UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL DOUTORADO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL Francisco Cleiton Vieira Silva do Rego A SEGURANÇA BIOLÓGICA NA TRANSIÇÃO DE GÊNERO: UMA ETNOGRAFIA DAS POLÍTICAS DA VIDA NO CAMPO SOCIAL DA SAÚDE TRANS NATAL – RIO GRANDE DO NORTE 2020 FRANCISCO CLEITON VIEIRA SILVA DO REGO A SEGURANÇA BIOLÓGICA NA TRANSIÇÃO DE GÊNERO: UMA ETNOGRAFIA DAS POLÍTICAS DA VIDA NO CAMPO SOCIAL DA SAÚDE TRANS Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte como requisito parcial para a obtenção do título de Doutor em Antropologia Social. Linha de Pesquisa: Gênero, Sexualidade, Corpo e Saúde. Orientadora: Profa. Dra. Rozeli Maria Porto. NATAL – RIO GRANDE DO NORTE 2020 Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN Sistema de Bibliotecas - SISBI Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes – CCHLA Rego, Francisco Cleiton Vieira Silva do. A segurança biológica na transição de gênero: uma etnografia das políticas da vida no campo social da saúde trans / Francisco Cleiton Vieira Silva do Rego. - Natal, 2020. 397f.: il. color. Tese (doutorado) - Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, 2020. Orientadora: Prof. Dr. Rozeli Maria Porto. 1. Saúde trans - Tese. 2. Medicina trans - Tese. 3. SUS - Tese. I. Porto, Rozeli Maria. II. Título. RN/UF/BS-CCHLA CDU 614(81)-055.3 Elaborado por Heverton Thiago Luiz da Silva - CRB-15/710 Francisco Cleiton Vieira Silva do Rego A segurança biológica na transição de gênero: uma etnografia das políticas da vida no campo social da saúde trans Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte como requisito parcial para a obtenção do título de Doutor em Antropologia Social. Tese aprovada em: 28/08/2020. ORIENTADORA: ___________________________________________ Profa. Dra. Rozeli Maria Porto Universidade Federal do Rio Grande do Norte BANCA EXAMINADORA: _________________________________________ Prof. Dr. Carlos Guilherme Octaviano do Valle Universidade Federal do Rio Grande do Norte Membro Interno ________________________________________ Profa. Dra. Angela Mercedes Facundo Navia Universidade Federal do Rio Grande do Norte Membro Interno ________________________________________ Prof. Dr. Alexandre Fleming Câmara Vale Universidade Federal do Ceará Membro Externo ________________________________________ Prof. Dr. Guilherme Silva de Almeida Universidade Federal do Rio de Janeiro Membro Externo MEMBRO SUPLENTE: ________________________________________ Profa. Dra. Elisete Schwade Universidade Federal do Rio Grande do Norte Membro Interno À minha querida e amada mãe, Rejane Vieira de Macêdo. AGRADECIMENTOS Cursar um doutorado e escrever a tese exigem muito trabalho e dedicação, o que não seria feito sem o apoio de muitas pessoas e instituições. Sem lastro financeiro na forma de bolsas eu não teria nenhuma possibilidade de realizar essa formação. Por isso, agradeço em primeiro lugar ao fomento da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior pelas bolsas de Doutorado no País e Sanduíche no Exterior que permitiram minha dedicação exclusiva. À escola pública brasileira na qual estudei toda a minha vida. À Universidade Federal do Rio Grande do Norte por tudo que já proporcionou na minha vida profissional, acadêmica, intelectual e pessoal. À minha orientadora profa. Rozeli Maria Porto, que além de uma mestra se tornou uma colega e amiga de muitíssima estima, admiração, consideração e inspiração. Obrigado pela confiança, pelo tino teórico, ético e profissional, pela liberdade intelectual e por ter me incentivado e mostrado, mesmo quando eu não acreditei tantas vezes, que esse é também o meu lugar. A Universidade pública me abriu tantas portas que eu não posso contar, e com certeza você é uma parte importante dessa caminhada de mudança social na minha vida. Ao apoio valiosíssimo do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, em especial ao trabalho das coordenações de Elisete Schwade, Glebson Vieira, Carlos Guilherme do Valle e da atual Rozeli Porto, além das demais professoras e professores, principalmente com os/as quais cursei disciplinas todas importantes e, às funcionárias que compõem o PPGAS/DAN. Às e aos membros da banca de seleção de ingresso no Doutorado realizada em 2015 que confiaram no meu potencial e me deram essa chance: Carlos Guilherme do Valle, Julie Cavignac, Jean Segata e Francisca Miller. Aos professores e às professoras membros da banca de qualificação da tese que muito me ajudaram a pensar minhas questões, análises e dados empíricos: Angela Facundo, Carlos Guilherme do Valle e Elisete Schwade. Aos professores e às professoras que aceitaram participar da banca de defesa desta tese meu muitíssimo obrigado e admiração: Carlos Guilherme do Valle, Angela Facundo, Alexandre Vale e Guilherme Almeida. A Elisete Schwade por ter aceitado participar na suplência. Aos professores e às professoras com os quais realizei os estágios docentes desde o mestrado: Rita Neves, Julie Cavignac, Rozeli Porto e Paulo Vitor Leite Lopes. Ao Grupo de Pesquisa “Gênero, Corpo e Sexualidade” (GCS) por ter sido um ponto de apoio físico, formativo e afetivo com o qual pude contar desde o mestrado através das integrantes e ações. À Universidade do Estado do Rio Grande do Norte onde cursei a graduação em Ciências Sociais, por ter sido uma escola tão importante na minha formação acadêmica básica, principalmente nas figuras instigantes de professores e professoras do Departamento de Ciências Sociais e Política: Aécio Cândido, Cristina Barreto, Vanderlan Silva, Karlla Souza, Eliane Anselmo, Andreia Linhares, Geovânia Toscano, Glebson Vieira; bem como ao Programa de Educação Tutorial em Ciências Sociais por ter sido uma plataforma de crescimento intelectual. Ao meu coorientador prof. Eric Douglas Plemons que me recebeu de braços abertos durante o estágio de doutorado sanduíche e que me instigou intrigantes e eletrizantes ideias e questionamentos, assim como faz um mestre. Essa tese se beneficiou de nossas conversas em reuniões de orientação, das suas indicações de leitura e discussão de livros/temáticas de seu grupo de pesquisa, e ainda da atmosfera acadêmica e palestras, do centro de esportes, bem como do acesso a estrutura física da Universidade do Arizona (UA), de sua Escola de Antropologia (EA) e do seu Instituto para Estudos LGBT em Tucson/EUA. Agradeço também aos membros do Trans Studies Research Cluster, chefiado pelo Eric, pelas formidáveis reuniões e inspiráveis discussões. À profa. Susan Stryker pela acolhida no Instituto e simpatia, bem como às secretárias Catherine Lehman (Antropologia) e Alma Galindo (LGBT) que me guiaram através da burocracia. Um agradecimento especial precisa ser feito às bibliotecas da UA, as quais se tornaram para mim verdadeiros laboratórios valiosíssimos e indispensáveis para minha revisão bibliográfica. Nelas passei boa parte do meu tempo com seu funcionamento 24 horas por dia e 7 dias por semana, sua estrutura física confortável, funcionários prestativos, espaços de estudo coletivos e individuais, limite gigante de empréstimo, acervo impresso e digital imenso de livros e periódicos do mundo inteiro e em muitos idiomas, que incluía inclusive publicação brasileira antiga e recente. Não posso esquecer ainda da excelente professora de inglês Mrs. Lee e do coordenador Mr. Fuentes no Centro para inglês como Segunda Língua na UA, e aos colegas mexicanos, salvadorenhos, coreanos e venezuelanos das turmas com quem tive trocas estimulantes. Ao Centro para Estudos Latino-Americanos da UA, ao que também atendi regularmente, tendo sido um importante ponto de apoio com suas palestras, aulas e demais eventos com acadêmicos de várias partes da América Latina, os quais sempre adocicados pela simpatia dos professores e alunos, principalmente na figura do prof. Tom Zé da Silva. Ao Café Luccé da esquina do campus, por ter sido um ambiente tão aconchegante no qual pude diferenciar meu local de trabalho e beber tanto café e chá. À mãinha, Rejane Vieira de Macêdo, a quem dedico esta tese e que é a maior responsável por tudo de bom que tem me acontecido na vida. Na nossa luta pela sobrevivência, sua garra e destemor diante das intempéries da injustiça social e da desigualdade de gênero lograram-nos, a mim e a minha irmã, a possibilidade de viver os dias na sua melhor forma. Agradeço também ao meu pai, Francisco Bruno Silva do Rego, bem como ao apoio importante da minha irmã Thayse Vieira Cosme e meu cunhado Melqui Cosme, além de outros queridos parentes que sempre torceram e se comprouveram com meu sucesso e de uma maneira ou de outra também me apoiaram, como minhas tias paternas Rute e Ana Fortunato, Conceição Fernandes, Maria José do Rego, minha avó paterna Odete Fortunato, e minhas tias maternas Gilceia, Gildete e Eliane Vieira, e meus primos Herbert e Juliane Vieira. Aos brasileiros que encontrei em Tucson: Lucas Reis e Everton; e, especialmente a Carolina Lixa por todos nossos momentos. Foi bom ouvir o bom português brasileiro e dividir um pouco dessa experiência com vocês. Às amigas e colegas doutorandas da EA/UA, especialmente a Saffo Papantonopoulou por tantas conversas instigantes sobre nossos objetos de pesquisa e os problemas do mundo, e a Jessica Nelson por sua simpatia, companhia e conversas tão agradáveis. Aos amigos e colegas acadêmicos no PPGAS/UFRN que me ouviram tantas vezes falar dessa pesquisa e por nosso companheirismo diverso: Jociara Nóbrega, Paulo Gomes Filho, Maycon Cunha. Aos outros amigos com quem compartilhei muito desse processo: Bruno Oliveira, Kássia Gomes, Isabela Christina e Tatiane Barros. Ao Arthur Vinícius Ferreira e a Étienne Ferreira por seu afável apoio e boa companhia. Ao meu amigo, que se tornou um irmão, Arthur Costa Novo, por toda companhia e apoio amável que tem me proporcionado ao longo desse processo. Aos queridos João Pedro Sant’Anna, amigo dos tempos de Orkut, que me ajudou revisando o abstract, e ao seu pai Rutônio Sant’Anna que me auxiliou com a pesquisa no acervo da Fundação Biblioteca Nacional do Brasil no Rio de Janeiro, sem o que não teria encontrado rico material histórico sobre medicina trans. E, a Marta Oliveira pelo resumo em espanhol. Aos colegas com quem trabalhei na revista Equatorial por ter sido ali um lugar de muito aprendizado editorial, especialmente à generosidade criativa da profa. Angela Facundo. Aos estadunidenses que se tornaram companhias queridas, adoçando meus dias em Tucson: Britney Palomarez, Stephanie Wesley, Ashley Jernigan, Cameron Louie, Zoe Lamb, Alana Varner, Sean MacVoy, Lenaie Oldham, Albert Jaime. Ao Brian Hannah que me apresentou a todos eles, em primeiro lugar. Ao David Cervantes e receptividade de sua família. A uma das famílias mais fascinantes que já conheci, os DeMars, através de Peter e Els-Marie, Sean, Lisette, Nicole e Adam pela acolhida tão carinhosa e generosidade insólita, me convidando para suas casas, festejos familiares, me mostrando a cidade, se preocupando com meu bem-estar, e compartilhando angústias e esperanças sobre um mundo mais justo e igualitário. Aos meus housemates Stephanie e Sean que se tornaram pessoas tão queridas e tão bem receptivas como irmãos calorosos. Aos amigos e às amigas que conheci em Fortaleza, cuja companhia foi valorosa na minha estadia na cidade, sendo também guias e orientadores no campo que me fizeram afeiçoar tão profundamente pelo Ceará: Kaio Lemos, Lúcia Silva, Tel Cândido, Magda Almeida, Dário Bezerra, Rodrigo Alves, Larícia Keury, Apollo Martins, Débora Britto, Fabíola Diógenes, Labelle Rainbow, Daliliane e Otávio Queiroz, Felipe Lopes, entre outros. A todos os integrantes da Associação Transmasculina do Ceará (ATRANSCE) que foram interessados nessa pesquisa, pela disposição de tempo para responder às entrevistas e simpática receptividade para observação de seus cotidianos, principalmente nas figuras de Kaio, Apollo e Dioniso. Ao Hospital de Saúde Mental Prof. Frota Pinto, em Messejana, por ter permitido a realização da pesquisa em suas dependências, especialmente ao coordenador do ATASH e do SERTRANS Dr. Henrique Luz e a Diretora Geral do Hospital Dra. Magaly Mendes, e demais funcionários que tão gentilmente cederam parte de seu tempo para me ouvir e responder. Aos funcionários e às funcionárias do Centro de Referência Janaína Dutra, especialmente ao coordenador Tel Cândido que tão simpaticamente me recebeu e cuja observação do dia a dia foi possibilitada e que se tornou uma grande contribuição para essa pesquisa. Acompanhar etnograficamente essa iniciativa tão valorosa me deixou marcas indeléveis. Ao Grupo de Resistência Asa Branca (GRAB), principalmente nas figuras dos queridos Dário Bezerra e Francisco Pedrosa pela generosa recepção às minhas visitas, pelas escutas aos meus questionamentos e por terem tão gentilmente permitido que eu realizasse consulta ao seu vasto e valiosíssimo arquivo. A todos os interlocutores e às interlocutoras que participaram dessa pesquisa, dispensando tempo de suas vidas para responder a entrevistas e por ter suportado um antropólogo os seguindo nos seus trabalhos, nas suas casas, nos serviços de saúde, engajamentos políticos e vida pessoal. Para além da obviedade de que sem vocês essa pesquisa não teria sido feita, lhes agradeço imensamente por terem compartilhado um pouco de suas histórias e de suas lutas comigo e por boa parte ter se tornado minha amiga, por ter me afetado e se tornado fonte arrebatadora de inspiração para a vida. This constant change in the content of culture, even of whole cultural styles, is the sign of the infinite fruitfulness of life. At the same time, it marks the deep contradiction between life's eternal flux and the objective validity and authenticity of the forms through which it proceeds. It moves constantly between death and resurrection – between resurrection and death. – Georg Simmel (1968 [1921]). When we ask what is the matter with someone, we are often in search of a diagnosis and a cure. If, alternatively, we ask what matters to someone, we are asking after their taste of the world – how it looks to them, what is salient and what irrelevant. – Henry Rubin (2003). RESUMO Esta tese busca compreender o processo sociopolítico e cultural de legitimação da supervisão biomédica da transição de gênero enquanto matéria de saúde pública. O material empírico no qual esse trabalho se baseia foi construído por meio de etnografia cuja observação participante contou com análise de documentos, entrevistas de longa duração, estudo de acervos historiográficos e da literatura médico-psi especializada. Acompanhou-se a mobilização de homens trans e demais sujeitos transmasculinos, bem como o trabalho de médicos e outros profissionais de saúde e funcionários estatais no contexto institucional e pessoal, sejam em serviços de saúde, em espaços de socialidade, de ativismo ou de governo para entender suas atuações e experiências. Ao partir da região metropolitana correspondente a cidade de Fortaleza, no Ceará, procurou- se gerar um quadro da heterogeneidade dos agentes implicados na conformação da atenção à saúde trans como um instrumento básico à cidadania e como espaço de atividade científica benéfica à vida. Assim, privilegia-se a descrição de interpretações locais de grupos sociais distintos, mas que entram em relação para estabelecer a pertinência de uma transição biologicamente segura. O presente texto se concentra em dar relevo aos fluxos de saberes das ciências bioquímicas, e não apenas das psi, ao lado das transformações da abordagem médica diante das transexualidades. Com isso, descreve-se as estratégias políticas que permitem a sujeitos trans reclamar a necessidade de cobertura pública da assistência médica e da sua apropriação em diversos termos. Ao se preocupar com esse cenário, evidenciam-se as formas que as políticas da vida assumem na contemporaneidade e como estão aí incluídos processos trans de medicalização e de produção da ciência que permitem a existência e o aperfeiçoamento do eu diante de intervenções clínicas e cirúrgicas, bem como as produções de conflitos e contradições. Nesse sentido, a produção de reinterpretações do conhecimento biomédico, atrelada a mobilização social por serviços de saúde estruturados pelo Estado constituiu um ativismo biossocial que politiza as modificações corporais também em níveis moleculares. Essas interações orgânicas devem ser controladas pela assistência biomédica para que adoecimentos decorrentes sejam prevenidos. Assim, assiste-se a novas feições da medicina trans que se coloca de uma maneira diferenciada em relação às primeiras abordagens patologizantes, as quais formam uma cena multifacetada de visões divergentes. Isso tudo possibilita a formação de um campo social específico à saúde trans como matéria de política e de ciência. Esse é um recorte da vida social observada, e, nesse sentido, investiu-se na exposição de experiências etnográficas que demarquem práticas corporais, agências, subjetivação, movimentos por direitos em saúde, trajetórias biográficas, cuidado, itinerários terapêuticos, processos de adoecimentos, dinâmicas profissionais, produção científica de conhecimentos, intervenções biomédicas e a formação do Estado brasileiro através da circunscrição sociológica do Processo Transexualizador no Sistema Único de Saúde. Palavras-chave: Saúde trans. Medicina trans. SUS. Direitos. Transexualidade. Ceará. Saúde Pública. Biocidadania. Ativismo biossocial. Transição de gênero. Biopolítica. Processos de subjetivação. Homens trans. Brasil. Antropologia da Saúde. Etnografia. RESUMEN La seguridad biológica en la transición de género: una etnografía de las políticas de la vida en el campo social de la salud trans en Brasil Esta tese busca comprender el proceso sociopolítico y cultural de legitimación de la supervisión biomédica de la transición de género mientras materia de salud pública. El material empírico en el cual ese trabajo se basa fue construido por medio de etnografía cuya observación participante contó con el análisis de documentos, entrevistas de larga duración, estudio de acervos historiográficos y de la literatura médica especializada. Se acompañó la movilización de hombres trans y demás sujetos trans masculinos, como también el trabajo de médicos y otros profesionales de salud y funcionarios estatales en el contexto institucional y personal, sean en servicios de salud, en espacios de sociabilidad, de activismo o de gobierno para entender sus actuaciones y experiencias. A partir de la región metropolitana correspondiente a la ciudad de Fortaleza, Ceará/CE, se buscó generar un cuadro de heterogeneidad de los agentes implicados en la conformación de la atención a la salud trans como un instrumento básico a la ciudadanía y como espacio de actividad científica benéfica a la vida. Así, se privilegia la descripción de interpretaciones locales de grupos sociales distintos, pero que entran en relación para establecer la pertinencia de una transición biológicamente segura. El presente texto se concentra en dar importancia a los flujos de saberes de las ciencias bioquímicas, y no solo de las ciencias psicológicas, al lado de las transformaciones del abordaje médico delante de las transexualidades. Con eso, se describe las estrategias políticas que permiten a los sujetos trans reclamar la necesidad de cobertura pública de asistencia médica y de su apropiación en diversos termos. Al se preocupar con ese escenario, se evidencian las formas que las políticas de la vida asumen en la contemporaneidad y cómo están incluidos procesos trans de medicalización y de producción de la ciencia que permiten la existencia y el perfeccionamiento del yo delante de intervenciones clínicas y quirúrgicas, bien como las producciones de conflictos y contradicciones. En ese sentido, la producción de reinterpretaciones del conocimiento biomédico, vinculada a la movilización social por servicios de salud estructurados por el Estado constituye un activismo biosocial que politiza las modificaciones corporales también en niveles moleculares. Esas interacciones orgánicas deben ser controladas por la asistencia biomédica para que enfermedades decurrentes sean prevenidas. Así, se asiste nuevas características de la medicina trans que se coloca de una manera diferenciada con relación a los primeros abordajes patologizantes, las cuales forman una escena de múltiples visiones divergentes. Eso todo posibilita a la formación de un campo social específico a la salud trans como materia política y de ciencia. Ese es un recorte de la vida social observada, y, en ese sentido, se invirtió en la exposición de experiencias etnográficas que demarquen prácticas corporales, agencias, subjetivación, movimientos por los derechos en la salud, trayectorias biográficas, cuidado, itinerarios terapéuticos, procesos de enfermedades, dinámicas profesionales, producción científica de conocimientos, intervenciones biomédicas y la formación del Estado brasileño a través de la circunscripción sociológica del Proceso Transexualizador en el Sistema Único de Saúde. Palabras-clave: Salud trans. Medicina trans. SUS. Derechos. Transexualidad. Ceará. Salud Pública. Biociudadanía. Activismo biosocial. Transición de género. Biopolítica. Procesos de subjetivación. Hombres trans. Brasil. Antropología de la Salud. Etnografía. ABSTRACT Biological Safety in Gender Transition: An Ethnography of Life Politics in the Social Field of Transgender Health in Brazil This thesis seeks to understand the socio-political and cultural process of legitimacy for the biomedical supervision of the gender transition as a matter of public health. The empirical material on which this work is based was built through ethnography whose participant observation included document analysis, long- term interviews, a study of historiographic collections, and specialized medical-psi literature. The mobilization of trans men and other transmasculine subjects was followed, as well as the work of medical doctors and other health professionals and state employees in their institutional and personal context, whether in health services, in spaces of sociality, activism or government to comprehend their performances and experiences. Departing from the metropolitan region corresponding to the city of Fortaleza, in the state of Ceará, we sought to generate a picture of the heterogeneity of the agents involved in the making-up of a health care as a basic instrument for trans citizenship and as a space for scientific activity beneficial to life. Thus, it privileges the description of local interpretations of different social groups, but which come into relationship to establish the relevance of a biologically safe transition. The present text focuses on highlighting the knowledge flows of biochemical sciences, and not only of those named as psi, alongside the changes in the medical approach to transsexualities. Thus, the political strategies that allow trans subjects to claim the need for public coverage of medical care and its appropriation in different terms are described. When concerned with this scenario, it evidences the forms that life politics assume in contemporary times and how they include trans processes of medicalization and production of science that allow the existence and improvement of the self in the face of clinical and surgical interventions, as well as the production of conflicts and contradictions. In this sense, the production of reinterpretations of biomedical knowledge, linked to social mobilization by health services structured by the State, constituted biosocial activism that politicizes bodily changes also at molecular levels. These organic interactions must be controlled by biomedical assistance so that the resulting illnesses are prevented. Thus, we are witnessing new features of trans medicine that are placed differently concerning the first pathological approaches, which form a multifaceted scene of divergent views. This all makes possible the formation of a specific social field to trans health as a matter of politics and science. This is an excerpt of the observed social life, and, as such, we invested in the exhibition of ethnographic experiences that demarcate: body practices, agencies, subjectivation, movements for health rights, biographical trajectories, care, therapeutic itineraries, illness and disease process, professional dynamics, discourses around identity, scientific production of knowledge, biomedical interventions and the formation of the Brazilian State-nation through the sociological circumscription of the Transexualizador Process in its Unified Health System. Keywords: Transgender Health. Trans- Medicine. SUS. Rights. Transsexuality. Ceará. Public Health. Biosocial Activism. Gender Transition. Biopolitics. Subjectivation processes. Transgender Men. Brazil. Medical Anthropology. Ethnography. RÉSUMÉ La sécurité biologique dans la transition de genre: une ethnographie des politiques de vie dans le champ social de la santé trans au Brésil Cette thèse cherche à comprendre le processus sociopolitique et culturel de légitimation de la supervision biomédicale de la transition de genre en matière de santé publique. Le matériel empirique sur lequel ce travail est basé a été construit à travers l'ethnographie dont l'observation participante comprenait l'analyse de documents, les entretiens de longue durée, l’étude des collections historiographiques et la littérature spécialisée médicale-psi. La mobilisation des hommes trans et autres sujets trans masculins a été suivie, ainsi que le travail des médecins et autres professionnels de la santé et des agents de l'État dans le contexte institutionnel et personnel, que ce soit dans les services de santé, dans les espaces de socialité, d'activisme ou de gouvernement pour comprendre leurs performances et leurs expériences. En partant de la région métropolitaine correspondant à la ville de Fortaleza, au Ceará, nous avons cherché à générer une image de l'hétérogénéité des agents impliqués dans la formation des soins de santé comme instrument de base de la citoyenneté trans et comme espace d'activité scientifique bénéfique à la vie. Ainsi, il est privilégié de décrire des interprétations locales de différents groupes sociaux, mais qui entrent en relation pour établir la pertinence d'une transition biologiquement sûre. Le présent texte se concentre sur la mise en évidence des flux de connaissances des sciences biochimiques, et pas seulement du psi, aux côtés des transformations de l'approche médicale face aux transsexualités. Ainsi, les stratégies politiques qui permettent aux sujets trans de revendiquer la nécessité d'une couverture publique des soins médicaux et leur appropriation en différents termes sont décrites. Concernant ce scénario, les formes que les politiques de la vie prennent à l'époque contemporaine et comment les processus trans de médicalisation et de production de science qui permettent l'existence et l'amélioration de soi face aux interventions cliniques et chirurgicales sont mises en évidence, ainsi que la production de conflits et de contradictions. En ce sens, la production de réinterprétations des connaissances biomédicales, liées à la mobilisation sociale des services de santé structurés par l'État, a constitué un activisme biosocial qui politise les changements corporels également au niveau moléculaire. Ces interactions organiques doivent être contrôlées par une assistance biomédicale afin de prévenir les maladies qui en résultent. On assiste ainsi à de nouvelles caractéristiques de la médecine trans qui se placent différemment par rapport aux premières approches pathologiques, qui forment une scène multiforme de points de vue divergents. Tout cela rend possible la formation d'un champ social spécifique à la santé trans en tant que question politique et scientifique. Il s'agit d'un extrait de la vie sociale observée et, en ce sens, il a été investi dans l'exposition d'expériences ethnographiques qui délimitent les pratiques corporelles, les agences, la subjectivation, les mouvements pour les droits à la santé, les trajectoires biographiques, les soins, les itinéraires thérapeutiques, les processus de la maladie, la dynamique professionnels, la production scientifique de connaissances, les interventions biomédicales et la formation de l'État brésilien à travers la circonscription sociologique du Processus Transexualizador dans le Système de Santé Unifié. Mots-clés: Santé trans. Médecine trans. SUS. Droits. Transsexualité. Ceará. Santé publique. Biocity. Activisme biosocial. Transition de genre. Biopolitique. Processus de subjectivation. Hommes trans. Brésil. Anthropologie de la santé, ethnographie. LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS ABPS Associação Brasileira de Psicodrama e Sociodrama ABRASITTI Associação Brasileira Profissional pela Saúde Integral de Pessoas Trans, Travestis, Transexuais e Intersexo ACETRANS Associação Cearense de Homens Trans ANTRA Associação Nacional de Travestis e Transexuais APA Associação Psiquiátrica Americana APS Atenção Primária à Saúde ABS Atenção Básica à Saúde ATASH Atendimento Ambulatorial em Sexualidade Humana (HSM) ATRAC Associação de Travestis do Ceará ATRANSCE Associação Transmasculina do Ceará CID Classificação Internacional de Doenças da OMS CR Centro de Referência LGBT Janaína Dutra DSM Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders FEBRAP Federação Brasileira de Psicodrama GRAB Grupo de Resistência Asa Branca HSM Hospital de Saúde Mental Prof. Frota Pinto IBRAT Instituto Brasileiro de Transmasculinidades LAMCE Grupo Liberdade do Amor entre Mulheres Lésbicas do Ceará LGBT Lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais MEAC Maternidade-Escola Assis Chateaubriand OMS Organização Mundial da Saúde PT Partido dos Trabalhadores SBRASH Sociedade Brasileira de Estudos em Sexualidade Humana SERTRANS Ambulatório Serviço de Referência Transdisciplinar para Transgêneros SoC/WPATH Standards of Care, da World Professional Association for Transgender Health WPATH World Professional Association for Transgender Health LISTA DE ILUSTRAÇÕES Figura 1 Mapa Político da Cidade de Fortaleza, Ceará............................................... 59 Figura 2 Mapa de sítios do trabalho de campo.......................................................... 77 Figura 3 O indivíduo psicologizado.......................................................................... 115 Figura 4 Reportagem “Mudança de sexo, pioneirismo na AL” n’O Estado de S. Paulo 121 Figura 5 Tributo ao Dr. Roberto Farina pelo Gender Networker.............................. 126 Figura 6 Quadro de Sintomas do Critério A do diagnóstico de Disforia de Gênero do DSM-5.................................................................................................. 161 Figura 7 “Disforia”, de Jorge Oliveira...................................................................... 199 Figura 8 Mapa dos Serviços com atendimento em saúde trans.................................. 220 Figura 9 Mapa de itinerários terapêuticos de transição de gênero.............................. 233 Figura 10 Divulgação da Audiência Pública da DPGE................................................ 246 Figura 11 A Mesa...................................................................................................... 249 Figura 12 Os especialistas.......................................................................................... 250 Figura 13 Gráfico “Sou” ........................................................................................... 260 Figura 14 Convocação da Campanha para o Ambulatório Transexualizador no Ceará......................................................................................................... 296 LISTA DE TABELAS Tabela 1 Lista genérica e cronológica de experiências etnográficas............................. 78 Tabela 2 Relação de homens trans / transmasculinos entrevistados........................... 82 Tabela 3 Relação de médicas e médicos entrevistados.................................................. 87 Tabela 4 Classificação diagnóstica da transexualidade no DSM (1952-2013).............. 156 Tabela 5 Serviços e áreas profissionais no Processo Transexualizador atual............... 226 Tabela 6 Síntese dos procedimentos oferecidos no Processo Transexualizador......... 221 Sumário – Introdução – ................................................................................................................................. 18 A saúde trans como problema de pesquisa........................................................................................................ 18 As tensões brasileiras entre gênero e sexualidade ............................................................................................. 30 A biomedicina contemporânea e a heterogeneidade do campo social da saúde trans ............................... 44 “Primeiro o meu Ceará” ....................................................................................................................................... 51 A escrita e a organização desta tese .................................................................................................................... 60 – Capítulo 1 – Um exercício de objetivação participante ................................................................ 64 1.1. O etnógrafo objetivado ................................................................................................................................. 64 1.2. Primeiros passos numa rede ......................................................................................................................... 67 1.3. Chegando em Fortaleza ................................................................................................................................. 73 1.4. Acompanhando e entrevistando homens trans e outros sujeitos transmasculinos ............................. 80 1.5. A etnografia de/entre setores estatais ......................................................................................................... 83 1.6. Seguindo médicos, cientistas e práticas científicas .................................................................................... 85 1.7. Reflexividade, ética antropológica e o Comitê de Ética da UFRN ........................................................ 88 1.7.1. A vida cotidiana da pesquisa ................................................................................................................. 88 1.7.2. O antropólogo sob o teste do desejo e da subjetividade .................................................................. 92 1.8. Compreendendo escalas ................................................................................................................................ 95 – Capítulo 2 – Os fluxos socioculturais da transexualidade............................................................ 96 2.1. Quando o todo é uma parte.......................................................................................................................... 96 2.2. Um antropólogo e um assunto espinhoso ............................................................................................... 102 2.3. Uma breve história da ciência sexual ......................................................................................................... 111 2.4. O caso brasileiro: a “heterossexualidade de alma” .................................................................................. 117 2.5. A explicação da raridade clínica ................................................................................................................. 127 2.6. A produção cultural cearense e as políticas da representação trans ..................................................... 131 2.7. Quando a parte é um todo .......................................................................................................................... 141 – Capítulo 3 – Corpo, aflição e adoecimento na linguagem das emoções .................................... 144 3.1. Na trilha da etnografia ................................................................................................................................. 144 3.2. Sob a ciência de um manual de saúde ....................................................................................................... 152 3.3. Contra a patologia ........................................................................................................................................ 166 3.4. Transição de gênero, adoecimento e emoções ........................................................................................ 174 3.4.1. A disforia como categoria classificatória do sofrimento ................................................................ 180 3.4.2. Fibromialgia: outra dor contestada .................................................................................................... 186 3.4.3. Um enfermo cuidando de si mesmo.................................................................................................. 189 3.4.4. Enquanto a mamoplastia não vem ..................................................................................................... 193 3.4.5. A linguagem dominante contra si mesma ......................................................................................... 198 3.5. A conquista da cidadania em saúde ........................................................................................................... 204 – Capítulo 4 – A política de saúde trans e os processos de formação de Estado .......................... 206 4.1. À procura de atenção...................................................................................................................................... 206 4.2. Uma construção de processos estatais e o campo da saúde .................................................................. 213 4.3. Os efeitos sociais do Processo Transexualizador .................................................................................... 216 4.4. A conquista do biológico ............................................................................................................................ 237 – Capítulo 5 – Biologia como política ........................................................................................... 239 5.1. A vida e a política ......................................................................................................................................... 239 5.2. O governo pela esperança ........................................................................................................................... 244 5.3. Os caminhos da biopolítica ........................................................................................................................ 257 5.4. Breve recurso à história de um começo .................................................................................................... 273 5.5. Em nome dos direitos, reunidos no templo ............................................................................................ 286 5.6. “Eu também quero ser SUS”...................................................................................................................... 293 5.7. Vidas em risco e ativismo biossocial ......................................................................................................... 299 5.8. Conflitos sociais e saúde .............................................................................................................................. 311 – Capítulo 6 – Sensibilidades e medicina trans no sertão ............................................................. 313 6.1. Para uma antropologia da medicina trans à brasileira............................................................................. 313 6.2. Formação e dinâmica do cenário médico cearense ................................................................................. 322 6.3. Trajetórias de sensibilização e carreira médica ........................................................................................ 327 6.4. Visões afirmativas ......................................................................................................................................... 348 – Conclusão – As políticas do cuidado na saúde trans ................................................................. 350 – Referências – .............................................................................................................................. 360 Anexo 1 – Sinopse de A Força do Querer ...................................................................................... 395 Anexo 2 - Quadro sinótico. Ambulatórios TT no Brasil. .............................................................. 396 18 – Introdução – A saúde trans como problema de pesquisa No final do segundo semestre de 2019, em Fortaleza, a Secretaria de Estado de Saúde do Ceará (SESA) concluiu, junto ao Ministério da Saúde, a regulamentação de um Serviço de Atenção Ambulatorial Especializado no Processo Transexualizador com instalação no Hospital de Saúde Mental Prof. Frota Pinto conhecido popularmente como “o Mental”. Ao ser reformado para os novos pacientes fora anunciado em ocasiões políticas como “medida sensível” da gestão do governador Camilo Santana (PT). Embora alguns procedimentos cirúrgicos tenham sido realizados noutro serviço da cidade a título experimental, não existia nenhum Serviço de Atenção Hospitalar Especializado regulamentado nesse sentido até então no Sistema Único de Saúde (SUS) da região. Essas são as duas atenções que compõem atualmente a política de saúde trans brasileira como parte da Política Nacional de Saúde Integral LGBT lançada em 2008 pelo Ministério da Saúde. O que poderia parecer uma simples assinatura de papeis burocráticos e um arranjo técnico em saúde, é, na verdade, o resultado de um amplo, intrincado e longo processo sociopolítico – e cultural – de instituição de um campo de saúde no qual pessoas precisaram ocupar posições sociais enquanto pacientes1, ativistas políticos, profissionais de saúde, médicos, cientistas, técnicos e burocratas estatais na formação de um universo social próprio de uma outra legitimidade médica e social para a transexualidade. Esse ambulatório é tanto “um resultado” como tem sido um grande eixo de atração animadora da atenção à saúde, ao cuidado e aos direitos trans no Brasil. Entretanto, essa tese não é estritamente sobre o nascimento dessa política de assistência nem é sobre o surgimento desse serviço em Fortaleza, mas trata do universo social que os torna 1 Havia no campo um uso difuso dos termos cliente e paciente para se referir àquele indivíduo que recebia cuidados e consultava um profissional de saúde. O uso de cliente buscava demarcar uma visão de que quem estava sendo cuidado era um sujeito autônomo que contratava ou utilizava um serviço. Acontece que paciente também poderia ocupar esse sentido. Mesmo compreendendo o intuito do termo cliente, principalmente por médicos e médicas, prefiro usar aqui paciente ao me referir a sujeitos quando estiverem em relação com médicos por considerar que apesar da busca pela demarcação da autonomia de todos os envolvidos no processo terapêutico a posição desse profissional continua sendo a de alguém que detém um conhecimento e foi treinado para atuar num serviço de saúde. Uma relação que implica cuidadores e cuidados mesmo que aquele que recebe cuidado também se cuide. O termo cliente, contudo, se torna cabível quando há uma relação social monetizada entre o paciente pagante e o profissional que oferece um serviço pago. Então, meu uso do termo paciente busca deixar em evidência a existência dessas relações e as posições dos sujeitos nelas, bem como o âmbito governamental de onde partem. Assim, não concebo que palavras isoladas possam esclarecer seus sentidos sem descrevermos o contexto no qual ganham vida. 19 possíveis e que os extrapola. Objetivo entender quais foram as condições sociais para a constituição brasileira do que chamarei de campo social de saúde trans. Posiciono no coração dessa inquirição a busca pela compreensão de como tal legitimidade foi operada coletivamente junto da consolidação da figura do homem trans no âmbito da cidadania, como identidade social e enquanto foro terapêutico. Para tanto, descrevo e pergunto quem e quais foram os agentes, as forças e os campos sociais – e a relação entre eles – que se construíram e atuaram para erigir cuidados voltados a pessoas que transicionam entre gêneros/sexos como um objeto legítimo aos esforços estatal e científico em torno do SUS. Isso se coloca para responder principalmente: em que consiste, no presente, essa legitimidade médica ou em saúde para a transexualidade? Nesse sentido, essa tese disserta sobre mudanças: mudanças sociais no campo das identidades, da sexualidade, das subjetividades, das políticas e do poder, dos corpos, das instituições, do cuidado e da organização social. Os dados empíricos construídos aqui advêm primordialmente de etnografia realizada na cidade de Fortaleza e sua região metropolitana e alcançam o quadro nacional e exterior ao país cujo contexto se insere, se diferencia e movimenta cultural, política e socialmente. A tese procura observar elementos culturais próprios às dinâmicas cearenses e àquilo que as transborda, não visando replicar um “estudo de comunidade” nem sucumbir à “tentação da ilha”, mas dar conta da “complexidade” que caracteriza, a seu modo, a vida urbana e a sociedade a nível regional e nacional. Quero entender o que se mostrou ser uma interconexão de diferentes níveis e escalas do problema da pesquisa. Além do mais, esse trabalho não se restringe ao que é comumente entendido como “saúde” porque tal campo não existe como uma ilha e tudo mais que acontece “fora” dele lhe afeta e é por ele influenciado de algum modo. As paredes dos serviços não cerram a “saúde”. A perspectiva antropológica sobre a saúde a compreende como uma categoria que agrupa, de maneira larga, representações, práticas, relações, saberes, discursos, instituições e espaços socioculturais e políticos que buscam inscreverem-se como formadores e explicativos da vida humana e dos processos físico-morais2 que a atravessa, e não se restringe a questões envolvendo processos de adoecimento e cura. Mesmo considerando a diversidade subdisciplinar, saúde se refere a tudo aquilo que produz e rompe a vida e os saberes construídos para explicá-la e resolver problemas percebidos. A disciplina estuda os processos de saúde e doença, suas categorias e tratamentos, o corpo, biotecnologias, sistemas de atenção à saúde como fenômenos sociais circunscritos por contextos econômicos, políticos, ecológicos e culturais. Como mostra Didier Fassin (2012 [2005]), a área da disciplina preocupada com a saúde tem se desenvolvido grandemente desde suas preocupações com aquilo que define a vida e suas classificações. Assim 2 Luiz Fernando Dias Duarte (1994) propôs o uso de físico-moral ao invés de biopsicossocial como uma forma de contrabalancear o dualismo corpo e mente que deu nascimento à locução e noção de doença mental, e assim assumir uma postura comparativa e relativista. 20 como o autor, me a alinho a uma antropologia das políticas da vida para compreender formulações sobre a saúde e a saúde mental como categorias da biomedicina “ocidental” (e ocidentalizada), mas que estão situadas num vasto mundo social com outros agentes. De modo similar ao quadro francês que Fassin (2012) descreve, a saúde apareceu em campo como um resultado da ausência de doença ou como produção de bem-estar fruto de interações de órgãos e elementos moleculares. Havia ainda um forte engajamento para mostrar que as relações sociais podiam fazer adoecer e impediam o manejo de recursos para se manter uma vigília diante da biologia dos corpos. Assim, estive preocupado teórico-metodologicamente com diferentes objetos que implicam referências também diversas: serviços de saúde, documentos e agentes estatais e militantes, perspectivas e trajetórias individuais de médicos, dinâmicas sociais, protocolos biomédicos, organizações políticas, produção de conhecimento científico, socialidades e sociabilidades, processos estatais, representações sociais e práticas sociais e corporais. Além disso, procurei olhar para o cenário de arte e de produção midiática, jornalística e teatral como uma forma de ultrapassar linhas definitivas entre o que poderia ser considerado interno e externo e enquanto uma maneira de verificar o alcance do objeto geral base para a discussão que empreendo aqui, dado a crescente mediação que caracteriza a sociedade brasileira e os lugares que a produção cultural tem na disseminação e conformação de práticas e saberes, isto é, na sua capacidade de tornar público os problemas analisados. Isso também corresponde a minha preocupação de não subsumir as vidas que observei em considerações biomédicas isoladas. Procurei me manter fiel a essa visão, segundo um holismo metodológico (Duarte, 1998b), que tem caracterizado tanto a antropologia para dar conta de um campo que se apresenta como vasto e intrincado na sua diversidade e reprodução social. Por isso, no decorrer da tese, a etnografia integra análises concorrentes a esses domínios e seus agentes sociais, uma vez que participam, afetam e são produzidos pelo cenário da saúde trans. O universo social da transexualidade se refere, assim, a dinâmicas sociais e políticas de um cenário de diversos agentes reunidos pelas explicações, disputas, controvérsias e contradições diante da biomedicina que tem a circunscrito como um contingente específico de intervenções, pessoas e corpos. Conforme vi em campo, essa medicina não é apenas biológica, ela é tanto física como química, e a clínica não é levada à prática apenas com questões psicológicas. Isso tanto tem solapado diferenças relativas a processos de “mudança de gênero” desde muito presentes em diferentes grupos sociais ocidentalizados e sociedades autóctones ao redor do mundo, como tem sido uma dimensão concorrente de outras formas que compõem uma diversidade sexual e de gênero no presente (ver Connell, 2012). Além disso, é possível dizer que não há um controle absoluto, mas sujeitos, redes e relações heterogêneas que tem a biomedicina como um eixo de atração. O que não é o mesmo de dizer que sempre existiu a transexualidade em toda a história e 21 em todas as culturas humanas, mas que a irradiação do conhecimento médico tem percorrido desde suas formulações iniciais o mundo inteiro. Mesmo que eu considere que as transexualidades não são as únicas formas de organização e conferição de sentido biossocial dessas experiências, esta tese se restringe em seu escopo, objetivos e alcances. Aproximo-me também do que Marcos Benedetti (2005, p. 17) concebeu com o conceito de “universo trans” para se referir principalmente às experiências de travestis brasileiras por ver nessa expressão uma forma de “ampliar o leque de definições possíveis no que se refere às possibilidades de ‘transformações do gênero’”. Conforme continua o autor, “esta denominação pretende abranger todas as ‘personificações’ de gênero polivalente, modificado ou transformado, não somente aquelas das travestis”. Partindo de Benedetti, Larissa Pelúcio (2009, p. 24) chamou de “universo travesti” um complexo de relações sociais que não apenas integra esses sujeitos, mas também a clientela e tudo aquilo que entra em contato com elas no mercado sexual de um “universo da noite” (enquanto Benedetti chama de “mundo da noite”) de prostituição para dar conta de um sistema moral e material. Essas duas formulações teóricas são importantes na minha compreensão de um universo específico que não é o mesmo de Benedetti ou de Pelúcio. Isto porque este mundo social que descrevo é atravessado intimamente com as experiências de homens transexuais e outras pessoas tidas pela categoria de transmasculinidade – uma tentativa desse cenário de diversificar identificações com a masculinidade desde aqueles que nasceram identificadas como mulheres. Assim, crio os seguintes objetivos específicos a serem discutidos e integrados ao problema geral desta pesquisa: a) entender como a consolidação da figura social de homens trans contribui para a organização e constituição da saúde trans em Fortaleza e na sua inserção nacional; b) descrever os modos de (auto)cuidado em saúde e a construção de relações e interpretações sobre processos de adoecimento paralelos ou relativos a transição de gênero, observando itinerários terapêuticos, acessos a serviços, dinâmicas médico-paciente e disputas e apropriações dos saberes biomédicos e psi; c) compreender os efeitos sociológicos para a política e para a atenção à saúde trans do Processo Transexualizador do SUS e como isso se insere no quadro mais geral das políticas de governo voltadas a diversidade sexual e de gênero no país; d) descrever como a transição de gênero é reestabelecida como uma prática médica saudável e as diferenciações quanto a isso entre ativistas e pacientes trans, profissionais de saúde e agentes de governo; e) descrever e entender a constituição de um campo de atuação de médicos e médicas que constroem-se como profissionais sensíveis à transexualidade, observando suas trajetórias biográficas, práticas clínicas, concepções sobre sexo, disputas e conflitos que se inserem e as interpretações e explicações que constroem sobre a vida humana para o entendimento e abordagem biomédica. 22 Como já têm demonstrado muitas pesquisas antropológicas e sociológicas – às quais faço referência ao longo da tese – a transexualidade está, como universo reunidor de categorias de pessoas, estreitamente ligado ao desenvolvimento e dinâmicas da biomedicina e, conforme os homens trans têm ascendido à cena política, essa conexão tem ganhado novos relevos na sociedade brasileira contemporânea. Tem se tornado, desde seu início como diagnose até sua transformação e apropriação despatologizada, um núcleo no qual se expõem, se disputam e se produzem limites, contatos, práticas e ideias sobre as relações entre natureza e cultura. Mas esse universo social é muito amplo e não envolve apenas questões e contextos relacionados à saúde; existem gamas variadas de cenários como de atividade judiciária, parentesco, assistencial, educacional, doutrinas religiosas, e tudo mais que emerge como relevante tendo em vista o atravessamento da transexualidade, isto é, esse contexto não contempla tudo sobre essas experiências, mas é nessa dinâmica que estou aqui interessado. Em muito inspirado na metáfora espacial da sociologia dos campos de Pierre Bourdieu (ex. 1989), pretendo dar conta de uma parcela do que compreendo ser o campo social da saúde trans. Entendo isso como a integração de campos sociais cujos agentes, saberes, instituições e práticas, ao atuarem entre si e ao se produzirem internamente, constroem um campo maior quanto ao cuidado e à atenção em saúde voltados para transexuais, transgêneros, travestis, e outras categorias de pessoas a partir do trânsito de gênero/sexo, da manutenção desse trânsito, e de outros cuidados cuja ordem leve em consideração a questão da transição. Assim, esse campo é o encontro de vários campos, os quais detêm seus interesses próprios e suas formas de legitimidade também distintas. Ao entrar em contato esses agentes de origem diversas produzem um choque que expõe tanto essas diferenças como as tentativas de amalgamar um objetivo e um objeto comum à saúde trans. Isso não significa dizer que a medicina, o ativismo trans3, os setores do Estado brasileiro e suas políticas de governo, entre outros, sejam unidades coesas em si mesmas. A análise social dos campos sintetizada por Bourdieu oferece uma oportunidade de focar mais numa dinâmica relacional, e não apenas nas características intrínsecas de cada um desses campos/agentes, já que descreve apropriação, circulação, produção, trocas, saberes, posições, isto é, todos os elementos que conferem legitimidade na prática desde uma arena de disputa e dominação por meio da aquisição de recursos. Nesse sentido, o trabalho desta tese se concentra em entender como o mote transicionar de forma biologicamente segura movimenta e constitui esse campo com seus diferentes agentes e 3 Pesquisadores de dentro e de fora das ciências sociais tem adotado diferentes estratégias textuais para marcar a preocupação de deixar claro que há muitas diferenças dentro do epíteto “trans”, alguns o usam acompanhado de asterisco (Monro, 2004, 2018; Hines et al., 2017; de Jesus, 2012), outros usam hífen (Plemons, 2017), e há ainda o uso entre parêntesis para denotar que os sujeitos não se definem somente através disso (Rubin, 1998; Teixeira, 2009; Oliveira, A. G., 2015). Não emprego essas marcações, de modo que ao utilizar apenas trans já estarei me referindo a um termo guarda-chuva para falar a respeito de todo e qualquer experiência de mudança de gênero mais ou menos permanente, mas as questões que essa tese se coloca endereçam primordialmente a homens e outras pessoas trans com quem interagem e que usam o termo como adjetivo trans enquanto diminutivo de transexual. 23 conhecimentos. Relutantemente da minha parte, essa questão se tornou central para as relações e vida social que estive a observar em campo, obrigando-me a lidar com ela de uma maneira que eu não previra porque, como fui a campo com a postura de contribuir de alguma maneira para a despatologização trans, falar de biologia pareceu a princípio uma contradição. Ao descobrir que a biologia assume muitas formas perspectivas esse problema se dissipou. Como se manipula e organiza hormônios sintéticos e “naturais”? Como as cirurgias são justificadas e racionalizadas? Como aprender a regulação hormonal saudável é tão importante quanto a adoção duma linguagem afirmativa nos serviços de saúde? Como transições de gênero são individualizadas? Quando a justificativa de ativistas e pacientes trans em prol da supervisão médica (despatologizada) usa o argumento da necessidade de ser acompanhado para que a transição não cause adoecimento, ao mesmo tempo que médicos e médicas utilizam-se disso para justificar um atendimento despatologizado e regulado pela biomedicina, ou rejeitam essa clínica e cirurgia, o biológico vem para o centro não apenas da arena política, mas principalmente dos saberes e das práticas em torno do transicionar em termos materiais. O que move esses agentes é, então, mais similar do que aquilo que podem considerar de antemão. Isso tudo me leva a perguntar: o que biologia aí significa e organiza? Como a dimensão material (a nível morfológico e molecular) dos corpos se torna relevante nesse contexto? O que é feito, e não apenas dito, com os diferentes níveis orgânicos dos corpos? Como a transição de gênero em termos físico-morais posiciona a questão de uma segurança biológica principalmente para afirmá-la? Como, com isso, a vida humana é politizada, construída e compreendida física e simbolicamente? E por fim, como a biologia é, portanto, situada? Se formos considerar que a cultura é uma coisa pública – como mostrou Geertz (2008 [1973]) -, e que ela é constituída num mundo que é feito por meio da prática (Bourdieu, 1996a, 1989; 2002a; 2009), cabe perceber como todo esse cenário se publiciza e, ao fazê-lo, como se estrutura e reestrutura. *** Na sua edição de 12 de outubro de 2017, a revista Veja apresentava algo de grande reverberação nesse sentido. A sua capa trazia um título até então incomum ao noticiário brasileiro e, portanto, surpreendente: “meu filho é trans”. Com um fundo branco, a foto apresentava o que sugeria ser um homem de cabelos grisalhos por volta de 40/50 anos de idade e pai; estando de costas, segura uma criança de cabelo longo que olha em nossa direção com um ar de suspeita e cujo rosto vemos apenas parcialmente. Ele a segura em seus braços, e ela o abraça num gesto que pode ser lido como procurando refúgio, proteção e consolo. Giulia Vidale, repórter que assina a matéria incluída no caderno de saúde, trazia como chamada que “os transgêneros fazem parte do cotidiano brasileiro, e já não se pode fingir que não existem, apenas por não combinarem com o 24 padrão”. Quando abri um dos exemplares físicos da revista confirmei a relação de parentesco dos dois sujeitos da capa. Não são modelos fotografados em cena, mas pai e filha da “vida real” como a matéria pleiteia retratar. Virando à página 76, a foto demonstra os dois de frente e de pé enquanto a criança continua de rosto de perfil e o pai totalmente à vista. Uma citação no canto de página termina a introdução visual: “‘no começo fiquei sem saber para onde correr’, diz Anderson, pai de Carolina de 6 anos”. Ao longo da reportagem4 conhecemos histórias de, ao todo, seis famílias diferentes, incluindo pessoas famosas como o apresentador de TV Marcelo Tas e seu filho trans, e a modelo de passarela Lea T., filha transexual do ex-jogador de futebol e atual treinador Toninho Cerezo, que ficou famoso nos anos 1970 ao se iniciar pelo Atlético Mineiro, e cujas narrativas têm atraído particular interesse de jornalistas. Centrando-se na explicação biomédica, essa matéria5 discorre animada pela possibilidade de tal conhecimento apaziguar os ânimos e as dificuldades de se lidar com um filho ou uma filha que se apresenta como de uma identidade de gênero diferente do nascimento. Os pais e mães narram encontros com psiquiatras, pediatras e endocrinologistas como especialistas de uma condição inata. A transexualidade, assim, é narrada como algo próprio do berço, o que deteria na gestação alguma alteração que conformaria cérebros definidos entre feminino e masculino. A jornalista começara seu texto aludindo à telenovela de grande audiência A Força do Querer6, de autoria de Glória Perez, exibida e produzida pela Rede Globo, a quem atribui “aguçada sensibilidade”. Então a dois dias de seu capítulo final, a novela tinha sido um fenômeno de audiência, atraindo mais de 40 pontos marcados pelo Ibope7 ao ser exibida de abril a outubro de 2017. Algo que justificava o grande interesse da sociedade brasileira no tema que a reportagem da Veja apresentava com números estatísticos de uma população aproximada em milhares, opiniões de especialistas e vozes de quem vive a “condição inata”, a “transgeneridade”. Através da telenovela de 172 episódios, pela primeira vez no país esse tipo de obra ficcional veiculava, e com destaque crescente de protagonista, um personagem caracterizado como homem trans. Não apenas isso, estava posto na tela de modo inédito uma descrição de um processo de 4 A Veja havia protagonizado outras reportagens sobre temas de grande intensidade nacional, como o aborto na edição de setembro de 1997, na qual anônimas e celebridades admitiram ter realizado a interrupção da gravidez. “O depoimento das mulheres e a polêmica no Brasil” marcava a capa que levava o título: “Eu fiz aborto”, apresentando ainda fotos de frente das nove mulheres citadas. Oito anos antes, em 20 de abril de 1989, a Veja publicava na sua capa uma foto de Cazuza, roqueiro de grande sucesso que descrevia numa entrevista sua vivência com o vírus HIV, endereçado como a síndrome letal da Aids. “Uma vítima da Aids agoniza em praça pública”, trazia a revista com a imagem do cantor de braços cruzados olhando de frente para a câmera. Até agora outras edições que trataram diretamente da “temática LGBT” na revista são “O que é ser gay no Brasil”, 12/5/1993, n. 1287; “A vida fora do armário”, 25/6/2003, n. 1808, “Sou bi, e daí?”, 21/12/2005, n. 1936 e “Casamento gay”, 10/4/2013, n. 2316. A revista, tem sido, assim, uma tela de grandes temas nacionais, como indicou Carlos Guilherme do Valle (2000) à propósito do HIV/AIDS. 5 Meses antes, em 25 de março, a Veja Rio havia publicado uma matéria de capa homônima, mas de pouquíssima repercussão. Assinada por Sofia Cerqueira, a matéria carioca trazia histórias diferentes da versão paulista no seu caderno Cidades. 6 A sinopse dessa telenovela pode ser conferida nos Anexos. 7 Os pontos de audiência da TV brasileira são medidos pela Kanar Ibope Media, uma empresa que gera o Painel Nacional de Televisão e faz ajustes anuais de quantos lares e pessoas cada ponto representa de acordo com a praça (região estadual a partir da capital) e período no país. Assim, em 2017, cada ponto representava nacionalmente 245,7 mil domicílios, cuja projeção alcançava potencialmente cerca de 688,2 mil indivíduos. Ver Veja (2017), disponível em: . Acesso em: jul. 2019. 25 transição de gênero para homem de uma pessoa identificada ao nascer como mulher, entendido assim como transexual. Essa transição se refere a um reposicionamento social de uma pessoa a partir da mudança de gênero, de homem para mulher ou de mulher para homem, a qual indica reconsiderações subjetivas e institucionais. A dimensão das modificações corporais medicamente assistidas é um elemento central mesmo que haja várias formas delas acontecerem e de se tornarem relevantes. Antes e durante a exibição, Perez enfatizava, por meio de diversos canais de comunicação e propaganda, que detinha uma abordagem inovadora e bem fundamentada sobre vários temas que estaria a tratar, incluindo a transexualidade. Pesquisadores da área de estudos de gênero e sexualidade e ativistas trans8 foram, inclusive, convidados a participar de eventos nos Estúdios Globo para ajudar a telenovelista e outros profissionais da empresa a se apropriarem do debate sobre identidades de gênero e orientação sexual9. Não se pode perder de vista que isso serviu para produzir uma atmosfera para o assunto integrar a ordem do dia. Isso excede três elementos importantes do cinema enquanto tecnologia de gênero, e que se aplicam a telenovela brasileira. Para Teresa de Lauretis (1992), estes se referem ao processo de filmagem, ao produto na tela e a recepção subjetiva a quem se dirige. Esse período “anterior” da obra de Perez é incluído mediante a necessidade da fundamentação para gerar a legitimidade acerca de um tema “polêmico”, muito afeito à própria produção de novelas no Brasil que segue a resposta da audiência e grupos de trabalho de recepção contínuos. Diferentemente de outros similares, o folhetim apresentava-se como não tendo um casal de protagonistas isolados, mas histórias que ganhariam destaque em algum momento da trama, e o núcleo de Ivan (antes Ivana) era um deles. Logo no primeiro dia a conhecemos, uma criança usando o mesmo vestido vermelho que sua mãe, Joyce usa ao seu lado, enquanto passeiam por um shopping center. O plano da câmera as enquadra do alto a baixo mostrando seus vestidos esvoaçarem quando andam femininas, carregando sacolas de compras. Em outra tomada de cena, vemos o irmão, aparentando ser mais velho, enquanto corre, brincando com outra criança. Notamos a felicidade de Joyce em ter tido um “casal de filhos”, um menino e uma menina, narrativa comum nas famílias brasileiras no campo do desejo de filhos e que indica uma ode à reprodução social da heterossexualidade. Isso seria motivo para conflito futuro a partir da transição de Ivan, uma vez que haveria um sentimento de perda evocado principalmente pela mãe que não mais teria a única “filha mulher” para casar-se, ter filhos e continuar a família por via uterina e heterossexual. 8 Estiveram presentes, por exemplo, a socióloga Berenice Bento, o antropólogo Sérgio Carrara, a psicóloga Jaqueline Gomes de Jesus, cerca de vinte ativistas como Amália Fissher e Indianara Siqueira, além do psiquiatra Alexandre Saadeh. 9 Disponível em: . Acesso em: jul. 2019. 26 Durante toda a duração da novela, a autora constrói uma narrativa do que seria a trajetória de um homem trans desde sua “descoberta” e “exame subjetivo de si” até a transição e o momento de paz e tranquilidade que lhe seria o resultado. Constrói-se muito lentamente um drama que se confirma enquanto “social” apenas no que compete ao processo de “aceitação” familiar e pessoal. Muito embora a representação da homossexualidade tenha variado nas novelas desde uma figura criminosa até aquela que Luiz Peret (2005) chamou de “heteronormatizada”, essa imagem de Ivana/Ivan acompanha o foco dado a superação de conflitos advindos da aceitação social, isto é, da “narrativa da revelação”. O elemento “sou assim”, quase naturalista, subjaz de modo permanente. Não há uma explicação acerca da diversidade sexual e de gênero socialmente constituída, mesmo que o novo Ivan continue interessado no antigo namorado, se assumindo homem trans gay e posteriormente descobrindo-se grávido10. A releitura realizada pela família se baseia em encontrar na medicina e na psicologia um ponto de apoio explicativo para reposicionar esse novo sujeito enquanto homem. Essa é uma virada de representação de personagens não- heterossexuais na teledramaturgia brasileira, uma vez que outras histórias estiveram imaginadas num terreno algo intransponível da natureza11. Se tomarmos que as novelas no Brasil detêm, como já apontou Laura Gomes (1991), um alto grau de institucionalidade social, uma vez que as assistir convencionou-se num ritual diário para quase todas as classes sociais, não é de surpreender que todos os interlocutores desta pesquisa falassem a respeito, e que um deles tenha trazido A Força do Querer como um elemento biográfico disruptivo e revelador de si. A popularidade desse tipo de obra ficcional encontra-se, para Gomes, no espaço que ocupa nas conversas e pela forma como catalisa uma discussão nacionalmente. Mesmo com a consolidação da internet no país e no mundo de maneira tão transformadora (Miller et al., 2016), a telenovela brasileira continua a ser um grande veículo de informação e lazer, principalmente para o público que não se interessa ou não tem acesso 10 A Força do Querer entrou nas casas brasileiras com a média geral de 35.5 pontos; seu último capítulo, que mostrou também o “final” de Ivan, se ele iria ou não perder o filho que esperava e se iria ou não voltar para o antigo namorado, registrou mais de 50 pontos no Ibope. Os críticos acostumados à análise de novelas costumavam repetir que “os fãs se emocionam com a história de Ivan”, tendo sido “a escolha de uma atriz estreante um acerto da emissora”. Além de desconhecida pelo público de novelas a atriz escolhida era muito magra e de estatura baixa, repetindo a morfologia corporal atribuída comumente a figura do homem trans. 11 Todas as outras histórias presentes em telenovelas sobre travestis ou mulheres transexuais já apresentavam as personagens após o processo da transição de gênero, não víamos a “descoberta” identitária. De 1995 a 1996, ia ao ar Explode Coração, também escrita por Perez, na qual foi retratada uma travesti interpretada por Floriano Peixoto chamada Sarita Vitta com uma narrativa mais multidimensional e dramas para acessar trabalho formal, preconceito, práticas corporais e desejo sexual. Outras telenovelas e séries brasileiras apresentaram personagens transexuais, mas dentre essas As Filhas da Mãe (2001-2002), de Sílvio de Abreu, se destaca como um marco porque apresentou uma mulher trans como personagem principal. Chamada de Ramona, foi interpretada por Cláudia Raia e sua história seguia as narrativas de brasileiras que costumavam viajar ao exterior para encontrar trabalho e/ou para concretizar a transição de gênero. Ramona volta para o Rio de Janeiro como uma estilista de sucesso, “operada” e é sua história que dinamiza a trama da novela ao lado da disputa de uma herança. Um grande ponto do drama estava em seu par romântico aceitar que ela era uma transexual, vista ainda como parte do espectro da homossexualidade. Há, portanto, um lamento de sua impossibilidade de casar oficialmente dado que a justiça brasileira não permitia a mudança nos documentos nem o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Diferentemente de Ivan, Ramona não foi retratada como ultrapassando o limite do natural homossexual/homem. Essas três telenovelas detiveram grande repercussão de público e crítica e podem ser localizadas nesse longo processo histórico de diversificação das experiências de gênero e sexualidade no Brasil. 27 a produção científica publicada de forma especializada ou a literatura. Algo que movimenta, inclusive, o cenário on-line e se convencionou um medidor da audiência para as redes de televisão. No curso da etnografia conheci Paulo, homem trans, de cor branca, aos 27 anos de idade, que estava morando num abrigo inaugurado em 2018, na cidade de Fortaleza, voltado para receber homens trans “em situação de vulnerabilidade”, e fora mantido enquanto esteve aberto de forma independente pela Associação Transmasculina do Ceará (Atransce) com auxílio de doações. Paulo se mudara há pouco tempo de Mossoró, no Rio Grande do Norte, e buscava refazer a vida no Ceará. Antes, se colocava identitária e corporalmente como mulher lésbica. Sem parentes imediatos que considerasse importante manter-se vinculado, ele passou a viver na capital cearense sozinho. Quando lhe perguntei sobre como fora o processo inicial da transição, querendo que ele pudesse me falar sobre possíveis conflitos e reorganizações no ambiente familiar, a resposta veio acompanhada de como a novela de Glória Perez o ajudou a “organizar suas ideias”. “Foi a partir da novela”, ele falava. Fiquei surpreso nesse momento porque não esperava que a obra pudesse ter impactado sua vida. Ele continua, “eu não me adequava bem em nada, e eu me vi no Ivan”. Paulo ainda não tinha realizado nenhum tipo de acompanhamento médico, nem administração de testosterona quando fizemos a entrevista. “Tenho pouco tempo de transição”, completava; e não estava ainda mais avançado nesse sentido porque não trabalhava e não tinha nenhum tipo de apoio financeiro. Sua única forma de ter um teto sobre sua cabeça era estar morando no abrigo, organizando-se recentemente para vender doces na rua. A ideia de que um personagem, ou alguma personalidade famosa, possa ser um ponto de apoio para ajudar alguém a rever a própria existência de modo subjetivo é um elemento comum presente nas narrativas criadas pelos homens trans brasileiros, visando, portanto, dar sentido às suas trajetórias biográficas. Isso tem suas similaridades com o processo histórico que possibilitou o surgimento da transexualidade entre os Estados Unidos e a Europa12, como descrito por Joanne Meyerowitz (2002). A historiadora relata que muitas pessoas comuns passavam a escrever para jornais buscando saber a possibilidade de mudar de sexo quando, entre as décadas de 1940 e 1950, se deparavam com notícias sobre a possibilidade de mudanças corporais a partir do manejo hormonal em mamíferos e, principalmente, quando a história de Christine Jorgensen foi anunciada pelo New Yorker Daily News em 1 de dezembro de 1952 como o primeiro caso de cirurgia de mudança de sexo13. Os detalhes do processo que levaram Jorgensen a “se tornar” mulher transformou-a numa “sensação de mídia de massa”, fazendo com que sua história “abrisse o debate 12 Mas também concomitante e concorrentemente noutras regiões como o Brasil (cf. Capítulo 2). 13 Me inspirando muito em Eric Plemons (2014, 2017), ao longo da tese eu emprego termos sem aspas como mudança de sexo, redesignação sexual e mudança de gênero que, embora pareçam se referir a mesma “coisa” (a transição entre sexos/gêneros), se referem a contextos epistemológicos e suas práticas específicos sobre o que é o sexo. 28 sobre a visibilidade e a mutabilidade do sexo” nos Estados Unidos (Meyerowitz, 2002, p. 2) e sendo um grande marco tanto para a cultura de massa como para a ciência biomédica (Stryker, 2017; cf. Jorgensen e Stryker, 2000)14. Contudo, a telenovela de Perez coloca em evidência outra questão. Algo que aponta para uma mudança considerável do cenário brasileiro num curto período. Quando eu realizei pesquisa etnográfica em Natal para minha dissertação de mestrado entre 2014 e 2015, as referências que os ativistas homens trans faziam eram geralmente aquelas que se remetiam a produções midiáticas de ficção estrangeiras: eram filmes como Boys Don’t Cry (1999)15 e a série de TV The L Word (2004- 2009)16 (Rego, 2015, 2017). Os primeiros contatos que estabeleci no país naquele período eram com alguns pouquíssimos homens trans que criavam canais no YouTube para registrar uma espécie de diário falado da transição de gênero, e através de eventos de militância LGBT. A telenovela de Glória Perez e as suas reverberações sociológicas demonstram que as questões trans, através grandemente da figura do homem trans, entraram de vez no cenário brasileiro atual de modo a atualizar um debate nacionalizado a respeito. Isso por causa do caráter de massa que a telenovela atingiu desde muito na sociedade brasileira como um grande catalizador de temas conservadores e progressistas (Leal, 1983; Ortiz, Borelli e Ramos, 1988; Gomes, 1991; Santos, 2000; Souza, 2004), pois, como ouvíamos na época da exibição da novela, e como me contou Paulo, pessoas que nunca haviam falado no assunto ou antes encontravam reservas sobre a natureza humana se sensibilizavam com o sofrimento do personagem trans de Perez num sentido surpreendente17. O reconhecimento e o apoio vinham por meio da espetacularização dramática da dor, de modo que a ficcionalidade do personagem ajudava a criar a possibilidade de uma identificação e de uma conexão que não tinha havido exatamente com a figura de Roberta Close. A telenovela consegue, portanto, ser ainda mais penetrante na consciência coletiva porque produz, na simulação, histórias que se transformam em memórias na tela, um espetáculo da diferença que informa e anima o ativismo e a identificação social para além de pessoas trans. Essa formulação de mundos sociais mediados tem sido apontada por antropólogas e antropólogos preocupados em como telenovelas e outros gêneros televisivos continuam a ser importantes na contemporaneidade (Abu-Lughod, 2005) e não fósseis de um passado que teria sido substituído pela internet. Esses 14 Na década de 1970 temos médicos brasileiros se referindo a transexualidade como jorgensenismo. 15 Filme sobre a trajetória não-ficcional de Brandon Teena, homem trans que foi assassinado em 1993. Foi dirigido pela diretora Kimberly Peirce e deteve consideráveis efeitos sociais nos EUA (Rubin, 2003), e como se percebe também no Brasil. Houve uma tensa disputa sobre a identidade de Brandon, se seria homem trans ou uma mulher lésbica. Para observar essas “guerras de fronteira” como chamou Rubin (2013) pode-se consultar Tania Navarro-Swain (2000) que descreve Bradon como uma lésbica e Judith Halberstam (2005) que o vê como queer (cf. ainda Rego, 2017 sobre esses conflitos no Brasil). 16 Exibido pelos canais Showtime e Warner Bros, o seriado de 6 temporadas trata das histórias de vida de um grupo de mulheres lésbicas e bissexuais. Moira Sweeney, uma das personagens principais realiza a transição para homem, passando a se chamar Max. 17 Mesmo que, ao mesmo tempo, tenha havido uma reação negativa ao personagem e à trama por parte de críticos religiosos e de críticos que consideravam a novela pouco linear na sua história. 29 sítios concorrem e se complementam. Até porque esse não é um caráter recente na organização da vida social, a mediação pela imagem ocupa lugares variados mesmo antes das tecnologias dinamizarem a disseminação da televisão e do cinema; de modo que é importante se abster de recriar “lógicas opostas”, e ver que a televisão tanto engendra efeitos hegemônicos como anti- hegemônicos (Ginsburg, Abu-Lughod, Larkin, 2002, p. 23). Mas é preciso ver a telenovela, por seus elementos próprios e não apenas como parte da TV brasileira, como é um caso particular dessa produção da realidade social mediada, de seu consumo, produção e circulação; e como isso posiciona de forma mais direta, perceptível – enquanto elemento palpável no campo – e atualizada de várias maneiras o que antropólogos18 têm apontando desde muito a respeito dos impactos da televisão no mundo. Embora não seja o caso de fazer uma análise à parte nesse sentido, a maneira como e o porquê essas mediações se tornarem relevantes na vida social em geral e no campo de pesquisa indicam a altíssima efervescência da mudança de gênero no país aliada ao escopo da transexualidade. Entretanto, no Brasil, foi primeiro a história não ficcional de Roberta Close que movimentou o país em larga escala quando em 1989, aos 20 anos de idade, realizara a cirurgia de mudança de sexo no exterior. Se, nos anos 1990, o debate brasileiro crescia como crescera o estadunidense décadas atrás, somente em 2017 com a história de Ivan é que se retoma na mesma proporção, agora no lado dos homens, a discussão sobre outra forma de transexualidade. Apesar da biografia de João W. Nery (2012) relatar que ele realizara sua cirurgia de mamoplastia aos 27 anos de idade em 1977, sua publicidade não gerou o mesmo alcance que essas histórias anteriores, dada principalmente a clandestinidade do procedimento não autorizado pela legislação que o obrigara a se manter em silêncio à sua época19. O mesmo se passara com Waldirene, que em 1971 obteve a cirurgia de mudança de sexo no Hospital das Clínicas em São Paulo, de modo ilegal20, e não obteve a mesma amplitude midiática e pública que Roberta. O resgate dessas duas figuras (João e Waldirene) é um artifício memorial do presente dessas décadas e não produtos midiáticos do período em que aconteceram. Assim, o tipo de veiculação midiática que logrou massificação à história de Ivan a respeito do que seria um homem trans contribui para sua relevância social e 18 Como o fizeram Raymond Williams (1974) que chamou a TV de “forma cultural”; Arjun Appadurai (1991) com seu conceito de mediascapes para descrever a paisagem midiática como uma das formas nas quais os fluxos culturais navegam globalmente e Lila Abu- Lughod (1997) sobre como a interpretação da cultura estaria transformada com o advento e relevância da televisão para disputas políticas e representação social indígena e colonial. 19 João Nery é uma figura presente para organizar o ativismo de homens trans no Brasil, principalmente a partir das ações do Instituto Brasileiro de Transmasculinidades (IBRAT) e de sua movimentação pela Internet nos últimos anos junto da reedição de sua biografia em 2012. Em Fortaleza, a figura de Sílvio Lúcio, 54 anos, é trazida como “o primeiro homem trans do Ceará”, personagem a ser respeitado e ouvido. Isso nos mostra como os contextos “regionais” e “nacionais” não estão coadunados em uníssono, podendo as estratégias de ação política ser grandemente diferenciadas para além das escalas. Muito embora a estratégia da memória que ativa agentes do passado para justificar o presente aconteça e use tanto de João como de Sílvio, o movimento de Fortaleza fala do homem trans do presente, em como ele não tem o que comer, nem onde dormir por ter sido expulso de casa, a estratégia local é mostrar como se vive em Fortaleza e como se precisa de proteção do Estado para não adoecer devido a transição. 20 Disponível em: . Acesso em: 1 ago. 2018. 30 política no país. Contudo, o que tornou possível que esse sujeito ocupasse um papel de personagem protagonista numa obra ficcional de tamanha propulsão cultural e econômica, principalmente se considerarmos o cenário brasileiro neoconservador que tem dominado ultimamente as discussões políticas? É exatamente o estigma que esse personagem incorpora que o torna atrativo como um drama que é ritualizado e espetacularizado. Mais do que isso, a pergunta relevante a ser colocada é: como social, política e culturalmente um sujeito, tido como novo ou emergente em todos os contextos que se insere atualmente, se consolida como uma pessoa específica a ser reconhecida no Brasil? A novela levantou o debate nacional, mas ela não pode ser vista como a pedra de toque desse movimento sociocultural, mas como um de seus desdobramentos e consequências possibilitados por relações, práticas e agências sociais crescentes em articulação nas últimas décadas. Ela é, no presente, uma forma de publicização específica dessa geração, mas que pode ganhar outras feições no futuro. Assim, se Roberta Close foi um objeto de tensões culturais, assim como João Nery e o ficcional Ivan, outros personagens podem surgir como relevantes nos seus próprios períodos históricos. Ivan não viveu dramas em todas as áreas da vida social, era membro de uma família rica e obteve o maior empecilho até que recebeu a aceitação de seus pais que financiaram os procedimentos necessários para a transição. Algo que diferencia grandemente as histórias dos interlocutores trans que narrarei nesta tese. Não se trata de cair em histórias fáceis e difíceis. A ligação que Ivan produz com alguém de outro estrato social está naquilo que seu espetáculo pode oferecer para pensar o eu e sua mudança, corporal e subjetivamente. As tensões brasileiras entre gênero e sexualidade A existência na vida comum, a participação na população e no movimento de lésbicas, gays, travestis e transexuais (LGBT), a conformação de um sujeito a ser cuidado e que cuida de si, e a própria corporificação de um cidadão específico que demanda políticas do Estado se circunscrevem para gerar “o homem trans” como problema social reconhecível e legítimo. As dificuldades em face à transição, ao cuidado da saúde integral, à educação, à moradia, ao ingresso no mercado de trabalho, à vida afetivo-sexual, à violência etc. se tornam problemas amplificados pela propulsão desse movimento maior acerca da diversidade sexual e de gênero. Mas, ao se proporem como “específicos”, esses sujeitos muitas vezes encarnam conflitos e disputas ao serem acusados de divisores e individualistas, principalmente porque o discurso principal dos ativistas tem sido o da “invisibilização”, o que demanda mais ações e mais políticas para serem vistos e cuidados. É nesse passo que a atenção à saúde fornecida pelo Estado nasce como objeto de engajamento político tão centralizador. É a condição para realizar qualquer outro alcance cidadão. Assim, ao mesmo tempo em que há essa dinâmica, ela é também um indicativo de que o movimento 31 transmasculino e a identidade de homem trans é o resultado da efervescência dessa grande rede que se entende como uma comunidade imaginada de “sujeito LGBT” que tem um percurso histórico transformado pela sua entrada no Estado brasileiro via políticas de governo nas quais homossexuais, travestis e pessoas trans são foco de atuação e intervenção, e cuja base principal esteve materializada no final do Governo Lula com as suas Conferências Nacionais LGBT desde 2008 (Aguião, 2014). Esse é um cenário diverso que me fez perceber a importância de compreender nesse estudo não apenas os homens trans como grupo unificado ou como pessoas agrupadas para os propósitos dessa pesquisa. Isso tanto advém da multiplicidade de experiências que impedem um sujeito único, dados tantos demarcadores sociais diferentes, como se refere à ausência de qualquer isolamento enquanto ser social. Como as vidas dos interlocutores são construídas por causa de suas relações com diversos agentes e instituições, é desejável como condição para entendê-las incluir na pesquisa todo esse conjunto de pessoas em relação como um universo social. Mas a minha reação inicial foi de desconforto quando eu me deparei à primeira vez com as disputas nas quais estavam envolvidos os interlocutores, seja em torno de espaço no ativismo ou para atendimento específico nos serviços estatais e de saúde. A preocupação estava em como eu iria explicar e descrever um cenário tão disputado sem me sentir traindo um ou outro grupo de agentes. Como explicar pelos próprios termos de cada um suas intenções, práticas e significados culturais, ao mesmo tempo que olharia para o total da rede social que conformam? Lembrar que a ideia de uma sociedade fechada ou de um grupo fechado em si mesmo não apenas é irreal em termos antropológicos, como é uma ideia romântica e positivista da prática disciplinar, levou-me a olhar para as complexidades que se estabelecem mesmo dentro de relações entre sujeitos agrupados e a olhar historicamente para suas formações. Percebi que os conflitos e as disputas não estavam postos a esmo em Fortaleza, não eram fruto de indivíduos instáveis que se desagradavam uns com os outros, como queriam fazer crer algumas interpretações desse ou daquele interlocutor. Essas contendas eram uma reverberação e parte do estabelecimento dos homens trans como sujeitos específicos, como problema social reconhecível e legítimo dentro do mesmo movimento de legitimação da saúde trans. Nisso, muitas vezes, a complexidade de suas experiências pode ficar subsumida no discurso central da figura a ser estabelecida, o que também poderia ser um propulsor de conflitos. Atentar que os “homens trans” e o seu cuidado em saúde é um problema social construído habilita essa pesquisa a ações indispensáveis para sua realização. Diante disso, o problema dessa pesquisa deixou de ser em si a constituição política e social de homens trans como sujeitos, e se tornou a constituição política e social de um campo social, o qual se dinamiza grandemente pela conformação desses indivíduos como sujeitos consolidados. 32 Esse campo é composto de vários campos, e se refere ao universo social da transexualidade com diferentes agentes e regras próprias de onde partem. O que estou denominando como saúde trans é como um amálgama de difícil fundição. Mas, porque então não incluir travestis e mulheres trans também, já que a pesquisa se tornou sobre um campo social da saúde trans e não somente sobre os homens trans?21 Tendo tido uma entrada particular desde esses últimos sujeitos me possibilitou perceber que eles detêm uma dinamização sociológica que anima em grande parte a vivificação desse campo social. Mas isso não impediu que a etnografia registrasse interações e diversas questões que envolviam essas outras interlocutoras. Esse é um recorte metodológico da pesquisa também porque são esses agentes sociais os que detêm menor espaço nas pesquisas realizadas até a atualidade. Apesar dessa especificação, a saúde trans que aludo não é apenas uma “saúde trans transmasculina”, porque meu objetivo é justamente demonstrar o cenário abrangente no qual homens trans e transmasculinos se movimentam mesmo que referências a outros sujeitos trans e travestis e homossexuais (e até outras formações identitárias) estejam presentes. O que no âmbito do gênero e da sexualidade não-heterossexual é na atualidade remetido a um número crescente de categorias de sujeitos, às vezes tão rigorosamente delineados e essencialmente explicados, já foi entendido como ocupando um espaço nomeado de homossexualidade – e seu posterior plural – para se agrupar práticas sexuais, desejo, identidades, organização social, expressões e noções de pessoa. O germe da organização política da mobilização brasileira em torno do que já se chamou de homossexualidades – isto é, desde o encontro de sujeitos com a estrutura estatal e seu reconhecimento – tem sido geralmente localizado no seio das (renascentes) agrupações de esquerda e da agitação pela liberdade que ganharam corpo, nas décadas de 1970 e 1980, com a resistência à Ditadura Militar de 1964 e seu posterior período de redemocratização desde os centros político-econômicos do país (MacRae, 1990; Valle, 2000; Green, 1999, 2000b, 2003, 2012; Quinalha, 2017). Uma consulta, ainda, aos documentos produzidos pelas comissões dos constituintes de 1987 mostra as disputas pela inclusão da menção à proteção de homossexuais nos objetivos fundamentais da República. O termo “orientação sexual”, usado pelos ativistas, acabou sendo excluído no último minuto para dar lugar a expressão “quaisquer outras formas de discriminação”22 por pressão de deputados e deputadas cristãos evangélicos e católicos. Mesmo sem essa inclusão, a atual constituição brasileira teve efeitos sociopolíticos consideráveis na vida cotidiana brasileira no que tange a organização em torno de direitos e ações coletivas no que se refere à diversidade de gênero e sexualidade – assim como o 21 As pesquisas em geral nesse tema trazem ou apenas mulheres trans ou como a maioria dos interlocutores, isso acaba colocando algumas questões específicas. Ver Carla Machado (2010) para um panorama nesse sentido. 22 O artigo 3º da Constituição de 1988 determina os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, e em seu inciso IV estabelece que o país deve “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”. Ver Arquivos da Constituinte de 1987/1988 do Senado Federal, e Robert Howes (2003). 33 fez noutras esferas da vida coletiva. Isso forma um uníssono geralmente batucado para ouvidos moucos: esse não é apenas o espaço do privado, mas está no centro da política nacional, cujos difíceis lugares contravertidos permanentes indicam a indispensabilidade de entender a primeira para compreender a segunda e vice-versa. Nesse sentido, Richard Parker (1999, p. 2, tradução minha) mostrou que a homossexualidade serviu como “um marcador chave da diferença em relação a heterossexualidade normativa” durante o século XX, inclusive como parte da constituição da distinção entre – o que se considerou – o eu ocidental e o outro não-ocidental23 à reprodução do regime sexual dominante, isto é, o autor argumenta que a antropologia euro-estadunidense – que chamarei do norte global24 – buscou homogeneizar as diferenças sexuais internas de outras sociedades em ordem de construir a universalidade das vidas gays e lésbicas de suas regiões de origem. Assim, podemos ver que a concepção própria de um campo homossexual de identificação e prática erótica é resultado de uma unificação de diferenciações já existentes no seio da cultura brasileira, e contra as quais se insurgiram ativistas homossexuais para se incluírem no cenário do norte global (cf. MacRae, 1990; Fry, 1987, 1990). Contudo, o processo brasileiro de reconhecimento social e político da homossexualidade tanto a transformou como deu lugar à sua fragmentação também no campo da cidadania, postulando uma caudilha de diferenciação – ou, talvez, seja mais seguro indicar que essas diferenças se fazem agora presentes também na busca de direitos como categorias autônomas. Como apontaram Carlos Guilherme do Valle e Júlio Assis Simões (2015, p. 17, n. 1), a estabilidade que a categoria homossexualidade25 uma vez deteve para abrigar diferentes experiências se colapsou, gerando variadas expressões para constituir o que desafia “o binarismo e a normatividade heterossexual”. Mesmo que essa estabilidade fosse muito mais aparente do que uma realidade empírica, ela funcionava politicamente e foi o centralizador das experiências. É possível indagar, no rastro aberto pelos autores, como essas diferenças, antes reunidas contravertida e uniformemente para dar lugar à categoria de homossexualidade, não apenas se transformaram, mas também passaram a reclamar o status civilizatório e unificado em si mesmas? Como se dá o processo social através do qual novas identidades trans e de não conformação geral (não-binários, etc.) não se furtam a reproduzir esse mesmo movimento de outrora, de se inserir no espaço do norte global e de se afirmarem unificadamente ainda que se defrontem com uma nova diferenciação interna? E mais, como as novas estabilizações lidam com suas diferenciações internas, 23 Distinções essas (entre ocidental e não-ocidental) que considero pouco produtivas às análises antropológicas, a não ser que seu escopo se refira às representações europeias a partir da Europa Ocidental como uma ideia cultural local a respeito do outro. 24 Inspiro-me nas proposições teóricas de Raewyin Connell (2007) a respeito da produção das Ciências Sociais entre as metrópoles do norte global (antigos centros da Colonização e do Imperialismo) que compreende Estados Unidos e potências europeias. Essa perspectiva atravessa toda a tese. 25 Ver Sérgio Carrara e Júlio Assis Simões (2007) para um certo panorama a respeito de pesquisas antropológicas sobre homossexualidade masculina no Brasil. 34 que por certo, não param e são produzidas no seio dessa estabilização? Nisto, pode-se perceber a multiplicidade de experiências e subjetividades tanto antes como durante esse processo. Tais categorias de sujeitos surgem ou são reforçadas, muitas vezes apenas inicialmente, como modo de convencer e de gerar a ação estatal para garantir acessos e construir diversos direitos. Este não é, assim, o único espaço social em que acontecem. A especificação de um certo traço identitário com suas explicações à diferenciação não impede que esse reforço à visibilização dê lugar a novas margens e a agrupamentos imaginados que não deixam de produzir limites e borrões entre os sujeitos, as ideias e as práticas que os animam e orientam – ou constrangem – em todas as direções e não somente diante do Estado. A consolidação da categoria transexualidade no norte global e sua circulação transnacional, bem como a de transgênero, podem ser vistas juntas como a pedra de toque para a estabilização dessas diferenças de um outro modo. O desejo erótico se torna algo secundário, uma vez que o desejo pelo mesmo sexo é transformado quando a própria identificação é entendida como descombinada com o próprio corpo. Mesmo que o desejo heterossexual já tenha estado presente como algo presumido e um critério diagnóstico (Bolin, 1983; Butler, 2001; Bento, 2006, 2008) da regulação médica, o foco tanto entre ativistas e pessoas trans como entre médicos recai sobre as formulações de masculino e o feminino (Meadow, 2018). A figura de travestite, inicialmente no norte global, se transforma para dar lugar a ideia de ser mulher como resultado de um processo social que dá vida a outra categoria: a de transgênero. Esse último termo foi elaborado nos Estados Unidos no curso do ativismo contra a violência, e em reação à classificação biomédica corrente na década de 1990 solapando diferenças internas (Valentine, 2007). Esse trânsito subjetivo é de difícil diferenciação no país (travesti/transexual), uma vez que procedimentos cirúrgicos e práticas do cotidiano não são estanques para uma definição absoluta. São noções e posições de sujeito que disputam espaço no Brasil contemporâneo como linhas tênues, geralmente aplicadas a si mesmas por travestis que pode também se denominar mulheres trans (cf. Pinheiro, 2016). A construção social da noção de travesti como substância para uma categoria do Eu desafiou (e ainda desafia) entre nós a sua concepção como prática cultural realizada por homens ao usarem a vestimenta feminina como festejo popular (Bastide, 1959) e como forma de expressão da homossexualidade (Silva, 2005 [1950]). Assim, uma diferença substancial entre o contexto brasileiro e o do norte global – principalmente anglófono – é quanto ao processo de separação de gênero e sexualidade como domínios distintos da vida humana. Se travestite perde sentido ontológico entre ativistas estadunidenses para ser transgênero aquilo que consolida essa classificação, é a travesti que se propulsa como categoria num primeiro momento no nosso caso e nos demais cenários latino- 35 americanos26. As pesquisas antropológicas e sociológicas sobre travestilidade no país, quando reunidas, demonstram um processo social no qual o gênero feminino de designação de artigo na esfera da linguagem – a travesti, ao invés de o travesti – é um dos primeiros baluartes dessa politização27. Aí se realizava a primeira mais contundente separação de gênero e sexualidade como reinos opostos, embora complementares. Isso tem se dado de tal modo que é praticamente inexistente pesquisas sobre práticas sexuais, identidade sexual e erotismo entre pessoas trans. Algo que faz parte do esforço coletivo dessa dinâmica tanto em relação à medicina como em relação ao resto dos sujeitos ocupantes do que hoje denominamos de diversidade sexual e de gênero. Se gays e lésbicas se separaram entre si e em relação aos heterossexuais, as travestis, e mais recentemente os homens trans o fizeram de modos atualizados. Travestis passaram a não ser homossexuais numa escala na qual eram o máximo do feminino em oposição aos masculinos do outro lado do espectro. Essas pessoas se tornam nos anos 1990 sujeitos autônomos, algo diferente de décadas anteriores quando estão incluídas por si próprias no borrão agrupado pela categoria homossexualidade. Isso pode ser entrevisto nas poucas pesquisas feitas pela antropologia nesse grande cenário desde a década de 1940 até 1980 (Valle, 2000; ver ainda Carrara e Simões, 2007) e no número crescente principalmente daí em diante (Silva, 1991; Vale, 1997, 2005; Pelúcio, 2007; Benedetti, 2005; ver Grossi, 2010). É através de uma politização em torno da saúde que travestis se tornam novas pessoas28. O que tenho visto em campo é que o que ganha certa centralização é o maior peso dado ao lugar do eu em definir a si próprio. A pessoa moderna como indivíduo é um norte no horizonte e que é visto, por exemplo, na frase geralmente proferida por ativistas: “é trans quem diz quem é”29, cujas defesas recaem sobre a autodeterminação individual. Desde a separação entre homossexualidade e heterossexualidade, e da primeira em relação a transexualidade e as posteriores categorias que tem surgido e continuam a emergir são produtos construídos socialmente. Essas diferenciações partem da concepção reificada de que tais categorias seriam definidas por suas oposições essenciais. Mas, como demonstrou Joan Scott (1991), heterossexualidade não é definida enquanto o contrário de homossexualidade. Esse é um trabalho de essencialização de ambos. Gênero e sexualidade são diferentes instâncias apenas como modelos, não são factíveis empíricos, coisas observáveis do mesmo modo universalmente. Talvez seja essa 26 A similaridade cultural também acontece quando se compara a América Latina sobre a organização política em torno da categoria de homossexualidade (Green e Babb, 2002; Green, 2003). 27 Um reflexo pode ser visto ao longo das pesquisas feitas no país – e nas traduções também (ex. Gattarri, 1985 [1977]) – sobre travestis, ao se observar como a menção no masculino começou a ser substituída pela no feminino. A reedição em 2018 da etnografia de Edward MacRae (2018b, 2018c) realizou essa modificação em relação à época de sua escrita original nos anos 1980 e publicação como livro em 1990. O próprio autor indicava no seu texto de revisão que os tempos mudaram, o que pedia essa adequação (MacRae, 2018a). 28 Algumas vezes observei em campo travestis ou mulheres trans corrigindo aquelas de menor estrato social ou sem grande articulação política como não sendo homossexuais. “Você não é homossexual, isso é algo que colocaram na sua cabeça”, ouvia em resposta a alguma afirmação de ser homossexual vinda daquela que também se denominava uma travesti. O borrão continua. 29 Embora o coloque noutra chave interpretativa, Balzer (2010) havia indicado esse mote para a definição identitária. 36 uma das lições antropológicas mais valiosas e permanentes do trabalho de Néstor Perlongher (2008 [1987]) sobre a prostituição viril paulista. Na contramão de uma crescente análise da vida homossexual da época, o autor não define os interlocutores com identidades rígidas de acordo com uma ideologia de libertação própria do grupo então autointitulado de “entendido” (Guimarães, 2004). Perlongher prefere descrever as práticas desses prostitutos segundos seus próprios termos de hierarquização e segmentariedade que encampam noções de masculinidade. A cor da pele, a situação financeira, o corpo e a origem são importantíssimos para se estabelecer o valor nessas relações. O masculino e o feminino são parte dessas conformações identitárias que se ligam, no plano da análise, ao desejo. Assim, falar de masculinidade aí expõe de maneira contundente como os sujeitos se percebem e como circulam em redes sociais, como travestis e michês se dão nesse cenário como dois opostos de um mesmo espectro homossexual. Perlongher (2008, p. 153) diferencia que nem todas as práticas sexuais entre homens configura-se como identidade, uma vez que podem falar sobre e se referir a questões libidinais e territoriais. E, dado que sim, nem todas as identidades são individualizadas, definidas e conscientes, mas há aí sujeitos cuja formação se dá em permanente fluxo a partir dos encontros que realizam através, como diz, de “códigos e suas superfícies de inscrição em zonas do corpo social”. Mesmo que o autor estivesse preocupado com as formas que a prostituição e essa rede de contatos se estabelecia por meio do território urbano, levando-o a falar em territorialidade marginal (do desejo)30, ele expõe as possibilidades em que sujeitos se constituem não como unidades totais, mas segundo oposições várias de idade, classe, sexo (homem/mulher), entre outros31. O antropólogo argentino radicado no Brasil em muito antecipava discussões que tem permeado a antropologia do norte global sobre a não universalização da totalidade que aquela região denota de si mesma, embora essa abordagem continue a ter menor abrangência. Como mostrou Peter Fry (2008) em seu prefácio ao livro, o modelo anglo-saxão que demonstra haver homossexuais, bissexuais e heterossexuais, embora tenha um grande apelo, não encontra correspondência cultural universal. Esse mesmo modelo anglófono para falar de práticas sexuais e, consequentemente, na sua criação de sujeitos, indivíduos ou pessoas, se repete no âmbito das 30 Para uma análise de um contexto mais recente que esse sobre territorialidade marginal, mas envolvendo especificamente travestis em Fortaleza, ver Alexandre Vale (1997). 31 Richard Miskolci (2017) em recente pesquisa sobre circuitos de desejo entre homens em aplicativos de mensagens (como Grindr, Tinder, entre outros), procurou entender suas formas de atuação na escolha de parceiros e demonstrou também que o masculino e o feminino são dimensões impressionantemente importantes. Isto é, gênero e sexualidade não estão separados. As escolhas dos parceiros sexuais continuam a indicar questões de masculinidade, mesmo que agora o foco que Miskolci torna relevante seja aquele das relações mediadas pela Internet. Mas esse não é um esforço analítico que tem sido feito no campo das experiências trans, com raras exceções (Bento, 2006a; 2006b). A consolidação da transexualidade e travestilidade como dimensões diferentes da homossexualidade – voltado tanto para gays e lésbicas como para o governo e para a biomedicina – tem dado pouca vocalização política a práticas eróticas e relações afetivas. Minha intenção inicial era dar conta de identidades sexuais, mas como minha perspectiva seguiu as importâncias construídas localmente para a saúde trans, descrevo mais a ideia de possuir uma identidade de gênero. O cidadão sexual de Weeks (1998) se torna o cidadão de gênero. Ver Valentine (2003) para essa dinâmica no contexto estadunidense. 37 experiências trans/transgêneras/transexuais. A universalidade dessas também é apelativa no presente para trazer conforto subjetivo de algo tão desafiado no cotidiano, e isso acontece tanto no cenário do norte global (Meyerowitz, 2002) como do brasileiro. Os argumentos em torno da construção da saúde trans de modo estruturado pelo Estado é totalmente vivificada pela reiteração da separação entre sexo (como algo biológico), gênero e sexualidade. Nesse sentido, David Valentine (2004, p. 215, tradução minha) se perguntava: “quais experiências humanas contam como de gênero e quais como sexuais?”. O autor é levado a comentar sobre a relação desses dois domínios, e argumenta que eles não existem separadamente, mas que tem se convencionado nas Ciências Sociais e Humanidades como esferas independentes. “Gênero” se referiria aos significados por meios dos quais se saberia quem é masculino ou feminino; já “sexualidade” seria usado para entender o que esses corpos “generificados” fazem entre si nos chamados atos sexuais. A proposição de Valentine é de seguir a premissa de que mais do que ver a intersecção entre gênero e sexualidade precisamos, como antropólogos, se perguntar quais experiências vividas esses termos podem descrever para sujeitos localizados cultural e historicamente. Mas isso não é algo totalmente particular ao autor ou a sua origem acadêmica, ela atravessa boa parte da antropologia brasileira paralelamente – e em alguns casos anteriormente. Sérgio Carrara (2016) mostrou que duas vertentes teóricas têm se estabelecido no seio da disciplina quanto às análises a respeito da homossexualidade32. Uma chama de “relativista” ou “construcionista”, na qual identifica como estando presentes, desde os anos 1980, antropólogos como Perlongher, MacRae e Peter Fry – além de Ruth Landes, na década de 1940. Nessa corrente é de especial atenção a preocupação com a não universalidade do par homo/heterossexual, o qual em muito estava posto como reproduzindo de algum modo o modelo psiquiátrico vigente. Doutro lado, chamando agora de posição “essencialista”, Carrara se refere principalmente a Luiz Mott, que deteve uma afirmação que seguia aquela dicotomia. Essas são perspectivas diretamente encaradas pelos próprios autores citados por Carrara e não é simplesmente uma classificação exógena. Assim, mesmo no cenário interno da estabilização da homossexualidade ou no seu desafio estava presente uma relação difícil para estabelecer os limites entre gênero e sexualidade. A oposição entre ser/estar homossexual, em grande parte marcada na literatura pelas pesquisas de Maria Luiza Heilborn (1996), também demonstra que tanto no campo intelectual como fora dele, homossexuais e sujeitos que não se cabiam nessa categoria oscilavam entre essas correntes construcionista/relativista sintetizadas por Carrara em sua revisão. 32 Os lugares da sexualidade na Antropologia têm sido indicados em diversas ocasiões tanto para observar a sua entrada como objeto de pesquisa (Vance, 1991) como a influência das ciências sexuais no modelo confessional que a disciplina pode assumir nas abordagens de entrevistas (Lyons e Lyons, 2004). Ver ainda Duarte (2004) para observar essas tensões de modo mais abrangente. 38 A identidade vai ocupar um lugar central nas interpretações e classificações a respeito da diversidade do desejo e do masculino e feminino – como também tem se situado nas análises de outras áreas da vida social enquanto um leitmotiv (Valle, 2012). Tanto antes das travestis inaugurem de vez o gênero como esfera à parte da sexualidade de modo mais radical, como posteriormente com a diferenciação que introduzia a teoria queer no país. Estabelecida no norte global, precisamente na baía de São Francisco nos Estados Unidos, o queer surgia na década de 1990 como uma nova preocupação em desestabilizar as posições fixas que os estudos gays e lésbicas haviam elaborado para desvincular homossexuais do escopo patológico. Teresa de Lauretis (1991) seria aquela que institucionalizaria esta teorização e dava vazão junto a autoras como Judith Butler a uma nova forma de ver essas relações (Plemons, 2017). Mesmo que essa perspectiva não fosse totalmente nova aos intelectuais brasileiros, principalmente antropólogos, como mencionei, se introduzia uma nova tensão identitária e de construções corporais. É interessante notar, contudo, que enquanto no cenário brasileiro isso é usado como uma ferramenta conceitual para falar de transexuais após os anos 2000 – primordialmente na Sociologia e nas Humanidades –, na costa leste estadunidense na década anterior o queer embora tenha sido uma ponte política para pessoas trans fora posteriormente rejeitado por teóricas como Susan Stryker (1991; 2004). A política em torno do queer havia reunido mais homossexuais e implicava, em alguns setores intelectuais, uma replicação da visão patológica da transexualidade. Como reação acontece outra separação, a teoria trans chamada ironicamente por Stryker de o “gêmeo mal da teoria queer”, que segundo a historiadora procura se formar como uma interdisciplinaridade de um campo acadêmico preocupado em “observar a transexualidade e o cross-dressing, alguns aspectos da intersexualidade e homossexualidade, investigações históricas e transculturais sobre a diversidade de gênero humana” (Stryker, 2006, p. 3, tradução minha). Essa interpretação da teoria indica muito sobre as condições sociais das históricas teóricas33 segundo as quais estamos atravessados de modo diverso. No Brasil, o queer despontou como uma plataforma para explicar também o desejo tanto de mulheres heterossexuais como aquele não heterossexual através, por exemplo, de Guacira Lopes Louro (1997) que fazia um movimento teórico queer feminista para não separar gênero da sexualidade no sentido de enfatizar a permanente circulação do feminino, do masculino e do desejo entre corpos incomuns aos trânsitos. Louro pontuava, inspirada por Foucault, Butler e Weeks, identidades em 33 Usando de maneira larga o termo elaborado por Mariza Peirano (ex. 2014), quando esta se refere às linhagens entre teorias e entre pesquisadores num processo contínuo de renovação e tramissão de conhecimentos. A incorporação da teoria queer no Brasil a transformou, não apenas quanto a aplicação do termo a sujeitos com outras histórias e práticas culturais, mas também quanto a dimensão do seu significado. No âmbito internacional fora dos Estados Unidos, queer é usado muito mais como um termo de tradução transcultural, favorecendo assim muito mais a compreensão de uma audiência acadêmica anglófona – principalmente estadunidense – e menos a sua descrição. 39 fluxo em meio a pressão da produção dos “normais”. Essa seria uma grande influência para os estudos sobre transexualidade no país. A identidade, assim, tanto para falar de homossexuais (ou aqueles de categorias alternativas para falar dos trânsitos do desejo) como para compreender transexuais e travestis, também foi uma das grandes pedras de toque dos estudos socioantropológicos porque foi uma forma de realocar e de expurgar a patologização biomédica (cf. Fry e MacRae, 1981). Uma preocupação que, como indica Raewyin Connell (2012) pode, contudo, deixar muito espaço descoberto para outras questões igualmente ou talvez ainda mais cruciais para o dia a dia de pessoas trans, gays e lésbicas. A crítica de Connell à hiper localização da identidade – ou seja, a política identitária na sua virada discursiva preocupada apenas com representação – se fundamenta na observação de que é no norte global que isso se torna primeiro um problema, e então é replicado no sul global e na Ásia. Não se trata de entender que estudos sobre identidades não sejam algo relevadores sobre, por exemplo, o contexto de violência, mas que as histórias e as vidas cotidianas inquietam também para outras direções. Quanto mais o antropólogo se volta para contingentes distantes da classe média brasileira, por exemplo, ou quando o “essencialismo estratégico” de experiências estabilizam-se sem recorrer apenas a uma identidade de modo minimamente idealista, se questiona e se tumultua o eu indivisível e total. Assim, outros elementos podem ganhar cada vez mais destaque. Além disso, a dimensão da materialidade deve ser igualmente problematizada e indicada quanto as condições que estabelece. Nesse sentido, estou procurando apreender as experiências e as formas da sua expressão que cruzam diferentes domínios e confluem dentro da mesma estrutura social. Ao citar Wilhelm Dilthey, Edward Bruner (1986a, p. 5, tradução minha) propôs que aquilo a vir primeiro para o indivíduo é sempre a experiência e depois a realidade. Isso não significa uma referência a comportamentos porque isto implicaria, como aponta a leitura do autor, haver um observador exterior descrevendo as ações de alguém como uma audiência num evento. A experiência só pode ser percebida como algo vivido, "o que é recebido pela nossa própria consciência", e isso é constituído através de um trabalho de manifestação simbólica que organiza aquilo que se conta. Ao se preencher as lacunas entre realidade e expressões se cria a experiência que geralmente se acha como dada. Não há aí nenhuma equivalência. Nesse sentido, a “mudança cultural, continuidade cultural e transmissão cultural ocorrem simultaneamente nas experiências e nas expressões da vida social” (Bruner, 1986a, p. 12). Assim, o trabalho antropológico de descrição, análise ou interpretação sempre conhece o mundo em movimento: Não há nenhum contato cru ou experiências ingênuas [naive experiences], já que pessoas, incluindo etnógrafos, sempre entram na sociedade no meio. A qualquer momento, existem textos anteriores e convenções expressivas, e eles estão sempre em fluxo. Só podemos começar com a última demonstração visual, a última performance. Uma vez 40 que a performance é concluída, contudo, a expressão mais recente afunda no passado e torna-se anterior ao desempenho que segue (Bruner, 1986a, p. 12, tradução minha). Pelo caráter sempre individual da experiência, nenhuma proximidade subjetiva anterior confere maior poder para uma compreensão mais profunda. O antropólogo Eric Plemons (2017) e o sociólogo Henry Rubin (1998, cf. 2003)34, ambos com uma vivência de transição de gênero pessoal e que realizaram pesquisa sobre universos trans no contexto estadunidense, mostraram que não havia aí uma melhor acessibilidade a vida social para seu estudo “cientificamente informado”. De modo bem similar, mas no Brasil, Arthur Costa Novo (2019) também indicou como sua experiência de transição não o habilitou necessariamente para observar os interlocutores. Ao procurarem “se incluir dentro do texto”, como Plemons escreve, esses autores perceberam que seus pontos de partida os orientaram para olhar para determinados problemas para investigar, mas isso não eliminava as diferenças com os sujeitos com quem interagiram. O que evidenciam é que não há prejuízo para suas etnografias por compartilharem de elementos experienciais junto do objeto da pesquisa. A antropologia, assim, tem se movido desde a concepção que estabelecia a posição social externa do etnógrafo como uma condição para produção de conhecimento e passou a perceber também que essa posição de “outro”, do estranhamento, poderia ser gerada independente de se fazer ou não parte daquilo que se estuda (ex. Malinowski, 1961 [1938]; Abu- Lughod, 1991; Appadurai, 1988). Se tomarmos como uma maior facilidade de entendimento ser mulher ao se estudar mulheres, ou homens ao se estudar homens, ou qualquer outro exemplo, entramos nos riscos de tomar a experiência como uma evidência naturalizada que esconde como as categorias são socialmente produzidas, assim como mostrou Joan Scott (1991) a propósito da historiografia da diferença, mas que também nos serve para pensar o trabalho antropológico. O que há, assim, são acessos a contextos que podem ser facilitados, mas não a sua compreensão per se. A aproximação experiencial que fazemos como antropólogos, portanto, faz parte de uma opção de dar novos lugares às expressões daquilo que vivemos. Eu mesmo realizei vários desses movimentos com relação aos interlocutores e às interlocutoras, sejam pessoas trans ou médicos. Assim, eu detinha também uma trajetória de um tipo de saída do armário conflituosa, enfrentando ditames sobre a ausência da normalidade do que eu viria a dar forma como uma identidade sexual e nos deslizes que eu estabelecia diante de modelos de masculinidade. E isso foi um forte elemento que elenco para formar meu interesse, desde o mestrado, para entrada nesse campo de pesquisa, bem como abriu alguns caminhos na realização da etnografia. 34 Há ainda, por exemplo, o sociólogo Aaron Devor (1997) que se descobriu homem trans no final da sua pesquisa sobre transmasculinidade. Ele iniciou o trabalho de campo como uma mulher, e chegou até a publicar sua tese em livro com nome feminino. Posteriormente, com o contato com esse contexto deteve novas possibilidades subjetivas e corporais para seu entendimento expressivo sobre o que é sexo e gênero, levando-o a republicar seu livro com seu nome atual. 41 Como Roger Abrahams (1986) colocou, o etnógrafo engaja uma consciência dupla, uma vez que participa e observa ao mesmo tempo – e isso é importante porque precisamos considerar que isso se aplica às autoanálises feitas pelos interlocutores em entrevistas, já que estas estão enquadras pelas perguntas colocadas pelo etnógrafo; assim, observamos/testemunhamos a formulação das expressões não apenas nas interações que acompanhamos, pois, essas entrevistas se dão em contexto etnográfico. Nesse sentido, essa tese se propõe a descrever, ao longo dos capítulos, uma narrativa da mobilização política de ativistas e pacientes trans e médicos para a constituição da saúde trans. Ao colocar a etnografia como narrativa me alio aos termos pensados por Edward Bruner (1986b), para quem as descrições que fazem antropólogos estão contidas em tempos históricos específicos. As narrativas, assim, se tornam "dispositivos interpretativos" que podem organizar essa experiência que o etnógrafo é duplamente consciente, e que não é o mesmo que a realidade – tanto porque ela não existe sem sua expressão. A filiação teórica que estabeleço nesta tese implica, a meu ver, expor as tensões e as construções locais na forma de práticas ao mesmo tempo que procuro compreender os sentidos dessas reificações sem, contudo, também naturalizá-las. Não estou interessado em representações de modo isolado, mas sua coadunação com materialidades que geram limites à vida social. Assim, observo que gênero e sexualidade ao ser modelos só podem ser apreendidos na prática. Essa distinção tem sido constantemente evocada para mostrar como diferenciar os caracteres sexuais e aquilo que permitiria indicar que não há produção natural de certos aspectos moleculares ou não dos corpos comumente trazidos à transformação de machos e fêmeas em homens e mulheres. Algo nesse sentido surge no contexto dos estudos sociológicos interacionistas para indicar que gênero é algo que é feito, e sexo seria aquilo que é identificado segundo parâmetros socialmente constituídos quanto aos cromossomos e a genitália, por exemplo. Candace West e Don Zimmermann (1987, p. 127, tradução minha) apontaram décadas atrás que gênero poderia ser visto como uma “atividade de administração situada da conduta” segundo “concepções normativas apropriadas para uma categoria sexual”. Eles faziam ainda a observação de que: “enquanto são os indivíduos que fazem gênero, a empresa é fundamentalmente interacional e institucional em caráter, pois, a prestação de contas é uma característica das relações sociais e de seus interesses. O idioma é extraído da arena institucional em que essas relações são realizadas” (West e Zimmermann, 1987, p. 136-7). É nesse esteio, como nos moldes do feminismo construcionista, que Judith Butler (2003 [1990]), ao tecer uma crítica sobre a construção da categoria mulher na política do feminismo demonstra que a diferença sexual é um produto de práticas, isto é, feminilidade e masculinidade não emanariam naturalmente dos corpos, mas são eles que produzem o sexo através da reiteração em atos (performance) das normas que os regulam. Assim, gênero e sexo se confundem como 42 categorias indissociáveis, de tal modo que a percepção de quais elementos dos corpos são de homens e quais são de mulheres mudam através do tempo histórico da nossa sociedade, bem como através da criatividade humana35. Butler36 demonstra exatamente que é o reconhecimento do outro e não apenas de si mesmo que constitui essa diferença. Ou seja, por meio de uma relação de troca que é comunicativa através dos corpos e de seus atos que se possibilita um processo social que se naturaliza e materializa o sexo. Contudo, isso não significa que a materialidade dos corpos não tenha um lugar nessa formulação, mas sim que essa fisicalidade é interpretada coletivamente. Assim, há uma gama de modelos que constroem o sexo, sejam o binarismo, a definição cromossômica, a narrativa biológica, a definição genital, a da mudança cirúrgica e até mesmo o modelo da performatividade que acabo de expor. Por isso que não procuro em nenhum momento dessa tese definir o fim e o início do sexo ou do gênero, tampouco os limites entre gênero e sexualidade. Minha orientação é a de descrever como esses elementos definidores são articulados pelos interlocutores e pelas regras morais e sociais que os envolvem. Além disso, não estabeleço de modo central uma definição da identidade discursivamente segundo estabilizações no plano da fala. Na ocasião da minha dissertação me dediquei a estudar as formulações de gênero enquanto masculinidade nas experiências de homens trans. Observei naquele momento que havia uma preocupação maior desses sujeitos em entrar na categoria homem na dinamização do que constituiria seus aspectos masculinos (Rego, 2015). As questões envolvendo masculinidades têm sido frequentes ao se pensar a respeito das experiências de homens trans, de modo a perceber como os modelos manejados por eles se diferenciam ou se assemelham a sujeitos permeados por outras identidades sociais. Esses estudos são potentes para indicar também como a entrada à categoria homem e aos significados sociais de corpos masculinos são organizadores de um lugar no mundo na produção da subjetividade. Guilherme Almeida (2012) já mostrou que há uma multiplicidade de “grupos” nos quais poderíamos observar circulando variadas práticas e noções de si que têm crescentemente sido chamadas de “transmasculinas”, ao se partir de pessoas que foram assignadas como mulheres ao nascer, mas que se inserem variavelmente dentro de concepções, incorporações e modos de vida longe da categoria mulher. As indicações do autor aliadas a esta pesquisa e aquelas que já citei acima me fazem perceber que 35 Assim, o desejo passa a ser visto como um sentimento vivido por sujeitos específicos, separados em seus próprios termos sem que haja uma naturalidade para a produção da heterossexualidade, mas a sua compulsoriedade a partir de regras e relações sociais (Rubin, 1975, 2002; Rich, 1980). 36 A popularidade de Judith Butler (1990), principalmente de seu “Problemas de gênero”, é largamente visível na discussão expressiva de suas análises filosóficas não apenas no cenário acadêmico das ciências sociais e humanidades, mas também no âmbito profissional da saúde e na construção de políticas públicas. Eric Plemons (2017) demonstrou que a teoria da performatividade do gênero da autora foi tão ampla que impactou a forma como médicos compreendem o assunto. A própria autora indicou isso na segunda edição 10 anos depois do seu livro principal (Butler, 1999). No Brasil, percebe-se a citação de Butler inclusive em guias publicados pela Sociedade de Pediatria Brasileira (SPB) (ver Capítulo 6). Para discussões teóricas mais demoradas do pensamento de Butler ver, entre outros, Bento (2006), Plemons (2017) e Piscitelli (2012). 43 tem se gerado um deslocamento cada vez mais acentuado tanto de uma “mulheridade” como das identidades lésbicas, permitindo uma nova feição para a implosão da categoria da homossexualidade já iniciada anteriormente por travestis e mulheres trans. Tem sido demonstrado, como mencionei, que os estudos têm sido ocupados com travestilidades e transexualidades femininas, principalmente devido a menor visibilização política organizada de homens trans. Simone Ávila e Miriam Grossi (2010) apontavam para essa ausência, algo que fora vocalizado posteriormente por outros autores e autoras (Almeida, 2010, 2012; Arán, 2012; Bento, 2012c; Rego, 2015, 2017b; Oliveira, A. G., 2015). É constante, ainda, a observação da variedade de outras nomeações que podem ser usadas para se referir a tais sujeitos como transhomem, transexual masculino e as expressões estrangeiras Female-to-Male Transsexual (FtM) e transman. Porém, tenho observado no cenário cearense – e talvez para o brasileiro em geral – que esses termos em inglês são tributários de um “início” dessa identificação que foi marcada pelo contato de brasileiros com discussões euro-estadunidenses. Mas, ao contrário da palavra gay que ainda é massivamente utilizada no país isso não se repete nesse caso. Além disso, FtM não marcou essa emergência nacional; um termo que tem sido cada vez mais rejeitado por deixar o trânsito de gênero explícito, diferentemente de outros cenários37. Assim, procuro demonstrar como o convencimento do Estado brasileiro sobre a necessidade da cobertura pública para a transição encontrou maior ressonância da visibilização, de forma nova e transformada, daquilo que Almeida (2012, p. 516) observou como o grupo de indivíduos que "fazem e/ou desejam modificações corporais através da hormonização por testosterona e de uma ou mais intervenções cirúrgicas, além de se valerem em larga medida de outros recursos sociais [...]”. Esse é um dentre vários grupos que compõem o universo amplo das transmasculinidades que, como observei em campo, não se aproximam apenas de um “modelo convencional” de masculinidade ao diversificarem os modos de identificação, mas que tem a categoria homem trans como um estabilizador sociopolítico das diferenças. Isso não pode ser visto, contudo, como uma “reação” ou “resistência” ao “Estado” simplesmente, mas como parte de dinâmicas de participação da formação estatal. Nesse sentido, quero entender nesta tese o que é feito dessa identidade na prática como uma tática que traz variações de raça, de classe e de instituição da vida saudável para se ligar legitimamente a um campo de atenção à saúde. Assim, foco no que é relevante para a legitimação da mediação médica para a transição como objeto estatal. A formulação da saúde trans, assim, continua a perpassar na sua ideação e aplicação a separação de gênero e sexualidade, mesmo que não sejam vistos da mesma forma de outrora. Essa efervescência política é captada nesse campo de cuidado demandado para ser oferecido pelo Estado brasileiro. Mas o encontro da saúde com a 37 Ver por exemplo, Aaron H. Devor (1997), Henry Rubin (2003) e Jason Cromwell (1999). 44 política que desafia o binarismo heterossexual não é uma novidade, é uma questão germinal e perene – acompanhando, inclusive, o desenvolvimento das ciências médicas e psi e as constantes tentativas de repatologização (Fry e Carrara, 2016). Mesmo que, a exemplo de outros campos da vida social, a saúde não “encontra” a política, mas é constituída por ela desde sempre, engajamentos militantes, eventos e situações limites colocam em relevo e dramatizam também aquilo que já estava em atuação. Por outro lado, os encontros dos movimentos organizados no campo da saúde não só podem ser traçados historicamente, como podem ser explicados como processos de politização de diferentes matérias. As dinâmicas da epidemia da AIDS revivificaram de muitas maneiras esse encontro e o ativismo de homossexuais tanto no sul como no norte global (Epstein, 1996; Parker, 1997; Valle, 2000), tendo sido inclusive a grande plataforma que catapultou a articulação sociopolítica – e cultural – das travestis, como já mencionei. Algo similar fora articulado antes por mulheres lésbicas, as quais inferiam (e inferem) que não eram “mulheres gays” (Almeida e Heilborn, 2008, p. 225), nem a homossexualidade (preferindo lesbianismo ou lesbianidade) comum com seus colegas homens, uma forma indiscutível de igualdade na marginalização (Heilborn, 2004; Navarro-Swain, 2000; MacRae, 1990; Mott, 1987). Além da institucionalização do cuidado em saúde envolvendo o HIV/Aids, e da posterior discussão do cuidado integral, a organização estatal de serviços que auxiliassem a transição de mulheres e homens transexuais foi outro ponto alto do contato dessas militâncias com o campo da saúde e seus agentes e espaços. Mesmo que isso não tenha acontecido da mesma forma que o ativismo em torno do HIV/Aids, os dois campos guardam diversas similaridades que serão exploradas ao longo da tese por se referirem ao campo da biomedicina. Logo, se a estabilidade da homossexualidade como experiência e identidade entra em colapso, entra também a capacidade de organização social da cidadania em torno de si, bem como a procura e reivindicação de cuidados específicos no campo da saúde. No intercurso dessa diferenciação que se pretende generalizada para fins políticos, sociais e culturais, como esse universo busca e oferece as condições à formação de um campo da saúde trans? A biomedicina contemporânea e a heterogeneidade do campo social da saúde trans Ao se demarcar um problema de pesquisa com uma perspectiva de partida, como propõe Pierre Bourdieu (1989, p. 36), permite-se ao pesquisador tirar do estado impensado o seu pensamento, tornando-se preocupado também em compreender como se compreende. Isso habilita a pensar a própria perspectiva do pesquisador porque expõe a perspectiva do problema que se considera. Em segundo, fazer uma “história social da emergência desses problemas” possibilita não se tornar “objeto dos problemas que se tomam para objeto”, observando como não são dados 45 naturais da existência comum. Contudo, ao racionalizar como aquilo que é estudado nessa pesquisa se torna importante, percebo que sua própria realização pode contribuir para criar socialmente os homens trans através do campo da saúde trans com seus agentes, discursos, instituições e problemáticas, tornando-se, em alguma medida, um instrumento de consolidação no pensamento contemporâneo. Não porque seja esse meu objetivo, o de criar uma defesa de advogado de qualquer universo, mas porque tem-se percebido na antropologia a irresistível utilização do conhecimento da disciplina de forma apropriada por diferentes grupos sociais em suas conformações sociopolíticas. É algo sobre o que não se detém controle, e isso não é alheio a formulação da realidade de algum modo. Bourdieu (1989) demonstrou que um problema social é fruto de intenso trabalho coletivo, socialmente localizado a partir de agentes sociais. Em todos os casos, descobrir-se-á que o problema, aceito como evidente pelo positivismo vulgar [...], foi socialmente produzido, num trabalho coletivo de construção da realidade social e por meio desse trabalho; e foi preciso que houvesse reuniões, comissões, associações, ligas de defesa, movimentos, manifestações, petições, requerimentos, deliberações, votos, tomadas de posição, projetos, programas, resoluções, etc. para que aquilo que era e poderia ter continuado a ser um problema privado, particular, singular, se tornasse num problema social, num problema público, de que se pode falar publicamente [...] ou mesmo num problema oficial, objeto de tomadas de posição oficiais, e até mesmo de leis ou decretos (Bourdieu, 1989, p. 37). Essa construção se dá tanto no nível das relações dos sujeitos aqui considerados, como no nível de objetivação como problema para essa pesquisa. Dessa maneira, homens trans, e não “transhomem” ou “transgênero”, se tornam uma figura da ordem do dia no país, de alguém sobre quem nada ou pouco se sabia para alguém que se conhece, um amigo ou conhecido, ou mesmo sobre o que “viu na novela” quando esta dinamiza uma publicidade penetrante nas consciências coletiva e individuais. Contudo, não estou me preocupando basicamente com representação. “Homem trans” é a palavra levantada politicamente pelos ativistas e pessoas comuns com quem conversei e convivi, seja no cotidiano ou nos eventos que dão vazão às demandas sociais diante do Estado, seja para ocuparem espaços de legitimidade e aceitação diante de suas famílias e de outros vínculos sociais. Outro termo muito utilizado ao lado de “homem trans” é o que se refere a noção de “transmasculino” para dar conta de diferentes construções identitárias de pessoas identificadas ao nascer como mulheres – acepção muito manejada para responder a uma “lógica da inclusão”, e que não deixa de ser ela mesma a tentativa de estabilização das margens. Por outro lado, o termo transgênero, apesar de ser conhecido, não era uma categoria local com importância significativa para esses sujeitos, mas como algo mais próximo das travestis e mulheres trans. Isso não quer dizer que esse cenário seja estanque, e pode-se passar a adotar outras categorias como transgênero; algo 46 que tem crescido no cenário midiático. Atualmente, a transexualidade, segundo os interlocutores, tem muito mais força política para justificar a saúde pública do que transgeneridade. A dimensão médica da transexualidade tem sido um terreno altamente contestável, dentro e fora das disciplinas biomédicas. Para dar conta dessa efervescência ao mesmo tempo cultural e política é preciso olhar para a sua heterogeneidade e complexidade, ao incluir, sob seus próprios aspectos a atuação de médicos e médicas e a atuação de políticas de governo nesse cenário. Isso permite com maior alcance entender como as experiências trans são diversas e como se articulam com a concepção do gênero mutável junto da existência de entidades que permitem ao sexo sua mudança, tanto quanto àquilo que está a nível orgânico para além da pele, como hormônios, ossos e cromossomos, como as partes dos corpos como genitálias, rostos, seios, pelos, entre outros, que são tomados da pele para fora. Assiste-se a uma retomada do biológico como justificativa política: “não somos de papel, somos de carne e osso”, “somos homens e mulheres biológicos”, “precisamos de cuidado para conseguir transicionar”, e “eu não quero transicionar e adoecer”. Mas isso não quer dizer que esses elementos sejam simbolizados e manejados praticamente de forma igual. Há um longo processo histórico e social que criou a categoria transexual através de sua própria medicalização. Contudo, esse processo não se dá de forma isolada, e é o desdobramento, ou foi tornado possível, por toda a formação histórica do que é entendido como sexo, como aquilo que divide homens e mulheres “biologicamente”, e de como se entende social e politicamente o corpo humano (Laqueur, 2001; Rohden, 2009) como também indicou Berenice Bento (2006). Só se muda porque existem as definições e uma base material que é entendida e transformada para caber em indicadores dessas formulações ontológicas. Não é possível pensar apenas em termos de representação. É necessário que se compreendas essas experiências sem lidar com a materialidade corporal e as condições que impõem. Nesse sentido, assim como me disponho a tomar gênero/sexualidade como categorias próprias do campo, busco entender como sexo/gênero enquanto dicotomia para organizar o que é orgânico e o que não é prevalece como categorias discretas que são usadas pelos agentes sociais diversamente. O “construído” e o “relativismo” extrapolaram as ciências sociais na mesma medida que o “biológico” faz desde as ciências biológicas no mundo social. É também numa tensão entre essas duas áreas de conhecimento, e na apropriação que fazem delas os sujeitos, que se dá a organização social da saúde trans. A década de 1950 assistiu ao desenvolvimento de uma teoria médica, entronizada por Harry Benjamin, de que a desconformidade de alguém diante de seu sexo estava relacionada a ser na verdade do sexo oposto, de modo que a única resolução terapêutica seria “mudar o sexo” cirurgicamente. Toda uma vasta literatura tem se dedicado a analisar e descrever todo o percurso histórico dos saberes médico-psi tanto da homossexualidade como da transexualidade. Cabe 47 apontar que essa categoria é distinguida, na biomedicina, de homossexualidade inicialmente para denotar a primeira como “inversão sexual total” e a segunda apenas como “inversão sexual” (Rubin, 2003). Quando, nos anos 1970, o termo “disforia de gênero” substitui o termo “transexualismo”, a patologia migra do corpo para a mente nos manuais de saúde – mas cabe entender como essas mudanças são interpretadas localmente por profissionais de saúde. Agora, o problema a ser resolvido não está mais no corpo apenas operável, ganha força a concepção de que o corpo era errado porque não se adequava a mente correta (Hines, 2010). O trânsito e o corpo separado entre masculino e feminino são dimensões fundamentais próprias de processos históricos e sociais. Não se chega a nenhuma conclusão irrefutável ou a uma aceitação generalizada sobre as causas da transexualidade – algo muito similar às contestações quanto a homossexualidade. Médicos, biólogos, psicólogos ou psicobiólogos continuam a procurar tais causas e tais tratamentos mais adequados; teorias neurológicas circulam e gracejam entre profissionais de saúde e entre as próprias pessoas trans que estabelecem relações diferenciadas com tais explicações. Ao observar que não há nenhum teste indiscutível, nem nenhum achado empírico que possa assim reclamar para o terreno do biológico – essa esfera mesma uma dimensão sociológica que fascina os cientistas –, a origem das vontades para mudança de gênero/sexo, se admite aqui um interesse pelas construções políticas e sociais dessas explicações. É cada vez mais forte essa naturalização, numa relação estranha entre teorias socioantropológicas e pesquisas neurobiológicas. Não há, por outro lado, uma unificação desse contingente científico, e a força bioquímica da medicina contemporânea pode assumir lugares variados, seja para procurar as causas orgânicas da transexualidade, seja para se importar com uma segurança biológica da transição de gênero. É nesse segundo aspecto da medicina trans que concentrei minha etnografia em Fortaleza, a entendendo mais como uma área de atuação e menos como uma especialização ipsis literis. É esse elemento de impedir o adoecimento desencadeado pela transição sem supervisão que une todos os interlocutores nesse campo social de saúde trans que estou aludindo. Algo que demarco a partir da constituição desse cenário como um problema legítimo. A doença assim ganha um outro lugar, ela se move daquele espaço da causa da transexualidade, para a segurança de realizar a transição. Isso é apelativo aos agentes públicos, aos políticos eleitos, aos médicos, aos ativistas, aos parentes e aos amigos. Um dos periódicos mais famosos mundialmente por traçar grandes temas públicos de saúde para profissionais, The Lancet, chegou inclusive a publicar uma série de artigos para mostrar a necessidade da capacitação continuada de médicos e médicas para garantir acesso a direitos a saúde trans. Mas isso não deixou de perpassar a máxima da segurança biológica da transição de gênero. Sem realizar uma administração sintética de hormônios, como manter a saúde? Isso faz com que 48 parte do problema dessa legitimidade perpasse por pesquisas bioquímicas e médicas sobre o nível celular dessas interações, e que isso seja ensinado aos profissionais de saúde. Ao se mover de revistas ou plataformas superespecializadas, a saúde trans se consolida sem precedentes. Publicada em 17 de junho de 2016, a série Transgender Health trazia como prerrogativa o estigma social enfrentando por transexuais e transgêneros e como essa parte da população estava localizada no mundo inteiro, tornando tais cuidados um problema de saúde global (Reisner et al., 2016; Wylie et al., 2016). A interseção entre perspectivas sociais e bioquímicas se fundem, e, numa visão transformada, o biológico entra aqui de maneira nova para não significar doença, mas a naturalidade da diversidade humana: “a incongruência de gênero é mais comum do que estudos clínicos sugerem, e pode estar ligada a fatores biológicos” colocava Sam Winter et al. (2016) no principal artigo da série. No Brasil, mesmo que pesquisas médicas ainda sejam inexpressivas se comparadas a outros temas (Pinto e Silva, 2019), pesquisadores têm realizado estudos de várias ordens como aqueles interessados em gerar segurança para a administração sintética de hormônios em relação a sua reverberação orgânica (Linhares, 2019), e até mesmo sobre origens bioquímicas ou neuroquímicas da transexualidade (Spizzirri, 2016), de modo que se remete até a gestação. Não considerar esse cenário nos dá uma visão parcial da saúde trans, uma vez que isso anima em muito esse campo, não no sentido apenas de barrar o acesso a atenção estruturada, mas principalmente para sua justificativa. Essa é outra faceta da humanização, da normalização das experiências trans. Mesmo que as proposições publicadas no The Lancet não expliquem a realidade médica brasileira, elas nos indicam como uma nova abordagem tem sido legitimada aí. Os médicos e as médicas que acompanhei em serviços de saúde e em congressos acadêmicos e profissionais não apenas leem periódicos como esse, eles também os transformam pela interpretação, aplicação local e socialidades que formalizam com outros agentes sociais. Isso implica observar as interações não apenas de agentes agrupados em campos distintos, mas principalmente as relações de visões de mundos que se referem ao que Gilberto Velho (1975, p. 60) chamou de “sistemas de classificação” que conformam “mapas de orientação através dos quais as pessoas e os grupos se situam no mundo, estabelecem suas estratégias, traçam seus objetivos e se organizam em geral”. Assim, é possível entender como fronteiras são constituídas e semelhanças silenciadas entre esses espaços sociais mais ou menos organizados e o contrário quando se refere ao dinamismo interno percebido pelos agentes. Quer dizer, a heterogeneidade e a contiguidade das trajetórias de vida e das obrigações morais às quais esses sujeitos estão ligados não se explicam por uma oposição de campos, ela tanto é interna quanto externa num trabalho contínuo de diferenciação. Não tive o contato com nenhum homem trans – ou outra pessoa trans e travesti – que não pertencesse a camadas urbanas baixas. Assim, nenhuma diferença posso estabelecer quanto a sujeitos trans entre 49 variados estratos sociais. Em contrapartida, médicos e médicas estiveram com maior estabilidade em camadas médias ou médias altas38, haja visto o status que a profissão confere. No senso comum, a imagem do médico como alguém de alto status social devido a uma representação financeira de vulto pouco fala sobre contratos precarizados, diferenças de gênero e sexualidade e sobrecarga de atividades no trabalho. Portanto, a renda não é um fator decisivo para explicar as trajetórias dos interlocutores em termos de divergências de campos sociais. O campo é importante na descrição analítica para expor as linhas morais e sistemas de prestígio nos quais se situam e a que estão fidelizados na sociedade contemporânea e não para conferir unidade absoluta que estabeleça hierarquias entre vocabulários, ideias e práticas. Isso não quer dizer que os interlocutores não avaliem uns aos outros, mas que não cabe ao antropólogo realizar tal avaliação, e sim mostrar como ela funciona. Assim, cumpre observar como se dão os movimentos em redes que ligam seus interesses políticos, profissionais e pessoais, situando posições de classe em um cenário mais aberto. Como demonstrou Bourdieu (1987, p. 4, tradução minha), a classe social é antes um construto teórico, mesmo que seja estabelecido sob uma base empírica. Como não existe na realidade, esse conceito é uma objetivação contida na tarefa do analista de “construir o espaço que nos permita explicar e predizer a maior quantidade possível de diferenças observadas entre indivíduos, ou, o que é o mesmo, determinar os principais princípios de diferenciação necessária ou suficiente para explicar ou predizer a totalidade de características observadas num dado conjunto de indivíduos”. A dimensão econômica não é irrelevante, mas deve ser atravessada por outros elementos das trajetórias vividas nesses espaços39. Por isso que é mais importante entender as práticas através das quais os agentes se constroem, diferenciam e se assemelham entre si no modo como estão enredados em habitus que são materializados como subjetividades em ação40. Ao propor observar o campo da saúde trans como um espaço mais ou menos organizado no qual redes se encontram, antes de formar grupos sociologicamente estáveis, não quero apontar apenas para o elemento heterogêneo do cenário urbano. A vida social, o cotidiano, objetivada pela análise aqui recobre relações que se estabelecem entre organismos e estruturas sociais que se materializam em dinâmicas e contestações de poder e de reprodução social, como Estados-nação41, 38 Segundo o sentido que lhe deu Gilberto Velho (1974; 1981), denotando uma categoria socioeconômica mais ligada à renda. 39 Bourdieu (2006 [2000]) mede as posições no espaço social que constitui uma classe, ou um mundo social estruturado, a partir da acumulação e circulação de recursos que os agentes sociais estabelecem. O autor realiza uma análise quantitativa para estabelecer o peso desses recursos a tal ponto que haja uma certa precisão na localização no espaço a partir da possessão de capitais (ver também Bourdieu, 1996c). Mas não recorrerei a essa técnica de análise. Estou mais interessado, contudo, em aplicar a ideia do campo como um conceito abstrato, o qual é capaz de construir metodologicamente um espaço de atividade que tem uma emergência e uma certa estrutura segundo processos de diferenciação. 40 A noção de habitus é importante nessa teorização porque une o agente a estrutura que lhe condiciona. Como um “sistema de disposições duráveis e intransponíveis” unem “as experiências passadas” ao presente, ao mesmo tempo que compõe “uma matriz de percepções, de apreciações e de ações” (Bourdieu, 1985, p. 65). Algumas leituras do autor entendem essa sua proposição como hiperdeterminista, mas compreendo junto com ele que a estrutura é o plano que confere possibilidade ao agente, inclusive de transformação de si mesmo. 41 Estou aqui mais interessado na dimensão estatal e menos na questão nacional. 50 corporações, organizações profissionais, associações políticas. Um fator particular disso se circunscreve com a forma como a vida humana é entendida, manipulada e constituída, isto é, na forma como se produzem políticas da vida. Assim, o universo da saúde trans não pode ser entendido se não for feita referência ao “século biotécnico” em que se constituiu o século XX, uma era de crescentes novas possibilidades bioquímicas e médicas que foi, em primeiro lugar, o nascimento da categoria transexualidade. O presente maleável dos corpos, com suas predições, traz à tona diversos pessimismos e anúncios do fim da vida pela sua manipulação, como apontou Nikolas Rose (2007). Os procedimentos que são necessários para encarnar uma transição de gênero segura biologicamente são próprios desse novo espaço da biopolítica contemporânea e suas mudanças identificadas pelo autor. Ou, como chamou mais diretamente, “caminhos”: o primeiro consiste num “estilo de pensamento” entendido como molecularização. A vida é vista a nível molecular, “como um conjunto de mecanismos vitais inteligíveis entre entidades moleculares que podem ser identificadas, isoladas, manipuladas, mobilizadas, recombinadas, em novas práticas de intervenção, as quais não são mais contidas pela normatividade aparente de uma ordem vital natural” (Rose, 2007, p. 5-7, tradução minha). O segundo degrau dessa política, a otimização, diz respeito às tecnologias da vida que não estão mais contidas por “polos” antagônicos entre saúde e doença. Rose aponta que isso não significa o seu fim, mas que as intervenções procuram se apoiar nas melhores consequências para o futuro. Isso tudo não deixa intacta a percepção do que são os seres humanos, e por isso novas formas de subjetivação emergem. Assim, a cidadania é atravessada por essa nova ordem biológica, e no caso de homens trans que procuram acesso a serviços, os direitos à saúde são estabelecidos em novas formas de politização da vida. Nesse sentido, o abandono ou a vitória sobre perspectivas patologizantes não implicam a ausência de outras formas de governo de condutas. As profissões que demandam controle de expertise continuam a surgir, como aquelas apontadas por Rose, e diversas formas de “administração de aspectos particulares” do que chama de “existência somática” se materializam. Esses caminhos geram, assim, o que o autor chama de economias de vitalidade. Elas incluem o mundo social da transição de gênero assistida pela profissão médica e seu arrazoado científico. O ser saudável se atualiza em dimensões que capitalizam biovalores e maneiras também novas de buscar a verdade dos sujeitos. E isso não se dá apenas nas pesquisas que procuram a origem da transexualidade, seja nos cérebros de pessoas trans ou nas gestações de suas mães, mas está contida no cotidiano da busca e do atendimento em saúde no seu nível mais micro. E, principalmente, na argumentação política em torno da garantia da oferta desses serviços. O direito à transição de gênero medicamente supervisionada ganha um espaço nessa ordem da vida na qual a política se dá 51 em termos novos, de controle genético e de descobertas neurológicas. Quanto mais cientistas se engajam em práticas que tem o sentido de aperfeiçoar procedimentos para efetivar a transição de gênero, seja no nível celular ou não, mais se estabelece outra perspectiva para a biologia dos corpos. Os estudos sobre transexualidade têm se concentrado grandemente nas tensões, violências e no dinamismo sociológico que as formulações psiquiátricas postulam para a sua definição, haja visto que tem sido as ciências psi uma porta de entrada para concretização de supervisão médica e status legal da mudança de gênero. Mas, um outro lado disso tudo permanece descoberto: as ciências bioquímicas. Como a repartição do sexo em várias partículas celulares e teciduais circunscrevem o reconhecimento e a medicalização? Como organizam visões de mundo e unem – mais do que separam – cientistas/médicos e pacientes/ativistas? Quais os lugares que esses saberes ocupam na nova reformulação, no presente, de uma saúde trans segura? Não simplesmente para dar vazão a oposição doença/normal, uma vez que essa dicotomia tem cada vez mais sido arrasada, mas enquanto transição saudável/transição não saudável e transição com/sem saúde que, portanto, causa doenças. Como o controle do diagnóstico é realizado, agora que há outra chave interpretativa disponível? Se a transexualidade não é mais diagnosticada, como se dá essa leitura do outro através da preocupação com a saúde dos órgãos, dos tecidos, de tudo aquilo que está da pele para dentro? Isto é, como a segurança biológica se constituiu um elemento político para corroborar a necessidade de o Estado nacional brasileiro assegurá-la em serviços de saúde? Talvez seja mais importante chamar de segurança bioquímica, por ser essa uma junção de áreas de ciências distintas, mas que se complementam. Contudo, prefiro o termo biológico porque esse ocupa uma identificação rápida no senso comum presente no campo quanto a postulação da dicotomia natureza/cultura. “Primeiro o meu Ceará” No Brasil, o ativismo e a saúde trans ganharam um novo capítulo histórico com a ascensão decisiva de sujeitos com a identidade denominada de homem trans. Muito particularmente, esse adjetivo, como apontei, tem sido um diminutivo de transexual e não de transgênero. Cientistas sociais que procuraram historiografar o movimento de gays, lésbicas, travestis e pessoas trans no país, como Mário Carvalho e Sérgio Carrara (2013), mostram que foi no decorrer da década de 1990 que, inspirada pela entrada de mulheres trans advindas do exterior, a categoria mulher transexual ganhou mais relevo nessa mobilização social brasileira. Esse era o mesmo período em que travesti se tornara uma identidade apartada da homossexualidade, e segundo, em que associações políticas nasceram em quase todo o Brasil. 52 Como me ensinaram os interlocutores mais experientes, como o cearense Silvio Lúcio (54 anos) a movimentação transmasculina veio de modo muito mais tardio e foi marcada inicialmente nesse mesmo período como figuras isoladas e desafiadas como identidades legítimas. Figuras também como Alexandre Peixe (2018)42 e João W. Nery (2012, 2018) passeiam nesse cenário, junto, desconfio, de outras pessoas que não ganharam os holofotes políticos. Semelhante ao que ocorreu na cena estadunidense (Califia, 1997; Prosser, 1998a; Stryker, 2017; Valentine, 2007), livros biográficos como o de Nery deram amplitude a essa categoria tida como nova por alguns pesquisadores. As narrativas pessoais, contadas em primeira mão, se tornam impressionantemente relevantes para que esses sujeitos saiam do anonimato (Ávila, 2014). É no virar dos anos 2000, com intenso crescimento nos anos 2010, que associações transmasculinas se multiplicam e essas identidades se tornam nacionalizadas. Nesse sentido, as pesquisas até agora feitas no país, como a de Simone Ávila destacam inicialmente o Núcleo de Apoio a Homens Trans (NAHT) com atuação em São Paulo e contato intenso com as formulações do Processo Transexualizador do SUS. Andreas Boschetti era o seu coordenador, e como registra Ávila (2014), a partir de e-mails, o interesse desse grupo estava em disseminar informações sobre os procedimentos cirúrgicos e legislação específica para homens trans. Se cobrava aí diretamente o Hospital das Clínicas de São Paulo, ligado à USP, para que os “riscos” e “benefícios” dessas cirurgias fossem explicados. Se essa é uma articulação localizada, logo surge uma outra associação que sonhou com uma ação coletiva coordenada por todo o país. Foi o caso da Associação Brasileira de Homens Trans (ABHT) que se oficializou em 2012, com irradiação política desde Recife, em Pernambuco, bem como na capital paulista. Com destaque especial para ativistas como Leonardo Tenório, Leonardo Peçanha e Raicarlos Coelho, as ações do grupo tentavam ultrapassar as fronteiras dos estados. Como mostrou Ávila (2014, p. 194), os objetivos apresentados em eventos pela ABHT se referiam a despatologização da transexualidade e buscavam “reivindicar a participação na construção de políticas públicas afirmativas para que as pessoas trans tenham acesso a direitos fundamentais como saúde, educação, trabalho, habitação e segurança” e a respectiva valorização de identidades que a autora chama de “transhomem”. Contudo, essa articulação se enfraqueceu por disputas internas, e como dissidência de alguns de seus integrantes sulistas deu nascimento, em 2013, ao Instituto Brasileiro de Transmasculinidades (IBRAT), filiado agora a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA) (cf. Ávila, 2014) que teve ampla abrangência nacional43. O então novo grupo acompanhava a estrutura 42 Em recente artigo publicado em parceria com Fábio Morelli, Alexandre constrói um depoimento biográfico no qual reflete sobre seu papel no movimento de homens trans ao denominá-los como “homens do futuro” (Peixe e Morelli, 2018). 43 Simone Ávila (2014) oferece um panorama nominal sobre o surgimento dessas três associações, ao partir de uma pesquisa por meio de sites da internet, listas de e-mails, e ida a eventos políticos e entrevistas. 53 nacional da ANTRA, e foi pouco a pouco estabelecendo núcleos com coordenadores locais em vários estados. Essa forma de organização do IBRAT é uma pedra de toque, se não para gerar uma unidade política – que tem se demonstrada enfraquecida –, mas para oferecer um canal inicial de vinculação. Entre 2014 e 2015, através de etnografia que eu realizava então em Natal, no Rio Grande do Norte, pude acompanhar o surgimento do núcleo potiguar (Rego, 2015). Em reunião numa das salas de aula da UFRN, ativistas da ANTRA apresentavam a homens trans interessados do estado a possibilidade de filiação, com escolha de diretoria própria local. Isso gerou uma importante plataforma, mas não pode ser visto como o único meio através do qual esses sujeitos tiveram acesso a informações sobre procedimentos e legislação relativa à saúde trans que nascia no país naquele período mais voltada para eles. Aos poucos, disputas também locais dão nascimento a outras associações potiguares que não estão ligadas ao IBRAT44. Desconfio que essas dinâmicas têm se desenvolvido em todo o país, e, na medida que associações aglutinadoras têm sido importantes veículos para acessar gestores na capital do país, elas também se mostraram de pouca força na cena local. Esse é o caso particular também de Fortaleza, no Ceará, onde ativistas homens trans tanto participaram da criação do IBRAT, como, posteriormente criaram outras associações locais com ou sem vinculação. É o caso, inicialmente da Associação Cearense de Homens Trans (ACETRANS) e sua dissenção posterior, a Associação Transmasculina do Ceará (ATRANSCE) que funcionam com estatutos e existência jurídica próprias desde a segunda metade da década de 2010. Como noutros lugares, a cena política transmasculina entra em relação, e é também um produto, com outras organizações locais de gays, lésbicas, travestis e mulheres trans. Na terra cearense, esse ativismo pode ser traçado desde a organização do VII Encontro Nacional de Travestis e Transexuais (ENTLAIDS) que, desde 1993 tem agido no enfrentamento e promoção da saúde relativa a pandemia de HIV/AIDS. Ao lado do Grupo de Resistência Asa Branca – grupo de militância homossexual criado em 1989 –, a nascente Associação de Travestis do Ceará (ATRAC) organizaram o evento que deu lugar no seu encerramento à primeira Parada pela Diversidade Sexual de Fortaleza (Cândido, 2013). Desde 2005, durante a XII edição do evento, é que ativistas transmasculinos se tornam conhecidos por se registrarem com essa identidade (Peixe e Morelli, 2018). O que não significa que esses sujeitos não estivessem presentes ou que estivessem situados em novas formas de subjetividade diferentes de mulheres lésbicas. Tanto Peixe como Silvio Lúcio demonstram que foram como lésbicas que entraram nessa cena política e que se sentiam inadaptados; algo diferente de uma segunda geração de ativistas que começam a organizar eventos específicos45. É o caso, em 44 Nesse cenário são também importantes grupos como a Atransparência, coordenado pela ativista e geógrafa Rebecka de França e a Atrevida, liderada por Jaqueline Brasil. Ver Rego (2015) para o nascimento do ativismo transmasculino no Rio Grande do Norte. 45 Similar ao contexto estadunidense (ver Rubin, 2003). 54 2013, do I Encontro de Homens Trans do Norte e Nordeste – e do país – organizado pela ABHT. Realizado no Centro de Ciências Jurídicas da UFPB, em João Pessoa, contou ainda com o apoio do Governo do Estado através da Secretaria da Mulher e da Diversidade Humana. Na ocasião, tanto João W. Nery como Sílvio Lúcio estiveram presentes, o primeiro relançando sua biografia, e o segundo, a sua primeira cinebiografia, o documentário Olhe pra mim de novo (2012), dirigido por Kiko Goifman e Claudia Priscilla46. Entretanto, outro evento terá ainda mais projeção, embora ambos tenham sido marcados por conflitos e contendas políticas. Dois anos depois, de 20 a 23 de fevereiro de 2015, a dissidência da ABHT, o IBRAT realizava em São Paulo o chamado I Encontro Nacional de Homens Trans (ENAHT). Também realizado noutra universidade pública, agora na USP, o evento contou com a presença de ativistas de vários estados do país. Como resultado, lançaram a Carta São Paulo. Um documento no qual apontavam treze pontos em caráter de manifesto, sendo o oitavo o termo identitário que a mobilização nacionalizada iria seguir: Este Encontro reafirma homens trans como a identidade política aglutinadora do nosso movimento, sendo reconhecidas e citadas em todas as nossas ações e documentos o amplo leque de transmasculinidades e as demandas correspondentes a esse amplo conjunto de sujeitos, que inclui homens transexuais, homens trans intersexo e não binários. Reitera também a necessidade de contemplar a diversidade de regional, geracional, étnico-racial, de inserções de classe e de identidades e de expressões de gênero no movimento (Carta São Paulo, ENAHT, 2015). Essas dinâmicas são, portanto, recentes e igualmente vigorosas. Contudo, é preciso olhar para isso tudo como um construto de legitimidade que organiza experiências bem diferentes entre si47. Se repete em muito as formas políticas de subjetivação de outras identidades sexuais e de gênero em evidência desde a década de 1980 no Brasil. O engajamento de travestis no cenário da pandemia de HIV/AIDS demonstrava que sofriam formas diferentes de estigma (Vale, 2005), mas homens trans embora também tenham usado o ENTLAIDS se diferenciam pelo seu foco crescente na transição de gênero. Esses engajamentos se constituem com muita intensidade em torno da retórica dos direitos humanos, os quais serão remetidos ao longo da tese como práticas culturais contextualizadas (Preis, 1996; Segato, 2006). Atualmente, há uma diversidade considerável de associações e de cenários de constituição políticas que nem sempre são nacionalizados segundo olhares de pesquisadores. Ao partir da região metropolitana de Fortaleza, no Ceará (ver Figura 1), a pesquisa procurou situar-se ao mesmo tempo num enfoque algo regional e suas ligações nacionais e externas ao Brasil. Essa abordagem traz desafios à descrição etnográfica, mas se fia no modo como os problemas 46 Lançado internacionalmente em 13 de fevereiro de 2012, o documentário foi indicado na categoria Melhor Documentário no Teddy Award, um dos maiores festivais de cinema queer do mundo. 47 Outros Encontros têm sido organizados no país ao longo dos Estados que não tem ligação com o ENAHT, que também não teve ainda uma segunda edição. 55 encarados se tornam relevantes localmente. As dinâmicas de ativismo trans em torno da saúde se valem abertamente da necessidade de que as táticas de convencimento diante do Estado se concentrem na própria cidade onde vivem porque chegaram à conclusão, após intensa participação em atividades políticas noutras partes do país, que sem focalizar o lugar onde vivem os outros ativistas de fora não o farão. “É preciso lutar por si e pelos seus”, diziam constantemente. Isso é também o caso para preocupações advindas de outros agentes sociais, médicos e burocratas, quanto a conformação de serviços que porventura venham a se tornar assistência trans. Esses últimos não podem ser vistos como “respondendo” a pacientes que procuram atendimento, eles são parte dessa dinâmica local e não uma reação. E isso se mostra numa intricada escala que, ao mesmo tempo, é descrita como começando e terminando na região. Nesse cenário, a conformação de um ativismo biossocial se erigiu como condição para que se defendesse a abertura de um ambulatório, objeto em torno do qual a militância local tem se dedicado grandemente desde seu nascimento – tendo sido, inclusive, a motivação para tal associativismo. Em muitos aspectos diferentes e semelhantes às biossocialidades das identidades clínicas construídas em torno do HIV/Aids ou HLTV (Valle, 2013), a demanda por direitos em saúde trans se firma em negar a categoria médica nosológica (mesmo que não possa desconsiderar as linhas ativistas que são contra a despatologização por fatores diversos). Assim como esse contexto do HIV, nas palavras de Carlos Guilherme do Valle (2015), faz surgir um conjunto novo de seres e coisas científico-biomédicas, a categoria transexualidade e suas técnicas biomédicas de intervenção e classificação faz suscitar questões ligadas a moralidade, a ciência, a saúde, e, principalmente a vida e a morte. Nesse sentido, procuro demonstrar como as dinâmicas por cidadania em saúde do ativismo trans cearense ganham uma configuração biossocial. Muito embora a transição de gênero – nem muito menos a transexualidade – seja uma questão de genômica (Rabinow, 1996) ou de infecção de um vírus como o HIV que têm produzido uma formação identitária a partir de uma condição biológica (Valle, 2015), essa experiência tem sido constituída pelas formas como o conhecimento biomédico e suas tecnologias da vida leem e tomam os corpos humanos (Rose, 2007). A chave desse ativismo trans tem se concentrado em dois fatores primordiais que expõem fatores biológicos que são politizados ao mesmo tempo que são base para subjetivação: o primeiro diz respeito ao argumento de que doenças decorrentes, por exemplo, de neoplasias ou outras interações orgânicas patológicas podem ser reverberadas por uma transição de gênero malfeita ao não se ter a supervisão médica; e, em segundo lugar, a ausência dessa transição concluída acarreta uma vulnerabilidade que é pública por expor corpos ainda não acabados que podem ser lidos dúbios e assim serem suscetíveis à violência de terceiros. Essa é uma segurança biológica – ou uma biossegurança – que deve ser garantida pelo Estado brasileiro através do 56 Sistema Único de Saúde e pela aplicação científica de saberes sobre o corpo a nível molecular, uma vez que a transição foi erigida localmente como uma condição para o acesso a cidadania plena de sujeitos trans. Esse ativismo biossocial – segundo os termos de Valle (2015) – portanto, cria uma biocidadania como estratégia política. E isso acontece dentro das formas que a biopolítica contemporânea tem tomado, o caráter vivo do ser humano através da biomedicina e seu desenvolvimento biotecnológico. E, no Ceará, isso ganha contornos próprios e vinculados em diferentes escalas a outras regiões do país e da metrópole global. *** Iracema, anagrama de América, seria a mulher virgem que era a guardiã dos segredos da jurema, um vegetal que provoca estados alterados de consciência, e que teria se apaixonado pelo homem branco, que aportou na costa. O casal multiétnico e multicultural gerou o primeiro cearense, Moacir, o filho do sofrimento. O homem se afasta, a mulher morre depois de dar à luz o filho e começa aí um processo de errância, um mal-estar que não conhece tréguas, diante da aridez e infertilidade do solo, da escassez de água, da pobreza atávica e da fome ancestral que nos marca até hoje (Carvalho, 2014, p. 264). A leitura do romance de José de Alencar, como mito fundador do cearense é feito por Gilmar de Carvalho que elenca em seu artigo um número expressivo de elementos culturais locais que são forjados na busca por uma particularidade. Os monumentos a Alencar se espalham pelo estado, como na escultura da índia à beira mar ou a cidade que recebe seu nome. A pujança do Centro Dragão do Mar, do Museu de Arte Contemporânea do Ceará e do Museu da Cultura Cearense, bem como de outros organismos do governo estadual e municipal celebram o vigor da criatividade local inscrita na literatura, na música, no cinema, nas artes plásticas, no teatro, e dão lugar também aos movimentos por direitos. Esses e outros espaços compõem as cenas etnográficas descritas nesta tese, mas não busco realizar nenhum estudo de comunidade. Não cabe, ainda, retomar a história cearense desde os tempos da colonização e império. Mas, algo me impressionava de modo particular, como um olhar de fora, e se referia ao cipoal intenso de atividade política de grupos marginalizados. As pesquisas realizadas sobre diferentes temáticas cearenses demonstravam uma quantidade difícil de calcular de grupos organizados e de questões emergentes envolvendo etnogêneses e sociogêneses indígenas e quilombolas, articulação por moradia de moradores de favelas, periferia urbana ou comunidades marginais, acesso a saneamento básico, direito à cidade, política eleitoral, farmácia viva no SUS e conselhos de saúde locais, e tantos outros48. Eu me sentia num caldeirão de cidadania quanto mais visualizava essa literatura e vivia experiências etnográficas 48 Ver por ex., Richard Park (1999), Irlys Barreira (2001), Guilherme do Valle (2003), Alexandre Vale (2005) e Jessica Jerome (2014). 57 em torno dos direitos à saúde trans. Um dos amigos que fiz em campo me perguntou uma vez ao que eu atribuía essa efervescência política na região. O que explicava haver tantos movimentos sociais diferentes e tantas organizações atuantes ao longo de um considerável período histórico? Embora não tenhamos chegado a nenhuma conclusão sobre origens, eu não deixava de associar essa indicação, de que a política organizada era algo pulsante, com as próprias interpretações locais sobre viver ali uma gente aguerrida e destemida. “O cearense vai à luta”. Algo que se confirmava quando um ativista trans, refletindo sobre o engajamento que deveria formar, me disse: “primeiro o meu Ceará”. Essa minha observação não se dava por decorrência de uma surpresa por não esperar que isso fosse possível, mas por comparar o Ceará com o próprio estado no qual eu nasci e cresci, seu vizinho, o Rio Grande do Norte onde eu havia feito também uma pesquisa como já mencionei49. Com isso eu ia estabelecendo leituras comparativas entre os dois contextos, algo que não replico aqui, mas que compôs inicialmente meu dia a dia. A desigualdade social dos dois em muito os aproxima50 e fora outro elemento que me saltava. Numa pesquisa encomendada pela Fundação Perseu Abramo, organizada por Alfredo de Oliveira (2014) na sua edição cearense, se mostrava uma forte desigualdade de acesso a renda. Dos 9 milhões de habitantes do estado contabilizados até 2010, mais de 4 milhões viviam apenas na região metropolitana da capital. Os autores apontavam que “em 2000, o Ceará apresentava o pior Índice de Gini entre os 27 estados brasileiros (0,626), evoluiu para 21ª colocação em 2010 (0,556), ou seja, em dez anos reduziu a desigualdade em 11,1%, bem próximo da redução da desigualdade brasileira (10,2%)”. Apesar de ter sido uma das regiões nas quais mais pessoas ascenderam da extrema miséria entre 2006 e 2011, considerando apenas índices como o de desenvolvimento humano51 e o coeficiente de Gini – que mede a diferença de renda entre os mais pobres e os mais ricos –, a desigualdade social tem figurado com grandíssima intensidade. Eu não conhecia Fortaleza antes de iniciar o trabalho de campo. A escolha pela cidade para a pesquisa se deu pela sua proximidade com o Rio Grande do Norte e pela minha curiosidade sobre questões ligadas a diversidade sexual e de gênero naquela região. Ao morar no Ceará, uma das minhas principais preocupações era a de não reproduzir estereótipos que são produtos fáceis de explicações sobre quem é e o que faz uma população circunscrita seja qual for o critério. Mas, cabia 49 Não se trata de comparar culturas políticas, aplicando os termos de Robert Putman (1996), para medir uma participação democrática. Não é sob a chave do civismo que entendo aqui a política, mas como prática cultural e social que atravessa diferentes espaços e via diversos agentes como setores do Estado brasileiro, associações ativistas, organizações médicas, prática clínica, cuidado, abrigos, entre outros que serão descritos ao longo do trabalho. 50 Sobre o contexto socioeconômico norte-rio-grandense ver José Spinelli (2014). 51 O IDH é uma medida geométrica usada por economistas para se estabelecer o “índice de desenvolvimento humano”, e usa uma média ponderada a partir de outros três índices: a expectativa de vida ao nascer, índice de educação (anos médios/anos esperados de escolaridade), e o índice de renda, levando em consideração o produto interno bruto per capita. 58 entender o que havia de diferente e semelhante ali sobre o ativismo e a saúde trans em relação a outras regiões do país já registradas no assunto. Algo que procuro demonstrar ao longo da tese. Como parte rotineira de uma revisão bibliográfica, segui pesquisas já produzidas por outros cientistas sociais para poder estabelecer uma relação com que eu passava a observar na minha própria pesquisa. Assim, procurei inicialmente por estudos sobre gays, lésbicas e pessoas trans que percebi serem numerosos em muitas áreas do conhecimento entre pesquisadores locais e advindos de fora. Contudo, eram escassas ou inexistentes discussões em torno do tema específico dessa tese. 59 Figura 1 – Mapa político da cidade de Fortaleza, Ceará52 52 A cidade era dividida entre 7 regionais como mostradas no mapa até 2019, divisão criada pelo Governo Juraci Vieira de Magalhães nos anos 1990. Em 18 de dezembro, o governo Roberto Cláudio (PDT) aprovou junto à Câmara de Vereadores uma maior divisão, agora para 12 Regionais. Cada uma possui uma secretaria que descentraliza a gestão da Prefeitura. Mantive a representação da divisão de Magalhães porque foi o que animou o campo durante a pesquisa. cf. O Povo, 18 dez. 2019. Disponível em: . Acesso em: jun. 2020. Mapa adaptado por Cleyton Santos a partir do mapa criado pela Prefeitura de Fortaleza. 60 A escrita e a organização desta tese A escrita da tese foi beneficiada pela minha estadia na Escola de Antropologia da Universidade do Arizona, nos Estados Unidos. Lá fui coorientado pelo antropólogo Dr. Eric Plemons, atendendo a seminários e as suas disciplinas de forma eletiva. O Instituto para Estudos LGBT, coordenado pela profa. Susan Stryker, além do Centro para Estudos Latino-americanos foram outros espaços da instituição aos quais atendia com regularidade para palestras e demais atividades acadêmicas – embora estivesse filiado oficialmente apenas a Escola e ao Instituto. Inicialmente, eu tinha a intenção de realizar mais pesquisa de campo em Tucson, cidade na qual morei, mas fui demovido dessa ideia pela alta quantidade de material empírico que construí ainda no Brasil. Assim, o estágio serviu para ter acesso a vasta bibliografia, principalmente em língua inglesa sobre o tema da pesquisa, e ainda a oportunidade de trabalhar com o professor Plemons que desenvolveu uma importante investigação etnográfica sobre medicina trans naquele país e em países da América Latina. A estrutura de salas, bibliotecas, centro de esportes, e outras dependências do campus, como a sala privativa que recebi, me propiciaram um dos melhores loci de trabalho que eu poderia dispor. Além disso, ter tido a oportunidade de viver no país origem de grande irradiação de conhecimentos sobre transexualidade foi de extrema importância para eu ter tido contato com alguma parte da vida cultural e social que é levada junto com esses saberes que se pretendem universais e naturais, mas que são transformados quando entram em outras escalas, de modo a serem reconstituídos e refeitos onde quer que cheguem. O esqueleto da tese, a revisão bibliográfica, bem como a organização de ideias-chave, de argumentos e do material empírico foram realizados em grande parte quando eu ainda estava em Tucson junto das orientações, à distância, da profa. Rozeli e presenciais do prof. Eric. A escrita propriamente dita também começou no exterior, tendo alcançado as primeiras versões dos capítulos 2, 3 e 5, e o esboço dos capítulos 4 e 6. O capítulo 1 é uma versão corrigida e modificada de parte do texto apresentado para Qualificação da tese. Tudo foi escrito, reescrito ou revisado quando de volta ao Brasil, testando limites das proposições iniciais pensadas alhures. A tese contempla, assim, seis capítulos que conformam um todo articulado, de modo que o argumento geral não ganha sentido sem pensá-los conjuntamente. No capítulo 1, chamado de Um exercício de objetivação participante, acompanho a análise epistemológica de métodos de pesquisa de Pierre Bourdieu (2003c; 2009; Bourdieu, Chamboredon Passeron, 2002b [1968]) para descrever as condições sociais de possibilidade de realização da etnografia desde os primeiros contatos que se deram em 2016 até o período de moradia em Fortaleza de 2017 a 2018. Esse não é, contudo, um exercício de reflexividade etérea para expor minha forma transcendente e afetada de ver o mundo social que aqui é tomado como objeto. O 61 exercício é de objetivar, nas palavras de Bourdieu, procura expor o sujeito da objetivação – o pesquisador –, de modo a não rejeitar a objetividade, dimensão fundamental de uma pesquisa científica, mas o objetivismo e o subjetivismo que são igualmente deficientes de possibilitar que se analise, perceba e critique as posições do pesquisador e as condições que governam os problemas que propõe entender, bem como a administração das noções espontâneas. Aqui articulo os caminhos que percorri no campo e os limites e contensões impostas pelos interlocutores. No capítulo 2, Os fluxos socioculturais da transexualidade, procuro entender a dimensão transnacional da transexualidade, recorrendo a uma exposição histórica desses fluxos e origens culturais no cenário médico-psi brasileiro desde os anos 1960 e de como esses saberes foram apropriados por ativistas homens trans em Fortaleza a partir de sua promoção de uma peça teatral. Como categoria diagnóstica, o transexualismo viajou o mundo inteiro alavancado pela comunidade médica através de seus manuais de saúde de espraiamento global e dos organismos internacionais de saúde e da divulgação científica. Realizei pesquisa no acervo da Fundação Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro, no arquivo do Grupo de Resistência Asa Branca, em Fortaleza, nas Bibliotecas da Universidade de São Paulo, consultando livros publicados, matérias jornalísticas e eventos acadêmicos, bem como faço referência a trabalhos já realizados no tema. De modo criativo, homens trans ativistas de Fortaleza extrapolam a medicina para se visibilizarem na vida coletiva, mesmo que sua atuação política seja grandemente voltada para a constituição de serviços de saúde que possam lhes atender de modo equânime como outros cidadãos brasileiros. Ao descrever uma peça teatral sobre suas vidas que fora encenada em Fortaleza, região na qual o teatro é um grande veículo cultural, símbolo e ativo na reprodução social mostro como esses saberes biomédicos são transformados e desafiados nos palcos. Procuro unir a etnografia uma dimensão histórica que considera as complexidades da vida social através do tempo. No capítulo 3, Corpo, aflição e adoecimento na linguagem das emoções, descrevo como homens trans utilizam-se e constituem uma linguagem das emoções para entender e representar suas transições de gênero junto de trajetórias biográficas e itinerários terapêuticos de adoecimento que as cruzam. Procuro analisar quais os sentidos do uso do termo disforia para se referir as próprias emoções nesse processo de subjetivação que se intersecta com práticas corporais. Quais são os limites da apropriação política de termos cunhados no campo da biomedicina? O que significa sentir-se disfórico? Está aí uma reconciliação com o conhecimento biomédico simplesmente? Tal descrição sentimental, entendida aqui como discursiva, é ela mesma apenas uma forma apolítica de falar de si? Além de significar, o que sentir a disforia organiza socialmente? Nesse sentido, o capítulo se divide em duas partes, na primeira discuto como as categorias presentes no manual diagnóstico da Associação Psiquiátrica Americana (APA), o DSM, foi sendo modificado 62 ao longo das últimas décadas, de transexualismo até a presente disforia de gênero. Na segunda parte, me concentro nas descrições de trajetórias e itinerários terapêuticos. A disforia descrita como uma emoção que organiza as experiências de sofrimento age como um conjunto de práticas discursivas, que reposicionam os sentidos que a disforia tem ocupado nos manuais de saúde. O capítulo 4, A política de saúde trans e os processos de formação de Estado, descreve as buscas dos interlocutores trans por serviços de atenção à saúde no espaço da atenção básica e secundária. Isso procura demonstrar itinerários terapêuticos das transições de gênero, analisando diferenças entre suas buscas por estruturas estatais e os cuidados que conformam paralelamente. Percorro, junto com eles, suas entradas e saídas desses serviços. Procuro, com isso, demonstrar primordialmente quais são os efeitos sociopolíticos do Processo Transexualizador (PTSUS) na região. Devido a organização do Sistema Único de Saúde, é necessário percorrer os diferentes níveis de atenção para acessar os procedimentos do PTSUS, já que ela tem sido pensada apenas no nível terciário hospitalar. Assim, a busca pelos serviços básicos consiste em encontrar serviços sensíveis que são caracterizados por funcionários que aplicam o nome social, e que não dificultam a marcação de consultas mesmo quando não dizem respeito ao bairro de abrangência do posto de saúde. Mesmo que nem todos os ativistas e pacientes que acompanhei nos serviços persigam os mesmos procedimentos biomédicos e apliquem, aceitem e manejem da mesma maneira as práticas médicas, cirúrgicas e clínicas, o campo da saúde é um grande mote de articulação política e que constitui um foro terapêutico. Cuidar de si para se manter saudável é ter uma transição saudável. Isso leva a refletir sobre como setores do Estado brasileiro se reproduzem na conformação da política de saúde trans quando entram em contato com o ativismo. Inicialmente, havia planejado me concentrar nesse capítulo a respeito do Centro de Referência Janaína Dutra (CR), setor de assistência da Prefeitura de Fortaleza voltado para atender pessoas que sofreram violência por decorrência de homofobia e transfobia – ou, como diziam também os interlocutores, LGBTfobia. Contudo, percebi que o Centro era apenas um desses serviços que se percorria para buscar atendimento, e assim dinamizei a descrição da tese seguindo esses itinerários e não me concentrando num só serviço. Faço referência ao CR ao longo do texto. Em Biologia como política, o capítulo 5, descrevo as estratégias e os encontros entre diferentes agentes sociais para argumentar diante do Governo do Estado do Ceará e da Prefeitura Municipal de Fortaleza, pela instalação dos serviços que compõem o PTSUS. Aqui demonstro como se constituem os grupos organizados de ativismo transmasculino, seguindo os interlocutores em eventos políticos, cotidiano profissional e pessoal. A ausência de serviços que proporcionem a segura transição de gênero, isto é, medicamente assistida – e não medicamente controlada, como diferenciam – é eleito como um dos propulsores das violências que sofrem inclusive na rua. Essa 63 argumentação é realizada principalmente através da politização do biológico, dos corpos quando das interações bioquímicas provocadas pelos procedimentos da transição de gênero. Aqui ganha relevo a consolidação da Associação Transmasculina do Ceará (ATRANSCE), e suas táticas políticas e culturais para legitimar a existência social de uma certa subjetividade através da observação participante e o auxílio de 20 entrevistas. O apelo para evitar o adoecimento, no caso de uma transição desassistida, penetra nos setores estatais locais como um verdadeiro ativismo biossocial que transforma entendimentos e concepções sobre biologia antes usados para lhes impedir a transição através do controle diagnóstico. Com isso, é possível perceber como a saúde trans pode ser uma formulação local. O último capítulo, o 6, intitulado de Sensibilidades e medicina no sertão, se preocupa especificamente com a perspectiva e atuação clínica de médicos e médicas sobre a conformação de uma medicina especializada na transição de gênero de forma patologizada ou não. Como clínicos, cirurgiões e professores universitários da região têm pensado e praticado uma terapêutica trans? O que entendem como prática médica voltada para a assistência à transição de gênero ou ao controle diagnóstico? Nesse capítulo elaboro de modo mais detalhado a dimensão que concebo como “terapêutica trans”, seguindo formulações de diferentes pesquisadores. A terapêutica, como campo médico que estuda os métodos e procedimentos próprios ao tratamento de adoecimentos, tem sido vista ultimamente como um campo de métodos para diferentes procedimentos próprios da transição de gênero e que contemplam questões sobre cuidado. Centralizo o capítulo na dimensão da profissionalização desses médicos. Por que médicos e médicas estão se interessando em cursar formações e em atuarem nesse campo quando se trata de uma arena marginal e, em certos sentidos e contextos, malvista às suas carreiras? Quais são as trajetórias biográficas desses médicos? Sem um serviço formalizado, como se articulam os profisisonais na região de Fortaleza? Quais as dimensões conflitivas entre profissionais, entre aqueles “contrários” e os “favoráveis” à institucionalização de serviços à supervisão da transição de gênero? Como os médicos se utilizam de uma linguagem das emoções também para se demarcarem como profissionais sensíveis? O capítulo também segue a recorrência etnográfica até aqui estabelecida, usando de entrevistas com 17 médicos e médicas, os quais segui em seus trabalhos clínicos, em congressos profissionais/acadêmicos e noutras situações de sociabilidade. A tese é concluída ao se observar os limites das discussões aqui empreendidas, o alcance das formulações locais sobre o estabelecimento de uma política do cuidado e da atenção à saúde trans brasileira desde Fortaleza, Ceará, e os novos cenários que se anunciam. 64 – Capítulo 1 – Um exercício de objetivação participante Durante todo o tempo em que ignora os limites inerentes ao ponto de vista que assume sobre o objeto, o etnólogo condena-se a retomar inconscientemente por sua conta a representação da acção que se impõe a um agente ou a um grupo quando, desprovido do domínio prático de uma competência fortemente valorizada, tem de se dar o seu substituto explícito e pelo menos semi- formalizado sob a forma de um repertório de regras ou daquilo a que os sociólogos, no melhor dos casos, incluem na noção de “papel”, quer dizer, o programa predeterminado dos discursos e das ações que convêm a um certo “uso”. – Pierre Bourdieu (2002a [2000], p. 139). 1.1. O etnógrafo objetivado Em alguns momentos da minha pesquisa de campo em Fortaleza, no Ceará, auferi a mim mesmo enquanto observador participante a ilusão de fazer parte de um lugar ao qual não pertencia, ou ainda de sentir alguma segurança por imaginar-me numa posição “estabelecida” que julgava de vínculos de confiança com os interlocutores – posição essa que, ao contrário, não estava dada ao natural, mas precisava ser sempre construída. Momentaneamente, cheguei a partilhar, apenas com meu diário – é preciso dizer –, uma vontade de querer atuar com as pessoas com quem pesquisava, sejam eles e elas médicas, ativistas trans (e/ou gays e lésbicas) ou técnicos do Estado quando lhes observava diante de casos concretos de violências ou de carência de cuidados. Ou seja, de ter alguma atuação na produção própria do cuidado e da sua carência que observava. É igualmente verdade que muitas vezes fui indagado acerca de minhas aptidões para desempenhar essa ou aquela atividade ordinária do cotidiano dos colaboradores. Porém, a ilusão passageira de pertencer, de poder sê-lo como eram eles, logo se dissipava quando me lembravam, seja direta ou indiretamente, que ali eu não era um ativista como os ativistas que ali “lutavam” – a leitura de interlocutores era de que eu performava um “ativismo”, mas que seria do tipo “acadêmico” –; nem funcionário do Estado o seria, dada a nebulosidade que envolvia o ofício do antropólogo e ao fato de não ser dali empregado, ou menos ainda, médico, por razões óbvias adicionais da extrema independência e autonomia do campo científico da medicina. Essa vontade de atuar como atuavam os colaboradores em torno do problema do “cuidado” não partia de um desejo de “tornar-me nativo” para entendê-los melhor (Geertz, 1999 [1983]), mas advinha da minha preocupação com as vidas das pessoas que apresentavam sofrimentos diversos (em grande medida 65 atravessados por uma desigualdade social). Era proveniente de minhas angústias e inquietações próprias do desejo de resolução. Tornou-se necessário perceber os limites de uma pesquisa científica e de porque eu estava em campo realizando uma etnografia, e, portanto, do que pode fazer a antropologia nesse sentido. Não tenho clareza se sou um intelectual militante, nos termos de Florestan Fernandes (1994), mas, de todo modo, foi por ter sido movido pela urgência dessa realidade que me voltei para ela e a transformei num determinado problema de pesquisa. Os motivos desse meu interesse, racionalizados nesse texto quase na forma de uma autoanálise (como na acepção de Bourdieu, 2005 [2004]), também se mostraram ser elementos que me ajudaram a entrar e circular em campo. Percebo que isso adentra à reflexão feita na antropologia sobre a semelhança ou a diferença cultural e social entre etnógrafo e grupos/problemas estudados sempre que categorias de pessoa separam o pesquisador através de categorias e origens tão poderosamente engajadas pelos interlocutores, isto é, por ex., ser mulher e não ter acesso a atmosfera masculina numa dada coletividade indígena ou não – e vice-versa – (Strathern, 2006), mudanças à descrição trazidas por se estar na própria sociedade (em casa) (Peirano, 2006) ou, ainda, estar num estrato social distinto da comunidade que se estuda. Não há qualquer garantia para uma “melhor” interpretação, análise ou explicação por se ser parte ou não daquilo que se estuda. A minha origem de pobreza, por exemplo, não me gerou nenhuma habilidade especial para compreender as experiências de interlocutores que me contavam ter sofrido, por exemplo, episódios de fome. Muito embora tenha me gerado uma simpatia e um interesse particular em descrever suas narrativas, nossas formas de vivê-las encontravam muitas divergências. A própria Alba Zaluar (1994) em sua introdução “metodológica e afetiva” mostrou que a diferença social entre ela e seus interlocutores não impediu que pudesse adentrar no universo social da Cidade de Deus que pesquisou. Se ela percebera que deveria evitar qualquer piedade que desembocasse em “paternalismo”, compreendendo a hierarquia que os separava, eu também cada vez mais entendia que não havia unicidade na pobreza e muitos recortes eram feitos socialmente para diferenciá-la. A experiência etnográfica é aquilo que, por meio de alguma forma de alteridade, propicia o trabalho antropológico de compreensão/descrição da realidade social e da criatividade humana, e não uma qualidade advinda de pertencimento social prévio. Algo que envolve não simplesmente coleta de dados, mas vivência. É um exame objetivo e subjetivo de questões atrelado a convivência, de certa forma contínua, que permite entendimentos sobre o outro de uma forma cientificamente situada (Bourdieu, 2009). Mesmo que tenhamos que realizar abordagens diferentes de acordo com o objeto de pesquisa, sempre está presente um movimento teórico e metodológico crucial: estranhar e familiarizar o outro e a si mesmo nesse processo (Velho, 1981). 66 Incluíam-se nessa tônica inquietante as dimensões variadas, na vida social ativa das pessoas, dos conflitos e das disputas que ganhavam corpo e da qual tomavam parte no campo que realizei a etnografia. Quero dizer: ao tentar entender esses modos de cuidado em saúde, defrontei-me com um universo intrincado de múltiplas redes e relações entre campos e grupos distintos que, para além de toda produção de práticas e significados, estavam em luta entre si e contra outros universos que não tomavam parte no reconhecimento de sua importância – o que compunha a produção desse mundo social particular. Não estava claro para mim como interpretar, ou compreender, essas relações emaranhadas de disputas, principalmente porque, em alguma medida, os interlocutores me questionavam sobre minha posição a respeito de seus pontos de vista. Eu me questionava em como realizar a observação sem tomar parte nas disputas. Como entrar na “luta” não como um combatente, mas como um observador? Isso seria possível? Como manter a posição ética com todos os nichos de interlocutores? Esse meu incômodo em lidar com tais combates no curso da compressão do objeto em muito tem a ver com minha disposição crescente para evitar vivê-los como meus, uma vez que era essa uma das requisições propostas “no campo”. E não necessariamente tem a ver com uma fantasia que conta a história de um mundo harmônico sem discordâncias e contradições. Essas preocupações que pareciam meio paralisantes no início se converteram em reflexões em torno dos limites da minha atuação como antropólogo, sem deixar de instarem-se como desafios à análise antropológica. Tanto na tentativa de fugir de um subjetivismo narcisista que exacerba discursivamente uma certa afetação, bem como ao assumir os princípios e limitações de uma pesquisa científica em seu valor objetivista, proponho neste capítulo descrever e examinar, ou compreender, as “condições de possibilidade” (Bourdieu, 2009 [1980]; 2003c) de minha atividade etnográfica. Não apenas no sentido do que tornou realizável a construção de estratégias, imponderáveis e posições vividas em campo, mas também da própria problemática da pesquisa; de modo que apareçam como são, vestígios produzidos de processos de constituição do objeto, do sujeito e do emprego dos instrumentos de objetivação – isto é, o que é utilizado para produzir dados postos à análise científica: diários, gravadores, mapas, entrevistas, leitura de documentos, observação continuada. Pierre Bourdieu (2003c; 2009) atribui a explicação dessas “condições” ao propósito central do exercício do que chama de “objetivar a objetivação”, algo crucial para o controle da pesquisa que contém diferentes modos e níveis de articulação. Assim, ao invés de conceber a observação participante como uma atividade mágica da qual provém todo o conhecimento pronto para ser apenas apresentado ou descrito, Bourdieu sugere realizar uma “objetivação participante”. Assim, articulo neste capítulo suas proposições epistemológicas com a tradição reflexiva da antropologia para situar o objeto de investigação e minha experiência etnográfica. 67 1.2. Primeiros passos numa rede Os primeiros passos em direção a essa pesquisa começaram numa reunião de estudantes e ativistas para discussão de direitos da população de lésbicas, gays, bissexuais e transgêneros (LGBT) atrelados à rubrica dos direitos sociais de trabalhadores. O encontro era de pequena proporção, mas isso não o impediu de sua ritualística: estávamos em círculo e ao centro, no chão, eram expostos o colorismo das bandeiras de movimentos sociais: sindicatos e partidos comunistas; ativismo trans, com sua bandeira de listras azul, rosa e branco; feminismo, com bandeira roxa e seu símbolo de sexo feminino com punho erguido ao centro; e a bandeira com as seis cores do arco- íris do acrônimo LGBT. Éramos não mais que doze pessoas, e na ocasião eu acompanhava a participação de dois ativistas trans quando já estava no final da pesquisa de campo para a dissertação de mestrado (Rego, 2015). Era sábado de manhã, e eu fora convidado por eles para estar lá. A desigualdade social e o desmantelamento da estrutura educacional via projetos neoliberais foram o centro do debate naquela ocasião no campus da UFRN. Contudo, a direção das intervenções desses dois rapazes que menciono estava posta no âmbito do cuidado em saúde, trazido discursivamente a partir da afirmação identitária. Estávamos em 2015 e o emergente ativismo transmasculino natalense se colocava basicamente em termos identitários, sem quase nenhuma articulação concreta com os serviços e políticas de Estado. O cuidado em saúde ali era colocado advindo da necessidade de cuidar de si em meio a aplicação de testosterona sintética à transição de gênero, uma vez que a compra e os níveis necessários de ingestão da droga passavam necessariamente pelo controle e pelo conhecimento biomédico e farmacêutico. Foi por essa mão que descrevi o contexto de “saúde” até aquele momento (Rego, 2015). A partir disso comecei a pensar como esses sujeitos vivenciariam acessos a serviços de saúde para outros cuidados em termos de adoecimento e medicalização referentes ou não a transição. Fora da reunião, os ativistas e eu conversávamos, enquanto íamos para a parada de ônibus, sobre como homens trans têm manejado cuidados em meio a experiências de gestação e aborto, uma vez que isso começava a se erigir entre eles. Alguém conhecia alguém que já tinha interrompido a gravidez, ou era de conhecimento geral que certo rapaz trans engravidara antes de iniciar a transição corporal. Foi a partir desses lampejos de conversas que germinei o interesse de me debruçar especificamente sobre como esses sujeitos constroem-se e são construídos enquanto tais no curso do acesso e cuidado em saúde. Disso, decorri à elaboração de um projeto de pesquisa sobre gestação, parto e pós-parto trans no Brasil contemporâneo. Não conhecia nenhum interlocutor em potencial que tivesse engravidado e dado a luz ou que tivesse entrado em estado de abortamento, mas o tema e a minha rede de contatos eram promissores. Contudo, essa mesma rede me levou a questões noutra direção. Como meu interesse pessoal era o de pesquisar outra 68 região diferente da qual eu estava habituado, comecei a imaginar possíveis cidades nas quais a pesquisa seria viável diante dos meus contatos e do financiamento. João Pessoa, na Paraíba parecia uma boa alternativa, mas Fortaleza, no Ceará surgiu como o lócus de pesquisa por certos acasos e estratégias que empreguei para estabelecer redes. Durante a 30ª Reunião Brasileira de Antropologia, em João Pessoa, acabei conhecendo na acomodação que fiquei hospedado um rapaz cearense e estudante da Universidade Federal do Ceará que se tornou um amigo. Num dos dias no qual estávamos voltando para o hotel, falei de minha pesquisa sobre saúde trans e, para minha surpresa, ele era amigo de uma profissional de saúde que tinha alguma experiência nesse segmento. Como eu tinha um grande interesse em alcançar esses profissionais, principalmente médicos, foi a oportunidade ideal para ser apresentado a alguém. A nova interlocutora e eu trocamos contatos de telefone e começamos de imediato a conversar sobre o tema via internet. Ela se mostraria, no decorrer do campo, como uma colaboradora privilegiada para o acesso a outros profissionais e serviços. Findado o evento e de volta para casa, em Natal, continuei a tentar estabelecer alguma ligação com interlocutores que morassem em Fortaleza. Foi graças a um colaborador da época da pesquisa do mestrado, natalense, que me tornei amigo de um outro rapaz trans morador daquela cidade. Assim que ele me passou seu contato já começamos a conversar sobre minha pesquisa. De antemão, o estabelecimento de uma confiança foi difícil. Ele queria saber quais eram meus propósitos, quem eu era, porque eu me interessei por esse tema, entre outros. Apenas depois de apresentar minha dissertação de mestrado é que, uma vez lida por ele, suscitou-se uma abertura significativa da sua parte. Discutimos sobre minhas análises naquele trabalho e o interesse dele nos propiciou uma relação amistosa que acabou se tornando um grande divisor de águas para me inserir na cena que eu estava instigado a estudar53. Diante desses dois interlocutores, a médica e o líder ativista, é que decidi me voltar definitivamente para Fortaleza. Aliado a isso, outro fator de interesse pela região se deve a não haver estudos socioantropológicos que se detenham sobre esse universo social específico. Muito embora a articulação de movimentos sociais desse tipo produza uma vida social ativa das mais agitadas do país, ainda eram escassas tais pesquisas. Desde esses primeiros contatos a partir de 2016, continuados por meio de conversas e acompanhamento de diferentes situações pela internet, decorreu quase um ano para que eu começasse a ir fisicamente a Fortaleza. Ainda à distância eu não fazia a menor ideia da grande articulação que tornava possível a existência daquilo que passaria a ser o objeto sobre o qual eu 53 Isso dá novos contornos às políticas de recepção de audiência das etnografias, como visualizadas por Caroline Brettell (1993). Mesmo que esse rapaz, e outros ativistas que fizeram o mesmo posteriormente, não fossem aqueles com quem realizei a etnografia que liam, eles a comentavam, a compartilhavam e a usavam como baliza da minha integridade à medida de gostavam dela. Essa foi, portanto, uma audiência a posteriori – e inesperada – que se viu refletida nas páginas que escrevi sobre um contexto diferente. 69 estava me propondo a estudar. O problema de pesquisa que eu estava levando a campo, dito de modo genérico como a “saúde dos homens trans”, só se tornou um enquanto tal para os próprios sujeitos – e não apenas para mim – por causa da construção de um mundo social que não é composto apenas por eles, mas por um conjunto amplo de agentes, lugares, relações, instituições e ideias que não apenas circulam, mas que são produzidas. Minha atenção, portanto, deveria seguir para diferentes direções, de modo a compreender não apenas o objeto “em si” – se é que isso seja concebível em algum nível –, mas o seu contexto e as relações sociais que o tornam possível. Como percebera, o objeto eram as redes e seus nós. O contato face a face iniciou em novembro de 2016, quando passei dois dias em Fortaleza para acompanhar a assembleia de criação da Associação Transmasculina do Ceará (Atransce). Mas foi a partir de maio de 2017, com algumas idas e vindas, que totalizei, até junho de 2018, um ano de trabalho etnográfico continuado. A internet, quando estava em Natal, era um veículo que me aproximava dos interlocutores, acompanhando algumas de suas atividades e mantendo conversas regulares em bate-papo com ativistas e profissionais de saúde. Em maio de 2017, Kaio Lemos, o líder trans a que já aludi, hospedou-me em sua casa, localizada no bairro de Fátima. Posteriormente, passei a ficar em pousadas e, desde outubro de 2017, a morar sozinho num apartamento no Centro, próximo ao Hospital de Emergência Instituto Dr. José Frota. A “saúde” era a atmosfera do meu cotidiano ordinário, desde as saídas e voltas para casa por causa do hospital e de toda a sua dinâmica e pacientes, profissionais e comércio especializado de seu entorno, até as conversas mais banais de agentes do Estado, de homens trans e seus familiares, profissionais e estudantes de saúde com os quais interagia. Adoecimentos, administração de medicamentos, idas ao médico e acesso a serviços de saúde sempre eram tópicos de grande interesse. Não ao acaso, meu próprio objetivo me levava a ver tais discussões sob o prisma de como o cenário de intenso sofrimento social e conflitos desencadeados pela sexualidade e gênero que atravessava os interlocutores – sejam médicos, homens trans ou agentes estatais – os levava a viver, nem sempre com clareza, adoecimentos e processos de cura e medicalização que tinham esse recorte como propulsor principal. A essa altura eu já detinha circulação livre entre os ativistas da Atransce, acompanhando suas reuniões, atividades de conscientização pública, participação em eventos acadêmicos e de ativismo, protestos, bem como convivendo com eles no recém-aberto Abrigo Thadeu Nascimento, casa aberta por conta de dois rapazes que passaram a receber homens trans, e depois travestis, para morar de forma provisória. Eram pessoas que haviam sido expulsas de casa. A primeira vez que visitei Fortaleza no contexto da pesquisa foi para participar da assembleia de criação dessa Associação, tendo sido chamado a falar para os presentes sobre antropologia. Foi quando conheci pessoalmente o principal líder da cidade. Quando eu os visitei a segunda vez, poucos meses depois, 70 já se articulava a existência dessa casa, uma vez que começava a aumentar o número de homens trans que moravam de favor ou na rua. À distância, por outro lado, foi quando isso se efetivou, houve a mudança e a recepção de doação dos primeiros móveis que se uniram à mobília desses dois líderes ativistas. Quando voltei para morar em Fortaleza (outubro de 2017), passei a visitar diariamente o Abrigo, o qual se tornou o local central de articulação da Associação. Adotei o costume de ir ou depois do almoço, para evitar comer no lugar e assim esquivar que me oferecessem a escassa comida que tinham, ou de manhã no final de semana; a tarde e à noite eram momentos de maior movimentação na casa, já que os “abrigados”, que chegaram a totalizar 11 pessoas, voltavam dos cursos profissionalizantes fruto da articulação com escolas e setores de assistência social da cidade. Nas vezes que fui à casa durante a manhã e me estendia pelo dia inteiro, levava algum alimento para contribuir com o almoço e/ou também chegava a cozinhar, além de outros pedidos que atendi para organizar mantimentos e fazer seu inventário, redigir atas de reuniões, comunicar ativistas sobre atividades, etc. Mesmo que a inserção na Atransce e no Abrigo tenha se mostrado profícua e bem consolidada, era preciso, ficava cada vez mais claro, acompanhar essas pessoas noutros espaços como serviços de saúde, de direitos humanos e de políticas públicas diversas. Para além disso, eu necessitava observar etnograficamente agentes e instituições que compunham esse universo no qual estavam inseridos os homens trans, o que se deu de uma maneira que eu não previ. Durante as primeiras semanas na casa nova fui convidado pela médica que mencionei para fazer uma apresentação num evento, duas semanas depois, que organizaria sobre “saúde LGBT” voltado para alunos de cursos de saúde como medicina, fisioterapia, enfermagem, farmácia. O pedido era específico: ela precisaria que eu falasse sobre os estudos de gênero e sexualidade a partir da antropologia para explicar por que a noção de “ideologia de gênero” não existia como proposta por movimentos neoconservadores. Isso se dava, segundo me explicara, devido aos conflitos que vinham sendo gerados por sua abordagem médica sobre homossexuais, vida sexual feminina, aborto e transexuais no curso do atendimento no hospital público que trabalha. Discursos na região aumentavam sobre a tal ideologia, e se começava a organizar eventos na cidade para discutir seu perigo à família tradicional. Para atender o pedido da interlocutora preparei uma apresentação curta de dez minutos, e quando estava no local do evento fui apresentado a ativistas e a funcionários do Centro de Referência LGBT Janaína Dutra (CR), da Prefeitura Municipal de Fortaleza e de grupos de ativismo como o Grupo de Resistência Asa Branca (GRAB). Esse momento também se tornou decisivo para a pesquisa. Minha fala foi seguida de uma mesa redonda na qual discursaram os funcionários dos serviços públicos na cidade e ativistas. No final dessas apresentações, que ainda contaram com 71 falas de duas médicas sobre a melhor abordagem da sexualidade de pacientes no momento da anamnese, abordei os funcionários e ativistas para trocar contato e falar da pesquisa, mostrando minha intenção de querer conversar com eles posteriormente sobre suas atuações em políticas públicas. Eles já tinham me ouvido falar, e isso, acreditei naquele momento, fora uma boa entrada imprevista para propor uma interlocução. Dois dias depois desse evento, procurei o CR para ver a possibilidade de realizar uma observação participante no local. O coordenador do serviço, que eu havia conhecido, mostrou-se bem receptivo a minha proposta, mas estabeleceu alguns limites para minha inserção. Eu não poderia abordar inicialmente e por conta própria os usuários do serviço, sob a justificativa de que eles poderiam achar que a participação na minha pesquisa seria condição para concretizar o atendimento, o que julgara ser altamente prejudicial por causa do cenário de vulnerabilidade social que motivava a ida ao serviço. Ouvindo isso, redefini minha estratégia para me concentrar no trabalho dos profissionais, que já era o meu objetivo desde o início, e não insisti sobre abordar os usuários desde o início, tentando ganhar mais confiança para propor isso novamente no futuro. Paralelamente, ainda estava às voltas com autorizações para realizar parte da pesquisa em dois hospitais de Fortaleza: a Maternidade Escola Assis Chateaubriand (MEAC) e o Hospital de Saúde Mental Prof. Frota Pinto (HSM), o primeiro localizado no Porangabuçu e o outro em Messejana. Minha ideia era acompanhar atendimentos, principalmente interações entre pacientes e profissionais de saúde nos espaços de livre circulação como corredores, salas de espera, entradas, copa etc. Em nenhum momento propus acompanhar consultas ou analisar prontuários, temendo ainda mais as restrições e resistências que poderiam surgir. Logo de início, a MEAC não autorizaria a pesquisa se não fosse incluído um médico entre os autores do projeto, o que eu rejeitei, tentando argumentar que se tratava de uma pesquisa para tese de doutorado e de que os médicos seriam os próprios interlocutores. Minha alternativa, portanto, foi me voltar para o HSM, que primeiramente também objetivava incluir um profissional na equipe, mas voltaram atrás e me autorizaram pesquisar mediante a mudança do meu cronograma. Minha proposta era acompanhar o Ambulatório do Processo Transexualizador que estava em vias de ser instalado no hospital, mas como o serviço ainda não tinha sido autorizado pelo Governo do Estado do Ceará a iniciar as atividades para novos pacientes, eu poderia fazer a pesquisa se eu pudesse esperar essa abertura. Diante disso propus aos médicos do hospital que primeiramente eu realizaria entrevistas com eles, e apenas depois da abertura seriam acompanhados os atendimentos, ao que concordaram para me conceder a carta de anuência. Como eu detinha uma boa entrada com homens trans por meio da Atransce, não me pareceu um grande problema essa estratégia, uma vez que eu poderia acompanhá- los ao acessar serviços e cuidar da própria saúde de maneira mais capilarizada e caso a caso. 72 Contudo, após realizar entrevistas com todos os médicos, psicólogas e assistente social do ambulatório, o próprio médico-chefe me permitiu circular nas salas de espera e dependências do hospital, sem esperar aquela abertura “oficial” de antes. Diante dessas limitações com as quais eu tive que lidar junto aos serviços públicos de saúde e direitos humanos, adotei a técnica metodológica de “bola de neve” (Bott, 2001 [1957]) para poder entrevistar médicos e médicas e homens trans, já que minha interação diária com eles estaria reduzida nesses lugares. Esse método diz respeito a indicação para entrevistar um interlocutor a partir de um anterior que já tenha sido entrevistado ou abordado, usando-se da confiança entre eles para que o acesso seja possível e para que se parta de alguma dimensão ética para não gerar constrangimento na abordagem. A premissa dessa técnica preconiza que se cesse a “bola de neve” quando não houver nenhuma novidade nas falas dos novos entrevistados. Mas todas as entrevistas se deram em contexto etnográfico. A ideia que foi concretizada posteriormente foi a de ir ao encontro desses profissionais e de acompanhá-los, de segui-los, em seus eventos profissionais, em suas clínicas particulares, nos hospitais ou unidades de saúde nos quais atendiam, ou ainda em faculdades que porventura dessem aulas. Esses primeiros passos me deram a possibilidade de perceber que era preciso unir objetivamente o que parecia, a “olho nu”, caoticamente separado: homens trans, médicos, agentes estatais, instituições e serviços. Instando-me a realizar uma etnografia não do “grupo organizado de homens trans”, mas das relações construídas numa grande rede social complexa que materializa o objeto dessa tese. Assim, foi preciso que, como os interlocutores, eu também circulasse entre serviços e grupos organizados, ora acompanhando-os, ora sozinho, indo ao encontro desse ou daquele agente e instituição. Nesse contexto, um conjunto de grupos diferenciados ultrapassavam a si mesmos na constituição de um verdadeiro universo social que envolve o “cuidado em saúde trans”, aqui observado desde os homens trans como se fossem o centro numa rede. Contudo, a centralidade desse grupo de pessoas se refere mais a uma constituição dessa pesquisa e não corresponde exatamente à vida real dessas relações, mais afeitas a uma descentralização dos pontos entre os vínculos (Radcliffe-Brown, 2013 [1971]). Isso não impede que fluxos e movimentos sejam desencadeados entre certos agentes, de modo que são mais as ideias e as práticas relativas a temas que se centralizam. Para entender como homens trans constroem-se como sujeitos no curso do cuidado em saúde, e como problema social reconhecível, é imprescindível à etnografia e sua análise considerar tudo com o que entram em relação diariamente, desde documentos a pessoas reais, desde ideias e noções a produção de práticas e diferentes grupos imaginados, desde setores e funcionários estatais, profissionais de saúde, protocolos e políticas até o contexto social urbano e político-econômico 73 maior a que tudo isso está circunscrito. Assim, estudar isoladamente o ativismo de homens trans, procurando descrever como se organizam, que tipo de demandas articulam, que formas de política constroem; ou, ainda, como cuidam de si mesmos no âmbito da medicalização e da cura frente a adoecimentos diversos não faria nenhum sentido porque esses cenários não estão fechados a outras relações sociais para existirem. Não poderíamos, ainda, alcançar entender seus efeitos se os tratássemos tendo como único fim a si mesmos numa acepção ilhota. Não se trata de estabelecer o que é externo e o que é interno, o que tem mais e menos impacto na formação do problema da pesquisa, mas que estudar as experiências de homens trans e seus cuidados em saúde implica estudar também todos os elementos que as determinam ou com os quais são instadas a interagir. Não há nenhuma novidade quanto a esse tipo de questão. Desde o romantismo clássico da antropologia, que estudava exóticos de ilhas distantes, que se lida com uma série de variados agentes e grupos na constituição da cultura ou sociedade descrita; a diferença estava em apagar dos relatos etnográficos os funcionários coloniais, os mediadores indígenas, os traficantes, as línguas francas, os objetivos de financiamento da pesquisa (Sáez, 2013). Isso não quer dizer que um elemento de todo um cenário não possa ser separado para descrição e análise, mas que sua concepção não pode ser tomada nem assim produzida descontextualizada. A novidade muitas vezes, por outro lado, encontra-se em assumir um tipo de abordagem relacional que leve em conta o máximo possível de elementos (Bourdieu, 2003d; 2009). 1.3. Chegando em Fortaleza Na primeira visita a Fortaleza, fiquei hospedado por dois dias num hostel para acompanhar a criação da Atransce, evento54 que durou o domingo inteiro com leitura de regimento, criação de diretorias, palavras motivacionais sobre a importância social e política dos movimentos sociais, principalmente de homens trans. Eu aproveitei a localidade da igreja na qual ocorreu a reunião e me hospedei próximo ao Dragão do Mar – um centro cultural estadual –, de modo que andava pelas ruas da região com os interlocutores a pé. Essa oportunidade foi muito construtiva para a pesquisa, estabeleci contatos com outras pessoas e me fiz ser visto, não apenas no cerimonial mais oficioso da abertura da associação, mas também nas saídas à noite para conversar no centro cultural. Essa visita inicial me fez refletir sobre os tipos de alcances que eu gostaria que tomasse a análise e descrição desse trabalho. Assim, a etnografia que busquei construir foi alinhada à necessidade de dar conta de espaços/relações sociais/dinâmicas diferentes (e aparentemente separados) para entender um cenário que foi capaz de produzir – e de ser produzido – a figura dos homens trans como sujeitos de cuidado e de direito. 54 Detenho-me com mais detalhes sobre essa reunião no capítulo 5 ao descrever a mobilização social trans. 74 Um modo de pensamento relacional, segundo Bourdieu (2004), romperia com uma visão substancialista, levando a caracterizar todo elemento pelas relações que unem uns aos outros num sistema. Novidade do método estrutural, essa acepção é isolada pelo autor como parte perene do estruturalismo, em detrimento do restante da corrente teórica. A concepção insuperável seria essa que observa ser as relações a partir das quais se tira o sentido e a função de um elemento num todo social. O contrário disso corresponderia a uma forma “frazeriana”55 da etnografia, termo utilizado pelo autor para se referir a um trabalho que descontextualiza e compara elementos de sistemas diferentes. A despeito de toda a carga e consequências teóricas já muito criticadas do estruturalismo, parece oportuno extrair, como o faz Bourdieu, a noção de “relacional” para pensar teoricamente a problemática aqui estudada. Isso possibilitaria alcançar as relações tanto na forma de articular os interlocutores no campo, como para compreender e descrever sua vida social como posições, vínculos e relações sociais numa rede, e não como grupos que se chocam em atrito. É nesse sentido que não se adota o estudo da perspectiva isolada dos homens trans sobre esse contexto social, mas as diferentes visões segundo elas próprias, cada uma a sua maneira. Não apenas o caráter relacional me desafiou na construção deste trabalho, como o dinamismo do campo exigiu um esforço para pensar mudanças sociais no presente e suas ligações com as trajetórias de políticas, serviços e interlocutores num passado recente. Abriu-se, assim, às conformações dos processos sociais. Esse conceito indica uma perspectiva mais dinâmica da estrutura social durante muito tempo entendida como estática, partindo dos auspícios de Radcliffe- Brown. Se, como indicam os processualistas do círculo da Escola de Manchester com sua corrente funcional-estruturalista, a atualização da estrutura social por meio de uma fluidez e de um dinamismo se perfaz entre as ações de atores em interação e os contextos dos quais emergem, deteríamos um certo equilíbrio entre a oposição clássica indivíduo/sociedade. Contudo, talvez importe menos saber o que causa coesão e mudança para o equilíbrio da estrutura do que compreender como os agentes em relação criam o mundo no qual vivem e naturalizam. Os interlocutores, ao me narrarem eventos com menos de dez anos, trouxeram um entendimento diacrônico necessário de ser adicionado à pesquisa, ao mesmo tempo que explicam situações no tempo presente de modo sincrônico. A existência atual de políticas de governo voltadas à população LGBT, a constituição de um campo social de ativismo e de serviços em saúde específicos à transição de gênero e “sensíveis” às diferenças de gênero e sexualidade implicam e requisitam uma abertura histórica e contemporânea. Não de modo a procurar perceber como as relações mantém os grupos organicamente situados ou o contexto “em funcionamento”, mas para 55 Há de se recobrar, contudo, as continuidades que a antropologia moderna estabelece com o trabalho de Frazer. Para observar discussões sobre o valor das relações para objetivar o mundo social e a cultura ver Strathern (2014b). 75 desconstruir e construir o que perpassa e molda as relações entre as pessoas. Embora a cena de organização política homossexual cearense possa ser remontada há mais de trinta anos, quando da criação do, ainda em atividade, GRAB, a organização autônoma de homens trans não tem dez anos de atividade. O valor de perceber o cenário atual como fruto de um processo social tem seu peso quando imaginamos que o Ceará possui um dinamismo de movimentos sociais de diferentes grupos e demandas políticas. A etnografia percebida como método e como mote epistemológico central de nossa atividade científica é um passo inicial em direção à produção de dados mais aprofundados. Para Mariza Peirano (2014, p. 386), boas etnografias detêm três condições: “i) consideram a comunicação no contexto da situação (cf. Malinowski); ii) transformam, de maneira feliz, para a linguagem escrita o que foi vivo e intenso na pesquisa de campo, transformando experiência em texto; e iii) detectam a eficácia social das ações de forma analítica”. Assim, o desafio seria ultrapassar o senso comum e construir uma linguagem que captasse o que as palavras escritas e ditas não apenas dizem e descrevem56, mas criam um mundo de cujo campo a antropologia não deve se abster. Foi seguindo essa premissa que passei a morar em Fortaleza para buscar adentrar em dinâmicas locais que só o cotidiano poderia me trazer. A ideia de “campo”, por outro lado, como algo para onde vai o antropólogo para realizar a etnografia, precisa ser levada em consideração a fim de perceber os elementos que por vezes não trazemos à tona e as ficções que naturalizamos (Ferguson e Gupta, 1997). Embora a internet no contexto tanto de distância física de Fortaleza, como durante a estadia na cidade, tenha se mostrado ligada às interações face a face, e lócus de expressão de disputas, a moradia me trouxe outras dinâmicas para pensar as questões que propunha. E só foi por causa dessa moradia que foi possível perceber a internet não como um espaço do qual se analisaria conteúdos, mas como parte das interações que, como tal, não deixa de trazer diferentes questões devido ao seu caráter de espaço de experiências e como forma de mediação. Como se tem particularmente observado, a exploração de redes on-line não inclui necessariamente um deslocamento corporal tão rotineiro à antropologia. Para Christine Hine (2015), a internet envolve um “engajamento com a imaginação”. Assim, sendo parte da vida das pessoas que se convive na etnografia, o etnógrafo deve se envolver com ela já que é parte de suas atividades. Acompanho a autora ao observar que essa imersão tanto aconteceu como foi importante como estratégia de entrada no campo como uma rede social e como meio de interação. Isso significa uma integração com o âmbito digital do cotidiano e não sua separação. 56 Uma vez que, como demonstrou Clifford Geertz (1999; 2008 [1988]), o que o antropólogo faz é escrever. E, ao considerarmos isso, entram em jogo questões sobre políticas de representação (cf. Clifford e Marcus, 1986) que, contudo, não são um empecilho a atividade antropológica, mas uma importante dimensão ética que pode ser situada (Abu-Lughod, 1991). 76 Sem querer fantasiar um anthropological blues (Da Matta, 1978), eu sentia um certo incômodo pela mudança no meu próprio dia a dia a partir da viagem de maior duração em 2017. Naquele momento não mais ficaria hospedado nas casas de interlocutores, o que julgava de certo modo prejudicial devido à ausência de um espaço distante do que estava observando e participando. A casa na qual passei a morar fora cedida por um amigo do meu pai, localizada no pequeno Condomínio do Rio, de 40 apartamentos quarto-sala-banheiro, ocupado por trabalhadores e estudantes universitários. O lugar não tinha muito conforto. Era comum faltar água no condomínio, o que me levava a carregar água em baldes do andar de baixo até o meu apartamento para poder cozinhar, limpar a casa e tomar banho. A convivência com os vizinhos, as goteiras nos corredores e a indevida interrupção de energia elétrica eram contratempos regulares. Muitas vezes eu me delongava fora de casa junto com os interlocutores para passar menos tempo no apartamento. Contudo, essa moradia foi um dos meios pelos quais a pesquisa se concretizou, tanto por questões financeiras – já que eu não pagava o aluguel –, como por causa de sua posição geográfica na cidade. A casa ficava no Centro, a uma distância de poucos quarteirões, que eu percorria a pé, do CR e do Abrigo da Atransce (ver Figura 2). Inclusive, era comum após um dia inteiro no CR ou na Atransce seguir de um para o outro sem passar em casa. Cheguei a realizar mais de 12 horas por dia de “campo”, deixando para o final das noites a escrita do diário. Nem sempre conseguia descrever com afinco o dia que se passara, principalmente em dias nos quais findava extremamente cansado. Então, lançava tópicos de lembrete para detalhar no dia seguinte ao acordar mais cedo, antes de sair de novo. No início, eu costumava tomar pequenas notas no decorrer do dia enquanto estava interagindo com os colaboradores, mas percebi que nem sempre era possível sem perder alguma interação ou sem ter algum pequeno impacto negativo diante dos interlocutores, que poderiam imaginar que eu estava me distraindo com outros assuntos ou porque estaria registrando excessivamente cada detalhe. “Você se lembra de tudo que acontece?”, me perguntaram uma vez. Quando eu respondi que tentava me lembrar do máximo que podia, e não de tudo, recebi em seguida um “graças a Deus” de tranquilidade. O registro no curso da interação se mostrou inibidor, mesmo que todos soubessem para qual objetivo eu estava entre eles. Isso me fez abandonar a prática de tomar notas em ação, o que poderia me impedir de vivenciar experiências que surgissem principalmente no calor de momentos de tensão e conflito. Teria que confiar na memória, era minha preocupação. 77 Figura 2 – Mapa de parte dos percursos em campo Fonte: Criado a partir da Base Cartográfica de Fortaleza (UFC), 201057. Quando estava em casa à noite, escrevia no diário procurando manter um desencadeamento cronológico dos acontecimentos, interações, conversas e entrevistas formais. Nem sempre eu lembrava de tudo no momento da escrita inicial, o que me levava a voltar ao mesmo dia posteriormente. Procurei sanar as limitações de um diário feito no computador, que está afeito à facilidade da ferramenta “localizar” que dá ao etnógrafo a possibilidade de não reler tudo que escreveu. Como mostrou Oscar Sáez (2013), sem reler o diário na sua íntegra se perde a chance de atinar para questões não imaginadas ou esquecidas. Para evitar isso, além de imprimir todo o diário para leitura, procurei registrar quando inseria cada nova informação em texto já feito. Por exemplo, se chegasse a lembrar de detalhes de dias anteriores, ou até mesmo se rememorasse depois de páginas à frente alguma questão já pontuada, eu voltava e abria um balão inserindo novas 57 Mapa criado para esta tese por Cleyton Santos. Base cartográfica disponível em: . Acesso em: jan. 2020. 78 informações e detalhes. A ideia não era criar um registro etnográfico de alguma forma acabado, nem de recair no fetiche das marcas de um diário de papel, mas de marcar seus vestígios ao longo do processo de trabalho de campo de produção de dados. Inspirando-me na Lista Cronológica de Eventos do Kula observados por Malinowski (1978, p. 28), apresento na Tabela 1 a seguir uma ideia mais sucinta e direta do total do trabalho de campo realizado por meio de uma lista de atividades que conformaram minhas experiências etnográficas. Tabela 1 – Lista Genérica e Cronológica de Experiências Etnográficas Primeira parte, dezembro 2016. Assembleia de criação da Associação Transmasculina do Ceará na Igreja Cristã Contemporânea. Apresentação da pesquisa aos presentes e troca de contatos com homens trans e psicólogos. Segunda parte, maio 2017 – junho 2017. Início do acompanhamento diário de ativistas em suas atividades pessoais e de militância. Primeiros contatos presenciais regulares com médicos e ministração de oficinas a profissionais solicitadas pelos próprios. Observação participante da Audiência Pública “Transexualidade, pelo direito de existir” sobre a Abertura do Ambulatório do Processo Transexualizador em Fortaleza, organizado pela Defensoria Pública do Estado do Ceará. Primeiro contato com o Hospital de Saúde Mental Prof. Frota Pinto em Messejana; conversas sobre a pesquisa com o chefe do ATASH. Terceira parte, outubro 2017 – dezembro 2017. Observação participante no Abrigo Thadeu Nascimento, da Atransce. Acompanhamento de atividades de ativistas no curso da militância e da vida pessoal. Observação participante do Centro de Referência Janaína Dutra no âmbito dos profissionais, presente no cotidiano de reuniões, atendimentos e saídas para trabalho externo. Realização das primeiras entrevistas com homens trans. Acompanhamento de idas a serviços de saúde. Quarta parte, janeiro 2018 Observação participante de atividades de militância dos homens trans e LGBT. Observação do CRLGBT e suas atividades internas. Participação das atividades envolvendo a Semana da Visibilidade Trans, evento que mobilizou a comunidade, que entrou em conflito. Acompanhamento de idas a serviços de saúde. Quinta parte, fevereiro 2018 – março 2018. Continuação da observação do CRLGBT e suas atividades internas e externas. Participação em atividades envolvendo médicos, como congressos profissionais e palestras para discentes no âmbito da UFC. Acompanhamento de idas a serviços de saúde. Sexta parte, março 2018 – julho 2018. 79 Realização da maior parte das entrevistas com médicos, profissionais da Prefeitura de Fortaleza e de homens trans ativistas e não ativistas. Visitas contínuas ao Hospital de Saúde Mental Prof. Frota Pinto, observação das interações nas salas de espera e corredores do Ambulatório. Encontros com médicos em seus consultórios, ou nos hospitais que trabalham, ou nas faculdades que dão aula. Acompanhamento de idas a serviços de saúde, idas às farmácias. Visitas domiciliares às casas de homens trans em Fortaleza, Maracanaú e Caucaia. Pesquisa no Arquivo do Grupo de Resistência Asa Branca (GRAB), tomando notas de material jornalístico, informacional e político produzido por terceiros e pelo GRAB. Fonte: Autor. Tentei estabelecer períodos de concentração entre os diferentes grupos e serviços, quando me dei conta da dinamicidade relacional a que já aludi. Inicialmente me concentrei nas atividades do Abrigo Thadeu Nascimento e da Atransce. Isso não me impediu de comparecer a eventos e acompanhar atividades que se realizaram nesse mesmo período noutros grupos, como os médicos. Assim, da terceira até a sexta parte (cf. Tabela 1) me concentrei na observação do Centro de Referência, visitando o Abrigo com regularidade à noite e nos finais de semana, bem como seguindo os interlocutores médicos, pacientes e ativistas em eventos, serviços de saúde e outros setores estatais. A partir da sexta parte o foco recaiu com mais intensidade sobre os profissionais de saúde e nos serviços que trabalhavam e nos quais homens trans atenderam em busca de cuidado, observando os contatos entre esses sujeitos, isto é, procurei entender o contato e a dinâmica própria de cada campo de agentes. Esse período também contou com pesquisa no arquivo do Grupo de Resistência Asa Branca (GRAB) que possui material de registro histórico de suas atividades desde sua fundação, bem como do material histórico recém-organizado pelo CR. Atendi ainda a poucas reuniões e/ou eventos de outros grupos LGBT, como o Fórum LGBT Cearense e Associação de Travestis do Ceará (ATRAC). Assim, apesar de tentar definir períodos certos para cada um desses acessos, eles foram acontecendo à medida que completava outro e conforme os interlocutores se mostraram dispostos a dar entrevistas (sobre o que me deterei à frente), a me convidarem para atividades ou ao acaso de situações de destaque entre ativistas e médicos e usuários dos serviços que tentei aproveitar. Além disso, realizei pesquisa documental na Fundação Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro, e na Biblioteca da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo que contam com livros, teses e artigos de periódicos publicados por médicos sobre transexualismo ou disforia de gênero desde os anos 196058. Além disso, durante o estágio sanduíche na Escola de Antropologia da Universidade 58 Essa consulta foi realizada em dois momentos. O primeiro ocorreu de modo presencial e anterior a entrada em Fortaleza, quando de minha visita a essas cidades no início do curso do doutorado; e, o segundo se realizou durante e após o campo com a ajuda de amigos que digitalizaram parte do material e o enviaram para mim de forma eletrônica. Esses contatos trabalhavam ou estudavam na Fundação e na USP e foram um tipo de “interlocutores de arquivo”. 80 do Arizona realizei pesquisa de arquivo no seu sistema de biblioteca para acessar acervos gays, lésbicos e trans disponíveis de forma digital e impressa nos Estados Unidos. O Arquivo do jornal Gender Networker publicado nos anos 1980 desde o Canadá por ativistas transgêneros foi particularmente importante e ao qual me remeterei no Capítulo 2. 1.4. Acompanhando e entrevistando homens trans e outros sujeitos transmasculinos Foram realizadas, ao todo, 20 entrevistas com homens trans ativistas e pessoas que assim não se denominavam, mas que se incluem num espectro chamado de transmasculinidade. Enquanto categoria identitária e como cenário de experiências corporais, ambos os termos serão aludidos aos interlocutores trans com quem mantive maiores contatos. Fiz uso tanto da técnica de bola de neve, já aludida no começo do capítulo, como conheci outros no curso de atividades e da observação nos serviços de saúde. Cheguei, inclusive, a visitar as casas de alguns interlocutores, sendo convidado a comer junto com eles, seja almoço ou lanches da tarde; conheci familiares, como mães, esposas, irmãos e escutei suas histórias de parentesco. Quase sempre me sentia constrangido a não aceitar a oferta de comida, porque pensava que alguns deles não teriam tanto por que estavam inseridos em situações de pobreza, às vezes, extrema. Algumas vezes me oferecia para comprar alguma parte da refeição para sanar um pouco tanto minha consciência, como para não atrapalhar suas próprias estratégias alimentares limitadas. Isso não quer dizer que todos estivessem em situações do que chamam de vulnerabilidade social intensa na qual a fome pode estar à espreita. A maioria daqueles que estavam empregados trabalhavam ganhando um salário- mínimo ou menos no setor de serviços do comércio local, ou eram vendedores ambulantes e podem ser chamados de pobres ocupando estratos baixos de classe social – eles mesmos usavam o termo pobre. Além de terem sido feitas nas casas dos interlocutores, boa parte dessas entrevistas transcorreram em lugares públicos, como parques e no bosque da Universidade Estadual do Ceará, campus Fátima, próximo ao centro. Sem exceção, a situação econômica culminava em situações como fome, restrição do ir e vir pela cidade e, como confluência disso, a ausência de acesso a cuidado em saúde numa estrutura estatal. Uma consulta marcada há meses deixava de ser atendida porque nos dias próximos não se tinha ao menos o dinheiro para o transporte público coletivo. O contexto era de pobreza, levando-me a pensar que sua abertura a minha pesquisa em muito tinha a ver com a sua popularidade. Como os ricos se colocam diante da transição de gênero e do cuidado em geral? A pesquisa não logrou o contato etnográfico com nenhum sujeito que não fizesse parte de “classes populares”, não tendo nada a inferir sobre outro contexto que não esse. Nem todos os interlocutores que tinham alguma posição importante no campo me deram entrevistas. Um desses 81 rapazes, por exemplo, estava totalmente fora de minha abordagem devido a sua reiterada posição de não participar de nada que pudesse lhe associar a transexualidade de maneira pública. Por isso fui desencorajado por alguns interlocutores a chamá-lo para a pesquisa. Além disso, nem todos esses pacientes integrariam a mobilização política de modo articulado e regular. Dos 20 interlocutores homens trans entrevistados, oito tiveram algum tipo de experiência num serviço que prestou atendimento a pessoas trans, o ATASH, mas todos os outros tentaram entrar no serviço de alguma maneira. Enquanto construo a narrativa geral baseando-me em todas as entrevistas e observação no qual o serviço era manejado nas interações sociais, recorro apenas a algumas entrevistas e experiências de modo mais direto. O próprio engajamento político respondia a posição de classe social, uma vez que a ausência de recursos financeiros levava os interlocutores a recorrer a políticas e ações de governo com muito mais urgência. Isso trazia ao ativismo um elemento forte de salvação, da consciência política e da marginalização político-econômica que era abandonada após a entrada no movimento social e, às vezes, no funcionalismo público por indicação. As novas formas de vida coletiva trazidas pelo ativismo possibilitavam o aumento exponencial de redes de apoio e ajuda mútua, principalmente quando algum interlocutor fora expulso de casa. A narrativa dessa expulsão do âmbito da família funcionava muitas vezes como um elemento de um drama que contava a história de suas vidas e criava um grande apelo diante dos setores estatais. Essas redes alargadas passavam a compor redes de cuidado às quais recorrer mesmo mantendo vínculos com familiares, isto é, a expulsão não era um elemento definitivo, muito embora isso fosse trazido como circunstância biográfica de autenticidade de si (“sou tão verdadeiro que enfrentei essa grande dificuldade”). Essa tese, contudo, não se debruça sobre parentesco, uma vez que os interlocutores estavam muito mais preocupados em conseguir aquilo que concretizasse uma transição de gênero segura mediada pelo Estado. Isso não significa dizer que a família não seja importante em suas vidas, mas que a atividade de mobilização tinha um objetivo específico e que conformava o objeto do campo social da saúde trans de modo mais visceral. Na Tabela 2, a seguir, relaciono os homens trans entrevistados, buscando demonstrar a cobertura sociológica inicial. As entrevistas também possibilitaram exceder a observação participante, coletando histórias de adoecimentos e itinerários terapêuticos, isto é, o registro de casos clínicos a partir de sua inserção na biografia na forma de memória59. Todas as categorias 59 O que estou a fazer remete mais ao que Michael Pollak (1992) chamou de “fatos de memória”, isto é, expressões que remetem a percepções da realidade e não exatamente a acontecimentos ou fatos históricos, nem a uma “factualidade positivista”. Isso não significa fuga do real, ou “mentira”, fabulação, artifícios. Significa como as pessoas viveram os eventos, o cotidiano, ao qual se remete. A reconstrução do passado a partir da memória, da forma como os agentes relembram e constroem suas lembranças se dá também em meio a conflitos entre grupos que constituem o mesmo contexto (Pollak, 1989). Sobre esse trabalho memorial há grande investimento acadêmico, principalmente em torno do estudo de história oral ou relato oral, para a qual a historicização é realizada através de histórias de vida e não dependente somente de fontes escritas (Debert, 1986; Pollak, 1992). Embora os temas 82 usadas como descritores da tabela são provenientes de sua relevância etnográfica e da narrativa pessoal. Esses são dados condensados e que no decorrer da tese serão acompanhados de outros para situar sociologicamente cada um. Tabela 2 – Relação de homens trans/transmasculinos entrevistados ORIENTAÇÃO ATUAÇÃO NO NOME IDADE RELIGIÃO COR ESCOLARIDADE SEXUAL ATIVISMO Roberto 18 Nenhuma Parda “Indefinida” Técnico Atransce Jurandir 19 Nenhuma Branca Bissexual E.M.60 Atransce incompleto Aristides 19 Nenhuma Negra Pansexual E.M. incompleto Atransce Rivelino 20 Nenhuma Preta Pessoas E.M. completo Atransce Luís 20 Católico Branca Heterossexual E.M. completo Nenhuma Paulo 21 Ateu Etnia Pansexual E.M. completo Atransce Indígena Januário 23 Católica Branca Heterossexual Graduado Atransce Reginaldo 24 Católica e Branca Heterossexual Graduado Nenhuma Umbanda Rosimário 24 Espírita Parda Bissexual E.M. completo Atransce Wilton 24 Espírita Parda Heterossexual Graduado Atransce Nelson 24 Umbanda e Preta Heterossexual E.M. completo Nenhuma Espiritismo Gabriel 25 Wicca Parda Heterossexual EJA61 completo Nenhuma Salazar 26 Nenhuma Parda Pansexual E.M. completo Nenhuma Paulo 27 Nenhuma Branca Heterossexual E.M. completo Atransce Silas 28 Católico Parda Heterossexual E.M. completo Nenhuma Magno 28 Cristão Parda Heterossexual E.M. completo Atransce Daniel 36 Católico Branca Heterossexual E.M. completo Nenhuma Zagreu 37 Ateu Branca Bissexual Graduado Atransce Kaio 38 Nenhuma Branca Heterossexual Graduado Atransce Sílvio 54 Candomblé Negra Heterossexual Graduado Nenhuma Fonte: Autor. variem desde de uma história das camadas populares (Cavignac, 2006), a memória tem sido acionada geralmente no contexto da velhice, seja para narrar o envelhecimento ou a juventude de outrora (Bosi, 1994; Beauvoir, 1990; Elias, 2001b), seja para descrever um contexto de eventos dramáticos e de experiências adjacentes em torno de adoecimentos, preconceitos e mobilização política, como é o caso das pesquisas em torno da sexualidade e da epidemia do HIV/Aids décadas depois (cf. Valle e Simões, 2015), ou ainda na reconstrução histórica de populações indígenas (Valle, 2003), entre outros. Por ser o trabalho de memorialização uma questão marginal ao problema da tese, procurarei, na verdade, reunir as recorrências entre as entrevistas para, ao mesmo tempo que apresentasse as experiências individuais gerasse um quadro coletivo no qual se construiu essa narrativa historicizada e entender os seus usos no presente, o que me parece ainda em estado embrionário, devendo, portanto, a pesquisas futuras a tarefa de delinear suas permanências. 60 Ensino Médio corresponde às séries do 1º. a 3º. ano e encerra o ciclo escolar básico. 61 Educação de Jovens e Adultos (EJA) é uma modalidade de ensino público brasileiro voltado para pessoas a partir de 15 anos de idade que não concluíram o ensino na idade escolar. 83 1.5. A etnografia de/entre setores estatais Esta tese lidou o tempo todo com partes do Estado brasileiro em diferentes formatos de serviços de assistência ou de organização burocrática. Não apenas li e consultei documentos de governo, mas também observei o trabalho nas repartições e o acesso de interlocutores às suas dinâmicas. Concentrei-me basicamente nas formas que a governança local se constituía desde a Prefeitura de Fortaleza e do Governo do Estado do Ceará. Primordialmente, meu interesse esteve localizado nas ações e estruturas voltadas de alguma forma para a diversidade sexual e de gênero, isto é, minha atenção se voltara para determinadas instituições públicas devido à grande centralidade atrativa e animadora das chamadas “políticas públicas LGBT” para a mobilização social trans. Assim, procurei estabelecer uma observação cotidiana dos primeiros “aparelhos” – como chamavam – da região nesse sentido. Após ter conhecido a iniciativa do Centro de Referência LGBT Janaína Dutra62 (CR), e da Coordenadoria da Diversidade Sexual, a qual está ligada à Prefeitura, pude realizar uma observação diária de seus atendimentos e dinâmicas internas. Isso se demonstrou importante porque o CR é um grande ponto de irradiação política e se tornou um lugar de atendimento à saúde mental de muitos homens trans através do serviço de psicologia que oferecia. Ligados à Secretaria Municipal dos Direitos Humanos e Desenvolvimento Social, esses setores constituíam oficialmente uma política de governo que tinha como foco sujeitos não- heterossexuais. No último trimestre de 2017, minha rotina era acordar às 6 horas da manhã para me encaminhar para o CR que fica localizado à rua Pedro, número 1, no centro de Fortaleza. Lá eu passava todo o período de expediente, das 8 horas da manhã às 17 horas da tarde. O prédio que abriga o serviço aglutina outros setores da área de cidadania da Prefeitura de Fortaleza, dando à convivência entre os setores dinamismos sobre ocupação de salas, recepção de usuários e comportamento dos funcionários. A sala na qual funciona o CR era um vão dividido por paredes removíveis. Na recepção pequena havia um birô, prateleiras com fichários na parede à esquerda com material informativo sobre “políticas LGBT”, prevenção a Infecções Sexualmente Transmissíveis, um pote de camisinhas e lubrificantes. Três cadeiras à frente da mesa da secretária acompanhavam um bebedouro próximo à porta e davam à recepção um aperto considerável. Outra porta de frente dava acesso a um vão maior no qual trabalhavam os demais técnicos: psicóloga, 62 Regido pela Lei Complementar n. 0133 de 28 de dezembro de 2012, o CR foi pensado como um “serviço de direitos humanos”. Segundo um dos funcionários, a lei foi aprovada no último mandato de Luizianne Lins (PT), gestão na qual havia sido criado como política de Estado. Com a mudança da gestão a partir de 2013, se tornou necessário garantir a continuidade da existência do serviço, muito embora a lei não tenha previsto fundo financeiro próprio. Em seu artigo 2ª, a Lei municipal instituía que o CR deveria “prestar serviço de proteção e defesa da população de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais (LGBT), em situação de violência e/ou violação, omissão de direitos motivados pela questão da orientação sexual e/ou identidade de gênero na cidade de Fortaleza”. A estrutura do serviço é fruto de um “orçamento participativo LGBT” realizado pela Prefeitura e tem sua origem na política federal Brasil Sem Homofobia através de editais para serviços de proteção contra a violência homofóbica. 84 advogado, assistente social, educadoras sociais e o coordenador. Noutro vão paralelo à recepção, mas com entrada interna ao vão anterior, ficava o arquivo dos prontuários e material informacional; e uma estante à esquerda da entrada criava uma pequena copa com utensílios de cozinha e lanches. O espaço total era muito pequeno, e as salas nas quais se realizavam os atendimentos aos usuários eram “emprestadas” no mesmo prédio porque “pertenciam” a outros setores. Depois de alguns meses, por aptidão de negociação política de uma das funcionárias do setor, essas salas passaram a pertencer ao CR para atendimento privativo. No cotidiano do serviço foi possível observar a atuação profissional dos técnicos no curso do atendimento aos usuários, percebendo a forma como geriam as histórias e davam resolução e encaminhamento aos casos. Meu limite de acesso estava posto pelos funcionários, e eu não procurei ultrapassá-lo, de modo que eu não poderia acessar prontuários diretamente e sozinho nem acompanhar consultas particulares dos “atendidos” com os técnicos especialistas. Quando um atendido era recebido a primeira vez, o assistente social “abria” um prontuário e preenchia a primeira parte que competia a identificação básica (nome, sexo, idade, orientação sexual, identidade de gênero, renda) e as demandas que teria escutado a partir de uma investigação que vai empreender ao fazer perguntas. Assim, o CR intentava se inserir na rede de assistência social e de saúde pública da região muito embora não fosse esse tipo de serviço. Como colocavam, eram uma porta de entrada, um apoio para aqueles que não sabiam navegá-la. O dia a dia no Centro me fascinava grandemente porque me possibilitava tanto acompanhar profissionais trabalhando como pessoas à procura de algum tipo de cuidado ou proteção contra a violência. Meu envolvimento se tornou tamanho que em grande parte do campo eu entendia que iria realizar um grande estudo de caso sobre o serviço. Cheguei a realizar entrevistas de longa duração com todos os funcionários, além de vários ativistas gays e lésbicas que circulam na cidade. Mas percebi que não poderia ficar cerrado às suas paredes. Era necessário acompanhar interlocutores homens trans em outros serviços porque o lugar não era o único procurado por essas pessoas e nem oferecia totalmente os atendimentos que elas necessitavam. Constantemente, homens trans davam com a porta na cara em postos de saúde diversos da região. O encaminhamento feito pela psicóloga para serviços de saúde nem sempre detinha de força suficiente capaz de amenizar a peregrinação a que eram submetidos os usuários na busca pelo que chamavam de serviços e profissionais sensíveis, aqueles que fossem capazes de lhes atender sem ofensas, com reconhecimento de identidade e particularidades clínicas para o devido cuidado de prevenção à saúde. Ao procurar entender e seguir essa peregrinação, eram criados verdadeiros itinerários sem os quais não se conseguia a marcação de consultas nas unidades básicas do SUS. Entretanto, apesar da grande quantidade de dados empíricos que puderam ser construídos a partir 85 da observação do cotidiano do Centro de Referência, eu acabara por perceber que a pesquisa não era sobre o serviço. Ele era apenas um dentre vários setores estatais procurados e nos quais era possível que pessoas trans emergissem como sujeitos objetos de governo, tenha isso ou não consequências políticas e sociológicas previstas. Nesse sentido, me deparei com a dificuldade não apenas de seguir esses sujeitos segundo as intempéries das ofertas dos serviços, mas também quanto a compreensão de um campo em saúde especializado de alguma forma à transexualidade. Assim, o CR passou a ocupar mais um pano de fundo do cenário de descrição do que um objeto em si de análise: hospitais, postos de saúde, unidades de pronto atendimento, cartórios, secretarias da Prefeitura, praças, eventos políticos de ativismo, bares, igrejas, casas, escolas e universidades, consultórios particulares, entre outros espaços, mostravam a continuidade de lugares de técnicas de governo e aqueles tidos como públicos e privados. Todos entravam e transbordavam, assim, à conformação de processos de constituição do Estado. 1.6. Seguindo médicos, cientistas e práticas científicas Abordar, acompanhar e entrevistar médicos e médicas foi, talvez, a etapa mais difícil da etnografia. Mesmo que eu tenha tido o contato inicial com uma dessas profissionais logo no começo da estada em Fortaleza, todos os outros precisaram ser igualmente convencidos das minhas intenções e se fazer interessados por minhas problemáticas. A técnica de bola de neve por si só não foi suficiente. Como já mencionei, alguns gestores de hospitais da cidade se mostraram reticentes com minha pesquisa e um, inclusive, não emitiu a respectiva anuência. Então, era urgente pensar novas estratégias que não aquelas de estar presente todos os dias num dado ambiente fechado como salas de consulta, laboratórios, corredores dos hospitais, salas de cirurgia, entre outros, que me haviam sido negados. Para superar essa dificuldade me cabia, então, seguir esses interlocutores. Como propôs Bruno Latour (2000 [1998]) sobre o estudo de engenheiros e cientistas, me restava seguir médicos sociedade afora para poder compreendê-los. Mas o que parecia uma alternativa emergencial se demonstrou muito proveitosa. Essa expressão não tem um sentido necessariamente literal, como se estivéssemos sempre à rua seguindo pessoas aonde elas vão literalmente. Embora isso aconteça em alguma medida, a ideia aqui é de observar práticas que criam os objetos e os fatos científicos quando eles acontecem e não o “produto” que foi o resultado. Isso é particularmente relevante porque, como têm apontado os estudos de ciência e tecnologia (Pickering, 1992), essa produção é comumente apagada na exposição científica. Como aponta Latour, seria preciso observar a “caixa- preta” aberta, e não procurar suas “influências e vieses sociais”. Era necessário que o etnógrafo estivesse “ali antes que a caixa se fechasse”. Essa técnica implica conseguir seguir os passos de 86 cientistas conforme eles atuam no seu dia a dia profissional, como no exemplo do autor: “nos momentos e nos lugares nos quais planejam uma usina nuclear, desfazem uma teoria cosmológica, modificam a estrutura de um hormônio para a contracepção ou desagregam os números usados num novo modelo econômico” (Latour, 2000, p. 39). Assim, o antropólogo parte, junto com os interlocutores, do objeto à produção. Diante dessa perspectiva metodológica percebi que precisava tomar esses interlocutores como cientistas ainda que nem sempre estivessem envolvidos com pesquisa de laboratório. Mesmo numa área bioquímica como a medicina contemporânea, o conhecimento científico está para além da manipulação de material biológico humano ou não- humano. Como percebera durante o campo, os discursos sobre os saberes e sobre as formas de abordar pacientes trans e de manejar a transição de gênero e suas implicações para a saúde – seja para negá-la ou afirmá-la – estavam contidos em formas científicas e eram assegurados também nesses termos. Então, o que fazem os médicos? E mais importante: o que faziam aqueles e aquelas com quem eu tentava interagir? Elas e eles clinicavam e cirurgiavam, lecionavam e pesquisavam. A primeira entrada que consegui estabelecer foi no plano pedagógico daqueles profissionais que também lecionavam – diferentes formas e não apenas aulas convencionais. Assisti a palestras, acompanhei fóruns de discussão, mesas redondas e congressos geralmente oferecidos aos alunos de saúde da região. Com isso, passei a segui-los nas dinâmicas da comunidade médica de cunho mais técnico, aqueles eventos de mercado e de divulgação de pesquisas e não apenas de clínica, isto é, estive junto com eles em eventos variados além de em reuniões e demais atividades universitárias. No âmbito das interações médico-paciente, eu me concentrava nos corredores e nos saguões dos hospitais e clínicas, nos quais eu podia transitar para visitar algum médico ou receber notícias de algum paciente que havia se submetido a procedimentos de transição. Então, eu me fazia presente inclusive nas calçadas dos serviços de saúde e nas praças em frente aos hospitais e clínicas. Circular nesses espaços e ser visto por médicos que não haviam ainda me dado tanta abertura facilitou a nossa comunicação e permitiu o desenvolvimento de alguma confiança. Não consegui, contudo, a aceitação de todos aqueles que abordei ou que me foram indicados por seus pares. Mas cheguei a entrevistar ao todo 17 médicos e médicas embora tenha convivido com muitos outros que não consegui entrevistar ou que rejeitaram o contato (ver Tabela 3). 87 Tabela 3 – Relação de médicas e médicos entrevistados NOME IDADE RELIGIÃO COR ORIENTAÇÃO ESPECIALIDADE ATUAÇÃO POLÍTICA SEXUAL MÉDICA Genivaldo 29 Nenhuma Branca Homossexual Psiquiatria Nenhuma Geraldo 31 Nenhuma Branca Homossexual Psiquiatria Nenhuma Clara 32 Espiritismo Branca Heterossexual MFC63 Feminismo Gérson Psiquiatria Antipsiquiatria 35 Nenhuma Branca Homossexual MFC Direitos Humanos Emanuel 35 Catolicismo Branca Heterossexual Endocrinologia Nenhuma Carmela 37 Catolicismo Negra Heterossexual Ginecologia Direitos Humanos Fátima 38 Nenhuma Branca Bissexual MFC Feminismo Geraldina 38 Catolicismo Branca Heterossexual Ginecologia Feminismo Clóvis 39 Catolicismo Branca Heterossexual Cirurgia Plástica Nenhuma Cassandra 39 Catolicismo Branca Heterossexual Mastologia Feminismo Graça 40 Catolicismo Branca Heterossexual Ginecologia Nenhuma Marlene 40 Catolicismo Branca Heterossexual Endocrinologia Nenhuma Aparecida 41 Nenhuma Parda Heterossexual Psiquiatria Nenhuma Marinalva 51 Catolicismo Branca Heterossexual Endocrinologia Nenhuma Celeste 54 Nenhuma Branca Heterossexual Psiquiatria Feminismo Ginecologia Álvaro 56 Catolicismo Parda Heterossexual Endocrinologia Nenhuma Eliza 67 Espiritismo Negra Heterossexual Ginecologia Direitos Humanos Fonte: Autor. 63 Medicina de Família e Comunidade (MFC). 88 Assim, o ser visto para ser lembrado foi uma das condições para conseguir realizar, por fim, as entrevistas que auxiliaram a observação. Esses meus trajetos me fizeram perceber que a clínica era formada de modo continuado na comunidade de profissionais e não apenas entre as quatro paredes dos consultórios. E pude explorar as diferenciações locais sobre clínica e pesquisa como fontes legítimas de conhecimentos. Isso é fundamental para esta pesquisa porque, como venho apontando nessa tese, os médicos e a medicina, apesar de serem muito mencionados, são os menos compreendidos quando se fala em transexualidade. Não se tem procurado entender suas práticas e suas interpretações em si mesmas, mas apenas o contato que tem com elas os sujeitos atendidos. Mesmo que haja estudos importantes sobre a literatura produzida no contexto do norte global sobre a mudança de sexo e todos os saberes adjacentes a sua emergência, isso não é suficiente nem é antropologicamente relevante – sozinho – para compreender contextos específicos de atividade médica. É por ter sido movido por essa inquietude e curiosidade que procurei observar esses interlocutores nos termos científicos que se arvoram para ter as respostas locais diante da transexualidade ou da transição de gênero como objeto médico. 1.7. Reflexividade, ética antropológica e o Comitê de Ética da UFRN64 1.7.1. A vida cotidiana da pesquisa Como eu desejava realizar entrevistas com médicos, e de observar sua prática profissional a aprovação da pesquisa pelo Comitê de Ética era uma questão fundamental, pois nenhum deles me concederia entrevista nem os serviços aceitariam minha presença. A vida social ativa da ética, como mostrou Patrice Schuch (2013, p. 32), fez todo o sentido conforme eu percorria o campo antes de ter certeza sobre iniciar a etnografia. Esse “mundo social da ética” faz que essa categoria transforme e movimente as pessoas, de modo a incutir as concepções científicas daqueles que detêm a regulamentação e autorização de pesquisadores. Uma das primeiras perguntas que me faziam em campo, ou que eu adiantei antes de qualquer tópico, era se a pesquisa já havia sido aprovada. Isso particularizou a abordagem de várias maneiras, embora eu tenha procurado não engessar as interações com o anúncio dessa burocracia. Mas, de todo modo, fazer o projeto ser aprovado no Comitê de Ética tanto atrasou o início como implicou uma rotina de andar com papeis para assinatura antes que a entrevista pudesse ser feita. Isso foi um dos fatores que me fizeram optar por entrevistar qualquer pessoa apenas no final da etnografia. 64 Essa pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética da UFRN através de registro na Plataforma Brasil, e seguindo as regulamentações da Resolução n. 510 de 7 de abril de 2016 do Conselho Nacional de Saúde. Identificação CAAE: 80926117.0.0000.5537, Parecer de Aprovação n. 2.445.814. 89 Conforme eu preenchia vários documentos exigidos para apreciação do projeto na instância responsável da UFRN e os recebia de volta para correção devido aos menores detalhes possíveis, como a falta de um carimbo ou o arquivo eletrônico não estar nos formatos .PDF e .DOC. Ficava claro que eu necessitava aprender a percorrer esse Comitê que pode ser visto como funcionando nos termos de setor estatal. As pesquisas antropológicas sobre o Estado-nação e suas estruturas têm demonstrado que o uso efetivo de uma certa ação governamental ou de um serviço depende muito do grau de aptidão do usuário de aprender a percorrer os caminhos, aprender as regras, a insistir para ser atendido. E foi isso que aconteceu. Enquanto eu não aprendi o que era demandado do serviço, nem sempre claramente, obtive várias rejeições até mesmo para que o início da análise pudesse acontecer – sempre de ordem burocrática. O único problema de ordem ética fora identificado no Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), no qual eu havia informado que o consentimento se daria paulatinamente durante o desenrolar do campo. Isso não foi aceito pelo parecerista técnico, que me pediu para detalhar como eu iria explicar os objetivos da pesquisa e como obteria todo o consentimento de uma vez por todas. Mas como eu poderia prever o que iria acontecer? Afinal de contas, eu estava lidando com gente, e não com uma cultura de micro- organismos numa placa de Petri num laboratório. Mas eu deveria informar previamente os riscos e formas de minimizá-los mesmo depois de apontar no projeto que esses riscos seriam mínimos e que os próprios interlocutores regulariam minha presença em suas vidas. Isso não implicava que eu não tivesse pensado sobre quais as melhores formas de abordagem e questões envolvidas com, principalmente, entrevistar pessoas em situação de sofrimento – inclusive, lembrando do Código de Ética da Associação Brasileira de Antropologia65 como um norte de atuação profissional. Além do que já mencionei sobre as tentativas de certos gestores de incluírem funcionários como coautores do meu projeto de pesquisa, um outro profissional de outro hospital teve uma abordagem mais colaborativa e de aceitação após conversarmos sobre isso. Nos falamos tanto por telefone como pessoalmente. Eu cheguei a lhe explicar que seria inviável para mim inserir um médico na equipe porque ele faria parte dos interlocutores e porque essa se tratava de uma pesquisa que culminaria na minha tese de doutorado. Cheguei ainda a dizer-lhe que nada nos impediria de parcerias futuras em pesquisas colaborativas interdisciplinares, ao que tinha interesse. Ele me respondera na ocasião que a equipe do hospital apenas havia pensado numa forma de eu ser assistido, supervisionado, para me ajudar. Não tive certeza se iria conseguir realmente a anuência, mas alguns dias depois recebi a notícia que a direção havia aprovado a pesquisa no HSM, conforme condições que já explicitei sobre não abordar inicialmente os pacientes. 65 Disponível em: . Acesso em jul. 2020. 90 Assim, antes de cada entrevista eu explicava seus objetivos e apresentava o TCLE, pedindo para que fosse assinado e rubricado em todas as páginas. Era uma atividade cansativa e aumentava o período da conversa. Outro serviço da cidade, o Centro de Referência, também fez parte desse processo de emissão de uma carta de anuência, mas sem maiores complicações. Tudo isso me demonstrava que o trâmite burocrático da anuência não substituía a reiterada anuência que antropólogos sempre estiveram familiarizados no cotidiano do trabalho de campo, e ao qual eu também estive submetido a partir do controle da minha circulação, do que eu poderia chegar a saber e sobre o que eu poderia perguntar. A antropologia brasileira vem desde muito tempo se debruçado sobre questões éticas de sua prática profissional regulada por setores estatais (cf. Duarte e Sarti, 2013). Tem sido apontado como esse conjunto padronizado de procedimentos impõe a regulamentação oficial dos agentes que gerem os Comitês de Ética que não costumam contar com antropólogos como membros avaliadores. Isso perde de vista a diversidade da prática antropológica e procura tornar todas as ciências sob as regras e as tradições das ciências da vida e da saúde. Não como se tivéssemos outra ética, própria, transcendental, mas porque produzimos outro tipo de ciência, na qual se busca um equilíbrio entre distanciamento e proximidade na construção do conhecimento. É evidente que o trabalho do antropólogo não deve ser desregulado, mas que o conjunto de procedimentos e o próprio caráter do que objetiva saber a disciplina escapa dos moldes de Termos de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) e das formulações de outras áreas do conhecimento. Claudia Fonseca (2010) argumentou que não seria possível prever tudo que aconteceria em campo junto aos interlocutores dado que a antropologia busca entender o “implícito”, o “não dito”. Nem o antropólogo nem o colaborador conseguem antever perguntas, situações e interações em geral. O consentimento ou a proibição da pesquisa pelas próprias pessoas se faz sentir em campo, uma vez que portas se abrem ou se fecham. Além disso, a questão do anonimato dos entrevistados e demais citados na pesquisa traz um problema a ser pensado tanto pelo antropólogo como pelos interlocutores. Claudia Fonseca (2010), por exemplo, apontou que isso é algo sério que deve ser encarado com as possíveis implicações políticas e sociais para a vida de todos os envolvidos. O argumento da autora transcorre para a indicação de que é sempre preferível usar nomes fictícios para proteger a integridade. Nesse sentido, os nomes das pessoas aqui citados são fictícios na sua maioria. Uma parte desses sujeitos rejeitou qualquer posição de anônimo. Como ativista político, a marcação de sua identidade de forma pública realiza um registro histórico que considera importantíssimo para sua vida e para a mobilização social em prol de direitos em saúde trans. Ao considerar isso, passo a usar seus nomes originais. A nomeação é um elemento de tensão social também de outro modo. O emprego do 91 TCLE exige o emprego do nome completo e a assinatura – ou uso da digital para analfabetos – do entrevistado. Contudo isso esbarrou num problema no campo, já que nem todos os homens trans haviam realizado a retificação civil. Não querendo reproduzir as abordagens vexatórias que significam o uso do nome de batismo que não corresponde a identificação de alguém deixei que as pessoas trans ficassem livres para escolher se assinariam com o nome masculino ou com o feminino. Todos assinaram com o masculino. Há outra dimensão da ética que quero me ater. Como agir diante de cenários de intenso sofrimento, inclusive psíquico? O que a violência percebida em campo enquanto sofrida pelos interlocutores quer implicar à ética antropológica? David Valentine (2003) se perguntara a respeito ao se deparar com um conjunto de práticas violentas contra pessoas trans. Ele argumenta que a percepção da ética se complica quando se procura perceber como os interlocutores veem a violência. Nesse sentido, fica ainda mais forte a acepção de levar a sério o que as pessoas nos dizem, sem intenção de “ensiná-las” a agir. Isso nos mostra, ainda, como a ética precisa ser percebida de modo etnográfico. O perigo de cair num relativismo raso aqui é real, mas deve ser sanado com a reflexão e discussão que acontece na disciplina sobre os limites de nossa atuação. Nesse sentido, não abordei ninguém sob intenso sofrimento quando procuravam cuidado no Centro de Referência ou nos serviços de saúde. Por exemplo, quando um interlocutor que eu não consegui entrevistar, havia marcado comigo para acompanhá-lo na ida à marcação de consulta num Centro de Atenção Psicossocial (CAPS), não tentei insistir numa maior aproximação quando ele me falara que estava sentindo-se numa crise de ansiedade, o que lhe impedia de comparecer ao médico. Outro rapaz que seria um colaborador em potencial, por sua vez, não foi sequer abordado inicialmente. Este procurava o Centro de Referência para uma Profilaxia Pós-Exposição (PEP). Esses e outros casos se multiplicaram em campo, fazendo-me observar mais a atuação dos profissionais do que abordar usuários em sofrimento66. O fazer etnográfico, dessa maneira, urge cada vez mais por discussões e debates que questionem não apenas as regulamentações dos Comitê de Ética, mas que continue a revisar os parâmetros da própria disciplina. Se, ao me relacionar com um grupo de interlocutores, começo a pensar se seria ético aceitar um convite para ida ao bar, se eu estarei ali também observando, é preciso tencionar a questão, pois nem sempre os colaboradores acham que estão sendo “observados”. Convites para uma festa de aniversário, para beber no bar, para comer na esquina durante o almoço são momentos tidos por nós como informais para compor a etnografia, e é algo que precisa ser elaborado de maneira reflexiva. Sem encerrar uma resposta, não é de se admirar se 66 Rozeli Porto (2020) mostrou, ao estudar mulheres com filhos com microcefalia, que interlocutores em sofrimento nos colocam questões específicas para lidarmos no trabalho de campo. É preciso ter clareza da abordagem e, de acordo com o caso, observar possibilidades ou não de entrada e continuidade de entrevistas, sempre considerando o que o ponto de vista das pessoas nos indica. 92 considerarmos que esse tipo de problema tem muito a ver com os parâmetros de ciência, de objetividade neutra que recorta as ciências “duras”? 1.7.2. O antropólogo sob o teste do desejo e da subjetividade Desde o início das minhas interações com grupos de ativismo trans, gay ou lésbico em Fortaleza fui questionado sobre minha identidade sexual. Isso não era exatamente uma novidade para mim porque havia acontecido também durante a pesquisa para a dissertação de mestrado. Mas agora essa questão se dava de maneiras amplificadas e modificadas. Como fiz referência na introdução, sempre houve algum tipo de tensão envolvendo a “sexualidade do antropólogo” tanto quanto a teorização na disciplina – o como abordar certos temas, que categorias relativizar ou que identidades essencializar – como na dinâmica cotidiana do trabalho de campo67. Não cheguei a ter relações afetivo-sexuais com nenhum interlocutor, uma vez que considerei isso prejudicial para a pesquisa, mas isso não significa dizer que eu não tenha me situado nos lugares que me colocavam. A proximidade comunitária antevista na minha sexualidade me colocava questões como o compartilhamento da minha história pessoal: que eu também narrasse minha própria trajetória sobre o armário, histórias com namorados, a possibilidade do desejo por qualquer pessoa que seja trans ou não – cuja moral me classificava como uma boa pessoa –, experiências íntimas, e que falasse sobre meu corpo e suas partes específicas, entre outros. Assim, no meu caso, responder de volta – não necessariamente em palavras verbalizadas – que eu compartilhava de uma certa experiência percebida localmente como comum entre nós me possibilitou uma entrada significativa entre esses colaboradores. Ocorria, ainda, alguma confusão pela minha convivência contínua com homens trans e outros sujeitos transmasculinos: pessoas de fora desse círculo ora pensavam que eu era outro homem trans e heterossexual, ora que eu seria trans e homossexual. Essas “leituras” sobre a minha identidade e minhas possíveis práticas eróticas aconteciam assim como um certo teste do desejo e da subjetividade. Se eu realmente não sentia nenhum tipo de preconceito contra travestis e pessoas trans, inferiam os interlocutores, isso seria provado se eu “ficasse” ou ao menos se dissesse que não tinha nenhuma restrição no campo do desejo sobre isso. “Você ficaria com um homem trans?”, foi uma pergunta que ouvia na mesa do bar ou noutros espaços quando gravávamos entrevistas. As paqueras aconteciam, e elas também se davam nesse plano da atividade avaliativa moral do que eu realmente pensava. Ao ponto, por exemplo, de um beijo ter sido “roubado” numa ocasião. Com as 67 Wagner de Carvalho (2012) faz uma etnografia com esportistas que envolve uma discussão direta nesse sentido, uma vez que sua própria sexualidade como prática erótica esteve implicada na situação da pesquisa com seus interlocutores, tanto como técnica de abordagem como de acesso às suas vidas. 93 mulheres trans e travestis esses questionamentos eram facilmente resolvidos quando me tomavam como gay. O argumento mais forte que circulava nesse sentido seria aquele referente a lógica de que, como estão dentro da categoria mulher ou fora da categoria homem, não teriam romances nem envolvimento sexual com ninguém que não fosse um homem heterossexual. Essas são dinâmicas no plano dos discursos em torno das práticas sexuais e o do amor diante da minha presença – ou, mesmo com a minha presença – e não dizem respeito a outros cenários nos quais essas últimas interlocutoras, principalmente, estão situadas68. Assim, a sexualidade como habitus erótico era uma constante intensa na pesquisa de campo, tanto quanto a essas primeiras interações que eu detive conforme conhecia novas pessoas como quanto a própria vida social daqueles que acompanhava. Gênero e sexualidade se tornaram reinos separados na vocalização política trans, como indiquei na introdução, mas se trata de partes de um mesmo universo indivisível no plano da realidade concreta. As identidades sexuais e as identidades de gênero eram, contudo, tratadas pelos sujeitos como coisas que alguém possui. Entretanto, eu não tive particularmente uma angústia identitária em relação a tudo isso. Eu costumava considerar essas investidas afetivo-sexuais como algo elogioso, e, sem dúvida teve um enorme impacto positivo na possibilidade de realizar a pesquisa. Isso, de alguma maneira, era visto pelos interlocutores como um elemento que nos unia em comunidade. Mas eu não reclamo nenhuma posição como uma espécie de “antropólogo nativo” em termos sexuais e de gênero simplesmente porque isso não é útil à descrição etnográfica por seu caráter engessante de uma pretensa igualdade absoluta que geraria automaticamente compressões. Ao se debruçar sobre o termo nativo, Arjun Appadurai (1988, p. 37) demonstrou há bastante tempo que “nativo” foi usado como se referindo a alguém que não pertencia ao “Ocidente”. No caso clássico e mais genérico da disciplina isso estava intimamente ligado a ideia de autenticidade, aponta o autor. Essa comparação tem seu valor metafórico na minha reflexão. “Nativos apropriados são de alguma forma assumidos para representar seus eus e suas histórias sem distorções e sem resíduos; em contrapartida, durante muito os antropólogos apresentaram a si mesmos como seres complexos e diversos”. Ao me chamar de nativo eu estaria não apenas cristalizando a mim, mas também os sujeitos que compuseram a pesquisa por gerar uma unicidade subjetiva que não existe. Essa oposição ganha relevo na antropologia como parte de sua reflexividade. Podemos entender essa reflexão contínua da disciplina como nosso principal traço de preocupação ética que não se restringe a definir posturas rígidas de abordagem, mas infere as consequências das nossas relações e da produção do conhecimento de maneira contextual. Apontamos para a situacionalidade do conhecimento 68 Embora não as tenha entrevistado diretamente, convivi bastante com elas devido as dinâmicas do campo político LGBT. Essa escolha se deve a um recorte metodológico. Assim, esses sujeitos compõem a descrição apenas no plano da observação. 94 (Cardoso, 1986; Durham, 1986; cf. Haraway, 1995). De todo modo, a sexualidade nesses termos é algo com o qual o antropólogo lida, mas nem sempre isso é de relevância metodológica para a entrada em campo. Evelyn Blackwood (1995), a partir de seu trabalho de campo realizado numa vila mulçumana na Sumatra Ocidental, na Indonésia, argumentou que esse é um aspecto ocultado, mas atuante na nossa prática disciplinar. A negação da subjetividade de alguém em campo expõe e desafia questões de exotização e de identidade no trabalho etnográfico. Dessa constatação a autora se pergunta “se, a negação de nossa subjetividade no campo nos habilita à exotização na antropologia; como o seu reconhecimento na nossa agência nas relações em campo combate essa prática?” (Blackwood, 1995, p. 39, tradução minha). A experiência subjetiva da sexualidade, aponta, desafia a distância entre “nós” e “eles”. Mesmo que a autora esteja se remetendo a pesquisas em contextos não-ocidentais, ela não deixa de tocar a antropologia feita “em casa”. Ao ocultar e mascarar a própria sexualidade incorre-se inevitavelmente à reificação da distância entre “nós” e “eles”. E isso age numa pretensa neutralidade objetiva absoluta da ciência construída pelo antropólogo. Demasiadamente, padrões de objetividade científica na etnografia têm mascarado pontos de vista que são meramente distantes e insensíveis (Kondo, 1986, p. 84). Haraway eloquentemente define esta objetividade científica como: “o olhar de lugar nenhum”. Este é um olhar que miticamente inscreve todos os corpos marcados, que faz com que categorias não marcadas reivindiquem poder para ver e não ser visto, para representar enquanto escapa da representação. Este olhar significa posições não marcadas de homem e Branco (Blackwood, 1995, p. 40, tradução minha). Ao se comparar com antropólogos que se casavam em campo e viajavam de volta para casa com esposas, Blackwood demonstra seu desconforto pessoal e identitário com problemáticas envolvendo um movimento político por afirmação lésbica e gay estadunidense. Isso não significa uma impertinência à sua reflexão, mas a localiza. No caso particular dessa etnografia, a sexualidade do antropólogo como não-heterossexual foi crucial para o estabelecimento de relações. Não se pode perder de vista que isso se deu dessa forma porque essas categorias de pessoa foram vibrantes culturalmente no campo, e não se deve a algo universalizável como faz parecer as indicações de Blackwood. Assim, essas questões expõem que a dimensão ética de uma pesquisa não é medida por um conjunto de procedimentos regulados isoladamente. A dimensão reflexiva da antropologia tem colocado problemas desse tipo para a disciplina de maneira permanente. E cabe, portanto, permitir que haja uma definição etnográfica para a ética sem entrar, por exemplo, num relativismo que justificaria a violência, mas que a entende contextualmente. 95 1.8. Compreendendo escalas Esse capítulo procurou mostrar as condições de possibilidade para o estabelecimento da etnografia na qual se baseia essa tese. Procurei evitar um discurso de afetação que recria um tipo de subjetivismo pouco útil à compreensão dos percursos metodológicos. Mesmo tendo em mente que a neutralidade da ciência não existe de forma absoluta, e que estamos diante muito mais de um tipo de “objetividade relativa” – nos termos de Roy Wagner (2010) –, isso não significa que se deva abandonar o trabalho de objetivação de uma pesquisa. Assim, sigo os princípios epistemológicos de se pensar que os dados empíricos são construídos, mas não por isso não são cientificamente formulados. O controle que objetiva um problema e o transforma em objeto procura evitar aqui tanto um subjetivismo como um objetivismo positivista (Bourdieu, Chamboredeau e Passeron, 1999 [1968]) que muitas vezes incorre em preocupações que não geram por si só uma pesquisa antropológica situada. Assim, coube pontuar o caráter relacional e de atenção a processos sociais que esta tese toma parte. Isso leva a considerar que além de lidar com campos sociais com sujeitos com objetivos diversos e que de algum modo se alinham, estou integrando a compressão dos problemas etnográficos com as diferentes escalas que assumem para se estabelecer. As compreensões biomédicas sobre a transexualidade formuladas em diferentes sítios, embora concentradas primordialmente no norte global, se irradiaram na forma de fluxos socioculturais para o mundo inteiro e assumiram um caráter transnacional. Esse espraiamento de conhecimentos científicos não é dependente de tecnologias da informação da nossa contemporaneidade como a internet. Entre as décadas de 1950 e 1980, a medicina acadêmica foi um cenário profícuo para aplicar pesquisas bioquímicas em mamíferos anteriores para possibilitar que alguém pudesse mudar seu sexo. No próximo capítulo eu demonstro como é importante considerar as escalas de forma antropológica para compreender as questões que estou tratando aqui. Contudo, o caráter global de problemas e situações e experiências foi trazido à tona particularmente pela epidemia de HIV/Aids que compartilha de muitas problemáticas que estou discutindo e descrevendo (Valle, 2015; Bastos, 2010). Assim, cabe à etnografia dar conta desses níveis que assume a vivência local da saúde trans, que, embora não diga respeito a uma infecção se inscreve nos raios de controle, definição, controvérsia e contestação da medicina como uma ciência globalizada. A permanência da transição de gênero como um objeto de intervenção desse campo social de forte autonomia esclarece que processos de medicalização e de contestação trans ganham escalas variadas e não estão restritos nesse sentido a (des)patologização, mas adentram as transformações da medicina trans como uma “boa medicina” e as relações e respostas locais às definições que esta carrega. O capítulo 2 busca, portanto, rastrear esses fluxos globais. 96 – Capítulo 2 – Os fluxos socioculturais da transexualidade Se o diagnóstico impende de uma computação de dados de várias naturezas, ele pode, todavia, concluir pela existência da referida síndrome transexual. [...]. Quer no Brasil, [...] quer em todo o mundo científico, está bem reconhecida a existência dessa entidade. [...]. Está cientificamente identificada descrita, nosograficamente caracterizada e é hoje universalmente reconhecida. – Hilário Veiga de Carvalho, médico urologista (1982a [1977], p. 257-8). 2.1. Quando o todo é uma parte Nós somos vidas teimosas. A gente insiste naquilo que não foi feito para nós [...]. Todo mundo já quis decifrar quem é mulher trans, quem é travesti, quem é homem trans, quem é LGBT, nesse contexto de lutas, de resistência. Todo mundo quis já dizer uma palavra para isso, dizer que são resistência, que são tudo, que são guerreiros, lutadores, militantes, ativistas. Não somos nada disso, somos isso [...]: vidas teimosas [...]. Nós queremos ouvir uma palavra do nosso dia a dia, do que a gente fala um para o outro. E a gente mesmo fala isso um para o outro, e é isso que a gente escuta todo dia: “deixa de teimosia”, “pára com isso”, “cai na real”. [...]. São as vidas teimosas (Kaio, entrevista 2018). A noção de teimosia expressa por Kaio enquadra a constituição de si não enquanto um sujeito isolado, mas como parte duma coletividade de sujeitos que, como julgam, é percebida por conhecimentos em termos arbitrários às suas próprias vidas como sujeitos específicos e enquanto seres humanos que estão vivos. A forma como lidam com essa arbitrariedade explicativa se dá no âmbito de uma negociação com seus termos, mantendo uns e rejeitando outros. Enquanto faz refletir uma ideia cearense, a teima explica algo muito propositivo que traz contornos culturais para o ativismo trans. Ela ecoa uma insistência e obstinação contra algo para o que se ouviu diferentes explicações definitivas. Segundo a forma como os próprios agentes representam a si mesmos, isso explica como se movem contra discursos e um conjunto de práticas na tentativa de se consolidarem como personagens concretos do cotidiano. Eles querem se tornar personagens óbvios da vida social, e não exceções. Essa é sua primeira batalha. 97 Para além da classificação do cearense como nascido e vivendo no Ceará por muito tempo, as ideias de hospitalidade, comicidade, teimosia69 e valentia “como um vaqueiro” são organizadas simbolicamente no âmbito da representação na produção cultural através da literatura, da música, das coberturas jornalísticas e de manifestações da cultura popular em geral (cf. Oliveira, 2015). O caráter inventivo da ideia de cearensidade, ou de cultura cearense (Carvalho, 2014), não impede a produção de efeitos sobre a constituição de sujeitos (Silva Neto, 2009). As diferentes emigrações de cearenses para outras regiões do Brasil também denotam um caráter de “lutador” (Cardoso, 2011), contudo, a luta de que falam ativistas homens trans se dá no sentido de ficar no Ceará para mudá-lo, de não se satisfazer com soluções apresentadas por gente de fora, isto é, ativistas de caráter supostamente nacional que não vivem suas vidas. As arbitrariedades que homens trans encontram no curso de seus ativismos e vida social – isto é, toda uma gama de campos compostos por suas famílias, dinâmicas de acesso a renda, amigos, parceiros ou parceiras sexuais, dinâmicas raciais, relações de classe, os profissionais de saúde variados com quem interagem, políticos, políticas públicas, setores estatais, órgãos nacionais e internacionais, saberes e tecnologias corporais e médicas – são parte de uma situação constituída por fluxos globais que se tornou a categoria transexualidade. A dinâmica social e política que engendram não está constituída de maneira isolada culturalmente. Nesse sentido, este capítulo pretende descrever histórica e etnograficamente como o mundo social da saúde trans cearense, e os problemas com os quais lidam seus agentes na ordem do conflito pela representação legítima, estão situados num intrincado âmbito intercultural de fluxos transnacionais; e, o que significa adotar uma visão holística para gerar uma compreensão mais aprofundada a seu respeito: considerar o contexto de um amplo campo de valores culturais e mudanças históricas pelos quais é gerado. Para tanto, este capítulo decorrerá para descrever a produção biomédica da transexualidade no seu original cenário euro-estadunidense, no norte global, e sua produção e reverberação brasileira, demonstrando como médicos e homens trans ativistas agiram, os primeiros geralmente no tocante ao estabelecimento de uma categoria diagnóstica, e os segundos, de uma categoria de sujeitos que extrapola – mas não rejeita terminantemente – a biomedicina e alcança a produção cultural. Diversas vezes durante o trabalho de campo os interlocutores se remetiam a saberes, biotecnologias, modelos e instituições cujos pontos de referência extrapolavam suas localidades. Isso se expressava também quando questionavam, como alguns médicos o faziam, se os reclames de acesso a serviços de saúde de uma população autodenominada transexual – e o conjunto de 69 Algo encontrado também em diferentes expressões de cultura popular no Ceará, como na música “Terral”, cantada por Ednardo, Amelinha e Belchior no álbum “Pessoal do Ceará” (Continental/Warner, 2002), que diz: “Eu tenho a mão que aperreia / Eu tenho o sol e areia [...] Eu sou a nata do lixo, eu sou do luxo da aldeia / Eu sou do Ceará”. 98 médicos especialistas interessados – não seriam o resultado negativo e alienante da “globalização” que veicularia informações sobre um tipo de diagnóstico. Os próprios agentes se reconheciam, de alguma maneira, circulando em um mundo composto por espaços interior/exterior no qual manejavam situações e interações enquanto profissionais ou enquanto sujeitos/ativistas. Como categoria nosológica, a transexualidade se tornou uma categoria global cujos fluxos transnacionais – relações mútuas, embora desiguais, entre origens e destinos no fluxo de ideias, objetos, ideologias, tecnologias e imagens numa ampla economia de circulação materializada localmente, tanto histórica como sociologicamente (Hannerz, 1996, 2003; Ericksen, 2003) – são passíveis de serem traçados e a razão de sua globalidade. Isso oferece a oportunidade de pensar a transexualidade em sua conformação cultural, com uma origem e com espraiamentos específicos entre diferentes partes do mundo, de modo que esta tese constitui apenas um caso. Pensar a constituição cultural a partir da metáfora de fluxo oferece70, como defendeu Ulf Hannerz (1996) e outros, uma via de se pensar em termos processuais. Isso não quer dizer que tais processos sejam de “fácil” concretização. Não se trata de simples transposição e transmissão de formas carregadas de significados essenciais, mas de um processo com centralidade nas múltiplas influências culturais, com história e com agentes que criam, recriam e transmitem suas interpretações e sentidos sobre o mundo. A questão do fluxo ainda coloca em evidência a problemática da “fronteira”, cada vez mais erodida como limites intransponíveis ou de pura alienação do outro, mas vista como o lugar mesmo no qual a mudança social e a constituição cultural acontecem (Barth, 2000; Hannerz, 1996). Se houve uma mudança no entendimento da antropologia a respeito das relações entre sociedades, de uma relação de aculturação para uma relação de múltipla constituição71, o peso de “novidade do presente” atribuído ao que se chama de “globalização”, como Thomas Ericksen (2003) demonstrou, é, na verdade, antigo. Desde a década de 1990, muito tem se falado nas ciências 70 Sobre as diferentes aplicações que tratam do termo fluxo para se referir à formação cultural ou social, e ainda o lugar disso na percepção macro antropológica da vida social, ver Gustavo Ribeiro (1997), Ufl Hannerz (1996; 1989), Arjun Appadurai (2015), Anna Tsing (2002), Thomas Ericksen (2003) e Marshall Sahlins (2010). 71 As décadas de 1980 e 1990 foram um campo prolífico de produção antropológica sobre a “globalização”. Se tornara indiscutivelmente evidente, principalmente por causa das tecnologias de informação, que o mundo todo estava de alguma maneira conectado. Mas eventos específicos que se tornam processos sociais são particularmente importantes para que se pudesse perceber e avaliar as escalas, esse é o caso primordial da pandemia do HIV/Aids. Esse debate gerou variados conceitos para a descrição da circulação de ideias, mas também da continuada produção local daquilo que entrava em âmbito global, tais como, globalismo, mundialização, glocalismo, imperialismo, colonialidade do poder e multiculturalismo. Embora essa asseveração não tenha sido reinante em toda a história da disciplina como contrária à ideia de aculturação, ela é verdadeira para todo o período conhecido da história da humanidade (Cusick, 2015). Segundo Marshall Sahlins (2010), esse foi um ponto de inflexão se não devido isoladamente, ao menos foi grandemente popularizada por Claude Lévi-Strauss (1982 [1947]; 1999), cujos princípios de sua antropologia estrutural se baseavam na acepção contrária então vigente, na de que diferenças culturais de interação entre povos eram dialeticamente relacionadas. Vemos isso, por exemplo, tanto na sua análise estrutural da proibição do incesto – no qual se assentava a interação matrimonial entre grupos como principal veículo de constituição da vida social –, como naquela dos mitos – a partir de que mostrou a dinâmica relacional e de continuação das narrativas entre diferentes grupos étnicos, isto é, a diversidade das culturas não era resultado do isolamento geográfico, mas das relações entre si ao se explorar as possibilidades de oposição, transformação e transcendência (cf. Lévi-Strauss e Perrone-Moisés, 1999). Essa foi uma posição consolidada também pelo trabalho publicado em 1969 por Fredrik Barth (2000), Grupos étnicos e suas fronteiras, no qual se demostrava que as distinções étnicas não dependiam da falta de interação e aceitação social. Eram as interações que produziam sistemas sociais comumente vistos como fechados, ordenados e autorreproduzidos, e era isso mesmo que produzia a diferença cultural. 99 sociais que “o mundo está menor”, levando-se comumente ao emprego do conceito de “globalização”, dado ao encurtamento das distâncias propiciado pela maior proeminência de interações mediadas com a popularização de variadas tecnologias da comunicação como o rádio, a televisão, o telegrama e o telefone (Thompson, 1998). Com a disseminação da internet, desde os anos 1990, a troca de mensagens e informação adquiriu gradativamente uma maior e inédita rapidez e instantaneidade. Foi a isso que Manuel Castells (2011) se referiu ao denominar a sociedade em rede, propiciadora da “revolução tecnológica” que deu outro patamar à globalidade do capitalismo. Nas décadas recentes, a popularização de artigos tecnológicos como computadores portáteis, celulares inteligentes e da internet de banda larga deu outro rosto à comunicação mediada no cotidiano, interferindo de maneira decisiva nas relações sociais (Miskolci, 2016). Embora esse panorama apresente uma conectividade mundial, de modo a gerar uma verdadeira “situação global” quanto a problemas sociais, diferentes antropólogos (Eriksen, 2003; Hannerz, 1996, 2003; Nustad, 2003; Tsing, 2002) têm criticado a noção de globalização por verem nela um obscurecimento da natureza limitada de muitos fluxos de troca e comunicação que faz parte do mundo, tanto como lugares de larga escala, como de pequena dimensão. Ou, por entenderem que o termo não capta de modo apropriado que universos simbólicos ligados a produtos globais tenham uma realização sempre constituída desde um ponto específico por visões de mundo e relações de poder. A crítica se coloca contra a acepção de um espaço global como um espírito de força transcendental longe de gente de carne e osso; ou, como Eriksen (2003, p. 5, tradução minha) argumenta: “um espírito mundial hegeliano sobrevoando acima e além das vidas humanas”. Parte desses autores se propõem, portanto, a engajarem-se em torno do conceito de “fluxos transnacionais”. Isso, acreditam, faria com que a análise expusesse que as ideias ou substâncias que entram em fluxo são rastreáveis em suas origens e destinos e como são instigadas pelas pessoas num contexto histórico demarcado. Ao invés de presumir a existência de processos globais, seria preciso seguir os interlocutores e sua produção social e cultural, observando como essas conexões não têm uma existência intrínseca, mas como se tornam uma parte importante do mundo social72. Nesse sentido, ao agrupar pesquisas sobre a noção de transexualidade, se percebe que é possível auferir como ela tem assumido diferentes feições ao redor do mundo. Isso acontece seja para afirmar a particularidade de uma categoria identitária cultural local e a rejeição de interlocutores e do pesquisador em classificá-la como transexual, seja enquanto sua afirmação direta e ressignificada mesmo em meio a grupos como o primeiro contexto. Realidades nacionais como 72 Outros antropólogos (por ex. Ribeiro, 1998; Appadurai, 2015), por outro lado, não veem no termo tanto problema, apontando que o fluxo não deixa de ser percebido. Mas, de todo modo, o que permanece dessa querela teórica é a acepção de que o material etnográfico é a bússola a partir da qual se parte para aplicar e construir teorias e metodologias de pesquisa. 100 Estados Unidos, Inglaterra, Austrália, Tailândia, Canadá e Brasil veem argumentações em torno da transexualidade ou de um tipo de noção mais geral, a “não-conformidade de gênero” (Meadow, 2018; Hines, 2007; Aizura, 2018; Namaste, 2000). Outras categorias como hijras na Índia e kathoey na Tailândia e travestis latino-americanas (Connell, 2012; Silva, 1993) e rupantarkami entre grupos étnicos de língua bengali na Ásia (Dutta, 2012) também fazem parte de outras formas de nomear a “mudança de gênero” ou os seus trânsitos73. Contudo, quando se considera apenas o cenário estadunidense, a conformação cultural irradiadora mundialmente nem sempre é considerada (Prosser, 1998a; Plemons, 2017; Hausman, 1995; Rubin, 2003; Cromwell, 1999). Exercício fundamental para se aprofundar sobre as condições de possibilidade de surgimento e circulação cultural e social de categorias de sujeitos, de diagnóstico e de interpenetração da biomedicina na conformação contemporânea da vida. Não estou inferindo uma “globalização da transexualidade” ou uma “trans-globalização”, uma vez que não é possível existir uma única forma ou um quadro único de “globalização”. Nem essa circulação transnacional que aqui se indica é apenas devedora das mudanças tecnológicas da comunicação das décadas 1980 e 1990, uma vez que a circulação de conhecimento biomédico já se constituía através da sua comunidade internacional bem anterior. O que existe são conexões e fluxos globais que se tornam, cada uma a sua maneira, relevantes para o mundo social sob inquirição. Se, na Tailândia descrita na etnografia de Aren Aizura (2018), a transexualidade é uma categoria importante com ligações transnacionais, o fez por uma demanda turística particular que levou o país a investir em hospitais particulares para oferecer serviços cirúrgicos a pacientes de número crescente vindo de diferentes partes do mundo – o que não impediu, como Aizura mostrou, que dinâmicas religiosas tailandesas formalizassem muitas das dinâmicas de cuidado em saúde e os processos de transição de gênero, inclusive de pessoas viajando de fora para o país. Sua pesquisa foca nas migrações de pessoas transexuais desencadeadas pela busca por supervisão médica. É nesse passo que considero essa transnacionalização, mais do que alguma espécie de quadro monolítico de “globalização”. Mesmo quando as pessoas trans não estão viajando à procura de cuidado médico, o fluxo transnacional da transexualidade acontece porque ele se perfaz em meio aos fluxos de conhecimento por meio das tradições científicas que tornaram esses conhecimentos disponíveis em algum sentido e que foram, ainda, também construídos de modo multilocalizado. Raewyn Connell (2012) de um lado, e Howard Ching (2012a; 2012b) de outro, argumentaram a favor de observar a transexualidade em termos que extrapolem a vida social local de comunidades ou grupos. Connell (2012, p. 858, tradução minha), em uma revisão extensa acerca 73 Isso, na verdade, não diz respeito simplesmente a nomes diferentes para as mesmas experiências e sim a concepções diferentes cultural e sociopoliticamente que estão sendo agrupadas aqui mais a nível de tradução, do que a nível de uma semelhança absoluta. 101 da relação entre o pensamento feminista e mulheres transexuais, pontuou o caráter global da constituição da “medicina transexual” e das discussões feministas a respeito, como chama, ao ressaltar o seu desenvolvimento pela metrópole global – o conjunto de países euro-estadunidenses que hoje ocupam o centro financeiro, político e científico do mundo. Ela mostra que isso expõe a “situação distintiva e o poder da metrópole, o qual tem impacto sobre políticas corporais em todo lugar”. Já Ching (2012b), em seu estudo sobre o eunucodeísmo na China, mostrou como categorias locais que o asseguravam como prática foram sendo desafiadas por ontologias conceituais associadas com a alteração de sexo. Reagindo a postulados que colocam os eunucos chineses de séculos passados como transexuais, categorias de “castração voluntária” e “eunuco natural” chinesas foram sendo colapsadas culturalmente, criando um espaço para a transexualidade se erigir como categoria explicativa a fim de limpar a ideia da China como “civilização castrada”. Isso, segundo o autor, acabou por apagar a linhagem histórica do corpo político chino que remonta aos eunucos e às práticas de pés diminuídos de mulheres. A partir dessa abordagem, Ching (2012a) propôs pensar a formação de estudos sobre transgêneros na China, mostrando que deveria haver uma preocupação teórica sobre como a transexualidade “viaja” entre tradições intelectuais. Antes de Ching, feministas como Sarah Radcliffe, Nina Laurie e Robert Andolina (2003) se dedicaram a explicar o caráter transnacional do gênero, ao mostrar o engajamento de líderes indígenas andinas em fóruns mundiais de direitos humanos, e as dinâmicas de globalização que enredam as políticas públicas em escalas internacionais e locais. Como veem, tem ocorrido uma expansão global de formas de pensamento próprias do “Ocidente” que impactam a conformação de políticas de desenvolvimento pró- indígenas com paradigmas específicos de gênero e capital. Essa tem sido uma preocupação perene da agenda feminista. Assim, se o mundo acadêmico mundial é em grande parte pressionado pela produção da metrópole global, como Raewyn Connell (2007) já demonstrou, enviando inclusive teorias do centro e colhendo material empírico da periferia, é preciso saber como isso acontece caso a caso, etnograficamente. A transexualidade enquanto categoria que “viaja”, ou como prefiro dizer, como categoria em fluxo global, não está dissociada desse amplo contexto que envolve tantos outros objetos e campos da vida social também localmente situados. Embora não se trate de considerar que a vida social num dado lugar seja heteronomizada apenas por causa desses fluxos socioculturais, eles são particularmente importantes quando consideramos um dos principais veículos da transexualidade como categoria: a biomedicina “ocidental”. Ela carrega consigo os princípios norteadores das culturas de onde se originam, constituindo, portanto, uma geopolítica biomédica da ainda atual categoria psiquiátrica de disforia de gênero (Bento, 2016). Isso é perceptível quando consideramos a produção e reprodução da 102 medicina como atividade profissional e campo de conhecimento e intervenção. Ela age como o principal vetor e motor da transnacionalização da transexualidade, tanto pelos regimes de verdade que oferece (Foucault, 2011), lidando com fases cruciais da vida e morte humanas, como por ela própria ser um ator global (Sakoyan, Musso e Mulot, 2011), através da constituição de sua comunidade internacional por meio de congressos, periódicos acadêmicos, organizações de regulação, associações científicas e manuais de saúde – além de sua inscrição através do Estado- nação e do comércio mundial que habita e formaliza (Biehl, 2011). Nesse sentido, esse é um processo de medicalização. Pelo próprio caráter da interação entre diferentes campos que a transexualidade enseja – como campo que engaja agentes e saberes, tecnologias e instituições e visões de mundo diferentes –, a dimensão do conflito social é tanto exacerbada quanto o é no interior de cada dimensão da vida social. Isso se reflete na minha posição e identidade enquanto antropólogo e nas relações que procurei construir em campo para estudar os problemas aqui delineados. Primeiro passo para compreendermos a participação ativa e inicial da biomedicina na disseminação da categoria transexualidade no Brasil74, o que dá subsídios para a volta ao período histórico do desenvolvimento da ciência sexual à brasileira e suas raízes alhures. O capítulo é concluído com a descrição das estratégias empregadas por homens trans e outros sujeitos tidos como “aliados” políticos em instituir práticas para que sejam visíveis como sujeitos que existem para além da biomedicina a partir da produção cultural através de peças teatrais em Fortaleza, um objeto cultural de intensa vida social local – algo que não rejeita totalmente as explicações e tecnologias oferecidas pelas ciências psi e bioquímicas aplicadas na clínica e na cirurgia médicas. 2.2. Um antropólogo e um assunto espinhoso Já passava de meio dia quando eu cheguei no hospital público no qual Marinalva trabalhava. Havia falado com ela há poucos dias por telefone, mas não tinha certeza se ela participaria da pesquisa quando me encaminhei para lá. No contato mediado tentei resumir meus objetivos, e como me interessava por uma diversidade de opiniões médicas sobre o assunto. Quando nos encontramos precisei convencê-la a participar. Além dos objetivos gerais, apresentei o Parecer do Comitê de Ética aprovando o projeto de pesquisa, bem como o questionário que almejava aplicar. Após me ouvir e ler todo esse material cuidadosamente – um ritual corriqueiro com os profissionais de saúde –, ela teceu comentários sobre o tema, principalmente de sua preocupação com o que considera ser um alto índice atual de diagnósticos de disforia de gênero. Nesse momento cheguei 74 Uma vez que a disseminação de saberes sobre a transexualidade a partir dos ativistas trans, além de ser posterior ao trabalho médico, corresponde a formação de um campo de atuação política por direitos, o descreverei nos próximos capítulos. 103 a achar que ela não participaria. Após aceitar, passa a tomar ainda a precaução de ouvir todas as perguntas que levei esboçadas acompanhando-as à leitura com os próprios olhos quando ligamos o gravador. Desde o início da nossa conversa ela questionara a crescente demanda por transição assistida, e erigira dúvidas sobre a cientificidade de diagnósticos relacionados. Marinalva não se considerava uma especialista no assunto, mas durante sua formação e atuação profissional não deixou de ter alguma aproximação a respeito, como enfatizara. Poder ouvi-la foi de extrema importância por dois fatores. Primeiro, porque o cenário médico geral no Ceará – como ficará melhor descrito adiante – é muito heterogêneo sobre a facilitação da assistência à transição de gênero e a um cuidado que leve em conta o reclame da diferença feito por pacientes ativistas trans. Não quero trazer Marinalva como a representação per se de uma atuação profissional não-afirmativa, mas lançar olhares sobre como ela dinamiza todo esse contexto a seu modo. Isso porque a rejeição do aumento de pacientes que procuram serviços desse tipo não está presente apenas entre médicos que rejeitam participar dessas assistências. Esse cenário, contudo, não pode ser lido de modo maniqueísta, é preciso entender os saberes e práticas que o constituem, isto é, como advoga para um maior rigor na supervisão médica da transexualidade. Em segundo lugar, sua entrevista foi importante porque a divisão de endocrinologia do hospital no qual trabalha ocupava entre outros agentes sociais uma posição negativa porque seguia o rumor de que haveria se manifestado contrária à sua adesão ao serviço do Processo Transexualizador na cidade. A ideia geral era de que seriam “conservadores”, e seguiam certos argumentos científicos aliados a uma moral judaico-cristã. Por ser um hospital público geral este seria o lugar mais “lógico” para implantação do referido Ambulatório, segundo me contaram alguns profissionais e ativistas. Mas, isso não seria possível por uma falta de interesse, postulavam. Não se trata de verificar se esse rumor é “verdadeiro” ou “calunioso”; isso não importa para a descrição etnográfica porque independe disso a sua força social, uma vez que me interesso em como esse rumor é utilizado pelos agentes para organizar suas percepções sobre o assunto e estratégias políticas para criação do serviço em outros hospitais. Assim, ouvir profissionais desse lugar se mostrou crucial. Entretanto, Marinalva foi a única médica do lugar que aceitou conversar comigo. Mesmo com a ajuda de médicos já entrevistados para contatar outros profissionais, a maioria de seus colegas – e de outros profissionais na região – respondeu não ter interesse na pesquisa ou simplesmente ignorou minhas tentativas de contato. Minha aproximação com Marinalva se deu também porque médicos com os quais já havia interagido, e que eram tidos e se viam como especialistas ou simpatizantes de especializar-se no tema, me instavam a entrevistar e a conhecer “outros médicos contrários”, isto é, me cobravam a “coletar” uma “diversidade de 104 opiniões” para que meu trabalho apresentasse “maior validade científica”. “Você precisa ouvir quem não concorda, quem se opõe”, me diziam algumas vezes no saguão de outro hospital. Porém, a recusa desses “outros médicos” ao tema alcançara, consequentemente, minhas questões – médicos mesmo com pacientes trans regulares na assistência à transição também rejeitaram participar. Muito provavelmente, esse cuidado excessivo que gerava inclusive recusa em envolver-se com a pesquisa estava associada também a esse ambiente de conflitos constantes baseados em discordância moral ou científica. Uma das médicas interlocutoras, especialista em sexologia com forte atuação na área, já fora acusada, por exemplo, de fomentar “ideologia de gênero”75 por outros profissionais que viam a transexualidade como prenúncio contra a natureza humana normal – essa acusação lança luzes sobre as relações de força na área. Assim, se não contribuíam para um serviço especializado, não iriam contribuir para uma pesquisa a respeito, vista como uma contribuição indireta à questão. Era recorrente que todos os interlocutores com os quais interagi fizessem algum comentário ou se colocassem em alguma posição sobre conflitos passados entre pacientes trans e médicos, entre os próprios médicos ou dos ativistas entre si na cidade. Isso se deu a tal ponto que senti de uma maneira muito incômoda o que se materializava como uma atmosfera carregada de tensões e acirradas disputas políticas. Apenas quando aceitei que a vida social em si, em qualquer lugar e não apenas do campo que estava a estudar, é permeada por conflitos que pude entrever as bases dessas contendas e seus objetos. Foi necessário voltar a Georg Simmel (1904) e lembrar, como mostrou, que não apenas o conflito tem uma significância sociológica como é uma forma de socialização fundamental da constituição das relações. Muitas leituras do autor têm colocado essa proposição em termos de competição por recursos, mas é preciso observar não apenas o que ele chamou de “relação formal de tensão” – os episódios particulares de atrito. Tanto um grupo social quanto o indivíduo assumem suas “unidades”76 através da contradição. A “sociedade”, como coloca, “requer alguma relação quantitativa de harmonia e desarmonia, associação e dissociação, 75 A expressão “ideologia de gênero” é usada por movimentos conservadores no Brasil e no exterior para reclamar por um retorno à natureza humana dada por Deus, ou supostamente provada por uma “teoria biológica” sem respaldo atualmente, criticando principalmente políticas, currículos e leis favoráveis à promoção de discussão sobre direitos das mulheres e sexualidades vistos como riscos à integridade de uma família natural heterossexual. Iniciado originalmente em círculos religiosos católicos, se tornou um “pânico moral” (cf. Miskolci, 2017) também presente na política brasileira de maneira secular com potencial eleitoral. Para uma discussão mais aprofundada a respeito ver também Rogério Junqueira (2017). 76 Simmel demonstra, portanto que a “unidade” é construída pelos indivíduos em relação: “Nós descrevemos como unidade o acordo e a conjunção de elementos sociais em contraste com suas disjunções, separações, desarmonias. Nós também usamos o termo unidade, contudo, para se referir a síntese total de pessoas, energias, e formas num grupo, no qual a totalidade final é construída, não apenas por aqueles fatores que são unificadores no sentido estrito, mas também por aqueles que são, no sentido estrito, dualísticos” (Simmel, 1904, p. 491-2, tradução minha). Max Gluckman (1968, p. 221, tradução minha) faria um argumento ligeiramente similar, mas partindo das considerações de Émile Durkheim (1996), para mostrar que a tensão e o conflito constituem a produção do processo social e da sociedade. O autor propunha um método chamado de "modelo de equilíbrio" para estudar sistemas sociais em mudança. Embora eu não aplique sua abordagem totalmente, apreendo alguns das suas proposições, como a de que as mesmas pessoas não ocupam apenas um tipo de posição social, e a de que há um equilíbrio contínuo entre a mudança e a continuidade social, em ordem de dar relevância ao “elemento tempo, desde que toda a realidade é um processo no tempo”. 105 simpatia e antipatia, em ordem de atingir uma formação definitiva” (Simmel, 1904, p. 491, tradução minha). Sem isso, Simmel aponta, não seria possível existir nenhum “processo vital essencial” nem “estrutura estável”. Isso tudo resulta e produz a dimensão subjetiva dos indivíduos manifestada socialmente pelas emoções. Tendo isso em mente, eu não estava diante de uma excepcionalidade. Aprendi que não era possível fugir do conflito. É nesse sentido que Gilberto Velho (1989; 2008; 2005) argumentou a necessidade de olharmos tanto para a unidade como para a fragmentação enquanto formas que os indivíduos assumem ao constituírem a vida social. Então, não era de se espantar as precauções tomadas pelos interlocutores em relação a minha pesquisa e a desconfiança do que minha presença poderia incitar entre diferentes grupos e agentes. Eles não me conheciam anteriormente. Os médicos sabiam que eu convivia com ativistas, os ativistas sabiam que eu convivia com profissionais de saúde, e os funcionários do Estado do mesmo modo. Era frequente ainda que ao fazerem comentários sobre outros campos e agentes, ou sobre questões gerais que os recortassem todos, esperassem de mim alguma opinião que os corroborasse ou que ao menos lhes dissesse que entendia a validade de seus pontos de vista. Isso porque uma exposição considerada desabonadora poderia trazer consequências negativas à profissão ou à atuação política, ou seja, às carreiras morais77 (Goffman, 1987) dos interlocutores. A imagem de si diante de seu próprio grupo era um recurso essencial para um posicionamento social. Nesse sentido, os agentes comungavam da preocupação com o estabelecimento de uma trajetória, as quais são compostas de transformações na forma como são vistas pelos outros e por si mesmos no decurso da interação social. Alçada como importante, essa interação e a produção da própria imagem é crucial à manutenção da posição – não apenas de sujeito, mas também como “profissionais” da política ou da biomedicina – que assumem ou desejam alcançar sobre eles, individualmente e quanto ao grupo que pertencem. Por isso, Marinalva não apenas visava a possibilidade de demarcar e registrar sua opinião científica sobre o assunto, como avaliar se minhas intenções de pesquisa e dimensões éticas eram seguras. Formada pela UFC, com residência médica em São Paulo, após considerar diferentes áreas, acabou optando pela endocrinologia. Ela, que nascera em Fortaleza no final dos anos 1960, sempre se encantou mais pela clínica do que pela cirurgia quando começou a cursar medicina. Sua escolha pela especialidade perpassou sua preocupação com a alta incidência de diabetes na sua família, e, como me diz sorrindo, sua baixa estatura, a qual queria entender melhor o porquê. Ela continua sua explicação para dizer que “a especialidade vai muito de acordo com nossa história”, e para 77 Erving Goffman (1987, p. 112) define carreira moral ou “os aspectos morais da carreira” como “a sequência regular de mudanças que a carreira provoca no eu da pessoa e em seu esquema de imagens para julgar a si mesma e aos outros”. Esse conceito implica uma saída da dependência de falas das pessoas sobre como elas se imaginam, e permite à análise uma circulação entre o que fazem e onde se situam. Não se trata, portanto, apenas de um estudo do eu, mas também da “sociedade significativa” na qual se está. 106 concluir assevera que se voltou à pediatria porque também era uma área de interesse anterior ligada à sua vida pessoal. Seu foco, portanto, recaiu sobre questões endócrinas de desenvolvimento, puberdade e crescimento. Na época de sua formação não teve nenhum contato com disciplinas, materiais didáticos ou prática clínica ambulatorial envolvendo transexualidade, embora tenha tido atuação junto a pacientes intersexo78. O contato com pessoas trans aconteceu no decorrer do seu trabalho, mais de uma década após sua graduação. Sua narrativa voltava para 2002 – ou 2003, não tinha certeza – quando alguém, que chamarei de Darci, por volta de 30 anos de idade, procurara atendimento no serviço com uma “demanda de investigação genética e endócrina”. [Ele veio] questionando se ele teria alguma... algum defeito genético ou endócrino porque ele não se identificava no sexo de nascimento. E aí ele queria uma cirurgia, ele queria que a gente diagnosticasse uma condição que... motivasse esse processo. E foi a primeira vez que eu me deparei com isso, que na minha época de residência não existia ambulatório lá na USP nesse tema. E ele já chegou [...] com todo um conjunto de impressos que ele buscou na internet falando sobre, é.... o distúrbio de identidade de gênero, a disforia de gênero. E na nossa investigação endócrina a gente realmente constatou que ele tinha um cariótipo normal, ele era XY, a genitália masculina perfeita, não tinha nenhuma alteração na genitália e não tinha nenhuma alteração hormonal. Os níveis hormonais dele eram todos normais, assim, testosterona no nível masculino, e não tinha nenhuma outra alteração. E aí, é, a gente pesquisando [nos guidelines] viu, assim, que era uma condição muito rara e aí a gente encaminhou pra psiquiatria pra avaliação porque a gente leu nos guidelines que a base do acompanhamento seria no CID, que era um CID da psiquiatria, que tinha que ter um laudo psiquiátrico. E aí ele foi encaminhado, e na época [...] eu entrei de licença (Marinalva, entrevista 2018). A categoria “normal” é fortemente demarcada por Marinalva na apresentação da paciente, e seu fio condutor na demarcação da opinião médica a respeito da transexualidade79. O interesse pelo que Darci poderia apresentar ao exame da diferenciação sexual se estende até a “descoberta” de sua não-intersexualidade, que passa a ser matéria psiquiátrica após “provado” que sua genética não estaria entre os sexos. Como potencial intersexo, operava-se com um afastamento “natural” da natureza ao se procurar a verdade daquilo que Darci fora ao hospital descobrir. A base genética é um arsenal explicativo nos dois lados (Darci e médicos). Já como potencial transexual, o espaço da unidade psi é trazido à tona como o ponto de partida, isto é, os profissionais de saúde seguiam manuais, os quais postulavam a normalidade ora em relação ao biológico, ora em relação ao mental 78 A intersexualidade é definida pela variação genética de caracteres sexuais gonáticos, cromossômicos e/ou genitálicos que impedem a classificação dos seres humanos como totalmente ditos de um único sexo. Há um amplo debate a respeito que a considera como variação biológica da espécie humana e não como doença ou síndrome. Anne Fausto-Sterling (2002; 2000) discute a existência de cinco sexos ao se partir de características celulares, argumentando que as explicações biológicas geralmente fixam apenas dois sexos e nomeiam tais variações como erros genéticos. O trabalho não se propõe a descrever questões biomédicas ou políticas ligadas a intersexualidade. Como se verá no capítulo 6 esse é um grande ponto de contato de médicos com o tema da “sexualidade humana”. Ver Paula Machado (2008) para uma discussão sobre o contexto brasileiro de abordagem médica e de mobilização social de intersexuais. 79 Contudo, não está presente na narração de Marinalva – importantíssima por ser o registro mais antigo no Ceará encontrado na pesquisa de campo acerca da abordagem sobre a figura do transexual – uma preocupação com um “delinquente anormal”, essa figura descrita por Michel Foucault (2014 [1972]) como o resultado de um longo processo histórico europeu de desenvolvimento de um indivíduo a corrigir por seu afastamento da natureza, seja por suas práticas sexuais ou seja por seu corpo tido como naturalmente não-natural, os chamados hermafroditas. 107 também dependente do biológico. Essa é uma querela permanente na produção científica crescente no século XXI, de se genes ligados aos cromossomos sexuais ou hormônios sexuais presentes na formação fetal, ou ainda ligações sinápticas e outras ordens do cérebro determinam ou não os comportamentos associados ao masculino e ao feminino (Meyerowitz, 2002). Opera-se aí, portanto, o que Georges Canguilhem (2009 [1966]) chamou de ciência do normal e do patológico em torno do qual se constitui a medicina ocidental, articulando a definição e o isolamento de órgãos, tecidos e células para classificá-las como doentes. É à doença, ou ao anormal, que se direciona os saberes que o autor chama de “ciências da vida” – fisiologia, biologia, patologia etc. – e que informam a prática médica. A vida se manifestaria no que é incomum, no que perturba. Mesmo que Canguilhem atue numa defesa de uma definição do científico na concepção do normal, e embora o alvo da prática médica e de suas disciplinas assistentes seja a doença, sua filosofia da ciência ecoa uma crítica ao isolamento do patológico em partes do organismo ou do mental. Através de sua argumentação da presença de valores de julgamento envolvidos na classificação do patológico percebe-se os fundamentos que movem o que hoje denominamos de ciência biomédica, e a prática clínica e cirúrgica por meio daquilo que mobilizam principalmente na química e na biologia. Isso a torna o padrão de razoabilidade entre as ciências. Anos depois, quando outro paciente surgira com a mesma demanda de Darci, Marinalva me contara que a direção havia decidido que não havia estrutura disponível para uma nova especialização clínica – indicando a todos os novos pacientes trans que procurassem os setores estaduais. Com isso, diz: “me dei conta, assim, que era uma condição rara, mas fui me surpreendendo com o aumento dessa demanda”. Quando lhe perguntei como ela via o lugar da sua especialidade médica na assistência à transição de gênero, ela me apresenta suas dúvidas sobre a necessidade de qualquer intervenção que não seja a psicoterápica. Eu acho que é, existe um fenômeno, essa explosão, que eu entendo como uma explosão de casos que está havendo. Não sei o que está movimentando isso. Eu acho que essa globalização [com] essa rede de comunicação, tudo se amplifica. Até uma campanha de vacina de repente vira um pânico geral. Basta lançar e aquilo se propaga. Então, eu não sei se isso é um fator que está favorecendo essa difusão de informações, e uma certa confusão nesse tema. Mas eu acho que é um fenômeno que merece ser compreendido e analisado em todos os seus aspectos. O aspecto social, o aspecto emocional, o aspecto biológico, o aspecto genético, o aspecto ambiental. Então, e como a questão biológica envolve hormônios, a endocrinologia deve estar presente em qualquer equipe que se proponha a prestar esse tipo de atendimento. Mas eu acho que não somente o endócrino, o psiquiatra e o cirurgião, mais a biologia, a genética, é, a pesquisa de campo, a antropologia. Acho tem que estar tudo junto porque tem que se compreender o fenômeno. Do mesmo jeito que tem uma força tarefa para tentar entender a epidemia do diabetes e da obesidade, deveria se pensar numa força tarefa para tentar entender esse fenômeno da atualidade, e não somente a gente assistir (Marinalva, entrevista 2018). 108 Mesmo que a força-tarefa aludida por Marinalva exista em forte atuação nos dias atuais, variando sua hegemonia no quadro da medicina geral ou sua força local de acordo com as relações e as políticas no país no qual se desenvolva, o que importa aqui é procurar enxergar a lógica de seu discurso. Isso porque ele é parte do que homens trans interlocutores dessa pesquisa se defrontam em seus itinerários terapêuticos em torno de adoecimentos diversos e de processos de transição de gênero. Quando a médica se pergunta então, como entender o fenômeno, ao se referir a disforia de gênero, tentando elencar todos os espaços nos quais os seres humanos convivem, como escola, família, trabalho, ela traz o biológico para o centro das explicações. A anamnese, a abordagem clínica de construção de história de vida de um paciente, deveria chegar até, talvez, ao estudo da gravidez80. No intuito de tentar entender esse fenômeno, eu acho que quanto mais informações se procurar colher da população no sentido de como tudo isso começou, como é esse ambiente em casa, como são essas relações dentro da família, dentro da escola, dentro da sociedade, é, como foi a gestação, o que a mãe consumia de alimento, de medicamento, de exposição ambiental a um agente tóxico.... Então, tudo isso eu acho que tem que ser incluído nessa avaliação. Não apenas a ponta do iceberg, “ah vou aqui fazer teu processo”, não, mas a gente precisa entender para talvez agir com uma melhor prevenção (Marinalva, entrevista 2018). Ela diz que sabe que é uma população “fragilizada”, mas que “se isso é um fenômeno social que gera tanto sofrimento, e que vai resultar numa mutilação, numa coisa artificial, onde que a gente poderia estar agindo pra tentar dar um outro desfecho, que a pessoa possa viver bem sendo quem ela é, sem precisar passar por um processo, uma metamorfose”, concluiu ao dizer que entende dessa maneira. A biologia e a química surgem com grande peso explicativo para organizar o que Darci apresentara segundo a narrativa de Marinalva. Ao invés de algo estabilizado, a médica e a paciente, personagens centrais até aqui, se situam num vultuoso instável contexto de teorias, opiniões e movimentos sociais que desafiam e tentam explicar as verdades reais sobre a diferenciação sexual, o desejo e os limites e possibilidades de mudanças, protéticas ou não, dos corpos humanos. Em sua hoje clássica crítica à sociobiologia aplicada à separação natural entre homens e mulheres, a bióloga feminista Anne Fausto-Sterling (1985, p. 10) demonstrou que pontos cegos são inerentes à prática científica. Quando cientistas, argumenta, analisam diferenças macho/fêmea, eles o fazem através do prisma da cultura presente no cotidiano, usando-se de concepções de seus contextos históricos e sociais para iluminar suas questões, experimentos e interpretar seus resultados, isto é, cientistas muitas vezes não veem algo explícito, como diz, “que está abaixo de seus narizes” porque teorias correntes podem não explicar o que está sendo observado. 80 A procura pela verdade da transexualidade já no feto da gestante é uma prática crescente (Plemons, 2019a), e talvez atualize de muitas maneiras moleculares o lugar da mãe como responsável. 109 Não se trata de afirmar que o trabalho proposto pela ciência seja impossível, mas que ele é um trabalho de produção de seus problemas, métodos, objetos e aplicabilidade. Os limites apontados por Fausto-Sterling na separação entre homens e mulheres usa de elementos biológicos tidos como inerentes e explícitos. Esses, por outro lado, não são operados hegemonicamente pelas práticas e ensino biomédicos para gerar algum entendimento sobre a possibilidade de mudanças de sexo/gênero. Nem mesmo às variações cromossômicas na intersexualidade, as quais são tratadas como anormalidades de indivíduos que poderiam ser biologicamente normais (Fausto-Sterling, 2000), ou que o são, mas que querem adulterar essa normalidade. Essa é a representação principal do corpo na biomedicina. Michel Foucault (1963), ao tentar desnaturalizar a ideia de um corpo pronto a ser estudado e cujos mistérios serão apenas descobertos pelo olhar do profissional médico, situa como os modos de análise científica ativamente produzem o corpo como objeto apreensível. Isso quer dizer que esse conhecimento, historicamente particular, é produzido mais do que revelado pela ciência. É através de um rigoroso treinamento em como ver e interpretar que se constituem os modos de ver o corpo a partir de suas partes recortadas – que não apenas se faz na medicina, mas genericamente a partir da valorização diferenciada que os sujeitos estabelecem com essa ou aquela parte do corpo (Le Breton, 2012). Quando pergunto a Marinalva, no final da entrevista, indicações de outros médicos que poderiam se interessar em participar da pesquisa, ela me diz que eu não encontraria muita gente que compartilhasse sua opinião. “Sou exceção à regra”, assevera. Se eu tive uma maior dificuldade com Marinalva e outros médicos que compartilhavam mais ou menos de suas considerações, cheguei a ser o procurado por outros. Outros médicos, contudo, além de me indagarem sobre essa grande imagem, me questionavam sobre se todos homens trans que procuravam atendimento seriam mesmo transexuais ou se não estariam noutras categorias culturais a exemplo das diferenças que se desenha comumente entre travestis brasileiras e mulheres transexuais, as primeiras vistas sob o prisma da localidade e as segundas ligadas às teorias e classificações médicas que partem do eixo euro-estadunidense. O que Marinalva demonstra, bem como outros médicos e as relações no campo da medicina nas quais se inserem, é uma disputa em torno da classificação local da transexualidade como questão e condição clínica, cujas faces esse capítulo descreve apenas uma. Embora todas as categorias de doença, desordem e tratamento tenham cada uma sua própria história única, em termos das possibilidades de sua consideração, a sua consolidação não responde a uma mesma trajetória e pode deter diferentes atores e relações de acordo com a localidade considerada. Se, no âmbito que Marinalva se insere há inclusive uma negativa da produção médica institucionalizada a respeito do transexualismo e da disforia de gênero, outros médicos trabalham 110 na oposição dessa posição, se preocupando em caracterizar uma população sob a qual se deveria intervir, cuidar e despatologizar. Mesmo que o discurso de saúde envolvido no “cuidar de quem sofre” recorte todos os profissionais, essas diferenças permanecem. Eles agem num contexto de produção de representação cultural e social, algo que vai além de suas práticas clínicas de relação médico- paciente, e figura nos debates e pedidos de opinião entre colegas, nas considerações em eventos profissionais, nas leituras de manuais (ou guidelines), nas pesquisas que desenvolvem e nas conversas com o antropólogo. Eles repetem em alguns sentidos, e inauguram práticas e ideias noutras direções em relação ao processo histórico do que se denomina atualmente por transexualidade. Embora haja atualmente profissionais que tenham uma atuação nessa área, como em qualquer outra, possam ser vistos como especialistas, alguém a ser consultado, ainda se trata de um dos mais contestáveis saberes no campo da biomedicina cearense em particular e brasileira em geral. E, foi dessa maneira desde sua ascensão na década de 1950 quando surgiu como uma problemática advinda da questão intersexo, acompanhada de um contexto histórico específico de desenvolvimento tecnológico cirúrgico e de conhecimentos endocrinológicos do corpo humano e animal nas ciências da vida. De maneira ainda mais contestatória se constituíram as considerações clínicas sobre o “transexualismo feminino” ou a “disforia de gênero entre mulheres” no eixo cultural euro-estadunidense e brasileiro. De maneira exaustiva diferentes disciplinas no campo das humanidades, bem como ativistas trans, tem se engajado em escrever uma história e os fundamentos da classificação biomédica acerca da transexualidade e sua lógica de tratamento (Bolin, 1983; Hausman, 1995; Prosser, 1998b; Meyerowitz, 2002; Rubin, 2003; Hines, 2010). Berenice Bento (2006) ao considerar as teses psicanalíticas e endocrinológicas nas primeiras formulações do transexualismo propôs ver a transexualidade como sendo produto de um dispositivo, nos termos que Michel Foucault (1988) dá ao dispositivo da sexualidade, no qual se articulariam diferentes saberes para gerar uma forma de reprodução/requisição de sujeitos específicos. Utilizando-se de um referencial teórico diferente, a antropóloga Anne Bolin (1983) defendeu, já nos anos 1980, que a relação entre pacientes mulheres transexuais e médicos estava imbuída em relações estruturais de poder. Sem repetir à exaustão uma revisão histórica cabe olhar, principalmente a partir de historiadores, para o desenvolvimento da ciência sexual e o lugar da transexualidade como seu desdobramento histórico num fluxo transnacional de saber científico. Isso flui, carregando em si mesma, não apenas conceitos objetivos e técnicos, mas diferentes aspectos culturais – o que nos insta ainda ao desafio de não imaginar o contexto do norte global a partir de “uma cultura” monolítica. 111 2.3. Uma breve história da ciência sexual Tentando fazer uma grande narrativa acerca da ciência do sexo, André Béjin (1985 [1982]) propôs pensar a sexologia entre “dois nascimentos”. O primeiro teria se dado no final do século XIX, entre 1844 e 1886, com a publicação de dois livros homônimos, Psychopathia Sexualis, um escrito por Heinrich Kaan e o outro por Richard von Krafft-Ebing81. Nesse último, o autor apontava diferentes perversões sexuais, detendo grandíssima influência acadêmica e profissional. Nesses 40 anos o foco estava sobre as definições científicas, mais do que sob o desenvolvimento de terapêuticas; e, os objetos privilegiados eram as doenças venéreas, as psicopatologias sexuais (as aberrações e sua degenerescência) e a eugenia. A virada para uma “segunda sexologia”, Béjin sugere, teria se dado durante os 30 anos seguintes a Primeira Guerra Mundial, no século XX, com as publicações de dois autores que irão focalizar seus trabalhos tanto em estudo como em terapêutica, Wilhelm Reich (1922) e Alfred Kinsey (1948). Os dois cientistas, não sem diferenças, centralizaram o objeto da sexologia sobre o orgasmo, de modo que produzem um declínio da figura do psicanalista entronizada por Sigmund Freud82 e seus seguidores para estudar problemas sexuais. Se dará aí um protagonismo de um organicismo, pela promessa terapêutica de uma sexologia preocupada com problemas cotidianos desencadeados pela impossibilidade do orgasmo do casal (heterossexual), objetivamente calculável no corpo. Contudo, as sexologias apontadas por Béjin estiveram longe de formar quadros homogêneos de ideias e práticas científicas. No longo percurso histórico desde o século XIX, no qual foram germinados e consolidados entendimentos sobre normalidades e diferenças sobre sexo, gênero e corpo humano, a diversidade científica era tamanha. Mesmo que, como mostram Michel Foucault (1988), Jeffrey Weeks (1989) e Joanne Meyerowitz (2002), a medicina começou desde então de modo crescente a se preocupar com questões sexuais ao se tentar classificar todos os atos sexuais sem fins de procriação, houve também uma intensa produção parceira de movimentos por liberação sexual e de conscientização de classe que teorizaram sobre sexualidade fora do mainstream da ciência médica – e até mesmo de modo mal visto pelo establishment (Kool, 2013). Essas produções de conhecimento sexual envolveram uma profusão de cientistas com diferentes agendas e interesses, desde médicos marxistas (Meyenburg e Sigush, 1977) a cientistas feministas (Leng, 2017), abrangendo na sua formação inicial diferentes regiões da Europa. 81 Anna Schaffner (2012, p. 46) atribui a Krafft-Ebing o início da instituição moderna da ciência sexual, argumentando que ele pode ser visto como estando entre modelos biológicos e psicológicos para explicar os “desejos sexuais perversos”, tendo apontado os primeiros movimentos em direção a concepções psi da sexualidade. O caráter moderno está ligado ao afastamento de noções religiosas, enquanto se defende o sexo como matéria de ciência. 82 É largamente reconhecido que Freud teve importância fundamental na constituição de uma ciência do sexo com um reclame científico diferenciado de seus predecessores. Sua teoria da bissexualidade, inspirada na história grega e nas pesquisas antropológicas sobre o exótico distante, produziram um afastamento decisivo de um determinismo biológico reinante à sua época. O autor participou da consolidação do âmbito psicológico para explicar a sexualidade (cf. Kool, 2013). 112 A produção de diferentes disciplinas científicas, como psicologia, psiquiatria, antropologia83, biologia, embriologia, ginecologia e por último a endocrinologia, percorreu um intenso esforço para se consolidar como uma área coesa e centralizadora de produção do conhecimento sobre sexualidade, gênero e sexo (Leng, 2017). Contudo, a ciência sexual ou sexologia nunca foi, nem é atualmente, um projeto homogêneo e coerente. Toda essa tradição intelectual, além das paralelas relações de poder na conformação da verdade sobre o sexo, é o pano de fundo sobre o qual a ideia de transexualidade se tornou possível no final do século 20, num período de intensa produção biomédica e psi transnacional. Até mesmo pelo seu caráter mobilizador de intensos conflitos e disputas em torno do entendimento do corpo e de seus próprios limites, a medicina preocupada com a transexualidade se constitui dentro da segunda fase sexológica proposta por Béjin. Talvez em um grau maximizado, porque reúne muitas noções e concepções de difícil separação histórica. A inversão sexual da primeira sexologia assume outros contornos na nova ciência sexual cada vez mais biológica e química. O crescimento da perseguição política na Alemanha mesmo antes da deflagração da Segunda Guerra Mundial fez uma massa de cientistas e intelectuais migrarem para outros países. Antes disso, a sexologia europeia já detinha uma grande influência ao redor do mundo, mas esse contexto gerou uma reverberação particular de impacto naquela que foi produzida e institucionalizada nos Estados Unidos desde o final da década de 1940 (Meyerowitz, 2002). Será no cenário estadunidense que a transexualidade será desenvolvida de maneira mais intensa entre as décadas de 1940 e 1970. Contudo, o primeiro movimento em direção a estabelecer o que hoje se denomina “transexual” foi feito pelo médico endocrinologista Michael Dilon, em 1946, com sua diferenciação de “homossexual” e homossexual. Foi a primeira vez que se formulou uma separação entre diferentes tipos de homossexualidade para visualizar outra forma que o sexo poderia tomar. Michael Dilon, que foi identificado ao nascer como mulher na Inglaterra de 1915, vivenciou em si mesmo o primeiro caso de transição hormonal e cirúrgica. Realizou sua hormonização em 1939, sua mastectomia em 1942, e começou em 1945 uma série de procedimentos para construir um pênis (Prosser, 1998b). Em Self: A Study in Ethics and Endocrinology, publicado em 1946, ele explica o processo de mudança de sexo ao centralizar o “eu”, e não como “transexual”, através dos graus de inversão que a literatura médica estabelecia na sua época. Ele diferencia a “homossexual 83 Embora pouco considerado dessa forma, a antropologia tem um papel fundamental na conformação de uma ciência sexual moderna ao constituir a ideia do Outro e seu exotismo sexual. As pesquisas realizadas por antropólogos como Bronislaw Malinowski (1978; 2013 [1923]), Margaret Mead (1979 [1935]) e Ruth Benedict (2013 [1934]), evidenciando as diferenças de comportamento sexual entre culturas exóticas, tiveram um grande impacto na concepção da “diversidade” de possibilidades para o masculino e feminino, separações outras entre homens e mulheres, e quanto às práticas sexuais – como reação às teorias psi entronizadas por Freud. S. Kool (2013) atribui ao resgate do helenismo grego e suas instituições de educação pederasta feito por autores como Freud, outro braço forte para basear teorias médicas da sexualidade. A ideia era a de que se noutros períodos históricos e sociedades a sexualidade era pensada de maneira diferente da europeia, as avaliações médicas sobre as perversões eram avaliações morais e não “científicas”. Assim, o princípio relativista antropológico (e não de cunho biológico, mas social e cultural) se tornou importante. 113 mulher masculino” e o “homossexual homem feminino” do “homossexual homem afeminado” e a “homossexual mulher masculinizada”. Essa diferença é centrada entre homossexuais de caso psicológico, e homossexuais de caso endocrinológico. Seu trabalho vai ecoar naquele feito por outros para categorizar a transexualidade, sendo ele um dos primeiros que encampam em favor do orgânico, mais do que do terreno psicológico. Claramente, quando a mente não foi feita para caber no corpo, o corpo precisa ser feito para caber, aproximadamente em algum grau, na mente, apesar dos preconceitos daqueles que não sofreram dessas coisas, ainda a sofrer com algo que eles tão prontamente condenam os outros. Nos indivíduos em que a presença de tecido misto ou órgãos mistos é óbvia, é a constituição psicológica que deve ser consultada e não a predominância de qualquer estrutura física específica (Dilon, 1946, p. 53, tradução minha). Na verdade, a aproximação que Freud fez com a psicologia/psicanálise para desbiologizar em algum sentido a homossexualidade, é realizada por Dilon no sentido inverso para dar à endocrinologia o domínio da aplicação da explicação mental dessa diferente forma de “homossexualidade” (ele não usa “homossexualismo”). O autor também estabelece a endocrinologia como ciência primordial para o tipo de homossexual que nomeia para mudança de sexo, em meio a querelas também com psicólogos. Para Dilon, esse outro tipo de homossexual se devia a uma anormalidade glandular, a mesma classificação dada pelo também endocrinologista Harry Benjamin originalmente em um artigo publicado em 1953, quando conceitua “transexualismo” pela primeira vez como totalmente diferente do homossexualismo (Hausman, 1995). Segundo Jay Prosser (1998b), tanto Dilon como Benjamin chegam a se basear no mesmo estudo de laboratório, de autoria de Eugen Steinach, realizado em animais para mudar seus sexos: após serem castrados eram tratados com tecido gonadal de sexo diferente84. O papel da endocrinologia no desenvolvimento da categoria de transexualidade é decisivo, através de seu estabelecimento do isolamento e redistribuição dos hormônios sexuais (Rubin, 2003). Mas, o foco nos hormônios e nas glândulas não era tão novo assim quando Michael Dilon e depois Harry Benjamin trataram de uma diferenciação de categoria (Hausman, 1995). Havelock Ellis e Hirschfeld já haviam argumentado que a “inversão sexual” também era explicada por uma “secreção interna”. Hausman (1995) chega a apontar que foi Hirschfeld que indicou ao amigo Steinach que este fizesse experimentos em gônadas de animais. Essa preocupação da sexologia entre inversão e as glândulas se tornou forte nos anos 1990 nos estudos que procuram explicar uma etiologia transexual a partir da interação entre cérebro de transexuais e hormônios sexuais (Prosser, 1998b). A germinação dessa nova categoria, que se referia a um trânsito de sexo, acredita- 84 Anne Fausto-Sterling (2000) faz uma importante descrição desse trabalho em ratos no laboratório, através do qual atribui a criação do corpo sexuado por biólogos. 114 se largamente que foi feita com um maior foco psicológico por David O. Cauldwell, em 1949, com o uso do termo psychopathia transsexualis, aludindo ao termo psychopathia sexualis empregado por Kfrafft-Ebing para seus graus de inversões. Cauldwell (1949) concebe com o vocábulo o desejo de viver como membro do “sexo ao qual alguém não pertence”, visto como uma patologia ou um desejo psicológico passível de cura, mas de preferência evitável com atitudes preventivas centradas na família. Contudo, Richard Ekins e Dave King (2001) demonstraram que a origem do termo não está no trabalho de Cauldwell ou no de outro médico, Harry Benjamin, mas com Magnus Hirschfeld, em 1923, ao cunhar o termo “seelischer Transsexualismus” (transexualismo psíquico) para se referir uma categoria clínica que seria desenvolvida por Benjamin e apresentada pela primeira vez numa palestra em 195385. A validade de apontar essas “origens” não está numa marcação da história em si em “fatos cronológicos”, ou numa atribuição da paternidade do conceito, mas para que possamos observar o contexto no qual diferentes cientistas estão disputando e cunhando classificações, ao mesmo tempo que permite perceber as trajetórias de categorias. Este não é o resultado da criatividade de um autor isolado, mas um trabalho coletivo difuso. Aquilo que vai deter particular projeção meteórica na comunidade médica, como demonstram diferentes autoras como Berenice Bento (2006) e Joanne Meyerowitz (2002), será o trabalho do alemão Harry Benjamin, quando publica em 1966 seu livro The Transsexual Phenomenon, replicando sua publicação mais de uma década atrás. Esse livro é o coroamento do trabalho de Benjamin, fruto de um longo período dedicado ao tema (King, 1993). Benjamin é, então, a figura principal na institucionalização da categoria transexual através de seu argumento pela “cirurgia de redesignação sexual” e a criação de clínicas especializadas nos Estados Unidos. O médico argumentava de maneira direta sobre uma nova condição médica, agora de maneira mais bem sistematizada e classificada, e com um tratamento claro. Esse procedimento foi defendido como sendo essencial para evitar o suicídio de pacientes que desejavam mudar de sexo, e como o elemento principal para diferenciar os “transexuais verdadeiros”. Ele a vê como uma condição médica que poderia ser curada através de cirurgia86, sem estabelecer uma prevenção. A ideia de transexual aí faz sentido como uma reprodução de uma noção de inversão total em relação a homossexualidade que era vista apenas como inversão (Rubin, 2003). Contudo, essa não foi uma ideia facilmente consolidada no meio biomédico, uma vez que havia uma considerável 85 Benjamin visitou Hirschfeld no período do entreguerras quando conheceu o seu instituto e pacientes (Ekins e King, 2001). 86 A ideia da possibilidade de uma cirurgia para mudar de sexo não foi inventada por Harry Benjamin ou Michael Dilon. Essa era uma demanda que estava presente também na opinião pública estadunidense e europeia. Como mostra Meyerowitz (2002), pacientes procuravam médicos com tais demandas antes e depois do evento midiático que popularizou a cirurgia com a figura da mulher trans Christine Jorgensen, em 1952 por Benjamin. Por outro lado, essa era uma questão crescente desde o século 19, com a ideia de “intervenção cirúrgica em conversão sexual”, que levou pessoas a serem “mudadas” embora não se tenha clareza sobre os detalhes dessas intervenções (Nataf, 1996). Ver Eric Plemons (2017) sobre a centralidade e os tipos de cirurgia elencados no contexto de mudança de sexo estadunidense. 115 quantidade de psicólogos e psiquiatras que entendiam ser a intervenção cirúrgica algo desnecessário e extremo. Postulava-se que a terapia psicológica era o único meio para que o indivíduo se conscientizasse a viver com o “corpo natural”, embora detivesse uma “identidade sexual ou de gênero” conflitante (Bento, 2006). Na Figura 3 abaixo essas teorias psi aparecem de forma sintetizada, conformando uma unidade do entendimento do indivíduo desenvolvido. Essas partes conformam alguém saudável ao corresponder a matriz heterossexual da inteligibilidade entre corpo, sexo e gênero. Figura 3 – O indivíduo psicologizado Fonte: Autor. A concepção pela psicologia, a partir de John Money, de “gênero” é um importante elemento da constituição da transexualidade como categoria médico-psi e como diagnóstico. Money postulou que os seres humanos teriam duas instâncias separadas que se complementavam. Era a percepção subjetiva de pertencer a um sexo biológico e o próprio sexo visto organicamente. A essa percepção chamou de “identidade de gênero” contida no interior do sujeito (Bento, 2006). Aí se separariam dois elementos do sexo, o psíquico e o biológico, instâncias que sempre estiveram presentes na ciência sexual, mas que aqui adquirem contornos diferenciados pela separação do “aprendido” e do natural. A principal diferença entre os autores do entendimento psi não era tão radical. Enquanto Green via que círculos de amigos e outros grupos de contato social formariam a identidade de gênero de uma criança, Money e Stoller atribuíam um “papel” ainda mais forte à família, e aos bons desempenhos de mães e pais, entre suas características heterossexuais de mãe feminina carinhosa e pai masculino e provedor87. Isso corresponde a uma intensa preocupação com o mental e o corporal em harmonia para representar um indivíduo completamente desenvolvido, e heterossexual (Bento, 2006). Esse é um dos princípios fundamentais da cultural estadunidense, 87 Para uma discussão aprofundada das diferentes teorias psicológicas a respeito da identidade de gênero na conformação da ideia de transexual ver Berenice Bento (2006). 116 com sua centralização na psicologização88 dos seres humanos como entidades autônomas, e indivíduos livres na fundação da nação (Plemons, 2017). Diferentes analistas da concepção de transexualismo – sendo eles historiadores ou não – mostram que as teorias podem ser agrupadas em dois grandes grupos: os defensores das terapias psi e os defensores da cirurgia. Anne Bolin (1983) propõe que o foco clínico dado a transexualidade pela medicina, de modo a vê-la como síndrome sujeita a tratamento e observação, pode ser agrupada em duas divisões concernentes às suas preocupações e métodos. Um grupo de teorias que se concentram na ideia de nurture e outro na ideia de natureza. O primeiro na capacidade de a socialização, isto é, a educação – no sentido durkheiminiano –, de explicar a identidade de gênero conflitante com o “sexo biológico”, e o segundo no funcionamento endocrinológico do corpo humano e sua capacidade de mudar o sexo. As duas divisões se concentram ainda, a primeira, em pesquisas de ordem etiológica, e a segunda, enquanto ordem cirúrgica para responder à questão do tratamento. Em todas elas há uma unanimidade, mesmo diante de suas diferenças entre advogar pela cirurgia de mudança de sexo ou apenas pela terapia psicológica: a incerteza quanto à “origem”. Assim, o desenvolvimento das ideias de transexualismo está dentro de um desdobramento da ciência sexual. A unidade psicológica do indivíduo para explicar a mudança de sexo, e a diferença entre identidade de gênero e sexo biológico, se baseia enquanto princípio metodológico e conceitual na importância dada a psicologia individual. Mesmo que a influência cultural ou social seja levantada desde as preocupações com as perversões e as inversões sexuais da ciência sexual europeia de outrora, o elemento reavivado da biologia não pode ser desconsiderado, isto é, o corpo é central mesmo que o foco biomédico na genitália e outros caracteres corporais ganhe a companhia da importância crescente dada a forma como alguém, enquanto homem ou mulher, masculino e feminino, interage para a constituição do que se entende por gênero (Plemons, 2017). Embora essa não seja uma história universal e monolítica, sua formação se dando grandemente a partir dos cenários nacionais europeus e estadunidense, a ciência sexual tem um caráter global na sua própria constituição – não apenas porque as concepções científicas se espraiam mundialmente, mas também pela coprodução paralela de tradições na Ásia, na África e na América Latina (Fuechtner, Haynes e Jones, 2017). Instando-se à questão de como outras tradições nacionais e contextos culturais não apenas recepcionaram essas teorias, mas como produziram suas próprias versões. Quando a transexualidade enquanto categoria médica viaja trasnacionalmente, viaja com ela a incerteza que carrega. No caso do Brasil, os cientistas e médicos estavam produzindo 88 O caráter psi da cultura estadunidense não é a única forma de psicologização no mundo “ocidental”. Na verdade, as ideias de Freud se espalharam mundialmente numa velocidade impressionante desde suas primeiras publicações. Para uma análise acerca da recepção e transformação brasileira da psicanálise, ver Jane Russo (2002). A particularidade estadunidense estaria muito mais nesse elemento associado a projeção cultural de dominação mundial que se une a ideologia capitalista de pretenso discurso libertário naquele país. 117 assistências e pesquisas paralelamente àquelas realizadas no cenário estadunidense, já no final da década de 1960. 2.4. O caso brasileiro: a “heterossexualidade de alma” O campo brasileiro da ciência sexual89 também é atravessado por disputas em torno de sua autodenominação, objetos de pesquisa, disciplinas, ideias científicas, qualificação profissional e mercado farmacêutico. E, inclusive, de sua narrativa historiográfica. Ele se constitui, desde sempre, dividido entre entender a realidade nacional e um pertencimento a uma comunidade global de atividade profissional e científica. A medicina é o grande ator responsável por esse contexto na constituição de objetos de intervenção, tendo a psicologia (e a psicanálise) atividade paralela e, às vezes, contestada. Assim como noutros contextos nacionais, segundo Jane Russo et al. (2009), o termo sexologia para denominar o campo sofreu forte contestação e estigma na medicina brasileira. Sua ligação com um ativismo por educação e reforma sexual em grande medida associado a uma dimensão menos objetiva e “intuitiva” de saber sobre o corpo humano atraía pouco reconhecimento do establishment biomédico. Sérgio Carrara e Jane Russo (2002) demonstram que apesar de ter havido no Brasil entre o final do século XIX e a década de 1920 uma crescente articulação de discursos sobre sexo, apenas a partir dos anos 1930 é possível falar na atuação de “sexologistas”, e mesmo aí de modo modesto e marginal. Essa foi a primeira fase ou “onda” da área no país, com as figuras sul-sudestinas de José de Albuquerque e Hernani de Irajá. Entre outros fatores, o baixo prestígio do termo sexologia fez eclodir outros termos como “saúde sexual”, “sexualidade humana” e “medicina sexual” para organizar o campo. Outros médicos trataram de “questões” ou “problemas sexuais” sob a rubrica de outras áreas vistas como mais respeitáveis, como é o caso da medicina-legal, neurologia e psiquiatria. Isso se deve também ao monopólio da urologia e ginecologia-obstetrícia na certificação de sexólogos no Brasil presente até o momento, mas em vias de reformulação90. A “segunda sexologia” é vista por diferentes autores como aquela que se constituiu na década de 1970, intimamente ligada à valorização de uma “cultura psicanalítica” pelas camadas médias brasileiras (Ropa e Duarte, 1985; Duarte, 1986, 2017). Russo et al. (2009) demonstram isso ao descrever que a sexologia encontrou particular lugar em organizações, institutos e clínicas ginecológicas, de ampla aliança com psicólogos. Os autores sugerem que uma das condições desse 89 Para outro panorama na região latino-americana ver Mauro Brigeiro e Angela Facundo (2013). Os autores oferecem um panorama a respeito da Colômbia. Na sua análise do processo de institucionalização da sexologia como campo profissional, eles demonstram como os novos sexólogos enfrentaram um conservadorismo moral, ajudando a forjar um novo projeto de modernização num cenário de grande heterogeneidade de especialistas. Certo peso explicativo sobre o prazer e a funcionalidade do orgasmo também se repete nessa então emergente instituição da sexualidade, embora mais fortemente na década de 1970. 90 Durante a pesquisa de campo, psiquiatras e endocrinologistas não se viam como sexólogos, não necessariamente pela diferenciação entre ideias científicas, mas pelo monopólio da certificação. Irei me deter sobre o campo atual no capítulo 6. 118 fortalecimento entre esses agentes deve-se a ligação histórica da ginecologia com problemas entendidos como físico-morais, por lidarem com a saúde das mulheres, às quais foram vinculados, no final do século XIX, os fenômenos patológicos orgânicos de influência emocional, “nervosa” (cf. Rohden, 2001; Duarte, 1986). A década seguinte, 1980, é palco de um conflito entre a psicologia e a medicina para o trato legítimo de problemas sexuais (cf. Russo et al., 2009)91. A terceira sexologia brasileira, e que parece vigorar até então, seria aquela na qual a urologia e a figura do homem heterossexual centralizam, principalmente a partir da invenção da pílula do Viagra (Conrad, 2007), os problemas de saúde sob a rubrica de uma “medicina sexual” em torno das disfunções sexuais (Russo et. al., 2009; Rohden, 2009)92. Um objeto menos afoito nas historiografias brasileiras sobre a ciência sexual é o estudo e intervenção clínico-cirúrgica do transexualismo como condição diferente do homossexualismo, principalmente nas décadas de 1960 e 1970 quando se projeta como objeto médico sob o manto de um problema de saúde curável e não revertível. Esse campo não se enquadra facilmente num dos lados do enfoque geral da sexologia, foco no uso de fármacos ou foco na psicologia, embora tenha sido beneficiada das duas influências – nem mesmo os médicos de então se denominavam “sexólogos”. Essas primeiras movimentações em terras brasileiras se deram através da biomedicina realizada pela Escola Paulista de Medicina da Universidade de São Paulo93, a partir da qual se dará lugar a uma prolífica produção/atuação envolvendo psicólogos, psiquiatras, endocrinologistas, cirurgiões plásticos, geneticistas/biólogos e ginecologistas com forte atuação na “questão transexual”. Esse primeiro fôlego institucional se dá aos auspícios de uma pretendida, mas contestada autoridade médica, enormemente balizada tanto por um interesse científico, como pela procura de um público desejoso da mudança de sexo e pela presença crescente de “pacientes hermafroditas”, como parece entrever as descrições de médicos ligados a Escola Paulista. As ciências biomédicas 91 Através da criação de associações e organizações profissionais médicas, e posteriormente em torno da sexologia, tanto psicólogos como médicos tentaram manter o monopólio da atividade científica de estudo e terapêutica em torno de problemas envolvendo o sexo, a sexualidade. Ver Russo et al. (2009) para uma análise aprofundada desse contexto. Por deter iniciativa em torno de uma subárea chamada de “sexologia”, a ginecologia acabou monopolizando o título, mas considera-se que atualmente a certificação é irrelevante para a atividade profissional, uma vez que o título de médico já dá uma considerável estabilidade profissional e legitimidade. Esse foi outro fator para não ter havido uma grande disputa pelo título de sexólogo no Brasil. 92 Como argumentarei melhor no capítulo 6, a intensidade com que a ciência sexual brasileira (termo amplo para todas as preocupações envolvendo o corpo sexuado para a dimensão terapêutica de qualquer ordem) tem se debruçado sobre a transexualidade/transição de gênero tem cada vez mais dado espaço também a outro tipo de medicina, uma medicina trans e não simplesmente sexual. A medicina trans se preocupa não apenas com a satisfação do desejo, o foco muitas vezes – e percebo, crescentemente – é com a fisicalidade e a molecularidade do corpo para sua “sexuação” (ou seja, o corpo sexuado). 93 Esse cenário particular de São Paulo parece estar muito fortemente ligado ao desenvolvimento industrial da capital paulista, na qual se assistiu uma forte articulação biomédica, entre outras profissões, desde a década de 1930. Já nessa época inicial de institucionalização de diferentes organizações, universidades, associações profissionais havia um forte interesse médico-legal por indivíduos considerados perigosos, enquadrando-se os homossexuais homens (Green e Trindade, 2005) e os sujeitos tidos como “mulher-macho” ou homossexuais femininos. Desde a década de 1930 é possível encontrar nos “Arquivos da Sociedade de Medicina Legal e Criminologia de São Paulo” descrições médico-legais a respeito de “invertidas”, pessoas descritas como homossexuais femininas que apresentavam querer viver como homem. Ver Luis Ferla (2005) sobre a formação da Medicina Legal paulista e seu viés positivista-eugênico. 119 brasileiras se dedicam, portanto, à discussão do transexualismo quase no mesmo período em que grandes centros europeus e estadunidenses, estando altamente familiarizada com publicações científicas em línguas inglesa correntes à época – mostrando a posição do Brasil na circulação transnacional de conhecimento médico. Um estudo publicado, em 1976, por Luiza Campos Olazábal, como dissertação de mestrado em Biologia na Universidade de São Paulo, propõe observar a “variação cromossômica e dermopapilar no transexualismo”. Sua pesquisa, de cunho comparativo com o homossexualismo, havia sido feita desde 1968 com 31 casos clínicos no Laboratório de Biologia Genética. Em parceria com seu orientador, Pedro H. Saldanha, publicam no Brasil e no exterior uma série de artigos científicos em periódicos e eventos acadêmicos de 1971 a 1978, que variam entre a isolada genética e sua relação com a psicologia. Eles chegam a integrar, ainda, desde 1969, o Laboratório de Genética Médica da Escola Paulista de Medicina, compondo uma equipe multidisciplinar. A grande novidade sugerida por Saldanha e Olazábal (1976) durante o “Seminário sobre ‘Transexualismo’” organizado pelo Departamento de Urologia da Universidade de São Paulo, em março de 1975, estava em propor a análise citogenética de pacientes transexuais como auxílio no diagnóstico. Os autores apresentavam seus resultados com ressalvas, mas indicavam que entender a estrutura celular do genoma e a formação dos cromossomos dos pacientes seria uma importante ferramenta diagnóstica. Eles argumentam: Como corolário da hipótese neuro-endócrina, postulou-se, na presente investigação, que o mosaicismo94 quanto aos cromossomos sexuais, “detectável” ou críptico, das estruturas hipotalâmicas que interessam a função da identidade sexual mente-soma (“gender role identity”) poderia explicar a gênese do conflito: homossexualidade de corpo versus heterossexualidade de alma (Saldanha e Olazábal, 1976, p. 253). Num período no qual a homossexualidade também era considerada um problema de saúde mental pela medicina, a tentativa recorrente se faz na separação dela e do transexualismo. A heterossexualidade aí é natural, e a mente ou a alma abriga-a no último caso. Eles se baseiam grandemente nas hipóteses difundidas por médicos como Harry Benjamin (1966) que, ainda sem nenhum respaldo de pesquisa decisivo por ele mesmo reconhecido (Bolin, 1983), entendia que havia alguma formação ou situação no hipotálamo que poderia explicar o que define como transexualismo. A grande possibilidade que a constatação de mosaicismo cromossômico apresentada por Olazábal e Saldanha oferece é a de retirar da intersexualidade uma origem para o 94 Em biologia, mosaicismo se refere a uma mutação no número de cromossomos das células do corpo no momento da divisão celular após a fecundação. Ele pode ser germinativo, quando afeta apenas o espermatozoide e o óvulo, ou somático quando afeta outras células. Disso pode resultar organicamente tanto as chamadas “síndromes sexuais”, bem como doenças como câncer, a depender da alteração genômica ou celular. Ver Biesecker e Spinner (2013) para uma revisão atual das classes moleculares e clínicas de mosaicismo e suas formas de detecção e informação biológica. 120 transexualismo. A grande ideia dos autores parece ser resultado do que Paul Rabinow (1999; 2007) descreveu como sonho biomédico presente no início do mapeamento do genoma humano – a de que após ter o mapa completo se poderia não apenas predizer doenças, mas alterar o ser humano. A existência de casos de alteração numérica cromossômica, como as chamadas síndromes de Klinefelter, Turner e a trissomia do Cromossomo 21 (Síndrome de Down), trazia (e traz) fortes esperanças científicas para que o transexualismo pudesse ser enquadrado dentro desse panteão biológico visto como inconteste95. Essa questão, contudo, é algo contemporâneo e não restrita ao passado histórico da concepção médica da transexualidade. Na verdade, houve e há uma grande disputa científica se o transexualismo deveria ser entendido como uma condição intersexo – inclusive alguns grupos estadunidenses de ativismo trans já veicularam essa ideia. P. L. Chau e Jonathan Herring (2002) chegaram a apontar que essa querela de hipótese não tem aceitabilidade geral: O argumento para classificar o transexualismo como um tipo de condição intersexual é a evidência de que a identidade sexual de um indivíduo é fixada no cérebro durante o seu nascimento. Em outras palavras, ao nascer o indivíduo não tem cérebro e genitálias congruentes, e isso é uma condição intersexual tanto quando uma pessoa não tem gônadas e genitais congruentes (Chau e Herring, 2002, p. 333, tradução minha). Esse é um forte viés biológico seguido pelo trabalho da equipe de São Paulo, muito embora não de modo isolado, uma vez que os argumentos sobre o transexualismo da grande figura desse contexto, o médico cirurgião plástico Roberto Farina (1982 [1979]), é em muito orientado pelas teorias psicológicas estadunidenses de Green, Stoller e Money. O que parece ser algo irreconciliável, o aspecto biológico e o aspecto psicológico, se une na forma de uma psicobiologia no Brasil. Em nenhum momento o cirurgião plástico defende “reversão” para curar, mas a cirurgia e, antes disso, a terapia e acompanhamento atento. Junto das análises psicológicas há uma análise genética. Desde o final dos anos 1960 até metade dos anos 1970, o trabalho paulista nesse contexto aconteceu sem grandes perturbações. O Hospital das Clínicas de São Paulo recebia, entre o final dos anos 1950 e começo dos anos 1960, pacientes “espontâneos” ou orientados por outros profissionais procurando por mudança de sexo, descritos como extremamente em conflito consigo mesmos. Em 13 de novembro de 1975, o jornal O Estado de S. Paulo tornava o trabalho da equipe público através da indicação das cirurgias de Roberto Farina, catedrático de cirurgia da Universidade de São Paulo. O Estadão cobria o evento científico internacional de urologia, como já 95 As controvérsias científicas continuam. Tanto a pesquisa dos autores está cheia de incertezas quanto a origem desse mosaicismo hipotético e no que tange a amostragem de controle, quanto estão as tentativas mais recentes de realizá-la como a feita por María Rumbo Naya (2015, p. 12, tradução minha) na Corunha, Espanha. A partir de quase 800 pessoas transexuais que compuseram um estudo clínico, ela mostrou “não haver nenhuma alteração cariotípica específica da transexualidade”. Mesmo não havendo consenso científico a hipótese endócrina entronizada por Benjamin continua sendo veiculada; pontuam-se ressalvas, mas fazem-se afirmações. Interessa, portanto, entender a produção científica desses conhecimentos e as ligações que detêm com contextos socioculturais. 121 mencionei. Em uma pequena matéria de canto de página sobre as “novas atividades científicas” na capital paulista. Era a primeira vez que o tema ganhava a opinião pública brasileira (Figura 4). Figura 4 - Reportagem “Mudança de sexo, pioneirismo na AL” n’O Estado de S. Paulo Fonte: O Estado de São Paulo (1975). Pode-se ler o seguinte: Cinquenta brasileiros, inclusive dois indígenas, estão se preparando para mudar de sexo, por meio de uma cirurgia, já executada com êxito em outros nove pacientes, transexuais masculinos. O autor das operações, cirurgião plástico Roberto Farina, apresentou ontem, no encerramento do XV Congresso Brasileiro de Urologia, um filme de sua primeira cirurgia de reversão sexual, realizada em 1971 (O Estado de S. Paulo, 1975, p. 18). Após apresentar uma pequena biografia profissional de Farina, a reportagem continua: Até agora [Farina] só realizou reversões do sexo masculino para o feminino. Mas, entre os 50 pacientes que há um ano ou mais estão fazendo os testes psicológicos, psiquiátricos, genéticos e hormonais – preparatórios à operação, há duas mulheres transexuais96, que pretendem o reajustamento cirúrgico do sexo, ou seja, adaptar seus corpos ao sexo psicológico masculino que possuem (O Estado de S. Paulo, 1975, p. 18). Essa divulgação não apenas propiciou regozijo científico, como o expresso pelo colega de Farina e chefe de Departamento de Urologia da USP, Afiz Sadi, quando este afirmara que a ciência 96 Um desses indivíduos se trata do ativista João W. Nery que publicaria anos mais tarde sua autobiografia, como já mencionei. 122 brasileira não estava atrás dos grandes centros internacionais “teoricamente mais desenvolvidos”. Apenas três dias após a reportagem, sob petição do Procurador da Justiça do Ministério Público de São Paulo, Luiz de Mello Kujawski (1975), um inquérito policial é instaurado para “reprimir legalmente” o “ataque” contra os “bens físicos dos indivíduos” que fora proferido pelo cirurgião plástico, mas que estão “protegidos pelo Estado”. Kujawski defendeu que esses “bens”, isto é, as partes do corpo, são “inalienáveis”, “irrenunciáveis” e “indisponíveis”. Indivíduo nenhum poderia dispor-lhes à mudança, ou seja, mesmo tendo havido consentimento dos pacientes, os médicos seriam criminosos. Em seu argumento, o procurador faz uso do art. 129 do Código Penal de 1940, que enquadra como sujeito à pena de reclusão aquele que propiciar perda ou mutilação de membro ou função corporal em outrem. O processo criminal que se segue tem uma importância histórica significativa porque colocou a “questão transexual” numa posição liminar no país, e mobilizou a medicina paulista – e foi ela mesma uma das razões para o país demorar décadas ainda para começar novamente a pensar institucionalmente a saúde trans. E com sua ajuda, os próprios advogados produziram o trabalho “A terapêutica cirúrgica do intersexual perante a justiça criminal: um caso de transexualismo primário ou essencial” (Leite Jr., 2008). A isso se seguiu um verdadeiro dossiê: mais de 30 cartas foram enviadas da Europa e dos Estados Unidos por médicos e psicólogos renomados em defesa da cientificidade que baseou os procedimentos realizados por Farina (inclusive John Money), e relatórios médico-legais foram escritos por colegas médicos com o mesmo intuito. O inquérito se baseava fortemente no caso de Waldirene Nogueira, mulher trans que realizou a cirurgia neovaginal, e foi encontrada ocasionalmente como substância para o processo porque havia requerido anos antes mudança de nome e gênero no assento civil – Farina recusara-se a dar dados pessoais de pacientes aos procuradores, o que faria o processo não ter respaldo legal por não ter a prova para acusar (Rossi, 2018). Em seu Parecer Médico-Legal apresentado em 1977, o médico Hilário Veiga de Carvalho, catedrático de Medicina Legal da Universidade de São Paulo, recobre todo o histórico para examinar desde o acesso até a cirurgia de Waldirene. Como foi ela quem procurou o serviço de saúde, e como uma equipe composta de psiquiatra, psicóloga, geneticista, urologista, um a um, examinou e aprovou o caráter transexual da paciente. Veiga de Carvalho resume, apontando como a equipe de Farina configurou um padrão a ser seguido: O diagnóstico deve ser feito de maneira atilada e pluridimensional. Como exemplo, sirva, paradigmaticamente, o diagnóstico que foi realizado no caso ora em exame, de Valdir Nogueira: a anamnese cuidadosa, exame somático minucioso, averiguações genéticas e hormonais, análise psicológica e indagação psiquiátrica demorada e aprofundada, avaliação sociológica do examinando e de suas condições de vida, de comportamento e de ajustamento (Veiga de Carvalho, 1982a [1977], p. 257). 123 Nesse parecer Carvalho se empenha em demonstrar que a síndrome do transexualismo é universalmente um fato científico irrefutável e reconhecido. Cita tanto médicos brasileiros como profissionais de universidades estadunidenses e europeias. Para defender a cirurgia realizada por Farina, Carvalho interpõe: Necessária era a intervenção, pelo consenso unânime dos clínicos que estudaram o caso em tela. Atenderam eles, certamente, ao conceito atual de saúde, que não cogita da caracterização de doenças, estas ou aquelas, mas, sim, do “bem-estar físico, psíquico e social” da paciente em exame. Este conceito moderno da OMS rege a conduta hodierna da Medicina, em face do que se entende como doença. E, nesse conceito corretamente formulado, agiram adequadamente os clínicos que chamaram o Prof. Dr. Roberto Farina para corrigir o mal que afetava Valdir Nogueira. Aberra do consuetudinário hospitalar o ocorrido com Valdir? Nem por isso deverá o inusitado deixar de ser atendido com ciência, consciência e a indispensável hombridade – que também compete ao clínico vinculado ao atendimento do seu cliente. O caso de Valdir Nogueira é reconhecido pela nosografia médica internacional, inclusivamente da nossa Associação Paulista de Medicina. E deveria ser atendido, como o foi, com diagnóstico rigorosamente acertado e terapêutica indicada por consenso unanime de um ilustre grupo de excelentes especialistas nos vários setores atinentes ao caso (Veiga de Carvalho, 1982a, p. 259). O médico conclui pela irrefutabilidade biológica: “a sexualidade humana é muito mais cerebral do que genital”, para argumentar que há, sim, cientificamente, “uma síndrome denominada transexualismo”. O alvo eram os argumentos dos procuradores da justiça que colocavam Waldirene como “um caso de homossexualismo”, e o resultado cirúrgico da mudança de sexo uma ode à superficialidade e à prostituição, que colocava em perigo homens honestos. Contra isso, Carvalho achava que mostrava que após um longo e multidisciplinar exame cuidadoso, provava-se, com respaldo bioquímico, o sexo psicológico feminino de Waldirene. Contudo, Farina fora condenado pelo juiz em primeira instância e um novo processo judicial foi iniciado com a mobilização reforçada. O advogado Heleno Cláudio Fragoso (1979), conhecido na época por defender muitos casos de pessoas condenadas e perseguidas pelos órgãos da Ditadura, é contratado para a defesa. Em seu parecer, depois publicado na Revista de Direito Penal, Fragoso replica a extensa bibliografia já publicada no país e no exterior e apelava para a qualidade científica da razão da cirurgia. Enquanto problemática jurídica Heleno recorria ao conceito de “consentimento” para eximir qualquer condenação penal diante de intervenções corporais presente na legislação que ele cita, como a argentina, alemã e a estadunidense. Assim, a “superioridade de propósito”, segundo a qual o que mais importa é ajudar o sofrimento alheio ganha um relevo considerável. Olhando para todo o material de defensa para positivar a cirurgia – no acórdão do julgamento da segunda instância (São Paulo, 1979) e nos pareceres médico-legais (Carvalho, 1982a [1977], 1982b [1978]) –, saltou aos meus olhos a comparação da cirurgia de “reversão sexual” como qualquer outro procedimento reparador do corpo humano, como um membro gangrenado que precisa ser amputado. Algo que tem ganhado relevo atualmente. 124 Em 1979, Farina é então absolvido pela Comarca de São Paulo, mas isso o colocou no imaginário médico brasileiro de maneira também negativa. Piadas sobre suas cirurgias eram recorrentes durante o processo, não apenas em jornais paulistas, como entre profissionais de saúde. O processo judicial também deixou as publicações do cirurgião em quase esquecimento, as pesquisas de sua equipe não viraram currículo das escolas de medicina, muito embora Farina e demais profissionais tenham realizado intervenções e estudos originais – Farina detalha em seu livro que praticava em cadáveres as técnicas de cirurgia de mudança de sexo, não tendo ido aprendê- las em centros internacionais. Nesse sentido, essa prática clínica e cirúrgica, junto com o caso judicial de Farina, continuou grandemente à margem na medicina brasileira, embora tenha atuado para consolidar o tema no país. Como consequência, os primeiros projetos de lei foram apresentados no Congresso Nacional brasileiro tendo a transexualidade como tema. Em 1979, o Deputado Federal José de Castro Coimbra (PTB-SP) apresentava o Projeto de Lei 1.909 visando mudar o artigo do Código Penal que havia sido usado contra Farina. Os argumentos de Coimbra se baseiam inteiramente na cientificidade do diagnóstico e no sofrimento desencadeado com o suicídio daqueles que não obteriam a cirurgia de mudança de sexo. Para isso, estabelece que transexualismo não seria o mesmo que homossexualismo, havendo no primeiro uma rejeição total do sexo. A ideia era garantir segurança jurídica aos cirurgiões que viessem a performar esse tipo de procedimento, mas ressalvava que deveria haver uma unanimidade diagnóstica entre todos os membros da equipe interdisciplinar que atendesse os pacientes97. Além disso, enaltece que a lei não deve subjugar o progresso científico, uma vez que a medicina não seria a mesma desde a década de 1940 quando o Código Civil em questão fora sancionado. Embora tenha sido aprovado em 1981, e sua tramitação não tivesse detido empecilhos nas comissões da Câmara e no próprio Senado, o projeto é vetado integralmente pelo ex-Presidente da República João Figueiredo em junho de 1984. O argumento de Figueiredo se baseia inteiramente na opinião dos médicos à frente do Ministério da Saúde, que viam com maus olhos a solução cirúrgica como terapêutica. O ex- presidente, o último do Regime Militar iniciado em 1964, demonstra quão marginais e conflituosas eram as opiniões médicas brasileiras sobre transexualidade não apenas na década de 1970, quando Farina fora indiciado, mas em torno do período de redemocratização. [...] Observa o Ministério da Saúde que os trabalhos científicos sobre transexualismo, quando não tendenciosos, são polêmicos e limitam-se a registrar casos isolados sem tecer quaisquer considerações de caráter teórico. [...]. Acrescenta, ainda, que o procedimento cirúrgico é radical e irreversível, constituindo método simplista que não resolve a 97 O próprio Roberto Farina (1995 [1981]) publicaria um artigo na Folha de S. Paulo chamando a aprovação do projeto como a defesa da “cidadania do transexual”. O cirurgião plástico se concentrava no artigo em defender a dimensão bioquímica para encontrar a raiz do transexualismo desde a formação do embrião. Ganham espaço na explicação gônadas, hipotálamo, óvulos, cromossomos e receptores cerebrais para gerar a imagem somática de um indivíduo. 125 patologia do transexual por não eliminar o conflito subjacente que lhe dá causa (Brasil, 1984, p. 1-2). Assim, se propõe que cada caso seja tratado individualmente: “a legitimidade da conduta médica seja examinada caso a caso e levada à apreciação da Justiça, visando a prevenir a generalização de prática que deve ser adotada com parcimônia” (Brasil, 1984, p. 2). Apenas em 1985 outros projetos98 recomeçam a ser submetidos sobre o tema. Por outro lado, desde o começo dessa década, cada vez mais próxima do fim da Ditadura Militar, aumentam as publicações sobre transexualidade que não têm continuidade nas décadas seguintes. Em 1982, Farina publica seu livro Transexualismo: do homem à mulher normal através dos estados de intersexualidade e das parafilias, no qual além de fazer um grande apanhado de teorias médicas e psi sobre o tema, defende seu trabalho e a existência de sofrimento dos “transexuais primários”, ou “de verdade”. Como mostrou Jorge Leite Jr. (2008), Farina liga o transexual secundário, ou não verdadeiro, à perversidade e à homossexualidade; e, apesar de tentar detalhar diferenças entre eles, não escapa de uma confusão categórica ao misturar elementos que havia separado. No final do seu trabalho, chega inclusive a se utilizar da eugenia: “achamos que do ponto de vista eugênico não haveria inconveniente se um número qualquer de homens psicossexualmente disfóricos fossem castrados” (Farina, 1982, p. 196)99. Outros médicos, também do círculo de Farina (Figura 5) publicam livros sobre o assunto no mesmo período, como é o caso do próprio Hilário Veiga de Carvalho e seu Transexualismo: diagnóstico - conduta médica a ser adotada, publicado em 1981100, e de Antônio Chaves com Castração, Esterilização, Mudança de Sexo, em 1980101, ambos pela editora Revista dos Tribunais, em torno da qual uma gama de reflexões jurídicas102 sobre a mudança de sexo ganhou forma acerca do Direito brasileiro (Gontijo, 2002)103. 98 Pietra Munin (2018), em sua revisão temática de projetos de lei apresentados no Congresso Nacional, os dividiu em três grupos. O primeiro se refere aos projetos que se propuseram a garantir segurança legal aos médicos cirurgiões e/ou a permitir que o nome do paciente pudesse ser alterado após as cirurgias, os quais se baseavam em argumentos científicos da transexualidade como uma doença. O segundo grupo, dois projetos a partir de 2005, são apresentados por políticos religiosos que visavam proibir a mudança civil mesmo após cirurgia, sem argumentos científicos. O terceiro grupo, em nada homogêneo, não se baseia em argumentos medicalizantes ou religiosos, mas na prerrogativa dos direitos humanos para permitir a mudança de gênero e nome no registro civil de transexuais. Cf. Munin (2018) para uma análise detalhada de cada projeto de lei e suas articulações políticas. 99 Farina, portanto, não representa uma digressão da orientação eugênica da medicina paulista, mas uma continuação. 100 Na biografia de Carvalho disponível na Academia de Medicina de São Paulo, esse livro não se encontra entre as mais prestigiosas obras publicadas pelo médico, que ocupava a cadeira n. 122. Isso parece indicar a perene marginalidade do tema na medicina brasileira. É estranho que Farina não se encontra entre seus titulares, já que ele era catedrático de cirurgia plástica da USP com uma extensa produção, e muito elogiado por seus pares. Não é claro a razão disso. 101 Diferente do contexto paulista, médicos cariocas foram geralmente contra as cirurgias. Na dissertação de mestrado do psiquiatra Pedro Jorge Daguer, publicada em 1977, o autor descreve que tinha atendimentos regulares de pacientes transexuais desde a virada da década anterior numa clínica particular e no Ambulatório de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro, citando ainda professores que trabalhavam no assunto. No final de seu texto há a defesa apenas da terapia psicológica e psiquiátrica. É interessante ainda que o psiquiatra mobilize uma extensa literatura biomédica aliada a citação de Ruth Benedict e Margaret Mead para mostrar que gênero é uma construção social, ao contrário do sexo, o que explicaria a existência de transexuais. 102 Ver Elizabeth Zambrano (2003) para observar os debates jurídicos dos anos 1990 em torno da transexualidade no Brasil. 103 Curiosamente, a editora não registra nenhum livro com a temática da transexualidade em seu catálogo atual ou histórico. 126 Figura 5 – Parte da reportagem sobre Farina no Gender Networker (1988) Fonte: Gender Networker Archive.104 Nessa mesma década, a vida da modelo Roberta Close105, noticiada como transexual, ganhou intensamente o engajamento da mídia brasileira. Ela recebeu um incrível fascínio televisivo e impresso dos jornais e programas no país. Concedendo entrevistas em diferentes formatos, posando como uma modelo internacional de sucesso, Close se fixou no imaginário brasileiro como “a mulher mais bonita do Brasil é homem”, frase anunciada por um jornalista da época (Bento, 2008). Parece que a repercussão midiática do trabalho da equipe de São Paulo, comparada ao da modelo, tem muito a ver com o período de Ditadura Militar, no qual o país estava imergido nos anos 1970. Isso diferenciou a entrada dos dois episódios na cultura de massas, de modo que ambos e suas repercussões representam as diferentes feições/momentos da sociedade brasileira. A própria figura de Roberta Close, tendo realizado a cirurgia fora do país, já se estabelecia após os primeiros trabalhos da medicina nacional106. Apesar do diagnóstico rígido, o “transexual verdadeiro” em São Paulo não era um criminoso, era alguém que sofria sem ter culpa, como Waldirene como moça 104 Recorte de parte digitalizada de documento datilografado. Gender Networker Archive acessado a partir do sistema de bibliotecas da Universidade do Arizona. O periódico era voltado para profissionais da saúde trans e nessa edição faziam uma homenagem ao pioneirismo de Farina indicando principalmente que ele fora perseguido no Brasil e sua atuação cirúrgica. 105 Na sua biografia, Roberta Close se apresenta como intersexual, argumentando que desde que nasceu foi identificada dessa maneira pelos médicos, e que sempre foi uma mulher em corpo “hermafrodita”. O médico havia informado a sua mãe que seus testículos, não descidos, iriam se normalizar com o crescimento, mas nunca se realizou; a figura cada vez mais feminina destoante de Roberta aumentou os conflitos com seu pai, tendo saído de casa muito jovem (Rito, 1998; ver Bento (2008). 106 A primeira transexual brasileira que se tem notícia a realizar a cirurgia de redesignação sexual, contudo, não foi nem Waldirene (a primeira no país em 1971), nem Roberta Close, mas Jacqueline Galliarci. Sua cirurgia foi feita no Marrocos, em 1969 (Munin, 2018). A grande repercussão de Close, por outro lado, em muito se deve ao seu trabalho de modelo e circulação internacional. 127 honesta o personificou; em contrapartida, o transexual secundário, não-real, era um criminoso. Assim, a figura do transexual como paciente de uma condição rara bio-psicológica foi a primeira forma que a transexualidade ganhou institucionalmente no país. 2.5. A explicação da raridade clínica O cenário da medicina trans brasileira se concentrou grandemente sobre as mulheres transexuais a exemplo do contexto internacional, mas não deixou de fazer separações entre elas e o que hoje se chama de homens trans. Sempre se estabelecia, principalmente a partir de dados estatísticos estrangeiros, que mesmo sendo o transexualismo raro em geral, os segundos eram ainda mais raros que as primeiras. Isso estava presente no trabalho de Olazábal e Saldanha, como em outro artigo de revisão mais recente publicado pela médica Amanda Athayde (2001), ela aponta as taxas de prevalência que se replica no país a partir da medicina euro-estadunidense: [O transexualismo] não é uma condição comum, mas sua prevalência sofre grande variação, como de 1 em 50.000 para 1 em 100.000 pessoas, podendo, os estudos epidemiológicos que reportam uma freqüência maior, serem influenciados por erro de diagnóstico diferencial. Os dados dos estudos mais antigos apontam, para o transexualismo no adulto, 1 em 37.000 homens e 1 em 107.000 mulheres e, atualmente, o mais recente, da Holanda, 1 em 11.900 homens e 1 em 30.400 mulheres (Athayde, 2001, p. 409). Isso parece indicar ainda a falta de legitimidade desse “outro lado” da transexualidade, a masculina. O primeiro livro médico dedicado a caracterizar a especificidade do que se chamava de “transexualismo feminino” ou “transexualismo em mulheres”, escrito pelo psiquiatra estadunidense Leslie Lothstein (1983), já procurava argumentar que “as mulheres” teriam as mesmas condições de apresentar “transexualismo”, mas que também deteriam diferenças importantes. Ele chamava a atenção dos médicos para se interessarem por essa área estudo, relegada, como defendeu, por causa de um preconceito contra mulheres. Como já vimos, havia um debate caótico e cheio de discordâncias desde a década de 1950 sobre a transexualidade. A questão das “mulheres transexuais” foi mais uma querela nessas discussões. Lothstein questiona as taxas de prevalência comumente apresentadas até então para corroborar a ideia de que as “mulheres transexuais” seriam mais raras; para ele, a diferença entre os dois grupos respondia às condições de acesso e não a uma raridade real: Como devemos avaliar os dados de incidência, prevalência e taxa sexual sobre o transexualismo feminino? Não apenas os pesquisadores dos diferentes países discordam, mas também há discordância entre os pesquisadores que trabalham juntos na mesma clínica. Algumas das confusões e divergências podem se originar do fato de que as clínicas de gênero tendem a ter suas próprias identidades únicas (dependendo muitas vezes de sua existência quanto à disponibilidade de um cirurgião). Richard Green et al. (1966) também documentaram o fato de que transexuais são vistos negativamente pela 128 profissão médica, e muitas mulheres transexuais podem evitar programas de gênero respeitáveis em hospitais por medo de serem estigmatizadas (Lothstein, 1983, p. 310, tradução minha). Assim como Lothstein, outros médicos passaram a acusar colegas de dificultar ou desencorajar o acesso às clínicas. A diferença apresentada por essas taxas, segundo o psiquiatra, estava atribuída a esses profissionais serem homens e por terem proposto às “mulheres” a viver sem a transição, dado ao pouco desenvolvimento de técnicas cirúrgicas. Lothstein (1983, p. 10, tradução minha) está preocupado em estabelecer uma etiologia específica. Ao elencar uma série de mitos a respeito, propõe que o “transexualismo feminino” não se trata de uma “desordem sexual”, mas de uma “desordem de gênero”: “é primeiramente uma desordem no sistema do Eu, consequência de um mal desenvolvimento na primeira infância, a distúrbios nas funções do ego, e decorrente principalmente da personalidade borderline107 e distúrbios narcísicos”. Ou seja, até mesmo o discurso do raro não era um consenso, embora tenha tido um forte impacto nas explicações sobre a transexualidade. O uso brasileiro dessas estatísticas de populações atendidas em serviços de saúde levantadas por outros países, de modo a se gerar uma taxa de uma condição, é o resultado da ideia da universalidade do objeto científico que não conhece limites culturais. É um indicador do lugar ocupado pelos praticantes no país na comunidade internacional da medicina. Segue-se que a ciência médica explica e trata os problemas dos seres humanos em qualquer lugar em que eles estejam, sua biologia é universal, assim como o que a afetaria organicamente (Lock e Nguyen, 2010). No país, esse caráter de raridade para medir ambas as experiências se deve em sua amplificação com a possibilidade que a figura da travesti apresenta para a mudança de gênero, mesmo que esta tenha sido uma categoria impura ao ser associada a dinamismos de ridicularização, ao crime, ou até como extremismo da homossexualidade. Travesti existia como uma figura alternativa à ideia de mulher trans. Já para os homens trans não haveria essa figura popular de trânsito de gênero tão impregnada no pensamento coletivo. Athayde (2001, 405) diz que “em relação às mulheres transexuais existem algumas diferenças, como, por exemplo: não existem mulheres travestis. Ou são ou não são transexuais” – quando fala mulher transexual a médica se remete à contemporânea figura de homens trans. Não há meio termo, ou se é mulher ou se é homem, não há trânsito algum. Isso pode ser visto como os lugares que a figura de travesti ocupou ou ocupa na imaginação cultural brasileira. 107 Atualmente chamado também de “transtorno de personalidade limítrofe”, o transtorno de borderline possui na medicina definições que se referem a diferentes tipos e é considerado por psiquiatras como de altíssima lesividade. Esse transtorno causaria uma instabilidade emocional e de autoimagem (Hospital Albert Einstein, s/d). 129 Esse elemento do raro para explicar a transexualidade no Brasil, por outro lado, fora intensificado para se referir aos homens trans, e atravessou as décadas de 1970 e 1980, estando presente inclusive nas primeiras tentativas de institucionalização de saúde trans pós- redemocratização na década de 1990 – discutirei isso pormenorizadamente nos próximos capítulos, o que quero reter disso agora é o caráter de continuidade da raridade. Mas isso não ficou restrito a São Paulo, embora o estado também tenha contado com um novo serviço nessa década (Munin, 2018). Nesse período, e início dos anos 2000, hospitais gerais começam a oferecer serviços mais sistematizados nesse sentido, como em Porto Alegre (Zambrano, 2003) e Goiás (Bento, 2006). Em sua pesquisa realizada no final dos anos 1990, Bento, partindo também do Hospital das Clínicas em Goiânia, descreve um cenário de protocolos de diagnóstico com uma rigidez que navegava lado a lado com a ridicularização e os insultos aos pacientes. O aspecto do raro fora por ela indicado naquele momento. Os médicos descritos apresentavam dificuldade para atender homens trans ou nas palavras de um dos profissionais, “transformar Mariazinha em Joãozinho” era mais difícil. Ainda segundo a autora: Parece que a ciência não tem muita pressa em criar novas tecnologias para intervir nos corpos-sexuados femininos, levando-me a pensar nas assimetrias de gênero na produção das tecnologias para transformar os corpos femininos. Muitos cirurgiões argumentam que são raros os casos de transexuais masculinos, o que não justificaria um investimento em pesquisa para atender a uma clientela tão reduzida (Bento, 2006, p. 113). Contudo, essa não é apenas uma história de outrora, o raro persiste como um fantasma. Refiro-me à persistência da produção de uma noção que chamo de “raridade clínica” existente no campo biomédico atual brasileiro como uma das explicações para a “transexualidade masculina”, isto é, a ideia de que homens trans existiriam em menor número que travestis e mulheres transexuais pelo caráter próprio da transexualidade. Algo não apenas corroborado por números de pacientes nas primeiras décadas de certas pesquisas clínicas, mas por ser a sua mobilização social brasileira mais recente que a de travestis e mulheres trans. Esse “raro”, na visão desses médicos e psicólogos, não está disposto no sentido do que se tem denominado “doenças raras”, patologias cuja incidência reside de cinco a sete habitantes para cada dez mil (Boy e Schamm, 2009) e, que têm sido objetos de ativismos variados na ordem da cidadania por pesquisas genéticas (Health, Rapp e Taussig, 2007). Nesses casos, a raridade mobiliza cientistas a partir da pressão de pacientes e do interesse da descoberta dos fatos científicos. No que se refere a transexualidade, o sentido de raridade parece ter ocupado outrora um empecilho à existência de engajamento biomédico. E embora a noção de raridade possa assumir diversas formas, ela não costuma acarretar ainda numa disposição de tornar o raro comum à intervenção, mas produz um diagnóstico ou seu enrijecimento. Há, ainda, uma semelhança na pressão social estabelecida sobre médicos e cientistas entre pacientes de doenças ou 130 síndromes genéticas e aqueles que demandam assistência à transição de gênero. Ambos os grupos situam a vida como dependente das resoluções que as intervenções orgânicas podem produzir. Deter-me-ei melhor sobre isso no capítulo 5, mas cabe apontar agora que a noção de raridade é terminantemente afastada por pacientes trans, que defendem suas obviedades de existência porque essa concepção costuma dificultar o acesso à clínica e à cirurgia – o que não significa que esses dois universos não possam compartilhar elementos de mobilização social. Se homens trans existem raramente, aquele que se apresenta como tal tem sobre si uma redobrada vigilância para se provar, acarretando embargos às políticas de saúde pública e à mobilização social. Isso se projetou na articulação política das primeiras figuras de homens trans a se inserir com maior notoriedade, e insistência, na militância travesti e homossexual no país. Sílvio Lúcio, 54 anos de idade, natural e residente do interior do Ceará, foi um desses personagens. Foi chamado por parte do movimento local de “louco” ao dizer que não era uma mulher lésbica, como se apresentava antes, mas um homem quando buscou reconhecimento como transexual há mais de duas décadas108. Na nossa entrevista ele reflete: “a maior rejeição que teve foi no movimento LGBT”. Foi no início da década de 2000 que começou a se informar sobre a transexualidade, e após conhecer outro homem trans num dos encontros de ativismo LGBT na capital do país, voltou para seu estado com a consciência de sê-lo. Ele aponta dificuldade para se estabelecer como um ativista, com essa então nova categoria, num período em que era o único conhecido na cena cearense. Quando começou a sua transição, tentou integrar uma associação de travestis e mulheres trans de alcance nacional no país, mas não foi admitido por suas integrantes. “Elas diziam não me reconhecer como homem transexual, como homem trans, porque ‘no Brasil tinham poucos homens trans’, ‘não tinham homens trans’, não sei o que, alegaram coisas do tipo”. Quando lhe perguntei quem mais havia no ativismo nesse período, ele responde que “éramos poucos”: Nunca teve muitos homens trans; porque assim, têm muitos homens trans, Cleiton, que preferem não se expor porque é muito mais leve... a mulher, toda mulher tem leveza em ter um amigo gay, simpático, engraçado, gentil, que leva sua bolsa, que ajuda a maquiar, e tudo. E até na possibilidade de emprego é mais leve. Uma empresa recebe melhor, funcionários de uma empresa recebem melhor um LGBT gay, entendeu, uma travesti, do que um homem trans. Nós chocamos, entendeu? Muito. É como se assumir ser trans, ou [ao se] ter uma aparência transmasculina, isso violentasse, rompesse alguma coisa de foro íntimo das pessoas, entendeu? Então, não é tão simples, não foi tão fácil. Foi preciso ir se revestindo de uma coragem, entendeu? E se expondo, certo, e têm muitos homens trans que preferem não se expor (Sílvio, entrevista, 2018). 108 O que Sílvio (nome real) me descreve relembra em muito as chamadas “guerras de fronteira” que tomaram conta dos ativismos lésbicos e de homens trans nos Estados Unidos quando o primeiro buscou se aproximar do feminismo hegemonicamente heterossexual e rejeitou qualquer associação com identidades e práticas corporais consideradas masculinas. Nesse processo social, como descreve Henry Rubin (2003), homens trans surgem naquele contexto como uma nova categoria que reclama não pertencer a lesbianidade. A ausência de arquivos organizados no Brasil em torno da história LGBT dificulta uma análise similar no país. E as dinâmicas atuais de relações políticas impendem que muitos ativistas entrem em grandes detalhes sobre esse período histórico, uma vez que visam a preservação de suas fachadas – no sentido goffmaniano – e de suas carreiras morais. 131 Silvio prefere não entrar em muitos detalhes sobre contendas que vivenciou no período inicial de sua transição. Sendo um ativista “antigo” e bem conhecido desde seu engajamento como mulher lésbica demarca em toda a entrevista que encontrou muitas barreiras daqueles que deveriam ter estendido a mão para lhe reconhecer. Fica claro que evita detalhar outras ocasiões conflituosas para não gerar mais dessabores a partir da leitura dessa tese. A barreira da raridade que encontrou no país, e em seu estado em particular, apesar de hoje ser algo bem menos visível, continua sendo ainda nessa década de 2010 um objeto que pode surgir nas interações com profissionais de saúde, muito embora seja algo em crescente estabelecimento nos ativismos LGBT. O agrupamento de sujeitos em torno da categoria homem trans teve na condição de raridade o grande cavalo de Troia de sua consolidação como sujeito de cuidado e de direitos não apenas no Ceará. Para contradizê-la, esse ativismo não vai se concentrar apenas na articulação diante de serviços, políticas e profissionais de saúde, mas vai extrapolá-la para o cenário da cultura popular uma vez que se fazer visível na coletividade é uma maneira de ser aceito nas assistências. Através de uma atuação política que ultrapassa campos sociais com limites muito delineados, enquanto grupo, homens trans tentam influenciar a partir de fora o fechado campo social da biomedicina. Isto é realizado também ao extrapolá-lo para garantir espaço nele mesmo, através da interferência ou produção social em outro campo social, o da política cultural, por meio do tradicional campo teatral cearense. Assim, é preciso observar como são constituídos engajamentos no campo da política cultural, o que nos dá a possibilidade de entender os meandros nos quais esse contexto se localiza e se constitui no âmbito maior dos fluxos transnacionais da transexualidade. O teatro, aqui, será um elemento importante justamente pelo seu caráter social e histórico no estado cearense. Como nos mostrará uma peça teatral produzida e encenada em Fortaleza sobre “as vidas de homens trans”, os ativistas agiram culturalmente para erigirem-se como sujeitos. Tendo em mente, como propôs Bourdieu (1996), que a arte constitui um campo de disputa tanto dos artistas quanto do público que o recepciona, esses sujeitos trans também encontraram tensões políticas ao serem representados nos palcos. Se considerarmos que a nomeação inefável dos produtos artísticos corresponde a uma proteção de sua autonomia de ingerências externas, como o cenário teatral cearense se produziu diante das tentativas exógenas de deslegitimação que surgiram na cidade de Fortaleza por causa da encenação da transexualidade? 2.6. A produção cultural cearense e as políticas da representação trans Em novembro de 2017, a 11ª edição do For Rainbow - Festival de Cinema e Cultura da Diversidade Sexual exibiu 32 filmes a partir da inscrição de mais de mil títulos nacionais e 132 internacionais. A partir do tema “resistência LGBT ao conservadorismo e à opressão”, a edição contava com financiamento público do Governo do Estado e do Governo Federal via emendas parlamentares. O grande evento cultural tem programação gratuita, e tem ocorrido tradicionalmente em Fortaleza, Ceará, envolvendo também apresentações de dança, musicais e peças teatrais, além de debates e palestras sobre literatura e arte. O festival atrai um enorme público local que consome e vê a “cultura”, isto é, obras de arte, resultado de produção cultural, que são alçadas por espectadores como formas de lazer. Desde que começou a ser produzido, a partir de sua décima edição, no Dragão do Mar, o Festival alcançou uma projeção inédita. Em seus comunicados oficiais, a sua organização se propõe ao “combate ao preconceito e à discriminação”, e “busca fortalecer a cultura LGBT em Fortaleza e celebrar a diversidade que faz do Ceará um lugar plural” (For Rainbow, 2016). O objetivo, nesse sentido, visa a construção da região como uma forte atmosfera de defesa de direitos. Através de um exame das edições anteriores se percebe que o personagem homem trans não figurava de maneira contínua nos produtos do Festival109. Isso mudaria nessa 11ª edição quando uma peça de teatro foi fortemente veiculada, dias antes, com a proposta de contar histórias de sofrimento de homens trans. Era a primeira vez que essa identidade era apresentada de modo claro e direto a partir de histórias cearenses. O grupo de teatro fortalezense responsável pela peça anunciara-se dias antes no jornal Tribuna do Ceará: Outro Grupo de Teatro apresenta a peça “Histórias Compartilhadas” no Teatro Dragão do Mar, sexta-feira (10), às 19h, com entrada gratuita. O monólogo traz Ari Areia em cena com direção de Eduardo Bruno aprofundando uma discussão sobre transexualidade masculina. A apresentação acontece com apoio da Secretaria da Cultura do Estado do Ceará (Secult) por meio do Edital Cultura LGBT 2016. Não recomendado para menores de 18 anos (Scaliotti, 2017). Na entrevista que realizei com Ari Areia, ele me lembra que a peça estava em cartaz bem antes disso, em 2015. Ele levara cerca de um ano para a sua preparação, a partir de levantamento bibliográfico, entrevistas e auxílio de ativistas na preparação do texto. Ele e seu diretor trabalharam na união desse material. Enquanto bloco de relatos biográficos presentes, figuras conhecidas como o ativista carioca João W. Nery e o ator pornô estadunidense Buck Angel também são mencionadas para além de nomes locais. Apesar de se localizar no cenário cearense, tenta-se atrelá-lo a personagens reais num contexto tão extenso que comprova a sua universalidade. Essa é outra característica da reprodução social da arte apontada por Pierre Bourdieu (1998), quando descreve 109 Em 2011, na sua quinta edição, o curta-metragem pernambucano Entre Lugares: a invisibilidade do homem trans apresentava a história pessoal de dois ativistas. Com 12 minutos, dirigido por Lucas Patrese, o filme trazia o argumento de que gênero e sexualidade eram temáticas diferentes, ao veicular que um dos personagens namorava uma travesti e o outro um homem. Em 2016, na décima edição, o longa-metragem estadunidense O Garoto Real, direção de Saleece Haas, voltava a veicular a temática a partir da relação do protagonista e sua mãe durante a transição de gênero. 133 sua pretensão a um caráter transcendental, cujos referentes à experiência sensível não se prenderiam a particularismos. Adotando uma narrativa do sofrimento a peça centraliza o corpo, como já se percebe na sua sinopse presente na propaganda que circulou antes e durante o Festival: Corpo, Mídia, Gênero, Pênis, Mulher, Vagina, Homem, “Disforia”. Fragmentos do Cotidiano e vozes misturadas. O eu como uma construção. O Gênero não como meritocracia das genitálias. Corpos que, na tentativa de coexistir, rompem os limites da resistência e fazem da presença um símbolo de luta. Para não se afogar em silêncio todos os dias e cada dia mais um pouco, a gente tem que gritar: todos os corpos são certos (Scaliotti, 2017, grifos meus). A metáfora é de luta, de grito e de insistência, isto é, de teimosia, como já expressada por Kaio no começo do capítulo. O objetivo é de demonstrar que o sofrimento vivido durante e por causa da experiência da transição de gênero, “desencadeado pela sociedade”, é resultado de um lugar que esse corpo ocupa, no sentido da não importância, do erro. Embora a peça não tenha sido produzida ou encenada por atores trans, ela recebeu forte suporte e agradecimento do grupo ativista local. Eu mesmo só soube da sua existência porque os interlocutores me chamaram para assisti-la, após uma de minhas visitas ao Abrigo Thadeu Nascimento. *** Quando cheguei à casa do Abrigo, no mesmo dia da exibição da peça, 10 de novembro de 2017, eles estavam envolvidos em terminar uma Ata de Reunião para submeter inscrições dos ativistas para um curso de formação oferecido pela Prefeitura de Fortaleza. Era o último dia, e estavam ansiosos porque parte da documentação necessária era confusa. Como eu já trabalhei como secretário de um setor estatal, anos antes, tinha experiência com esse tipo de gênero textual, então pedi para ver a Ata para saber se poderia ajudar. Percebi que era necessário formatar o texto para que pudesse apresentar um formato oficial, com números ordinais ao lado das linhas, parágrafo único, assinaturas dos presentes, entre outras características de sua linguagem burocrática. A Ata, além de formulários com os dados dos inscritos (até dois ativistas), eram obrigatórios para mostrar à Prefeitura que existiam como uma organização não-governamental. Esse material deveria informar à Prefeitura que a ONG tinha um líder. Quando terminei de redigir a Ata, ainda precisávamos das assinaturas de outros ativistas que não estavam no Abrigo naquele momento, e então começamos a ligar para todos pudessem assiná-la. A tensão aumentava conforme o tempo se passava. Isso porque estando prestes a anoitecer, o prazo de inscrição acabaria às 18 horas. Alguns ativistas se preocupavam grandemente e achavam que não daria tempo, refletindo que talvez fosse melhor desistir. Outros ativistas asseveravam que precisavam tentar fazer até o fim, uma vez que já tiveram um grande trabalho até ali. Eu também 134 falei que iria dar certo. Após essa articulação conseguimos terminar de redigir a documentação e os ativistas fizeram a inscrição através da internet. Um grande alívio se estendeu entre todos. Como demonstraram pesquisas realizadas sobre setores de Estado (cf. Teixeira e Souza Lima, 2010), a falta de conhecimento de como funcionam os serviços públicos impede ou retarda seu uso pelos usuários, de modo que essas agências não articulam um aprendizado de como percorrer os processos que materializam. Os usuários acabam aprendendo durante o uso dos serviços. Como figuras recentes, e menos consolidadas que outros personagens do acrônimo LGBT, homens trans também esbarram nessa prerrogativa do uso de serviços estatais que já foram percorridos por outros agentes sociais em busca de direitos diferenciados; o que se agrava quando os ativistas não detêm carreiras morais anteriores nesse campo, seja como lésbica/feminista ou como qualquer outra micropolítica. Toda essa articulação para se inscrever em um curso de formação da Prefeitura se dava, portanto, em meio a outras atividades que os ativistas se incumbiam de participar. Estar presente na cena estatal era tão importante quanto na cena cultural, uma vez que esses dois campos se entrecruzam nas dinâmicas de relações sociais que se confundem. Além do mais, a produção cultural local estava muito ligada a políticas de governo dos setores locais. Com a inscrição feita, precisaríamos nos preparar para ir ao Dragão do Mar e prestigiar a peça sobre suas vidas. Parte deles havia concedido entrevista para a sua produção, de modo que reconheceria mais tarde boa parte das histórias ali dramatizadas, e das vozes que ecoaram de modo gravado pelo palco. Quando chegamos ao “Dragão” fomos diretamente para o seu Teatro, e a peça já estava para começar sem delongas. Uma parte de nós chegara em cima da hora, mas todos nós conseguimos ficar na primeira fileira dos assentos. A animação era geral e nos voltamos ao palco, compenetrados. A minha descrição corresponde muito mais a minha própria “experiência sensível”, não pretende ser um retrato estático, por isso, posso relegar certos elementos a segundo plano e destacar outros. No início da minha vida adulta vivi um pouco o teatro, uma vez que participei na minha cidade de origem de grupos locais de teatro e convivi com artistas de teatro de bonecos e pintores. Assim, estive inserido desde dentro desse universo social particular como agente e não como antropólogo. Assistir ao monólogo de Ari Areia e acompanhar a recepção que ela teve me trouxe muitas memórias desse período, algo que não trago para corroborar uma “descrição de um ator” como se isso pudesse pretender maior fidedignidade – até porque há muito tempo que tomei outros rumos biográficos e profissionais. A etnografia é perpassada por essa memória que construí, gerando algumas referências que pude estabelecer ao considerar a importância dessa peça. O monólogo começa antes de começar. Quando entrávamos no teatro uma pequena câmera filmadora num tripé estava posicionada para a plateia, e um televisor pequeno projetava 135 nossas imagens. O ator, vestindo um terno cinza, sentava-se numa cadeira de assento alto modelando pacientemente um boneco de massa de cor laranja. Os alto-falantes do teatro começam a reproduzir um áudio diferente das imagens, se trata de um rapaz falando sobre seu processo de transição de gênero. Eu reconheço sua voz, fico surpreso porque é um dos interlocutores dessa pesquisa. Após alguns minutos, o ator se levanta e coloca a cadeira e o boneco de lado. Apenas à frente do palco está agora iluminada, seu fundo permanece escuro. Com aquela câmera na mão continua a filmar a plateia enquanto fala sobre as dificuldades de aceitar a si mesmo. Ele a alterna para o próprio rosto, enquanto a sua imagem também é reproduzida na televisão. A fala agora enfatiza que a medicina e o direito através dos médicos e dos juízes tentam demarcar quem é trans por meio de uma “autorização”, mas que isso não deveria ser assim. As pessoas deveriam ser “livres”! Menções aos corpos desviantes que ficam entre o homem e a mulher se materializam por alguns minutos antes de um vídeo ser projetado no fundo do palco. Assistimos agora a um vídeo pornô no qual o famoso primeiro ator homem trans Buck Angel faz sexo com uma travesti. Enquanto assistimos ao filme pornô, o personagem da peça tira toda a sua roupa. Ele está completamente nu agora, mas não por muito tempo: com uma fita branca, um esparadrapo que ele corta com as próprias mãos, ele coloca seu pênis para trás/baixo do seu corpo, reproduzindo algo similar à prática comum entre transformistas para esconder o falo e reproduzir uma vagina aparente – ou, como chamam também travestis, transformistas, dragqueens e gays, a prática de “aquendar a neca”110 (Santos, 2012). Nesse momento, duas mulheres se levantam da plateia e saem, possivelmente incomodadas, e eu sentia um pouco de animação e surpresa. O vídeo pornográfico chega ao seu fim. Continuando sem falar, o personagem posiciona no canto da frente do palco uma mesinha alta com material cirúrgico. A câmera que ele usava no começo da história é posicionada por ele mesmo para filmá-lo. Ele continua seminu. Abrindo uns pacotes de gaze, ele levanta uma agulha e abre um acesso venoso em seu braço direito. Quando ele volta para trás, uma cadeira de plástico com apoio para as costas apresenta um crucifixo. Enquanto tudo isso acontece uma trilha sonora nos acompanha, nos possibilitando deter ainda mais atenção. O sangue do seu braço agora desliza pelo Jesus crucificado. Eu estou completamente chocado com o que vejo, e olho para os ativistas ao meu lado que olham tudo com muita compenetração. A figura do Jesus em sangue é apresentada para comparar o sofrimento dos homens trans com o dele, numa ode ao que o corpo sente na experiência que os sujeitos trans vivenciam. Jesus sofrera também porque não o entenderam. O corpo é levado ao extremo e essa imagem sacra une os sofrimentos. 110 Segundo Joseylson dos Santos (2012, p. 119), que estudou a prática de se montar como dragqueen/transformista em Natal, Rio Grande do Norte: “‘aquendar a neca’ é a forma de esconder a genitália: os testículos são posicionados na região pubiana. Depois o pênis é puxado para trás e preso com adesivos (Emplastro Sabiá) ou com calcinhas sobrepostas bem justas”. 136 Ao limpar seu braço, a cadeira e o Jesus permanecendo no fundo do placo, ele vem para o centro. Agora segura com dificuldade um garrafão cheio de água e começa um discurso. O palco é escurecido à meia luz. O peso do garrafão parece incomodá-lo, é a forma de sua analogia de agonia. O peso representa a sociedade, os outros. Na sua fala, o sofrimento mais uma vez é a figura norteadora. Lamenta-se, diz que se chama Hiley, e não Jéssica; era difícil ser assim, complementa. É a única vez que o ator encarna um personagem durante a peça, na qual ele se divide na maior parte do tempo como um contador de história. Divergindo seus olhares em direções diferentes a tensão aumenta. O seu ânimo fica mais energético depois de alguns minutos, o garrafão cai estrepitosamente no chão de madeira do palco, rolando até a sua borda e derramando água para todos os lados inclusive no carpete da plateia. Nesse momento eu penso, como ele conseguiu autorização para molhar o teatro? Sem me demorar muito nas minhas reações paralelas, a peça novamente capta minha atenção quando o ator, ainda seminu, passa a limpar a água do palco com a própria roupa da qual havia se despido. O silêncio entre os espectadores é inquebrável, e eu olho para suas feições paralisadas. Nosso ator então torce a roupa para colocar novamente a água no garrafão esvaziado, com o auxílio de um funil. Com a roupa espremida, ele a veste, ainda sem falar nada. Agora vestindo seu terno molhado segura a mesma câmera na mão e vai para trás do palco. Outro vídeo começa a ser projetado no mesmo lugar que a cena pornô de Buck Angel, e um rapaz lê uma carta que ele mesmo escrevera, contando seu processo de intensa dúvida, confusão e ansiedade com o início de sua percepção sobre ser um homem e não uma mulher. O espetáculo se encerra com o ator falando em um microfone. Ele está no final do palco, recuado no canto esquerdo, e sua imagem aparece no telão. Ele explica como Hiley era um homem trans estadunidense que se suicidou, e lê sua carta escrita originalmente em inglês, mas traduzida pelo ator. A história acaba focalizando em como alguém se reposiciona com outro eu real, diferente do que as pessoas a sua volta esperam. Por isso sofrem uma continuada desvinculação daquilo que apresentam como novo, podendo chegar à morte caso não encontrem suporte. A peça tem esse caráter recortado, cheio de esquetes que se complementam como um quebra-cabeças confuso. Como na minha descrição, o propósito da história parece ter sido o de representar as emoções em conflitos, a coragem da autoafirmação, e o destino da morte produzida por aqueles que estão a volta, mas não se importam. O trato é sociológico porque o indivíduo aí é o resultado de relações que o fazem viver ou deixam morrer em meio a um indivíduo psicologizado. Portanto, a peça é uma crítica das relações. O intuito de Ari Areia, como produtor da peça e ator, é propor uma crítica social, de modo que os espectadores na plateia façam um autoexame para se colocarem não apenas no lugar do outro retratado como herói, mas naqueles que, mesmo não estando na história de modo direto, são 137 os algozes diluídos. Isto é, os personagens que sofrem e que resistem em Histórias Compartilhadas são resilientes em relação a todos aqueles que os cercam personificados na peça como “a sociedade”. Ao partir de casos concretos e com uma pesquisa e não personagens fictícios, o monólogo em muito se reproduz como teatro épico nos moldes dirigidos pelo médico e dramaturgo marxista alemão Bertolt Brecht (1978). Era o que vinha à minha cabeça quando assistia à peça: o teatro brechtiano. As primeiras lições que aprendi sobre o teatro na minha primeira juventude eram que a encenação das emoções me obrigava a encarnar outra pessoa. Na peça de Ari Areia, ele buscava o contrário, trazer a representação para o plano do real e não da ficção. A mistura do silêncio, de falas sem rostos, de vídeo pornô, de exposição tensa do corpo, e de uma continuada afirmação de que o ator estava representando – como quando o ator fica nu, mostrando seu pênis – faz com que a peça tenha um impacto particular sobre quem a assiste, levando as ações humanas ali teatralizadas a serem criticadas e refletidas. Não era o objetivo da peça realizar um simulacro. Esse era um forte fundamento que Brecht implicava no seu teatro111. O teatrólogo objetivava que a crítica fosse o centro da experiência de palco, de modo que o ator através de gestos pudesse corporalizar a história através da sua montagem em cena. A beleza e a emoção não eram tão importantes (Peixoto, 1980), e a intenção passa a ser a de manter um distanciamento do ator e da história que ele conta, e não se confundir com ela totalmente. Segundo a proposta de Brecht, o público precisaria saber num nível mínimo que a peça era uma representação, de modo que a crítica fosse exacerbada aos seus olhos. Assim, o monólogo de Ari não procura recriar uma completa realidade paralela, uma ficção realista. Quando o palco se escureceu e a peça teve fim, o sentimento era de êxtase entre nós. As palmas ecoaram pelo pequeno teatro do Dragão do Mar, e esperamos o ator sair da coxia e vir nos cumprimentar. Tiramos fotos, apertos de mãos e abraços se estenderam entre todos. Ari Areia oferecera-se para encenar a peça no Abrigo para que os ativistas pudessem angariar fundos para suas atividades. A felicidade era tamanha. Saímos das dependências do prédio e fomos jantar, comer um cachorro-quente na esquina. Enquanto comíamos, conversávamos sobre a importância daquele momento, e como isso era algo novo. Kaio contava ainda que estava trabalhando num documentário que seria lançado em breve, focando em sua trajetória e na de outro ativista que não estava ali presente112. A produção cultural a respeito de suas particularidades estava ganhando forma e se multiplicando. Eu não tinha me dado conta naquele momento como essa peça de teatro significava algo sem precedentes na região e para o ativismo. Os homens trans, assim, de modo 111 Sobre a influência da teoria e da prática teatral de Bertolt Brecht ver Anatol Rosenfeld (1997) e Fernando Peixoto (1974). 112 Aqueles dois, dirigido pelo jornalista Émerson Maranhão, seria lançado em 2018, durante o 26º Festival Mix Brasil na capital de São Paulo, no qual recebeu o prêmio Canal Brasil de Incentivo ao Curta-Metragem. O curta também ganharia no mesmo ano prêmios na 12ª edição do For Rainbow em Fortaleza, Ceará, e, na 6ª edição do Recifest – Festival de Cinema e Diversidade Sexual e de Gênero, em Recife, Pernambuco. O curta integra agora a plataforma sob demanda de filmes do Canal Brasil. 138 direto como personagens concretos estavam sendo representados como protagonistas num espaço e com financiamento público através de uma das mais tradicionais e antigas produções como objeto cultural cearense: o teatro. Na comunidade artística, a peça não encontrou oposições estéticas ou políticas, como me contou Ari Areia. Há uma forte continuação da tradição teatral cearense, que tem se caracterizado historicamente por sua criticidade aos costumes presentes no cotidiano, desde o mais simples dos hábitos. Não é recente uma tentativa de cearenses de resgatar ou reconstruir a história do estado ou da cidade de Fortaleza, recusando a centralidade que o eixo Rio-São Paulo tem na historiografia nacional nesse tema. O teatro na capital fortalezense passa a ter um grande destaque já na Primeira República, principalmente por sua associação ao progresso que o cultivo artístico denotava na nova elite brasileira (Lima, 2012). Até a década de 1930, esse círculo de produção cultural irá conhecer nas figuras, como do promotor e dramaturgo Carlos Câmara, uma forte louvação ao homem do sertão através do desenho de papeis sociais aos homens e às mulheres em torno do matrimônio. Oposições valorativas contrárias de novo/antigo, campo/cidade, atraso/civilização se atrelam a moral cristã, a qual, por sua vez, estava circunscrita à uma forma de dar luz ao que era essencial à vida cotidiana. A dramaturgia local preocupava-se em representar relações equilibrada entre os sexos e os modelos ascendentes da elite sobre certa brasilidade e cearensidade através de uma comédia dos costumes (Costa, 2013; Lima, 2012). As relações entre os sexos, aí, fora um conteúdo contínuo para falar do Ceará e do país. Contudo, a produção de arte de “viés LGBT”, aí incluído o teatro, é algo contemporâneo ligado ao período da redemocratização pós-Ditadura Militar. Quando Ari, nesse ínterim, estabelece uma ligação metafórica na sua peça entre o Jesus crucificado, aliado a representação da transexualidade, constitui o combustível de uma reação negativa. Essa resposta dos setores religiosos e conservadores da capital demonstra ainda a torção que se estabelece com o espetáculo na forma de pensar a região. A peça, entretanto, não fora criada especificamente para o Festival For Rainbow, mas como trabalho de conclusão de curso de Ari em Comunicação Social/Jornalismo pela Universidade Federal do Ceará. Realizando espetáculos na instituição, acabou atraindo as críticas de religiosos, a ponto da Comissão de Liberdade Religiosa da secção estadual da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) requerer investigação do Ministério Público em 2016. Inclusive, uma nota foi publicada apontando o escândalo: [...], enquanto o ator seminu derramava o próprio sangue sobre o símbolo religioso, um filme pornô era exibido no telão. A universidade como ambiente de nascedouro, proliferação e discussão de ideias, pode e deve apoiar todos e qualquer debate, mas dentro dos limites estabelecidos na legislação brasileira. A Ordem dos Advogados do Brasil tem o papel institucional de fiscalizar e/ou propor medidas para assegurar um ambiente diversificado e respeitoso além de promover cidadania, bem como reparar danos provocados por eventuais infrações legais (OAB-Ceará, 2016). 139 O jornal O Povo, em 9 de junho de 2016, informava também que comentários massivos foram escritos através da internet condenando a peça de teatro. O ator chegou inclusive a receber ameaças de agressão e de morte, tendo sido, inclusive, abordado por estranhos em público na rua. A comparação que o monólogo procurou realizar encontrou certamente a ojeriza de pessoas que não viram o espetáculo, mas apenas descrições e fotos. O problema aparente estava no aspecto sacro violado com a presença de um Jesus crucificado. A Nota da OAB continua: A bandeira levantada pelo ator Ari Areia do “Outro Grupo” de Teatro é pertinente e merece respeito, porém para ilustrar e contextualizar suas ideias ele certamente pode usar outros personagens históricos. A liberdade de expressão não é incontestável tampouco pode violar ou ofender demais direitos constitucionais (Araújo, 2016). A analogia com a crucificação de Jesus Cristo tem sido desde muito tempo utilizada em diferentes obras de arte em todo o “Ocidente” (cf. Cartlidge e Elliott, 2001). A sua representação artística foi impulsionada por séculos pela doutrina católica da Encarnação, que colocava o material num nível de importância quase igual ao do espírito – Jesus como a encarnação de Deus para redimir os pecados da humanidade (Woods Jr., 2008). Mas, no Brasil, encontrou particular rejeição entre 2016 e 2017 quando foi associada a manifestações artísticas ligadas a população de homossexuais, travestis e pessoas trans. Rompia-se o caráter imaculado da figura sacra, princípio oposto ao atrelado a indivíduos tidos como invertidos sexuais ou de gênero. Nesse sentido, em entrevista com Ari Areia, ele me lembra que a reação da OAB-Ceará e de anônimos e figuras populares a sua peça ocorreu dentro de um contexto nacional de tentativas de censura a obras de arte moralmente condenáveis113. Essas ações foram encabeçadas por políticos e ativistas de direita e religiosos, como em direção a manifestações artísticas da performance de nu La Bête, de Wagner Schwartz no Museu de Arte Moderna; a exposição Histórias da Sexualidade do Museu de Arte de São Paulo na capital paulista; e, a Queermuseu – cartografias da diferença na arte da brasileira, exposição realizada e fechada pelo Santander Cultural em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul. Esses episódios levaram vários museus no país a adotar a autocensura para evitar qualquer ingerência externa (cf. Gonçalves Filho, 2017). Em resposta à requisição da OAB, o Ministério Público local havia solicitado à Ari Areia e sua companhia de teatro que respondessem um extenso questionário. Em sua argumentação, 113 Em 2019 essa reação esteve presente também na recepção de um episódio especial de Natal produzido pelo Porta dos Fundos para o canal sob demanda Netflix. Grupos religiosos criaram abaixo-assinados na internet para tentar boicotar o programa. Primeira tentação de Cristo, o episódio de mais de uma hora, trazia um Jesus delicado com um namorado afeminado, e que saíam do armário para a família no decorrer da narrativa. A história ainda trazia Maria traindo José, e uma avó de Jesus racista. A reverberação foi tanta que o Supremo Tribunal Federal foi envolvido porque um desembargador do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro chegou a censurar o programa. O STF decidira em resposta que o episódio continuaria no ar. Disponível em: ; . Acesso em jun. 2020. 140 estiveram presentes noções ligadas a liberdade de expressão e ao intento da peça de lançar luz sobre a realidade social. Nesse sentido, se reclama a autonomia enquanto membro de campo social específico: o da arte enquanto sua forma teatral. Foi entre religiosos e políticos profissionais de onde veio uma reação simbólica de restringir o exercício artístico quando ele desafiava o postulado de crença numa ordem de natureza. O argumento de que o “pecado” da obra era seu uso de uma imagem sacra é um veículo para procurar sua censura, uma vez que as reações dizem respeito muito mais a exposição da transexualidade como tema de arte e como “bandeira” política. Ainda mais porque o que se chama em teoria teatral de “quarta parede”114 estava suspenso em Histórias Compartilhadas, isto é, o excessivo lembrete de que o que se representava era um retrato do que acontecia no cotidiano, uma crítica ao real e não a sua simulação, dava ainda mais energia a reação. Para Pierre Bourdieu (1996), o campo de arte procura para si uma autonomia nos moldes que se produza um discurso pela sua transcendência. Ou seja, de que o que ali se apresenta não é passível de ser racionalizado porque é resultado de algo inatingível à consciência do analista. O objetivo deveria ser apenas senti-la, sem questioná-la, sem formular suas origens. Esse não é o propósito da peça de Ari Areia, como ficou exposto, mas o contrário, o de mostrar que sua representação teatral não busca a simulação, a de que o ator não procura interpretar um homem trans de modo per se. Assim, como argumentou Bourdieu (1998, p. 15), o campo artístico, um mundo paradoxal que impõe seus “interesses desinteressados”, tem em sua obra de arte regida por um princípio de existência permeado por aquilo que tem de histórico e de transhistórico. É ele mesmo um “signo intencional habitado e regulado por alguma outra coisa, da qual ela é também sintoma”. Essa peça e a reação negativa que causou demonstram as dinâmicas culturais e sociais do tempo presente brasileiro, no qual o ativismo de homens trans no Ceará dá forma particular. Nesse sentido, o campo artístico se confunde com o campo do poder, uma vez que as relações entre eles, como mostrou Bourdieu são figuras de condição de suas produções. Esse crescente número de produções culturais – filmes, peças de teatro, reportagens jornalísticas, telenovelas – que tem a figura do homem trans como personagem principal demonstra duas questões importantes, excedendo também o Ceará. Primeiro, que eles têm movimentado o novo cenário de visibilidade de histórias trans do nosso tempo presente, de modo a amplificar tal representação. E segundo, que eles próprios se tornaram sujeitos independentes. Não são mais um extremo da lesbianidade, nem mesmo uma variação sem muita especificidade da transexualidade feminina. Essa produção cultural não apenas expõe esse universo, ela o cria e recria. Quando temas, questões ou problemas sociais são visíveis para serem representados, isso não indica apenas que se 114 “Quarta parede” se refere a perspectiva do espectador diante dum ambiente de representação. Isso corresponde a dizer que ao permanecer a quarta parede se procura um simulacro na dramatização, a tê-la confundida com o real (Peixoto, 1980). Por exemplo, a telenovela brasileira A Força do Querer foi um tipo de drama que manteve a “quarta parede”. 141 tornaram relevantes fora dessa imagem a ponto de influenciá-la, ela própria constitui o sujeito que tenta representar. Não apenas se apresenta elementos, mas também se seleciona, excluindo outros. Entretanto, há certo pessimismo na crítica a produtos como esse serem veiculados para dar visibilidade a um grupo marginal. Reina Gossett, Eric Stanley e Johanna Burton (2017, p. xv, tradução minha) argumentam que embora o hoje possa ser chamado de o “tempo da visibilidade trans”, este é também o “tempo da violência anti-trans”. Para os autores, haveria na representação trans uma armadilha. Ao ser produzida através de premissas capitalistas, a sua “positividade” dá pouca garantia de proteção e promoção de melhores condições de vida para aqueles que não são brancos e vivem situações de pobreza, isto é, dramas espetacularizados não iriam resolver problemas econômicos. Os autores não veem, contudo, outros contextos nacionais nos quais essa representação se dá aliada a setores do Estado-nação, como é o caso que acabei de descrever. A peça de Ari Areia fora financiada por políticas de governo e foi encenada numa instituição pública. Isso não quer dizer, contudo, que haja aí necessariamente menos “interesse capitalista”, mas que ela faz parte de processos de formação estatal. Além disso, o teatro como espaço de performance inserida no corpo social articula aquilo que Victor Turner (citado por Edith Turner, 1986, p. 10)115 chamou de “exploração do nosso futuro”. Assim como o ritual Ndembu que Turner (2005) observou, o teatro se trata de uma arena de liminaridade na qual se gera um nível de poder simbólico que tem uma eficácia própria. Como estabelece, “o teatro é um tipo de ritual vivo, em constante mudança, que é congruente com a natureza de uma sociedade turbulenta que pode ser caracterizada mais por devir do que por ser” (Turner, 1986, tradução minha, p. 10). Com seu propósito de mudar as regras sociais que produzem o estigma para o trânsito de gênero e para outras formas de corresponder sexo/gênero/desejo, a peça sobre a vida dos homens trans criou um ambiente no qual essas normas morais foram suspensas através de sua crítica para tentar gerar sua modificação. 2.7. Quando a parte é um todo Como procurei mostrar nesse capítulo, a transexualidade é uma categoria que reúne uma considerável gama de objetos que ganham escalas variadas em meio a fluxos globais. Mas esses fluxos se dão também localmente, no sentido de que assumem escalas internas ao cenário brasileiro e não apenas deste para outras regiões estrangeiras. Procurei demonstrar como isso acontece primordialmente através dos circuitos transnacionais da biomedicina como comunidade profissional e científica. Periódicos, congressos, associações e mídia de massa são alguns desses canais por meio dos quais a mudança de gênero explicada e produzida na medicina alcança realidades nacionais tão distintas. Essa tese descreve, portanto, um caso particular dentro de tantos 115 A partir de manuscrito não publicado. 142 outros, mas isso não implica que não se possa gerar uma compreensão etnográfica sobre as dinâmicas brasileiras. O global somente se torna relevante quando o local o produz dessa forma. Isso pôde ser compreendido ao se considerar o encontro desses saberes e técnicas de intervenção com noções locais de diferença e do corpo sexuado. Além disso, estratégias político-culturais ganham um relevo imprevisto porque a recepção de formas culturais não se dá de maneira passiva sem transformar aquilo com o que se entra em relação. Assim, não é possível falar em globalização da transexualidade porque os fluxos que a carregam mundialmente estabelecem outras conexões e dinâmicas locais que impedem um quadro único do global. Esses fluxos são internos e externos a um dado contexto e se dão de forma transnacional. A transexualidade não se globaliza, ela flui ou viaja globalmente encontrando categorias locais e processos sociais de produção dos fatos científicos que condizem com as questões e a realidade sociocultural da região. Conforme tentava alcançar interlocutores de agrupamentos divergentes entre si percebia as tensões e as dinâmicas sociais que os enquadravam na produção desses fluxos próprios. Ao me preocupar com essas perspectivas em conflito sentia um enorme incômodo porque precisei aprender a administrar os modos como eu circulava, de uma maneira que eu não prejudicasse a etnografia que estava tentando realizar com uma observação num universo tão heterogêneo. Assim, integrei à etnografia uma análise histórica para poder situar o cenário ao longo das demais partes da tese. Foi possível perceber como o cenário brasileiro, primeiramente estabelecido em São Paulo – e com menos vigor de registro no Rio de Janeiro – entre as décadas de 1960 e 1970 conformaram um momento para a identificação de um paciente então novo. As pesquisas historiográficas sobre a medicina trans são incrivelmente escassas no Brasil, e geralmente pesquisas nas ciências sociais têm utilizado isoladamente historiografias estrangeiras para posicionar o país. Por isso descrevi um panorama a partir dos dados que consegui encontrar nas bibliotecas da Universidade de São Paulo, no Arquivo do GRAB, na Fundação Biblioteca Nacional e em investigações já publicadas. Não foi possível dar conta de tantos personagens diferentes, como é o caso da atividade intensa no Instituto Médico-Legal de São Paulo no qual médicos faziam testes físicos e bioquímicos para averiguar o sexo verdadeiro de mulheres que eram flagradas com passaportes falsos nos aeroportos daquela região em plena Ditadura Militar, como mostram registros jornalísticos. Influenciados ainda pela cultura psicanalítica em vigor naquele período, biólogos, urologistas, psiquiatras, endocrinologistas e cirurgiões plásticos trabalhavam em pesquisas acadêmicas para determinar a origem da transexualidade. Procurava-se na genética a verdade do sexo, e isso é particularmente importante de registrar porque essa não é uma atividade presa no passado. Carece-se ainda de observar como tudo isso tem se desenrolado em outras regiões do país, principalmente com atividade científica 143 própria mais antiga, como é o caso de Salvador e Pará. E como as medicinas trans têm se estabelecido de modo mais recente para poder a historicização captar as suas transformações. Ao invés de se restringir a ações coletivas apenas ligadas a serviços de saúde, homens trans que acompanhei puderam contribuir para a produção de uma peça teatral e de a promover. Nessa peça monólogo o ator Ari Areia pôde, com uma base brechtiana, articular diferentes elementos das experiências biográficas desses sujeitos para fazer os espectadores se chocarem com a semelhança que identificavam entre o drama do sofrimento na imagem sacra cristã de Jesus Cristo e a transição que vive um homem trans. O paralelo foi criticado tanto por religiosos como por organizações estatais locais que estabeleceram algum tipo de pressão institucional. Assim, os interlocutores produziam discursos contra a ideia de raridade clínica que tem reforçado o diagnóstico e a rigidez das dificuldades de se construir políticas de saúde trans no país e na região. Saindo desse cenário mais público quero me voltar agora para as trajetórias e itinerários terapêuticos trans para entender como conformam uma emoção específica para explicar o porquê sofrem tanto ao buscar concretizar as transições de gênero de um modo físico-moral. E o que é isso que sentem e que nomeiam de disforia. Durante o decurso do campo, eu percebia que o termo disforia era constantemente usado e isso me gerou certo incômodo inicial. Mas não se tratava de uma tática no plano do diagnóstico estratégico simplesmente. Ou seja, se apresentar como reconhecendo a categoria explicativa dos manuais de saúde para ser classificado e, portanto, acessar a assistência diferenciada à clínica e/ou à cirurgia. Ao transformar o uso dessa noção os interlocutores colocam a linguagem dominante contra si mesma para organizar socialmente o que sentem. Assim, a disforia como uma emoção é o objeto do próximo capítulo. 144 – Capítulo 3 – Corpo, aflição e adoecimento na linguagem das emoções Eu sinto disforia, mas isso não significa que eu sou doente. É só um sentimento. Por que o que eu sinto com meu corpo é doença, mas quando uma pessoa que não é trans não gosta do corpo dela, ela é considerada normal? – Paulo, 21 anos, entrevista na sua casa. 3.1. Na trilha da etnografia Era uma manhã nublada, incomum a Fortaleza. Cristóvão estava na recepção do Centro de Referência LGBT Janaína Dutra (CR) à espera de sua próxima sessão com a psicóloga naquele dia. Bem jovem, por volta dos vinte anos de idade, aguardava o atendimento sem acompanhante. Enquanto isso, conversávamos sobre as várias tatuagens que ele tinha pelo corpo, a que elogio a forma e a criatividade que assumem. Vejo que ele tem perto de seu pescoço um escrito em inglês, que traduzida livremente seria: “meu corpo é uma cela116”. Apontando para a frase, pondera: “nem tenho muita disforia, sou de boas com meu corpo”. Não havia lhe perguntado nada sobre seu corpo ou sobre transexualidade, mas a frase cravada na sua pele poderia denotar o que ele acabara de negar voluntariamente. Quando a psicóloga o chama, nos despedimos. Dias depois, ele retornaria ao serviço. Nessa ocasião lhe pergunto se ele se interessaria em participar da pesquisa com uma entrevista, e se eu poderia lhe acompanhar nas suas idas a serviços de saúde. Dali a alguns dias ele iria tentar conseguir uma marcação de consulta com um psiquiatra junto ao Centro de Atenção Psicossocial (CAPs)117 na região central da cidade. Como me explicava, não há vaga para todo mundo que geralmente procura o serviço. Então, era necessário chegar à sede durante a madrugada. A estratégia trata-se de ficar numa fila que se forma com outros potenciais usuários na calçada do prédio antes de sua abertura. Seguindo a ordem, um funcionário costumava distribuir 116 “My body is a cage”. 117 Os CAPs são serviços de saúde local que integram a política de saúde mental do Sistema Único de Saúde (SUS), resultado da Reforma Psiquiátrica brasileira e crítica ao modelo hospitalocêntrico (Brasil, 2004; Escorel, 1999; Teixeira, 1989). Tem gerência municipal, embora seja definido com parâmetros federais. A ideia constitutiva do CAPs o inscreve como um serviço comunitário de atendimento diário, de modo a relacionar os usuários com o convívio social que estão habituados. Em Fortaleza, contaria com uma equipe de diferentes profissionais de saúde, de psiquiatra a massoterapeutas, envolvendo atividades em grupo, consultas e distribuição de refeições para pessoas em situação de rua. Essa rede abarca quinze unidades, sendo seis “gerais”, sete “álcool e drogas” (CAPsad) e dois “infantis” (CAPsi) (Fortaleza, s/d). 145 fichas assim que o serviço abrisse às sete horas da manhã. Havia aí uma ideia de persistência reiterada comum no cenário do Sistema Único de Saúde (SUS) – uma ideia que responde a uma “luta” dos usuários diante da precariedade (p. ex. Nascimento e Melo, 2014) – no caso desses autores, no âmbito da atenção primária, e aqui repetida na atenção à saúde mental. Fora dessas vagas limitadas, os pacientes em potencial deveriam retornar outro dia para uma nova tentativa. Se eu quisesse, me confirmaria, poderia acompanhá-lo. Trocamos números de telefone, e ficamos nos comunicando por mensagens de texto para saber quando iríamos; o que não aconteceu. Na noite anterior ao dia que deveríamos nos encontrar, Cristóvão me avisaria que não iria à marcação de consultas porque teve “uma crise”. Não se sentia bem para sair de casa, e, portanto, havia adiado a ida ao serviço. Pergunto se naquele momento ele estaria melhor, quando me responde que tinha “depressão” e “síndrome do pânico”. Essa crise não era uma novidade para ele, a sentia de tempos em tempos, e por isso procuraria o psiquiatra. Aprendera a lidar com ela; era melhor ficar em casa para não agravar seu estado, apontava. Cristóvão fazia alguma relação, embora não totalmente, entre sua “crise” e a “disforia” que antes havia me descrito como algo que não “sentia” ou “tinha junto ao corpo” com frequência. Era como se um estalo ocorresse na sua vivência do cotidiano que colocaria em destaque sua falta de correspondência entre subjetividade e corpo. Cristóvão não se considerava um ativista, não tinha posição de liderança e participava muito raramente de atividades relativas ao ativismo. O uso do termo disforia me causara estranhamento, mesmo que ele não o trouxesse como doença. Cheguei a achar que essa referência fosse algo isolado, mas não era. Alguns dias depois visitei uma médica cirurgiã num grande hospital público da cidade para conversarmos sobre sua experiência de atendimento com pacientes trans. Enquanto a esperava terminar suas consultas daquela tarde, alguém olhava em minha direção também sentado no corredor à espera de sua consulta. Ele iria ali me questionar se eu seria também um homem trans. Ele me fitava já não sei se por quanto tempo até que, ao cruzarmos olhares, ele vem em minha direção. Seu sorriso largo o acompanha quando se apresenta, e muito rapidamente já está sentado ao meu lado no banco antes vazio. Estávamos, afinal de contas, num lugar voltado à saúde ginecológica. Esse espaço comum às mulheres o fizera pensar que os homens desacompanhados seriam trans. Antes de perguntar se eu seria mesmo trans, nossa conversa se iniciara com ele puxando assunto sobre estarmos nesse serviço. Contava-me que dias antes havia conhecido outro rapaz ali mesmo, esse trans, que havia lhe explicado sobre o que era transexualidade. “Acho que sou transexual, como aquele macho”, me dizia. Sem que eu o indagasse, me contou ainda que estaria ali para ver uma “doutora” para outra “coisa”. Teve uma filha, e precisava fazer exames ginecológicos de rotina. Ter conhecido o tal rapaz lhe traz novos sentidos sobre o que identificava 146 agora como angústias e dúvidas, achava que talvez o que sentia fosse “a disforia”. Não tinha muita claridade sobre o que isso significava, falava entre pergunta e afirmação, a partir dos termos que ouvira rapidamente – talvez tenha pesquisado na internet. Percebi que ele esperava, inicialmente, que eu lhe desse mais informações sobre o que ele pensava ser algo compartilhado entre nós. Por fim, ele mesmo me dizia ter decidido que iria falar para a médica, já que “o outro” havia sido atendido ali também, a profissional “deve dizer algo”, concluiu. Roberval, de aparência muito jovem, era masculino no seu modo de falar e andar. Embora estivesse aparentemente animado, se mostrava aflito e gostaria de sair daquele estado de incerteza. Ele me dizia que queria se entender. Nossa conversa intensa e imprevisível termina com ele se despedindo de mim ao chegar sua vez de ser atendido, agora quando o corredor está quase vazio e sinto uma sensação de já estar ali há bastante tempo. Tanto Roberval como Cristóvão me falaram da “disforia” em contextos de serviços de saúde, e isso, inferia, era o desencadeador que os fazia usar um termo tão caro a linguagem biomédica para explicar suas experiências. Contudo, isso também se mostrou ocorrente noutras situações e com outros interlocutores. Muitos dias depois desses dois encontros, visitava a casa de um outro interlocutor, Rosimário, de 24 anos. Quando cheguei ele estava procurando seu bainder. Eu observaria isso acontecer inúmeras vezes também com outros rapazes ao longo do nosso convívio quando os visitei em suas casas. A procura do bainder antes de sair de casa implicava a sua retirada tão logo se chegasse no ambiente íntimo da moradia, demonstrando o elemento de público que essa roupa se atrela. Ele precisava ir ao mercado da esquina naquela hora e não iria sair com o volume aparente dos seus intrusos – modo habitual de se referir às mamas. Para minha surpresa, mesmo achando o bainder decide sair de casa sem usá-lo. Afinal de contas, me contara, não estava com muita disforia naqueles dias, o que ainda demonstra que esse sentimento era mensurável em quantidades diversas. A forma como esse desconforto era sentido poderia ser, então, administrado a depender de sua intensidade. Rosimário era um ativista com certa experiência, e o vi um sem número de vezes discursando sobre não ser anormal. A partir do nosso convívio eu já sabia àquela altura que ele não se considerava doente, e se opunha à classificação corrente da transexualidade como uma desordem mental passível de diagnóstico e protocolos. Assim, de modo crescente fiquei absorto diante dos usos do termo “disforia”, o qual passei a procurar observar tanto aquilo que isso implicaria ao cuidado em saúde como às práticas e aos processos de subjetivação que dão forma e são construídos pelas experiências sociais. Mas não sem alguma resistência inicial da minha parte. Ao reler meu diário, ainda durante o trabalho de campo, notei que essa referência havia sido feita em muitas ocasiões anteriores a esses lampejos etnográficos que acabo de descrever. Aparentemente, eu não dera muita importância a isso. Havia 147 rejeitado me ater ao que “sentir-se disfórico” poderia significar por entender naquele momento que isso era sinônimo terminantemente de patologização. A recusa, agora infiro, foi decorrente do meu espanto quanto ao que entendia ser uma contradição. Quando estava entre interlocutores sem muita ou nenhuma carreira de militância atribuía à constituição dessa linguagem uma ausência de politização das identidades diante da corrente medicalização da transexualidade. Nessa lógica eu me perguntava: como poderiam fazer uso dessa categoria dando forma ao discurso dominante que rege o diagnóstico e que tem na sua origem uma concepção de desordem mental? Quando ativistas de larga educação formal ou experientes na militância também faziam referência a sentir a disforia comecei a perceber que isso tinha a ver com o sentir emoções e não exatamente com identidades num contexto de resistência política, isto é, dizer que sente disforia e agir concomitante a esse sentimento era um meio através do qual se dava forma a experiências incorporadas de sofrimento. Isso me levou a questionar, portanto, a classificação que eu mesmo fizera separando as pessoas entre politizadas e despolitizadas. Diante disso, adicionei àquela, outra questão: o que significaria e implicaria para suas vidas esse tipo de ressignificação? Se eu estava sendo movido por um interesse e uma fidelidade etnográfica – com todas as ponderações possíveis diante de ilusões românticas de objetividade e representação, as quais já foram discutidas no capítulo 1 –, seria preciso coadunar, em uma só tarefa, o entendimento dessa minha recusa inicial e o que essas rearrumações políticas e culturais acarretavam nas vidas observadas. Mais do que isso, seria necessário encarar a contradição e os conflitos como constituidores e não como um problema etnográfico ou teórico às explicações descritivas às quais me proponho. Estava posto pela minha leitura um limite pré-definido para a ressignificação de discursos, tecnologias e práticas que constituem as relações de poder, e, que nesse caso, se refere a influência definidora do que é o ser humano realizada pela biomedicina ao definir sujeitos diagnosticáveis. Algo em muito informado pela minha preocupação, anterior ao trabalho de campo, de contribuir à despatologização do gênero, já referida por uma gama considerável de cientistas sociais e ativistas mundialmente (cf. Stryker, 1994; Missé e Coll-Planas, 2010; Bento e Pelúcio, 2012b; Chiang, 2018) – a isso retornarei melhor adiante. Eu me indagava se uma descrição do “se sentir disfórico” não seria corroborar a patologização que eu e o próprio campo estávamos a disputar com outros saberes. Tendo isso em mente comecei a refletir que a situação na qual havia me movimentado, a de rejeitar práticas sociais aparentemente contraditórias que se expostas poderiam ser vistas como negativas a investimentos políticos do grupo, estava dificultando – ou melhor, impedindo – a minha observação sobre o objeto que tanto no campo da interação observável como no discurso normativizado exibia a questão da “disforia” como uma emoção partícipe da vida diária e não como um problema político a ser extirpado. A minha reflexão estava perpassada pela preocupação com 148 os efeitos da minha atuação como pesquisador que acaba, embora de maneiras diversas, participante das relações sociais em que os grupos se engajam. Percebi mais tarde que essa quase recusa etnográfica esteve alimentada pela politização do universo social que me impactou inicialmente nas inteirezas dos métodos e na abordagem do objeto. Eunice Durham (1986) apontou há décadas que esse é um problema enfrentado por cientistas sociais, principalmente na antropologia, conforme se cobra – tanto de interlocutores como de colegas de profissão – uma “responsabilidade social” dos antropólogos, já que lidamos desde sempre com agrupamentos marginais na nossa própria sociedade. É possível perceber que as questões apontadas por Durham não são de modo algum limitadas àquelas décadas, cujas disputas políticas encharcadas com a redemocratização se impunham às ciências sociais no país. As cobranças pelo “retorno dos resultados” se dão de muitas formas no presente, seja na procura da aplicabilidade do conhecimento antropológico que tanto ela como Ruth Cardoso (1986) discutiram, seja na atração que o cenário do ensino superior e da intelectualidade pode fornecer às disputas nas quais os agentes sociais estão situados. A crítica de Cardoso ainda perpassava a observação de que esse engajamento com os objetos de investigação não impediu que os pesquisadores continuassem a reproduzir um positivismo que, fascinado pela empiria, não dava nenhum espaço a uma reflexão crítica sobre a epistemologia dos métodos e sobre a politização dos cientistas. Assim, cheguei à conclusão que procurar uma espécie de purismo epistêmico na vida social observada – que a rejeição total da linguagem biomédica faria aludir –, não me levaria a entender como os interlocutores se relacionam com um misto, confuso e contraditório, entre o não se ver como doente e a “assimilação” de elementos de parte do que diz a biomedicina sobre uma categoria de doença/desordem diagnosticável e tratável, isto é, essa recusa me impediria de entender as experiências de sofrimento que estavam sendo observadas em campo e das quais os interlocutores queriam tanto falar. Mas foram os próprios interlocutores que me tranquilizaram quanto a isso, uma vez que respondiam às minhas questões sem muito alarde sobre o assunto, e dizendo com um certo ar de obviedade desconcertante que essa era uma questão simples: “a disforia que sinto não é doença e pronto”. Primeiramente, coube deixar que o campo trilhasse o caminho, de modo que o ideal de contribuir à despatologização não impedisse de entender o que significaria e organizaria o sentir-se disfórico aqui posto para além de concordar ou não com a atual patologia. Mesmo que isso pareça contraditório numa consideração inicial, cabe perceber que essas pessoas não se viam replicando noções de patologia que a linguagem dominante da biomedicina cravou nos (e foi cravada pelos) manuais, na imaginação dos profissionais de saúde e nos protocolos admissionais de cuidado. Não estou me referindo a reprodução de uma estratégia para ingressar em serviços de saúde quando se diz o que os médicos e outros profissionais de acesso queriam ouvir. Embora isso 149 aconteça em determinadas situações – e não sem consequências subjetivas –, aludo agora à capilaridade de experiências de sofrimento que a transição de gênero e processos sociais outros de adoecimento (ou não) podem constituir e que são recortados simbolicamente pela linguagem das emoções. Neste, que é um de seus trabalhos mais recentes, Veena Das (2015, p. 2-3) se preocupa com um caráter específico do sofrimento: a sua qualidade de ordinário, de comuníssimo; algo que é tão comum que se mistura com a vivência de sentidos afetuosamente amorosos, doces, de intimidade reconfortante. Não é um sofrimento que seja suficientemente dramático para ser compelido à atenção generalizada, mas que é atuante nas vidas das pessoas. Nesse sentido, a sua absorção no cotidiano não implica a ausência de sentimentos de sufocamento e de um certo grau de “pressentimento”. A autora propõe tratar disso a partir do estudo da aflição, esse senso do sofrer que para ela corresponde ao “ambiente” e a “sensibilidades” que não se referem necessariamente a figura divina, mas que tratam do sentir-se como num abismo quase fatalista porque “parece tirar a capacidade de muitos de engajarem-se na vida”. Das aponta, ainda, para a importância das memórias que carregam consigo grande violência ou sofrimento, igualmente operantes na construção de posturas resilientes. Por não ser as memórias totalmente amalhoados de sofrer é que ela se pergunta: “como os movimentos entre esses diferentes limiares da vida carregam as marcas do sofrimento que se suporta, das traições, bem como pequenos atos de bondade que tornaram possível para alguns sobreviverem enquanto outros morrem?” (Das, 2015, p. 2, tradução minha). Isso porque a autora recusa se fiar numa posição isolada entre, ou entender, as “experiências subjetivas do sofrimento” ou as condições economicamente objetivas que são comumente trazidas como o filtro que definiria suas escalas ou hesitações. As colocações de Veena Das a respeito do sofrimento são particularmente interessantes para a descrição que objetivo nesse capítulo. Mesmo que Fortaleza detenha, como vimos na Introdução, uma crescente desigualdade socioeconômica e os interlocutores trans aqui reunidos sejam provenientes de situações variadas de pobreza, certamente não é a capital da Índia, Déli, região da etnografia realizada pela antropóloga. Assim, o contexto de pobreza indiano que a perpassa é bem diferente do brasileiro de modo geral e do cearense em particular. Mas o caractere de “ordinariedade” do sofrimento, e sua produção não alijada de momentos e situações de felicidade, é potente para descrever o cenário no qual homens trans vivem. É isso que quero reter de sua análise. Homens trans não ocupam a centralidade dos casos de violência letal da capital Fortaleza, como observei em campo e como demonstra o último relatório publicado pelo CR (2017) a partir de uma pesquisa junto a delegacias de polícia e outros órgãos judiciais. Essa “informação” também circulava e era produzida entre ativistas trans, gays e lésbicas, de modo que se procurava qualificar narrativas de dor diante dos 150 setores estatais e das pessoas de forma ampla. Os interlocutores que acompanhei, embora assumamos a máxima de que “não morram mais”, como ouvi reiteradamente entre disputas retóricas de militantes, conformam trajetórias – inclusive, memoriais – de sofrimento. A sensação de abismo, de deslocamento insuportável da vida possível esteve presente em suas biografias, produzido também pela ausência de acesso à serviços regulares de saúde, e principalmente – o que é base para aquele – por estarem em contextos de pobreza com a falta de uma renda mínima. A capacidade discursiva do termo disforia é transformada para indicar não apenas questões encobertas quanto às incorporações da hegemonia da biomedicina, mas também às experiências de sofrimento que são produzidas de modo paralelizado. Era no seio da intimidade da vida cotidiana que homens trans se diziam sentirem-se disfóricos, e não apenas nos corredores ou salas de espera dos serviços ou dentro dos consultórios. Aliás, os dois contextos apresentavam sentidos diferentes para o mesmo vocábulo. Com isso, aos poucos fui observando que esse compartilhamento de um sentido diferenciado à disforia entre diferentes círculos de indivíduos e contextos demonstra ainda como os sujeitos constroem, vivem e transformam suas vidas a partir do sofrimento que o reposicionamento social de gênero pode produzir de modo unido ou paralelo a notações de assujeitamento na vida social. Há aí um conjunto de emoções que dão um sentido e uma orientação política diante da medicalização da transexualidade, e dos problemas que se defrontam com o rearranjo posicional nas relações sociais. Mas não apenas isso, o sentido de sentir a disforia diz respeito a algo que extrapola a concepção médica porque a coloca noutra zona de significado em relação ao corpo. Assim, não se trata apenas de ver os sentidos como também entender o que organiza. Isso indica um conjunto de “transações entre corpo e linguagem”, para usar uma expressão de Veena Das (2007, p. 38), que, ao trabalhar a explicação e o reconhecimento do que vive e sente envolve discurso e práticas sociais por meio do corpo. É esse o meu interesse nesse capítulo, o de mostrar como tais questões participam da subjetivação de homens trans e das formas como vivem e veem o mundo no qual estão inseridos. Essa é uma descrição de como pessoas concretas modificaram a ideia de disforia de gênero, dando lugares inesperados a ela ao transformar tanto a classificação biomédica quanto diversificando a politização das vivências trans, isto é, o objetivo principal desse capítulo trata de descrever o que significa e o que produz socialmente o sentir-se disfórico e suas condições sociais e simbólicas. Isso não silencia relações políticas, como temia no início da pesquisa; na verdade, as expõe, uma vez que considera como se constitui uma linguagem capaz de alcançar experiências de sofrimento que evidencia a formação imbrincada de subjetividades (a visão e as estratégias de si mesmo diante da coletividade), a atuação de processos de subjetivação (a formação de si por dinâmicas socioculturais) e de subjetificação (a sujeição/dominação política de si por processos sociais). E 151 por isso elabora um movimento que coloca o biológico, ou a materialidade manejável do corpo, no centro de uma perspectiva política que não procura por origens bioquímicas da transexualidade – como tem se concentrado vários pesquisadores no campo das ciências naturais –, mas explica os corpos como também entidades biológicas que recebem investimentos sociais. Aqui, o corpo é interpretado e lidado numa linguagem das emoções que retira a aflição de sua qualidade negativa, ao que me refiro enquanto mote à patologização, e a coloca como parte de um processo social de mudança de gênero. Contudo, isso não impede processos de medicalização, mas os recentraliza. Assim, se a transexualidade não é vista como uma doença, tampouco se abstêm de procurar a regulação ou a assistência da medicina por causa das mudanças corporais que pode implicar no campo da transição e da apelação explicativa que oferece. Os profissionais que aplicam as categorias dos manuais de saúde e aqueles que entram nessa seara como pacientes estão a todo momento elaborando os sentidos e dando vida às suas categorias diagnósticas ao organizarem, elaborarem e/ou demandarem estrategicamente sua aplicação. Isso porque os manuais ao serem objetos técnicos podem adquirir alta relevância social. Como colocaram Marcel Mauss e Henri Huber (2003 [1904]) a respeito da magia, a técnica tem uma força essencialmente coletiva. Por isso mesmo é necessário observar como ele se replica na vida social, de modo a seguir como seus usos o extrapolam e o transbordam. Assim, a disforia de gênero perde seu arcabouço de objeto, no vocabulário de Latour (1994), resultado de um processo de purificação dentro do mundo científico ocidental que separa tudo em termos pretensamente puros, entidades isoláveis em tipos específicos, materiais de natureza ou de cultura. Nesse sentido, a reelaboração da disforia por homens trans – e por travestis e mulheres transexuais – se dá num contexto de contato direto com a medicalização da transexualidade, e por consequência de seus sentimentos em relação a seus corpos. Os manuais de saúde, os médicos e todos aqueles envolvidos no âmbito da saúde trans – objetos, instâncias institucionais, pessoas concretas, relações –, isto é, no universo da transexualidade, apresentam, produzem, rejeitam e reveem a categoria da disforia de gênero de maneira totalmente imbrincada. Esse capítulo foi dividido em duas partes. Na primeira, que contempla dois itens, discuto como a categoria disforia de gênero é concebida pelo manual de saúde mental da Associação Americana de Psiquiatria a partir da consideração local entre médicos de que ela não seria uma patologização da transexualidade. Levando a discussão a revisitar como se erigiu as críticas e a concepção de “patologização” do trânsito entre os gêneros entre acadêmicos e ativistas, tanto dentro como fora do Brasil. Na segunda parte, que compreende também dois itens, descrevo etnograficamente como homens trans apreendem e utilizam linguisticamente o termo disforia para se referir a um conjunto de emoções vividas em processos de aflição a partir de itinerários 152 terapêuticos vividos no âmbito de processos diversos de adoecimento. Ressignificando um termo apontado como um indicativo de doença mental, mas o reelaborando noutro prisma, demonstro como se constitui uma categoria para explicar e narrar experiências de dor e sofrimento ligadas à transição de gênero e ao cuidado em saúde quando se expõe a transexualidade como um marcador social da diferença. A proposta analítica, portanto, é de não isolar a concepção da “disforia” enquanto um condensamento de sentimentos sem relação com processos de cura e de busca por assistência biomédica e psi para transicionar. Assim, como a disforia pode ser compreendida como uma emoção socialmente circunscrita? Ao olharmos para as experiências próprias dos interlocutores, o que acontece com a vivência dessa emoção, por exemplo, quando um homem trans acometido com o vírus do zika precisa se automedicar em casa, evitando a ida ao pronto- socorro? Ou, ainda, como itinerários terapêuticos118 de alguém que vive com fibromialgia ganha outros contornos ao se considerar dores diversas que precisam, a seu modo, igualmente de explicações para cenários quase inexplicáveis? 3.2. Sob a ciência de um manual de saúde Para um jovem psiquiatra, Givanaldo, de 29 anos, com quem conversei num grande hospital da região metropolitana de Fortaleza, a mudança de concepção da transexualidade enquanto um “transtorno de identidade de gênero” para uma “disforia de gênero” representaria um avanço médico para longe da patologia. Sua fala explícita nesse sentido indica haver uma heterogeneidade de ideias que circulavam no campo profissional da saúde que tive contato na etnografia: Hoje em dia a minha ideia é de que a questão transexual não seja uma doença. E aí eu acho que o DSM[-V] foi muito feliz nessa questão, porque mudou é.... o foco, porque antes era transtorno de identidade de gênero. Ou seja, falava que se identificar com o gênero era um transtorno. Hoje em dia é disforia de gênero, dizendo que o sofrimento causado pela identificação é que é um transtorno que precisa de tratamento. Então, eu acho que nesse ponto eu concordo com o DSM[-V], acho que se o transexual ele sofre muito com aquela situação, aquilo tem um prejuízo na qualidade de vida dele, o sofrimento significativo, eu acho.... Então, é...., o foco é no sofrimento que a pessoa tem com essa identificação, então o diagnóstico seria baseado nisso, se há um sofrimento 118 Embora geralmente atribuída a Marc Augé, o termo itinerário terapêutico é de uso difuso tanto na França como no Brasil e tem uma autoria de difícil rastreio genealógico que remonta pelo menos aos anos 1970. No país, Andréa Loyola primeiro utilizou o conceito em 1983 para descrever os modos de estabelecimento de cura entre diferentes sistemas de saúde por pessoas que pendiam entre legitimar as explicações religiosas e as científicas da biomedicina moderna. Paulo César Alves e Iara Souza (1999) usaram o termo novamente com um referencial teórico para falar de escolha de pacientes, analisando suas representações sobre doenças e cura, sem atrelar uma autoria à expressão, mas os ligando aos conceitos elucubrados por Gilberto Velho como trajetórias, projetos, e campo de possibilidades. Talvez, de maior popularidade esteja um artigo escrito por Jean Langdon (1994) no qual a autora usa o conceito para tratar da relação entre sistemas de saúde também diversos, o indígena Siona e do estado nacional que os indígenas entraram em contato na América do Sul. Augé (1986, p. 85, tradução minha) se refere especificamente a “procedimentos terapêuticos” com um pano de fundo processual para pensar as formas que se lida com as doenças. Nenhuma das três primeiras publicações referenciam Augé. De todo modo, construo aqui uma percepção do conceito à luz dessas publicações, entendendo que itinerários terapêuticos se referem a estratégias e trajetórias construídas por pessoas que estão implicadas em seus contextos socioculturais na busca de atenção e de cuidado dentro do escopo da saúde em geral e não apenas da resolução e percepção de adoecimentos, acionando agentes, saberes, práticas, sistemas de saúde diversos. 153 significativo então precisaria de tratamento. E o tratamento seria o acompanhamento multiprofissional e, eventualmente, se fosse desejado, a cirurgia de transição (Genivaldo, em entrevista em 2018). A alteração que o médico enuncia fora admitida em 2013 pela Associação de Psiquiatria Americana (APA) na quinta atualização de seu manual diagnóstico, o DSM. Três anos antes, em 2010, lançavam-se as formulações para isso e, em 2008, canais já eram abertos para o recebimento de propostas de modificação. Embora outros termos, como incongruência de gênero, tenham sido alçados como substitutos, o termo disforia de gênero foi o escolhido no final da revisão (Tosh, 2016). Essa mudança, na época em que foi veiculada, foi sugerida que estabeleceria um abandono da patologia. Alguns pesquisadores indicaram, contudo, que ideias sobre normalidade de gênero e de sexualidade continuaram operantes no manual (Tosh, 2016; Bento, 2016a; Maia, 2019). Já outros, em contrapartida, divergem, como Eric Plemons (2017), que argumenta que a mudança para disforia de gênero não patologizaria “o desejo para alterar características sexuais corporais como transexualismo fizera”, nem patologizaria a “identidade como o diagnóstico interventor de transtorno de identidade de gênero fizera”. Segundo o antropólogo, “a disforia de gênero reconhece que viver como uma pessoa de gênero não-conforme [gender-nonconforming]119 pode causar angústia clinicamente relevante para algumas pessoas” (Plemons, p. 102, tradução minha). É preciso considerar ainda que os manuais não são recebidos da mesma maneira universalmente, e seus usos locais têm o potencial de diferenciar a reprodução de práticas clínicas que patologizem ou medicalizem120 – como demonstrarei no capítulo 6, essas mudanças mais recentes abriram espaço para que médicos e médicas vissem a transexualidade de outra maneira. Tem havido, assim, pontos de contenção e conflito altamente engajados entre acadêmicos e ativistas sobre terminologias diagnósticas e a existência de diagnósticos relacionados a gênero. O consenso recai na ideia de que há alguma dimensão da angústia nas experiências transexuais, embora os sentimentos não sejam comumente eleitos como uma dimensão tão relevante para entender a medicalização. A presença de tal definição num manual de saúde e suas descrições que replicam ideias de masculino e feminino revelariam, assim, à patologização continuada. Seguindo a 119 “Gênero não-conforme” é uma categoria que tem crescido bastante no cenário estadunidense como algo que não está preso às definições biomédicas da transexualidade. É uma forma guarda-chuva de se referir a quem se movimenta desde categorias assinaladas de acordo com a biologia do nascimento. Isto pode se referir também a um “trânsito permanente” segundo o qual um indivíduo cobra a não fixação em performances masculinas ou femininas e procura se colocar de maneira mais neutra na identificação de gênero, tendo como pano de fundo uma maior fidelidade do eu. Tey Meadow (2018) estudou a intensificação dessa categoria entre famílias com crianças trans. Numa de suas palestras, a qual eu atendi na Escola de Sociologia da UA, Meadow demonstrara que essa era também uma identificação a qual ela mesma se aproximava. No cenário brasileiro há várias categorias que realizam esse movimento, como nos mostrou há décadas por ex. a etnografia de Perlongher (1986). 120 Entendo aqui que medicalização não é o mesmo que patologização. A medicalização é todo processo de transformação de algo em objeto de intervenção médica – clínica, cirúrgica, entre outras –, e patologização, embora possa estar aí contida, se refere especificamente a transformação desse algo em doença, desordem ou síndrome com cura e/ou tratamento. Embora esses dois termos sejam constantemente trazidos como sinônimos, é preciso diferenciá-los para perceber que pacientes trans – e médicos e cientistas que se engajam nesse campo – mesmo que não aceitem a definição diagnóstica, continuam dentro de processos de medicalização. 154 clarividência do psiquiatra em falar do assunto de maneira tão direta no campo, o que muito me espantou num primeiro momento, quero entender nessa primeira parte do capítulo o elemento “desconforto” – que remete a angústia – presente na diagnose da transexualidade que ganha relevo entre o DSM-4 e o DSM-5 e que animara diferentes interações no campo de pesquisa para entender como atua a presença crescente da descrição emocional nos manuais. Cabe unir a isso uma compreensão das disputas dos próprios cientistas em torno desses guias. Allan Frances, um dos médicos líderes da quarta revisão do DSM, escrevia no jornal The New York Times, em maio de 2012, que essa então nova edição estava implicada em problemas de ordem disciplinar, aferindo que a psiquiatria não poderia ser a única disciplina a deter um controle sobre o manual, uma vez que seu uso e seus efeitos ultrapassam-na ao atingir diferentes áreas e profissionais da saúde. Seu artigo é apenas uma pequena fração das proporções das críticas e do escopo multidimensional que o manual tem atingido, dentro de um campo de tensionamentos amplos. Contudo, antes de adentrar nas críticas que se erigiram acerca da medicalização da transexualidade, cabe entender, em si mesmos, quais são os princípios de referência aos quais Givanaldo alude ao elaborar que não haveria entendimento de doença numa concepção cujo foco estaria agora recaído no “desconforto” e não mais no gênero. Cabe entender como acontece e o que significa o deslocamento da diagnose da identidade para o sofrimento. Para isso, examinar comparativamente as diferentes versões e edições do DSM apresenta a oportunidade de entender as mudanças às quais foi submetido o manual, principalmente entre a quarta e a quinta edições cujas definições da transexualidade ganharam as transformações mais recentes e pretensamente mais radicais. As modificações entre as versões do DSM, poder-se-ia considerar, estão baseadas nos princípios adjacentes à ideia de “avanço”, contida na interpretação do psiquiatra, próprias de uma espécie de resultado da conquista da racionalidade da ciência. Algo que também alimenta a justificativa da proliferação de “desordens”, “doenças” e “transtornos” mentais presentes de modo inédito ou revisado a cada nova publicação. Isso é perceptível até mesmo no crescimento de páginas através das sete versões121, de 145 às 992 páginas. Cada nova edição ganhou dos médicos do período o clamor de ser mais avançada, mais científica que a anterior. Essa Babel psiquiátrica é apresentada como o fruto de novos tempos e de arrazoados mais precisos e menos viciosos. Essa visão científica de progresso é o resultado de uma virada proporcionada pelo DSM-III, em 1980, no qual os seus revisores clamaram para si a tarefa de defesa contra um sentimento antipsiquiatria geral que 121 Sem mencionar as reimpressões que trouxeram diferenças, a terceira edição teve duas versões, a primeira, DSM-III (1980) e a revisada, o DSM-III-R (1987). A quarta edição também recebeu (DSM-IV-TR), em 2000, uma revisão, dando informações extras e procurando tornar “mais claros” conceitos, de modo a se alinhar mais explicitamente ao Código Internacional de Doenças (CID) da Organização Mundial da Saúde (OMS) (APA, 2000b, online). 155 tomou conta do Ocidente após a Segunda Guerra Mundial122 (Decker, 2013). As duas versões anteriores do DSM tinham status e objetivos diferentes dos que se concretizaram a partir da terceira publicação. Na Tabela 4, a seguir, comparo as diferentes versões e edições do DSM, acompanhando a mudança de categorização diagnóstica referente a sexualidade e gênero, seja de maneira unida ou separada. Têm-se argumentado que a noção de transexualidade estaria “invisível” antes do DSM- III (cf. Prosser, 1998a,1998b; Califa, 1997), contudo, quero argumentar que ela faz mais sentido a partir de 1980 quando se materializa com nome próprio. É ao procurar uma especificação generalizada para a diagnose cientificamente balizada que gênero e sexualidade se separam de vez no manual, reproduzindo tais instâncias como entidades separadas da vida humana, orientação que esteve no bojo do movimento homossexual do mesmo período e segundo o qual o desejo erótico não definiria a identidade de gênero de alguém, isto é, ser homem e gay não seria consequentemente uma equação que transformaria esse homem em mulher (Weston, 1991; Valentine, 2007). Algo que o movimento trans irá repetir mais tarde (a isso voltarei no capítulo 5). A entrada da transexualidade no DSM se dá, de maneira propriamente dita, portanto, em sua terceira edição como “transexualismo” enquanto um “transtorno psicossexual” (APA, 1980, p. 261) muito posteriormente às discussões médicas em torno da categoria que ocuparam páginas incontáveis de periódicos e congressos científicos (Meyerowitz, 2002; Denny, 2002). No DSM-II o travestismo era trazido como um “desvio sexual” no singular, demonstrando a mudança para “transtorno de identidade de gênero”, embora mantivesse quase inalterados os mesmos critérios de concepção em direção a algo tratável. Para realizar o diagnóstico, se concebia no DSM-III cinco critérios que iriam se perpetuar, em princípio, até o manual atual: A. Um senso de desconforto e inadequação sobre o próprio sexo anatômico; B. Desejo de se livrar da própria genitália e de viver como um membro do outro sexo; C. A perturbação tem sido contínua (não contida a períodos de estresse) por pelo menos dois anos; D. Ausência de anormalidade genética ou intersexual. E. Não está relacionado a outra desordem mental, tal como Esquizofrenia (APA, 1968, p. 263-4, tradução minha). Como ainda vemos na Tabela 4, a versão revisada da terceira edição traz uma mudança considerável, colocando um peso definidor na infância como prova do diagnóstico. É significativo, portanto, a transposição da desordem de um capítulo autônomo, como estava na terceira versão original, para ocupar uma subclasse de um capítulo sobre a infância, junto de outros “transtornos” como o de hiperatividade. É possível fazer um paralelo entre as teorias psicanalíticas já aludidas no capítulo anterior, segundo as quais a infância seria o momento por meio do qual se poderia traçar 122 Hannah Decker (2013) oferece uma historiografia a esse respeito, ao apontar figuras importantes do começo do século XX e o cenário em transformação entre as décadas posteriores a Segunda Guerra Mundial até a década de 1970 que deram as condições sociais para que o DSM-III fosse editado posteriormente. 156 Tabela 4 – Classificação diagnóstica relativa à transexualidade nas edições do DSM (1952-2013) CATEGORIZAÇÃO CATEGORIZAÇÃO EDIÇÃO/VERSÃO ANO CÓDIGO DIAGNÓSTICOS GERAL ESPECÍFICA DSM-I 1952 000-X63 Desvios Sexuais N/A123 Homossexualidade, Pedofilia, Fetichismo, Sadismo Sexual (Estupro, Assédio Sexual e Mutilação) e Travestismo.124 DSM-II 1968 300-309 Transtornos de Desvios Sexuais Homossexualidade, Fetichismo, Pedofilia, Travestismo, Personalidade e outros Exibicionismo, Voyeurismo, Sadismo, Masoquismo, Outros transtornos mentais não- Desvios Sexuais, Desvio Sexual Inespecífico. psicóticos DSM-III 1980 302.5x Transtornos psicossexuais Transexualismo Transtorno de Identidade de Gênero; Transtorno de Identidade de Gênero na Infância. DSM-III-R 1987 302.60 Transtornos Usualmente Transtorno de Transtorno de Identidade de Gênero na Infância; Evidenciados Identidade de Gênero Transexualismo; Transtorno de Identidade de Gênero de Tipo Primeiramente na Infância não-transexual e Transtorno de Identidade de Gênero Não ou Adolescência Específico. DSM-IV 1994 302.6 Transtornos Sexuais e de Transtorno de Transtorno de Identidade de Gênero em Crianças; Transtorno Identidade de Gênero Identidade de Gênero de Identidade de Gênero em Adolescentes e Adultos. DSM-IV-TR 2000 302.6 Transtornos Sexuais e de Transtorno de Transtorno de Identidade de Gênero em Crianças; Transtorno Identidade de Gênero Identidade de Gênero de Identidade de Gênero em Adolescentes e Adultos. DSM-V 2013 302.6 Disforia de Gênero Disforia de Gênero Disforia de Gênero em Crianças; Disforia de Gênero em Adolescentes e Adultos; Outra Disforia de Gênero Especificada e Disforia de Gênero Não Especificada. 123 “N/A” se refere a “Nenhuma”. 124 Esses termos foram apenas citados no DSM-I, sem ocupar um diagnóstico com códigos e características claramente específicos. 157 biograficamente o “transtorno” de maneira profunda porque seria ali o espaço de formação do sujeito. Daí saem outros diagnósticos, um específico ao adolescente que atingiu a puberdade, “transexualismo”, e outro para adultos, chamado de “transtorno de identidade de gênero de tipo não-transexual”, produzindo de maneira clara a diferença entre o “transexual de verdade” e os ilusórios (APA, DSM-III-R, 1987, pp. 75-6). Essas mudanças se alinham às transformações sofridas por todas as classificações diagnósticas do DSM depois das duas primeiras versões do manual que se devem, segundo Steeves Demazeux e Patrick Singy (2015), ao domínio da nosologia que antes era menos específica. Os primeiros fundadores da psiquiatria estadunidense, no começo do século XX, não apreciavam um aspecto mais formal do diagnóstico, o considerando rígido demais e facilmente sujeito a reificação. Na década de 1960, por outro lado, já na segunda edição, o manual vai em direção a uma padronização. Nesse período, pesquisas iniciais em psicofarmacologia, genética, epidemiologia e neurociência ganham proeminência, levando a psiquiatria dos Estados Unidos a um papel de maior relevo internacional ao abraçar um viés crescentemente positivista para melhor se adequar às ciências então em consolidação (Castel, Castel e Lovell, 1982 apud Demazeux, 2015). As críticas elaboradas pelos médicos engajados no primeiro manual sobre o segundo identificavam que a nova classificação estaria sacrificando a simplicidade. Assim, a mudança que o terceiro vórtice do DSM ocasionou não teria sido uma questão teórica, segundo os seus “arquitetos”. Para Steeves Demazeux (2015) isso se deveu a uma “audácia metodológica” no clamor da cientificidade: Sua estratégia principal foi adotar uma abordagem a-teórica [...] juntamente com a provisão de critérios clínicos específicos para cada desordem mental listada no manual. Ao invés de apenas replicar as “ideologias” que dividiam a arena psiquiátrica em escolas de pensamento conflitantes, o DSM tentou alcançar uma abordagem mais objetiva e racional ao descrever os transtornos mentais de uma maneira que seria benéfica para reforçar a psiquiatria como um verdadeiro ramo da medicina (Demazeux, 2015, p. 4, tradução minha). Mas não parou por aí, o progresso científico recorre ao discurso metodológico para revisar cada edição do manual de maneira continuada, ao procurar adicionar a literatura que se tornava disponível. Assim, o método é uma feição que homogeneíza as teorias em conflito. E, uma terceira forma de ver a atuação desse ideal se dá em torno do Comitê da Força Tarefa designado para ter a decisão final do que irá entrar ou sair do manual. A autoridade epistêmica se movia, assim, de uma opinião acadêmica, que dominava os dois primeiros manuais ao serem liderados por figuras de destaque na cena clínica, para uma “analítica” vinda de uma comunidade de especialistas. Isso se referia, segundo Demazeux (2015), a uma mudança de um modelo professoral para um modelo de especialistas, embora na prática essa passagem fosse mais idealista do que concreta. Esses arquitetos 158 irão procurar argumentar que se baseiam em validade e em confiabilidade, portanto, nada mais científico; o que teria proporcionado uma revolta interna. Ao se olhar para os comentadores das mudanças do DSM, isto é, médicos que discutem em publicações periódicas e livros sobre as transformações de critérios que virão ou que já foram manifestadas na nova versão ajuda a entender a subjacência da ideia de avanço científico. Por exemplo, Kimberly Yonkers e Diana Clarke (2011) indicaram que teria havido discussões biomédicas que sugeriram haver um viés (bias) que invalidava pesquisas incluídas como referência para diagnósticos fincados no DSM, uma vez que essas pesquisas não consideravam o gênero dos participantes. Investigações epidemiológicas de uso de questionários, por exemplo, ao requisitarem respostas em estudos clínicos controlados perderam de observar que mulheres e homens poderiam ter tendências de resposta diferentes por estarem situados de modo diferente no cotidiano. Assim, homens iriam reportar menos “sintomas de tristeza e outras manifestações de depressão”, onde mulheres poderiam reportar menos “mal-uso de substâncias” (segundo padrões de masculinidade e papel da mulher no contexto estadunidense). A crítica das autoras não deixa de indicar a “melhora” nas “taxas sexuais” do DSM, isto é, na maior consideração a respeito de uma equânime descrição de homens e mulheres nos estudos epidemiológicos. Mas isso não impede que defendam que a pretensão de neutralidade de gênero na verdade é falsa, uma vez que a inclusão de itens que só foram vividos por mulheres gera uma taxa desproporcional para essa ou aquela condição. Isso iria atrapalhar a própria medição de severidade nos padrões psiquiátricos de ciência. Embora seja questionável a indicação de Yonkers e Clarke quanto à possibilidade de gerar medidas regulares entre diferentes culturas para uma doença – já que o próprio conceito de doença não é universal –, a discussão que empreendem é interessante por ser “boa para pensar”125 a construção científica das diagnoses psi. Assim, as problemáticas relativas à confiabilidade perpassa o manual inteiro e não apenas referente a categorias questionadas de desordem como gênero e sexualidade, alcançando as bases do conhecimento de todas as classificações. Não estou dirimindo a especificidade da patologização da transexualidade hoje, e da homossexualidade outrora; mas é preciso olhar para a imagem total. Tem surgido, nesse sentido, uma enxurrada de contestações. Médicos atuantes em versões anteriores, ou aqueles que trabalharam no próprio processo de revisão da versão que tencionam, apresentam “visões internas” a respeito do “exagero” ou do “controle” que intentam cada nova edição, como a descrita por Allan Frances (2013), que se referiu a uma “inflação diagnóstica”. Isso não implica, contudo, um desabono do manual em si de sua parte. Sobre a impossibilidade de uma definição útil, ou seja, sem questionamentos, para a 125 A expressão é de Claude Lévi-Strauss (1976), segundo quem investigações empíricas são importantes porque são “boas para pensar” ao oferecer uma chave de entendimento sobre o objeto, isto é, um ponto de partida para um axioma sobre o mundo. 159 “desordem mental”, Frances escreveu que isso seria resolvido definindo cada transtorno individualmente: A má notícia que nós não podemos desenvolver uma definição útil para o conceito geral de “transtorno mental” é balanceado pela ótima notícia de que nós podemos facilmente definir cada uma das desordens mentais específicas. O método, introduzido pelo DSM- III em 1980, é simples e efetivo. A descrição de cada transtorno do DSM é acompanhada por um conjunto de critérios que lista de maneira bastante precisa termos cujos sintomas os define, quantos devem estar presentes e sua duração necessária (Frances, 2013, p. 24, tradução minha). No seu ataque contra a revisão publicada, Frances (2013, p. 25) estabelece ainda que a especificidade destruiu a simplicidade da prática psiquiátrica, construindo critérios rígidos. Para ele, teria se invertido a máxima de Hipócrates, o “pai da medicina”: “é mais importante saber que tipo de pessoa tem uma doença do que saber que tipo de doença a pessoa tem”. O DSM tem que se manter simples, mas a psiquiatria não. O diagnóstico do DSM deveria ser visto como apenas uma pequena parte de uma avaliação geral que iria gerar uma compreensão integral para os aspectos individuais mais complicados de cada paciente. Infelizmente, a abordagem do DSM tem sido muito influente – dominando o campo de uma maneira que nós nunca intencionamos. Uma psiquiatria sutil se tornou uma psiquiatria de lista, homogeneizando diferenças individuais e tratamentos personalizados. A psiquiatria, antes muito peculiar e caótica, se tornou muito padronizada e insensata. Programas de treinamento [em medicina] focam atenção excessiva em ensinar a diagnose e não como gerar entendimentos sobre tudo mais que compreende o paciente (Frances, 2013, p. 25, tradução minha). O que a crítica de Frances também demonstra é que o DSM não é o resultado de um campo homogêneo, mas a impressão em papel de vitoriosos do momento num campo de disputa científica. Isso não elimina as desestabilizações que diferentes grupos, sejam de médicos, sejam de pacientes, fazem do manual. Assim, acompanhar as querelas teóricas dos próprios cientistas como estou fazendo desde o começo desse item nos ajuda a observar o nível de “chapamento” dos manuais, inclusive diante das próprias áreas médicas e outras ciências aí aplicadas. São os grupos hegemônicos que vencem ao se inscreverem nesses manuais e não um consenso absoluto entre cientistas. Os apoiadores das revisões que são publicadas advogam que tenha havido mudanças, mas segundo Demazeux (2015), elas são apenas aparentes. A influência mundial que alcançou o manual inscreveu no mundo social da medicina uma “psiquiatria de lista”, um montante de critérios arbitrários que solapam as diferenças, e que se adequa a caracterização da medicina em geral no seu conflito entre perspectivas integrais e visões superespecializadas. Mas a questão ainda permanece: o que teria feito o psiquiatra Genivaldo considerar haver menos patologia na atual quinta versão da nosologia quando comparada a anterior, uma vez que mesmo mudando a base do diagnóstico, ele permanece? No capítulo precedente (re)vi aspectos históricos e etnográficos da ideia de transexualidade, mas quanto a sua conformação à atual ideia 160 de disforia de gênero? Ela é concebida não apenas no seio de um processo continuado de medicalização, mas também de disputa científica. E essa disputa inscreveu o sofrimento no primeiro plano da medicalização. Na quarta edição, publicada em 1994, os psiquiatras estadunidenses recorriam a ainda maiores detalhes, e retiravam a exclusividade do “transtorno” contido no capítulo sobre infância para ocupar um próprio novamente. Estava contido num capítulo chamado de “Transtornos Sexuais e da Identidade de Gênero”, sendo uma das quatro categorias sob esse título, junto de “Disfunções sexuais”, “Parafilias” e “Desordem sexual não especificada” (APA, 1994, p. 493). Outras novidades aí se instituíram e o diagnóstico foi arrefecido. No critério B entrava um outro elemento distintivo, o médico deveria ter a destreza de identificar se esse desejo de viver noutro sexo seria para alcançar as suas “vantagens culturais”; caso o fosse, haveria aí uma desclassificação do “transtorno...”. Agora, os critérios eram alterados apenas textualmente, mas não em si mesmos, e figuravam, como: A. Uma forte e persistente identificação de cruzar o gênero (não meramente um desejo por alguma vantagem cultural almejada ao ser de outro sexo); B. Desconforto persistente com o sexo ou o senso de inadequação com o papel de gênero atrelado ao sexo; C. A perturbação não é concorrente com uma condição física de intersexo. D. A perturbação causa clinicamente aflição significante ou prejuízo em áreas sociais e ocupacionais, entre outras (APA, 1994, pp. 537-8, tradução minha). No DSM-IV, portanto, a diferença entre crianças (meninos e meninas), adolescentes e adultos se acentua ainda mais, de modo que há a indicação de fatores a serem enfocados dentro dos critérios para cada grupo geracional. Além disso, era a primeira vez que se distinguia o “transtorno de identidade de gênero” da “não conformidade aos estereótipos de papeis sexuais”, manifestados na subversão de desejos de cruzar de gênero, em interesses e atividades. O comportamento afeminado, no caso dos meninos (sissyishness) e, masculinizado, no caso das meninas (tomboyishness), alertaria o manual, não deveria por si só definir a identificação. Ao indicar, ainda, que o profissional não deveria escolher entre o diagnóstico de “transtorno...” e o de “travestismo fetichista” (o uso da vestimenta de outro sexo com propósito de excitação sexual), aparece a etiqueta “com disforia de gênero” para assegurar a classificação dupla. Há, por outro lado, na edição seguinte, a quinta, uma mudança que apresentaria novos termos à classificação. A “disforia” que antes serviria para indicar uma duplicidade do diagnóstico, torna-se a própria noção a ser identificada e tratada. Teria havido aí, de fato, uma transformação classificatória? Vejamos a explicação que o próprio manual126, na versão em língua portuguesa, oferece antes de apresentar os sintomas e critérios diagnósticos. No começo, se reforça que: 126 Como venho propondo um estudo sobre o contexto brasileiro, nesse momento faço referência à tradução para língua portuguesa brasileira publicada em 2014, e não ao original em língua inglesa estadunidense de 2013 também consultado. 161 O termo gênero é utilizado para denotar o papel público desempenhado (e em geral juridicamente reconhecido) como menino ou menina, homem ou mulher; porém, diferentemente de determinadas teorias construcionistas sociais, os fatores biológicos, em interação com fatores sociais e psicológicos, são considerados como contribuindo para o desenvolvimento do gênero (APA, 2014, p. 451, grifos meus). Isso oferece a base para a definição de disforia de gênero que vem em seguida: [...] Como termo descritivo geral, refere-se ao descontentamento afetivo/cognitivo de um indivíduo com o gênero designado, embora seja definida mais especificamente quando utilizada como categoria diagnóstica. [...] Disforia de gênero refere-se ao sofrimento que pode acompanhar a incongruência entre o gênero experimentado ou expresso e o gênero designado de uma pessoa. Embora essa incongruência não cause desconforto em todos os indivíduos, muitos acabam sofrendo se as intervenções físicas desejadas por meio de hormônios e/ou de cirurgia não estão disponíveis. O termo atual é mais descritivo do que o termo anterior transtorno de identidade de gênero, do DSM-IV, e foca a disforia como um problema clínico, e não como identidade por si própria (APA, 2014, p. 452-453). Somente após essa justificativa inicial é que o manual apresenta os critérios diagnósticos da “Disforia de Gênero em Adolescentes e Adultos” que reproduzo a parte A na Figura 6 abaixo. Figura 6 – Quadro de Sintomas do Critério A do diagnóstico de Disforia de Gênero do DSM-5 A. Incongruência acentuada entre o gênero experimentado/expresso e o gênero designado de uma pessoa, com duração de pelo menos seis meses, manifestada por no mínimo dois dos seguintes: 1. Incongruência acentuada entre o gênero experimentado/expresso e as características sexuais primárias e/ou secundárias (ou, em adolescentes jovens, as características sexuais secundárias previstas). 2. Forte desejo de livrar-se das próprias características sexuais primárias e/ou secundárias em razão de incongruência acentuada com o gênero experimentado/expresso (ou, em adolescentes jovens, desejo de impedir o desenvolvimento das características sexuais secundárias previstas). 3. Forte desejo pelas características sexuais primárias e/ou secundárias do outro gênero. 4. Forte desejo de pertencer ao outro gênero (ou a algum gênero alternativo diferente do designado). 5. Forte desejo de ser tratado como o outro gênero (ou como algum gênero alternativo diferente do designado). 6. Forte convicção de ter os sentimentos e reações típicos do outro gênero (ou de algum gênero alternativo diferente do designado). (APA, 2013, pp. 452-3). Os critérios seguem para sua parte tida como mais essencial, que diz: “a condição está associada a sofrimento clinicamente significativo ou prejuízo no funcionamento social, profissional ou em outras áreas importantes da vida do indivíduo” (APA, 2013, p. 453). Aí é possível observar o lugar crescente das emoções nesse novo arranjo da medicalização. Como já vimos, a disforia passa a ser, na década de 1980, um dos qualificadores do transtorno de identidade de gênero. Norman M. Fisk (1974), médico atuante no Programa de Disforia de Gênero da Universidade de Stanford127, na Califórnia nos Estados Unidos, ao se referir a publicações sobre transexualismo, 127 Criado em 1968 sob a direção do cirurgião plástico Dr. Donald Laub, o programa de Stanford foi um dos mais influentes no âmbito da saúde transexual nos Estados Unidos (Plemons, 2017). 162 comentava acerca do uso do termo “síndrome de disforia de gênero” para dar maior dimensionalidade a condição. Ele fora o primeiro a empregar o termo “disforia de gênero” para alargar o raio de alcance de uma nosologia vista por ele como insuficiente presente no termo transexualismo (Fisk, 1974, 1973, 1978). Em seu editorial, Fisk (1974) postulava que transexualismo, como indicado por Benjamin, seria o tipo mais grave e severo de disforia, da qual homossexualismo e travestismo seriam outros casos dos transtornos de gênero. Assim, o médico indica que o novo termo diagnóstico seria uma melhor maneira de flexibilizar o atendimento. Relatando o que teria sido a experiência de sua equipe em Stanford, apresenta que: Ao empregar o termo diagnóstico de síndrome de disforia de gênero nossas indicações para a terapia cirúrgica de conversão de sexo têm sido alargadas. Os pacientes agora claramente entendem que se eles tivessem sido entrevistados cinco, dez ou vinte anos atrás, eles não teriam sido diagnosticados como sendo transexuais clássicos. Estes pacientes são informados que um diagnóstico de transexualismo não é, em nossa visão, o único critério válido para decidir quem recebe conversão cirúrgica de sexo (Fisk, 1974, p. 389, tradução minha). Ao explicar o seu conceito de gênero, Fisk estabeleceu ainda: A composição cromossômica, o sexo assinalado e o de criação, a morfologia genital interna e externa, fatores endocrinológicos pré-natais e pós-natais, bem como comportamento são todos aparentemente inter-relacionados com o conceito de gênero. Uma definição do dicionário de disforia inclui insatisfação, ansiedade, inquietação e desconforto (Fisk, 1974, p. 387, tradução minha). O médico não concebe o termo a partir de uma pesquisa, nem mesmo intentando modificar o DSM, mas a partir de sua experiência clínica (Tosh, 2016). E isso se estabelece dentro da primazia das intervenções cirúrgicas como parte essencial da terapêutica. Aí, portanto, ele já indicava que os caracteres a serem identificados como aludindo a identidade de gênero não deveriam abarcar um diagnóstico restrito ao procedimento daquele contido no de transexualismo. São as emoções que ganham proeminência, isto é, o descontentamento que gera sofrimento passaria, nesse método, a ser mais evidenciado ao lado de um conceito de gênero que não sai de cena. Isso fica evidente quando ele relata mais à frente que, Nós procuramos avidamente por determinar quão bem ou mal uma pessoa em particular tem lidado ou irá lidar na vida dela a partir de suas escolhas de gênero. Frequentemente, pacientes têm vivido totalmente seus gêneros de escolha por muitos anos junto a administração exógena de hormônios sexuais apropriados antes de virem à nossa clínica (Fisk, 1974, p. 389, tradução minha). O lidar bem ou não com o cotidiano, o que fica evidente na explanação de Fisk, se refere a vivência das emoções e a “vivência real” do gênero. Assim, o gênero como um âmbito individualizado é observado através do emocional como se o sentimento fosse a forma social que ganha algo que é sentido de forma incorporada. No final do seu artigo, chega a defender sua clínica 163 dos ataques críticos sobre a necessidade de cirurgias para transição de gênero, as quais denomina de “terapia cirúrgica de conversão sexual”. Seu argumento acompanha a missão do profissional médico em ajudar alguém a diminuir sua aflição. Nisso, o clínico aponta que seria evidente que qualquer psicoterapia uniformemente aplicada poderia falhar em aliviar os sintomas, isto é, sem cirurgia, mas com psicologia não se poderia ajudar os pacientes: Eu tenho tido a experiência desagradável de ouvir um número de colegas expressarem suas opiniões de que a reorientação de gênero com conversão cirúrgica de sexo é um “procedimento imoral” e, numa ocasião particular, vi na imprensa a colocação de que a conversão cirúrgica de sexo é “equivalente a negligência médica”. É inconcebível para mim como qualquer tentativa válida de aliviar o sofrimento e o desespero pode ser algo imoral (Fisk, 1974, p. 390, tradução e ênfase minhas). Se as influências teórico-metodológicas da equipe de Stanford não lograram grande sucesso na promulgação do diagnóstico publicado nos anos 1980, ela pode ser sentida no atual manual em vigor com considerável destaque. E ela demonstra uma separação ainda maior entre quem deseja ou não cirurgias de redesignação sexual. Sob certos aspectos, o transexual de verdade continua como figura quando o disfórico é separado daquele que teria uma manifestação amenizada da incongruência de gênero, seja por não querer alguma cirurgia, seja por não preencher todos os requisitos do diagnóstico. Um ano antes é que a equipe de Stanford publicara o livro resultado de um Simpósio realizado a partir dos profissionais ali engajados, no qual Fisk expõe suas formulações. Pierre-Henri Castel (2001, p. 90), que realizou uma cronologia a respeito do “fenômeno transexual”, ao longo de 85 anos desde 1910, explica que Fisk com a descrição desse “híbrido psiquiátrico-sociológico” “replicava palavra por palavra à demanda dos transexuais, transportando seu autodiagnóstico (não se sentir do sexo adequado) para a definição médica da síndrome, e consagrava no mesmo movimento como única escolha terapêutica aquela que eles solicitam (hormônios e cirurgia)”. Na mesma publicação, Virginia Prince (1973) argumentava ainda mais além, postulando que gênero e sexo não seriam a mesma coisa, de modo que haveria a disforia de gênero e a disforia de sexo, a primeira se referindo ao estilo de vida, e a segunda, à anatomia sexual. Para ela, a cirurgia e os hormônios não são soluções de gênero, mas de sexo, porque modificam o corpo material e não o “papel social”. Paralelo a toda essa discussão que tem se demonstrado até aqui, com uma perenidade enquanto seu conflito de definições, o que quero apreender é que a disforia, ao contrário de transtorno de identidade gênero, é vista como um qualificador mais científico e melhor descritor porque se conceberia sua forma de atingir as emoções, algo que o DSM também atinge com outras categorias diagnósticas como depressão e ansiedade. Isso está inserido, portanto, numa forma de se argumentar que se teria assumido uma postura menos enviesada, a partir das críticas que o seguiram (Bento, 2016; ver também 2010a). 164 E é do seio desse debate que se pode ver reproduzindo a partir do grupo revisor instaurado em 2008 e com propostas apresentadas em 2010 para mudar o texto do quinto manual publicado em 2013. Kenneth Zucker (2015), chefe da sua Força Tarefa responsável pela escrita e definição da seção respectiva através do Grupo de Trabalho de Transtornos de Identidade de Gênero e Sexual, apresenta essas modificações nos mesmos auspícios do avanço científico que vimos até aqui e que animaram todas as outras edições. Assim, a própria busca por cientificidade da psiquiatria determina a forma como seus objetos de intervenção são definidos e abordados. Ao defender a manutenção da transexualidade no DSM, Zucker (2015, p. 34) escreve em favor de uma garantia do cuidado, procurando se associar com o argumento de que o novo “termo diagnóstico deveria, de uma maneira mais transparente, indicar que se refere a ‘angustia’ (disforia) e não a identidade per se”. Zucker (2015; e Zucker et al., 2013) tem se destacado nas últimas décadas como um dos principais médicos a advogar por uma diagnose da transexualidade, principalmente no campo da infância com sua proposição de “terapia de conversão” para prevenir o “desenvolvimento da disforia de gênero”. Ele faz uma referência direta ao trabalho de Fisk, mas estabelecendo diferenças importantes, como podemos ver. A adoção do termo disforia de gênero pelo manual a partir do seu grupo revisor retirou a flexibilização presente nas formulações de Fisk, e alocou o termo, antes oposto em algum grau ao termo transexualismo – com uma rigidez na sua adoção terminológica (Tosh, 2016). Ao contrário de ser postulado como algo novo, as emoções sempre foram algo presente nas versões do DSM, estando de modo aliado e manifestando os caracteres a serem identificados como desse ou daquele gênero. Comparativamente, vemos sendo manejadas diferentes concepções sentimentais relativas ao corpo e a identidade de gênero que provam a transexualidade e passam, gradativamente, a medicalizar as emoções e as experiências de sofrimento que são encontráveis como sintomas. E isso não se perfaz apenas dos médicos aos pacientes, mas também vice-versa. Nisso, pessoas normais manifestariam o oposto do que pessoas sofrem de gênero. Ao unir todas as formulações das versões do manual se percebe um quadro repetitivo quanto aos elementos emotivos da desordem de gênero para a autorização das mudanças corporais: Pessoas transtornadas ou disfóricas de gênero manifestariam: Desconfortável e inadequada com o sexo anatômico Ter os sentimentos do gênero oposto Senso de inadequação com o gênero de nascimento Perturbação desassociada com intersexualidade Perturbação causa aflição, sofrimento e prejuízo social 165 Isso não significa que não haja transformações ao longo dessas continuidades. Se saiu de cena um discurso que se dizia focar em caraterísticas identitárias – mesmo que isso não implique, necessariamente o seu abandono na prática –, passando a recair sobre a manifestação de um conjunto de sentimentos melancólicos que abarcariam uma experiência de sofrimento desmedida. Algo que ocorre não como uma novidade, mas como um discurso oficial, uma medicalização das emoções para a comprovação da identidade de gênero vista como atípica ou anormal e doentia. Isso porque, como vimos, a apresentação de insatisfação com o próprio corpo como manifestada por emoções sempre esteve presente desde a primeira formulação dos manuais psiquiátricos. O que aconteceu com o último DSM foi uma transposição para a frente de um pano de fundo porque esteve aliado ao conceito de gênero operador em tais diagnósticos. Tey Meadow (2018) mostrou, assim, que a quinta versão retirou a heterossexualidade como elemento definidor, devido a uma mudança cultural. O que não significa exatamente e automaticamente essa reverberação em outros contextos sociais. Mas isso já tem tido efeitos no campo que observei, por isso, concordo com a autora quando ela diz: No entanto, existem diferenças importantes na classificação que marcam uma mudança substancial nas compreensões culturais da diversidade de gênero. Para crianças e adultos, a angústia sobre o sexo é um componente essencial para o diagnóstico, permitindo que indivíduos que parecem satisfeitos escapem de sua captura. Além disso, o comitê removeu o critério de atração sexual, reconhecendo o pequeno papel desempenhado pela orientação sexual nos modelos de tratamento (Meadow, 2018, p. 62-3). No campo eu não encontrava entre médicas e médicos com quem interagi considerações sobre a heterossexualidade pretensa de alguém em procura de intervenção para a transição. O foco esteve nas emoções. Em geral, críticas a essas mudanças comumente indicam que, na verdade, não houve transformações, mas uma manutenção das raízes daquilo que veiculam colocar em novas bases. Entretanto, considero que há aí mudanças sociais que indicam uma história espiralada e não uma ordem de eventos desencadeados em etapas. De acordo com a forma como esse diagnóstico é apresentado e modificado discursivamente se constituiu tanto uma crítica cultural como uma crítica proveniente de disciplinas científicas dentro e fora da medicina em muitos lugares do mundo. Como se pode observar no trabalho de Amess Suess Schwend (2015), a mobilização contra essa patologia também ganhou os fluxos globais através dos quais a própria transexualidade se constituiu128. Tais argumentações contra a patologização da transexualidade não se contêm em fronteiras muito definidas. Isso não impede, contudo, que se constituam a partir de seus contextos e ideologias nacionais sem os quais não poderiam fazer ou estabelecer sentido. Por deterem considerável reverberação no Brasil, o contexto anglo-saxão, principalmente estadunidense, e o 128 Não procuro medir a eficácia dessa mobilização, mas no capítulo 6 exploro as formas como essa pressão social se encontra com a autonomia do campo da medicina. 166 contexto espanhol serão aqui mais bem observados quando me proponho a elencar características mais gerais das formulações brasileiras a esse respeito de movimentos teóricos nas ciências sociais contra a patologia. 3.3. Contra a patologia No âmbito das ciências sociais, as primeiras pesquisas de fôlego no Brasil tendo como foco a transexualidade como categoria autônoma começaram a aparecer no começo dos anos 2000. Desde o decênio anterior, antropólogos e antropólogas inauguraram seus interesses pela vida social e pelas modificações corporais de travestis a partir das metrópoles do país (Silva, 1993; Oliveira, 1997; Florentino, 1998; Kulick, 1998; Benedetti, 2005; Vale, 1997, 2005; Pelúcio, 2005; Patrício, 2008; Cardozo, 2009) num corpo teórico que se convencionou chamar de estudo das travestilidades (cf. Grossi, 2010). Em parte dessas etnografias já era possível vislumbrar personagens, mesmo que tímidas, de mulheres transexuais, como a realizada por Hélio Silva (1993) quando descreve transexuais de modo coadjuvante. Elas são as amigas ou as conhecidas de travestis com as quais os autores e as próprias interlocutoras se comparam, tanto para se diferenciar como para se elegerem (serem eleitas) como particularidade cultural brasileira. Isso fica particularmente evidente na pesquisa de Maria Cecília Patrício (2008) sobre a circulação transnacional de travestis brasileiras entre a Europa e o país. Enquanto sujeitos de sucesso – e de mistério quanto a se teriam ou não realizado a chamada cirurgia de mudança de sexo –, as transexuais eram tidas (inclusive por si mesmas) como mais mulheres que as travestis, estas estando mais próximas de homens homossexuais do que daquelas. O quadro era desenhado num contexto de medicalização da subjetividade e da transformação corporal, no qual a cirurgia de mudança de sexo e a viagem para o exterior no objetivo de realizá-la era um mote importante dessa trajetória. Aí se destacam categorias em disputa como trans e transex em relação a travesti. Se as mulheres transexuais aí compõem a paisagem das travestis, elas começaram a ser instadas como objeto de reflexão de modo mais evidente ainda junto a transformistas e dragqueens no trabalho, por exemplo, de Juliana Jayme (2001). Fazendo um estudo comparativo entre Belo Horizonte, no Brasil, e Lisboa, em Portugal, a antropóloga questiona as divisões entre essas categorias dentro de um bojo que chama de transgender, utilizando assim mesmo o termo em inglês. Quando apresenta a parcela de transexuais, Jayme as traz centradas no âmbito das cirurgias numa dificuldade analítica em separá-las dos sujeitos que elenca. Ao descrever portugueses e brasileiros, “os travestis” surgem como o contraponto local “dos transexuais” lusitanos, os quais são tidos como recorrendo ao idioma médico por causa da “legitimação médica e jurídica da cirurgia de modificação de sexo [...]. As categorizações sociais provavelmente os levam a procurar uma 167 atribuição (mesmo que não tenham o reconhecimento), uma vez que lá esta atribuição/cirurgia é possível” (Jayme, 2001, p. 79). Vemos através do trabalho de Jayme que nesse período no Brasil parece não ter ainda explodido a preocupação com a diversidade de gênero com que atualmente nos defrontamos, de uma maneira ou de outra. E a cirurgia ainda era o grande veículo para determinar a transexualidade mesmo entre cientistas sociais, separando essas pessoas entre “operados” e “não-operados”. Embora essa divisão possa surgir a partir de categorias nativas, o questionamento da medicalização aí fica a cargo da identificação da cultura ser um veículo de diversificação de tudo e de todos, uma roupa cultural de um corpo biológico. Nesse esteio, a médica Elizabeth Zambrano (2003), com sua dissertação de mestrado em Antropologia Social, especifica seu estudo na transexualidade sem um questionamento ou uma reflexão quanto a patologia. As designações que já vimos do DSM-IV são trazidas na forma de anexos, e o conhecimento da medicina se coloca de modo ambíguo - cuja autoridade apenas se referencia. Enquanto classificações são trazidas como arbitrárias, e a natureza sexual como uma “realidade” entre aspas, o sexo é entendido como uma entidade biológica que determina ser alguém transexual ou travesti a partir da transformação corporal da intervenção médica cirúrgica. Para Zambrano (2003, p. 94), portanto, a conclusão é que “do ponto de vista médico, os transexuais continuam sendo considerados como uma patologia; do ponto de vista social, continuam sofrendo preconceitos e exclusões”. Poder-se-ia, contudo, extrair de seus dados empíricos uma demonstração da dificuldade de separar as categorias de transexual e travesti que ainda acontece no país (Pinheiro, 2016). Quando a autora apresenta, a seu modo, as estratégias de afirmação e acesso às intervenções biomédicas uma de suas interlocutoras afirma que, por exemplo, "dizer que é transexual fica mais científico” (Zambrano, 2003, p. 93), indicando-nos o quão borrado podem se tornar os limites dessas diferenças. A patologia da transexualidade só será trazida como um problema de investigação a partir do trabalho de Berenice Bento, publicado em livro em 2006, mas defendido como tese de doutorado em sociologia em 2003, na Universidade de Brasília. É evidente que Bento se alimenta, em muito, do contexto espanhol particularmente animado pelo já forte ativismo transexual quando realizara pesquisa em coletivos nas cidades de Valência, Madri e Catalunha. Nesse trabalho, também realizado em Goiânia, Goiás, a autora se empenha em apresentar as teorias biomédicas que formularam inicialmente o transexualismo e posteriormente o transtorno de identidade de gênero como objetos de intervenção médica e psicoterapêutica, particularmente relativos a Harry Benjamin, Robert Stoller e John Money, os quais já foram refletidos no capítulo precedente. Um problema a ser questionado se dá em contraponto à posição biomédica de que o “transtorno” é, na verdade, uma produção social historicamente situada que a socióloga chama com originalidade 168 de “dispositivo da transexualidade” apenas possível porque, como demonstrou Thomas Laqueur (2001 [1992]), o ocidente europeu separou o ser humano em dois sexos distintos completamente. Bento indica que os protocolos brasileiros de admissão à época articulam junto com as teorias biomédicas uma correção de sujeitos vistos como não correspondendo a uma matriz normativa heterossexual. O diagnóstico, então, procuraria produzir a heterossexualidade. Bento (2006) faz um movimento de demarcar a pluralidade das transexualidades e critica abertamente a conformação de uma narrativa única perseguida por médicos para autorizarem intervenções cirúrgicas e hormonais, formulando que é preferível falar em “experiências transexuais”, uma vez que reduzir a pessoa a tal vivência impede tanto de entender o que vive como a reduz a estereótipos. Ao invés de se falar em “identidade transexual”, Bento (2006) propõe observar a reunião de pessoas trans como uma comunidade das emoções, retomando a formulação de Max Weber. É a experiência de trânsito que se forma, e de várias maneiras, e não uma essencialização dos sujeitos que acontece no âmbito apenas ideal. Mais uma vez, a socióloga reforça a crítica e o estudo da transexualidade produzida como patologia ao lançar O que é transexualidade, demonstrando os processos arbitrários através dos quais médicos decidem quem é ou não transexual de verdade (Bento, 2008) – essas observações da autora se dão antes da criação do Processo Transexualizador em 2008. A isso segue Flávia Teixeira (2009) que formula um estudo a partir de casos judiciais para entender as formas pelas quais pessoas transexuais ressignificam os processos que vivenciam no decurso do acesso a políticas de saúde e do próprio trânsito de gênero. Pensando numa estratégia linguística para se defrontar contra o discurso biomédico, Teixeira emprega ainda o adjetivo “trans” entre parêntesis. Tais elaborações teóricas questionam a apresentação da transexualidade como uma doença mental e se tornam o pano de fundo no qual as pesquisas sociais – e nas humanidades como um todo – sobre o tema vão se desenvolver no Brasil. Uma consulta ao banco de dados da Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações (BDBT) mostrará um crescimento exponencial no número desses trabalhos não apenas nas ciências sociais. Embora tal Biblioteca, contando somente com 119 instituições (de 192 universidades públicas e privadas existentes no país atualmente), nos dê apenas uma visão parcial, uma vez que nem todas as universidades brasileiras estejam ali presentes, seu corpo já nos indica a explosão de pesquisas nessa área temática. Note-se que ao todo são 195 dissertações e 58 teses nas áreas de psicologia, direito, serviço social, saúde coletiva, humanidades, educação, sociologia, ciência política, antropologia, fonoaudiologia e medicina entre 2001 e o primeiro semestre de 2020. Enquanto de 2001 a 2013 (12 anos) foram apenas 34 dissertações e 18 teses, é do ano de 2014 até metade de 2020 que se percebe esse estrondo (5 anos e meio) com 161 dissertações e 40 teses. Mais que o 169 dobro. O ano que apresenta isoladamente o maior número é 2015 com 22 dissertações e 4 teses. Esses trabalhos129 não seguem, evidentemente, as mesmas orientações teórico-metodológicas nem muito menos endereçam com profundidade e problematização a questão da produção social da patologização da transexualidade. Quando não a tomam como ponto de partida óbvio – no sentido de que a visão patogênica é rejeitada a título informativo –, não a assumem como tal. Berenice Bento tem se destacado nessa problematização, partindo desde se gênero é uma categoria cultural ou diagnóstica – dado que o conceito de identidade de gênero teria sido formulado por um psicólogo para tratar intersexuais e transexuais –, até como ele é revisado, indicando o caráter de lucro capitalista do manual e sua base científica rarefeita, apontando, assim, para a geopolítica de tais formulações. O elemento cultural local do manual fica exposto ao se considerar as pesquisas que justificam a manutenção da presença da transexualidade como categoria diagnóstica, indicando a fragilidade dos métodos e das referências citadas pelos médicos do grupo revisor. Suas análises recaem contextualmente a partir das edições de 1994 (Bento, 2006, 2008), considerando que a de 2013 manteve a patologização (Bento, 2018). Nesse esteio, Berenice Bento e Larissa Pelúcio (2012a, p. 573) propuseram uma “despatologização do gênero”, afirmando que “são as normas de gênero que contribuirão para a formação de um parecer médico sobre os níveis de feminilidade e masculinidade presentes nos demandantes”. E continuam: “serão elas que estarão sendo citadas, em séries de efeitos discursivos que se vinculam às normas, quando, por exemplo, se julga ao final de um processo se uma pessoa é um(a) ‘transexual de verdade’”. Essa forma de patologia, aferem, é uma continuação da “patologização da sexualidade” operante no âmbito das perversões sexuais e das homossexualidades (Bento e Pelúcio, 2012a, p. 572). Discutindo quatro argumentos que endereçam a manutenção do diagnóstico de transexualidade, as autoras apontam que suas bases são frágeis ao exame pormenorizado porque partem de normas de gênero e sexualidade alinhadas à autoridade científica, à falta de eficiência do protocolo analítico, à divisão natural entre os sexos, que não apresenta pureza nem mesmo bioquímica, e à concessão estratégica, que teme que a saída do manual implique a parada de atendimento em saúde. Assim, entendem, “se partirmos do pressuposto de que há múltiplas possibilidades de experiências e práticas de gênero”, de modo a produzir diferentes sentidos às modificações corporais e à transição legal entre os gêneros, “não há justificativa para definir um protocolo fundamentado no transtorno mental” (Bento e Pelúcio, 2012a, p. 576). A expressão “patologização” é preferível a “psiquiatrização” do gênero, defendem, uma vez que muitos outros campos do conhecimento agem na conformação desse tipo de diagnóstico. 129 Detive-me apenas na leitura dos resumos desses trabalhos, e não li todos na íntegra, mas apenas aqueles mais próximos das discussões que empreendo ao longo da tese. Os descritores usados nas buscas foram: transexualidade, transexualismo, trans, transexualismo feminino, transexualismo masculino, disforia, disforia de gênero, homem trans, trans homem, transmasculinidade. 170 Poucas são ainda as pesquisas que procuram entender como as pessoas transexuais pensam a patologização dentro e fora do Brasil. Nesse sentido, André Guerreiro Oliveira (2015) mostrou que os discursos concernentes entre homens trans variavam entre apoiar a permanência da transexualidade nos manuais de saúde e rejeitar terminantemente seu tratamento como um problema médico. Os argumentos se baseiam, grandemente, no medo da perda130 de cobertura legal para que o Estado brasileiro continue a oferecer e aumente a oferta de serviços de saúde que operem o Processo Transexualizador. Na minha dissertação, embora não tenha tratado da medicalização da transexualidade pelos operadores dos serviços de saúde observei como homens trans de diferentes faixas etárias e estratos sociais não apenas não se viam como doentes mentais, como reclamavam o direito e a necessidade de ter a supervisão de médicos quanto aos seus processos de transição de gênero e para as possíveis interações de morbidades daí decorrentes por causa do manejo endocrinológico (Rego, 2015). Esse é o caso também da pesquisa realizada em João Pessoa por Juliana Alexandre (2015) quando demonstra que seus interlocutores se preocupavam em seguir os parâmetros legais biomédicos para ter acesso às intervenções hormonais e cirúrgicas, e não por se verem como doentes que precisavam ser curados e tratados. É interessante notar que Alexandre traz a ideia de tutela para falar desse controle que é produzido nos processos de autorização para se ter acesso a hormônios sexuais e possíveis cirurgias. As três pesquisas acabam por demonstrar estratégias de lidar com o diagnóstico em meio ao se almejar o cuidado em saúde e supervisões biomédicas aí localizadas mesmo diante dos protocolos rígidos ou da ausência de serviços. Na saúde coletiva esse debate também tem sido intenso. Daniela Murta (2011) em sua tese de doutorado pensou especificamente sobre como pensar a despatologização ao mesmo tempo que se pretende garantir a continuidade da cobertura estatal para a transição e o cuidado em geral. Tanto aí como na publicação de outro artigo junto com Guilherme Almeida (2012) há um grande reforço da qualidade intrínseca do SUS como garantidor desse tipo de atendimento. Os próprios princípios do sistema brasileiro de universalidade, integralidade, equidade e participação social oferecem os mecanismos para argumentação e garantia do cuidado em atenção à saúde estruturada para esse fim. Nesse sentido, Márcia Arán (2010) apontou principalmente para os efeitos psíquicos da vulnerabilidade social ao se procurar acessar esses serviços, o que gera ainda maior violência simbólica – recobrando Bourdieu – e participação na patologização do gênero. Nessas considerações tem sido muito marcante a acepção formulada por Bento (2006) sobre ser a transexualidade uma experiência identitária “caracterizada pelo conflito com as normas de gênero”. A autora mostrava que “definir a pessoa transexual como doente é aprisioná-lo, fixá-lo em uma 130 Isso também esteve presente noutros países, como demonstra, na Espanha, Missé (2010) e Missé e Coll-Planas (2010). 171 posição existencial que encontra no próprio indivíduo a fonte explicativa para seus conflitos, perspectiva divergente daqueles que a interpretam como uma experiência identitária” (Bento, 2006, p. 15). O questionamento e a reflexão sobre os saberes biomédicos e psicológicos sobre a transexualidade têm percorrido um longo caminho e se puseram de modo paralelo e/ou anterior às formulações brasileiras, obtendo, desde o final da década de 1980, uma intensificação extraordinária principalmente no cenário euro-estadunidense, mesmo que tenha alcançado atualmente um nível global. Nos Estados Unidos, uma série de fatores contribuíram para gerar um quadro contra essa forma de patologia. Após o fechamento das “clínicas de gênero” universitárias no final da década de 1980, nas quais as intervenções médicas eram performadas em pessoas trans, esse atendimento migrou para o mercado privado no apogeu de um modelo individualista centrado no paciente (Bolin, 1983; Meyerowitz, 2002). Isso foi ainda acompanhado, segundo Eric Plemons (2017), pelo aumento de médicos formados no país e na intensificação da privatização da saúde no mesmo período. O autor demonstra que a narrativa de doença do “corpo errado” que havia ganhado vida naquelas clínicas então fechadas fora desestabilizada, dando lugar a novas narrativas de diferença de gênero. Os ativistas, portanto, argumentavam no começo da década de 1990 que “a vontade para patologizar e medicalizar formas particulares generificadas de ser e de incorporação era em si mesma indicativa de uma patologia social difusa” (Plemons, 2017, p. 48, ênfase do autor, tradução minha). Tomava-se aí a retórica dos movimentos feministas, de gays e lésbicas e dos direitos civis que haviam ganhado força anteriormente, e adotava-se o termo “transgenerista” para materializar também uma mobilização pelo fim da discriminação daqueles que não se encaixavam na rigidez dos protocolos. Mas não se constituíram nesse movimento intelectual e ativista discursos homogêneos; de um lado se encarava o diagnóstico ao celebrar o potencial de transgressão de gênero131 e de outro se afirmava que a patologização impedia o direito à autodeterminação. Segundo Plemons, essa última retórica se inspirou diretamente nos reclames ligados a autonomia corporal presente no movimento das mulheres pelo direito ao aborto. Essa última visão não negava as cirurgias como a primeira, mas advogava e defendia seu acesso sem a classificação patológica, postulando que deveriam ser as próprias pessoas interessadas quem poderiam definir que tipo de cirurgia seria aplicada ou não. Tais ativistas e acadêmicos se baseavam em valores estadunidenses 131 Encaixam-se as reflexões de Susan Stryker (1994) que comparam a experiência transexual a do monstro de Frankenstein presente no romance de Mary Shelley, publicado em 1823, e as de Sandy Stone (1992) quando também critica a visão patogênica e naturalista de feministas lésbicas ao denominar uma visão pós-transexual para o movimento trans. Para balanços recentes ver, por exemplo, Stone e Stryker (2016) sobre os posicionamentos políticos e teóricos de Stone. Em entrevista concedida a mim, Stryker narrou que naquele período havia um misto de incerteza e vigor nas reivindicações que a mobilização estadunidense constituía, mas que não dava para prever suas reverberações (a entrevista encontra-se em fase de preparação para publicação e foi realizada quando do meu estágio sanduíche na Universidade do Arizona, na qual Stryker é professora). 172 de autonomia, no qual um desejo individualista era uma razão legítima para qualquer cirurgia de trânsito de gênero. Nesse contexto, continua Plemons, as intenções por mudanças corporais cirúrgicas passam a não mais depender da contestação do discurso da patologia e do tratamento, mas principalmente do discurso médico que crescia largamente enquanto um meio de alcançar autenticidade e otimização pessoal através das cirurgias plásticas e de ser saudável. Outro cenário em particular, com influência mundial, se circunscreve na Europa, principalmente a partir da Espanha e por meio de movimentos articulados em diferentes países do mundo. Esses movimentos têm um caráter de espraiamento internacional contra a definição da transexualidade como doença mental nos manuais de saúde e nas políticas públicas (Bento e Suess, 2012; Bento e Pelúcio, 2012a; Suess Schwend, 2016). Envolvendo ativistas de dentro ou de fora da academia, além de pesquisadores acadêmicos sob variados matizes sociais e políticos, esse contexto produziu tanto reflexões teóricas como ações coletivas para tentar influenciar as revisões dos manuais de saúde e para problematizar o “diagnóstico trans”. É nesse sentido que Judith Butler (2010), no seu prólogo ao livro organizado por Miquel Missé e Gerard Coll-Planas (2010) sobre o tema, reflete que os termos usados no DSM importam de verdade porque essas palavras são o canal através do qual as pessoas trans são interpretadas no campo das autoridades médicas e, por extensão, no terreno legal. Por ser esse manual tão central em todo o mundo para a prática clínica, se constitui uma luta pela terminologia que se adota para se referir a pessoas trans. Por isso, Butler (2010, p. 2, tradução minha) afirma ser um erro achar que se trata apenas de “nomes” ou “que são apenas uma série de descrições”, “o poder social efetivo está estreitamente ligado ao léxico estabelecido com o objeto de diagnosticar e avaliar os casos médicos e psicológicos das pessoas transgênero”. A discussão sobre a produção de uma patologia trans que se baseia em valores morais sobre masculino e feminino, corpos normais e anormais, de modo que a oposição criativa de natureza/cultura ganha vulto em torno da questão da linguagem como fica nítido na reflexão de Butler, e que perpassa tanto as críticas acadêmicas como as ativistas (Suess Schwend, 2016) fora e dentro do Brasil (Bento e Pelúcio, 2012a). Isso se constitui a partir de uma linhagem teórica que antecede a conformação nitidamente autônoma da problemática trans, e se faz presente nas reflexões sobre a constituição da heterossexualidade como uma linguagem porque a sexualidade e o gênero como instâncias separadas na teoria se fizeram também como um discurso. Sua reflexão se alinha a um corpo teórico, portanto, que irá tecer análises sobre a produção da homossexualidade e da homofobia junto de uma análise da linguagem, da rejeição de termos e da politização de outras palavras originalmente usadas de maneira negativa para ojerizar e abjetar homossexuais que aliam os contrários tidos para heterossexuais, o homem feminino/a mulher masculina e com desejos 173 sexuais para outros homens/mulheres. Essa é uma tradição teórica que terá grande influência em autores e autoras brasileiros que discorrem sobre transexualidade nesse século, e colocam questões importantes sobre violência, desejo, discriminação e marginalidade de populações longe ou pouco dissonantes do ideal hegemônico heterossexual (Sedgwick, 2007 [1993]; Butler, 2001, 2003 [1990]; De Lauretis, 1991; Preciado, 2008; Bento, 2006, 2008a) e que posteriormente se denomina de estudos queer, atravessando diferentes disciplinas e áreas de estudos a partir Estados Unidos132. É por isso que tanta incerteza tive ao pensar em descrever etnograficamente a conformação da ressignificação da categoria psiquiátrica disforia de gênero quando utilizada e referenciada por interlocutores homens trans no curso do trabalho de campo. Assim, foi necessário ter percorrido essa reflexão para entender e explicar como a transexualidade foi ligada a um conjunto de sentimentos medicalizados e como foram levantadas as críticas contrárias a essa constituição diagnóstica das pessoas trans, tanto por autores e autoras brasileiros como por ativistas e acadêmicos estrangeiros que influenciaram e produzem reflexões nesse sentido. Na segunda metade do capítulo, sigo à descrição propriamente dita de como o termo “disforia” e não necessariamente “disforia de gênero” é entendido localmente como um descritor de emoções e de experiências de sofrimento. Não quero inferir que se estabelece uma relação identitária com a categoria, como se houvesse uma autodenominação enquanto “disfóricos”. Mesmo que isso integre processos de subjetivação, estar disfórico é um estado sentimental de nível variado e não uma identidade. Trata-se de um discurso incorporado – no sentido de ser corporalmente situado e vivido133 – que se coloca em meio aquilo que Bourdieu (2008 [1982], p. 81) chamou de “operações sociais de nomeação” que constituem, como “luta de classificações”, as classes sociais de todos os tipos134. Portanto, essas operações se dão dentro de disputas pela validade de palavras e aquilo que organizam. Para evitar a essencialização, bem como para situar a sua complexidade, a etnografia que continuo a seguir posiciona o “sentir-se disfórico” numa perspectiva do cuidado e da vivência das emoções. Alia-se como os interlocutores se percebem vivendo processos de aflição em meio a processos de transição de gênero e através de situações de cuidado em saúde que são agravadas pela marcação social da transexualidade como uma diferença. Entender antropologicamente a produção social das emoções implica levar a sério a concepção da linguagem de sua expressão e organização social. 132 No Brasil, além de muitos cientistas sociais – e pedagogas – terem intensamente recepcionado os termos da teoria queer (ver Louro, 2000; Miskolci, 2012; Pereira, 2012), se produziram formas alternativas ou traduções culturais dessa teorização, como é o caso de Berenice Bento (2017) que formulou a ideia de “estudos transviados” e Larissa Pelúcio (2014) com sua “teoria cu”, as quais procuram dar relevo aos trânsitos de gênero e sexualidade e aos problemas/confusões que causam nas relações sociais. 133 Sempre que eu usar o termo incorporado ou incorporação me referirei a modos nos quais as formas sociais se estabelecem através do corpo, isto é, as maneiras como se sente corporalmente as regras sociais por meio do habitus, a que já me referi. 134 Nesse trabalho Bourdieu não formula classe social em termos apenas socioeconômicos, como um grupo que mantém uma regularidade unida de renda e de hábitos, mas classe na sua acepção mais larga como um todo definido que pode se remeter a qualquer tipo de classificação como por ex., o sexo, a idade, a etnia, entre outros. 174 3.4. Transição de gênero, adoecimento e emoções A partir de Bence Solymár e Judit Tukács (2007), Raewyin Connell (2012) vocaliza a “transicionalidade” como ideia-chave para entender e explicar a transexualidade. Sua preocupação é de repensá-la como um processo de gênero no qual as dinâmicas sociais são mais importantes do que as identidades, uma vez que estas não endereçariam suficientemente a dimensão da mudança de posições sociais. Essa transição implica um trabalho corporal a tal ponto que o corpo se torna crucial nessa experiência – como mostram várias pesquisas e não só a minha (Bento, 2006; 2008; Rego, 2015; Solymár e Tukács, 2007; Connell, 2012) –, de modo que “o que é feito com os corpos no curso das transições de gênero pode evocar horror e raiva, evocando medos sobre castração e monstruosidade” (Connell, 2012, p. 866, tradução minha). A socióloga parte primordialmente das experiências de mulheres transexuais nas quais a ideia de castração135 é um marco ao se pensar na redesignação sexual pela transformação do pênis em vagina. O que ela quer indicar é o caráter continuamente prático da transexualidade: que tipo de trabalho se enseja e se produz para mudar de gênero. Isso não aponta para um alcance impossível de uma reta final, o foco está no processo através do qual alguém se constitui ao lidar com o que chama de “estrutura de gênero”. Assim, é melhor “pensar sobre processos poderosos de incorporação social como constantemente engajando corpos e agência corporal, bem como práticas sociais e significados culturais” (Connell, 2012, p. 867, tradução minha). Na minha pesquisa de mestrado observei que homens trans situavam duas dimensões, embora unidas, da transição de gênero: uma se referia ao trabalho corporal e outra a um engajamento subjetivo. Seria no terreno individual em interação social que alguém se estabeleceria como noutro gênero por meio de um conflito, e assim começava sua transição sem necessariamente acionar seu corpo – a narrativa, portanto, do “corpo-errado”. Dava-se como se o eu interior fosse ontologicamente anterior ao corpo sobre o qual agora bastava adequar, uma teoria muito similar às explicações psi e biomédicas que já vimos até aqui. Entretanto, essa importância dada a uma descentralização de concepções sobre o corpo respondia ainda ao escrutínio biomédico sobre a definição de quem seria ou não transexual de verdade: apenas após uma cirurgia de mudança de sexo se poderia mudar o registro civil, apenas apresentando aversão ao corpo se poderia ser enquadrado como transexual. A ideia é que não houvesse cirurgias nem modificações outras obrigatórias. Contudo, isso transborda os ambientes de saúde, uma vez que o campo que investiguei não se dava primordialmente com um contato com médicos e médicas dado que em 135 A castração tem sido uma ideia ou uma experiência recorrente nas reflexões sobre gênero e sexualidade, dentro e fora do “Ocidente” europeu. Simone de Beauvoir (1970 [1949]) já a pensou para estudar a posição da mulher nas sociedades, comparando- as a outras espécies animais e à experiência dos eunucos para mostrar que a ausência de pênis não era em si o que tornava a mulher inferior nas “relações entre os sexos”. 175 Natal, no Rio Grande do Norte, à época, não havia nenhum serviço estruturado nesse sentido. Por isso, era uma estratégia política trazer a subjetividade para um primeiro plano, ao mesmo tempo em que essas descrições não subsumiam com o corpo como algo desimportante para esse processo de subjetivação, presente, por exemplo, na metáfora do espelho (Rego, 2015)136. A narrativa do espelho era uma dimensão importante nessas biografias que acabavam por gerar uma representação do corpo pela transição. Se, num primeiro momento, parece ser deslocado para dar vazão à razão subjetiva presente na mente – separada do corpo –, as descrições do encontro com o espelho expressam novamente a centralidade da agência sobre o corpo, isto é, a forma como alguém olha para si mesmo e produz sentidos sobre seu corpo que não estão dissociados das expectativas culturais e sociais para o gênero a partir do qual, e por meio do qual, se constitui uma experiência de desconforto e angústia que essa cena quer ser um extrato (Rego, 2015). Isso também esteve presente nas narrativas de vida dos interlocutores no curso da pesquisa para essa tese. O espelho expõe algo do corpo, mesmo que aí possamos conceber que essa cena dramaticamente concebida produz ela mesma os lugares que esse corpo ocupa e aquilo que se pode fazer dele. Essa narrativa é expressa por meio das emoções e participa da produção da transição. Embora nem todas as pessoas tenham a mesma relação com os corpos, no sentido justamente a que responde a centralização da subjetividade para explicar a transexualidade, o corpo continua sendo o lócus e uma dimensão importante do processo de trânsito entre os gêneros. A narrativa da transição de gênero se materializa como um discurso no qual se organizam emoções vivenciadas socialmente. Mesmo que Raewyin Connell (2012) evoque que a transição implica um trabalho muitas vezes árduo de engajamento corporal, cujo resultado e vivência processual implicam sentimentos como medo e aversão, a experiência das emoções é um terreno pouco desbravado por pesquisadores dessa temática. Chamara-me a atenção no trabalho de campo conversas entre os interlocutores sobre o quão pouco frequente eram discussões sobre um certo mal-estar vivido por eles. Descrições nesse sentido tem geralmente ocupado mais as páginas daqueles que apontam a transexualidade como algo irreal ou doentio, como o faz a notória Sheila Jeffreys (2014) em seu livro Gender Hurts. A feminista replicava os argumentos de décadas anteriores de Janice Raymond (1979) para quem as mulheres transexuais seriam uma ameaça a mulheres lésbicas por um qualificador masculino inerente levá-las à violência e à dominação das “mulheres de verdade”. 136 Cabe apontar, ainda, que é necessário não ter uma visão estanque da transição de gênero, uma categoria concebida também pelos interlocutores como algo que tanto diz respeito ao trabalho múltiplo do reconhecimento oficial da mudança entre um gênero e outro, como também se refere a experiências de uma vida inteira porque não é possível haver uma fixidez tão rígida que estabeleça tipos puros de posições sociais. Era por isso que um dos interlocutores da época do mestrado me dizia que estava em transição “desde sempre”. Além disso, as transições atingem quaisquer sujeitos, sejam eles trans ou não, porque os movimentos entre normas, valores e corpos não são fixados como o ideal de heterossexualidade hegemônica peleja para conformar. 176 Jeffreys chega a defender que o discurso biomédico sobre, como chama, transgenerismo estaria desestabilizando a comunidade gay e lésbica ao seduzi-la para a correção que a transexualidade representaria. As cirurgias são por ela qualificadas como abuso médico dos direitos humanos. Nesse sentido, é mister que nos ocupemos da produção social dos sentimentos no processo da transição, e do conjunto de emoções a ele relativo, considerando como as próprias pessoas trans produzem significados e organizam-se no âmbito dos sentimentos. Com isso, atrelam um entendimento sobre o sentido e efeitos sociais dos eventos e das experiências que vivenciam. Isso nos levaria ao afastamento de senso comum desprovido de reflexões com base empírica, nos prevenindo do subjetivismo de Jeffreys. Haveria um mal-estar inerente a transição de gênero? Se esse mal-estar existe, de que ele advém, e quais são seus efeitos? Como se produz sentido sobre ele? Quero sugerir que, ao invés de pensar em “mal-estar”137, pode-se conceber como se constituem processos de aflição no curso das transições e do conflito por elas produzidas. Não como algo naturalizado, mas como nos instando a entender as condições sociais e simbólicas para sua concepção, sensação e significação. Uma questão fundamental nesse sentido é compreender a relação entre corpo e emoção. E mais precisamente, refletir sobre o que pode e o que não pode a análise das emoções oferecer para entendermos a conformação “nativa” da disforia enquanto um extrato de afetos, como nos ensinam os interlocutores dessa pesquisa sem repetir ipsis litteris os sentidos atribuídos pela medicina e para quem a aversão ao se olhar no espelho, por exemplo, é a manifestação da violência advinda dos conflitos sociais que são corporalizados. A abordagem antropológica das emoções não guarda apenas uma vertente analítica, embora seja comum o valor atribuído a etnografia como o único ponto de partida válido para os dados empíricos. Com um status ambíguo, as emoções sempre estiveram presentes nas monografias na disciplina, seja de modo natural ou como objeto além da alçada dos antropólogos e antropólogas (Rezende e Coelho, 2010, 2011; Víctora e Coelho, 2019). Sua relevância inicial foi particularmente observada nos trabalhos da vertente psicológica culturalista estadunidense segundo a qual os indivíduos eram loci de observação para entender as formações do eu interior, algo que não pode ser dissociado do status elevado na cultura daquele país: as emoções como expressão da parte mais profunda e verdadeira do indivíduo. Isso fora replicado no estudo do outro exótico, ora por sua reunião para formar uma psicologia coletiva (Mead, 1999 [1935]), ora para ser por ela estabelecida conformando tipos coletivos de moralidades (Benedict, 2002 [1946])138. No desenvolvimento dessa 137 No sentido que subjaz na ideia psicanalítica de Sigmund Freud (1996 [1929]) sobre o desenvolvimento algo natural das emoções. Assim, o autor explica os incentivos e impressões sentimentais como são cruciais para o eu interior mais profundo. Mal-estar significa, portanto, a ausência de correspondência entre os sentidos e a satisfação de uma necessidade individual intensa. 138 Apesar de ter caído em desgraça, ocupando hoje uma posição apenas histórica, os trabalhos das chamadas escolas estadunidenses de cultura e personalidade e seus continuadores renovados em “antropologia psicológica” – e dos antropólogos subespecializados em linguística – ajudaram a assentar o interesse sob muitas das categorias e dimensões com as quais a antropologia hoje trabalha como “eu”, “emoção”, “indivíduo”, “discurso” (speech), entre outros. E foram, elas mesmas, uma reação contrária a Freud. A própria 177 corrente se constituiu uma tradição que observava as emoções como propriedades das pessoas ontologicamente anteriores ao social. A sua localização se daria na cultura, mas em termos muito generalistas querendo apreender um “léxico emocional”. A linguagem seria a via de acesso para entender as emoções, como o veículo de sua transmissão. A abordagem é, então, correspondente a uma psicologia social dominada por um individualismo metodológico (Lutz e White, 1986). No final da década de 1970 e início dos anos 1980, antropólogos e antropólogas começam a estudar as emoções de diferentes maneiras dando mais relevo à dimensão sociocultural. Crescia, assim, a rejeição quase ojerizada do viés “psicológico” naturalista que dominava outras ciências e as primeiras apreensões da própria antropologia. Nesse contexto, novas etnografias indígenas são escritas objetivando demonstrar um caráter eminentemente cultural, não natural, dos afetos (p. ex. Lutz, 1988). Disso, as diferenças nas concepções teóricas ganham vulto entre universalistas e relativistas, oposição que guarda à primeira o estabelecimento de uma habilidade humana universal e suas variações como epifenômeno da essência de um fenômeno natural, e à segunda, que rejeita a acepção de um estado interno de indivíduos e enfatiza a diversidade cultural (Lutz e White, 1986). Outra oposição que goza de relativo relevo é aquela entre descrições de sentimentos corporais ou significados culturais (Leavitt, 1996) através dos quais o corpo (e o pensamento) é a matriz na qual a emoção é vivida (Rosaldo, 1980). Paulatinamente, consolida-se uma visão cada vez mais relativista preocupada em indicar que o domínio das emoções não poderia ser o mesmo em todas as culturas, isto é, não apenas as culturas detinham emoções diferentes para os mesmos problemas, como sua expressão, controle e definição eram diversos. Explorando os cruzamentos constitutivos entre a fala como recurso à comunicação e as políticas da vida cotidiana, autores reunidos no volume editado por Lila Abu-Lughod e Catherine Lutz (1990) marcam exemplarmente o que se tem chamado de “virada discursiva” ao reclamar pelo caráter linguístico da expressão e do acesso metodológico às emoções. Na sua introdução, as antropólogas realizam um balanço e buscam reorientar o campo nesse sentido. Abu-Lughod e Lutz (1990a, p. 1-2, tradução minha) definem essa então nova abordagem pelo seu foco na “constituição da emoção, e até pelo domínio da emoção em si mesmo, no discurso ou nas práticas de fala, por sua interpretação da emoção referente a vida social mais do que a estados internos”. Mesmo não se referindo ao eu interior, essa vertente considerava uma ligação imediata entre “as conversas emocionais e as questões de sociabilidade e poder”. Partindo do pressuposto de que as emoções são construtos socioculturais, interessam-se pelas “maneiras pelas quais a emoção toma seu significado e sua força a partir da sua localização e performance no reino do discurso” (idem, p. 7). concepção de que a linguagem acessa as emoções é um mérito desse período na sua preocupação com uma psicologia cultural (Darnell, 2001). Ver Regna Darnell (2001) para um entendimento aprofundado desse campo. 178 Mais próximas de uma análise foucaultiana do discurso do que da abordagem da linguística que dominava os trabalhos anteriores, tornava relevante considerar conversas, falas, expressões orais e escritas, e até mesmo musicais. Não na forma de texto, mas como se constituem enquanto práticas sociais, rejeitando assim um modelo mentalista para a descrição etnográfica. Essa virada é herdeira dos trabalhos que exploraram as facetas das emoções por meio da performance e da linguagem. O discurso apreende o sentimento partindo da concepção de que ele é um fenômeno que pode ser visto na interação social majoritariamente verbal, levando a não desconsiderar o seu caráter de mudança e contestação social. Outra importante apreensão dessa vertente é sua afirmação de que as emoções não apenas são informadas por valores e elementos culturais, mas como são elas mesmas operadoras de um campo de atividade sociocultural ao produzir efeitos onde servem como idioma para comunicar e para atingir diferentes assuntos relevantes da vida coletiva, como o conflito (White, 1990; Lutz, 1990). Essa importância dada ao discurso tem sido chamada de exagerada, sob acusações de que não se daria o verdadeiro valor a como as emoções são incorporadas, isto é, como são sentidas pelo corpo. De algum modo antecipando essas críticas, as autoras afirmaram que “a iniciativa para assegurar que as emoções se mantêm incorporadas, contudo, deve ser vista como mais do que uma tentativa para posicioná-las no corpo humano. Considerar a incorporação das emoções também envolve teoricamente situá-las no corpo social para que se possa examinar como os discursos emotivos são formados pela e nas formas das ecologias e economias políticas nas quais elas surgem” (Abu-Lughod e Lutz, 1990a, p. 13, tradução minha). Ainda assim, a afirmação de Abu- Lughod e Lutz (1990a) de que a emoção participa do discurso, mas não é ela mesma o discurso caiu sob um escrutínio que passou a afirmar que as emoções não são apenas expressadas, elas são produzidas através da linguagem (Allard, 2013) no movimento de sua expressão porque, de algum modo, se o discurso apenas expressa, ele expressa algo interno ao sujeito, uma qualidade interior profunda. Mesmo considerando aqui que analisar etnograficamente o lugar e o papel das emoções na vida social implica que se deva considerá-las no modo como são produzidas, sentidas, compreendidas e organizadas aliando-se ao que surge como efeito e consequência, as proposições dos autores da vertente da virada discursiva permanecem pertinentes na forma como endereçam o acesso do discurso às emoções e a forma como elas são vividas através de uma performance cotidiana que alcança elementos considerados os mais banais. Como se percebe até agora, os termos emoções, sentimentos e afetos têm sido usados de modo sinonímico. Embora tenha havido certo interesse de alguns autores em separar conceitualmente tais termos (Abu-Lughod, 1986; Besnier, 1990; Abu-Lughod e Lutz, 1990a; Boellstorff, 2004; Wilce, 2009; Allard, 2013), compreende-se aqui não haver uma distinção 179 etnograficamente relevante a esse respeito para se passar a tal empreitada. Essa tem sido uma dimensão que ora era acionada como uma capacidade individual de reagir a estímulos coletivos, ora produzida inteiramente por causa do contato com outros no curso das interações sociais. Mas não havia uma representação precisa que separasse “sentimentos” de “emoções” ou “afetos” – esse último estava situado mais no âmbito afetivo-sexual entre parceiros amorosos. Essa concepção contraditória animou a compreensão dos interlocutores sobre como “a sociedade” lhes produzia os adoecimentos que viviam, sejam eles relativos ou não a uma consequência pela discriminação que sofriam advinda dos seus trânsitos corporais e institucionais na busca por se posicionar diferentemente nas relações de gênero ou pelo agravamento ou facilitação de adoecimentos outros. Quando as teorias, terapêuticas e protocolos biomédicos estabelecem a angústia (distress) como sintoma principal para reconhecer a disforia de gênero nos defrontamos principalmente com a problemática da natureza das técnicas para medir esse sentimento, uma vez que é impossível haver o mesmo nível mensurável de “angústia” a não ser se for definido arbitrariamente. Mary-Jo Del Vecchio Good, Byron Good e Michael Fischer (1988) há muito já apontaram as dificuldades de inferir uma medição desse tipo, algo já exposto nas etnografias de então. Ao analisar pesquisas sobre sociedades do Oriente Médio, os autores mostraram que percepções públicas do nacionalismo virulento e apaixonado e o fundamentalismo religioso tido como irracional eram justapostos a uma leitura psiquiátrica que postulava que pacientes desse contexto somatizavam angústias mais do que expressavam emoções. Ou seja, se medicalizavam os sentimentos vividos contextualmente. Isso respondia a um interesse em descrever a “mente árabe” e um tipo de caráter nacional. A dificuldade analítica recai de modo redobrado se a comparação é realizada entre culturas, levando os autores a sugerirem que se deveria partir de discursos situados, se aliando as formulações de Lila Abu-Lughod (1986) e outros antropólogos da virada discursiva. Se havia aí uma formulação de “cultura” muito bem definida, podemos realocar a preocupação nas fronteiras ou regiões produzidas pelos próprios grupos, comunidades e sujeitos, ao invés de impormos uma cultura emocional específica. “A conceitualização da emoção como uma qualidade de experiência representada em dimensões sutis da linguagem se afirma em contraste a recente pesquisa cognitiva que focalizava quase exclusivamente em emoções como discretas, estados marcados e dimensões referenciais do discurso emocional” (Good, Good e Fischer, 1988, p. 4, tradução minha). Essas interpretações têm demonstrado, assim, o cruzamento indissociável entre experiência das emoções, terapêuticas e adoecimento. Isso me insta a observar o cruzamento dessas experiências com processos de saúde e doença e outras dimensões da vida social demarcadas por outros marcadores sociais da diferença. Por isso que opto, ao continuar esse capítulo, em descrever transições de gênero em meio as vivências relativas a itinerários terapêuticos. Não me refiro, agora, 180 aos protocolos admissionais do Processo Transexualizador em si, mas como o entrecruzamento no campo da saúde e da diferença produzem experiências de sofrimento que reforçam processos de aflição já presentes nos conflitos relativos aos de trânsitos de gênero. Para lidar, organizar e significar essas experiências multifacetadas, os interlocutores são aqui descritos de modo a expor suas estratégias no âmbito duma linguagem das emoções em meio a relações de cuidado e práticas sociais que procuram constituir. A descrição disso se apresenta como a condição sem a qual não poderíamos entender algo da concepção do sentir da disforia. Passo, a seguir, a recorrer num estilo narrativo a histórias de processos de sofrimento cruzados por adoecimentos e por transições de gênero, para, posteriormente, refletir sobre elas. 3.4.1. A disforia como categoria classificatória do sofrimento Quando cheguei à casa de Paulo percebi que a fachada era bonita, pintada e parecia recém- reformada. Ela destoava do resto da paisagem que compunha a rua, que era dominada por um vermelho barro de casas e lajes nuas, sem reboco. A rua era larga e eu não via seu final. Essa imagem é bem viva na minha memória, talvez porque fosse a primeira vez que visitava uma das favelas de Fortaleza, as quais estavam com muita frequência nos jornais da cidade quando os jornalistas escreviam longas ou rápidas notas sobre o tráfico de drogas e as brigas entre facções139. Havia muita gente na rua naquele momento, ainda no meio da manhã. Crianças brincavam, correndo, outras meninas adolescentes passavam carregando provavelmente irmãos mais novos nos braços; e os pequenos comércios próximos, como a borracharia de frente, eram bem movimentados. Tinha chegado ali de ônibus, seguindo as orientações de Paulo sobre qual “pegar”, em qual parada descer e quanto eu teria que andar depois disso. O trajeto demorou um pouco e eu ainda me perdi; fui descer bem depois do lugar indicado, tendo que voltar a pé. Após alguns minutos após ter avisado que estava à sua porta, Lucíola, sua companheira, veio abrir o portão. Ela pedia para eu não reparar na bagunça, após andarmos por um corredor cinza de térreo, apenas rebocado, diferente da fachada do que agora percebia ser um pequeno grupo de quitinetes de um andar. Davam-me as boas-vindas e pediam para que eu me sentasse, e logo mais iríamos começar a entrevista para a qual estava a lhes visitar. Paulo ainda estava terminando de se arrumar, colocando o seu bainder, para poder me receber. Antes de iniciarmos, eles me ofereceram algo para comer como café da manhã. Enquanto comíamos, conversamos bastante antes de começarmos a entrevista. Lucíola pergunta-nos se pode 139 Alba Zaluar (1985) experienciou algo semelhante na sua etnografia na Cidade de Deus, no Rio de Janeiro. Apesar de Paulo e Lucíola morarem nessa região, possivelmente identificada como favela, o cenário não era de ocupação irregular do espaço, nem houve uma significativa preponderância desse contexto para as reflexões que empreendo nessa tese. Além disso, não convivi com eles na região. Para entender o contexto das facções e do crime organizado em Fortaleza ver Luiz Fábio S. Paiva (2019). 181 ficar presente, e eu digo que eles quem deveriam decidir e ela permanece. Sua casa de três pequenos cômodos, incluindo um banheiro, é o que podem pagar com o salário-mínimo que Paulo recebe de seu emprego como atendente de telemarketing. Seus planos são de se mudar dali o mais rápido possível, e estavam à procura de um lugar em que se sentissem mais confortáveis. Lucíola procurava emprego sem sucesso nos últimos meses. Sem experiência profissional, e jovem e trans, sempre esbarrava na prerrogativa de seus documentos não combinarem com sua aparência feminina. Há poucos meses começara a receber um benefício social do Bolsa Família. Embora possa parecer pequeno, um pouco mais de cem reais, esse acréscimo na renda do casal fazia uma enorme diferença no final do mês. Ambos não tinham contato com suas famílias de origem, nas quais não eram bem-vindos. Paulo nos diz que Lucíola, sua companheira, é a única família que ele tem desde que todos os seus familiares não se preocupam nem querem saber notícias a seu respeito. Esse momento nos emociona e eles se abraçam. Conheço os dois antes de viverem juntos na casa atual, pois acompanhava suas atividades nos grupos de ativismo da cidade e testemunhei quando se conheceram e começaram a namorar. Sentiam-se a sós no mundo, e a companhia um do outro, para além dos amigos do movimento social, os animava a vida possível para além daquela precariedade que precisavam se defrontar cotidianamente tanto socioeconômica, como no âmago das relações de gênero e sexualidade. Paulo, particularmente, vinha se sentindo sobrecarregado com o emprego do qual não gostava e do pequeno salário que não durava até final do mês. “Quando chegava dia 20 eu não tinha mais o que comer”, dizia para lembrar que antes de viver com Lucíola passara fome. Vindo de uma cidade de menos 20 mil habitantes no interior do Ceará, a 300km a norte da capital, Paulo se reconhecia como indígena, mas gostaria de informar sua etnia. Sendo o filho mais novo de uma família de “irmãos homens”, era culpado por seus parentes por não ter permanecido na sua cidade após as mortes de sua mãe e avó, que ocorreram na mesma semana. Como foi identificado ao nascer como mulher, me diz, esperava-se que tomasse conta dos irmãos, mas ele nunca se viu nessa posição de cuidadora. Via-se sendo o mecânico que seu pai e irmãos eram, mas nunca permitiram que aprendesse o ofício em casa. Com a ruptura que a morte de sua mãe representou, migra para Fortaleza sozinho para tentar recomeçar a vida. Aos poucos, com uso da internet e eventos ativistas na cidade, vai conhecendo outros homens trans, e chega a participar da organização política que crescia na época em que eu fiz trabalho de campo. Na verdade, até o momento que mantivemos contato no campo sua família não sabia nada sobre a sua transição. Apesar da dimensão coletiva do movimento social, cada um desses interlocutores tem sua própria vida para contemplar com seu próprio esforço. É o que fica nítido quando demonstram que os amigos ajudam, mas até um certo ponto. É preciso ir à luta também por si mesmo. 182 Quando terminamos nossa entrevista de mais de uma hora, sigo com Paulo para a parada de ônibus que fica numa rua paralela à sua; ele iria para o trabalho e entraria pouco depois das 14 horas da tarde e trabalharia até 22 horas da noite daquele dia. No caminho continuamos a conversar, ao que me confidencia que não aguenta mais seu emprego. É constantemente assediado pelos seus colegas e supervisores que lhe chamam por seu nome feminino de batismo e, vez ou outra, é motivo de fofoca no ambiente de trabalho sobre ser doente ou ser um produto de forças malignas através de uma perspectiva religiosa judaico-cristã. Mas o que pode fazer, me pergunta, se sem esse emprego estaria fadado a fome imediata? Sem parentes a quem recorrer, não tem alternativa a não ser se submeter a essa rotina excruciante. Já descemos do ônibus e caminhamos por uma rua que dá acesso a empresa na qual trabalha. Antes de nos despedirmos reforça que toda essa situação financeira e laboral está lhe fazendo adoecer. Como se não bastasse ter que lidar com os desconfortos que seu corpo lhe trazia – por não ter os recursos para as modificações –, tudo se tornava ainda mais difícil por não ter certeza se no dia seguinte conseguira se manter no emprego ou se seria demitido – como outros foram recentemente na empresa na qual trabalha. Uma série de incertezas estavam a sua espreita, da fome, do desemprego, de não se afirmar na identidade e no corpo que deseja, elementos disjuntores que produzem um processo de aflição inquietante. A sensação estava sendo quase insuportável, afirmava. Para tentar sanar as sensações que descrevia como ansiedade, tristeza e inquietações começara a tentar uma consulta no CAPS com um psiquiatra, o que não se demonstrou de fácil realização. Antes dessa entrevista, Paulo tentara diversos encaminhamentos para conseguir marcação com algum médico do serviço de sexologia da região que poderia iniciar alguma supervisão à sua transição. Mas não vinha conseguindo fazer com que um médico de família o encaminhasse do postinho para o hospital no qual havia uma sexóloga. Saímos da casa de amigos na qual estava num dia anterior para um atendimento com uma assistente social da Prefeitura para conseguir tal encaminhamento. Conforme chegamos lá, a assistente social ainda não se encontrava. Enquanto a esperávamos, continuamos conversando sobre como ele tem se sentido sozinho, já que se mudara para Fortaleza e não tinha familiares ali. Há poucas semanas havia conhecido melhor Lucíola, de quem havia gostado particularmente, me confidenciando que estavam começando a “ficar”. “Ela é trans como eu”, afirmava, “ela me entende muito”. A similaridade de suas experiências os tornavam mais compreensíveis às estratégias que poderiam ter que assumir para a transição, a organização das alterações corporais e a relação com as instituições estatais. Algo que uma pessoa não-trans geralmente não entenderia, me diz. Passados mais de trinta minutos perguntamos novamente se a assistente social ainda viria fazer o atendimento, ao que nos responde que ela estava presa no trânsito, mas que logo chegaria. Passam das 10 horas da manhã quando Paulo é atendido, mas sai 183 dali sem o encaminhamento. Apenas a psicóloga do serviço poderia fazê-lo, de modo que precisaria voltar outro dia. Saímos e o acompanho até a parada de ônibus ainda no centro da cidade, quando ele retorna para casa já que entrará depois do almoço no trabalho. As idas e vindas aos serviços ganham um agravamento ainda maior quando Paulo continua, após tentar repetidas vezes, sem uma consulta com o psiquiatra para “resolver” o que denomina de ansiedade. Passados vários dias da nossa entrevista na sua casa, à noite, recebo um telefonema de sua companheira Lucíola me pedindo ajuda. Paulo estava tendo “uma crise” e se debatia após sentir o que chama de “síndrome do pânico”. Ela me pede ajuda para contatar uma ambulância, e me conta que estão há várias semanas tentando consultas nos postinhos do bairro no qual moram e vizinhos, mas sem sucesso. Os bairros nos quais moram e eu morava eram geograficamente opostos, e nesse momento estou em casa e me sinto muito impotente por não poder ir eu mesmo lá ajudá-los; o que posso fazer, contudo, é ligar para a emergência, retornando seu telefonema para dizer que estão a caminho. Fiquei a noite toda preocupado, e mais tarde procuro saber se as coisas se normalizaram, mas consigo falar com Lucíola apenas no dia seguinte. Paulo passava bem, mas a situação de sua ansiedade não havia se resolvido, uma vez que seus problemas que eram produzidos socialmente, como a precariedade de seu emprego e a falta de acesso a consultas médicas para dirimir suas preocupações diante de sua aflição com o corpo, também não chegaram a uma resolução em primeiro lugar. Paulo se via vivenciando um processo de adoecimento segundo uma linguagem e inteligibilidade biomédicas, e por isso, o acesso ao psiquiatra era por ele indicado de forma tão importante. Não seria apenas a terapia psicológica que iria ajudá-lo a “suportar” seu emprego, as situações vexatórias que vivia lá e a falta de maiores recursos para comer melhor e morar bem. O medicamento que o psiquiatra poderia oferecer para aplacar um pouco sua aflição que denominava de ansiedade era a única saída que imaginava no momento. Ele definia-se “tendo” um “problema psicológico” por causa do que estava vivenciando ultimamente. Dentre as vezes que procurou ser encaminhado para o CAPS no postinho, lhe disseram que o serviço era apenas destinado a casos de “risco de morte”. Ele me pergunta, “como saber quem está em risco de morte?”. A avaliação de quem está bem ou não para ser apto ao atendimento psiquiátrico é, então, questionado por Paulo ao continuar narrando os itinerários que teve que percorrer para conseguir alguma consulta no âmbito do Processo Transexualizador. Voltando a entrevista que realizamos na casa de Paulo, lhe pergunto o que ele tem pensando sobre a transexualidade ser reconhecida através de um diagnóstico. Respondendo que não se considerava doente, a conversa acaba envolvendo também Lucíola que expressa “sua opinião”, como diz. Se no decorrer do dia a dia, e inclusive nas atividades do movimento social era expresso 184 que se sentiam mal com o próprio corpo, trazendo a categoria “disforia”, nosso diálogo a seguir exemplifica como a consideram. Depois de dizer que gostaria de fazer todas as cirurgias (mamoplastia, histerectomia, faloplastia), Paulo retoma nosso diálogo: Paulo: [A disforia é] não se sentir bem com alguma coisa, uma coisa que tá te incomodando, te fazendo mal e tu quer tirar e não consegue. Como se fosse uma coisa no seu corpo que tá grudado e você não consegue tirar e te faz totalmente mal e você não quer tá perto daquilo. É uma coisa que te faz tão mal que você nem consegue olhar praquilo. [...]. Tem a ver com o corpo. Não vejo [como doença]. Lucíola: Porque.... Posso dar minha opinião? Eu: Pode.... Lucíola: Porque disforia, se for pela base do significado da palavra, é quando você tem, é.... aversão a algo que está no seu corpo. Então, eu acredito que toda pessoa tem. Paulo: Toda pessoa tem, isso. Lucíola: Principalmente as mulheres cis... e todas as mulheres, né, mulheres cis, todas as mulheres, trans, travestis, porque a sociedade nos impõe a estética, né?! E se a gente perde a estética, perde a validade pra eles... Paulo: Até os homens também eu acho, os homens cis tem disforia. Lucíola: Sim, tem. Paulo: Tem homem cis que tem pênis pequeno e “ai, eu não gosto disso aqui, quero ele maior”. Toma até remédio pra poder aumentar, né?! Ou então, tipo: “ah, eu não tenho barba, quero ter barba, será se eu sou menos homem por causa disso?” Então tem homem cis tem isso, só que pra eles é um mal-estar, e o nosso é a disforia, é a coisa da cabeça, doente mental. Lucíola: Mulheres que tem seios pequenos: “ah, tem que botar silicone”. Já vi uma amiga minha que a mãe dela disse que quando ela crescesse ia pagar pra ela botar silicone. [...]. Paulo: Ou seja, é, as pessoas cis veem com isso só um desconforto que elas querem, tipo, esteticizar e deixar melhor. E enquanto a gente, é, enquanto pra eles, eles veem a gente como pessoas que tem problemas mentais que querem mudar uma parte do corpo pra outra que nada tem a ver, quando eles fazem as mesmas coisas quando fazem cirurgias, né?! Lucíola: Todas as pessoas têm disforia, só que umas têm um grau maior (Entrevista com Paulo e Lucíola, mar. 2018). Vemos, assim, uma comparação que normaliza as mudanças corporais no decurso da transição de gênero porque as estabelece lado a lado daquelas advindas pela via das cirurgias estéticas140 e pelo desconforto que qualquer pessoa poderia sentir, desmedicalizando até certo ponto sua percepção. A estratégia da comparação deixa em relevo que a liberação total das cirurgias estéticas e o controle rígido das cirurgias e outras mudanças corporais das pessoas trans responde 140 A relação das cirurgias de redesignação sexual com as cirurgias estéticas era tomada por diferentes agentes sociais no curso do trabalho de campo. Se, num primeiro momento, os pacientes e/ou ativistas inferiam que as primeiras não são “estéticas” para assegurar uma necessidade de saúde, era aliada a segunda porque não lhe havia nenhuma regulação diagnóstica. 185 a uma moralidade e não a um risco genuíno desses procedimentos. Algo que será realizado por outros interlocutores quando incorporaram explicações sobre como sentem uma disforia. Não se preocupa, contudo, com a menção e grande articulação dos termos pelas ciências médicas que formularam e aplicam as avaliações que selecionam os que podem ou não mudar partes do corpo. Assim, Lucíola e Paulo veem que as cirurgias de transição deveriam ser enquadradas como respostas às mesmas questões que as “cirurgias de estética” respondem: o aprimoramento do corpo como um aperfeiçoamento de si. Geíza Pereira Alves (2007) demonstrou que as formulações de pessoas que procuravam cirurgias estéticas atribuíam como fundamento que essa modificação corporal fosse resultado de uma razão que colocava a cirurgia para si ou para o outro. De um lado se tinha que isso advinha da vontade de assegurar uma beleza para a continuidade do casamento, por exemplo; e para a segunda, a racionalização estava numa maior presença de um individualismo que atribuía ao “sentir bem consigo mesmo” o pilar dos desejos da mudança. O corpo ideal aí não é um propulsor isolado. A cirurgia para si “revela também funções psicológicas e morais. Deixar a feiura tomar conta de si caracteriza a um só tempo uma ruptura estética e psíquica, da qual decorre a perda da autoestima, ressaltando-se que a dimensão ética é também rompida, pois se deixar ficar feia é interpretado como má conduta pessoal” (Alves, 2007, p. 97). O individualismo enquanto valor se torna, portanto, o fundamento de uma razão estética para a cirurgia trans, uma vez que torna relevante uma noção de pessoa específica que a sua garantiria. Segundo Louis Dumont (1985), indivíduo se refere tanto a “um objeto fora de nós” como a “um valor”. Assim, “de um lado, o sujeito empírico que fala, pensa e quer, ou seja, a amostra individual da espécie humana, tal como a encontramos em todas as sociedades; do outro, o ser moral independente, autônomo e, por conseguinte, essencialmente não-social, portador dos nossos valores supremos, e que se encontra em primeiro lugar em nossa ideologia moderna do homem e da sociedade” (Dumont, 1985, p. 37). Embora não seja o caso de definir o mundo social que estou considerado apenas perpassado pelo valor supremo do individualismo, é importante salientar a sua importância como fonte de argumentação que atravessa as demandas pelas intervenções biomédicas e as mudanças corporais que as extrapolam. Se articula, assim, a noção de pessoa como explicada por Marcel Maus (2003), a qual foi resultado de um longo processo social que culmina na fusão de diversas concepções que culminam no Eu indivisível, moral e consciente de si psicologicamente. O que Lucíola e Paulo propõem, então, é que as cirurgias trans possam ser reconhecidas como legítimas nesse mesmo ditame pessoal ao atribuir à aflição incorporada aquilo que lhes leva a querer para si uma mudança que é considerada tão permanente. Enquanto redefinem a disforia 186 como uma emoção individualizante, redefinem aquilo que pode cessá-la de ser sentida. A aflição vivida expõe a razão do Eu ser respeitado no modo como é manifestado na vontade de concluir uma mudança de gênero institucional e corporal. Esse elemento de “respeito ao Eu” é essencial para a categoria explicada por Mauss. Assim, não é à toa que o termo aflição, o sofrer, remeta tanto ao cristianismo. Não porque haja entre os interlocutores uma reprodução doutrinária da religião, mas porque foi a ideologia cristã que deu à noção de pessoa sua qualidade metafísica (Mauss, 2003). As relações sociais nas quais estamos todos inseridos nos levam a promover esse sujeito uno. A disforia falada sem associação com uma patologia a coloca como uma forma transformada de parte dessas experiências. Trata-se de tomar consciência de si mesmo para tentar, portanto, penetrar a linguagem autorizada para a terapêutica trans, de modo que essa noção emocional possa procurar despatologizar a transexualidade sem deixar de se relacionar com o campo das intervenções biomédicas. Noutros casos, como veremos a seguir, essas mudanças são trazidas num campo racionalizado que diz: “eu só quero retirar meus intrusos porque para a sociedade eles pertencem às mulheres, mas se não fosse assim eu não modificaria”. Contudo, a disforia como categoria emocional vivida no corpo continua mesmo que noutras formas. Mostro uma continuação dessas interpretações da aflição a partir de outros interlocutores procurando elencar outros elementos como as questões e práticas em torno da adequação masculina das mamas e o atravessamento dessas emoções por processos terapêuticos paralelos. 3.4.2. Fibromialgia: outra dor contestada Zagreu já convivia com dores inexplicáveis por todo seu corpo bem antes de ter iniciado sua transição. Nenhum médico conseguia explicar o porquê ele sentia dores musculares tão intensas. Não havia exame laboratorial nem teste em consultório que pudesse aferi-las. Os sintomas que apresentava também não eram claros e definidos e por isso chegou a ouvir, inclusive de parentes, que tinha “frescurice crônica”. Em meio a outros processos de saúde, como um aborto espontâneo e depressão, as dores, portanto não faziam sentido. Só depois de ter tido o que chamou de “crise”, com o aparecimento de manchas roxas e inchaço no seu corpo, que houvera uma preocupação generalizada no círculo familiar que o ajudou a ir ao pronto-socorro. Enquanto as dores não se materializaram, elas não fizeram sentido para o círculo social de Zagreu. Enquanto suas dores eram tidas no terreno do “psicológico”, pouco crédito lhe era dado; foi com a incorporação dessas dores que se provou algo que ninguém acreditara ser real. Dirigiram-se, então, à uma Unidade de Pronto Atendimento, uma vez que um médico conhecido da família que lá 187 atuava seria a melhor alternativa para dar algum diagnóstico confiável. Estava com fibromialgia. “Aí ele me passou os pilares, que é um relaxante muscular, e mandou eu procurar um dermatologista. Eu não tinha dinheiro pra pagar um particular; e na primeira vez que eu fui à dermatologista ela disse que era psicológico”, conta. Apenas por ter tido acesso a um programa da Prefeitura que conseguiu marcar essa consulta com maior rapidez. Após nossa entrevista, Zagreu me indicou um grupo de discussão na internet no Facebook, no qual ele participava por reunir pessoas de todo o país que narravam “viver com a síndrome da fibromialgia”. Embora eu não tenha empreendido uma pesquisa per se no ambiente virtual, foi possível perceber que os relatos replicavam a contestação tanto familiar quanto biomédica da existência da dor e sua possibilidade diagnóstica como uma entidade etiológica factível. Zagreu vivenciara um itinerário muito comum a pessoas diagnosticadas com essa síndrome. A literatura acadêmica médica e psicológica no Brasil e no exterior tratam-na como um caso psicossomático de doença (Araújo, 2006). Isso não impediu, necessariamente, o desenvolvimento de algumas técnicas diagnósticas fisicamente verificáveis, como apalpamento da região e a verificação da prevalência de dor sentida de modo concentrado ou irradiado. Desse modo, a fibromialgia é vista como uma doença crônica com dores musculares por todo o corpo, enquanto uma “condição reumática não-deformante” (Chaitow, 2002). Ainda assim, ela é percebida como algo psicológico, sem explicações de origem orgânica unanimemente descritas (Besset et al. 2010)141. As dores são descritas como agudas, difusas, latejantes, crônicas ou fortes; e ainda pode integrar fadiga, sensibilidade muscular, mal-estar e problemas no sono, gástricos, humor, cognição e sensorial. Ao associar esse cenário excruciante de dores musculares contestadas ao tratamento de sua depressão, Zagreu narra que outro médico o indicara uma medicação antidepressiva. A dermatologista o havia explicado que essa medicação iria ajudá-lo nos dois casos – alguma relação é estabelecida etiologicamente entre depressão e fibromialgia. Isso mostra ainda a falta de consenso sobre tratamento da doença. Com a recorrência ao psiquiatra pelo CAPs, Zagreu fora enquadrado 141 São escassas, atualmente, as pesquisas sobre fibromialgia, seja qual for a área científica, e isso se aprofunda quanto a pesquisas antropológicas. A pequena literatura se concentra em psicologia, medicina e em terapia ocupacional. Contudo, tem crescido a articulação política de pacientes para o reconhecimento do adoecimento. Diferentes projetos de lei tramitaram ou tramitam no Congresso Nacional a respeito. O PL n. 6858/13, apresentado pela Deputada Federal Érica Kokay (PT) e aprovado na Câmara Federal, procura instituir a obrigatoriedade do SUS em criar um tratamento especializado. Pelo que acompanhei no grupo de discussão pela internet, as demandas principais são o reconhecimento biomédico da fibromialgia como doença que é sentida no corpo, e não como algo produzida pela mente, e por isso menos real; e a cobertura do Estado brasileiro para, dentre outras coisas, garantir licença de saúde do trabalho por decorrência de inaptidão física, aposentadoria por invalidez e auxílio-doença. Fala-se, portanto, em direitos de quem sofre com fibromialgia, e de como, na perspectiva dos fribromiálgicos, a convivência do dia a dia e as emoções produzidas daí podem produzir os sintomas ou criar “crises”. A depressão também tem sido uma outra recorrência indicada pelos participantes do grupo de discussão, bem como a literatura biomédica e psi apontam que a fibromialgia a produz, entre outros sintomas. Há, portanto, um campo profícuo a desbravar em pesquisas sobre os efeitos sociais e culturais e os sentidos atribuídos ao adoecimento e a sua gestão médica, estatal e da própria produção sociológica de sua cronicidade, reconhecimento médico e familiar, uma vez que o diagnóstico produz uma mudança significativa na vida das pessoas que são levadas a modificar dieta e formas de produzir o próprio corpo, entre outras coisas. Assim, há a forte produção de uma identidade terapêutica que necessita de pesquisa antropológica. Coube aqui apenas situar a trajetória de transição de gênero de Zagreu. Para uma pesquisa no tema, na área de saúde, ver Vera Galli (2008). 188 num diagnóstico que combinava a cronicidade de suas dores, sua depressão e suas recorrências de questionamentos sobre se considerar também masculino. Foi tido como psicótico, avalia. “[Eu] tinha falado pra ele [o psiquiatra] que, na minha cabeça, eu tinha dupla personalidade, uma alma feminina e uma masculina”. Pergunto-lhe se algum outro médico o havia dado esse diagnóstico, mas não, como afirma: “não, é porque eu não entendia o problema, eu só achava que eu vivia um teatro [...]”. E continua, “aí, como eu não me entendia direito, eu não tinha muito o que falar. E quando eu falei mais ou menos o que estava sentindo, o médico disse que eu tinha psicose, mas ele dizia, ‘tem problema não, se você for homem, eu sou viado’”. Mas, reiterava, “na minha cabeça não fazia sentido se eu gostava de homem”. “E na minha cabeça também passava que, eu era lésbica que gostava tanto de homem que virou um homem”. Aí, Zagreu entende que não conseguiu entender sua identificação social porque não conseguia separar gênero de sexualidade. Nesse período, a internet se apresentara como uma das poucas vias para alcançar outras histórias de adoecimento e de entendimento sobre sexualidade. Encontrou primeiro um grupo de discussão online sobre medicina alternativa. Num dado dia, uma participante perguntara quem teria “disforia menstrual”142. Eu nunca tinha ouvido esse termo, e lhe pergunto a respeito. Ele também não sabia quando ouviu a primeira vez. “É uma coisa muito comum, mulheres cis também têm e, eu disse a ela que era muito pior no meu caso porque não era só a disforia menstrual, que eu não gostava de ser mulher”. Aí ela perguntou, “há quanto tempo” eu sentia isso e eu, “muito tempo”. Eu disse que ela, “a vida toda”. Ela perguntou se eu sou lésbica e eu disse “não, eu sou bi”. “Pois eu vou te botar pra falar com um amigo meu, vou te botar pra falar porque você precisa falar com ele”. Aí ela me colocou nesse grupo que é um grupo de pessoas trans e marcou o tal do amigo. O tal do amigo era um homem trans gay e ele conversou comigo e foi me explicando.... E acendeu uma luzinha e tudo se iluminou, fez sentido, o gênero estava ligado a opção sexual e eu não conseguia entender por que eu não gostava de mulher e aí eu fui pesquisando mais, querendo saber mais sobre identidade trans (Zagreu, entrevista 2018). Nesse cenário que parece mais organizado na descrição do que no terreno que esses eventos tiveram curso, um processo de aflição de Zagreu contemplara diferentes instâncias que tornava difícil principalmente para ele mesmo entender. Essas explicações que ele buscava tiveram que ser produzidas para fazer sentido, de modo que ele vivenciara duplamente uma ruptura biográfica. Assim, gênero e sexualidade estavam atomicamente unidos, de modo que era necessário separá-los para que uma possibilidade de entrada na categoria homem se tornasse viável, isto é, “fizesse 142 É considerada, pela biomedicina, um agravamento do transtorno pré-menstrual – a TPM –, o transtorno disfórico pré-menstrual. Segundo o Boletim do Hospital Albert Einstein: o “transtorno disfórico pré-menstrual (TDPM) causa mudanças extremas de humor que podem afetar o trabalho e prejudicar relacionamentos. Os sintomas incluem extrema tristeza, desânimo, irritabilidade ou raiva, além dos sintomas comuns da síndrome pré-menstrual, como sensibilidade e inchaço nas mamas” (Hospital Albert Einstein, s/d, on-line). 189 sentido”. Ou seja, seria homem e poderia continuar se relacionando afetivo-sexualmente com homens, o que lhe tornaria bissexual já que também se relacionava com mulheres. Como, no decorrer do diagnóstico, um profissional da medicina poderia, sem recorrer a arbitrariedade estereotípica das posições sociais, encontrar os sentimentos que se faziam necessários para definir a disforia de gênero? Zagreu, por outro lado, tem suas explicações a respeito dessa disforia, e define o que sente em relação a isso. Quando lhe pergunto se ele já se considerara enfermo por causa de não “gostar de ser mulher”, ele conclui: “se é uma doença, eu vejo que essa doença me curou porque antes eu era um lixo e agora eu me sinto um ser humano”. Assim, a possibilidade de transitar de gênero deu um novo sentido à vida de Zagreu, que agora não mais estava cerrado a uma vida específica que lhe fazia se sentir mal. Com isso, o sentir-se disfórico não tinha nada a ver com estar doente: era “uma emoção ligada à maneira como a sociedade vê as pessoas trans, como a transfobia”, me conta. Para ele, esse sentimento estava de acordo ao como “o mundo me vê [...]. Se o mundo não me visse por ser trans como um não-homem, eu nem usava bainder, e nem operava”. Esse é o incômodo que sente. Mas isso não o torna qualificável para ser definido como transexual de verdade para o cânone biomédico. Esse é um fator que irá dificultar seus caminhos dentro do Sistema Único de Saúde, no que tange aos protocolos e procedimentos regidos por entendimentos do Processo Transexualizador. Assim, a identidade foi acessada através das emoções. 3.4.3. Um enfermo cuidando de si mesmo Durante muito tempo de sua vida Reginaldo, de 24 anos, sabia da existência apenas de travestis e mulheres transexuais. Foi através de publicações na internet que leu sobre homens trans, e se perguntara instantaneamente: e existiria isso? Começou a pesquisar melhor sobre o assunto em outros sítios on-line e percebeu, conta, que viu “algo que se encaixava”. As narrativas que encontrou sobre uma infância marcada por conflitos entre mundos diferentes para meninos e meninas era um elemento que também via na sua vida quando criança. Por muito tempo achou que era igual ao seu pai, e quando notou que era igual a sua mãe “tudo desmoronou”. Ele se vira noutra narrativa agora que lia sobre transexualidade. Mas diz, em tom de rememoração, que se sentia mais parecido com os amigos gays do que com as amigas lésbicas antes da transição. Apesar desse seu círculo de amizade ter sido um apoio e uma barreira, já que lhe cobravam de diferentes maneiras uma posição de identidade fixa, narra que a dificuldade mais profunda foi em casa com sua mãe, quem não sabia de nada que acontecia com o filho. “O seu próximo transita com você”, completa, ao dizer que sua mãe teve que transicionar e viver em muitos sentidos os mesmos 190 conflitos que viveu antes de lhe contar. Para mostrar à mãe que vivia situações vexatórias diariamente levou-a para acompanhá-lo para abrir uma conta bancária na Caixa Econômica Federal. Os funcionários compartilhavam seu documento de batismo entre si, riam, gesticulavam, e o acusaram de falsificador. Sua mãe não conseguia olhar para seu rosto, me conta. Depois desse episódio sente que uma mudança significativa havia se iniciado junto a ela, que passa a acompanhá- lo aos médicos e nas cirurgias a que iria se submeter depois. Foi ela inclusive quem cuidou dele, e o ajudou a trocar os documentos. A dimensão das emoções também se torna, na narrativa e na experiência de Reginaldo, um elemento de prova que aciona uma moral que deve ser seguida. Se o filho vivera tal situação com ela ao seu lado, o que deveria ter vivido sozinho? Foi pelo discurso reiterado do amor por ela, de que ele não havia mudado por causa da transição, que a ajudou a “se transformar” noutra pessoa. Essa mudança que Reginaldo aponta diz respeito a um entendimento de que sua essência enquanto um bom filho, um bom trabalhador, uma boa pessoa ainda estava ali consigo. Sua transição de gênero lhe trouxe muitos reveses com os quais teve que lidar, embora me fale que já pensara em suicídio, e já perdera as contas de quantas vezes tivera que cuidar de si sozinho porque não aguentaria a ida ao serviço de saúde para ser tratado como mulher. Um desses muitos casos é quando sofreu de uma febre alta desencadeada pelo vírus da zika. Num dado dia quando voltava do trabalho Reginaldo começou a sentir dores por todo seu corpo, e uma febre que aos poucos aumentava de intensidade. A certeza de que o que sentia era relativo à infecção pelo vírus da zika veio quando suas juntas e articulações persistiam em doer mesmo quando parecia se normalizar a temperatura do seu corpo. Essa era uma lembrança viva para ele, quando ficou doente e não pôde ir ao hospital. Mas não era a primeira vez, segundo ele, que já teve uma otite (uma infecção no ouvido causada por bactérias) e dores dentárias, por ex., para o que sempre procurava alívio em medicações para dor para não ir ao pronto-socorro. No período que “adoeceu de zika”, como coloca, casos se multiplicavam no país inteiro143. No caso do Nordeste brasileiro, essa epidemia ficou particularmente dramática devido ao nascimento de bebês com microcefalia, mais tarde atribuída à infecção da gestante nas primeiras semanas da gravidez. Mesmo diante da gravidade de uma doença sobre a qual não se sabia muito naquele momento 143 Muito embora a infecção por zika possa não apresentar sintomas, os que surgem como mais comuns são dores locais nas articulações, músculos e olhos, fadiga, febre, perda de apetite, suor, dor de cabeça, irritação na pele, vermelhidão nos olhos ou vômito. A febre por zika vírus, juntamente com a febre por Chikungunya e a dengue, são arboviroses transmitidas pela picada do mosquito do Aedes Aegypti. A zika foi primeiramente diagnosticada no país em 2015 e atingiu um pico em 2016 com 211.770 casos prováveis. Apenas no Ceará foram ao todo 4.087 casos apenas dessa febre, que acompanha dados igualmente expressivos para dengue e Chikungunya. Segundo o Boletim Epidemiológico do Ministério da Saúde (Brasil, 2019) em 2019 foram registrados 2.344 casos prováveis de zika em todo país, com uma incidência de 1,1 caso por 100 mil habitantes. Todo esse cenário desencadeou uma série de engajamentos de pesquisadores, mídia e da população em geral, principalmente pela má formação fetal em gestantes infectadas por zika e que deram à luz bebês com microcefalia, anomalia genética causada pelo vírus. Para uma leitura antropológica desse contexto, principalmente das experiências das famílias com tais recém-nascidos ver Rozeli Porto (2020), Rozeli Porto e Patrícia Costa (2017) e Débora Diniz (2016). 191 Reginaldo decidira não ir ao pronto-socorro para receber atendimento médico. Não valeria a pena, me conta, porque seria atendido com o nome feminino de batismo. Nesse período de sua vida ainda não havia feito a retificação civil, realizada mais tarde via decisão judicial, nem havia se submetido a nenhuma cirurgia; o que o tornaria completamente exposto ao vexame pela dubiedade que apresentava. Como tinha formação em enfermagem, e uma tia que trabalhava num hospital, conseguiu cuidar de si mesmo. Isso era uma constância na sua vida desde que iniciou a transição anos atrás. Ele, então, resume como tem vivido situações de adoecimento em geral: Muitas vezes eu deixava de ir para o hospital para ficar em casa porque eu não queria chegar no hospital e as pessoas me tratassem no feminino. Muitas vezes. No caso, por exemplo, quando eu estava aqui em Fortaleza.... Eu já tive problema de dor de dente, tenho problema no meu ouvido, meu ouvido ele sempre tem otite, ele tem a infecção. Eu já deixei muitas vezes de ir ao médico. Eu cansei de tomar remédio para dor para não ir para UPA, para não ir num canto ou no outro porque eu sabia que ele não ia me tratar direito. Lá [no interior] eu tive zika, não fui para o hospital (Reginaldo, entrevista, out. 2018). Pergunto-lhe como ele tinha cuidado de si quando teve a zika. Foi a ajuda de uma tia que fez a diferença, trazendo medicação para sua casa. Só teve uma vez, até nossa entrevista, que ele não teve como evitar a ida ao hospital embora sua preocupação continuasse sobre como seria tratado na emergência. Após um dia de trabalho inteiro, Reginaldo descreve que estava tendo um infarto: Só teve uma vez que não deu pra não deixar de ir pro hospital. Foi uma emergência mesmo que eu estava saindo de um plantão de 48 horas que eu tive um pico de estresse muito grande que eu quase enfartei. Cheguei em casa passando mal. Eu disse, “mãe, eu vou enfartar, mãe, tô enfartando”. Eu já tava sentindo mesmo, tava sentindo o peito apertando e isso aqui dormente [toca o braço]. Eu disse, “eu tô enfartando”; 48h no SAMU é pesado, nesse dia foi bem pesado. Aí eu peguei e fui pro hospital. Quando eu cheguei lá a minha sorte é porque, assim, os médicos de lá todos me conhecem porque eu sou do SAMU e a gente chega lá com paciente, e eles me trataram por Reginaldo, sabe?! Tudo, por Reginaldo (Reginaldo, entrevista, out. 2018). O diferencial, portanto, foi que lhe atenderam sem lhe chamar pelo nome feminino. Reginaldo até demarca como foi essa parte da consulta após o médico afastar a possibilidade de infarto. Segundo o médico, ele tivera um “pico de estresse”, “muito, mas muito grande”. Pergunto se ele já tinha modificado seus documentos, que à época de 2017 ainda não contava com a possibilidade atual de retificação simplificada no cartório: Não, ainda não, eu tava só com a carteirinha do SUS com nome social. Até o Marcelo que foi o médico que me atendeu, que ele sempre tá lá de prontidão se eu precisar, ele perguntou assim, “Reginaldo, vou botar sua receita com nome social”. Aí eu disse assim, “mas eu não tenho nenhum documento pra provar que eu sou o Reginaldo”; aí ele botou: “pois eu vou botar o seu nome social, e entre parêntesis bem pequeno seu nome civil, mas bem pequenininho mesmo” (Reginaldo, entrevista, out. 2018). 192 Reginaldo teve que achar um local no qual era conhecido para ser atendido mesmo diante da gravidade da possibilidade de um infarto. Isso diferencia grandemente os itinerários terapêuticos que percorre. Passou, assim, a tomar o psicotrópico Escitalopram para lhe ajudar a ter um período de “ficar tranquilo” para se recuperar de todo o estresse que vivenciara ultimamente, uma vez também que fora diagnosticado com depressão. A entrevista com Reginaldo foi realizada num período de sua vida no qual ele já havia passado dos piores momentos de vergonha, humilhação e vexatória por causa da sua transição. Na época da formação no nível de graduação, foi chamado pela professora na frente de toda a turma de aberração, e que ele era um risco para os pacientes com que ele entrasse em contato apenas porque ele estava querendo ser homem sem o ser. São episódios como esse que o fazem sentir dificuldade de usar um banheiro público, por medo de ser retirado de lá à força. Mesmo que agora ele considere “passar despercebido”, o medo persiste porque ele já fora retirado de lá inúmeras vezes quando do começo da sua transição. Antes de termos começado nossa conversa precisei ir ao banheiro, e ele me mostrou onde ficava porque era minha primeira vez ali, mas ele não entrou mesmo que precisasse. Iria esperar chegar em casa. Ele comenta que sabe que segurar a urina por muito tempo poderia desenvolver um quadro de infecção urinária, mas não tem o que fazer, me diz. Não irá viver a potencialidade de ser arrancado do banheiro e ser humilhado em público. Quando finalizávamos a entrevista lhe perguntei sobre a classificação diagnóstica da disforia de gênero, como ele tem visto o assunto, se tem se engajado em alguma atividade militante para a retirada do diagnóstico do manual de saúde, ele me responde, seguindo de certo modo outros interlocutores como Zagreu, Paulo e Lucíola que também não se vê como doente, mas isso não significa que ele não sinta disforia. Reginaldo descreve disforia como um “sentimento que corrói por dentro”. Quando pergunto se isso seria uma questão médica ou não ele conclui que Não [remete a doença]... porque assim, no meu caso, e essa é a minha vivência.... Eu tenho disforia. [...]. É a questão de ser transgênero. Eu tenho disforia, eu olho pra mim no espelho nu e eu não consigo olhar meu genital, eu tenho aversão ao meu genital que é a disforia, entendeu? Eu sou extremamente disfórico, eu tenho disforia genital. Eu tinha a disforia mamária, eu tirei, perfeito, agora eu adoro andar sem camisa, adoro ir pra fora. É um sentimento, a disforia é mais ligado a sentimento do que a doença. Isso me faz uma pessoa que tem uma questão de um sentimento que está me corroendo por dentro e que isso posteriormente pode me levar a ter uma doença, entendeu? (Reginaldo, entrevista, out. 2018). Assim com Lucíola, Paulo e Zagreu acima, Reginaldo também estabelece níveis e diferenças para o que concebe como disforia. Fica ainda mais claro a relação do sentimento a uma parte do corpo numa linguagem do “eu interior” e como o precursor, se não cuidado, para gerar um adoecimento posterior. Algo muito aproximado das definições do manual que já vimos até aqui. O uso de um idioma biomédico para descrever a própria experiência de conflito com o corpo e com 193 as pessoas com quem interage socialmente por causa desse corpo constituído ao longo da vida traz as dificuldades de estar lidando com um idioma que confere sentido, ao mesmo tempo que se rejeita suas contenções regulatórias e limitadoras. Isso porque quem não se encaixaria na vivência mais extrema desse sentimento estaria fora da definição do transexual de verdade. Ao falar em “disforia mamária”, Reginaldo também demarca e organiza as emoções que postulava como indicativo de sua transexualidade. Esse é, de fato, como observado em campo, um elemento altamente importante no decurso da transição porque em muitos casos ele é o elemento/a parte do corpo que mais evidencia uma feminilidade para o outro. Ao tentar se produzir um efeito contrário a esse na interação social, os interlocutores constituem diferentes estratégias discursivas, práticas, para produzir seus corpos enquanto a mastectomia não se torna uma possibilidade. 3.4.4. Enquanto a mamoplastia não vem Além de se envolverem, como qualquer pessoa, no decurso de processos de adoecimento como vimos até agora, as questões que circunscrevem a organização das emoções para falar e para produzir a transição de gênero se dão também no âmbito do manejo do peitoral. A cirurgia de mastectomia ou mamoplastia masculinizadora144 é uma possibilidade distante para homens trans em Fortaleza. Durante o trabalho de campo, apenas dois deles a haviam realizado, ambos pelo SUS – o segundo via decisão judicial –, e outros encontravam-se em meio a estratégias para concretizá- la um dia no futuro. Mas essa cirurgia tem sido um objeto, de fato, fora do horizonte da vida cotidiana dos interlocutores que necessitam lidar com questões práticas de garantia de moradia, adoecimento e alimentação. Uma das maneiras de remediar a impossibilidade da mamoplastia se concentrava na compressão do peitoral para fazê-lo se tornar visualmente tido como masculino; algo que era realizado por meio do uso do que se denomina de bainder (ou binder)145 – qualquer espécie de faixa ou vestimenta que suprima os seios abaixo das roupas. O objetivo é fazer com que ninguém perceba seu uso em público. Contudo, as práticas para fazer os seios sumirem não se realizam em 144 A mastectomia é uma cirurgia orientada para diferentes casos de reconstrução, remoção ou transformação das mamas, envolvendo, conforme o caso diferentes técnicas e diagnósticos. O termo mamoplastia tem sido utilizado para denotar mais diretamente a mudança estética nos padrões peitorais e não a remoção em si das mamas, a exemplo também da mamoplastia de aumento, de redução ou elevação. Ela recebe o adjetivo de masculinizadora quando concernente às modificações para a aparência masculina de homens trans. Preocupam-me aqui as estratégias dos interlocutores quando não se tem acesso ainda a essa possibilidade cirúrgica. 145 O termo binder que significa, em língua inglesa, encadernador, capa, atadura, máquina de enfardar ou faixa provém do verbo to bind que tem muitas definições e, se traduzido para a língua portuguesa teria diferentes termos possíveis, como ligar, vincular, encadernar, prender, atar, amarrar, comprometer, colar, limitar, impor, grudar, entre outros. O Dicionário de Cambridge de Língua Inglesa, editado pela editora da Universidade de Cambridge, em Londres, não lista nenhum significado relativo ao objeto de vestuário aqui referido. O sentido atribuído com o uso do termo estrangeiro para nomear o vestuário, binder, tem a ver com a prática de atar, prender, amarrar, suprimir o peitoral para trazê-lo à aparência do tido como masculino. Como o termo binder se tornou de uso popular no país, me refiro ao termo numa versão aportuguesada, bainder. 194 função da cirurgia que se espera realizar num futuro próximo, embora possam ser repensadas em vista disso. Essa é uma das primeiras modificações corporais realizadas, embora não incisivas, no decurso da transição de gênero. O uso continuado da compressão acabava por modificar a forma do peitoral, podendo produzir dores e dificuldade respiratória, entre outros adoecimentos – inclusive tem o potencial de interferir no resultado da cirurgia posteriormente. De maneira ainda mais direta, observar tais práticas como práticas sociais tem o potencial de expor a definição de disforia como um sentimento longe da patologia, como venho descrevendo até aqui, e nos dá a dimensão da incorporação das emoções no mundo social – ou corpo social, como diria Abu- Lughod e Lutz (1990a) – no qual ela é produzida. Salazar, de 26 anos, costumava andar pelas ruas de Fortaleza vestindo duas camisas. Sempre que nos encontrávamos tinha a impressão de serem de um tecido grosso e espesso, e eram sempre em tons escuros. Tudo para dar, visualmente, a impressão de que ele não teria seios. A região estadual tem um clima semiárido quente, com baixíssimos índices pluviométricos. No litoral, a temperatura média é menos severa, mas continua a apresentar a característica de um calor semiúmido. Isso não impedia Salazar, só tornava sua tarefa mais árdua, ao precisar se locomover pela cidade, como ao tomar um ônibus lotado para ir trabalhar ou para se consultar no hospital no qual fazia acompanhamento médico quanto a sua transição. Ele não usa nem nunca usou bainder. Salazar tinha receio de que seu uso contínuo lhe causasse problemas médicos como dificuldade respiratória – que já teve na infância – ou que atrapalhasse a cirurgia de mamoplastia masculinizadora que sonhava realizar. Salazar apresenta-se, nesse sentido, como uma das exceções que encontrei em campo. A grande e expressiva maioria dos homens trans que conheci – e também daqueles que ouvi falar – empregavam o bainder como, quero sugerir, técnica corporal. Contudo, o que Salazar realizava não deixava de ser também, ela mesma, uma técnica desse tipo, e assim, cabe descrever que tais práticas eram estratégias diante das angústias sentidas quanto a possuir “intrusos” em seus corpos. E isso está aliado, de modo socialmente relevante, a expectativa da mamoplastia. Diante da dificuldade de acesso a essa cirurgia, principalmente pelos longos caminhos a serem percorridos no Processo Transexualizador e ao limite de recursos financeiros para realizá-la no mercado privado, o uso do bainder constituíra uma economia política de uma gestão corporal. Isso envolvia a importância da interação social em classificar os corpos, mas também as representações e significados do que as partes do corpo inferiam diferentemente. A média de tempo que se poderia passar usando o bainder poderia chegar até oito horas por dia, por causa da saída de casa para o emprego ou para a escola. Numa das reuniões da militância local, num dado domingo, que contava como presentes ativistas e aliados – além de curiosos, pessoas que queriam ouvir sobre transexualidade porque 195 estavam convivendo com a possibilidade de iniciar ou não a transição – somos apresentados a um documentário realizado de modo caseiro. Depoimentos diversos se sobrepõem para explicar como se dá as suas experiências como homens transexuais, quais escolhas necessitaram fazer, em que práticas se detiveram no curso da transição, como se articularam politicamente, e que médicos procuraram. Um elemento marcante dessa descrição é o que se refere a se sentir disfórico. Não havia médicos nem profissionais de saúde presentes entre nós, essa não era, portanto, a intenção do vídeo, a de convencer e falar o que se geralmente se quer ouvir para combinar com as descrições dos manuais. Segurando o seu celular, Januário falava de frente para a câmera que o uso do bainder corresponder a tal sentimento. Não estava ele com vergonha, ou identificando um sintoma. Estava descrevendo uma experiência. Essa era a introdução para que se pudesse falar da articulação necessária para convencer as instâncias estatais locais a estruturarem um serviço de saúde que pudesse assisti-los à transição e/ou no campo dos direitos humanos – algo que ganhará maior relevo no próximo capítulo. Aqui, um discurso que também estava colocado para os outros era posto em prática para o próprio grupo. Era demarcada, assim, uma diferença por meio dos sentimentos incorporados. Outros dias depois dali, quando pude entrevistar outro interlocutor, Jurandir, também jovem de 20 anos, ele resumia sua trajetória até a categoria homem trans da seguinte maneira: Eu tive uma crise existencial muito grande. No meio dessa crise eu procurei na internet algo que eu pudesse esconder meus intrusos, né? E aí, no meio disso eu achei o bainder. Foi uma coisa que levou a outra assim. Eu procurei algo na internet como esconder os intrusos, e aí apareceu o bainder, e do bainder apareceu homens trans, e aí eu comecei a conhecer mais. Nunca tinha ouvido falar (Januário, entrevista 2018). Para ele, havia um sentimento em relação a partes do corpo que se tornaram tão relevantes que foi necessário procurar uma maneira caseira de diminuir os “intrusos”. Nunca tinha ouvido falar em transexualidade antes, e o bainder não era um elemento crucial, à princípio, de se definir como homem trans. Eram as emoções que sentia em relação ao seu corpo. Já fazia dois anos que usava diariamente o bainder, aprendera pela internet a como usar. Ele comprava a faixa de elástico e unia duas com uma costura, colocando colchetes nas bordas para fechar após envolver em si mesmo. Mas as dores eram contínuas, me dizia, sempre que usava o bainder, embora só usasse quando saísse de casa. Contudo, conclui que suas dores são maiores porque ainda sente dores nas costas por causa do parto normal que teve anos atrás, quando deu à luz a sua única filha. “Sinto uma fisgada como se tivesse amassando”, e continua, “é a dor do parto”. Mas isso não impedia que Jurandir usasse o bainder, mas o fazia procurar tomar estratégias para diminuir as dores, como usar apenas ao sair de casa. Depois de usar, dele mesmo produzir, Jurandir compra de Januário o seu primeiro bainder com um melhor acabamento. 196 Sendo crescente o número de pessoas que passam a usar bainder como compressor do peitoral, Januário tem a ideia de passar a vendê-lo em série. No início, comprava o artigo através de um vendedor que morava na região sudeste do país, mas começou a não gostar do material. E, como percebera que era um material de pouca qualidade, como descreve, começa a refletir sobre as formas de confeccioná-lo para si mesmo. Comprou, então, um elástico e procurou uma costureira local, mas o primeiro ficou muito apertado. Notou que tinha tirado as medidas erradas, e percebeu que se media 75 cm de peito, deveria medir o elástico em média em 65 cm, era o exemplo que me dava. Era necessário ficar apertado, mas não tanto. Como não havia nenhum vendedor de bainders na região Nordeste, e seus amigos pediam para ele vender, começou a produzir em escala maior, e chegava a vender em torno de 12 peças por mês. Ao divulgar para outros estados, também impulsionado por outros homens trans, suas vendas aumentam e na época da entrevista sua renda advinha desse negócio. Mas demora até chegar aos tipos de bainder que confecciona atualmente: Eu prefiro trabalhar com uma qualidade que vai durar mais e cobrar um preço justo. [...] E o meu bainder é de regulagem, [...] o meu é colchete, tem 3 medidas, tipo, você acha muito acochado, tá muito apertado, você vai lá e coloca a medida mais folgada, se você achou folgada, coloca na medida mais apertada... E tem uma esponjinha na parte do colchete que não marca a roupa e protege a pele pra não ficar marcado, não ficar vermelho (Januário, entrevista, 2017). Quando lhe perguntei como ele tinha chegado nesses tipos e medidas, ele explica: Eu fui fazendo aos poucos, fui fazendo pra mim, testando pra mim e aí achei tá massa, tá confortável e fui fazendo. [...]. Eu vendo 6 modelos. Tem os “bainder faixa”, são 6 modelos. Aí tem os bainder faixa. Tem uma faixa que é 10cm de largura, tenho 2 faixas que é 16 cm, 3 faixas que é 24 cm, e 4 faixas que é 32 cm. O elástico [que] dá a volta. A largura que eu falo é largura aqui [vertical], não é largura de cumprimento. É a medida da pessoa, né? Esse aqui meu é de 10 cm, é pra quem tem os intrusos pequenos e quem já tá, tipo, em hormonioterapia que já vai secando [os peitos]. Aí, esse é o melhor, eu acho, [...], porque ele não pega no diafragma da gente, ele não pega, ele acaba aqui, ó146, é como se fosse um top. É só os intrusos, em cima dos intrusos. O de 2 faixas vem até aqui mais ou menos147. O de 3 faixa vem até aqui148, e o de 4 faixas vem bem aqui149. Mas é a minha medida, né? (Januário, entrevista, 2017). Conforme percebe que sentira dores contínuas, sua preocupação aumenta para fazer um “bainder mais saudável” para diminuir o incômodo ao usá-lo e para tentar dirimir algum adoecimento decorrente. Comparando com os bainders que comprara de outros vendedores, Januário descrevia que eram de tecido grosso, que esquentavam e machucavam a pele. Era preciso pensar num com um tecido melhor. Por isso pensa em confecção com uma malha: 146 Toca na região torácica do final dos intrusos. 147 O tamanho aumenta para baixo dos intrusos, passando uma vértebra. 148 O terceiro segue um aumento na mesma proporção. 149 O quarto tamanho toca no diafragma. 197 Eu mudei o tecido, fiz com malha de compressão, malha de cinta, que é um tecido bem fininho, que é aquele tecido fino que não marca a roupa, e fiz um forro, é.... Esse forro foi difícil, assim. [...]. Foi uma dica que eu recebi de uma costureira [...], “eu acho que isso aí se fizer um forro com material de biquíni ia ficar perfeito, porque ia ajudar com o suor e não ia machucar a pele”. Aí eu levei pra costureira, fiz a modelagem de novo pra botar esse forro. Aí os bainders são de tecido de malha cirúrgica e o forro. Aí tem esses dois modelos de colete. Eu quero desenvolver outros de colete, eu não sei como, mas eu quero estudar pra desenvolver outra coisa (Januário, entrevista, 2017). Numa das minhas visitas a sua casa, ele me mostrara os bainders que vendia. Coloca em cima da sua cama, e ia me explicando os tipos diferentes de acordo com o tamanho e formas. Mas, um elemento era o mais fundamental para pensar num bainder saudável, o tamanho dos intrusos. Quanto maior os peitos fossem, maior seria a dificuldade de permanecer um modo saudável. Isso porque um grande volume peitoral implicava um tecido ou faixa de elástico maior, o que acabava por pressionar a região do diafragma, aumentando o incômodo, que se refere a esse quarto modelo que ele me explicara e que tinha criado a partir de uma demanda de outro homem trans: Aí o que que tinha problema, só vendia mais o de 16 cm, que é de 2 faixas, que é o tradicional. Só que quem tem, tipo.... Eu tenho 75 de medida, um exemplo, a galera que tem 90 cm, 100cm, não cabe, sai, pula fora mesmo. E aí, eu comecei a fazer de 3 faixas que era pra quem tinha mais ou menos de 80 a 100 e o de 4 faixas que eu não fiz pra vender esse mesmo, pra colocar na loja, eu fiz um teste que o menino pediu, um menino implorou: “cara, faz um mais largo pra mim”, eu disse, “mas cara não vai dar certo, vai ficar te incomodando, é muito elástico e tal”. Aí o cara ficou implorando lá e tal e aí eu fiz, como teste só pra ele. Só que ficou muito bom pra medida dele. E ficou, e pega aqui, ó, e o cara era gordinho, e pegava aqui, e ficou tipo uma espécie de cinta (Januário, entrevista, 2017). Nesse longo trajeto que foi entender como fazer um bainder mais saudável e mais condizendo com os corpos diversos, Januário percebia também como criar uma forma de sustento. Vindo de uma família de agricultores do interior do Ceará, ou ele “arrumaria” um emprego na capital ou necessitaria voltar para a casa da mãe. Acompanhar a criação da “loja de bainders” de Januário nos dá uma perspectiva mais geral sobre o uso desse tipo de compressor peitoral. A justificativa que mais aparecia, era, portanto, atrelada a uma resolução emocional que a forma do peitoral poderia tomar. Para ele, o bainder é um artigo diário importante, pois como descreve, “os intrusos” são a região corporal que sente “mais disforia”. Isso não implica que Januário não tome medidas para aumentar o conforto ao usá-lo, e, portanto, de manter um uso saudável. Mesmo quando falamos sobre cirurgias, suas vontades vão nesse sentido. “Eu quero fazer a retirada do útero e do ovário. Eu tenho, tipo assim, eu tenho disforia com os intrusos, mas eu queria fazer primeiro essa [histerectomia e ooforectomia] do que a [cirurgia] dos intrusos porque eu acho que tem mais riscos. [...]. Se desse para escolher eu queria essas duas primeiras, depois fazer a mastec[tomia]”. 198 Assim, o uso do bainder por esses sujeitos se inscreve como uma medida material para sanar o sentimento da disforia. Não é algo que façam com prazer, mas sim com lamento, já que precisam e não dispõem dos meios financeiros para financiar uma cirurgia de mamoplastia com algum cirurgião, nem estão próximos de realizá-la no Sistema Único de Saúde. Esses procedimentos são os últimos num longo processo de transição que é instituído por protocolos rígidos como um itinerário terapêutico que precisa ser entendido e vivido através de longas jornadas de visita a serviços, consulta a médicos, manejo de saberes em biomedicina e tantas outras concessões e práticas corporais que também necessitam dar vida. Mas há aí uma resiliência que me impressionou muitas vezes no campo. Essa forma de se colocar pessoalmente diante de uma aflição tão difícil de ser descrita em voz alta demonstra que nem a linguagem hegemônica das ciências bioquímicas e psi nem suas abordagens científicas poderiam retirá-los de suas formas de ver a vida de outro modo. Mesmo que seja através desse corpo de conhecimento que acessam a possibilidade de mudar de gênero, isso não significa que estejam submetidos totalmente. A ordinariedade desses processos de sofrimento implicam formas intrincadas de agência e de estrutura ao mesmo tempo. 3.4.5. A linguagem dominante contra si mesma Enquanto esperava Januário (que citei acima) para uma das nossas entrevistas, acabei entrando numa das salas do complexo do Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura onde havíamos agendado nosso encontro – estávamos no primeiro semestre de 2018. Dentre as exposições abertas uma chamara particularmente minha atenção: Narrativas e alteridade – O outro em nós. A mostra ficava no Piso Superior do Museu da Cultura Cearense, e compunha o evento “Encontro de Agosto 2016”. Com 54 fotógrafos do Nordeste, sendo 23 cearenses, a temática era diversa dentro do campo da “diferença”. A ideia era trazer “questões universais”, como ficou registrado no texto de abertura logo na entrada do trajeto das imagens. Um quadro me assaltou os sentidos naquela minha visita despretensiosa. Era um mosaico com seis fotos, de igual tamanho, de um homem cuja pele pintada de branco ia se “quebrando” pouco a pouco a cada foto. A tinta endurecera no rosto e estava caindo em meio a expressões de dor e horror do fotografado. Não teve como não relacionar esse quadro e as narrativas que acabei de descrever ao longo do capítulo, principalmente porque o título da obra era mesmo Disforia (Figura 7). De autoria de Jorge Oliveira, um jovem artista negro de Fortaleza, o quadro compunha um conjunto de outras fotografias que retratavam emoções sendo vividas intensamente. Para minha surpresa não havia nenhuma menção a transexualidade, disforia de gênero, nada relativo ainda a sexualidade, gênero ou identidade. O uso do termo indica, portanto, uma popularização de sua concepção que tem assumido diversos diagnósticos no campo 199 biomédico, mas que o extrapolam. Como os interlocutores me ensinaram, todos nós podemos sentir disforia, e era isso que Jorge retratava. Figura 7 – Disforia, de Jorge Oliveira Fonte: Fotografia do quadro retirada pelo autor. Os interlocutores dessa pesquisa mostram que mesmo tendo a biomedicina uma linguagem que os enquadra de uma determinada maneira passível ao diagnóstico, esses conjuntos de discursos que a compõem podem ser apropriados. Quais os efeitos sociais produzidos pelas narrativas de homens trans que dizem “sentir uma disforia”? O que a máxima “sentir-se disfórico” guarda discursivamente? Seria possível ultrapassar a linguagem dominante utilizando uma categoria manejada por ela? Émile Durkheim e Marcel Mauss (2003 [1903]), ao estudarem diversas formas de classificação de povos tradicionais melanésios, mostraram que é por meio das relações sociais que as classificações são realizadas. Assim, quando a biomedicina registra categorias como descritoras de seus objetos, ela não detém controle absoluto de como essas nomeações adentram o mundo social mais abrangente. Os autores estivam preocupados, eles mesmos, em classificar as classificações desde sistemas mais simples até os mais complexos. E, ao fazê-lo, compararam o pensamento dito primitivo com o científico, argumentando que se referem ao mesmo princípio de ordenamento. Isso possibilita observar que a disforia como algo que é tornado objeto de intervenção por uma razão científica determinada entra em outras formas de “sistemáticas” e de “ordens”. Como colocaram ao se referir a unidades sociais como fratrias e totens, o “que caracteriza as referidas classificações é que as ideias estão nelas organizadas de acordo com o modelo fornecido pela sociedade. Mas desde que esta organização da mentalidade coletiva exista, ela é suscetível de 200 reagir à sua causa e de contribuir para modificá-la” (Durkheim e Mauss, 2003, p. 189). Assim, a indicação de Bourdieu, a qual já me referi, de que os agentes sociais estão inseridos em lutas classificatórias nos faz perceber que esses processos de nomeação são ininterruptos. A antropologia tem registrado e estudado diferentes reapropriações políticas de termos que se tornaram categorias sociais concebidas originalmente para se referir a seres humanos – seja ou não como sujeitos e agrupamentos de sujeitos num sentido foucaultiano – de modo inferiorizado ou estigmatizado. Isso não é privilégio do Brasil, nem da antropologia, mas a disciplina no país tem tido particular interesse na questão. Variados termos antes pejorativos, usados para demarcar hierarquias sociais e o domínio político, sofreram uma modificação de sentido através de processos sociais direcionados pelos próprios grupos antes sob escrutínio heurístico visando a dominação. Embora processos muito semelhantes tenham havido noutros lugares, entre nós isso acontece com “índio” e “indígena” (Valle, 2005; Carneiro da Cunha, 2009), “negro” (Munanga, 1990), “homossexual” (Simões e Carrara, 2007; Carrara, 2016) – e demais termos relativos: “viado”, “bicha”, “sapatão” –, “travesti”, entre outros que põem desafios à comparação devido às suas particularidades históricas e sociológicas e dos objetos que engajam e politizam. A ligação entre estes exemplos é, portanto, uma política de contra-ataque. Entre esses termos há aqueles desenvolvidos para a dominação colonial, seja ou não usando de vestes pseudocientíficas, e aqueles próprios do cotidiano concebidos para o insulto e a injúria. Ambas as dimensões se entrecruzam e acabam produzindo o objeto sobre o qual se estabelecem. O que nem sempre é previsto nesses movimentos é sua reação política e social por meio da reconstituição simbólica da linguagem da dominação, mas isso não é realizado de qualquer maneira e não sem limites. É uma premissa foucaultiana, portanto, afirmar que o discurso que fala sobre sujeitos estabelece a sua própria produção e mantém sua contenção. Refletindo sobre os limites das ressignificações do termo “queer” no cenário estadunidense, Butler (1993) problematiza a relação difícil entre a fidelidade da categoria com suas formulações originárias de insulto homofóbico e as reapropriações realizadas por ativistas daquele país. Se, ao proporem uma teoria queer, acadêmicos positivaram a palavra não intencionando uma identidade per se, a sua recolocação identitária deu novos contornos muitas vezes pouco questionadores de suas raízes culturais e de seus sentidos primeiros. Sua proposição, que já é explícita no título, é a de fomentar a concepção de uma queer crítico. A reflexão de Butler é “boa para pensar” as reapropriações do se sentir disfórico estabelecidas pelos homens trans da pesquisa, muito embora não se estabeleça aí qualquer relação com o “queer”. Isso porque a autora está questionando o uso político de um termo que antes ocupara outros espaços e cuja ligação não seria possível de destituir totalmente. É o caso, portanto, de “disforia”, algo, como vimos, gestado nas explicações clínicas e, 201 posteriormente transfigurado aos manuais diagnósticos para identificar e reclassificar a transexualidade. O modo como os interlocutores apreendem isso como um conjunto de sentimentos reorganiza experiências cotidianas de aflição sentidas e vividas em relação ao corpo. Para Kaio, em muito alinhado com Zagreu, Lucíola, Januário, Paulo, Reginaldo e Januário, a noção de disforia excede e não é propriedade da patologia. Nesse sentido, se trata de um sentimento que foi patologizado. Quando pergunto a este se ele sente a “disforia”, como outros interlocutores já descreveram, ele me diz que “sim, sempre, e muitas vezes”, e continua: A disforia é uma sensação, um sentimento, todo mundo tem, todo ser humano tem na medida em que você.... Você nunca viu uma pessoa cis dizer assim, “ah eu não estou suportando essa barba, preciso tirar”; “ah, eu não tô suportando esse cabelo, tenho que cortar”; “ah, essa roupa não tá...”; “ah, eu tô me sentindo gordo”; “ah, eu tô me sentindo magro”; ah num sei o que, ah num sei o que.... “Eu tenho que fazer alguma coisa pra mudar isso”? Isso é disforia! É um sentimento de incômodo que você precisa se livrar daquele incômodo pra ficar bem, tá entendendo? (Kaio, entrevista, 2018). A disforia é, assim, algo que se sente corporalmente, mas não no sentido que advém das profundezas orgânicas ou psíquicas. É um sentimento que pode ser sentido por qualquer pessoa por causa de qualquer motivo de insatisfação corporal. Por isso, se alguém deseja se submeter a uma cirurgia estética, por exemplo, de rinoplastia – modificação da estrutura nasal – e, utiliza-se do argumento de que está infeliz com a forma que seu nariz assume, nenhum tipo de protocolo de controle seria necessário para autorizar o médico a performá-la. O argumento de Kaio é de que suas vontades para mudanças corporais sejam tratadas da mesma forma. Em meio a uma discussão que tivemos na sua casa sobre os manuais diagnósticos e a classificação da transexualidade150, ele esclarece que o problema que vê está em ser algo passível de diagnóstico: O problema é que o nosso incômodo [eles] transformaram isso como doença e o incômodo dos outros como normalidade. O nosso incômodo é anormal e o incômodo deles é normal. Você dizer que tá gordo e quer emagrecer, é um incômodo normal; você dizer que tá magro e quer engordar é um incômodo normal; você dizer que é.... “Preciso fazer uma cirurgia no meu peito que tá muito grande”, “quero ele pequeno” isso é um incômodo normal ou o contrário, um incômodo normal, tá entendendo? E por aí vai, então, assim, o nosso incômodo, o nosso incômodo é considerado doentio (Kaio, entrevista, 2018). Duas questões se sobrepõem, não apenas das formulações de Kaio, mas de todos os interlocutores até agora mencionados. A primeira diz respeito a como a disforia, ao ser identificada e narrada como um sentimento cujas explicações para minhas perguntas eram quase sempre trazidas com um ar de obviedade, aponta para a capacidade micropolítica das emoções, e não uma pronta e simples despolitização ao se assimilar acriticamente categorias biomédicas. Se admitirmos 150 Estávamos considerando a quinta versão do DSM e a nova versão do CID-11 que passou a mencionar “incongruência de gênero” num capítulo sobre condições de saúde e não mais como transexualismo. 202 que o uso da “disforia” como categoria emocional estabelece algum tipo de reconciliação com o discurso biomédico, até mesmo uma retórica de reconciliação pode estabelecer alguma posição de resiliência. Ser a própria identificação como transexual uma ressignificação de um termo médico, já aponta para as possibilidades da reação política a um conhecimento hegemônico. A disforia descrita aqui, assim, dramatiza e altera as relações de poder (do diagnóstico através de uma relação entre quem diagnostica e quem é diagnosticado). Assim, a disforia sentida e expressada por homens trans demonstra-se como um caso de como as emoções atualizam por meio da vivência subjetiva dos indivíduos, as dimensões macro da organização social, como já apontado por Lila Abu-Lughod e Catherine Lutz (1990b)151. Tanto o sentir-se disfórico como o discurso sobre a disforia como um sentimento expõem as relações e dinâmicas de poder nas quais os homens trans estão situados, e de como os corpos são construídos e reconstituídos através das interações sociais. Mas não se trata apenas de como o outro me faz sentir um “mal-estar” porque eu apresentaria caracteres dúbios de gênero e/ou sexualidade não condizentes com a posição social que se demanda, tem a ver também com como eu sinto o “incômodo” através do meu corpo, isto é, a disforia é uma categoria de uma linguagem do sofrimento, que não se restringe a ser uma resposta às cobranças sociais, mas que elas mesmas produzem essa emoção categorizada em novos termos ao usar os termos do diagnóstico, desnaturalizando-o. A tática é de transformar a emoção presente no manual em uma emoção descaracterizada medicamente. Contudo, o que se faz com o termo disforia – tanto no campo biomédico, como no do movimento social e na vida cotidiana de seus pacientes – não é o mesmo campo social e cultural daquele próprio das categorias de acusação como tem sido os termos “queer”, “viado” e “negro”. Nesse sentido, esse elemento do mundo social da transexualidade tem uma proximidade muito maior com contextos nos quais categorias biomédicas de doenças são ressignificadas por grupos de pacientes que a incorporam em suas lutas diárias por reconhecimento científico. Continuando nossa conversa, Kaio ainda explica o lugar dessas emoções de incômodo com o corpo no diagnóstico da transexualidade entre as diferentes definições que até hoje já burilaram os manuais – transexualismo, transtorno de identidade de gênero (TIG), disforia de gênero. A própria definição diagnóstica de emoções que provam a transexualidade detém de certo efeito na forma como as pessoas trans em contato com o conhecimento biomédico se ressignificam, mesmo que, como exposto até aqui, sentir-se disfórico não signifique estar doente, mas institui uma linguagem para o sofrimento. Sob a égide do TIG, Kaio explica “que não era nem pra ter esse incômodo, você não era pra ter esse incômodo, você não está incomodado, você está no lugar 151 Ver também Coelho (2010). 203 certo, você está apenas com um problema mental e não consegue enxergar isso”. E, continua depois que lhe peço para explicar melhor, uma vez que não havia entendido: Desvio mental.... Porque assim, na verdade, nós éramos “10 F64” que é doença mental, que é isso que tô te dizendo, né?! “Você não está incomodado com seu corpo, você tá com um desvio mental, você tem que se encontrar como mulher e como homem”. Mas aí como a gente rebateu, rebateu, rebateu, e relutou, aí a gente foi pro “barra zero”. Fomos pra disforia. Não é mais tão mental, é só pra dizer que é uma disforia que vem do mental, ainda está dentro da patologia. Só deu meio que uma aliviada, está entendendo? (Kaio, entrevista, 2018). A segunda questão que essa discussão aponta, principalmente exposta nas representações formuladas e expressadas por Kaio, é quanto às mudanças sociais das práticas e saberes biomédicos e o que mais se institui como relativo no mundo social de saúde trans. Os diferentes termos diagnósticos, apesar de permanecerem articulando ideias de masculino e feminino, homem e mulher a serem identificadas, trazem consigo diversas formas de abordar e de conceber a transexualidade e as intervenções médico-clínicas. Assim, a medicina trans brasileira de hoje não é a mesma daquela praticada pelo circuito profissional de Roberto Farina – de influência teórico- clínica da acepção de transexualismo de Benjamin –, tampouco a que tomou forma nos serviços de saúde constituídos para um modesto atendimento especializado durante a década de 1990 com os auspícios da implantação do SUS – no âmbito ainda do transtorno de identidade de gênero das versões do DSM de 1993. E cada vez mais se distancia do contexto de criação do Processo Transexualizador do final da década de 2008 – igualmente devedora do cenário anterior. A biomedicina preocupada com esse nicho populacional não apenas não é mais a mesma no Brasil e no mundo, como se aproxima cada vez mais, se já não é ela mesma um exemplo, das formas que as ciências da vida têm assumido na contemporaneidade nas suas feições biopolíticas, de melhoria da saúde do indivíduo e do avanço das tecnologias biomédicas que se transformaram em verdadeiras tecnologias da vida. Quando Kaio me responde quais as atividades que o movimento social tem articulado na região no âmbito da despatologização, o cuidado da vida ganha uma forma particular ao defender que é preciso, primeiro, constituir uma estrutura que torne capaz e hábil esse cuidado pela via da saúde pública. A necessidade de ser estratégico advém de urgências: Nada! E não pretendemos tão cedo. Porque primeiro para se despatologizar, você primeiro tem que criar uma estrutura pra segurar. Como é que você vai dizer assim.... No momento que nós estamos, um atendimento com a endocrinologista, essa cirurgia que eu fiz ainda está ancorado naquilo ali. Se eu chegar com um movimento, ou um movimento chegar, chegar o que for, e quebrar aquilo ali, pra onde que nós vamos? Precisa criar uma base, uma estrutura, o ambulatório é isso, é essa base, é essa estrutura. Depois que essa base existir.... Por que São Paulo tá tão acirrado pra isso? Porque já tem base. Nós não temos base. Nós vamos pra onde? [...]. Nós vamos para onde? [...]. Aí, não tem uma estrutura pra brigar. É preciso criar um mecanismo e uma estrutura. Depois que se pensar um mecanismo e uma estrutura em funcionamento, aí sim você pode dialogar 204 a desconstrução desse sistema. [...]. Aí, a gente pode pensar nesse diálogo, tá entendendo? Mas se eu não tenho nada, eu não vou ter mais nada ainda (Kaio, entrevista, 2018). Contudo, não se trata de se apontar apenas para o movimento de uma estratégia. Não questionar a patologização para garantir os procedimentos cirúrgicos e o cuidado em geral é um argumento que tem se tornado comum e tem sido igualmente criticado como um “erro de estratégia” (Suess Schwend, 2018). Esse é o elemento mais direto que se apreende das ideias de Kaio. Mas quero apontar, junto com ele, que a questão aqui não é, em si, o medo pelas consequências dessas mudanças diagnósticas, mas que fundamentações fazem as demandas políticas em saúde andar mais rápido para atender às suas necessidades. Quero inferir ainda que essa discussão nos direciona para pensar as diferenças de contextos no país, tanto históricas como culturais e sociais, porque o alcance e a cobertura que o setor público de saúde abarca se situa diferentemente em cada região, tanto pelos movimentos sociais, mas também pelos interesses e práticas de profissionais de saúde e dos setores estatais como um todo. Como a dinâmica política de procurar que uma atenção à saúde trans seja estruturada no Estado, segundo os seus próprios termos, produz ou reverbera na formação da subjetividade? 3.5. A conquista da cidadania em saúde Procurei, nesse capítulo, compreender como o termo disforia tem sido formulado como um conjunto de emoções concernentes a experiências de sofrimento. Essa disforia pôde ser visualizada nas narrativas de transição de gênero. Nessas emoções encontram-se diferentes sentimentos que endereçam o se sentir aflito com o próprio corpo. Através de um exame de como a noção de disforia de gênero ganhou forma no DSM como uma categoria diagnóstica reificada como mais flexível e apenas descritora, a primeira parte do capítulo seguiu para mostrar ainda como emerge a crítica contra a patologização da transexualidade no Brasil. A segunda parte ficou a cargo das descrições de experiências particulares de interlocutores que no decurso de suas transições também vivenciaram itinerários terapêuticos para cuidar de processos de adoecimento que se entrecruzam com os cuidados que buscam, e com os itinerários que concebem para transicionar. Numa nova forma de politizar a própria existência e a relação com o conhecimento biomédico, homens trans se veem sentindo emoções que tem uma grande base sociológica para sua concepção, embora ela seja sentida no corpo e individualmente. A disforia como o sofrer com o corpo marca- se como algo próprio da transição de gênero, e pertencente aos exames subjetivos e a materialidade que leva alguém a construir a si mesmo de forma diferente daquilo que aprendeu desde o nascimento. Assim, esses sujeitos agem como se invertessem a ordem dos elementos de uma equação. Como outra forma de ver as emoções que vivenciam, e as próprias experiências e 205 argumentações para suas modificações corporais, novos reposicionamentos sociais passam de numerador para denominador. Mas isso não ocorre apenas como “resistência” ou “resiliência” aos conhecimentos hegemônicos, mas uma nova maneira de ressignificar as histórias que escutam sobre si mesmos que não rompem totalmente com os caracteres do enquadramento biomédico. A micropolítica de se perceber sentindo algo com o nome de disforia, mesmo que seja o termo usado para gerir um diagnóstico, se institui porque descreve que o mal-estar e a aflição existem, e elas podem até receber o nome de disforia, mas elas não são sintomas de uma doença. Sentir-se disfórico fala também dos lugares que alguém que transiciona ocupa no decurso desse caminho e na própria concepção de sua possibilidade. Ela descreve relações de poder contra as quais é necessário se fazer visível. A forma de se sanar, de apaziguar esse sofrimento que se vive com o próprio corpo, mesmo que nisso o produza, é pelo Sistema Único de Saúde como única via possível num cenário de pobreza. A justificativa central para que o SUS “olhe” para pessoas trans administrando serviços especializados e não dificultando o acesso à sua rede integral e primária é um só: só é possível garantir vidas trans se houver suporte do Estado que tem o dever de prover todos os cidadãos. No próximo capítulo, portanto, passarei à descrição etnográfica da busca por serviços de saúde para ter acesso as modificações que necessitam para resolver os problemas que fizeram com que sentissem a disforia. Como mostrarei, esses itinerários de transição de gênero para sanar a disforia ganham forma sob os efeitos da política de saúde trans brasileira, o Processo Transexualizador. Mesmo que na época da pesquisa (e das narrativas produzidas na reflexão biográfica das entrevistas) não existisse nenhum Ambulatório formal que oferecesse esse tipo de assistência, é possível identificar que pacientes e ativistas constroem o direito a acessá-la localmente. Isso cria a justificativa para os setores estatais cearenses, como alguém se dissesse: “procuramos assistência e não obtivemos como outros cidadãos, portanto, é obrigação do Estado fornecer esses serviços porque nossas vidas dependem disso”. 206 – Capítulo 4 – A política de saúde trans e os processos de formação de Estado A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para a promoção, proteção e recuperação. – Constituição da República Federativa do Brasil (1988). 4.1. À procura de atenção Era pleno meio-dia e Aristides, Rosivaldo e eu descíamos a pé a rua onde eles moravam. A sensação térmica era quase avassaladora enquanto caminhávamos alternando entre o asfalto e a calçada à procura de sombras que amenizassem de alguma maneira o calor que sentíamos. Iríamos percorrer ainda uma distância de dois quilômetros até o posto de saúde152 que ficava localizado num bairro vizinho. Antes de sairmos de casa pensei que usaríamos o transporte público. Quando perguntei, tentando enfatizar sua necessidade, me responderam que não seria preciso, então me resignei. Eu os acompanharia numa consulta já marcada, aquele momento, há quinze dias. Alguns quarteirões depois entramos noutro beco e acabamos saindo, ao sul, na Avenida 13 de Maio. Perguntei por que eles estavam indo naquele horário se a consulta era mais tarde, então me explicaram que se não estivessem no postinho para confirmar o atendimento com antecedência a funcionária colocaria outra pessoa no lugar. A regra foi esclarecida da seguinte maneira: para evitar que usuários marcassem e não comparecessem era necessário chegar uma hora antes porque se não o fizessem a vaga seria passada para o próximo registrado numa chamada de espera. A demanda era alta e não se poderia deixar de atender quem precisava/e se esforçava para estar presente, gerando assim essa dualidade moral. Eles (e eu também) não havíamos almoçado ainda, e se tivéssemos parado para fazê-lo eles perderiam a hora marcada. Continuamos seguindo pela avenida longamente até que entramos no bairro do posto. Localizado num recuo aberto que lhe dava grande destaque em relação as demais edificações de uma rua larga, o serviço era pintado com as cores e 152 Termo usado pela Prefeitura de Fortaleza para se referir às Unidades de Atenção Primária à Saúde (UAPS) que compõem a política de Atenção Primária à Saúde por ela gerenciada. Segundo documentos oficiais da Prefeitura, a cidade conta com 113 postos de saúde sob sua responsabilidade espalhados pelas sete Regionais (forma como o município administrativamente organizava os seus bairros até o final de 2019). 207 outros emblemas da Prefeitura (azul, branco, verde) por dentro e por fora, deixando claro a que nível de administração estatal pertencia. A preocupação de Aristides e Rosivaldo em respeitarem os horários estabelecidos era reforçada principalmente pelo tipo de acesso que tiveram ao posto de saúde. É de conhecimento geral local que cada um desses postinhos atende privilegiadamente os moradores dos “territórios” que abrangem, os quais, por sua vez, pertencem a uma “comunidade” própria. Cada usuário deveria recorrer ao posto de seu bairro munido de comprovante de residência. Alguns funcionários diziam, contudo, que essa medida organizacional era apenas um princípio para facilitar o trabalho e evitar a superlotação de uns serviços enquanto outros estariam esvaziados. O que os interlocutores aprenderam é que para cada população subdividida havia uma estrutura específica, mas isso podia depender do funcionário em questão no momento da marcação de consultas. Cada serviço se tornara na cidade um microcosmo particular, mesmo que todos eles estivessem ligados à política de Atenção Primária organizada pelo município e à rede do SUS. Alguns desses postos se tornaram conhecidos também por serem classificados moralmente153 como “bons” ou “ruins” por homens trans, de acordo com a abrangência da clínica, da marcação de exames e outros procedimentos que ofereceram sem dificuldades. Como Aristides e Rosivaldo não moravam nesse bairro do postinho para o qual nos direcionávamos, eles tiveram que contar com a aceitação da funcionária para que marcasse ou não a consulta. Eles se dirigiram para lá, 15 dias atrás, sabendo que outros rapazes trans já haviam sido atendidos ali, tendo inclusive conseguido encaminhamento para o setor hospitalar terciário no qual existia um Ambulatório de Sexologia recém-criado na cidade. A intenção de ir para esse serviço era de acessar desde um atendimento clínico genérico – entendido que seria mais “humanizado” por ser uma profissional “especialista” – até a entrada no “sistema” para que pudessem contar o tempo necessário para conseguir ser aceitos para procedimentos cirúrgicos à transição de gênero154. Mesmo que na cidade não existisse um ambulatório do processo transexualizador estar apto documentalmente era um trunfo para conseguir consultas inclusive com médicos no mercado privado. Então, como me contavam no nosso caminho, precisaram ir e “fazer muito choro” para a recepcionista marcar a consulta, ou seja, convencer a funcionária. Tinham esperança disso se concretizar justamente porque outros conseguiram antes deles. Isso tornava o serviço não apenas “bom”, mas “sensível”. 153 Compreendo aqui a moralidade a partir de Émile Durkheim (2000, 1996 [1912], 2008 [1925]), que primeiro mostrou que seu fundamento social provém das representações sociais e do conjunto das interações entre a consciência coletiva e a consciência individual. A despeito de seus interesses de reforma social, é possível apreender sua sociologia da moral. Para o autor, “há uma característica comum a todas as ações que comumente chamamos morais, que é o fato de que estas se dão segundo regras preestabelecidas. Conduzir-se moralmente é agir em conformidade com uma norma, que determina a conduta a ser seguida antes mesmo que tomemos partido acerca do que devemos fazer. O domínio da moral é o domínio do dever e o dever é uma ação prescrita” (Durkheim, 2008, p. 39). Os funcionários do posto de saúde fizeram suas regras, e diante dessa autoridade os interlocutores observaram a utilidade de seu cumprimento e a ausência de outras opções. 154 Como veremos adiante no itinerário vivido por outro interlocutor, essa entrada no sistema se complexifica de outras maneiras. 208 Embora possa haver aí a atuação de noções em torno do reconhecimento heteronormativo de pacientes como transexuais de verdade, é necessário alargar a compreensão da saúde trans para incluir os meandros da estrutura do sistema de saúde brasileiro na sua “oferta” e na sua “procura”, isto é, quero entender a organização social da atenção à saúde que, embora inclua relações de gênero e sexualidade alcança outras questões e posições sociais quanto as diferenças de classe e de raça, além do modo diverso de como os serviços se tornam acessíveis. E isso não cabe apenas aos cuidados que pessoas trans e travestis buscam no âmbito das atenções à saúde de modo geral, mas também no campo da política trans à mudança de sexo como entendida pelo Ministério da Saúde desde que iniciou sua regulação nacional. Isso busca enxergar uma pluralidade de questões presentes na conformação do tipo de acesso que Aristides e Rosivaldo, a exemplo de outros interlocutores, conseguiram formalizar desde o nível primário. Grosso modo, o atual funcionamento da Atenção Básica – também chamada de Atenção Primária155 – do Sistema Único de Saúde preconiza-se como a sua “porta de entrada”, de modo que se possa se atender inicialmente e filtrar o encaminhamento para que se siga numa rede de serviços organizados de modo descentralizado da média à alta complexidade. Nesse nível inicial há várias estratégias e iniciativas que definem sua organização, incluindo exames, vacinas, consultas (Matta e Morosini, 2008). A despeito da idealização daqueles que imaginaram originalmente o SUS em todo o país, essa rede muitas vezes pode se transformar em focos de atenção dentro de linhas hierárquicas que os pacientes percorrem – e muitas vezes precisam vencer –, desenhando itinerários terapêuticos diversos. Os municípios brasileiros são, assim, o maior concentrador operacional de oferta dessa atenção, mesmo que haja uma legislação suplementar à Constituição Federal de 1988 que institua a parceria financeira com outros níveis de poder estatal, o Governo do Estado e o Governo Federal, para o seu custeio. Essa descentralização gerencial de setores do SUS produz um emaranhado de políticas de saúde que podem ter seu financiamento e idealização concentrados numa esfera estatal, mas tem sua prática levada à cabo noutro contexto bem diferente. O que nem sempre é indicado e compreendido nesse sentido é que tais políticas e ações de saúde só podem passar a existir localmente se elas forem concebidas e pensadas como legítimas e, portanto, necessárias também em nível local. Assim, não se trata de averiguar o que “se faz na ponta”, como se diz geralmente sobre de políticas de saúde, como se as diferenças com o que é pensado em Brasília seja um indicativo puro e simples de ineficiência de ações “bem gestadas” e “mal aplicadas”. 155 Os dois termos representam concepções diferentes acerca da idealização do que animaria o setor dentro do Sistema Único de Saúde. Sanitaristas ligados a reforma do sistema no processo de democratização propõem chamar de Atenção Básica, e não de Atenção Primária, argumentando que isso não reforçaria a ideia de hierarquização de um sistema que não preconizaria a saúde integral e a existência de uma rede em saúde (cf. Giovanella, 2018; Cecilio e Reis, 2018). 209 Isso é algo profundamente relevante para entendermos o processo transexualizador e sua constituição nas regiões brasileiras. Duas pesquisas me forneceram pistas nesse sentido, a etnografia de Jessica Jerome (2015) sobre a implantação do SUS no Ceará nos anos 1990 e a pesquisa historiográfica de Luiz Araújo Neto e Luiz Teixeira (2018) sobre como o câncer foi transformado em um “problema médico- social” entre os anos 1940 e 1950 para poder ser relevante à intervenção biomédica no Ceará. Jerome demonstra através de uma observação densa como médicos e outros profissionais de saúde se defrontavam com categorias e compreensões da população em geral para aplicarem a transformação do sistema de saúde. Havia aí um conjunto de práticas que buscavam idealmente romper com um modelo de atenção visto como pouco cidadão porque fincado em bases de relações de troca e não como direito inerente. Os moradores do Pirambu, sítio específico estudado pela antropóloga, também se engajaram para desafiar um sistema individualizado antecessor e concorrente ao SUS construindo passeatas, reclames midiatizados e práticas de cura alternativas que preconizavam um desenho mais coletivizado através do plantio e consumo de plantas. Assim, se produziu um campo que contribuiu para o estabelecimento de um sistema universal localmente. Já Araújo Neto e Teixeira (2018, p. 183) procuram mostrar de modo mais direto como o câncer, atualmente indiscutivelmente uma doença que engaja e sensibiliza, necessitou ser erigido socialmente como um problema de saúde para ser aceito como adoecimento no Ceará. Não foi algo dado. Referindo-se a um período histórico muito anterior àquele que nasceu da Constituição de 1988, tocado por Jerome, os autores acabam por explicar como a criação da assistência à saúde voltada para “cancerosos” foi um trabalho coletivo no sentido durkheminiano. No início da década de 1940, as neoplasias não eram interessantes à medicina e à saúde pública cearense, as quais estavam voltadas principalmente às endemias rurais e epidemias urbanas. Araújo Neto e Teixeira (2018, p. 183) demonstram que houve um “processo de ‘enquadramento’ do câncer” como fruto do trabalho de “um grupo de médicos cearenses com forte presença nos círculos da profissão, articulando-se com projetos e iniciativas locais e nacionais a fim de pôr o tema das neoplasias na agenda de grandes interesses da população cearense, pelo menos das elites”. Os historiadores não isolam a região e demonstram que foram diferentes níveis desse processo social com a criação de setores estatais, engajamento científico e político e mudanças na sociedade brasileira que possibilitaram que o câncer se tornasse um problema cearense. Ambas as pesquisas, de Jerome e de Araújo Neto e Teixeira, já demonstram que “concepções de cima” no campo da saúde/biomedicina – isto é, da capital federal ou doutras metrópoles instadas ao centro do país – não se reproduzem simplesmente em outras regiões do país de maneira automática. Elas necessitam ser produzidas. E, portanto, precisam ser 210 compreendidas dentro de processos diferentes mesmo que possamos perceber as escalas que incutem seu entrecruzamento. Ao ler esses autores e a autora enxerguei muito do processo sociopolítico que tem dado ânimo à saúde trans no Ceará que, a despeito da velocidade que nem sempre é vista como ideal por entusiastas, tem sido contemporaneamente um campo no qual essa legitimidade tem se constituído. Esse cenário e sua materialização legal têm como efeito uma intrincada subdivisão de esferas de atuação política que se constituem, e precisam ser constituídas, também no âmbito de direitos em saúde ao longo do território brasileiro. E isso é particularmente relevante para a atenção à saúde que os interlocutores trans procuram. No Brasil, desde 2008, existe oficialmente uma política de saúde do SUS chamada de Processo Transexualizador, na forma de ambulatório especializado e enquanto atenção cirúrgica visando a transição de gênero. Nesse sentido, o Ministério da Saúde – junto com o Conselho Federal de Medicina – estabelecem continuamente regras operacionais com prazos, etapas e tipos de procedimentos oferecidos e orientações de atuação clínica nesse sentido. Com uma história que remonta à década de 1960 no país, como referi no capítulo 2, essa política necessita, contudo, ser dividida em sua gestão com os Governos dos Estados e dos Municípios como qualquer política do SUS. Para que um ambulatório desse tipo seja habilitado – isto é, reconhecido como apto a performar o programa –, instâncias locais devem oferecer mão de obra e o lugar hospitalar, os quais são então habilitados pelo Governo Federal a funcionarem e, portanto, a receberem recursos financeiros para parte de seu custeio e o reconhecimento como um serviço específico. Não se trata, simplesmente, de uma automática implantação. Observei na pesquisa que entender os meandros dessa estrutura é uma peça-chave para que possamos compreender os efeitos sociológicos dessa política sobre a atuação em saúde no Brasil mesmo quando o Processo Transexualizador ali “não exista” habilitado. Meus argumentos nesse capítulo são que: primeiramente, como bússola legal (e moral) influencia o cuidado constituído no país para o acesso a atendimentos em torno do processo de transição de gênero, e, em segundo lugar, que o cenário sociopolítico – inclusive, histórico – tem determinado o desenvolvimento ou a sua atuação como política, da busca por cuidado pelos pacientes/ativistas e a medicina trans localmente. Desde o primeiro serviço criado no país, observando a história dessa política, a história do SUS, e a dos movimentos sociais trans (e LGBT), se pode perceber que a existência ou não desse tipo de ambulatório é o resultado de forças sociopolíticas que se fazem presentes diante dos Governos Estaduais e/ou das Prefeituras. Não é um ativismo simplesmente diante do poder central no país, é um ativismo dirigido para os poderes locais156 porque é localmente que se materializa o cuidado e a atenção em saúde. Isso também não é 156 Poder central e poderes locais são termos usados aqui em relação contextual com o intuito de delimitar a estrutura estatal e a articulação política em torno e através dela, isto é, o que seria um poder local numa dada atmosfera política pode se tornar um poder central quando a relação considera outros agentes e estruturas. 211 algo proveniente apenas da militância trans, mas necessita estar articulado com um corpo científico e médico local, uma vez que o Ministério da Saúde não tem a força para sua instalação “desde cima” mesmo que tenha procurado regular as iniciativas (que sempre foram locais) desde 1997 com sua portaria autorizando de modo experimental as cirurgias em mulheres trans em hospitais universitários. A etnografia realizada em Fortaleza me demonstrou que mesmo não existindo oficialmente esse serviço na cidade, tanto pacientes trans como profissionais de saúde não deixaram de conformar serviços e procura por algo nesse sentido; e nem se deixou que muito do trabalho realizado nesse sentido fosse influenciado por seus princípios. Isso possibilitou que viesse a ser discutida e materializada a sua oficialização, uma vez que foi necessário que diversos agentes criassem uma atmosfera de legitimidade para tanto. A atenção em saúde voltada às pessoas trans precisou existir negativamente para que a política de saúde trans pudesse ser reclamada: é essa parte da história que descrevo nesse capítulo, a da negação da atenção e da sua procura. O objetivo desse capítulo é, portanto, entender como se produziu esse “ambiente” na região cearense, partindo da observação de (e do que foi reportado nas entrevistas sobre) itinerários terapêuticos de homens trans quanto a transição de gênero mediada pela medicina. Não pretendo aqui descrever o ativismo per se; sobre isso me deterei no capítulo seguinte. Procuro compreender os processos e os contextos micro da busca por atenção à saúde porque esse é também um elemento que acaba por criar a legitimidade diante do Estado-nação e não apenas a mobilização oficial que se dá de maneira clara e direta para as instituições. Esse cenário é particularmente relevante porque foi possível observar o Processo Transexualizador desde os processos que possibilitaram seu nascimento num lugar específico, e a ação da política mesmo sem sua oficialidade. Com isso, se percebe que os serviços desse tipo já existentes no país nasceram a partir da mesma ordem de fatores, levando-nos a ver como essa política de saúde federal responde, pelo contrário, às dinâmicas localizadas. Partindo dessa observação se pode, portanto, inferir que com isso o Estado brasileiro em sua estrutura produz a si mesmo ao procurar regular a saúde trans. Nesse sentido, faço mais referência à noção de “atenção” do que a de cuidado, uma vez que a falta mais sentida e mais reivindicada na vida de homens trans que acompanhei foi aquela correspondente a uma estrutura em saúde que os atendesse de maneira que confirmasse os direitos que reclamam. Como mostrarei ao longo do capítulo, entendo que a atenção integra o cuidado157, mas 157 Há uma forte produção bibliográfica sobre cuidado (tanto em saúde como noutras áreas da vida humana) na antropologia, na sociologia e na área interdisciplinar dos estudos feministas (cf. Mol, 2008; Tamanini, 2018). Nos países de língua inglesa do norte global a palavra care é usada tanto em termos de atenção à saúde como para se referir ao cuidado de maneira abrangente, algo que se repete na bibliografia produzida por seus acadêmicos. Como deixarei claro ao longo da descrição, partindo do campo etnográfico, é relevante diferenciar que cuidado não é o mesmo que atenção, embora o primeiro possa – e de acordo com os interlocutores, deva – estar presente na segunda. Ademais, no Brasil, sanitaristas e cientistas sociais tem pensado os serviços como modos de “atenção 212 não são o mesmo. Essa distinção ajuda a compreender as estratégias para acessar os serviços, os procedimentos, os mecanismos e as estruturas trazidas à tona por um conjunto de profissionais específicos que manejam recursos materiais e conhecimentos também próprio às suas áreas de atuação. Aristides e Rosivaldo se ligam a redes de cuidado entre amigos e entre parentes independentemente de conseguirem ou não uma consulta médica158, porém é a atenção à saúde como estrutura estatal organizada que eles realmente não têm às suas disposições. O “Estado brasileiro” como uma figura monolítica é, então, acusado de omitir um atendimento digno, uma atenção. Quando me remeto ao conceito de itinerários terapêuticos de transição de gênero não se trata de considerar que seja “uma doença” a ser corrigida com a transição, mas sim ao fato de pessoas trans engajarem-se em trajetórias de cuidado biomédico para prevenir e para curar adoecimentos que surjam nesse processo de mudança de gênero. São pessoas concretas que procuram a intervenção biomédica e situam-se em caminhos para alcançá-la, mesmo que esse encontro, quando aconteça, não seja uma relação ausente de conflitos e contradições. As angústias em torno da necessidade de se consultar com um médico e de se acessar procedimentos oferecidos por serviços do sistema público de saúde entreveem tanto a ausência de meios econômicos para realizá-los fora dali, como do renome e do reconhecimento – legitimidade – que esses profissionais adquirem quando esses sujeitos procuram transicionar sem, com isso, comprometer a saúde. A dimensão do adoecimento está presente, não do lado da origem da transexualidade, mas de um caminho saudável para alcançar aquilo que é tido como necessário em termos corporais e mentais. Isso produz, como mostrarei, moralidades sobre continuar “com saúde”. Assim, neste capítulo, eu não realizo uma etnografia centrada num único serviço, mas privilegiarei o acompanhamento de homens trans nos caminhos e nas estratégias que construíam para acessar esses serviços de saúde, de modo que eu adentro e saio desses espaços junto com eles. Antes de voltar à observação do posto de saúde, com que iniciei o capítulo, cabe esclarecer como entendo aqui “o Estado” a partir do processo de formação de sua maquinaria e de ideias a seu respeito. Assim, poderíamos desnaturalizar a existência desse ou daquele serviço de saúde e do próprio SUS, tanto ao enxergarmos suas histórias quanto as suas reverberações. Nesse ínterim, se produziram dinâmicas que não apenas participam, mas são em si mesmas processos de formação do Estado, uma vez que a luta por direitos em saúde trans perpassa intimamente pela saúde pública enquanto oferta de serviços entendidos como parte do dever pelo Estado brasileiro para cidadãos que têm direitos. Nisso, é possível perceber como se constrói “o Estado” no processo de reclamar à saúde” e instituem essa expressão como parte da linguagem que descreve a maquinaria estatal (cf. Giovanella, 2018). Assim, considero salutar fazer essa diferenciação e adotar esse termo para representar a organização da saúde pública. 158 Como procurei mostrar no capítulo 3 as estratégias dos interlocutores para cuidarem de seus processos variados de adoecimento em meio a transição. 213 sua ausência ou seu excesso e de demandar sua ação em diferentes escalas. Torna-se visível, assim, os efeitos e transformações dos discursos institucionalizados na Constituição Federativa de 1988, num movimento descritivo que atravessa ao mesmo tempo os itinerários terapêuticos à transição de gênero de homens trans e seu contato com a estrutura do SUS como uma formação estatal. 4.2. Uma construção de processos estatais e o campo da saúde A abordagem contemporânea em antropologia159 no Brasil sobre “o Estado” e, ainda, sobre o “Estado-nação” tem produzido uma vasta bibliografia que levou à contestação – inspirada também por outras ciências sociais – de ideias que o tomem como uma entidade que exista essencialmente. Privilegia-se aí um ponto de vista etnográfico da produção de sua maquinaria – e o acesso à ela em diferentes frentes e maneiras como usuário, operador ou apropriador –, das percepções que se tem sobre ela, e de seus efeitos numa variedade temática e de abordagem teórica (cf. Beviláqua e Leirner, 2000; Teixeira e Souza Lima, 2010; Castilho, Teixeira, Souza Lima, 2014; Souza Lima, 2013)160. As reflexões de Philip Abrams (1988 [1977]) têm sido umas das inspirações nesse sentido. Fazendo uma digressão sobre o lugar do Estado desde as teorias sociológicas, marxistas e das teorias da ciência política, apontando para a separação do social e do político como reinos distintos, o autor concebe que “o Estado não é uma realidade que se esconde atrás da máscara da prática política. É, ele mesmo, a máscara que previne que vejamos a prática política como ela é. Isto é, se poderia quase dizer, a mente de um mundo sem mente, o objetivo de condições sem propósito, o ópio do cidadão” (Abrams, 1988, p. 82, tradução minha). É por isso que ele argumenta que o que existe não é o Estado em si mesmo, como um agente que tem força sobre os indivíduos, mas uma “estrutura centrada num governo”, “unificada e dominante” e, também, como ideia que é projetada, e que circula como uma crença. Philip Abrams busca mostrar que tanto esse Estado-sistema como esse Estado-como-ideia, como chama, são o que de fato existe a dominar as ações individuais. 159. O “estudo do Estado” tem praticamente um incontável número de correntes teóricas e áreas disciplinares, indo das tidas como mais óbvias como a ciência política, marxismo e filosofia até aquelas a isso recentemente afeitas como a teoria queer. Reflexões feministas embrionárias têm tido, nesse sentido, considerável influência nas ciências sociais e humanidades de diversas matizes. Essas vão de uma gama de teóricas que entendiam o Estado como uma instância e realidade dadas até aquelas que começaram a entender que a mudança da opressão das mulheres adviria apenas se elas mesmas entrassem e mudassem o Estado, visto como masculinizado e neutralizado no sentido de ser controlado pelos homens para seu proveito próprio e com feições que não demonstrassem suas reais raízes políticas diante das relações de gênero (ver Machado, 2016). Não cabe aqui, ainda, cobrir o processo histórico de formação do Estado moderno, que parte desde a ascensão do capitalismo e da burguesia com o Estado Absolutista, e as posteriores mudanças nessa organização estatal com a queda das monarquias e ascensão da ideia de democracia e transformações do liberalismo econômico (cf. ex. Anderson, 1991; Elias, 1994). 160 Para um panorama, principalmente quanto ao contexto urbano a nível nacional e desde o exterior – incluindo uma comparação com a ciência política e a sociologia – ver os textos de Souza Lima e Castro (2015) e Souza Lima e Teixeira (2010). Como os autores mostram, os primeiros estudos estiveram interessados nos despossuídos, como os pobres, “os Outros”, em como reagiam e resistiam às “políticas sociais”. Mas esse é um contexto urbano da sociedade nacional, como se chamava o âmbito não-indígena dos estudos antropológicos. Nesse último, é forte e crescente a abordagem política da formação, sociogênese e resistência de grupos étnicos e da sua pacificação e assimilação pelo Estado-nação brasileiro, seja quanto às terras amazônicas, ao Nordeste Indígena, e outras regiões no país (cf. ex. Oliveira, 2014; Souza Lima, 1995; Valle, 2003). 214 Assim, levo em consideração na sua análise do Estado moderno e burocrático a premissa de que é a “estrutura” e são as pessoas e seus grupos ao operá-la que são os agentes que, de fato, existem no mundo empírico. Abrams defende que a proposta de se “combater o Estado” é algo que não leva em consideração que a disputa se dá entre os grupos, ou melhor dizendo, entre classes, e não entre um agente sem rosto e sem substância que estariam fora dele “na sociedade”. A isso o autor dá o nome de “véu de ilusão”. Aqui, a separação entre dois campos estanques “sociedade” e “Estado” é terminantemente rejeitado. Por isso que o autor é irônico em dizer que não se “estuda o Estado”, mas o que se faz da ideia do estatal e de seus recursos161. É possível, assim, reter de Abrams principalmente a recusa em enxergar no Estado um ator monolítico com uma mente própria apartada. Algo que será também chamado à atenção por Timothy Mitchell (1999, p. 76) ao dizer que o Estado é ao mesmo tempo um “construto ideológico” e uma “força material”. Reflexões algo herdeiras das proposições de Norbert Elias (2006 [1972], p. 157) sobre como “o Estado” é uma ideia difusa, cujo poder penetrante é aquele do “Estado nacional” que detém sua forma contemporânea no modelo liberal burguês e democrata. Elias reclamava da ausência de preocupação sociológica na literatura de sua época sobre a formação do Estado-nação, abstraída em conceitos como “totalidade social” ou “sistema social”. Para o autor, considerar a formação de Estado poderá mostrar como a integração que culmina em Estados e nações é o resultado de um processo no qual se conjuga “uma série de tensões e conflitos específicos, lutas de equilíbrio de poder que não são acidentais, mas estruturalmente concomitantes com o movimento em direção à maior interdependência das ‘partes’ de um ‘todo’” (Elias, 2006, p. 159). No seu programa de estudo propõe que é necessário distinguir o que são as “ideologias nacionais” e o que são os processos de “integração e desintegração”. Assim, se poderia observar como se constituem a nação, forma contemporânea do Estado, como um sistema de valor e as tensões e os grupos que disputam entre si o controle ou a entrada nas ideologias e na estrutura estatais. Isso é importante de assinalar tanto porque é essa a forma como estamos incluídos nas relações sociais que são abarcadas como matéria de administração de governo, como a retórica brasileira em torno da gênese de políticas governamentais e direitos humanos relativos à diversidade sexual e de gênero não deixou de assumir uma forma nacionalista particular. 161 O que leva, por extensão, à contestação da existência em si mesma do que se chama de “sociedade civil”, a qual pode ser percebida tanto como uma ideia quanto uma prática cultural nas sociedades de Estados modernos. Entendo que não há aí uma força anônima contrabalanceando o “poder estatal”, mas um idioma de organização social diante das políticas estatais. E são esses grupos que podem ser estudados e o modo como manejam essa linguagem estatal em meio as suas ações coletivas. A circulação dessa proposição é resultado do que Timothy Mitchell (1999) chamou de “efeito de Estado”, que produz a ideia de que há essa separação, mas que corresponde a uma ideologia. Angela Facundo Navia (2014, p. 86) ao estudar a política brasileira do refúgio demonstrou que essa unidade social funciona nas relações entre sujeitos e agentes de estado atravessado por uma certa moralidade. Então, esse termo ganha sentido relativo a certos objetos de um mundo social próprio. No caso da autora, as falas sobre "participação da sociedade civil" se referem a determinada ONG, a Cáritas que age junto a refugiados, a certas institituições públicas e ainda a organizações que trabalham ou não com migrantes. Nesse processo social são criados os “outros” dessa categoria. Assim, ao se falar em “sociedade civil” é preciso ter em mente sua significância sociológica contextual. 215 Mesmo que sejam os grupos entre si que disputem a operação daquilo que constitua o aparato institucional, é pouco produtivo para a compreensão enrijecer o olhar e ver apenas grupos de interesse atuando num fundo utilitarista e cujo jogo responderia ao binarismo dominados/dominadores, ou tampouco observar apenas a resistência e não entender como se dá esse roubo e centralização da autoridade tão enfatizados por Max Weber (2011 [1967]) na sua forma de violência e depois por Bourdieu (2014 [2012]) na forma simbólica que, como tal, possui efeitos consideráveis sobre a vida social162. Ao contrário, há aí a produção de processos estatais como processos sociais. Assim, por mais que se leve em consideração que o poder transborda e não se vincula isoladamente às estruturas estatais, “ao Estado”, a posse de seus espaços e recursos é um objeto de disputa altamente estratégico para os grupos e movimentos sociais com todos os seus agentes engajados nas permanências ou nas mudanças. Raewyn Connell (1990, p. 509) já apontou que seria necessário enfatizar o Estado não como uma “coisa”, mas como um “processo”. E, ao fazê-lo, compreenderíamos como o aparato institucional estatal torna possível a regulação sobre as pessoas, de modo que a sexualidade e as relações de gênero não são acessórias, mas pontos essenciais desse funcionamento junto aos processos de coordenação interna a essa estrutura para lhes dar um grau de coerência. Nesse sentido, estou preocupado neste capítulo em considerar um estudo da atenção à saúde como setores estatais em suas práticas administrativas a partir do seu acesso (de fora para dentro), procurando descrever como os agentes constroem o “Estado” e o atualizam, reagem e o transbordam. Isso é fundamental porque ativistas, pacientes, profissionais de saúde e outros funcionários de governo – procuradores, advogados, porteiros, assistentes de limpeza, enfermeiras, psicólogos, diretores, gestores, educadores – se situam nessas instâncias as produzindo continuadamente e constituindo fluxos e processos tanto enquanto grandes eventos como no cotidiano mais simples e banal. Entender a constituição do Processo Transexualizador como uma forma de “fazer Estado”, nos termos de Antônio Carlos de Souza Lima (2015, 2013), tem o potencial para mostrar como o contingente de relações sociais e de práticas relativos à saúde trans se intrincam e são objetivadas e subjetivadas através das ideologias estatais e de agentes específicos no cotidiano de seus trabalhos administrativos, uma vez principalmente que o Sistema Único de Saúde no qual está alojado e foi gestado é uma das maiores políticas governamentais do Estado brasileiro. Percebi que todos os setores nos quais os interlocutores buscavam cuidado ou 162 Partindo da assertiva de que estudar o Estado era em si uma tarefa difícil porque suas ideias penetravam no pensamento dos pesquisadores, Bourdieu chega inicialmente à teorização de que: “O Estado é o que fundamenta a integração lógica e a integração moral do mundo social, e, por conseguinte, o consenso fundamental sobre o sentido do mundo social que é a condição mesma dos conflitos a propósito do mundo social. Em outras palavras, para que o próprio conflito sobre o mundo social seja possível, é preciso haver uma espécie de acordo sobre os terrenos de desacordo e sobre os modos de expressão do desacordo” (Bourdieu, 2014, p. 23). 216 praticavam suas atuações em saúde e áreas administrativas estavam situados e em disputa entre si no âmbito estatal. Assim, as dimensões do sistema de saúde privada são pouco ou nada alcançadas. Num primeiro momento se poderia considerar que tal empreitada etnográfica seria impossível de se realizar em Fortaleza, no Ceará, já que, como já assinalei, um Ambulatório deste tipo não existia na cidade em todo o tempo da pesquisa. Contudo, isso não implica que a existência das normativas e leis que o regem no cenário federal não produzam, principalmente na forma de efeitos estatais, consequências sociais sobre os agentes e as estruturas do maquinário burocrático e de atenção à saúde locais. Esse é um primeiro ponto a considerar: o Processo Transexualizador instituído no país no final da década de 2000 se reproduz por todos os lados mesmo sem que ele seja regulamentado163. O segundo leva à confirmação do primeiro: ativistas trans e médicos e gestores e funcionários públicos se galgam na sua existência e na possibilidade de sua aplicação local para demandar direitos sociais em saúde e para inscreverem-se enquanto praticantes e pacientes deste tipo de atenção. Por isso que o capítulo transcorre descrevendo em relevo a política de saúde trans brasileira como um processo de formação do Estado-nação, que, como tal não inclui apenas o maquinário e seus agentes oficiais, mas também, como colocaram Souza Lima e Castro (2015, p. 35), as “diferentes modalidades de organizações que estão fora desse âmbito, mas que exercem funções de governo”, isto é, organizações não-governamentais, movimentos sociais e agências de fomento e organismos nacionais e internacionais. 4.3. Os efeitos sociais do Processo Transexualizador Quando Aristides, Rosivaldo e eu finalmente entramos no posto de saúde primeiramente bebemos água no bebedouro à esquerda da entrada para tentar apaziguar o calor, após a longa caminhada de quase 30 minutos ao sol. Quase esbaforidos notamos que já havia outros pacientes à espera de consultas naquela tarde. Não fomos os primeiros a chegar. Provavelmente compelidos pela mesma obrigatoriedade de confirmar a ida, essas pessoas já estavam na recepção, enquanto outras mais chegariam posteriormente enquanto ali estávamos. Uma grande sala retangular era ocupada com cadeiras de ferro e plástico dispostas horizontalmente em relação a entrada em três fileiras, além do bebedouro à esquerda uma grande placa informando os serviços disponíveis estava fixada na parede à direita. A recepção ficava bem em frente à porta e estava protegida por uma vidraça transparente que ia do balcão até o teto. Essa sala de espera dava ainda para dois corredores, um de cada lado da recepção, nos quais ficavam consultórios e salas de triagem e pesagem e a 163 Isso não quer dizer que não haja diferenças quando se tem uma atenção à saúde assim instituída. Estou apontando para os efeitos da política governamental do Processo Transexualizador na conformação da atenção e do cuidado que podem exceder sua existência de fato. 217 farmácia. A maioria desses pacientes que já esperavam antes da nossa chegada eram mulheres com crianças e idosas, e, em menor número, idosos. Eu percebo que nossa chegada inspirou olhares que nos examinavam com atenção. Como não houve nenhuma interação acompanhada de fala direta não posso inferir exatamente o que pensavam os curiosos, mas nesse momento me questiono se não seria a “verdade sobre o sexo” o que lhes movia a se deterem tão longamente nas nossas figuras, já que os rapazes e eu não deixávamos de suscitar alguma dúvida quanto às nossas personas enquanto homens. Era como líamos os olhares de canto de olho, como identificávamos, que evitavam o contato direto e de confronto aberto. Sem deixar que essa atmosfera nos incomodasse grandemente nos voltamos para a conversa entre nós mesmos. Logo após nos sentarmos nas últimas cadeiras de espera, Aristides e Rosivaldo percebem que já era hora de falar com a recepcionista para apresentar o comprovante da marcação e confirmar a consulta. Uma fila já começava a se formar, eles então aguardaram. Após alguns minutos a confirmação foi feita e continuamos a esperar. Num dado momento da nossa conversa Aristides nos pergunta se o médico de família que iria lhe atender poderia receitar alguma medicação para ansiedade. Ele nos dizia que tinha muita dificuldade para dormir. Rosivaldo completa que também sentia o mesmo, e que acha que o médico talvez o encaminhasse para um psiquiatra se fosse dito isso. Aristides já havia se consultado com outros profissionais para sua transição de gênero, e tinha vivido um desconfortável processo de identificação do transexual de verdade. Como eles estavam ali primordialmente para serem encaminhados para algum serviço que mediasse a conclusão de suas transições, qualquer elemento que pudesse lhes distanciar disso deveria ser afastado sem titubeio. Um desses fatores, desde a experiência dos interlocutores, era a existência de algum adoecimento que quando diagnosticado teria servido de empecilho para o andamento da transição. Aristides, então, desiste de mencionar qualquer problema de saúde. A ideia é, portanto, limpar ao máximo a solicitação ao médico, e conseguir o acesso a outro nível do SUS, esse que, sabem, detinha de uma especialista que poderia lhes atender de maneira afirmativa. Aristides voltaria a mencionar que quando fora atendido noutro serviço de saúde mental da cidade recebera uma receita de antidepressivo leve, mas que não estava disponível na farmácia do hospital. Enquanto conversávamos entre nós o tempo passara rápido e uma enfermeira já começava a chamar os pacientes para serem pesados e terem as temperaturas medidas. Não sabíamos quem era o médico e quando um rapaz jovem passa por nós de jaleco inferimos que talvez fosse ele quem estaria atendendo naquela tarde. Algo que primeiro chama a atenção dos meninos é o seu porte atlético e a beleza que identificam. Muito simpático, ele então nos chama para entrar na sala todos juntos já que eu estava os acompanhando e ambos iriam se consultar. Esperamos novamente de pé num canto do consultório enquanto Aristides é o primeiro a ser ouvido. O médico, sentado 218 atrás do seu birô, pergunta-lhe o que o trazia ali. Apresentando-se, sem rodeios, como alguém transgênero, ele então explica que precisava de um encaminhamento para uma médica que atende em um dos hospitais terciários da cidade que conta com um recém-criado Ambulatório de Sexologia. O jovem médico confirma que se tratava de “uma especialista”, o que Aristides assente. A pergunta de praxe se ele teria alguma doença atual é totalmente negada, mas Rosivaldo e eu sabemos que ele não está totalmente “bem” de saúde. Porém pensavam que procurar qualquer atenção nesse sentido poderia colocar em risco o encaminhamento. Mesmo que não conhecêssemos o médico que os atendia, não valeria a pena arriscar. Sem maiores delongas nosso amigo recebe o encaminhamento impresso. O mesmo se repete com Rosivaldo, que também nega qualquer cuidado fora da transição. Quando acaba de consultar os dois, Dr. Giraldo se explica, dizendo que marcou um CID164 genérico sobre sexualidade nos documentos porque era necessário burocraticamente, o que evitaria o retorno e o insucesso da ida ao hospital caso algum outro funcionário pudesse questionar a legitimidade do encaminhamento. O CID ali marcado era descrito como “z700 – acompanhamento às atitudes em matéria de sexualidade”. A explicação do médico fora totalmente inesperada e surpreendera positivamente os interlocutores que consideraram a explicação uma sensibilidade e um reconhecimento de que não eram doentes de verdade. No documento de Aristides agora em mãos, líamos: Paciente, 24 anos, sem comorbidades, transgênero necessita de avaliação para encaminhamento adequado em serviço de referência. A felicidade entre eles era enorme, mais um passo dado para a transição. Tudo parecia nos conformes: além de constar o seu nome completo, o de sua mãe, o número do cartão do SUS, havia a informação de que detinha o gênero masculino. Não era a primeira vez que os rapazes tentavam se consultar na Atenção Básica para conseguir esse tipo de encaminhamento. Aí se poderia achar que não haveria nenhuma preocupação de se tornar um usuário contínuo desse nível de atenção, mas a pequena fração de tempo que ficamos no posto já nos mostrou a carga de tensão que suas presenças implicam quando deixam margem a seus corpos. Ainda sem iniciar o processo de hormonização, Rosivaldo, com 19 anos de idade, era franzino e deixava grande dubiedade, diferente de Aristides, de 24 anos, que já tinha alguma barba no rosto, mas que também não tinha completado a transição que desejava e que incluía cirurgias. Ambos eram pardos, sem renda fixa e moravam fora da casa da família de origem. O SUS, assim, era a única possibilidade de conseguirem qualquer mediação médica para realizar suas transições. De posse do encaminhamento, agora 164 Código de Identificação de Doenças, da Organização Mundial de Saúde. 219 sabiam que poderiam se dirigir ao hospital e tentar marcar outra consulta, e assim o itinerário continuava. O médico que nos atendera no posto de saúde parecia conhecer algo sobre transexualidade e transição de gênero e não apresentava nenhuma dúvida ou questionamento para além de suas perguntas de praxe. O posto sensível parecia então corresponder ao deliberado oficialmente pelo Processo Transexualizador para a Atenção Básica: o uso do nome social e o encaminhamento regulado. Como uma política de saúde hospitalar e ambulatorial, não há nenhum procedimento ou acompanhamento realizável no primeiro nível do SUS165. Isso acaba por retirar qualquer forma de vínculo de usuário e afastava dali os interlocutores, já que eles necessitavam percorrer a cidade para encontrar um “posto sensível” como aquele do bairro vizinho às suas casas. Mesmo que não houvesse regulamentado um serviço nesse sentido, Aristides e Rosivaldo já sabiam como as regras funcionavam e então percorriam a rede de saúde conforme tais normas para acessar o mínimo que podiam da mediação que precisavam para não adoecerem no processo da transição. Não deixa de existir assim um papel do nível primário do SUS para a política de saúde trans brasileira: afirmativo ou negativo, ao sabor do microcosmo que o serviço constitui diante da malha estatal de atenção. Assim, os efeitos dessa política sobre a atenção em geral são ainda mais evidentes na sua desarticulação entre atenção básica e outros níveis. Mas as dificuldades de acesso não se restringem a lugares onde não há a estruturação formal da política de saúde trans. Mesmo que ela exista os sujeitos têm sido levados a longas negociações que excedem o itinerário terapêutico formal descrito nas portarias do Ministério da Saúde. Guilherme Almeida (2010, p. 125) demostrou, a partir de sua experiência pessoal e de relatos de outras pessoas trans, que: “alguns de nós tivemos dificuldades para a inserção nos programas, que podem ser apresentadas em pelo menos três planos analíticos: o subjetivo-familiar, o econômico- profissional e o programático”. Essas dimensões envolvem outros agentes como parentes, patrões e a própria dinâmica estatal de burocracia para admissão. Esse pragmatismo ausente, segundo Almeida (2010) se manifestava ao não ser possível obter “informações sobre a localização dos programas, as formas de obter o primeiro atendimento, os critérios de inclusão e permanência, assim como o fato de que o serviço é público e gratuito”. Assim, o que estou descrevendo se refere ao funcionamento dessa política através de sua ação de permeabilidade nas relações sociais que a torna ainda mais invisível, porém não deixa de se impor sob os ombros dos sujeitos. 165 Diferentes pesquisadores já demonstraram uma certa evitação de usuários em relação a Atenção Básica, e o desejo de recorrerem a outros níveis superiores da rede de saúde devido a fatores como a identificação dessa atenção com os pobres (Reigada e Romano, 2018), a superespecialização da biomedicina, a maior oferta de procedimentos e a melhor estrutura desses últimos, entre outros, eram fatores apontados por médicos com quem conversei na pesquisa. Assim, é algo que se repete nas experiências de atenção e cuidado buscadas por pessoas trans. Contudo, isso se especifica quando observamos a intensa rejeição de suas presenças nesses espaços, algo que extrapola ou não corresponde apenas a profissionais de saúde e emana inclusive de outros usuários e funcionários administrativos. 220 No mapa a seguir (Figura 8) é possível observar ainda a atual distribuição de serviços que existem no país, bem como as atenções que detiveram no passado – esses representados por prédios – algum tipo de atendimento. Considerei importante não incluir apenas aqueles referentes ao PTSUS porque demonstro que há uma continuidade e não uma radical mudança na base epistemológica na acepção do paciente mesmo que novos procedimentos sejam agora considerados, conforme se observa na Tabela 6. Figura 8 - Mapa de serviços com atenção à saúde trans no Brasil (1960-2020) Fonte: Mapa feito por Cleyton Santos a partir dos dados do autor e de Almeida e Santos (2018)166. 166 No anexo 2 é possível conferir o Quadro Sinótico construído por Almeida e Santos (2018) no qual eles reúnem os serviços de saúde (ambulatórios TT) que tiveram notícia até 2020. Eu incluí ainda um dado a mais sobre outro Ambulatório em funcionamento no RN. 221 Tabela 6 – Síntese dos procedimentos realizados no Processo Transexualizador do SUS (1997-2019) CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA NOSOLOGIA PROCEDIMENTOS APTIDÃO DO STATUS LOCAIS APTOS PACIENTE Resolução n. Transexual como portador Neocolpovulvoplastia; 21 anos; Experimental Hospitais Universitários e 1.482/1997 de “desvio psicológico Neofaloplastia; Diagnóstico de Hospitais Públicos com permanente de identidade Procedimentos transexualismo; Pesquisa sexual” complementares sobre Terapia Psicológica gônadas e caracteres sexuais Ausência de características secundários; inapropriadas à cirurgia Hormonioterapia Resolução n. Idem Idem Idem e Experimental Cirurgias do fenótipo 1.652/2002 Ausência de outros apenas cirurgias do masculino para feminino transtornos mentais. fenótipo feminino em qualquer hospital; para masculino Cirurgias do fenótipo feminino para masculino apenas em hospitais universitários e públicos com pesquisa Resolução n. Idem Idem e Idem Experimental Idem 1.955/2010 Adenomastectomia, apenas a Histerectomia, neofaloplastia, Gonadectomias enquanto as demais liberadas Resolução n. Substituição por diagnóstico Idem e Adulto a partir de 18 anos; Experimental Qualquer hospital 2.265/2019 de “incongruência de gênero Inclusão de bloqueio de Infanto-juvenil a partir de apenas ou transgênero” puberdade para menores de 16 16 anos; neofaloplastia Neofaloplastia é anos e Menores de 16 anos experimental, mas pode Cirúrgicos acima de 16 anos; ser realizada fora do SUS Mamoplastia de aumento; desde que seguida cirurgias pélvicas; orientações do CEP. Faloplastias 222 MINISTÉRIO DA SAÚDE DOCUMENTO OBJETO LOCAIS Portaria nº Cria o Processo Transexualizador nas 3 esferas de gestão e o atrela a Resolução n. 1.652/2002 do CFM Hospitais Universitários 1.707/2008 ou Públicos com Pesquisa Portaria nº Define características das Unidades de Atendimento, custo e tipos de procedimentos e formas de credenciamento Idem 457/2008 dos serviços de saúde Portaria nº Incorpora processos judiciais que obrigam a inclusão de procedimentos e institui a integralidade do cuidado Qualquer Hospital 2.803/2013 Portaria nº Descentraliza a oferta de procedimentos junto a gestores estaduais Qualquer Hospital 807/2017 Fonte: Autor a partir das portarias e resoluções mencionadas. 222 *** Embora a instituição do Processo Transexualizador no final dos anos 2000 tenha fomentado e possibilitado uma série de reverberações sociais no âmbito do movimento social e da atenção à saúde, ele apresenta uma continuidade histórica das regras atuais de diagnóstico e admissão em seus protocolos que remonta às experiências de serviços paulistas e cariocas da década de 1960 e 1970 sobre as quais já me debrucei no capítulo 2. Cabe lembrar que o processo vivenciado por Waldirene167 nos anos 1960/1970, nos demonstra que o processo de mudanças corporais e a sua admissão, a exemplo do que aconteceu com outras pessoas trans atendidas naquele período, tem uma grande similaridade com o que já tem sido descrito por pesquisas sociológicas e doutras áreas como serviço social e saúde coletiva desde os anos 1990 até os anos 2000 (Bento, 2006, 2008; Trindade, 2016; Murta, 2007, 2011; Almeida, 2010). Waldirene, assim, foi descrita como tendo atendido voluntariamente ao serviço ambulatorial do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo e tendo seguido um período de dois anos de avaliação psicológica para diagnóstico por equipe multidisciplinar que antecedeu os procedimentos cirúrgicos aos quais foi submetida. Embora as técnicas cirúrgicas não sejam as mesmas, dados novos aperfeiçoamentos, já se performava a mudança de sexo de ambos os gêneros nas décadas de 1960/70. O baque que sofreu esse tipo de assistência em saúde – de iniciativa universitária – devido ao processo judicial contra Farina na década de 1970 e 1980 levou a um silenciamento dessas atividades clínicas e cirúrgicas no país, tendo sido apenas após a criação do SUS retomada através da Portaria n. 1.482 de 1997 que permitia cirurgias de transgenitalização, e posteriormente atualizado pela Resolução do Conselho Federal de Medicina n. 1.652 em 2002168. Na criação do então novo sistema de saúde se instituía um conjunto de procedimentos mais focados nas mulheres transexuais. Nesse período, ambulatórios seriam criados em Porto Alegre, Goiânia e São Paulo, o que respondia já a articulação local de profissionais de saúde no período da redemocratização (Arán, Murta e Lionço, 2009a, 2009b; Lionço, 2009; Munin, 2018). Renasce, assim, no passo de um sistema público e universal a permissão para cirurgias, mas não especificamente uma atenção à saúde trans de modo federalizado. Já com 12 anos, essa política foi sendo constituída também por um processo social de judicialização em saúde, que possibilitou a oferta de vários procedimentos atualmente disponíveis (Arán, 2012; Arán, Murta e Linço, 2009)169. Mas inicialmente ela foi gerada no encontro entre os ativismos gay, lésbica, travesti e trans e o Estado brasileiro. 167 Já citada no capítulo 2. A mulher transexual que se submeteu a cirurgia com Roberto Farina em 1971. 168 No anexo 3 exponho as Portarias já publicadas pelo MS e as Resoluções do CFM e que tipo de novidade à política do Processo Transexualizador cada uma introduziu. A introdução de tecnologias no SUS segue uma linha burocrática que vai da criação da política, consulta pública através da instância reguladora dessa introdução biotecnológica e atuação. Isso não significa dizer que as políticas não sejam alteradas após sua publicação, como tem sido, através de instâncias judiciais e de pressão política. 169 Essa é uma estratégica que ainda é presente, como vi em campo, e ao que irei fazer referência no capítulo 5. 223 Será com a nova regulamentação anunciada no final da I Conferência Nacional GLBT, realizada em Brasília em junho de 2008, que se começa a criar finalmente uma política de saúde centralizada nacionalmente. Essa nova estruturação era rondada por um ânimo ideológico que intersectava o interesse médico-científico revigorado após o hiato produzido pela perseguição política contra Farina. Durante a conferência, o programa não estava pronto e acabado, mas foi divulgado o início da consulta pública. O ministro da saúde José Gomes Temporão anunciava, de modo rápido, na cerimônia de abertura que: A partir dos resultados desta conferência, o Ministério da Saúde iniciará um processo de consulta pública para a elaboração de uma política específica para esta população. E até o final deste mês, o Ministério da Saúde, eu assinarei, nós lançaremos uma Portaria que inclui no Sistema Único de Saúde a cirurgia para mudança de sexo dentro de um processo transexualizador (José Gomes Temporão, 2008, Anais da I Conferência Nacional GLBT, p. 271). Como se pode observar consultando os Anais da Conferência, nos quais encontram-se transcritas as falas dos participantes, todas as vezes que se defende a criação de uma política desse tipo, bem como uma mais abrangente de saúde integral, se evoca os princípios do Sistema Único de Saúde implantado na década de 1990. A história da Reforma Sanitária é um ponto nodal de justificativa para o Processo Transexualizador que seria então constituído enquanto produto direto e vitalizado por seus ideais. Dr. José Ivo Pedrosa, noutra ocasião do evento, durante o Painel 5, “Poder Público Federal”, composto majoritariamente por médicos, chamava ainda à atenção para ser essa política parte de algo maior que ela: Ontem, foi anunciado pelo Ministro o processo transexualizador e eu gostaria de mudar um pouco o papel do processo transexualizador, porque, hoje, na imprensa, apagou a Conferência e só tinha nas manchetes: “Ministro anuncia o processo transexualizador”. Quer dizer, não se falava na Conferência. E aí eu quero colocar de que o processo transexualizador, ele faz parte de uma política mais ampla, que estamos chamando “política nacional de saúde integral de gays, lésbicas, bissexuais, transgêneros e travestis”170. Ontem, o Ministro falou en passant dessa política. Essa política, dentro de um mês vai estar em consulta pública, onde toda a sociedade pode opinar (Dr. José Ivo Pedrosa, 2008, p. 123-4, Anais da I Conferência Nacional GLBT). Pedrosa queria defender que a base jurídica dessa nova política estava alicerçada no que é defendido no SUS como um todo, e era esse sistema que deveria ser o objeto de constante 170 A Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (LGBT) foi criada pela Portaria n. 2836 de 1 de dezembro de 2011, e buscava instituir uma difusão da particularidade dos cuidados em saúde desta população, visando assim “eliminar” discriminação e preconceito presentes nos serviços. A política é tida como de baixa consolidação no país. Cf. Luiz Mello, Brito e Maroja (2012) sobre um panorama das políticas de saúde LGBT. No campo ela era mencionada apenas por profissionais de saúde envolvidos diretamente com a temática, tidos como “especialistas” por seus colegas. Em 2015 e em 2016 o MS lançou, respectivamente, três campanhas provenientes dessa política por meio de cartilhas para profissionais de saúde: a “Saúde das mulheres Lésbicas e Bissexuais”, “Saúde Homens Gays e Bissexuais” e “Saúde Trans”; foram as últimas ações nesse sentido antes da queda de Presidenta Dilma Rousseff através do impedimento legislativo, contudo, de modo geral, políticas desse tipo foram profundamente enfraquecidas em seu governo. Hoje boa parte desse material não está mais disponível para baixar no sítio eletrônico do MS. 224 engajamento de todos para garantir que a saúde continuasse como um direito. “E a gente briga porque a saúde, no mundo da vida, é tratada como mercadoria. Então, o SUS foi resultado dessa briga do rochedo com o mar” (idem, p. 124). Assim, embora se baseasse grandemente no “Brasil Sem Homofobia” lançado pelo Governo Lula171, o Processo Transexualizador deveria ser visto desde uma perspectiva que unisse a “determinação social da saúde e doença, sendo a exclusão e a discriminação como fatores de sofrimento” e seu teor de “transversalidade” intersetorial dentro do Estado brasileiro para recuperar o conceito de saúde presente na Constituição de 1988 (idem, p. 124) que não estava aliado unicamente à doença. Para os participantes do Painel 5 seria a ideia de promoção à saúde presente no programa Mais Saúde172 que deveria ser vista como a raiz das políticas de saúde para a população LGBT. Os anúncios do ministro da saúde também suscitaram outras respostas para além da reação sobre a veiculação na mídia enunciada por Pedrosa. Para um homem trans que participou da ocasião, havia consideráveis ausências quanto a essas novas formulações. Quer dizer, a proposta não estaria alcançando específica e claramente esses sujeitos com a mesma amplitude que as mulheres trans, por exemplo. Numa entrevista concedida pelo ministro nos dias próximos à Conferência, Silvio Lúcio, 54 anos, um ativista cearense homem trans173 com larga carreira ativista que estava presente na ocasião o questionava a respeito da ausência de homens trans nas políticas de saúde. Quando entrevistei Silvio, ele rememorava como seu questionamento chamou a atenção de jornalistas, e foi um estopim para discutirem um maior espaço para esse contingente de pessoas que estavam assim sendo alçadas a importância de população. Silvio localiza esse episódio como estando dentro da sua trajetória de luta por direitos diante de sua negação. Quando lhe perguntei sobre situações desse tipo, ele resume sua determinação e procura se colocar enquanto figura de combatente político. Sílvio Lúcio não lembra detalhes desses eventos, mas é categórico em argumentar que os espaços de homens trans nas políticas de saúde foram conquistados, assim como de outros sujeitos, a partir do confronto diante das ausências: Não, eu fui pra frente, eu não me intimidei não com a rejeição. Eu fui pro embate. Hoje eu sou reconhecido, hoje o movimento nacional me reconhece como homem trans sim, 171 O programa “Brasil Sem Homofobia: Programa de Combate à Violência e à Discriminação contra GLTB e Promoção da Cidadania Homossexual” foi lançado em 2004 após grande articulação política de grupos e movimentos sociais LGBT de todo o país, e buscava ser um mote para campanhas, políticas, ações e estratégias contra a violência. O documento que detalha o programa foi dedicado com um texto escrito por Luiz Mott à advogada e ativista trans cearense Janaína Dutra que se destacou grandemente no cenário da promoção de políticas de Estado. 172 O Programa foi lançado em 2008 dentro de um panorama desenvolvimentista que aliava o direito à saúde ao desenvolvimento econômico do país, uma vez que isso era visto como uma forma de impulsionar a diminuição das desigualdades sociais. Era um programa de metas com dotação orçamentária para cada estratégia e tinha como cronograma a atuação de 2008 a 2011. Nas suas diretrizes o documento sintetizava que: “a estratégia adotada neste programa articula o aprofundamento da Reforma Sanitária brasileira com um novo padrão de desenvolvimento comprometido com o crescimento, o bem-estar e a equidade. A melhoria das condições de saúde do cidadão brasileiro constitui o grande objetivo estratégico. O conjunto de medidas e ações concretas volta-se para a melhoria da qualidade de vida da população, contribuindo para que o SUS seja definitivamente percebido como um patrimônio da sociedade brasileira” (Brasil, 2008, p. 8). 173 Já mencionado no capítulo 2. 225 homem trans de luta. [...]. [Sobre] o processo transexualizador do SUS, a primeira portaria do ministro da saúde [...] só beneficiava mulheres trans porque eles diziam que no Brasil não tinha homens trans. Foi preciso que [se questionasse] – se você entrar na internet você vai ver, “Silvio Lucio, homem trans, interpela o ministro durante uma coletiva da imprensa questionando porque que as mulheres trans.... Ele lançando uma campanha em Brasília para o processo transexualizador e ambulatórios do SUS para mulheres trans, na portaria não contemplava os homens trans (Sílvio, 54 anos, 2018, entrevista). É possível ver a ênfase dada aos homens trans quanto a divulgação da existência do então novo Processo Transexualizador. Das mais de 150 indicações do “Eixo Saúde”, e após várias proposições envolvendo procedimentos, atendimentos clínicos, campanhas de sensibilização e vacinação, se propunha que o Estado brasileiro estimulasse “a divulgação dos programas do processo transexualizador e outros serviços existentes de atendimento especialmente, para homens transexuais” (Brasil, 2008, p. 181). Assim, desde a consulta e publicação da portaria que instituiu o Processo Transexualizador, este tem mudado consideravelmente no âmbito da oferta de procedimentos cirúrgicos e no escopo de pacientes que atende. Ao mesmo tempo em que os atuais procedimentos incluídos na política não são fruto simplesmente da Conferência, tampouco se deve desconsiderar as idealizações veiculadas no evento, e sua base jurídica para o reconhecimento174. Algumas delas foram fruto de pressão de movimentos sociais (Arán, Murta e Lionço, 2009), e outras de interesse médico e do desenvolvimento biotecnológico incluído nessa atenção à saúde. De modo geral se pode entrever que entre as continuações e as mudanças da abordagem clínica e cirúrgica tem-se um itinerário terapêutico imposto às pessoas trans mesmo quando não há consenso quanto a patologização entre profissionais de saúde de um dado serviço, já que a legislação em vigor aparece como um empecilho. Esse processo terapêutico para a transição pode ser visualizado através da seguinte representação: Encaminhamento da Atenção Básica para a Atenção Especializada → Tratamento psiquiátrico e/ou psicológico de, no mínimo, 2 anos → Teste de vida real (vestir roupas do gênero identificado) → Laudo de disforia de gênero → Atendimento com endocrinologista → Exames laboratoriais para análise cromossômica e hormonal → Terapia hormonal → Cirurgias. Segundo os documentos reguladores, principalmente as portarias do Ministério da Saúde e as Resoluções do Conselho Federal de Medicina, se observa que se propõe uma linha de cuidado 174 Num contexto no qual as cirurgias não faziam parte de um programa instituído, se buscava sua legitimação no SUS. Nesse sentido, em 2007, a 3ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região emitiu decisão favorável à ação ajuizada para obrigar o governo brasileiro a ofertar as cirurgias de tipo neocolpovulvoplastia, neofaloplastia e/ou procedimentos complementares sobre gônadas e caracteres sexuais secundários, mas foi anulada pela então ministra do Supremo Tribunal Federal Ellen Gracie respondendo ao pedido do Ministério Público Federal (STF, 2007). Assim, causou certo alvoroço midiático as declarações do ministro da saúde sobre a oferta dessas cirurgias em 2008. Em 2018, o ativismo social trans reivindicava no mesmo tribunal a não exigência dessas cirurgias para o reconhecimento legal do gênero de identificação (STF, 2018). 226 na atenção básica e na atenção especializada. A primeira ficaria responsável pela identificação do usuário e seu encaminhamento à segunda. Continuando o modelo da equipe de Farina, uma equipe que se pretende “interdisciplinar e multiprofissional” averiguaria se o paciente entraria nos critérios, e se, portanto, seria identificado como transexual. Assim, se atuaria tanto no âmbito de um serviço de “Atenção Ambulatorial Especializado” quanto num serviço de “Atenção Hospitalar Especializado”. Como o ministro Temporão anunciou na época, o Ministério da Saúde passaria, então, a verificar se os serviços estariam “aptos” a realizar esse tipo de atendimento, com uma série de profissionais na área biomédica, como mostra a Tabela 5, atualmente175. Tabela 5 – Serviços e áreas profissionais no Processo Transexualizador atual Serviço Ambulatorial Serviço Hospitalar Responsável técnico com nível superior Responsável técnico médico Psiquiatria e psicologia Psiquiatria e psicologia Enfermagem Assistência Social Assistência Social Enfermagem e técnicos de enfermagem Endocrinologia e clínica geral Urologia, Ginecologia, Cirurgia Plástica, Endocrinologia Fonte: elaborado pelo autor a partir da Portaria GM/MS n. 2.803/2013. Outros médicos também poderiam compor a equipe multiprofissional, mas não são imprescindíveis para a habilitação governamental, como otorrinolaringologista, mastologista e fonoaudiólogo. Isso não significa afirmar, contudo, que todos os serviços do tipo que existam se deem exatamente com esse pessoal profissional, mas não se pode ignorar que essa normalização é um guia legal e de legitimidade técnica sobre a atuação da medicina em relação a transição de gênero. Por isso que, mesmo que as regras não correspondam totalmente ao cotidiano da busca por acesso e das condições materiais dos profissionais, tais formulações técnicas detêm efeitos consideráveis. Já com 12 anos de existência, essa política de saúde tem se configurado num dos maiores motes de engajamento político e de esperança para a promoção à saúde de diversos contingentes de pessoas trans, principalmente aquelas sem acesso financeiro ao mercado privado que ainda não tem uma grande inserção comercial nesse sentido – embora esteja crescendo. Num dos mais recentes eventos alusivos, em 12 de dezembro de 2018, o Ministério da Saúde realizaria um seminário em homenagem a João W. Nery para discutir o histórico do programa e seus alcances. Como relato do que havia sido feito até aquele momento, a Secretaria de Atenção à Saúde trazia uma listagem de sete ambulatórios habilitados nos estados do Rio de Janeiro, Minas Gerais, São Paulo, Paraná, Espírito Santo, Bahia e Paraíba; e cinco com habilitação para ambas as atenções nos 175 Ver também Resolução do CFM n. 2.265/2019. 227 estados do Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro, São Paulo, Goiás e Pernambuco. Na rubrica de “iniciativas locais”, isto é, sem habilitação oficial se documentavam seis ambulatórios no Sudeste (dos quais 5 eram em São Paulo), cinco no Nordeste, três no Centro-Oeste e um no Norte e outro no Sul (ver Figura 8). Alguns pesquisadores têm tentado mapear o desenvolvimento desses serviços pelo país desde a regulamentação de 2008. Segundo pesquisa realizada por Márcia Arán e Daniela Murta (2009), junto aos serviços existentes até 2008, se encarava uma grande dificuldade para aplicação local. Ao todo, contabilizaram dez serviços funcionando nas cidades de Porto Alegre, Rio de Janeiro, São Paulo, Goiânia, Belo Horizonte e Brasília. Com uma abordagem qualitativa, as autoras entravam em contato com os responsáveis pelos serviços e transcorriam para entrevistas com profissionais e pacientes, mas nem todos esses concordaram em fornecer informações. Procurando realizar um esforço similar para documentar os serviços existentes, Guilherme Almeida e Márcia Santos (2019) realizaram uma pesquisa em jornais e canais de notícias, além de consulta a ativistas trans. Ao refletir sobre a dispersão desses serviços sob a égide do Processo Transexualizador, os autores inferem principalmente a falta de recursos financeiros para sua efetivação e o papel do Ministério da Saúde num contexto simpático a políticas sociais para o aumento dos serviços: Os serviços de saúde habilitados para serem centros de referência, ou seja, para a realização de todos os níveis de atenção se desenvolveram muito pouco no país, pela quase absoluta ausência de investimento público nesta direção. É possível dizer que estes serviços só não fecharam suas portas porque estão situados em universidades públicas e contam com equipes profissionais que continuam conduzindo as atividades a despeito das condições de trabalho insuficientes (Almeida e Santos, 2019, p. 8). Os autores observam que antes do trabalho de institucionalização do MS, havia uma descentralização original, quando era de iniciativa exclusiva dos centros universitários, algo que teria sido recobrado mais recentemente com a expansão da atenção básica. A investida ministerial procurou, portanto, centralizar o modelo de assistência à saúde trans. Embora eu não discorde dessa observação, quero argumentar que, mesmo na sua feição centralizadora, essa atenção no Brasil sempre foi uma questão local. Quando esses locais são os mesmos que estão mais próximos do centro do poder político nacional, isto é, as metrópoles ou grandes cidades do eixo São Paulo/Rio de Janeiro, suas histórias se tornam mais visíveis e ganham um caráter mais nacionalizado. A realidade do país, assim, perpassa o entendimento de sua regionalização (Castro, 1989; Albuquerque Jr., 2013) e que se reverbera sob a formação da saúde trans brasileira. Isso não significa inferir uma perseguição de regiões orquestrada pelo “centro do poder”, mas que são dinâmicas que são representadas como brasileiras com um chapamento de sua regionalização. Tendo como base tanto as pesquisas dos referidos autores e autoras, e a minha própria, pode-se 228 perceber que esse espraiamento da política não deve ser visto como uma expansão de um governo central, mas de sua construção local dentro de um universo verdadeiramente geopolítico numa intrincada relação de poderes locais e poder central de governo. Nesse sentido, as dinâmicas do país entre centralização e descentralização que marcam o Estado brasileiro também nos ajudam a entender a constituição dessa política e suas complexidades. Essa é uma vertente do problema desta tese que imaginei a partir das proposições e reflexões dos interlocutores quando afirmavam nas entrevistas e no cotidiano observado que não lhes fazia muita diferença participar de organizações com ares nacionais se essas mesmas pessoas de outros estados e com pretensões aglutinadoras não iam “lutar por elas” nas suas cidades cearenses. Isso porque a busca pela atenção à saúde e seu cuidado era local. Não se viajava para outros estados, a não ser muito raramente. Suas vidas eram em Fortaleza, e era lá que se davam suas dificuldades em conseguir marcar uma consulta em postos de saúde, era lá onde se sofria estigma no dia a dia etc., como descrevi com Aristides e Rosivaldo. Essa quase peregrinação de homens trans que acompanhei era algo intenso antes e depois da minha entrada no campo. Outro rapaz, Antônio, de 26 anos, a quem conheci num salão de espera do Hospital de Saúde Mental Prof. Frota Pinto, em Messejana, já estava há mais de dois anos àquela altura tentando ter sua indicação para modificar seu registro civil e para as cirurgias que pretendia realizar. A partir dessa outra experiência de busca por atenção pude entrever na descrição um contexto bem diverso de itinerários terapêuticos construídos à revelia do que se pretendeu centralizar no MS em 2008 e depois em 2013. Não simplesmente porque não havia um serviço desse tipo “habilitado” na região, já que os efeitos dessa política eram sentidos constantemente, mas porque principalmente se constituía um embate político e de cuidado para promover a saúde de si mesmo ao se transicionar com saúde. *** Quando passei a visitar com mais frequência o Hospital de Saúde Mental, buscando encontrar pacientes e profissionais de saúde do ATASH176, conheci Antônio enquanto ele aguardava mais uma consulta com o seu psiquiatra. A situação do nosso encontro foi de certo modo inesperada. O serviço funcionava especificamente duas vezes por semana, então eu procurava realizar observação apenas nos dias das consultas marcadas. Nesse dado dia, me encontraria com alguns médicos e já fui autorizado pelo chefe do serviço a realizar meu trabalho de campo. A ideia, como já mencionei, era de observar as dependências coletivas do lugar: salas de espera, corredores, portarias, isto é, tudo aquilo que não fosse a própria consulta médica 176 Como já me referi, é um serviço ambulatorial que atendia pacientes sob a rubrica da sexualidade, primeiro espaço na cidade a iniciar atendimentos em saúde para transexuais e travestis. 229 individualizada177. Quando chegava no hospital, tentava assim ter conversas simples com pacientes que estivessem à espera para anunciar a pesquisa e perguntar se estariam dispostos a participar. Após alguns minutos observando que os pacientes ali presentes já se conheciam e mantinham conversas interessadas entre si, me sentia um pouco intimidado a buscar interagir, até que uma conhecida chegara no ambiente e foi uma boa oportunidade para as apresentações. Quando finalmente conversava com Antônio, ele já sabia quem eu era, e aparentemente todo mundo. Outra moça que aguardava atendimento me interpelava com surpresa quando trocávamos nomes: “ah, então você é o antropólogo?! Ouvi falar muito da sua pesquisa”. Um casal de pais de uma adolescente trans também escutam nossa conversa e vêm me cumprimentar, também surpresos de estarmos ali juntos. A animação se generalizou e seguimos dando abraços uns nos outros. Eles já sabiam sobre a pesquisa que eu estava fazendo em Fortaleza, quem eu era, e desde quando eu estava na cidade, de modo que meu trabalho em lhes explicar qualquer coisa era tido com ares de obviedade. Essa receptividade surpreendentemente afável que eu já detinha e não sabia acelerou muitas das participações e dos contatos com interlocutores que atendiam ao serviço, como foi o caso de Antônio. Isso facilitou uma confiança que demandaria muito mais tempo para ser construída num contexto de atendimentos improvisados no campo da saúde trans que implicavam uma atmosfera pequena a qual observar. Ao perguntar a Antônio há quanto tempo atendia ao ATASH, ele me respondera que já “estava ali” havia três anos. Como o serviço fica localizado muito longe da sua casa, toda ida às consultas era praticamente uma viagem entre cidades. No começo dos seus atendimentos não havia nenhum profissional de psicologia para a terapia que é demandada pelos protocolos do Ministério da Saúde. Então era apenas com o psiquiatra que poderia contar. Por isso ele ainda não tinha os dois anos exigidos de terapia psicológica prévia para qualquer procedimento cirúrgico, principalmente aquele referente a mamoplastia que ele desejava mais do que qualquer outro178. Trocamos contato para continuar conversando fora do serviço, já que ele aceitara participar da pesquisa com uma entrevista. Continuamos falando enquanto esperávamos sua vez da consulta, quando me dizia não se sentir em paz enquanto não se submetesse a essa cirurgia. “Atrapalha muito minha vida”, e completava: “corro muitos riscos”. Antônio se remetia a haver alguma violência no seu cotidiano se as pessoas que não conhece o encontrassem na rua e identificassem que ele tinha seios. Isso Já lhe acontecera diversas versas, e sempre de forma agressiva. “Elas batem mesmo, xingam”. Ele puxa a camisa e mostra que dá para perceber que está usando duas faixas de tecido 177 Como o hospital detém de uma grande gama de ambulatórios e diferentes serviços, me detive naquele com a abordagem voltada ao atendimento de transexuais e travestis. Entrarei mais detidamente nesse serviço nos próximos capítulos, agora meu objetivo é descrever o itinerário de Antônio. 178 Enquanto escrevo essas páginas ele já tinha feito essa cirurgia. 230 espesso para diminuir o volume desses “intrusos”. Já que não gosta de usar bainders, é assim que sai à rua mesmo no forte calor de Fortaleza. Mas ainda não é capaz de esconder totalmente o peitoral. Uma vez quando usava o transporte coletivo foi xingado por um estranho. Então, me conta, a cirurgia é uma “condição” para sua “segurança”179. Para sanar essa insegurança ele usa roupas largas, e no dia estava usando uma camisa social de tecido que imitava um jeans e por baixo uma camisa também escura. Ele me dizia que isso lhe gerava também mal-entendidos porque os outros podiam achar que ele era mais gordo do que era. A principal queixa de Antônio naquele dia era que tudo isso que ele vivia não parecia ser suficiente para receber os laudos que precisava para ter acesso às cirurgias e à mudança de documentos, à época ainda não autorizado sem processos judiciais. Isso porque até mesmo no setor privado não havia cirurgiões “confiáveis”180 que performassem os procedimentos sem toda a documentação exigida no SUS. Mas, me lembrava, “Não dá pra ter cirurgia se não tem laudo”. Já são três anos sendo acompanhado nesse serviço por um psiquiatra, repetia. E aí, ele me pergunta, e diz que pergunta à psicóloga que lhe atende atualmente, se tem que esperar mais dois anos para ter o documento. E completava, “eu sou virginiano, então quando a pessoa diz que vai ver e demonstra incerteza, aquilo já me deixa aflito, e eu sei que ela não vai fazer”. “Vamos ver”, repetia com angústia. Ele está visivelmente insatisfeito com o tempo dos protocolos que lhe parecem arbitrários e não reconhecem suas agruras. Era o que reiteraria noutro dia quando nos encontramos novamente para uma entrevista e me narrava com mais detalhes os caminhos que havia percorrido até ali para concretizar sua transição. Antônio morava com a família, que também não lhe dava muito suporte nesse sentido. Ganhando um salário-mínimo, trabalhava num emprego de telemarketing que lhe possibilitava alguma autonomia, embora limitada. Chegou a ser expulso de casa pelos conflitos que se intensificaram com a sua maior identificação masculina e a rejeição de parentes, mas ainda não havia muita clareza sobre viver noutro gênero, isto é, “saiu” de casa em meio a uma tormenta subjetiva. Um amigo gay ativista lhe contara que talvez todas essas dificuldades que vivia tinham a ver com ele ter nascido assim no sexo errado. “Há pessoas que são assim, que nasce nesse corpo, mas tem outro gênero”. Diferente de outros interlocutores, Antônio teve contato com o serviço ambulatorial do ATASH por ter sido socorrido numa Unidade de Pronto Atendimento (UPA) após uma tentativa de suicídio durante sua morada fora da casa da família. Por estar constrangido, 179 Vê-se aí uma ideia de “biossegurança”. No próximo capítulo mostrarei como esse discurso e essa narrativa são usados diante das instituições governamentais para justificar a existência de serviços de saúde voltados para pessoas trans em Fortaleza. 180 Era uma grande preocupação se submeter a procedimentos com qualquer cirurgião, já que um procedimento malsucedido lhes custaria cicatrizes indesejadas e até pós-operatórios mais difíceis e perigosos às suas saúdes. 231 chegou a tentar convencer o médico de que não foi uma tentativa de suicídio, mas o médico não acreditou. Esse tratamento do plantonista causou grande surpresa a Antônio que se sentiu cuidado: Eu tentei subestimar a inteligência do médico, né?! Aí eu disse que tomei sem querer e tal, por engano. Aí ele disse assim – quando veio o próximo paciente já pra ser atendido –, “não enfermeira, espera só um pouco pra eu ter uma palavra (me chamou de ela ainda porque eu não tinha feito a transição), pra ter uma palavra com ela, tá bom, que já atendo o outro?!”. Aí ele falou: “olha, eu sei que isso aí não foi sem querer [...]. Isso aí você fez uma tentativa de suicídio”. [...]. Aí ele perguntou assim... [...]. Aí, eu até me sensibilizei assim, porque pela primeira vez na minha vida um médico tá sendo humano comigo, porque eles têm até medo de chegar perto da gente. [Ele perguntou o] porque, né?! Aí eu falei que não me sentia assim, e tal. Acho que pela definição que eu falei que eu disse que não me sentia eu, que me sentia estranho, eu acho que daí ele tirou, né, alguma coisa. Aí ele, “como assim?” “Eu não sei, eu não me sinto eu assim”[, respondi]. Aí ele falou, “não se sente mulher?”, questionou. Aí eu fiquei meio assim, receoso e tal, aquele olho mexendo, aí eu falei aquele “é” com reticências. Aí ele, “olha”, aí ele falou que tinha.... “Tem um centro de atendimento aqui chamado ATASH em Messejana181, você já ouviu falar?”. E eu nunca tinha ouvido falar. [...]. Aí ele prescreveu lá a informação e assim ó, “procura isso aqui, procure que é melhor, isso pode te ajudar de alguma maneira. Se não, se não for isso, que eu acho que é, vai ter algumas terapias, outros problemas que você pode tá passando, mas procure” (Antônio, entrevista, 2018). De uma forma bem atípica Antônio chegou ao serviço ambulatorial encaminhado por um serviço de emergência que havia lhe prestado socorro. A atitude do médico de não se contentar com as primeiras explicações que ouvia se mostrou como algo de sensibilidade, que confirmava sua condição de humanidade que havia sido negada quando os atendimentos que recebeu anteriormente não lhe perguntavam sobre seus sofrimentos de modo interessado. Apesar da consulta ter sido sensível, Antônio pensou em não ir ao serviço mesmo com essa indicação. Sua depressão, como indica, havia lhe colocado numa posição de profunda desestabilização sobre quem era. Quando constrói essa narrativa através da entrevista fica claro que nesse momento havia uma espécie de esperança a que se apegou no último minuto e que lhe possibilitou ir. Com a visita ao Hospital realizou uma triagem e marcou uma consulta para três meses depois com um psiquiatra que realizou uma anamnese que procurou recobrar desde sua infância. Daí ele recebeu a explicação de que iria fazer “algumas terapias” para “verificar se seria transexual”: Aí ele [o psiquiatra] disse que eu iria começar a fazer umas terapias lá. [...]. Lá tinha uma médica que explicou se você falou, se a gente vai ver, vai ser analisado, vai fazer terapias com outros médicos também. “Se a gente identificar que [...] você é uma pessoa transexual”, porque às vezes não é.... Ela deixou bem claro isso pra mim. Tipo, “se não for, se for um problema a gente vai providenciar alguma coisa, alguma terapia, mas se a gente identificar realmente que é, a gente vai montar um relatório, vai encaminhar você para a Dra. [Sexóloga] para fazer a terapia com hormônio” (Antônio, entrevista, 2018). 181 O serviço do ATASH a essa altura já tinha ganhado considerável popularidade na região, devido a sua característica de ser localizado num hospital escola ligado às universidades locais. 232 Assim, além de percorrer um caminho fora do serviço, Antônio também percorreu um itinerário interno para compreender se era transexual. Ele não coloca essa verificação em termos negativos. Sua intenção era entender o seu eu, e ali os profissionais eram vistos inicialmente como médicos que o ajudariam. Outros interlocutores também narram esse percurso quando atenderam ao mesmo serviço. Mas, diferente desses, Antônio não peregrinou entre postos de saúde da atenção básica já munido de toda uma compreensão de sua identidade e da necessidade de procedimentos para mudanças corporais serem acompanhados por especialistas. Não especialistas nas identidades, mas nas transformações corporais. Apenas após seis meses de terapia interna é que ele é indicado para a terapia hormonal e seu acompanhamento para as primeiras mudanças emergirem fisicamente e se adequarem ao que já estava claro na sua ideia de si. Esses diversos caminhos, que parecem mais estradas tortuosas, pelos quais tem caminhado Antônio foram muito mais aflitivos que sua narrativa pode deixar transparecer. A forma como responde ao médico no pronto socorro, de maneira acanhada, já demonstrava sua total insegurança com a relação médico-paciente mesmo estando diante de uma abordagem em algum sentido afirmativa. Ao comparar aquele médico e a médica sexóloga do ambulatório, o caráter de humanidade do atendimento acontece quando não há repulsa. Antônio pontuava que essa médica o tratava como se fosse parte dela. Ao descrever até aqui o contato de Aristides e Rosivaldo, na atenção básica, e Antônio, do pronto socorro ao ambulatório, minha intenção é apresentar duas dimensões possíveis de uma série de diversos itinerários construídos pelos interlocutores – a ideia de construído aqui se fia no entendimento que suas ações, deliberadas ou não, no contexto no qual estão inseridos os levaram a trilhar os caminhos que compuseram suas experiências de busca por atenção à saúde. Uma atenção com cuidado, mas ainda assim a busca estava centrada na estrutura estatal sensibilizada que alia os vinte homens trans entrevistados na pesquisa. Para fazer justiça etnográfica com outros interlocutores seria preciso descrever seus contextos de modo igualmente pormenorizado, e para evitar uma superficialidade que as citações en passant podem produzir, me detive nas experiências de Aristides, Rosivaldo e Antônio. No mapa a seguir (Figura 9) é possível observar uma distribuição dos serviços aos quais os interlocutores atenderam, tanto aqueles que são vistos como sensíveis como aqueles que dificultaram o atendimento de alguma maneira, os não-sensíveis. Com essa marcação geográfica mais ou menos exata procuro sintetizar e cruzar todas as narrativas dos interlocutores e a observação que realizei. Ao retirar a marcação dos limites entre os bairros procurei gerar algum anonimato para essas unidades de saúde e deixar mais evidente o caráter de rede desses itinerários terapêuticos que acabam sendo constituídos na busca por atendimento que descrevi acima a partir 233 da observação participante. As linhas que cruzam o mapa da cidade de Fortaleza correspondem a avenidas principais. Figura 9 – Mapa de itinerários terapêuticos de transição de gênero nos serviços de saúde Fonte: Feito por Cleyton Santos para esta tese a partir dos dados do autor. Os pontos de cor magenta representam lugares nos quais os homens trans receberam parte ou totalmente aquilo que procuravam na forma de consultas, procedimentos, exames e/ou medicamentos. Os pontos de cor preta correspondem aqueles serviços nos quais não conseguiram nenhum tipo de cuidado e que geraram alguma desesperança que os levou a parar momentaneamente a procura. Os pontos mais próximos entre si se referem aos mesmos ambientes, uma vez que quero demonstrar como o mesmo lugar pode ter significados diferentes para indivíduos diferentes, isto é, enquanto um pode deter sucesso nas suas demandas, outro não. Os fatores que têm determinado esse acesso podem ser ligados a postura desse ou daquele profissional de saúde e de como o microcosmo do serviço articula a diferença de gênero e sexualidade. A 234 marcação de círculos em volta de cada ponto busca demonstrar se o itinerário foi interrompido ali ou se ele continuou. Assim, a superposição desses círculos pontilhados e/ou contínuos se refere a caminhos percorridos por sujeitos diferentes num mesmo lugar. Essas unidades de saúde são todas públicas, podendo ser clínicas de prática universitária, hospitais secundários ou terciários e pequenos postinhos. Essa representação com o mapa ajuda a entender o caráter de circulação que essa busca por atenção tomou no cotidiano de homens trans que entrevistei. Ao demarcarem uma presença na região, atendendo a serviços de saúde, procurando profissionais específicos já conhecidos na região e ainda registrando os lugares que não conseguiram nenhum acesso os interlocutores, criaram uma atmosfera da “ausência do cuidado” que corroborará para que a demanda pelo Ambulatório do Processo Transexualizador seja reivindicado. Como venho procurando demonstrar, a política de saúde trans brasileira atual – o Processo Transexualizador – produz aquilo que George Simmel (2011 [1907) chamou de “consequências sociais” sobre o sistema de saúde e sobre a busca por cuidado. O autor mostrou que a inserção de novos elementos numa dada interação social pode ocasionar mudanças nas posições dos indivíduos, é a isso que chama de “consequências”. Mas, de modo geral, toda relação se constitui como uma troca e traz mais do que aquilo que é objeto de engajamento entre os indivíduos. Contudo, esses indivíduos não estão aí compreendidos como entidades autônomas. Na sua análise da inserção do dinheiro nas relações entre donos de terras e arrendatários no berço do capitalismo, o autor observa que a moeda se constitui como um valor e um símbolo que modifica a forma como essas duas posições sociais se relacionam, produzindo novos sentidos sobre si mesmos e sobre a própria relação na qual estão caracterizados. Mesmo sem precisar o surgimento do dinheiro historicamente, Simmel argumenta que ele não simplesmente apareceu como uma coisa acabada. Nesse sentido, o dinheiro tem sido definido como um “valor abstrato”. Como um objeto visível, o dinheiro é a substância que incorpora o valor econômico abstrato, numa maneira similar ao som das palavras, que é uma ocorrência acústico-fisiológica, mas que só tem significado para nós através da representação que carrega ou simboliza. Se o valor econômico dos objetos é constituído pela sua relação mútua de permutabilidade, então o dinheiro é a expressão autônoma dessa relação (Simmel, 2011, p. 170, tradução minha). A própria existência do significado do dinheiro é para o autor aquilo que “representa” a sua consequência na vida social. Apesar da disparidade do que Simmel analisa e aquilo que eu descrevo, o conceito de “consequências” é bastante elucidativo para compreendermos os efeitos que uma política estatal produz mesmo quando ela não exista “de direito” porque ela não deixa de produzir novas posições sociais. Assim como o dinheiro produziu na sua penetração na vida cotidiana uma forma de “objetivação do estilo de vida”182, o Processo Transexualizador tem produzido uma 182 Outro estudo que Simmel (1973 [1902], p. 23) realizou e que também fez considerações a esse respeito foi sobre as consequências da urbanização na vida humana. Como sede da economia monetária, como propõe, a metrópole é um objeto de estudo que o autor 235 objetivação do cuidado em saúde trans não apenas no campo da transição de gênero. Isso porque ela tem atravessado os serviços de saúde e passa a existir de facto no âmbito local, modificando as relações sociais dos indivíduos ali inseridos. Como essa política é um programa eminentemente especializado, ela tem pouca força para produzir um ambiente que os interlocutores chamam de sensível na atenção básica, não apenas por causa de uma má vontade de profissionais. Essa seria uma compreensão simplista. O nível primário do SUS não é uma parte nodal nessa política porque ele apenas “encaminha”, ele não integra seu cotidiano à atenção à saúde trans na sua multiplicidade para além da transição de gênero. Ao partirem dessas experiências de busca por atenção à saúde, os interlocutores que começaram a se envolver com ativismo sociopolítico em torno da questão trans inferem que necessitavam reunir forças locais para ter acesso a essa atenção. Uma “luta” nacional, assim, parece inócua diante de seus cotidianos que são vividos em Fortaleza, e não em São Paulo ou no Rio de Janeiro, metrópoles nas quais as iniciativas clínicas desde o final do século passado foram constituídas como modelos para todo o país, enquanto um modelo nacional que não se adapta às particularidades de todas as regiões. Da mesma maneira que os serviços de saúde não reproduzem de maneira automática tudo aquilo que é realizado noutras regiões do país, apesar de se basearem legalmente na legislação do Processo Transexualizador e naquilo que é estabelecido na comunidade médica, os ativistas trans cearenses também aprendem bastante com outros militantes que conhecem em congressos e outros eventos políticos, mas procuram criar seus próprios movimentos localmente. A tensão regional fica exposta quando, por exemplo, ativistas dessa ou daquela região não se engajam a nível federal – isto é, diante do Ministério da Saúde – com a mesma proporção e força que o fazem quando são assuntos que eles mesmos não têm acesso em suas localidades. É nesse sentido que faz nascer um ativismo trans em saúde no Ceará, um que se volte e faça justiça com as necessidades e desigualdades locais, mesmo que não deixem uma atuação multinível (diante do Estado brasileiro em suas feições municipais, federais e estaduais). *** Mesmo que as iniciativas tenham sempre sido locais, a regulamentação (e controle) do MS/CFM teve um grande papel de maximizar as possibilidades dessas iniciativas locais acontecerem por outras regiões do país, fora do eixo São Paulo-Rio de Janeiro, por causa da legitimidade científica, técnica e burocrática que confere – incluindo aí, é claro, o seu financiamento estatal “multinível” sem o qual o serviço de saúde não funciona. Falar da atenção à saúde trans – chega logo que conclui seu estudo do dinheiro. A modernidade traz novas formas de vida – ou como chama, formas sociais – que transforma a própria subjetividade. A cidade produz o indivíduo por meio do "desenvolvimento da cultura moderna" que produz um relevo preponderante "do que se poderia chamar de o 'espírito objetivo' sobre o 'espírito subjetivo'”. É uma diferenciação que produz uma individualização de si. 236 incluindo aqui todas as iniciativas de programas, políticas, serviços de saúde oferecidos por profissionais de saúde dentro ou fora das universidades - é falar de processos de formação do Estado. O Estado brasileiro não participa e controla a saúde trans apenas quando o Ministério da Saúde passa a exercer controles claros, em 1997, em escala nacional. Os especialistas de saúde paulistas e cariocas dos anos 1960, 1970 e 1990, assim como os atuais, desde 2008, que não são classificados como “habilitados” estão incutidos em ações estatais, eles são parte do Estado brasileiro e, mesmo sem sua consciência objetiva, integram medidas de governo - algo que embora se aproxime não é o mesmo que Bourdieu afirma sobre sermos todos atravessados pelo Estado. São serviços estatais em seu financiamento, em sua legitimidade, em sua feição simbólica. Muito embora haja atualmente uma maior entrada de outros setores governamentais como as Secretarias de Estado e as Secretarias Municipais, a saúde trans brasileira está alimentada e vivificada continuadamente por atores estatais desde o interior das universidades. Na ausência de maior escopo mercadológico desse tipo de intervenção biomédica, as universidades mantiveram o interesse científico – seja qual for a área, se biomédica ou social –, mas elas não têm deixado a cena nas últimas duas décadas. Algo bem diferente aconteceu nos Estados Unidos, onde o serviço de saúde de caráter patologizante foi atribuído a sua localização universitária. Ativistas e muitos pesquisadores estadunidenses tendem a reverberar que a saída da medicina trans das universidades lhe possibilitou o florescimento ao direito individual à mudança de gênero. Ter-se-ia chegado a um momento no qual não seria o “poder médico” que decidiria se alguém seria transexual nos centros de produção de conhecimento universitários, mas sim a capacidade individual de escolha. Contudo, aí, a baliza do acesso – nem sempre vista dessa maneira – será a capacidade financeira do cliente-paciente. É o individualismo que assegura a possibilidade da mudança de gênero medicamente assistida no ponto mais profundo desses discursos e práticas estadunidenses, e não o direito à saúde coletivamente pensado como ofertado obrigatoriamente pelo Estado e acessado seguramente por cidadãos. Ainda que se chegue ao âmbito de uma “discursividade dos direitos”, o ânimo provém de uma máxima exacerbação do indivíduo como valor que atravessa a cultura estadunidense como um todo – algo que justifica a prática médica, a lógica terapêutica, a decisão à transição e suas modificações corporais, a não interferência do Estado em criar medidas de controle (mesmo que essa ausência já seja uma medida de regulação). Mesmo que não se possa dizer que serviços no mercado privado no Brasil não nasçam nesse sentido, até porque já há notícias de que eles têm surgido de maneira tímida183, o que eu observei em Fortaleza, e o que se desenha numa escala nacional, não é uma rejeição às universidades associadas à patologia. Essa associação 183 E eu mesmo acompanhei algumas iniciativas nesse sentido. 237 acontece com o governo central nas suas medidas de controle e regulamentação alinhavadas por conselhos de classe. 4.4. A conquista do biológico Neste capítulo procurei demonstrar como homens trans conformavam itinerários terapêuticos nas suas buscas por mediação médica para a transição de gênero, aliado a uma localização sociológica de que essa ausência de acesso efetivo e afirmativo no sistema de saúde em Fortaleza corrobora um cenário para a justificativa da falta do Estado brasileiro diante de seus direitos em saúde. Algo que acaba por galgar discursos e práticas que justificam que o Estado em seus diferentes níveis e os governos locais constituam serviços específicos e deem as condições para que as demais partes do sistema não os rejeitem. Partindo da concepção de itinerários terapêuticos à transição de gênero descrevi primordialmente as trajetórias de três interlocutores no curso de suas buscas para chegar à atenção à saúde e ao cuidado e representei em mapa esses caminhos percorridos por todos os 20 interlocutores entrevistados. Entender que há aí verdadeiros itinerários é relevante porque responde as preocupações de pessoas trans em acessarem uma estrutura estatal que lhes forneças as condições para transicionar sem correr o risco de adoecer no processo. Ao fazer uma distinção entre atenção à saúde e cuidado procurei enfatizar a formação estatal no decurso da constituição da saúde trans no país, e as próprias experiências de homens trans que não apenas indispunham de capacidades financeiras, mas também buscavam alicerçar um contexto de garantia de direitos. Se até os médicos no mercado privado seguem as prerrogativas do MS/CFM, não há outra alternativa a não ser encarar entrar no sistema público de modo a conseguir viver o Processo Transexualizador, mesmo que sua estrutura seja menor que seus efeitos sociais naquela que lhes é disponível. Essa parte da tese poderia ter tomado outros caminhos para seguir o mesmo argumento como mostrar o paralelo de cuidados sem a mediação biomédica profissional – embora os seus saberes estivessem presentes nas práticas levadas à cabo em casa – em relação a ida aos serviços de saúde. Decidi recorrer à indicação dos efeitos do Processo Transexualizador na atenção à saúde local por entender que isso ilustra melhor de modo etnográfico, e de maneira direta e objetiva, os meandros que dão sustentação às práticas dos interlocutores ativistas homens trans que se construíram enquanto ativismo político e como parte de um escopo terapêutico que em muito pode acionar uma identidade nesse sentido para que as instituições de governo e a comunidade médica os escute. No próximo capítulo procuro descrever, então, como esse terreno se estabelece para convencer os agentes sociais diversos com os quais entram em contato na forma de um ativismo 238 que põe claramente que sem o direito à saúde garantido na forma do Ambulatório e do Serviço Hospitalar que garanta a transição de gênero, eles terão tentado transicionar de qualquer maneira porque o sofrimento ao não o fazer é simplesmente intolerável. Esse é um ativismo biossocial no sentido de sua politização das relações até alcançar uma biologização da política. O risco de transicionar põe em evidência adoecimentos muito variados que são e seriam produzidos no âmbito da ausência de verificação e de vigilância da ação das intervenções biomédicas em seus corpos, isto é, se recorre à conquista política do biológico como parte de um processo de cidadania: a compreensão de como funciona a hormonização, de como são as técnicas cirúrgicas e seus efeitos e preparos, e todas as interações que podem ocorrer nesse percurso. Descrevo, portanto, as diferentes estratégias e políticas construídas nesse sentido e como esse foi o espaço privilegiado para o nascimento do ativismo transmasculino cearense que ganhou vida primordialmente através dos direitos à saúde como base para qualquer outro direito também igualmente importante. Vários pontos do argumento desse capítulo são demonstrados no próximo. Os efeitos sociais do PTSUS não se fazem refletir apenas na busca por uma atenção à saúde assim estruturada, mas também participa da forma como a relação médico-paciente e o cuidado de si é produzido. 239 – Capítulo 5 – Biologia como política Tem pessoas trans que estão morrendo, tem pessoas trans que estão doentes. [...]. Do movimento dos homens trans nós temos uma pessoa, um menino, que se hormoniza de forma clandestina, sem acompanhamento, que hoje está com câncer. E isso é culpa de quem? É culpa do Estado que não nos deu um aparato. [...]. Nós não queremos as pessoas tomando algo que não seja a quantidade certa, que vai futuramente prejudicar sua saúde física e mental. - Januário, 23 anos, em discurso na 1ª. Audiência Pública para o Ambulatório do Processo Transexualizador em Fortaleza, Ceará, 8 de julho de 2017. 5.1. A vida e a política Encontrei Kaio e Januário pela primeira vez numa tarde de dezembro de 2016. Nos falamos antes através da internet, com alguns meses de intervalo, por meio da indicação de um amigo em comum – este que tinha sido um interlocutor na pesquisa para o mestrado184. Era uma tarde de festa no popularmente conhecido “Dragão”, e os visitantes, que chegavam sozinhos, em grupo ou em casais logo se aglomeravam nas diferentes dependências e andares do lugar. Em poucos minutos após minha chegada éramos todos ali algo em torno de centenas de milhares de pessoas. Para conversarmos mais tranquilamente entramos num café. Um pequeno espaço com luzes baixas e mesinhas estreitas. Minha intenção era a de apresentar-lhes os objetivos da pesquisa e sondar sobre se estariam abertos a colaborar à sua aplicação. Animados com a proposta, eles me introduziam ao cenário local, descrevendo uma cena de ativismo marcado por disputas e conflitos que eu venho descrevendo até aqui. Esse estabelecimento social, político e cultural de suas figuras específicas como sujeitos de cuidado e sujeitos de direitos demarcava-se como o eixo central dessas contendas e transformações. Por isso, este capítulo poderia, sem perder o objetivo, se chamar “conflito social e saúde”. Eles não falavam especificamente sobre o que eu viera inicialmente interessado em estudar, que eram as relações de parentesco; eles falavam de volta sobre seus problemas e questões para “ter” acesso a serviços para “transicionar com saúde” e para cuidar de si de maneira geral, de tal modo que o primeiro era a condição para o segundo. Não bastava não 184 Ver Rego (2015). 240 haver violência na relação médico-paciente. Para haver o cuidado era necessário ter uma transição “segura biologicamente”, sem riscos185 à saúde. Esse era o foco da narrativa e de práticas sociais de grande parte de sua mobilização por direitos, que fez sua militância tomar a forma de um ativismo biossocial que se centra na garantia da vida ao longo e após a transição. Isso vai operar uma nova feição do movimento para garantir acesso à saúde: a produção de uma dimensão “bio” da vida que detém grande apelo sociopolítico. A imagem de personagem exótico e a ser questionado para ser conhecido, identificado e provado – que vimos no capítulo 2 – postulava-se no presente por todos os lados, de modo que a interação social por meio da qual engajavam socialidades esteve refratária a esse obstáculo político para o reconhecimento de seus direitos e cobertura de bem-estar social pelo Estado-nação brasileiro. Ainda mais, foi necessário argumentar porque precisariam de atendimento em saúde mesmo não dizendo ser a transexualidade uma doença, gerando outra direção para o adoecimento, e não o mental em si, mas o físico. A especificidade dos homens trans como sujeitos se perfazia, de maneira controvertida e em diferentes escalas, por meio da construção de uma narrativa atravessada pelo uso, ora politicamente estratégico, ora socialmente organizador do que se vem a entender como elementos de “biologia”, isto é, são sujeitos que tem corpos como qualquer pessoa, e que têm necessidades físicas como qualquer um, mas desenvolvem necessidades outras a partir da transição que implicam uma cobertura estatal centrada no argumento de que a transexualidade é um elemento comum da vida humana. Um aspecto que gera uma diferença que é também corporal e que afeta – talvez, influencie – processos da vida experienciados por eles. Assim, afirmações que os chamavam de homens trans em oposição a homens biológicos (os não-trans, ou cis como colocam) indicariam que eles seriam feitos de papel. Mas não teriam eles células? Não teriam eles pele? Não seriam eles também de carne e osso? Essa demanda para que se reconheça que seus corpos biológicos existem e precisam ser cuidados faz sentido, como ficará exposto ao longo do capítulo, porque se trata de uma feição da atividade da tecnologia de governo da biopolítica em sua contemporaneidade. Nesse sentido, a explicação do porquê são homens trans junto ao porquê de o Estado dever lhes prestar atenção em saúde diferenciada mesmo quando não seriam doentes por serem trans é atravessada por uma noção de uma “natureza” dos corpos como chave política, e de uma especificidade biológica de um grupo a posteriori das novas necessidades em saúde advindas a partir 185 É verdadeiramente diverso e amplo o emprego do conceito de risco na antropologia e na sociologia. Na sociologia fala-se bastante sobre “sociedade de risco”, e como indivíduos fazem práticas que põem em risco suas vidas por prazer e identificação social como esportes radicais, modificações corporais, entre outros, contidos na ideia de “conduta de risco” (Le Breton, 2018; Morrisey, 2008; Zarias e Le Breton, 2019), e risco à vida ligado a deterioração do meio ambiente (Douglas, 1983). Mas não são desses tipos de risco que falo nessa tese, mas de um risco no campo da saúde por causa da biologia dos corpos. 241 da transição de gênero186 que implicam o acompanhamento da ação das biotecnologias. A dimensão do adoecimento era uma parte dessa política, mas não simplesmente no sentido de que se usa a classificação da disforia de gênero para conseguir o atendimento. A experiência da doença entra aqui no âmbito do seu desenvolvimento devido ao não acompanhamento da transição, e a outros adoecimentos que se alteram por causa do recorte biossocial situado pela transexualidade. Isso porque as consequências sociais da ausência de cobertura em saúde são circunscritas materialmente, ou em outras palavras, são refletidas em seus corpos. Essa colocação nada tem a ver com ser geneticamente diferenciado187. Isso significa o uso da biologia, ou do que se acredita sê-la, como tática política, isto é, de engajar-se em formas de prática social e discursos capazes de convencer o Estado contemporâneo em seus próprios termos. Essa linguagem estatal, e a forma de ser de governo, desde muito obedecem ao entendimento formulado historicamente de que os seres humanos são seres organicamente viventes. Assim, a política toma a vida inteiramente. Isto é o que Michel Foucault (1988, 1999, 2001, 2008a, 2008b, 2012a) concebe como biopolítica: uma forma de tecnologia de governo que estabelece o conjunto dos seres humanos como população, de modo a administrá-los em suas recorrências; fazendo-os, também, cuidarem de si mesmos nas suas individualidades e controlando a produção dos seus corpos. Na ordem do ativismo que usa as “armas” do Estado para conquistar direitos através de sua cobertura social há a produção de efeitos sobre os modos de objetivação e subjetivação de si mesmos que estão longe do controle dos indivíduos ou de grupos sociais determinados. O que antes era estratégico, se é que é possível determinar o início e o fim desse limite, não se furta a participar ativamente como elemento de organização social e de simbolização e, portanto, de subjetividade. No âmbito do Ceará, essa formação é atravessada amplamente pelo mundo social da saúde – com seus serviços, profissionais, regras, procedimentos, processos, objetos e sujeitos –, principalmente por ser o corpo um objeto material manejável pelas técnicas biomédicas, um fator primordial para essa nova colocação de si; e ser o corpo o próprio limite no qual se manifesta a vida humana. Assim, ao entendermos como a cidadania trans no contexto do Ceará foi atravessada pelas dinâmicas biopolíticas apreenderemos a descrição da própria constituição cidadã das pessoas trans no Brasil, uma vez que se indica aqui que essa última foi vivificada pela emergência do homem trans como categoria política e terapêutica. Oposições entre natureza/cultura, social/biológico 186 Isso será problematizado no decorrer deste capítulo – no capítulo 3 mostrei como itinerários terapêuticos diversos eram atravessados pela busca por cuidado em saúde à transição. 187 Nessa pesquisa não ficou evidente de força decisiva um argumento pró saúde trans em torno de uma diferenciação genética ou cerebral. Contudo, noutros contextos isso tem estado presente de maneira controvertida. Isso ocupou e ocupa as páginas dos estudos biomédicos, descritos no capítulo 2. Eric Plemons (2019a), em sua pesquisa, também tem identificado como médicos e mulheres transexuais têm procurado no cérebro uma diferenciação orgânica que explicaria a transexualidade; e, como mulheres trans estadunidenses têm procurado cirurgias de feminilização facial para atingir uma feição de “mulher biológica” (Plemons, 2019b). A ideia de natureza para circunscrever ser ou não transexual esteve presente em campo, mas não como resultado da genética. 242 eram realizadas no campo pelos interlocutores, sendo que são suas maneiras de traçar o início e o fim das unidades desses pares que exponho. Procuro descrever como as explicações locais ganham forma e orientam ações e socialidades quando o “fato biológico” atravessa a cidadania. Quer dizer, homens trans dizem para o Estado brasileiro que serviços devem ser estruturados porque seus corpos podem adoecer diante de transições malfeitas sem mediação biomédica. Esse malfeito está tanto no caso de algum adoecimento acontecer como nas feições masculinas pretendidas não serem atingidas. Assim, mostro como as modificações corporais ou o manejo orgânico da vida e as necessidades concebidas a partir daí foram todas politizadas pelos ativistas enquanto tais, circunscrições que são materiais. As perguntas mais importantes que faço, assim, são: como e de que forma ao usar estrategicamente a linguagem e as ideias contidas no modus operandi biopolítico do Estado-nação brasileiro, os ativistas homens trans acabam por se subjetivar (e não se sujeitar) através daquilo que lograram apenas ser um intermédio para chegar ao objeto de suas militâncias? Como essa política extrapola as táticas estratégicas de convencimento e constituem suas subjetividades? Como essa cidadania se torna biocidadania? Ao formular essas perguntas já passo a indicar que essa estratégia acontece, o que significa que para respondê-la preciso descrever como se dão essas táticas. Enquadro esse cenário de subjetivação nas práticas tanto como mobilização voltada para as políticas de governo como enquanto ordenador de laços e relações no cotidiano. Isso produz formas de biossocialidades na acepção de Paul Rabinow (1996a; 2008) e de outros autores e autoras que têm se preocupado com a dinamicidade da biologização e condições de saúde como elemento material de simbolização e política da vida social (Rose, 2001; Petryna, 2002; Rose e Novas, 2005; Valle, 2015). Ao me dar conta desse contexto no curso do trabalho de campo, rejeitei por grande período esses termos de análise por considerá-los um problema para o ativismo. A saber, como relações sociais e políticas são constituídas em torno do trabalho orgânico da transição. Estava posto que ao falar de biologia quando me referisse a transexuais e cidadania estaria fazendo um movimento contrário ao que propõe a militância, já que um grande elemento desse ativismo é negar com radicalidade uma prisão biológica para definir gênero e sexualidade, isto é, por ex., que homens são homens por terem nascido com um pênis, ou que estes últimos são mais “biológicos”. Contudo, ao chegar à conclusão que essa minha preocupação ética estava confundindo os elementos de biologia e da vida – entre aqueles reivindicados e aqueles rejeitados pelos interlocutores –, impedindo a própria análise de considerar como objeto algo tão importante para o campo, que eram as condições de saúde e as mudanças corporais pelas quais perpassam os sujeitos, revi que estava perdendo de vista um lócus da vida social que observara e sua construção de um mundo 243 verdadeiramente biossocial. A impressão de contraditoriedade que isso talvez produza se justifica apenas se acharmos que a vida social e cultural é um terreno simples e não dado a conflitos, contradições, confusões organizadas apenas nas palavras escritas do antropólogo. Mais do que isso, não considerei no início que as relações com a biomedicina se dão tanto entre reforço e recriação de elementos da “natureza” como concessões para seu aperfeiçoamento, adestramento e reformulação. O ativismo trans que descrevo se constituiu a partir de um deslocamento desde um encontro aleatório de pessoas interessadas em mudar de gênero/sexo atendentes de um antigo serviço de saúde para um associativismo de homens trans cientes da organização e funcionamento do Estado-nação e dos saberes biomédicos que os legitimam. Esta é a apresentação de um nível específico da biopolítica. A atividade de se fazer cumprir uma cobertura estatal perpassou a clarividência dos ativistas de que eles deveriam construir-se enquanto sujeitos terapêuticos ao mesmo tempo que enquanto sujeitos de direitos. Quem seria essa figura que deveria receber atenção biomédica e burocrática da máquina pública? E por quê? Um dos pontos altos disso durante o campo de pesquisa se deu quando enfim aconteceu a primeira Audiência Pública para se discutir, com autoridades locais, médicos e ativistas trans, a instalação de um serviço do Processo Transexualizador no Ceará, de modo que sua intensidade tomou a forma de um evento que expôs as relações sociais e de poder que davam forma ao contexto local tanto pelo que desencadeou quanto pelo que foi desencadeada. E é por esse momento que retomarei a etnografia nesse capítulo, percorrendo, entre idas e vindas, o processo social que deu lugar e que ajudou a fomentar adiante. Esse capítulo não está dividido em grandes blocos, mas percorre primeiramente a formação da mobilização, depois a articulação do ativismo e, por último, procura entender as consequências sociais da intersecção entre saúde e política no âmbito da cidadania e da terapêutica trans para que se constitua o direito à saúde no âmbito do Sistema Único de Saúde. Não estabelecerei uma descrição que siga uma ordem cronológica rígida por considerar que isso não me salvaguarda dos problemas quanto ao tempo na etnografia (Fabian, 2013 [1983]). Utilizando-me tanto do trabalho de memória dos ativistas como o meu de observação participante, os eventos e as experiências descritas e relatadas vão e vem no tempo dos interlocutores e da etnografia. Tento vislumbrar que ao mesmo tempo que lutavam por direitos ao acesso a serviços públicos de saúde demonstravam estratégias para cuidar de si sem a supervisão técnica que perseguiam politicamente. Assim, procuro alcançar a descrição etnográfica de discursos e práticas bio-socio-políticas. 244 5.2. O governo pela esperança Éramos cinco pessoas apertadas num carro de aplicativo indo desde as proximidades do centro em direção ao bairro Eng. Luciano Cavalcante. Esse trajeto levaria mais de uma hora de ônibus urbano se não tivéssemos nos unido para pagar o transporte alternativo. Isso não era particularmente atípico, já que a subida dos preços do transporte público fez com que crescesse o uso de tais medidas para otimizar o tempo e o dinheiro de que se dispõe. Saímos da casa de Kaio, na qual havíamos dormido na noite anterior, porque intencionávamos chegar com a máxima antecedência possível à sede da Defensoria Pública cearense. Eu acompanhava, naquela manhã de 8 de junho de 2017, três ativistas e uma de suas companheiras. A esperança que circulava entre nós era de que a Audiência Pública que iria acontecer logo mais pudesse finalmente ser a pedra de toque para a criação, através do Sistema Único de Saúde (SUS), do Ambulatório do Processo Transexualizador pela Secretaria de Saúde do Ceará. Os ativistas cearenses, principalmente homens trans, pretendiam processar judicialmente o Governo. A Audiência fora convocada pelos defensores públicos e se apresentava como uma conciliação para evitar extrajudicialmente esse possível litígio. Uma Audiência Pública é um instrumento estatal que detém um ideal de participação frente às ações dos poderes governamentais. O objetivo principal seria o de fazer ouvir os diferentes setores do que se chama em campo de “sociedade civil”, isto é, todas as pessoas e grupos que não seriam parte estrita do aparelho burocrático do Estado-nação. Como tal, é apresentada como uma democratização das decisões de governo. Mas não há consenso sobre se efetivamente uma audiência geraria o ideal que anuncia. Pesquisadores como Huw Beynon (1999), se contrapondo a visão daqueles que propõem ser as audiências apenas ocasiões para a encenação e atualização do poder do Estado, afirma que é possível haver conquistas e que esses eventos não seriam apenas palco de dominação. Partindo dessas formulações Jorge Lopes et al. (2006) descrevem como uma audiência, realizada em Angra dos Reis, sobre a instalação de uma usina nuclear manifestou os atores e interesses em cena. Antes de se anteciparem para responder ao questionamento de se o evento seria ou não útil, os autores procuraram mostrar como o público participante gerou fissuras nos espaços com suas opiniões e vozes, propiciando certa mudança no rumo dos acontecimentos. A etnografia desse acontecimento tem o potencial de ser um momento propício para a observação da expressão das disputas e dos grupos sociais que permeiam o campo ao qual dizem respeito. Segundo Jacques Defrance (1988), citado por Lopes et al. (2006), há nas audiências públicas uma marcação de dois tipos de situação. Uma se trata da “comunicação e informação recíproca” que diz respeito a forma como os promotores da Audiência querem que ela seja vista. A outra situação compreende como os participantes pretendem que seja visto o evento enquanto uma 245 “negociação em uma relação de forças”. Haveria, portanto, a oscilação entre ambas as formas de organização. Lopes et al. (2006) descrevem que isso ocorrera em Angra dos Reis. Já no caso de Fortaleza aqui refletido quase toda a Audiência se deu conforme a organização dos seus promotores, mas não no final quando foi aberto ao “público” fora da mesa de autoridades para comentarem ou fazerem perguntas. Nesse momento houve uma transposição das forças para dar lugar uma explosão de ideias e de “colocar para fora” os anseios, como diria um ativista homem trans de idade avançada ao iniciar a sessão. A “Audiência do Ambulatório”, assim, foi um evento que inspirou grande excitação por parecer, apenas por sua simples realização, uma espécie de reconhecimento de direitos. Mais tarde naquele dia a defensora pública Sandra Sá irá anunciar a razão governamental que guiou a resposta da secretaria de Estado a suas ações vistas como mobilização à “luta LGBT”: Nós levamos a demanda para a Secretaria de Saúde na pessoa do Dr. Pedro que foi de uma receptividade, assim, incomum; que, muitas vezes quando a gente, a Defensoria Pública entra com ações, então está em litígio e é muito difícil o Poder Público se comunicar com as instituições. Mas no caso da Secretaria de Saúde aqui nós já tivemos a demanda acolhida de pronto. Eu antes de eu falar Dr. Pedro já tava dizendo “eu já sei o que é, e já tá acatado”. A luta é de vocês, a luta é uma luta de muitos anos, eu acho que o acontecimento desse episódio da Dandara188, de certa forma deu mais visibilidade a luta, mas muita gente tá sofrendo, vocês sofrem todo dia, e podem contar com o Núcleo de Direitos Humanos como um território seguro de militância LGBT do Estado do Ceará (Def. Sandra Sá). Como Jorge Sérgio Lopes et. al. (2004) não quero recorrer à afirmação de um certo grau de utilidade ou efetividade desse momento. Interessa-me mais entender o que esse evento expressou, não apenas sobre o que vinha acontecendo na cidade, como a respeito dos lugares que ocupou no processo social da constituição da saúde trans como um objeto de engajamento e ação científica, técnica, de gestão de governo, burocrática e política. Sigo a descrição da audiência em sua liturgia, inspirando-me em Max Gluckman (2010 [1940]) e na sua etnografia de uma situação social189, para abarcar as experiências dos interlocutores, seu desenvolvimento, fissuras e reforço das hierarquias sociais confluídos pelos participantes. O caráter de processo judicial, e sua representação de uma força que se impõe, já se inicia com a excitação prévia na divulgação do evento, como se vê na Figura 10 reproduzida a seguir, que circulou pela internet ao ser veiculada por perfis oficiais do Governo do Estado do Ceará, por ativistas, pessoas anônimas, e por jornais locais como o Diário do Nordeste. 188 Dandara dos Santos foi uma travesti brutalmente espancada e assassinada em Fortaleza. Voltarei a isso adiante. 189 Gluckman (2010) mostrou como um evento político ordinário – a inauguração de uma ponte – exprimia a ordem social de uma sociedade sul-africana e sua hierarquia dos grupos locais. É esse tipo de ocasião expressiva que o autor denomina de situação social. Isso se constituiu, portanto, como uma abordagem etnográfica ao situar histórica e socialmente os elementos estruturais que orientavam os atores sociais na determinada ocasião e como esta reverbera na sociedade e é, ela mesma, seu resultado. 246 Os ativistas que residiam no interior do estado chegavam à capital já na noite anterior para se prepararem para se fazer presentes, e a casa de Kaio era um ponto de apoio importante no qual nos encontramos. A expectativa era grande e tinha permeado nossas conversas desde meses atrás, quando a audiência fora marcada. Decidimos pedir uma pizza para jantar naquela noite de antecipação quando todos chegaram. Enquanto comemos, assistimos a filmes envolvendo personagens LGBT até que vamos todos dormir. Como o espaço não era muito grande, durmo na sala numa rede, enquanto os demais, Kaio, Magno e sua companheira Valéria, dormem no quarto dividindo uma cama de casal. Acordo na manhã seguinte muito cedo, já com o sol no meu rosto, que atravessava a janela de vidro da sala. Logo todos acordam e tomamos café, e começamos a nos preparar para sair. Ajudo Valéria a escolher uma blusa, já que estava indecisa. A ideia é que todos nós nos apresentemos bem-vestidos, afinal, é um evento solene de grande expectativa. Após os preparativos chamamos o táxi. Para nossa sorte, o motorista não se importou em levar um passageiro extra, já que éramos 5 pessoas contando com Januário que chegou depois. Depois de um percurso considerável descemos no que, só depois, percebi ser a lateral do prédio da sede da Defensoria. Relativamente próximo à Câmara de Vereadores de Fortaleza, chegava a ocupar um quarteirão inteiro. Conforme vou me localizando, Valéria comenta que o lugar seria um pouco remoto para a maioria das pessoas, e de difícil acesso para “quem realmente precisa”, o que escuto com curiosidade. Kaio e eu não demoramos a ir em direção à entrada, do lado direito de onde estávamos, enquanto os outros param para comprar café de um ambulante onde estacionamos. Figura 10 – Divulgação da Audiência Pública da DPGE Fonte: Defensoria Pública Geral do Estado do Ceará (2017). 247 Antes de entrarmos, Reginaldo sai pela porta da frente em nossa direção. Era a primeira vez que o encontrava, embora já tivesse ouvido falar sobre ele como um ativista da região. Ele parece um pouco nervoso, e nos conta, segurando papeis escritos à mão, o discurso que preparou para falar quando lhe for dada essa abertura na Audiência. “Tenho muito a dizer; temos muito a dizer, essa Audiência não vai ser suficiente para resolver nossos direitos”, completava. Era a primeira vez que algo dessa magnitude acontecia, com a presença de um Secretário de Governo Estadual falando em público sobre um serviço de saúde voltado a travestis e transexuais. A animação fazia muito sentido. Enquanto eles fumam, conversamos sobre as dificuldades jurídicas que Reginaldo tem encontrado por tentar mudar de nome e sexo no seu registro civil. Ali mesmo nos conta que seu advogado, um defensor público assinalado pela Defensoria para seu caso, já que não dispunha de recursos próprios, estava há alguns anos sem resolver sua situação. Reginaldo desconfiava que o dito profissional o “enrolava”, dificultando o andamento do processo por causa das crenças religiosas que professaria. Muito insatisfeito com isso, pretende colocar carne e sangue em seu discurso de logo mais. Após quase uma hora conversando na calçada da frente do prédio, entramos e ficamos próximos a entrada da sala na qual acontecerá a Audiência, um auditório amplo com capacidade, julguei, para mais de 200 pessoas. No saguão continuamos a conversar sobre essas e outras dificuldades vividas pelos interlocutores no decurso dessa ou daquela etapa do processo de transição. Em tudo, como ficará exposto no desenrolar da descrição da Audiência propriamente dita, a faixa de renda dos interlocutores e de suas famílias é um dos principais fatores de porque estavam presentes ali naquela manhã. Os direitos se tornaram uma linguagem potente dentro do conflito entre os setores estatais e os pacientes, ativistas, militantes e seus familiares para a cobertura em saúde que geraria “segurança biomédica” tanto ao se transicionar, como para “viver em sociedade” sem ser violentado. Sem essa cobertura julgam que não poderiam estar em pé de igualdade com outra pessoa que não transiciona. Aos poucos o saguão é tomado de gente, e vamos entrando no auditório que logo é ocupado quase na sua totalidade. Antes da Audiência começar de fato alguns homens trans e mulheres trans e travestis dão entrevistas a jornais da região, e conforme se segue, dois homens com câmeras nos ombros circulam pela sala, dando enfoque principal nas pessoas trans e travestis. É algo que me incomodou um pouco, à princípio, porque percebi haver um foco exacerbado na filmagem de pacientes e ativistas. Quando compartilhei minha sensação sobre isso, Kaio achara que não havia algo ruim nisso porque seria bom para a militância. Era ótimo para a causa. Entendi que a visibilidade é a chave, e não se poderia renunciar a nenhum veículo. Eu estava sentado na quarta fileira da frente para trás, entre os interlocutores, e era constante a luz forte da câmera em nossa direção quase nos ofuscando. Eram, assim, as duas câmaras posicionadas uma de cada lado das fileiras dos assentos 248 dando closes certeiros em rostos, nas posturas, nas conversas, um curso de múltiplos ângulos e enquadramentos. Muitos dos ativistas também se valiam de gravadores e celulares para fotografar e gravar em áudio e em vídeo o momento. Como Valéria julgava antes de sairmos de casa, todos e todas estavam bem vestidos. Foi uma preocupação que nos calhou já que apareceríamos na TV. O recurso midiático será forte em toda aquela manhã. Após alguns minutos de nossa entrada no auditório, a Audiência começa em todo seu ritual protocolar e o qual sumarizo em seis etapas descritas em três atos: 1) A mestre de Cerimônias anuncia a Audiência e seus objetivos, e como é realizado o trabalho da DPGE; 2) A Mesa é composta e passa-se a palavra a cada um de seus integrantes; 3) Apresentação do Projeto do Ambulatório e Equipe Multidisciplinar responsável pelo chefe do setor do Hospital de Saúde Mental Frota Pinto Jr.; 4) Apresentação da participação da Secretaria de Saúde no planejamento e demais membros da Mesa; 5) Debate feito pelo “público” da Audiência a partir de questionamentos, perguntas e ponderações; momento no qual os ativistas falam com vigor; 6) Finalização da situação com encaminhamentos e momento para fotos com os ativistas e outras pessoas trans e travestis presentes. O foco da minha descrição, assim, recai sobre as figuras de homens trans particularmente, o que responde aos objetivos dessa tese, mas não significa que outros sujeitos como travestis e mulheres trans não estivessem lá presentes e atuantes. Ato I A cerimonialista, vestida de preto em trajes sociais, finalmente anuncia pelo som amplificado do microfone o início da Audiência Pública que, como demarca, foi intitulada “Transexualidade: pelo direito de existir”. Em seguida, um vídeo propagando a “missão” dos defensores públicos é exibido no telão, e assistimos ao relato do cotidiano e dos setores temáticos internos, como o Núcleo de Direitos Humanos, que se veem com o objetivo de “resgatar os direitos dos menos favorecidos socialmente”. Quem ainda não estava sentado na plateia entra no auditório e começa-se a fazer um silêncio para fazer seguir a burocracia. Nesse momento, Valéria, Magno e eu já estamos sentados um ao lado do outro. Kaio e Januário, peças centrais do dia de hoje estavam na primeira fileira a postos para ocuparem a fala quando for dada a oportunidade. Uma a uma, cada autoridade é chamada para ocupar a “Mesa”, antes vazia, seguindo-se de aplausos de deferimento e uma ordem hierárquica desde o secretário de saúde, perpassando pelos defensores, deputados estaduais e funcionários da administração municipal e estadual envolvidos com políticas públicas LGBT e ativistas. Percebe-se que a composição segue as mulheres como as operadoras do Direito, junto com o Promotor do Ministério Público, e os homens se sobressaem em número como 249 representantes de setores do Estado municipal e estadual. Das pessoas trans, duas mulheres, uma enquanto representante da Associação de Travestis do Ceará (ATRAC), outra como funcionária pública, um homem trans como representante da Associação Transmasculina do Ceará (Atransce), além do deputado estadual Renato Roseno, pelo PSOL. Figura 11 – A Mesa Fonte: Foto do Autor. Quando olho para trás procurando observar a ocupação do auditório percebo uma disposição de assentos curiosa. Quase todos os ativistas e pacientes trans estão sentados ao lado esquerdo, enquanto o outro lado, sem estar totalmente preenchido sentam-se majoritariamente médicos, advogados e outros especialistas. Era perceptível nas primeiras fileiras de ambos os lados se sentarem os homens trans em número quase absoluto, em boa parte acompanhados de suas companheiras diferentemente das travestis que estavam sem cônjuges. O que se seguiu me surpreendeu, à medida que as expectativas dos interlocutores não foram totalmente atendidas quanto ao que diziam que iria acontecer ali. Eles mesmos esperavam algo da Audiência que comumente não se alcança, que é o objeto absolutamente acabado daquilo que se reivindica. Os membros da Mesa de abertura finalmente tomam a palavra. A defensora pública geral Mariana Lobo inicia com um discurso que focaliza em demarcar que a Audiência é fruto da sensibilização dos “operadores do Direito” para a temática trans, e que esse seria um trabalho que a Defensoria viria fazendo naquele período. Sensibilizar é uma missão que é alcançada quando os direitos são recuperados. A identidade de gênero é erigida, então, como um direito, para apresentar naquele momento um projeto para implantar o Ambulatório. O Secretário de Saúde, Dr. Henrique Javi, recebe o microfone de Mariana para falar que a “causa é nobre”, precisando focalizar nas melhorias e não nos problemas. Assim, começa a explicar como se dará o atendimento que responderá a demanda referenciada, isto é, a rede de atenção básica irá ser a porta de entrada para, então, haver o encaminhamento para o serviço especializado. O secretário cita o Governador Camilo Santana (PT) e o Prefeito de Fortaleza Roberto Cláudio (PSB) para informar que há planos 250 de construir uma Policlínica para onde o Ambulatório deverá migrar, mas que no atual instante o serviço deverá ser implantado no Hospital de Saúde Mental de Messejana, o Frota Pinto Jr. Como veremos, esse será um motivo de imbróglio, uma vez que os pacientes trans não querem qualquer associação com pacientes em tratamento para saúde mental. Algo que já se falava antes da Audiência acontecer por se ter conhecimento dessa intenção. O secretário endereça ainda a responsabilidade do SUS, de como o sistema é a política mais social de todas. O “indivíduo” que fora impactado pela violência reflete no sistema que precisa gastar mais para recuperar alguém que fora danificado dentro de um atendimento não adequado. Assim, a ideia é que o novo serviço trate os pacientes com dignidade e segurança. Nesse momento ele nos diz que os médicos estão na plateia e pede para que fiquem de pé. Dr. Henrique é anunciado agora como o representante que continuará a expor o projeto do ambulatório em nome da Secretaria e que anuncia que o antigo serviço de saúde sexual ATASH, que funcionava no Hospital de Saúde Mental, será substituído por um Ambulatório específico para atender pacientes transexuais e travestis. É dada ainda a palavra para algum outro médico falar. Uma jovem médica ginecologista é ovacionada quando pega o microfone, ela é conhecida na cidade pela sua atuação na área e suas poucas palavras de engrandecimento do cuidado em saúde para pessoas trans é seguida de aplausos calorosos unânimes. Estavam ainda ali o endocrinologista, um urologista, um cirurgião, a assistente social e dois psiquiatras. Alguns desses profissionais eram bem conhecidos dos ativistas porque eles os têm atendido em seus serviços particulares e em hospitais públicos da capital. Figura 12 – Os médicos especialistas Fonte: Autor. 251 Ato II Com isso, o chefe do setor no Hospital é chamado para apresentar finalmente o projeto. Ele, que estava sentado no lado direito, se levanta sob aplausos e vai à frente para usar o auxílio de uma apresentação de slides. Nesse momento o silêncio no ambiente encontrou o seu mais absoluto pico. Todos estamos vidrados para entender quais seriam os horários de atendimento, quantas vagas haveria e que profissionais estariam disponíveis. Vale ressaltar o grande dispêndio da apresentação no quesito “metodologia”, como chama, detalhando número de salas no hospital, especialidades médicas contempladas na equipe, e como se dará o fluxo de admissão e encaminhamentos. Todos os médicos que estavam na sala são chamados pelo nome para irem à frente. Aplausos continuam a ecoar pela sala, e os rostos felizes se generalizam com largos sorrisos de ponta a ponta do ambiente. Em seu discurso, o médico nos explicava que a “população trans vive um sofrimento e vulnerabilidade acarretados pelas condições de vida por causa dos preconceitos”. Chega a citar termos como “heteronormatividade” e “cisnormatividade”, os quais, segundo diz, produziram a violência “concreta e simbólica”. Haveria, portanto, a necessidade da intensificação da “sensibilização dos servidores”. O Ambulatório é anunciado para “resgatar os direitos humanos”, “levar respeito à diversidade e democracia, reafirmando os princípios do SUS”. Ele reitera ainda que o serviço mudará do local, saindo do ATASH no qual será instalado, passando para a futura Policlínica em construção. Essa promessa será outro ponto de tensão no final do evento. A estrutura física manejada no antigo hospital é então detalhada: seis consultórios, uma sala para terapia em grupo, uma sala para secretaria do serviço, outra para espera. A projeção chega ao slide dos horários e Kaio e eu trocamos olhares; ele estava animado, e eu acabei inflamado por toda a excitação ao meu redor. Segundas-feiras às tardes, e o restante da semana pela manhã, é o estabelecido para o atendimento que receberá pacientes encaminhados desde as unidades básicas de saúde. Ao chegar no serviço ambulatorial se seguiria outro processo admissional interno: uma espécie de avaliação específica, passando pela avaliação médica do psiquiatra, psicólogo e assistente social, e então a sequência do médico da equipe de outras especialidades. Agora todos os médicos são chamados para ficar à frente junto com o chefe do serviço, os quais são apresentados por nome e área. Parecia que tudo que tanto os ativistas reclamavam estava sendo materializado ali na nossa frente, agora víamos médicos e não apenas promessa. Quando todos voltam aos seus lugares, escoltados ainda sob os aplausos, começa-se novamente a “dar a palavra” – como anuncia-se – para “membros da mesa”, reiniciando com os ativistas representantes dos pacientes que demandam o serviço, aqueles que “sofrem”. Apesar do 252 tempo ser de três minutos, todos falam muito abertamente. Renata, travesti ativista da ATRAC, começa pela sua insatisfação com a localização do Ambulatório no mesmo hospital notoriamente conhecido como de “loucos” na cidade. Aquele não era o seu espaço, ela não era doida. Ao ser enfática sobre isso, Renata fala em estigma e diz que ser atendida ali significaria uma “sentença de morte” porque ficariam feridas com o estigma. Como ela iria conseguir um emprego se achassem que frequentava um lugar assim? Ao que conclui: “percorri o mundo todo, Fortaleza é a cidade que mais exporta travestis para prostituição para fora do país”. E por fim repete a frase ecoada pelo ativismo das travestis na cidade: “quem vai chorar por nós?”. Nesse momento, a cerimonialista agradece a fala de Renata, e pede desculpas por ter dito “o travesti” ao invés de ter usado o artigo no feminino para se referir as travestis. Todos batem palmas e repetem “é isso mesmo”, “muito bem”, “ah, agora sim”, aceitando o reconhecimento da mestra de cerimônias. A vez de falar de Januário, ativista da Atransce, tão esperada por nós finalmente chega, que logo aponta sua felicidade de estar ali: Hoje é um dia muito feliz pra gente porque esse momento foi muito esperado e houve muita luta pra que nós pudéssemos estar aqui reivindicando o que nos é de direito. Existe uma Portaria que foi aprovada há 9 anos que garante o Ambulatório Transexualizador, que em vários outros estados já existem implantados e desenvolvem esse trabalho. E que o nosso estado não tem, ainda. E [...] você comparando.... Porque existem outros estados que têm uma população trans muito, muito menor que do que a do nosso estado, e que simplesmente tem todo um aparato pra essas pessoas, para os homens e mulheres trans, e as travestis (Januário, 23 anos). Já tendo ouvido os médicos e secretário de saúde falar sobre o projeto de implantação do serviço e da crítica que se levantou sobre o problema de o local ser o Hospital Mental, Januário relata que os transexuais já sofrem preconceito e que transexualidade não é um distúrbio: Então, representando aqui os meninos, que junto com as mulheres também lutaram bastante pra que esse dia pudesse chegar. Falando um pouco dessa questão do Hospital Mental. Eu acho que vocês entendem um pouco, devem entender, ou procurar abrir o coração pra entender que nós somos marginalizados diariamente, massacrados pelo preconceito de toda uma sociedade que tem uma cultura preconceituosa e culturalmente imposto. E quando a gente fala “não queremos estar no hospital mental” é porque nós já somos taxados como pessoas loucas, como Renata já relatou [...]. Quando você chega numa UBS, pra passar pelo clínico geral... O clínico, na maioria das vezes, olha pra sua cara e diz que “isso não existe”, que “isso é coisa da sua cabeça”. Ou, quando é encaminhado é pra ser tratado como tendo um distúrbio mental. E não é, transexualidade não é isso [...]. Ser implantado no hospital mental vai criar uma certa, tipo uma aversão a isso nas pessoas (Januário, 23 anos). Assim, a associação com a loucura será algo que reforçará o sofrimento que já vivenciam. E, apesar das outras pessoas que não são trans acharem em sua parte que não seria necessário ter um serviço de saúde específico para transexuais, Januário reforça o argumento de que ter direitos segue a particularidade humana que, como tal, também se repete na transexualidade: 253 O que nós precisamos é ser tratados como humanos. Ser tratados de forma humanizada. Eu não quero ser diferente, eu não quero ser tratado melhor que uma pessoa cis. Porque algumas pessoas acham que pra nós termos os nossos direitos, os direitos das outras pessoas têm que ser afetados. Porque quando a gente vai pra conversar com a população, que alguém vai e relata assim: “mas não tem saúde nem pra gente, porque vocês querem uma coisa só pra vocês?”. Então, não é, não é que nós queremos algo só pra nós. Todo humano é, existe a sua particularidade, entendeu? É isso que a gente quer, nós não queremos ser melhores do que ninguém. Nós não merecemos ter algo “só pra você”, que “vai só beneficiar você”. Não, nós fazemos parte da sociedade. As pessoas não conseguem entender e ver que se eu for pra uma UBS, se eu for pra um posto, simplesmente se eu tiver gripado, se eu tiver um resfriado, eu não vou ser tratado da mesma forma dela. Eu vou ser desrespeitado, porque a primeira coisa que eu vou fazer é apresentar meu cartão do SUS, e a primeira coisa que eu vou ouvir: “isso não existe” (Januário, 23 anos). Os episódios que Januário viveu nos postos de saúde da Atenção Primária são compartilhados por todos os seus amigos e colegas homens trans. “Se você já é hormonizado, e você vai pra uma sala de espera; tá lá o sujeito todo barbudo, e aí aparece lá o nome no telão “fulaninha de tal de tal”, cheio de gente, aí você se levanta lá e o pessoal já começa a te olhar, tipo: ‘que que isso, que diab’é isso!?’, entendeu? Já começa o desrespeito ali”. Os tratamentos que podem ser considerados insignificantes são, portanto, potentes para gerar sofrimento. O nome de acordo com a identidade de gênero, e o uso dos pronomes certos são tão importantes quanto a consulta com o médico para que o paciente procurou o serviço. Então, nenhuma organização de serviço pode acontecer sem que a equipe de profissionais seja devidamente preparada, como propõe Januário. Assim, ele só considera que passará a “existir” quando houver o Ambulatório do Processo Transexualizador na sua cidade. “Eu acho que os transexuais do estado do Ceará eles simplesmente não existem ainda. A partir da inauguração que, do começo desse Ambulatório, que ele comece realmente a funcionar e atender a demanda, é que nós vamos poder dizer que, ‘sim, nós nascemos, nós existimos’”. Assim, a sua percepção da existência está atrelada ao alcance do serviço público de saúde, é a via para seus direitos. Sem o ambulatório há o risco de saúde, e mais importante, um risco de vida para aqueles que não tem o devido acompanhamento médico: Tem pessoas trans que estão morrendo, tem pessoas trans que estão doentes. [...]. Do movimento dos homens trans nós temos uma pessoa, um menino, que se hormoniza de forma clandestina, sem acompanhamento, que hoje está com câncer. E isso é culpa de quem? É culpa do Estado que não nos deu um aparato. Assim, quando eu falo culpa do Estado porque eu sei, eu acompanhei o processo dele, ele bateu várias vezes no hospital; houve um engano por conta do seu nome social, por conta da sua aparência e do seu nome civil, e ele foi atrás de tratamento e não conseguiu, e hoje essa pessoa tá passando por uma barra. Nós não queremos as pessoas tomando algo que não seja a quantidade certa, que vai futuramente prejudicar sua saúde física e mental. Então, pra finalizar [...]. Espero que realmente o Ambulatório seja implantado, que funcione de forma que vá nos amparar, e que nos faça nascer pra toda uma sociedade (Januário, 23 anos). 254 Januário finaliza seu discurso e outros representantes de instituições e organizações seguem “com a palavra”. Reforça-se, assim, a perspectiva de que há direitos que são negados por não existir um serviço específico para a transição de gênero e por não haver uma capilaridade no sistema de saúde que garanta o acesso aos serviços que já existem para toda a população. A vida só poderia ser vivida se alguém tem acesso a sua particularidade humana. E uma forma de atingir isso seria se fosse garantida a mediação médica da transição. Outros falantes da mesa do Ministério Público, da Defensoria Geral da União (DPU), vereadora e deputado estadual e coordenadores de políticas LGBT locais seguem em uníssono. A grande questão está no direito negado. O direito a ter à disposição um cuidado em saúde que não patologize, que não repita o sofrimento que vivem na rua. É por essa via, sem deixar de fora o porquê se detém direitos ao Ambulatório, que homens trans, travestis e mulheres trans irão na próxima etapa da Audiência desconsiderar o tempo máximo de fala da “plateia”. Agora dão lugar a um motim para expressar suas opiniões, suas experiências e suas dores. Ato III Havia o receio, naquela manhã, de que a Policlínica anunciada como destino futuro do Ambulatório nunca fosse construída, e que o Hospital de Messejana seria como uma eterna forma de prisão, de afastamento da normalidade por estar associada à saúde mental. Num dado momento o representante da secretaria de saúde voltaria para os ativistas para dizer que o Hospital de Messejana foi o único serviço da cidade que concordou em implantar o Ambulatório, portanto, não há outro lugar. E que, além disso, é o serviço com maior experiência médica e vontade de atuar na área. O debate que corre agora entre os pacientes e ativistas é se deveriam ou não aceitar. Se não aceitarem Messejana, o serviço não irá sair agora, e para alguns, não se pode esperar, já para outros seria melhor ter um lugar ideal ou não ter nenhum. A discordância ecoa no ambiente, e os ânimos se afloram. Sucessivos ativistas vão à tribuna para mostrar que devem ir ao Ambulatório na forma como se tem ofertado pela Secretaria porque assim se terá garantias de direitos. “Não estamos recebendo favores, isso aqui é garantia de direitos”, diria Silvinha, travesti militante. Quando chega a vez de Sílvio Lúcio, 53 anos – já mencionado –, ele toma o microfone e extrapola o tempo de dois minutos dado pela mediadora da mesa, quebrando assim o protocolo. Ao redor vejo rostos surpresos e alguns horrorizados. Outros batem palmas para a iniciativa e demoram a parar para ouvi-lo: Doutora, me permita, eu não aceito dois minutos, sabe por quê? Nós passamos trinta e cinco anos na militância pra um dia chegar aqui e dizer pra senhora o que nós desejamos e esperamos [...]. Nós ouvimos doze pessoas aí que tiveram os minutos que quiseram para falar e para dizer o que vão fazer, e a senhora me dá dois minutos para eu dizer como eu preciso e desejo ser atendido? É um desrespeito! (Sílvio Lúcio, 53 anos). 255 Nesse momento, boa parte do que Sílvio fala se tornou inaudível de onde eu estava sentado, dados os aplausos e aos gritos de euforia que tomam o auditório. Quando a mediadora diz que precisa fazer o trabalho chato, ele continua para afirmar que precisa falar. O silêncio retorna: Bom dia a todos, bom dia a todas. Nós estamos aqui hoje. Eu me chamo Sílvio Lúcio, homem trans, 35 anos de militância. O primeiro homem do estado do Ceará que ousou dizer “eu sou homem”, Doutor. O primeiro homem no Brasil que se candidatou a vereador com o nome de Sílvio Lúcio. O primeiro homem trans que foi a São Paulo como um louco para procurar outro homem trans para dizer como é que eu escondia os meus peitos. Eu sou Sílvio Lúcio, o homem que teria a coragem de ir a televisão e dizer “eu sou homem”, e no outro dia eu ser chamado de louco na rua, e no outro dia minha esposa ser apontada, e no outro dia a família dizer, “não nos procure mais porque nós temos vergonha de você”. [...]. Todos vocês aqui eu me emociono. Nós somos Dandara. [...]. Nós somos jogados de uma ponte todas as noites. [...]. Em todo o Brasil está acontecendo um retrocesso de nossos direitos adquiridos! E nós hoje estamos aqui para receber um Ambulatório TT. Não importa onde ele seja, ele podia ser nos fundos do quintal da minha casa, tá certo!? [...]. Eu vou estar lá, eu vou estar lá, e quero ser recebido como Sílvio Lúcio! [...]. Não importa, Doutora, se me chamem de louco porque eu vou ao Hospital de Messejana, eu só quero que no Ambulatório eu seja reconhecido como Sílvio Lúcio [...], atendido humanizadoramente (Sílvio Lúcio, 53 anos). O discurso de Sílvio Lúcio se prolonga ainda longamente, demarcando que não é doente por ser transexual, nem que deseja receber favor de médicos, mas que precisa e tem o direito a um Ambulatório que tenha serviços de forma eficiente. Quando descreve a vida difícil de sofrimento das pessoas trans e travestis, concorda com outra falante trans anterior de que “nós somos oriundos das sombras da noite”. Mas, acrescenta a diferença entre elas, travestis e mulheres trans, e os homens trans: Mas para nós homens trans nem a noite sobra, nem o dia tem o sol porque nós.... Nós não servimos nem pra prostituição, tá certo?! Muitos de nós não se enquadram no perfil de cabeleireiro, o que sobrou pra nós? As escolas não nos cabem porque os professores não nos respeitam, porque o professor é da Universal, outro é evangélico, outro é católico. Como diz uma vereadora em Maracanaú esses dias [...], “Sílvio, eu não posso votar contra meus princípios”. Que princípios, porra, eu sou um ser humano!? Deveria ter princípios para não me violentar! (Sílvio Lúcio, 53 anos). Sílvio finaliza sua oratória pedindo desculpas por ter ultrapassado o tempo, mas se justifica dizendo que é muito difícil ser trans, que é muito difícil dizer a sua esposa para ter paciência que conseguirão adotar um filho, que é muito difícil ser abordado como “ela” todos os dias mesmo por pessoas que o conhecem há mais de quinze anos. Esse foi um momento de desabafo. Outros presentes também falam posteriormente, mas se acorda em voltar a delimitar o tempo de cada um. O que os discursos de todos têm em comum é quanto à urgência da implantação do Ambulatório do Processo Transexualizador em Fortaleza, no Ceará, de que sem isso travestis e transexuais não terão os mesmos direitos nem a mesma livre circulação e uma vida livre como outros cidadãos que não são trans. Evidentemente que a questão do nome social também foi forte, mas ela esteve 256 atrelada ao cuidado em saúde principalmente para a transição de gênero acontecer com segurança. Contudo, uma voz no final da Audiência questionou a presença do serviço num hospital de saúde mental mais uma vez, e inferiu ser preciso esperar para que seja implantado na futura Policlínica. Que se preciso fosse, seria melhor esperar dez anos pelo melhor lugar. Diante disso, vários ativistas e pacientes começam a dizer a idade e quanto terão se for preciso esperar dez anos a mais. “Eu tenho 53 anos, vou ter 63”, “eu terei 44”, “eu terei 40”. “Não podemos esperar”! O representante da secretaria de saúde levanta, então, o questionamento de se realmente querem o Ambulatório em Messejana porque o Governo irá reformar o prédio, contratar equipe, e que é preciso ter cuidado com o dinheiro público. Nesse momento, todos voltam a falar ao mesmo tempo até que a voz da maioria prefere o ambulatório para logo. Sem a transição, sem a segurança médica que almejam, não podem viver em segurança no dia a dia na rua. Com o adiantado da hora, já passam das 13 horas da tarde, todos ainda sem almoço, a fome apertando, então decidem partir para a leitura e aprovação dos encaminhamentos do que foi discutido. Decide- se, portanto, pela construção do ambulatório em Messejana porque não se pode esperar para viver. *** A ideia de antiguidade da militância funciona como instrumento de legitimidade, como vemos nos discursos de Sílvio, de modo que no caso dos transexuais isso seria mais recente e a violência mais forte. E só agora esses ativistas teriam saído totalmente do que chamam das sombras. Agora há destemor para lutar às claras, sem vergonha. E a isso atribui também a determinação de ativistas jovens aos quais cita os nomes e agradece por não deixarem a “luta” morrer. A Audiência, portanto, não é o início desse ativismo com vistas a constituição de um serviço dentro do SUS. Foi um longo percurso até ali, embora também não tenha sido o final dessa história de engajamento diante do Estado-nação brasileiro. Contudo, esse evento demarcou um importante momento para a história do movimento social tanto para os direitos desse grupo social, como de um movimento em torno do SUS. Essa junção se dá pela centralidade que o Ambulatório ocupou nos agenciamentos políticos e sociais dos homens trans, de tal modo que isso fez e faz parte, mesmo na sua ausência – e talvez mais por isso – da sua constituição subjetiva. O principal argumento que ronda todas as falas dos militantes e/ou pacientes trans é a de que o sofrimento vivido se deve à falta de cuidado em saúde apropriado. Sem o acompanhamento médico não é possível transicionar em segurança, um discurso mais forte entre homens trans do que entre travestis e mulheres trans. Essa segurança tem a ver com o corpo biológico, com a ausência ou diminuição de riscos, de tal modo que se faz refletir no convívio social de um indivíduo diminuído em sua subjetividade por causa do corpo em sua materialidade. Nesse campo, o corpo natural (biologicamente pré-dado) 257 não é visto como avesso aos aprimoramentos, construção ou correções biotecnológicas, nem mesmo está em contrariedade com o argumento que estabelece haver uma diversidade humana que pressupõe a defesa da transexualidade como uma dessas variações. A audiência ofereceu naquele momento uma esperança que se demonstrou governar à espera dos ativistas meses após o prometido para sua abertura. Assim, sua importância não está apenas na exposição ou expressão dos campos de força atuantes na região. Como mostrarei a seguir, embora não tenham sido os únicos em si, alguns caminhos trilhados pelos ativistas homens trans foram decisivos para que a Audiência se tornasse possível, e para que o Governo estadual se prontificasse com o compromisso de instituir o serviço. Ao entender como funciona a linguagem estatal, homens trans de diferentes idades necessitaram inserir-se nela para serem ouvidos e para que qualquer demanda fosse entendida como justa e necessária. Antes de discutir se os encaminhamentos da Audiência foram ou não acatados e quais as suas reverberações, de modo a entender como andou a criação efetiva do Ambulatório cabe descrever como homens trans se conformaram como sujeitos e, portanto, como população que deve ser gerida pelo Estado para que a Audiência se tornasse uma possibilidade concreta. Adoto a estratégia de escrita de voltar agora às situações e experiências anteriores a esse evento que acabo de descrever para, então, retornar aos engajamentos que foram posteriores. 5.3. Os caminhos da biopolítica Meses antes da Audiência acontecer eu acompanhava Kaio numa de suas idas à Defensoria estadual. A judicialização foi uma via poderosa encontrada por ele e outros ativistas trans não apenas para impulsionarem ações coletivas, mas também para conseguirem efetivar procedimentos e acessos a medicamentos para si próprios, bem como para procurar resolver conflitos cotidianos. Eu estava na sua casa, onde ele me recebeu de braços abertos, para que eu pudesse acompanhá-lo para realizar a pesquisa de campo. Acordamos cedo nesse dia, nem tomamos café, e saímos logo para pegar um ônibus na calçada do IFCE, na central Avenida 13 de Maio. O bairro ao qual nos dirigíamos era distante; pegamos um ônibus lotado e vamos em pé todo o percurso. Enquanto tentávamos nos equilibrar o telefone de Kaio toca e a defensora estadual o avisa que ele deveria procurar a Defensoria da União, que seria onde ele poderia judicializar algo contra a União. A ligação foi bem vista por ele já que estávamos ainda distantes do nosso destino original, descemos e chamamos um carro por aplicativo. Agora noutro ponto da cidade, chegamos na Defensoria da União, mas, mesmo a defensora não podendo nos atender, ela desce até a recepção para uma conversa rápida, e explica a Kaio diante de seu pedido de processar judicialmente uma instância federal por estar sofrendo preconceito por ser um homem trans, que a DPU apenas trataria de 258 demandas coletivas, isto é, com reverberação coletiva. Saímos de lá de ônibus em direção ao centro, para que ele fosse trabalhar. No caminho vamos conversando ainda sobre a luta pelo Ambulatório. Ele, então, faz uma analogia paternalista explicando que o Estado não cuida, e é como um pai, e as defensorias cuidam e ajudam, e, portanto, seriam como mães. Nessa imagem familiar, a mãe obriga o pai a conceder aquilo de que se necessita. O que cabe reter dessa explicação não é nenhum suposto caráter psicanalítico, mas como o conflito com o Estado é visto de maneira diluída, no qual as instâncias estatais ora se dividem, ora se coadunam num mesmo sistema no qual formas de opressão, concessão e companheirismo se materializam nada feitas a ideias simplistas. Nessa interação é preciso entender a linguagem estatal e como se movimentar dentro das instituições, e quando essa ou aquela administração se torna “o Estado”. E, Kaio demonstra um domínio cirúrgico da legislação vigente e entende, como nenhum outro interlocutor que conheci, o que é necessário fazer para se ter acesso aos mecanismos que precisa para concretizar sua transição de gênero. De volta à sua casa, conversamos ainda sobre como ele teve que manejar com outros ativistas uma pesquisa no intuito de demonstrar aos defensores públicos o quanto de pessoas existiriam em Fortaleza, o quão grande seria essa população e quais suas recorrências no campo da saúde. É baseando-se no argumento populacional, de um problema que atinge a muitos e não apenas a um indivíduo, que Januário critica o governo estadual dizendo que estados com “população menor” já teriam ambulatórios, ao contrário de Fortaleza com um alto contingente. É a noção que movimenta todos os ativistas em seus reclames. Na verdade, essa ideia também circulava entre os médicos que cheguei a entrevistar. Tamanha foi minha surpresa quando fui contatado, via e-mail, por um médico de Fortaleza que desejaria falar comigo sobre transexualidade. Um de seus alunos havia procurado publicações de alguma natureza que fizessem alusão a hormonização de homens trans, foi quem intermediou o contato e, posteriormente, me passou para conversar pela internet com ele para marcarmos uma visita em seu consultório. Não pensei muito e achei a procura algo importante para a pesquisa também, seria um momento de falar sobre a pesquisa. Uma pergunta que ele me fizera em seu consultório me pareceu marcante. Ele queria me ouvir, saber o que eu sabia, se eu poderia informar quantos homens trans haveria na cidade: “qual é a população?”. Eu estava no início da pesquisa, e, portanto, pouco ou nada sabia nesse sentido, nem agora é possível inferir uma quantidade exata porque não há meios para realizar essa conta. Mas trocamos o que sabíamos sobre o cenário local de procura por cuidado em saúde. Aliando-se isso as atividades dos ativistas de gerarem um quadro populacional para servir em suas próprias ações coletivas, passei a observar como a inteligibilidade estatal de suas demandas perpassava integralmente a condição de se erigir como uma população, e como tal possui 259 recorrências estatísticas no seu modo de vida, e na sua condição em saúde, e que desemboca na qualidade e no acesso de direitos. Para tanto, um questionário a ser disponibilizado na internet foi redigido e liberado para que travestis, homens e mulheres trans pudessem respondê-lo; o objetivo visível ao respondente dizia: “Objetivo: Mapear Travestis, Mulheres trans e Homens trans do Ceará, levar os dados colhidos para a Defensoria Pública da União. Por favor, responda ao questionário que será entregue em abril de 2017”. Num total de quinze perguntas, o formulário partia do nome, identidade social, cidade de moradia, e aquelas concernentes aos procedimentos realizados ou não no âmbito das cirurgias e de atendimentos clínicos em endocrinologia, fonoaudiologia, e ainda o psicológico, urológico, ginecológico, e formas de hormonização. Percebe-se que a ideia é de gerar um mapa da cidade através do mapa dos seus cidadãos específicos separados em um grupo social que pode ser contado em todas as características que importavam. Com autorização dos interlocutores reproduzo abaixo gráficos com as estatísticas as quais esses formulários chegaram, bem como as categorias presentes nas 114 respostas – das quais 79 vieram de homens trans – ao chamado da Atransce, entre fevereiro e abril de 2017. Isso nos ajuda a entender o que os ativistas trans recobrem para gerar um quadro de que existem como uma população, e como tentam replicar uma técnica de governo – a pesquisa censitária – para se tornarem visíveis e para alcançar o olhar dos burocratas e dos políticos. Embora majoritariamente da capital do estado, o formulário contou ainda com interlocutores moradores das cidades cearenses de Crato, Acopiara, Sobral, Pacajus, Maracanaú, Irauçuba, Quixeramobim, Iguatu, Caucaia, Aracati, Capistrano, Maranguape e Juazeiro do Norte. No âmbito identitário, o “Sou” demarcava a pergunta e três respostas bem definidas (Homem trans, mulher trans, travesti) e um espaço para outro (Figura 13)190. Entre os respondentes apenas 16 pessoas tiveram algum contato ou mantém consultas regulares com médicos ginecologistas. Dos médicos que estariam sem consultas periódicas, o endocrinologista é o principal profissional erigido pelas respostas, de modo que tudo esteve colocado em termos de ter um “acompanhamento” para poder iniciar a hormonização ou terapia hormonal – as categorias mudam –, como chamam, em segurança ou “legalmente” para denotar que a testosterona sintética no caso dos homens trans é regulada e controlada com receitas que são retidas pelo Ministério da Saúde, mas que, de todo modo alcança-se a ideia de acompanhamento 190 Enquanto eu revisava esse capítulo a Atransce divulgava uma nova pesquisa de aspecto censitário focada na saúde de “homens trans e transmasculinos”. Com um formulário longo e ainda melhor articulado, se pretende agora alcançar o Brasil inteiro numa associação da organização cearense com outras de outras partes do país. Chamado de "Mapeamento da saúde dos homens trans/transmasculinos demandas, cuidados, prevenções, atendimentos, saúde menta e HIV/AIDS no SUS", conta com a participação da Rede de Pessoas Trans e Travestis Vivendo com HIV/AIDS (RNTTHP), Fórum Nacional de Travestis e Transexuais Negros e Negras (Fonatrans) e a Rede Distrital Trans e apresentava o seguinte objetivo: “Este mapeamento tem como objetivo apresentar e discutir as necessidades e demandas de saúde de homens trans/transmasculinos, bem como as prevenções e cuidados relacionados ao HIV/AIDS/ISTs em busca de garantias de acesso e promoções de ações para cuidados integrais de sua saúde no Sistema Único de Saúde (SUS)”. 260 médico com saúde ou de transição com saúde. Quanto ao tempo de administração de hormônios por homens trans, especificamente, há uma variação entre dois meses a dezoito anos, e impera o uso “sem acompanhamento” (80%), indiscriminado, como relatam, de modo que 53,6% já se hormoniza, contra 46,4% que não. Adiante descrevem as práticas corporais em torno da testosterona sintética, e os números seguem majoritariamente os produtos que coincidentemente são mais baratos do mercado, de maior facilidade de venda e de potência hormonal acrescida devido a maior quantidade de ésteres presentes191. Figura 13 - Gráfico “Sou” Outro Sou Travesti (Não 3% Binário) 1% Mulher trans 23% Homem trans 73% Fonte: Atransce. Ainda sobre cirurgias realizadas contam apenas duas “mamoplastias masculinizadoras” e três “próteses mamárias”, contra todo o resto que ainda não realizou nenhum procedimento cirúrgico requerido para transição de gênero, embora todos e todas tenham respondido desejar realizar “redesignação” sexual e “próteses mamárias” (no caso das mulheres) e “mastectomia” (no caso dos homens). Uma mulher trans foi mais específica ainda e listou cirurgias de “feminilização facial (avanço da linha do cabelo, frontoplastia, blefaroplastia, recontorno mandibular, redução das linhas de expressão, redução do pomo de adão)”, além de próteses mamárias. A desigualdade de perspectiva desses procedimentos entre homens e mulheres responde também ao desenvolvimento biotecnológico das técnicas presentes na abordagem biomédica, o que, como já vimos no capítulo 2, está diretamente relacionado aos lugares que esses sujeitos ocupam social e culturalmente. Um outro formulário também criado pelos ativistas da Atransce percorria outro tema, o da violência contra pessoas trans, obtendo bem menos respostas (30 no total). Quase todos e todas relataram violência física por parte dos familiares, enquanto uma parcela menor adveio de estranhos na rua. Um dos homens trans respondeu o seguinte quando uma pergunta inquiria sobre abordagem policial: “Sim. Foi uma tortura psicológica muito grande. Eles me abordaram como se eu fosse um vagabundo, já foram logo colocando a arma e pegando em mim, perceberam a faixa 191 Um éster pode ser entendido como uma unidade de medida de substrato sintético hormonal. Abordarei adiante as práticas corporais, as estratégias políticas e as relações sociais que circundam e produzem os usos da testosterona sintética e de origem orgânica pelos homens trans. 261 [bainder que comprime as mamas] e que eu não tinha volume foram logo perguntando que porra era aquela e me xingando dizendo que eu era um vagabundo que ia fazer coisas ruins e eu sem conseguir falar”. Já outro, escreveu: “Sim, eles riram e mandaram eu tomar jeito”. Noutra ocasião, o policial teria liberado outro rapaz por ter percebido um “sexo feminino”. “Sim. O policial ficou bastante constrangido e com certo medo, porque quando viu a identidade ele percebeu que eu era do sexo feminino e que poderia dar queixa e me deixou ir”. Os relatos de violência seguem ainda que 15 homens trans descreveram que sofreram algum tipo de assédio sexual ou estupro por estranhos ou membros da família. Assim, tais formulários procuraram criar uma perspectiva do que é a vida quando não se tem um cuidado em saúde garantido, principalmente no que tange à transição de gênero que se tem se tornado, por falta de “acompanhamento com saúde” uma condição de saúde e um direito humano para os interlocutores, isto é, se já tivessem acesso a uma cirurgia de mamoplastia, os rapazes anônimos do formulário não teriam sido abordados da maneira que foram pelos policiais, ora atribuídos a um lugar de mulher, ora a de um potencial fora da lei. A carga moral de ambas as figuras potenciais é potente, e demonstra que a violência da rua é também uma consequência da falta de cuidado em saúde que deveria ser garantido pelo Estado. Não é o caso, contudo, de tomar as respostas a esses questionários como um retrato da “população trans” de Fortaleza, sua exatidão estatística ou sua qualidade de survey não está aqui sendo inferida, comprovada ou contestada porque seu valor recai noutra coisa. Assim, numa linguagem estatística, importa menos querer saber se tais dados possuem “ruídos”, ou qual parte é “não-relevante”, ou ainda qual seria em si a média ponderada, a mediana ou a moda dos números, a frequência absoluta ou relativa das repostas, ou ainda se os criadores conseguiram delimitar variáveis. Tais estatísticas demonstram a preocupação dos ativistas em relatarem um cenário de abandono do “poder público”, e da “vulnerabilidade” de um grupo social numa linguagem reconhecida, a dos números. Tem-se o uso político da estatística e de uma espécie de tentativa de censo. O sofrimento necessitava ser quantificado. E, mais importante do que ser um “grupo” é ser uma “população”. Foi a segunda dessas figuras que se procurou desenhar com tais formulários, discursos e demais ações coletivas. Os homens trans descobriram, mais tardiamente que outros nichos, que eles precisariam ser constituídos como população para alcançar de fato a existência enquanto pessoas específicas que têm direitos específicos. O sofrimento deles poderia ser traduzível para os números, de alguma maneira. Isso porque essa população tem recorrências que deveriam ser explicitadas, padrões que deveriam ser tornados óbvios, definições que deveriam ser claras e diretas, corpos que necessitariam se tornar visíveis, e uma diferença que, como tal, precisaria ser descrita em comparação com os outros. Em suma, sua definição deveria atingir a ciência da inteligibilidade estatal, procurando replicá-la, moldar-se às suas lógicas internas no tratamento e 262 concepção de seu objeto de engajamento: a população como um conjunto de seres humanos que estão vivos. E os formulários da Atransce diziam: “vejam, nós estamos vivos como uma população, e se o Estado-nação não se preocupar conosco estaremos condenados a parar a vida”. Assim, eles desejam sair do polo de risco de suas mortes para a gerência de suas vidas. *** O caso dos homens, e das pessoas trans em geral, no engajamento para a constituição de serviços de saúde afirmativos – bem como os de fundo de geração de diagnóstico – se inscreve no âmbito do encontro entre os conceitos de vida e de política. Um sem número de tentativas acadêmicas tem se erigido no anseio de dar conta teoricamente dessa particular reunião ou relação. Isso porque nosso tempo presente tem lidado, na terra brasileira e na conexão global, com crises, atores e processos desencadeados pela interferência e debates acalorados sobre questões das mais variáveis como a idade para se aposentar, cuidado em saúde, vigilância eletrônica em massa, imigração, segurança, novas e assustadoras pandemias e epidemias, bem como o continuado desenvolvimento de novas tecnologias que têm a capacidade de mudar e gerar conhecimento em diferentes níveis sobre os corpos. Os exemplos seguem segundo demonstram diversas pesquisas socioantropológicas, como a problemática da distribuição de medicamentos no caso do HIV/Aids, a fome, a associação entre a ideia de raça, hábitos alimentares e novas doenças de contaminação em massa, aborto, reprodução, o efeito climático da nossa relação com a natureza e a consequente potencialidade de não sobrevivência da espécie humana, os testes de compatibilidade familiar e ancestral através do DNA e o critério biológico associado ao reconhecimento de cidadania por Estados, os revigorados pânicos sexuais, a luta de grupos pelo reconhecimento de suas condições de saúde ou adoecimentos, o racismo estatal, a instituição das políticas públicas enquanto políticas religiosas, as ansiedades em torno da superpopulação mundial. A lista talvez seja infinita. A vida, assim, nunca esteve tanto no centro do poder de forma tão generalizada. E isso tem dado a forma como governos e instituições se transformam, e a violência se espraia. Isso não significa consenso entre as ciências sobre como abordar a vida. Discorrendo desde a definição dada por Georges Canguilhem, para quem qualquer coisa que detivesse uma história, que contivesse um nascimento e uma morte estaria viva, Didier Fassin (2017, p. 14) demonstra que os filósofos desde Aristóteles tentaram conciliar um dualismo da vida: “conhecimento e experiência, biologia e história” – claramente remetendo às formulações de Foucault. Essas duas dimensões fariam da vida uma entidade a partir da sua forma material e da indeterminação do seu curso. Nesse primeiro aspecto tem-se os seres humanos numa vasta comunidade de seres viventes junto a plantas e animais, e no outro, como seres viventes excepcionais por decorrência da 263 capacidade de consciência e linguagem. Nas últimas décadas, porém, o autor aponta para um recrudescimento dessa dupla face desenhada de modo irreconciliável. No seu senso biológico, o estudo dos seres vivos mudou em escala e perspectiva, da mecânica quântica para o nível molecular da biologia. “A descoberta da hélice dupla do DNA [...] constituiu a fundação de uma nova concepção da vida, agora baseada na informação e na sua replicação” (p. 14). Nem mesmo a epigenética contemporânea, segundo Fassin, conseguiu desafiar o paradigma gerado pela decodificação do genoma humano que refinou as pesquisas que lhe foram anteriores sobre o DNA. Assim, tanto a biofísica como a bioquímica explicam a vida em termos de uma molecularização da “matéria vivente”: Em suma, na exploração da vida como um fenômeno biológico, a mudança da conjuntura para o experimento, do macroscópico para o microscópico, e dos corpos às moléculas, tem progressivamente reduzido o entendimento da vida a sua mais básica unidade material - a reunião de átomos –, enquanto que, simultaneamente, [tal explicação] se expande massivamente em tempo e espaço: seres humanos são, inclusive, dissolvidos numa rede espaço-temporal de componentes moleculares da vida surgida há bilhões de anos e que pode estar presentes em outras partes do universo (Fassin, 2017, p. 14, tradução minha). Do outro lado desse duplo, a vida é reconstituída como biografia, como história, não tão cumulativa quanto o sentido biológico. Tal instituição é traçada por Fassin desde os primeiros novelistas na literatura que criaram uma forma mais ou menos linear de desdobramento de eventos. Nas ciências sociais, por outro lado, “desde o início, ao longo dos desenvolvimentos importantes na teoria e na metodologia pelos fundadores da disciplina, a história de vida tem tido um papel central” (p. 15). Mas isso se intensificou com a “virada narrativa”, Fassin aponta; enquanto reação ao estruturalismo com a crítica feminista e os estudos pós-coloniais, o reconhecimento dos indivíduos, suas histórias e suas palavras tomaram a ordem do dia. Os subalternos não deveriam mais ser objeto de fala, mas os sujeitos com vozes próprias. Toda essa digressão realizada por Fassin empreende uma descrição das origens de duas linhas traçadas para abordar a vida. À primeira deu o nome de “naturalista” e à segunda de “humanista”. “As moléculas que indicam a presença da vida” e os indivíduos que contam os fatos de sua própria história demarcam duas perspectivas diferentes e, pode-se dizer, em combate entre si. Fassin se pergunta, portanto, se uma reconciliação entre tais dimensões seria imaginável ou desejável no âmbito de uma antropologia da vida. Tradicionalmente, mesmo lidando com as vidas dos “nativos”, seja de modo sincrônico ou diacrônico, estas eram o material para as análises de outros objetos: parentesco, mitos, práticas religiosas etc. “A vida em si era raramente vista como um objeto de conhecimento no mesmo nível que outras categorias”. Contudo, mais recentemente, a vida foi construída como objeto na antropologia oscilando entre a linha naturalista ou a 264 humanista. A forma mais aproximada de combinar as duas perspectivas têm sido, para o autor, a antropologia médica, “na qual a doença se situa no ponto de encontro entre biologia e biografia” (Fassin, 2017, p. 16). Após longas considerações de abordagens internas a antropologia, entre o fenomenológico – a vida teria um início e um fim num longo movimento –, o antológico – a vida a partir da representação que é feita de todos os seres viventes –, e o culturalista – a vida como concebida diferentemente em suas funcionalidades em cada localidade –, Fassin chega à conclusão de que “uma abordagem totalizante interessada em constituir uma antropologia da vida parece, assim, condenada a fracassar, ou ao menos, a abandonar o que nós poderíamos chamar de humanidade da vida – as dimensões moral, política, histórica e social das vidas humanas como elas emergem tanto da matéria viva como da existência vivida” (p. 17). Didier Fassin (2017, p. 13) está preocupado em analisar o que chama de “economia moral da vida”, ou talvez seja mais apropriado dizer, em como essa economia tem gerado desigualdades. Por essa economia ele entende, assim, “a produção, circulação, apropriação, e contestação de valores e afetos, em torno de um objeto, um problema, ou mais largamente, um fato social – nesse caso, a vida”, no modo como ela faz sentido e é dada num certo período de tempo resultando em vidas valorizadas e outras desvalorizadas. Um paradoxo engenhoso no governo da vida que estaríamos situados na contemporaneidade. Isso está associado aquilo que Michel Foucault demonstrou acerca tanto as ciências humanas como das ciências exatas/naturais, que se produzem no mesmo sistema do poder sobre a vida e sua instituição do indivíduo e de seu assujeitamento. O autor descreve como a conduta humana foi anexada à ciência. Havendo aí uma diferença entre sua descrição pela literatura e sua objetificação pelos saberes especializados. Em As palavras e as coisas, Foucault (1999a [1966]) estabelece uma análise aprofundada de como o homem se tornou objeto de conhecimento na modernidade, argumentando para os problemas da noção de sujeito. Mas, em seu curso, Em defesa da sociedade (1999b [1997]) ao se recapitular essa análise podemos ver que esses dois polos separados por Fassin detiveram, na verdade, o mesmo germe. O intuito de Foucault era demostrar que as ciências humanas não se desenvolveram como processo de racionalidade das ciências exatas. “[...] O processo que tornou fundamentalmente possível o discurso das ciências humanas foi a justaposição de dois mecanismos e de dois tipos de discursos absolutamente heterogêneos: de um lado, a organização do direito em torno da soberania, do outro, a mecânica das coerções exercidas pelas disciplinas” (Foucault, 1999b, p. 46). Assim, a vida como história e a vida como molécula, embora possam ter potenciais políticos diferenciados, se rotacionam no mesmo eixo. Por disciplina, Foucault (1988; 1999b; 2008a, 2008b) está se referido a uma forma de poder que se desenvolveu entre os séculos XVII e XVIII e se sobrepôs à antiga formulação do poder 265 baseada na ideia de soberania. Essa última dizia respeito a uma teoria do direito segundo a qual se justificava o soberano, o rei, deter o domínio sobre o território e sobre os súditos segundo sua vontade e sua lei. Assim, o poder soberano se exercitava através de uma dupla ação chamada pelo autor de “fazer morrer e deixar viver”. Mas isso acontece de forma limitada. Quando o soberano envia seus súditos à guerra ou quando os sentencia à morte o faz como justificativa de se proteger e de proteger sua lei. É uma forma indireta de dispor das vidas. O direito de vida e morte é condicionado à defesa do soberano e a sua sobrevivência enquanto tal. Assim, na idade clássica, o Ocidente muda os mecanismos de poder, e o “confisco” – de riquezas e das terras que antes eram o centro do poder – passa a ser apenas uma de suas formas. “Com isso, o direito de morte tenderá a se deslocar ou, pelo menos, a se apoiar nas exigências de um poder que gere a vida e a se ordenar em função de seus reclamos” (1988, p. 128). O corpo social, os corpos de todos, e não apenas o do soberano, passa a ser o alvo da proteção. Mas essa “proteção” não é aquela que geralmente se conjura, mas proteger para produzir. Ao poder disciplinar Foucault está relacionando todo um conjunto de disciplinas que visavam moldar os corpos dos seres humanos segundo tecnologias que serão desenvolvidas192 como a escola, a prisão, o lugar de produção, como a fábrica e o hospital. As disciplinas fazem com o corpo um exercício contínuo para aumentar suas capacidades, suas forças, aumentar também sua utilidade em prol do sistema econômico capitalista então nascente. A isso deu o nome de anátomo-política do corpo humano, uma vez que é ao corpo em sua produtividade e em sua capacidade física que se refere a reflexões em torno do aprendizado e da ordem da sociedade. Essa dimensão da mudança do poder é fundamental porque ela se integra junto de outra que já foi várias vezes aqui referida, a biopolítica ou o biopoder. Formar-se-ia mais tarde, na metade do século XVIII, e se centra no corpo não como anatomia, mas como o limite da espécie humana. Poderia ser dito que antes a política usa do corpo na sua superfície como uma máquina para, posteriormente, atravessá-lo, isto é, “no corpo transpassado pela mecânica do ser vivo e como suporte dos processos biológicos: a proliferação, os nascimentos e a mortalidade, o nível de saúde, a duração da vida, a longevidade, com todas as condições de que podem fazê-los variar; tais processos são assumidos mediante toda uma série de intervenções e controles reguladores: uma biopolítica da população” (Foucault, 1988, p. 131). Temos, assim, uma verdadeira relação de reciprocidade, de um lado o desempenho do corpo e do outro os processos da vida, levando-se a considerar que não é possível se referir à última sem observar a primeira porque ao mesmo tempo que as disciplinas do corpo são criadas, cria-se também a preocupação com elementos da vida 192 Não adentrarei no desenvolvimento histórico desse poder. É possível conferir Segurança, Território, População (2008a) e Nascimento da Biopolítica (2008b), nos quais Foucault demonstra mais pormenorizadamente esse poder sobre o corpo, o inserindo num quadro amplo do surgimento do liberalismo econômico. 266 humana em um ritmo observável como um conjunto de problemas, os quais se referem a natalidade, saúde pública, habitação, migração, longevidade, entre outros. Isso chega, segundo Foucault (1988, p. 131-2), à “sujeição dos corpos” e no “controle das populações” e dá-se início “a era do bio-poder”. “Sem a menor dúvida, [esse tipo de poder] foi elemento indispensável ao desenvolvimento do capitalismo, que só pôde ser garantido à custa da inserção controlada dos corpos no aparelho de produção e por meio de um ajustamento dos fenômenos de população aos processos econômicos” (Foucault, 1988, p. 132). Agora, o que antes era a prerrogativa do soberano de “fazer morrer e deixar viver” torna-se o contrário, e o Estado, no seu processo de tornar possível sua majoração do poder econômico coloca a vida no plano central, fazendo viver e deixando morrer os indivíduos eles mesmos produzidos pelo que geralmente se acha ser ao que se resiste, isto é, as pessoas seriam o ponto de resistência ao poder. Mas Foucault (1999b, p. 35) vai demonstrar que esse indivíduo é o produto do poder sobre a vida e sobre o corpo como máquina e não algo surgido fora dele para impedi-lo. Essa tecnologia é, portanto, de dupla face, ela produz o sujeito que assujeita, e faz com que esse mesmo sujeito se institua como tal por sua própria vontade. O biopoder e a anátomo-política – a disciplina do corpo e a regulação da população – são instrumentos da dominação da classe burguesa. E esse controle burguês atingiu e interveio em todos os níveis da vida humana em seus lados históricos e celulares. Esse tipo de poder não descarta, assim, o fazer morrer. Foucault demonstrou que várias contradições se materializam nesse cenário, como a pena de morte, a guerra (matar para viver). Assim, a morte, o matar, serve de ferramenta para fazer viver, mas fazer viver o contrário daquilo que se mata e que morre. Não apenas pela ação da figura do Estado e seus mecanismos de poder e disciplinamento; esse poder é generalizado, ele perfura o corpo social de tal maneira que ele não está nas mãos de uma pessoa específica, ele circula. Para entender o poder o autor levanta uma precaução de método e com isso o conceitua: Não tomar o poder como um fenômeno maciço e homogêneo – dominação de um indivíduo sobre os outros, de um grupo sobre os outros, de uma classe sobre as outras – ; ter bem em mente que o poder, exceto ao considera-lo de muito alto e de muito longe, não é algo que se partilhe entre aqueles que o têm e que o detêm exclusivamente, e aqueles que não o têm e que são submetidos a ele. O poder, acho eu, deve ser analisado como uma coisa que circula, ou melhor, como uma coisa que só funciona em cadeia [...]. O poder funciona. O poder se exerce em rede e, nessa rede, não só os indivíduos circulam, mas estão sempre em posição de ser submetidos a esse poder e também de exercê-lo. Jamais eles são o alvo inerte ou consentidor do poder, são sempre seus intermediários. Em ouras palavras, o poder transita pelos indivíduos, não se aplica a eles (Foucault, 1999b, p. 35). Isso lança um olhar claro sobre a continuação desse poder biológico e disciplinar entre os indivíduos, uns contra os outros, não de modo hobbesiano, mas no sentido de que a morte e o 267 assujeitamento não se dão apenas entre a população de um Estado em relação a de outro, se dá internamente. Mas isso não significa uma democratização do poder em sentido lato porque esses mecanismos de controle funcionam ao lado de mecanismos de exclusão, de uma aparelhagem de vigilância, da medicalização da sexualidade que geram o que Foucault chamou de “micromecânica do poder” (Foucault, 1999b, p. 38). Mas, se esse poder gera a ideia de população como algo tão importante assim, o que ela é? Elas são as estatísticas que as descrevem apenas? Que problemas são esses a partir dos quais se refere e é possível entendê-la? Ela não é simplesmente a totalidade de habitantes. A população aparece nas discussões de Foucault como um problema deduzido de outro problema, esse anterior em concretude, que diz respeito a preservação da série de indivíduos e de seu comportamento como membro dessa aglutinação estatística e recorrente de seres vivos. Em diferentes análises o autor dá exemplos, como a escassez de alimentos na Europa – que o autor analisa a partir das considerações de economistas (Foucault, 2008b, p. 40) – e as grandes pandemias, como a peste bubônica analisada quando de sua administração francesa que ocasionou, junto com outros contextos, o nascimento da medicina social (Foucault, 2012a). Contudo, a população não é uma noção totalmente nova, embora seja tão central para a biopolítica e como tal versão tenha surgido no século XVIII. Essa velha ideia é chamada de “negativa” porque se referia apenas a uma falta de membros súditos do soberano em caso de uma grande mortandade desencadeada por pandemias, fome, desastres climáticos ou guerras. Foucault explica a população da mesma maneira que explicou o poder soberano, sua definição estava posta naquilo que era seu contrário: população sendo observada quando havia uma depopulação, e a vida quando havia o morrer. Passa-se do “gênero humano” para a “espécie humana”, aí tem-se a transformação de onde departe o poder. Mas, com a mudança para o fazer viver vem também a mudança do tratamento dessa massa de indivíduos agrupados num todo articulado que se integra e que é influenciado pelas suas condições de subsistência. Dá-se lugar a noção de população em sua forma “positiva”: ela tem uma natureza própria sobre a qual o poder deve investir. Constitui-se, portanto, a criação da ideia de “naturalidade” da população dada por seu meio geográfico, seu meio de produção, seu conjunto de condutas. Ela “é um conjunto de elementos, no interior do qual podem-se notar constantes e regularidades até nos acidentes, no interior do qual pode-se identificar o universal do desejo produzindo regularmente o benefício de todos” (Foucault, 2008a, p. 98). E é por meio dessas variáveis que se pode modificá-la. Isso leva ainda a ser necessário assinalar que é a propósito da “arte de governar”, como explicou Foucault se tratar uma racionalidade de governo, uma governamentalidade, que se teria a população e se teria o homem como figura entronizadas pelas ciências humanas: 268 É a partir da constituição da população como correlato das técnicas de poder que pudemos ver abrir-se toda uma série de domínios de objetos para saberes possíveis. Em contrapartida, foi por que esses saberes recortavam sem cessar novos objetos que a população pode se constituir, se continuar, se manter como correlativo privilegiado dos modernos mecanismos de poder (Foucault, 2008a, p. 103). Então, temos assim duas séries apresentadas por Foucault: a série corpo-organismo- disciplina-instituição e a série população-processos biológicos-mecanismos de regulação-Estado. Isso porque o poder disciplinar e o poder biológico se dão em áreas distintas, embora não se possa perder de vista sua atuação simultânea. São duas “formas básicas” do poder sobre a vida. A “tecnologia disciplinar” orienta e controla o corpo individual, enquanto a “tecnologia de governo” que alça a população através de uma “tecnologia de segurança”, e que procura se direcionar às características de massa do “corpo social”, tem como alvo também suas condições de variação. O intuito é prevenir e compensar os perigos e riscos da sua existência como uma entidade biológica (Foucault, 2008a). Esse foco na população como objeto de engajamento da nova racionalidade de governo fará, por exemplo, Didier Fassin (2017) argumentar que o verdadeiro foco da biopolítica não é a vida, o que Foucault teria negligenciado ao discorrer sobre o seu conceito. Para isso, Fassin sugere o conceito de “políticas da vida”. O primeiro termo estaria ligado à população, e o segundo faria justiça aos elementos biológicos da vida tomados pelo poder. Evocando filósofos políticos como Hannah Arendt, Ferenc Fehér e Agnes Heller, o autor propõe explicar que o conceito de biopolítica não representaria apropriadamente a relação entre política e vida, e com isso não se ultrapassaria na análise nada além da população e da governamentalidade. A biopolítica estaria interessada em tecnologias empregadas, nas análises dos problemas e soluções cujo foco seria apenas a figura da população, tendo como direção certa a demografia e a epidemiologia para identificar prioridades de saúde e uma infraestrutura para intervir com maior eficácia. Já uma análise em termos de “política da vida”, para Fassin, olharia para “como o reconhecimento da vida como um bem supremo justifica a violação da soberania do Estado” (Fassin, 2017, p. 52-3, tradução minha). Fassin então sumariza sua proposta conceitual: “a biopolítica trata do enquadramento de governo dos seres humanos, enquanto a política da vida pertence a sua substância. Um está interessado nas técnicas e racionalidades da administração da população, enquanto a outra foca na diferenciação no tratamento das vidas e de seus sentidos em termos de valor desigual”. Isso se refere, segundo Paul Rabinow Nikolas Rose (2006) às transformações que a Biopolítica sofreu desde o século XX. Os autores demonstram que: As racionalidades, estratégias e tecnologias do biopoder mudaram ao longo do século XX, assim como a administração da saúde e da vida coletiva tornou-se um objetivo chave de Estados governamentalizados, e novas configurações da verdade, do poder e da subjetividade surgiram para dar suporte às racionalidades do bem-estar e da segurança, assim como aquelas de saúde e higiene [...]. No século XX, os Estados não apenas 269 desenvolveram ou apoiaram mecanismos de segurança, mas também acolheram, organizaram e racionalizaram os fios soltos da provisão médica, especificaram e regularam padrões de habitação, engajaram-se em campanhas de educação de saúde e coisas similares (Rabinow; Rose, 2006, p. 24). Mas o tempo presente não se resultou apenas de tais mudanças. Novas “formações coletivas” surgiram entre os séculos XX e XXI, acompanhadas de novos modos de individualização e ideias de autonomia aliadas a direitos à saúde, à vida, à liberdade, entre outros, que é crescentemente percebida nos termos corporais e vitais (Rabinow, 1996; Rose e Novas, 2005; Rose, 2001). Seguindo tais pesquisas, Rabinow e Rose (2006) concluem que essa face atual da biopolítica “opera de acordo com a lógica da vitalidade, não da mortalidade: apesar de seus circuitos de exclusão, deixar morrer não é fazer morrer”. Ou, como disse Fassin (2004), estamos na contemporaneidade diante de bio-lógicas. Assim, “podemos usar o termo biopolítica para abarcar todas as estratégias específicas e contestações sobre as problematizações da vitalidade humana coletiva, morbidade e mortalidade, sobre as formas de conhecimento, regimes de autoridade e práticas de intervenção que são desejáveis, legítimas e eficazes” (Rabinow e Rose, 2006, p. 24). Mas isso não significa uma saída dos conceitos foucaultianos. Os antropólogos propõem que o conceito de “biopoder” na atualidade deva incluir os elementos seguintes: 1) “discursos de verdade sobre o caráter vital dos seres humanos” – e isso não implica uma solidão para os argumentos biológicos, podendo eles se unirem a estilos outros como demográficos e sociológicos; 2) “estratégias de intervenção sobre a existência coletiva em nome da vida e da morte” – sejam populações “desterritorializadas” ou “coletividades emergentes”; e 3) “modos de subjetivação” – os indivíduos são levados a cuidar de si mesmos em nome da própria saúde ou vida, da família e/ou de alguma coletividade (Rabinow e Rose, 2006, p. 29). Juntos, esses três âmbitos levantados pelos autores continuam, portanto, a força analítica das constatações de Foucault. Assim, no campo da governamentalidade do Estado entra em ação o terreno do “social” – os “corpos não-estatais” como organizações, pesquisadores, médicos, feministas e todos os outros tipos de reformadores sociais –, fazendo com que esses organismos atuem no âmbito do biopoder. Isso provoca um processo que dá lugar ao surgimento de novos tipos de grupos de indivíduos, que, segundo Rabinow e Rose (2006, p. 36-7), definem suas cidadanias quanto se imbuem ao direito à vida, à saúde, e também à cura. É isso que fazem os ativistas e pacientes trans ao reclamarem para si um cuidado de saúde diferenciado, ao lado de outras garantias sociais de bem-estar. Outro elemento de sua reforma social – aliado dos outros já mencionados – se deu na eloquência política em torno do assassinato da travesti Dandara dos Santos, de 45 anos. Dandara, que até o seu terrível assassinato era praticamente desconhecida, tomou a cena política e social do ativismo de gays, lésbicas e pessoas trans primeiro no Ceará e depois a nível 270 nacional. Não me cabe analisar de maneira exaustiva os contornos sociológicos de sua morte, mas como ela adentrou nas vicissitudes da política. No dia 15 de fevereiro de 2017, Dandara foi torturada com diferentes formas de espancamento e posteriormente alvejada com tiros à queima roupa, tendo a ceifa de sua vida concluída com uma paulada que lhe causou traumatismo craniano. A violência letal de travestis, e de outras pessoas trans e homossexuais, é particularmente intensa e carregada de detalhes aterrorizantes no Brasil contemporâneo (Bento, 2014, 2016; Carrara e Vianna, 2006), de modo que sua questão é um grande tema do ativismo que se desenvolve no país193. Mas a morte de Dandara apresentou um elemento novo: tudo fora gravado com o auxílio de uma câmera de celular por um dos culpados194. Três dias após sua morte, um vídeo circularia largamente por toda a internet, sendo amplificada sua veiculação inclusive por ativistas. Redes sociais como Facebook, Twitter, e inclusive aplicativos de mensagens como o WhatsApp receberiam o compartilhamento em massa da filmagem da via crucis de Dandara. É possível observar a moça com uma camisa amarela na mão usada para limpar seu sangue, sentada numa área cimentada, pedindo para parar de apanhar. Estava em plena luz do dia, numa rua do bairro residencial Bom Jardim. A sua volta, além dos assassinos, outras pessoas presentes na rua testemunhavam o ocorrido e gritavam incitando a violência. Noutro vídeo, posteriormente em circulação, aparecem cinco homens a espancando junto da verbalização de insultos tentando fazê-la subir num carrinho de mão: “Suba, suba! Não vai subir, não?”. “Viado fêi”. “Sobe logo! A ‘mundiça’ tá de calcinha e tudo”. Tais vídeos atingiram ampla repercussão195 a ponto de chegaram a ser comentados pelo Governador do Ceará Camilo Santana (PT) e pelo Prefeito de Fortaleza Roberto Cláudio (PSB) que emitiram notas públicas acionando suas respectivas secretarias de segurança e direitos humanos. Diria o governador: “total empenho no sentido de identificar e punir cada um dos criminosos”196. A comoção continuava também através dos comentários de anônimos nas notícias dos jornais, uns criticavam a presença da matéria ao indicar haver temas mais importantes, e outros pediam a morte dos assassinos197. A isso se seguiram manifestações de 193 A Associação Nacional de Travestis e Transexuais, ANTRA, é uma das principais ONGs a realizar um trabalho de levantamento detalhado de cada morte por decorrência de preconceito de gênero e sexual, e lançam, anualmente, um relatório de assassinatos com fotos e informações sobre o crime e a vítima. Algo similar é realizado pelo Centro de Referência Janaína Dutra em Fortaleza, Ceará. Para conferir o último dossiê lançado pela ANTRA, referente a 2019, conferir: . 194 Ao todo foram seis suspeitos, sendo cinco menores de idade, todos homens, e foram levados a júri popular, e seguidamente considerados culpados durante julgamento no 1º Salão do Júri do Fórum Clóvis Beviláqua, em Fortaleza. As penas recebidas foram individualizadas, mas todos foram condenados. O julgamento teve início no dia 4 de março de 2018. Na época, os ativistas que acompanhei tentaram ocupar assentos durante o julgamento, mas havia poucos disponíveis. Quem não conseguiu entrar ficou do lado de fora segurando faixas de protesto e emitindo palavras de ordem. Algo bem visto pelos ativistas foi o enquadramento do caso como “preconceito, ódio e atordoamento”. Inclusive foram utilizadas durante o julgamento as palavras homofobia e transfobia. Os assentos foram de difícil acesso, e não consegui nenhum, nem tantos outros ativistas que também desejavam estar presentes. Para acompanhar a cobertura jornalística, cf. . Ver também O Povo, 10 mar. 2017. 195 Tribuna do Ceará, 5 mar. 2017. 196 Tribuna do Ceará, 4 mar. 2017. 197 Nexo Jornal, 14 fev. 2019. 271 protesto pedindo “justiça”, e que foram também noticiadas pelos jornais locais198. Inclusive, um livro de memórias biográficas chegou a ser escrito por uma amiga de Dandara e fora publicado recentemente199, fazendo coro a obra de arte que levou seu nome e que foi projetada por um artista brasileiro e exposta em Nova York200. O alcance foi generalizado. Mass isso não se deu simplesmente por causa da mídia, da gravação. Os ativistas fizeram desse evento um fato, a prova de suas reivindicações. Durante o campo pude observar tais articulações, de modo que isso foi incluído em suas demandas por saúde: o fato que tais assassinos fossem julgados e presos. Além de Dandara, outras travestis apareciam constantemente nos jornais como tendo sido espancadas ou mortas principalmente em Fortaleza e região metropolitana, além de suicídios. Pode- se perguntar, contudo, o que fez os assassinos gravarem vídeos do crime, sem levar em conta que estariam gerando provas irrefutáveis contra si mesmos. Talvez a certeza da impunidade? E se olharmos para esse terrível evento e virmos que o que moveu o crime e sua gravação foi esse atravessamento do poder sobre a vida, paradoxalmente manifestado no direito de matar, que se dá nos indivíduos e confirmado pelo “deixar morrer” estatal? Estava acontecendo ali a continuação da política. E isso gerou um grande mote ao enfrentamento, para a resistência, dos que ainda estavam vivos em prol do combate dos motivos que levaram os jovens adolescentes a se sentirem autorizados e empossados de tamanho poder para limpar o outro, ou como diria Berenice Bento (2014; 2016) a respeito de outros casos de crimes letais e violência física, o trabalho de uma assepsia, quer dizer, o matar para limpar a si mesmo. Mata-se o outro para poder ter a própria vida que foi questionada continuada, ou melhor, sentida como ameaçada pela simples existência alheia. E, mais ainda, segundo a autora, tais corpos se tornam arquivos vivos da história de um drama daqueles marcados pela margem brasileira. Se o poder biológico, esse poder de engajamento populacional, da vida como espécie humana não está contido nas mãos do Estado, mas distribuído por instituições subestatais, e ainda, circulam entre os indivíduos e o poder, os jovens rapazes exerceram tal vislumbramento da limpeza moral que representa o aniquilamento da vida. O suplício de Dandara passou a representar, na luta por direitos em saúde, a prova do que dizem os ativistas sobre estarem à mercê quando não são incluídos pelo Estado-nação na população que governa. Com isso, os ativistas mostravam que o que aconteceu com Dandara não aconteceu apenas com ela, porque além dela não ter sido a primeira das vítimas contadas nos milhares, poderia muito facilmente não ser a última. O crime contra Dandara era, portanto, um crime contra toda a 198 Tribuna do Ceará, 7 mar. 2017. 199 O Casulo Dandara (2019), escrito pela policial civil investigadora do caso Vitória Holanda, foi lançado durante a XIII Bienal Internacional do Livro do Ceará, em Fortaleza, no dia 21 de agosto de 2019 e teve distribuição gratuita. 200 Blog Gay, 2 de jan. 2020. Criada pelo artista Rubem Robierb, a escultura, que leva o nome Dandara, é um par de asas brancas de borboleta, feita de fibra de vidro e fixada numa base de aço; possui 10 metros de altura e 13 metros de largura. Compõe, ainda, a série artística Máquina dos Sonhos, e foi anunciada para ser exposta de modo permanente em Miami, nos EUA. 272 população de gays, lésbicas, travestis e transexuais. Daí o sentido do termo usado pelos ativistas de “LGBTfobia”. A violência contra essas pessoas se transformou num dado demográfico, e epidemiológico. Por isso que, em segundo plano, a referência feita a Dandara durante a Audiência Pública ser um argumento inalienável. Circulava, ainda, antes deste evento, que o Governador havia sido sensibilizado pelo que acontecera da violência letal, tornando o pedido pelo Ambulatório tão irrecusável. Assim, as estratégias dos interlocutores para que se concretizem suas demandas de acesso à saúde, à estrutura pública de saúde, que lhes é condição para conseguirem viver em segurança perpassa tanto e faz sentido nos termos do poder sobre a vida. E isso se associa, talvez como pontos que se unem e fecham um círculo, à procura pela Defensoria em primeiro lugar, à realização do censo pela Atransce, à própria Audiência, ao lugar central do cuidado em saúde, aos reclames pelo nome social. A vida desta população parece, portanto, ficar visível como tornava o poder soberano, quando se dispunha de suas mortes. Assim, a ideia de risco costura essas e outras táticas. Risco para saúde física e mental desencadeado principalmente pela ausência de “acompanhamento seguro”, e consequentemente pelo que tudo isso provoca: falta de correspondência sexo/gênero/desejo e que gera um alvo da violência física e morte, interação medicamentosa ou instabilidade hormonal – porque fora dos padrões desejados para fins específicos – e doenças que podem daí surgir e a diminuição da longevidade. Essa ideia de risco em saúde – e saúde em risco – está presente em todas as discussões que já realizei até aqui, como nas preocupações de Marinalva (capítulo 2), nas intersecções entre transição e experiências da doença, bem como nas entranhas do diagnóstico (capítulo 3) mesmo que elas difiram como irão se diferenciar outras formas que irei descrever ao longo do restante da tese. Os termos, portanto, são de vitalidade, e entram no cenário da biomedicalização, da moralidade do cuidar da própria saúde e de fugir dos mecanismos biopolíticos de exclusão – no restante do capítulo esses elementos ganham profundidade junto da teorização dessa noção de risco. Não apenas fuga, mas de transformação, de mudar tais mecanismos para aqueles de governo. Mas e quanto às consequências sociais disso para a formação de sujeitos? Se, como mostrou Foucault em diferentes ocasiões (1988; 2006 [2001]; 2008a, principalmente), um dos resultados – e ainda mais, o próprio pré-requisito – do poder sobre a vida é gerar sujeitos e uma verdade sobre eles, como essa constituição de corpos é reinstituída quando são esses corpos, esses indivíduos atravessados pelo poder em resistência que lutam de volta na linguagem da biopolítica, replicando- a e transformando-a dentro de suas estratégias? Os homens trans, grupo político a partir do qual desenvolvi essa etnografia – apesar desse estudo os extrapolarem de muitas maneiras –, aprenderam essa linguagem dos direitos e formaram 273 suas prerrogativas nos termos de uma “transição em segurança” e de uma segurança posterior por causa da qual a formação de uma percepção de existência enquanto população é tão importante. Como continuarei a mostrar ao longo do restante do capítulo, essa segurança é construída como biológica e é também política. Mas, antes de adentrar nos meandros dessas práticas e questões propriamente ditas cabe entender “onde tudo começou”. Por isso, discorro a seguir acerca dos primeiros cenários nos quais os interlocutores se uniram e começaram a se mobilizar, aprendendo esse trabalho biológico da transição e a linguagem dos direitos. Isso se deu quando conheceram uns aos outros num serviço de saúde que não fora projetado para eles. Agora, volto ainda mais na reconstrução de um passado recente da mobilização política: da dispersão ao associativismo até alcançar, entre idas e vindas, uma análise etnográfica de questões e acontecimentos posteriores a Audiência Pública, e que tocam nas experiências dos homens trans no campo de práticas e dos saberes. 5.4. Breve recurso à história de um começo As primeiras interações nas quais estive inserido traziam o nome de um serviço de saúde que atendera, de modo especializado, pacientes transexuais e travestis operacionalizado na sua maior parte por médicos voluntários e estudantes residentes. Durante muito tempo os interlocutores, de todos os lados, falavam como num código indiscernível para mim sobre isso. Não entendia o que exatamente e como tinham se desenrolado conflitos que pareciam ter sido a animação do lugar. Nem um nem outro (ex-)paciente ou profissional queria muito se deter em detalhes, mas era patente que todos tinham algum tipo de queixa, as quais me relataram posteriormente. Apenas com o aprofundamento da nossa relação que comecei a entender o que antes parecia um borrão201. Tratava-se do Atendimento Ambulatorial em Sexualidade Humana, criado em 2009, conhecido pela sua sigla, ATASH, do Hospital de Saúde Mental Prof. Frota Pinto (HSM)202, e localizado no bairro de Messejana. A imagem que se desenhava era de ter sido foco de grandes 201 Escrever sobre isso, contudo, não deixa de cair no risco da má percepção sobre se eu estaria tomando essa ou aquela posição, se levaria a sério essa ou aquela perspectiva, e se ao fazê-lo estivesse anunciando a verdade sobre o mundo vivido como se, ao falar sobre ele, estivesse afirmando como ele deveria ser. Isso porque, como mostrou Bourdieu (2002), a dificuldade de se transmitir um discurso científico sobre o mundo social se dá porque boa parte dos discursos sobre ele se trata de um discurso normativo, de modo que fala-se dele para afirmar se vai bem ou mal: “quando você diz as coisas são assim, pensam que você está dizendo as coisas devem ser assim, ou é bom que as coisas sejam dessa forma, ou ainda o contrário, as coisas não devem mais ser assim” (Bourdieu, 2002, p. 14, destaque do autor). E essa dificuldade se duplica quando consideramos que descrevemos etnograficamente as experiências sociais tais como se apresentam para os indivíduos que as vivem e elaboram discursos sobre elas de acordo com a legitimidade que desejam construir com suas expressões (Bruner, 1986a). 202 Gerido pelo Governo do Estado do Ceará, o HSM é o principal serviço de saúde mental do SUS da região. Conta com uma residência médica em psiquiatria, com assistência de 9 ambulatórios, psicoterapia, dois hospitais-dia, internação psiquiátrica, pronto- atendimento, atenção à infância e adolescência, a dependentes químicos e a outros atendimentos na área, totalizando 180 leitos de internação. 274 contendas no âmbito da relação médico-paciente. Dentro desse período “memorializado”, o ATASH não funcionou como Ambulatório do Processo Transexualizador, mas sim voltado aos “transtornos da sexualidade”, principalmente no campo das parafilias203. Num primeiro momento, imaginei que a forma como as pessoas trans começaram a frequentar o serviço teria se dado por uma propaganda boca a boca entre pacientes, que, sabendo do tema da sexualidade teria atraído travestis, depois mulheres transexuais e por fim os homens trans. Apesar desse movimento ter se realizado, uma outra grande via de acesso foi indicada como sendo de adoecimento mental: O ATASH não é um Ambulatório Transexualizador, ele é um ambulatório de transtornos de sexualidade humana. Ele vai trabalhar essas questões das parafilias. E, como nós [trans] estamos ancorados ainda na CID, era o local mais conveniente da saúde pública, de ser tratado, de ser acompanhado. E também não é do interesse da medicina estudar essa questão, trabalhar essa questão, então... ou seja, nesse ano de 2014 ou até anteriormente a isso, não existia assim um interesse da medicina nesse sentido. Existia um número muito pequeno, muito restrito de pessoas que não estavam interessadas em ser estudadas, mas estavam interessadas em fazer esse acompanhamento, mas não porque elas queriam algo saudável, no sentido de medicamentos, mas porque a grande maioria desse número pequeno fazia um outro processo que era a depressão; o adoecimento da depressão (Kaio, 38 anos, 2018). Entretanto, a despeito dos objetivos iniciais, o serviço ganha um rumo diferenciado para todos os atendentes e profissionais quando a questão trans ganha ainda mais evidência no cotidiano do atendimento. Um aspecto disso se refere a ter se tornado um lugar fundamental não apenas pelos sentimentos contraditórios que inspirava, mas também pelo seu lugar na história do movimento trans na cidade. Ao mesmo tempo que foi o primeiro serviço a aceitar receber essa população, tendo sido, portanto, o primeiríssimo espaço em que grande parte de seus pacientes tomaram qualquer conhecimento sobre a transexualidade, foi onde chegaram a conhecer outras pessoas trans. Além disso, o lugar continuava trazendo lembranças fortes de procedimentos de patologização. Nesse misto, apesar da detratória que ocupou às vezes, a existência desse serviço desencadeou a aglutinação inicial de homens trans no Ceará que vieram a se tornar ativistas204. Eles se dedicariam inicialmente às melhorias do serviço, e, posteriormente, à projeção da possibilidade de se lutar por um espaço maior no Sistema Único de Saúde local. Como toda reconstrução memorial – que também busco incutir um viés etnográfico –, essas linhas não procuram ser “o retrato fidedigno do que aconteceu”, ou uma representação que busca contar a “verdade” sobre acontecimentos. Essa recusa à busca de um ipso facto não implica 203 Na psiquiatria, parafilia se refere ao que se chama no campo de “distúrbios psíquicos” que se caracterizam pela obsessão e fantasias a práticas sexuais cuja excitação advém de crianças, animais, objetos inanimados, cadáveres, entre outras. O que se chama de “transtorno transvéstico” está incluído nesse campo de obsessão sexual atípica, o que sugeriria ter sido o grupo das travestis o primeiro da população trans a ser atraída para esse serviço de saúde. Todos esses são diagnósticos correntes no DSM 5. 204 O que não é o mesmo que dizer que o serviço teve esse objetivo, que sem ele a aglutinação não teria acontecido ou que sem ele teria se dado de uma forma mais próxima do ideal – embora eu não saiba o que seja –, algo que não se poderia afirmar sem entrar numa previsão do futuro própria de um subjetivismo maniqueísta cheia de juízo de valor. 275 tampouco um relativismo205 vulgar que generaliza e homogeneíza o contexto descrito, ou que, por exemplo, relativizaria a violência relatada. Significa, antes, descrever como os interlocutores percebem, no tempo presente no qual se deu cada entrevista, as experiências que viveram circunscritas tanto por um ato biográfico como uma memória coletiva que, como tais são delineados no momento da sua narrativa. Cabe notar o que essa narrativa faz, e não apenas o que quer dizer e que conteúdo organiza206, isto é, sua importância não se centra simplesmente por ter sido algo que, por ter acontecido, desencadeou os eventos do presente, mas por ser seu uso no presente, uma espécie de totem ao avesso da luta que se realiza agora. A narrativa do passado está à serviço do caminho que se quer construir no presente. O espaço temporal entre o “tempo do ATASH” e aquele da etnografia no qual eu “estava lá” é consideravelmente pequeno207, mas isso não impediu que ele fosse suficiente para que os interlocutores trabalhassem para constituir uma memória capaz de animar um engajamento que diz: “veja como fomos tratados e patologizados ali, nós temos direito a um serviço diferente, um que nos atenda de maneira humanizada e o Estado é o grande responsável por essa garantia”. Essa “memorialização”, do que captei apenas o germe, era como uma arma da ação coletiva. Isto se expressou, uma vez mais, quando estávamos em pleno domingo e nos reuníamos na garagem da casa onde funcionava o abrigo gerido pela Atransce. A reunião se iniciou com um resgate, com o auxílio de fotos dos encontros anteriores. Algo que se tornava costumeiro. O elemento novo para mim ali seria a apresentação de um videodocumentário, caseiro, feito pelos próprios ativistas da associação. Na ocasião não havia nenhuma figura de importância burocrática e decisória governamental, o foco era mesmo os ativistas e neófitos em início de transição que visitavam o lugar à primeira vez. Procurava-se, antes de tudo, decidir o que fazer diante da continuada não inauguração do Ambulatório, mesmo após meses desde a dramática Audiência Pública e as repetidas promessas quebradas pela Secretaria de Saúde, que marcou diversas datas de abertura. Com uso de câmeras de celular se produzia o cotidiano: eles apareciam em diferentes cenários, ora caminhando pensativos em estradas e ruas, ora falando direto para o possível espectador, entrelaçando vários depoimentos de transição até culminar na filmagem de serviços de saúde. No vídeo, um dos ativistas aparece entrando no HSM, explicando como funcionava o Ambulatório. A filmagem é antiga, de quando ia para consultas no local anos atrás. Vemos a 205 O relativismo como princípio epistemológico foi fundamental à instituição da antropologia moderna, e não se furta de ser ainda uma característica essencial da disciplina dada a perene variabilidade das práticas sociais e das culturas. Muito já se discutiu a respeito, apontando os limites de sua aplicação (Velho, 1991), seus problemas à discussão dos direitos humanos (Preis, 1996; Segato, 2006), bem como sua continuada necessidade metodológica sob novas roupagens conceituais que considere também sua limitação (Wagner, 2010). 206 Como esse capítulo se dedica à mobilização dos homens trans, apresento no capítulo 6 as experiências de parte dos profissionais de saúde que atuaram no passado e atuavam no tempo da pesquisa em Fortaleza. 207 Esse intervalo foi de menos de dois anos, e o “tempo do ATASH” esteve contido nas narrativas dos interlocutores entre 2009 a 2015. No final de 2016 já começávamos a interagir tendo em vista essa pesquisa. 276 portaria, depois caminhamos com ele pela pequena estrada de tijolos entre palmeiras, e entramos pela sala de triagem do hospital com suas cadeiras enfileiradas diante de outra portaria. Outro acesso se abria a um corredor, o qual ao atravessar se chegaria ao espaço que funcionava o ATASH, um dentre outros ambulatórios. Percebi que todos esses elementos narrativos buscavam criar a história de um começo, constituída na trajetória de alguns interlocutores; ao que remeto para chegar às suas experiências no serviço e ao trabalho de “memorialização”. Reginaldo, na época com 21 anos de idade, começou a frequentar o ambulatório em 2015; ele se juntaria, por um período curto de tempo e de modo regular, a outros poucos rapazes que se denominariam de homens trans em meio a um número mais expressivo de travestis e outro menor de mulheres trans. Nossa entrevista se deu em 2017, e há mais de dois anos não era mais um paciente. Inicialmente, sua ida ao serviço se deu a contragosto. Ele relutara em comparecer ao hospital devido a sua ligação com “doença mental”, mesmo que fosse ali o único serviço possível diante do quadro que desenhava: ele associava dores intensas na região da pélvis e incômodos nas mamas a seu longo período de hormonização sem mediação médica: O ATASH foi assim... Eu tenho uma mulher trans que ela é muito minha amiga de muitos anos. E ela já frequentava o ATASH acho que há uns 3 anos, sabe? Ela é uma das pessoas mais antigas no ATASH. E aí, eu cheguei pra ela e disse assim: “Regina, cara eu não consegui a ajuda do endócrino, eu não tô conseguindo em canto nenhum, me ajuda, o que que eu faço? Eles estão mandando ir pro Hospital Mental, eu não quero ir pro Hospital Mental”. Aí ela disse assim: “olha Reginaldo, aqui no Hospital Mental tem o ATASH, que é pra onde eu vou, que eles me ajudam nisso, venha também”. Aí eu disse, “Nanda, eu não quero ir pro Hospital Mental” e aquela coisa. E aí, foi passando o tempo, passando o tempo, e aí eu conheci o Raimundo. Aí o Raimundo disse, “Reginaldo, eu vou pro ATASH”. Aí, o Magno, que já era meu amigo antes do Raimundo disse pra mim, “bora pro ATASH, eu já tô no ATASH acho que há uns dois anos” na época, ele tava. Aí eu disse, “cara, eu não quero ir pro ATASH” (Reginaldo, 24 anos, entrevista). Mas chegou um momento em que Reginaldo não poderia fugir dessa única possibilidade, uma vez que não tinha recursos financeiros para a contratação de um plano de saúde nem para pagar consultas particulares avulsas. Sentindo dores por mais de três meses, e com a insistência de amigos que já acessavam o lugar, é demovido do receio do estigma e consegue um atendimento de emergência: Chegou um período que eu estava em situação de emergência. Eu estava com problemas sérios na mama e no útero por causa dos hormônios. [...]. Eu disse, “não, cara, eu tô sentindo muita dor”. [...]. Eu sentia uma cólica tão forte que parecia que eu tava abortando alguém por conta dessas questões né, que você tem que fazer o acompanhamento. Aí eu disse, “não, eu vou pro ATASH”. [...]. Uns dois, três meses [sentindo dores]. Eu tava aguentando porque eu não queria ajuda de ninguém, não falava pra ninguém. Aí eu peguei, “Raimundo, me ajuda a entrar no ATASH” (Reginaldo, 24 anos, entrevista). 277 Como me conta, suas consultas individuais seguiram com psiquiatra, ginecologista, psicólogo e uma sexóloga. Uma médica em particular lhe chamara atenção por seu encorajamento ao engajamento político, “ela nos colocava pra cima”, dizia; em meio a outros que via como patologizantes. Com a constância ao hospital, ele percebeu que se passava a formar terapias coletivas e rodas de conversa que estavam grandemente centradas na relação com a genitália para falar da transexualidade. Isso, me narrou Reginaldo, era motivo para grande desconforto de sua parte, e avalia que também para a maioria. Era levado a expor em público seus sentimentos incorporados, seu nome civil e social, e tudo parecia que iria ser resolvido primeiro pela publicidade, fazendo-os falar. Pelas narrativas dos interlocutores, parece ter havido uma intensidade dessas práticas clínicas grupais um ano antes da entrada de Reginaldo. Em 2014, ocorreram a maior parte dos encontros coletivos movimentados pela sua aura de necessidade para o prosseguimento do acompanhamento, embora tenham ocorrido desde 2013 até 2015. Mas pouco a pouco ocorreria uma grande evasão dos atendidos, levando o serviço a rever as reuniões. As consultas particulares, assim, se intensificaram como objeto de grande engajamento, principalmente pela necessidade da prescrição de receitas controladas para compra de hormônios sintéticos nas farmácias e para uma espécie de controle da “boa saúde” que dá forma a preocupação das receitas208. Mas, não se tratava de buscar a receita por si mesma. A ideia de se cuidar era um imperativo, e se o médico não admitisse a entrada para a hormonização, esse cuidado iria ter que se dar sem essa supervisão. Um cuidado sob risco, mas ainda assim um cuidado de si. Narrando as primeiras consultas que teve, Kaio continua: Eu tive o primeiro atendimento com a sexóloga. Depois eu tive o atendimento com o psiquiatra que foi a minha primeira consulta, que aí ele vai fazer tipo um processo de busca histórica da sua vida, uma linha do tempo, ele vai te ouvir e querer entender como que suas lembranças de infância e de adolescência até os dias atuais. Mas ele não instiga a você dizer coisas especificas, você fica livre pra falar. Ele queria só saber dessa linha do tempo de quando eu era criança até os dias de hoje, e aí eu fui falando esses processos, e depois que eu terminei ele perguntou como eu me sentia. Aí foi quando ele, porque tem uma hora que o psiquiatra é mais sistemático; ele é diferente do psicólogo que vai muito mais na questão da essência do ser, ele vai pra essência, mas ao mesmo tempo ele vai para a parte mais sistemática que é entender o que ele chama de metabolismo, que aí ele vai fazer perguntas mais diretas: você tem crise de choro? Você tem dificuldades pra dormir? Você tem dificuldades pra estudar? Você tem disforia com seu corpo? (Kaio, 2018). Nessa rememoração, um elemento me foi então surpreendente depois que perguntei maiores detalhes dessa última parte da consulta: 208 Desde que o direito brasileiro funcionava sob a égide do diagnóstico, sem as consultas não se poderia obter laudos, e sem os laudos não se poderia prosseguir com a mudança de assento civil, o que fazia de cada consulta um locus precioso dentro de todo o processo legal de transição. Isso mudou a partir do julgamento do Supremo Tribunal Federal a respeito da Ação Direta de Inconstitucionalidade 4275, em 2019, que repercutiu tese geral autorizando que transgêneros possam modificar nome e sexo no registro civil direto sob via administrativa junto ao cartório sem a necessidade de laudos ou cirurgias (STF, 2018). Mas isso não implica automática e necessariamente uma desmedicalização das mudanças do assento civil. 278 E aí ele não espera respostas longas, ele quer respostas curtas porque ele já vai fazendo uma pergunta e botando outra, então entende que ele entra num momento mais sistemático que eu observei isso, um momento mais sistemático, né.... E aí ele vai fazendo essas perguntas muito rápidas. E no final, sempre isso acontecia: em todos as consultas ele pede um tempo. Ele sai da sala e ele diz assim: agora você espera aqui. Antes eu não entendia, eu tinha muito medo desse tempo (Kaio, 2018). Isso demonstra um elemento que tem sido pouco ou nada considerado nas dinâmicas desse tipo de diagnóstico: a relação médico-paciente como uma relação de classe. Não apenas no sentido atribuído por Luc Boltanski (2004), segundo o qual o médico poderia adotar uma postura diferente de acordo com a origem de classe do paciente que se refere como “doente”, e do paciente deter de elementos avaliativos diferentes de acordo com essa mesma origem. Refiro-me principalmente a relação médico-paciente ser constituída para além de uma postura consciente, mas quando das disposições incorporadas que, portanto, estão naturalizadas, isto é, o que poderia parecer algo óbvio e simples nessa relação pode suscitar reverberações inusitadas que modificam o cuidado e/ou geram angústia e integram experiências de sofrimento. É o que reforça o diagnóstico da transexualidade e acaba por recortar a vida dos sujeitos de outras maneiras. Os interlocutores, na sua maioria na casa dos 20 anos de idade, com pouca ou nenhuma instrução formal, e provenientes de famílias de classes populares, pouco ou nada conheciam do funcionamento de um hospital-escola como o Hospital de Messejana. Dado ao aumento dos cursos de medicina, e impulsionado pela criação desses cursos, quase todos os hospitais na região de Fortaleza – o que não é diferente do resto do país – são serviços terciários que também funcionam como centros de treinamento para futuros profissionais de saúde. Isso se tornou algo normal no SUS. Como uma preceptoria de psiquiatria funciona no HSM, os atendimentos realizados com as pessoas trans eram em sua grande maioria feitos por residentes, fazendo da “sexualidade humana” um dos braços teórico-práticos desse treinamento. Os interlocutores na época não sabiam de toda essa estrutura, e começaram a perceber um padrão inusitado que Kaio narrou. Sempre ao final de uma consulta o médico, que eles não sabiam ser um residente, saía da sala e iria ter com o supervisor para confirmar os resultados da consulta e os encaminhamentos a serem dados ao paciente. Como o serviço funcionava no térreo, o estudante subia às escadas e demorava alguns minutos até voltar. Isso começou a gerar burburinhos de que talvez, por ser um “hospital mental”, o médico poderia voltar com enfermeiros para um internamento forçado. Não por conta da transexualidade, temiam que fossem diagnosticados com loucura, daí o medo representado pela ausência temporária do residente então percebido como médico209. No diálogo com Kaio que reproduzo isso fica ainda mais detalhado: 209 Vê-se, portanto, a atuação da ideia da loucura atrelada ao diagnóstico seguida pela internação forçada, confirmando o grande estigma que associam ao hospital de saúde mental os atender. 279 - Kaio: Era, a gente210 tinha muito medo, mas depois que a gente começou a ficar mais amigo e tudo mais a gente começou a conversar sobre isso, porque eu descobri que esse medo que eu tinha não era só meu. - Ele fazia isso com todo mundo? - Com todo mundo. A gente depois foi falando e eu fui descobrindo que era um medo de todo mundo. - Aí ele saia e passava quanto tempo? - E a gente até brincava. A gente dizia assim: “fica de olho na porta ou então fica de olho no tempo, se a gente não voltar cês tem que ir atrás”. Então ele passava, era em torno de dez, quinze minutos, vinte minutos no máximo, e você ficava naquela sala fechada com o ventilador fazendo aqueles ruídos muito fortes e você não sabia o que é que ia acontecer. [...]. Muito aterrorizante. [...]. E agora eu já sei, né?! Com o tempo eu percebi o que é essa saída. - E o que é? - A saída pra encontrar com o Dr. [Preceptor]. [...]. Porque eles são alunos esses médicos, eles não podem tomar nenhuma decisão, eles têm que passar pelo Dr. E, o que acontece, ele ia lá e dizia: ‘Cleiton, eu conversei com ele agora’... Eles anotam tudo, traz, e agora a gente vai fazer o quê? Ele vai tomar algum tipo de medicação? Ele tem algum transtorno? Qual o transtorno? Qual a medicação? Aí se tem algum transtorno vai dizer: não, ele não tem transtorno, então já pode começar a hormonioterapia, entendeu? Aí, ele vinha já com essa resposta (Kaio, 2018, entrevista). Somente com o tempo eles perceberam que se tratava de um estudante, e que a saída da sala era para confirmar a consulta, já que não era um médico formado. Mas, toda a postura encarada pelo residente não encarnava um aprendizado, que poderia ser questionada se o fosse, e sim uma relação médico-paciente de autoridade. Assim, dois elementos foram fundamentais para a produção social de toda essa angústia, a qual ocupa um certo lugar nessa narrativa que diz: “sofremos no SUS e queremos agora um SUS que não nos faça sofrer, que cuide da gente”. Em primeiro lugar, a diferença de estratos sociais entre os dois polos dessa relação, e em segundo, a própria reprodução da medicina. Nesse sentido, a hormonização ou hormonioterapia era uma das preocupações mais eloquentes desse período porque materializava a mudança corporal possível num contexto clínico sem acesso a cirurgias de redesignação sexual, além de ser essa uma etapa anterior àquelas no processo de supervisão médica da transição. Com uma autorização de um médico nesse sentido, diversas portas – embora de difíceis entradas – se abriam porque com o encaminhamento poderia procurar serviços de atenção básica para realizar exames de sangue, de nível hormonal e outros que pudessem atestar estar saudáveis para começar o tratamento. Como veremos a seguir, a testosterona tem lugares contravertidos, sendo ou não percebido como remédio. Cabe apreender agora que esse percurso de diagnóstico, que descrevo uma síntese, era a forma de admissão para prosseguir com os procedimentos, e criando um padrão para modelar 210 Kaio se refere a outros pacientes do serviço, principalmente homens trans. 280 aqueles que procuram transicionar de gênero e de sexo. Algo que já me debrucei no capítulo 3, mas que aqui cabe demonstrar que esse período da memória recente dos homens trans se insere à sua maneira dentro do cenário que já tem sido desenhado por pesquisadores que estudaram questões trans a partir de outras regiões do país. Desde o contexto de Farina, passando pela reabertura de serviços voltados a transexuais e travestis no final da década de 1990 de modo irregular (cf. capítulo 2) e as primeiras décadas de 2000 e de 2010 com os primeiros ambulatórios, vê-se a produção do transexual verdadeiro para que as pessoas trans consigam entrar em serviços e continuarem com os atendimentos a suas demandas. E, com isso, se exclui sujeitos de processos e procedimentos de transição baseando-se em noções circunscritas socialmente quanto a natureza sexuada dos corpos, das relações de gênero e da sexualidade. A maioria dessas análises, que abarcam muitas disciplinas diferentes, se centram grandemente no discurso, de entendimentos sobre performances e formas de se criar gênero no cotidiano através da postura individual em interação com outros sujeitos, tendo a fala e a comunicação um caráter importante211. Muito raramente a materialidade da transexualidade é endereçada numa perspectiva da prática, do que se faz com os corpos e pelos corpos – algo mais forte nas reflexões que lhe são anteriores das travestilidades (cf. Grossi, 2010). Essas pesquisas têm indicado o caráter diagnóstico das relações de pessoas trans com profissionais de saúde – e do direito – quanto à entrada nos serviços de transição, bem como na instituição das normativas das políticas de saúde do Sistema Único de Saúde (cf. Matos et al., 2020). Nesse sentido, as lembranças reconstruídas pelos interlocutores apontam a heterossexualidade como vetor de avaliação. Conforme observam, eles começaram a perceber que “quem dizia ser gay era cortado do tratamento” por não ser transexual, fazendo-os não apenas prestarem atenção nas próprias narrativas, mas também a ajudar uns aos outros para adequar as respostas, tornando a todos aptos ao reconhecimento daquilo que era postulado como característico da transexualidade. A heterossexualidade era o fundamento do diagnóstico. Isso não é particularmente inusitado. Bento (2006) demonstrou que a sexualidade era uma grande régua dessa avaliação médica e psi no Brasil dos anos 1990, de modo que havia uma cobrança e uma expectativa de que a mudança de gênero trouxesse uma recompatibilização entre sexo e desejo. Ser homem e mudar para mulher, na linguagem da mudança de sexo, implicaria ser heterossexual e desejar um homem, e reconstituir todo o panorama da mulher casada e com filhos de um ponto 211 Nem todas as regiões do país detém de pesquisas sobre transexualidade e cuidado em saúde, e alguns estados da federação ou regiões detêm mais áreas cobertas nesse sentido que outras. Com essa indicação não quero sugerir que haja por parte dos autores uma preocupação cultural da região descrita – na verdade, quase sempre se atrai atenção para o Brasil e não para a localidade que não é vista em termos históricos e culturais. Alguns lugares de partida nas ciências sociais foram: Recife, PE, Goiânia, GO, Brasília, DF, Vitória, ES, Rio de Janeiro, RJ, Belo Horizonte, MG, Porto Alegre, RS, Natal, RN, João Pessoa, PE (Bento, 2006; 2008; Lanz, 2014; Teixeira, 2009; Murta, 2007, 2011; Trindade, 2016; Tosta, 2015; Rego, 2015; Oliveira, A. G., 2015; Alexandre, 2015; Zambrano, 2002; Jayme, 2001; Quintela, 2014; Oliveira, 2013; Braz e Souza, 2017). 281 de vista moral. A autora vira, pela primeira vez aqui no país, o que outros pesquisadores e ativistas observam em seus contextos além-mar (Bolin, 1983; Stone, 1992; Hird, 2002; Martínez-Guzmán e Íñiguez-Rueda, 2010; Rubin 2004, Stryker, 1994, entre outros)212. A clarividência de Kaio se voltaria para analisar por que foi liberado para começar a hormonioterapia e não outros de seus amigos que também frequentavam o serviço com frequência: Eu estava apto porque, apesar de eu ainda ter signos femininos, todas as perguntas diretas que foram feitas que eu respondi, todas foram chaves.... Tipo, aquelas chavinhas, “tá liberando, tá liberando”. Perguntas desse tipo: você é heterossexual? Sim. Você é casado com uma mulher? Uma mulher cis? Eles não usam esse termo, eles dizem uma mulher biológica.... Sim. Você faz uso de drogas? Não. Você tem depressão? Não. Você chora facilmente? Não. Você tem problemas pra dormir? Não. Você tem problemas pra estudar? Não. Você precisa de algum medicamento pra se sentir bem, calmante? Não... então essas respostas foram que me liberaram, foram elas que abriram pra eu fazer a hormonioterapia. E eu percebi que os outros foram interrompidos por causa dessas perguntas, foi por isso que eu conversei com o Rômulo. [...]. Não foi a minha vida que eu contei, foram as respostas técnicas que foram faladas (Kaio, 2018, entrevista). Ao comentar sobre um caso anedótico de um paciente homem trans do hospital que havia chutado portas e faltado com o decoro diante dos médicos, o qual fora retirado do atendimento conforme completa a base da sua argumentação, Kaio mostra que já sabia que havia uma técnica empregada para identificar pessoas transexuais. “Existe uma técnica que os médicos usam pra saber se você está [bem], se ele pode passar ou não [a testosterona]. Se ele perceber na conversa que tá tendo contigo, que tu demonstra”. Orientando entre si, o grupo formado por homens trans no ATASH passa a se organizar em torno da premissa enunciada por um deles: “você vai dizer que você é hétero, você vai dizer que não tem depressão”. E, pouco a pouco os que haviam sido impedidos teriam mudado de postura e de respostas, ocasionando a autorização médica que confirmava na clínica a teoria empregada, e não vice-versa. Essa posição quanto ao que se espera ouvir e não o “contar a própria vida”, como Kaio demarcou, por vezes já foi situado como “estratégia” diante o diagnóstico e do acesso aos procedimentos (Garfinkel, 1967; Stone, 1991; Hausman, 1995; Prosser, 1998; Bento, 2006; Teixeira, 2009), mas isso também se insere nos desafios que as narrativas de transição encontram diante de profissionais de saúde e assistentes sociais (Najmabadi, 2014). Se a “prova” diagnóstica está na narrativa fornecida pelo paciente, se dela desconfiam os médicos e se sobre ela confabulam os atendidos para gerar acesso aos procedimentos com supervisão biomédica e cirúrgica à transição, a essência etiológica manifesta-se enredada numa teia contraditória sem-saída, postulando a inescapável questão da impossibilidade de uma “verdade” uma vez que a “memória” não é um produto factual. Assim, a “mentira” aponta para outras 212 No capítulo 3 me detive pormenorizadamente na questão da patologização, portanto não irei repeti-la. 282 questões maiores e não se trata simplesmente de desvio ético, nem muito menos significa e aponta para práticas universais. A mentira ocupou teóricas trans na década de 1990 quando o movimento estadunidense recrudesceu inicialmente diante da reformulação do DSM-IV em 1994 (ver capítulo 3). Ativistas e acadêmicas tanto recorriam às suas próprias trajetórias como analisavam autobiografias escritas por transexuais anos antes. Hausman (1995) irá colocar, de modo que pode ser considerado extremamente utilitarista, a procura por tecnologias para transicionar como objetivo da estratégia de mentir. No Brasil, Bento (2006, p. 62) se destaca inicialmente, partindo das narrativas de transexuais para mostrar que o contexto de violências da vida anterior e fora do hospital preparou essas pessoas para se situarem diante do diagnóstico: “alguns mecanismos utilizados são [...]: autoconstruir-se como vítima, o silêncio e a essencialização de suas identidades por meio de uma narrativa que aponta para um ‘desde sempre fui assim’ e o ‘mentir’”. Outro elemento que parece pouco refletido por Kaio, e ausente das análises sobre a mentira, dizem respeito aos lugares dessa espécie de cálculo de risco com as perguntas sobre problemas de saúde dos médicos, o que não se resume a uma preocupação com a heterossexualidade. Qual a relação entre negar uma terapêutica, mentindo sobre a sua necessidade para conseguir o acesso a mediação médica à transição, e a busca por “estar saudável” durante a transição? Assim, a mentira é vista como uma fase imediata de uma resistência política ao sentir a imposição da ideia de haver um transexual verdadeiro próprio das categorias que não apenas medicalizam, mas a veem como adoecimento com uma etiologia observável através da narrativa memorial. Mas poderíamos olhar para outro lado da “mentira”, a sua produção sociocultural. Nisso, o mais importante não é o conteúdo que a mentira enuncia – nem muito menos o ato de mentir em si mesmo –, mas os sentidos de sua necessidade e o que ela produz. Mesmo que não desconsidere o elemento “resistência” já apontado por outras sociólogas e antropólogas, estou mais interessado em olhar para essas práticas discursivas como produtoras de realidade, que, ao formularem relações sociais têm consequências sociais porque não deixam incólumes as posições dos indivíduos e seus sentidos atribuídos (Simmel, 2011 [1978]). Ainda mais se considerarmos que o conflito tem um elemento de sociação e não de separação, isto é, ele une e cria relações (Simmel, 1904). Não apenas se resiste ao campo de força do mundo social, o agente o institui em suas ações e menos de modo implosivo do que gostariam as narrativas. Assim, mesmo que o ATASH, nos fatos da memória coletiva aqui descrita, não tenha sido um ambulatório do Processo Transexualizador, suas regras como legislação em saúde pública e as dos manuais em vigor mostram-se ali flutuantes e direcionadoras213. 213 Por ser a única normativa legal em vigor no país detém reverberações generalizadas constituidoras de um verdadeiro sistema, sobre o qual pouco enxerga análises individualizadas desse ou daquele agente apartado do social. 283 Mas, como mostrou-me Zagreu214, nem todos estavam ali dispostos a seguir uma narrativa heterossexual, mostrando outro tipo de relação com o diagnóstico. Tendo tido apenas uma consulta com um psiquiatra, ele se apresenta como bissexual e se estranha com a surpresa do médico: “ele perguntou se eu tinha algum desconforto em fazer sexo com homem e eu “não”, e perguntou se eu era ativo”. Como me diz, o que não faz sentido é alguém considerar de antemão que ele seja heterossexual: “e não fazia o menor sentido ele me colocar dentro de uma caixinha, não faz o menor sentido”. Depois disso nunca mais voltou ao serviço, uma vez que sua admissão estava apenas aprovada para a depressão com que fora diagnosticado. Mas, como o hospital era muito longe da sua casa, compensaria muito mais visitar um CAPs. Zagreu, contudo, faz uma ressalva, dizendo que um amigo215 que continuava sendo atendido no serviço havia identificado uma mudança de postura dos profissionais, de modo ainda a relembrar que talvez tenha tido um papel nessa transformação: Porque durante a consulta eu expliquei a ele que não tinha nada a ver identidade com sexualidade. Um homem pode gostar de outro homem. Por que um homem trans não pode gostar de outro homem? Eu acho que também acendeu a luzinha dele, sabe?! E pelo que eu ouvi dizer, está melhor essa questão; não precisa chegar lá e se fingir de hétero (Zagreu, 37 anos, entrevista). Esse cenário de conflitos, como se percebe, era atravessado por variadas questões nas percepções dos pacientes homens trans e parece ter apenas crescido quando pacientes e médicos se defrontavam com seus limites de demanda e de autoridade216. Assim, a heterossexualidade não era o único recorte nessa admissão a um serviço que funcionava com trabalho voluntário. Um episódio particular modificou definitivamente as relações entre esses agentes que trabalhavam e atendiam, modificando drasticamente a dinâmica do lugar. Após perceberem o aumento dos pacientes e do clima conflituoso crescente, a hormonização é vista como o principal objetivo das consultas. Isso não impedira que os homens trans se surpreendessem com a novidade de um dia comum de ida ao ambulatório: deveriam assinar um termo indicando a ciência que não seria mais dada supervisão para a transição no campo da hormonioterapia e do encaminhamento cirúrgico, nem seriam formulados laudos psicológicos ou psiquiátricos (esses necessários à época para requerer a mudança civil). Isso gerou uma primeira ação coletiva desse grupo político na forma de 214 Já mencionado no capítulo 3. 215 “Um amigo meu que é gay cem por cento”, acrescentara. 216 Há aí uma outra feição, mais próxima da materialidade corporal em torno de todo um conjunto de práticas relativo a exames laboratoriais, análises anatômicas genitais, verificação cromossômica e cariotípica do DNA, comparações biológicas com a intersexualidade, cálculos de riscos, domínio dos procedimentos biomédicos e cirúrgicos, vigilância da saúde pré e durante a transição, administração hormonal e sua individualização somática, etc., que não apenas recorta os almejos das estratégias discursivas nas quais incluem as mentiras, como realizam a constituição desse mundo social. Sobre isso me deterei no âmbito do presente, mais à frente, deixando esse recurso memorial para os conflitos que os antecedem. 284 uma carta-repúdio lançada majoritariamente na internet e nos jornais locais em tom de denúncia, de cerceamento de direitos à saúde: Nós, do Instituto Brasileiro de Transmasculinidade Ceará (IBRAT)217 e pacientes de Atendimento Ambulatorial em Sexualidade Humana (ATASH), vimos por meio desta manifestar o nosso veemente repúdio ao documento “Termo de Ciência, Compromisso e Responsabilidade para Pacientes com Disforia de Gênero”218 apresentado no dia 01 de outubro de 2015, quinta-feira, na reunião de grupo de homens e mulheres transexuais no ATASH às 14 horas no Hospital de Saúde Mental Professor Frota Pinto, Messejana. Entendemos o documento que estabelece condições ao tratamento para que o paciente seja admitido (a) neste ambulatório no qual diz oferecer os seguintes serviços: atendimento psiquiátrico ambulatorial, tratamento psicolofarmacológico, psicoeducacional, hormonioterapia supervisionada, encaminhamento para psicoterapia e encaminhamento para outras especialidades. Por conseguinte, a realidade mostra-se diferente, condizendo apenas ao atendimento psiquiátrico ambulatorial, tratamento psicolofarmacológico, psicoeducacional e encaminhamento para psicoterapia (Carta-Repúdio do IBRAT-CE, 2015, grifos dos autores). Assim, os homens trans se recusaram a assinar o Termo, gerando um escalonamento maior do conflito que já ocorria. A parte mais impactante da Carta-Repúdio se referia ao acompanhamento hormonal, cujo profissional anteriormente atuante ainda seria indicado como pouco apto por um endocrinologista reconhecido: A hormonioterapia supervisionada está comprometida por conta do afastamento, por motivos profissionais do atual profissional encarregado, que mesmo em sua atividade não era totalmente habilitado para o acompanhamento por ser especialista em Sexologia Humana e Ginecologista, mesmo tendo apoio externo de um endócrino em poucas situações (Carta-Repúdio do IBRAT-CE, 2015). No final da Carta, após indicar que a exclusão do atendimento proveniente da falta a consultas marcadas não considerava a situação econômica dos pacientes, pediam que fossem transferidos para o Hospital das Clínicas da cidade, fazendo-se cumprir a legislação regente do Processo Transexualizador e cobrando “um atendimento mais humanizado”. Mas, como me narraram os diferentes interlocutores que lá atenderam, o que decorre dessa demanda dos pacientes como movimento social é uma desestruturação dos serviços indicados na Carta. Isso gerou uma dispersão, fazendo com que procurassem outras unidades de saúde de acordo com o que julgavam ser a sensibilidade dos funcionários estatais do SUS, e que descreverei a seguir. Buscariam, ainda, os jornais da região para que notas fossem veiculadas em tons de denúncia de que o direito em saúde estava sendo negado e vilipendiado pela ausência de médicos 217 O IBRAT é uma organização não-governamental criada em torno da mobilização de homens trans no sudeste do país (cf. Ávila, 2014). Nesse período, os cearenses estavam aglutinados sob essa ONG e se tornaram uma célula regional de sua atuação nacional. Posteriormente, como mostrarei, surgem divergências políticas e há uma cisão que os faz criar uma associação de caráter local vista como mais útil às suas demandas sociais diante do Estado. Isso também foi acompanhado noutros estados do Brasil que detinham “núcleos” do IBRAT na sua pretensão de ser um organismo nacional. Para o mestrado estudei o núcleo organizado em Natal, no Rio Grande do Norte (Rego, 2015). 218 Não consegui ter acesso a esse Termo. 285 do serviço antigo. Em fevereiro de 2016, algumas notícias começam, então, a veicular a insuficiência do serviço em suprir uma demanda crescente e o direito em saúde, e já mencionam a Audiência Pública, na qual já me detive. A pequena matéria chamava-se: “Transexuais. A luta pelo atendimento humanizado e necessário”, e concluía: Até março próximo [...] os transexuais buscam soluções em uma audiência pública. “Para que a gente seja atendido no Hospital das Clínicas. Porque lá tem todos os profissionais e o processo transexualizador pode ser cumprido ali”, entende. “A gente não precisa só de psiquiatra. A gente precisa fazer todo o processo de forma legal e saudável. Não é uma luta só do Ceará, mas é do Brasil. A gente ainda está amadurecendo (nas questões de gênero)”, conclui (O Povo, 28 fev. 2016a, destaques meus). Noutra matéria, no mesmo dia, o mesmo jornal entrevistaria um médico do serviço do HSM, o qual afirmava que “a realidade é bem triste porque, realmente, não tem nenhum serviço estruturado” para atender transexuais para a transição. Demarcando ainda mais a responsabilidade do “Estado”, citando portarias e os princípios do SUS, o repórter completava: O Estado não tem um sistema público de saúde preparado para seguir as orientações do Ministério da Saúde (MS), determinadas em portaria, referentes à realização do processo transexualizador. “No Ceará, não existe nenhum serviço estruturado para esse processo”, avalia o psiquiatra Henrique Luz, coordenador do Ambulatório de Transtornos da Sexualidade Humana (Atash – Hospital de Saúde Mental de Messejana) (O Povo, 28 fev. 2016b). Embora não tenham sido contemplados nas suas reivindicações imediatas, o que aconteceu no ATASH impulsionou a caminhada até o associativismo dos homens trans. Esse episódio fez parte do que contribuiu para fomentar uma aliança entre eles. Esse período memorializado tem uma participação na automodelação dos homens trans, no sentido que foi ali que tiveram pela primeira vez que existir, ao mesmo tempo, como identidade social, como categoria terapêutica e como grupo político. Foi aí onde perceberam a importância da identidade voltada para um cuidado elegível, como disse-me Zagreu: “eles me obrigaram a me definir”. Sendo, portanto, a identidade nomeada como homem trans porque seria “mais uma questão política e por questão de facilitar as coisas”. Mas essa posição identitária como parte da posição social assumida diante dos serviços e dos profissionais de saúde não se encerraria em si mesma. Havia aí uma fachada219, a qual não impedia de deter consequências subjetivas e sociais na vida de Zagreu e na vida de outras pessoas trans. Ele me diria minutos depois do gravador parar que algumas mudanças corporais ele desejaria, mas mais para “facilitar” seu convívio com os outros, referindo-se às suas mamas. Desejava que 219 O sociólogo Erving Goffman (1975, 2011 [1955]) denominou de fachada um conjunto de modos de expressão através dos quais os atores sociais se valem para deixar a impressão esperada por outros e por si desejada no curso de uma interação social. O conceito se remete ao que o ator exprime tanto de modo deliberado, como de modo inconsciente. Isso ganha especial forma quando se considera que a relação médico-paciente aqui descrita ganha o modo daquilo que o autor chamou de “interação estratégica”, aquela na qual ambos os atores que interagem cobrem e descobrem informações constituindo um “jogo de expressões” (Goffman, 1971). 286 elas não fossem lidas como naturalmente femininas. Assim, colocava-se identitariamente mais como “não-binário”, uma categoria em crescente efervescência que necessita de uma pesquisa a parte e que significaria uma forma de não necessitar escolher entre gêneros para a expressão pessoal. Como tal, Zagreu não se via replicando toda uma radicalidade entre homem ou mulher, e por isso se via como “transmasculino”, uma espécie de termo chave para agrupar todos aqueles que ainda não postulam o reconhecimento como homem trans, mas que se direcionam a isso, ou que, tendo sido marcados como mulher, não se identificam como tal nem como homem, embora mais próximo desse último que daquele. Mesmo que a fachada assumida por Zagreu fosse algo visto como importante para sua luta política, isso não impedia que noutras situações ele assumisse sua transmasculinidade ao invés de uma identidade como homem trans. Foi por sua causa, majoritariamente, que a recente Atransce ganhou o nome atual, embora já tenha levado no nome o termo “homem”. Se fosse ser replicado dessa maneira, Zagreu não concordaria em fazer parte da associação. Ele me explica que se vê como: “masculino neutro que performa a feminilidade porque não é viado. Mas isso fica muito difícil de explicar até pra quem é trans, mas os meninos sabem, os meninos da associação. Tanto é que o nome da associação mudou por minha causa porque ia ser Associação dos Homens Trans do Ceará” e passou a ser chamada de Associação Transmasculina do Ceará. Isso não implica uma contradição paralisante para a ação coletiva, como percebi, uma vez que os discursos podem e precisam mudar de acordo com os objetivos de cada momento e com aqueles que querem atingir com suas mobilizações em cada contexto determinado. Há, assim, aquilo que se faz e diz entre si, e aquilo que se faz e diz diante dos burocratas e dos profissionais de saúde. Isso, contudo, não fica apenas no plano estratégico, o que se diz e faz para o outro no campo da conquista de direitos acaba por integrar aquilo que se faz e diz entre e para si. 5.5. Em nome dos direitos, reunidos no templo Mais de um ano depois do cotidiano descrito no ATASH, eu acompanhava alguns ativistas numa manhã de domingo em direção a reunião que criaria oficialmente a primeira organização não- governamental voltada para homens trans, a Associação Transmasculina do Ceará (Atransce). Por oficialização entendo, seguindo os interlocutores, a criação oficial de uma ONG com estatuto, representantes, comissões de atuação diferenciada, regras de funcionamento explícitas, periodicidade de reunião, emissão de documentos oficiais, e instituição legal junto a cartórios com o consequente cadastro nacional de pessoa jurídica (CNPJ), de modo que se torne uma entidade organizada e especializada que esteja apta a receber recursos do Estado e a atuar como representante da “sociedade civil” para influenciar decisões administrativas e governamentais. 287 Até o fim da pesquisa, a Atransce não havia conquistado uma sede própria, e nesse período de oficialização, para o meu espanto, a reunião se deu numa igreja. O grupo religioso que congregava nesse templo se chamava Igreja Cristã Contemporânea, e se insere naquilo que tem sido chamado geralmente de “Igreja Inclusiva”, muito embora não haja essa intitulação local. Não interpretam que a homossexualidade seja um “pecado”, um desvio da natureza humana criada pelo deus da cristandade, mas elementos da diversidade humana. Foi possível entrever em campo que a transexualidade também era manejada dessa maneira pela Igreja, tendo sito ela muito presente, angariando doações ao Abrigo e recebendo os interlocutores na sua congregação para oferecer- lhes espaços para reuniões220. Saímos cedo naquele dia com a rua deserta à procura do templo, o qual nunca havíamos visitado. Passamos sem perceber pelo prédio certo, até que nos demos conta de voltar e recomeçar nossa procura e ficamos diante duma porta de madeira ladeada com dois jarros com plantas. “Deve ser aqui, tem cara de igreja”, concordaríamos. Depois do fiel chegar para abrir a porta, adentramos o local e esperaríamos a chegada dos demais. Pouco a pouco os que chegavam ajudavam na arrumação do ambiente. A companheira de outro ativista começava a fixar nas paredes cartazes feitos no computador e impressos em papel ofício branco. “Transformar! Transcender! Transcorrer! Transmitir!”, era fixado na parede paralela àquela na qual outro banner, agora da própria congregação, dizia: “o Senhor é Meu Pastor.... E ele sabe que eu sou gay”, acompanhado de uma foto de um jovem com a mão e o rosto pintados com as cores do arco-íris, branco, e de olhos fechados em sinal de circunspecção. Criava-se, assim, uma atmosfera de luta, de reclame, na qual até as paredes falavam. O espaço cedido para realização do evento naquele dia de novembro era pequeno, mas destoavam-se aos meus olhos o púlpito de madeira orvalhada que seria coberto mais tarde por uma bandeira trans221 e a grande e imponente cruz do mesmo material fixada na parede logo atrás. A sala principal dava acesso a um vão que levava a uma cozinha com banheiro. A despeito da pequenez do templo os visitantes não se acanhavam, o salão estava cheio e a lotação nos deixava 220 No curso da etnografia percebi que travestis, mulheres e homens trans possuiam variadas posições religiosas, e todos eram deístas. Dentro dessa multiplicidade havia aqueles que eram assíduos a terreiros de candomblé e demais religiões de matriz africana, que atendiam a “células” de orientação cristã evangélica, reuniões espíritas e até mesmo wiccas. Há, ainda, um forte trânsito religioso de acordo com o potencial do grupo ou da religião para a qual se migra poder explicar e oferecer apoio moral e espiritual para a transição de gênero sem a associação da transexualidade a desvio da natureza, pecado ou possessão demoníaca ou de espíritos com más intenções. Assim, a vida religiosa será um grande elemento na vida dos interlocutores, seja porque tem experiências de religiosidade vividas em comunidades, seja porque tiveram que lidar com os dogmas e doutrinas seguidos por familiares e que se chocavam com a possibilidade de ser transexual. Para estudos sobre sexualidade e religião ver Marcelo Natividade (2010) e Emerson Giumbelli (2005). 221 A chamada de Bandeira do Orgulho Transgênero é visualmente constituída de cinco listras horizontais, as quais se intervalam sucessivamente com as cores azul claro, rosa clara e branco, rosa clara e azul. A bandeira foi criada em 1999 pela veterana da marinha estadunidense e ativista trans Monica Helms. Hasteada à primeira vez na Parada do Orgulho LGBTQ+ em Phoenix, Arizona, em 2000, foi doada à coleção queer do Instituto Smithsonian em 2014. O azul significa, tradicionalmente, os meninos, o rosa, as meninas e o branco visava representar aqueles em transição, intersexos ou que buscam o gênero neutro. Ver Helms (s/d). 288 quase amontoados entre ativistas trans, médicos e outros pesquisadores. Era domingo, e o momento havia sido marcado com muita antecedência. “Todos trabalham e moram longe”, me diria antes Kaio ao me explicar como organizara a ocasião. Enquanto os últimos preparativos com o computador eram finalizados para exibição de um slide show – como aquele que já vimos no item anterior –, um dos líderes começava a apresentar o propósito da reunião. Vindos dos bairros mais variados e de distâncias consideráveis aqueles homens trans estavam criando uma ONG com nome e estatuto próprios. Esse é o primeiro elemento da fala de abertura de um dos ativistas, que seguira o agradecimento da cessão do templo para a reunião. A Atransce é alçada como uma forma de acessar o Estado, diferente de outros grupos que não se denominam com os termos reconhecidos como associação. Assim, o discurso começa a fazer uma oposição entra a luta individual e a luta coletiva. Muitos dos presentes ali nunca tinham ido a uma reunião de militância organizada, e antes só se conheciam pela internet. Os direitos são conquistados, e não dados por políticos ou quaisquer outras pessoas. Por isso, o Brasil, afirmam, é um lugar onde algo só muda se “se chegar a 100”, querendo dizer que apenas uma coletividade poderia gerar um efeito para criar políticas públicas. A saúde como um direito só virá se a demanda for criada, tanto porque ninguém adivinha o que acontece no cotidiano – aludindo especificamente aos médicos –, como não se legitima o discurso da necessidade em saúde apenas partindo de uma pessoa. É preciso unir forças para conquistar o Ambulatório. Finalmente o computador fica pronto, e agora exibem vídeos e fotos para falar de como os homens trans do Ceará tem militado até então. O discurso de incentivo à luta política ganha outras proporções quando se utiliza uma analogia cristã, anunciando que Deus é amor e justiça, e que é uma mãe também. Na militância é preciso entender, portanto, que todos são humanos, inclusive as lideranças, e que podem errar. A vida, assim, não é apenas hormônios, tem vida profissional, tem vida amorosa, e outras necessidades que também precisam ser supridas. Mas, pergunta Kaio, “adianta você fazer o processo e seu irmão não?”, isto é, como você poderia ficar em paz tendo sua transição de gênero assistida medicamente enquanto outro homem trans não consegue porque não teve os recursos suficientes para realizá-la? Disso irrompe outra fala de um ativista sentado nas cadeiras da plateia sobre individualidade, que é preciso se unir, não ser tão individualista. Todos concordam. Mesmo que estivessem ali principalmente para articular uma mobilização voltada a criação do Ambulatório, a vida, concluem, é mais do que isso. “A vida não é hormônio e cirurgia, é se manter unido, é viver”, disse outro. Agora, um dos ativistas pede para que todos nós façamos um minuto de silêncio para honrar todos aqueles homens, mulheres trans e travestis que morreram sem assistência, para aqueles que morreram lutando por seus direitos, e ainda para outros que estão 289 entre a vida e a morte em algum leito de hospital, que sofrem a violência do cotidiano, e que não tem a quem recorrer, aos que se desesperam. Seguimos calados, e pouco depois uma salva de palmas interrompe o silêncio com vigor. O momento é de alegria, e não de luto. A luta anima-os, e passamos para a segunda parte da reunião, a qual é chamada de “assembleia”, outro termo legalmente legítimo para que o Estado reconheça a associação que estava ali sendo criada. Pego de surpresa nesse momento, um dos militantes pede para que eu faça uma “fala”. A ideia agora é que haja discursos de “profissionais”, incluindo aí os médicos e outros profissionais de saúde. Nenhum médico apareceu nesse momento, visitariam depois de modo rápido. Tendo que organizar um discurso naquele momento, a pedido de que eu discorra sobre “a sociedade” me uno a uma professora universitária e a uma psicóloga da cidade que têm experiências acadêmicas e clínica com sujeitos trans, ambas conhecidas da maioria dos presentes. Minhas palavras são bem breves, e elogio a mobilização ali nascente, e ainda menciono que o vínculo que eles criam entre si é indispensável para aquela luta. Ao todo, nós três, não demoramos muito, e as palmas já encerram essa parte e passamos a apresentação do Estatuto da Associação. Mas antes de realmente ser lido, outros ativistas tomam a palavra na frente, ao lado do púlpito, para também discursarem. Januário primeiramente diz que “ama a luta”, embora seja difícil fazer ativismo. Falando de amizade, de quem são seus amigos de verdade, explana seu processo de transição, de como veio a refletir e a vivenciar as angústias sobre ser ou não mulher. Valdinei, outro ativista jovem, e o qual eu não cheguei a entrevistar, também engancha seu discurso falando de amizade. Os discursos são valorativos, de como os vínculos sociais mudam por causa dos novos rearranjos da transição. Em meio a fala de Valdinei, umas médicas chegam no templo, e há um certo alvoroço. As pessoas falam e as recepcionam com muito entusiasmo. Valdinei, então, continua, e agora sua fala tenciona que tem depressão, e que já fora usuário de cocaína, e se considera um guerreiro por estar saindo dessa “situação”. Está feliz porque se refez e porque ajuda os amigos a conseguir também. Rivaney agora fala, se diz que ainda é pré-T, que não fez grandes alterações corporais, e que se sentiu muito desesperado porque não sabia quem procurar, com quem falar, o que ler sobre o assunto. E assim seguimos com sucessivas declarações pessoais sobre experiências de transição. Kaio retoma a palavra e anuncia que há uma luta para ir à luta. Assim, eles necessitam de uma Associação específica para homens trans porque cada segmento da diversidade sexual tem suas particularidades, tem suas próprias demandas. E só assim conseguem ser visíveis. Assim, o Regimento, ou Estatuto, como também chama, passa a ser lido. Cada artigo, item, regra, divisão de comissões seguem sendo ou não aprovados. Aí, Kaio para a leitura para explicar que a Atransce não tem caráter nacional, e que ela objetiva as demandas locais, porque só eles podem lutar para que tenham direitos garantidos, e não pessoas de fora com discursos nacionais. Um debate 290 acalorado ganha forma quando se falam das alianças políticas, e acabam decidindo que tomariam muito cuidado com alianças com políticos eleitos. E assim, diferentes questões vão surgindo e sendo debatidas. Uma outra psicóloga que estava na plateia pede para falar quando alguém sugere criar um banco de dados sobre a transição, e todos concordam, seguindo para falar do papel do psicólogo na vida deles. Para ela, o atendimento é muito importante, a terapia para ajudar as pessoas a se entenderem, e não para diagnosticá-los. Mas, afirma, é preciso que não se escondam, que se assumam. Com isso, cita a própria trajetória, e se apresenta como lésbica. Se não tivesse saído do armário222 não teria mudado a mente da sua mãe que antes detinha discursos homofóbicos, e agora a aceita com amor. Eu vejo nos rostos dos ativistas ali presentes que concordam sobre se aceitar e se assumir, mas não é unânime o ânimo com o acompanhamento psicoterapêutico quando foi mencionado. Aos poucos, os “profissionais”, com minha exceção, vão embora. O debate então segue sobre ajudar uns aos outros, uma vez que nem todos têm emprego e não podem ficar comparecendo às reuniões com muita frequência. É dito que as reuniões podem ser pensadas com muita antecedência, e que também poderiam fazê-las pela internet, além de se poder ajudar com o pagamento da passagem do colega, ou “irmão”, como se referiam às vezes, para comparecer a futuras reuniões. Já passa do meio-dia, e estão todos visivelmente com fome. Agora, um almoço é servido para todos os presentes, organizado e oferecido por membros fiéis da igreja, alguns chegam para ajudar a servir, e eu me ofereço. A assembleia, então, toma o dia adentro, e são criadas as comissões, como conselho fiscal, cultural, presidência, secretaria, entre outras. Todos os que se oferecem para ocupar essas posições são aprovados e vão à frente para uma foto imponente com a bandeira trans. Estão bem felizes, e o dia parece ter sido muito promissor. Acabada a aprovação do Regimento/Estatuto, da posse dos membros nas comissões, passamos a criação de um banco de dados para saber que tipo de acompanhamentos médicos e psicológicos têm os homens trans presentes. Com isso, poderiam articular o contato com esse ou aquele profissional, vendo possível atendimento na rede pública, encaminhamentos. Estava, assim, criada oficialmente a Atransce. Isso não significa que não tenha havido antes outras formas de aglutinação de homens trans, sendo essa “oficial”, “verdadeira”, e as outras anteriores “de mentira”, inoficiosas. A categoria oficial busca criar uma legitimidade política porque existiram antes três formas de aglomerações de pacientes/ativistas homens trans que não conseguiram permanecer organizadas. 222 No vocabulário da subjetividade dos homens trans não era tão forte a ideia de sair do armário nos termos do reconhecimento de si com outro desejo e outro gênero no âmbito desafiante à norma heterossexual, a não ser que tenha vivido uma revelação como homossexual antes de transexual, usando essa narrativa para falar da sexualidade, vista como apartada do gênero. Voltarei a essas questões identitárias ao cruzá-las com processos de política e de medicalização. 291 Uma, inicialmente quando da convivência no “tempo do ATASH”, outra pelo cooptação da nascente IBRAT, e uma terceira que seria uma tentativa de oficialização que não vingou por divergências políticas entre os integrantes. A primeira era mais uma troca de experiências via internet entre os pacientes do serviço de saúde, e que recebia o nome de “Homens Trans CE”. Ali, como me conta Kaio, trocavam narrativas sobre o convívio familiar, a busca por reconhecimento por parentes, e, principalmente, buscava-se informações sobre mudanças e técnicas corporais no âmbito da transição, enviavam-se fotos de intrusos e inclusive de genitálias. A ideia era tentar entender se o que se passava era “normal”, e se estavam no caminho certo. Isso tudo acontecera muito antes da minha entrada em campo e recobre os primeiros momentos de ida ao ATASH, muito embora ainda existam grupos de discussão nesse sentido atualmente223. Quando fizeram parte do IBRAT de modo explícito, os ativistas perceberam que uma organização chamada de Instituto não teria grande apelo político para requerer mudanças governamentais. A reclamação de que isso não seria reconhecido com facilidade como uma ONG, os teria feito criar uma outra mais próxima daquelas que já existiam na região para outros seguimentos da diversidade sexual e de gênero224. Além disso, havia uma outra queixa, de que os ativismos de outras regiões do país não se engajavam de maneira equânime para conquista de espaços e direitos ainda não cobertos noutros estados, como era o caso do Ceará que não detinha ainda de Ambulatório do Processo Transexualizador: O IBRAT ainda hoje é uma coisa muito do Sul, sudeste, ele não sobe para a região do Nordeste, entendeu? Ele não vê nem Norte nem Nordeste, ele não tem força. Não tem por que começa pelo próprio nome: é um instituto. Ele não tem força no governo. Governo fortalece movimentos como associações e ONGs. Fora isso, o governo entende que não é uma organização de investimento, que possa ter investimento, está entendendo? (Kaio, entrevista). Assim, como Kaio me explica, a linguagem usada pelo ativismo é tão importante quanto suas táticas e ações coletivas. Queixando-se da má escolha do nome, outros ativistas também endereçariam a mesma reclamação. Por isso que decidiram criar a Associação Cearense Transmasculina, a antiga Cetrans, como chamam. Uma organização que não chegou a ser oficializada, embora tenham ocorrido diversos encontros e articulações. Durante muito tempo eu não conseguira entender o que havia acontecido, os discursos sobre o passado dessa organização 223 Um grupo de discussão no WhatsApp era mantido, mas minha entrada não foi cogitada nem autorizada. Era apenas para homens trans, e como eu era visto como cisgênero havia restrições quanto a minha circulação em alguns espaços, o que incluía o âmbito digital. 224 O Grupo de Resistencia Asa Branca (Grab) criado em 1989 como movimento homossexual com grandíssima atuação em políticas de inclusão e voltadas para prevenção e conscientização envolvendo HIV/Aids; a Associação de Travestis do Ceará (Atrac) criada por Janaína Dutra, ex-integrante do GRAB, procurando uma maior visibilidade para travestis, e o Grupo Liberdade do Amor entre Mulheres Lésbicas do Ceará (Lamce) seguindo também àquelas são outras organizações não-governamentais que tentaram dialogar com o Estado, com maior ou menor sucesso, em grande parte pela desenvoltura com a linguagem governamental e com as alianças políticas disponíveis. 292 eram nebulosos e pouco se entrava em detalhes sobre os conflitos que eclodiram sua inoperância. Como outros assuntos, só consegui entender no final do período da pesquisa de campo. “Teve a Cetrans e aí a gente teve alguns problemas internos de comunicação que já veio externo, atingiu o interno, depois sai para o externo e acaba a associação de uma certa forma entre aspas, o título ele encerra [...]”, completaria outro interlocutor. Quando tento entender melhor essa situação de disrupção, Kaio me conta que se deveu a discordâncias de como se aliar aos políticos eleitos, e como gerir a ação coletiva. “Quando você junta essas alianças, você tá querendo dizer que não só aquelas pessoas vão te apoiar e te ajudar [...]”, acrescenta. Mas nem todos concordariam com a associação a esse ou a aquele político, ou a político nenhum. A ideia que Kaio discorre é, portanto, de que se pudesse fazer alianças com qualquer político para fazer andar as propostas políticas de mudança legal e de criação de serviços de saúde. Mas isso causou grandes contendas, ativistas se afastaram da cena, e nesse ínterim há o racha, no qual se diluiria esse agrupamento da Cetrans, e posteriormente se reformaria outra parcela dissidente com a Atransce. Isso, contudo, não vem sem esforço, reagrupar implica trabalho para não perder o que já se havia conquistado. Quando pergunto como foi esse reajuntamento de ativistas, ele me fala de cansaço. O trabalho cotidiano do ativismo se mostra cansativo: É um desafio porque você trabalha, né? E você trabalha e você trabalha e todo o trabalho é cansativo, e todo trabalho leva tempo e o trabalho da militância é um trabalho extremamente cansativo. E que leva muito tempo. E o tempo quando eu falo, não tô me referindo ao tempo de anos, o tempo mesmo é de 24 horas (Kaio, entrevista, 2018). Assim, Kaio quer mostrar que não se trata apenas de uma mudança de nome da associação. Trata-se de um retrabalho de imagem do grupo, e das atividades nas quais se engaja. E mais forte do que isso, trata de “desconstruir discursos”, como acentua. E isso exige muito esforço, inclusive para a vida pessoal do militante que tem que lidar com novas feições que a política toma por causa dos rachas, das contendas, das estratégias empregadas. Descrevendo a intensidade desse novo trabalho, ele explica: “já pensou se fosse tipo assim: desmonta essa parede e monta de novo, era mais fácil [...]. Essa fachada aqui, quebrar e botar Atransce e pronto”. Não seria simplesmente isso. “A gente vai desconstruir discursos, e essa desconstrução é muito difícil”, procura completar. Esse discurso de liderança pontua fortemente as reviravoltas das ações coletivas que nem sempre ganham legitimidade interna antes de ser colocada em prática para que se possa alcançar a tão almejada reforma social. Os ativistas como reformadores sociais se veem necessitados de se dedicar completamente, tão intensamente isso ocupa suas vidas não por essa ou aquela hora do dia. É emblemático que Kaio faça uma separação entre tempo “de anos” e tempo “de 24 horas”. Não se faz essa reforma se dedicando a conta gotas, nem mesmo da noite para o dia. Assim, a cada nova parada de uma estratégia que não deu tão certo como se pensou antes de operacionalizá-la, é preciso 293 repensar novas formas de alcançar os tomadores de decisões burocráticas. Quando, muitos meses depois da criação oficial da Atransce, de toda a articulação para promover a Audiência Pública – esta última que não saiu como esperado –, eles têm diante de si mesmos a problemática de como radicalizar o movimento sem perder legitimidade para que o que fora anunciado seja realmente implantado no sistema de saúde a nível estadual. 5.6. “Eu também quero ser SUS” Na reunião que comecei a descrever para falar de como a luta dos homens trans se dava também através de um trabalho de memorialização225, o seu objetivo principal era o de dar uma resposta a demora na abertura do Ambulatório do Processo Transexualizador que fora anunciado e prometido durante a primeira Audiência Pública, e que naquele momento completava 6 meses de aniversário de atraso. O que poderiam efetivamente fazer para pressionar o governo do Estado? Quais estratégias empregar para gerar efeito sobre os ombros daqueles a quem recaem as decisões administrativas que precisariam ser tomadas para dar vida ao serviço, ao mesmo tempo que não se cria uma imagem negativa para o ativismo? Como cobrar explicações do porquê do atraso? Se o documentário exibido no início daquela assembleia procurou criar uma memória, como todo início das outras reuniões, o vídeo apresentava uma série de “depoimentos” de homens trans – ativistas ou não – que procuravam argumentar pela necessidade do “acompanhamento médico”, sem o qual não se poderia manter a saúde e evitar adoecimentos durante a transição de gênero. Exibe, ainda, ampolas de testosteronas, caixas do fármaco e receitas. Vicentino, de 19 anos, do Juazeiro do Norte, segundo a aparecer no filme, fala que sem o Ambulatório não seria possível fazer o “processo hormonal” porque não possui nenhuma forma de acessar o fármaco. Magno, de 28 anos, fala em tom de narrador onisciente, explicando que “tomar de forma ilegal” a testosterona acarreta um risco porque não é possível saber o quanto o “corpo precisa”. “Você”, se referindo ao genérico homem trans, necessita “passar” por um médico, especificamente por um endocrinologista para averiguar as taxas hormonais. Januário, de 23 anos, agrava ainda mais a situação imaginada, explicando que viver no interior do Estado torna a transição ainda mais difícil porque não consegue um profissional que queira atendê-lo. Isso, explica, leva a uma hormonização ilegal, clandestina, arriscando a própria vida. No vídeo fica notória uma separação entre experiência hormonal clandestina e saudável, essa última com supervisão médica. A linguagem da legalidade se associa de vez a da saúde. Mesmo que tente fazer exames sanguíneos de rotina, Januário afirma que não sabe ler as taxas, nem as analisar, ou acompanhar seu progresso hormonal para equacionar 225 Na seção 4.4. 294 seus avanços na aquisição de caracteres sexuais secundários e a permanência de sua saúde. Sua explicação continua falando sobre o bainder, em como esse oferece um risco para a saúde, algo que seria usado por causa da “disforia que é sentida” no corpo, explica. Assim, o bainder poderia causar problemas de saúde em todo o corpo e em vários níveis, na coluna, na atividade respiratória, e no desenvolvimento de câncer, assevera. Ele ainda conclui seu reclame mostrando que também é comum o uso indiscriminado de outra substância, o Minoxidil, para o nascimento de barba226, e que haveria aí um risco devido aos efeitos colaterais. Descrever a apresentação do conteúdo desse documentário é uma chave-analítica porque ele foi intencionado para o convencimento das autoridades médicas e burocráticas estatais. Ele visa popularizar um cotidiano “pouco conhecido” da saúde que é esse dos homens trans em comparação com outros sujeitos que mudam de gênero. Em meio a tantas discussões, interessa-me pontuar a problematização que os ativistas fazem da ausência do Ambulatório, por causa do atraso na sua inauguração. Num dado momento a reunião para e vamos fazer café, na cozinha. De volta, Kaio explica novamente como se deu a “luta” para conseguir organizar a audiência. De primeira mão, se ouvia que o Governador havia disponibilizado verba para o serviço abrir ao passo que se dizia consternado com a tortura e assassinato da travesti Dandara dos Santos. Mas que, mesmo assim, havia sido oferecido só o Hospital Mental. Recapitulam, assim, o que acontecera na Audiência. Seria preciso pressionar para que outro hospital da cidade encarasse a abertura dessa atenção especializada, embora tenha sido anunciado pelos funcionários de governo que apenas o “Mental” teria interesse. Mas quais seriam os outros serviços? Respondendo a isso é que os ativistas começam a discutir sobre os hospitais possíveis. Não poderia ser o “IJF”227, diria outro. Haveria o Frotinha da Parangaba228, ou ainda o São José229, e até o Hospital do Coração230. Nem mesmo o Hospital das Clínicas Walter Cantídio, que é federal, havia demonstrado interesse. O “Estado”, por isso, não teria como intervir na autonomia interna. Há muitos serviços na cidade, avaliariam, mas quase nenhum se interessa pelos seus direitos. A rede de saúde do SUS não é pequena. Ao falar apenas de serviços de grande porte 226 Minoxidil é um fármaco que reduz a pressão arterial ao promover vasodilatação de longa duração e intensa, tendo sido usado desde sua promoção como ação hipotensora, em 1965, no tratamento de hipertensão arterial (Elsevier, 2016). O Minoxidil também provoca, ao ser aplicado na pele do rosto e no couro cabeludo, um processo bioquímico que produz o crescimento de pelo e a diminuição da calvície, respectivamente. O termo hirsutismo foi usado para denotar um quadro patológico de excesso de pelugem em mulheres (Zuuren; Fedorowicz; Schoones, 2016). Tornou-se extremamente popular nos últimos anos no Brasil, e durante toda a pesquisa de campo pude acompanhar além do cotidiano dos ativistas, fóruns de discussão pela internet, de modo que vi uma intensa preocupação em seu manuseio adequado e eficaz para crescimento de barba associada a produção material da masculinidade. Algo que não está restrito ou impulsionado por homens trans. 227 O Instituto Dr. José Frota é um hospital de nível terciário referência no socorro de vítimas de traumas graves, e integra a rede do SUS da Prefeitura de Fortaleza, localizado no centro, na mesma rua na qual eu morei para fazer o trabalho de campo. Os ativistas tinham plena razão de descartar esse serviço, já que era voltado apenas para casos de alta complexidade, lesões, queimaduras e intoxicações. Numa determinada ocasião, um ativista havia fraturado a perna teve que ser encaminhado para outro hospital porque o IJF o atenderia apenas se fosse fratura exposta. 228 A Prefeitura de Fortaleza denomina de Frotinha os hospitais de média complexidade com atendimento secundário, levando assim o nome do bairro. 229 Hospital São José de Doenças Infecciosas (HSJ) gerido pelo Governo do Estado, na Parquelândia. 230 Hospital do Coração Dr. Carlos Alberto Studart Gomes, no bairro de Messejana, é gerido também pelo Governo do Estado. 295 são 11 hospitais estaduais, dos quais 8 estão na capital e 3 no interior, sem mencionar centros médicos e institutos especializados e os hospitais federais universitários231. Mesmo que ambulatórios LGBT tenham sido previstos no último Plano Estadual de Saúde cearense (Ceará, 2016), e que haja essa variabilidade de serviços terciários, não havia nenhuma notícia sobre prazos e efetivações claras para um atendimento especializado à supervisão da transição, isto é, ouviam apenas novas e novas datas que nunca eram cumpridas. Porém, isso não intimidou os ativistas que se veem num jogo que precisa ser vencido. “Onde está o Ambulatório? Queremos satisfação. Eles têm que falar o que está acontecendo com o ambulatório fantasma”, repetiam os presentes. Nos dividíamos naquele dia na garagem do Abrigo, uns sentados em almofadas, outros num colchão de casal, e cadeiras, ou até mesmo o chão. Estava cheio o lugar. Alguém sugere que se pense uma ação contundente, objetiva, para ser realizada e chamar a atenção do “Estado”. Talvez tentar uma nova audiência? Perguntar novamente sobre os prazos? Procurar o Ministério Público? Surgem como questões sem resposta em um primeiro momento. Um ato de protesto é, então, proposto. Mas como realizá-lo? E como mobilizar as pessoas trans a participar, se perguntariam. Nesse momento, eu que estava fazendo a “relatoria” da reunião pergunto o que acham de uma campanha publicitária sobre a necessidade deles. Rivelino, um jovem de 20 anos, que estava mais calado, concorda e sugere que seja feita em março, após muitos outros gostarem da ideia de uma campanha. O debate se acalora de modo crescente sobre quando começar e o que fazer, até se gerar um consenso sobre começar a soltar chamadas após o dia da visibilidade trans que ocorre tradicionalmente no dia 29 de janeiro. Kaio surge com a ideia de um vídeo de um minuto, e começa a pensar como dividir o trabalho para criar uma arte. Mas como chamar essa campanha? Januário propõe que se fale sobre eles também quererem fazer parte do SUS, ser o SUS, pois são excluídos. Poderiam, assim, começar com a frase: “Você sabia que as pessoas trans não conseguem acessar a saúde?”. E com isso fica decidido que o mote será “Eu também quero ser SUS”, ideia de Januário. Naquela mesma hora, Januário faz um desenho com letras cursivas dessa chamada: “Eu também quero ser SUS”, logo depois fixado na parede. Fica, portanto, decidido que o mote deve ser adicionado “Campanha pelo Ambulatório Transexualizador no Ceará. #EuTambémQueroSerSUS”. A proposta é que cada pessoa trans gravasse um vídeo curto justificando o porquê se precisa incluir de modo equânime pessoas trans no Sistema Único de Saúde. A campanha se torna, assim, uma ação coletiva que objetiva tomar grandes proporções, incluindo, inclusive, pessoas não trans que deveriam dizer que apoiavam a campanha também com gravações. O vídeo seria gravado de modo caseiro, e enviado para que pudesse ser carregado na 231 A Maternidade-Escola Assis Chateaubriand (MEAC) e o Hospital das Clínicas Walter Cantídio. 296 página da Atransce e na página de um evento com a mesma chamada no Facebook. Além disso, enviariam os vídeos por mensagem, usando, por exemplo, o aplicativo WhatsApp. A campanha empolga a todos. Logo que terminamos, um evento é criado no Facebook com o seguinte texto explicativo e orientador e uma imagem ilustrativa (Figura 14): Sabemos que o Estado do Ceará ainda está muito atrasado com as políticas públicas de saúde para a população TRANS, sabemos também que o tão sonhado e famoso ambulatório só existe em sonho mesmo! Nesse sentido, essa campanha tem por objetivo movermos através da sociedade civil, dos movimentos sociais, de cada pessoa trans e principalmente da mídia dar uma sacudida no Estado, afinal de contas o que foi prometido tem que ser cumprido! Envie para o e-mail da associação: atransce@gmail.com uma foto sua e um vídeo de 30 segundos falando da importância do ambulatório e no final diga: EU TAMBÉM QUERO SER SUS! (Atransce, 2018). Figura 14 – Convocação da Campanha para o Ambulatório Transexualizador no Ceará Fonte: Evento no Facebook criado pela Atransce. Aos poucos, os vídeos vão sendo adicionados na página da Atransce e ligados ao evento, e as pessoas participantes também expressam o tom da campanha com um filtro para fotos criado com a chamada em formato de indexador digital232. Ganha uma grande materialidade digital, o direito à saúde presente na atual Constituição da República, mais que isso, os artigos que indicam se tornam eles mesmos como armas de luta política. Se outros têm acesso a serviços para suas necessidades, por que não têm também os homens e as pessoas trans em geral? A capital fortalezense há muito se caracteriza por intensa mobilização nesse sentido, e em diversos segmentos sociais, como já demonstrei no capítulo 4. Os meandros constituídos pelos ativistas trans, e principalmente homens trans sobre quem recai o interesse nesse estudo, é de reviver um engajamento político que se aproxima da animação que tomou conta do surgimento do SUS. Isso não significa uma forma única de se relacionar com os serviços públicos, que são entendidos pelas 232 A marcação digital gera um link online dentro da rede capaz de reunir qualquer publicação que o acompanhe, gerando um indexador: #EuTambémQueroSerSUS. Em inglês, chama-se de hashtag. 297 pessoas não como “de todos” porque eles não lhes têm acesso. O trabalho da reforma social que lhes foi autoatribuído é de fazer com que esse “público” os alcancem. Os termos de uma análise que se preocupe em apontar um clientelismo perdem de observar o que significa e como os atores vivem a política. As figuras do prefeito e do governador na capital cearense não são personificadas como alvos individuais para os quais deve-se engajar o convencimento para a criação do serviço de saúde. A estratégia recai principalmente na geração de uma comoção que se quer popular mais do que pública. Por isso se recorre a jornais, se faz passeatas, se narra o sofrimento, convoca audiências, se promove peças teatrais, se produz documentários, se busca defensores públicos, baseando-se, primordialmente, no fato de que há um conjunto de parâmetros legais que reconhecem a saúde como direito do cidadão brasileiro: a Constituição. A linguagem do corpo saudável, do risco de vida por causa de transição sem supervisão, sua associação com um certo legalismo, se constrói num âmbito coletivo que se quer representativo de um grupo social. Os vídeos que são enviados a Atransce logo ganham a página do evento no Facebook. Identificando-se através de nome, cidade de origem e identidade social, cada pessoa anuncia o porquê a cobertura da saúde pública para a transição é importante para sua vida. Entre homens trans, mulheres trans, pessoas não-trans heterossexuais, gênero fluido, como demarcam, anunciam que também querem ser SUS, que também precisam e devem fazer parte da política brasileira de saúde, como mostram alguns trechos transcritos de parte desses vídeos: Teoricamente, perante a Constituição, todos nós temos direito a saúde enquanto cidadãos brasileiros, mas na prática a realidade é outra. Nós, pessoas trans, estamos passando por uma dificuldade tamanha porque não temos ambulatório, certo? Nós não queremos privilégios, queremos equidade enquanto pessoas, enquanto cidadãos brasileiros nós temos, sim, direito à saúde. Por isso eu também quero ser SUS (Homem trans). Segundo a OMS, saúde é o bem-estar biopsicossocial e a OMS e o DSM consideram a transexualidade uma patologia mental. Então, para que nós tenhamos nosso bem-estar biopsicossocial, é necessário que tenhamos o Ambulatório do Processo Transexualizador. Queremos que o Estado cumpra essa necessidade referente à Portaria desde 2008, ou seja, está fazendo 10 anos que o SUS tem essa portaria do Ambulatório Transexualizador. Queremos o cumprimento dela. Eu também quero ser SUS! (Mulher trans). Eu gostaria muito de poder de usufruir desse serviço porque é uma terapia um pouco cara. Seria muito bom pra mim poder tá tomando o hormônio e ser uma pessoa mais feliz. Eu também quero ser SUS (Homem trans). Além de todos os preconceitos e violências que as pessoas trans tem que enfrentar todos os dias, muitas pessoas ainda são obrigadas a se medicar, a se automedicar, porque o SUS não oferece esse tipo de tratamento de transição. Então, o que acontece? Isso é muito perigoso pra saúde; e todos nós, pela Constituição, temos o direito garantido à saúde. Então é urgente, já passou da hora da gente ter um ambulatório específico pra atender essa demanda de transição, um ambulatório transexualizador, para que as pessoas trans possam fazer isso com segurança [...] eu também quero ser SUS (mulher cis heterossexual). 298 Sou homem trans, e o ambulatório transexualizador seria importante para eu ter acesso, ou me ajudar a sair dessa casca que não me pertence. Por que não? Eu também quero ser SUS (homem trans). Os discursos presentes nas justificativas que se materializaram na Audiência pública meses antes se repetem na campanha Eu Também Quero Ser SUS. E isso se apoia definitivamente na questão da segurança para a vida, que se refere a uma segurança corporal, algo que deve ter assistência de um especialista que faça com que não se desenvolva nenhuma complicação, condição ou adoecimento. A campanha dos minivídeos recobre também uma forma de centralizar o ativismo no âmbito do biológico, presente na questão do risco da autohormonização – elemento mais urgente devido à mudança que desencadeia para a vivência das interações sociais. Como se percebe a partir dos exemplos etnográficos até aqui descritos, nenhum argumento dos ativistas se baseia em recobrir ou garantir essa ou aquela idealização social de masculinidade ou feminilidade para basear o reclame político. O quadro ontológico identitário não é o motor principal de direitos, mas, como ficará mais claro adiante, ele é afetado pela forma como a política é direcionada. Assim, ao enfatizar o par segurança/risco para justificar um ambulatório no Estado – tanto no sentido de que essa administração hormonal já acontece, como nos efeitos que sua não realização acarreta no âmbito das emoções e da violência –, acaba-se por gerar um tipo de cidadania que será atravessada pela politização do biológico, por suas características visíveis, vilipendiadas e estigmatizadas, invisíveis e sentidas, e que diz: “não há nada que se possa fazer, eu sou transexual, e se não tenho supervisão e apoio biomédico e estatal estarei à mercê da violência pública na rua que identifica meu trânsito de gênero”; e, que afirma: “sem esse apoio especializado eu estarei à mercê de interações bioquímicas sentidas no meu corpo que poderão me adoecer e até me matar por causa da administração hormonal realizada sozinha pelo calor da angústia e do sofrimento”. Procurarei mostrar, a seguir, quais as consequências sociais dessa feição “bio” para se tornar um cidadão, procurando, com isso, entender os arranjos de ajuda mútua e de perseguição de um cuidado médico que seja capaz de dirimir os perigos de uma transição de gênero que, por extensão daquilo que se lê sobre direitos inscritos na Constituição brasileira, deve ser mediada medicamente com recursos públicos: ser SUS é ser um cidadão/cidadã brasileiro/a que não está impedido de viver o próprio corpo, nem solto à própria sorte da violência e do risco que mudanças corporais podem acarretar sem supervisão, e que persegue os corpos identificados como trânsitos, anormais e passíveis de correção. Esse caráter de biocidadania não implica simplesmente, como se verá, uma essencialização per se de elementos biológicos para fundamentação ontológica, nem a ausência da dimensão “humana” dos direitos, ela é sua amplificação e extensão para outros domínios: é a politização da corporalidade biológica e a sua produção social. 299 5.7. Vidas em risco e ativismo biossocial Os discursos políticos para justificar serviços voltados à saúde trans em Fortaleza têm cada vez mais se concentrado na necessidade de sujeitos cujos corpos enfrentam o risco de adoecimento por terem sido manejados por objetos biomédicos desregulados233 – cirurgias, hormônios sexuais sintéticos e outros produtos fármacos e biotecnologias – e que são passíveis de sofrer a violência nas interações no cotidiano por ter um corpo cuja dubiedade é indesejada, questionada e conflitante com os signos e as performances vinculadas e incorporadas na geração de um processo de estigmatização. Entender que homens trans com quem convivi se preocupam com essas questões enquanto primeira ordem não significa essencializar todas as experiências trans nesses termos. Mesmo que haja muitos sujeitos trans que não desejam todas ou nenhuma cirurgia ou, ainda, aqueles que procuram estar num trânsito permanente – questionando, inclusive, a existência ontológica das ideias de polos entre os quais se transitaria –, não implica que para outrem essa transitoriedade deixe de ser um problema não apenas de representação, mas de vida. Ademais, o trânsito não é a única via através da qual essa preocupação se coloca, ela se excede porque a hormonização é algo permanente, e são, portanto, permanentes – ao menos na perspectiva de longo prazo – as ideias e as práticas que se criam concernentes a “riscos” à saúde. Essas foram as dimensões que se sobressaíram no trabalho de convencimento das autoridades estatais e biomédicas que descrevi até agora, o que, por outro lado, comporta uma miríade de tensões. Isso acaba gerando uma feição particular para o reclame dos direitos em saúde trans, a qual se caracteriza como uma atividade de ativismo biossocial que acaba por se concentrar nas dimensões biológicas da transição, mesmo quando tratam de interações sociais quando partem do que o corpo apresenta ou imagina apresentar materialmente. Como reverberação, isso acaba por gerar uma dimensão “bio” da sua cidadania. Pode-se entender uma gama de abordagens nesse sentido a partir do termo guarda-chuva “biocidadania”, o qual tem sido empregado para descrever toda forma social que abarque lutas por direitos ligadas a modos de pertencimento, demandas por acesso a recursos e cuidados em saúde, além de requisição de pesquisas e intervenções biomédicas feitas sob uma base biológica, vinculando, nisso, subjetividades, produção de identidades e sentimentos com dimensões disciplinares e diferenciadoras. Outros termos se aliam a cidadania num crescimento vertiginoso de literatura, tais como cidadania médica, biológica, em saúde, bio-cidadania digital, corporal, genética, biocultural, terapêutica, farmacêutica e ainda ativismo biossocial. Essa base biológica se 233 Isto é, procedimentos e práticas não realizados por falta de recursos, por conta própria ou mal executados por profissionais mal treinados. 300 refere a uma multiplicidade de problemáticas que politizam e produzem socialmente a dimensão biológica dos corpos para garantir direitos que devem ser cobertos pelo Estado-nação a que se está circunscrito, referindo-se a, por exemplo, status genético compartilhado, ferimentos, adoecimentos, adicção, acesso a medicamentos, HIV/Aids (e outras infecções sexuais), demandas de saúde em geral, demandas de saber genético, deficiência, raça e imigração. Como se percebe, a adjetivação do conceito de cidadania faz deixar em relevo esse ou aquele aspecto principal de engajamento sociopolítico, mas isso não implica a ausência de cruzamentos234. Fazendo referências a essas questões e similares, outros autores utilizaram termos como biomedicalização e biossocialidade para chegar com maior vigor nas relações e nas dinâmicas sociais (Lupton, 1995; Rabinow, 1996, 2008; Petryna, 2002; Rose e Novas, 2005; Ecks, 2005; Rose, 2007; Health, Rapp e Taussig, 2007; Gibbon e Novas, 2008; Lock e Nguyen, 2010; Pollock, 2012; Valle, 2015; Heinemann e Lemke, 2014; Greenhough, 2014; Creary, 2018). Assim, o elemento bio para descrever o ativismo, dinâmicas e relações sociais, e a forma tomada pela cidadania, se inscreve tanto como uma ferramenta conceitual quanto como um processo social no campo da saúde. O ativismo sociopolítico em torno de questões de saúde é amplo e tem um longo percurso histórico e que tem especificidades de acordo com contextos nacionais e regionais. Na sociologia e na saúde coletiva geralmente atende pela expressão de “movimentos sociais em saúde” (Brown et al., 2004; Brown e Zavestoski, 2004), o que se refere à multiplicidade vasta da atividade política de trabalhadores, mulheres, soropositivos no ativismo de AIDS, deficiência, pessoas em situação de privação de liberdade, doenças raras, ativistas contra danos à saúde provocados por poluição e má administração de químicos que danificam o meio ambiente, acessibilidade do cuidado da população pobre, reverberações físicas das mudanças corporais entre travestis, entre outros. Esse tipo de ativismo que tenta influenciar as decisões de gestores e de agentes estatais na conformação de serviços e atendimentos age em diferentes frentes, levantando questões como acesso a serviços de saúde, adoecimentos contestados, experiência da doença e deficiência, e desigualdade em saúde baseada em diferenças de gênero, classe, sexualidade, raça e etnicidade (Brown et al., 2004, p. 679). No caso daqueles que buscam auxílio ou suporte biomédico para a transição de gênero e o reconhecimento social que esta propicia pode ser datada, no mínimo, desde o começo da década de 1980 (Bolin, 1983). Contudo, nem sempre a dimensão “bio” foi politizada da mesma maneira, uma vez que ela foi transformada pelas atividades científicas em torno da genética e do genoma humano no final do século XX (Rabinow, 1996). Todo esse conjunto de pesquisas e teorizações tem em comum o mundo social circunscrito pelas reverberações das ciências naturais e biológicas 234 Essa adjetivação não é restrita ao campo da saúde, e são mesmo infinitas para contar conforme muda o objeto de engajamento ao qual se procura garantir acesso: internet, literatura, participação popular, religiosidade, entre outros. 301 quanto às mudanças e controle no seu objeto: a vida como biologia, embora possam centralizar-se em determinados elementos da configuração biossocial, como demonstraram Sarah Gibbon e Carlos Novas (2008). Essa dimensão que pode assumir o reclame dos direitos em saúde ganhou particular popularidade a partir da densa etnografia realizada por Adriana Petryna (2002) na Ucrânia afetada pelo desastre de Chernobyl. Seu emprego original do termo “cidadania biológica” segue um rigor analítico próprio do objeto que considera: a radiação do acidente da usina causou consequências permanentes entre os moradores da região, gerando mortes, deficiências e mudanças genéticas, engajando médicos, vítimas e governantes, isto é, a explosão de reatores nucleares provocada pelos funcionários estatais para testar seu tempo de ativação provocou danos na imunidade humana e na estrutura genética das células, contaminando ainda o solo e a água. As vítimas se organizaram para cobrar do governo uma cobertura de cuidado em saúde e indenizatória em termos de um Estado de bem-estar social. Articulou-se, ainda, o interesse médico em estudar e aplicar terapias. Tendo o acidente acontecido ainda quando a região era parte da União Soviética, que demorou em responder e conter os danos da explosão, o novo processo de independência da Ucrânia que se desenvolveu com o colapso socialista também se utilizou desse acidente para alimentar os reclames nacionalistas do novo Estado e país. Petryna explica que essa feição da cidadania e das demandas em torno de recursos econômicos se mistura com o discurso dos direitos humanos. A antropóloga, assim, define a cidadania biológica como: Uma demanda massiva, porém, seletiva de acesso a uma forma de Estado de Bem-Estar Social baseada em critérios legais, científicos e médicos que tanto reconhecem a lesão biológica como a compensam. Tais demandas têm sido também formuladas no contexto de perdas fundamentais - perdas de segurança primárias, tais como empregabilidade e proteções estatais contra inflação e corrosão geral de categorias político-legais. Lutas sobre produtos médicos escassos e sobre os critérios que constituem uma legitimidade do reclame à cidadania são parte de um terreno pós-socialista desconhecido (Petryna, 2002, p. 6, tradução minha). Antes de Petryna, Paul Rabinow (1996a) publicava, sobre o Projeto de Genoma Humano, que ao ser mapeado iluminaria novas formas de identidade, de se relacionar com a biologia e de se criar comunidades, gerando, por isso, o que o autor chamou de biossocialidade. Assim, temos o traçado histórico teórico de como essa dimensão bio, ao lidar com saúde e doença, morte e vida, circunscreve novas relações e sujeitos, gerando grande interesse nas conformações sociais que as biotecnologias e o conhecimento e práticas biomédicas e de controle biológico acarretariam (cf. Valle, 2015). Ao invés de uma explicação sociobiológica235, o antropólogo indicava um campo de 235 A abordagem sociobiológica pretendeu associar elementos sociais da vida humana a um fundamento genético de explicação evolutiva para o comportamento e as relações. Segundo Marshal Sahlins (1977, p. 5, tradução minha), isso reproduzia uma fusão de um entendimento tradicional da “seleção natural” e a teoria da ação social própria à competitividade de mercado da cultura euro- 302 dinâmicas sociais novas até então. Isso se insere dentro de um arcabouço de governo que se baseia na vida em si mesma em termos biológicos – como Michel Foucault descreveu como “biopoder” e o que já refleti nas páginas precedentes –, e no qual desenvolveu-se um campo de disputa entre Estados e grupos de indivíduos que reclamam direitos e deveres a partir dessa relação ao partir de argumentações em torno de uma biologia corporal. Com o conceito, Rabinow (2008) quis fazer referência a práticas como modificação e manejo genéticos, a obrigação para provimento de saúde em resposta a fatores de riscos, novas formas de socialidade em torno de questões de adoecimento. Por biossocialidade, então, o autor procurava mostrar o embaraço dos limites entre natureza e cultura por essa nascente biologia molecular que teve impactos culturais e sociais consideráveis. Rabinow afirma, portanto, que “se a sociobiologia é cultura construída com base numa metáfora da natureza, então na biossocialidade a natureza será modelada na cultura compreendida como prática; ela será conhecida e refeita através da técnica, a natureza finalmente se tornará artificial, exatamente como a cultura se tornou natural” (Rabinow, 1996, p. 143-4). Como categoria heurística, não há aí um elemento de “natureza” para explicar essa forma de relacionalidade. O que parecia, então, quase uma visão de futuro (Rabinow, 2008; Gibbon e Novas, 2008), se confirma nas diferentes pesquisas e articulações em torno das consequências de se mapear o genoma humano, o genoma de vírus e outras formas de molecularizar a vida humana. Muito embora a transexualidade seja tomada como algo social e cultural para sua concepção de possibilidade, não sendo ela defendida como causada por fatores genéticos pelos homens trans na sua mobilização sociopolítica, a dimensão biossocial de seu ativismo se confirma inicialmente pela centralidade em que colocam os processos de saúde e doença para justificar a necessidade da cobertura estatal e por ser a experiência de transição de gênero incutida no corpo, o qual tem sido cada vez mais molecularizado pelas ciências naturais à conformação de procedimentos e tecnologias que possibilitem tais modificações ou readaptações. O argumento que convence é o argumento objetivamente utilizado: adoecem porque não transicionam com supervisão médica. As vidas trans não estão, portanto, dissociadas dessas “novas” feições de se constituir o ser humano, e são fortemente influenciados os debates e o desenvolvimento de biotecnologias para a transição e a manutenção do risco em saúde de quem muda de gênero. Pode-se ver, ainda, a transição como um processo biossocial nos termos aqui refletidos. Quando essas questões ganham relevo na atividade sociopolítica diante do Estado-nação, a cidadania é então transformada desde seu modo mais tradicional. estadunidense, isto é, era uma proposição pseudocientífica de que “a organização social é muito mais, e nada mais, o resultado comportamental da interação de organismos tendo inclinações fixadas biologicamente”. 303 Alargando a concepção empregada por Petryna e a aplicando para além do contexto por ela instituído, e usando-se também das indicações de Rabinow, Nikolas Rose e Carlos Novas (2005, p. 440, tradução minha), veem esse tipo de cidadania como uma forma ativa de reclame político que tem amplitudes globais. Para eles, ela se refere a “todos os projetos de cidadania que ligam suas concepções de cidadania a crenças sobre a existência biológica dos seres humanos como indivíduos, como famílias e linhagens, como comunidades, como populações e como raças e espécie”, sem se limitar a comunidades nacionais imaginadas. Cada vez mais, argumentam, os grupos e os indivíduos procuram se conectar globalmente, recorrendo a organismos de associação internacional. Contudo, a dimensão comunitária nacional não deixa de existir. Os indivíduos “se ligam aos seus conterrâneos e os distinguem de si, vistos com pouca ou nenhuma cidadania, parcialmente em termos biológicos. Esses sensos biológicos de identificação e afiliação fazem certos tipos de demandas éticas possíveis: demandas de si mesmo; nos parentes, comunidades e sociedade; e naqueles que exercitam autoridade” (Rose e Novas, 2005, p. 441, tradução minha), isto é, a cidadania biológica significa novas formas de conexão entre biologia e identidade. Nesse sentido, os corpos humanos são biotecnologicamente exploráveis, podem ser fragmentados e são fisicamente refeitos por tecnologias e pelo consumo de fármacos. Adele Clarke et al. (2003) não usam o termo biocidadania, mas biomedicalização. A meu ver, as autoras se preocupam menos com cidadania e mais com os efeitos do processo de transformação da medicina, cujas análises se mantêm relevantes para o presente estudo. Elas também analisam menos as articulações dos pacientes e sujeitos que entram em contato com essas dinâmicas e mais as estruturas biomédicas que têm cada vez mais regido as relações com os corpos e com o cuidado. As autoras indicam que houve uma passagem de uma era da medicalização para outra chamada de biomedicalização. Essa “virada” se referiria a uma mudança de focalização; antes, a medicina estaria centrada na sua consolidação ao tornar condições e problemas humanos em problemas médicos para que pudesse se expandir. Com o aumento do seu domínio político, e a produção tecnológica, a medicina passaria a transformar e não mais apenas a controlar/criar seus objetos. A biomedicalização se trataria desses “processos multidirecionais, multissituados e complexos de medicalização que hoje têm sido tanto expandidos como reconstituídos através de práticas e formas sociais emergentes de uma alta e crescente medicina técnico-científica” (Clarke et al., 2003, p. 162, tradução minha). A biomedicina foi, assim, tecnocientificizada pelo aumento integrado de infraestruturas que registram, gravam, processam informações sobre pacientes, e adentram cada vez mais numa molecularização e geneticização da vida. Por isso que as autoras falam em identidades técnico-científicas e não em cidadania biológica. Novas especialidades médicas surgem, assim, baseadas na reunião de “loci de práticas e conhecimento sobre populações 304 distintas e de gêneros de ciência e tecnologia”, também distintas (p. 168). Mas o foco é retirado do paradigma da definição, do diagnóstico, da classificação e do tratamento de doenças, para a um paradigma que embora também defina, diagnostique, trate e classifique, lida agora com esse processo voltado para os riscos e a transformação da saúde. “As doenças e os riscos são conceitualizados ao nível dos genes, das moléculas, das proteínas” (p. 168) e não apenas a níveis de órgãos e das células. Os corpos e as identidades também têm lugar nessas considerações. Agora não mais o foco está na normalização dos corpos, mas na sua customização: é uma ação dupla. Os corpos são individualizados, há drogas, tecnologias e dispositivos que individualizam, que transformam os corpos junto a identidades que são aí coletivizadas. São por essas questões que Clarke et al. (2003) afirmam que estaríamos na era da biomedicalização caracterizada pela reorganização político-econômica da medicina e seu novo foco em saúde entendido através do cálculo de risco. Novas identidades e trabalhos corporais configuram essa virada tecnocientífica. As autoras não determinam uma data de nascimento para essa era, mas tentam situá-la no presente após a Segunda Guerra Mundial com a comercialização intensificada da medicina e das técnicas de intervenção, registro, venda, e sua capacidade de criar identidades (Clarke et al., 2010) que esteve alimentada pelo novo papel assumido pelos Estados Unidos como potência mundial, ocupando o espaço antes das potências europeias coloniais. Essa potencialização estadunidense mundializou suas práticas culturais intercruzadas com práticas científicas. A ausência de considerações sobre cidadania na teorização de Clarke et al. (2003) é bastante situada por sua delimitação dos Estados Unidos, onde não há um sistema de saúde de acesso universal. Quando se considera essa biomedicalização contemporânea, ela adquire outras feições em contextos nos quais sistemas de saúde pública gratuitos existem, como o Brasil. Muito embora o mercado continue presente em todos esses lugares, a permanência do direito em saúde materializado em leis, serviços, treinamento profissional, age, consideravelmente, entre aqueles que buscam cuidado, imbuindo as pessoas na busca por cidadania ao serem recortadas como cidadãos que não têm acesso à infraestrutura de que o Estado-nação dispõe. Quando homens trans centralizam seus discursos por acesso à saúde para que sejam construídos serviços, para que médicos sejam treinados apropriadamente para os atender dentro de suas especificidades e não para os diagnosticar, o risco é uma das categorias mais frequentes que ganha relevo e expressividade. É o que convence agentes de saúde e agentes estatais, é o que invade as instituições, e torna seus discursos legíveis, compreensíveis e unificados com outros grupos que não lhes são alheios ou apenas diferentes. E o risco se refere a todos os campos da transição: à hormonização, às cirurgias, à clínica psi e à médica, aos antigos laudos para mudança do assento civil e a adoecimentos paralelos que podem tornar a transição arriscada de ser realizada ou ter uma 305 experiência de sofrimento intensificada. Mas também se fala dos riscos das interações sociais: ao ser reconhecido na rua como alguém que usa um bainder, tem sua integridade física ameaçada. Nos capítulos três e quatro, eu me dediquei a demonstrar como isso se realizava quanto a processos de adoecimentos variados e na procura pela transição de gênero. Outra forma de visualizar essa questão esteve nas descrições sobre uma segurança em espaços públicos que era ameaçada pela leitura de terceiros a respeito de uma certa dubiedade do corpo, como é o caso da abordagem policial. Diferentes homens trans integram suas narrativas de sofrimento com eventos de averiguação policial em Fortaleza, nos quais os policiais revistam os homens percebidos e as policiais, as mulheres percebidas. Numa determinada ocasião, quando um policial fora revistar um dos interlocutores e sentira o volume do bainder por debaixo da camiseta inferiu que aquilo se tratava de alguma forma de esconder uma arma ou droga. Isso foi recorrente entre outros interlocutores. Assim, o corpo ainda não transicionado na intenção que se buscava gerava sofrimento por oferecer um risco a uma má percepção do outro nas interações cotidianas, nas quais ser homem levava-os a ter determinadas interações. Quando um desses interlocutores anunciava que era transexual, os policiais costumavam rir e chamar uma policial feminina para vistoria, gerando também por isso outro desconforto. Assim, um elemento físico do corpo ganha centralidade e é visto como oferecendo risco à saúde. Isto é, o risco também atinge algo que aparentemente não tem ligação com o cuidado, a algo fora de seus corpos, mesmo que estejam falando de níveis corporais diversos, e do sofrimento incorporado. Por deter de um apelo tão forte junto aos setores estatais, a feição que assumem as dinâmicas de biocidadania na mobilização e articulação trans como estratégia política não deixa de produzir efeitos na formação da identidade e na percepção de si e do cuidado. Essas estratégias para assegurar demandas em saúde se dão, portanto, em termos biológicos mesmo que não estejam se referindo a genética especificamente. É no campo da corporalidade física, da molécula, do risco da saúde, e do risco da vida que é colocado quando práticas à transição são vistas como potenciais à produção, por exemplo, de um quadro cancerígeno, como Januário aludiu na Audiência Pública. Contudo, risco não é algo autoevidente, nem como categoria nem como fenômeno236. Segundo Mary Douglas (1983), as preocupações e ações em torno de algo assim classificado não se baseiam na iminência de perigos intrínsecos, automaticamente percebidos, isto é, riscos não são 236 Mary Douglas (1983, 2003) indica que os primeiros usos do conceito de risco estiveram presentes nas análises matemáticas como um conceito de expectativas que se baseia em padrões de frequências desenvolvido por teóricos da probabilidade. Na sua reação a teorias matemáticas que explicavam não haver a concepção de risco entre pessoas leigas, Douglas demonstra que a ideia em si de risco é bem anterior ao seu uso teórico na matemática, e perpassa todas as ações dos indivíduos. A intenção da autora é mostrar que é comum o “pensamento probabilístico” (Douglas, 2003, p. 51) e não uma invenção de cientistas ocidentais. Contudo, o termo risco desde muito adquiriu outros significados que não aqueles da matemática e passou a invadir a vida cultural e política, denotando moralmente apenas algo negativo, isto é, a percepção de que não existiria um risco bom, apenas riscos ruins, e de que risco se torna sinônimo de perigo (Lupton, 1995) (ver também Le Breton, 2012b). 306 “aceitados”, eles são construídos coletivamente; só se tornam enquanto tais quando são assim julgados. Assim, “declarações de risco são declarações morais de uma sociedade cientificada” (Beck, 1992, p. 172). Lupton (1995), que indica um conjunto de três discursos genéricos sobre risco (aqueles aplicados a um grupo que não tem acesso suficiente aos recursos e serviços, aqueles como consequência de um estilo de vida e outros que enfatizam as dinâmicas ecológicas como proveniência), acrescenta, assim, para uma natureza simbólica, de modo que a sua percepção se constitui socioculturalmente como uma experiência. Nesse sentido, por ex., Gifford (1986), citada por Lupton (1996), ao estudar vivências de mulheres enquadradas como em risco de desenvolver lúpus, já argumentava que risco se torna um estado vivido de saúde/doença e um sintoma de doença futura, algo que é internalizado como um estado de ser. A própria ideação e marcação de estar em risco produz experiências subjetivas e emoções aflitivas. Por isso, os homens trans precisaram ter recorrido a uma série de estratégias para produzir o risco visível aos agentes estatais. Mas não é apenas um discurso que se faz como estratégia, o risco é vivido como prática, e não apenas no sentido de “atos de fala”, mas principalmente como prática social. O manejo do risco237 (em saúde) para transicionar e o risco (para a vida) causado pelo não transicionar se materializam principalmente no campo da farmaceuticalização, a qual não se refere apenas a administração de testosterona sintética, mas todo o trabalho envolvido no uso de substâncias produzidas socialmente como fármacos de transição, nos quais se incluem principalmente o Minoxidil para completar o trabalho de masculinizar o corpo através do fazer nascer pelos, e com isso, fazer emergir o masculino. Isso indica processos sociais de biomedicalização que não se restringem às vias da patologização, mesmo que nesse contexto os homens trans também lidem com eles, e recobrem dinâmicas morais sobre o cuidado do outro e suas possíveis consequências coletivas. Como dizem homens trans, “nem todo mundo tem uma boa genética”, fazendo alusão ao crescimento de pelos faciais mesmo após o uso contínuo de diferentes ésteres de testosterona. A ideia de “boa genética” aqui aciona que as sínteses hormonais não farão emergir nada muito diferente dos traços hereditários biológicos que se tem na linha familiar, isto é, se seu pai não tinha pelos no rosto, você provavelmente terá muitas dificuldades de tê-los mesmo com a hormonização contínua e supervisionada. O hormônio apenas aciona sua capacidade genética. Não se criaria algo do nada. Aí se tem uma noção de fazer emergir não apenas o masculino, mas o de expor traços genéticos. Isso confere uma explicação de porque alguns desenvolvem barbas completas apenas com a administração hormonal, enquanto outros faltam o preenchimento do bigode, e outros não conseguem nada além de pelos esparsos na pele do rosto mesmo após meses ou anos. 237 O risco também é uma categoria presente nos discursos e nas práticas médicas que analisarei no próximo capítulo. 307 Assim, o Minoxidil entra aqui para obrigar esses pelos a saírem, embora se entenda que a genética limite sua ação. Mas os usos desse fármaco não se dão sem tensões, pois há uma moralidade que envolve sua utilização e a percepção de sua necessidade. De um lado, há a menção de que para fazer o fármaco funcionar é preciso ter “disciplina”, seguir à risca as instruções; por outro lado, se tem a ideia de que usar o Minoxidil é expor-se sem necessidade a riscos à saúde – os interlocutores entre si culpam uns aos outros de que quem critica o uso desse fármaco é porque possui todos ou os mínimos recursos para transição a contento, enquanto àqueles, o uso de Minoxidil depõe contra o ativismo porque demonstraria um uso indiscriminado de uma substância controlada. Isso se evidenciou, por exemplo, quando conversava com Kaio sobre o ativismo e suas diferenças regionais, uma vez que nem sempre as demandas de um lugar são encampadas por outros se não forem iguais. Num desses conflitos e divergências sociopolíticas, um dos ativistas teria acusado homens trans do Nordeste de fazer uso “sem receita” de Minoxidil, algo que na acusação seria vista como prejudicial à saúde. Insultado com essa acusação, Kaio me conta que isso não leva em consideração a particularidade do acesso à saúde que há em seu estado para pessoas trans. A noção de ilegalidade é uma referência ao risco que se corre ao usar fármacos sem indicação, sem vigilância, sem testes prévios e contínuos. Expressando sua indignação, ele me descreve um desses conflitos: [Anda] dizendo aí que nós do Nordeste usamos Minoxidil sem receita e que isso é prejudicial à saúde. Para ele que tem acesso a tudo vir me dizer o que é prejudicial à minha saúde? Que que ele tem feito por mim para que eu tenha um atendimento, para que eu não use nada ilegal? O que que ele tem feito? Ele não faz nada. É muito fácil para ele dizer que a gente toma hormônio ilegal ou outras coisas ilegais, dizer que aquilo faz mal à saúde, que parem de usar.... É fácil para ele porque ele usa tudo sendo acompanhado. Isso para mim é hipocrisia. (Kaio, entrevista, 2018). A moral de uma boa saúde que deve ser perseguida também é evidente na acusação que sofre Kaio e, a reboque, outros homens trans cearenses. Suas formas alternativas de superar a falta de acesso a serviços, consultas, fármacos legalizados são alocados na esfera do super risco, do risco inadmissível quando o contexto muda a relação com os profissionais de saúde. Isso não quer dizer que transicionar seja um problema que deveria ser evitado para não se ter riscos à vida, mas que esses riscos à vida advêm de uma transição não supervisionada. Esse ativismo biossocial, no sentido que o emprega Carlos Guilherme do Valle (2015) como mobilização em torno de condições terapêuticas, que homens trans constroem como meio de serem reconhecidos como cidadãos que têm demandas, direitos e necessidades específicas se produz principalmente através da ideia de que sem vigilância algo de ruim pode e quase sempre acontece. Ao falar de ativismo biossocial, o autor está interessado em entender como “pessoas têm se unido em torno de certas ideias e práticas relacionadas a vida, saúde e doença, moralidade e política” (Valle, 2015, p. 33). Embora os 308 interlocutores homens trans ativistas não elaborem suas necessidades de acesso aos direitos em termos de serem doentes, no sentido de acreditarem estar “doentes de transexualidade” – embora haja contextos que acionam as classificações diagnósticas dos manuais de saúde –, o foco de suas uniões em torno de “ideias e práticas” sobre vida, saúde, doença, política e moral tem muitas similaridades com o mundo social do HIV/Aids por causa da articulação que ser trans e demandar modificações em tantos níveis diferentes da biologia corporal posicionar questões sobre a vida e sobre adoecimentos, engajando cientistas de diferentes lugares para melhor construir transições saudáveis, sem adoecerem. A doença existe como risco, e risco é sinônimo de doença. Embora o elemento bio não esteja associado necessariamente à genética, o está na doença que pode advir porque o nível hormonal não é o correto, porque a cirurgia foi malfeita, entre outros. Assim, essa mobilização acaba por gerar novos significados à cidadania. Encontro o elemento “bio”, inicialmente como uma estratégia política que, pouco a pouco, toma conta das práticas e das representações trans de cuidado e adentra na subjetivação e identidade de homens trans: não são transexuais raros (capítulo 2), compõem uma população com recorrências e com situações de sofrimento, demandam cuidado em saúde pública e trabalho de profissionais médicos (este capítulo), e que vivem situações de risco de adoecimento e de vida pela não cobertura estatal para que possam transicionar em segurança e devido a não conseguirem acessar serviços de saúde para adoecimentos comuns (capítulo 3). A ideia de risco elabora de maneira politizada a dimensão orgânica dos corpos, e a inclui no que se tem chamado de “corpo político”, essas práticas de como o corpo é percebido e representado através das relações sociais. Isso também lida com o que se chamou de fato biológico, com as diferenças sexuais, mas não as toma de modo ontológico pré- discursivamente. A ideia de risco na mediação médica na experiência da transexualidade parece indicar um caminho similar daquele percorrido no campo das deficiências. De uma medicina autorizativa para uma medicina mediadora, é esse movimento que os reformadores sociais querem assistir acontecendo, é a essa última que engajam os ativistas trans interlocutores, e não uma rejeição das explicações todas da biomedicina. A linguagem do diagnóstico parece estar sendo substituída – ou pelo menos fundida ou transformada e redirecionada – pela linguagem do risco. Não mais se repete a busca pelo diagnóstico estratégico a todo custo238, mas foca-se nos riscos de uma transição sem supervisão médica para garantir direitos à saúde. Com isso poderão vir novas (ou atualizadas) formas de disciplina e diferenciação, tanto mais quanto as (bio)tecnologias avancem em sua 238 Isso não significa que não haja pessoas trans que se sintam confortáveis e em paz com o diagnóstico, uma vez que isso retira tanto a dimensão da culpa pela saída da designação do nascimento como lhes devolve a vida através de um saber autorizado que oferece um caminho a ser seguido em meio às incertezas que podem parecer definir suas perspectivas. Esse meu apontamento não é uma defesa do diagnóstico, mas não me furto de tecer tais considerações, já que meu trabalho antropológico primeiro é entender e não impor juízos de valores. 309 eficiência no manejo dos corpos – como, por exemplo, o alcance da faloplastia com a certeza da permanência da libido em homens trans nos mesmos ou superiores moldes daqueles já alcançados da vulvoplastia; pesquisas avancem em fonoaudiologia para treino das novas vozes; novas técnicas sejam desenvolvidas ou antigas aprimoradas para deixarem cada vez menos vestígios dos corpos de antes (principalmente quanto as mamoplastias); e, ainda, que se estabeleça a longo prazo uma vigilância da hormonização em indivíduos desde o nascimento até a morte, gerando um quadro amplo das respostas à sua administração sintética, entre outros. Essas constituições científicas não deixam os sonhos dos rapazes com quem convivi, e que me diziam ser a incerteza de certas cirurgias de redesignação a razão de suas rejeições a realizá-las mesmo se oferecidas a seu alcance. Outro elemento dessa verdadeira biotática política se liga à demanda em saúde que se refere ao discurso lógico de que: como transicionam para um corpo diferente, essa diferença implica cuidados médicos específicos pós e durante a transição. Não poderia esperar, por exemplo, que se relacione com o cuidado reprodutivo e consultivo à ginecologia da mesma maneira que fazem as mulheres que não são trans. Como argumentam, não se quer um tratamento excepcional, mas necessitam de ser encarnados de uma forma diferente daquela a qual eram tratados antes da transição, no feminino. Percebe-se aí que a ida à ginecologia tem um grande efeito sobre a identidade daquela que homens trans procuram se desvincular. Por isso que se idealiza “uma mesma ginecologia, mas diferente”. Esse processo social que erige uma tática política a atingir uma forma de ativismo biossocial acaba por transformar a cidadania trans também numa biocidadania. Não em termos unívocos e excludentes de outras feições, mas tão mais necessário quanto mais próximo está dos regulamentos que tornam possíveis serem compreendidos pelas ciências da vida biomedicalizadas e por agentes estatais a ela submetidos. Aí se tem orbitado sobre os seguintes eixos, os quais venho descrevendo etnograficamente até aqui e que assim oferecem um sumário do meu argumento: 1. Nós somos trans, existimos, e nada podemos fazer para não ser quem somos. O que somos demanda mudanças corporais que tem diferentes níveis de manejo e as quais são cruciais para nossa saúde mental e física em termos de segurança que previne a violência e o adoecimento. 2. As alterações corporais fazem emergir ao nível do visível e invisível quem somos. 3. As alterações corporais acarretam a necessidade de cuidado e vigilância para que não desenvolvamos doenças ou problemas de saúde devido a práticas e tecnologias mal executadas no decurso e após a transição de gênero. 4. A mente e, consequentemente, o corpo adoecem se não adequo o que pretendo. 5. A violência contra a população trans em geral é diminuída quando se é reconhecido na interação social como alguém em trânsito. 6. 310 O acesso a políticas de saúde e tecnologias oferecidas no âmbito da saúde pública (SUS). 7. A vida social das cirurgias – mesmo sendo, na prática, de difícil acesso, tem uma grande potência de organização social – porque implica a ação da conquista do espaço para produzir uma estrutura que consiga garanti-la e porque produz outras práticas que acabam sendo vivenciadas para além da sua espera (bainders). 8. O contexto e judicialização do acesso à saúde e à mudança de registro civil também se utiliza dessa narrativa biológica. 9. A noção de existirem como população. 10. A cobrança de que médicos façam pesquisas sobre procedimentos que precisam. Essas questões lançam luz sobre as formas e os alcances inesperados que podem se materializar no ativismo sociopolítico em geral, e nesse particular caso trans. Vivendo relações sociais cada vez mais atravessadas por uma biomedicalização tecnocientificizada, não poderia ficar sem efeito suas reverberações sobre a vida de homens e mulheres trans de um lado, e de profissionais de saúde de outro, que escolheram lidar com um cuidado afirmativo239 nesse sentido. Assim, é necessário não ficar apenas na superficialidade dos corpos, no que tange as suas modificações de transição, mas alcançar aquilo que é feito das moléculas que emergem ao visível a matéria que é tanto significada como produzida socialmente. Quando discutiu sobre o papel da despatologização na cidadania trans, Davy, Sørlie e Suess Schwend (2018, p. 13) chamaram atenção para uma dimensão corporal dos direitos, sem com isso atingir, de fato, a sua dimensão para além dessas superfícies. O que se faz da saúde, dos direitos e da subjetividade quando são as células que se tornam importantes para o argumento que convence os políticos e os médicos? Os hormônios sintéticos existem enquanto agentes que interagem com células e que as produzem bioquimicamente. É assim que surgem para os profissionais, principalmente os médicos e as médicas, que receitam exames investigativos sobre taxas hormonais prévias ao encaminhamento à terapia hormonal. É nessa materialidade que pode se encarregar a legitimidade diante dos setores estatais que organizam os serviços em seus diferentes níveis. Para saber de sua necessidade e da segurança em usá-los precisa-se acessar suas formas, observar suas taxas, acompanhar as interações que causam naquilo que é invisível na interação química, mas que emerge e a impacta naquilo que apresenta os corpos e que participa das interações sociais. Munidos dessa evidência, os ativistas agem para convencer os responsáveis pelos serviços, os controladores farmacêuticos, os políticos. Por isso que a cidadania trans, assim, é transformada pela emergência política dessas questões cada vez mais presentes e evidentes na vida dos ativistas e dos pacientes, que politizaram assuntos e 239 No próximo capítulo objetivo aprofundar essa discussão a partir dos médicos. 311 elementos bioquímicos que sempre estiveram no horizonte dos profissionais diretos ou indiretos de saúde: os biólogos, os médicos, os enfermeiros, e até os peritos do Direito, entre outros. Isso tudo dá outros contornos pouco usuais à cidadania trans, principalmente quanto a sua dimensão de saúde que tem sido aqui o centro do ativismo sociopolítico e cultural. A forma biossocial que assumiu traz à tona novas direções para agir e pensar diante da conformação de direitos à saúde, e de direitos trans em geral, porque esses são tidos como garantidos apenas se já tiver sido constituído o acesso universal e gratuito a serviços de saúde desde a transição de gênero. Como poderiam, pensam os ativistas, estarem em pé de igualdade com outros sujeitos que não necessitaram construir tais esforços? Assim, o ativismo biossocial dos interlocutores demonstra que cidadania trans não se perfaz apenas em torno de questões de assentamento civil, muito embora elas não estejam ausentes do cuidado em saúde. A questão central é que essa política politiza o corpo da pele para dentro e não apenas esse corpo visível e aquilo que o representa (mudanças no registro civil, e garantias de acesso a instituições, práticas e rituais comuns como casamento, reprodução, educação etc.). 5.8. Conflitos sociais e saúde Procurei, ao longo desse capítulo, descrever como a mobilização e articulação de homens trans como grupo sociopolítico lidou, construiu e articulou discursos em saúde para poder justificar suas necessidades que corroborassem a abertura do Ambulatório do Processo Transexualizador em específico, e de maior receptividade nos serviços públicos de saúde em geral. Nesse sentido, o risco é a categoria principal que expõe o engajamento em torno da política do direito à saúde ligada a uma biologização das relações. Esse é o discurso que convence. A complexidade disso leva-nos a pensar como essa forma de ação coletiva mesmo não advogando pela essencialidade do ser em primeira ordem, procura encontrar a manifestação daquilo que os une e os diferencia em relação àqueles que não são trans, isto é, como equiparar a necessidade em saúde trans em relação àqueles que já necessitaram de modo inconteste de cobertura que já se encontra em ação, mas de modo deficitário ou precário? Uma forma de responder a isso é articular uma política do corpo, como chamei, da pele para dentro ao expor as alterações e operações biológicas que esperam realizar no decurso da transição de gênero. O capítulo poderia ter tomado outras direções, mas privilegiei a descrição de discursos e suas ações cujo esforço estava em convencer o Estado-nação. Outra forma de fazê-lo teria sido o de descrever etnograficamente as práticas em torno das quais essa biossocialidade também se exporia, talvez até mais cruamente, de como se lida no cotidiano e nos serviços de saúde com a testagem da testosterona e outras formas de verificação e, portanto, de vigilância, de informações 312 sanguíneas que irão ser importantes para os técnicos da medicina na produção das receitas e da escolha de qual marca de hormônio sintético usar e como operar os ciclos de aplicação. Poderia também ter descrito engajamento em torno de cirurgias e como uma razão estética se cruza com uma razão do saudável e da emergência de um eu apropriado. Isso não significa dizer que aja aí apenas questões puramente tecnificadas como se ao dizê-lo dessa forma estivéssemos excluindo de suas práticas as relações, os significados e a política. Essa outra direção da explicação etnográfica poderia ainda abarcar outras questões que surgiram em campo, como as mudanças vocais durante a transição que impactam diretamente o desempenho profissional daqueles que cantam; como me indicou um dos interlocutores, isso demonstra a necessidade de ser atendido por um fonoaudiólogo tanto para observar a “saúde da voz” como para ajudar a pessoa em transição a não perder sua prática vocal, mas a se reposicionar no contexto do canto quando se muda de tenor para contralto, por exemplo. Ao tomar também a forma de ativismo biossocial, a política dos homens trans em saúde evidencia outras dimensões pouco exploradas com clareza por outros ativistas e por muitos acadêmicos. Mesmo que não se trate aqui de opor uma dimensão que rejeita uma perspectiva de construcionismo social e aquela que a emprega radicalmente, os interlocutores enquadram suas experiências de saúde e de bem-estar social com questões que lhe são urgentes e que demandam o entendimento de como seus corpos funcionam molercularmente para que aquilo que seja visível condiga com aquilo que se subjetiva. Tudo isso se dá, assim, numa atmosfera de grande conflito social e intensa turbulência política para que haja uma consolidação de identidades em contrapartida àquelas já estabelecidas no meio denominado como a “comunidade LGBT+” e as estratégias de conquista e convencimento de agentes médicos e burocráticos. Essa política que, sem querer, constitui-se como uma cidadania que não desconsidera a politização do biológico ou a biologização das relações se resume no seguinte: “sem a cobertura estatal em saúde pública sofremos os riscos de adoecer e de morrer porque as pessoas na rua são um risco para nós se nós formos vistos como travestidos de homem; as práticas de mudança corporal e molecular, que realizamos pela urgência do sofrimento de estar num corpo que não condiz com nossas vidas, nos deixam em risco de saúde porque as realizamos sem domínio e conhecimento técnico-científico”. Ao tomar essa fórmula política, sem o prejuízo do acionamento de outros reclames e de outros estilos de se fazer política, a atuação social desse ativismo não deixa de gerar consequências nos outros campos que integram o domínio da saúde trans que esses movimentos sociais trans desejam construir. Cumpre, assim, observar e entender esses outros espaços a partir das perspectivas de seus próprios atores e ver como constituem esse grande campo social e como se diferenciam por sua natureza própria de autoreprodução: “os médicos”. 313 – Capítulo 6 – Sensibilidades e medicina trans no sertão A sociedade está mudando e as ciências humanas estão olhando [...] e estudando isso à medida que está acontecendo. E as ciências médicas e biomédicas [...] têm uma fase de negação até que aquilo se impõe de tal forma [...] que não tem como se ignorar que aquele grupo precisa de especificidades do cuidado. Só que, enquanto se está criando protocolos para cuidar daquilo, aquilo já mudou [...]. Então, eu tenho a sensação [de] que a gente sempre está... que a medicina sempre está atrasada em relação ao que é necessário de necessidades de cuidado. – Carmela, médica (entrevista, 2018). 6.1. Para uma antropologia da medicina trans à brasileira Em alusão ao “Dia de 29 de janeiro”240, a Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade (SBMFC) lançou, no dia 31 daquele mês, uma nota pública na qual discutia a necessidade de se incluir na Atenção Primária do SUS cuidados para travestis e pessoas trans. Apresentava-se, de maneira inusitada, parâmetros técnicos para a atividade de supervisão e mediação médica para a transição de gênero, dosagens indicadas para hormonização e orientações clínicas, esclarecia-se termos inclusivos, discutia-se formas de abordar pacientes, de entender problemáticas de consentimento e riscos de procedimentos. Em suma, se estabelecia a posição formal de uma comunidade de médicos e médicas sensíveis à violência sofrida por uma população específica e a necessidade de se compreender, abordar e tomar tecnicamente para si a atuação em atenção à saúde para esse grupo de pacientes. Isso é particularmente inovador haja visto que o nível primário tem sido elegido apenas como porta de entrada e não um dos lugares onde procedimentos realmente serão feitos segundo a atual política de saúde trans, como demonstrei no capítulo 4. Era a primeira vez que uma sociedade médica fazia isso de modo tão abertamente despatologizante com um protocolo afirmativo. Apresentando uma posição frontalmente contrária ao diagnóstico do “transexual de verdade”, a nota estabelecia: Da mesma forma como reconhece-se o direito à autodeterminação de gênero para retificação de nome e gênero em documentos civis, é necessário respeitar estudos 240 Celebração nacional em prol de visibilidade política da população trans e travesti, já mencionada no capítulo 5. 314 acadêmicos e perspectivas do movimento social pela despatologização das identidades trans de que não é possível realizar diagnóstico de gênero, pois trata-se de uma identidade construída a partir de parâmetros sociais, culturais e históricos durante um longo período de vida e que não representa um problema de saúde (SBMFC, 2019, online, grifos originais). O texto da SBMFC foi fruto de uma discussão proveniente de seu grupo temático em gênero e sexualidade, a qual ganhou relevância particular a partir de questões colocadas por médicos e médicas numa publicação na internet. Um tema que ganhou bastante relevo foi aquele sobre a continuidade da administração de hormônios em casos de gravidez de homens trans, uma vez que alguns profissionais expressavam preocupação sobre os riscos enquanto alguns ativistas trans acusavam qualquer orientação nesse sentido como controle, reflexo de patologização. Havia uma inquietação de médicos e médicas a respeito, principalmente, devido a possíveis consequências hormonais para o feto, como produção de genitália ambígua. Mas as indagações levantadas não se resumiam a isso. A problemática do risco atravessava implicações de várias ordens para a prevenção de neoplasias e eventuais cardiopatias, por exemplo. Essa publicação técnica e profissional, sugiro, indica uma reviravolta que tem sido produzida na medicina brasileira nos últimos anos, e que demonstra um processo de consolidação da legitimidade de um tipo específico de medicina. Essa legitimidade é contemporaneamente avivada pela concorrência de perspectivas afirmativas e diagnósticas devido ao crescimento vertiginoso das primeiras. Essa medicina eu denomino de medicina trans, e não medicina transexual. O primeiro termo se propõe mais aberto à diversidade sexual e de gênero que este último, mais associado às primeiras investidas médico-psi241. Não se trata de uma especialidade como ginecologia ou cardiologia, mas como um cenário de atuação clínica e cirúrgica que maneja diferentes subáreas da biomedicina para concretizar sua intervenção e mediação. Portanto, não é exatamente o mesmo que a medicina sexual que se preocupa com processos terapêuticos, de quadros bioquímicos, biofísicos ou psicológicos, visando a aptidão de indivíduos para um correto desempenho do desejo. Essa distinção é relevante porque observo que a “lógica do tratamento” do transexualismo/disforia de gênero, como chamou Henry Rubin (2003), é animada por diferentes concepções concorrentes para formar uma lógica do cuidado trans, uma vez que no Brasil tem ganhado maior relevância uma abordagem despatologizada que não implica uma desmedicalização e dá novos espaços para outros tipos de diagnósticos atuarem nas relações médico-paciente e nas formulações científicas de como investigar interações bioquímicas e técnicas cirúrgicas que auxiliem uma transição saudável e uma transição com saúde. Essas duas locuções denotam sentidos sutilmente diferentes. No primeiro caso, diz respeito a compreensão de que a 241 Iniciativas da segunda metade do século XX, como demonstrei no capítulo 2. 315 transição ao ocasionar a alteração corporal (molecular e física) poderia desenvolver adoecimentos que geralmente podem ser evitados se houver supervisão atenciosa. No segundo sentido, se refere à ideia de que o indivíduo não está doente antes da transição e pode realizá-la sem admitir a piora desse processo de adoecimento. Percebo que o primeiro sentido é bem mais presente numa abordagem afirmativa, e o segundo atinge um peso de controle diagnóstico maior. Isso não quer dizer que a primeira não se preocupe com uma avaliação de um estado de saúde anterior a transição, mas que isso não é necessariamente utilizado para um diagnóstico, como acontece na segunda abordagem. Essas duas lógicas disputam entre si espaço e não indico haver um domínio absoluto dessa última. Tal dinâmica, envolve, ainda, uma imaginação cultural que liga preocupações científicas e medos e pânicos morais da preservação da vida dos seres humanos – como já descrevi no caso de Marinalva, descrito no capítulo 2, e que guarda várias semelhanças com a resposta social ao HIV/Aids (Valle, 2000, 2015). A categoria medicina trans é entendida compreendendo um universo social da assistência, da atividade científica e da mediação biomédica à transição de gênero, e não busca dar conta de todas as problemáticas que circunscrevem isoladamente itinerários terapêuticos de outras ordens que não estejam aí associados. Ou seja, medicina trans é uma locução diminutiva para medicina da transição de gênero. Isso não significa atribuir à saúde trans apenas a esfera da transição, muito pelo contrário, já que separar os sujeitos trans numa medicina “específica” seria aquilo que os superficializaria porque os isolaria em apenas um aspecto de suas vidas. Por tal expressão entendo abarcar as terapêuticas constituídas e as epistemologias que lhes sustentam, que justificam tal medicina como uma prática benéfica à vida humana e às formas de ação que engajam cientistas e profissionais de saúde em todas as suas manifestações implícitas e explícitas. Faço ainda uma relação estreita com o que Eric Plemons (2017, p. 7, tradução minha) concebe como terapêutica trans: “a estrutura lógica dentro da qual várias intervenções passam a fazer sentido como ‘boa medicina’”. Assim, as suas práticas e concepções orbitam entre responder a origens, racionalidades de tratamento e medidas de resultados. O autor desenha uma relação direta com as compreensões da lógica do cuidado empreendidas por Annemarie Mol (2008): Como todas as lógicas de tratamento, a terapêutica trans liga entendimentos de origens (qual é a natureza da preocupação pela qual as pessoas trans buscam intervenções cirúrgicas, ou o objetivo para o qual correspondem intervenções específicas?), racionalidades de tratamento (quais intervenções são respostas apropriadas a essa preocupação ou objetivo?), medidas de resultados (como nós saberemos se tais intervenções adequadamente endereçaram esta preocupação ou alcançaram seu objetivo?). Essas questões e suas respostas trabalham juntas para determinar que tipo de coisa é “trans” como um objeto clínico que pode organizar intervenções clínicas específicas; elas formam esse objeto como um tipo de projeto corporal ao qual intervenções particulares parecem naturalmente e racionalmente corresponder (Plemons, 2017, p. 6-7, tradução e ênfase minhas). 316 Portanto, essas questões não são uma prerrogativa apenas de “contextos patologizantes” – e que com certeza não são ainda projetos de certos médicos, mas são também trazidos à luz por pacientes –; essas dimensões da prática médica ligam todos os cenários, afirmativos ou não, porque o que muda entre eles é a terapêutica trans que engajam. Separá-los entre a percepção da transexualidade (ou transgeneridade)242 como objeto clínico válido à intervenção perde de vista que essa legitimidade pode partir de concepções diferentes243. Isto leva-nos a perguntar: o que acontece quando médicos não são unânimes quanto às origens, mas atuam juntos na geração de práticas de cuidado e na medição de seus resultados? Assim, este capítulo tem como objetivo principal compreender a entrada de médicos e médicas no cenário da medicina trans, partindo da consideração, segundo Gilberto Velho (1986), de que trajetórias de vida são formadoras de experiências de subjetividade. Atenho-me, principalmente, a como suas carreiras na medicina dão ou não espaço para que esse tipo de atuação se torne possível. Ao procurar entender as explicações dos interlocutores sobre o contato com pacientes em processo de transição de gênero procuro dar relevo a como essa relação se torna um “projeto individual” (Velho, 1985, p. 31) enquanto um projeto de profissão. O projeto como “uma tentativa consciente de dar um sentido ou uma coerência” a uma “experiência fragmentadora” compõe o mundo social e, portanto, se circunscreve particularmente nas cobranças da biomedicina na formação de novos profissionais. Com isso, demonstro contextos de prática médica e disputas e reprodução disciplinares através das narrativas de si. Entendo que não são apenas médicos e médicas que conformam a atenção em saúde, mas inclui-se uma gama variada de outros profissionais atuantes nos serviços de saúde desde o porteiro até a sua diretoria burocrática. Porém, por considerar questões de abordagem metodológica possíveis no campo e o escopo da pesquisa, irei considerar apenas a medicina e seus profissionais devido a sua formação enquanto campo social se incutir de modo muito particular na definição e 242 Embora parte do movimento social trans inste que transgeneridade e transgênero sejam conceitos menos patologizantes do que transexualidade e transexual – no argumento de que esses foram inventados pela medicina e aqueles não – ambos os conjuntos de termos foram gestados em relação com a medicina; essas oposições se referem mais a seus usos e reinterpretações, que pertencem a múltiplos e compõem diversos cenários. Assim é o caso também do termo cisgênero, que tem raiz nas proposições do psiquiatra e sexólogo alemão Volkmar Sigusch (1994, 1998, cf. 2011) para responder a sua proposição de interpretar o que chamou de neossexualidade (cissexuais em oposição a transexuais). Além disso, é possível perceber como categorias gestadas por ativistas como ferramentas de mudança social também podem ser incorporadas nos discursos médicos de modo a extrapolar suas intenções iniciais e até de revertê-las. Foi algo, dentre outros elementos, que Claudia Castañeda (2015) mostrou ao analisar o modelo desenvolvimentista da abordagem médica diante de crianças e jovens trans no contexto estadunidense. 243 Emprego o termo afirmativo no sentido da facilitação e da ausência de critérios diagnósticos, os quais quando presentes podem produzir uma negação do cuidado na sua plenitude. O termo em língua portuguesa de “confirmação de gênero” usado para se referir a cirurgias e outros procedimentos relativos à transição de gênero entre médicos e nos protocolos oficiais mais recentes detém alguma rejeição por se considerar que tais práticas biomédicas provariam (e por isso confirmariam) a transgeneridade ou transexualidade de alguém. Confirmação e afirmação são, portanto, noções diferentes e têm empregos variados e serão aqui referenciados nos contextos e sentidos que aparecem no campo observado. 317 prática das terapêuticas trans244. Cumpre entender como o contexto sociocultural do Ceará circunscreveu uma atuação clínica e cirúrgica em torno da medicina trans, observando relações entre emoções e política, e as bases epistemológicas de cunho racional e científico, além dos motes e tropos sobre o que sexo e gênero vêm a ser. O foco desse capítulo, portanto, não é mostrar os médicos em atendimento de modo per se – de maneira nenhuma avaliando suas condutas nem orientando “boas práticas” –, mas o de situá-los e situá-las a partir das interpretações e subjetivações que narram e indicam nas entrevistas e nos momentos de interações nos quais se deu a observação etnográfica nos serviços de saúde em que trabalham a partir dos espaços públicos de circulação, da atividade docente e da divulgação científica em eventos. Algo que gostaria de considerar neste capítulo, e que nem sempre é trazido à tona, é que a medicina trans está intimamente ligada ao tipo de sistema de saúde em que ela emerge e se transforma, e não apenas a concepções de sexo e gênero. A compreensão do que é feito por exemplo nos Estados Unidos quanto a isso não pode ser transportado para entender o contexto brasileiro simplesmente porque os manuais de saúde, os guias de orientações clínico-cirúrgicas e as teorias originárias não são recebidas, interpretadas e postas em prática exatamente da mesma maneira em todos os lugares, mesmo que a ideologia médica – que também tem origens específicas e transformadas – possa universalizar sua prática e solapar as diferenças locais. Além disso, a sociedade brasileira, e suas múltiplas formações socioculturais ao longo do território nacional, difere substancialmente em termos das posições sociais de homens e mulheres, noções de masculinidade e feminilidade, dinâmicas sociopolíticas, e inclusive no modo como as mudanças sociais ocorrem. Plemons propõe sua abordagem teórico-metodológica sobre a medicina trans partindo de sua pesquisa sobre a cirurgia de feminização facial, de como esse procedimento se tornou necessário para confirmar o gênero e provar o sexo de alguém. Como explica, o rosto se tornou um elemento fundamental do sexo na sociedade estadunidense porque o que é sexo se transformou socialmente. Por isso que o elemento de transformação da terapêutica trans é tão latente: para explicar por que cirurgias de transgenitalização não são suficientes demanda-se crescentemente modificar também o rosto. Contudo, considero pertinente o emprego da noção de terapêutica trans porque no Brasil é crescente não apenas os tipos de procedimentos cirúrgicos que são tornados como necessários245, 244 Outras áreas das ciências da saúde no Brasil pouco ou nada normalizaram suas atuações nesse sentido, com exceção do pioneirismo da psicologia que detém resoluções técnicas para a clínica de seus profissionais (CFP, 2018). Até a sua resolução n. 2.265 de 2019 o CFM tentou normatizar o trabalho de outras áreas, mas desde essa normativa se ateve apenas ao seu campo. Essa é uma questão de pesquisa que merece ser mais bem explorada pela antropologia no país: o que tem pensado e como tem agido outros conselhos de profissionais de saúde, como da enfermagem, fisioterapia, terapia ocupacional, serviço social? 245 Conforme demonstrei no capítulo 4, as portarias e resoluções do Ministério da Saúde e do Conselho Federal de Medicina têm cada vez mais incluído novos procedimentos ao longo de suas atualizações. Conforme vi em campo, principalmente no cenário do sistema de saúde suplementar (o mercado privado), crescem o número de médicos e de clínicas que oferecem muitos procedimentos diferentes para a transição de gênero como feminização facial, feminização corporal, entre outros. 318 mas porque é cada vez maior a concorrência entre práticas médicas opostas: o que estou chamando de um lado, diagnósticas e, de outro, afirmativas, as quais disputam entre si a representação legítima do conhecimento e prática biomédica no tema246. Tal definição tem mais um propósito metodológico, uma vez que considero que sua conformação na realidade social possa assumir feições muito mais borradas. A radicalidade da diferença da posição formal da SBMFC e aquela do Conselho Federal de Medicina dos anos 1970 – como demonstrei no capítulo 2 – e até mesmo as normativas atualmente vigentes, desde os protocolos do Processo Transexualizador, demonstram mudanças sociais que não implicam, contudo, uma mudança que aponte para substituições radicais de saberes e práticas, mas antes superposições e justaposições que criam/confirmam a heterogeneidade de camadas e espaços na medicina brasileira. Uma publicação anterior, de outra sociedade médica, trazia um posicionamento diferente daquele apresentado pela SBMFC. A Sociedade Brasileira de Pediatria, através de seu Departamento Científico de Adolescência, lançava, em junho de 2017, o seu Guia Prático de Atualização. Aí se apresentava como o/a pediatra deveria “diagnosticar” e “tratar” a disforia de gênero em crianças e adolescentes, estando alerta para elementos que servem de prova para tanto numa interface multidisciplinar dentro da biomedicina. Antes de apresentar os critérios que já vimos no capítulo 3 sobre a contemporaneidade do diagnóstico, o documento indicava: A avaliação clínica inicial deve privilegiar o sujeito, acolhendo-o de forma empática e integralizada. Um acompanhamento individualizado e contínuo é indispensável nestes casos e o pediatra tem um papel fundamental de aconselhamento e encaminhamento para o acompanhamento psicológico do adolescente e seus familiares. Deve-se identificar se o indivíduo preenche os critérios diagnósticos, se apresenta interesse em realizar intervenções clínicas ou cirúrgicas para mudança de gênero no futuro, avaliar o suporte social (sobretudo para o paciente e a família), assim como os aspectos relacionados à saúde mental (SBP, 2017, p. 6, ênfase minha). Assim como a SBMFC estava preocupada em mostrar como o médico de família e comunidade poderia se preparar para atender clinicamente pessoas trans, indicando que a hormonização deveria ser realizada já na Atenção Primária, a SBP também indicava como o médico pediatra deveria trabalhar. Contudo, as duas posições e abordagens são fortemente antagônicas, de modo que a SBP está total e profundamente ancorada no DSM-5 e na procura por critérios de definição de transexuais de verdade cuja ênfase estabelece que transexuais seriam sempre em menor número em relação aos pacientes que demandam tal pertencimento (o caráter da raridade ainda é presente). Essas publicações representam em muito as concepções científicas e as leituras de como abordar o ser humano que animam tais associações; a primeira estando mais bem localizada numa 246 Há, ainda, o contingente da medicina que duvida da validade científica da transexualidade e rejeita qualquer alteração corporal, como foi o caso exemplificado pela médica Marinalva, citada no capítulo 2. 319 medicina afirmativa e a segunda numa medicina diagnóstica. Nesse sentido, a disparidade das duas Sociedades não se refere a uma questão temporal, haja visto o pequeniníssimo intervalo entre as duas publicações (2017 e 2020). Por isso não é suficiente entender como os primeiros teóricos biomédicos conceberam a transexualidade e o contexto no qual a mudança de sexo se tornou uma possibilidade factível à ciência. É necessário integrar compreensões etnográficas de como a atuação clínica e cirúrgica se dá na contemporaneidade a partir de contextos específicos, de modo a perceber ainda como os profissionais reinterpretam não apenas as teorias que concebem a transexualidade biomedicamente, mas também como aplicam protocolos de intervenção e constituem linhas de atenção à saúde à luz do presente e das mudanças sociais que vivem e dos sistemas de saúde em que estão inseridos. A discrepância das publicações da SBMFC e SBP, bem como o que irei descrever nesse capítulo, demonstram que as posições oficiais dos documentos do Ministério da Saúde e do Conselho Federal de Medicina contemporaneamente – e isso é também verdade para o passado, como demonstram o caso Farina e as disputas em torno da possibilidade das cirurgias no contexto paulista descritos no capítulo 2 – estão longe da unanimidade e representam, por outro lado, as concepções que compelem aqueles profissionais que estão ocupando tais diretorias, gestão e representação profissional e acadêmica. Vê-se uma oposição de médicos e médicas de família e comunidade à Resolução n. 2.265, de 20 de setembro de 2019, do CFM que buscou atualizar os termos do cuidado em saúde trans no país, mantendo critérios diagnósticos apesar de sua linguagem parecer mais afirmativa, como já indicou uma análise detida de Amana Matos et al. (2020). Mesmo com a atuação do Conselho através de resoluções, portarias e outros documentos, e a existência da política de saúde, não existe ainda nenhuma organização, manuais ou guias clínicos e cirúrgicos de grande alcance sobre saúde trans no Brasil a partir de sociedades específicas. Essa movimentação acontece, por sua vez, dentro dos grupos que se organizam de uma maneira frouxa a partir de suas próprias associações e áreas de carreira – ou redes difusas, como é o caso do Ceará –, como percebe-se através dos guias lançados pela SBMFC e SBP. Noutra direção, com um formato interdisciplinar, surgiu, em junho de 2017, no eixo São Paulo/Rio de Janeiro/Brasília, a Associação Brasileira Profissional pela Saúde Integral de Travestis, Transexuais e Intersexos (ABRASITTI/BRPATH)247, reunindo profissionais de saúde variados que também são funcionários do Ministério da Saúde e alguns médicos e ativistas trans. A Abrasitti se apresenta como sendo uma versão brasileira da Associação Profissional Mundial de Saúde Transgênera (WPATH, na sigla em inglês) e que reúne nos Estados Unidos médicos clínicos e 247 A atual presidente da ABRASITTI é a farmacêutica e ativista travesti Alícia Krüger. Disponível em: . Acesso em: jul. 2020. 320 cirurgiões e ativistas em torno de serviços e saberes no tema248 ao indicar profissionais, um guia de orientações biomédicas e organização de eventos científicos. Trata-se, atualmente, de um dos organismos mais influentes globalmente na saúde trans. Embora os membros da versão atuante no país possam ter estado presentes junto aos setores estatais e tenham participado de algum modo da última edição das orientações do CFM sobre o Processo Transexualizador, lançado em 2019, a sua atuação ainda não detém de reverberação orgânica no cotidiano da saúde trans ao longo do território nacional. Os médicos e as médicas que conheci e convivi faziam referência ao guia Padrões de Cuidado (Standards of Care), da WPATH, mas não conheciam ou não tinham contato com a Abrasitti. Isso é interessante de pontuar para demonstrar o contexto da pesquisa e o cenário brasileiro atual. Entender essas associações, contudo, seja nacional ou estrangeira, pouco nos revela sobre a medicina brasileira feita no chão do SUS e do sistema suplementar. Uma vertente do meu interesse de pesquisa para o doutorado sempre foi integrar diferentes perspectivas sobre o mundo social da saúde trans. Com isso, compreender as práticas de médicos e médicas atuantes nesse sentido se tornou condição primeira para levar a cabo esse objetivo. Tanto porque um entendimento maior sobre o universo da saúde demanda, fundamentalmente, a inclusão de profissionais de saúde, como demonstraram Rozeli Porto (2009) a respeito do aborto e Carlos Guilherme do Valle (2000) sobre o contexto da resposta brasileira a pandemia de HIV/Aids. A literatura e as pesquisas antropológicas sobre o campo social da saúde trans são férteis – e em crescimento vertiginoso, como já demonstrei no capítulo 3 – em demonstrar as relações médico- paciente desde a visão dos usuários dos serviços – além de também serem proeminentes pesquisas em várias áreas do conhecimento sobre temas variados. Não há ainda uma pesquisa social, nem muito menos etnográfica, sobre a medicina trans brasileira e seus profissionais de algum modo desde “dentro” de suas práticas, isto é, que leve em consideração o que esses sujeitos compreendem de si mesmos e como agem profissional e cientificamente de um modo que se possa partir de seus próprios termos para analisá-los e descrevê-los249. No Brasil, pesquisas sobre médicos têm movido antropólogos e antropólogas em cenários como o da concepção da medicina de família (Bonet, 2014), aprendizagem de residentes (Bonet, 2004), atividade docente e clínica (Camargo Jr., 2004), emergência hospitalar (Giglio-Jacquemot, 2005; Sarti, 2005), resposta ao HIV/Aids (Valle, 2000) e até as abordagens historiográficas sobre a 248 A WPATH nasceu como Associação Internacional Harry Benjamin de Disforia de Gênero (HBIGDA) emergida, portanto, da interlocução com as formulações iniciais de Benjamin mesmo que não tenha deixado de sofrer transformações desde então. Na minha dissertação refleti sobre a versão contemporânea de seu manual, o Padrões de Cuidado (Rego, 2015). Ver Castañeda (2015) e Bento (2008; 2010b) para a relação desse manual em sua versão original e outros manuais de saúde (os quais já foram discutidas no capítulo 3). 249 Pesquisas etnográficas como a de Eric Plemons (2017), no contexto euro-estadunidense especificamente, sobre a medicina trans ainda são bem menores em relação àquelas sobre outros agentes no universo social trans, como bem me demonstrou em comunicação pessoal no período de co-orientação do estágio sanduíche realizado em 2018-19 em Tucson/EUA. Ou seja, essa escassez não é apenas brasileira. 321 formação da ginecologia (Rohden, 2001) com uma forte concentração regional que parte majoritariamente desde o Rio de Janeiro (cf. Leibing, 2004), além de saúde indígena no Norte (Pereira, 2012) e no Nordeste do país (Neves, 2017) e do atendimento hospitalar de mulheres em abortamento e o problema da objeção de consciência (Silva, 2017), por exemplo. Entretanto, tais estudos são pouco expressivos quando comparados a pesquisas com sujeitos à procura de cura em relações médico-paciente ou numa atmosfera de pluralismo de especialistas terapêuticos externos a biomedicina ocidentalizada (Loyola, 1985; Duarte, 1986; Jerome, 2015; Bastos, 2018), bem como diante das consequências sociais de pandemias como a do vírus da zika na subjetivação de crianças (Valim, 2020). E, até mesmo, se relativas às pesquisas mais frequentes sobre questões diversas, envolvendo enfermeiras ou assistentes sociais (Porto, 2009; Silva, 2010; Fleischer, 2018), agentes comunitários de saúde (Santos, 2016), sexólogos (Russo et al, 2009; Carrara e Russo, 2002), psicanalistas e psicólogas (Russo, 1993, 2002) e demais agentes sociais formuladores de políticas públicas (Maluf, 2010). Assim, em geral, é mais frequente que médicos estejam relacionados com os pacientes em pesquisas antropológicas do que ocupem um cenário etnográfico no qual sejam os interlocutores privilegiados (Luna, 2007; cf. Sarti, 2010). A dificuldade de acesso a esses interlocutores médicos parece ser um dos elementos mais fortes para caracterizar esse cenário de escassas pesquisas250. Embora compreendam estar num cenário heterogêneo, ainda dizem respeito a um campo social de altíssima autonomia e menos suscetível aos olhares esotéricos. Como resultado disso percebo que tem detido maior apelo pesquisas socioantropológicas que se concentram mais nos pacientes do que nos próprios médicos. Isso pode ser visto também como um resultado das mudanças no paradigma hegemônico da biomedicina, desde primeira metade do século XX251, a partir das quais mais atenção foi dada a um modelo centrado no paciente e na sua subjetividade e menos ancorado apenas na busca pelo tratamento de doenças (Mol, 2002; Lock e Nguyen, 2010; Jerome, 2015). A figura do médico como um sujeito em meio a contextos que o animam tem aí menos força. As pesquisas antropológicas, por outro lado, têm se preocupado desde a passagem do século XIX e o começo do século XX com os especialistas de cura de comunidades indígenas. E esse interesse foi redobrado quando os antropólogos se voltaram cada vez mais para as suas próprias sociedades 250 Antropólogos e antropólogas têm ainda apontado para a dificuldade de acessarem grupos sociais específicos, dado o seu princípio de distinção social, como as elites econômicas e as elites políticas (Teixeira, 2004; Teixeira, Lobo e Abreu, 2019) – políticos eletivos profissionais – que compõem classes sociais médias altas e altas (Nader, 1972). Contudo, as dificuldades que tive não são necessariamente dessa ordem, mas dizem respeito ao caráter de campo social de altíssima autonomia que tem a medicina. 250 Fazer essa observação não significa dizer que ativistas “não sejam politizados”, mas, sim um fator de desinteresse indicado por parte dos interlocutores médicos. 251 Mesmo que não fosse seu foco de análise, Talcott Parsons (1991 [1951], p. 289, tradução minha) já indicava, na década de 1950, o crescimento da ênfase na saúde preventiva pela medicina, a qual passava a se preocupar também em “controlar as condições que produzem a doença”. A segunda metade do século XX, portanto, assiste à globalização dessa perspectiva e não a sua emergência absoluta que teve lugar nos Estados Unidos, o cenário que passa a solapar a influência do modelo biomédico francês no Brasil (ver Bonet, 2004). 322 com os estudos sobre o sistema biomédico ocidental e seu racionalismo (Eisenberg, 1977; Kleinman, 1986; Good, 1994; Dein, 2007) e as formas alternativas produzidas pelas explicações populares sobre doença e cura (Duarte, 1986, 1998a, 1998b). Além de tudo isso, como qualquer etnografia, tais barreiras situam-se desde a capacidade de inserção e a rede de contatos do etnógrafo e da etnógrafa. Diante dessa ausência se torna quanto mais necessário se debruçar sobre a atuação e as perspectivas – representações, práticas, discursos – de médicos e médicas a respeito de seus trabalhos/carreiras e de suas trajetórias na conformação de processos de subjetivação. Nesse sentido, esse capítulo se interessa por uma descrição que entenda esses interlocutores por eles mesmos. Mas, cabe antes situar historicamente a prática médica local e sua inserção nacional em relação a medicina trans. 6.2. Formação e dinâmica do cenário médico cearense A historiografia já realizada sobre a medicina cearense não indica nenhuma movimentação de força em relação à sexualidade, nem muito menos à terapêutica trans, mais antiga do que aquela que encontrei em campo; o que não significa dizer que ela não tenha existido, e, sim que as pesquisas até aqui são inconclusivas a respeito ou não se preocuparam com o tema. A grande preocupação de saúde pública que engajava gestores governamentais e médicos fora, desde o período colonial até o início do século XX, as epidemias que se tornaram endêmicas, como a febre amarela, a cólera e a varíola oitocentista e novecentista na capital e em várias cidades do estado (Martins, 2013; Garcia, 2011; Bezerra, 2002; Jerome, 2015). Segundo Francisco Barbosa (2012), o desenvolvimento da “estrutura de saúde” da região esteve aliado nesse período à precariedade, de modo que os serviços eram aprimorados ou criados conforme mostravam-se insuficientes ou inexistentes ao exporem um forte quadro de sofrimento e dor dos moradores. O foco de atuação recaía numa administração governamental que girava em torno de propiciar uma salubridade urbana por meio da criação de “comissões de socorro”, preparação de equipamentos, contratação de profissionais sem, com isso, possibilitar um maior controle das infecções e dos tratamentos. O Centro Médico Cearense, criado na primeira metade do século XX, se erigiu como um espaço para o desenvolvimento e consolidação da medicina da região. A história da saúde nesse momento assiste a uma construção social do prestígio do médico acadêmico. Unindo ainda dentistas e farmacêuticos, a revista do Centro, chamada de Ceará Médico, foi publicada entre 1913 e 1979 como um meio de difusão da produção local para o resto do país. Segundo Ana Garcia (2011), esses profissionais procuravam legitimar suas práticas clínicas com propagandas de abordagens medicamentosas ao lado de relatos de casos e pesquisas. Além disso, a historiadora demonstra que foram realizados congressos e alianças profissionais com organismos internacionais como a 323 Fundação Rockfeller e regionais como a comunidade médica paulista, também em consolidação nesse período de início da industrialização brasileira. Nesse processo de consolidação cearense, Garcia reforça que: Pode-se observar as realizações de alguns médicos ao fundarem instituições destinadas à organização da saúde pública de Fortaleza no início do século XX, e que apesar de contarem com apoio Estadual e Federal partiam de ideias e ações individuais de alguns médicos. Deve-se destacar que a ideia sobre saúde passava por transformações em Fortaleza, nesse período, já que as práticas médicas advindas com a medicina acadêmica estavam predominando e acentuando mais ainda a distância a rejeição às práticas populares de cura (Garcia, 2011, p. 25). Muito embora não seja minha intenção recobrar toda a história da saúde pública do Ceará, cabe evidenciar a observação de Ana Garcia quanto a continuidade histórica da resistência local quanto a interferências externas, isto é, que nem sempre aquilo que era trazido de fora era visto como inovador pela comunidade científica cearense, nem seria aceito de antemão pela população. A legitimidade construída pelo grupo em torno da Ceará Médico chega, então, a possibilitar a criação da Faculdade de Medicina que hoje integra a Universidade Federal do Ceará, como meio de formar em casa os profissionais hábeis para tratar a população e de trabalhar também em contextos de prevenção à saúde. No âmbito da reforma sanitária da República Velha, o estado foi um dos últimos da região do atual Nordeste a se beneficiar dos programas federais de saúde, dada a maior importância política atribuída à época a Salvador e Recife. É o que explica Jessica Jerome (2015, p. 46, tradução minha), ao mostrar, contudo, que ao chegarem na região esses programas ajudaram a organização da expansão “[d]os serviços médicos no estado e sustentou um modelo de cuidado em saúde que enfatizou mais um cuidado preventivo do que um cuidado curativo oferecido em clínicas comunitárias”252. A reprodução social, no seu sentido bourdieuriano, da medicina cearense perpassou, no seu início de consolidação no século XX, a afirmação política das próprias elites locais (Gadelha, 2012). Mesmo que no decorrer do campo de pesquisa eu não tenha deixado de identificar interlocutoras e interlocutores que eram provenientes de famílias de classe média alta ou alta, percebendo suas posições como importantes atualmente nas universidades e nas instâncias governamentais da capital, esse cenário se diversificou grandemente dada, entre outros fatores, a maciça circulação nacional de estudantes e de profissionais formados entre residências e postos permanentes, ao aumento da mão de obra treinada e a estruturação estatal de um sistema unificado de acesso à 252 Pesquisadoras como Jessica Jerome (2015) e Ana Garcia (2011) fazem um panorama abrangente dos diferentes períodos históricos do país e do Ceará para mostrar o desenvolvimento de ideias de prevenção em saúde e dos germes do atual Sistema Único de Saúde. Jerome argumenta que essas raízes são perceptíveis nos programas da República Velha, como o Funrural, e as políticas getulistas, movimentando ideais que ganham vulto crescente até culminar no SUS. O atual sistema não é simplesmente fruto da redemocratização dos anos 1970/80. 324 universidade e a consolidação da medicina como carreira. A migração interna de profissionais gera, portanto, uma diversidade de suas origens e não incute uma automática e imediata reprodução da elite local de maneira totalizante. Essas duas dinâmicas, portanto, estão presentes no grupo de médicos e médicas que conheci em Fortaleza. Assim como não há uma sociedade de medicina trans consolidada de alcance nacional, não há uma do tipo regional. Entretanto, essas “comunidades” não deixam de se formar, mesmo que não tenham limites muito claros. O que existe no país é mais uma rede articulada na qual se conhece os profissionais, suas habilidades e especialidades, práticas e experiências que se tornam notórias. O envolvimento desses médicos com a terapêutica trans se dá de uma maneira aparentemente pouco organizada. Isso também diz respeito ao caso particular do contexto cearense. Eu precisei conhecer alguns integrantes dessa rede para poder navegá-la e entendê-la. Aqui, a técnica de bola de neve como tática metodológica ganha um sentido etnográfico tanto por se mostrar como artifício para o acesso aos interlocutores e ao universo, como por ser essa a sua forma de organização profissional: um modo difuso de organização em rede. Essa não é, em si, uma produção intrinsicamente própria da medicina trans, mas esteve presente na dinâmica particular de processos de consolidação de áreas na biomedicina moderna como nos fazem entrever as comparações com outros processos, como o reconhecimento das neoplasias, das epidemias e do SUS no Ceará já elucidados até aqui. Não estou inferindo que medicina trans ganhará o mesmo status organizado desses outros estratos biomédicos, embora haja essa possibilidade conforme se ganhe maior consolidação científica. Não procuro prever o futuro. O que há até agora são essas redes de profissionais que se materializam na organização de congressos e outros tipos de eventos, publicações, cursos de formação, indicação de colegas entre pacientes e criação de serviços. É importante apontar essa especificidade do cenário local porque grupo social e rede social não correspondem às mesmas unidades. Estou me referindo, portanto, àquilo que Elizabeth Bott (2001, p. 58, tradução minha) chamou de “relações sociais externas” que assumem a forma de uma “rede social” (network). Nessa formação, “apenas alguns indivíduos, e não todos, detêm relações sociais uns com os outros”. Já em um “grupo organizado os indivíduos componentes criam um todo social maior com objetivos comuns, papeis interdependentes e uma subcultura distintiva”. A rede de médicos em torno da terapêutica trans poderia ser pensada como grupo se, conforme distinção apontada por Bott, for considerado o seu sentido lato enquanto “qualquer coletividade cujos membros são similares de alguma maneira; esta definição pode incluir categorias, classes lógicas, agregados, bem como unidades sociais coesas” (Bott, 2001, p. 58, n. 1)253. 253 Ver Bott (2001) para observar uma considerável linhagem teórica sobre o conceito de rede na antropologia, indo de Rivers a Radcliffe-Brown e outros autores até a década de 1950. No capítulo 1 demonstrei como as relações e as redes se constituíram a forma como tomou o objeto desta tese. 325 Por haver, o que parecia à princípio, formações tão borradas que apresentavam grande dificuldade para ser contidas em um agrupamento mais estrito – só depois cheguei às formulações de rede social –, eu me perguntava no decorrer do trabalho de campo porque os profissionais que conheci – incluindo aqueles que não aceitaram as entrevistas – se interessavam por uma prática clínica (e, às vezes, cirúrgica) pouco valorizada em meio aos seus pares imediatos do cotidiano e em meio à medicina acadêmica brasileira em geral. Mesmo que seja reconhecida, com protocolos de atenção atualmente em documentos oficiais do Ministério da Saúde e do Conselho Federal de Medicina, essa não é uma área de atuação de grandes holofotes positivos, ou como alguns colocavam, de “atração financeira” vultuosa, como por exemplo neoplasias (uma das áreas de maior dispêndio econômico público e privado para os governos e pacientes diretamente pagantes) como me reiteravam os interlocutores. A clínica relativa à supervisão da transição de gênero, é por outro lado, um espaço de grandíssima politização, e isso tem sido erigido por alguns médicos como um dos motivos para se afastarem dessa atuação. Inclusive, a medicina trans pode atrair um certo estigma profissional em determinados círculos, como pude perceber ao acompanhar interlocutoras e interlocutores em diversos momentos como em eventos científicos e nas dependências coletivas dos serviços que trabalhavam. Não deixam de surgir, por exemplo, piadas entre colegas ou acusações por pura divergência teórica, e que não podem ser vistas como dissociadas de elementos socioculturais próprios das relações de gênero (já que a maioria desses profissionais interessados são mulheres). Isto é, as vulnerabilizações que esses sujeitos vivenciam por causa de suas posições nas relações de gênero tanto lhes dá acesso a uma área pouco valorizada, como pode gerar uma substância para acusações de sua pouca cientificidade. Nesse sentido, o status da medicina trans pode ser muito ambíguo, e ainda oscilar entre uma boa medicina, e uma medicina menor, a uma medicina ruim, ou menos científica, no âmbito mais geral da comunidade de especialistas. Muitas das categorias de acusação marcadas contra Farina, na década de 1970, são renovadas no presente, seja por profissionais ditos sensíveis, seja por seus contrários. Como já mencionei, tive grandes dificuldades para concretizar uma inserção etnográfica nesse contexto, principalmente porque procurava acompanhar a clínica e a cirurgia, mas meu acesso a tais profissionais se deu majoritariamente em salas de espera dos serviços, seus corredores, saguões, contatos de calçada, congressos científicos, e, quase sempre, consultórios sem pacientes quando me recebiam após um longo período de trabalho. Mas, ao seguir a rede de médicos e médicas pude tirar o melhor proveito metodológico dos contatos possíveis e passei a ver com bons olhos essas interações, suas possibilidades e limitações para responder minhas questões. Até porque a presença do pesquisador em consultórios durante consultas particulares entre médicos e pacientes/clientes não implica alcançar um conhecimento mais profundo sobre essa relação nem 326 sobre o cuidado e a atenção à saúde em geral. Gravar tiques e maneirismos, marcar gagueiras ou hesitações nas falas, ou ainda posturas em um momento tão específico de modo isolado de todo o funcionamento do serviço e das vidas pessoais e profissionais desses agentes não garante uma melhor pesquisa. Uma vez que as interações nesses ambientes não deixam de ser também codificadas sociocultural e politicamente, dados daí construídos não fornecem materiais mais fidedignos em si. Uma consulta, por outro lado, ao ser assistida pelo etnógrafo pode inclusive ser um empecilho para o acompanhamento de certos interlocutores pacientes fora do serviço. O que quero dizer é que há aspectos positivos e negativos da presença do pesquisador em todos os lugares que circula e dados diferenciados, mas não “melhores”. Todos os microcenários que envolvem agentes sociais no campo da saúde são igualmente atuantes na conformação de seu universo e “falam” ao pesquisador. Pela pequenez do número de interlocutores que consegui entrevistar, como já indiquei, a manutenção do anonimato é de difícil efetivação, já que alguns desses são muito bem conhecidos e um nome fictício talvez não seja suficiente para impedir que leitores bem informados os reconheçam. Como próprio de um campo em ascensão, sujeitos individualizados ganham grande destaque por seu pioneirismo, e isso não é diferente aqui. Contudo, como já mencionei, preservarei esses nomes fictícios e procuro borrar as identificações na medida do possível para protegê-los. De antemão, é bom salientar que não imputo à minha descrição etnográfica nenhum teor avaliativo em termos morais ou de eficácia desses profissionais segundo nenhuma perspectiva que não seja a deles, e procuro entender a lógica de suas práticas, no sentido bourdieuriano. Isso não significa inferir que eu me aparte subjetivamente de modo absoluto da realização da pesquisa ou que as técnicas que eu empregue sejam neutras em si mesmas. Minha subjetividade se manifestou de várias maneiras em campo e na análise (também à mesa), principalmente na minha admiração diante do trabalho de médicos que me pareciam tão dedicados a facilitar e “ajudar” pessoas trans a transicionarem “em segurança”. Contudo, isso não implica que o pesquisador, como nos demonstrou Bourdieu, Chamboredon e Passeron (2002b), não possa trabalhar para romper com as pré-noções através do emprego de técnicas de ruptura com os princípios que tomam o mundo social como dado e apenas lido pelo pesquisador ao buscar sua objetivação. Procurei, portanto, sempre animar meu olhar para entender aquilo que constituía as narrativas e as bases epistemológicas dos entendimentos dos interlocutores sobre sexo, gênero e sexualidade e sobre o próprio trabalho da biomedicina. Como uma das formas de romper com uma sociologia espontânea acerca desses médicos, não me instei ao trabalho de identificação de médicos patologizadores versus médicos afirmativos. São os próprios interlocutores que demonstram se observam ou não a transexualidade como algo diagnosticável e essa não é uma imposição 327 moralizante da minha parte sobre o que fazem. Quando, por exemplo, perguntava a uma médica sobre como enxergava a classificação nosológica da transexualidade, ela me respondia que via como “dentro do espectro sim do distúrbio”. Então, o que me importava observar não era simplesmente sua assertiva quanto a isso, mas entender quais são as explicações que a levam a formulá-la. Como isso ganha sentido? Sobre que noções/narrativas acerca de sexo e gênero se assentam? E como práticas são levadas à cabo? Seriam essas sempre idênticas quando há a identificação do “transtorno”, “distúrbio” ou “disforia de gênero”? Mesmo que eu não apresente respostas para todas as perguntas que realizo nessa tese, e principalmente nesse capítulo, procuro entender os processos de subjetivação desses profissionais desde suas expressões próprias. Para realizar uma etnografia da medicina trans no Ceará seguirei para a descrição dos meus encontros e observações daquilo que foi possível, e a uma descrição da formação dessa rede através das trajetórias sociais desses profissionais em meio a carreira e a especialização na terapêutica trans na clínica ou na cirurgia. Isso não deixa de gerar também um certo quadro de historicidade, mas não tenho interesse em separar uma história genérica254, nem muito menos recobro uma simples e mecânica cronologia sem sujeitos. As histórias de vida dos profissionais estão situadas etnograficamente no campo que observei, mas participam da estruturação do campo da medicina trans. Isso tudo recobra e não separa agências a estruturas sociais, as quais são indissociáveis, isto é, o primeiro sempre compõe e reproduz o segundo num longo processo no qual as normas são construídas e desconstruídas. Assim, as experiências de médicos e médicas que conheci ganham forma como realidade vivida expressadas por suas autoanálises. 6.3. Trajetórias de sensibilização e carreira médica Numa primeira consideração imaginei que o interesse de profissionais pela medicina trans seria decorrente de experiências nas quais teriam sido marcados subjetivamente no âmbito das relações de gênero e sexualidade por terem ocupado algum tipo de posição marginalizada. Essa era uma espécie de hipótese de trabalho que gostaria de verificar conforme o campo se aprofundava, uma vez que os primeiros interlocutores que conheci viveram algo nesse sentido. Embora eu tenha 254 Têm-se apontado, na antropologia, para o fato de etnografias se tornarem registros históricos, uma vez que são descrições situadas em períodos específicos das vidas dos pesquisadores e do contexto social dos interlocutores. Assim, não me proponho a fazer uma historiografia no seu sentido lato, mas estar a par dos movimentos teórico-metodológicos que ganham as etnografias, principalmente quando são pesquisas de momentos marcantes porque embrionários de um certo campo. Embora não seja meu objetivo aqui, acabo por me aproximar tanto dessa clareza quanto aos dados etnográficos se tornarem registros e construção do tempo (Lévi-Strauss, 1976 [1962]; Fabian, 2013 [1983]), como de uma concepção de “história genética” como conceituada por Bourdieu. Para o autor, esse tipo de sociologia histórica (sinônimo de história genética) “procura captar esses processos de criação permanente que visam transformar as estruturas a partir de constrangimentos objetivamente inscritos na estrutura e no espírito das pessoas, processos que mudam a estrutura e que são moldados em parte pelo estado anterior da estrutura” (Bourdieu, 2012, p. 124). A filosofia da história que orienta o autor diz respeito à premissa de que toda história está presente em todos os instantes e inscrita na objetividade do mundo social e na subjetividade dos agentes que farão essa história. Isso não significa que um instante inicial preveja o futuro. O essencial aqui é que a cada novo instante o “espaço dos possíveis não é infinito” e se estreita. 328 percebido que isso era realmente um elemento presente em boa parte das trajetórias, esse não era o único fator usado localmente para explicar esse engajamento científico e clínico em Fortaleza. Então, uma pergunta recorrente que me fazia era como tinham tido acesso a qualquer discussão científica sobre transexualidade em termos gerais e como percebiam suas iniciações técnicas no assunto. Nenhum deles e delas havia recebido qualquer tipo de treinamento ou formação na época da graduação em medicina sobre gênero, muito menos ainda, sobre cuidados para população trans. Sempre me respondiam: “nada”, de modo que suas salas de aula foram ocupadas apenas por materiais sobre disfunções sexuais, reprodução humana, considerando fecundação e desenvolvimento do feto e uma diferenciação entre os sexos a partir da neurologia. Quando muito, pouquíssimos inclusive, atenderam a atividades extracurriculares para discussões sobre relações de gênero e práticas sexuais por meio de organização autônoma de algum professor. Mas nada havia nesse sentido de forma atrelada ao projeto pedagógico do curso. Todos os contatos que esses interlocutores tiveram com o tema, portanto, se deram quando já estavam inseridos no mercado de trabalho, uns já a partir da residência médica e outros já completamente formados. Assim, esse processo interessado e engajado de formação educacional continuada poderia ser visto por parte desses profissionais como sendo fruto de um processo de sensibilização. Para outros, a sensibilização adveio de uma influência de um colega visto como um especialista, e, portanto, alguém com respaldo para ser ouvido. Essa formação, contudo, nem sempre se dava enquanto um curso em sentido estrito: um estudo autodidata poderia ser a base de alguma aptidão. Mas a empatia com o outro, com o sofrimento com o diferente, era vista como base de um interesse que não fora alicerçado desde os currículos do ensino de medicina. A “educação escolar” – cursos de especialização, graduação, pós-graduação e cursos livres de curta duração –, por outro lado, era a marca dos profissionais que subjetivaram a si mesmos sem o intermédio direto de outros médicos para se dedicarem ao tema no início de suas preocupações a respeito. De qualquer maneira, esse treinamento ou formação era posterior à conquista deste campo de saúde e não o contrário. Como era frequente, as médicas e os médicos atribuíam suas especializações – ginecologista ou psiquiatra, por ex. – a uma ligação subjetiva com a área, segundo a qual explicava como tinham sido escolhidos e não o oposto255. Alguns interlocutores chegavam a afirmar com muita obviedade a área para a qual se voltaram, já que o pai ou a mãe o fizeram antes. E isso não era diferente em relação à atuação na terapêutica trans. Aí, ser um profissional de saúde sensível era tido como a base para atuar em atenções relativas a esses determinados pacientes ou de sua inclusão numa clínica generalista ou integral e até, para parte deles, de militar em torno de um tipo de saúde integral 255 Marinalva indicava esse cenário a respeito da própria trajetória, como descrevi no capítulo 2, item 2.2. 329 que não os excluíssem, e agisse para inclui-los. O termo sensível é mais uma acunha para si mesmo do que para outros, ou seja, diz respeito aos próprios processos de subjetivação numa carreira moral. Assim, entender o interesse pelo trabalho em atenção à saúde que afirmasse cuidados relativos à supervisão da transição de gênero implica também compreender as trajetórias de percurso na carreira médica, já que esse interesse não é algo à parte. Percebi que era necessário associar às trajetórias sociais que procurava descrever as dimensões tanto de ingresso na medicina como na terapêutica trans. Então, eu passei a me perguntar: como se dava essa sensibilização? E, quais eram seus elementos principais? Haveria uma única forma de ser sensível? Como emoções e arrazoados científicos se entrelaçam? Procurando entender essas questões percebi que esse percurso dos interlocutores se dava como uma trajetória pessoal socialmente constituída, um processo de subjetivação que passo a chamar de trajetória de sensibilização, sobre a qual temos o seguinte esquema genérico256: Esse esquema ilustrativo não objetiva dar a falsa ideia de um processo cuja sequência é rigidamente ordenada, passo após passo sem retorno, mas, sim uma trajetória espiralada mesmo que algumas sequências possam ser atribuídas pelos interlocutores. Essas dimensões podem ser borradas, de acordo com as narrativas. Mas, a formação básica – a graduação – sem nenhum treinamento com explicações científicas ou abordagens de pacientes trans em transição de gênero era um ponto de partida compartilhado por todos e todas, assim como as primeiras experiências profissionais terem sido o espaço de primeiro contato257. Ao não haver um grupo social coesamente cristalizado na região, e, sim uma rede, é no nível da análise e não da realidade social que concebo dois grandes agrupamentos de interlocutores para sintetizar as principais diferenças e semelhanças que se erigem entre os entrevistados. Isso significa dizer que não há como aventar, por exemplo, o 256 Não recorrerei à explicação individualizada de todos os médicos entrevistados (17 profissionais), mas às trajetórias mais representativas e, posteriormente, à sua síntese. 257 Todos os interlocutores têm ou tiveram alguma inserção acadêmica de treinamento de futuros médicos, e, nesse sentido, ensinaram algo para seus alunos, diferentemente do que vivenciaram na própria formação. Eu mesmo fui convidado várias vezes para participar de pequenos eventos ou atividades pedagógicas cujo público eram seus alunos e alunas. 330 grupo de médicos sensíveis e o grupo de médicos insensíveis, nem mesmo é possível indicar que a subjetivação de uma experiência pessoal versus a subjetivação via contexto profissional defina diferenças circunstanciais na prática médica a ponto de estabelecer um grupo social. As experiências pessoais e profissionais se entrelaçam avassaladoramente, a ponto de ser inócuo querer separá-las de maneira a encontrar núcleos comuns entre os interlocutores de modo radical. A oposição sensível versus insensível não é aplicável pela simples razão de ser uma nomeação moralizante, e surgir apenas em contexto. Portanto, não chamo ninguém de sensível nem de insensível, mas indico como essas categorias fazem sentido nas trajetórias narradas. Uma das carreiras que saltou aos meus olhos foi a de Carmela, médica ginecologista de 37 anos, que teve uma longa formação após a graduação na qual descobriu a sexologia como uma área de atuação. Sua narrativa de si me ajudou a organizar as outras e a pensar melhor a trajetória de sensibilização. Ao terminar a graduação, Carmela teve um anseio de ir à África. Sua vontade era trabalhar em um contexto que necessitasse incrivelmente de médicos, e ela estava sensibilizada e decidida a cruzar o atlântico. Mas, depois de ser persuadida por seu pai, que lhe falara que se ela queria ajudar gente necessitada deveria ir para o sertão, acaba decidindo trabalhar num posto de saúde numa pequena cidade nos confins do Piauí. No começo, era apenas ela e uma colega, e, com pouco tempo, restou apenas ela nessa pequena unidade de saúde. Ela trabalhava como uma médica generalista, e algo próxima do que se denomina atualmente como médica de família e comunidade, isto é, ela “fazia tudo”, como me dizia. Agia segundo um cuidado em saúde integral. Não tinha feito a sua residência em ginecologia ainda, pois desejava trabalhar por não ter condições financeiras de conseguir sua autonomia e precisava disso antes de entrar na sua formação posterior. Mas antes de entrar na residência passa a trabalhar noutro serviço, numa cidade mais próxima de Teresina. Essas duas experiências de trabalho foram marcantes em sua vida, pois lhe colocaram em contato com uma pobreza extrema que culminava numa completa falta de acesso da população à educação básica. As descrições de seu dia a dia nesses serviços são como imagens vivas na minha memória de um cotidiano que não era dependente de máquinas, não apenas porque não havia ali recursos para financiá-las, mas porque dependia de gente, de médicas que pudessem fazer seu trabalho no calor da necessidade dos moradores. Esse período de sua vida profissional detém um importante espaço de subjetivação. É aí que germina seu interesse em ser sexóloga, após decidir ir para a ginecologia. Algo importante nessa carreira é a forma como as histórias dos pacientes impactam subjetivamente Carmela – também recorrente na maioria dos interlocutores. Um caso que lembrou em nossas entrevistas foi o de uma mulher que a procurara durante dias repetidos no plantão para ter uma receita de um remédio para dormir. Depois de muita insistência, essa senhora lhe confidenciara seus motivos para precisar da medicação: 331 Ela um dia chegou e começou a falar um monte de coisa e eu resolvi parar e escutar [...], [e perguntei] “por que você toma esses remédios, qual é a necessidade disso?”. E aí ela contou para mim que o marido dela era alcoólatra, bebia muito e quando ele chegava em casa ele queria ter relação [sexual], então ela tinha que estar dormindo porque senão ela ia ter que ter relação. [...]. Lembro que conversando com ela resolvi orientá-la e passei um lubrificante – e nessa época eu jamais na minha cabeça imaginei que um dia eu fosse ser sexóloga, e nunca tinha prescrito um lubrificante na vida, nem tinha visto ninguém prescrever e nunca tinha usado também [...], mas eu tinha visto isso e veio aquele estalo e eu prescrevi o lubrificante para ela e aí nunca mais vi essa mulher. Ela não ia mais no plantão e um belo dia eu fui fazer as compras e encontrei ela, toda linda, vestido novo. É muito lindo isso, sabe, muito emocionante. Ela estava de vestido novo, e ela veio me abraçar e disse que eu tinha mudado a vida dela completamente, porque quando o marido dela foi ter relação com ela, ela não sentiu dor porque ela passou o tubo de lubrificante, e ela sentiu até prazer. E aí como ela sentiu prazer e ele não tinha mais aquela sensação que estava machucando ela, ele também não estava mais bebendo e eles estavam vivendo super bem por causa de um tubinho de KY (Carmela, entrevista, 2018). O que sua paciente havia lhe dito em consulta era um relato de dores no momento das práticas sexuais, e isso havia acarretado um problema para a relação do casal. Carmela era jovem nessa época, no começo dos seus 20 anos de idade, e foram mais essas experiências de atendimento que tiveram um espaço maior em seu crescimento pessoal, subjetivação, do que aquelas fora dali como num espaço separado. Antes de entrar no emprego no posto de saúde, especificamente no Programa de Saúde da Família, havia tentado entrar no internato de psiquiatria, mas desistiu da ideia mesmo tendo sempre gostado de psicologia e psiquiatria, como me colocava. Mas a experiência na APS mudou sua vida: Mas na vida o PSF, como a gente atendia todas as faixas etárias, vários quadros desde hipertensão e diabetes até pré-natal, doença mental, era tudo muito florido, eu acabava conversando muito com as pessoas, e como eu não tinha amigos lá [na cidade do interior], então os meus pacientes eram os meus amigos. Era ali que eu podia conversar, era ali que eu me sentia porque eu tinha mais conhecimento, eu tinha mais experiência, embora eles tivessem muita experiência de vida dentro daquela cultura deles, mas ali eu tinha muito mais informação para passar e ali eu me sentia (Carmela, entrevista, 2018). Esse período de trabalho como generalista lhe deu uma vasta visão de mundo que não detinha antes, principalmente, pela pluralidade de histórias de vida que lhe tocaram profundamente. Essa narrativa, viva em detalhes, que constrói um processo de subjetivação, entrelaça vida pessoal e vida profissional, e é um aspecto comum não apenas de médicos envolvidos com medicina trans. Essas explicações que centralizam o indivíduo são próprias de experiências sociais cada vez mais evidentes no país, como demonstrou Gilberto Velho (1987; 1986; 2001, 2013). Suas análises, e de outras antropólogas que têm pesquisado estratos médios urbanos (Russo, 1993; Kuschnir, 2000; Salém, 2007; Rial, 2008; Alcântara, 2009), mostraram conflitos e percursos identitários atravessados por pares de oposição sociológica que pressionam os sujeitos ora para se individualizarem, ora para darem maior vazão à ligação coletiva com seus contextos de origem, principalmente familiar. 332 Assim, a carreira médica se mostrava para Carmela, e para os outros interlocutores, como um percurso de independência da família e autonomia. Reforça-se, assim, aquilo que denominou Velho (1986, p. 24) sobre o indivíduo, o qual se transforma na “unidade mínima significativa da vida social” num cosmo no qual o discurso psicologizante adentra diferentes domínios que recortam o cotidiano, produzindo tanto fragmentações como continuidades. Assim, o teor psicológico com que é trazido o sujeito é uma feição de um processo social de formação dessa entidade social que é o indivíduo. A subjetividade – esse elemento interno – é o mote sociologicamente fundamentado. Nessa percepção de si as trajetórias dessa constituição subjetiva não se constituem como em uma única via. Ou seja, não há um único lado desse caminho vivido como produtor de si mesmo, mas há múltiplas e caóticas dimensões que são organizadas mais no nível da narrativa biográfica. É nessa vivência, ao mesmo tempo pessoal e profissional, que a medicina trans pode ser produzida como um projeto para os interlocutores, no sentido que lhe dá ao termo Velho (1986, 2013). Nesse momento de construir uma memória (que marca as entrevistas), médicos e médicas estiveram dando sentido às suas trajetórias ao construírem uma biografia ordenada desde um contexto social extremamente heterogêneo. Isso não significa dizer que a atuação na terapêutica trans surge como um interesse pronto e acabado desde o início desses caminhos percorridos e vividos, mas ganha forma paulatinamente até se impor de tal forma que se torna um projeto. Como coloca o autor: “o projeto e a memória associam-se e articulam-se ao dar significado à vida e às ações dos indivíduos, em outros termos, à própria identidade. [...] São visões retrospectivas e prospectivas que situam o indivíduo, suas motivações e o significado de suas ações dentro de uma conjuntura de vida, na sucessão das etapas de sua trajetória” (Velho, 2013, p. 65). Nesse sentido, Embora o ator, em princípio, não seja necessariamente um indivíduo, podendo ser um grupo social, um partido, ou outra categoria, creio que toda a noção de projeto está indissoluvelmente imbrincada à ideia de indivíduo-sujeito. [...]. Portanto, se a memória permite uma visão retrospectiva mais ou menos organizada de uma trajetória e biografia, o projeto é a antecipação no futuro dessas trajetória e biografia, na medida em que busca, através do estabelecimento de objetivos e fins, a organização dos meios através dos quais esses poderão ser atingidos (Velho, 2013, p. 65). Nesse sentido, Gilberto Velho (2013, p. 67) propõe que o projeto é uma ferramenta com a qual os atores sociais negociam a constituição da realidade entre si, de tal modo que é ele mesmo “como meio de comunicação, como maneira de expressar, articular interesses, objetivos, sentimentos, aspirações para o mundo”. Contudo, não há aí uma substância racional, antes, é 333 resultado de uma “deliberação consciente” que se tornou possível a partir de um campo de possibilidades no qual esses sujeitos estão inseridos. Assim, a multiplicidade de motivações e a própria fragmentação sociocultural produz projetos, mas também conflitos e contradição numa sociedade de grande heterogeneidade e escalas variadas da vida social. Essa fragmentação também se reproduz no campo profissional da medicina e estabelece um microcosmo no qual os indivíduos são levados a procurar uma identificação específica com determinada prática biomédica. Mas essa foi uma dificuldade que Carmela enfrentou desde o início. Após alguns anos de prática clínica chega a decidir fazer a residência em ginecologia, principalmente, porque ao fazê-lo ganharia mais tempo para escolher uma subárea na qual iria atuar, dado que o campo ainda era um pouco amplo e lhe conferia uma possibilidade de atuação bem mais diversa: E aí lá também chegou a época de fazer a prova de residência. Finalmente eu resolvi fazer ginecol. porque [em] ginecol. eu ia ganhar mais três anos para escolher de novo o que é que eu ia fazer. Eu ia poder fazer tudo porque ginecol. conversa, ginecol. é meio clinico, ginecol. opera, ginecol. faz exames, ginecol. mexe com os hormônios e eu até então depois desse tempo – na verdade, não foram dois anos, foi um ano e meio –, eu também não consegui decidir o que eu queria, eu queria continuar fazendo de tudo (Carmela, entrevista, 2018). Assim, a ginecologia como subárea da medicina não é um campo de especialidade uniforme, como poderia parecer para um olhar externo. Então, Carmela lutava contra uma pressão para superespecializar-se num determinado problema, ser objeto único de intervenção contínua. O passo para a sexologia surge como um resultado de um desconforto. Esse mal-estar tinha a ver com não se sentir capacitada para lidar com questões tão amplas trazidas por suas pacientes, algo que ela não tinha sido iniciada para abordar. “Aí quando eu estava na residência, eu fui aprendendo a operar [...], mas eu continuava tendo aquela coisa de gostar de conversar. As pessoas diziam que eu tinha um jeito muito humanizado de atender, muito acolhedor e aí quando eu terminei a residência, eu não me sentia muito preparada como ginecologista”. Foi diante de um cenário de insatisfação sobre uma aptidão pessoal maior para dar conta do que lhe diziam suas pacientes que decide ouvir o chamado de uma amiga que lhe indicou cursar sexologia. É aí que decide se matricular em um curso em São Paulo. Essa formação escolarizada lhe exigiu grande esforço e dispêndio financeiro pessoal, pois como morava e trabalhava em Fortaleza, necessitava ir mensalmente à capital paulista para as aulas teóricas e posteriormente para o estágio. Esse curso tinha uma seleção rigorosa, que contava com entrevista e análise de currículo. Carmela me conta que na entrevista as questões pontuadas pelo entrevistador eram focadas em empatia e atendimento. Mas se as práticas sexuais de mulheres foram o canal através do qual Carmela chegou à profissionalização em sexologia, essas não se tornaram o único tema dentro da sexualidade em que passaria a atuar. Foi nesse curso, que se referia a uma especialização em sexualidade humana, onde 334 conheceu a primeira vez sobre transexualidade. Ao concluir essa formação, ela pôde requerer à Federação Brasileira de Ginecologia e Obstetrícia (FEBRASGO) o diploma de especialista em Sexologia, após realizar um teste escrito no qual foi aprovada. Ao contrário de Carmela, nem todos os médicos e médicas com quem interagi tinham trajetórias que resultavam na formação escolarizada em “sexualidade humana”, seja porque não detinham dos mesmos cenários de partida e disposição – a existência de um curso em outra região do país dificulta bastante esse interesse –, seja porque as tradições disciplinares não detêm historicamente de grandes espaços para a medicina sexual ou para a terapia sexual. Álvaro, endocrinologista, de 56 anos de idade, me narrou uma trajetória diferente daquela de Carmela. Tendo se formado no final dos anos 1980, e residência no início dos anos 1990, primeiro realizou uma formação em clínica médica para poder ir para a endocrinologia. Seu contato com essa área se deu a partir de seu interesse de especializar-se em endocrinologia pediatra. Na residência que fez na USP teve contato com os chamados distúrbios de diferenciação sexual, os quais correspondem ao que se nomeia na medicina de síndromes genéticas. Nesse grupo se encaixam os desenvolvimentos cromossômicos de trissomias, genitália ambígua, e outras formas do que se percebe como desordens endocrinológicas. Após longos anos trabalhando no tema em hospitais de referência em Fortaleza, Álvaro tem um maior contato com travestis, e, posteriormente, foi procurado por pacientes em seu consultório particular por ter se tornado conhecido na cidade por seu trabalho. A própria área de atuação colocava Álvaro no centro de questões envolvendo a transição de gênero. Ele via essa ligação como natural, já que estava trabalhando com o sexo a partir da atividade hormonal. Não havia aí, portanto, grandes explicações disruptivas de subjetivação, como aquelas que vimos com Carmela258, contudo as interações com a diferença não deixaram de se fazer presente no processo de biografia que constituiu nossa entrevista. No seu caso, não se tratava de uma relação médico-paciente estrita. Por já ter um contato com uma certa diferenciação sexual, isso lhe aproximou de uma situação nos arredores do hospital onde trabalhou por anos, o levando a pensar melhor a respeito do “mundo trans”, como coloca: Eu te disse que dou plantão quinta-feira à noite, então.... Eu saio às seis horas da manhã [...] do hospital. [Esse] fica na praça da Lagoinha, no Beco da Poeira, ali naquele centrão. E todos os dias eu atravesso a rua, ando dois quarteirões que o estacionamento está aqui e eu pego o meu carro. Toda sexta de manhã eu faço isso. E aí eu atravessei a rua, quando eu atravessei a rua tinha uma trans na minha frente, talvez a uns dois ou três metros, e ela foi seguindo o mesmo caminho, ela foi na frente e eu fui atrás. Eu posso dizer que aproximadamente cem pessoas que a ultrapassaram soltaram piada. 100%. [Piadas] de todos os níveis, desde “ei bonitinha”, “ei me chupa aqui”, “ei viado”.... Aí eu pensei assim, “puxa, sexta-feira, 7 horas [da manhã], essa pobre já está escutando isso. Imagino como é que ela chega no final da semana. Exausta, não é?! (Álvaro, entrevista 2018). 258 O próprio contato que estabeleci com Álvaro foi de menor intensidade do que com Carmela, o que pode ter determinado o nível de abertura com que ambos me narraram suas trajetórias e expuseram processos de subjetivação. 335 Quando Álvaro continua sua explicação, ele lembra que não há como alguém ser tratado dessa maneira vexatória e não ser afetado. Ele faz uma comparação com o que ouviu num curso de medicina alternativa muitos anos atrás na sua carreira: Eu já fiz um curso há muito tempo [...] de medicina alternativa. [...]. E tinha um exercício da aura. Não sei se você já viu alguma coisa sobre isso, que todo mundo tem uma aura. Então, eles tinham umas medidas, umas pirâmides, era coisa alternativa. Eles faziam assim e viam a aura da pessoa, e colocavam a pessoa no centro, mediam a aura e começavam a falar coisa ruim daquela pessoa. “Olha o cabelo dela”, “olha a roupa dela”, “olha o sapato dela”.... Era um exercício. Você notava a pessoa murchando, murchando, murchando a aura de defesa. Quando você fala bem a pessoa cresce. Aí eu digo, essa coitada a aura dela deve ser igual a uma uva passa, murcha. Porque é o tempo todinho aquele negócio em cima. E [essas pessoas] são muito resistentes, as trans femininas [...]. Elas seguram aquilo ali 24h por dia. Eu admiro (Álvaro, entrevista 2018). A menção da leitura da aura através de um curso de medicina alternativa é trazida por Álvaro pela força que assume enquanto figura de linguagem. O médico não defende exercer nenhum tipo de abordagem clínica nesse sentido. Essa era uma forma discursiva dele exemplificar como o estado de ânimo e o bem-estar de alguém não poderiam passar incólumes a uma violência desse tipo. A dimensão de esoterismo, contudo, é algo relevante para “quebrar” com concepções tradicionais da clínica. Ele se referia principalmente a travestis que trabalhavam como profissionais do sexo nas ruas de Fortaleza. Nas consultas que realiza com seus pacientes esse elemento da percepção do sofrimento é algo que Álvaro tem prestado bastante atenção. Já Jovelina, outra médica com bastante experiência, com 68 anos de idade, já teve esse contato numa espécie de formação continuada que realizou após seu curso de medicina, realizado há mais de 40 anos. Na sua “época”, como me conta, estava começando a surgir a Residência Médica, então o internato foi a única forma de treinamento no hospital que teve de maneira formal259. Nascida em Goiás, mas formada em Pernambuco, foi no sertão que aprendeu de fato a ser a médica que deveria ser, tendo aprendido o que chama de “Interiologia”. Foi no interior do país que obteve a sua formação mais prática possível, nos anos 1970, no início de sua juventude, ao atuar por mais de 4 anos atendendo desde mordida de jacaré até doença de chagas no que, atualmente, se aproxima da Atenção Primária do SUS. Nesse período Jovelina e seu companheiro trabalhavam de forma também voluntária em serviços organizados pelo bispado local. Após essa medicina sertaneja que teve grande influência e impacto subjetivo na vida de Jovelina, ela migra para São Paulo para procurar uma formação em sexualidade: 259 Atualmente o internato compõe parte da formação básica em medicina, e a Residência um treinamento no qual o médico formado em generalista recebe uma bolsa do Ministério da Saúde e atua como um profissional ao mesmo tempo em que recebe um treino específico ao término do qual é reconhecido como especialista em uma determinada subárea. Para ingresso na Residência, o médico formado necessita ser aprovado num teste escrito. 336 Depois fui pra São Paulo. Nessa época eu comecei a me interessar pela sexualidade e eu fui buscar uma formação em São Paulo. Eu fiz um curso que eu acho que foi o melhor curso que eu fiz, melhor que o de medicina, que era o estudo da sexualidade humana para formar pesquisadores, terapeutas sexuais e educadores. [...]. Tinha sociólogo, médico, psicólogo.... [Foi] no Sé de Sapiências de São Paulo. Foi muito bom porque a partir desse curso, com toda a visão da antropologia, da história da sexualidade, abriu meu horizonte em relação ao ser humano muito mais do que a faculdade de medicina, que é organicista (Jovelina, entrevista 2018). Esse curso em sexualidade humana muda a vida profissional de Jovelina. A partir daí, ela se transfere da clínica médica para a psicoterapia ao ter contato com uma vertente de terapia psi concorrente da psicanálise, o psicodrama260. Nesse período, a FEBRASGO ainda não detinha o controle dos diplomas de sexologia, e o SESC de São Paulo foi a instituição que conferiu essa titulação para Jovelina. Ao acompanhar sua trajetória, podemos compreender a formação de uma vertente dos especialistas em sexualidade no campo psi e biomédico brasileiro: A medicina se apropriou porque a Sociedade Brasileira de Sexualidade Humana, Sbrash, vem de dentro da Sociedade Brasileira de Ginecologia Obstetrícia. Um dos grandes pioneiros nessa história é o Nelson Vitiello que era um ginecologista. Então formou-se e ficou essa ligação, mas a própria Sbrash, a federada de sexualidade, sempre teve como tônica abrir para essas três áreas: pesquisa, educação e terapia. Só que medicina é um clube muito grande, e foi se apropriando e se apropriando (Jovelina, entrevista 2018). Mas Jovelina observa que houve mudanças consideráveis nesse cenário. Como me diz, ninguém mais faz “apenas sexologia” porque as especialidades se multiplicam grandemente. Ao se concentrar na psicoterapia, para de atuar especificamente como ginecologista ou como médica generalista. É com essa abordagem que seu interesse na “sexualidade humana” atinge a terapêutica trans. Sua maior força nesse sentido se dará na formação de outros psicodramatistas e de médicos em treinamento como residentes na região de Fortaleza para onde migrara desde São Paulo. Nesse sentido, a clínica envolvendo pacientes trans é uma reverberação inesperada, já que o foco da atuação do serviço que ajudou a criar estava voltado para problemáticas relativas a desempenho do habitus erótico tanto no âmbito da resposta fisiológica quanto nas terapias psi, além do campo das parafilias. As questões de gênero, como coloca, foram se modificando ao longo desse atendimento uma vez que o manual do DSM também ia mudando. Isso não implica uma aplicação automática sem modificações locais, mas indica a influência inescapável das normas técnicas da APA que já discuti no capítulo 3. 260 O psicodrama é uma psicoterapia coletiva na qual acontece uma representação teatral espontânea e amadora. Usa-se essa dramatização para abordar e explorar, para conhecer, a psique humana com foco no desenvolvimento do indivíduo através da expressão catártica das emoções. No país, foi criada em São Paulo, nos anos 1970, a Associação Brasileira de Psicodrama e Sociodrama (ABPS) e, em 1976, a Federação Brasileira de Psicodrama (FEBRAP) que regula a formação através da união de diferentes instituições e sociedades. Durante o trabalho de campo fui instado a participar de algumas sessões de psicodrama enquanto observava os profissionais. Outras especialidades psi também surgiram no Brasil aliadas à psicanálise ou como sua concorrente, como é o caso da terapia corporal surgida nos anos 1980, no Rio de Janeiro, como estudada por Jane Russo (1993) e que preconizava ser a fala insuficiente para alcançar a cura psi. 337 Assim, com exceção de Álvaro até agora, o alcance da medicina trans se deu de modo inesperado como um resultado da busca por capacitação clínica voltada para as práticas sexuais, ganhando status crescente à medida que esses profissionais vivenciavam suas carreiras. É o caso de Geraldo, Graça, Germana, Gérson, Genivaldo e Geraldina que procuraram uma formação mais escolarizada acerca da sexualidade humana. Eles tiveram oportunidades garantidas pela Residência Médica que realizaram, por cursos de curta duração ou de pós-graduação stricto sensu. Contudo, ela poderia ocupar um segundo plano em meio a outros objetos de maior interesse e vinculação subjetiva nas trajetórias de outros médicos, como Cassandra, Clóvis, Emanuel, Marlene, Clara e Fátima – isso não quer dizer que os médicos anteriores não trabalhassem com outras temáticas, mas que a relevância da terapêutica trans era maior. Mesmo atuantes e identitariamente percebidos como sensíveis à saúde trans, isto é, a colocando com uma prática profissional guiada pelo conhecimento científico e pela empatia e, não por preconceito, a maioria teve o autodidatismo e o próprio atendimento como dimensões formadoras: Não [tive], aí eu sempre trabalhei com essa clientela [trans], da parte da sexualidade, desde as crianças [...]. Assim, trans mesmo eu acho que faz uns dez anos que eu atendo, quando nem se falava disso (Álvaro, endocrinologista, entrevista 2018). Zero. Sexualidade eu falo em geral, o máximo que a gente vê na residência é puberdade precoce, é puberdade atrasada, são problemas do desenvolvimento sexual, genitália ambígua etc., mas sexualidade dessa forma, não (Emanuel, endocrinologista, entrevista 2018). Não, só o que eu aprendi na medicina em família [e comunidade]. [...]. Na atenção primária, eu acho que eles [pacientes trans] têm uma dificuldade de chegar, de acesso inclusive. Então eu tive uma época [...] que a gente fazia uma atividade com as profissionais do sexo, foi a época que eu mais tive contato (Fátima, MFC, entrevista 2018). Mas isso não é colocado como algo imutável. Essa transformação é explicada como sendo imposta pela presença das demandas de pacientes que deve ser considerada. É o que expõe, por sua vez, Cassandra, mastologista, de 39 anos de idade: Eu acho que o futuro vai ser que a gente vai ter que começar a se aprofundar mais. Eu acho que isso vai ser uma coisa muito rotineira, agora com essa questão do nome que facilitou muito, mudar o nome social que antes era um processo terrível e agora parece que basta ir ao cartório. Então assim, isso já vai fazer com que facilite muito essa transição, eu acho que as pessoas vão começar a aparecer, os homens trans vão começar a aparecer mais (Cassandra, entrevista, 2018). Uma realidade clínica, portanto, se imporia de tal forma que seria bastante difícil não procurar alguma formação escolarizada. A previsão de Cassandra é resultado do crescente número de pacientes que a procuram tanto no hospital público que trabalha como na sua clínica privada. Quando seu nome ganhou popularidade recente entre pessoas trans da região, sua prática cirúrgica ganhou status de boa medicina pela preocupação estética dos pacientes e pela sua lisura na exigência 338 documental de acordo com os protocolos do Ministério da Saúde. A sua inserção na terapêutica trans se constituiu a partir da indicação de uma amiga que também é médica e que era considerada especialista na área, portanto, uma profissional que tinha respaldo científico e técnico. Quando se considera o lugar essencial do treinamento clínico realizado no hospital para a formação do médico (Foucault, 2006; Baszanger, 1983 citado por Bonet, 2004), e se percebe a completa ausência de qualquer observação sobre a diversidade sexual e de gênero, se produz uma maior dificuldade de inserção de carreira nesse sentido. Uma vez que não foram confrontados pelo controle pedagógico da aprendizagem da biomedicina, esses profissionais não puderam vivenciar uma terapêutica trans inserida em “experiências clínicas” que os levassem a praticar uma “responsabilidade médica”. Esses dois últimos fatores (que formam um híbrido, a responsabilidade clínica) são elementos centrais, segundo Howard Becker et al. (1977 [1961], p. 241, tradução minha), nessa entrada disciplinar261. Para os autores, a “responsabilidade só pode ser exercitada sob pacientes. Mais do que isso, a responsabilidade é indivisível e pode apenas ser exercitada por uma pessoa sobre um paciente numa situação dada. Responsabilidade pode ser delegada para o outro, mas somente uma pessoa pode exercê-la”. Assim, a “assimilação dos valores médicos” alicerçada no binarismo de gênero e na diferenciação sexual através de uma narrativa biológica única se tornou um empecilho para que se possa considerar a possibilidade de atendimentos que conformem a transição de gênero como prática benéfica à vida. Isso porque o “empirismo controlado”, como colocou Foucault (2006 [1980]), é fundamental para criar o novo médico. Algo que foi instituído historicamente com o advento da clínica, do hospital como lugar de ensino. É essa experiência que torna distinto o profissional do leigo: O essencial da formação de um oficial de saúde são os anos de prática [...]; o médico completa o ensino teórico que recebeu com uma experiência clínica: é esta diferença entre prática e clínica que constitui, sem dúvida, a parte mais nova da legislação do ano XI. A prática exigida do oficial de saúde é um empirismo controlado: saber fazer depois de ter visto; a experiência é integrada no nível da percepção, da memória e da repetição, isto é, no nível do exemplo. Na clínica, trata-se de uma estrutura muito mais sutil e complexa, em que a integração da experiência se faz em um olhar que é, ao mesmo tempo, saber; é toda uma nova codificação do campo de objetos que intervém. Abrir-se-á a prática aos oficiais de saúde, mas reservar-se-á aos médicos a iniciação à clínica (Foucault, 2006, p. 89). Foucault está se referindo às mudanças europeias na constituição de uma formação que autoriza ao médico seu exercício. Nascia aí uma diferenciação entre os médicos e os outros profissionais de saúde, que são inseridos nesse campo como auxiliares daqueles. Nesse sentido, as visitas contínuas aos leitos dos pacientes se tornam uma peça nodal porque é um microcosmo no 261 Esse é o caso inclusive do treinamento médico que lida com cadáveres, como indicaram Joseph Lella e Dorothy Pawluch (1988). 339 qual há um recorte que Foucault chamou para limitar um domínio mais vastos de acontecimentos. A descrição do filósofo sobre o caráter de sensibilidade concreta da experiência clínica não ressoa totalmente com as descrições de médicos e médicas que conheci, que diziam que precisavam se sensibilizar no decorrer de suas carreiras para poder acessar a terapêutica trans. Uma vez ganha essa forma de ver as coisas de um modo diferente, cabia-lhes o dever de sensibilizar outros. Isso era tão mais verdadeiro quanto maior era o envolvimento e a atuação da interlocutora ou do interlocutor na medicina trans. Para Foucault (2006, p. 132-3): “o olhar médico não é o de um olho intelectual capaz de perceber, sob os fenômenos, a pureza não modificável das essências. É um olhar da sensibilidade concreta, um olhar que vai de corpo a corpo, cujo trajeto inteiro se situa no espaço da manifestação sensível. Para a clínica, toda a verdade é verdade sensível; [...]”. Foucault está se referindo à ferramenta mais imediata do trabalho médico de avaliação do doente, que se utiliza daquilo que observa: “o olhar clínico é um olhar que queima as coisas até sua extrema verdade”, isto é, se decompõe aquilo que se busca construir. Mas os interlocutores não estão fazendo essa referência exatamente. Mesmo que haja elementos nesse discurso quanto a aprendizagem de como abordar um paciente trans, o foco está no trabalho emocional que se traduz no convencimento que foi operado em si mesmo através de estar sensível ao sofrimento alheio. Ou seja, fala-se sobre acessar uma vontade para lidar não apenas com a terapêutica trans, mas também com a integralidade do cuidado, segundo a qual o indivíduo está localizado para além da sua transição de gênero. Ao olharmos para o período de graduação dos interlocutores descritos até aqui, entre as décadas de 1970 e o final dos anos 1990, pode ser percebido que a terapêutica trans – e até mesmo a existência de um paciente com uma identidade de gênero diversa – não ocupava nenhum lugar na medicina brasileira que não o da ilegitimidade. Essas décadas foram marcadas, primeiro, pela perda do espaço da medicina trans (conforme o caso Farina) e, em segundo, pelo pouco impacto da emergência dos recém-criados serviços ambulatoriais após a implantação do SUS em algumas capitais do país, como descrevi nos capítulos 2 e 4. Nesse sentido, a trajetória de sensibilização se apresenta como um fator decisivo para se produzir uma reaprendizagem que possibilite a entrada nesse campo. É essa trajetória que impulsiona o interesse por querer vivenciar uma responsabilidade clínica voltada para a transição de gênero principalmente, uma vez que as maiores resistências que relatam de si e dos colegas eram posicionadas no terreno da inexperiência. Essa reorganização de conhecimentos clínicos se dá de uma maneira muito mais conflituosa, uma vez que acontece no âmbito da subjetivação muito mais livre e externa aos controles pedagógicos que poderiam ter concretizado uma socialização profissional que tivesse tomado a terapêutica trans como objeto legítimo. 340 O cenário das emoções, o sensibilizar-se, é apresentado pelos interlocutores como o nível no qual primeiro se dá essa legitimação clínica. De modo paralelo ou posterior a essa reelaboração subjetiva é que os profissionais se confrontam com a contestação da transição de gênero como não comprovada cientificamente para transformá-la em benéfica para a saúde de alguém que demanda a modificação de algo antes percebido como imutável: o sexo. Poderia se supor que, ao se estar na carreira médica como um profissional formado, a autoridade seja absoluta, entretanto, os interlocutores encontraram formas de constrangimento. Quando observamos, como fez Howard Becker (1952, p. 470, tradução minha), que a carreira se refere a “séries padronizadas de ajustamentos feitas pelo indivíduo” para integrar-se à “rede social de instituições, organizações formais e relações informais” na qual o trabalho é realizado, não parece tão surpreendente que os conflitos e regras morais também fossem atuantes na carreira dos interlocutores. Essa forma de se ajustar é feita tanto entre posições de graus diferenciados (verticalmente) numa dada cena de prestígio, numa hierarquia, quanto na forma de uma mobilidade entre posições de mesmo valor social (horizontalmente). O estudo de Becker foi realizado entre professores da rede pública de Chicago, mas aqui pode ser percebido como esse modelo teórico se aplica ao caso dos médicos. Há, do mesmo modo, posições de prestígio divergentes, como áreas mais rentáveis e influências morais correspondentes. Nesse sentido, quando os interlocutores faziam parte também de algum grupo socialmente minoritário, isso refletia na trajetória constituída nessa carreira médica. Aí, suas posições de sujeitos menos valorizados hierarquicamente em termos de gênero e de sexualidade também se manifestaram. Na verdade, se produz quase os mesmos elementos presentes nas suas formações nas escolas de medicina quando boa parte deles e delas sofreram assédios morais ou sexuais, homofobia ou racismo. Esse é um cenário similar àquele descrito pela extensa pesquisa de Becker et al. (1977), na qual observaram que o treinamento hospitalar de estudantes de medicina era alicerçado por uma hierarquia que atribuía aos homens heterossexuais brancos o maior status que refletia no processo de formação. Essa ausência de formação específica levou esses médicos à constituição de uma “formação na vida” que entrelaça vida pessoa e carreira, e transforma, como todos os percursos de entrada na disciplina, carreiras morais. Assim, as trajetórias de sensibilização que já apresentei até aqui podem assumir outras feições, como são as histórias de vida de Geraldo e de Fátima. *** Geraldo seguiu um caminho similar ao de Carmela até a medicina. Ele tinha um interesse constante por psicologia, mas entrou no curso de medicina sem muito planejamento. Como me disse, esse não era o grande sonho de sua vida. Querendo sair da sua cidade natal, no interior do 341 Piauí, viajou para Fortaleza para realizar sua residência em psiquiatria. Foi então que seu primeiro contato se deu com o tema da sexualidade, uma vez que o hospital de saúde mental detinha de ambulatórios que atuavam nesse sentido: Desde antes de eu pensar no que eu queria fazer para estudar, eu já tinha um certo interesse, assim, bem intuitivo mesmo por questões psicológicas. Então quando tinha um livro de psicologia eu lia algumas coisas e achava bem interessante e aí para o vestibular eu fiz porque eu tinha uma afinidade maior pelas disciplinas que poderiam se pensar que eram da área da saúde. Então, eu fiz medicina mais por causa disso, eu nunca pensei, “nossa eu quero ser médico”, assim na minha vida, não. Foi por conta de exclusão mesmo. Aí eu passei. Ao longo do curso eu fui até ficando meio frustrado porque eu não gostava de nada que ia aparecendo, até que eu cheguei na disciplina de ginecologia. E eu gostei talvez porque a ginecologia já tivesse uma proximidade com a questão da sexualidade. [...]. Você perguntou se houve alguma abordagem sobre sexualidade de forma separada, realmente não houve, eu tive um contato pequeno com a questão da sexualidade na ginecologia, mas nada em questão relacionada a gênero, mais coisas de disfunção sexual, e na psiquiatria eu tive um pouco de contato, mas assim [sobre] os transtornos da sexualidade, também nada especifico para transexualidade ou outras questões de gênero. Então assim, eu pensava que eu ia fazer ginecologia, mas depois que eu fiz uma prova para estagiar no hospital psiquiátrico, no meu primeiro plantão eu vi, “é isso aqui que eu quero fazer” (Geraldo, entrevista 2018). A psiquiatria surge para Geraldo como o resultado também de um processo de psicologização de si. Como me mostrou, continuava fazendo terapia psicanalítica, visitando o divã com frequência. Quando lhe perguntei sobre seu interesse e escolha quanto a medicina trans, me pontuava que via sua vida pessoal, sua própria sexualidade como homossexual, como uma ponte que o ajudou a vislumbrar essa como área de sua atuação. Geraldo me respondeu quando elaborei uma pergunta mais direta sobre isso: Acho que sim, eu penso que sim, bastante. Tem muito a ver com isso também. Por talvez, isso são elaborações que eu vou fazendo ao longo dos anos, de perceber que havia essa questão diferente da maioria das pessoas e de [...] sofrer por conta disso, de discriminação, intolerância, muito embora eu nunca tenha sido vítima de uma coisa assim muito explicita, muito violenta (Geraldo, entrevista 2018). Quando questionei sobre como isso se mostrava nas relações com outros colegas de profissão, me confirma que havia percebido uma homofobia difusa, isto é, através de práticas dispersas de indivíduos no dia a dia e não como práticas institucionais claras e explícitas: Mais aquelas coisas sutis do dia a dia. Então acho que por isso, acho que também tem a ver com isso, de eu ter buscado esse estudo. Não sei, pra tentar entender melhor essas questões. [...]. É, outras situações [indiretas] e aí não sei, não sei o que passa pela cabeça da pessoa que faz isso sabendo que eu sou homossexual e acabam fazendo comentários às vezes pejorativos, não sei como é que é pra elas, pra mim é uma coisa mais tranquila. Em outras épocas já foi mais difícil (Geraldo, entrevista 2018). Próprio de suas elucubrações psicanalíticas, Geraldo apresentava tais formulações e explicações sobre suas trajetórias de modo ainda incerto. O cotidiano com colegas tinha feito com 342 que ele se defrontasse com situações que poderiam exigir um posicionamento mais direto. Uma vez, como lembrou, fora indagado num evento acadêmico e profissional porque homossexuais se interessavam mais por sexualidade como objeto de estudo. Havia aí uma inferência que dizia ser esses sujeitos de interesse apenas para si mesmos. De uma maneira ou de outra, Geraldo e a maioria dos interlocutores vivenciaram algum tipo de conflito que expuseram e geraram tipos diferenciados de preconceitos, por serem mulheres ou homens homossexuais, em suas carreiras. Isso dificulta seus percursos, ao mesmo tempo que lhes dá um acesso compreensivo a experiências que, mesmo não podendo ser balizadas como iguais, são aproximadas quanto à existência de estigmas. Fátima, médica de família e comunidade, expôs isso numa das nossas entrevistas de maneira direta e fulcral. Quando lhe perguntei sobre se ser mulher havia produzido alguma dificuldade na sua carreira, sua resposta imediata foi “sim, todo dia”, embora isso não aconteça de modo explícito: É uma violência meio estrutural, sempre tem que estar provando que você é capaz, isso é muito comum. Tenho a impressão de que tem diminuído ao longo dos anos para cá, mas você fala uma coisa e uma outra pessoa que é homem fala a mesma coisa e as pessoas ouvem o cara, inclusive na mesma reunião, entendeu? Então isso eu tenho percebido ao longo dos anos, nas participações e locais de decisão principalmente, numa fala que não é escutada ou é interrompida muitas vezes. [...], mas teve acho que uma situação que acho que essa foi quando eu, na verdade, acordei [para o] que era o feminismo, [sobre] a importância de tá lutando Foi quando me convidaram pra fazer parte da gestão de uma instituição e a pessoa que era o presidente – no momento eu não percebi que eu estava recém-parida – aí ele me ligou e disse assim: “Fátima, você é muito importante, as suas visões fazem parte e se assemelham com a nossa e a gente acha que você é um nome legal para estar compondo a chapa, mas como você tem filhos, então a gente pensou que eu poderia assumir como presidente e você ficaria como vice”. Então, assim, aí eu disse OK, no momento não me caiu a ficha, mas depois.... (Fátima, entrevista, 2018). Assim como Fátima, todas as outras mulheres médicas entrevistadas vivenciaram alguma forma de situação vexatória por parte de colegas – assédio moral e sexual –, ou foram preteridas por clientes mulheres e profissionais da saúde de outras áreas, também mulheres, em favor de médicos homens vistos como mais competentes (principalmente na área de atuação cirúrgica). Isso é importante de considerar porque localiza o trabalho duplo dessas profissionais que constroem uma carreira em meio a obstáculos desse tipo. Isso demonstra a heterogeneidade do campo, e indica que essas experiências assim situadas, embora não sejam unanimidades, compõem um quadro considerável. Isso, contudo, não significa dizer que tais profissionais se interessaram pela medicina trans porque viveram recortes de gênero que lhe chocaram de alguma forma por causa de questões morais e de hierarquização nas carreiras que construíram. Não é uma equação tão simples. Esse é um elemento dentre vários, mas não deixa de ser um fator importante para formar trajetórias nas quais a medicina trans apareça no horizonte, no campo de possibilidades de carreira, como um projeto. Mesmo médicos que não narraram nenhuma forma de estigma para si mesmos se interessaram pela terapêutica trans e apontaram outros motivos, como é o caso de Álvaro, que 343 não vê nenhuma “motivação” direta, mas percebe como uma boa ação aliada da atividade médica guiada pela ciência. O humanitarismo passeia, mesmo que de modo diferenciado, por essas trajetórias de maneira frouxa e nem sempre é trazido à tona como um objeto de engajamento profissional. Não o humanitarismo enquanto política de governo de populações em vidas precárias cujos contextos são de fome, desastres naturais, epidemias e outros eventos de grandes escalas, isto é, aquele humanitarismo enquanto um guia moral, como demostrou Didier Fassin (2012, p. 247, tradução minha) sobre a política global contemporânea. A razão humanitária, como chamou, circunscreve uma poderosa atração emocional e não deixa de produzir hierarquias de humanidade. Essa lógica é própria do nosso tempo presente, e diz respeito a como “sentimentos morais tem se tornado generalizados como um quadro de referência na vida política”. Embora a saúde trans não condiga com nenhum dos cenários humanitários descritos por Fassin, ela assiste, como cena de atenção à saúde, a afirmação da humanidade daqueles que buscam atendimento em meio a uma vida ordinariamente afligida. Quando Álvaro me falava em entrevista que não atendia pacientes trans mediante pagamento, mas de graça, dizia que o montante se cobrado dava para “comprar um lugar no céu”. Ele não estava ali se preocupando com as entradas financeiras que não se efetivaram, mas afirmando a sua boa ação mediante a ser um ônus que carregava. Ele se sentia compelido a fazer esses atendimentos diante do sofrimento de que ouvia testemunhos. Assim, as trajetórias em direção à medicina trans são tão diversas que se torna difícil o trabalho de síntese que procuraria agrupar esses profissionais segundo suas maiores semelhanças e diferenças. Contudo, todos esses percursos se efetivam nas vidas desses médicos e médicas como produtores de subjetivação. Como me mostram, eles e elas não permanecem os mesmos. Algo é transformado com essa interação que expõe a violência e a diferença de classe, isso porque as maiores tensões e dificuldades se encontram entre pobres. Nada disso implica ausentar-se do rigor científico para concretizar a prática médica clínica ou cirúrgica. É pela prática assim orientada que se consegue realizar alguma diferença. Não se busca uma piedade, a qual é vista como algo negativo para aqueles que buscam atendimento. Isso tenciona os acessos a esse universo, mas não explicam em si o trabalho realizado na medicina trans, isso é, a engrenagem e as ferramentas que dispõem para concretizar a medicina trans. *** Tentar dissociar o que, na competência científica, seria pura representação social, poder simbólico, marcado por todo um “aparelho” (no sentido de Pascal) de emblemas e de signos, e o que seria pura capacidade técnica, é cair na armadilha constitutiva de toda competência, razão social que se legitima apresentando-se como razão puramente técnica 344 (conforme vemos, por exemplo, nos usos tecnocráticos da noção de competência) (Bourdieu, 1983, p. 123). Assim, a ciência é vista por Bourdieu como um campo social que, como qualquer um, é governado por regras e valorizações das ações dos agentes. Ao se tentar separar a técnica daquilo que seria apenas representação cai-se no problema de não enxergar que a própria produção dessa técnica nunca está apartada dos princípios que governam o universo social a que diz respeito. A sua razão social é constitutiva da sua existência em si. Nesse sentido, me interessei grandemente em observar como medidas de hormônios sexuais sintéticos eram operacionalizadas, como técnicas cirúrgicas eram escolhidas para determinados corpos, e como compreender e manejar saberes em biologia celular para chegar a uma transição saudável eram também condizentes com o sistema de ideias ao qual médicos estavam ligados. Isso porque observei ser necessário ultrapassar as operações que procuram o transexual de verdade para entender as racionalidades biomédicas que animam uma terapêutica da transição de gênero vista como possível, isto é, é necessário ir além da patologização para compreender que a medicina continua com seus arrazoados próprios de intervenção mesmo quando não há um interesse específico em reificar diferenças de gênero como essências de uma diferença sexual binária. Nas suas diferentes análises dos campos sociais sobre os quais se debruçou – economia, política, arte, ciência, sociologia e antropologia como disciplinas, entre outros –, Bourdieu (2006, 1989, 1996c, 1983, 2003c) atribuiu a sua força a uma capacidade de reprodução autônoma de diferenças externas. O controle que a medicina estabelece para o treinamento de novos profissionais e para o desempenho posterior, e até mesmo diferentes táticas como divulgação do conhecimento científico que produz e a delimitação de tarefas que só ela pode realizar em relação a outras áreas de saúde (o ato médico, por exemplo), demonstra o seu altíssimo grau de autonomia e até do excesso de força política que estabelece – isto é, para outros domínios, como a política eletiva. Qualquer forma de esoterismo é punida. Com seus conselhos, associações e sociedades e escolas de formação, residência e internato, a medicina se autorreproduz de maneira controlada e vigiada, de tal modo que nada causa mais horror e risco à vida do que um falso médico noticiado no jornal da manhã. Esse é um escândalo que causa um medo inquestionável. No processo social de consolidação e legitimação, encontra-se a medicina num trabalho de transformar problemas humanos em matéria de sua intervenção, o que acaba, por sua vez, possibilitando um sentido mais legítimo no cotidiano para esse novo objeto. São várias as práticas que conflituosamente se sobrepõem a dinâmicas diversas de outros especialistas e explicações terapêuticas. No presente brasileiro, as práticas da supervisão médica para a transição são altamente reguladas por políticas de governo (capítulo 4), de modo que as restrições, regras e orientações do 345 atual Processo Transexualizador podem limitar esse trabalho, fazendo com que esses profissionais se tornem, ao agirem sozinhos, atados de alguma forma a tais prerrogativas morais e legais. Mas isso não impede que uma abordagem afirmativa se reproduza. No campo vez ou outra a imagem de Farina era referida, principalmente, para dizer que não se estava pondo em risco a própria carreira ao ir contra a lei. E ninguém poderia cobrar isso de suas partes. Mas seguir os protocolos não se trata apenas de não perder a licença, eles também materializam o cânone médico no assunto e orientam a ação. Nesse sentido, me perguntava: como médicos e médicas enxergam a corrente presença da disforia de gênero com critérios diagnósticos no DSM-5? Como pensam suas práticas clínicas e/ou cirurgias em face das regras brasileiras? Como se veem atuantes nesse cenário como cientistas em meio a concepções envolvendo sexo e gênero? E, por fim, como leem os protocolos e os manuais de saúde? Todos os médicos entrevistados mostraram que em algum momento de suas atuações nada conheciam sobre transição de gênero, e mesmo tendo algum conhecimento sobre diversidade sexual e de gênero, não sabiam como efetivar o acompanhamento. Numa das minhas visitas a serviços de saúde para encontrar esse ou aquele médico, indicado por outro para a pesquisa, eu conversei, à oeste de Fortaleza, num bairro popular, com uma médica de família já quando não havia nenhum paciente no serviço. Clara tinha 32 anos e atendia sozinha como médica de família. Já era final de expediente e passamos mais de uma hora em entrevista. Quando saí de lá já era noite. Em seu pequeno e aconchegante consultório, Clara me contava que costumava atender moradores trans que moravam no bairro que compunha a comunidade territorial do posto, mas se considerava um pouco perdida sobre para onde referenciá-lo quando se tratava de hormonização e até cirurgias pretendidas. Não conhecia serviço nenhum na cidade nesse sentido. Como também não recebera nenhuma forma de treinamento na graduação, seu contato inicial com o tema fora na residência de medicina de família: Eu acho que homens e mulheres trans sempre têm uma relação com a saúde, com os médicos principalmente, muito de desconfiança, e com razão. Sendo bem sincera eu acho que existe muito preconceito na medicina em geral e aí eu vejo que as pessoas nunca estão muito abertas, nunca vêm muito abertas para discutir a transexualidade em si, porque eu acho que elas pensam que não vão ser bem recebidas nesse aspecto. Então eu acho que a maior diferença que eu noto de quando essas pessoas chegam até mim é que muitas vezes eu já percebo uma barreira que normalmente eu consigo quebrar porque a minha visão é outra, não é essa que é o senso comum para médicos, infelizmente. Mas, eu acho que essas pessoas já vêm com uma barreira sobre esse assunto a ser discutido [...] (Clara, entrevista 2018). A medicina de família e comunidade é trazida por Clara como a razão para sua visão diferenciada sobre a diversidade sexual e de gênero, principalmente porque a MFC oferecia uma perspectiva de saúde integral e não da Clínica Geral e das especialidades médicas, incessantemente, 346 à procura de doenças e não de cuidado de pessoas. Seguindo a nota pública da SBMFC, citada no início do capítulo, e muito antes desse documento ser produzido e publicado, Clara já estava pensando suas premissas com a pouca experiência que tem no assunto. Seu ponto de partida era colocado como de uma medicina diferenciada: A minha especialidade [é] a que mais deve ter o contato nesse aspecto, porque, primeiro, a atenção primária é a porta de entrada para qualquer serviço secundário ou terciário que você precise. Você nunca vai conseguir chegar num serviço secundário ou terciário sem passar pela atenção primária, então precisa estar na atenção primária inicialmente, e segundo porque é a pessoa que provavelmente que acompanhou toda essa descoberta, todo esse sofrimento de não se entender o gênero com o qual nasceu e de querer modificar para o que a pessoa sente, para o que ela sente que ela é. Então, eu acho que de todas as especialidades, [a MFC] é a que mais deveria ter relação com isso, sim (Clara, MFC, entrevista 2018). A ideia que Clara contempla é uma que coloca a medicina como uma supervisão e não como uma autorização para modificações corporais ou enquadramento subjetivo que os diagnósticos reproduzem. Na graduação se deveria, assim, aprender a mediar e não a diagnosticar. Ela conclui que a transição de gênero deveria ser vista como um ciclo de vida, e como tal tem tudo a ver com a medicina de família. “Isso é um ciclo de vida, esse processo da transição, e é um ciclo onde a pessoa vai precisar de apoio em todos os sentidos, então eu acho que tem tudo a ver com a minha especialidade”. Essa concepção se torna ainda mais forte quando Clara posiciona a transição em meio a todas as outras regularidades que está acostumada a ver no posto de saúde. Ao pensar na MFC, ela conclui que a transição (o querer a mudança de gênero) é uma parte da vida que pode acontecer e que pode afetar a saúde e não é o próprio problema de saúde: O médico de família é o médico responsável primeiro pela coordenação do cuidado daquela pessoa e por acompanhar o indivíduo nas diversas fases de vida e ciclos de vida pelos quais a gente passa, então eu atendo pessoas de qualquer idade com quaisquer problemas de saúde, ou com nenhum problema de saúde inclusive, e o nosso principal foco é a prevenção de agravos, prevenção de doenças, e o acompanhamento de pacientes que estejam precisando fazer uma rotina, um pré-natal, então eu atendo pré-natais, eu atendo crianças. [...]. Eu atendo idosos, a gente faz visitas domiciliares de pacientes acanhados, e pacientes com doenças crônicas, hipertensos, diabéticos, com problemas cardíacos, com hipotireoidismo, então a gente atende qualquer pessoa, na verdade. E o foco da medicina de família não é na doença, e sim na pessoa. Então, até a questão da saúde mental que a gente falou antes é algo que a gente vê no nosso dia a dia o tempo inteiro. Depois de uma pausa ela continua: Algo que a gente discute é como o ciclo das nossas vidas altera a nossa saúde, existem ciclos que são previsíveis, existem ciclos que não são, então para os previsíveis a gente tenta fazer a pessoa se apropriar de que aquele ciclo vai chegar e ela tem que estar preparada para passar por ele.... Então o nosso papel é esse, ouvir a pessoa, o contexto em que ela vive, saber orientar de acordo com os conhecimentos que ela tem, com a vida que ela tem, com as facilidades ou dificuldades. Então o papel é entender a pessoa, 347 conhecer a pessoa, conhecer o ambiente onde ela está inserida e ver o que pode fazer pela saúde dela (Clara, entrevista 2018). Um diferencial da sua “especialidade” ganha relevo na visão de que é esse pano de fundo que percebe o outro em como ele quer ser e não como ele deveria ser: É isso o que a medicina de família me ensinou, que o meu foco [é] com a pessoa não é na doença dela. É no que ela é, é no que ela quer ser, é nos sonhos dela, é no futuro que ele pretende ter, é no que ela está fazendo para atingir esse futuro. [...]. Eu acho que essa abordagem não é muito vista pelos médicos na maioria das vezes, eu mesmo só fui me apropriar direitinho dela na residência. Por isso as pessoas tendem a medicalizar tudo, a tornar tudo patológico e aí por isso esse preconceito. Então eu acho que por isso a minha visão é diferente, como eu acredito que a maioria dos médicos de família vai ser nesse aspecto (Clara, entrevista 2018). O estabelecimento da medicina de família e comunidade no Brasil favoreceu outra forma para a relação entre médico e paciente. Segundo Octávio Bonet (2014), a institucionalização no país dessa especialidade perseguiu uma ideia de totalidade no período de conformação dos Programas de Saúde da Família, impulsionado pela nova reestruturação do sistema de saúde brasileiro, o SUS. A ideia de integralidade a que Clara se refere é central na epistemologia da medicina de família, uma vez que outra visão é estabelecida para aquele que é atendido. Segundo Bonet (2014), esse paciente se torna uma pessoa: Essa integralidade, que implicará uma visão diferente, está associada diretamente com a ideia de que o compromisso do médico de família com a pessoa não termina com o fim da doença ou a resolução do problema, mas sim que este pode ser estabelecido antes da aparição de um problema. Essa permanência da relação configura a característica da especialidade, chamada continuidade (Bonet, 2014, p. 172). Essa é uma perspectiva que deixará de animar apenas a medicina de família no campo observado. Mesmo que ginecologistas, psiquiatras e endocrinologistas não repliquem na mesma profundidade a ideia de integralidade, principalmente conformando, tal qual uma continuidade do acompanhamento como faz Clara, a ideia de que o sujeito que procura a transição de gênero é uma pessoa complexa como qualquer outra, e que tem um eu que precisa atingir o bem-estar, se repete. Essa mudança corporal e institucional ensejaria a ideia de multidimensionalidade do indivíduo entronizada pelos médicos de família. Assim como essa, a área de expertise da terapêutica trans se mostra como uma medicina das margens. Tanto no sentido de que os profissionais que por ela se interessam estiveram marcados majoritariamente por posições de sujeito marginal, como no sentido de que a perspectiva afirmativa ainda se estabelece às margens da biomedicina hegemônica. A visão de Clara não é unânime. Outros médicos chegaram a pensar suas especialidades diante do processo de transição de gênero. Num cenário mais abrangente, a legitimidade encontra-se ora na assertiva da obrigatoriedade do atendimento psiquiátrico, ora entende que são equipes 348 multidisciplinares em ambulatórios que devem realizar esse trabalho. Na supervisão afirmativa, esses pacientes são também instados a cuidarem da própria saúde mental, principalmente quando foram vítimas de situações de violência. O que não é também unânime entre esses médicos é qual especialidade deveria ser a porta de entrada dessa assistência, se a medicina de família ou se a psiquiatria. Compreendo que quanto mais forte for uma perspectiva despatologizada, mais a autorização psiquiátrica perde espaço para a continuidade do atendimento oferecida emblematicamente pela medicina de família. 6.4. Visões afirmativas Nesse capítulo procurei situar as trajetórias de médicos e médicas em direção a medicina trans, demostrando de maneira objetiva os dilemas e as questões que fazem entrelaçar suas carreiras e o interesse pela atuação em clínica e cirurgia voltadas para a transição de gênero. Dada a minha inserção na rede de profissionais organizados de forma difusa, isto é, sem constituir um grupo social específico e unitário, passei a fazer uso da técnica de bola de neve e da presença em eventos para que pudesse ter acesso para que as entrevistas fossem possíveis. Algumas questões, contudo, não foram incluídas nesse capítulo dado seu escopo principal ter se dedicado às entradas no âmbito da carreira na terapêutica trans, como dinâmicas em torno do controle ao acesso a hormônios, cirurgias, e outras problemáticas envolvendo a necessidade da patologização. A maioria dos interlocutores não viam a transexualidade como algo patológico a ser diagnosticado, mas eu percebo que isso não significa que se elimine por completo – e não busco conferir que haja ou não essa possibilidade, pois isso seria ceder à tentação ao profetismo – a tutela e a relação médico- paciente que identifica problemas e autoriza procedimentos como acontece em qualquer relação e sobre qualquer processo de medicalização. Tampouco poderia ser dito que a patologização seja a única via, quando é postulada, através da qual isso se materializa. A heterogeneidade desses sujeitos é vasta, e se refere as concepções relacionadas a como veem a transexualidade, como se situam politicamente e como manejam saberes biomédicos sobre transicionar. Há, por outro lado, certa unanimidade sobre os riscos presentes nas cirurgias e na administração de testosterona sintética sem supervisão. Não pretendi aqui dar conta de todos os meandros da atuação médica envolvendo a terapêutica trans, mas lançar luzes sobre como pensam e os caminhos que viveram para chegar aonde estão como profissionais. Isso porque a trajetória é um elemento social importante de ser entendido, principalmente porque foi por conta própria que esses interlocutores se tornaram aptos a ter uma conversa detida, a ouvir as angústias de pacientes e a “ajudá-los”, já que esse é um direito que se sentem instados a fazer cumprir. Contudo, essas trajetórias pessoais se encontram envernizadas com uma vivência das emoções, de modo que a 349 atuação médica não deixa de buscar um ideal de cientificidade que reflete na ideia de segurança para o paciente. Pela ausência de pesquisas antropológicas sobre a atuação de médicos e médicas na medicina trans procurei dar conta, portanto, de trajetórias. Como o cenário que tive acesso é consideravelmente pequeno, dado que suas figuras mais notórias são popularmente identificáveis, não descrevi cenários específicos de atuação clínica. O que as análises desse capítulo acabam por demonstrar é que há uma confluência de vertentes concorrentes sobre a abordagem da transição de gênero na medicina brasileira, e essas não se restringem a níveis de preocupação por um transexual de verdade. As visões afirmativas, despatologizadas, estão cada vez mais presentes. Isso, por sua vez, não implica nem uma ausência de medicalização, nem uma completa e absoluta transformação da biomedicina enquanto área científica e de intervenção no cotidiano. 350 – Conclusão – As políticas do cuidado na saúde trans Ao me debruçar sobre os objetivos desse trabalho procurei recobrir, primordialmente a partir de uma etnografia, um cenário composto de diferentes agentes sociais que estabelecem a legitimidade de uma assistência em saúde pública voltada para a transição de gênero. O país abriga uma intensa e crescente produção em várias áreas do conhecimento sobre a transexualidade, demonstrando as maneiras pelas quais rígidos mecanismos de controle se materializaram para que o acesso à atenção à saúde fosse realizado, a oferta da possibilidade de mudança social e corporal para uma noção de pessoa contrária àquela identificada ao nascer. Essas pesquisas também têm evidenciado uma grande diversidade nesse cenário e o que indicam categorias de sujeitos que são geralmente agrupadas nos termos trans, transgênero ou transexual – e outros termos de criatividade ilimitada. Como minha intenção principal era de descrever essa efervescência ao lado da consolidação do ativismo transmasculino na região metropolitana de Fortaleza, no Ceará, me concentrei em entender quais eram as forças sociais e como se dava o dinamismo relacional cujo contato produzia um universo social próprio. O foco se deu, portanto, para expor o que considerei ser pouco explorado pelas pesquisas até agora: a integração de médicos, pacientes e ativistas trans e agentes de governo, demonstrando a importância também das ciências bioquímicas e sua aplicação à reprodução nos cuidados em saúde e na medicina contemporânea. Não procurei centralizar minhas descrições nos termos de uma definição identitária, dando relevo, por outro lado, a experiências, práticas e seus discursos. A pesquisa observou que, ao contrário do que se poderia supor, há muito mais semelhanças do que diferenças entre pacientes e ativistas trans e médicos e médicas na constituição de uma abordagem biomédica para garantir uma transição de gênero biologicamente segura. Isso não significa afirmar que pessoas trans estão submetidas aos saberes biomédico, mas que há aí uma relação de mútua significação. Aí o corpo detém sua centralidade nas experiências trans, mas é articulado pelos 351 sujeitos de uma maneira que não se rejeita a compreensão social dos eventos orgânicos que produzem as mudanças. Além disso, situei culturalmente esse cenário ao pontuar como ativistas trans agem em torno de produções artísticas, pois a legitimidade advém de se fazer presente no mundo de outras maneiras. Ao se reclamar do Estado-nação brasileiro uma cobertura para assegurar a transição de gênero supervisionada medicamente, esses agentes não simplesmente “resistem”, eles tanto participam de processos de formação estatal como se subjetivam. Na hora de escolher suas estratégias para a conquista da cidadania, homens trans sentiram, na constituição do eu, os efeitos sociais de sua mobilização e do encontro com outros campos sociais com os quais interagem. Os médicos, por sua vez, podem também ser visto nesse mesmo processo de subjetivação enquanto circunscrevem-se como cientistas, clínicos e/ou cirurgiões de uma determinada terapêutica num cenário heterogêneo para a definição do que seja trans, sexo, gênero e sexualidade. Procuro realizar nessa conclusão não apenas uma síntese da tese, mas explorar as limitações das minhas análises, as questões que deixei descobertas e os novos cenários que ora se anunciam. A atenção à saúde e a biomedicina afirmativa Embora a patologização das identidades trans não tenha sido tratada sempre de modo aberto e empenhado pelo ativismo local que observei, essa era uma preocupação difusa de homens trans. Não se tratava simplesmente de usar de modo estratégico os manuais de saúde e suas definições de desordem para assegurar a existência – e, no caso do Ceará, a implantação – de serviços e de abordagens médicas. Esses interlocutores giraram noutra direção a engrenagem da narrativa biológica e urgiam que seus direitos estavam limitados pelo não desenvolvimento de um cuidado afirmativo produzido numa atenção estruturada. Mas esse movimento não se realizava em termos de advogar que gênero seria performático, como se os ativistas anunciassem os termos da teoria de Butler para os agentes estatais, o reforço estava em não negar o aspecto orgânico, molecular, bioquímico dos corpos, mudando a perspectiva a partir da qual isso se tornava relevante politicamente. Com isso, produziram sentidos biossociais para seus reclames e práticas cotidianas. Aí não se põe em xeque a transexualidade – ou os transbordamentos práticos e identitários que as formulações de manuais e guias de orientação podem indicar. Na dinâmica interacional, na qual o uso do nome civil estava em desacordo com o nome social, se criava uma barreira inclusive para se esperar o atendimento em recepções de postos de saúde, hospitais e outras formas de assistência. Quando as relações médico/paciente procuravam diagnosticar as vontades de se mudar a própria identidade de gênero se produzia um ambiente interativo de aflição, no qual o paciente se via como tendo que produzir justificativas morais para 352 o cuidado. Partindo da vasta bibliografia brasileira em saúde pública e saúde coletiva, que chama a estrutura estatal do sistema de saúde de atenção à saúde e a observação de itinerários terapêuticos de transição de gênero e processos de adoecimento paralelos, percebi que seria pertinente fazer uma diferenciação entre atenção e cuidado. A noção de cuidado tem uma amplitude variada nas Ciências Sociais e nas Humanidades, e tem sido abordado como atividades contínuas que são centrais para sustentação de comunidades e necessidades individuais. Ajudar, observar, ouvir, conversar, vestir o outro e cozinhar são, por exemplo, práticas através das quais alguém cuida de si e do outro. A dimensão feminina disso tem sido apontada por teóricas feministas como um produto de relações de gênero que cobram das mulheres uma maior afetividade no âmbito da família e do trabalho, de tal modo que profissões que cuidam são tidas como pouco afeitas aos homens (Tamarini, 2018; Porto, 2009). Assim, isso pode ser percebido tanto como uma relação quanto como uma prática nas quais os que recebem e os que dão entram em circuitos de troca com forte potencial de ajuda mútua. A dimensão da dádiva é crucial no seu estabelecimento. Mas isso não se dá apenas no espaço de interações com parentes e amigos. Ao olhar para recortes que expõem questões envolvendo sexualidade, raça, etnicidade e deficiência se desafiam concepções sobre a universalidade do cuidar como instância feminina que fica materializado com a concepção do “trabalho do amor” apontado pelos estudos feministas. Mas como isso pode ser observado sob a chave interpretativa da busca por serviços de saúde organizados por políticas de governo ou instâncias estatais? Não se trocam apenas serviços, nem se oferece apenas cuidados, relações de troca são constituídas na sua formulação de significado para que o cuidado em saúde seja efetivado. Como mostrou Allain Caillé (2014, p. 63), “em todo ato médico, existe, necessariamente, uma parcela significativa e, às vezes, absolutamente decisiva de dádiva”. Ao pensar nisso é possível fazer uma comparação com a práticas envolvendo deficiência, com aquelas do contexto de quem vive com HIV/AIDS e quanto a comunidades de gays e lésbicas. Os sujeitos que vivem experiências de deficiência, por exemplo, se defrontaram com uma dinâmica que expõe um limite tênue no qual o cuidado pode se transformar em violência quando não é deixado espaço para a autonomia cotidiana e também pela falta de ações governamentais, que são chamadas a produzir políticas, e de suporte familiar, como tem demonstrado Anahí Guedes (2014). No caso das vivências daqueles que convivem com o vírus do HIV/Aids, a superposição da sorologia como um definidor de quem são e que destinos detêm produz aquilo que Carlos Guilherme do Valle (2013) apontou sobre o que o ativismo em resposta inferia: a morte civil, uma morte em vida de sujeitos que são transformados em objetos de pânicos morais. A demora na resposta à pandemia da infecção por HIV levou homens gays, hemofílicos, pessoas negras e 353 mulheres a se reunirem em diferentes comunidades para conformar aquilo que estava então posto como obrigação dos Estados, uma vez que não havia disposição inicial na forma de políticas (Valle, 2000). Como mostrou também Weeks (1995 citado por Hines, 2007) sobre o contexto inglês, isso gerou práticas de cuidado através de uma noção de comunidade imbuída nas noções de identidade e resistência. A ausência de vínculos familiares rompidos por decorrência da “saída do armário” de gays e lésbicas – considerando o contexto estadunidense – também gerou uma ideia de que novas famílias poderiam ser construídas para alicerçar as ajudas que amigos poderiam produzir entre si (Weston, 1991). Esse cenário de fatores disruptivos na vida coletiva quanto a infecções e ao reconhecimento de novas identidades e sujeitos também é o caso, e não apenas do norte global (Epstein, 1996), em que redes de ajuda mútua se formaram para suprir a carência de políticas de governo e reconhecimento social, como demonstraram as pesquisas de Carlos Guilherme do Valle (2000; 2013; 2015) sobre os grupos tanto de infectados por HTLV como soropositivos no Brasil. A ausência de cuidado produziu comunidades e impulsionou uma busca por direitos, gerando o que o autor chama em diferentes ocasiões de cidadania terapêutica. A mobilização social é, assim, uma chave para compreender processos de visibilização. Isso tudo – deficiência, resposta ao HIV/Aids, reconhecimento gay e lésbico – é “bom para pensar” o cuidado em saúde trans. Não porque eu esteja inferindo que “trans” signifique uma experiência da deficiência ou ser infectado por algum vírus – aliás, essa comparação se torna um problema quando há o trabalho da própria moral que percebe essas experiências como mais abjetas. A transição de gênero posiciona, para pessoas trans que integrei a essa pesquisa, um contato contínuo com saberes e práticas biomédicas, e não apenas porque as alterações corporais se tornaram possíveis pelas transformações nas concepções de sexo, mas também porque crescem preocupações em torno de adoecimentos que podem se desenvolver devido às más interações bioquímicas, esperadas ou não. Isso traz à tona novas formas de medicalização que podem não estar associadas à patologização de identidades não-heterossexuais. Quando alguém que realiza sozinho aplicações de testosterona sintética descobre, meses depois, que tem um cisto no útero, ou começa a sentir dores regulares, como se estabelece a percepção do cuidado que deveria ser oferecido por uma assistência governamental que é reclamada? O medo de desenvolver um quadro cancerígeno é algo presente, mesmo que nem sempre se conheça muitos exemplos próximos de outras pessoas que o tenham vivido. Como, então, pensar a transição de gênero de alguém que vive com diabetes – e não faz nenhum tratamento para isso –, mas continua com a ingestão avulsa de hormônios? Essa preocupação é corrente e situa os interlocutores com quem convivi nas margens dos cuidados que demandam. Assim, esses sujeitos têm estratégias para transicionar ao manejarem os conhecimentos biomédicos 354 quando não têm acesso a consultas, exames e procedimentos. A via para isso acontecer, principalmente, está na compra de receitas ou ampolas por terceiros, ou pela circulação de ampolas entre aqueles que a obtiveram com prescrição médica. Mas há outros recursos sociais, como uma redobrada atenção para o consumo de alimentos que ajudem o metabolismo a produzir mais testosterona que estrogênio e o uso de substâncias que fazem crescer os pelos corporais. Assim, encontram diversas maneiras paralelas à estrutura de saúde pública e suplementar. Mas esses caminhos são geralmente tidos como não saudáveis, ou, até mesmo, pelo emprego moral do termo ilegal com alta carga de estigma. Então, o que tem faltado não é um cuidado de si, mas um cuidado que advenha de uma estrutura formal sem as prerrogativas da patologização. É isso que levou a grande mobilização de associações ativistas trans no Ceará a requerer do governo local a implantação da única política disponível no país que assiste à transição, o Processo Transexualizador, que tem sido marcado continuadamente por um viés de controle de diagnósticos e cobrança de verdades sobre os sujeitos. Isso acontece mesmo quando o serviço não existe de fato, já que a política se inscreve como um tipo de jurisdição biomédica para os profissionais e gestores de saúde. Isso tudo se encontra com as novas e emergentes transformações que sofrem as abordagens e as perspectivas de médicos que se interessam por se especializar na supervisão da transição ou simplesmente por não rejeitar pacientes trans na saúde integral. A tese demonstrou que a saúde trans se compõe de muitos agentes que não comungam das mesmas obrigações morais e formas de legitimação, nem mesmo das mesmas noções sobre o que seja o sexo. Esse contato não deixa de produzir um campo maior de articulação para um objetivo comum: o estabelecimento da saúde trans como área de atuação clínica e cirúrgica benéfica à vida humana. Há, aí, uma disputa de visões de mundo internas ao próprio mundo social da medicina que tem uma estrutura própria. Mas é preciso olhar para esse cenário particular a partir de si mesmo. A terapêutica trans não é a mesma daquela promovida por Harry Benjamin ou John Money, e as novas formas da biomedicina abordar a vida constituem os modos como a transição de gênero tem sido vista como uma prática saudável que precisa, entretanto, ser supervisionada na sua atuação bioquímica, embora isso não implique uma substituição de uma visão patologizante por uma apenas medicalizante. Essas proposições se sobrepõem, se justapõem e são concorrentes até mesmo num mesmo serviço de saúde. Questões e problemas em aberto Essa tese, como qualquer pesquisa, foi feita de escolhas sobre como tratar e construir o material empírico e quais elementos evidenciar para construir seu argumento, de modo que parece haver muito mais questões deixadas de fora do que acolhidas. Essa etnografia surgiu para mim a 355 partir de uma questão mal resolvida durante a minha dissertação de mestrado. Na ocasião, eu dei pouca atenção a dinâmicas envolvendo serviços de saúde, concentrando-me no aspecto subjetivo e ligado às problemáticas colocadas pelas intervenções das ciências psi na vida de homens trans, bem como a um ativismo voltado para o cotidiano e não diretamente para as instituições. Assim, investigar a dimensão biológica da transição, e desse modo desnaturalizá-la, pareceu algo inacabado naquele momento. Com isso, percebi que se constrói um ativismo, sentidos e práticas biossociais que buscam justificar a transexualidade – ou a experiência trans em geral – e as práticas de intervenções bioquímicas e físicas como constituidoras de biossocialidades, relações que unem o social e aquilo entendido como biológico na formação da vida. Vali-me grandemente das formulações de Carlos Guilherme do Valle (2015; 2018) quando aplica e extrapola várias proposições de autores como Paul Rabinow e Nicolas Rose, a quem também recorri. A ideia de ativismo biossocial é um termo tomado de empréstimo das descrições de Valle (2015) que utilizo para mostrar que o mundo social da saúde trans é animado por esses sentidos e relações. Contudo, não me detive com grande espaço para as práticas e técnicas corporais que os interlocutores trans realizaram ou os médicos assistiram, uma vez que meu foco esteve no reclame político para que isso tudo se tornasse estruturado pelo Estado. Além disso, não houve espaço para tratar a contento de questões envolvendo raça, racismo e racialismos diversos que se inscreveram nas vidas dos interlocutores, uma vez que tratar disso demandaria uma problematização teórica, metodológica e empírica considerável. Isso não quer dizer que esses problemas sejam menores. Há uma necessidade indiscutível de tratar antropologicamente como o racismo se constitui em Fortaleza, no Ceará, e como a seu passo se constrói também branquitude e outras formas paralelas de identificação e desigualdade racial, e não apenas negritude. Outra ausência marcante é a da não inclusão direta de travestis e mulheres trans como entrevistadas, muito embora elas tenham se feito presentes na pesquisa no decurso da observação participante. Isso se deveu primordialmente pelo meu interesse em cobrir uma parcela tão significa de grupos transmasculinos que ainda são pouco considerados nas pesquisas do tema no país. Como apontei no início do texto, também não cobri a descrição de relações sexuais, mesmo que isso seja muito relevante. Por força de uma legitimação no campo da diferenciação com gays e lésbicas, a questão das práticas sexuais não é trazida para o foco do ativismo trans. Há, assim, um conjunto de retóricas e de investimentos políticos e de intimidade que são direcionados para a esfera estatal ou para as dinâmicas de escolha de parceiros e parceiras, a conquista amorosa e os dramas marcados e sentidos corporalmente em interações que envolvem romance. Pude acompanhar, por exemplo, quando interlocutores se apaixonavam uns pelos outros e como isso trazia um senso de dignidade ao serem correspondidos. Nesse sentido, a minha identidade sexual 356 e de gênero, nos termos do campo, foi um elemento muito importante para minha aproximação, uma vez que ser reconhecido como gay e homem me fazia compartilhar várias experiências com os interlocutores, que eram tomadas como expressão combustível para uma certa confiança. Uma das perguntas que me rodeavam era se eu me envolveria afetivo-sexualmente com um homem trans, o que procurava investigar, se eu realmente os considerava homens. Por ser gay, minha rejeição seria tomada como preconceito. Embora essas questões tenham estado no meu campo de interesse de pesquisa inicial, percebi que a tese precisava ser otimizada dentro de um recorte específico. Não inclui ao longo da tese considerações sobre os meandros de mediação que acabei tomando parte no decurso do trabalho de campo. Inúmeras vezes eu informava a homens trans pacientes e/ou ativistas sobre serviços que eu havia conhecido no meu mapeamento na cidade ou também anunciava a essa ou àquela médica ou médico que havia outros serviços públicos da região para os quais eles poderiam referenciar pacientes. Isso se materializava para mim porque boa parte dos homens trans tinham particular dificuldade em conseguir encontrar serviços sensíveis, como diziam. Então, quando eu conhecia algum lugar no qual eles que poderiam ser admitidos, mesmo que não fosse inicialmente para procedimentos de transição, eu compartilhava essa informação. Alguns médicos que atendem regularmente em postos de saúde na Atenção Primária, principalmente, também não sabiam que outros servidores públicos nessa área tinham grande experiência com a qual eles poderiam entrar em contato. Além disso, realizei muitas outras ações a pedidos, como falar com algum parente de um jovem trans que estava “se assumindo” para os pais, fazer atas para as reuniões das associações ativistas ou ajudar profissionais de saúde a acessarem artigos, ou outras “ajudas” sobre escrita acadêmica, métodos de pesquisa social e dar aulas de “capacitação em gênero e sexualidade” para funcionários dos serviços onde trabalhavam. Escolhi sempre que pude realizar essa “mediação” durante entrevistas ou quando alguém compartilhava angústias nesse sentido e eu estava presente. Isso me pareceu uma dimensão ética e de retorno que eu poderia oferecer aos interlocutores de diferentes campos sociais como um elemento muito ínfimo diante das suas necessidades mais amplas. Eu me perguntava se isso poderia ser considerado uma espécie de mediação. Teria sido eu um mediador? Carlos Guilherme do Valle (2017, p. 31) definiu “práticas de mediação como relação, comunicação, trocas e fluxos intersubjetivos entre pessoas e grupos em mundos sociais específicos, cujos saberes e modos de significação são articulados”. Mas eu não era um membro do universo que eu investigava, não era um ativista nem um médico – mesmo que tenha recebido definições e convites para fazer ativismo ou para cursar medicina. Valle está considerando ativistas de HIV/Aids que se tornaram experts biossociais relacionando saberes entre diferentes agentes e 357 mundos sociais, dimensão na qual entrava em dinâmicas de poder. Eu não considero ter atuado nesse sentido, os experts biossociais eram os próprios ativistas homens trans que reuniam informações sobre hormonização e as compartilhava, reuniam médicos para informar a amigos e colegas sobre quem consultar e até onde ir quando adoeciam. A mediação que realizei, se for possível assim chamá-la, foi mais próxima daquilo que Rozeli Porto (2017) chamou de “mediação informal” em saúde. Seguindo sua definição, percebo que estive posicionado, por minha própria escolha e por demanda dos interlocutores, em relações sociais nas quais essa “ponte” valeria a pena ser feita entre sujeitos, instituições e saberes/práticas para seu benefício. Eu não utilizei isso como um elemento monetizado para acessar a disponibilidade dos interlocutores, mas sempre o fazia após já ter estabelecido contatos duradouros e realizado entrevistas. Além do mais, como outro ponto de preocupação, os médicos não constituem os únicos profissionais de saúde, nem os únicos funcionários públicos, com os quais homens trans, travestis e mulheres trans interagem no processo de transição de gênero ou do reconhecimento da mudança. Assistentes sociais, psicólogas, fisioterapeutas, advogados, tabeliãs de cartório de notas, enfermeiras, por exemplo, são igualmente importantes, e circunscrevem a seu modo mundos sociais específicos que demandam investigações próprias. Também não tive contato como gostaria com cirurgiões e cirurgiãs que performassem cirurgias de mudança de sexo, redesignação sexual ou afirmação de gênero – conforme multiplicam-se as categorias dessas intervenções. Pude entrevistar dois: um cirurgião plástico e uma cirurgiã especializada em procedimentos de mamoplastia. O acesso a cirurgias trans é de difícil concretização, uma vez que esses especialistas são mais inacessíveis por uma redobrada atenção que envolvem as reverberações políticas, éticas e de carreira. Assim, esse é, talvez, um dos campos mais encobertos da saúde trans no país. Por ser esse um cenário de intensa disputa política, envolvendo mobilização social de pacientes, interesses e limites de atuação de profissionais e precariedade de serviços, questões envolvendo a legislação em saúde nesse sentido são de altíssima relevância não apenas para esses sujeitos alcançarem resoluções para aquilo que lhes causa sofrimento e violência. Procurei considerar esse conjunto de documentos de governo para mostrar, principalmente, que apesar de sua força considerável, ele ainda não explica o que acontece no contato direto da clínica e sobre as estratégias e experiências de médicos e pessoas trans. Com isso, essa tese procurou contribuir, a partir da antropologia, para gerar um quadro mais heterogêneo da saúde trans aumentando os agentes e as perspectivas que não são comumente descritos nas pesquisas já realizadas. A segurança biológica de se concretizar uma transição de gênero benéfica tem cada vez mais se justaposto a considerações patologizantes, e anunciam um cenário no qual a biomedicalização permanece e vislumbra outras experiências. O meu foco no mundo da saúde não pode ser visto como um 358 isolamento de questões trans como questões biomédicas, mas responde ao objeto de engajamento do campo que observei. A dimensão da transição segura não é apenas médica, ela envolve muitos significados e dinâmicas culturais e políticas como tentei mostrar ao fazer interagir no texto da tese diferentes domínios sociais. Minha intenção foi, assim, entender como esse universo social conformava uma política da vida. Novos cenários Quando terminava de revisar o texto me deparei com uma série de propagandas on-line sobre clínicas privadas recém-abertas no país que oferecem cirurgias para a transição de gênero. Os anúncios surgiam nas linhas do tempo de várias redes sociais nas quais mantenho perfis pessoais. Percebi que minha inserção de pesquisa nos últimos quase sete anos, desde o mestrado, me tornou parte do público potencial, segundo os algoritmos de consumo que coletam dados dos usuários na internet. As publicações, assim, trazem médicos dando depoimentos em vídeos de porquê escolheram trabalhar nesse ramo quando eles poderiam não ter optado em fazê-lo – “eu tinha minha clínica” –, o que dá muito relevo a uma trajetória. Os procedimentos são listados e separados em imagens específicas com seus termos, fotos de ex-pacientes e explicações de sua necessidade. Vídeos e mais fotos são compartilhadas das salas de cirurgias no momento de procedimentos sendo feitao, e reportagens em telejornais têm crescido com a sua divulgação. Isso acentua o caráter moral da escolha da atuação na terapêutica trans, assim como demonstrei ao longo da tese a respeito dos médicos que conheci. Contudo, esse cenário privado – que não é essencialmente novo, mas que tem agora crescido – coloca muitas novas questões para o campo social da saúde trans. Como os ativismos trans se posicionarão diante de um contexto em que a legitimidade desse atendimento pode perpassar a ideia de consumo e de acentuação do eu ainda mais extremada e não apenas a de cidadania como tem se articulado em torno do SUS? Como mostrei, esse reclame cidadão não impede a articulação do indivíduo como um sujeito uno e indivisível. Formar-se-ia uma cidadania em saúde pelo consumo? Que formas ganham a conformação da subjetividade intersectada por esse tipo de entrada no cuidado em saúde? Como isso se insere nos outros contextos de produção de lugares para o consumo como já mostrado por Isadora França (2012)? Conforme a legislação na área tem liberado a atuação no sistema suplementar de saúde desses procedimentos, como ficará o treinamento e as dimensões de subjetivação e as dinâmicas de inserção de carreira para médicos e médicas? Estaríamos assistindo a emergência de algo similar ao que se realizou nos Estados Unidos e em países como a Tailândia e Marrocos, nos quais essas clínicas têm se popularizado de diferentes maneiras e atraído inclusive estrangeiros? Que formas tomariam agora as estratégias, 359 trajetórias e narrativas de pessoas trans com relação à transição conforme se estrutura um mercado de consumo próprio? Mas como isso poderia se manter tendo em vista a enorme desigualdade brasileira? As trajetórias em torno de cirurgias que acompanhei mostraram que nem sempre isso é um empecilho definitivo, uma vez que observei homens trans realizando economias financeiras ou empréstimos consignados para pagar uma mamoplastia junto a um cirurgião no mercado privado. Mas, sem sombra de dúvidas, esses novos cenários que se desenham suscitam muitas perguntas e apresentam-se potencialmente para gerar outras formas de se construir sujeitos, emoções, relações de poder e a imaginação cultural em torno do que é o sexo, gênero e sexualidade. 360 – Referências – Livros, capítulos e artigos em periódicos Abrahams, Roger D. Ordinary and Extraordinary Experience. Em: Turner, Victor W.; Bruner, Edward M. (ed.). The Anthropology of Experience. Chicago: University of Illinois Press, 1986. Abrams, Philip. Notes on the Difficulty of Studying the State. Journal of Historical Sociology, vol. 1, n. 1, 1977: 58-89, 1988. Abu-Lughod, Lila. Veiled sentiments: Honor and Poetry in a Bedouin Society. Berkeley: Univ. of California Press, 1986. Abu-lughod, Lila. Writing against Culture. Em: Fox, R. (ed.). Recapturing Anthropology. Santa Fé: School of American Research, 1991. Abu-Lughod, Lila; Lutz, Catherine. Introduction: Emotion, Discourse, and the Politics of Everyday Life. Em: ____ (eds.). Language and the politics of emotion. Cambridge, UK: Cambridge Univ. Press, 1990. Aguião, Silvia. Fazer-se no “Estado”: uma etnografia sobre o processo de constituição dos “LGBT” como sujeitos de direitos no Brasil contemporâneo. 2014. 316 f. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2014. Aizura, Aren. Mobile Subjects: Transnational Imaginaries of Gender Reassignment. Durham: Duke University Press, 2018. Albuquerque Jr., Durval Muniz de. Nordestino - Invenção do "falo". Uma história do gênero masculino (1920-1940). 2. ed. São Paulo: Intermeios, 2013 [2003]. Alexandre, Juliana Ribeiro. Emoções, documentos e subjetivação na construção de transexualidades em João Pessoa/PB. 2015. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) – Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2015. Allard, Olivier. To Cry One's Distress: Death, Emotion, and Ethics among the Warao of the Orinoco Delta. Journal of the Royal Anthropological Institute, 19, pp. 545-561, 2013. Almeida, Gláucia; Heilborn, Maria Luiza. Não somos mulheres gays: identidade lésbica na visão de ativistas brasileiras. Gênero, Niterói, v. 9, n. 1, p. 225-249, 2008. Almeida, Guilherme. “Homens trans”: novos matizes na aquarela das masculinidades? Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 20, pp. 513-523, 2012. Almeida, Guilherme. Reflexões iniciais sobre o processo transexualizador no SUS a partir de uma experiência de atendimento. Em: Arilha, Margareth; Lapa, Thaís de S.; Pisaneschi, Tatiane C. (orgs.). Transexualidade, travestilidade e direito à saúde. São Paulo: Oficina Editorial, 2010. Almeida, Guilherme; Murta, Daniela. Reflexões sobre a possibilidade da despatologização da transexualidade e a necessidade da assistência integral à saúde de transexuais no Brasil. Sexualidad, Salud y Sociedad, Rio de Janeiro, n. 14, 2013, pp. 380‐407. Almeida, Guilherme; Santos, Márcia C. B. De baixo para cima: questões e perspectivas sobre a expansão do Processo Transexualizador no Brasil. Trabalho apresentado à Mesa Redonda 361 “Questões e Perspectivas sobre Saúde Trans”, na III Reunião de Antropologia da Saúde, Natal, 2018. Versão final do artigo para futura publicação cedido pelos autores para leitura e citação, s/d. Alves, Geísa Pereira. Corpos no espelho: um estudo antropológico sobre as construções corporais através das cirurgias plásticas na cidade de Natal. 2007. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) - Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2007. Alves, Paulo C. B.; Souza, Iara M. A. Escolha e avaliação de tratamento para problemas de saúde: considerações sobre o itinerário terapêutico. Em: Rabelo, Miriam C.; Alves, Paulo C. B.; Souza, Iara M. A. (orgs.). Experiência de doença e narrativa. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 1999. Anderson, Benedict. Imagined Communities. Londres: Verso, 1991. Appadurai, Arjun. Global Ethnoscapes: Notes and Queries for a Transnational Anthropology. Em: Fox, Richard (ed.). Recapturing Anthropology. Santa Fe: School of American Research Press, 1991. Appadurai, Arjun. Putting Hierarchy in Its Place. Cultural Anthropology, 3:3649, 1988. Appadurai, Arjun. The Anthropology of Globalization. Em: Wright, James D. (ed.). International Encyclopedia of the Social & Behavioral Sciences. 2. ed. Amsterdam: Elsevier, 2015. Arán, Márcia. A saúde como prática de si: do diagnóstico de transtorno de identidade de gênero às redescrições da experiência da transexualidade. Em: Arilha, Margareth; Lapa, Thaís de S.; Pisaneschi, Tatiane C. (orgs.). Transexualidade, travestilidade e direito à saúde. São Paulo: Oficina Editorial, 2010. Arán, Márcia. Novos direitos e visibilidades para os homens trans no Brasil. CLAM, 2012. Disponível em: . Acesso em: jul. 2019. Arán, Márcia; Murta, Daniela. Relatório preliminar dos serviços que prestam assistência a transexuais na rede de saúde pública no Brasil. Rio de Janeiro: IMS/UERJ, 2009. Disponível em: . Acesso: jun. 2020. Arán, Márcia; Murta, Daniela; Lionço, Tatiana. Transexualidade e saúde pública no Brasil. Ciência & Saúde Coletiva, 14(4):1141-1149, 2009. Araújo Neto, Luiz Alves; Teixeira, Luiz Antônio. O câncer no Ceará: a conformação de um problema médico-social, 1940-1954. Hist. cienc. Saúde-Manguinhos, 2018, vol.25, n.1, pp. 181-198. Araújo, Rejane Leal. Fibromialgia: construção e realidade na formação dos médicos. Rev. Bras. Reumatol. v. 46, n. 1, pp. 56-60, 2006. Augé, Marc. L’anthropologie de la maladie. L’Homme, Paris, v. 26, n.1-2, p. 81-90, 1986. Ávila, Simone N. FTM, transhomem, homem trans, trans, homem: a emergência de transmasculinidades no Brasil contemporâneo. Tese (Doutorado Interdisciplinar em Ciências Humanas) – Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Florianópolis, 2014. Ávila, Simone; Grossi, Miriam Pillar. Maria, Maria João, João: reflexões sobre a transexperiência masculina. Em: Anais do Fazendo Gênero 9: Diásporas, Diversidade, Deslocamentos, 23 a 26 de agosto de 2010, Florianópolis. Disponível em: . Acesso em: mar. 2014. Balzer, Carsten. “Eu acho transexual é aquele que disse: ‘Eu sou transexual’!”. Reflexiones etnológicas sobre la medicalización globalizada de las identidades trans a través del ejemplo de Brasil. Em: Missé, M.; Coll-Planas, G. (eds.). El género desordenado. Críticas en torno a la patologización de la transexualidad. Barcelona/Madrid: Egales, 2010. 362 Barbosa, Francisco C. J. Caminhos da cura: a experiência dos moradores de Fortaleza com a saúde e a doença (1850-1880). 2012. 237f. Tese (Doutorado em História) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2012. Barreira, Irlys A. F. Política, moral e cidadania no contexto de atores sociais urbanos. Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 32, n. 1/2, 2001, pp. 41-52. Barth, Fredrik. O guru, o iniciador e outras variações antropológicas. Rio de Janeiro: Contracapa Livraria, 2000. Bastide, Roger. O homem disfarçado em mulher. Em: Sociologia do Folclore Brasileiro. São Paulo: Ed. Anhambi, 1959. Bastos, Cristiana. Tracking global flows and still moving. Em: Melhuus, M., Mitchell, J. P. e Wulff, H. (eds). Ethnographic practice in the present. New York: Berghahn Books, 2010. Bastos, Raquel Littério. Corpo e saúde na antroposofia. Bildung como cura. São Paulo: LiberArs, 2018. Beauvoir, Simone de. A velhice. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990. Beauvoir, Simone de. O segundo sexo, vol. 1. Fatos e mitos. 4. ed. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1970 [1949]. Beck, Ulrick. Risk Society: Towards a New Modernity. London: Sage, 1992. Becker, Howard; Geer, Blanche; Hughes, Everett C.; Strauss, Anselm L. Boys in White. Student culture in medical school. 2. ed. Chicago: University of Chicago Press, 1977 [1961]. Béjin, André. The decline of the psycho-analyst and the rise of the sexologist. Em: Arriés, Philippe; Béjin, A. (eds.). Western sexuality: practice and precept in past and present time. Nova York: Basil Blackwell, 1985 [1982]. Benedetti, Marcos. Toda feita: o corpo e o gênero das travestis. Rio de Janeiro: Garamond, 2005. Benedict, Ruth. O crisântemo e a espada: padrões da cultura japonesa. São Paulo: Perspectiva, 2002 [1948]. Benedict, Ruth. Padrões de cultura. Petrópolis: Vozes, 2013 [1934]. Benjamin, Harry. Transsexualism and Transvestism as Psycho-Somatic and Somato-Psychic Syndromes. American Journal of Psychotherapy, 8: 219-230, 1954. Bento, Berenice. A (re)invenção do corpo: gênero e sexualidades na experiência transexual. Rio de Janeiro: Garamond, 2006. Bento, Berenice. Disforia de gênero: a geopolítica de uma categoria psiquiátrica. Direito & Práxis, Rio de Janeiro, vol. 07, n. 15, 2016, p. 496-536. Bento, Berenice. Estado da arte do debate/campanha sobre despatologização. Em: Arilha, Margareth; Lapa, Thaís de S.; Pisaneschi, Tatiane C. (Orgs.). Transexualidade, travestilidade e direito à saúde. São Paulo: Oficina Editorial, 2010a. Bento, Berenice. Gênero: uma categoria cultural ou diagnóstica? Em: Arilha, Margareth; Lapa, Thaís de S.; Pisaneschi, Tatiane C. (Orgs.). Transexualidade, travestilidade e direito à saúde. São Paulo: Oficina Editorial, 2010b, p. 167-199. Bento, Berenice. Na escola se aprende que a diferença faz a diferença. Estudos Feministas. 2011b, vol. 19, n.2, pp. 549-559. 363 Bento, Berenice. Nome social para pessoas trans: cidadania precária e gambiarra legal. Contemporânea. Revista de Sociologia da UFSCar, São Carlos, v. 4, n. 1, 2014, pp. 165-185. Bento, Berenice. O que é transexualidade. São Paulo: Brasiliense, 2008. Bento, Berenice. Quando o gênero se desloca da sexualidade: homossexualidade entre transexuais. Em: Grossi, M.; Schwade, E. (orgs.). Política e cotidiano: estudos antropológicos sobre gênero, família e sexualidade. Blumenau: Nova Letra, 2006. Bento, Berenice. Sexualidades e experiências trans: do hospital à alcova. Ciência e Saúde coletiva, vol. 17, n. 10, Rio de Janeiro, pp. 2655-266, 2012c. Bento, Berenice. Transfeminicídio: violência de gênero e o gênero da violência. Em: Colling, Leandro (Org.). Dissidências sexuais e de gênero. Salvador: EdUFBA, 2016b. Bento, Berenice. Transviad@s: gênero, sexualidade e direitos humanos. Salvador : Ed. UFBA, 2017. Bento, Berenice; Pelúcio, Larissa. Apresentação: Vivências trans: desafios, dissidências e conformações. Estudos Feministas, Florianópolis, 20(2): 485-488, 2012a. Bento, Berenice; Pelúcio, Larissa. Despatologização do gênero: a politização das identidades abjetas. Estudos Feministas, Florianópolis, 20 (2): 569-581, 2012b. Bento, Berenice; Suess, Amets. A campanha internacional de ação pela despatologização das identidades trans: entrevista com o ativista Amets Suess. Estudos Feministas, Florianópolis, v. 20, n. 2, 2012, pp. 481-484. Besnier, Niko. Language and affect. Annual Review of Anthropology 19:419–451, 1990. Bevilaqua, Ciméa. Leirner, Piero de Camargo. Notas sobre a análise antropológica de setores do Estado brasileiro. Revista de Antropologia, São Paulo, USP, 2000, v. 43, n. 2, pp. 105-140. Beynon, Huw. Protesto ambiental e mudança social no Reino Unido. Mana, Rio de Janeiro, v. 5, n. 1, 1999. Biehl, João. Antropologia no campo da saúde global. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 17, n. 35, p. 257-296, 2011. Biesecker, Leslie G.; Spinner, Nancy B. A genomic view of mosaicism and human disease. Nature Reviews Genetics, 14, 2013, pp. 307-320. Blackwood, Evelyn. Falling in love with an-Other lesbian: reflections on identity in fieldwork. Em: Kulick, D.; Willson, M. (eds.). Taboo: Sex, Identity, and Erotic Subjectivity in Anthropological Fieldwork. New York: Routledge, 1995. Bolin, Anne E. In Search of Eve: Transsexual Rites of Passage. 1983. 393 f. Tese (Doutorado em Antropologia) – University of Colorado, Denver, CO, 1983. Bonaccorsi, Antônio C. Andropausa: Insuficiência Androgênica Parcial do Homem Idoso. Uma Revisão. Arq Bras Endocrinol Metab, São Paulo, v. 45, n. 2, 2001, pp. 123-133. Bonet, Octávio. Os médicos da pessoa: um olhar antropológico sobre a medicina de família no Brasil e na Argentina. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2014. Bonet, Octávio. Saber e sentir: Uma etnografia do aprendizado da biomedicina. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2004. Bosi, Ecléa. Memória e Sociedade: lembrança de velhos. 2a ed. São Paulo: Cia. das Letras, 1994. 364 Bott, Elizabeth. Family and Social Network: Roles, Norms, and External Relationships in Ordinary Urban Families. 2. ed. London: Routledge, 2001 [1957]. Bourdieu, Pierre. A dominação masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003a. Bourdieu, Pierre. A Economia das trocas linguísticas: o que o falar quer dizer. São Paulo: Ed. USP, 1996a. Bourdieu, Pierre. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 2007. Bourdieu, Pierre. As regras da arte: gênese e estrutura do campo literário. São Paulo: Companhia das Letras, 1996c [1992]. Bourdieu, Pierre. Coisas ditas. São Paulo: Brasiliense, 2004a [1987]. Bourdieu, Pierre. Compreender; Pós-escrito. Em: ____ (ed.). A miséria do mundo. 7. ed. Petrópolis: Vozes, 2008 [1993]. Bourdieu, Pierre. Esboço de uma auto-análise. São Paulo: Companhia das Letras, 2005 [2004]. Bourdieu, Pierre. Esboço de uma teoria da prática. Precedido de três estudos de etnologia cabila. Oeiras: Celta Editora, 2002a [2000]. Bourdieu, Pierre. O campo científico. Em: Ortiz, Renato (org.). Pierre Bourdieu: sociologia. São Paulo: Ática, 1983. Bourdieu, Pierre. O Poder Simbólico. Lisboa: Difel/Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989. Bourdieu, Pierre. O senso prático. Petrópolis: Rio de Janeiro, 2009 [1980]. Bourdieu, Pierre. Os usos sociais da ciência. Por uma sociologia clínica do campo científico. São Paulo: Ed. Unesp, 2003b [1997]. Bourdieu, Pierre. Para uma sociologia da ciência. Lisboa: Edições 70, 2004b [2001]. Bourdieu, Pierre. Participant Objectivation. The Journal of the Royal Anthropological Institute, vol. 9, n. 2, pp. 281-294, 2003c. Bourdieu, Pierre. Questões de Sociologia. Lisboa: Fim de Século, 2003d [1984]. Bourdieu, Pierre. Razões Práticas. Sobre a teoria da ação. São Paulo: Papirus, 1996b. Bourdieu, Pierre. Sobre o Estado: Cursos no Collège de France (1989-1992). São Paulo: Cia. das Letras, 2014. Bourdieu, Pierre; Chamboredon, Jean-Claude; Passeron, Jean-Claude. A profissão de sociólogo. Preliminares epistemológicas. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 2002b [1968]. Bourdieu, Pierre; Loyola, M. A. Entrevista. Em: Loyola, M. A. (org.). Pierre Bourdieu entrevistado por Maria Andréa Loyola. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2002c. Bourdieu, Pirre. As estruturas sociais da economia. Porto: Campo das Letras, 2006 [2000]. Braz, Camilo; Souza, Érica Renata de. Antropologia e políticas de saúde para homens trans no Brasil contemporâneo – diálogos entre duas pesquisas. Anais da 30ª Reunião Brasileira de Antropologia, João Pessoa, 03 e 06 de agosto de 2016. Brecht, Bertolt. Estudos sobre teatro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1978. Brettell, Caroline B. Introduction: Fieldwork, text, and audience. Em: ___ (ed.). When they read what we write. The politics of ethnography. Westport: Bergin & Harvey. 1993. 365 Brigeiro, Mauro; Facundo, Angela. Between Avant-Garde Ideals and Conservative Moralities: The Emergence of Sexology in Colomia. International Journal of Sexual Health, 25: 75–91, 2013. Brown, Phil; Zavestoski, Stephen. Social Movements in Health: An Introduction. Sociology of Health and Illness, 26, 6: 679-694, 2004. Brown, Phil; Zavestoski, Stephen; McCormick, Sabrina; Mayer, Brian; Morello-Frosch, Rachel; Altaman, Rebecca G. Embodied Health Movements: New Approaches to Social Movements in Health. Sociology of Health & Illness, vol. 26, n. 1, 2004, pp. 50–80. Bruner, Edward M. Ethnography as Narrative. Em: Turner, Victor W.; Bruner, Edward M. (eds.). The Anthropology of Experience. Chicago: University of Illinois Press, 1986b. Bruner, Edward M. Experience and Its Expressions. Em: Turner, Victor W.; Bruner, Edward M. (eds.). The Anthropology of Experience. Chicago: University of Illinois Press, 1986a. Butler, Judith. Afterword. Em: Felman, Shoshana. The Scandal of the Speaking Body. Don Juan with J. L. Austin, or Seduction in Two Languages. Standford: Standford University Press, 2003. Butler, Judith. Bodies That Matter: The Discursive Limits of 'Sex'. New York: Routledge, 1993. Butler, Judith. Doing justice to someone: sex reassignment and allegories of transsexuality. GLQ: A Journal of Lesbian and Gay Studies, 7(4): 621-636, 2001. Butler, Judith. Precarious Life. Em: Precarious Life. The Powers of Mourning and Violence. London: Verso, 2004b. Butler, Judith. Preface. Em: Gender trouble. Feminism and the Suversion of Identity. 2. ed. Routledge: New York and London, 1999. Butler, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003 [1990]. Butler, Judith. Transexualidad, transformaciones. Em: Missé, Miquel; Coll-Planas, Gerard (eds.). El género desordenado. Críticas en torno de la patologización de la transexualidad. Barcelona/ Madrid: Egales, 2010. Butler, Judith. Undoing Gender. New York: Routledge, 2004a. Califia, Pat. Sex Changes: The Politics of Transgenderism. San Francisco, CA: Cleis Press, 1997. Camargo Jr., Kenneth R. de. Sobre palheiros, agulhas, doutores e o conhecimento médico: a epistemologia intuitiva dos clínicos. In: Leibing, A. (org.). Tecnologias do corpo: uma antropologia das medicinas no Brasil. Rio de Janeiro: NAU Editora, 2004. Camargo, Wagner de. Circulando entre práticas esportivas e sexuais: etnografia em competições esportivas mundiais LGBTs. Tese (Doutorado Interdisciplinar em Ciências Humanas) - Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2012. Cândido, Tel. Tem política na avenida: história e configuração da Parada pela Diversidade Sexual do Ceará. Monografia de Conclusão de Curso (Graduação em Serviço Social) - Universidade Estadual do Ceará, Fortaleza, 2013. Canguilhem, Georges. O normal e o patológico. 6. ed. São Paulo: Forense Universitária, 2009. Cardoso, Antônio A. I. Nem sina, nem acaso: a tessitura das migrações entre a Província do Ceará e o território amazônico (1847-1877). 2011. 244 f. Dissertação (Mestrado em História Social) - Centro de Humanidades, Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2011. 366 Cardoso, Ruth C. L. Aventuras de antropólogos em campo ou como escapar das armadilhas do método. Em: ____. A Aventura Antropológica: teoria e pesquisa. 4. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986. Cardozo, Fernanda. Parentesco e parentalidades de travestis em Florianópolis. Cadernos NIGS, Florianópolis, n. 1, vol. 1, ano 2010. Carneiro da Cunha, Manuela. Cultura com aspas e outros ensaios. São Paulo: Cosac Naify, 2009. Carrara, Sérgio e Simões, Júlio Assis. Sexualidade, cultura e política: a trajetória da identidade homossexual masculina na antropologia brasileira. Cadernos Pagu, 28(1): 65–99, 2007. Carrara, Sérgio; Ramos, Silvia. A constituição da problemática da violência contra homossexuais: a articulação entre ativismo e academia na elaboração de políticas públicas. Physis: Rev. Saúde Coletiva. Vol. 16, nº. 2, p. 185-205, 2006. Carrara, Sérgio; Vianna, Adriana. "Tá lá o corpo estendido no chão...": a violência letal contra travestis no município do Rio de Janeiro. Physis: Rev. Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, 2006, vol. 16, n. 2, pp. 233-249. Cartlidge, David R.; Elliot, J. Keith. Art and the Christian Apocryha. London: Routledge, 2001. Carvalho, Gilmar de. Questões culturais no Ceará. Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 45, n. 1, 2014, pp. 263-275. Carvalho, Mário; Carrara, Sérgio. Em direção a um futuro trans. Contribuições para a história do movimento de travestis e transexuais no Brasil. Sexualidad, Salud y Sociedad, Rio de Janeiro, v. 14, n. 2, 2013, pp. 319-351. Castañeda, Claudia. Developing gender: The medical treatment of transgender young people. Soc Sci Med, 143: 262-70, 2015. Castel, Pierre-Henry. Algumas reflexões para estabelecer a cronologia do fenômeno transexual (1910-1995). Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 21, n. 41, pp. 71-111, 2001. Castells, Manuel. A sociedade em rede. 6. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2011. Castilho, Sérgio; Souza Lima, Antonio Carlos de; Teixeira, Carla Costa. Introdução. Etnografando burocratas, elites e corporações: a pesquisa entre estratos sociais hierarquicamente superiores em sociedades contemporâneas. Em: ____ (orgs.). Antropologia das Práticas de Poder: reflexões etnográficas entre burocratas, elites e corporações. Rio de Janeiro: Contracapa/FAPERJ, 2014. Cauldwell, David O. Psychopathia Transexualis. Sexology, vol. 16, 1949, pp. 274-280. Cavignac, Julie. A literatura de cordel no nordeste do Brasil: da história escrita ao relato oral. Natal: EdUFRN, 2006. Cecilio, Luiz C. de O.; Reis, Ademar A. C. dos. Apontamentos sobre os desafios (ainda) atuais da atenção básica à saúde. Cad. Saúde Pública 2018; 34(8): e00056917. Chau, P.-L.; Herring, Jonathan. Defining, assigning and designing sex. International Journal of Law, Policy and the Family, 16, 2002, 327-367. Ching, Howard. How China Became a “Castrated Civilization” and Eunuchs a “Third Sex”. Em: ____ (ed.). Transgender China. New York: Palgrave MacMillan, 2012b. Ching, Howard. Imagining Transgender China. Em: ____ (ed.). Transgender China. New York: Palgrave MacMillan, 2012a. 367 Clarke, Adele; Shim, Janet K.; Mamo, Laura; Fosket, Jennifer R.; Fishman, Jennifer R.; Biomedicalization: Technoscientific Transformations of Health, Illness, and U.S. Biomedicine. American Sociological Review, Vol. 68, No. 2 (Apr., 2003), pp. 161-194. Coelho, Maria Claudia. Narrativas da violência: a dimensão micropolítica das emoções. Mana, Rio de Janeiro, 16(2): 265-285, 2010. Coelho, Maria Cláudia; Rezende, Cláudia B. O campo da antropologia das emoções. Em: ____ (orgs.). Cultura e sentimentos: ensaios em antropologia das emoções. Rio de Janeiro: Faperj: Contracapa, 2011, pp. 7-26. Connell, Raewyn. Gender and power: society, the person and sexual politics. Cambridge: Basil Blackwell, 1987. Connell, Raewyn. Southern Theory: the Global Dynamics of Knowledge in Social Science. Cambridge: Polity Press, 2007. Connell, Raewyn. The State, Gender and Sexual Politics: Theory and Appraisal. Theory and Society. vol. 19, nº. 5, p. 507-544, 1990. Connell, Raewyn. Transsexual Women and Feminist Thought: Toward New Understanding and New Politics. Signs, Chicago, vol. 37, n. 4, pp. 857-881, 2012. Conrad, Peter. The Medicalization of Society: On the Transformation of Human Conditions into Treatable Disorders. Baltimore: Johns Hopkins University Press, 2007. Costa Novo, Arthur Leonardo. Famílias em transição: uma etnografia sobre parentesco, identidade e gênero na experiência social da transexualidade. 115 f. Texto de Qualificação de Tese (Doutorado em Antropologia Social) – Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2019. Texto não publicado, mas autorizado pelo autor para leitura e citação nesta tese. Costa, Marcelo F. Era uma vez um grêmio: o teatro musical de Carlos Câmara e a construção do teatro cearense. 282 f. Tese (Doutorado em Artes) – Escola de Belas Artes, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2013. Creary, M. S. Biocultural Citizenship and Embodying Exceptionalism: Biopolitics for Sickle Cell Disease in Brazil. Social Science & Medicine, 199, pp.123-131, 2018. Cromwell, Jason. Transmen and FTMs. Identities, Bodies, Genders, and Sexualities. Urbana: University of Illinois Press, 1999. Cusick, James. Introduction. Em: ____ (ed.). Studies in Culture Contact: Interaction, Culture Change, and Archeology. 2. ed. Carbondale, Illinois: Southern Illinois University Press, 2015 [1998]. Da Matta, Roberto. O ofício de etnólogo, ou como ter anthropological blues. Boletim do Museu Nacional, Rio de Janeiro, n. 27, 1978. Daguer, Pedro Jorge. Transexualismo masculino. 1977. Dissertação (Mestrado em Psiquiatria) - Instituto de Psiquiatria, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1977. Darnell, Regna. Invisible Genealogies: A History of Americanist Anthropology. Lincoln: Univ. of Nebraska Press, 2001. Das, Veena. Affliction: Health, Disease, Poverty. New York: Fordham University Press, 2015. 368 Das, Veena. The Signature of the State: The Paradox of Illegibility. Em: ____; Poole, Deborah (eds.). Anthropology in the Margins of the State. Santa Fe, NM: School of American Research Press, 2004. Davy, Z.; Sorlie, Anniken; Suess Schwend, Amets. Democratising Diagnoses. The Role of the Depathologisation Perspective in Constructing Corporeal Trans Citizenship. Critical Social Policy, vol. 38(1): 13–34, 2018. De Jesus, Jaqueline Gomes. Orientações sobre identidade de gênero: conceitos e termos. Brasília: Autora, 2012. De Lauretis, Teresa. Alicia ya no: feminismo, semiótica, cine. Madrid: Universitat de Valencia, 1992 [1984]. De Lauretis, Teresa. Queer Theory: Lesbian and Gay Sexualities. An Introduction. diferences, 3(2): iii-xviii, 1991. Debert, Guita G. Problemas relativos à utilização da história oral. Em: Cardoso, Ruth (org.). A Aventura Antropológica: teoria e pesquisa. 4. ed. São Paulo: Zahar, 1986. Dein, Simon. Explanatory models and oversystematization in medical anthropology. Em: Roland Littlewood. (ed.). On knowing and not knowing in the Anthropology of Medicine. Walnut Creek, CA: Left Coast Press, 2007. Del Vecchio Good, Mary-J; Good, Byron; Fischer, Michael M. J. Introduction: Discourse and the Study of Emotion, Illness and Healing. Culture, Medicine and Psychiatry, 12, 1988, pp. 1-7. Devor, Aaron Holly. Witnessing and Mirroring: a Fourteen Stage Model of Transsexual Identity Formation. J. Gay Lesbian Psychother. 2004; 8(1): 41-67. Devor, Aaron Holly. FTM: Female-to-Male Transsexuals in Society. Bloomington: Indiana University Press, 1997. Dilon, Michel. Self: A Study in Ethics and Endocrinology. Londres: William Heinemann, 1946. Diniz, Débora. Zika: do sertão nordestino à ameaça global. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016. Douglas, Mary. Risk and Blame. Essays in Cultural Theory. 2nd ed. London: Routledge, 2003 [1992]. Douglas, Mary. Risk and Culture. An Essay on the Selection of Technological and Environmental Dangers. Berkeley: University California Press, 1982. Duarte, Luis Fernando Dias. A outra saúde: mental, psicossocial, físico-moral? Em: Alves, Paulo César; Minayo, Maria Cecília S. Saúde e Doença - um olhar antropológico. Rio de Janeiro: Fiocruz, 1994. Duarte, Luis Fernando Dias. A sexualidade nas ciências sociais: leitura crítica das convenções. Em: Piscitelli, Adriana; Gregori, Maria Filomena; Carrara, Sérgio (Orgs.). Sexualidade e saberes: convenções e fronteiras. Rio de Janeiro: Garamond, 2004. Duarte, Luis Fernando Dias. Da vida nervosa nas classes trabalhadoras urbanas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, CNPq, 1986. Duarte, Luis Fernando Dias. Investigação antropológica sobre doença, sofrimento e perturbação: uma introdução. Em: ____; Leal, Ondina F. (orgs.). Doença, sofrimento, perturbação: perspectivas etnográficas. Rio de Janeiro: Editora da FIOCRUZ, 1998a. Duarte, Luis Fernando Dias. Pessoa e dor no ocidente (o holismo metodológico na Antropologia da Saúde e Doença). Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 4, n. 9, pp. 13-28, 1998b. 369 Duarte, Luiz Fernando Dias. A circulação dos saberes e práticas psicanalíticas nas ciências sociais. Hist. cienc. Saúde-Manguinhos, 2017, vol.24, suppl.1, pp.33-50. Dumont, Louis. O Individualismo. Rio de Janeiro: Rocco, 1993. Durham, Eunice. A pesquisa antropológica com populações urbanas: problemas e perspectivas. Em: Cardoso, Ruth C. L. (org.). A Aventura Antropológica: teoria e pesquisa. 4. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986. Durkheim, Émile. A educação moral. Petrópolis: Vozes, 2008 [1925]. Durkheim, Émile. As formas elementares da vida religiosa. São Paulo: Martins Fontes, 1996 [1912]. Durkheim, Émile. As regras do método sociológico. 17. ed. São Paulo: Cia. Ed. Nacional, 2002. Durkheim, Émile. O Suicídio. Estudo de sociologia. São Paulo: Martins Fontes, 2000. Durkheim, Émile; Mauss, Marcel. Algumas formas primitivas de classificação. Em: Rodrigues, José A. (org.). Durkheim: Sociologia. São Paulo: Ática, 2000 [1903]. Dutta, A. Claiming Citizenship, Contesting Civility: The Institutional GLBT Movement and the Regulation of Gender/Sexual Dissidence in West Bengal, India. Jindal Global Law Review 5:1, 2012. Ekins, Richard; King, Dave. Pioneers of Transgendering: The Popular Sexology of David O. Cauldwell. The International Journal of Transgenderism, vol. 5, n. 2, april-june, 2001, pp. 1-7. Elias, Norbert. A Sociedade dos Indivíduos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1994. Elias, Norbert. O processo civilizador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001a. Vol. 1. Elias, Norbert. Processos de formação do Estado e construção da nação. Em: Ensaios e escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2006 [1972]. Elias, Norbert. A solidão dos moribundos. Seguido de "Envelhecer e morrer". Rio de Janeiro: Jorge Zahar. 2001b. Epstein, Steven. Impure Science: AIDS, Activism, and the Politics of Knowledge. Berkeley: University of California Press, 1996. Epstein, Steven. Sexualizing Governance and Medicalizing Identities: The Emergence of ‘State- centered’ LGBT Health Politics in the United States. Sexualities 6: 131–71, 2003. Eriksen, Thomas H. Introduction. Em: ____ (Ed.). Globalisation: Studies in Anthropology. London: Pluto Press, 2003. Escorel, Sarah. Reviravolta na saúde: origem e articulação do movimento sanitário. Rio de Janeiro. Ed. Fiocruz, 1999. Evans-Pritchard, Edward E. Os Nuer. São Paulo: Editora Perspectiva, 2007 [1940]. Fabian, Johannes. O tempo e o outro: como a antropologia estabelece o seu objeto. Petrópolis: Vozes, 2013 [1983]. Facundo Navia, Angela M. Êxodos e refúgios: colombianos refugiados no Sul e Sudeste do Brasil. 2014. 406 f. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2014. Farina, Roberto. Transexualismo: do homem à mulher normal através dos estados de intersexualidade e das parafilias. São Paulo: Novalunar, 1982 [1978]. 370 Fassin, Didier. Entre las políticas de lo viviente y las políticas de la vida. Hacia una antropología de la salud. Revista Colombiana de Antropologia, vol. 40, 2004, pp. 283-318. Fassin, Didier. Humanitarian Reason. A Moral History of the Present. Berkeley: University of California Press, 2012. Fassin, Didier. Life: A Critical User’s Manual. Cambridge: Polity, 2017. Fassin, Didier. O sentido da saúde: antropologia das políticas da vida. Em: Saillant, Francine; Genest, Serge (orgs.). Antropologia médica: ancoragens locais, desafios globais. Rio de Janeiro: Ed. Fiocruz, 2012. Fausto-Sterling, Anne. Myths of Gender. Biological theories about women and men. 2. ed. Nova York: Basic Books, 1995 [1985]. Fausto-Sterling, Anne. Sex/Gender: Biology in Social World. Nova York: Routledge, 2012. Fausto-Sterling, Anne. Sexing the Body. Gender Politics and the Construction of Sexuality. Nova York: Basic Books, 2000. Fausto-Sterling, Anne. The five sexes, revisited. Sciences, 40: 18-23, 2002. Ferguson, J.; Gupta, Akhil. Discipline and practice: the field as site, method and location in anthropology. Em: ___. Anthropological Locations. University of California, 1997. Ferla, Luis Antonio C. Feios, sujos e malvados sob medida - do crime ao trabalho, a utopia médica do biodeterminismo em São Paulo (1920-1945). Tese (Doutorado em História Econômica) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, 2005. Fernandes, Florestan. Ciências Sociais: na ótica do intelectual militante. Estudos Avançados, São Paulo, v. 8, n. 22, pp. 123-138, dez 1994. Fischer, Michael M. Aestheticized Emotions and Critical Hermeneutics. Culture, Medicine and Psychiatry, 12, 1988, pp. 31-42. Fisk, N. M. Gender Dysphoria Syndrome (the how, what and why of a disease). Em: Laub, D. R.; Gandy, P. (eds.). Proceedings of the Second Interdisciplinary Symposium on Gender Dysphoria Syndrome. Stanford, California: Stanford University Medical Center, 1973, p. 7-14. Fisk, N. M. Gender Dysphoria Syndrome: The conceptualization that liberalizes indications for total gender reorientation and implies a broadly based multi-dimensional rehabilitative regimen. Editorial comment on male transsexualism. Western Journal of Medicine, 120(5): 386-391, 1974. Fisk, Norman M. Five spectacular results. Archives of Sexual Behavior, 7(4), 351–69, 1978. Fleck, Ludwig. Gênese e desenvolvimento de um fato científico. Belo Horizonte: Fabrefactum, 2010 [1935]. Fleischer, Soraya. Descontrolada. Uma etnografia dos problemas de pressão. São Carlos: EdUFSCar, 2018. Florentino, Cristina de Oliveira. Bicha tu tens na barriga, eu sou mulher: etnografia sobre travestis em Porto Alegre. 1998. Dissertação (Mestrado em Antropologia) - Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 1998. Fonseca, Claudia. O anonimato e o texto antropológico: dilemas éticos e políticos da etnografia ‘em casa’. Teoria e Cultura, v.2, n. 1/2, 2010. Foucault, Michel. A hermenêutica do sujeito. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006 [2001]. 371 Foucault, Michel. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. 8. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999a [1966]. Foucault, Michel. Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 1999b [1997]. Foucault, Michel. História da loucura na idade clássica. 10. ed. São Paulo: Editora Perspectiva, 2014 [1961]. Foucault, Michel. História da Sexualidade, I. A vontade de saber. 13. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1988 [1976]. Foucault, Michel. História da Sexualidade, II. O cuidado de si. Rio de Janeiro: Graal, 1985 [1984]. Foucault, Michel. História da Sexualidade, II. O uso dos prazeres. Rio de Janeiro: Graal, 1984 [1984]. Foucault, Michel. Nascimento da Biopolítica. São Paulo: Martins Fontes, 2008b [2004]. Foucault, Michel. O nascimento da clínica. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006 [1980]. Foucault, Michel. O nascimento da medicina social. Em: Machado, Roberto (org.). A microfísica do poder. 25. ed. São Paulo: Graal, 2012a [1979]. Foucault, Michel. Segurança, Território, População. São Paulo: Martins Fontes, 2008a [2004]. Fragoso, Heleno Cláudio. Transexualismo – cirurgia. Lesão corporal. Revista de Direito Penal, Rio de janeiro, v. 25, pp. 25-34, 1979. França, Isadora L. Consumindo lugares, consumindo nos lugares: homossexualidade, consumo e subjetividades na cidade de São Paulo. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2012. Freud, Sigmund. O mal-estar na civilização. Rio de Janeiro: Imago, 1996 [1929]. Fry, P. Prefácio da primeira edição. Em: MacRae, Edward. A construção da igualdade – política e identidade homossexual no Brasil da “abertura”. Salvador: EdUFBA, 2018 [1990]. Fry, P. Prefácio. Em: Perlongher, N. O negócio do michê: a prostituição viril. São Paulo: Brasiliense, 1987. Fry, Peter. Da hierarquia à igualdade: a construção histórica da homossexualidade no Brasil. Em: Para inglês ver: identidade e política na cultura brasileira. Rio de Janeiro: Zahar, 1982. Fry, Peter; Carrara, Sérgio. “Se oriente, rapaz!”: onde ficam os antropólogos em relação a pastores, geneticistas e tantos “outros” na controvérsia sobre as causas da homossexualidade? Revista de Antropologia, São Paulo, v. 59, nº 1, p. 258-280, 2016. Fry, Peter; MacRae, Edward. O que é homossexualidade. São Paulo: Brasiliense, 1985 [1983]. Fuechtner, Veronika; Haynes, Douglas E.; Jones, Ryan M. Introduction: Toward a Global History of Sexual Science: Movements, Networks, and Deployments. Em: ____ (Eds.) A Global History of Sexual Science, 1890-1960. Berkeley: University of California Press, 2017. Gadelha, Georgina da S. Sob o signo da distinção: formação e atuação da elite médica cearense (1913-1948). 2012. 346 f. Tese (Doutorado em História das Ciências e da Saúde) - Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, 2012. Galli, Vera L. B. Fibromiálgicas ou mulheres que vivem com fibromialgia: construção do processo saúde/doença no cotidiano. 2008. 101f. Dissertação (Mestrado em Saúde e Gestão do Trabalho), Universidade do Vale do Itajaí, Itajaí, 2008. 372 Garcia, Ana Karine M. A ciência na saúde e na doença: atuação e prática dos médicos em Fortaleza (1900-1935). 2011. 199f. Tese (Doutorado em História Social) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2011. Garfinkel, Harold. Passing and the managed achievement of sex status in a “intersexed” person Part 1; Appendix to Chapter Five. In: ____. Studies in Ethnometodology. Englewood Cliffs, NJ: Prentice-Hall, 1967. Geertz, Clifford. A interpretação das Culturas. Rio de janeiro: LTC, 2008 [1973]. Geertz, Clifford. O saber local: novos ensaios em antropologia interpretativa. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1999 [1983]. Gibbon, Sahra; Novas, Carlos. Introduction. Biosocialities, genetics and the social sciences. Em: ____ (eds.). Biosocialities, Genetics, and the Social Sciences. Making biologies and identities. Routledge: London, 2008. Ginsburg, Faye D.; Abu-Lughod, Lila; Larki, Brian. Introduction. Em: ____ (eds.). Media Worlds: Anthropology on New Terrain. Berkeley: University of California Press, 2002. Giovanella, Lígia. Atenção básica ou atenção primária à saúde? Cad. Saúde Pública, 2018, 34(8): e00029818. Giumbelli, Emerson (org.). Religião e sexualidade: convicções e responsabilidades. Rio de Janeiro: Garamond, 2005. Gluckman, Max. Análise de uma situação social na Zululândia moderna. Em: Feldman-Bianco, Bela. (org.) Antropologia das sociedades contemporâneas. São Paulo: Ed. UNESP, 2010 [1940]. Gluckmann, Max. The utility of the equilibrium model in the study of social change. American Anthropologist, 70.2: 219–237, 1968. Goffman, Erving. A carreira moral do doente mental. Em: Manicômios, prisões e conventos. São Paulo: Perspectiva, 1987 [1961]. Goffman, Erving. Estigma. Rio de Janeiro: Zahar, 1975. Goffman, Erving. Ritual de interação: ensaios sobre o comportamento face a face. 2011 [1955]. Goffman, Erving. Strategic Interaction. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1971. Gomes, Laura. Novela e sociedade no Brasil. 1991. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) – Museu Nacional, UFRJ, Rio de Janeiro, 1991. Gontijo, Juliana. Transexualismo. Belo Horizonte: Publicação da Autora, 2002. Good, Byron J. Medicine, Rationality, and Experience. Cambridge: Cambridge University Press. 1994. Gossett, Reina; Stanley, Eric A.; Burton, Johanna. Known Unknowns: an Introduction to Trap Door. Em: ____. (eds.). Trap Door: Trans Cultural Production and the Politics of Visibility. Cambridge: Massachusetts Institute of Technology Press, 2017. Green, James N. “Who Is the Macho Who Wants to Kill Me?” Male Homosexuality, Revolutionary Masculinity, and the Brazilian Armed Struggle of the 1960s and 1970s. Hispanic American Historical Review, Durham, 92:3, 2012. Green, James N. A luta pela igualdade: desejos, homossexualidade e a esquerda na América Latina. Cadernos AEL, v.10, n.18/19, 2003. 373 Green, James N. Além do carnaval: a homossexualidade masculina no Brasil do século XX. São Paulo: Ed. da UNESP, 2000a. Green, James N. Desire and Militancy: Lesbians, Gays, and the Brazilian Workers’ Party. Em: Drucker, Peter (ed.). Different Rainbow: Same-Sex Sexuality and Popular Struggles in the Third World. London: Gay Men’s Press, 2000b. Green, James N. More Love and More Desire: The Building of the Brazilian Movement. Em: Adam, Barry; Duyvendak, Jan W.; Krouwel, André (eds.). The Global Emergence of Gay and Lesbian Politics: National Imprints of a Worldwide Movement. Philadelphia: Temple Univ. Press, 1999. Green, James N.; Babb, Florence E. Introduction. Latin American Perspectives, issue 123, vol. 29, n. 2, march 2002, 3-23. Guattari, Felix. Cheguei até a encontrar travestis felizes. Em: Revolução molecular: pulsações políticas do desejo. 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 1985 [1977]. Guimarães, Carmen Dora. O homossexual visto por entendidos. Rio de Janeiro: Garamond, 2016. Halberstam, Judith. In a Queer Time and Place. Transgender Bodies, Subcultural Lives. New York: New York Univ. Press, 2005. Hannerz, Ulf. Being there... and there... and there!: Reflections on Multi-Sited Ethnography. Ethnography, 4(2), 201–216, 2003. Hannerz, Ulf. Culture between Center and Periphery: Toward a Macroanthropology. Ethnos, 54: 3- 4, 1989, pp. 200-216. Hannerz, Ulf. Fluxos, fronteiras, híbridos: palavras-chave da antropologia transnacional. Mana, Rio de Janeiro, v. 3, n. 1, p. 7-39, 1997. Haraway, Donna. Saberes localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial. Cadernos pagu, (5), 1995: pp. 07-41. Hausman, Bernice L. Changing sex: transsexualism, technology, and the ideia of gender. Durham: Duke University Press, 1995. Heath, Deborah; Rapp, Rayna; Taussig, Karen-Sue. Genetic citizenship. Em: Nugent, David; Vincent, Joan (eds.). A Companion to the Anthropology of Politics. Malden: Blackwell, 2007. Heilborn, Maria Luiza. Dois é par – gênero e identidade sexual em contexto igualitário. Rio de Janeiro: Garamond, 2004. Heinemann, Torsten; Lemke, Thomas. Biological citizenship reconsidered: The Use of DNA analysis by immigration authorities in Germany. Science, Technology & Human Values, 39: 488–510, 2014. Hine, Christine. Ethnography for the Internet. Embedded, embodied and everyday. London: Bloomsbury, 2015. Hines, Sally. Gender Diversity, Recognition and Citizenship. Towards a Politics of Difference. London: Palgrave Macmillian, 2013. Hines, Sally. TransForming Gender: Transgender Practices of Identity, Intimacy and Care. London: The Policy Press, 2007. Hines, Sally; Santos, Ana Cristina. Trans* policy, politics and research: The UK and Portugal. Critical Social Policy 38.1: 35–56, 2018. 374 Hird, M. For a Sociology of Transsexualism. Sociology, 36(3): 577-595, 2002. Holanda, Vitória. O Casulo Dandara. Fortaleza: CeNE Editora, 2019. Howard, Rhoda. Dignity, Community, and Human Rights. Em: An-Na'im, Abdullahi A. (Ed.). Human Rights in Cross-Cultural Perspectives: A Quest for Consensus. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1992. Howes, Robert. João Antônio Mascarenhas (1927-1998): pioneiro do ativismo homossexual no Brasil. Cad. AEL, v.10, n.18/19, 2003, pp. 289-311. IBRAT. Carta de São Paulo. Disponível em: . Acesso em: Jan. 2016. Jayme, Juliana Gonzaga. Travestis, transformistas, transexuais, drag-queens: personagens e máscaras no cotidiano de Belo Horizonte e Lisboa. 270 f. 2001. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, 2001. Jerome, Jessica S. A Right to Health. Medicine, Marginality, and Health Care Reform in Northeastern Brazil. Austin: University of Texas Press, 2015. Jorgensen, Christine; Stryker, Susan. Christine Jorgensen: A Personal Autobiography. 2. ed. Jersey City: Cleis Press, 2000. Junqueira, Roberto D. "Ideologia de gênero": a gênese de uma categoria política reacionária - ou: como a promoção dos direitos humanos se tornou uma "ameaça à família natural". Em: Ribeiro, P. R. C.; Magalhães, J. C. (orgs). Debates contemporâneos sobre Educação para a sexualidade. Rio Grande: FURG, 2017. King, Dave. The Transvestite and the Transsexual: Public Categories and Private Identities. Aldershot: Avebury, 1993. Kleinman, Arthur. Concepts and a model for the comparison of medical systems as cultural systems. Em: Currer, C.; Stacey, M. (eds). Concepts of Health, Illness and Disease. Londres: Berg, 1986. Kool, S. A Matrix of Interests: Freud, the Sexologists, and the Legacy of Greece. Akroterion, Stellenbosch, África do Sul, n. 58, 2013, pp. 79-96. Kuhar, Roman; Monro, Surya; Takács, Judit. Trans* citizenship in post-socialist societies. Critical Social Policy, vol. 38(1): 99–120, 2018. Kulick, Don. Travesti. Sex, Gender, and Culture among Brazilian Transgendered Prostitutes. Chicago: The University of Chicago Press, 1998. Kulick, Don. Travesti: prostituição, sexo, gênero e cultura no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2008. Kuschnir, Karina. Antropologia e Política. Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol. 22 nº. 64, 2007. Kuschnir, Karina. O cotidiano da política. Rio de Janeiro: Zahar, 2000. Lancaster, Roger N. Transgenderism in Latin America: Some Critical Introductory Remarks on Identities and Practices. Sexualities, 1:3. pp. 261-274, 1998. Langdon, Ester Jean. Representaçöes de doenças e itinerário terapêutico dos Siona da Amazonia Colombiana. Em: Santos, Ricardo V.; Coimbra Junior, Carlos (orgs.). Saúde e povos indígenas. Rio de Janeiro, Fundaçäo Oswaldo Cruz, 1994. 375 Lanz, Letícia. O corpo da roupa. A pessoa transgênera entre a transgressão e a conformidade com as normas de gênero. Dissertação (Mestrado em Sociologia) - Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2014. Laqueur, Thomas Walter. Inventando o sexo: corpo e gênero dos gregos a Freud. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2001. Latour, Bruno. Ciência em ação: como seguir cientistas e engenheiros sociedade afora. São Paulo: UNESP, 2000. Latour, Bruno. Drawing Things Together. Em: Lynch, M.; Woolgar, S. (eds.). Representation in Scientific Practice. Cambridge: MIT Press, 1990. Le Breton, David. A sociologia do corpo. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 2007. Le Breton, David. Ambivalence in the World Risk Society. Theory, Culture & Society, 0(0): 1–16, 2018. Le Breton, David. Antropologia do corpo e modernidade. Rio de Janeiro: Vozes, 2012a. Le Breton, David. Sociologie du risque. Paris: Presses Universitaires de France, 2012b. Leal, Ondina F. A leitura social da novela das oito. 1983. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 1983. Leavitt, John. Meaning and Feeling in the Anthropology of Emotions. American Ethnologist, 23.3: 514–539, 1996. Leibing, A. (org.). Tecnologias do corpo: uma antropologia das medicinas no Brasil. Rio de Janeiro: NAU Editora, 2004. Leite Jr., Jorge. Nossos corpos também mudam: sexo, gênero e a invenção das categorias "travesti" e "transexual” no discurso médico científico. 2008. 230 f. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2008. Lella, Joseph W.; Pawluch, Dorothy. Medical Students and the Cadaver in Social and Cultural Context. In: Lock, Margaret; Gordon, Deborah (eds.). Biomedicine Examined. Culture, Illness, and Healing. Dordrecht: Kluwer Academic Publishers, 1988. Leng, Kirsten. Sexual Politics and Feminist Science: Women Sexologists in Germany, 1900–1933. Ithaca: Cornell University Library, 2017. Lévi-Strauss, Claude. As estruturas elementares do parentesco. Petrópolis: Vozes, 1982 [1947]. Lévi-Strauss, Claude. O Pensamento Selvagem. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1976. Lévi-Strauss, Claude; Perrone-Moisés, Beatriz. Claude Lévi-Strauss, aos 90. Revista de Antropologia, São Paulo, v.42, n.1-2, p. 9-25, 1999. Lima, Camila I. S. Nos palcos da cidade: a representação da moralidade e dos costumes no teatro de Fortaleza na Primeira República (1889-1930). Dissertação (Mestrado em História Cultural), Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2012. Linhares, Conceição M. Condições bucais de transgêneros em processo de hormonização. 2019. 38 f. Dissertação (Mestrado Profissional em Odontologia) - Universidade de Fortaleza, Fortaleza, 2019. Lionço, Tatiana. Atenção integral à saúde e diversidade sexual no Processo Transexualizador do SUS: avanços, impasses, desafios. Physis: Revista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, 19(1): 43-63, 2009. 376 Lock, Margaret; Nguyen, Vinh-Kim. An Anthropology of Biomedicine. London: Blackwell, 2010. Lopes, José Sérgio; Antonaz, Diana; Oliveira da Silva, Gláucia; Prado, Roseane M. Audiência pública em Angra dos Reis: debate em torno do licenciamento de uma usina nuclear. Em: Palmeira, Moacir; Barreira, César (orgs.). Política no Brasil. Visões de antropólogos. Rio de Janeiro: Relume- Dumará, 2006. Lothstein, Leslie M. Female-to-Male Transsexualism. Historical, Clinical and Theoretical Issues. Boston e Londres: Routledge & Kegan Paul, 1983. Louro, Guacira Lopes. Pedagogias da sexualidade. Em: ____ (Org.). O corpo educado: pedagogias da sexualidade. 2. ed. Autêntica: Belo Horizonte, 2000 [1999], pp. 7-34. Loyola, Maria Andrea. Médicos e curandeiros. Conflito social e saúde. São Paulo: DIFEL, 1984. Lupton, Deborah. The Imperative of Health: Public Health and the Regulated Body. London: SAGE, 1995. Lutz, Catherine A. Unnatural emotions: Everyday Sentiments on a Micronesian Atoll and their Challenge to Western Theory. Chicago: Univ. of Chicago Press, 1988. Lutz, Catherine; Abu-Lughod, Lila. Introduction: emotion, discourse, and the politics of everyday life. Em: ____ (Eds.). Language and the politics of emotion. New York: Cambridge University Press, 1990. Lutz, Catherine; White, Geoffrey M. The Anthropology of Emotions. Annual Review of Anthropology 15:405–436, 1986. Lyons, A. P.; Lyons, H. D. Irregular Connections: A History of Anthropology and Sexuality. Lincoln: University of Nebraska, 2004. Machado, Carla. Transexualidade, direitos e saúde: aspirações e demandas das mulheres transexuais na visão crítica de uma mulher transexual. Em: Arilha, Margareth; Lapa, Thaís de S.; Pisaneschi, Tatiane C. (orgs.). Transexualidade, travestilidade e direito à saúde. São Paulo: Oficina Editorial, 2010. Machado, Lia Zanotta. Feminismos brasileiros nas relações com o Estado. Contextos e incertezas. Cad. Pagu, 2016, n. 47, e16471. Machado, Maria Helena. Os médicos no Brasil: um retrato da realidade. Rio de Janeiro: Fiocruz, 1997. Machado, Paula. O sexo dos anjos: representações e práticas em torno do gerenciamento sociomédico e cotidiano da intersexualidade. 2008. 266 f. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2008. MacRae, Edward. A construção da igualdade: identidade sexual e política no Brasil da “abertura”. Campinas: Ed. UNICAMP, 1990. MacRae, Edward. Afirmação da identidade homossexual: seus perigos e sua importância. Em: A construção da igualdade – política e identidade homossexual no Brasil da “abertura”. Salvador: EdUFBA, 2018a [1987]. MacRae, Edward. Parte II. A construção da igualdade. Em: A construção da igualdade – política e identidade homossexual no Brasil da “abertura”. 2. ed. revista e modificada. Salvador: Ed. UFBA, 2018b [1990]. MacRae, Edward. Revendo velhos escritos. Em: A construção da igualdade – política e identidade homossexual no Brasil da “abertura”. Salvador: EdUFBA, 2018c. 377 Maia, Igor F. Mudanças na abordagem psiquiátrica da transexualidade: as diferenças na concepção de gênero entre duas edições do DSM. Em: Bento, Berenice (org.). Sexualidade, gêneros e violência: estudos sociológicos. Natal: Ed. UFRN, 2019. Malinowski, Bronislaw. Introduction. Em: Kenyatta, Jomo. Facing Mount Kenya. The Tribal Life of the Gikuyu. London: Mercury Book, 1961 [1938]. Malinowski, Bronislaw. Os Argonautas do Pacífico Ocidental: um relato do empreendimento e da aventura dos nativos nos arquipélagos da Nova Guiné Melanésia. São Paulo: Abril Cultural. 1978 [1922]. Malinowski, Bronislaw. Sexo e repressão na sociedade selvagem. Petrópolis: Vozes, 2013 [1923]. Maluf, Sônia W. Gênero, saúde e aflição: políticas públicas, ativismo e experiências sociais. Em: ____; Tornquist, Carmen S. (orgs.). Gênero, saúde e aflição. Abordagens antropológicas. Florianópolis: Letras Contemporâneas, 2010. Martínez-Guzmán, A.; Íñiguez-Rueda, L. La fabricación del transtorno de identidade sexual. Discurso & Sociedad, 4(1): 30-51, 2010. Matos, Amana; Bento, Berenice; Teixeira, Flávia do B.; Tagliamento, Graziela; Ferucchi, Juliana; Aurélio, Marco; Prado, Maximo; Toneli, Maria J. F.; Machado, Paula S.; Bussinger, Rebeca; Pereira, Pedro Paulo. Análise da Resolução n. 2265 de 20 de setembro de 2019, Resolução produzida pelo Conselho Federal de Medicina. Belo Horizonte, Núcleo de Direitos Humanos e Cidadania LGBT da UFMG, 2020, pp. 1-12. Disponível em: . Acesso em: 16 fev. 2020. Matta, Gustavo C.; Morosini, Márcia Valéria G. Atenção Primária à Saúde. Em: Pereira, Isabel Brasil; Lima, Julio César França (orgs.). Dicionário da Educação Profissional em Saúde. 2. ed. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2008. Mauss, Macel. Uma categoria do espírito humano: a noção de pessoa, a de “eu”. Em: Sociologia e Antropologia. São Paulo: Cosac Naify, 2003a. Mauss, Marcel. As técnicas do corpo. Em: Sociologia e Antropologia. São Paulo: Cosac Naify, 2003b. Mauss, Marcel; Hubert, Henri. Esboço de uma teoria geral da magia. Em: Sociologia e Antropologia. São Paulo, Cosac & Naify, 2003 [1904]. Mead, Margaret. Sexo e temperamento. São Paulo: Perspectiva, 1979. Meadow, Tey. Trans Kids: Being Gendered in the Twenty-First Century. Oakland: University of California Press, 2018. Mello, Guilherme Arantes et al. Atenção básica e atenção primária à saúde – origens e diferenças conceituais. Revista de Atenção Primária à Saúde, v. 12, n. 2, 2009, pp. 204-213. Mello, Luiz; Brito, Walderes; Maroja, Daniela. Políticas públicas para população LGBT no Brasil: notas sobre alcances e possibilidades. Cadernos Pagu, Campinas, (39), julho-dezembro de 2012: 403-429. Mendes, Eugênio Vilaça. A construção social da Atenção Primária à Saúde. Brasília: Conselho Nacional de Secretários de Saúde, 2015. Meyenburg, Bernd; Sigusch, Volkmar. Sexology in West Germany. Journal of Sex Research, 13:3, 197- 209, 1977. 378 Meyerowitz, Joanne. How Sex Changed: a History of Transsexuality in the United States. Cambridge: Harvard University Press, 2002. Miller, Daniel; Costa, Elisabetta; Haynes, Nell; McDonald, Tom; Nicolescu, Razvan; Sinanan, Jolynna; Spyer, Juliano; Venkatraman, Shriram; Wang, Xinyuan. How the World Changed: Social Media. London: UCL Press, 2016. Miskolci, Richard. Desejos digitais: uma análise sociológica da busca por parceiros on-line. São Paulo: Autêntica, 2017. Miskolci, Richard. Sociologia digital: notas sobre pesquisa na era da conectividade. Contemporânea – Revista de Sociologia da UFSCar, São Carlos, v. 6, pp. 275-297, 2016. Miskolci, Richard. Teoria Queer: um aprendizado pelas diferenças. Belo Horizonte: Autêntica Editora/UFPO, 2012. Miskolci, Richard; Pereira, Pedro P. G. Quem tem medo de Judith Butler? A cruzada moral contra os direitos humanos no Brasil. Cad. Pagu, Campinas, n. 53, 2018. Missé, Miquel; Coll-Planas, Gerard (eds.). El género desordenado. Críticas en torno de la patologización de la transexualidad. Barcelona/ Madrid: Egales, 2010. Mitchell, Timothy. Society, economy and the state effect. Em: Steinmetz, George (ed.). State/Culture. State-formation after the cultural turn. New York: Cornell University Press, 1999. Mol, Annemarie. The logic of Care: Health and the Problem of Patient Choice. London: Routledge, 2008. Monro, Surya; van der Ros, Janneke. Trans and gender variant citizenship and the state in Norway. Critical Social Policy, 2018, Vol. 38(1): 57–78. Monro, Surya; Warren, Lorna. Transgendering Citizenship. Sexualities, 7(3): 345-362, 2004. Morrissey, Sean A. Performing risks: catharsis, carnival and capital in the risk society. Journal of Youth Studies, 11(4), 413–427, 2008. Mott, Luiz. Etno-história da homossexualidade na América Latina. Trabalho apresentado no “Seminário-Taller de História de las Mentalidades y los Imaginarios”, realizado na Pontíficia Universidad Javerina de Bogotá, Colômbia, Departamento de História e Geografia, 1994. Mott, Luiz. O Lesbianismo no Brasil. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1987. Munin, Pietra M. Processo Transexualizador: discurso, lutas e memórias – Hospital das Clínicas de São Paulo (1997-2013). 2018. 165 f. Dissertação (Mestrado em História) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2018. Murta, Daniela A. A pisquiatrização da transexualidade: análise dos efeitos do diagnóstico de transtorno de identidade de gênero nas práticas de saúde. 2007. 119f. Dissertação (Mestrado em Saúde Coletiva) - Instituto de Medicina Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2007. Murta, Daniela A. Os desafios da despatologização da transexualidade: reflexões sobre a assistência a transexuais no Brasil. 2011. 107f. Tese (Doutorado em Saúde Coletiva) - Instituto de Medicina Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2011. Nader, Laura. Up the anthropologists: perspectives from studying up. Em: Hymes, Dell (ed.). Reiventing Anthropology. New York: Pantheon Books, 1972. Najmabadi, Afsaneh. Professing Selves: Transsexuality and Same-Sex Desire in Conteporary Iran. Durham: Duke University Press, 2014. 379 Namaste, Viviane. Invisible Lives: The Erasure of Transsexual and Transgendered People. Chicago: University of Chicago Press, 2000. Nataf, Zachary. Lesbians Talk Transgender. Londres: Scarlet Imprint, 1996. Natividade, Marcelo. Uma homossexualidade santificada? Etnografia de uma comunidade inclusiva pentecostal. Religião e Sociedade, Rio de Janeiro, 30(2): 90-121, 2010. Navarro-Swain, Tania. O que é lesbianismo. São Paulo: Brasiliense, 2000. Nery, João W. Transmasculinos: invisibilidade e luta. Em: Green, James N.; Quinalha, Renan; Caetano, Marcio; Fernandes, Marisa. (Orgs.). História do Movimento LGBT no Brasil. São Paulo: Alameda, 2018. Nery, João W. Viagem solitária: memórias de um transexual 30 anos depois. Rio de Janeiro: Leya, 2012. Neves, Rita de C. M. Saúde Indígena no Nordeste: compreensões e perspectivas sobre mediação e dilemas da interculturalidade. Em: Teixeira, Carla C.; Valle, Carlos Guilherme O. do; Neves, Rita de C. M. (orgs.). Saúde, Mediações e Mediadores. Natal/Brasília: EdUFRN; ABA, 2017. Nichter, Mark. Idioms of distress: Alternatives in the expression of psychosocial distress: A case study from South India. Culture, Medicine and Psychiatry 5:379–408, 1981. Novas, Carlos; Rose, Nikolas. Genetic Risk and the Birth of the Somatic Individual. Economy and Society, 29(4), 485–513, 2000. Nustad, Knut G. Considering Global/Local Relations: Beyond Dualism. Em: Eriksen, Thomas H. (Ed.). Globalisation: Studies in Anthropology. London: Pluto Press, 2003. Olazábal, Luísa C. Variabilidade cromossômica e dermopapilar no transexualismo (estudo de 31 casos). 1976. 95 f. Dissertação (Mestrado em Biologia Genética) – Instituto de Biociências, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1976. Oliveira, Alfredo J. P. de. Ceará. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2014. Coleção Estudos Estados Brasileiros. Oliveira, Ana A. R. de. Em busca do Ceará: a conveniência da cultura popular na figuração da cultura cearense (1948-1983). 2015. 297 f. Tese (Doutorado em História Social) – Centro de Humanidades, Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2015. Oliveira, André Guerreiro L. Somos quem podemos ser: os homens (trans) brasileiros e o discurso pela (des)patologização da transexualidade. 2015. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) – Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2015. Oliveira, Marcelo José. O lugar do travesti em desterro. 1997. Dissertação (Mestrado em Antropologia) - Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 1997. Oliveira, Neuma M. Damas de paus: o jogo aberto dos travestis no espelho da mulher. Salvador: Centro Editorial e Didático da UFBA, 1994. Ortiz, Renato; Borelli, Silvia H. S.; Ramos, José M. O. Telenovela: história e produção. 2. ed. São Paulo: Brasiliense, 1988. Paiva, Carlos Henrique Assunção; Teixeira, Luiz Antonio. Reforma sanitária e a criação do Sistema Único de Saúde: notas sobre contextos e autores. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro, v.21, n.1, jan.-mar. 2014, p.15-35. 380 Paiva, Luiz Fábio S. “Aqui não tem gangue, tem facção”: as transformações sociais do crime em Fortaleza, Brasil. Cadernos do CRH, v. 32, pp. 165-184, 2019. Parker, Richard. Beneath the Equator. Culture of Desire, Male Homossexuality, and Emerging Gay Communities in Brazil. Routledge: New York and London, 1999. Parker, Richard. Introdução. Em: ____. (Org.). Políticas, instituições e AIDS: enfrentando a epidemia no Brasil. Rio de Janeiro: Jorge Zahar: ABIA, 1997. Parsons, Talcott. Social Structure and Dynamic Process: the Case of Modern Medical Practice. Em: The social system. 2. ed. London: Routledge, 1991 [1951]. Patrício, Maria Cecília. No truque: transnacionalidade e distinção entre travestis brasileiras. 2008. Tese (Doutorado em Antropologia) – Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2008. Peirano, Mariza. A história que me orienta. In: Scott, Parry; Campos, Roberta Bivar; Pereira, Fabiana (Orgs.). Rumos da antropologia no Brasil e no Mundo: geopolíticas disciplinares. Recife: Editora UFPE, 2014, pp. 17-33. Peirano, Mariza. A teoria vivida: e outros ensaios de antropologia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2006. Peirano, Mariza. Etnografia não é método. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, vol.20 no.42, 2014. Peixe, Alexandre; Morelli, Fábio. “Homens do Futuro”: o movimento de homens trans no Brasil sob o olhar de Xande Peixe. Em: Green, James N.; Quinalha, Renan; Caetano, Marcio; Fernandes, Marisa. (Orgs.). História do Movimento LGBT no Brasil. São Paulo: Alameda, 2018. Peixoto, Fernando. O que é teatro. São Paulo: Brasiliense, 1980. Pelúcio, Larissa. Nos nervos, na carne, na pele: uma etnografia sobre prostituição travesti e o modelo preventivo de AIDS. 2007. 312 f. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) – Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, 2007. Pelúcio, Larissa. Traduções e torções ou o que se quer dizer quando dizemos queer no Brasil? Revista Periodicus, Salvador, n. 1, maio-outubro, 2014. Pereira, Pedro Paulo G. Limites, traduções e afetos: profissionais de sáude em contextos indígenas. Mana, 18(3): 511-538, 2012. Pereira, Pedro Paulo Gomes. Queer nos trópicos. Contemporânea, São Carlos, v. 2, n. 2, 2012, pp. 371-394. Perlongher, Néstor. O negócio do michê: a prostituição viril. São Paulo: Brasiliense, 1987. Petryna, Adriana. Life exposed: Biological Citizens after Chernobyl. Princeton, NJ: Princeton Univ. Press, 2002. Pickering, Andrew. From Science as Knowledge to Science as Practice. Em: Science as practice and culture. London: The University of Chicago Press, 1992. Pinheiro, Francisca G. B. “O médico dos Lázaros”: Antônio Justa e o combate à lepra no Ceará (1928-1941). 2016. 174 f. Dissertação (Mestrado em História e Culturas) - Universidade Estadual do Ceará, Fortaleza, 2016. Pinheiro, Tarcísio Dunga. Entre elas: políticas públicas e cidadania de travestis e mulheres transexuais de uma ONG em Natal/RN. 2016. 100f. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) - 381 Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2016. Pinto, Francisco R. M.; Silva, Carlos A. B. da. Spaces occupied by the transsexualism in scientific research in Brazil: State of the Art. Em: Abstracts Book of the 4th World Conference on Qualitative Research, Porto, 2019. Plemons, Eric. A Capable Surgeon and a Willing Electrologist: Challenges to the Expansion of Transgender Surgical Care in the United States. Medical Anthropology Quarterly, 33(2): 282-301, 2018. Plemons, Eric. Comunicação pessoal, 2019a. Plemons, Eric. Description of Sex Difference as Prescription for Sex Change: On the Origin of Facial Feminization Surgery. Social Studies of Science, 44(5): 657–679, 2014. Plemons, Eric. Gender, Ethnicity and Transgender Embodiment: Interrogating Classification in Facial Feminization Surgery. Body & Society, vol. 25(I), 3-28, 2019b. Plemons, Eric. The Look of a Woman: Facial Feminization Surgery and the Aims of Trans- Medicine. Durham, NC: Duke University Press, 2017. Pollak, Michael. Memória e identidade social. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 5, n. 10, 1992, pp. 200-212. Pollak, Michael. Memória, esquecimento, silêncio. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 2, n. 3, 1989, pp. 3-13. Porto, Rozeli M. Aborto legal e o cultivo ao segredo: dramas, práticas e representações de profissionais de saúde, feministas e agentes sociais no Brasil e em Portugal. 2009. 249 f. Tese (Doutorado em Antropologia Social) – Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2009. Porto, Rozeli M.; Costa, P. O corpo marcado: a construção do discurso midiático sobre zika vírus e microcefalia. Cadernos de Gênero e Diversidade, Salvador, v. 3, p. 158-192, 2017. Porto, Rozeli. Entremeando relações de poder: itinerários abortivos e os/as diferentes mediadores/as em saúde. Em: Teixeira, Carla C.; Valle, Carlos Guilherme do; Neves, Rita de C. (orgs.). Saúde, mediação e mediadores. Brasília: ABA Publicações; Natal: EdUFRN, 2017. Porto, Rozeli. Zika vírus e itinerários terapêuticos: os impactos da pós-epidemia no estado do Rio Grande do Norte. Ilha - Revista de Antropologia, Florianópolis, v. 22, n. 2, 2020 (no prelo). Preciado, Beatriz. Testo Yonqui. Madrid: Espasa, 2008. Preis, Ann-Belinda. Human Rights as Cultural Practice: An Anthropological Critique. Human Rights Quarterly, 18, n. 2, pp. 286-135, 1996. Prince, Virginia. Sex vs. Gender. Em: Laub, D. R.; Gandy, P. (Eds.). Proceedings of the Second Interdisciplinary Symposium on Gender Dysphoria Syndrome. Stanford, California: Stanford University Medical Center, 1973, pp. 20-24. Prosser, Jay. Second Skins: the Body Narratives of Transsexuality. New York: Columbia University Press, 1998a. Prosser, Jay. Transsexuals and the Transsexologists: Inversion and the Emergence of Transsexual Subjectivity. Em: Bland, Lucy; Doan, Laura (eds.). Sexology in Culture: Labelling Bodies and Desires. Chicago: The University of Chicago Press, 1998b. 382 Putnam, Robert D. Comunidade e democracia: a experiência da Itália moderna. Rio de Janeiro: FGV, 1996. Quinalha, Renan H. Contra a moral e os bons costumes: a política sexual da ditadura brasileira (1964-1988). 2017. 329 f. Tese (Doutorado em Ciências) - Instituto de Relações Internacionais, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2017. Rabinow, Paul. Afterword. Concept work. Em: Gibbon, Sahra; Novas, Carlos. (eds.). Genetics, biosocialities, and the social sciences: making biologies and identities. Londres: Routledge, 2008. Rabinow, Paul. Artificialidade e iluminismo: da sociobiologia à biossociabilidade. Em: Biehl, João. (Org.). Antropologia da razão: ensaios de Paul Rabinow. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1999a [1996]. Rabinow, Paul. Artificiality and enlightenment: From sociobiology to biosociality. Em: Essays on the Anthropology of Reason. Princeton, NJ: Princeton University Press, 1996. Rabinow, Paul; Rose, Nikolas. O conceito de biopoder hoje. Política e Trabalho, n. 24, 2006, pp. 27- 57. Radcliffe, Sarah A.; Nina, Laurie; Andolina, Robert. The Transnationalization of Gender and Reimagining Andean Indigenous Development. Signs, Chicago, 29(2):387–416, 2004. Radcliffe-Brown, A. R. Estrutura e função na sociedade primitiva. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 2013 [1971]. Rego, Francisco Cleiton Vieira Silva do. "Presos na teoria errada": entre mulheres, "bofinhos" e homens trans. Bagoas - Estudos gays: gêneros e sexualidades, Natal, n. 16, 2017a, pp. 232-267. Rego, Francisco Cleiton Vieira Silva do. Alcances (im)previstos de um Estado de Bem-estar Social – cruzamentos entre transexualidade, ascensão social e parentesco na capital potiguar. Norus. Novos Rumos Sociológicos, Pelotas, v. 5, n. 8, 2017b, pp. 261-290. Rego, Francisco Cleiton Vieira Silva do. Viver e esperar viver: corpo e identidade na transição de gênero de homens trans. 2015. 196 f. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) – Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2015. Rego, Francisco Cleiton Vieira Silva do; Porto, Rozeli Maria. Fazer emergir o masculino: noções de “terapia” e patologização na hormonização de homens trans. Cadernos Pagu, Campinas, 2019, n. 55, e195516. Reigada, Carolina L. de L.; Romano, Valéria F. O uso do SUS como estigma: a visão de uma classe média. Physis: Revista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 28(3), e280316, 2018. Reisner, Sari; Poteat, Tonia; Keatley, JoAnne; Cabral, Mauro; Motothopeng, Tampose; Dunham, Emilia; Holland, Claire E.; Max, Ryan; Baral, Stefan D. Global health burden and needs of transgender populations: a review. The Lancet, 17 jun. 2016. Disponível em: . Acesso em jan. 2020. Rezende, Cláudia B. Os significados da amizade: duas visões de pessoa e sociedade. Rio de Janeiro: FGV, 2002. Rezende, Cláudia B.; Coelho, Maria Cláudia. Antropologia das emoções. Rio de Janeiro: FGV, 2010. Rial, Carmen. Antropologia e Mídia: breve panorama das teorias da comunicação. Antropologia em Primeira Mão, Florianópolis, v. 9, n.74, p. 4-64, 2004. Rial, Carmen. Rodar: a circulação dos jogadores de futebol brasileiros no exterior. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, vol. 14, n. 30, pp. 21-65, 2008. 383 Ribeiro, Gustavo Lins. A condição da transnacionalidade. Série Antropologia, Brasília, v. 223, pp. 1- 34, 1997. Rich, Adrienne. Compulsory Heterosexuality and Lesbian Experience. Signs: Journal of Women in Culture and Society 5: 631-60, 1980. Rito, Lucia. Muito prazer, Roberta Close. Rio de Janeiro: Record, Rosa dos Tempos, 1998. Rohden, Fabíola. Diferenças de gênero e medicalização da sexualidade na criação do diagnóstico das disfunções sexuais. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 17, n. 1, p. 89, jan. 2009. Rohden, Fabíola. Uma ciência da diferença: sexo e gênero na medicina da mulher. Rio de Janeiro: FIOCRUZ, 2001. Ropa, Daniela; Duarte, L. F. D. Considerações teóricas sobre a questão do atendimento psicológico às classes trabalhadoras. Cultura da psicanálise, Rio de Janeiro, 1985, pp. 178-201. Rosaldo, Michelle Z. Knowledge and passion: Ilongot notions of self and social life. Cambridge, UK: Cambridge Univ. Press, 1980. Rose, Nikolas. Inventing Ourselves: Psychology, Power and Personhood. Cambridge: Cambridge University Press, 1998. Rose, Nikolas. The politics of life itself: Biomedicine, power, and subjectivity in the twenty-first century. Princeton, NJ: Princeton Univ. Press, 2007. Rose, Nikolas; Novas, Carlos. Biological citizenship. Em: Ong, Aihwa; Collier, Stephen (eds.). Global assemblages: Technology, politics and ethics as anthropological problems. Malden, MA: Blackwell, 2005. Rosenberg, Daniel. Language in the discourse of the emotions. Em: Abu-Lughod, Lila; Lutz, Catherine (Eds.). Language and the politics of emotion. Cambridge, UK: Cambridge Univ. Press, 1990, pp. 162–185. Rubin, Gale S. Thinking Sex: notes for a radical theory of the politics of sexuality. Em: Nardi, P. M.; Schneider, B. E. (eds.). Social Perspectives in Lesbian and Gay Studies: a reader. New York: Routledge, 1998. Rubin, Henry. Reading Like a (Transsexual) Man. Em: Digby, Tom (Ed.). Men Doing Feminism. New York: Routledge, 1998, pp. 305-324. Rubin, Henry. Self-Made Men: Identity Men and Embodiment among Transmen. Nashville: Vanderbilt University Press, 2003. Rumbo Naya, María Teresa. Estudio citogenético y molecular en personas con conducta transexual. 2015. 206 f. Tese (Doutorado em Biopsicologia) – Universidade da Coruña, Corunha, Espanha, 2015. Russo, Jane A.; Carrara, Sérgio L. A psicanálise e a sexologia no Rio de Janeiro de entreguerras: entre a ciência e a auto-ajuda. Hist. cienc. Saúde-Manguinhos, 2002, vol. 9, n. 2, pp.273-290. Russo, Jane. O corpo contra a palavra. As terapias corporais no campo psicológico dos anos 80. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 1993. Russo, Jane. O mundo psi no Brasil. Rio de Janeiro: Zahar, 2002. Russo, Jane; Rohden, Fabíola; Torres, Igor; Faro, Livi. Campo da sexologia no Brasil: constituição e institucionalização. Physis – Revista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, vol. 19, núm. 3, 2009, pp. 617- 636. 384 Russo, Jane; Rohden, Fabíola; Torres, Igor; Faro, Livi; Nucci, Marina, F.; Giami, Alain. Sexualidade, ciência e profissão no Brasil. Rio de Janeiro: CEPESC, 2010. Saadeh, Alexandre. Transtorno de identidade sexual: um estudo psicopatológico de transexualismo masculino e feminino. 2004. Tese (Doutorado em Psiquiatria) - Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2005. Sáez, Oscar Calavia. Esse obscuro objeto da pesquisa: um manual de método, técnicas e teses em Antropologia. Florianópolis: Edição do Autor, 2013. Sahlins, Marshall. The Use and Abuse of Biology: An Anthropological Critique of Sociobiology. Ann Arbor: The University of Michigan Press, 1976. Sahlins, Marshall. The Whole is a Part: Intercultural Politics of Order and Change. Em: Otto, Ton; Bubandt, John (ed.). Experiments in Holism: Theory and Practice in Contemporary Anthropology. New Jersey: Blackwell, 2010. Sakoyan, Juliette; Musso, Sandrine; Mulot, Stéphanie. Quand la santé et les medicine circulent. Anthropologie & Santé, Paris, n. 3, 2011. Saldanha, P. H.; Olazábal, Luísa. Valor do estudo citogenético no transexualismo. Arq. Neuro- psiquiátrico, São Paulo, vol. 34, n. 3, 1976. Salém, Tania. O casal grávido. Rio de Janeiro: FGV, 2007. Sanabria, E. From sub- to super- citizenship: sex hormones and the body politic in Brazil. Ethnos, 75(4), pp.377-401, 2010. Santos, Andréa C. dos. Famílias e conflitos: o agente comunitário de saúde frente às novas abordagens sobre gênero. 2016. 129f. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) - Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2016. Santos, Joseylson F. dos. Femininos de montar - uma etnografia sobre experiências de gênero entre drag queens. 237 f. 2012. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) – Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2012. Santos, Lídia. A telenovela brasileira: do nacionalismo à exportação. Caravelle, Toulouse, n. 75, 2000, pp. 137-150. Sarti, Cynthia A. O atendimento de emergência a corpos feridos por atos violentos. Physis: Revista de Saúde Coletiva, c. 15, n. 1, pp. 107-126, 2005. Sarti, Cynthia A. Saúde e Sofrimento. Em: Martins, C. B.; Duarte, Luis F. D. (org.). Horizontes das ciências sociais no Brasil: Antropologia. São Paulo: ANPOCS, 2010, pp.197-224. Scambler, Graham. Health-Related Stigma. Sociology of Health & Illness, vol. 31, n. 3, 2009, pp. 441– 455. Schaffner, Anna K. Modernism and Perversion: Sexual Deviance in Sexology and Literature, 1850- 1930. Inglaterra: Palgrave MacMillan, 2012. Schwade, Elisete. Poder do sujeito, poder do objeto. Relato de uma experiência de pesquisa em um assentamento de trabalhadores rurais. Em: Grossi, Miriam P. (org.). Trabalho de campo e subjetividade. Florianópolis: NIGS/UFSC, 1992. Scott, Joan. The Evidence of Experience. Critical Inquiry, vol. 17, n. 4, 1991, pp. 773-797. Sedgwick, Eve K. A epistemologia do armário. Cadernos Pagu, Campinas, n. 28, pp. 19-54, 2007 [1993]. 385 Segato, Rita Laura. Antropologia e direitos humanos: alteridade e ética no movimento de expansão dos direitos universais. Mana, Rio de Janeiro, v.12, n.1, p.207-236, 2006. Shore, Chris; Wright, Susan. Policy. A new field of anthropology. Em: ____ (eds.). Anthropology of Policy: critical perspectives on governance and power. New York: Routledge, 1997. Sigusch, Volkmar. The Neosexual Revolution. Archives of Sexual Behavior, vol. 27, n. 4, pp. 331-359, 1998. Sigusch, Volkmar. Transsexueller Wunsch und zissexuelle Abwehr. Psyche, n. 49, pp. 811-837, 1994. Sigusch, Volkmar. Zissexuelle und Transsexuelle. Über ein Neogeschlecht. Em: Auf der suche nach der Sexuellen Freiheit. Über Sexualforschung und Politik. Frankfurt: Campus Verlag GmbH, 2011. Silva Neto, Francisco S. da. O Ceará moleque dá um show: da história de uma interpretação sobre o que faz ser cearense ao espetáculo de humor de Madame Mastrogilda. 2009. 161 f. Dissertação (Mestrado em Sociologia) – Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2009. Silva, Cristina Dias da. Cotidiano, saúde e política. Uma etnografia dos profissionais da saúde indígena. 2010. 276f. Tese (Doutorado em Antropologia) – Universidade de Brasília, Brasília, 2010. Silva, Hélio. Travesti: a invenção do feminino. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1993. Silva, José Fábio Barbosa da. Homossexualismo em São Paulo: estudo de um grupo minoritário. Em: Green, James; Trindade, Ronaldo (orgs.). Homossexualismo em São Paulo e outros escritos. São Paulo: Ed. UNESP, 2005 [1950]. Simmel, Georg. A metrópole e a vida mental. Em: Velho, Otávio G. (org.). O Fenômeno urbano. Rio de Janeiro: Zahar, 1973 [1902]. Simmel, Georg. The Conflict in Modern Culture. Em: Etzkorn, Peter (Ed.). Georg Simmel. The Conflict in Modern Culture and Other Essays. New York: Teachers College Press, 1968. Simmel, Georg. The Philosophy of Money. London: Routledge, 2011 [1978]. Simmel, Georg. The Sociology of Conflict: I. American Journal of Sociology, 9 (1904): 490-525. Singer, André. Os Sentidos do Lulismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. Souza Lima, Antonio Carlos de. O estudo antropológico das ações governamentais como parte dos processos de formação estatal. Revista de Antropologia, São Paulo, USP, 2012, v. 55 nº. 2, pp. 559-564. Souza Lima, Antonio Carlos de; Macedo e Castro, João Paulo. Notas para uma abordagem antropológica da(s) política(s) pública(s). Revista Anthropológicas, ano 19, 26(2): 17-54, 2015. Souza Lima, Antonio Carlos. A Antropologia e o Estado no Brasil: breves notas acerca de uma relação complexa. Em: Franch, Mónica; Andrade, Maristela; Amorim, Lara (orgs.). Antropologia em novos campos de atuação: debates e tensões. João Pessoa: Mídia, 2015. Souza Lima, Antonio Carlos. Um grande cerco de paz: poder tutelar, indianidade e formação do Estado no Brasil. Petrópolis: Editora Vozes, 1995. Souza Lima, Antonio Carlos; Castro, João P. M. e. Notas para uma abordagem antropológica da(s) Política(s) Pública(s). Revista AntHropológicas, ano 19, 26(2): 17-54, 2015. Souza, Maria C. J. de. Telenovela e representação social: Benedito Ruy Barbosa e a representação popular na telenovela Renascer. Rio de Janeiro: E-papers, 2004. 386 Souza, Rândson Soares de. Planejamento da Atenção Primária em Saúde de Fortaleza: constituição, (des)continuidade e resultados. 2016. 249 f. Tese (Doutorado em Saúde Coletiva) - Universidade Estadual do Ceará, Fortaleza, 2016. Spizzirri, Giancarlo. Morfometria cerebral e imagens de tensores de difusão da microestrutura de substância branca em homens para mulheres transexuais antes e durante o processo transexualizador. 2016. 139 f. Tese (Doutorado em Psiquiatria) – Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2016. Stone, Sandy. The ‘Empire’ Strikes Back: A Posttranssexual Manifesto. Camera Obscura, 10(2): 150- 176, 1992. Stone, Sandy; Stryker, Susan. Another Dream of Common Language: An Interview with Sandy Stone. Transgender Studies Quarterly, vol. 3, Issue 1-2, 2016. Strathern, Marilyn. O gênero da dádiva: problemas com mulheres e problemas om a sociedade na Melanésia. Campinas: Unicamp, 2006. Strathern, Marilyn. Sem natureza, sem cultura: o caso Hagen. Em: O efeito etnográfico. São Paulo: Cosac Naify, 2014b [1980]. Stryker, Susan. (De)Subjugated Knowledges: an introduction to transgender studies. Em: ____ e Whittle, Stephen (eds.). The Transgender Reader. Routlegde: New York, 2006. Stryker, Susan. My Words to Victor Frankenstein Above the Village of Chamounix: Performing Transgender Rage, GLQ: A Journal of Lesbian and Gay Studies 1(3): 237–54, 1994. Stryker, Susan. The Transgender Issue. An Introduction. GLQ: A Journal of Lesbian and Gay Studies, 4:2, pp. 145-158, 1998. Stryker, Susan. Transgender history: The Roots of Today’s Revolution. 2. ed. Berkeley, CA: Seal, 2017. Stryker, Susan. Transgender Studies: Queer Theory's Evil Twin. GLQ: A Journal of Lesbian and Gay Studies, 10:2, pp. 212-215, 2004. Stryker, Susan. Transsexuality: The Postmodern Body and/as Technology. Exposure 30(1–2): 38– 50, 1995. Suess Schwend, Amess. “Transitar por los géneros es un derecho”: recorridos por la perspectiva de despatologización. 868 f. 2015. Tese (Doutorado em Antropologia Social e Diversidade Cultural) – Universidade de Granada, Granada, Espanha, 2016. Tamanini, Marlene. Para uma epistemologia do cuidado: teorias e políticas. Em: ____ (Org.). O cuidado em cena: desafios políticos, teóricos e práticos. Florianópolis: UDESC, 2018. Teixeira, Carla C. Decoro parlamentar: entre agressões morais e indisciplinas estratégicas. Em: Teixeira, Carla C.; Chaves, Christine A. (orgs.). Espaços e tempos da política. Rio de Janeiro: Relume Dumará, Núcleo de Antropologia da Política, UFRJ, 2004. Teixeira, Carla C.; Lobo, Andréa; Abreu, Luiz Eduardo. Nada precisa ser como é: etnografias das instituições, práticas de poder e dinâmicas estatais. Em: ____ (orgs.). Etnografia das instituições, práticas de poder e dinâmicas estatais. Brasília: ABA, 2019. Teixeira, Carla C.; Souza Lima, Antônio C. de. A antropologia da administração e da governança no Brasil: área temática ou ponto de dispersão. Em: Duarte, Luiz F. D. (Org.). Horizontes das Ciências Sociais no Brasil: antropologia. São Paulo: ANPOCS, 2010. 387 Teixeira, Flávia do B. Vidas que desafiam corpos e sonhos: uma etnografia do construir-se outro no gênero e na sexualidade. 2009. 243f. Tese. (Doutorado em Ciências Sociais) – Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2009. Teixeira, Sonia F. Reforma sanitária: em busca de uma teoria. São Paulo: Abrasco/Cortez, 1989. Thompson, John B. A mídia e a modernidade: uma teoria social da mídia. Petrópolis: Vozes, 1998. Tosh, Jemma. Psychology and Gender Dysphoria: Feminist and Transgender Perspectives. London: Routledge, 2016. Trindade, Mably. Aspectos históricos do processo transexualizador no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Gramma, 2016. Tsing, Anna. The Global Situation. Em: Inda, Jonathan X.; Rosaldo, Renato (Ed.). The Anthropology of Globalization: A Reader. New Jersey: Blackwell, 2002. Turner, Edith L. B. Prologue: From the Ndembu to Broadway. In: ____ (Ed.). On the Edge of the Bush. Anthropology as Experience. Tucson: The University of Arizona Press, 1985, pp. 1-18. Turner, Victor. From Ritual to Theatre. New York: Perfoming Arts Journal Press, 1982. Vale, Alexandre Fleming Câmara. Cenas de um público implícito. Territorialidade marginal, pornografia e prostituição travesti no Cine Jangada. 1997. 147 f. Dissertação (Mestrado em Sociologia) - Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 1997. Vale, Alexandre Fleming Câmara. O vôo da beleza: travestilidade e devir minoritário. 2005. 307 f. Tese (Doutorado em Sociologia) - Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2005. Valentine, David. "I went to bed with my own kind once": the erasure of desire in the name of identity. Language & Communication, 23, pp. 123-138, 2003. Valentine, David. Imagining Transgender. An Ethnography of a Category. Durham: Duke University Press, 2007. Valentine, David. The Categories Themselves. GLQ: A Journal of Lesbian and Gay Studies, 10:2, pp. 215-220, 2004. Valim, Thais M. M. Infância e deficiência: um estudo antropológico sobre os desdobramentos da epidemia do Vírus da Zika na vida de crianças potiguares. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) – Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2020. Valle, Carlos Guilherme Octaviano do. Biosocial Activism, Identities and Citizenship: Making Up ‘People Living with HIV and AIDS’ in Brazil. Vibrant – Virtual Brazilian Anthropology, Brasília, v. 12, n. 2, 2015, pp. 27-70. Valle, Carlos Guilherme Octaviano do. Doença, ativismo biossocial e cidadania terapêutica: a emergência da mobilização de pessoas com HTLV no Brasil. Vivência: Revista de Antropologia, Natal, v. 1, p. 1-204, 2013. Valle, Carlos Guilherme Octaviano do. Identidade e subjetividade. Em: Souza Lima, Antonio Carlos de (coord.). Antropologia e Direito: temas antropológicos para estudos jurídicos. Rio de Janeiro/Brasília: Contracapa/ LACED/ABA, 2012. Valle, Carlos Guilherme Octaviano do. Identidade em Caucaia: etnografia e vicissitudes de uma perícia antropológica. Revista Anthropológicas, Recife, v. 14, n. 1 e 2, 2003, pp. 1-27. 388 Valle, Carlos Guilherme Octaviano do. Mediadores e experts biossociais: saúde, ativismo e a criminalização da infecção do HIV. Em: Teixeira, Carla C.; Valle, Carlos Guilherme do; Neves, Rita de C. (orgs.). Saúde, mediação e mediadores. Brasília: ABA Publicações; Natal: EdUFRN, 2017. Valle, Carlos Guilherme Octaviano do. Memórias, histórias e linguagens da dor e da luta no ativismo brasileiro de HIV/Aids. Sexualidad, Salud y Sociedad, Rio de Janeiro, v. 1, pp. 153-182, 2018. Valle, Carlos Guilherme Octaviano do. The making of people living with HIV and AIDS: identities, illness and social organization in Rio de Janeiro, Brazil. 2000. 341 f. Tese não publicada (Doutorado em Antropologia), University of London, Londres, 2000. Valle, Carlos Guilherme Octaviano do; Gibbon, Sarah. Introduction. Health/Illness, Biosocialities and Culture. Vibrant – Virtual Brazilian Anthropology, Brasília, v. 12, p. 67-74, 2015. Valle, Carlos Guilherme Octaviano do; Simões, Júlio Assis. Introdução ao Dossiê Diversidade Sexual e de Gênero, Memórias e Envelhecimento. Bagoas - Estudos gays: gêneros e sexualidades, Natal, v. 9, n. 13, 10 jun. 2015. Vance, Carole S. Anthropology Rediscovers Sexuality: A Theoretical Comment. Soc. Sci. Med., v. 33, n. 8, pp. 875-884, 1991. Veiga de Carvalho, Hilário. Parecer Médico-Legal n. 1. Em: Farina, Roberto. Transexualismo: do homem à mulher normal através dos estados de intersexualidade e das parafilias. São Paulo: Novalunar, 1982a [1977]. Veiga de Carvalho, Hilário. Parecer Médico-Legal n. 2. Em: Farina, Roberto. Transexualismo: do homem à mulher normal através dos estados de intersexualidade e das parafilias. São Paulo: Novalunar, 1982b [1978]. Velho, Gilberto. A Utopia Urbana. Rio de Janeiro: Zahar, 1989. Velho, Gilberto. Biografia, trajetória e mediação. Em: Velho, Gilberto e Kuschnir, Cristina (orgs.). Mediação, cultura e política. Rio de Janeiro: Aeroplano Editora, 2001. Velho, Gilberto. Individualismo e Cultura: notas para uma antropologia da Sociedade Contemporânea. Rio de Janeiro: Zahar Editor, 1981. Velho, Gilberto. Memória, identidade e projeto. Em: Vianna, Herman; Kuschnir, Carina e Castro, Celso. (orgs.). Gilberto Velho: Um antropólogo na cidade. Ensaios de antropologia urbana. Rio de Janeiro: Zahar, 2013. Velho, Gilberto. Nobres e Anjos. Rio de Janeiro: FGV, 2008. Velho, Gilberto. Subjetividade e Sociedade: uma experiência de geração. Rio de Janeiro: Zahar, 1986. Velho, Gilberto. Unidade e fragmentação em sociedade complexas. Em: Souza, J.; Berthold, Ö. (orgs.). Simmel e a modernidade. Brasília: Ed. UnB, 2005. Velho, Otávio. Relativizando o relativismo. Novos Estudos Cebrap, n. 29, p. 120-30, 1991. Vencato, Anna Paula. Confusões e estereótipos: o ocultamento de diferenças na ênfase de semelhanças entre transgêneros. Cad. AEL, v.10, n.18/19, 2003, pp. 186-214. Vencato, Anna Paula. Sapos e princesas: prazer e segredo entre praticantes de crossdressing no Brasil. São Paulo: Annablume, 2013. Víctora, Ceres; Coelho, Maria Claudia. A antropologia das emoções: conceitos e perspectivas teóricas em revisão. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 25, n. 54, pp. 7-21, 2019. 389 Vieira, Tereza R. Mudança de sexo - aspectos médicos, psicológicos e jurídicos. Psicólogo inFormação, São Paulo, ano 4, n. 4, p. 63-77, 2000. Weber, Max. Ciência e Política: duas vocações. 18. ed. São Paulo: Cultrix, 2011 [1967]. Weeks, Jeffrey. Sex, Politics and Society: the regulation of sexuality since 1800. London/New York: Longman, 1989. Weeks, Jeffrey. The Sexual Citizen. Theory, Culture and Society 15(3–4): 35–52, 1998. West, C.; Zimmermann, D. H. Doing gender. Gender & Society, 1(2), 125-151, 1987. Weston, Kath. Families We Choose: Lesbians, Gays, Kinship. New York: Columbia University Press, 1991. Wilce, James M. Language and Emotion. Cambridge, UK: Cambridge Univ. Press, 2009. Winter, Sam; Diamond, Milton; Green, Jamison; Karasic, Dan; Reed, Terry; Whittle, Stephen. Wylie, Kevan. Synergies in thealth and human rights: a call to action to improve transgender health. The Lancet, 17 jun. 2016. Disponível em: . Acesso em jan. 2020. Wylie, Kevan; Knudson, Gail; Khan, Sharful I.; Bonierbale, Mireille; Watanyusakul, Suporn; Baral, Stefan. Serving transgender people: clinical considerations and service delivery models in transgender health. The Lancet, 17 jun. 2016. Disponível em: . Acesso em jan. 2020. Yonkers, Kimberly A.; Clarke, Diana E. Gender and Gender-Related Issues in DSM-5. Em: Regier, Darrel A. et al. (Eds.). The Conceptual Evolution of DSM-5. APA: Arlington, 2011. Zaluar, Alba. A máquina e a Revolta. As organizações populares e o significado da pobreza. 2. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994 [1985]. Zambrano, Elizabeth. Trocando os documentos: um estudo antropológico sobre a cirurgia de troca de sexo. 2003. 126 f. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2003. Zarias, Alexandre; Le Breton, David. Corpos, emoções e risco: vias de compreensão dos modos de ação individual e coletivo. Sociologias, Porto Alegre, ano 21, n. 52, set-dez 2019, pp. 20-32. Zorzanelli, Rafaela; Ortega, Francisco; Bezerra Jr., Benilton. Um panorama sobre as variações em torno do conceito de medicalização entre 1950-2010. Ciência & Saúde Coletiva, v. 19, nº 6, pp. 1859- 1868, 2014. Zucker, Kenneth. The DSM-5 Diagnostic Criteria for Gender Dysphoria. Em: Trombetta, Carlo; Liguori, Giovanni; Bertolotto, Michele (eds.). Management of Gender Dysphoria. A Multidisciplinary Approach. Milan: Springer-Verlag Italia, 2015. Zucker, Kenneth; Cohen-Kettenis, P. T.; Drescher, J.; Meyer-Bahlburg, H. F.; Pfäfflin, F.; Womackm W. M. Memo Outlining Evidence for Change for Gender Identity Disorder in the DSM-5. Archives of Sexual Behavior, 42(5): 901-914, 2013. Zuuren, E. J. van; Fedorowicz, Z.; Schoones, J. Interventions for female pattern hair loss. Cochrane Database of Systematic Reviews (5): CD007628, 2016. Revistas de banca, jornais, canais de notícias digitais 390 Antra. Secretaria da ANTRA. Fernanda de Moraes da Silva. Resgate Histórico do Dia Nacional da Visilidade Trans, 26 jan. 2020. Araújo, Amanda. OAB aciona MP para investigar peça sobre transexualidade que utiliza crucifixo em cena. Jornal O Povo, Fortaleza, 9 de jun. 2016. Disponível em: . Acesso em: 26 mar. 2019. Bagoas. Seminário Desfazendo Gênero, I. Manifesto Transexualidade não é doença! Pela retirada da transexualidade do DSM e do CID! Bagoas - Estudos gays: gêneros e sexualidades, Natal, v. 4, n. 05, 27 nov. 2012, pp. 265-269. Blog Gay, 2 de jan. 2020. Disponível em: . Acesso em 10 jan. 2020. Brasil. Ministério dos Direitos Humanos. Secretaria Nacional da Cidadania. Manual Orientador Sobre Diversidade. Brasília: MDH, 2018. Disponível em: . Diário do Nordeste, 22 de dezembro 2019. Disponível em: . Acesso em dez. 2019. Farina, Roberto. A cidadania do transexual. Folha de S. Paulo, Especial para a Folha, São Paulo, domingo, 2 de jul de 1995. Helms, Monica. Entrevista, s/d. Disponível em: . Acesso em: 20 mar. 2019. Nexo Jornal, 14 fev. 2019. Disponível em: . Acesso em 10 jan. 2020. O Estado de S. Paulo. Mudança de sexo, pioneirismo na AL. Jornal O Estado de S. Paulo, São Paulo, 15 nov. 1975, p. 18. O Estado, Fortaleza, 29 de junho de 2018. Disponível em: . Acesso em: 21 jul. 2019. O Povo, 10 mar. 2017. Disponível em: . Acesso em 10 jan. 2020. O Povo, 15 fev. 2020. Disponível em: . Acesso em: 15 fev. 2020. O Povo, 19 mar. 2017. Disponível em: . Acesso em: 10 jan. 2020. O Povo, 28 fev. 2016a. Disponível em: . Acesso em: 20 mar 2017. 391 O Povo, 28 fev. 2016b. Disponível em: . Acesso em: 20 mar 2017. Raj, Rupert (ed.). Gender Networker, v. 1, n. 1, For Helping Professionals and Resource Providers, jun. 1988. Rede Trans. Rede Nacional de Pessoas Trans - Brasil. Saúde do homem trans e pessoas transmasculinas, 24 abr. 2018. Disponível em: . Acesso em: 1 mai. 2018. Rossi, Amanda. "Monstro, prostituta, bichinha": como a Justiça condenou a 1ª. cirurgia de mudança de sexo do Brasil. BBC Brasil, São Paulo, 28 de março e 2018. Disponível em: . Acesso em: 13 mar. 2019. Serpa, Egídio. Fortaleza Bela e Sem Homofobia. Diário do Nordeste, Fortaleza, 25 nov. 2007. Disponível em: . Acesso em 8 abr. 2019. STF. Supreto Tribunal Federal. Ministra Ellen Gracie. Suspensão de tutela antecipada 185-2 Distrito Federal. Brasília, 2007. Disponível em: . Acesso em: jan. 2020. Tribuna do Ceará, 4 mar. 2017. Disponível em: . Acesso em 10 jan. 2020. Tribuna do Ceará, 5 mar. 2017. Disponível em: . Acesso em 10 jan. 2020. Tribuna do Ceará, 7 mar. 2017. Disponível em: . Acesso em 10 jan. 2020. VEJA Rio. Meu filho é trans (matéria em revista). N. 2085, 25 mar. 2017. VEJA. Cazuza. Uma vítima da AIDS agoniza em praça pública (matéria em revista). N. 1077, 26 abr. 1989. VEJA. Eu fiz aborto (matéria em revista). N. 1513, 20 abr. 1989. VEJA. Meu filho é trans (matéria em revista). N. 2663, 12 out. 2017. Telenovelas A Força do Querer. Telenovela, Estúdios Globo, Rio de Janeiro, criação Glória Perez, dir. geral Pedro Vasconcelos, 2017. As Filhas da Mãe. Telenovela, Estúdios Globo, Rio de Janeiro, criação Sílvio de Abreu, dir. geral Jorge Fernando, 2001-2002. Explode Coração. Telenovela, Estúdios Globo, Rio de Janeiro, criação Glória Perez, dir. geral Dennis Carvalho, 1995-1996. 392 Manuais de saúde e guias de orientação clínica de conselhos e sociedades psi e biomédicas e de associações ativistas APA. American Psychiatric Association. Diagnostic and Statistical Manual Mental Disorders. (DSM-I). Washington: APA Mental Hospital Service, 1952. APA. American Psychiatric Association. Diagnostic and Statistical Manual Mental Disorders. Second Edition. (DSM-II). Washington: APA, 1968. APA. American Psychiatric Association. Diagnostic and Statistical Manual Mental Disorders. Third Edition. (DSM-III). Washington: APA, 1980. APA. American Psychiatric Association. Diagnostic and Statistical Manual Mental Disorders. Third Edition Revised. (DSM-III-R). Washington: APA, 1987. APA. American Psychiatric Association. Diagnostic and Statistical Manual Mental Disorders. Fourth Edition. (DSM-IV). Washington: APA, 1994. APA. American Psychiatric Association. Diagnostic and Statistical Manual Mental Disorders. Fourth Edition. (DSM-IV-TR). Washington: APA, 2000a. APA. American Psychiatric Association. Diagnostic and Statistical Manual Mental Disorders. Fifth Edition. (DSM-V). Washington: APA, 2013. APA. American Psychiatric Association. Sumary of Practice-Relevant Changes to the DSM-IV-TR. Text Revision. Online, 2000b. Disponível em: . Acesso em: 24 abr. 2019. APA. American Psychological Association. Guidelines for psychological practice with transgender and gender nonconforming people. American Psychologist, 70(9), pp. 832–864, 2015. APA. Associação de Psiquiatria Americana. Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais: DSM-5. 5. ed. Porto Alegre: Artmed, 2014. APM. Associação Paulista de Medicina. Editorial. O Médico Paulista: Jornal da Associação Paulista de Medicina, n. 169, dez. 1976. CFM. Conselho Federal de Medicina. Resolução n. 1.482/1997. Autoriza a título experimental a realização de cirurgia de transgenitalismo do tipo neocolpovulvoplastia, neofaloplastia e/ou outros procedimentos complementares sobre gônadas e caracteres sexuais secundários como tratamento dos casos de transexualismo em Hospitais Universitários e Públicos. CFM. Conselho Federal de Medicina. Resolução n. 1.652/2002. Dispõe sobre a cirurgia de transgenitalização e revoga a Resolução n. 1.482/1997. CFM. Conselho Federal de Medicina. Resolução n. 1.955/2010. Dispõe sobre a cirurgia de transgenitalismo e revoga a Resolução. 1.652/2002. CFM. Conselho Federal de Medicina. Resolução n. 2.265/2019. Dispõe sobre o cuidado específico à pessoa com incongruência de gênero ou transgênero e revoga a Resolução CFM n. 1.955/2010. CFP. Conselho Federal de Psicologia. Resolução n. 001/1999, de 22 de março de 1999. Estabelece normas de atuação para os psicólogos em relação à questão da Orientação Sexual. CFP. Conselho Federal de Psicologia. Resolução n. 1, de 29 de janeiro de 2018. Estabelece normas de atuação para as psicólogas e os psicólogos em relação às pessoas transexuais e travestis. 393 SBMFC. Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade. O atendimento de pessoas trans na Atenção Primária à Saúde. 31 jan. 2020. Disponível em: . Acesso em: 1 fev. 2020. Stop Trans Pathologization. 2012. Stop Trans Pathologization website. Retrieved December 11, 2018 from www.stp2012.info. WHO. World Health Organization. The ICD-10 Classification of Mental and Behavioural Disorders: Conversion Tables between ICD-8, ICD-9 and ICD-10. Revision 1. WHO: Geneva, 1994. WPAHT. Associação Mundial Profissional para a Saúde Transgênero. Normas de atenção à saúde das pessoas trans e com variabilidade de gênero. Leis, Programas, Portarias, Resoluções, Projetos de lei, Planos, Cartilhas e outros documentos estatais Brasil. Congresso Nacional. Projeto de Lei n. 1.909 de 1979, autoria de José de Castro Coimbra, Brasília, de 26 set. 1979. In: Dossiê Digitalizado do PL 1.909/79, Lote 55, Caixa 75. Disponível em: . Acesso em: 22 jan. 2019. Brasil. Conselho Nacional de Combate à Discriminação. Brasil sem homofobia: programa de combate à violência e à discriminação contra GLBT e promoção da cidadania homossexual. Brasília, 2004a. Brasil. Ministério da Justiça. Secretaria de Direitos Humanos. Relatório sobre violência homofóbica no Brasil: ano de 2012. Brasília, 2013. Disponível em: . Acesso em: dez. 2019. Brasil. Ministério da Saúde Nota Técnica 18/2014 refere a orientações sobre o uso do nome social no SUS para profisisonais de saúde. Disponível em: . Acesso em: jun 2020. Brasil. Ministério da Saúde. Portaria n°. 2.227/GM, de 14/10/2004. Dispõe sobre a criação do Comitê Técnico para a formulação de proposta da política nacional de saúde da população de gays, lésbicas, transgêneros e bissexuais - GLTB. Diário Oficial da União, DF, 14 out, 2004. Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 1.707/GM/MS, de 18 de agosto de 2008a. Institui, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), o Processo Transexualizador, a ser implantado nas unidades federadas, respeitadas as competências das três esferas de gestão. Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 2.803, de 19 de novembro de 2013. Redefine e amplia o Processo Transexualizador no Sistema Único de Saúde (SUS). Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 2.836/MS/GM, de 1 de dezembro de 2011. Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais – LGBT. Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 457/SAS/MS, de 19 de agosto de 2008b. Aprova a regulamentação do Processo Transexualizador no âmbito do Sistema Único de saúde – SUS. Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Ações Programáticas Estratégicas. Saúde Mental no SUS: os Centros de Atenção Psicossocial. Brasília: Ministério da Saúde, 2004. 394 Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Especializada e Temática. Coordenação-Geral de Atenção Especializada. Seminário João W. Nery. 10 anos do Processo Transexualizador no SUS. Aspectos normativos - Poder Executivo. 24 Slides. Brasília, DF, 12 de dezembro de 2018. Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Boletim Epidemiológico, v. 47, n. 38, 2016. Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Boletim Epidemiológico, v. 50, n. 13, 2019a. Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de Vigilância, Prevenção e Controle das Infecções Sexualmente Transmissíveis, do HIV/Aids e das Hepatites Virais. Cartilha Homens trans: vamos falar sobre prevenção de infecções sexualmente transmissíveis? Brasília: Ministério da Saúde, 2019b. Disponível em: . Acesso em: 24 fev. 2020. Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de Vigilância, Prevenção e Controle das Infecções Sexualmente Transmissíveis, do HIV/Aids e das Hepatites Virais. Documento com as atualizações e correções feitas na Cartilha. Brasília: Ministério da Saúde, 2019c. Disponível em: . Acesso em: 24 fev. 2020. Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria-Executiva. Mais Saúde: direito de todos: 2008-2011. 2. ed. Brasília: Editora do Ministério da Saúde, 2008. Brasil. Ministério da Saúide. Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde. O SUS de A a Z: garantindo saúde nos municípios. 3. ed. Brasília: Ministério da Saúde, 2009. Brasil. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Política Nacional de Assistência Social. Brasília: Secretaria Nacional de Assistência Social, 2004b. Brasil. Presidência da República. Anais da I Conferência Nacional Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais - GLBT. Direitos Humanos e políticas públicas: o caminho para garantir a cidadania GLBT. Brasília: República do Brasil, 2008. Disponível em: . Acesso em out. 2018. Brasil. Presidência da República. Mensagem 63 n. 171 ao Senado Federal da República Federativa do Brasil, Brasília, 4 jun. 1984. In: Dossiê Digitalizado do PL 1.909/79, Lote 55, Caixa 75. Disponível em: . Acesso em: 22 jan. 2019. Brasil. Presidência da República. Secretaria Especial de Direitos Humanos. 2013. Relatório sobre Violência Homofóbica no Brasil: ano de 2012. Brasília: SEDH/PR. Brasil. Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República. Plano Nacional de Promoção da Cidadania e Direitos Humanos de LGBT. Brasília: SEDH, 2009. 45p. Ceará. Governo do Estado do Ceará. Plano Estadual de Saúde 2016-2019: Ceará da Gestão Democrática por Resultados. Fortaleza, 2016. 395 Anexo 1 – Sinopse de A Força do Querer Se existe algo comum a todo ser humano é que todos temos um sonho, um desejo, um querer - que diz respeito a amor, dinheiro, sucesso, identidade, poder, realização profissional. Movidos pelo querer, somos o tempo todo desafiados a fazer escolhas. Escolhas que nos fazem bem ou que se voltam contra nós. Num tempo em que as distâncias são relativas e a vida de todos é arrebatada por uma enxurrada de informações, onde surgem novas linguagens, novos modelos e novos códigos. Essas questões se traduzem através da história de diferentes personagens, seus quereres e suas escolhas. Mais uma vez, como é comum a todos os seus trabalhos, a autora vai falar de diversidade, de tolerância, das dificuldades de compreender e aceitar o que é diferente de nós. Caio, advogado de formação, largou a possibilidade de administrar uma das maiores empresas do Brasil, a Garcia, quando Bibi terminou o relacionamento com ele. Sem olhar para trás, trocou o Rio de Janeiro para ir se aventurar nos Estados Unidos. Passados quase 15 anos, Caio entende que esse é o momento de voltar ao Brasil e encarar o que deixou para trás. Um homem movido por ideais éticos, que, ao conseguir crescer e ter sucesso em um alto cargo ligado à Justiça, vive um grande conflito íntimo ao ver sua vida cruzar novamente com a de Bibi, que terá, então, enveredado pela vida do crime. Bibi não conseguiu terminar a faculdade de Direito, onde conheceu Caio, mas tem certeza de que fez a escolha certa ao abandonar este homem, que dividiu seu amor por ela com o amor pela profissão. É do tipo que ama demais, quer e só entende o amor em temperatura máxima. Conhece e casa-se com Rubinho. Hoje, quem tem a possibilidade de administrar a Garcia é Ruy, filho de Eugenio, um dos donos do negócio. O jovem da alta sociedade carioca parece ter a vida organizada: além da posição profissional, está noivo de Cibele – uma mulher de família rica e com futuro promissor. Mas, em uma viagem de trabalho a Parazinho – vila fictícia no Pará –, ele fica encantado por Ritinha. Ritinha adora a atenção de Ruy. Flertar com o carioca a faz se sentir desejada, ela adora sentir o fascínio que exerce sobre os homens, assim como as sereias. Apesar de ser noiva de Zeca, um rapaz conhecido por sua boa índole e perdidamente apaixonado por ela, nada a impede de jogar com Ruy. Ritinha gosta de seduzir, conquistar, e isso é instintivo nela. Quer a liberdade de seguir seus impulsos. Zeca é um tipo rude, passional, coração enorme. Nascido e criado em Parazinho, é caminhoneiro e tem no veículo não só um trabalho, mas um sonho realizado. Está feliz com sua amada e não poderia desejar que a vida fosse melhor. Mas, ao saber do envolvimento de Ritinha com Ruy, decide se mudar para Niterói, no Rio de Janeiro, e recomeçar. Zeca quer reconquistar seu meio de trabalho e se libertar do fascínio que Ritinha exerce sobre ele. Lá, conhece Jeiza, uma mulher diferente de todas as pessoas que Zeca já conheceu. Jeiza é policial, trabalha no Batalhão de Ações com Cães e sonha em se tornar lutadora de MMA. Ao ver o sofrimento de Zeca, se aproxima dele e tenta ajudá-lo a esquecer Ritinha. Enquanto Ruy se prepara para assumir a Garcia, Eugênio, pai do jovem, quer sair do posto de chefia e seguir a tão sonhada carreira de advogado. É um homem capaz de esmagar o seu querer, abrir mão de suas vontades, para atender à necessidade dos outros. Joyce, esposa de Eugênio, é uma mulher que cultua tudo o que diz respeito à beleza e ao feminino. Criou a filha Ivana para vê-la como uma extensão de si própria. Vive seus maiores conflitos e dificuldades quando a menina se revela trans homem. Ivana quer resgatar sua identidade, é um homem que nasceu num corpo de mulher. As histórias desses personagens se cruzam quando a saga de cada um os leva ao limite e os faz ultrapassar horizontes, desafiar as próprias barreiras e vencer conflitos internos. A força do querer de um afeta a força do querer do outro e pode determinar os rumos inesperados desta história262. 262 Texto extraído de notícia da TV Globo. Autoria de Glória Perez, e direção artística de Rogério Gomes. Disponível em: . Acesso em: jul. 2020. 396 Anexo 2 - Quadro sinótico. Ambulatórios TT no Brasil. N R Estado Nome do serviço Cidade Ano Gestão Observações N 1 Acre Sem Informação 2 Amapá Sem Informação 3 Amazonas Ambulatório para Manaus 2017 UEAM Policlínica PAM da Transgêneros Codajás. 4 Pará Ambulatório de Saúde Integral Belém 2017 Secretaria de Estado de Unidade de Referência para Travestis e Transexuais Saúde Pública (Sespa) e Especializada em Doenças de Justiça e Direitos Infecto-Parasitárias e Humanos (SEJUDH) Especiais (Uredipe) 5 Roraima Sem Informação 6 Rondônia Sem Informação 02 7 Tocantins Ambulatório de Saúde TT Palmas Disputado Secretaria Estadual de A Defensoria Pública do localmente. Saúde/Prefeitura de Estado e o MS (grupo Sem Palmas/Prefeitura de Atrato) seguem previsão. Araguaína/Prefeitura pressionando os governos. de Gurupi 8 Alagoas Ambulatório de Acolhimento e Maceió 2019 Secretaria Estadual de O Ambulatório Cuidado Integral de Pessoas Saúde (Sesau) Especializado em Terapia Lésbicas, Bissexuais, Travestis Hormonal do HU/UFAL e Transexuais (LGBT) foi fechado em 2014. O segundo ambulatório foi aberto em dezembro de 2019. 9 Bahia Ambulatório Transexualizador Salvador 2018 UFBA/Ebserh Complexo Hospitalar do Complexo Hospitalar Universitário Professor Universitário Professor Edgard Edgard Santos (HUPES) Santos da UFBA. 10 10 Ceará Ambulatório Serviço de Fortaleza 2019 Secretaria de Saúde do Hospital Mental Prof. Referência Transdisciplinar Estado (SESA) Frota Pinto. Pressão do para Transgêneros (Sertrans) movimento social (ATRANSCE) por 3 anos consecutivos. 11 Maranhão Ambulatório de Sexualidade São Luís 2017 UFMA/Ebserh Hospital Universitário da UFMA. 12 Paraíba Ambulatório de Saúde Integral João Pessoa 2013 Secretaria de Estado da Complexo Hospitalar para Travestis e Transexuais Saúde Clementino Fraga (UFPB). (TT/PB) (SES)/UFPB/Ebserh 13 Pernambuco Espaço de Cuidado e Recife 2014 UFPE/Ebserh Hospital das Clínicas da Acolhimento Trans do HC UFPE. 14 Piauí Ambulatório Integrado Dirceu Teresina 2020 Fundação Hospitalar Pressão através do Mendes Arcoverde (Fepiserh) e Secretaria Ministério Público. de Estado de Saúde 15 Rio Grande Ambulatório Estadual de Natal 2019 Secretaria Estadual de Hospital Giselda Trigueiro. do Norte Saúde Integral de Transexuais Saúde Pública (Sesap) e Travestis no RN Linha de cuidado a Saúde da Mossoró 2019 Universidade do Ainda não Habilitado, mas população LGBTT na cidade Estado do Rio Grande encontra-se em de Mossoró do Norte (UERN) funcionamento com gestão da Faculdade de Enfermagem (FAEN) da UERN. Encontra-se em disputa local para a implantação municipal da Política Nacional de Saúde Integral LGBT263 16 Sergipe Ambulatório Trans de Lagarto Sergipe Pelo menos Secretaria Municipal de Hospital Universitário da 2016 Saúde de Lagarto (SE), UFS de Lagarto (SE) Secretaria Estadual de Saúde e UFS/Ebserh 17 Distrito Ambulatório Trans do DF Brasília 2017 Secretaria de Saúde do Hospital Dia da 508/509 Federal DF (SES-DF) Sul Ambulatório de Gênero da Brasília 2016 HU-UnB/Ebserh Hospital Universitário da Psicologia UnB 18 Goiás Ambulatório TX – Serviço Goiânia 2017 Secretaria de Estado da Funciona no Hospital Especializado do Processo Saúde Alberto Rassi (HGG) 04 Transexualizador 263 Esta informação sobre o Ambulatório em Mossoró, no RN, foi incluída por mim a partir de contato direto com funcionários do serviço e não consta no Quadro original de Almeida e Santos (2018). Considerei importante incluir esse serviço porque travestis e pessoas trans têm sido ali atendidas para procedimentos de transição e cuidados em geral, bem como tem sido um objeto de engajamento político local. Assim, os autores contavam 9 Ambulatórios no Nordeste, e passo então a contabilizar 10 e, consequentemente o total geral passa de 27 a 28 ambulatórios. Centro Oeste Nordeste Norte 397 Núcleo de Ações Básicas de Itumbiara SI Secretaria Municipal de NABS Itumbiara Saúde Saúde 19 Mato Ambulatório Trans do Estado Cuiabá Está sendo Secretaria de Estado de Pressão do MPE sobre o Grosso disputado. Saúde governo estadual. A Uma previsão é que seja previsão de inaugurado no Hospital inauguração Júlio Müller. para 2020 20 Mato G do Ambulatório Transexualizador Campo 2017 UFMS/Ebserh Funciona no Hospital Sul do Grande Universitário Maria Aparecida Pedrossian 21 Espírito Ambulatório de Diversidade Vitória 2018 UFES/Ebserh Hospital Universitário Santo de Gênero (habilitação) Cassiano Antonio Moraes (HUCAM) 22 Minas Ambulatório de Saúde Integral Belo 2017 Secretaria de Estado de Ambulatório de Gerais da População de Travestis e Horizonte Saúde e Fundação Dermatologia e Transexuais ou Ambulatório Hospitalar do Estado Infectologia do Hospital Trans Anyky Lima de MG (FHEMIG) Eduardo de Menezes 08 (HEM) Projeto Em cima do Salto – Uberlândia 2017 UFU/Ebserh Hospital das Clínicas Saúde Educação e Cidadania (habilitação) (HCU) da UFU. 23 Rio de Ambulatório de Disforia de Rio de NI Secretaria de Estado de Instituto Estadual de Janeiro Gênero Janeiro Saúde/Fundação Saúde Diabetes e Endocrinologia Luiz Capriglione (IEDE). Ambulatório de Atenção à Niterói 2019 Fundação Municipal de Policlínica de saúde da População Travesti e Saúde de Niterói Especialidades Dr. Sylvio Transexual João W. Nery Picanço 24 São Paulo Ambulatório de Saúde Integral São Paulo 2010 Secretaria de Estado da Centro de Referência e para Travestis e Transexuais Saúde Treinamento DST/Aids- SP Ambulatório de Saúde T São José do 2008 Prefeitura de S. José do UBS Dr. Domingo Rio Preto Rio Preto Marcolino Braile Ambulatório do Núcleo de São Paulo 2017 UNIFESP/Ebserh Rua Napoleão de Barros Estudos, Pesquisa, Extensão e n.859, Vila Clementino Assistência à Pessoa Trans Prof. Roberto Farina 25 Paraná Centro de Pesquisa e Curitiba 2013 Secretaria de Estado da 2ª Regional de Saúde em Atendimento a Travestis e Saúde Curitiba Transexuais - CPATT 26 Rio G. do Ambulatório para atendimento de Porto Alegre 2019 Secretaria Municipal da Centro Municipal de Saúde Sul saúde integral de homens e Saúde Modelo mulheres trans e travestis 04 Ambulatório TT Rio Grande 2016 FURG/Ebserh Hospital Universitário Dr. Miguel Riet Corrêa Jr. 27 Santa Ambulatório Trans – Centro Florianópolis 2015 Secretaria Municipal de Centro de Saúde da Lagoa Catarina de Saúde do Estreito Saúde TOTAIS 28 Fonte: Almeida e Santos (2018) a partir de matérias jornalísticas até abril de 2020. Sul Sudeste