são em si mesmos, segundo sua individualidade” (ÁLVAREZ GÓMEZ, 2004, p. 34, tradução nossa). Quando no ser concreto de cada ente se contraem todos os outros entes, que por sua vez são também contrações, é então que aparece o universo em seu ser. Em outras palavras, “contraindo, na sua unidade, a unidade do máximo absoluto, [o universo] exprime essa mesma unidade na contração que cada ente em si realiza, tanto da pelinitude máxima, como da realidade finita de todos os outros entes” (ANDRÉ, 2003, p. XXVII). Por conseguinte, cada indíviduo está configurado em seu ser e em seu modo de ser pela totalidade dos restantes, isto é, “tudo é em tudo” e cada indivíduo é o todo de uma maneira contraída. Nisso se revela “o fundamento de verdade daquele fragmento de Anaxágoras, ‘qualquer coisa é em Deus, qui est entitas et quidditas absoluta omnium, – et quidditas contracta solis est alia a quidditate contracta lunae – quia, ut quidditas absoluta rei non est res ipsa, ita contracta non est aliud quam ipsa –: quare patet quod, cum universum sit quidditas contracta, quae aliter est in sole contracta et aliter in luna, hinc identitas universi est in diversitate sicut unitas in pluralitate” (Ibid., p. 82). 163 FLASCH, Kurt. Nicolás de Cusa. Traducción de Constantino Ruiz-Garrido. Barcelona: Herder, 2003. 164 De docta ignorantia. h I. L. II, cap. 4, n. 115, p. 74, linhas 21-22: “Universum dicit universalitatem, hoc est unitatem plurium” (A douta ignorância, p. 82). 67 qualquer coisa’, talvez ainda mais profundo do que o próprio Anaxágoras pensou165”. E é tendo essas coisas em vista que nós reconhecemos na caracterização que Nicolau faz do universo a “transição de uma ontologia da substância para uma ontologia da relação” (ANDRÉ, 2003, p. XXVII). Pois bem, não é difícil perceber que para Nicolau de Cusa o mundo está longe de ser um aglomerado de indivíduos que oportunamente podem ser tomados isoladamente, e tampouco deve ser entendido de maneira mecanicista, senão que se trata de um universo estruturado de maneira viva e orgânica166, isto é, como uma teia de relações em que tudo tem a ver com tudo e que segue uma ordem sistêmica. Quando André (2003, p. XXVII) argumenta que “o universo é relacionalidade plena, unificando, nessa relacionalidade, a pluralidade de tudo o que existe, quer no que se refere à reciprocidade que se estabelece entre as coisas existentes, quer no que se refere à relação entre o conjunto dos entes finitos e o seu princípio fundante”, ele está articulando esse aspecto holístico, relacional e dinâmico que é inerente ao universo à atividade mediativa e unitiva que o mesmo realiza. E é o próprio Nicolau quem nos faz ver claramente esse papel que o universo exerce dentro de sua ontologia, quando ele afirma que “Deus, que é a unidade mais simples, existindo no universo uno, é, consequentemente, como que mediante o universo, em todas as coisas, e a pluralidade das coisas é, mediante o universo, em Deus167”. O universo é, pois o elo para compreendermos como Nicolau de Cusa articula as noções de transcendência e imanência na forma em que é concebida a relação entre Deus e o criado. Vejamos, enquanto explicatio Dei na forma de contração, o universo não pode ser entendido como algo contraposto à unidade absoluta, o que também resultaria numa contradição em relação à ideia de coincidentia oppositorum, pois como vimos, essa ideia significa, entre outras coisas, que em relação a Deus não há e não pode haver nada contraposto. Segue-se daí que, se por um lado afirmamos que Deus não é distinto das coisas, pois se assim fosse ele seria apenas mais um ser ao lado dos outros seres, isto é, um membro da pluralidade, ou mesmo, se defendemos que Deus não pode ser distinto das coisas 165 Ibid. h I. L. II, cap. 5, n. 117, p. 76, linhas 3-5: “Si acute iam dicta attendis, non erit tibi difficile videre veritatis illius Anaxagorici ‘quodlibet esse in quolibet’ fundamentum fortassis altius Ana|xagora” (Ibid., p. 83). 166 Cf. Ibid. h I. L. II, cap. 5, n. 121, p. 78, linhas 7-12: “Quiescunt igitur omnia in quolibet, quoniam non posset unus gradus esse sine alio, sicut in membris corporis quodlibet confert cuilibet et omnia in omni|bus contentantur. Postquam enim oculus non potest esse manus et pedes et alia omnia actu, contentatur se esse oculum, et pes pedem; et omnia membra sibi mutuo conferunt, ut quodlibet sit meliori modo, quo potest, id quod est” (Ibid., p. 86). 167 Ibid. h I. L. II, cap. 4, n. 116, p. 75, linhas 16-18: “Et ita intelligi poterit, quomodo Deus, qui est unitas simplicissima, existendo in uno universo est quasi ex consequenti mediante universo in omnibus, et pluralitas rerum mediante uno universo in Deo” (Ibid., p. 83). 68 precisamente pelo fato das coisas serem; por outro lado, também não podemos considerá-lo como algo idêntico a criação, já que dessa forma Deus não seria nem mais nem menos que qualquer ente, uma vez que ser idêntico a uma coisa significa ser a coisa mesma tal como ela é, quer dizer, em sua singularidade e finitude. Dentre os caminhos pelos quais podemos seguir para entender esse paradoxo, a peculiar compreensão dos graus de contração do universo é certamente o que melhor responde às pretenções de nosso trabalho. Essa doutrina, exposta fundamentalmente no capítulo 6 do De docta ignorantia e retomada no De mente, é a chave para entendermos como que Deus se faz presente em todo ser, sem resultar disso qualquer perigo de pateísmo ao pensamento de Nicolau de Cusa. À luz da noção de coincidentia oppositorum é fácil deduzir que, se não existe nada que possa se contrapor a Deus então tudo deve existir nele. Na ontologia cusana, a imanência do mundo em Deus e a presença de Deus no mundo se justificam pela identidade de ato e potência; “tudo o que existe em ato é em Deus porque ele é o ato de todas as coisas168”. Enquanto complicatio absoluta, Deus contém em si todas as coisas atuais e possíveis, e a sua unidade absoluta “é como que a entidade. Na verdade, Deus é a própria entidade das coisas. É, pois a forma de ser e, por isso, é também a entidade169”. Se Deus não estivesse presente dessa maneira em todas as coisas, elas existiriam fora dele, o que seria impossível, uma vez que em relação à unidade simples nada se opõe. Desse modo, vemos que Deus é tudo em tudo e a sua imanência em todas as coisas se dá, pois, mediante universo. Sendo a totalidade das coisas, o universo, seguindo uma ordem natural, precede tudo para cumprir com a sua função e ocupar o seu lugar na obra da criação: Mas, porque foi dito que o universo é somente o primeiro contraído, sendo nisto máximo, vê-se como todo o universo vem ao ser através da simples emanação do máximo contraído a partir do máximo absoluto. Ora todos os entes, que são partes do universo, sem as quais o universo, na medida em que é contraído, não poderia ser uno, todo e perfeito, vieram simultaneamente ao ser com o universo [...]. Contudo, assim como na intenção do artífice, o todo, por exemplo, uma casa, é anterior a parte, por exemplo, uma parede; assim dizemos que, porque todas as coisas vieram da intenção de Deus ao ser, então o universo veio primeiro e todas as coisas na 168 Ibid. h I. L. II, cap. 5, n. 118, p. 76, linhas 19-20: “Omne autem actu existens in Deo est, quia ipse est actus omnium” (Ibid., p. 84). 169 Ibid. h I. L. I, cap. 8, n. 22, p. 17, linhas 6-8: “Unitas dicitur quasi ὠντας ab ὠν Graeco, quod Latine ens dicitur; et est unitas quasi entitas. Deus namque ipsa est rerum entitas; forma enim essendi est, quare et entitas” (Ibid., p. 17). 69 sequência dele, e sem elas ele não poderia ser nem universo, nem perfeito. Daí que, assim como o abstrato está no concreto, assim consideramos que o máximo absoluto está primeiro no máximo contraído, para em seguida estar em todas as coisas particulares, porque ele é de modo absoluto naquilo que é tudo contraidamente. Efetivamente, Deus é a quididade absoluta do mundo ou do universo. [...] Deus, pois, que é uno, é no universo uno. Mas o universo é contraidamente em todas as coisas170. A partir de uma única complicatio absoluta procedem171 o universo e toda a criação em sucessivos graus de contração. “Cada ente individual é um expoente único de um tipo particular de contração, isto é, de um peculiaríssimo modo de difusão do infinito no fintio” (MACHETTA; D’AMICO, 1999, p. 103, tradução nossa). Ou seja, tendo em vista que nenhum ente pode ser semelhante em todos os aspectos a outro ente, então cada qual existe segundo um grau de contração. Isso não significa, no entanto, que cada indivíduo seja um ente isolado e idependente dos demais, ao contrário, uma vez que um grau não pode ser sem outro, qualquer indíviduo mediante o universo acolhe em sí a todos os outros. Isto é, cada ser particular é o todo de uma maneira contraída. Evitando os extremismos, também não podemos inferir do que foi dito qualquer pretensão por parte de Nicolau em defender a indiferenciação entre os entes, ou mesmo que um ente esteja em outro conforme a sua própria individualidade; sendo assim, a solução se encontra mais uma vez na mediação que o universo exerce, e Álvarez Gómez (2004, p. 35), explicando os fundamentos do relacionismo universal na perspectiva filosófica de Nicolau de Cusa, parece tê-la entendido bem. Segundo o comentador, “o relacionismo universal radica formaliter na presença de Deus em todo ser”, quer dizer, o universo está “[...] fundado em uma realidade interna que por ser a mais universal coloca em comunicação todos os indivíduos enquanto que se comunica indivisibiliter a cada um destes”. Em seguida Álvarez 170 Ibid. h I. L. II, cap. 4, n. 116, p. 74, linhas 25-28; p. 75, linhas 1-2; 4-12; 13-15: “Quoniam vero dictum est universum esse principium contractum tantum atque in hoc maximum, patet, quomodo per simplicem emanationem maximi contracti a maximo absoluto totum universum prodiit in esse. Omnia autem entia, quae sunt partes universi, sine quibus universum – cum sit contractum – unum, totum et perfectum esse non posset, simul cum universo in esse prodierunt [...]. Tamen, sicut in intentione artificis est prius totum, puta domus, quam pars, puta paries, ita dicimus, quia ex intentione Dei omnia in esse prodierunt, quod tunc universum prius prodiit et in eius consequentiam omnia, sine quibus nec universum nec perfectum esse posset. Unde, sicut abstractum est in concreto, ita absolutum maximum in contracto maximo prioriter consideramus, ut sit consequenter in omnibus particularibus, quia est absolute in eo, quod est omnia contracte. Est enim Deus quidditas absoluta mundi seu universi. [...] Deus igitur, qui est unus, est in uno universo; universum vero est in universis contracte” (Ibid., p. 82-83). 171 Optamos por utilizar o verbo “proceder” (no sentido de “provir”, “ter origem”) ao invés de “emanar”, como aparece no trecho citado, apenas porque ainda não abordamos em nosso trabalho o tema da criação segundo o pensamento cusano. Não obstante, sabemos que Nicolau não hesita em usar a palavra “emanatio”, uma vez que a sua compreensão dessa noção não entra em conflito com a doutrina da criação ex nihilo. 70 afirma categoricamente que “cada indivíduo está, pois, em todos os demais e todos os demais nele, ainda que essa maneira de estar varie em cada caso e se adapte a natureza própria do sujeito de inerência”. Para Nicolau de Cusa, de fato, não existe diferença entre afirmar que “‘qualquer coisa é em qualquer’ coisa e dizer que Deus por todas as coisas é em todas as coisas e todas as coisas por todas as coisas são em Deus”. O modo como o universo é explicado pelo Cusano, isto é, considerando-se a sua existência contraída, nos permite entender como, por meio dele, “qualquer coisa que existe em ato é imediatamente em Deus” ao mesmo tempo em que “Deus, que é no universo, é em qualquer coisa172”. Dessa forma, é possível conceber que, no pensamento cusano, a imanência de Deus no mundo é o mesmo que a imanência do mundo em Deus173, sem que isso configure um panteísmo. Na verdade, o próprio Nicolau deixa bem claro, logo nos primeiros passos do De docta ignorantia, que Deus, porque escapa a qualquer proporção, transcende infinitamente o universo e todas as coisas, e assim permanece desconhecido174. Isso não significa, no entanto, que a sua presença no mundo ou nos entes particulares não seja manifesta, o que já foi demonstrado. Por último, para não deixar qualquer resquício panteísta ou dualista em nossa interpretação do pensamento do cardeal é preciso apresentar, de maneira mais direta, a sua solução para a disputa dos universais que, anunciada no início desse tópico, deu origem a toda nossa reflexão. Para isso, retornamos à nossa questão primordial, a saber, como é possível que todas as coisas sejam imagem de uma única forma ou exemplar infinito? Por tudo o que já foi dito não é difícil perceber que na doutrina cusana complicatio e explicatio não são equivalentes. Enquanto complicadas em Deus, porque nele coincide o ser e a essência, o ato e a potência, isto é, porque tudo nele é estrita unidade, as coisas são idênticas entre si e com Deus mesmo. Enquanto “explicação” de Deus, as coisas não são distintas dele, mas porque estão submetidas à pluralidade, “não podem ser sem uma diversidade de grau175”, e por isso 172 De docta ignorantia. h I. L. II, cap. 5, n. 118, p. 76, linhas 21-25: “Unde, cum universum in quolibet actu existenti sit contractum, patet Deum, qui est in universo, esse in quolibet et quodlibet actu existens immediate in Deo, sicut universum. Non est ergo aliud dicere ‘quodlibet esse in quolibet’ quam Deum per omnia esse in omnibus et omnia per omnia esse in Deo” (A douta ignorância, p. 84). 173 Cf. De coniecturis. h III. L. II, cap. 7, n. 107, p. 104, linhas 15-16: “Non enim aliud est deum esse in mundo quam mundum in deo” (On surmises, p. 217). 174 Cf. De docta ignorantia. h I. L. I, cap. 1, n. 3, p. 6, linhas 1-2: “Infinitum ut infinitum, cum omnem proportionem aufugiat, ignotum est” (A douta ignorância, p. 4). 175 Ibid. h I. L. III, cap. 4, n. 204, p. 131, linhas 3-4: “Omnia autem sine diversitate graduali esse non possunt” (Ibid., p. 144). 71 intra se differunt176 ao mesmo tempo em que não são idênticas a Ele. Para Álvarez Gómez (2004, p. 33, tradução nossa), “a explicatio é o laço de união entre unidade e pluralidade, a expressão plástica da não distinção entre uma e outra”. A “explicação” da unidade, ou forma infinita, em um mundo plural e finito se realiza, pois, em diversos e sucessivos graus de contração. Todas as coisas procedem de uma única complicatio absoluta segundo esse esquema: “em primeiro lugar, pela ordem da natureza, há a humanidade em si e desde si, isto é, sem matéria pressuposta; logo o homem individual por meio da humanidade, e alí o que é tomado por esse nome; depois a espécie que é na razão177”. Esse exemplo da humanitas é utilizado por Nicolau de Cusa tanto no De mente como no De docta ignorantia, nesta última obra ele explica que devemos imaginar essa “humanidade” como se fosse a unidade absoluta; e o “homem” como se fosse o universo, que seria a primeira unidade procedente do máximo absoluto. No desenvolvimento dessa reflexão, Nicolau distingue quatro unidades; a primeira, que é Deus, está presente na segunda, que é a unidade da diversidade ou universo, do mesmo modo como a “humanidade” está presente no “homem”178. Das quatro unidades somente a primeira, que é a complicatio absoluta, existe de modo desvinculado da alteridade, as outras três são na pluralidade e, por isso, devem ser entendidas como unidades universais complicantes contraídas, “que descem gradualmente para o particular, [...] para que sejam, em ato, esse particular179”. O universo é a primeira unidade complicante contraída e enquanto tal assume o papel de mediação entre Deus e o ente singular, que é o maior e último grau de contração. Se por um lado, Deus complica o universo e, por meio dele, todas as coisas de modo absoluto, por outro, o universo complica todas as coisas contraidamente. Quanto ao modo próprio de sua explicatio, “Deus, na medida em que é em todas as coisas, não é nelas segundo graus, como se 176 Ibid. h I. L. I, cap. 4, n. 11, p. 10, linhas 8-10: “Omnia enim, quaecumque sensu, ratione aut intellectu apprehenduntur, intra se et ad invicem taliter differunt, quod nulla est aequalitas praecisa inter illa” (Ibid., p. 9). 177 Idiota. De mente. h V. Cap. 2, n. 66, p. 101-102, linhas 1-4: “IDIOTA: Et ordinem dant talem, ut primo ordine naturae sit humanitas in se et ex se, scilicet absque praeiacenti materia, deinde homo per humanitatem, et quod ibi cadat sub vocabulo, deinde species in ratione” (Un ignorante discurre acerca de la mente, p. 51, tradução nossa). 178 De docta ignorantia. h I. L. II, cap. 3, n. 122, p. 78, linhas 19-28: “Si igitur consideras humanitatem quasi esse quid absolutum, impermiscibile et incontrahibile, et hominem consideras, in quo est ipsa absoluta humanitas absolute et a quo est ipsa contracta humanitas, quae est homo: est ipsa humanitas absoluta quasi Deus et contracta quasi universum. Et sicut ipsa absoluta humanitas est in homine principaliter seu prioriter et consequenter in quolibet membro aut qualibet parte, et ipsa contracta humanitas est in oculo oculus, in corde cor et ita de reliquis, et ita contracte in quolibet quodlibet: tunc secundum hanc quidem positionem reperta est similitudo Dei et mundi” (A douta ignorância, p. 86-87). 179 Ibid. h I. L. II, cap. 6, n. 124, p. 79, linhas 19-20: “Et ita reperimus tres universales unitates gradualiter descendentes ad particulare, in quo contrahuntur, ut sint actu ipsum” (Ibid., p. 88). 72 lhes comunicasse a si mesmo gradativamente e de modo particular180”, mas, mediante o universo, Ele está efetivamente de modo contraído em cada um dos entes existentes. O universo, por sua vez, mediante três graus se contrai em qualquer particular seguindo essa ordem: a primeira unidade contraída complica a segunda contraída, e por seu intermédio, a terceira unidade contraída, para, por mediação dela, se tornar particular. “E porque o universo é contraído, não se encontra senão explicado nos gêneros e o gêneros não se encontram senão nas espécies”; a segunda e a terceira unidade complicante contraída são, pois, os gêneros e espécies, que, nessa perspectiva, não são senão “explicações” do universo181. Toda essa explicação é uma tentativa de esclarecer como é possível que todas as coisas procedam de uma única forma, ou complicatio absoluta, sem que nesse processo haja qualquer elemento que justifique as referidas acusões feitas por Wenck, indicadas no início desse tópico; ao mesmo tempo, trata-se do aprofundamento que Nicolau faz da perspectiva defendida pelos acadêmicos que, como já apresentamos, entendiam os gêneros e espécies desde o seu fundamento in re. Ao expor a doutrina dos universais segundo a concepção dos peripatéticos, Nicolau afirma que caso todos os homens fossem destruídos, a humanidade, entendida como um ente “que a razão formou a partir da semelhança observada entre os homens”, não poderia continuar existindo, “tendo em vista que a humanidade, no sentido dado, é dependente de homens que deixariam de existir182”. Essa compreensão postula a dimensão do universal constituído a partir da concordância e diferença entre os entes singulares (post rem). Do mesmo modo, para a perspectiva dos acadêmicos, ainda que gêneros e espécies sejam anteriores por natureza às coisas (ante rem), caso desaparecessem todos os homens do mundo, a humanidade, como gênero, também desapareceria, pois, enquanto unidade universal, ela não subsiste separada dos entes singulares (in re); sendo assim, “enquanto houver um homem sobre o mundo, esse homem será uma explicatio da unidade complicante contraída que é o gênero humano” (GONZÁLEZ RÍOS, 2005, p. 161, tradução nossa). 180 Ibid. h I. L. III, cap. 4, n. 204, p. 131, linhas 2-3: “Deus, ut est in omnibus, non est secundum gradus in ipsis quasi se gradatim et particulariter communicando” (Ibid., p. 144). 181 Ibid. h I. L. II, cap. 6, n. 124, p. 79, linhas 23-28; p. 80, linhas 4-7: “Et contracta prima videatur secundam contractam complicare, et eius medio tertiam contractam; et secunda contracta tertiam contractam, quae est ultima universalis unitas et quarta a prima, ut eius medio in particulare deveniat. Et sic videmus, quomodo universum per gradus tres in quolibet particulari contrahitur. [...] Et quoniam universum est contractum, tunc non reperitur nisi in generibus explicatum, et genera non reperiuntur nisi in speciebus; individua vero sunt actu, in quibus sunt contracte universa” (Ibid., p. 88). 182 Idiota. De mente. h V. Cap. 2, n. 66, p. 102, linhas 4-7: “IDIOTA: Unde destructis omnibus hominibus humanitas, ut est species, quae sub vocabulo cadit et est ens rationis, quod ratio venata est ex similitudine hominum, subsistere nequit, nam ab hominibus dependebat, qui non sunt” (Un ignorante discurre acerca de la mente, p. 51, tradução nossa). 73 Ainda que se torne evidente a distinção entre os universais contraídos nas coisas e aqueles gêneros e espécies que são entia rationis; a partir dessas considerações Nicolau nos mostra em que consistem as concordâncias entre essas duas perspectivas. Vejamos, primeiramente no fato que o universal em sua atualidade, seja in re ou post rem, depende da existência dos entes individuais, isto é, os universias não subisistem por si183; e em seguida, que “a multiplicidade de gêneros e espécies enquanto entia rationis é criada pela humana mens como similitudes daquela simples e inefável forma precisa que se explica nas sucessivas unidades complicantes contraídas (universo, gênero e espécie)” (GONZÁLEZ RÍOS, 2005, p. 162, tradução nossa), quer dizer, os universais, no modo como são entendidos pelos peripatéticos (post rem), são semelhanças dos universais, no modo como são entendidos pelos acadêmicos, isto é, contraídos nas coisas singulares (in re)184; com efeito, “na medida em que uma coisa é tomada por um nome, ela é uma imagem de seu exemplar inefável, próprio e adequado185”, e é dessa forma que o Cusano conclui a questão. 183 De docta ignorantia. h I. L. II, cap. 6, n. 125, p. 80, linhas 8-10: “Et in ista consideratione videtur, quomodo universalia non sunt nisi contracte actu; et eo quidem modo verum dicunt Peripatetici uni|versalia extra res non esse actu” (A douta ignorância, p. 89). 184 Ibid. h I. L. II, cap. 6, n. 126, p. 81, linhas 7-8: “Quare universalia, quae ex comparatione facit, sunt similitudo universalium contractorum in rebus” (Ibid., p. 90). 185 Idiota. De mente. h V. Cap. 2, n. 67, p. 104, linhas 10-11: “IDIOTA: Unde res, ut sub vocabulo cadit, imago est ineffabilis exempli sui proprii et adaequati” (Un ignorante discurre acerca de la mente, p. 53, tradução nossa). 74 4 A HUMANA MENS COMO VIVA IMAGO DEI A pergunta sobre o que é o homem sempre possuiu um lugar privilegiado dentro da tradição filosófica cristã; o que não é de nos surpreender, tendo em vista que o papel do homem em meio à criação é de suma importância para o entendimento mesmo dos fundamentos dessa religião. Logo no primeiro capítulo da Bíblia nos deparamos com a famosa fórmula da fé judaico-cristã sobre a criação e que anuncia da parte de Deus: “Faciamus hominem ad imaginem et similitudinem nostram” (BIBLIA SACRA, 2005, p. 2)186. A teologia de fundamentação bíblica que se desenvolveu no decorrer dos primeiros séculos do cristianismo e que culminou na Idade Média, inspirada por essa expressão, entendeu que o ponto de partida para uma possível resposta à pergunta antropológica por excelência, isto é, sobre o que é homem, emana justamente desse desígnio divino, que por sua vez alcança a revelação plena nos termos do evangelho de João, que anuncia: “Et Verbum caro factum est, et habitavit in nobis” (BIBLIA SACRA, 2005, p. 770)187. Estas duas passagens da Sagrada Escritura foram as premissas fundamentais para o desenvolvimento de toda a reflexão teológico-filosófica que se desenvolveu no pensamento cristão em torno do tema do homem imago Dei. Como bem aponta Machetta188 (2005, p. 9, tradução nossa), em sua introdução à tradução em língua espanhola do diálogo De mente, “alimentada com estes dois ditos fundamentais de seu credo, toda a literatura cristã [aplicou] sua capacidade para sua explicação e sua compreensão”. É notório como a patrologia grega “acentuou especialmente a consequência da deificação do homem que estes ditos implicam; pense-se, por exemplo, nas exposições de Gregório de Nissa e Máximo, o Confessor”, cuja influência alcançou boa parte dos pensadores medievais. Já a patrologia latina em Santo Agostinho (354-430), para citar um dos mais eminentes, se deteve nas reflexões “acerca da pessoa, da liberdade, da interioridade da verdade, do peso do amor, da iluminação que guia a inteligência” e entre outros, que “não são senão alguns dos capítulos relevantes da vigência de Santo Agostinho no pensamento medieval”. 186 Cf. Gênesis 1, 26; a fim de nos aproximarmos da versão utilizada por Nicolau de Cusa em sua época, para as citações em latim da Bíblia Sagrada utilizaremos a seguinte edição: BIBLIA SACRA: juxta Vulgatam Clementinam. Plurimis consultis editionibus diligenter praeparata a Michaele Tuveedale. London, 2005 (Editio electronica); Para as citações em português confira: BÍBLIA DE JERUSALÉM. Nova edição, revista e ampliada. Tradução de Ivo Storniolo et al. São Paulo: Paulus, 2002. 187 Cf. João 1, 14: “E o Verbo se fez carne, e habitou entre nós” (BÍBLIA DE JERUSALÉM, 2002, p. 1843). 188 MACHETTA, Jorge M. Introducción. Del comentario al De Anima a los tratados acerca de la mente. In: CUSA (2005, p. 9-20). 75 Ainda que situado em um período posterior à vigência dessas tradições, Nicolau certamente recebe suas influências, contudo, atribuindo-lhes em seu enfoque uma originalidade própria. O cardeal de Cusa, quando trata do tema do “homo imago Dei”, por exemplo, o faz, segundo Santinello189 (1990, p. 85), primeiramente no contexto da teologia bíblica, e no segundo momento, ele a insere no nível de uma teologia especulativa. Essas duas perspectivas no pensamento de Nicolau se conjuram em um procedimento que é característico ao seu modo de refletir, como também destaca Reinhardt em seu artigo “Concordancia entre exégesis bíblica y especulación filosófica en Nicolás de Cusa”. Para o comentador (2002, p. 138, tradução nossa)190, Nicolau sempre “parte de uma verdade de fé, para fazê-la inteligível por meio de uma especulação filosófica”. Em seu artigo que data de 1990 e que se intitula “L´uomo ‘ad imaginem et similitudinem’ nel Cusano”, Santinello desenvolve a sua interpretação sobre a concepção cusana de natureza humana, isto é, no que diz respeito ao seu caráter de imago Dei, a partir do aprofundamento desses dois contextos, o da teologia revelada, segundo a tradição, e o da teologia especulativa. Nosso objetivo para esta quarta seção da dissertação é, pois, nos determos nessa compreensão cusana do motivo do homem como imago Dei tendo em vista a vida de que é dotada essa imagem; e se apropriando da dinâmica que é própria ao modo de investigação de Nicolau, faremos dela também o nosso caminho de pensamento. Iniciaremos então o desenvolvimento do nosso trabalho tomando brevemente a primeira perspectiva, isto é, a que nos insere no âmbito da teologia da revelação; e em seguida, adentrando na esfera da especulação filosófica, pretendemos deixar claro como é que no pensamento do cardeal de Cusa a humana mens se configura como o elemento central para a compreensão do homem- imagem; de modo que é precisamente na natureza intelectual que podemos encontrar no homem esse lugar que permite defini-lo não apenas como uma imago Dei, mas como uma viva imago Dei. 189 SANTINELLO, Giovanni. L’uomo “ad imaginem et similitudinem” nel Cusano. In: Doctor Seraphicus. Bollettino d´informazione del Centro di Studi Bonaventuriani, nº 37. Bagnoregio (Viterbo), 1990. p. 83-97. 190 REINHARDT, Klaus. Concordancia entre exégesis bíblica y especulación filosófica en Nicolás de Cusa. In: ÁLVAREZ GOMEZ, Mariano & ANDRE, João Maria. Coincidencia de Opuestos y Concordia: Los Caminos del Pensamiento en Nicolás de Cusa. Actas del Congreso Internacional celebrado en Coimbra y Salamanca los días 5 a 9 de noviembre de 2001. Tomo II. Salamanca: Sociedad Castellano-Leonesa de Filosofía, 2002, p. 135- 148. 76 4.1 Características essenciais da viva imago que é o homem. De acordo com Santinello (1990, p. 85-86) existem dois lugares na Escritura que são preferidos pelo cardeal ao tratar do tema do homem-imagem: o relato da criação, narrado no Gênesis, e a Epístola de São Paulo aos Hebreus, na qual lemos “qui cum sit splendor gloriae, et figura substantiae ejus” (BIBLIA SACRA, 2005, p. 849)191. Nesse primeiro lugar, segundo o comentador, o Cusano acentua o fato de o homem ser imagem e semelhança de Deus como consequência dele ter sido feito, isto é, criado. Se por um lado o “faça-se”, pelo qual Deus cria todas as coisas, exceto192 o homem, pode atribuir certa autonomia ao processo criativo, isto é, que o princípio da criação pode ser entendido na perspectiva do “gerar” natural. Por outro lado, o “façamos” não deixa espaço senão para considerarmos a criação do homem como obra divina. É claro que toda a criação, inclusive a do homem, é representada na chave do “fazer”; meu intuito, ao distinguir o “faça-se” do “façamos”, é tão somente assegurar a criação do homem como uma produção “artística”, obra da intenção divina, e não, por exemplo, como uma consequência natural da processão desde o Absoluto (Uno), como quis o emanatismo plotiniano. Efetivamente, para Nicolau de Cusa tanto o homem como o mundo são produtos “artísticos”, o que deixaremos claro no decorrer do trabalho. Agora, uma vez que a criação do homem é precedida pela determinação divina, resta-nos saber o que impulsionou o Criador ao criar o homem, isto é, qual foi a sua intenção, e quais as implicações que a partir desta incidiram na determinação da natureza humana? Vimos na seção anterior como Nicolau de Cusa entende a natureza própria da arte criadora de Deus através do par de conceitos complicatio/explicatio e da ideia de contractio; pois bem, para o cardeal “a mente humana é certa força que possui a imagem da arte divina193”, de tal forma que tudo o que se encontra na arte absoluta também está em nossa mente como imagem dela. Tendo isso em vista, a partir da metáfora do pintor formulada por Nicolau no Idiota. De mente (1450) e posteriormente retomada no Sermo CCLI (1456) e na 191 Cf. Hebreus 1, 3: “[Jesus é] aquele que tem o explendor da glória e é expressão de sua substância” (tradução nossa). Confira também a BÍBLIA DE JERUSALÉM (2002, p. 2085). 192 Literalmente falando. Veja o desenvolvimento do parágrafo. 193 Cf. Idiota. De mente. h V. Cap. 13, n. 148, p. 203, linhas 1-7: “ORATOR: O quantum exhilaratus sum tam lucidam audiens explanationem! Sed quaeso, ut iterum aliquo exemplo nos iuves ad concipiendum mentis nostrae creationem in hoc nostro corpore. / IDIOTA: Audivisti iam ante de hoc. Sed quia varietas exemplorum inexpressibile clarius facit, ecce: Nosti mentem nostram vim quandam esse habens imaginem artis divinae iam dictae. Unde omnia, quae absolutae arti verissime insunt, menti nostrae vere ut imagini insunt” (Un ignorante discurre acerca de la mente, p. 133, tradução nossa). 77 sua Epistula ad Nicolaum Bononiensem (1463), buscaremos percorrer um caminho que nos permita delinear uma resposta à questão sobre a qual nos propomos refletir. No capítulo 13 do De mente, a personagem do idiota utiliza o exemplo do pintor quando o orador lhe solicita que exemplifique mais uma vez a arte criativa de Deus, agora tendo em conta a criação da mente humana. Segundo essa metáfora, Deus, representado pela figura de um pintor, cria o homem como se almejasse criar a si mesmo, ou seja, como se o artista divino desejasse pintar um autorretrato. Nesse sentido, a intenção divina com a criação do homem se traduz na pintura de sua própria imagem; e considerando-se que Deus não é multiplicável, resulta que pintando a si mesmo ele não originaria senão a sua imagem, daí surge a ideia da mente humana imagem da arte infinita194. O segundo lugar da Escritura que o Cusano, ao longo de suas obras, toma frequentemente como objeto de reflexão, são as Cartas de Paulo. De fato, o tema do homo imago Dei também é bastante comum nas cartas que o apóstolo Paulo escreve às comunidades cristãs de sua época. No entanto, é natural que estando situado após o evento da paixão, Paulo toque nesse assunto de maneira diferente do texto do Gênesis; para o apóstolo não há como remontar à criação do homem sem em seguida necessariamente passar da história da criação para a história da salvação, e por isso, não se pode preterir a queda e posterior redenção do homem com a nova criação realizada em Jesus Cristo. Desse modo, fundamentada nessas epístolas cujos temas giram em torno da revelação do mistério Cristológico, e que de maneira geral se apresentam mais sob um caráter exortativo e pastoral do que de uma teologia sistemática, boa parte da teologia cristã buscou desenvolver sua interpretação acerca do tema do homem criado à imagem e semelhança de Deus, sobretudo no que diz respeito às implicações redentoras que o ter sido criado ad imaginem possibilitaram ao homem quando alcançado pelo mistério da salvação. E, com efeito, a maior parte dos teólogos, padres, exegetas, enfim, da literatura cristã tendeu a acentuar a consequência moral dessa redenção realizada por Cristo, e sobre ela incidiram suas reflexões e interpretações. Se pudéssemos resumir essa teologia da salvação, de cunho estritamente moral, diríamos que, segundo a tradição cristã, o Filho, qui est imago Dei invisibilis, primogenitus 194 Ibid. h V. Cap. 13, n. 148, p. 203, linhas 8-11: “IDIOTA: Unde mens est creata ab arte creatrice, quasi ars illa se ipsam creare vellet et, quia immultiplicabilis est infinita ars, quod tunc eius surgat imago, sicut si pictor se ipsum depingere vellet et, quia ipse non est multiplicabilis, tunc se depingendo oriretur eius imago” (Ibid., p. 133). 78 omnis creaturae (BIBLIA SACRA, 2005, p. 837)195, como realizando uma nova criação, veio restituir à humanidade decaída o resplendor desta imagem divina que lhe foi conferido na criação, mas que o pecado havia ofuscado. O homem, que no Gênesis foi criado ad imaginem, perdeu-se procurando o conhecimento do bem e do mal fora da vontade divina196, e desse modo, escravo do pecado e das suas concupiscências, tornou-se o “homem velho”, que desconhece o seu Criador. Contudo, correspondendo ao plano da salvação, o Filho, que é a imagem de Deus, assume a humanidade em Jesus e na cruz se faz a redenção do homem imprimindo-lhe a imagem mais bela de filho adotivo de Deus, que restabelece o “homem novo” na retidão primeira fazendo-o atingir o verdadeiro conhecimento moral197, e que lhe restitui o direito à glória que o pecado o fizera perder198. Ou seja, “somente através da imago aquilo que é ad imaginem recupera a transparência e a proximidade com relação ao exemplar, dissolvendo a opacidade que no seu existir ad imaginem foi causada pelo pecado” (SANTINELLO, 1990, p. 87, tradução nossa). Nicolau de Cusa, influenciado por essas interpretações, quando busca tratar da relação redentora entre o Filho e o homem realiza então aquele movimento que mencionamos anteriormente, construindo a sua especulação filosófica a partir de um contexto bíblico. Tomemos agora, como exemplo, a interpretação que o Cusano dá ao trecho da Epístola de Paulo dirigida aos Hebreus que citamos no início dessa seção: “[Jesus é] aquele que tem o explendor da glória e é expressão de sua [referindo-se à Deus] substância”. De imediato, podemos perceber destacada nessa passagem “a identidade de natureza entre o Pai e o Filho e também a distinção das duas pessoas. O Filho é o ‘resplendor’ ou o reflexo da glória luminosa do Pai, Lumem de Lumine”, e por outro lado “é a ‘expressão’, ‘efígie’ de sua substância, como a marca exata deixada por um carimbo” (BÍBLIA DE JERUSALÉM, 2002, p. 2085, nota e). Essa identidade, entretanto, não existe entre Deus e a humanidade, como bem notou 195 Cf. Colossenses 1, 15: “Ele é a Imagem do Deus invisível, o Primogênito de toda criatura” (BÍBLIA DE JERUSALÉM, 2002, p. 2054). 196 Cf. Gênesis 2, 17ss. 197 Cf. Colossenses 3, 9-10: “Nolite mentiri invicem, expoliantes vos veterem hominem cum actibus suis, et induentes novum eum, qui renovatur in agnitionem secundum imaginem ejus qui creavit illum” (BIBLIA SACRA, 2005, p. 838). 198 Cf. De docta ignorantia. h I. L. III, cap. 4, n. 203, p. 129, linhas 23-27; 1-9: “Nam ex hiis, quae ipse existens homo supra hominem divine operatus est, ac aliis, quae ipse in omnibus verax repertus de seipso affirmavit, testimonium in sanguine suo perhibentes, qui cum ipso conversati sunt, constantia invariabili infinitis dudum infallibilibus probata argumentis iuste asserimus ipsum esse, quem omnis creatura in tempore futurum ab initio exspectavit, et qui per prophetas se in mundo appariturum praedixerat. Venit enim, ut omnia adimpleret, quoniam ipse voluntate cunctos sanitati restituit et omnia occulta et secreta sapientiae tamquam potens super omnia edocuit, peccata tollens ut Deus, mortuos suscitans, naturam transmutans, imperans spiritibus, mari et ventis, supra aquam ambulans, legem statuens in plenitudine supplementi ad omnes leges. In quo secundum testimonium illius singularissimi praedicatoris veritatis Pauli desuper in raptu illuminati habemus perfectionem omnem” (A douta ignorância, p. 143). 79 Santinello (1990, p. 86) ao destacar que o Cusano, no modo como trata desse assunto, tende a distinguir o ser imago Dei, que é uma prerrogativa do Filho, do ser criado ad imaginem Dei, prerrogativa do homem; “assim, o homem não é a imagem [primeira e] verdadeira como o Filho, mas é criado à imagem dele199”, uma vez que o ser imago Dei é propriedade exclusiva do Cristo. Essa distinção entre o Filho, primeira imagem, e o homem, segunda imagem, já foi demonstrada pelos padres da Igreja, assim como por Tomás de Aquino200 (2001, p. 590). Santinello (1990, p. 86, tradução nossa) afirma que essa tradição entendeu tal diferenciação a partir da “distinção entre o processo generativo interno a Deus, do qual vem o Filho, e aquele criativo externo a Deus, do qual vem o mundo, estabelecendo, todavia, uma relação entre os dois processos”. Se trouxermos à vista o próprio Cusano nos termos do seu Sermo CCLI, podemos ainda ampliar a compreensão dessa diferença entre a natureza do homem e a do Filho. Neste escrito, para explicitar essa distinção, o filósofo retoma aquela metáfora da experiência artística de um pintor que quer fazer um autorretrato, e que foi apresentada no De mente. Para Nicolau, Deus ao criar o homem tomou como medida a sua própria e primeira imagem, que é o Filho, da mesma forma como um pintor que vendo o seu semblante refletido em um espelho límpido e sem mancha pode somente com essa imagem pintar em um quadro o seu autorretrato, isto é, a sua segunda imagem201. Sobre esse assunto, vale a pena ainda destacarmos outro aspecto. Em sua Epistula ad Nicolau Bononiensem (1463), cujo tema gira em torno do “conhece-te a ti mesmo tanto quanto baste202”, Nicolau trata da diferenciação entre a criatura humana, imagem de Deus, e 199 Citaremos no rodapé o texto em latim do Sermo CCLI: “Nos revelata facie” a partir da seguinte edição: NICOLAI DE CUSA. Sermo CCLI: “Nos revelata facie” (1456). In: Opera omnia. Iussu et auctoritate Academiae Litterarum Heidelbergensis ad codicum fidem edita. Vol. XIX – Sermones IV (1455-1463). Fasciculus 4: Sermones CCXLVI - CCLVII. Hamburgi: Felicis Meiner, 2004, pp. 322-327 (sigla: h). Para as citações no texto faremos nossa tradução para o português a partir também dessa edição em latim (h). Para o texto citado acima conferir: Sermo CCLI. h XIX/4. n. 5, p. 323, linhas 11-14: “Homo autem factus est ad imaginem creatoris; quare homo non est imago vera ut Filius, sed est «ad imaginem» ipsius creatus”. 200 AQUINO, Tomás de. Suma teológica I. Introdução e notas: Thomas d’Aquin – Somme théologique, Paris, Les Éditions du Cerf, 1984. Texto latino de Editio Leonina, reproduzido na Edição Marietti (ed. Cl. Suermondt, OP), Turim-Roma, Marietti, 1948 e ss. São Paulo: Edições Loyola, 2001. Para esta citação confira: Suma teológica. I, q. 35, a. 2 ad III: “Uno modo in re eiusdem naturae secundum speciem: ut imago regis invenitur in filio suo. Alio modo, in re alterius naturae: sicut imago regis invenitur in denario. Primo autem modo, Filius est imago Patris, secundo autem modo dicitur homo imago Dei”. 201 Cf. Sermo CCLI. h XIX/4. n. 7, p. 324, linhas 1-8: “Vult pictor faciem suam in tabula polita depingere et non potest nisi ad imaginem suam hoc facere. Habet speculum et intuetur suam imaginem faciem suam, quase figuram totius faciei perfectissime continentem, et ad illam imaginem aliam in tabula, quae est specularis seu polita, depingere satagit”. 202 Citaremos no rodapé o texto em latim da Epistula ad Nicolau Bononiensem a partir da seguinte edição: NICOLAI DE CUSA. Epistula ad Nicolau Bononiensem. In: Cusanus-Texte, IV. Cusanus-Postal (sigla: cp). Disponível em: http://www.cusanus-portal.de/content/werke.php?id=EpistNicBonon_1; Para as citações no texto 80 as outras criaturas que também são semelhanças de Deus. Para o Cardeal, o que torna o homem distinto de todo o restante da criação é o fato de existir nele uma imagem intelectual de Deus que o determina em sua natureza; E ainda, por mais que o Filho seja a imagem de Deus por excelência, sem a qual nenhuma criatura poderia existir, de tal modo que cada criatura possui uma semelhança com aquele que a criou, e nesse sentido sabemos que “não pode haver um homem feito ad imaginem se ali não houver a geração da sua imago de Deus no Filho” (SANTINELLO, 1990, pp. 86-87, tradução nossa), Nicolau acentua o fato de que somente o homem, em distinção das outras criaturas, possui consciência desse seu ser imagem: E considera bem, filho, a viva imagem intelectual de Deus que existe em ti, que não seria uma imagem intelectual viva se não se conhecesse como imagem. Com efeito, o intelecto pertence à essência da imagem viva de Deus. É por isso que entre essa imagem de Deus e qualquer outra semelhança sem a qual não pode ser nenhuma criatura, há uma diferença: nenhuma semelhança, para além daquela, tem consciência de ser semelhança de Deus, na medida em que é privada de vida intelectual203. Em outras palavras, no caso da criatura humana, o ser semelhante a Deus lhe concede a posse de uma natureza intelectual que lhe permite saber de si. E mais ainda, consciente de si, o que denota o seu ser inteligente, o homem também sabe que é imagem de um exemplar, isto é, esse “si” do qual o homem tem consciência não é um “si” genérico, mas “um ‘si’ mesmo que é imagem de outro de si” (SANTINELLO, 1990, p. 92, tradução nossa), a saber, Deus. Em sentido estrito o homem é imagem de Deus enquanto criatura pensante, quer dizer, o homem é uma viva imagem intelectual de Deus e a sua vida intelectual tem razão no seu saber-se imagem. Esta é, pois, a primeira característica fundamental que nos permite definir o homem, não apenas como uma imagem de Deus, mas como viva imago Dei. Ao tratar desse assunto, buscando interpretar de que modo o homem conhecendo-se como imagem conhece também o exemplar do qual é imagem, Santinello (1990, p. 93, tradução nossa) afirma que esses dois conceitos, ainda que analiticamente distintos, são faremos nossa tradução para o português a partir também dessa edição em latim (cp). Para o texto citado acima conferir: Epistula ad Nicolau Bononiensem. cp. p. 26, linha 3: “ut quantum sufficit se ipsum cognoscat”. 203 Ibid. cp. n. 6, p. 28, linhas 8-13: “Adverte, fili, ad vivam dei intellectualem imaginem in te exsistentem, quae non esset viva intellectualis imago, si se non cognosceret imaginem. Intellectus igitur est de essentia vivae dei imaginis. Unde inter illam imaginem dei et aliam dei similitudinem, sine qua nulla potest esse creatura, hoc interest quod nulla similitudo praeter illam habet scientiam se dei esse similitudinem, quando vita intellectuali caret”. 81 reciprocamente condicionados. Isto é, no saber-se imagem está implicado pelo menos de modo subentendido o saber do outro, modelo e origem de sua imagem. A natureza intelectual, na sutil consciência de ser uma imagem, olhando para si, de algum modo deve supor ou conhecer a Deus. Além disso, é possível perceber que há uma convergência das duas razões fundamentais pelas quais podemos considerar o homem como viva imago. Ainda que todos os seres, à exceção do ser humano, possuam, aos seus modos, certa similitudo com o Criador, eles, no entanto, não são dotados de inteligência e por isso não podem e não desejam ser nada além do que aquilo que são, e tampouco melhores. A nossa natureza intelectual, por sua vez, na medida em que se reconhece como uma imagem viva, tem o poder de fazer-se cada vez mais semelhante ao seu exemplar204, ou seja, “é este caráter reflexivo do intelecto humano, que se desdobra na imagem que é e na consciência que tem dessa sua dimensão, que funda a segunda vertente que sublinha a vida de que é dotada esta imagem”, a saber, a “potenciação da sua perfectibilidade” (ANDRÉ, 1999, p. 11, tradução nossa). Esta potenciação significa, antes de qualquer coisa, a possibilidade ou a potência que a humana mens possui de, por um movimento próprio e permanente, transcender-se em direção ao seu modelo original, renovando e aperfeiçoando o seu ser imagem pela via do conhecimento, ainda que disso jamais resulte uma identificação com ele. Nicolau de Cusa ao longo do Idiota. De mente se utiliza de diversas metáforas para aprofundar essa concepção da mente como viva imagem de Deus; a própria representação do autorretrato do pintor, que já foi exposta, nos mostra que é o artista mesmo quem dá à sua pintura o poder de se tornar cada vez mais autorretrato, isto é, trata-se de uma imagem que aperfeiçoa a si mesma para expressar sempre mais, e o quanto possível, o seu autor. Uma vez que toda imagem revela o seu exemplar de maneira imperfeita, pois este se mostra inacessível em sua precisão, e dado que a mente humana tem sempre a potência para adequar-se mais e mais sem limitação ao seu exemplar, quer dizer, por uma distinta particularidade, a vida que lhe pertence, então o movimento da mente humana, por sua liberdade, em direção ao artista divino, Deus, ou neste caso, do autorretrato em direção ao pintor mesmo, não cessa jamais, o que significa que sua vida não tem fim205. 204 Ibid. cp. n. 7, p. 28, linhas 16-18: “Nostra autem intellectualis natura, cum se dei vivam imaginem intelligat, potestatem habet continue clarior et deo conformatior fieri, licet, cum sit imago, nunquam fiat exemplar aut creator”. 205 Cf. Idiota. De mente. h V. Cap. 13, n. 149, p. 203-205, linhas 1-22: “IDIOTA: Et quia imago numquam quantumcumque perfecta, si perfectior et conformior esse nequit exemplari, adeo perfecta est sicut quaecumque imperfecta imago, quae potentiam habet se semper plus et plus sine limitatione inaccessibili exemplari 82 4.2 Da noção de homem-imagem ao motivo do microcosmo. Antes de começar a desenvolver a nossa reflexão é importante notar que a discussão em torno ao conceito de homem imago Dei no pensamento de Nicolau de Cusa não é inaugurada no diálogo De mente (1450), já em escritos anteriores podemos encontrar a presença desse tema, tanto no que diz respeito ao operar da mens como no que diz respeito à sua constituição. D’Amico (2005, p. 21-22), ao tratar dessa vigência da doutrina da humana mens no conjunto da obra cusana, nos diz que, já em seus primeiros sermões, Nicolau busca refletir sobre “a fórmula bíblica, ‘faciamus hominem ad imaginem’”, e que a partir desse dito fundamental o Cardeal desenvolve sua hermenêutica, “muitas vezes em termos agostinianos ao considerar que na conformação mesma da alma humana – memória, entendimento e vontade –, reluz a Trindade criadora”. Agora bem, na primeira parte dessa seção vimos que tanto Cristo como o homem206 expressam a glória de Deus, sendo que aquele a reflete de maneira plena e perfeita e este de maneira limitada. Vimos também que essa imperfeição do modo como o homem se assemelha ao divino tende a diminuir na medida em que, na sua vida, ele progressivamente vai se configurando ao Cristo, imagem perfeita, pois, com efeito, esta glória que Cristo possui como própria, sendo imagem de Deus207, pode penetrar sempre mais no cristão, até o dia em que o seu próprio corpo seja dela revestido, à imagem do homem “celeste”; como se o homem carecesse da mediação do filho para a efetivação de sua semelhança. Na verdade, é exatamente isso o que nos assegura a carta de Paulo direcionada aos Romanos, “porque os que de antemão ele conheceu, esses também predestinou a serem conformes à imagem do seu conformandi – in hoc enim infinitatem imaginis modo quo potest imitatur, quasi si pictor duas imagines faceret, quarum una mortua videretur actu sibi similior, alia autem minus similis viva, scilicet talis, quae se ipsam ex obiecto eius ad motum incitata conformiorem semper facere posset, nemo haesitat secundam perfectiorem quasi artem pictoris magis imitantem – sic omnis mens, etiam et nostra, quamvis infra omnes sit creata, a deo habet, ut modo quo potest sit artis infinitae perfecta et viva imago. Quare est trina et una habens potentiam, sapientiam et utriusque nexum modo tali, ut perfecta artis imago, scilicet quod excitata possit se semper plus et plus exemplari conformare. Sic mens nostra etsi in principio creationis non habeat actualem resplendentiam artis creatricis in trinitate et unitate, habet tamen vim illam concreatam, per quam excitata se actualitati divinae artis conformiorem facere potest. Unde in unitate essentiae eius est potentia, sapientia et voluntas. Et coincidunt in essentia magister et magisterium ut in imagine viva artis infinitae, quae excitata se actualitati divinae semper sine termino conformiorem facere potest praecisione infinitae artis inaccessibili semper remanente” (Un ignorante discurre acerca de la mente, p. 133-135). 206 Cf. I Coríntios 11, 7: “Vir quidem non debet velare caput suum: quoniam imago et gloria Dei est, mulier autem gloria viri est” (BIBLIA SACRA, 2005, p. 819). 207 Cf. II Coríntios 4, 4: “in quibus deus hujus saeculi excaecavit mentes infidelium, ut non fulgeat illis illuminatio evangelii gloriae Christi, qui est imago Dei” (BIBLIA SACRA, 2005, p. 824). 83 Filho, a fim de ser ele o primogênito entre muitos irmãos” (BÍBLIA DE JERUSALÉM, 2002, p. 1980)208. Se por um lado, quando em comparação com o Filho, o homem se mostra limitado e sempre a caminho da perfeição no seu modo de resplandecer a glória de Deus, por outro lado, dentro da perspectiva antropológica de Nicolau, na qual tomamos como exemplo a reflexão que ele desenvolve no seu Sermo I (1430), a criação se encerra no homem e ele representa a conclusão e a perfeição de tudo o que foi feito antes209, e “por este motivo, cumpre uma função mediadora de unificação e de articulação entre todas as entidades criadas” (SANTINELLO, 1990, p. 85). Essas características, por sua vez, só podem ser compreendidas em seus fundamentos tendo-se em vista o motivo do homem como microcosmo, tema já apreciado pelos autores da antiguidade e que é aprofundado por Nicolau de Cusa alcançando uma dimensão central dentro de sua antropologia. Assim como defende André (1999, p. 9- 12), também acreditamos que, de certa maneira, o tema do homem imago Dei se liga ao motivo do microcosmo, uma vez que essa interação é expressamente afirmada por Nicolau no seu Sermo CXXII (1452): “O homem, que também é chamado microcosmo, foi criado à imagem e semelhança do próprio filho de Deus210”. Pois bem, a ideia da mente como imago Dei é um dos temas centrais abordados no diálogo do Idiota. De mente, de modo que em diversos capítulos ao longo dessa obra Nicolau de Cusa procura desenvolver esse conceito sob as mais diversas perspectivas. Logo no primeiro capítulo já podemos ver anunciada a temática: 208 Cf. Rom. 8, 29: “Nam quos præscivit, et praedestinavit conformes fieri imaginis Filii sui, ut sit ipse primogenitus in multis fratribus” (BIBLIA SACRA, 2005, p. 811). 209 Citaremos no rodapé o texto em latim do Sermo I: “In principio erat Verbum” a partir da seguinte edição: NICOLAI DE CUSA. Sermo I: “In principio erat Verbum” (1430). In: Opera omnia. Iussu et auctoritate Academiae Litterarum Heidelbergensis ad codicum fidem edita. Vol. XVI – Sermones I (1430-1441). Fasciculus 1: Sermones I-IV. Hamburgi: Felicis Meiner, 1970 (sigla: h). Para as citações no texto faremos nossa tradução para o português a partir da edição em latim (h) citada acima, e tomaremos como referência a seguinte tradução: NICHOLAS OF CUSA. Sermo I: “In principio erat Verbum” (Sermon I: “In the beginning was the Word ....”). In: HOPKINS, Jasper. Nicholas of cusa’s early sermons: 1430 – 1441. Translated and introduced by Jasper Hopkins. Loveland, Colorado: The Arthur J. Banning Press, 2003, pp. 1-18. Disponível em: . Para o texto citado acima conferir: Sermo I. h XVI/1. n. 15, p. 13, linhas 3-5: “Creavit autem ultimo Deus hominem, tamquam in quo complementum et creaturarum perfectio consisteret” (Sermon I: “In the beginning was the Word ….”, p. 9). 210 Citaremos no rodapé o texto em latim do Sermo CXXII: “Agnus in crucis” a partir da seguinte edição: NICOLAI DE CUSA. Sermo CXXII: “Agnus in crucis” (1452). In: Opera omnia. Iussu et auctoritate Academiae Litterarum Heidelbergensis ad codicum fidem edita. Vol. XVIII – Sermones III (1452-1455). Fasciculus 1: Sermones CCXII - CXL. Hamburgi: Felicis Meiner, 1995, pp. 1-10 (sigla: h). Para as citações no texto faremos nossa tradução para o português a partir também dessa edição em latim (h). Para o texto citado acima conferir: Sermo CXXII. h XVIII/1. n. 2, p. 2, linhas 17-19: “Homo enim, qui et microcosmos dicitur, ad «imaginem et similitudinem» creatus est ipsius nati Dei”. 84 Certamente o penso, isto é, penso que uma é a mente que subsiste em si mesma; a outra subsiste em um corpo. A mente subsistente em si mesma ou é infinita ou é imagem do infinito. Daquelas, no entanto, que são imagem do infinito, visto que não são máximas ou absolutas, isto é, infinitas e em si subsistentes, admito que algumas podem animar o corpo humano e por isso, por ofício, concedo que são almas211. Nesse trecho Nicolau apenas se preocupa em distinguir a mente da alma e não aprofunda o conceito da mente-imagem; apesar disso, em tal procedimento ele já deixa claro que a mente humana é uma imagem do infinito. No início do segundo capítulo, ao buscar esclarecer de que modo podemos afirmar que a mente se diz a partir do medir, o cardeal de Cusa nos apresenta pela primeira vez nessa obra, ainda que de maneira sintética, uma definição sobre a dimensão complicativa da mente humana que, um pouco mais à frente no decorrer do texto, postulando a respectiva explicatio, emprestará ao tema do microcosmo o dinamismo que funda a concepção do homem como uma imagem viva: “É necessário investigar com maior diligência o sentido da palavra; penso que tal força reside em nós, a qual complica nocionalmente os exemplares de tudo. A essa, eu chamo mente, mas assim não a denomino propriamente212”. Dito isso, podemos perceber que, no primeiro e no segundo capítulo do De mente, Nicolau não apresenta uma definição acabada da mens enquanto viva imago Dei, isto é, na qual esteja presente o par de conceitos complicatio/explicatio, pois é a partir destes que podemos identificar o dinamismo que confere vida à imago que o homem é. Com efeito, esses dois primeiros capítulos estão articulados em torno de temas que já são o desenvolvimento dessa compreensão; o primeiro capítulo termina com a definição da mente que remete ao conceito de mensura, e o segundo capítulo aborda os assuntos relacionados à arte de imposição dos nomes. Até alcançar a metade do terceiro capítulo Nicolau vai abordando progressivamente as temáticas que estruturam e dão corpo à sua obra, de modo que não é possível encontrar antes 211 Idiota. De mente. h V. Cap. 1, n. 57, p. 91, linhas 8-13: “IDIOTA: Puto certe. Nam alia est mens in se subsistens, alia in corpore. Mens in se subsistens aut infinita est aut infiniti imago. Harum autem, quae sunt infiniti imago, cum non sint maximae et absolutae seu infinitae in se subsistentes, posse aliquas animare humanum corpus admitto, atque tunc ex officio easdem animas esse concedo” (Un ignorante discurre acerca de la mente, p. 43, tradução nossa). 212 Ibid. h V. Cap. 2, n. 58, p. 92, linhas 9-11: “IDIOTA: Si de vi vocabuli diligentius scrutandum est, arbitror vim illam, quae in nobis est, omnium rerum exemplaria notionaliter complicantem, quam mentem appello, nequaquam proprie nominari” (Ibid., p. 45, tradução nossa). 85 disso uma definição “completa” sobre o assunto que nos toca. E então, quando mais uma vez a personagem do filósofo retoma a dúvida inicial que deu origem ao diálogo, agora já compreendendo a nomeação da mens a partir da mensura, ele pede que o idiota aprofunde seu discurso sobre a mente humana a fim de lhe responder o que de fato ela é213. A partir daí o Cusano começa a desenvolver mais pontualmente a sua reflexão sobre a mente humana, apresentando uma série de definições sobre a sua natureza enquanto imagem da mente divina, e acentuando sua excelência como imagem da unidade a partir do cruzamento com os conceitos de complicatio e explicatio. No seu ser imagem, a mente humana imita, ao seu modo, a mente divina, de tal forma que ela pode ser definida a partir das diversas qualidades que esta possui. Nicolau chama a mente humana de imagem da simplicidade complicante, imagem da entidade absoluta ou infinita, imagem primeira da divina complicação, da complicação das complicações ou ainda da complicação absoluta, imagem da infinita simplicidade, a única imagem de Deus propriamente falando e assim por diante214. O que queremos acentuar com isso é que a noção de ‘imagem’ é a que melhor expressa o tipo de vínculo que existe entre Deus e a mente humana, quer dizer, trata-se de uma relação peculiar do homem com a unidade infinita, que se torna ainda mais evidente quando consideramos que esta relação não é igual à existente entre a multiplicidade que é o mundo e a mesma unidade. Buscar esclarecer a diferença entre a mente como imagem da unidade e o mundo como explicação exige, certamente, uma reflexão mais apurada dos termos que a distinguem. Para desenvolver essa questão Nicolau retoma a sua doutrina da complicatio-explicatio exposta fundamentalmente no De docta ignorantia215, e apesar de não aprofundá-la aqui no De mente, é a partir dela que ele busca evidenciar a diferença entre a mente humana como primeira imagem da complicação divina e o mundo, isto é, a pluralidade das coisas, como sua explicação: Observa que uma imagem é uma coisa e uma explicação é outra coisa. Pois a igualdade é a imagem da unidade, da unidade nasce a igualdade uma vez. 213 Cf. Ibid. h V. Cap. 3, n. 71, p. 108, linhas X: “PHILOSOPHUS: Amplius ad mentis tractatum descende et dicito: Esto, quod «mens» a «mensura» dicatur, ut ratio mensurationis sit causa nominis: quid mentem esse velis?” (Ibid., p. 57). 214 Confira no Idiota. De mente: n. 72: “complicantis simplicitatis imago”; n. 73: “entitatis infinitae imago”; n. 74: “imago complicationis divinae prima”, “imago complicationis complicationum”; n. 75: “imaginem absolutae complicationis”, “imago infinitae simplicitatis”; e por fim, n. 76: “quod sola mens sit dei imago”. 215 Cf. De docta ignorantia. h I. L. II, cap. 3, n. 105ss. (A douta ignorância, pp. 75-79). 86 Disso a imagem da unidade é a igualdade; e não é a igualdade a explicação da unidade, senão a pluralidade. De modo que a igualdade da unidade é imagem da complicação, não explicação. Desta maneira quero que a mente seja, dentre todas as imagens da divina complicação, a imagem simplíssima da mente divina. E desta maneira a mente é a imagem primeira da complicação divina, que complica com sua simplicidade e virtude todas as imagens da complicação. Pois assim como Deus é a complicação das complicações, a mente, que é imagem de Deus, é a imagem da complicação das complicações. Depois das imagens há a pluralidade das coisas que explicam a divina complicação, assim como o número é explicativo da unidade, o movimento do repouso, o tempo da eternidade, a magnitude do ponto, a desigualdade da igualdade, a diversidade da identidade e assim de cada uma em particular216. A partir desse cruzamento que o texto do De mente faz do tema da imago Dei com o tema da complicatio, somos conduzidos, antes de tudo, a entender que, “enquanto tudo o mais que é criação divina é apenas explicatio do que em Deus aparece complicative”, o homem, por sua vez, é “uma imagem que não somente explica a unidade divina, mas também, e sobretudo, unifica em si e à sua maneira o que aparece também complicado na unidade de que é imagem” (ANDRÉ, 1999, p. 10). A humana mens, enquanto imagem da complicatio absoluta, complica nocionalmente a universalidade dos entes do mesmo modo como a mente infinita complica a universalidade da verdade de todas as coisas. De um modo geral, vemos que, pela sua natureza, a mente se configura como a verossimilitude da mente divina, e o que convém a uma como infinita verdade convém à outra enquanto imagem próxima dela. Agora, partindo da noção de explicatio, assim como a mente divina cria os entes enquanto princípio que possibilita a explicatio Dei, nossa mente é criadora de noções, através da assimilação nocional dos entes criados por Deus. Para Nicolau, “se todas as coisas estão presentes na mente divina como na sua precisa e própria verdade, então todas as coisas estão presentes em nossa mente como uma imagem, ou semelhança, de sua própria Verdade217”. E nesse sentido, afirma André 216 Idiota. De mente. h V. Cap. 4, n. 74, pp. 113-114, linhas 12-25: “IDIOTA: Attende aliam esse imaginem, aliam explicationem. Nam aequalitas est unitatis imago. Ex unitate enim semel oritur aequalitas, unde unitatis imago est aequalitas. Et non est aequalitas unitatis explicatio, sed pluralitas. Complicationis igitur unitatis aequalitas est imago, non explicatio. Sic volo mentem esse imaginem divinae mentis simplicissimam inter omnes imagines divinae complicationis. Et ita mens est imago complicationis divinae prima omnes imagines complicationis sua simplicitate et virtute complicantis. Sicut enim deus est complicationum complicatio, sic mens, quae est dei imago, est imago complicationis complicationum. Post imagines sunt pluralitates rerum divinam complicationem explicantes, sicut numerus est explicativus unitatis et motus quietis et tempus aeternitatis et compositio simplicitatis et tempus praesentiae et magnitudo puncti et inaequalitas aequalitatis et diversitas identitatis et ita de singulis” (Un ignorante discurre acerca de la mente, pp. 59-61, tradução nossa). 217 Ibid. h V. Cap. 3, n. 72, p. 108-110, linhas 1-13: “IDIOTA: Scis, quomodo simplicitas divina omnium rerum est complicativa. Mens est huius complicantis simplicitatis imago. Unde si hanc divinam simplicitatem infinitam 87 (1999, p. 10), pela “sua capacidade explicativa, a mente humana permite ao homem realizar- se como contração do poder criador divino duplicando assim, cognoscitivamente, a natureza ao explicar-se e ao plurificar-se nas suas noções”. Outro aspecto que nos permite entender o real sentido do termo “imagem” é aquele assinalado pela personagem do ignorante e que atribui à mente humana a capacidade de fazer com que todo o restante da criação, que carece de mente, participe de sua natureza de imagem: “Na medida em que todas as coisas subsequentes à mente simples participam da mente, elas também participam da imagem de Deus, de modo que a mente seja por si imagem de Deus, e tudo o que lhe é depois seja [imagem de Deus] somente por meio dela218”. Segundo Nicolau, quando o homem conhece ele reproduz aquela modalidade complicante da mente divina enquanto “complica nocionalmente com sua força os exemplares de tudo219”. Rienzo (2005. p. 167), ao explicar essa perspectiva do pensamento cusano, afirma que é pela capacidade de conhecer que o homem possibilita a todas as coisas participarem de sua natureza de imagem. “Esta participação de sua natureza mental é antes de tudo um fazer visível, um deixar ver através de si a unidade”, de modo que “a mente humana sirva à manifestação divina, completando-a”. Para o aprofundamento dessas questões vale a pena refletir ainda sobre a noção de mediação a partir do motivo do homem como microcosmo e no modo como ele se articula ao tema da imago Dei. Essa concepção do homem como microcosmo é abordada por Nicolau de Cusa, pelo menos, em algumas de suas principais obras, assim como em alguns de seus sermões220. No De docta ignorantia, por exemplo, o Cardeal lhe dedica explicitamente o conjunto dos capítulos iniciais do terceiro livro, de modo que, mais precisamente no terceiro capítulo, nós mentem vocitaveris, erit ipsa nostrae mentis exemplar. Si mentem divinam universitatem veritatis rerum dixeris, nostram dices universitatem assimilationis rerum, ut sit notionum universitas. Conceptio divinae mentis est rerum productio; conceptio nostrae mentis est rerum notio. Si mens divina est absoluta entitas, tunc eius conceptio est entium creatio, et nostrae mentis conceptio est entium assimilatio. Quae enim divinae menti ut infinitae conveniunt veritati, nostrae conveniunt menti ut propinquae eius imagini. Si omnia sunt in mente divina ut in sua praecisa et propria veritate, omnia sunt in mente nostra ut in imagine seu similitudine propriae veritatis” (Ibid., p. 57). 218 Ibid. h V. Cap. 3, n. 73, p. 112, linhas 9-11: “IDIOTA: Unde quantum omnes res post simplicem mentem de mente participant, tantum et de dei imagine, ut mens sit per se dei imago et omnia post mentem non nisi per mentem” (Ibid., p. 59). 219 Ibid. h V. Cap. 5, n. 81, p. 123, linhas 6-7: “IDIOTA: Unde quia mens est quoddam divinum semen sua vi complicans omnium rerum exemplaria notionaliter” (Ibid., p. 65). 220 Para tomar conhecimento veja-se a vigência desse termo no conjunto total da obra de Nicolau de Cusa: Sermo X (1431); De docta ignorantia (1440); De coniecturis (1442); Sermo XXX (1444); Sermo XLIII (1444); Sermo LVIII (1446); Sermo CXXII (1452); Sermo CLXV (1454); Sermo CLXX (1455); Sermo CLXXII (1455); Sermo CCLVII (1456); Sermo CCLXIII (1457); Sermo CCLXVII (1457); De venatione sapientiae (1462/1463); De ludo globi (1462/1463). 88 encontramos uma definição geral sobre a natureza humana que se remete ao motivo do microcosmo: Mas a natureza humana é aquela que é elevada acima de toda a obra de Deus e é pouco inferior à natureza angélica. Ela complica a natureza intelectual e a natureza sensível e reúne tudo em si, pelo que os antigos a chamaram, com razão, de microcosmo, ou seja, pequeno mundo221. Apesar desse tema surgir tardiamente, apenas no último livro da Docta ignorantia, para André (1999, p. 17), essa discussão “desempenha um papel central na economia da obra, na medida em que proporciona a chave de articulação dos três livros que a integram”. Um parágrafo antes de definir o homem como microcosmo, nesse mesmo capítulo, o Cardeal introduz sua reflexão esclarecendo de que modo a natureza mediadora do homem deve ser interpretada dentro do motivo do microcosmo: “A natureza média, que é o meio de conexão da natureza inferior com a superior, é só aquela que é convenientemente elevável ao máximo pela potência de Deus que é o máximo infinito”. Em seguida ele explica que, pela dimensão complicativa da natureza humana, “se ela ascender, na base de todas as suas propriedades, à união com a maximidade, então se verifica que todas as naturezas e todo o universo terão atingido nela o sumo grau em todo o modo possível222”. Desse modo, podemos concluir que para o Cusano a categoria da mediação dentro da perspectiva do microcosmo deve ser entendia “como potencialização da perfeição de todas as naturezas”. Assim, vemos que a mediação inerente à natureza humana alcança um caráter dinâmico dentro da antropologia de Nicolau de Cusa que distancia essa interpretação do motivo do microcosmo de “uma mera relação ou um paralelismo isomórfico entre o macrocosmo e o microcosmo, como acontece em muitos autores renascentistas” (ANDRÉ, 1999, p. 18). 221 De docta ignorantia. h I. L. III, cap. 3, n. 198, p. 126, linha 29 e p. 127, linhas 1-3: “Humana vero natura est illa, quae est supra omnia Dei opera elevata et paulo minus angelis minorata, intellectualem et sensibilem naturam complicans ac universa intra se constringens, ut microcosmos aut parvus mundus a veteribus rationabiliter vocitetur” (A douta ignorância, p. 139). 222 Ibid. h I. L. III, cap. 3, n. 197, p. 126, linhas 21-28: “Quapropter natura media, quae est medium connexionis inferioris et superioris, est solum illa, quae ad maximum convenienter elevabilis est potentia maximi infiniti Dei. Nam cum ipsa intra se complicet omnes naturas, ut supremum inferioris et infimum superioris, si ipsa secundum omnia sui ad unionem maximitatis ascenderit, omnes naturas ac totum universum omni possibili modo ad summum gradum in ipsa pervenisse constat” (Ibid., p. 139). Confira também: Ibid. n. 198, p. 127, linhas 3-6: “Hinc ipsa est illa, quae si elevata fuerit in unionem maximitatis, plenitudo omnium perfectionum universi et singulorum existeret, ita ut in ipsa humanitate omnia supremum gradum adipiscerentur” (Ibid. pp. 139-140). 89 4.3 O idiota e a arte de fabricar colheres: ars imitatur naturam. O primeiro capítulo do Idiota. De mente se encerra com aquela definição conjectural da mens segundo a qual a mente se diz pelo medir. A partir daí, rapidamente a personagem do ignorante vai avançando em seu discurso, até que, tendo percebido a velocidade com que ele apresentava essas suas primeiras considerações, meio que de uma só vez, e a maneira sintética como pronunciava suas reflexões, o filósofo lhe solicita, para a sua melhor compreensão, que o discurso seja mais bem explicado. O ignorante, que nesse segundo diálogo do Idiota se apresenta sob a faceta de um artesão, a fim de atender a solicitação se serve de sua arte de fabricar colheres como paradigma simbólico para tornar visível a força significativa daquelas afirmações223. Com uma colher de madeira em mãos, e já tendo acomodado o orador e o filósofo em seus respectivos assentos, a partir de agora e através do seu modo simbólico de investigar224, o ignorante inicia sua especulação afirmando que o exemplar daquela colher está em sua mente e não poderia estar em nenhum outro lugar, e que desse modo a sua arte é distinta daquela dos pintores e escultores que se valem da forma visível das coisas que pretendem representar225. Para confeccionar sua colher o artesão busca com os seus instrumentos talhar a madeira a fim de fazer surgir nela uma proporção e uma determinação mais ou menos próxima ao exemplar que possui como referencial na ideia em sua mente. Dessa maneira, vemos que “resplandece como em sua imagem, na proporção figurativa dessa madeira, a forma própria da colher, simples e afastada dos sentidos”. Para Nicolau o exemplar se mostra variadamente de modo sensível na matéria, mas nunca em sua precisão (praecisio), como é em si, e por mais que, se o ignorante artesão quisesse fabricar uma colher na qual resplandecesse a forma própria dela, “pela qual a colher é constituída”, essa simplíssima forma, que em sua natureza “é imultiplicável e incomunicável”, permaneceria inalcançável aos sentidos, “pois não é nem branca, nem negra ou de outra cor, ou bem de outro som, de 223 Cf. Idiota. De mente. h V. Cap. 2, n. 62, p. 95, linhas 3-4: “IDIOTA: Applicabo igitur ex hac coclearia arte symbolica paradigmata, ut sensibiliora fiant quae dixero” (Un ignorante discurre acerca de la mente, p. 47). 224 Cf. Ibid. h V. Cap. 2, n. 55, p. 89, linhas 1-2: “IDIOTA: Immo in hac mea arte id, quod volo, symbolice inquiro et mentem depasco, commuto coclearia et corpus reficio” (Ibid., p. 41). 225 Cf. Ibid. h V. Cap. 2, n. 62, p. 96, linhas 8-13: “IDIOTA: Coclear extra mentis nostrae ideam aliud non habet exemplar. Nam etsi statuarius aut pictor trahat exemplaria a rebus, quas figurare satagit, non tamen ego, qui ex lignis coclearia et scutellas et ollas ex luto educo. Non enim in hoc imitor figuram cuiuscumque rei naturalis. Tales enim formae cocleares, scutellares et ollares sola humana arte perficiuntur” (Ibid., p. 49). 90 outro odor, gosto ou tato.” Assim a mesma forma exemplar advém à matéria e resplandece em todas as colheres criadas, “mais em uma, menos em outra e em nenhuma com precisão226”. Nessa perspectiva na qual o filósofo de Cusa nos insere por meio da arte finita do ignorante fabricador de colheres, veremos com mais facilidade como toda arte humana é uma imago da arte infinita227 e a partir desse horizonte adentraremos em uma concepção fundamental da antropologia cusana que revela o caráter ativo e criador do homem enquanto uma viva imagem de Deus: Pois assim como Deus, forma infinita e complicante de todo o real, resplandece em cada ente singular de uma forma particularíssima, assim a forma complicante da colher que procede da humana mens resplandece de maneira variada e singularíssima em cada uma das colheres criadas (GONZÁLEZ RÍOS, 2005, p. 156, tradução nossa). Toda arte humana em sua finitude e consequente limitação e imperfeição228 configura-se como uma contração da arte divina da qual recebe o seu ser. No De mente, o Cusano afirma que “todo o finito é principiado pelo princípio infinito229”, de modo que a arte finita do ignorante provém da arte divina, como de seu princípio e exemplar, que é eterno, simples, absoluto e infinito230. O ofício do ignorante é, pois, uma imago da arte infinita de Deus como o são todas as artes humanas, no entanto, mesmo sendo imagem da arte divina, isso não 226 Para todo esse parágrafo confira: Ibid. h V. Cap. 2, n. 63, p. 96-98, linhas 1-15: “IDIOTA: Esto igitur, quod artem explicare et formam coclearitatis, per quam coclear constituitur, sensibilem facere velim. Quae cum in sua natura nullo sensu sit attingibilis, quia nec alba nec nigra aut alterius coloris vel vocis vel odoris vel gustus vel tactus, conabor tamen eam modo, quo fieri potest, sensibilem facere. Unde materiam, puta lignum, per instrumentorum meorum, quae applico, varium motum dolo et cavo, quousque in eo proportio debita oriatur, in qua forma coclearitatis convenienter resplendeat. Sic vides formam coclearitatis simplicem et insensibilem in figurali proportione huius ligni quasi in imagine eius resplendere. Unde veritas et praecisio coclearitatis, quae est immultiplicabilis et incommunicabilis, nequaquam potest per quaecumque etiam instrumenta et quemcumque hominem perfecte sensibilis fieri, et in omnibus coclearibus non nisi ipsa simplicissima forma varie relucet, magis in uno et minus in alio et in nullo praecise” (Ibid., p. 49, tradução nossa). 227 Cf. Ibid. h V. Cap. 2, n. 59, p. 94, linhas 12-13: “IDIOTA: Et primum volo scias me absque haesitatione asserere omnes humanas artes imagines quasdam esse infinitae et divinae artis” (Ibid., p. 45). 228 Cf. Ibid. h V. Cap. 2, n. 60, p. 94, linhas 3-6: “IDIOTA: Manifestum est enim nullam humanam artem perfectionis praecisionem attigisse omnemque finitam esse et terminatam. Terminatur enim ars una in suis terminis, alia in aliis suis, et quaelibet est alia ab aliis, et nulla omnes complicat” (Ibid., p. 47). 229 Ibid. h V. Cap. 2, n. 61, p. 95, linhas 7-8: “IDIOTA: Quare omne finitum principiatum ab infinito principio” (Ibid., p. 47). 230 Cf. Ibid. h V. Cap. 2, n. 61, p. 95, linhas 10-12: “IDIOTA: Omnis ergo ars finita ab arte infinita. Sicque necesse erit infinitam artem omnium artium exemplar esse, principium, medium, finem, metrum, mensuram, veritatem, praecisionem et perfectionem” (Ibid., p. 47). 91 significa que este oficio de talhar a madeira se constitui como uma prática imitativa ou imitadora das criaturas231; decerto sua arte possui uma característica peculiar. Seu artesanato, isto é, sua prática de fabricar colheres, possui um caráter ativo e realizador, de modo que através dele, a partir da criação de entes artificiais, o ignorante imita a natureza, mas não como que criando cópias, pois sua arte “é mais realizadora que imitadora de figuras criadas, e nisso é mais semelhante à arte infinita232”, e nem de maneira passiva, pois “pensa-se facilmente que a inteligência participa da arte, na medida em que emana da razão divina, mas, porque gera por si a arte, vemos que é natureza233”. André (1999, p. 16) nos ajuda a entender isso; ele explica que essa “relação do homem com a natureza pela mediação da arte é de mútua implicação e, de alguma forma, de interação dialética” e “o que funda essa interação dialética é, ainda e mais uma vez, a ideia de ‘imago’”. Por isso, a afirmação de que “a natureza é unidade; a arte é alteridade, porque é semelhança da natureza234”, deve ser interpretada sem a necessidade de se contrapor arte e natureza, pois de fato a “imitatio” que a arte humana pode produzir não é sinônima de cópia ou uma reprodução passiva. O Filósofo de Cusa, seguindo a linha de pensamento da tradição neoplatônica na qual está inserido, desenvolve uma concepção dinâmica da natureza que possibilita essa relação harmônica e até mesmo intrínseca entre ars e natura, de modo que é possível observar nessa sua compreensão uma nítida influência da Escola de Chartres, assim como, sob a óptica da pesquisa de André (1999, p. 15), também podemos reconhecer o eco daquela doutrina aristotélica segundo a qual “a natureza é certo princípio e causa de mover-se e estar em repouso naquilo a que ela pertence primeiramente por si mesma e não segundo acidente” (ARISTÓTELES, 1999, p. 59)235. Em sua pesquisa o comentador afirma ainda que Plotino236 reformula essa compreensão definindo a natureza como a representação do Nous, assim como 231 Cf. Ibid. h V. Cap. 2, n. 62, p. 96, linhas 11-12: “IDIOTA: Non enim in hoc imitor figuram cuiuscumque rei naturalis” (Ibid., p. 49). 232 Ibid. h V. Cap. 2, n. 62, p. 96, linhas 13-14: “IDIOTA: Unde ars mea est magis perfectoria quam imitatoria figurarum creatarum et in hoc infinitae arti similior” (Ibid., p. 49, tradução nossa). 233 De coniecturis. h III. L. II, cap. 12, n. 131, p. 127, linhas 8-13: “Intelligentiam enim facile, ut a ratione emanat divina, artem participare concipitur, ut autem a se artem exserit, naturam esse videmus. Ars enim imitatio quaedam naturae exsistit. Alia enim sensibilia naturalia esse, alia artificialia manifestum est. Sed non est possibile sensibilia naturalia esse artis expertia, ita nec sensibilia artificialia natura carere possunt” (On surmises, p. 230, tradução nossa). 234 Ibid. h III. L. II, cap. 12, n. 131, p. 126, linha 3: “Natura unitas est, ars alteritas, quia naturae similitudo” (Ibid., p. 230, tradução nossa). 235 ARISTÓTELES. Física. L. II, cap. 1, 192b, 20-23. In: Textos didáticos, nº 34. Tradução de Lucas Angioni. São Paulo: IFCH/Unicamp: 1999, p. 16-101. 236 Cf. PLOTINO, Enneades. VI, 6, 7 apud ANDRÉ (1999, p. 15). 92 a presença da alma do mundo na matéria, atribuindo à natureza a característica de imitar a alma no seu processo dinâmico. Sobre esse assunto o Cardeal filósofo direciona a sua atenção em algumas de suas principais obras. No âmbito do Compendium (1464), no capítulo dedicado à reflexão sobre o verbo, Nicolau de Cusa comprova essa influência aristotélica afirmando que “nada se faz sem movimento237”, de forma que existindo dois tipos de movimento, um violento e outro natural, seus princípios são distintos. O princípio do movimento violento é extrínseco, já o movimento da natureza, ao contrário, é produzido por um princípio intrínseco à coisa, como o assinalou Aristóteles. Essa reinterpretação dos princípios da Física de Aristóteles que Nicolau realiza, isto é, no que diz respeito a concepção dinâmica da natureza, é densamente desenvolvida no segundo livro do De Docta ignorantia238 e ajuda a esclarecer como se dá essa relação dialética que o homem mantém com a natureza através de sua arte. Nesse texto, o Cusano define a natureza como “um espírito difuso e contraído por todo o universo e por cada uma das suas partes” e por isso “de algum modo, a complicação de todas as coisas que acontecem através do movimento239”, isso, ao mesmo tempo em que é explicação de tudo o que contém complicativamente. A natureza em seu operar explica o posse fieri do mundo e “neste sentido, a obra da natureza é já em si uma obra artística” (ANDRÉ, 1999, p. 15). Pensando a relação dialética entre homem e natureza na qual um implica o outro pela mediação da arte, Nicolau afirma ainda, no capítulo doze do segundo livro do De coniecturis, que não há coisas naturais privadas de arte nem coisas artificiais privadas de natureza “pois todas as coisas, à sua maneira, participam de ambas240”, as coisas naturais e as artificiais compartilham de seus modos de ser, de modo que na arte há natureza e na natureza há arte. De volta ao Compendium vemos como nessa mútua participação a arte complementa a natureza na medida em que a imita: 237 Compendium. h XI/3. Cap. 7, n. 19, p. 14, linhas 6-8: “[...] quam motum appellet, quando sine motu nihil fieri atque naturalem motum a violento distingui videret, ideo motum naturae non esse a principio extrinseco, sicut in violento, sed intrinseco rei; ita de aliis” (Nicolás de Cusa. Compendium, p. 159). 238 Confira principalmente: De docta ignorantia. h I. L. II, cap. 9-11, n. 141-161, pp. 89-103 (A douta ignorância, pp. 100-116). 239 De docta ignorantia. h I. L. II, cap. 10, n. 153, p. 97, linhas 1-3: “Est igitur hic spiritus per totum universum et singulas eius partes diffusus et contractus; qui natura dicitur. Unde natura est quasi complicatio omnium, quae per motum fiunt” (A douta ignorância, pp. 109-110). 240 Cf. De coniecturis. h III. L. II, cap. 12, n. 131, p. 127, linhas 6-8: “Praecisio autem cum inattingibilis sit, nos credi admonet nihil tantum aut natura aut ars dabile esse, omne enim utrumque suo participat modo” (On surmises, p. 230). 93 Por exemplo, a mente encontra na natureza o som e lhe acrescenta a arte para colocar nele todos os signos das coisas; de igual modo na concordância que naturalmente encontra nos sons acrescenta a arte da música para designar todas as harmonias. O mesmo processo é similar nas demais artes. Os sábios ociosos tentaram reduzir as considerações que fizeram sobre a natureza, mediante a igualdade da razão, a uma arte comum. Por exemplo, quando experimentaram as concordâncias de certas notas por sua relação ao peso dos martelos que fazem numa bigorna notas concordantes, chegaram ao conhecimento da arte, e depois encontraram o mesmo nos órgãos e cordas proporcionalmente grandes e pequenas, e transpuseram as concordâncias e dissonâncias da natureza à arte musical. E por essa razão esta arte, visto que imita mais abertamente a natureza, é mais grata, estimula o impulso natural e ajuda o movimento vital da concordância ou complacência que se chama alegria241. Nessa dinâmica de complementação podemos perceber a retomada daquela perspectiva criadora que se nos revelou subjacente à relação do homem com a natureza através da arte, e que nos levou a considerar a arte do ignorante a partir de sua perspectiva ativa e realizadora e não como uma mera imitação. A partir desse retorno, vemos que porque arte e natureza são ambas artífices e porque se implicam e se complementam numa interação dialética pode o “Cardeal-Jogador” do De ludo globi (1463) dizer que, “na medida em que a arte imita a natureza, chegamos a compreender as forças da natureza a partir daquilo que descobrimos na arte242” e consequentemente o seu contrário também é verdadeiro, como já vimos. Por esse motivo é possível passar para a ideia de que a arte “ajuda” a natureza, como de fato vamos perceber no caso da linguagem. 241 Compendium. h XI/3. Cap. 9, n. 26-27, pp. 21-22, linhas 6-9; 1-10: “Sicut enim mens sonum in natura repperit et artem addidit, ut omnia signa rerum in sono poneret, ita concordantiae, quam in natura repperit, in sonis artem addidit musicae omnes concordantias designandi. Et ita de reliquis. Considerationes enim, quas otiosi sapientes in natura esse reppererunt, conati sunt per aequalitatem rationis in communem artem perducere; ut quando experti sunt certarum notarum concordantias ex habitudine illarum ad pondera malleo|rum concordantes notas in incude facientium pervenerunt, et demum in organis et chordis proportionabiliter magnis et parvis idem invenerunt et concordantias atque discordantias in natura in artem deduxerunt. Et hinc haec ars, cum apertius naturam imitetur, gratior est et conatum naturae concitat et adiuvat in motu vitali, qui est concordantiae seu complacentiae motus, qui laetitia dicitur” (Nicolás de Cusa. Compendium, tradução nossa. p. 162). 242 Citaremos no rodapé o texto em latim do Dialogus de ludo globi a partir da seguinte edição: NICOLAI DE CUSA. Dialogus de ludo globi. Opera omnia. Iussu et auctoritate Academiae Litterarum Heidelbergensis ad codicum fidem edita. Vol. IX. Hamburgi: Felicis Meiner, 1998 (sigla: h). Para as citações no texto faremos nossa tradução para o português a partir da edição em latim (h) citada acima, e tomaremos como referência as seguintes traduções: NICHOLAS OF CUSA. Dialogus de ludo globi (The Bowling-Game). In: HOPKINS, Jasper. Nicholas of Cusa: Metaphysical speculations, volume two. Six Latin Texts Translated into English by Jasper Hopkins. Minneapolis: The Arthur J. Banning Press, 2000, pp. 1179-1274. Disponível em: ; Para o texto citado acima conferir: De ludo globi. h IX. L. I, n. 7, p. 8, linhas 6-9: “CARDINALIS: Haec et multa alia puto subtiliter adnotanda propter similitudinem artis et naturae. Ars enim naturam cum imitetur, ab iis quae in arte subtiliter reperimus ad naturae vires accedimus” (The Bowling-Game, p. 1184, tradução nossa). 94 Ao tratar das artes de escrever e de falar, quando na discussão de suas origens no terceiro capítulo do Compendium, Nicolau afirma que o intelecto é o criador das artes, sendo a arte de falar mais próxima à natureza e por isso a primeira, das duas em questão, a ser adquirida pelas crianças. A arte de escrever, por sua vez, vem depois já que exige um maior esforço intelectual. Ambas as artes complementam a natureza; na primeira o intelecto a realiza no homem “a partir do signo sensível do ouvido, isto é, o som”, depois ele “articula e diversifica esse signo genérico para comunicar melhor a variedade de desejos, e assim ajuda a natureza”. Já a arte de escrever serve à natureza onde a primeira encontra o seu limite, pois o signo vocal “cessa com a pronunciação, vacila na memória e não chega distante” e então se faz necessário que o intelecto se utilize da arte de escrever243. Por fim, após termos recuperado em algumas importantes obras do Cusano essa relação entre arte e natureza que se funda sob a perspectiva do ser imagem, e termos refletido sobre esse assunto no âmbito de nosso interesse delineado para esse capítulo, nós podemos finalmente resumir que a ideia de imago presente nesse paralelismo entre a arte finita e a infinita, assim como na relação entre arte e natureza, resulta de uma “interpretação do operar artístico humano como explicação da sua força intelectual, imagem da explicação da força criadora divina” (ANDRÉ, 1999, p. 16). Enfim, fomos conduzidos por Nicolau de Cusa a entender que a arte do ignorante artesão sendo uma imago da arte infinita e criadora de Deus244, tendo em vista o par de conceitos complicatio/explicatio, não se constitui, todavia, como poderíamos imaginar, em uma prática imitativa das figuras das coisas naturais245 à maneira da pintura ou da escultura, mas ao contrário, se constitui como um operar ativo e realizador, imitando sim a natureza, mas no que diz respeito ao seu caráter criador, extraindo as formas de sua mente. Dessa maneira, fica claro que pelo menos quanto ao dinamismo criador do seu ofício, o artista finito assimila-se ao artista infinito. 243 Para todo este parágrafo confira: Compendium. h XI/3. Cap. 3, n. 7, pp. 6-7, linhas 4-18: Unde sicut prima scientia est designandi res in vocabulis, quae aure percipiuntur, ita est secunda scientia in vocabulorum visibilibus signis, quae oculis obiciuntur. Et haec remotior est a natura, quam tardius pueri assequuntur et non nisi intellectus in ipsis vigere incipiat. Plus igitur habet de intellectu quam prima. Inter naturam igitur et intellectum, qui est creator artium, hae artes cadunt, quarum prima propinquior naturae, secunda propinquior intellectui. Facit autem intellectus in homine in signo sensibili auditus, scilicet sono, artem primam, quia animal suas affectiones in illo signo naturaliter pandere nititur. Unde confusum signum ars dearticulat et variat, ut melius varia desideria communicet. Ita adiuvat naturam. Et quoniam signum illud, in quo haec ars ponitur, prolatione cessat a memoriaque labitur et ad remotos non attingit, remedia intellectus alia arte, scilicet scribendi, addidit et illam in signo sensibili ipsius visus collocavit” (Nicolás de Cusa. Compendium, p. 156, tradução nossa). 244 Cf. Idiota. De mente. h V. Cap. 2, n. 59, p. 94, linhas 12-13: “IDIOTA: Et primum volo scias me absque haesitatione asserere omnes humanas artes imagines quasdam esse infinitae et divinae artis” (Un ignorante discurre acerca de la mente, p. 45-47). 245 Cf. Ibid. h V. Cap. 2, n. 62, p. 96, linhas 11-12: “IDIOTA: Non enim in hoc imitor figuram cuiuscumque rei naturalis” (Ibid., p. 49). 95 Vimos até então que o Cardeal se utilizou do paradigma simbólico da arte de fabricar colheres como recurso para auxiliar o entendimento do ignorante na compreensão do fundamento da palavra mens, e isso nos levou à discussão sobre a imposição dos nomes. Agora, é importante notar que o ofício do ignorante vai além do fabricar colheres. Nicolau deixa claro ao longo do segundo capítulo do De mente que o homem não somente é criador de entes artificiais, mas também através do seu exercício de nomeação das coisas ele é co-criador nominal da natureza. Fabricando nomes o ignorante imita a natureza ao mesmo tempo em que explica visivelmente o verbo interior, espécie de arte que tudo forma, imitando também a arte divina. De um modo geral, assim como, logo que surgida a proporção em cada um dos entes criados, ou mais especificamente, nas colheres fabricadas pelo artesão, “a forma infinita (que) é tão somente una e simplíssima, [...] resplandece (em todas as coisas) como exemplar mais adequado de cada uma e de cada coisa que pode ter forma246”, também, pelo exercício da razão, na imposição dos nomes conjecturais reluz “o nome preciso de todas as coisas”, pois ele “é a infinita nominabilidade de todos os nomes e é a infinita vocabilidade de tudo o que é exprimível por meio de voz, para que assim todo nome seja imagem do nome preciso247”. 246 Ibid. h V. Cap. 2, n. 67, p. 103, linhas 4-6: “IDIOTA: [...] tunc infinita forma est solum una et simplicissima, quae in omnibus rebus resplendet tamquam omnium et singulorum formabilium adaequatissimum exemplar” (Ibid., p. 53, tradução nossa). 247 Ibid.. h V. Cap. 2, n. 68, p. 104, linhas 1-6: “IDIOTA: Unum est igitur verbum ineffabile, quod est praecisum nomen omnium rerum, ut motu rationis sub vocabulo cadunt. Quod quidem ineffabile nomen in omnibus nominibus suo modo relucet, quia infinita nominabilitas omnium nominum et infinita vocabilitas om nium voce expressibilium, ut sic omne nomen sit imago praecisi nominis” (Ibid., p. 53, tradução nossa). 96 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS A busca por tentar esclarecer os conceitos cusanos de complicatio-explicatio e imago nos levou a indagar seus vínculos, isto é, a perguntar pela ligação fundamental que determina a relação entre Deus, o homem e o mundo. Nesse objetivo, tratamos de entender que tipo de relação une a multiplicidade das coisas com sua verdade ou exemplar, ou seja, admitindo-se a existência da unidade e a pluralidade, era preciso esclarecer o vínculo entre ambas. E foi isso o que fizemos na segunda seção de nosso trabalho, desde a perspectiva da linguagem (matemática e em seguida verbal) para o âmbito ontológico da questão. Primeiramente, por meio do número, isto é, da relação unidade-pluralidade, nós esclarecemos como é que, através da linguagem matemática, ponto de partida comum utilizado pelo Cusano tanto no De mente como no De docta ignorantia para falar simbolicamente das realidades que em si são inescrutáveis, Nicolau entendeu esse modo pelo qual da mente divina procede a pluralidade das coisas. Depois, avançando no pensamento do filósofo de Cusa, entendemos que, a partir do conhecimento do modo próprio pelo qual a nossa mente opera, fica claro que não nos é acessível este nome verdadeiro ou natural das coisas e tampouco de Deus. Isto é, nesse caminho que trilhamos o que se mostrou de imediato foi que qualquer palavra que pronunciemos sobre a realidade divina permanece infinitamente distante da verdade mesma, pois a natureza de Deus consiste em um nível ontológico cuja superioridade transcende toda a nossa teologia, seja a afirmativa, seja a superlativa, entendida como o grau máximo da afirmativa, ou mesmo a negativa. Deus supera de tal modo essas instâncias que nossa reflexão sobre ele precisaria estar estruturada acima de todas elas. A partir desses dois aspectos, tendo-se em conta as devidas restrições no modo como nós vislumbramos com nossa mente aquele que está para além da nossa compreensão, pudemos a partir desse itinerário, que percorremos sob a luz da filosofia cusana, destrinchar a questão que nos propusemos pensar nessa seção, a saber, sobre como é possível que Deus inefável e inominável seja considerado, compreendido ou definido por algum conceito finito e nome proveniente da humana mens. Nossa resposta foi que é inevitável e legítimo que falemos sobre Deus, que emitamos conceitos finitos revestidos de caráter absoluto para a sua predicação, tais como: precisão, verdade, máximo, Verbo etc., ainda que saibamos que o mesmo permanece inatingível em sua infinitude e transcendência. 97 Na terceira seção nos preocupamos em provar que para o pensamento cusano unidade e pluralidade não são termos contrapostos. Não existe a unidade de um lado e do outro a pluralidade, como se fosse possível que fora da unidade alguma coisa pudesse haver. Nessa perspectiva mostramos que o entendimento de como é concebível que a pluralidade seja na unidade, sem ser a unidade mesma, determina ao mesmo tempo a distinção e a não separação do mundo com respeito a Deus. No modo como Deus não é idêntico às coisas criadas e tampouco contraposto a elas, e com o intuito de superar o dualismo sem cair em um monismo panteísta, Nicolau de Cusa esclarece o laço que une a unidade infinita e a pluralidade finita formulando a sua original doutrina da complicatio-explicatio, cujos princípios fundantes demonstramos se encontrar na postulação do máximo absoluto, infinito e uno como coincidentia oppositorum. Continuando a discussão da terceira seção, após a descrição de cada um dos lados que compõe a disputa dos universais, nos ocupamos em apresentar a solução cusana para tal querela. Solução esta que também se mostrou como a resposta para o problema que justificou a inserção, em nossa dissertação, desse tópico sobre a natureza dos universais, a lembrar: Como é possível que todas as coisas sejam imagem de uma única forma ou exemplar infinito? No desenvolvimento da exposição da solução cusana se fez oportuno resgatar do De Docta ignorantia o conceito de “contração”; de fato, toda essa interdependência, seja no plano ontológico entre Criador e criatura, seja no âmbito da relação mente humana-mundo em termos de medida-medido, possui como elemento constituinte a noção de contractio, e deve ser entendia a partir da dinâmica inerente ao esquema complicatio-explicatio, uma vez que esta a configura. Por meio dessas reflexões pudemos de uma maneira consistente aprofundar a relação entre a unidade absoluta que é Deus, a multiplicidade das coisas que é a criação e o universo enquanto unidade dessa multiplicidade. A partir disso, percebemos que Deus, a mente humana e o mundo não apenas se articulam via doutrina dos universais, mas integram uma relação de pertencimento mútuo na qual não é possível pensar em um abstendo-se dos outros dois, ou sem entrevê-los. Por fim, na quarta e última seção, sob a inflexão intelectualista que o tema da imago Dei sofre na filosofia de Nicolau de Cusa, buscamos demonstrar, na primeira parte dessa seção, as duas caraterísticas fundamentais que nos permitem definir o homem como uma imagem viva, a saber, que o nosso ser é consciente de si e do exemplar do qual é imago, e que, sabendo-se imagem e reconhecendo o seu exemplar, a nossa natureza intelectual tem a capacidade de se tornar cada vez mais conforme e mais semelhante ao seu modelo divino, 98 ainda que, sendo imagem, nunca possa coincidir com ele. Depois disso, nossa reflexão se deteve no aprofundamento que o filósofo realiza do tema da mente enquanto viva imago Dei que, na segunda parte dessa seção, foi articulado ao motivo do homem como microcosmo e na terceira parte à ideia de arte. Para isso, nos fixamos respectivamente nas duas características fundamentais desse aprofundamento, a saber, a mediação e a dinamicidade. A reflexão sobre a noção de homem enquanto imago Dei, e sobre as razões pelas quais na sua natureza intelectual essa imagem é viva, nos conduziu a considerar a humanidade tendo em vista o seu vínculo divino, isto é, a sua paternidade divina, de modo que tornaram-se evidentes ao nosso olhar as fundamentais diferenças existentes entre o Filho primogênito, o filho por adoção e as demais criaturas, naquilo lhes é peculiar. Por outro lado, demonstramos que a relação que Nicolau estabelece no De mente entre a sua original doutrina da complicatio-explicatio com a compreensão da mente humana como imagem da mente divina nos possibilita entender a unidade entre as definições do homem como microcosmo e como imago Dei dentro de sua antropologia. Nosso esforço também consistiu em refletir sobre o papel que o homem possui dentro da obra da criação e o modo particular como ele o exerce, e para isso buscamos mostrar como a mente humana transcende as considerações puramente funcionais que lhe podemos atribuir, isto é, no que se refere à sua natureza cognitiva e ao seu papel epistemológico, e desse modo, concluímos que ela se revela como aquele lugar no qual se articula de forma definitiva a complexa relação entre Deus, o homem e o mundo; como exemplificação disso, dedicamos nossas últimas linhas para mostrar como a noção de arte humana se configura como uma imagem da arte divina. 99 REFERÊNCIAS Nicolai de Cusa: Edição Crítica de Heidelberg (sigla: h) Disponível em: http://www.cusanus-portal.de NICOLAI DE CUSA. Apologia doctae ignorantiae. Opera omnia. Iussu et auctoritate Academiae Litterarum Heidelbergensis ad codicum fidem edita. Vol. II. Hamburgi: Felicis Meiner, 2007. ______. Compendium. Opera omnia. 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