UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES DEPARTAMENTO DE POLÍTICAS PÚBLICAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS URBANOS E REGIONAIS RAMON IURY ALVES DE AMORIM A NOVIDADE PEDE PASSAGEM: OS CICLOS DE MOBILIZAÇÃO CONTRA O AUMENTO DA TARIFA DE TRANSPORTE EM NATAL EM 2005 E 2012 NATAL-RN 2019 RAMON IURY ALVES DE AMORIM A NOVIDADE PEDE PASSAGEM: OS CICLOS DE MOBILIZAÇÃO CONTRA O AUMENTO DA TARIFA DE TRANSPORTE EM NATAL EM 2005 E 2012 Dissertação de mestrado apresentada como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Estudos Urbanos e Regionais pelo Programa de Pós-Graduação em Estudos Urbanos e Regionais da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (PPEUR/UFRN) Orientador(a): Profª Drª Joana Tereza de Vaz Moura NATAL-RN 2019 Sistema de Bibliotecas - SISBI Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes - CCHLA A novidade pede passagem: os ciclos de mobilização contra o aumento da tarifa de transporte em Natal em 2005 e 2012 / Ramon Iury Alves de Amorim. - 2019. 83f.: il. Dissertação (mestrado) - Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Programa de Pós-Graduação em Estudos Urbanos e Regionais, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, 2019. Natal, RN, 2019. Orientadora: Prof.ª Dr.ª Joana Tereza de Vaz Moura. 1. Movimentos Sociais - Dissertação. 2. Confronto Político - Dissertação. 3. Movimento Estudantil - Dissertação. 4. Enquadramento Interpretativo - Dissertação. I. Moura, Joana Tereza de Vaz. II. Título. RN/UF/BS-CCHLA CDU 329.78 Elaborado por Ana Luísa Lincka de Sousa - CRB-15/748 AGRADECIMENTOS Agradeço ao Programa de Pós-Graduação em Estudos Urbanos e Regionais. Foram dois anos de muito aprendizado, novos contatos e perspectivas abertas. O PPEUR teve grande contribuição para a formação e solidificação de minha visão de mundo, mais tolerante e aberta, e nele pude avançar em pesquisas comprometidas com a transformação prática da realidade, gerando novas reflexões e interagindo a partir delas com os movimentos sociais da cidade. Agradeço à Professora Joana por todas as orientações, pela tranquilidade e confiança transmitidas nessa minha trajetória no PPEUR. Suas reflexões e críticas foram fundamentais para que a dissertação pudesse ter os desdobramentos nos momentos de maior dificuldade no avanço da pesquisa. A essa admirável pessoa, minha imensa gratidão. Agradeço aos amigos militantes do movimento estudantil: Paulo Jales, Yara, Pedro Henrique, Ericleiton, Gorki, Fred, entre tantos outros ex-militantes, como Angelo, Tony, Leon, Manassés, Thales, que de algum modo, em nossas conversas, contribuíram para as reflexões que deram forma a esta dissertação. Agradeço aos amigos do NatalCard, Sidney Norinho e Élika Lima, e da RNCard, Gino Costa, por todo o aprendizado que os anos de parceria têm me proporcionado. E ao Doutor Paulo Sérgio da Silva Lima por ser uma referência humana e intelectual tão indispensável aos momentos em que vivemos. À minha família, agradeço por toda a compreensão, carinho e apoio em todos os momentos. Em especial, à minha mãe, meu parâmetro de pessoa batalhadora e que dedicou anos de sua vida trabalhando em três turnos como professora para, mesmo sozinha, oferecer uma vida melhor aos seus três filhos. Por fim, agradeço à minha companheira, Thaís, por toda a sua contagiante sede de existência. Agradeço a sorte de compartilhar com você uma vida que vai muito além das banalidades e mesquinharias estabelecidas de como viver. RESUMO O foco desta dissertação é a comparação entre dois ciclos de protestos que, apesar de reivindicarem em torno de um mesmo tema, o aumento da passagem de ônibus no município de Natal, aborda dois períodos distintos, 2005 (Caça aos Vampiros dos Transporte Públicos e Temporada de Caça às Bruxas) e 2012 (Revolta Do Busão), em que o repertório e a narrativa política do movimento foram bastante diferentes. No primeiro caso, as entidades tradicionais do movimento, com seus métodos de organização e de ação prevaleceram. No segundo caso, em 2012, apesar de se repetir a participação das entidades tradicionais (UMES, APES, DCE UFRN), elas não foram capazes de reproduzir o repertório de 2005 e nem mesmo a interpretação do movimento sobre o problema do transporte. Desse modo, a pergunta de partida desta dissertação é: por que os protestos de 2005 diferenciaram-se dos protestos 2012? O que mudou no contexto político e organizativo do movimento para a mudança no repertório e no enquadramento interpretativo sobre o transporte? Os protestos contra o aumento da passagem de ônibus em Natal, em 2005 e 2012, duraram várias semanas, chamaram a atenção da mídia e da sociedade, e foram compostos de dimensões analíticas que merecem ser estudadas a partir do ferramental desenvolvido pela agenda de pesquisa da ação coletiva. A pesquisa de campo desta dissertação se deu a partir de entrevistas com lideranças desses movimentos e bibliografia sobre o Movimento Passe Livre. O roteiro metodológico foi complementado com matérias de jornais do acervo da UMES sobre os protestos de 2005 e, na internet, sobre as manifestações de 2012. Os resultados e discussão desta pesquisa, seguindo os objetivos propostos, analisam: i) diferença entre as oportunidades políticas dos movimentos em 2005 e 2012; ii) diferença entre as condições organizacionais dos movimentos em 2005 e 2012; iii) enquadramento interpretativo dos movimentos em 2005 e 2012. Em síntese, constatamos que em 2005 o contexto político era desfavorável, mas as condições organizacionais do movimento permitiram superar os constrangimentos da ação coletiva; em 2012, o contexto político era favorável, mas as entidades estavam desorganizadas materialmente, à exceção do MPL, cujo repertório era composto de ações que não exigiam grande mobilização de recursos e, nesse ambiente, foi capaz de aproveitar a lacuna deixada pelas demais organizações e dar direção ao repertório e ao enquadramento interpretativo do movimento. Palavras-chave: Confronto Político. Movimentos Sociais. Movimento estudantil. Enquadramento interpretativo. ABSTRACT The focus of this dissertation is the comparison between two cycles of protests that, despite claiming around the same theme, the increase of bus fare in the city of Natal, addresses two distinct periods, 2005 (Public Transport Vampire Hunt and Season Hunt for Witches) and 2012 (Revolt Do Busão), in which the movement's repertoire and political narrative were quite different. In the first case, the traditional entities of the movement, with their methods of organization and action, prevailed. In the second case, in 2012, despite the repetition of the participation of traditional entities (UMES, APES, DCE UFRN), they were unable to reproduce the 2005 repertoire and not even the movement's interpretation of the transport problem. Thus, the starting question of this dissertation is: why did the 2005 protests differ from the 2012 protests? What has changed in the political and organizational context of the movement for change in the repertoire and interpretative framework of transport? The protests against the increase in bus fare in Natal in 2005 and 2012 lasted several weeks, caught the attention of the media and society, and were composed of analytical dimensions that deserve to be studied from the tooling developed by the research agenda of the collective action. The field research of this dissertation was based on interviews with leaders of these movements and bibliography about the Free Pass Movement. The methodological script was complemented by articles from the UMES collection about the 2005 protests and, on the internet, the 2012 protests. The results and discussion of this research, following the proposed objectives, analyze: i) difference between political opportunities of movements in 2005 and 2012; ii) difference between the organizational conditions of the movements in 2005 and 2012; iii) interpretative framework of the movements in 2005 and 2012. In summary, we found that in 2005 the political context was unfavorable, but the organizational conditions of the movement allowed overcoming the constraints of collective action; In 2012, the political context was favorable, but the entities were materially disorganized, except for the MPL, whose repertoire consisted of actions that did not require large mobilization of resources and, in this environment, was able to take advantage of the gap left by other organizations and organizations. give direction to the repertoire and interpretative framing of the movement. Key-words: Political Confrontation. Social movements. Student movement. Interpretive framework. LISTA DE QUADROS Quadro 1 – Variáveis de análise do estudo de caso.................................................39 Q u ad ro 2 – Relação de entrevistados para a pesquisa e trajetória nas manifestações............................................................................................................41 LISTA DE FIGURAS Figura 1: Capa da Tribuna do Norte do dia 26 de abril de 2005...............................50 Figura 2: Panfleto das entidades para os protestos do dia 26 de abril.....................52 Figura 3: Panfleto das entidades para os protestos do dia 26 de abril.....................55 LISTA DE SIGLAS APES – ASSOCIAÇÃO POTIGUAR DOS ESTUDANTES SECUNDARISTAS CEI – COMISSÃO ESPECIAL DE INQUÉRITO DEM – DEMOCRATAS DCE – DIRETÓRIO CENTRAL DOS ESTUDANTES FSM – FÓRUM SOCIAL MUNDIAL GEDM – GRÊMIO ESTUDANTIL DJALMA MARANHÃO IFRN – INSTITUTO FEDERAL DE EDUCAÇÃO TECNOLÓGICA DO RIO GRANDE DO NORTE MPL – MOVIMENTO PASSE LIVRE PCdoB – PARTIDO COMUNISTA DO BRASIL PDT – PARTIDO DEMOCRÁTICO TRABALHISTA PL – PARTIDO LIBERAL PMDB – PARTIDO DO MOVIMENTO DEMOCRÁTICO BRASILEIRO PMN – PARTIDO DA MOBILIZAÇÃO NACIONAL PP – PARTIDO PROGRESSISTA PPS – PARTIDO POPULAR SOCIALISTA PR – PARTIDO REPUBLICANO PRP – PARTIDO REPUBLICANO PROGRESSISTA PSB – PARTIDO SOCIALISTA BRASILEIRO PSC – PARTIDO SOCIAL CRISTÃO PSDB – PARTIDO DA SOCIAL DEMOCRACIA BRASILEIRA PSDC – PARTIDO DA SOCIAL DEMOCRACIA CRISTÃ PSL – PARTIDO SOCIAL LIBERAL PT – PARTIDO DOS TRABALHADORES PTB – PARTIDO TRABALHISTA BRASILEIRO PTN – PARTIDO TRABALHISTA NACIONAL PV – PARTIDO VERDE RN – RIO GRANDE DO NORTE SETURN – SINDICATO DAS EMPRESAS DE TRANSPORTES URBANOS STTU – SECRETARIA DE TRÂNSITO E TRANSPORTE URBANO UBES – UNIÃO BRASILEIRA DOS ESTUDANTES SECUNDARISTAS UERN – UNIVERSIDADE ESTADUAL DO RIO GRANDE DO NORTE UFRN – UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE UJS – UNIÃO DA JUVENTUDE SOCIALISTA UMES – UNIÃO METROPOLITANA DOS ESTUDANTES SECUNDARISTAS UNE – UNIÃO NACIONAL DOS ESTUDANTES SUMÁRIO INTRODUÇÃO....................................................................................... 12 CAPÍTULO 1 – ANÁLISES DOS MOVIMENTOS SOCIAIS NO BRASIL ................................................................................................................ 18 CAPÍTULO 2 – BASE TEÓRICA PARA ESTUDO DOS MOVIMENTOS CONTRA O AUMENTO DA PASSAGEM DE ÔNIBUS..........................24 2.1 Mobilização de recursos .. .. . .. . . . . .. . .. . .. . . . . .. . . . . . . .. . . . . . .. . .. . .. . .. . . . . .. . . .. . . .. . .. . . . . . .. . . .. . . . .. . 24 2.2 Repertório. . . . . . . . . . .. .. . . . . .. . .. .. . . . . .. . .. . . .. . . .. .. .. . . .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. . .. .. .. . . . . . . . . .. . . . . . .. . . . . . .. . . .. 28 2.3 Estrutura de Oportunidades Políticas. . . .. . . . . . .. . . .. . .. . .. . . . . . .. . . .. .. . .. . .. . . .. . .. . .. . . . .. . . . .. . . 30 2.4 Enquadramento Interpretativo.......................................................................... 32 CAPÍTULO 3 – PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS......................35 3.1 Contexto político, recursos e repertório. . . . . . . . . .. . .. . . .. . . . .. . . . . .. . . .. . . . . . .. . . . . . . .. .. . .. . . .. .. . 37 3.2 Enquadramento Interpretativo.......................................................................... 38 3.3 Entrevistas. . . . . . . . . . . . . . . .. . .. . .. . .. . . . . .. . . . . .. . . . . .. . . . . .. . . . . . . . .. .. . . .. . . . . . . . .. . . . . . . . .. . .. . . . . .. . . .. .. .. .. . . .39 CAPÍTULO 4 – CAÇA AOS VAMPIROS DO TRANSPORTE PÚBLICO E TEMPORADA DE CAÇA ÀS BRUXAS (2005)...................................42 4.1 Cutucando a onça com vara curta: política, organização e repertório do movimento em 2005 .. . .. . . .. .. .. . . .. . . .. . .. . . .. .. . .. . . . . .. .. . . .. .. . . .. . . .. . . . . . .. . . . . . . .. . .. .. . . . . . . . . . . . .. . . . . . . . .42 4.2 Primeira fase: Caça aos Vampiros do Transporte Público (21 de abril a 28 de abril de 2005) .. . .. . . .. . . . . . . .. .. . . . . .. . . .. . . .. . . .. . . . . .. . . . . .. . .. . . .. . . . .. . . . . . .. .. . . .. . .. . . . .. . .. . . . .. .. . . . .. . .. . . . .. . 48 4.3 Segunda fase: Temporada de Caça às Bruxas (29 de abril a 12 de maio)......52 4.4 Reatividade do movimento à questão tarifária.................................................56 CAPÍTULO 5 – A REVOLTA DO BUSÃO (2012)...................................57 5.1 Prepara uma avenida que a gente vai passar: política, organização e repertório do movimento em 2012. . .. . . . . . .. . . . . . .. . . . . . . . . . .. . . . . . . .. . .. . . . . . . . . . . .. .. .. . .. .. .. . . .. . .. . . .. 57 5.2 A Revolta do Busão (Agosto e Setembro de 2012).......................................... 65 5.3 Tarifa Zero: transporte público e direito à cidade . . . . .. . . . .. .. .. . . . . . .. .. . . .. . . . .. .. . . . .. . . . . . .68 CAPÍTULO 6 – ANÁLISE DOS MECANISMOS INTERNOS DE CONSTITUIÇÃO DOS MOVIMENTOS CONTRA O AUMENTO DA PASSAGEM EM NATAL (2015 e 2012).................................................71 6.1 Movimentos: aspectos contextuais, repertório e organização (2005 e 2012). .71 6.2 Da reação à proposição: A Tarifa Zero no cerne da Revolta do Busão. .. . .. . . . .. .74 CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................... 75 REFERÊNCIAS...................................................................................... 79 12 INTRODUÇÃO O Brasil foi palco, ao longo dos anos recentes, de uma quantidade significativa de ações coletivas com o objetivo de pressionar os governos locais e o governo federal a atenderem reivindicações e demandas provenientes das insatisfações da sociedade. Movimentos como a ocupação de salas e escolas pelo movimento estudantil secundarista, a greve dos caminhoneiros, o movimento Fora Micarla, em Natal, as mobilizações dos movimentos pró e fora Dilma, mostraram a força oriunda das articulações societárias e inovações na forma como os movimentos sociais cobram os governantes nas diversas esferas da administração pública. Em termos de ação coletiva, o país se insere em um contexto ainda mais abrangente de criativas manifestações ao redor do mundo, a despeito da Primavera Árabe, o Occupy Wall Street, os Indignados, entre outros movimentos que foram responsáveis pela mobilização de milhões de pessoas, provocando mudanças políticas e sociais de diferentes escalas em cada país em que elas aconteceram e que, pelo ineditismo do repertório, removeram a tradicional placidez da classe política. A quantidade de análises na agenda de pesquisa nacional recente em direção a esses protestos de confronto (GOHN, 2013; ZIBECHI, 2013; TATAGIBA, 2014; GOHN, 2016; SILVA, 2016), é um indicativo importante à medida que representa uma inflexão da agenda de pesquisa, cujos estudos realizados nos anos 2000 concentraram-se, em boa medida, nos processos de inter-relação entre os atores sociais e os atores político- institucionais. Talvez uma pista para entender esses encontros disruptivos recentes entre Estado e sociedade civil perpasse pela compreensão de que, apesar de o projeto participativo ter se afirmado como princípio social, seus resultados foram considerados pelos movimentos aquém das expectativas geradas no início de sua trajetória (TATAGIBA, 2010). No contexto nacional recente, portanto, apesar das várias ações coletivas já listadas, e de inúmeras outras, como as ocupações promovidas pelo Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MSTST) e os protestos conduzidos pelo Comitê Popular da Copa (CPC) em várias capitais, foram as grandes mobilizações de junho de 2013 que, definitivamente, colocaram o conflito no centro da atenção dos pesquisadores, contribuindo para isso, também, o fato de que novos referenciais analíticos foram 13 incorporados recentemente à agenda de pesquisa sobre a ação coletiva, estimulados pela crítica à abordagem normativa da sociedade civil (SILVA, 2010). A reação mais evidente dos analistas diante dos protestos de junho de 2013 foi o de “perplexidade” (SILVA, 2016) em função da forma das manifestações e suas inovações: o uso instrumental da violência, a ausência de carros de som e o papel das tecnologias da informação para divulgação dos movimentos e de mobilização das atividades públicas de protestos são alguns dos exemplos. Ou seja, certas características dessas manifestações surpreendem em relação às atividades convencionalmente produzidas pelo movimento social, cuja centralidade em organizações tradicionais e nos seus métodos, garantem um conjunto de ações, no geral, bastante delimitadas e previsíveis. O primeiro encontro de Centros Acadêmicos da União Nacional dos Estudantes (UNE), neste primeiro ano de mandato de Jair Bolsonaro (PSL), por exemplo, convocou uma Jornada de Lutas em oposição às políticas do novo governo1. A organização de “Jornadas de Luta”, convocadas a partir dos encontros nacionais estudantis, é parte do repertório clássico de ações dos estudantes em suas entidades, com a realização de passeatas nos principais trechos de deslocamento urbano das capitais, bandeiras de entidades estudantis e discursos de representantes do movimento estudantil e de entidades parceiras, como sindicatos de trabalhadores da educação e centrais sindicais. Essa previsibilidade das formas de agir não é uma novidade para quem estuda a atuação dos movimentos sociais. Charles Tilly, um dos principais estudiosos da ação coletiva, buscou desenvolver a noção de repertório, que ele define como o “pequeno leque de maneiras de fazer política num dado período histórico” (ALONSO, 2012). O repertório, como diz Tilly (1995, p. 26), é composto por um conjunto limitado de ações “aprendidas, compartilhadas e postas em ação por meio de um processo relativamente deliberado de escolha”. Mas repertórios não se constroem a partir de abstrações, eles são gerados a partir da luta cotidiana, da ação prática dos movimentos. O número de alternativas disponíveis para os grupos se mobilizarem é, portanto, contingente em relação ao tempo e espaço e resultante da ação política concreta, abrindo, dessa maneira espaço para inovações. O que se viu no caso brasileiro, portanto, foi a sucessão de inovações, de novos modos de agir coletivo, de novas e criativas maneiras de expressão individual dos 1 A Unidade faz a revolução: 15º Coneb termina convocando Jornada de Lutas: Acessado em 16 de fevereiro de 2019. 14 manifestantes, a exemplo do “uma pessoa, um cartaz” ou da ausência de grandes estruturas e descolamento do protagonismo de lideranças partidárias nos protestos de junho de 2013 (TATAGIBA, 2014), apesar de suas semelhanças, em termos de volume participativo, com os ciclos de protestos anteriores: 1984 e 1992. Se os repertórios emergem da luta cotidiana e a luta política não é uma construção mecânica, mas resultado de um processo conflitivo dinâmico envolvendo interesses e grupos, um desafio para o pesquisador é buscar explicações para como as disputas costumeiras, como o embate entre forças e concepções diferentes – e contra noções já cristalizadas do agir coletivo – engendra novos fazeres. É nesse sentido que Jasper questiona: Primeiro, por que eles [os ativistas] têm um determinado repertório de táticas possíveis? De todas as formas concebíveis de protesto, por que apenas algumas são utilizadas ou mesmo simplesmente consideradas em um determinado ponto da história em uma determinada sociedade? (…) Em segundo lugar, dado um repertório de possibilidades, por que ativistas escolhem determinadas linhas táticas de ação? Por que bombas em vez de marchas ou marchas em vez de uma campanha de envio de cartas? Em terceiro lugar, uma vez escolhida determinada tática, como eles a aplicam? Como eles decidem onde e quando plantar uma bomba e se uma segunda bomba será plantada? (…) Se a escolha tática pode ser comparada à decisão de se deslocar de carro, de ônibus ou de trem, decisões estratégicas incluem o quão rápido dirigir, quando mudar de pista e se utilizaremos a buzina (JASPER, 1997, p.234, tradução livre). O foco desta dissertação é a comparação entre dois ciclos de protestos que, apesar de reivindicarem em torno de um mesmo tema, o aumento da passagem de ônibus no município de Natal, aborda dois períodos distintos, 2005 (Caça aos Vampiros dos Transporte Públicos e Temporada de Caça às Bruxas) e 2012 (Revolta Do Busão), em que o repertório e a narrativa política do movimento foram bastante diferentes. No primeiro caso, as entidades tradicionais do movimento, com seus métodos de organização e de ação prevaleceram. No segundo caso, em 2012, apesar de se repetir a participação das entidades tradicionais (UMES, APES, DCE UFRN), elas não foram capazes de repetir o repertório de 2005 e nem mesmo a interpretação do movimento sobre o problema do transporte. Desse modo, as questões que nortearam esta dissertação foram: Por que o protesto de 2005 diferenciou-se de 2012? O que mudou no contexto político e organizativo do movimento para a mudança no repertório e no enquadramento interpretativo sobre o transporte? Os protestos contra o aumento da passagem de ônibus em Natal, em 2005 e 2012, duraram várias semanas, chamaram a atenção da mídia e da 15 sociedade, e foram compostos de dimensões analíticas que merecem ser estudadas a partir do ferramental desenvolvido pela agenda de pesquisa da ação coletiva. No ano de 2005, a União Metropolitana dos Estudantes Secundaristas (UMES), a Associação Potiguar dos Estudantes Secundaristas (APES) e o Grêmio Estudantil Djalma Maranhão (GEDM), entidade representativa dos estudantes secundaristas do IFRN, lideraram o movimento contra o aumento da passagem de ônibus a partir de protestos que começaram no dia 21 de abril e se encerraram no dia 12 de maio, mobilizando milhares de pessoas e chamando a atenção da mídia e da sociedade para os eventos. Os protestos tiveram dois nomes distintos: “Caça aos Vampiros do Transporte Público” foi o nome dado pelos estudantes reunidos em torno do GEDM, que inauguraram as mobilizações com aproximadamente mil estudantes que percorreram a avenida Hermes da Fonseca em direção ao Sindicato das Empresas de Transportes Urbanos de Natal (SETURN) no dia 21 de abril de 2005. Em 2012, o movimento “Revolta do Busão” reuniu vários coletivos e entidades estudantis para protestar contra o aumento autorizado pelo poder executivo municipal, de R$ 2,20 para R$ 2,40. Os protestos começaram no dia 29 de agosto, seguidos de dois grandes atos: 31 de agosto e 04 de setembro de 2012. O último ocorreu no dia 17 de setembro. Diferente dos protestos de 2005, observa-se uma maior presença de estudantes universitários, inclusive com as plenárias de organização dos atos tendo ocorrido nas dependências da UFRN. As entidades UMES, APES e DCE UFRN participam da organização do movimento e das mobilizações, mas a maneira como o movimento é construído nos bastidores e nas suas performances públicas, com as plenárias horizontalizadas, convocadas pelo movimento e não pelas entidades, e a ausência de carros de som, evocam uma nova maneira de agir coletivamente, que não é um dado natural, espontâneo, mas resultado de articulações internas produzidas no interior do movimento social, com tensões entre as organizações tradicionais e organizações constituídas recentemente, como o Movimento Passe Livre (MPL), que introduzem inovações num sentido claramente antagônico ao repertório das organizações tradicionais.2 2 Metodologicamente denominados, nesta dissertação, de “organizações tradicionais” ou “entidades tradicionais” do movimento estudantil as entidades que estão organizadas na rede nacional do movimento estudantil brasileiro, sob coordenação da União Nacional dos Estudantes (UNE) e União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (UBES), entidades, respectivamente, de representação dos estudantes universitários e secundaristas do país. Nesta rede estão o Grêmio Estudantil Djalma Maranhão (GEDM), entidade representativa dos estudantes do Instituto Federal de Educação Tecnológica (IFRN), o DCE da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), a União Metropolitana dos Estudantes Secundaristas (UMES) e a Associação Potiguar dos Estudantes 16 Analisamos a construção do movimento social, a dinâmica das organizações e a visão das lideranças do movimento sobre o problema do transporte público, sobre os métodos de organização do movimento social e sobre o repertório de confronto. Do ponto de vista metodológico, abordamos as seguintes questões por parte dos atores coletivos nas entrevistas e nas pesquisas feitas através de jornais e literatura secundária: • Contexto político, organizativo e repertório do movimento: Variedade e fonte de recursos das organizações; relação do movimento com a mídia, autoridades e outras partes; interações entre as organizações do movimento; permeabilidade da prefeitura às reivindicações dos movimentos; aliados influentes aos movimentos sociais; repertório. • Enquadramento interpretativo: a disputa das organizações sobre o tema da tarifa de transporte; esforços organizativos de formulação sobre a questão tarifária/transporte por parte das entidades estudantis; contexto da questão urbana e seu alinhamento com a Tarifa Zero para disseminação da reivindicação do MPL. No primeiro capítulo deste trabalho, foram abordadas as literaturas sobre os movimentos sociais e o Estado brasileiro. As pesquisas produzidas desde o final dos anos 1970 variaram significativamente na compreensão sobre os graus de autonomia da sociedade civil sobre a sociedade política, seja na ideia de uma separação completa entre ambas as esferas, seja percepção de interações entre elas a partir do fomento de espaços voltados à participação social nos diferentes âmbitos governamentais. Nos últimos anos, contudo, uma série de análises tem se voltado ao conflito, estimulada por protestos que envolveram a crítica a prefeitos, governadores e, especialmente, à presidente Dilma Rousseff e ao PT. Somam-se a esses protestos aqueles promovidos por movimentos sociais contrários aos reajustes da tarifa de transporte público e os que protestaram contra as arbitrariedades das desapropriações e remoções para a edição brasileira da Copa do Mundo. No capítulo dois, são discutidas as noções que dão base à análise dos movimentos sociais de 2005 e 2012 contra o aumento da passagem de ônibus em Natal: mobilização de recursos, oportunidades políticas, repertório e enquadramento interpretativo. De maneira conjunta, essas teorias permitem uma análise dos aspectos estratégicos, contextuais e culturais do movimento social, englobando os vários aspectos que integram a formação da ação coletiva. Secundaristas (APES). Em contraposição a essa forma de organização, criticada por sua vinculação direta com os partidos políticos, o Movimento Passe Livre (MPL) mantém relações com as “organizações tradicionais”, mas possui formas de organização e de interpretação da luta política bastante diferentes. 17 No capítulo terceiro, são discutidos os procedimentos metodológicos da pesquisa e a instrumentalização da construção teórica a partir da investigação produzida. Nos capítulos 4 e 5, a discussão é feita a partir da descrição dos protestos de 2005 e 2012 e análise a partir das ferramentas teóricas apresentadas no capítulo 2. Em seguida, no capítulo 6, e nas considerações finais, os movimentos são analisados em conjunto em suas semelhanças, diferenças e nos aspectos importantes para o aprofundamento do estudo sobre a ação coletiva. A hipótese inicial desta dissertação é a de que, a partir de 2006, as entidades tradicionais do movimento estudantil entram em crise de articulação de recursos materiais, diante da perda do financiamento da carteira de estudante, esvaziando, com isso, o seu repertório de atuação contra o aumento da passagem de ônibus. Desse modo, deixam um espaço vazio no movimento, que é ocupado pelo Movimento Passe Livre (MPL). O MPL já vinha se organizando nacionalmente com um repertório menos dependente de recursos materiais e se contrapondo ao repertório das entidades tradicionais do movimento. O estopim desses acontecimentos foi a Revolta do Busão, de 2012. Com o movimento estudantil tradicional dividido em sua tática e fragilizado institucionalmente, a unidade do MPL e sua relação com organizações presentes no movimento estudantil tradicional produzem força nos bastidores gerando predomínio do seu repertório e enquadramento interpretativo nos protestos de 2012. Estender o entendimento sobre esses movimentos sociais, compreendendo-os em seu interior, em suas narrativas e construções internas, permite ampliar a análise sobre os aspectos dinâmicos da formação dos movimentos sociais. As pesquisas sobre os movimentos sociais têm apresentado três grupos de fatores importantes para o surgimento dos movimentos: as estruturas de oportunidades políticas, as formas de organização à disposição dos manifestantes e os processos de enquadramento (MCADAM, MCCARTHY e ZALD, 1999). Essas formas de organização política interagem entre si, em um contexto de oportunidade política, para definição dos enquadramentos e sobre a construção política dos protestos. O estudo desses dois movimentos de protestos contra o aumento da passagem de ônibus, com seus contextos políticos e organizacionais díspares, permite entender melhor a relação entre oportunidades políticas e organizacionais no resultado da ação coletiva. 18 CAPÍTULO 1 – ANÁLISES DOS MOVIMENTOS SOCIAIS NO BRASIL No interregno entre 2013 e 2015 as mobilizações provenientes da sociedade em direção à própria sociedade ou à política institucional, deixaram marcas profundas nas pesquisas sobre as relações entre movimentos sociais e o Estado. Mas essa agenda de pesquisa não é recente e nem é uma novidade no país. Durante a década de 1960 e em boa parte dos anos de 1970, os pesquisadores brasileiros, influenciados pelo contexto intelectual da teoria da marginalidade e da dependência, viam a sociedade cindida em dois campos opostos, contrapondo os excluídos e os integrados ao novo capitalismo brasileiro. As categorias de análise baseavam-se nas discussões de hegemonia, contradições urbanas, espoliações urbanas, entre outras (GOHN, 2012). A desigualdade latente e o fosso cada vez mais profundo a separar os ricos e pobres eram vistos como potencialmente detonadores de uma conflito estrutural sistêmico. Para os autores marxistas, os movimentos sociais urbanos constituiriam uma nova vanguarda, portadora do desejo e da esperança de transformar profundamente a realidade social, confrontando, assim, um Estado porta-voz das elites reprodutoras de injustiças. Os excluídos eram interpretados tanto como “novos sujeitos capazes de revitalizar a ação social para além do rígido figurino prescrito pela luta de classes, quanto de exprimir a inconformidade de diferentes segmentos da sociedade perante a política silenciária operada pela ditadura” (LAVALLE, CASTTELO & BICHIR, 2004, p. 37). Foi nesse contexto que os pesquisadores começaram a interpretar a relação entre Estado e sociedade em termo dicotômico e substancialista, ou seja, (…) dicotômico na medida em que a visão de uma sociedade forjada por um Estado “todo-poderoso” foi substituída pela visão de uma sociedade que, “de costas para o Estado” (EVERS, 1983), auto-organizava-se de maneira espontânea e autônoma; substancialista pelo fato de que o Estado e a sociedade civil (em que surgiu do processo de auto-organização social) não só se constituem e operam de maneira não-relacional como ainda são dotados de um conjunto de qualidades que passam a ser tomadas como inerente às suas “naturezas”. Nessa perspectiva, Estado e sociedade civil são apreendidos como blocos homogêneos, marcados por características contrastantes e contrapostas de maneira maniqueísta: enquanto o Estado é corrupto, violento, autoritário, conservador, a sociedade civil é ética, democrática, progressista, universalista. (MOURA e SILVA, 2008, p. 45-6) 19 No final dos anos 1970, os analistas são surpreendidos por uma participação vinda da periferia que, longe do caráter de disrupção sistêmica, aparece na cena pública como atores organizados e participativos. Esses novos atores sociais são estudados e apresentados a partir de sua riqueza, dinâmica e ativismo, focalizando a sua postura crítica em relação à política institucional e ao governo autoritário. Para Cardoso (2008), ocorreu aí uma grande fragilidade para a agenda de pesquisa da época, pois ao concentrarem suas atenções à crítica social sobre o Estado, deixou de se perceber que não era apenas a sociedade civil que estava se renovando e criando novas maneiras de agir e de se organizar politicamente. O Estado também adotou uma nova postura e novas formas de relação, diante de novas e modernas técnicas de interação e de interlocução com a sociedade (na sequência de reformas administrativas), dialogando com setores da população buscando agilizar os serviços públicos e reforçar a sua eficiência. Os analistas, portanto, ao focalizarem a “rebeldia das massas contra o autoritarismo” (CARDOSO, 2003, p. 320), deixaram de lado que as administrações modernas e os usuários não estão plenamente desvinculados na fomentação dos serviços estatais. Ruth Cardoso (2008) cita estudos etnográficos para contestar a ideia de uma sociedade contrária ao Estado, argumentando que em certas áreas de políticas públicas, governo e associações comunitárias teriam criado formas de interação para atendimentos das demandas da sociedade. Ottman (1995) vai além e explica essas trocas entre setores organizados da sociedade e as instituições estatais, no Brasil, como algo que se inicia ainda no início século XX a partir da organização e de um nível de conscientização política proveniente dos trabalhadores imigrantes. A politização e o ativismo emergente eram respondidos de maneira repressiva pelos governos, que viam a questão social como de ordem policial. Isso mudou nos anos 1930, diz ele, com o populismo varguista, o qual teria produzido políticas sociais coadunadas com um “processo dialético entre as classes populares e o Estado” (OTTMAN, 1995, p. 191) vinculando as reivindicações populares e a gestão de políticas urbanas. Diferentemente daquilo que é defendido por Avritzer, Ottman apresenta que a sociedade civil não teria surgido reivindicando autonomia apenas na segunda metade do século XX e recusa, também, a ideia de que o Estado teria construído mecanismos de integração social somente no período pós-autoritário. O fato é que a reatualização do debate sobre as funções do Estado, na década de 1980, neste ambiente em que os movimentos de bairro passaram a interagir mais 20 intensamente com as agências e órgãos estatais, ocorreu paralelamente à crescente desmotivação, desencantamento e decepção dos analistas com a “promessa” disruptiva que os movimentos tinham despertado nos pesquisadores e que restou não cumprida. Os movimentos se formalizaram e passaram a participar de arenas institucionais, o que foi visto por boa parte dos autores como um movimento de cooptação do Estado e de perda do potencial político conquistado pelos movimentos nos anos anteriores. A leitura pessimista que começava a ser formar em meados dos anos 1980 tinha como base a consciência de que a democratização da cultura política nacional só poderia ser efetivada por meio de mudanças na esfera política formal (OTTMAN, 1995, p. 187): (…) Afirmações de um renascimento do clientelismo (Mainwaring, 1987, cf. Assies, 1992, p. 34; Gay, 1990a, 1990b; Cammack 1991), supostamente enraizado na cultura política “tradicional” do Brasil (Gay, 1990b); um enfraquecimento e desorganização da sociedade civil (Gohn, 1991, p. 17; Moura, 1991; Caldeira, 1986/7); o crescimento das práticas de autoritarismo, violência, abusos de direitos humanos e a coerção de sindicatos (Pereira, 1991); a incapacidade de produzir uma ruptura substancial com as políticas econômicas do regime militar (Schwartz, 1990); e a manutenção sem alterações da influência política das forças militares (Zirker, 1991) — tudo parecia confirmar a asserção da primazia da ação na arena política formalmente construída. A outra face do desencantamento em relação aos movimentos sociais, além do processo de institucionalização e da participação nas arenas formais de poder, ocorreu em virtude do descontentamento da sociedade com as instituições democráticas em termos de justiça social, eficácia governamental e inclusão política, pessimismo que arrastou consigo os atores que de algum modo estavam inseridos na arena estatal. O Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), segundo Dagnino, Olvera e Panfichi (2006), teve o mérito de demonstrar a extensão da decepção dos cidadãos não só no Brasil como nos demais países da América Latina, com a democracia eleitoral que veio a se constituir na região. No momento posterior, na década de 1990, a análise da sociologia se deu sob bases relativamente consensuais (LAVALLE, 2003; PINTO, 2005) sobre o papel democratizador de uma sociedade civil atravessada por um numeroso associativismo, que contribuiria para elucidar questões públicas relevantes e sem vínculo com os interesses do mercado e do sistema político. A inflexão dos estudos decorreu dos limites da teoria da transição que, até então hegemônica, limitou-se a um entendimento “meramente institucional da política”, deixando de observar a “altíssima continuidade dos interesses políticos dominantes nas velhas e indesejáveis práticas políticas e as abissais desigualdades de acesso ao poder” (LAVALLE, 2003, p. 95). 21 Dagnino, Olvera e Panfichi (2006) consideram que, apesar da teoria da transição ter tematizado os “desafios e a tensão estratégica que marcaram uma época histórica”, esses estudos, ao recorrerem aos conceitos do elitismo democrático e a versões da teoria da escolha racional sobre a transição e consolidação da democracia, ignoraram as inovações democráticas trazidas pelos atores reconhecidos nos estudos da transição como impulsionadores para o novo contexto político regional. As análises foram impermeáveis à consideração sobre os novos espaços públicos, novos atores, práticas e agendas, focalizando no sistema eleitoral e nas instituições representativas. Até a década de 1980, portanto, percebia-se um movimento dinâmico e uma heterogeneidade que vai se formando no interior da sociedade civil, mas também nas próprias instituições políticas. Contudo essas análises e suas contribuições acabam deixadas de lados na nova fase das pesquisas produzidas nos anos 1990. Como diz Silva (2010, p. 3), (…) os significativos acúmulos realizados pelos estudos sobre movimentos sociais no Brasil, exemplificado em investigações de grande qualidade como as de Boschi (1987), Sader (1988) e Doimo (1995), acabaram sem a devida continuidade. Deixou-se, dessa forma, de constituir um campo de pesquisa articulado que desenvolvesse as férteis elaborações e insights daqueles autores. Estes, mesmo citados intensamente pela literatura posterior, tiveram seus argumentos e conceitos pouco incorporados como referências analíticas pelas gerações de pesquisadores que lhes sucederam. A partir das contribuições de Cohen (1994 apud LAVALLE, 2003, p. 97-8), forma-se uma definição da sociedade civil qualificada como uma “trama diversificada de atores coletivos, autônomos e espontâneos a mobilizar seus recursos associativos mais ou menos escassos – via de regra dirigidos à comunicação pública – para ventilar e problematizar questões de 'caráter geral'” (LAVALLE, 2003, p. 97-8). Em uma análise mais detalhada, a sociedade civil revelaria as seguintes características: i) natureza coletiva, horizontal, ancorada no “mundo da vida”; ii) legitimidade das reivindicações pelo seu caráter de tematização geral provenientes do “mundo da vida” iii) adesão e separação livre e espontânea dos membros, dada sua índole espontânea; iv) importância dos processos de comunicação voltadas para a formação da vontade coletiva e estratégias para tematização pública dos problemas; v) papel de mediação entre a sociedade não organizada e os poderes econômico e político. Moura e Silva (2008) destacam ainda: concepção triparte que diferencia o “mundo da vida” e o mundo sistêmico da economia e da política; e a sociedade civil como um campo altamente diversificados de organizações como fonte de solidariedade e de integração social. 22 Uma visão tão estilizada sobre a sociedade civil sofreu bastante rejeição, sendo intensamente questionada pelos pesquisadores em vários aspectos. Marcelo Kunrath Silva (2006) teceu sua crítica no sentido de propor a aplicação da perspectiva relacional de Norbert Elias, compreendendo o “objeto” de pesquisa não como algo de características intrínsecas e predeterminadas, mas como algo que se forma a partir da relação com “outros objetos”. Para afirmar a validade da perspectiva relacional e a crítica à abordagem essencialista, apresenta o estudo de caso envolvendo dois municípios (Gravataí e Sapucaia do Sul) que teriam semelhanças significativas em suas trajetórias econômico-sociais e em termos de práticas políticas clientelistas. Em 1996, o PT venceu a eleição em Gravataí e instituiu o Orçamento Participativo (OP), enquanto Sapucaia do Sul permaneceu sob a condução das forças tradicionais. Enquanto o prefeito do PT teria sido criticado pelas associações comunitárias e acusado de querer enfraquecê-las com o OP, o de Sapucaia do Sul, que instituiu formas diretas de relacionamento entre o prefeito e as associações, é elogiado por estas. O autor conclui que a estrutura personalista não é reproduzida apenas pelas elites, podendo ser também expressão da própria sociedade civil, por isso a necessidade de romper com a “natureza” democrática intrínseca aos atores e a importância de analisá-los em suas redes de relacionamento, à medida em que, em configurações sociopolíticas similares, como em Sapucaia do Sul e Gravataí, os atores se posicionaram contra inovações democráticas devido às redes formadas historicamente. No caso do movimento de moradia de São Paulo, Tatagiba (2010) analisa os dilemas, riscos e vantagens da participação e a importância das noções de autonomia, independência e cooptação em um período de ascensão das forças de esquerda e centro- esquerda, o que gerou desdobramentos na dinâmica interna dos movimentos sociais, pulverizando suas estratégias e acirrando as divergências entre as organizações. Apesar da incorporação de bandeiras no âmbito das políticas públicas, a complexidade da relação entre movimento e Estado pode gerar enfraquecimento do movimento em função da divisão entre as organizações. Esses são exemplos que mostram que a literatura, anteriormente caracterizada por sua normatividade, prescritividade e seletividade, passou a adotar metodologias mais modernas, complexas e sistemáticas (SILVA, 2010) para compreender a ação coletiva. Uma outra tendência importante tem sido a de integração dos diversos enfoques que, ao 23 longo das últimas décadas, foram geradas no âmbito nos estudos da ação coletiva (TONI, 2001). Mais recentemente, as análises têm se voltado para o estudo do confronto político, tendência que tem sido estimulada por um contexto de ações disruptivas em vários lugares do mundo. Maria da Glória Gohn (2014, p. 8-9) chama esses novos movimentos de “Indignados”: (…) Os “Indignados” focalizam demandas locais, regionais, nacionais, ou seja, a realidade do país; isso os diferenciam dos protestos anti ou alterglobalização do final da década de 1990 e parte da década de 2000, nos quais reuniam minorias, tinham ativismo internacional e como alvo o capital financeiro global. Deve-se observar, entretanto, que as manifestações de junho no Brasil não são “nacionalistas”; ao contrário, mostram-se como modos e formas de agir coletivo, especialmente adquirido/construído via redes sociais e telefone móvel, e advêm de ondas globais, internacionais. Por isso (…) a preocupação de, simultaneamente, relacionar e diferenciar os atos de protesto no Brasil em 2013, com os protestos que aconteceram no mundo após 2008, especialmente os que ocorreram em outras regiões do mundo (…). Zibechi (2013) rechaça os argumentos que atribuíram “papel mágico” às redes sociais e faz um balanço sobre o comportamento de organizações que tiveram destaque nas marchas e protestos realizados na era pós-PT. O seu objetivo é mostrar como, nos espaços ocultos dos grupos subordinados – ondes se elaboram os discursos antagônicos –, vão se gestando o conjunto de insatisfações e formas de ação que se levantaram contra a política no mês de junho de 2013. Para isso, ele mostra o processo de organização do Movimento Passe Livre e dos protestos contra remoções e desocupações nos Jogos Panamericanos, do Rio, como parte de uma luta que ganha maiores dimensões e aproximam setores sociais variados para lutas unificadas. Silva (2016) busca explicar as inovações produzidas nos repertórios de contestação dos movimentos contrários ao reajuste de transporte público em Porto Alegre a partir das noções de repertório e performance, mostrando como o movimento inova a partir de um repertório conhecido pelos atores em uma arena de confronto com o poder público. Dowbor e Szwako (2013), a despeito dos diversos argumentos que falam em espontaneísmo das massas, revelam a construção dos bastidores dos movimentos de Salvador (Revolta do Buzu, 2003) e de Florianópolis (Revolta da Catraca, 2004) para mostrar o quanto de ação política está presente por trás dos movimentos de ruas, com a organização de coletivos e de discursos que buscam construir uma narrativa não apenas 24 para a luta, mas também para as diversas possíveis maneiras de organizar as pessoas e demandar uma determinada questão. São estudos que, afinal, mostram como o confronto político e as ações disruptivas se tornaram importantes para entender os movimentos sociais nesta época, colocando novos desafios e temáticas para abordar a relação da sociedade civil com o Estado. Esta dissertação se propõe a avançar nessa temática, analisando dois movimentos de protesto contra o aumento da passagem de ônibus e seu reflexo para os estudos da ação coletiva a partir, principalmente, dos aspectos contextuais da política e da organização dos movimentos sociais. CAPÍTULO 2 – BASE TEÓRICA PARA ESTUDO DOS MOVIMENTOS CONTRA O AUMENTO DA PASSAGEM DE ÔNIBUS Muito além de uma análise descritiva dos confrontos políticos envolvendo a luta pelo congelamento da tarifa de transporte, busca-se aqui abordar os mecanismos que explicam o modo como os movimentos se constituíram. Para isso, pretende-se aprofundar os casos de 2005 e 2012 tomando como referência as noções de oportunidades políticas, repertórios, mobilização de recursos e enquadramento interpretativo, noções essas que permitiram observar o contexto dos dois períodos e a organização do movimento para a construção dos atos públicos e uma interpretação sobre a questão da tarifa. 2.1 Mobilização de recursos Dentre todas as ferramentas teóricas para se pensar a constituição dos movimentos sociais, a teoria da mobilização de recursos, originada nos Estados Unidos, constitui-se como a mais pragmática de todas elas. Mas antes de fazer apontamentos críticos em relação à teoria, é importante entender o contexto de sua introdução na agenda de pesquisa. E, para isso, vamos abordar quatro aspectos da sua constituição: a hegemonia do caráter sociopsicológico dos estudos da ação coletiva até os anos 1970, a discussão sobre o novo estado do capitalismo, a influência olsoniana na sociologia do país e a influência do elitismo em detrimento do pluralismo. Em relação ao primeiro aspecto, a teoria estado-unidense da ação coletiva, até os anos de 1970, foi marcada profundamente pela Escola de Chicago e seus estudos 25 etnográficos com as populações marginalizadas dos Estados Unidos. Para esses autores, o surgimento de ações coletivas, isto é, fora do ambiente institucional formal e legal, era resultado das tensões estruturais de um país marcado por profundas transformações socioeconômicas. Parte da população, à margem do caráter positivo dessas mudanças e que não se reconhecia como partícipe dos bônus do desenvolvimento, passava a sofrer estresses, frustrações e descontentamentos, levando a se engajarem em movimentos coletivos. Então, o estado psicológico desses indivíduos causavam o seu ativismo político e o seu entusiasmo em causas contrárias à ordem institucional. Nos anos posteriores à Segunda Guerra Mundial, em especial nos anos 1950, esse sentimento de irracionalidade ligado à ação coletiva foi reforçado pela prosperidade do capitalismo nos países centrais. A harmonia social consolidava uma nova época sistêmica, de prosperidade e de hegemonia dos valores ocidentais. A “época de ouro” do capitalismo, como a chamou Eric Hobsbawn, estava influenciando os meios acadêmicos de que a visão de progresso do Iluminismo tinha sido alcançada e de que nada melhor poderia ser projetado ou mesmo demandado. A síntese dessa ideia é a denominação de Daniel Bell, de “fim da ideologia”. Em fase tão próspera do capitalismo, harmônica e inclusiva, sob um horizonte de otimismo social e com a inserção das massas na sociedade de consumo, os potenciais ativistas anti-sistema – os trabalhadores fabris – teriam sido enfeitiçados pela possibilidade de adquirir os bens produzidos a custos cada vez menores e preços cada vez mais acessíveis. A estabilidade era a nova regra dos países centrais. A ideia de estabilidade perde força com os movimentos do final da década de 1960, mobilizados sobretudo nos países centrais do capitalismo. Milhares de jovens nos Estados Unidos e na Europa foram às ruas contestar o modo de vida dominante e apresentando reivindicações que até então não apareciam como dominantes na ação coletiva. Com pautas de gênero, ambientais, criticando o armamentismo e as guerras e formatando novos estilos de vida, esses movimentos passam a ser estudados e dão origem a novas interpretações sobre os movimentos sociais. Paralelamente, nos Estados Unidos, a teoria pluralista da política cede terreno para os teóricos do elitismo. A teoria pluralista evocava, no país, a ideia de um sistema político aberto, com possibilidades equânimes de inserção e de apresentação de demandas reivindicatórias por parte de uma diversidade de atores políticos e sociais. Em um sistema político aberto, sem franqueamento, a lógica era a de que a ação social por fora do 26 sistema era irracional e incongruente, pois o sistema político processaria a reivindicação sem assimetrias com as insatisfações de qualquer outro ator. Os teóricos do elitismo contestam essa ideia e apresentam a abertura maior ou menor do sistema político como derivada da capacidade institucional, relações sociais e políticas e domínio de recursos formais. Em um contexto no qual quem tem mais poder e influência domina melhor a arena pública e as decisões nacionais, deixa de parecer irracional a ideia de atores sociais buscando influenciar as decisões políticas fora do ambiente legal e formal. Outra influência à teoria da mobilização de recursos, e que está ligada à postulação dos teóricos elitistas, é a teoria olsoniana da ação coletiva. Olson, segundo Alonso (2009), argumentava que a ação coletiva não tinha nada de emocional e que estava diretamente ligada a uma deliberação individual dos atores a partir de um cálculo frio, objetivo e racional sobre os benefícios que a ação coletiva deveria proporcionar e os custos envolvidos (isto é, recursos materiais e humanos) para pô-la em ação. Olson, segundo Toni (2001), considerava que, em condições normais, o indivíduo racional prefere não agir coletivamente porque sabe que outro o fará por ele e que, mesmo sem agir, ele colherá os frutos das ações dos outros (o problema do carona). Portanto, esse é pano de fundo sobre o qual se funda a teoria da mobilização de recursos. Um dos pilares da teoria é recusar a existência de conexão direta entre o descontentamento e a ascensão do movimentos social. Segundo McCarthy e Zald (1977, p. 1214-5), vários estudos foram feitos para mostrar a relação entre o descontentamento e a ação coletiva e esses estudos falharam em apresentar uma relação de direta entre ambas. Em seu descolamento dos princípios emocionais, os autores afirmam que sempre há descontentamento suficiente em qualquer sociedade para suprir o apoio popular ao movimento social e que, ainda que não houvesse, as queixas e insatisfações podem ser produzidas e manipuladas pelas organizações. Eles destacam que a teoria tillyana produziu interpretações associando diretamente os processos políticos centrais de uma sociedade e não suas tensões difusas como modelo explicativo para o despontar do movimento. McCarthy e Zald (1977) dão ênfase a outros aspectos para formação e disseminação da luta social: 1) Relação dos movimentos com a mídia 2) Relação do movimento com as autoridades 3) Interação entre organizações do movimento 27 A maior contribuição da teoria da mobilização de recursos, segundo Toni (2001), foi mostrar a importância dos aspectos organizacionais e de recursos para a eficácia do movimento em suas demandas concretas. E contribuiu para desmistificar o olhar dos pesquisadores anteriormente ocupados em analisar a ação coletiva como produto de indivíduos perturbados para indivíduos atuando de maneira concatenada e com pautas lúcidas. Seus teóricos, contudo, foram fortemente criticados em função da virada racional e pragmática que eles produziram em torno das análises da ação coletiva. A cultura, diz Alonso (2009), foi subestimada por esses autores, ocupando lugar residual em detrimento dos aspectos estratégicos e racionais dos movimentos. A teoria também, ao recepcionar os postulados de Olson, teria se equivocado em relação ao objeto. Olson teria discutido outro tipo de ação, a dos grupos de interesse, e não a dos movimentos sociais. Nesse caso, não há o que se discutir em relação ao carona, pois a natureza da ação dos movimentos sociais é social, lida com grupos que já estão envolvidos em ações coletivas e o desafio, portanto, é outro: a coordenação das organizações em torno de um problema comum. Em comunhão com outras ferramentas teóricas de abordagem dos aspectos culturais e simbólicos e corroborando a afirmação de Toni (2001) sobre a importância dos aspectos formais e organizacionais para entender o modo como os movimentos produzem a ação coletiva e produzem seu repertório de confronto, a teoria da mobilização de recursos pode contribuir, a partir dos aspectos considerados para entender o modo como as lutas sociais são estruturadas pelos atores, para uma análise dinâmica e dialógica sobre o funcionamento dos recursos no interior do movimento, os tipos de disputas e de hierarquias que os recursos podem produzir, gerando variações de lideranças e de repertórios. 2.2 Repertório Nos anos 1970, no ambiente de pesquisas e fomento sobre novos olhares para os movimentos sociais, um pesquisador estadunidense se destaca por sua contribuição macro-histórica de análise da ação coletiva. Charles Tilly, sociólogo, cientista e historiador, com formação em Harvard e em Oxford, teve um papel muito importante na estruturação das pesquisas sobre os movimentos sociais, em especial na introdução da dimensão 28 formal e informal da política na agenda de pesquisa. Amparado na historiografia francesa e contribuindo nos campos da metodologia macrossociológica, história comparada e ação coletiva (AGUILAR, 2009), Tilly estudou em profundidade os processos revolucionários franceses e ingleses dos séculos XVIII e XIX observando os movimentos sociais a partir de um processo de longa duração, relacionando-os às transformações sociais no capitalismo (ALONSO, 2009; 2012; BRINGEL, 2010). É dessa linha de estudos que surge a teoria do processo político. Para essa teoria os movimentos sociais são uma invenção ocidental que surge a partir do fortalecimento do parlamento, da nacionalização das decisões políticas e competição eleitoral (ALONSO, 2012). Essa nova organização do processo político estatal gera o enfraquecimento das formas locais de expressão das demandas e cria as oportunidades de ação para influenciar o parlamento. Entre os séculos XVIII e XIX, os movimentos sociais passam da ação direta e violenta no plano local para movimentos de caráter nacional e autônomos, disputando suas demandas de maneira menos violenta e introduzindo novos temas, como escravidão, impostos, economia e trabalho. É dessa repetição e limitação das formas de agir coletivo que Charles Tilly, na década de 1970, ainda segundo Alonso (2009), apresenta seu conceito de repertório, noção introduzida na teoria para explicar a modularidade da ação coletiva por partes dos atores sociais. Repertório é, então, (…) um conceito referido a um longo período de tempo e a um conjunto relativamente amplo de atores em litígio, o que é ressaltado pela adição de of contention. Tilly apoiou-se numa perspectiva pragmática, definindo repertório como “um conjunto limitado de rotinas que são aprendidas, compartilhadas e postas em ação por meio de um processo relativamente deliberado de escolha” (Tilly, 1995, p. 26). Os agentes, em meio ao processo de luta, escolheriam dentre as maneiras convencionalizadas de interação presentes no repertório aquelas mais adequadas à expressão de seus propósitos. Isto é, os agentes atribuíram o sentido às formas, que pode ser tanto de contestação quanto de reiteração da ordem. É o caráter vazado, sem semântica, do repertório que permite sua partilha entre atores opostos. Isto é, o repertório de ação coletiva não é peculiar a um grupo, mas a uma estrutura de conflito. (ALONSO, 2012, p. 58) O conceito de repertório, portanto, é percebido, inicialmente, como a maneira mais ou menos estável com que os movimentos se apresentam à sociedade em contextos históricos e espaciais distintos. Com a noção de repertório, Tilly (1978) identificou que a maneira com que a ação coletiva aparecia publicamente em países e épocas diferentes sofriam importantes alterações. Séculos distintos mostravam formas distintas de fazer política. Segundo James Jasper (2016, p. 39-40), 29 Como os pesquisadores dessa tradição se concentraram no Estado, mostraram que diferentes nações têm diferentes estruturas de oportunidades políticas e, em resultado disso, diferentes tipos de protesto. Em alguns países os partidos políticos são abertos a novas demandas, proporcionando uma oportunidade para manifestantes, enquanto em outros aderem a ideologias que inibem a abertura a novas questões. Na Alemanha e nos Estados Unidos, os tribunais têm muita autoridade, de modo que os manifestantes abrem processos; não o fazem muito na França, onde os tribunais têm menos poder. Os manifestantes usam os canais que lhes são disponíveis. Também pode tentar inventar novas arenas ou mudar as existentes, como os seguidores de Wilkes, que buscaram novos direitos jurídicos. Para este autor, o repertório sofre um processo de “seleção natural”, que subtrai as ações menos eficientes e adiciona novas formas de ação, bem-sucedidas. O contexto, o interlocutor e o nível de ação são os elementos apropriados pelos movimentos sociais no momento de selecionar o repertório (JASPER, 2016). A década de 1990 é crucial para o desenvolvimento do conceito de repertório. As pesquisas bifurcavam-se entre estruturalistas e acionalistas e Tilly era associado aos primeiros por apresentar a ação coletiva em relação a processos políticos e estruturais (BRINGEL, 2010). E é um período em que a teoria dos movimentos sociais vivenciou uma “fase culturalista”. Isso gerou uma revisão do autor sobre a ideia de repertório, levando a que o conceito de “repertório de ação coletiva” ressurgisse como “repertório de confronto”. O conceito, segundo Alonso (2012), passa a ser mais relacional, significando que, apesar dos repertórios aprendidos e construídos ao longo da história, existe um processo deliberado de escolha, mas também de interpretação e de improvisação imanente à atuação dos movimentos. O repertório tem também características de modularidade, isto é, pode ser transferido de um local para outro, adaptando-se às características e cultura local mediante o aprendizado e negociações entre os atores (ALONSO, 2012). Vimos isso acontecer nas recentes ocupações dos estudantes secundaristas do Brasil e da Argentina, que replicaram os métodos de protesto dos estudantes chilenos que, na Revolta dos Pinguins, ocuparam escolas e se organizaram em diversos comitês para fomentar o movimento. A teoria do repertório acaba abrindo mais espaço à capacidade de agência dos atores sociais, reduzindo a influência do estruturalismo. No âmbito de sua revisão teórica na década de 1990, o ator social tillyano aparece menos determinado exteriormente, pois apesar de o repertório delimitar a rotina de confronto com os adversários, ela é uma escolha dos agentes. 30 Nos anos 2000, diz Alonso (2012), em uma conjuntura de violentas ações no plano global e em decorrência dos atentados ao World Trade Center, em 11 de setembro de 2001, a cultura se impõe de maneira ainda mais definitiva para explicar as mobilizações e os pesquisadores passam a introduzir novas noções de cultura para explicar ação coletiva, como o enquadramento interpretativo, a retórica e narrativa entre ativistas. Incorporam-se também estudos sobre as emoções coletivas e a construção de identidades coletivas. Tilly assume excessos estruturalistas na sua teoria, abrindo mais espaço para agency e, em 2005, o repertório ressurge como conjunto variável de performances. A variação do repertório passa a ser interpretada como resultado da inovação tática, da negociação da performance entre manifestantes e a polícia, da adoção de uma inovação de outro grupo, como resultado da mediação de um intermediário conectando atores, grupos ou locais isolados, pela certificação ou descertificação das autoridades sobre uma determinada performance e, por último, pela adaptação local de uma inovação produzida em outro espaço. A noção de repertório nos ajudará a entender a atuação dos movimentos em dois ambientes políticos e organizacionais distintos e como esse contexto interfere na luta política do movimento e no seu modo de compor as estratégias de luta social. 2.3 Estrutura de Oportunidades Políticas A teoria do confronto político, também uma agenda de pesquisa originada nos Estados Unidos, adota, diferentemente da TMR, explicações macro-históricas, destacando os processos políticos para explicar a formação dos movimentos sociais. A noção de “estrutura de oportunidades políticas” (EOP) é o parâmetro político dessa agenda de pesquisa e baseia-se na ideia de que a abertura nas dimensões formais e informais do ambiente político cria novos canais de expressão para reivindicações advindas de fora da política institucional. Crises na coalizão política no poder ou mudanças na interação entre Estado e sociedade são duas variáveis que explicam esse aumento da permeabilidade política nas instituições (ALONSO, 2009; TARROW, 2009). Em EOPs favoráveis, os grupos insatisfeitos se organizam e expressam suas reivindicações, sendo a coordenação entre ativistas e a densidade das redes 31 interpessoais, fundamentais para produzir solidariedade e pertencimento (ALONSO, 2009). Para Sidney Tarrow (2009), o confronto político é suscitado em um ambiente estrutural de oportunidades e de mudanças nas restrições políticas, gerando incentivos para que os atores possam agir. Nessas ocasiões os movimentos atuam através de repertórios usualmente conhecidos, mas que podem sofrer variações no intercurso dos protestos por atores que não têm acesso regular às instituições e que desafiam o poder institucional. Para sustentar o confronto, os movimentos sociais mobilizam densas redes sociais e símbolos vibrantes orientados para a ação. A motivação dos indivíduos para se unir a um movimento social residiria no interesse comum relacionado a uma reivindicação (TARROW, 2009), daí a importância, para os movimentos sociais, de que as pautas sejam potencialmente mobilizadoras de um grupo maior de insatisfações localizadas na sociedade. A presença de organizações previamente mobilizadas em espaços de atuação políticas contribui para canalizar essas insatisfações para a política do confronto, isto é, é função das organizações o estímulo à mobilização. Muito embora o foco seja a análise do conflito, tendo em vista que os atores institucionais são os responsáveis pela lei e pelas normas sociais, compreende-se que os movimentos sociais não existem apenas para confrontar as instituições, eles também têm uma atuação perene, elaborando ideologias e mobilizando as pessoas em prol dessas ideologias. Isto é, os movimentos possuem uma atuação “para dentro” e a efetividade dessa atuação amplia a visibilidade dos movimentos em ambientes de oportunidades para a ação coletiva. O confronto político é, contudo, o seu principal recurso diante da falta de recursos estáveis, como dinheiro e acesso ao Estado, podendo, desse modo, atrair a atenção dos seus opositores e de terceiros e criando capacidade de representação (TARROW, 2009, p. 22) Entre os estudos que focalizaram aspectos do contexto político para a emergência do confronto político, estão as análises sobre os protestos de junho de 2013. Maria da Glória Gohn (2014) descreve a conjuntura favorável para os protestos abordando as dimensões informais do contexto político do país, como a insatisfação social diante dos gastos altíssimos com estádios para a Copa do Mundo e a Copa das Confederações, em contraste com os serviços públicos, entre outros, tais como: 32 (…) persistência dos índices de desigualdade social, inflação, denúncias de corrupção, clientelismo político, a PEC 37 (também conhecida como a PEC da Impunidade, projeto de emenda constitucional que tinha como objetivo implodir o poder investigatório do Ministério Público), assim como sentimento de impunidade nas histórias de corrupção, o sistema político arcaico, a criminalização de movimentos sociais – especialmente rurais e indígenas –, o projeto de lei que tramitava no Congresso sobre “cura gay”, a condução de importantes postos políticos no cenário nacional por políticos com passado marcado por denúncias etc. Ou seja, a despeito das políticas governamentais de inclusão social e a boa imagem internacional do país até então, como um emergente de sucesso, para o senso comum do povo havia graves problemas sociais. (…) (GOHN, 2014, p. 20- 1) As dinâmicas de mobilização, negociação e confronto foram redesenhadas pelos teóricos do confronto político, como Charles Tilly e Sidney Tarrow, valorizando a capacidade de agência e a ação criativa dos indivíduos em situações sociais e históricas e de constrangimentos e oportunidades para a ação (ALONSO, 2009; ALONSO e BOTELHO, 2012). Esses autores abriram o debate nos anos 90 para o campo do conflito, em um momento em que a teoria se dispunha a debater a atuação da sociedade civil em termos de reciprocidade e de colaboração (ABERS e BÜLOW, 2011). Nesta dissertação, pretende-se abordar a relação entre as oportunidades políticas e a organização do movimento social por meio de repertório, enquadramento interpretativo e capacidade material, observando de que maneira essas variáveis interagem no contexto de abertura para a ação política. 2.4 Enquadramento Interpretativo Como diz Silva (2010), a trajetória da agenda de pesquisa sobre os movimentos sociais, com sua carga de positividade e normatividade sobre os movimentos, nos anos 90, gerou um “descolamento da agenda internacional”, trajetória que só recentemente foi revista pelos pesquisadores. O crescente diálogo com a agenda de pesquisa internacional, em especial com a teoria da política do confronto, tem gerado um campo fértil de análises sobre os movimentos sociais, em interação com as ferramentas teóricas produzidas fora do país. O enquadramento interpretativo é uma dessas ferramentas introduzidas na agenda de pesquisa do Brasil no período mais recente (PEREIRA, 2014). Apesar da noção de enquadramento interpretativo ser discutida nos Estados Unidos desde os anos 1970, década em que Goffman lançou dois dos seus livros sobre a temática, o debate brasileiro via-se interditado, segundo Silva, Cotanda e Pereira (2017), num primeiro momento – 33 anos 70 até início dos anos 80 – pelo domínio do marxismo estruturalista. Em seguida, pelo apelo da teoria da sociedade civil entre os pesquisadores. O enquadramento interpretativo surgiu nos Estados Unidos na sequência das críticas produzidas no país à ausência de parâmetros culturais presentes na teoria da mobilização de recursos e à necessidade de desenvolver instrumentos operacionais para a dimensão interpretativa-cultural da ação coletiva. Duas influências foram importantes como ponto de partida para a leitura goffmaniana de como os indivíduos definem as situações por eles vividas. A primeira foi o teorema de William Isaac Thomas e Dorothy Thomas, cuja síntese, segundo Silva, Cotanda e Pereira (2017) é a de que se as pessoas definem as situações como reais, elas são reais em sua consequência. Goffman afirmou, na sua primeira obra, de 1974, que a definição de situação não é produzida pelo indivíduo, mas frequentemente pela sociedade. A outra influência foi a de Bateson, de onde Goffman extraiu a ideia de moldura como algo que organiza a percepção e que convida o observador a prestar atenção àquilo que está dentro da moldura, ignorando o que lhe é externo. A adaptação de Goffman à teoria dos movimentos sociais foi rápida e ela teve em Gamson, Snow e Benford alguns dos seus principais intérpretes. Entre os parâmetros analíticos criados para estudar o enquadramento interpretativo no interior da agenda de pesquisa dos movimentos sociais, estão as noções de alinhamento de molduras interpretativas (1986), ressonância de molduras (1988) e macro molduras interpretativas (1992), quando se produz uma convergência entre o enquadramento interpretativo e a teoria do processo político. Os autores da teoria do processo político, contudo, criticaram sobretudo dois aspectos da teoria do enquadramento interpretativo. Em primeiro lugar, a crítica à dimensão estratégia do conceito, secundarizando a capacidade reflexiva dos interlocutores do movimento. Os empreendedores de movimentos, nessa crítica, seriam vistos como sujeitos exacerbadamente racionais, buscando estratégias narrativas que mais tornassem viáveis a disseminação da ação coletiva, ignorando, portanto, a dimensão dialógica, dinâmica e reflexiva que envolve a relação com que os movimentos sociais direcionam seus discursos. A outra crítica diz respeito à dimensão moral e valorativa que encobre a ação coletiva. A luta social diz respeito a aspectos subjetivos, de convencimento e de convicções dos atores sobre a sociedade. Como diz Jasper (2008, 2016), os movimentos 34 sociais são uma voz moral da sociedade, utilizam-se de meios extrainstitucionais para mudá-la e os indivíduos carregam ideias sobre o que desejam e sobre como alcançar suas reivindicações, ideias essas que são filtradas pela cultura e pela psicologia social. Nos anos 2000, essas dimensões morais e estratégicas começam a ser alinhadas em uma mesma concepção de enquadramento (SILVA, COTANDA e PEREIRA, 2017): (…) os trabalhos de Benford e Snow sofrem uma re-orientação, incorporando paulatinamente uma dimensão não estratégica ao conceito de enquadramento interpretativo. A literatura parece, assim, caminhar em direção a uma síntese, enfatizando-se que as diferenças entre a abordagem de negociação e centrada nos alvos de Gamson e a abordagem estratégica e centrada nos empreendedores de movimento de Snow e Benford parecem estar mais ligadas a trajetórias e preferências pessoais dos autores do que a discordâncias teóricas substantivas. Ambas as abordagens revelariam apenas “os dois lados” dos mesmos processos de enquadramento interpretativo (Noakes & Johnston 2005). Entre os estudos de enquadramento interpretativo, surgem as seguintes dimensões nos estudos empíricos: a) Tarefas nucleares de enquadramento: características do enquadramento, isto é, a interpretação de uma situação como problema social e as fronteiras entre “nós” e “eles” (diagnóstico); as soluções e planos para os problemas identificados (prognóstico); e as mensagens que estimulem o engajamento dos ativistas (motivacional); b) Formação de Molduras Interpretativas: Como os ativistas constroem suas interpretações sobre um problema? (processos estratégicos, discursivos ou contenciosos) e por meio de quais categorias? (cultura política, kit de ferramentas, campo discursivo, estrutura de oportunidades discursivas) c) Resultados do enquadramento interpretativo: A importância do porta-voz, dos interlocutores e das características da moldura para ressonância do enquadramento dos movimentos sociais. No caso dos resultados, Hewitt e McCammon (2005, apud SILVA, COTANDA e PEREIRA, 2017) afirmam que os pesquisadores se concentraram no recrutamento de novos ativistas como referencial para o resultado dos movimentos, mas que seria necessário observar outros referenciais, já que os movimentos sociais têm diversos objetivos e a eficiência das estratégias que adotam variam conforme os resultados buscados pelos atores sociais. 35 CAPÍTULO 3 – CAMINHOS METODOLÓGICOS As entidades tradicionais do movimento estudantil, para os fins deste trabalho, são aquelas que se organizam sob a liderança das entidades nacionais do movimento estudantil, a UNE e a UBES. O movimento estudantil, organizado sob orientação e formatação dessas duas entidades, fundamenta-se numa rede de entidades estudantis que vai das direções nacionais dessas duas entidades, envolve entidades estaduais e municipais, além dos DCEs, até a estrutura inferior da sua hierarquia organizacional: o grêmio estudantil e os centros acadêmicos. O MPL tem atuação voltada à base da pirâmide organizativa, isto é, grêmios e centros acadêmicos, como no caso de Salvador (DOWBOR e SZWAKO, 2013). Foi através do fórum de grêmios estudantis que as lideranças da Revolta do Buzu, de 2003, que não se reconheciam nas entidades nacionais, puderam se contrapor, na capital da Bahia, às políticas conduzidas pelas entidades tradicionais do movimento estudantil. Para estudar um tema tão específico como dois casos envolvendo a luta contra o aumento da passagem de ônibus no município de Natal/RN, nos anos de 2005 e 2012, a abordagem mais adequada para explicação das variáveis propostas é a pesquisa qualitativa. Como diz Minayo (1996), a pesquisa qualitativa no âmbito da sociologia trabalha com significados, motivações, valores e crenças e a técnica quantitativa não é suficiente para alcançar variáveis tão particulares. Busca-se, nesta dissertação, analisar aspectos profundos da constituição do movimento social e mesmo nos aspectos objetivos da constituição dos protestos, os valores, motivações e significados dos atores políticos são componentes da explicação do ativismo. A pesquisa bibliográfica, considerada o primeiro passo para a investigação científica (BONI e QUARESMA, 2005), foi introduzida nesta dissertação para discussão das ferramentas teóricas de análise dos movimentos contra o aumento da passagem de ônibus com o intuito de analisar a formação do movimento social. Para isso, as noções de mobilização de recursos, oportunidades políticas, repertório e enquadramento interpretativo permitiram uma análise ampla do movimento social, como também a instrumentalização dos aspectos objetivos e subjetivos por parte das organizações que compõem o movimento. Aborda-se, também, a partir da pesquisa bibliográfica, o funcionamento e o histórico de mobilização do MPL, aprofundando-se nas entrevistas sobre o seu modo específico de funcionamento no contexto local de Natal/RN. 36 Para explicação dessas noções no contexto específico do movimento contra o aumento da passagem de ônibus em Natal/RN, utilizamos entrevistas semi-estruturadas como técnica de coleta de dados. A entrevista, segundo Boni e Quaresma (2005, p. 72), é técnica mais utilizada no trabalho de campo, permitindo a coleta de dados objetivos e subjetivos. É uma técnica que requer uma organização exigente do pesquisador, que deve observar um conjunto de preparos prévios (LAKATOS, 1996): i) planejamento da entrevista; ii) familiaridade do entrevistado com o tema; iii) oportunidade da entrevista; iv) condições favoráveis a que o entrevistado possa garantir ao pesquisador os segredos de suas confidências; v) preparação específica na organização do roteiro. No caso específico desta dissertação, o tipo de entrevista definido é a semi- estruturada, cuja característica é de apresentação de perguntas fechadas e abertas sobre o tema estudado. Entrevistas são fundamentais para mapear as práticas de universos sociais específicos e bem delimitados, permitindo ao pesquisador um mergulho em profundidade sobre esses universos sociais e levantando informações consistentes sobre as relações no interior de um grupo (DUARTE, 2004). É o caso desta pesquisa, cujas questões, relacionadas à luta contra o aumento da passagem de ônibus em contextos específicos, estão previamente delimitadas com base na pergunta de partida e nos conceitos teóricos que fazem a mediação para a análise. Buscamos informações que permitam analisar o estado organizativo do movimento estudantil, as relações entre as organizações, as dificuldades e facilidades para o embate com a prefeitura neste tema – transporte público – que é específico do executivo municipal (transporte público) e a forma como as organizações do movimento estudantil tradicional e o MPL buscaram interpretar e disseminar uma noção socialmente construída sobre a tarifa de transporte. 3.1 Contexto político, recursos e repertório A força do contexto é uma das variáveis explicativas para abordar o surgimento dos movimentos sociais e até mesmo sua forma de ação. O contexto condiciona (embora não determine) o repertório. Pois os movimentos aprendem, compartilham e executam uma determinada forma de ação política com base em um know-how advindo de lutas anteriores. A ação coletiva, como mostra Tilly (1992 apud ABERS, SERAFIM e TATAGIBA, 37 2014), é influenciada por esse know-how, pelas demandas existentes e recursos disponíveis (ou seja, repertório, oportunidades políticas e mobilização de recursos). Pretende-se aprofundar, quanto aos aspectos organizativos, nos elementos destacados pela teoria da mobilização de recursos (MCCARTHY e ZALD, 1977): a) variedade e fonte de recursos; b) relação dos movimentos com a mídia, autoridades e outras partes importantes; c) interação entre as organizações do movimento. Como as organizações do movimento estudantil aprenderam a fazer movimento contra o aumento da passagem de ônibus, quais os recursos disponíveis para organização dos protestos, a relação com a imprensa e os mecanismos de organização do movimento contra o aumento da tarifa, serão discussões que esta dissertação pretende aprofundar nas entrevistas para observar a força do contexto e do aprendizado das organizações do movimento estudantil. Além do fator material, esta dissertação pretende analisar o contexto político que dá base e contribui para legitimar a atuação dos atores sociais. O contexto político está no cerne da noção de estruturas de oportunidades políticas. Segundo Kriesi (1995 apud ALONSO, 2009) as oportunidades de ação para o surgimento de movimentos sociais são decorrentes de: i) a permeabilidade das instituições às demandas da sociedade civil a partir das crises do grupo que está no poder; ii) mudanças de interação entre Estado e sociedade; e iii) existência de aliados poderosos. Na leitura bibliográfica sobre o MPL, organização que assume papel de destaque no estudo da virada do repertório do movimento contra o aumento da passagem, verifica- se o seu pioneirismo durante a primeira década dos anos 2000. O MPL é uma organização que aprendeu a fazer movimento social, desde sua gênese, com o mínimo de estrutura material, enquanto as demais organizações vinham de experiências em que o repertório estava diretamente relacionado à captação de recursos. A dissertação pretende aprofundar sobre os métodos de organização do MPL, suas disputas com as organizações tradicionais do movimento estudantil e na maneira com que, na ausência de recursos e em um contexto político favorável à participação, buscaram imprimir ao movimento contra o aumento da passagem, em 2012, seu repertório político sobre as demais organizações. 3.2 Enquadramento Interpretativo 38 Os estudos de enquadramento interpretativo observaram as seguintes dimensões empíricas (SILVA, COTANDA e PEREIRA, 2017): tarefas nucleares de enquadramento, formação de molduras interpretativas e resultados do enquadramento interpretativo. Ou seja, quando se trata da noção de enquadramento interpretativo, há um conjunto relativamente amplo de variáveis que podem ser investigadas pelos pesquisadores, como o diagnóstico que os movimentos produzem sobre um determinado problema ou mesmo o caráter motivacional que estimula os possíveis adeptos a se engajarem na luta coletiva. O enquadramento interpretativo também pode ser investigado no aspecto estratégico ou dialógico, no âmbito dos quais ele se produz ou se transforma como parte do processo racional das lideranças do movimento ou do contato dinâmico das organizações com o público ou com os antagonistas. O enquadramento também pode ser visto como resultado de enquadramentos produzidos por outros movimentos sociais, como expressão da cultura política, ideologias, entre outros. Uma das variáveis explicativa para a formação de molduras interpretativas diz respeito à ideia de estrutura de oportunidades discursivas. Parte-se, nesta dissertação, de que a ebulição política e entre pesquisadores sobre a questão urbana a partir das obras estruturantes nas cidades, desde o ano de 2006, abriu uma estrutura de oportunidade discursiva para que a tarifa zero, no âmbito do debate do direito à cidade, pudesse ganhar força e se disseminasse entre os ativistas dos protestos contra o aumento da passagem, sem encontrar réplica, muito embora fosse uma campanha orquestrada e organizada por uma organização específica, o MPL. Nesta pesquisa qualitativa, buscaremos entender, em relação a esta moldura interpretativa – a Tarifa Zero –, como os atores sociais disputaram esse tema no interior do movimento social e como o contexto da época e a atuação do MPL contribuiu, na visão dos entrevistados, para que esta campanha se disseminasse como a principal demanda reivindicativa da Revolta do Busão. 39 Quadro 1 – Variáveis de análise do estudo de caso Contexto Político, Organizativo e Repertório do Movimento Enquadramento Interpretativo Variedade e fonte de recursos das A disputa das organizações sobre o tema organizações da tarifa de transporte Relação do movimento com a mídia, Esforços organizativos de formulação sobre autoridades e outras partes a questão tarifária/ transporte por parte das entidades estudantis Interações entre as organizações do movimento Permeabilidade da prefeitura às Contexto da questão urbana e seu reivindicações dos movimentos alinhamento com a Tarifa Zero para disseminação da reivindicação do MPL Aliados influentes aos movimentos sociais Repertório Fonte: elaboração própria (2018). 3.3 Entrevistas Para tentar responder ao problema da pesquisa – Por que o protesto de 2005 diferenciou-se de 2012? O que mudou no contexto político e organizativo do movimento social para a mudança no repertório e no enquadramento interpretativo sobre o transporte? – foram realizadas 7 entrevistas semiestruturadas, através das quais buscamos responder a dois eixos de perguntas. O primeiro eixo está relacionado à ao contexto político, organizativo e ao repertório do movimento. Nesse caso, vamos buscar conhecer a variedade e fonte de recursos das organizações; a relação do movimento com a mídia, autoridades e outras partes; as interações entre as organizações do movimento; a permeabilidade da prefeitura às reivindicações dos movimentos e a existência de aliados influentes aos movimentos sociais e, por último, as manifestações públicas de protestos promovidos pelas organizações do movimento social, isto é, seu repertório. Em relação ao enquadramento interpretativo, para buscar explicações sobre o que a teoria chama de estrutura de oportunidades discursivas, neste caso, para disseminação da Tarifa Zero como bandeira de luta central do movimento Revolta do Busão (2012), buscaremos, nas entrevistas, aprofundar sobre as seguintes dimensões: a disputa das organizações sobre o tema da tarifa de transporte; esforços organizativos de formulação sobre a questão tarifária/transporte por parte das organizações; contexto da questão urbana e seu alinhamento com a Tarifa Zero para disseminação da reivindicação do MPL. 40 Conforme Bourdieu (1999), o entrevistador deve escolher pessoas já conhecidas por ela ou apresentadas a ele por outras pessoas da relação da investigada, permitindo uma familiaridade ou proximidade social que permite que o interlocutor fique mais à vontade ou segura para colaborar. Uma segunda sugestão é a da convergência do capital cultural entre pesquisador e pesquisado em um mesmo patamar, reduzindo a “violência simbólica” que é exercida pelo pesquisador sobre o entrevistado. Os cinco entrevistados para esta dissertação fizeram ou fazem parte do círculo de relações do entrevistador durante o movimento estudantil e, para permitir uma (ainda) maior abertura entre entrevistador e entrevistados, adotou-se a técnica de exibição de registros fotográficos dos protestos de 2005 e 2012, de reuniões e passeatas das quais os entrevistados foram partícipes, estimulando as recordações e aspectos que podem aparecer com relevância na pesquisa. Os entrevistados foram: Quadro 2 – Relação de entrevistados para a pesquisa e trajetória nas manifestações Entrevistado 1 Presidente do GEDM entre 1999 e 2000, Diretor de Comunicação da UBES entre 2001-2004. Foi Coordenador Geral do DCE da UFRN entre 2005-2006 e um dos articuladores do movimento Caça aos Vampiros do Transporte Público. Entrevistado 2 Presidente do GEDM entre 2004 e 2005, foi um dos articuladores do movimento Caça aos Vampiros do Transporte Público. Coordenador do DCE da UFRN em 2012. Entrevistado 3 Presidente da APES entre 2003 e 2005, foi um dos articuladores do movimento Caça às Bruxas do Transporte Público. Entrevistado 4 Vice-presidente da UMES Natal em 2011 e Diretor Nacional da UBES entre 2011 e 2013. Entrevistado 5 Militante do Movimento Passe Livre entre 2010 e 2014. Fonte: elaboração própria (2018). A APES é a associação que representa todos os estudantes secundaristas do Rio Grande do Norte, sendo uma das entidades estudantis mais antigas do país. Fundada em 1949, é filiada à União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (UBES). Foi um das entidades pioneiras nas lutas históricas dos estudantes no município e no Rio Grande do Norte. Seu primeiro presidente, Érico Hackradt, foi o autor da lei da meia passagem no município de Natal. Reivindicações conquistadas ao longo dos anos 2000, como o direito 41 à meia passagem intermunicipal e a gestão democrática na rede estadual de ensino público, resultaram de mobilizações em que a APES foi protagonista. Para esta dissertação, entrevistamos o presidente da entidade nos anos de 2004 e 2005, Manassés Duarte. A entrevista foi realizada no dia 7 de junho de 2018. A UMES, organizada em maio de 1982, é a entidade de representação dos estudantes secundaristas da região metropolitana de Natal. Desde os anos 80, participa de campanhas contra o reajuste da passagem de ônibus na capital (em 87, chamavam-se “tickets” o meio de acesso ao transporte público). Participou da conquista das eleições diretas para diretor, em 1987, conquistou o assento para o Conselho Municipal de Usuários de Transporte em 1989 e foi uma das organizadoras do Fora Collor em Natal, em 1992. A sua vitória mais recente foi a conquista do direito à meia passagem intermunicipal no Rio Grande do Norte, sancionada pelo governador Fernando Freire (PMDB)3. O Grêmio Estudantil Djalma Maranhão (GEDM) é a entidade de representação dos estudantes do IFRN. Organizado em 1984, o GEDM deu início às mobilizações contra o aumento das passagens de ônibus de 2005 quando, no dia 21 de abril, realizou uma marcha intitulada “Caça aos Vampiros do Transporte Público”, dias antes do reajuste concedido, em uma manifestação que foi encerrada na sede do SETURN. Entrevistamos Leon Karlos Nunes, presidente do Grêmio Estudantil no ano de 2005. O Diretório Central dos Estudantes da UFRN é a mais antiga e mais importante entidade estudantil universitária do Rio Grande do Norte. Ocupou papel secundário nas mobilizações de 2005, diferente do ano de 2013, quando as principais mobilizações partiram da parada do circular do Via Direta. O processo de mobilização estudantil, ocorrido via plenárias e redes sociais, também foi fortemente estimulado pela política de organização estudantil da UFRN. O Movimento Passe Livre, organizado em 2005, não teve protagonismo nas mobilizações desse ano. A pauta do passe livre, inclusive, não tinha força nas convocações estudantis produzidas pelas entidades à frente dos protestos. No ano de 2013, contudo, a pauta era uma das mais entoadas nas convocações e nas palavras de ordem, além de existir uma agenda propositiva – e não só reativa – baseada na construção de uma política pública de passe livre discutida não apenas no município, mas em outras capitais do país. 3 História: . Acessado em 28 de março de 2019. 42 CAPÍTULO 4 – CAÇA AOS VAMPIROS DO TRANSPORTE PÚBLICO E TEMPORADA DE CAÇA ÀS BRUXAS (2005) 4.1 Cutucando a onça com vara curta: política, organização e repertório do movimento em 2005 Os movimentos contra o aumento da passagem de ônibus de 2005 ocorreram no primeiro ano do mandato do prefeito reeleito, Carlos Eduardo Alves (PSB), que teve como companheira de chapa, no ano anterior, a jornalista e apresentadora Micarla de Sousa, do Partido Verde (PV). A chapa obteve, no segundo turno, 48,9% dos votos válidos, derrotando o então candidato do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), o vereador Luiz Almir, que teve 45,25% dos votos válidos. A coligação do prefeito reeleito foi a que envolveu o maior número de partidos, numa composição com o PP, PCdoB, PDT, PTB, PSC, PTN, PPS, PL, PMN, PSDC, PV e PRP. Carlos Eduardo Alves foi apoiado pela governadora Wilma de Faria (PSB), ex- prefeita da capital e principal articuladora da campanha pessebista. Embora sem o apoio do PMDB, do então Senador Garibaldi Alves Filho e do Deputado Federal Henrique Eduardo Alves4, não se pode dizer que estes fossem inimigos do prefeito, pois os três políticos são membros da mesma família. O PCdoB e o PSB, entre os anos de 2004 e 2005, estiveram à frente das entidades estudantis UMES, APES, GEDM e DCE da UFRN, através dos jovens filiados a esses partidos. No final do ano de 2004, essas entidades receberam o apoio de Carlos Eduardo Alves na pressão que promoveram junto à Câmara Municipal pela manutenção do veto do prefeito ao Projeto de Lei do vereador Pio Marinheiro. O estudante de Natal tem direito a usufruir 120 vezes por mês o abatimento de 50% no preço da passagem de ônibus e o Projeto de Lei previa a diminuição de 120 para 60 usos/mês. A campanha do movimento estudantil em 2004 se deu durante todo o mês de novembro e dezembro, com o apoio de parlamentares da base do prefeito e também com grande apoio midiático. Em relação a isso, segundo o entrevistado 1.: Foi muito mais fácil quando fizemos as lutas (em 2004) contra o projeto de Pio Marinheiro, momento em que conseguimos montar uma frente parlamentar de vereadores que até conseguiu derrubar o projeto. Nós tínhamos ali 10 ou 11 4 Garibaldi Alves Filho (PMDB) foi presidente do Senado entre 2007 e 2009. Henrique Eduardo Alves (PMDB), que foi presidente da Câmara dos Deputados entre 2013 e 2015, era o líder do PMDB na Câmara dos Deputados, posto que ocupou de 2007 até 2013. 43 vereadores permanentes na nossa frente parlamentar. Nossa capacidade de financiamento era muito maior e a abertura com a imprensa era maior porque havia o contato com assessores de imprensa dos gabinetes, com jornalistas que trabalhavam nos órgãos de imprensa. E também com assessores que trabalhavam com políticos que estavam ligados a nós. Em 2005, quando a prefeitura se tornou alvo dos protestos, nós tínhamos o básico. A abertura mudou completamente. Nos protestos de 2005, portanto, a recepção de atores importantes para a repercussão das atividades políticas do movimento foi muito aquém em comparação com o ano anterior. O movimento estudantil confrontava agora a prefeitura e o Seturn, como também a própria posição no interior dos partidos PSB e PCdoB, aliados na administração do município. E a posição da mídia agora era outra: na Tribuna do Norte de 12 de maio de 2005, a capa mostra uma sequência de três fotos da prisão de um dos manifestantes, com a seguinte chamada: “Protesto termina em confronto” e, embaixo, um subtítulo que diz: “Suspeita – Manifestações desviam atenção da CEI na Câmara”, com o propósito de associar de maneira negativa os protestos do movimento estudantil. Nessa conjuntura desfavorável, o recurso da carteira de estudante permitia enfrentar o fechamento de espaços que anteriormente se mostravam disponíveis às entidades. Contratando assessorias especializadas, as entidades estudantis buscaram enfrentar as adversidades da conjuntura buscando reverberar as suas estratégias políticas. Segundo o entrevistado 3, presidente da APES entre 2003 e 2005, e uma das principais lideranças dos movimento estudantil na época, A gente tinha trânsito. Tínhamos amizades, uma rede de informações com servidores efetivos, buscando transparência. (…) Na época nós tínhamos também bons assessores contratados pelas entidades: assessores de imprensa com acesso à grande mídia, fazíamos questão de contratar o que havia de melhor no mercado disponível na época. Grande escritório de assessoria jurídica também, tudo com recurso oriundo da carteira de estudante. Sem apoio político e os recursos informais de apoio (parlamentares, mídia e o próprio poder executivo), portanto, as entidades dependiam de suas próprias forças e capacidades organizativas para liderar os protestos de 2005. Na entrevista concedida para esta dissertação, o entrevistado 3 ajuda a elucidar esses aspectos não imediatamente visíveis das manifestações daquele ano, como a importância dos recursos organizativos e materiais do movimento social naquele momento. Além dos assessores contratados pelas entidades para reverberar suas posições, as entidades organizaram vários protestos entre 21 de abril e 12 de maio daquele ano. A respeito da notória 44 capacidade de mobilização dos estudantes que, no dia 6 de maio interromperam quatro importantes fluxos urbanos do município, ele diz que: (…) Naquela época nós não tínhamos rede social, whatsapp, tínhamos rede do movimento estudantil, uma rede humana. Havia uma tradição de nos encontrarmos diariamente na sede das entidades para que a gente pudesse estar sempre pautando a demanda. Isso ocorria através de telefone ou grêmios estudantis, com a visita das lideranças. A partir daí, fazíamos plenária dos grêmios estudantis, na sede da UMES. Era necessário portanto recursos humanos, mas os espaços físicos, de encontro, eram fundamentais para o desdobramento das atividades. Nesse período, nós tínhamos por volta de trinta grêmios, mas também havia a estratégia de escolher onde os militantes iam estudar, escolas que entendíamos ser centrais. Cabia também saber quem eram os diretores, pois eles eram parceiros. O protesto contra o aumento da passagem aparece, nesse contexto, não somente como uma escolha das organizações do movimento estudantil, mas também como uma necessidade de sobrevivência na disputa no interior das entidades. Diante da força da organização do movimento nas escolas públicas (como disse o entrevistado 3, as entidades direcionavam a matrícula de suas principais lideranças para as escolas de maior porte da cidade), as entidades eram cobradas para responder aos reajustes em um contexto crítico da economia e também em função do espaço estratégico de atuação das lideranças entidades: as escolas públicas. Além disso, a organização dos protestos contava com uma estrutura profissional na retaguarda. Com o dinheiro da carteira de estudante, as entidades podiam pautar com melhor suas agendas de mobilização. E o prestígio se evidencia na rede de informações que permitia às entidades se antecipar em relação ao poder público, segundo o ex- presidente da APES. Há uma relação direta entre o potencial político das entidades estudantis e a definição do repertório. A presença do grêmio estudantil na escola, a relação com a direção da instituição e a articulação prévia nos locais onde estudavam as principais lideranças do movimento secundarista foram fundamentais para a capacidade que os estudantes tiveram de interromper o fluxo de veículos nas três oportunidades que lançaram mão desse repertório. Já o DCE da UFRN, segundo o seu Coordenador Geral naquele ano, o entrevistado 1, tinha duas fontes principais de financiamento: a carteira de estudante e apoio da universidade com bolsistas e uma copiadora própria. Mas, na época da mobilização, a entidade estava sem recurso, o que limitava a inserção da entidade no repertório de mobilização dos protestos, como ele próprio reconhece: 45 Nesse ano, especificamente, o DCE mudou a sua política de carteira. Antes a entidade confeccionava uma carteira própria e decidiu implementar uma política de carteira nacional emitindo a carteira da UNE. Isso acabou sendo determinante na atuação do DCE nesses protestos porque o DCE ficou completamente sem recurso no período. Até o final da gestão não recebemos o recurso, então o DCE não tinha recursos materiais para fazer a mobilização no modelo mais tradicional, de ter um carro de som passando na universidade, distribuir panfletos e, além disso, nunca foi tradição da UFRN contratar ônibus para levar estudante de lá até os atos. A mobilização era mais eficaz realizada nos setores de aula, combinando um ponto de encontro e saindo de lá até o local do protesto. Sem recurso e sem uma tradição de movimento (ou, melhor, sem um contexto político que favorecesse essa mobilização dos estudantes universitários, como apareceria nos anos seguintes nos movimentos do Fora Micarla e da Revolta do Busão), o DCE se incorporava como ator político importante, pelo seu reconhecimento social e político, mas aparecia como coadjuvante na construção do repertório. A capacidade de mobilização de pessoas e a capacidade de construção do material dos protestos definia a hierarquia política do movimento. Aparecia mais quem dispunha de mais recurso, segundo o entrevistado 1: Quem dispusesse de mais recursos, de mais capacidade de financiamento, teria um espaço maior. Por exemplo, quem paga o carro de som é, às vezes, quem decide quem tem acesso ao microfone. Acontecia muito isso. Quem tinha mais capacidade de mobilização de massa e financeira tinha maior ascendência sobre os movimentos. Passei tantos anos fazendo isso que poderia fazer novamente agora: se precisávamos de panfleto, tirávamos uma comissão para redigir e outra para ver quem financiar o panfleto. Havia também um grupo de dirigentes destacados exclusivamente para o transporte, para levar os estudantes das escolas mais distantes até o ponto de encontro da manifestação. Era preciso também uma comissão que ia visitar sindicatos, partidos, movimentos sociais para financiar o movimento. Sobre o diálogo entre as entidades e a construção dos protestos, o entrevistado 1 afirma: Reuniam-se os dirigentes das principais entidades e organizações, definia-se uma pauta, definia-se o alvo político – no caso o SETURN ou a prefeitura –, alinhava- se os pontos essenciais do discurso. A questão central era essa. O que inclusive pesava na ascendência de cada corrente sobre a direção dos protestos. (entrevistado 1) A escolha do repertório de mobilização era construído pelas próprias lideranças, segundo a fala do entrevistado 1, assim como se nota a importância da construção dos atos a partir das lideranças mais experientes do movimento. O entrevistado 3 descreve a estratégia adotada como “uso progressivo da força política” e a importância dos dirigentes 46 e de uma linha de telefone fixa para a mobilização da rede do movimento estudantil secundarista: Nós tínhamos um cardápio do uso progressivo da força política. Começava com um pedido de reunião, se o pedido fosse atendido, nós íamos à reunião, levar nossas reivindicações, dizer o porquê de não querer aquilo. Isso como medida de contenção. Se algo já houvesse acontecido, nós fazíamos protesto. Dependia muito do clima político para definição do que fazer. O grande protesto tinha o objetivo de chamar a atenção da sociedade, de mostrar ao prefeito de que a opinião pública está atenta. A própria mídia pauta o movimento a partir de grandes eventos. Nós definíamos o que fazer na nossa rede de dirigentes das entidades, a militância mais próxima e os grêmios estudantis. Chamávamos até uma reunião emergencial de grêmios estudantis, até porque na época a mobilização era bem corpo a corpo mesmo. Havia uma linha fixa de telefone disponível e contatos de presidentes de grêmios estudantis. Chamávamos uma reunião, organizávamos uma plenária e daí as decisões eram tomadas. Portanto, apesar do contexto amplamente desfavorável, com os espaços de poder e de mídia fechados à causa dos estudantes, a organização prévia do movimento em redes de grêmios estudantis foi a principal forma de mobilizar os estudantes. Os recursos financeiros eram pré-condição para disseminar os protestos com maior número de estudantes, mas o modo de organização do movimento estudantil secundarista permitia fazer atos com menor número, dada a possibilidade de fechar vias importantes da cidade através dos grêmios estudantis de escolas centrais da cidade. Esses grêmios conseguiam existir e se articular graças às condições materiais da UMES, que tinha sede, telefone e força institucional para distribuir entre as escolas futuros líderes dos grêmios, direcionando-os de maneira articulada e estratégica para estudar em escolas maiores e mais importantes. Em um contexto organizativo em que quem pode pagar pelo ato político e mobilizar a base social tem visibilidade e define a participação dos demais nos protestos, a UMES e APES foram as entidades com maior visibilidade durante o movimento contra o aumento da passagem. E dada a visibilidade desses protestos e sua capacidade de reunir estudantes, o repertório tornava-se consensual mesmo para o caso do DCE da UFRN que justificava sua participação tímida com base na incapacidade de mobilizar estrutura e estudante no mesmo nível da UMES e da APES. Em síntese, pode-se afirmar que: • Em relação ao contexto político, havia grande dificuldade de dar início aos movimentos de protesto contra o prefeito Carlos Eduardo Alves, do PSB. A administração havia sido reeleita recentemente e os movimentos puderam sentir a 47 diferença de lutar com e contra o prefeito, pois poucos meses antes haviam encontrado espaços no legislativo municipal e na mídia local para a defesa do veto do prefeito ao Projeto de Lei do vereador Pio Marinheiro. • Em relação ao contexto organizativo, as entidades estudantis UMES e APES, detinham importante capacidade de ação através dos recursos oriundos da carteira de estudante. E a partir de repertórios dependentes da capacidade de mobilização de recursos, criaram condições para, em meio a um contexto desfavorável politicamente, dar início às mobilizações contra o aumento da passagem de ônibus. Os seus dois principais repertórios, isto é, as passeatas e os bloqueios de rua, demandavam: ônibus, carros de som e capacidade de liderança e mobilização em escolas centrais, no primeiro caso; e o direcionamento estratégico da matrícula de lideranças em escolas estratégicas, apoiadas por recursos formais e informais (bom relacionamento com diretores). • Ainda em relação ao contexto organizativo, as entidades promoviam as manifestações de maneira centralizada e verticalizada, pois toda a construção intelectual e material dos atos era feita através da própria rede ligada às entidades do movimento estudantil, como as lideranças da UMES, da APES e dos grêmios estudantis vinculados a ambas, além de representantes universitários, especialmente do DCE da UFRN. • A definição da liderança dos protestos era subordinada à definição de quem pagava pelos materiais utilizados para mobilização das manifestações. Então, hierarquizava-se o controle do movimento pela sua estruturação material. 4.2 Primeira fase: Caça aos Vampiros do Transporte Público (21 de abril a 28 de abril de 2005) O movimento social “Caça aos vampiros empresários de transporte” foi organizado por entidades estudantis dos estudantes secundaristas e universitários, no mês de abril, como reação ao reajuste pleiteado e concedido para a tarifa de transporte público de Natal, que foi, na época, de R$ 1,30 para R$ 1,45. A reivindicação do reajuste foi noticiada pela imprensa, em março: 48 A tarifa de transporte urbano da capital poderá passar por um reajuste. Esse é o pleito dos empresários do setor que além de defenderem um aumento ainda querem redução nas alíquotas dos impostos. (…) A secretária municipal de Transporte e Trânsito Urbano, Elequicina Santos, negou que tenha recebido algum documento do SETURN. “Recebi uma solicitação de reunião. Mas ainda não está marcada”, disse. Elequicina Santos considerou que para um aumento de tarifa é necessário uma ampla discussão. “Precisa de muita análise, uma discussão no Conselho de Usuário”, completou.5 Na época os empresários questionaram os altos impostos pagos pelo sistema de transporte, como os 17% de Imposto de Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) e 5% de Imposto Sobre Serviços (ISS), alegando ainda os altos custos representados pelos falsos estudantes, isto é, pessoas que estariam utilizando o sistema de transporte sem ser matriculado no ensino regular. Antecipando-se à possibilidade de reajuste tarifário, os estudantes natalenses foram às ruas protestar na última quinzena de abril de 2005. No movimento intitulado de “Caça aos vampiros empresários de transportes”, os líderes estudantis responsabilizaram os empresários e os escolheram como alvo de sua contestação, em especial no sentido simbólico (simulando a queima de um ônibus e marchando rumo à sede do sindicato das empresas), no protesto realizado em 21 de abril: Os estudantes entraram na luta contra o aumento da tarifa de ônibus em Natal. E mostraram que estão dispostos a endurecer para o lado dos empresários. No ápice da manifestação realizada ao final da manhã de ontem, em frente ao prédio do Sindicato das Empresas Urbanas de Transportes de Passageiros (Seturn), os manifestantes atearam fogo numa miniatura de ônibus. E comunicaram que não vão parar no ato simbólico. Eles garantiram que o tamanho da réplica será aumentado a cada semana, até chegarem a um ônibus de verdade. Os manifestantes prometeram que durante todo o mês de maio vão parar o trânsito em diversas vias da cidade. Um dos primeiros pontos é a ponte de Igapó. (…) A manifestação marcou o lançamento do movimento “Caça aos vampiros empresários de transporte”, encabeçado pelo DCE da UFRN em conjunto com o Grêmio do Cefet. Dentro desse espírito, os participantes levaram cruzes e estacas. Teve até quem prendesse alhos à roupa. (…)6 A matéria do Diário de Natal destacou o repertório escolhido pelo movimento, que percorreu cerca de 5 quilômetros por vias da cidade, entre o Cefet-RN (hoje IFRN) e a sede do Seturn, na Ribeira, além do aspecto simbólico escolhido pelo movimento social intitulado “Caça aos vampiros empresários de transporte”, com os estudantes carregando cruzes e estacas nas mãos (como afirmado na matéria da Tribuna do Norte) e, através de faixas, buscando sensibilizar a sociedade durante a caminhada até o destino final do percurso: 5 “Empresários pleiteiam aumento”. (Tribuna do Norte, p. 13, 24 de março de 2005). 6 “Estudantes repudiam reajuste”. (Tribuna do Norte, p. 1, 21 de abril de 2005). 49 Cerca de 900 estudantes percorreram as principais vias de Natal – no trajeto entre o Cefet-RN e o Seturn, na Ribeira – para protestar contra aumentos na tarifa do transporte público da capital e o rumor de que os empresários cogitavam a redução do número de passes estudantis por mês de 120 para 60. Gritando palavras de ordem, com faixas e cruzes nas mãos, os estudantes pararam o trânsito. A manifestação foi organizada pelo DCE da UFRN, DCE e grêmio estudantil do Cefet-RN, UNE e UBES. (…)7 Os protestos não surtiram o efeito esperado pelo movimento, já que, no dia 26 de abril de 2005, conforme noticiado pelo jornal Diário de Natal, a “Tarifa de ônibus fica em R$ 1,45”. A matéria diz: A secretária municipal de Transporte e Trânsito Urbano, Elequicina dos Santos, anunciou ontem o novo valor da tarifa de ônibus de Natal, que passará de R$ 1,30 para R$ 1,45, um reajuste de 11,5%. Os empresários do setor – segundo a secretária – não ficaram satisfeitos com o reajuste. “Eles apresentaram o valor de R$ 1,72, mas eu não poderia aceitar um valor que a população não pudesse pagar”, afirmou Elequicina. A STTU ainda não definiu a data da mudança no preço da tarifa.8 Figura 1: Capa da Tribuna do Norte do dia 26 de abril de 2005. Fonte: Tribuna do Norte, Natal, ano 54, nº 27 7 “Estudantes protestam para manter tarifa de ônibus”. (Diário de Natal, p. 5, 21 de abril de 2005). 8 “Tarifa de ônibus fica em R$ 1,45”. (Diário de Natal, p. 7, 26 de abril de 2005). 50 Sob a expectativa do reajuste da passagem, os estudantes fizeram novo protesto, um dia antes do anúncio da secretária da STTU. Diferentemente do protesto do dia 21 de abril, em que os estudantes percorreram vários quilômetros até chegar no Seturn, no movimento do dia 26 de abril, o protesto interditou a avenida Rio Branco, no centro da capital, mobilizando 300 estudantes e interrompendo o fluxo de veículos no local: Cerca de 300 estudantes interditaram a avenida Rio Branco, ontem à tarde, por cerca de 50 minutos, causando um engarrafamento que se prolongou do início da via até o viaduto do Baldo. A ação dos estudantes foi um protesto contra o aumento das passagens de ônibus, que até ontem estavam previstas para serem elevadas de R$ 1,30 para R$ 1,50. A manifestação contou principalmente com alunos da Escola Estadual Winston Churchill e foi organizada pelas entidades estudantis UMES, APES e UBES. Os estudantes fecharam o acesso da Rio Branco, em frente ao Winston Churchill, por volta das 15h30 e impediram que qualquer veículo seguisse o percurso. (…) “Somos contra esse aumento porque ele não é justificável, principalmente quando sabemos que os ônibus não rodam pela madrugada e não atendem toda a população”, diz a presidente da UMES, Gabriela Terto.9 Em diversos trechos da nota de convocação para o protesto do dia 26, assinada pela UMES, APES, UBES, Grêmios Estudantis, UNE e DCE da UFRN, as entidades estudantis responsabilizam os empresários pelo aumento: “Como sempre, a MÁFIA DOS TUBARÕES diz que é preciso aumentar a passagem por causa das despesas. É mentira”. Em outra passagem, reclamam da qualidade dos ônibus no município: “(…) o que se vê, como sempre, é o descaso total com trabalhadores, jovens e idosos espremidos como sardinhas em lata. O nome do ônibus pequeno deveria ser ESPREMIDINHO”. Em relação à prefeitura de Natal, que é quem autoriza o aumento da passagem, a nota intitulada “Fora SETURN R$ 1,45 é roubo” menciona que as entidades buscarão providências junto ao chefe do executivo. As duas reivindicações mencionadas pelas entidades são: “Pela licitação do transporte já” e “Não ao aumento para R$ 1,45”. 9 “Estudantes fecham a Av. Rio Branco”. (Diário de Natal, p. 7, 26 de abril de 2005). 51 Figura 2: Panfleto das entidades para os protestos do dia 26 de abril Fonte: Acervo da UMES Com a concessão do reajuste tarifário no dia 27 de abril, as entidades estudantis redirecionaram o alvo (até então haviam concentrado seus ataques contra o SETURN), para a gestão municipal, em especial mirando a secretária de Transporte e Trânsito Urbano, Elequicina dos Santos. Uma nova manifestação foi marcada no dia 28 de abril, interrompendo o tráfego de veículos em um dos principais cruzamentos da capital, o da avenida Bernardo Vieira com a avenida Salgado Filho e a imprensa destacou a tentativa dos estudantes de chamar a atenção para a causa defendida: Estudantes insatisfeitos com a elevação no preço da passagem de ônibus interditaram ontem o cruzamento das avenidas Bernardo Vieira com Salgado Filho. O protesto durou meia hora e foi considerado um sucesso pelos representantes de entidades estudantis que coordenaram o ato. As queixas e reivindicações dos estudantes permanecem: “Qualquer aumento é roubo” e é preciso maior transparência na definição do valor. O estudante Altanir Morais, da APES, disse que a manifestação foi um sucesso. “O nosso objetivo foi chamar a atenção e conseguimos”. (…)10 O Diário de Natal destacou a participação de 200 estudantes e o fato de que o protesto ocorreu no dia da inauguração do Midway Mall, um dos principais centros comerciais fechados do município, e o grande congestionamento produzido pelo protesto e os conflitos produzidos pelo trancamento integral do cruzamento: 10 “Estudantes depredam Setur e STTU”. (Diário de Natal, p. 5, 29 de abril de 2005). 52 Cerca de 200 estudantes interditaram o principal cruzamento da cidade, ontem à tarde, por 30 minutos, causando transtorno aos motoristas que passavam nas imediações do Midway Mall em pleno dia de inauguração. Antes mesmo de o movimento ter início, por volta das 16h, a avenida Senador Salgado Filho já apresentava um longo congestionamento, principalmente no sentido Centro – Zona Sul, devido ao grande fluxo de pessoas visitando o novo shopping. Quando a manifestação se aproximava do fim, depois de cerca de 30 minutos, alguns motoristas estavam sem paciência e ameaçavam passar por cima dos estudantes que seguravam faixas de protesto. Um senhor que dirigia um carro modelo Vectra de cor preto chegou a avançar sobre um manifestante, mas logo outros chegaram e subiram no capô do carro, impedindo que ele prosseguisse. Os poucos policiais militares presentes no protesto de ontem nada puderam fazer. Ficaram de braços cruzados enquanto o principal cruzamento da cidade estava interrompido no dia da inauguração de um shopping. O cruzamento só foi liberado depois de 34 minutos, por vontade própria dos estudantes, que ameaçam retomar o movimento de protesto hoje, nas ruas do Centro da Cidade.11 Observa-se que a estratégia adotada pelo movimento variou no tempo e no espaço nas três oportunidades em que adotaram o repertório de mobilização nas principais vias de Natal. Na primeira oportunidade, marcharam até a sede do Seturn, identificando-o como seu principal adversário e evidenciando uma abordagem de forte conotação simbólica, associando o sistema de transporte à avidez por lucros, afirmando que o Seturn sugaria o dinheiro da população sem o menor controle por parte do poder público. A argumentação, portanto, passa por transmitir a ideia de baixa transparência do sistema de transporte (o que o movimento chama de “caixa-preta”), que esconderia lucros altos apesar da baixa qualidade dos ônibus. Esse argumento é reforçado por aspectos simbólicos do protesto: associação à figura do vampiro, sugando a população. O movimento social aparece como aquele que extirpará esse mal, apropriando-se, ainda na continuação da metáfora, das estacas, cruzes e alhos. Fora da metáfora, o movimento busca visibilidade da sociedade, apostando nas principais avenidas de Natal e causando transtornos consideráveis em virtude do fluxo de pessoas e carros nos horários em que os protestos são organizados. Na segunda e na terceira oportunidade, o movimento desvia o seu foco dos empresários para a construção da sua visibilidade, comunicando à sociedade o que considera uma situação de injustiça e, ao criar paralisações em espaços vitais da cidade, atrair a atenção do poder público para a questão. 4.3 Segunda fase: Temporada de Caça às Bruxas (29 de abril a 12 de maio) 11 “Estudantes depredam Setur e STTU”. (Diário de Natal, p. 5, 29 de abril de 2005). 53 Após as manifestações do dia 28 de abril, os estudantes retornaram ao Seturn, passando também pela STTU no dia 29 de abril. Os estudantes partiram em passeata da avenida Rio Branco, em um percurso de 1,5 quilômetro. A diferença dessa mobilização para as anteriores foi a presença de um grupo estudantil hostil às entidades que até então estavam à frente dos protestos, o que resultou em conflito entre ambos: As entidades estudantis de Natal realizaram mais uma manifestação na tarde de ontem contra o aumento das passagens de ônibus para R$ 1,45. Porém, desta vez, houve discordância até entre as representações de estudantes, causando um conflito diante da Prefeitura. O movimento formado pelo PFL Jovem e Cerns, que havia chegado primeiro à sede do poder municipal, não conseguiu se entender com a Umes, Apes e DCEs de diversas universidades. Estes últimos acusaram os primeiros de serem “bancados” pelo Seturn. Vendo que não conseguiriam entrar na Prefeitura, a APES, UMES e DCEs resolveram descer para a Ribeira e fazer uma manifestação diante da sede do Sindicato das Empresas de Transportes Urbanos de Natal (Seturn) e da Secretaria Municipal de Transporte e Trânsito Urbano (STTU). Quando tentaram passar diante do carro de som do outro grupo, começou uma briga entre os estudantes. Uma estudante foi ferida com um soco no peito e socorrida pela polícia para o Hospital Walfredo Gurgel (HWG). O pneu do trio elétrico da Umes também foi furado e eles tiveram que trocar de carro. Mas a confusão continuou no caminho até a Ribeira.12 Nesse 29 de abril, os movimentos estudantis que vinham organizando os protestos desde o dia 21 de abril assumiram uma nova postura, a de radicalização. Com a passeata chegando na STTU e no Seturn (os dois prédios eram vizinhos), o movimento estudantil tentou incendiar um carro da guarda municipal e em um ônibus (TRIBUNA DO NORTE, 2005d): (…) Os manifestantes da UMES e DCEs continuaram a caminhada em direção ao bairro da Ribeira. Na passagem em frente a sede do Sindicato das Empresas de Transportes Urbanos (SETURN) eles atiraram pedra no prédio. O destino final da caminhada era a Secretaria de Transporte e Trânsito Urbano (STTU), onde eles gritaram palavras de ordem e frases: “se a passagem aumentar, cabeças vão rolar, Elequicina vai dançar”. Os estudantes reivindicaram o congelamento da tarifa de transporte urbano. Mais pedras foram atiradas em um carro nas proximidades e o grupo tentou atear fogo em um carro da Guarda Municipal. Outro sinal de radicalismo, comum aos dois grupos de manifestantes, foi a presença de estudantes com os rostos cobertos por camisetas que picharam slogans – o mais uso: “passe livre” - nas laterais dos ônibus que passavam pelo local do protesto.13 Nota-se, nesta oportunidade, que o poder público municipal passa a ser o alvo direto dos manifestantes, pela primeira vez. E o adversário da vez é a secretária Elequicina Santos. Um mote que aparecerá mais tarde nas manifestações dos anos 2010 12 “Estudantes depredam Setur e STTU”. (Diário de Natal, p. 5, 29 de abril de 2005). 13 “Movimento de estudantes mostra sinais de radicalismo”. (Tribuna do Norte, p. 10, 29 de abril de 2005). 54 aparece nesse protesto de maneira muito tímida, o “passe livre”. Nos pronunciamentos dos líderes estudantis ou nos panfletos assinados pelas entidades, o passe livre não é uma reivindicação apresentada pela organização estudantil. Figura 3: Panfleto das entidades estudantis de convocação para o Caça às Bruxas. Fonte: Acervo da UMES Uma nova manifestação foi organizada no dia 6 de maio, com novo fechamento de vias, tal como já havia acontecido no cruzamento do Midway Mall e na avenida Rio Branco. Desta vez, o movimento estudantil interrompeu vários pontos da cidade simultaneamente: a Av. Salgado Filho (em frente ao Cefet), a Av. Fonseca e Silva (em frente a Escola Estadual Padre Miguelinho), a Av. Rio Branco (em frente a Escola Estadual Winston Churchill) e a Avenida Campos Sales (em frente a Escola Estadual Atheneu): Filas de carros e ônibus se formaram nas vias, porém o congestionamento não durou muito tempo. Cerca de uma hora depois, os manifestantes liberaram a passagem para o tráfego. Um grupo deles seguiu pelas ruas do Centro até a sede da Prefeitura de Natal. Na frente do prédio, os estudantes deram novo recado ao prefeito Carlos Eduardo Alves, dizendo que a paciência estava acabando e que a brincadeira ia chegar ao fim. “Os estudantes não têm muita paciência”, discursou 55 ao microfone um dos líderes dos manifestantes, que em coro chamaram a secretária de Transportes, Elequicina dos Santos, de bruxa e incompetente14. O panfleto assinado pelas entidades UMES, APES, UBES, UNE, DCE UFRN, DCE UnP, DCE FARN, Grêmios Estudantis é intitulado “Temporada de Caça às Bruxas” denuncia a secretária da STTU como a “presidente da casa da mãe Joana (STTU)”. Adotando como símbolo a secretária em cima de uma vassoura e ilustrada como bruxa, a nota denuncia os seguintes itens: a) passagem cara; b) ônibus lotados; c) ônibus sucateados; d) ônibus que nunca chega; e) falta de abrigos; e f) desrespeito com a sociedade. O movimento segue a tendência anterior de culpabilizar e responsabilizar a prefeitura, concentrando nela, e em especial na responsável pela pasta de transporte, o alvo do movimento social. Em vez de dar sequência à luta contra os vampiros do transporte público, portanto, o movimento ganha novo nome, como é possível observar na chamada da matéria sobre o protesto na Tribuna do Norte do dia 5 de maio: “Estudantes fazem o caça às bruxas para reduzir a tarifa”: A manifestação dos estudantes realizada ontem à tarde em frente a Prefeitura do Natal marcou o lançamento da “Temporada de caça às bruxas”. Esse é o início de uma série de ações que os estudantes prometem fazer ao longo do mês de maio para reivindicar a redução da tarifa de ônibus, a exoneração da secretária municipal de Transporte e Trânsito Urbano, Elequicina dos Santos, e a apresentação da planilha de custos das empresas de transportes. Durante o ato, os estudantes varreram as paredes da prefeitura e distribuíram entre os presentes e transeuntes panfletos sobre a Temporada de caça às bruxas que trazia a figura de uma bruxa com o rosto da secretária Elequicina dos Santos. O ato foi promovido pelo Grêmio e DCE do Cefet, DCE da UFRN, UNE, UBES, União Metropolitana dos Estudantes (Umes), Associação Potiguar dos Estudantes Secundaristas (Apes), com apoio dos estudantes da Escola Estadual Winston Churchill.15 No dia 12 de maio, os estudantes voltam a radicalizar, dessa vez na frente do prédio da Prefeitura de Natal. Repetindo repertórios anteriores, a mobilização estudantil reuniu estudantes de várias escolas públicas, no protesto que partiu do Baldo, no centro da capital, para a sede da Prefeitura, dando sequência à campanha “Temporada de Caça às Bruxas”, com conflito entre estudantes e a Guarda Municipal16: Em frente a sede do executivo, os estudantes vaiaram e até dançaram ao som de um rap. O protesto seguia de forma pacífica, até que os estudantes começaram a 14 “Estudantes voltam a parar o trânsito da cidade”. (Tribuna do Norte, p. 4, 06 de maio de 2005). 15 “Estudantes fazem o caça às bruxas para reduzir tarifa”. (Tribuna do Norte, p. 2, 5 de maio de 2005). 16 “Manifestação termina em pancadaria”. (Tribuna do Norte, p. 14, 12 de maio de 2005). 56 jogar ovos e pedras na fachada da prefeitura. A Guarda Municipal reagiu e acionou a Tropa de Choque da PM. Durante a confusão que se formou em seguida, três estudantes foram presos, entre eles o vice-presidente da Associação Potiguar dos Estudantes Secundaristas (Apes), Altanir Morais. Um policial militar foi atingido na testa por uma pedra e precisou ser atendido no Pronto Socorro do Clóvis Sarinho, sem gravidade. A matéria da Tribuna do Norte evidencia a articulação financeira disponibilizada pelas entidades estudantis para organização do protesto: Após a manifestação a maioria dos estudantes voltou para os bairros onde mora em ônibus fretados pela União Metropolitana dos Estudantes Secundaristas (Umes) e pela Associação Potiguar dos Estudantes Secundaristas (Apes). Foram fretados 30 ônibus, segundo diretores das duas entidades. Três minitrios e quatro carros de som também estavam presentes à manifestação, pagos pelas duas entidades. O custo com essa estrutura de apoio e transportes, segundo o presidente da Apes, Manassés Duarte, saiu da renda obtida com a venda da antecipada das carteiras de estudantes. Cada carteira foi vendida a R$ 8,00. Os ônibus tiveram um custo de R$ 4 mil (se foram realmente 30, como ele mesmo informou, o custo unitário foi de R$ 133,00, em média). Já os três minitrios e os quatro carros de som custaram juntos mil reais. Alguns dos carros de som foram usados somente para acompanhar as três passeatas que saíram das escolas até a chegada ao Canal do Baldo.17 Os protestos contra o aumento da passagem, intitulados de Caça aos Vampiros do Transporte e Temporada de Caça às Bruxas duraram um mês, no qual, em 6 oportunidades, os estudantes lançaram mão de dois repertórios clássicos dos movimentos estudantis: paralisação de vias movimentadas em horários de grande fluxo e marcha pela cidade. Em ambas as oportunidades, adequaram os repertórios para enquadrar criticamente a questão da tarifa, num primeiro momento, antes do reajuste tarifário, concentrando suas críticas aos empresários de transporte. No segundo momento, após o reajuste, o principal alvo do movimento foi a secretária da STTU, Elequicina Santos. A adequação do repertório envolveu a utilização de estacas, cruzes e alhos na associação dos empresários a “vampiros”, além do protesto em frente ao SETURN, em que um ônibus de brinquedo, com a marca de uma das empresas do sistema de transporte, foi queimado pelas lideranças estudantis. No caso do protesto contra Elequicina Santos, a associação à ideia de bruxa foi através de vassouras durante a caminhada até a prefeitura. 17 Tribuna do Norte, p. 14, 5 de maio de 2005. 57 4.4 Reatividade do movimento à questão tarifária O enquadramento com o qual o movimento estudantil buscou convencer a sociedade e mobilizar apoiadores foi denunciando aspectos qualitativos do sistema de transporte, como a ausência de pontualidade dos ônibus, o sucateamento e a lotação do sistema de ônibus. As pautas apresentadas pelo movimento estudantil são reativas, mas encontram na sua base social apoio e mobilização suficientes para sustentar 6 protestos significativos, todos com centenas de estudantes e cobertura midiática intensa, em um período de quatro semanas consecutivas. A tarifa de transporte público é uma pauta que, nos anos 2000, chamou a atenção da sociedade e do poder público. O entrevistado 3, ex-presidente da APES, destacou que o momento do reajuste era uma oportunidade ímpar para que as entidades pudessem colocar em prática uma agenda de mobilização e que também era esperado pelos próprios estudantes da base do movimento. Presidente do Grêmio Estudantil Djalma Maranhão em 2005, o entrevistado 2 afirma que os reajustes da passagem já eram esperados todo o primeiro semestre, mas que esgotadas as mobilizações, as entidades arrefeciam e não davam desdobramentos às ações iniciadas: Reconheço que essa era uma fragilidade: começávamos os movimentos, fazíamos a luta contra o aumento da passagem, e a partir dela, inclusive, renovávamos as lideranças das entidades, mas não havia uma continuidade nas discussões. Até entrava uma questão mais profunda do que meramente a tarifa, como a questão da licitação do transporte, mas sempre foi uma abordagem superficial do tema. Após o boom dos protestos, outras questões se tornavam prioritárias. (Entrevistado 2) Entrevistado 1, coordenador geral do DCE da UFRN em 2005, admite seu estranhamento com o fato dos movimentos não se ocuparem da questão do transporte com maior perenidade: Não apenas em Natal, mas em várias capitais do país, o movimento estudantil, as entidades sob a direção da UBES e da UNE, se dedicavam em algum momento à questão da tarifa e, pensando bem hoje, é realmente impressionante que não tivesse ocorrido um movimento concatenado para discutir a questão do transporte público. Do ponto de vista da organização nacional do movimento, não lembro de ter ocorrido nada nesse sentido. (Entrevistado 1) Apesar da ausência de um enquadramento interpretativo que conferisse um diagnóstico ao problema do transporte, apenas o reajuste da tarifa de ônibus, em momentos específicos da vida da cidade, já fornecia um contexto informal de abertura 58 para as manifestações, o que envolvia a cobrança às entidades estudantis na própria base do movimento, onde diversas lideranças da UMES e da APES mantinham relações orgânicas com a base. Além disso, a relação direta do estudante, que adquiria a carteira das entidades estudantis, levava a que os próprios estudantes cobrassem uma posição das lideranças do movimento. Era, portanto, um enquadramento de ordem motivacional, com o propósito de curto prazo de mobilização dos estudantes e que era reativado a cada novo aumento tarifário. CAPÍTULO 5 – A REVOLTA DO BUSÃO (2012) 5.1 Prepara uma avenida que a gente vai passar: política, organização e repertório do movimento em 2012 A Revolta do Busão ocorreu no último ano do mandato de Micarla de Sousa, do Partido Verde. Apresentadora de TV e filha do ex-senador Carlos Alberto, ela iniciou sua carreira política como vice-prefeita na chapa vencedora encabeçada por Carlos Eduardo Alves (PSB) nas eleições municipais de 2004. Rompida politicamente com o chefe do poder executivo, candidatou-se em 2006 à Deputada Estadual, sendo a sétima candidata mais bem votada, com 43.936 votos. Na eleição municipal de 2008, Micarla foi eleita prefeita logo no primeiro turno, com 193.195 votos, o equivalente a 50,48% do eleitorado. A candidata do PT, Fátima Bezerra, ficou na segunda posição, com 139.946 votos. A coligação de Micarla, “Natal Melhor”, foi composta, além do Partido Verde, pelos seguintes partidos: DEM, PP, PR, PMN e PTB. No palanque adversário à coligação “Natal Melhor” estavam, além da principal liderança do PT no Rio Grande do Norte (Fátima Bezerra), nomes expressivos da política estadual: Wilma de Faria (PSB), governadora; Garibaldi Alves (PDMB), senador e ex-governador; e o prefeito até então, Carlos Eduardo Alves (PSB). O então presidente, Luís Inácio Lula da Silva (PT) esteve em Natal para a campanha, participando do grande comício do dia 20 de setembro de 2008, na zona norte da cidade, dois dias antes do pleito que deu vitória a Micarla. No palanque da prefeita eleita, o principal nome era o do senador José Agripino (DEM). A bandeira mobilizadora da campanha eleitoral e da nova gestão eleita foi a do “choque de gestão”. Logo após ser eleita, em novembro de 2008, Micarla visitou Minas Gerais, onde se reuniu com o governador Aécio Neves (PSDB) para conhecer as medidas 59 utilizadas no estado para modernização da gestão pública18. Gerente da administração de Micarla de Sousa, João Faustino (PSDB), em março de 2009, enaltecia a base sólida do governo na Câmara Municipal (base de apoio formada por 17 dos 21 parlamentares) e delineava alguns aspectos da reforma administrativa do governo: criação de um quadro de gestores públicos municipais, criação de uma Secretaria de Governo para desenvolvimento da governança local em substituição ao clientelismo da política comunitária e a instituição do pregão eletrônico19. Contudo, já no final do primeiro ano de gestão, em entrevista à Tribuna do Norte, a prefeita reconheceu as dificuldades vividas pelo governo e responsabilizou a crise financeira mundial e a ausência de parcerias com outros órgãos da federação como culpados pela dificuldade de cumprir as promessas eleitorais20. A gestão de Micarla sofreu grandes dificuldades administrativas, a exemplo da grande rotatividade do seu secretariado. Em menos de dezesseis meses, a gestão pevista havia promovido dezesseis mudanças no primeiro escalão do seu secretariado21. Menos de dois anos após assumir a prefeitura de Natal, Micarla, que havia sido eleita com o apoio do DEM e em uma disputa virulenta com a candidata do PT, resolveu apoiar, no segundo turno do pleito presidencial de 2010, a candidatura de Dilma Rousseff (PT) na disputa com José Serra (PSDB). Esse fato levou ao rompimento político do senador José Agripino com a administração pevista sem que o PT se convencesse a apoiar a gestão de Micarla. Na ocasião, a deputada federal e principal liderança do Partido dos Trabalhadores no Rio Grande do Norte, Fátima Bezerra, afirmou que mesmo com o apoio no plano nacional, a divergência no plano local não seria minimizada22. Nesse momento, Micarla começava o seu calvário político que se iniciara pelas dificuldades administrativas sobre as quais se somavam as dificuldades políticas, pois a prefeita se isolava diante do abandono de seus antigos e mais importantes aliados. 18 Micarla conhece modelo de gestão do governo de Minas Acessado em 13 de abril de 2019. 19 Choque de gestão depende da reforma, afirma Faustino. Acessado em 13 de abril de 2019. 20 Micarla de Sousa: "parcerias com o governo não chegaram a se concretizar" . Acessado em 13 de abril de 2019. 21 Micarla anuncia sete secretários e não descarta novas mudanças . Acessado em 13 de abril de 2019. 22 Fátima Bezerra espera apoio de Micarla de Sousa a Dilma Rousseff. Acessado em 13 de abril de 2009. 60 No final do segundo ano de mandato, a prefeita tinha uma rejeição de 77,6%. Em dezembro de 2010, vinte e cinco secretários já haviam sido substituídos. Mirando todos os cenários possíveis, o governo municipal buscava uma guinada ideológica na gestão buscando partidos de esquerda, como o PCdoB e o secretário-chefe do Gabinete Civil, Kalazans Bezerra, apostava em um ano de 2011 promissor com as mudanças insinuadas pela prefeitura23. Foi, contudo, o ano em que Micarla de Sousa chegou a índices inéditos de rejeição popular e o ano em que o movimento popular Fora Micarla conquistou os natalenses e criou o maior movimento de massas da história da cidade. O Fora Micarla ocorreu no mês de maio de 2011 e o seu ápice ocorreu no dia 25, com cerca de 2 mil manifestantes bloqueando o cruzamento das avenidas Senador Salgado Filho e Bernardo Vieira. Os manifestantes definiam os protestos como “descentralizados” e convocados via redes sociais, como Facebook e Twitter. Representantes do PT e do PDT estiveram presentes nesse protesto24. No dia primeiro de junho, uma nova mobilização percorreu a avenida Engenheiro Roberto Freire, até o bairro de Ponta Negra, na altura do Praia Shopping. Em sua maioria, os participantes eram estudantes universitários da UFRN, UERN e IFRN, mas também alunos de escolas públicas e privadas. Poucos dias depois, em 7 de junho, o movimento ocupou a Câmara Municipal da cidade, permanecendo lá por 10 dias ininterruptos, no que ficou conhecido como “Acampamento Primavera Sem Borboleta”, em alusão ao apelido dado à prefeita antes de sua eleição: borboleta. O objetivo dos manifestantes era dar andamento à Comissão Parlamentar de Inquérito (CEI) sobre contratos de aluguéis da prefeitura. Só se retiraram da Câmara Municipal após um acordo assinado entre o movimento, os 21 vereadores da cidade, Ministério Público e a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), em que os parlamentares se comprometeram a atender duas reivindicações do movimento: a criação de uma CEI para investigar contratos administrativos da prefeitura e a realização de uma audiência pública para discussão do caos administrativo em que se encontrava o município, de acordo com o movimento25. 23 Prefeita do PV em Natal bate recorde de rejeição Acessado em 13 de abril de 2009. 24 Duas mil pessoas fazem protesto pedindo saída de Micarla e Rosalba Acessado em 13 de abril de 2009. 25 Natal (RN) vive dias de Indignad@s Acessado em 13 de abril de 2019. 61 A Revista Carta Capital26 traçou um perfil dos manifestantes presentes nessa ocupação, descrevendo os ativistas como jovens entre 17 e 35 anos, familiarizados com a internet, de onde partiram as principais convocatórias para os protestos, e participantes do movimento estudantil, sindicalistas, trabalhadores, militantes partidários e integrantes da sociedade civil organizada. Alguns dos entrevistados afirmaram que o pontapé desses protestos foi a luta pelo Passe Livre no ano de 2006. Outra marca do movimento foi a pluralidade e a diversidade em sua composição, indo de organizações de ciclistas ao movimento de trabalhadores. Esse é o contexto político sobre o qual se move as mobilizações da Revolta do Busão de 2012. As manifestações contra o aumento da passagem de ônibus se desenvolveram em um contexto de imensa insatisfação social contra a prefeita Micarla de Sousa. Poucos meses antes dos protestos, em dezembro de 2011, dos 11 votos necessários para o afastamento da prefeita pela Câmara Municipal, 8 vereadores se manifestaram a favor, 7 votaram contra e cinco se abstiveram, mostrando a fragilidade da base parlamentar, apesar de a prefeita se manter no cargo27. Nesse ambiente de esvaziamento da gestão, dificuldade de atrair alianças e com adversários locais significativos, a administração municipal alcançava índices de rejeição inéditos na histórica democrática do país. Em janeiro de 2012, a rejeição à administração municipal alcançava patamares inacreditáveis de 90% e apenas 5,6% de aprovação entre a população da cidade28. Em relação ao contexto organizativo do movimento estudantil, segundo o entrevistado 4, O movimento secundarista vivia um refluxo. Na década anterior havia mais lastro, recurso na UMES e na APES. Só que nos anos 2010, a característica das entidades era mais de voluntarismo, não havia uma organização complexa e sofisticada. E foi um período interessante porque, sem recurso, as entidades foram buscando se moldar ao modo de ação do Movimento Passe Livre (MPL), como o uso do megafone, do “gogó”. Não havia mais aquelas grandes estruturas que nós tínhamos na década anterior. Não havia uma estruturação, uma organização financeira das entidades. (Entrevistado 4) 26 "Fora Micarla". Movimento nasceu e cresceu nas redes sociais Acessado em 13 de abril de 2019. 27 CMN REJEITA PEDIDO DE IMPEACHMENT DE MICARLA Acessado em 13 de abril de 2019. 28 Prefeita de Natal tem 90% de reprovação Acessado em 13 de abril de 2019. 62 No ano de 2012, as organizações do movimento estudantil estavam desarticuladas e eram apenas uma sombra do que foram as suas organizações nos protestos de 2005. Uma organização aparece com relevância nas entrevistas e nas matérias sobre a Revolta do Busão: o Movimento Passe Livre (MPL). O MPL tem como “certidão de nascimento” a Revolta do Buzu, movimento de protesto contra o aumento da passagem de ônibus na cidade de Salvador, no ano de 2003. Segundo Zibechi (2013), o movimento se caracterizou por um ativismo radical dos estudantes no qual as associações tradicionais do movimento estudantil não tiveram papel destacado nas mobilizações, tendo sido rechaçadas pelas massas que teriam tomado suas decisões sem mediação de qualquer organização. Dowbor e Szwako (2013) mostram que essa aparente espontaneidade de rechaço às organizações tradicionais do movimento estudantil foi articulada e forjada muito antes da Revolta do Buzu por meio do fórum de grêmios estudantis de Salvador. Nos protestos de Salvador, inclusive, (…) os “mecanismos de participação no movimento estudantil definiram-se […] de uma forma ad hoc e improvisada […]: as múltiplas assembleias nos bloqueios, o localismo de algumas reuniões, a recusa às entidades gerais, a deslegitimação de comissões” foram alguns desses mecanismos. O MPL nutriu-se internamente da “Revolta do Buzu [que] exigia, na prática, nas ruas, um afastamento dos modelos hierarquizados; expunha outra maneira, ainda que embrionária, de organização”. Na sua prática organizacional, ser horizontal significa que o MPL resiste à separação base/líderes por meio da instauração, por exemplo, de grupos de trabalho e de resoluções tomadas por consenso, em vez de votações, na maior parte de suas deliberações. (DOWBOR e SZWAKO, 2013, p. 47-8) A Revolta da Catraca, em Florianópolis, nos anos de 2004 e 2005, também contribuiu para a formação do MPL. Neste caso, o trabalhado de bastidores também foi intenso, a exemplo do processo de formação de novas lideranças, conduzido nas instituições de ensino da capital catarinense, a partir do documentário do cineasta argentino Carlos Pronzato, sobre os protestos de Salvador. O objetivo era formar novos coletivos que discutissem o tema. A campanha pelo passe livre em Florianópolis nasceu ainda nos anos 2000, portanto levou 4 anos de maturação para que se tornasse politicamente relevante nos protestos que viriam a marcar o movimento social da cidade. Em 2005, o MPL se organizou como movimento no Fórum Social Mundial (FSM) realizado em Porto Alegre. Nesse ano, delegação de 16 estados, totalizando 250 militantes, com média de idade entre 15 e 25 anos, participava da fundação do novo movimento. Em plenária nacional, aprovam os princípios do MPL: autonomia, independência e apartidarismo. Rechaçam também, através de suas resoluções, as entidades que julgam “burocráticas”, além dos partidos políticos. No mesmo ano, realizam 63 seu 2o encontro, reafirmando os princípios de horizontalidade, independência e modo de organização por meio de federação. No 3o encontro, em 2006, o MPL consolida a ideia de passe livre não apenas para estudantes, mas para toda a população, em consonância com o seu encontro de fundação no qual se comprometia com reivindicações de caráter estratégico e não somente com base nas questões estudantis. A importância desse 3o encontro nacional é que a partir dele o movimento criou grupos de trabalho na área de comunicação, organização e apoio jurídico, além de estudos na área de transporte. Lúcio Gregori, que foi secretário de transporte da gestão de Luiza Erundina, em São Paulo, presta consultoria ao movimento. A partir de 2006 e até 2010, o movimento vive um refluxo, sem que os grandes movimentos de Florianópolis e de Salvador voltem a se repetir, momento em que as principais lideranças do MPL se voltam a um processo interno de reflexão sobre os fatores que levaram ao descenso do movimento e constroem viradas importantes na sua atuação. Uma das mais importantes foi o aprofundamento das discussões sobre transporte e a transição da luta pelo passe para a luta em prol da tarifa zero. A segunda virada importante foi, no contexto do processo de desapropriações para os megaeventos e a Copa do Mundo, a intensificação do trabalho de base na periferia. Em relação à Tarifa Zero, (…) El MPL sostiene que la Tarifa Zero es una lucha de todos y cambia todo, un medio de subvertir el orden de los transportes y toda la estructura de la ciudad. La movilidad urbana es puesta en cuestión por la segregación espacial, social, racial y de género, a tal punto que las personas que viven en las ciudades satélites de Brasilia y trabajan en el Plan Piloto (la ciudad planificada y central), sienten que a medida que avanza la noche se les impone “una especie de toque de queda en la ciudad, que afecta a aquellos que dependen de transporte colectivo” (Saraiva, 2010: 99). (ZIBECHI, 2013, p. 30) Portanto, o MPL se destaca no interior do movimento estudantil como uma organização adepta de instrumentos horizontais e abertos de discussão, como ocorreu no processo de Salvador, em contraposição ao modelo hierarquizado e centralizado das entidades estudantis tradicionais e em prol de um formato que não separa o líder da base. O movimento se constitui, inclusive, em oposição a este modelo, já em suas resoluções. Além disso, ao se declarar autônomo em relação às organizações e partidos, o movimento adequa seu repertório a um modelo menos exigente de recursos, como o exemplo do megafone, substituindo o carro de som que, além de mais caro, concede a 64 voz dos protestos a pessoas pré-definidas (como na entrevista com o entrevistado 1, nos protestos de 2005 a fala pertencia a quem pagava pelos materiais usados nos protestos). Em relação à necessidade de recurso, o entrevistado 5, membro do MPL entre os anos de 2010 a 2014, destaca que o MPL não demandava recursos para suas atividades: A lógica que deu início ao movimento era a lógica de crítica à burocracia, ao engessamento das entidades, que faziam suas atividades com distanciamento da base, dos estudantes. Então, pra chegar aos estudantes, pra realmente ser capaz de falar a voz da base, que eram estudantes que muitas vezes não tinham dinheiro sequer pra garantir a passagem de ônibus durante todos os dias do mês, não dava pra fazer movimento distante da realidade deles, né? A falta de financiamento podia ser uma fragilidade, mas ao mesmo tempo era uma espécie de “força moral” nossa, porque não iludíamos os estudantes com grandes estruturas, o que nosso movimento demandava era o convencimento político, nossa arma era a persuasão pelo argumento. Como diz Tilly (1978), o repertório representa um pequeno leque de maneiras de fazer política. O movimento estudantil tinha um repertório bastante conhecido entre as lideranças, com regras e procedimentos bastante disseminados até o ano de 2005. Como diz o entrevistado 2: O movimento contra o aumento das passagens em 2005 seguiu uma tática que a gente já seguia frequentemente nos anos anteriores que era a organização de plenárias prévias para discutir algumas estratégias de mobilização, essas também conhecidas por todos. A tarifa da passagem de ônibus era um momento esperado anualmente para grandes mobilizações. Além das outras que já se faziam, como as jornadas de lutas, eram esses os momentos em que apareciam novas lideranças. (Entrevistado 2) Contudo, esse repertório não podia ser utilizado pelo movimento estudantil no ano de 2013 porque as condições estruturais das entidades e o seu “voluntarismo”, como afirmou o entrevistado 4, inviabilizava a adoção do repertório. Segundo o entrevistado 5, Uma parte da nossa militância tinha passado pelas entidades do movimento estudantil anteriormente, então sabíamos que a militância tradicional vinha desgastada, na nossa opinião politicamente e do ponto de vista organizacional. Enquanto o MPL crescia e conseguia envolver representantes de partidos e de entidades sob nossa pauta. O fato de haver mais desentendimentos entre eles pelas circunstâncias políticas nacionais, exemplo do PT e do PSTU, também contribuiu para que houvesse mais diálogo conosco do que entre seus representantes em entidades. (Entrevistado 5) O entrevistado 2 concorda que o diálogo no interior do movimento era escasso na ocasião da Revolta do Busão. Embora as plenárias de organização do movimento tenham ocorrido na UFRN, o DCE não teve nenhum papel enquanto organização, apesar da atuação individualizada dos seus dirigentes: 65 A direção do movimento Revolta do Busão, em 2012, se deu por fora das entidades tradicionais. Os personagens do DCE que atuavam nessa luta eram personagens que atuavam mais com seus próprios nomes ou como se fossem forças políticas e não como DCE. Então atuava o PT, atuava a UJS, o PSTU. A coordenação do DCE atuava, então, não de maneira orgânica e articulada. Olhando para as plenárias, havia a presença destacada da Danyelle Guedes, que viria a ser coordenadora geral do DCE, mas era muito mais uma figura de popularidade do que uma figura legitimada por um pleito eleitoral. Foi isso que me fez perceber que estávamos ali diante de uma transição, que poderia levar a um novo perfil de movimento ou então poderia ser apenas uma onda passageira. (Entrevistado 2) Ele corrobora com fala sobre o “voluntarismo”, sobre o qual falou o entrevistado 4, que acrescentou: Não houve o que ocorria no passado, passe estudantil para as lideranças participarem. Não, era algo muito mais militante e estava muito mais associado à identidade do dirigente da entidade de se fazer presente nessas plenárias, nas manifestações. (Entrevistado 4) De maneira geral, a respeito do contexto político, organizativo e repertório do movimento, as entrevistas demonstram os seguintes aspectos: • Em relação ao contexto político do movimento da Revolta do Busão, ele ocorre em um ambiente de grande fragilidade política e administrativa da prefeitura. Tanto a administração era reprovada pela maioria dos natalenses como também era uma gestão sem apoio e criticada pelas grandes estruturas políticas dos espectros ideológicos mais à direita e mais à esquerda da cidade. • Havia um clima político favorável a manifestações na cidade, com mobilizações que podiam ser facilmente ativadas via redes sociais como Facebook e Twitter. • O outro aspecto político importante, herança do movimento Fora Micarla, de 2011, foi a participação plural de organizações e de indivíduos nos protestos, dificultando ou mesmo limitando o monopólio por forças políticas. Os protestos da Revolta do Busão aparecem como uma continuidade da luta contra a prefeita, mobilizando os mesmos atores que estiveram nas mobilizações do ano anterior. • Do ponto de vista organizativo, as entidades estudantis tradicionais estavam atravessando um período de escassez de recursos e sua atuação nos movimentos da Revolta do Busão não era decorrente de uma atuação planejada e orgânica, mas dispersa e voluntarista. Mesmo na UFRN, onde as plenárias de organização dos protestos eram realizadas, o DCE não buscou se organizar para uma atuação 66 em nome da entidade, então os próprios coordenadores atuaram de maneira individual, representando a si ou suas próprias organizações. • Ainda em relação à organização do movimento, os principais espaços de deliberação eram abertos e não exclusivos, podendo qualquer um ter direito à voz e participar das decisões. • Em um contexto em que as entidades estudantis não tinham recursos e culpam a desestruturação material como um limitador de sua atuação, a narrativa do MPL é a de ser um movimento que independe de recursos para se organizar e existir. 5.2 A Revolta do Busão (Agosto e Setembro de 2012) A Revolta do Busão foi um movimento iniciado a partir da decisão da prefeitura de Natal de reajustar o valor da tarifa de ônibus de R$ 2,20 para R$ 2,40. O aumento foi anunciado no dia 28 de agosto e despertou a reação especialmente dos estudantes, que se mobilizaram para protestar a partir da parada do circular do Via Direta, na UFRN. O primeiro protesto ocorreu já no dia 29 de agosto e o percurso dos estudantes envolvia, como destino final, o cruzamento das Avenidas Bernardo Vieira e Salgado Filho. Houve conflito com as forças policiais e o reconhecimento, por parte de uma coordenadora do DCE da UFRN, de que houve exageros por parte de pessoas do movimento que tentaram incendiar um ônibus, mas divergências de que a agressividade policial seria uma reação aos exageros29. O protesto foi divulgado e mobilizado através das redes sociais e não envolveu mobilização de estruturas para a sua organização. Não houve ônibus saindo de pontos específicos da cidade e também não houve a contratação de carros de som para acompanhar a passeata. Nas demais atividades públicas do movimento, o cenário se repetiu. O único instrumento amplificador de voz utilizado pelos manifestantes foram megafones levados pelas próprias lideranças, sem que disso decorresse monopólio da voz que ecoava nas mobilizações. O segundo protesto ocorreu dois após o primeiro, mas com ponto de partida e horário diferentes. A manifestação ocorreu no Centro da cidade, à tarde, com início no Palácio Felipe Camarão, onde funciona a prefeitura, e desceu a avenida Rio Branco até o 29 Movimento "Revolta do Busão" protesta contra aumento da tarifa em Natal e entra em confronto com a polícia Acessado em 13 de abril de 2019 67 local onde funciona o Seturn, no bairro da Ribeira. Em seguida, o movimento seguiu até a avenida Senador Salgado Filho. Nesse protesto não houve confronto com a polícia. Os estudantes marcaram um terceiro protesto, para o dia 6 de setembro, agora rumo à Câmara Municipal, com o intuito de cobrar um posicionamento dos vereadores sobre o reajuste. Pressionado, o legislativo, de maneira inédita e através do Decreto Legislativo n. 37/2012, revogou o aumento tarifário, mantendo a tarifa no valor anterior, de R$ 2,20. Uma demonstração de força social e de prestígio do movimento Revolta do Busão foi a instalação de um telão no lado de fora da Câmara Municipal para que os estudantes pudessem assistir à sessão plenária ordinária que votou o Decreto Legislativo e o movimento ainda foi parabenizado pelos vereadores pelo enfrentamento ao aumento da tarifa de ônibus30. Após decisão da Câmara Municipal, o Seturn reagiu decidindo, de maneira unilateral, suspender o sistema de integração gratuita no transporte público de Natal a partir do dia 17 de setembro. O anúncio ocorreu no dia 15 e um comunicado foi posto nos ônibus da cidade com os dizeres: “Comunicamos aos nossos clientes que, devido ao desequilíbrio econômico, a integração gratuita não poderá ser mais realizada”. A integração gratuita permite que o usuário de ônibus possa utilizar mais duas linhas de ônibus do município pagando apenas uma tarifa desde que tenha se passado dez minutos desde o primeiro embarque e menos de 60 minutos do segundo embarque. Apesar da revogação do aumento da passagem, o movimento Revolta do Busão não encerrou as mobilizações. Foi o suficiente para inflamar mais uma vez os manifestantes. A manifestação do dia 19 de setembro foi a mais enérgica dentre as manifestações da Revolta do Busão. Assim como na primeira manifestação, o protesto saiu da parada do circular do Via Direta e, em seguida, ocupou as duas faixas da Avenida Salgado Filho, em frente ao shopping. Os ônibus tinham seu fluxo interrompido e só eram liberados após a abertura da parte traseira para que os populares, que estavam na parada, entrassem sem pagar tarifa. Imagens registradas desse protestos mostram vários ônibus pichados. Nesse protesto, dois veículos da empresa Guanabara foram incendiados, o que mereceu grande destaque na mídia local, a despeito da matéria no Blog do BG, um dos veículos de informação mais acessado no RN31: 30 CMN revoga reajuste das passagens de ônibus. Acessado em 13 de abril de 2019. 31 Manifestação ultrapassa os limites do aceitável e conquista antipatia da população. Entenda por que: Acessado em 13 de abril de 2019. 68 O protesto contra a suspensão do Passe Livre, realizado na noite de ontem, ultrapassou os limites do aceitável. A manifestação que deveria reivindicar o direito do usuário de ônibus a fazer a integração se transformou em selvageria e vandalismo. Ônibus foram incendiados, pessoas agredidas e o patrimônio alheio destruído. Diferente de antes, o movimento que estava em alta conta com a população por ter conseguido pressionar contra o aumento no preço das passagens, conquistou a total reprovação da população. O respeito acabou. E olha que o ponto defendido por eles é completamente justo. O Passe Livre é um direito conquistado pela população e eles têm mais é que lutarem a favor desse benefício. Mas o modo como isso foi feito é que não foi correto. Erraram muito na dose. Há vários relatos e imagens que demonstram a maneira como o movimento foi conduzido ontem. Pessoas comuns, muitas delas usuárias de ônibus também, tiveram seus carros depredados ou foram agredidas simplesmente porque, por um motivo ou outro, precisavam passar no meio do manifesto. Os manifestantes, sempre muito agressivos, tinham como palavras de ordem “bater”, “quebrar” e queimar. Os rostos, eram escondidos pelas próprias camisetas. E se valendo disso, picharam, destruíram, queimaram. Passeavam sobre os ônibus num grande clima de terrorismo. Dois ônibus foram incendiados, um em frente ao Midway e outro no Bairro Nordeste. Ainda teve a tentativa de queimar outro na Prudente de Morais (vejam o vídeo). E enquanto os ônibus queimavam, os bombeiros eram impedidos de trabalhar. Só conseguiam intervir quando já não havia mais solução. 5.3 Tarifa Zero: transporte público e direito à cidade A Tarifa Zero representou uma das principais guinadas na luta interpretativa do Movimento Passe Livre, que na maior parte de meados dos anos 2000 discutia a questão do transporte com base na defesa do passe livre a todos os estudantes. A luta pela Tarifa Zero fazia referência a uma questão mais ampla e geral de disputa antissistema por parte do movimento, que em sua fundação já se pautava como instrumento estratégico que iria além das demandas estudantis (ZIBECCHI, 2013). É no seu 3º encontro nacional, no ano de 2006, que o MPL dá início a formas de mobilização da sua base e de construção política para aprofundar os estudos sobre transporte, criando grupos de estudo sobre diversas áreas. O engenheiro Lúcio Gregori, secretário de transportes do município de São Paulo entre 1990 e 1992, é o principal especialista na temática a contribuir com o movimento nas discussões que viriam a se desenvolver entre a militância. A tese de Gregori era a de que o transporte público, sendo um direito social, deve ser público e gratuito e que, no momento em que se cobra a tarifa de transporte, se estabelece uma fronteira entre os que podem e os que não podem pagar, privatizando um direito comum (ZIBECCHI, 2013). O outro aspecto da discussão do Movimento Passe Livre a respeito da Tarifa Zero tem relação com o tema que ganhava apelo na mídia e entre pesquisadores e movimentos sociais: o direito à cidade. O tema, inclusive, passou a ser explorado como um dos principais vetores dos protestos de junho de 2013. Ermínia Maricato, em artigo para a Le Monde Diplomatique, diz que quem acompanha a realidade das cidades 69 brasileiras, não se impressionou com o junho de 2013. A conjuntura das cidades teria sido ainda mais pressionada e dramatizada pela agenda urbana produzida desde o segundo mandato de Luiz Inácio Lula da Silva na presidência do país e teria perpassado políticas públicas variadas: Programa de Aceleração do Crescimento, Minha Casa Minha Vida, entre outras. As políticas de intervenção urbana teriam sido caracterizadas por remoções violentas, penalizando os mais pobres, e priorização do capital imobiliário em detrimento do interesse público32. David Harvey, também na esteira das discussões sobre o junho de 2013, fala na luta pelo direito à cidade como “um direito de mudar a nós mesmos, mudando a cidade”. Segundo ele, em entrevista para a revista Piauí33, Um passo para a unificação dessas lutas é adotar o direito à cidade, como slogan e como ideal político, precisamente porque ele levanta a questão de quem comanda a relação entre a urbanização e a produção do lucro. A democratização desse direito, e a construção de um amplo movimento social para fazer valer a sua vontade são imperativas para que os despossuídos possam retomar o controle que por tanto tempo lhes foi negado e instituir novas formas de urbanização. Lefèbvre estava certo ao insistir em que a revolução tem de ser urbana, no sentido mais amplo do termo; do contrário, não será nada. E é nesse contexto de subversão da ordem do sistema de transporte que o MPL propõe-se a alterar toda a estrutura da cidade, revertendo o que o movimento chama de segregação espacial, social, racial e de gênero que é imposta a partir da cobrança tarifária nos ônibus (ZIBECHI, 2013). Em várias oportunidades, o movimento Revolta do Busão, que continuou a se organizar e a se mobilizar nos anos posteriores, defendeu publicamente a Tarifa Zero como a bandeira central do movimento: Segundo o coletivo Revolta do Busão, “só o investimento em transporte público de qualidade pode fazer alguém que tem carro optar por deixá-lo em casa, sabendo que pode ser transportado com eficiência, dignidade e segurança, reduzindo drasticamente a quantidade de automóveis nas ruas e ressuscitando a dignidade humana”. O grupo defende tarifa zero. “A tarifa tem que ser zero. Não estamos pedindo favor. Aliás, não estamos pedindo. Somos o povo. A Revolta. E revolta não pede”, reforçou o grupo34. Apesar das diversas organizações participantes dos processos de mobilização do movimento Revolta do Busão, a Tarifa Zero foi sendo incorporada sem grandes divergências entres ativistas de organizações que não eram autoras da ideia. Passada a 32 É a questão urbana, estúpido! Acessado em 13 de abril de 2019. 33 O direito à cidade Acessado em 13 de abril de 2019. 34 “Tarifa tem que ser zero. Não estamos pedindo favor”, diz Revolta do Busão. Acessado em 13 de abril de 2019. 70 luta contra mais efervescente dos movimentos de rua, a maior parte das organizações assumia outros tipos de demandas, enquanto o MPL concentrava sua atenção e energia na pauta do transporte público. Nesse sentido, A militância do MPL era, basicamente, a única a apresentar uma proposta que ia além da questão imediata, que era a revogação do aumento da passagem de ônibus. Era uma organização que tinha um discurso pronto para além do aumento e que, aparentemente, se dedicava com maior afinco à questão específica do transporte, enquanto as outras organizações tinham outras questões, lutas, congressos, então não podiam se ocupar integralmente do problema do transporte público. E acho que isso, em um processo organizativo heterogêneo e diverso como a Revolta do Busão, conferiu ao MPL credenciais, legitimidade para falar em nome do movimento. (Entrevistado 2) Em outra matéria, Revolta do Busão e Movimento Passe Livre aparecem atrelados como movimentos em luta pela tarifa zero em um contexto de reivindicações contra o aumento da passagem de ônibus: “A Revolta do Busão e o Movimento Passe Livre lutam por tarifa zero, transporte público de qualidade e mobilidade urbana”35. Segundo o entrevistado 5, As mobilizações contra o aumento da passagem eram momentos oportunos para ir além da questão tarifária, então aproveitávamos o espaço para defender o que achávamos que, no final das contas, era o objetivo estratégico do movimento: a conquista da tarifa zero. Não encontrávamos oposição entre as outras organizações, mas também éramos os únicos que pautávamos uma posição que não era meramente reativa, tínhamos grupos de discussão sobre a tarifa zero e, depois de um tempo, a própria bandeira foi sendo incorporada e defendida por outras lideranças da Revolta do Busão. (Entrevistado 5) A proposta de tarifa zero ganhou corpo, adeptos e foi defendida pelo professor da UFRN, Rubens Barreto Ramos, que estudou outras cidades que adotaram a isenção integral da tarifa de transporte e reconheceu a importância das manifestações promovidas pelos movimentos como uma oportunidade de discussão de um modelo alternativo de financiamento do transporte36: "É o único serviço público que não é rateado pela sociedade e quem paga é o usuário. As manifestações estão ajudando a mudar essa mentalidade. O interesse da cidade é ter a máxima mobilidade possível, que é um sistema de transporte em que as pessoas possam usar e pagar pouco. Atualmente existe o pensamento de que o transporte é para todos, mas o funcionamento ocorre em uma lógica privada", opina. 35 A Revolta do Busão e o Movimento Passe Livre voltaram a ocupar as ruas de Natal nesta quarta-feira (09/7) em mais um protesto contra o aumento de passagem no transporte coletivo. Acessado em 13 de abril de 2019. 36 Professor da UFRN aponta meios para subsidiar tarifa zero em Natal Acessado em 13 de abril de 2019. 71 Desse modo, o enquadramento principal da questão do transporte pela Revolta do Busão baseou-se nos seguintes aspectos: • Tarifa Zero como a bandeira mais geral do movimento e a tarifa de transporte como a questão específica das lutas; • A Tarifa Zero inserida no contexto do direito à cidade e em combate à segregação social, espacial, racial e de gênero; • A bandeira foi resultado da ação política do Movimento Passe Livre, que formulou sobre o tema e defendeu-o como a bandeira de todos os participantes das plenárias da Revolta do Busão. • Tarifa Zero é incorporada no discurso de outras organizações ou é aceita sem contestações por outras organizações e, por isso, os porta-vozes da Revolta do Busão falam em Tarifa Zero em nome do movimento sem encontrar contestação. CAPÍTULO 6 – ANÁLISE DOS MECANISMOS INTERNOS DE CONSTITUIÇÃO DOS MOVIMENTOS CONTRA O AUMENTO DA PASSAGEM EM NATAL (2015 e 2012) 6.1 Movimentos: aspectos contextuais, repertório e organização (2005 e 2012) As entidades tradicionais do movimento estudantil de Natal, como a UMES, APES, o GEDM e o DCE da UFRN, como dizem suas lideranças, tinham como prática recorrente o diálogo entre elas e um entendimento mais ou menos pacificado sobre como fazer protestos, tudo previamente combinado ou tacitamente aceito entre os representantes das entidades. De acordo com a agenda de pesquisa iniciada por Tilly, a repetição é uma das características do repertório (2009), isto é, há “um conjunto limitado de rotinas que são aprendidas, compartilhadas e postas em ação por meio de um processo relativamente deliberado de escolha” (Tilly, 1995, p. 26). Há características de naturalidade e habitualidade na fala do entrevistado 1, que apresenta a forma de organização como uma espécie de receita, mesmo após 14 anos já passados desde os protestos de 2005: Passei tantos anos fazendo isso que poderia fazer novamente agora: se precisávamos de panfleto, tirávamos uma comissão para redigir e outra para ver quem financiar o panfleto. Havia também um grupo de dirigentes destacados exclusivamente para o transporte, para levar os estudantes das escolas mais distantes até o ponto de encontro da manifestação. Era preciso também uma 72 comissão que ia visitar sindicatos, partidos, movimentos sociais para financiar o movimento. (entrevistado 1) O primeiro aspecto a se ressaltar, portanto, é que havia um modo de organização dos protestos quando as entidades estudantis tradicionais estavam à frente do processo de mobilização. Entrevistado 3 denomina o repertório das entidades como um “cardápio do uso progressivo da força política”, que ia de uma tentativa de reunião com a prefeitura até o protesto com “objetivo de chamar a atenção da sociedade, de mostrar ao prefeito que a opinião pública está atenta”. Dowbor e Szawko (2013), ao se referirem aos protestos do MPL antes de junho de 2013, mostram como a instrumentalização mais intensa da força já era uma prática que acompanhava o MPL desde o sucesso das mobilizações de Florianópolis, em meados dos anos 2000. Luciana Tatagiba (2014), na esteira das discussões sobre junho de 2013, sugere que os entraves da política e dos partidos podem ter trazido a violência ao primeiro plano das estratégias de ação coletiva. Há uma coincidência entre os protestos em Natal estudados nesta dissertação: tanto em 2005 quanto em 2013 os últimos protestos foram os mais enérgicos. Em 2005, houve enfrentamento com o Batalhão de Operações Especiais da Polícia Militar (BOPE) e com a Guarda Municipal, acompanhado de várias matérias jornalísticas enfatizando sobretudo a violência e não as reivindicações dos estudantes. Em 2013, dois ônibus foram incendiados, gerando reações negativas na mídia local. Diferente de junho de 2013, portanto, os protestos mais enérgicos em Natal, se não tiverem servido para arrefecer os movimentos, no mínimo não serviram para gerar novas manifestações públicas. Em relação ao contexto político, as dificuldades políticas de organização do movimento em 2005 eram imensas. O movimento estudantil lutou contra uma decisão de um prefeito que havia sido reeleito no ano anterior e cuja base de apoio era composta por partidos que estavam à frente das direções da UMES, APES, GEDM e DCE da UFRN, então o apoio no interior dos partidos era muito limitado. Isso não impediu que as mobilizações fossem marcadas por imensas passeatas organizadas pelas entidades estudantis. O confronto político, diz Tarrow (2009), emerge de um ambiente estrutural de oportunidades políticas. Se isso é verdade para os protestos envolvendo a gestão de Micarla de Sousa, na época com rejeição administrativa – que se traduzia na antipatia de 90% dos natalenses – e da elite política, o mesmo não se pode dizer dos movimentos de 2005. Os partidos que integravam a administração municipal não tinham base organizada entre os estudantes. Havia um contexto político muito favorável ao movimento social, 73 abertura das dimensões formais da política (alianças políticas frágeis sustentando a prefeita e uma maioria cada vez mais débil sustentando a administração) e informais (rejeição elevada à gestão Micarla de Sousa), alimentando a permeabilidade da gestão municipal às reivindicações provenientes da sociedade. Esta pesquisa mostra que o contexto organizativo do movimento estudantil fazia o contexto político. Isto é, o fato das entidades estudantis emitirem carteiras de estudante e terem estratégias de inserção nas escolas é apresentado, pelas próprias lideranças, como fatores que “forçavam” as entidades a agir. Havia uma política deliberada, segundo o entrevistado 3, de matricular as principais lideranças da UMES e da APES em escolas previamente determinadas, onde a mobilização era recorrente e essas lideranças eram cobradas pela própria base do movimento. Além disso, a emissão de carteira criava algum tipo de elo entre os estudantes e as entidades, pois numa época em que não havia redes sociais para mobilização dos protestos, a sede da UMES recebia ligações dos próprios estudantes reivindicando o seu ativismo. É daí que podemos relacionar a importância do contexto organizacional do movimento e o repertório para o despertar da ação coletiva. Todo o repertório de 2005 dependeu necessariamente das estratégias de utilização do recurso financeiro por parte das entidades estudantis. No caso do trancamento das vias, era necessária a presença das lideranças da UMES e da APES – que estudavam em escolas estratégicas e tinham a capacidade de mobilização na instituição –, para fazer várias paralisações simultâneas em uma determinada região da cidade. Todos os protestos organizados daquele ano demandavam recursos para contratação tanto de carros de som quanto dos ônibus que serviram para deslocamento dos estudantes de suas escolas até os pontos de saída das manifestações. E isso demandava um grande dispêndio de recursos financeiros (só em ônibus, segundo o entrevistado 3, foram gastos 4 mil reais em 2005). Todo o recurso gasto permitia à entidade que desembolsava os custos das manifestações o protagonismo de exercer a fala ao microfone e escolher aqueles que poderiam compartilhar a centralidade dos protestos. Sem recursos organizativos, os movimentos poderiam ter feito protestos em 2005, mas não lançando mão desse mesmo repertório que demandava grande mobilização de recursos. É o caso das manifestações da Revolta do Busão de 2012, que não demandavam investimentos materiais por parte das lideranças. Neste ano havia um estímulo à participação voluntária em protestos, mas uma completa desorganização material das entidades do movimento estudantil. Mesmo com essa desorganização, as entidades 74 participaram dos protestos. Sua participação, como evidenciado nas falas do entrevistado 5 e do entrevistado 4, foi construída por meio de ativistas que estavam no cotidiano das entidades, mas não por uma forma concatenada e ordenada de intervenção sobre os protestos. Quem alcançou isso, de maneira planejada e conferindo identidade ao movimento, foi justamente o MPL, organização que havia surgido criticando a manipulação dos movimentos pelas entidades e partidos. A fala do entrevistado 4 expressa que as entidades não participaram com mais relevância porque não tinham o básico para a atuação organizada e coletiva, restando aos seus diretores uma atuação voluntarista, como ele diz. O MPL se destaca nesse cenário não por ter recursos que as entidades tradicionais não tinham, mas por se adaptar melhor em um contexto de escassez, porque seus métodos de organização não exigiam grande quantidade de recursos. Desse modo, se no ano de 2005 o ambiente político é desfavorável, o contexto organizativo, por sua vez, proporcionou ao movimento as condições de mobilizar os estudantes para as manifestações a partir de um repertório altamente dependente dos recursos materiais. Em 2012, o ambiente político tornou-se propenso às manifestações iniciadas em agosto, mas o contexto organizativo era desfavorável ao repertório das entidades estudantis tradicionais e favorável ao MPL, cujo repertório partia de uma premissa de horizontalidade. E o MPL aproveitou a oportunidade melhor do que as demais organizações, dando o nome ao movimento, estabelecendo restrições que não existiam anteriormente (como o uso do carro de som e bandeiras partidárias) e definindo o enquadramento interpretativo da Revolta do Busão. 6.2 Da reação à proposição: A Tarifa Zero no cerne da Revolta do Busão Em 2005, a bandeira do passe livre ocupou apenas de maneira coadjuvante espaço nos panfletos da fase de “Caça às bruxas do transporte público”, mas não ocupou a narrativa do movimento, muito menos com o destaque que a bandeira alcançou no ano de 2012. A tarifa zero aparece como resultado de dois percursos: o primeiro é a clara e evidente ausência de discussão no ambiente das entidades tradicionais do movimento estudantil, seja em âmbito local, seja em âmbito nacional. Havia uma janela de oportunidade que os protestos nas capitais do país apresentava, de discutir o tema com 75 maior profundidade. O MPL faz isso, mas isso não o impede de viver uma fase de refluxo em vários lugares do país. Uma nova janela de oportunidade se apresenta ao final do governo Lula, como parte das intervenções urbanas nas grandes cidades do país. A discussão do direito à cidade aparece entre os movimentos sociais e pesquisadores como reação à forma como os megaeventos foram conduzidos pelos governos municipais, estaduais e federal. E o movimento, a partir de grupos de estudo formados no 3o encontro nacional e com a consultoria de um especialista em transporte com experiência na maior capital do país, passa a apresentar a ideia de Tarifa Zero como base de uma discussão mais geral de franquear o acesso e o uso da cidade aos segmentos mais periféricos da cidade, associando também à questão de gênero e de raça. Existem três grandes dimensões do enquadramento interpretativo segundo Silva, Cotanda e Pereira (2017). Uma dessas dimensões diz respeito à formação do enquadramento interpretativo, isto é, “como ativistas conduzem os processos de enquadramento interpretativo? Por meio de quais categorias as organizações de movimentos sociais constroem suas molduras interpretativas?” (p. 154). Uma das dimensões ligadas à formação relaciona a construção da narrativa através do conceito de “estrutura de oportunidades políticas” (KOOPMANS e STATHAM, 1999 apud SILVA, COTANDA e PEREIRA, 2017). Ainda que a discussão do MPL não tenha se originado de maneira deliberada com o tema do direito à cidade, a força que o tema possuía naquele momento das mobilizações foi um dos aspectos decisivos para que a Tarifa Zero tenha tido sucesso entre os ativistas. O MPL não encontrou adversários à sua formulação e a Revolta do Busão, movimento amplo e heterogêneo, passou a ser porta-voz da proposta de transporte público defendida pelo MPL: a Tarifa Zero. Não só as demais organizações não apresentaram barreiras, como também continuaram a concentrar suas atenções, como já faziam anteriormente, na discussão tarifária imediata. CONSIDERAÇÕES FINAIS O foco desta dissertação foi comparar dois ciclos de protestos em Natal que tiveram como objeto um mesmo tema: o aumento da passagem de ônibus. Os anos de referência foram 2005 e 2012 e foram selecionados por representar formas bastante 76 distintas através dos quais se manifestou o repertório do movimento. Desse modo, buscou-se compreender o contexto desses dois períodos para explicar: o que diferenciou o repertório nos protestos de 2005 de 2012 e o que mudou no contexto político e organizativo do movimento para a mudança no repertório e no enquadramento interpretativo sobre o transporte? Observou-se contextos políticos, mas também organizativos, completamente distintos para atuação dos movimentos. Em 2005 o contexto político era desfavorável para mobilização dos estudantes, pois o prefeito acabava de ser reeleito, com uma base política consistente e com uma composição partidária que envolvia até mesmo partidos que estavam à frente das entidades estudantis. Foi o contexto organizativo do movimento o principal responsável pela atuação das entidades estudantis, pressionadas pela própria base social das entidades. O repertório de atuação das entidades estava profundamente associado ao contexto organizativo, de modo que se sugere que tão importante quanto a Estrutura de Oportunidades Políticas (Tarrow, 1998) como parâmetro político para atuação dos movimentos sociais, uma noção de “Estrutura de Oportunidades Organizativas” poderia servir como parâmetro analítico para a relação entre a organização do movimento social e o seu repertório de atuação, o que pode contribuir para compreensão dos motivos pelos quais, mesmo em ambientes de constrangimentos e restrições políticas, os movimentos, ainda assim, emergem em formas importantes de mobilização. Já em 2012, as oportunidades políticas – dimensões formais e informais – são bastante favoráveis aos movimentos, mas as estruturas organizativas com as quais as entidades tradicionais estavam habituadas, já não estão à disposição, o que demandava aprender a fazer política em um ambiente de escassez de recursos. A organização que consegue se sobressair nesse ambiente é o Movimento Passe Livre (MPL), que se destaca na construção do repertório do movimento (manifestações sem carros de som, sem bandeiras e com a mobilização de estudantes sem necessidade de contratação de ônibus). O MPL também aproveitou uma lacuna deixada pelas demais organizações ao longo da trajetória de luta contra o aumento da passagem, que foi a construção de uma narrativa perene e propositiva sobre a tarifa. Diferentemente das demais organizações que tinham um calendário de atividades diversificado durante o ano, o MPL se dedicou integralmente à questão tarifária e sua proposta de Tarifa Zero foi valorizada não somente no interior do movimento, mas entre pesquisadores, como as pesquisas realizadas sobre a proposta pelo professor da UFRN, Rubens Barreto Ramos. 77 Nesse sentido, uma primeira conclusão desta dissertação é a constatação da relação intrínseca entre o contexto político e o contexto organizacional. 2005 e 2012 representam contextos políticos e organizacionais bastante distintos, com repercussões muito diferentes no interior do movimento social. Os pesquisadores costumam associar a questão política como o principal elemento cíclico dos movimentos, mas o contexto organizacional ajuda a explicar a relação entre recursos formais dos movimentos e os repertórios adotados pelas entidades e os tipos possíveis de repertórios a serem adotados. No ano de 2012, tanto o trancamento simultâneo de vias da cidade a partir das escolas públicas, como a liderança verticalizada do movimento por parte de entidades via protestos unilaterais foram descartados pelas organizações. O trancamento simultâneo requer não somente vontade política, mas também contatos e relacionamentos prévios no interior das instituições. Protestos que fossem mobilizados através de ônibus e carros de som, em um ambiente de participação efusiva dos estudantes, poderiam ser interpretados como uma tentativa de “liderar” artificialmente e chamando atenção negativa em espaços distintos de construção do movimento, como as redes sociais e plenárias. Em 2005, o nível de liderança, protagonismo e força demonstrado pelas entidades do movimento estudantil teria inviabilizado manifestações baseadas em escassez de recursos. Em um cenário adverso de mobilização política, os recursos à disposição das entidades foram essenciais para colocar nas ruas milhares de estudantes contra o aumento da tarifa. Portanto, em um momento em que o governo do presidente Jair Bolsonaro ameaça a já combalida organização financeira do movimento sindical37, representada pelo imposto sindical, e também a recente Lei da Meia-Entrada (Lei Federal 12.933/2013), que beneficiou as entidades tradicionais do movimento estudantil38, observar a relação entre o contexto organizativo do movimento e o repertório das manifestações, no caso específico do município de Natal nos anos de 2005 e 2012, ajuda a refletir sobre dois aspectos importantes: 37 Bolsonaro proíbe cobrar contribuição sindical no salário; entenda a mudança Acessado em 13 de abril de 2019. 38 Governo propõe carteira de estudante que pode “esvaziar” entidades como a UNE Acessado em 13 de abril de 2019. 78 • O contexto organizativo do movimento, mesmo em cenários adversos de mobilização, pode estimular novos repertórios e ampliar as possibilidades de ação dos movimentos sociais. Determinados repertórios só são possíveis se o movimento social detém recurso para aprender novas formas de agir e incorporá- los ao seu modo de atuar. • O contexto político, que em suas dimensões formal e informal, oferece oportunidades de atuação aos movimentos sociais, também é marcado pela estrutura organizativa disponível em um determinado momento. Em 2012, apesar de todas as dificuldades apresentadas pelas entidades estudantis para se mobilizarem, a experiência e o repertório adequado à escassez de recursos do MPL, foi fundamental para que os protestos tivessem liderança capaz de fornecer um discurso coerente e alinhado com o debate acadêmico e com os movimentos envolvidos nas lutas urbanas no Brasil. Ao longo da minha trajetória no movimento estudantil, sempre notei o constrangimento moral das lideranças do movimento de falar sobre a organização financeira das entidades. Ao relacionar organização material e repertório como categorias que ajudam a entender o “êxito” e o “fracasso” das organizações tradicionais do movimento nos protestos de 2005 e 2012, espera-se que esta dissertação contribua, em uma lógica de pesquisa que transcenda os muros da universidade, para que os movimentos sociais entendam melhor a importância do seu autofinanciamento em relação à maneira de fazer política no interior das organizações e sua repercussão na arena pública. A discussão sobre a mobilização de recursos perdeu força no debate acadêmico e, no caso do Brasil, nunca predominou no âmbito da agenda de pesquisa dos movimentos sociais. Contudo, a discussão proposta nesta dissertação mostra que a questão organizativa dos movimentos não pode ser ignorada em uma tentativa de explicação que leve em conta os diferentes modos de agir em contextos distintos por parte dos movimentos sociais. 79 80 REFERÊNCIAS ABERS, R.; BÜLOW, M. V. 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