UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL
DOUTORADO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL
Francisco Cleiton Vieira Silva do Rego
A SEGURANÇA BIOLÓGICA NA TRANSIÇÃO DE GÊNERO:
UMA ETNOGRAFIA DAS POLÍTICAS DA VIDA NO CAMPO SOCIAL DA SAÚDE TRANS
NATAL – RIO GRANDE DO NORTE
2020
FRANCISCO CLEITON VIEIRA SILVA DO REGO
A SEGURANÇA BIOLÓGICA NA TRANSIÇÃO DE GÊNERO:
UMA ETNOGRAFIA DAS POLÍTICAS DA VIDA NO CAMPO SOCIAL DA SAÚDE TRANS
Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação
em Antropologia Social, da Universidade Federal do
Rio Grande do Norte como requisito parcial para a
obtenção do título de Doutor em Antropologia
Social.
Linha de Pesquisa: Gênero, Sexualidade, Corpo e
Saúde.
Orientadora: Profa. Dra. Rozeli Maria Porto.
NATAL – RIO GRANDE DO NORTE
2020
Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN
Sistema de Bibliotecas - SISBI
Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes – CCHLA
Rego, Francisco Cleiton Vieira Silva do.
A segurança biológica na transição de gênero: uma etnografia
das políticas da vida no campo social da saúde trans / Francisco
Cleiton Vieira Silva do Rego. - Natal, 2020.
397f.: il. color.
Tese (doutorado) - Centro de Ciências Humanas, Letras e
Artes, Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social,
Universidade Federal do Rio Grande do Norte, 2020.
Orientadora: Prof. Dr. Rozeli Maria Porto.
1. Saúde trans - Tese. 2. Medicina trans - Tese. 3. SUS -
Tese. I. Porto, Rozeli Maria. II. Título.
RN/UF/BS-CCHLA CDU 614(81)-055.3
Elaborado por Heverton Thiago Luiz da Silva - CRB-15/710
Francisco Cleiton Vieira Silva do Rego
A segurança biológica na transição de gênero: uma etnografia das políticas da vida no
campo social da saúde trans
Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em
Antropologia Social, da Universidade Federal do Rio
Grande do Norte como requisito parcial para a obtenção
do título de Doutor em Antropologia Social.
Tese aprovada em: 28/08/2020.
ORIENTADORA: ___________________________________________
Profa. Dra. Rozeli Maria Porto
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
BANCA EXAMINADORA:
_________________________________________
Prof. Dr. Carlos Guilherme Octaviano do Valle
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
Membro Interno
________________________________________
Profa. Dra. Angela Mercedes Facundo Navia
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
Membro Interno
________________________________________
Prof. Dr. Alexandre Fleming Câmara Vale
Universidade Federal do Ceará
Membro Externo
________________________________________
Prof. Dr. Guilherme Silva de Almeida
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Membro Externo
MEMBRO SUPLENTE:
________________________________________
Profa. Dra. Elisete Schwade
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
Membro Interno
À minha querida e amada mãe,
Rejane Vieira de Macêdo.
AGRADECIMENTOS
Cursar um doutorado e escrever a tese exigem muito trabalho e dedicação, o que não seria
feito sem o apoio de muitas pessoas e instituições. Sem lastro financeiro na forma de bolsas eu não
teria nenhuma possibilidade de realizar essa formação. Por isso, agradeço em primeiro lugar ao
fomento da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior pelas bolsas de
Doutorado no País e Sanduíche no Exterior que permitiram minha dedicação exclusiva.
À escola pública brasileira na qual estudei toda a minha vida.
À Universidade Federal do Rio Grande do Norte por tudo que já proporcionou na minha
vida profissional, acadêmica, intelectual e pessoal.
À minha orientadora profa. Rozeli Maria Porto, que além de uma mestra se tornou uma
colega e amiga de muitíssima estima, admiração, consideração e inspiração. Obrigado pela
confiança, pelo tino teórico, ético e profissional, pela liberdade intelectual e por ter me incentivado
e mostrado, mesmo quando eu não acreditei tantas vezes, que esse é também o meu lugar. A
Universidade pública me abriu tantas portas que eu não posso contar, e com certeza você é uma
parte importante dessa caminhada de mudança social na minha vida.
Ao apoio valiosíssimo do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, em especial
ao trabalho das coordenações de Elisete Schwade, Glebson Vieira, Carlos Guilherme do Valle e da
atual Rozeli Porto, além das demais professoras e professores, principalmente com os/as quais
cursei disciplinas todas importantes e, às funcionárias que compõem o PPGAS/DAN.
Às e aos membros da banca de seleção de ingresso no Doutorado realizada em 2015 que
confiaram no meu potencial e me deram essa chance: Carlos Guilherme do Valle, Julie Cavignac,
Jean Segata e Francisca Miller.
Aos professores e às professoras membros da banca de qualificação da tese que muito me
ajudaram a pensar minhas questões, análises e dados empíricos: Angela Facundo, Carlos Guilherme
do Valle e Elisete Schwade.
Aos professores e às professoras que aceitaram participar da banca de defesa desta tese meu
muitíssimo obrigado e admiração: Carlos Guilherme do Valle, Angela Facundo, Alexandre Vale e
Guilherme Almeida. A Elisete Schwade por ter aceitado participar na suplência.
Aos professores e às professoras com os quais realizei os estágios docentes desde o
mestrado: Rita Neves, Julie Cavignac, Rozeli Porto e Paulo Vitor Leite Lopes.
Ao Grupo de Pesquisa “Gênero, Corpo e Sexualidade” (GCS) por ter sido um ponto de
apoio físico, formativo e afetivo com o qual pude contar desde o mestrado através das integrantes
e ações.
À Universidade do Estado do Rio Grande do Norte onde cursei a graduação em Ciências
Sociais, por ter sido uma escola tão importante na minha formação acadêmica básica,
principalmente nas figuras instigantes de professores e professoras do Departamento de Ciências
Sociais e Política: Aécio Cândido, Cristina Barreto, Vanderlan Silva, Karlla Souza, Eliane Anselmo,
Andreia Linhares, Geovânia Toscano, Glebson Vieira; bem como ao Programa de Educação
Tutorial em Ciências Sociais por ter sido uma plataforma de crescimento intelectual.
Ao meu coorientador prof. Eric Douglas Plemons que me recebeu de braços abertos
durante o estágio de doutorado sanduíche e que me instigou intrigantes e eletrizantes ideias e
questionamentos, assim como faz um mestre. Essa tese se beneficiou de nossas conversas em
reuniões de orientação, das suas indicações de leitura e discussão de livros/temáticas de seu grupo
de pesquisa, e ainda da atmosfera acadêmica e palestras, do centro de esportes, bem como do
acesso a estrutura física da Universidade do Arizona (UA), de sua Escola de Antropologia (EA) e
do seu Instituto para Estudos LGBT em Tucson/EUA. Agradeço também aos membros do Trans
Studies Research Cluster, chefiado pelo Eric, pelas formidáveis reuniões e inspiráveis discussões.
À profa. Susan Stryker pela acolhida no Instituto e simpatia, bem como às secretárias Catherine
Lehman (Antropologia) e Alma Galindo (LGBT) que me guiaram através da burocracia. Um
agradecimento especial precisa ser feito às bibliotecas da UA, as quais se tornaram para mim
verdadeiros laboratórios valiosíssimos e indispensáveis para minha revisão bibliográfica. Nelas
passei boa parte do meu tempo com seu funcionamento 24 horas por dia e 7 dias por semana, sua
estrutura física confortável, funcionários prestativos, espaços de estudo coletivos e individuais,
limite gigante de empréstimo, acervo impresso e digital imenso de livros e periódicos do mundo
inteiro e em muitos idiomas, que incluía inclusive publicação brasileira antiga e recente. Não posso
esquecer ainda da excelente professora de inglês Mrs. Lee e do coordenador Mr. Fuentes no Centro
para inglês como Segunda Língua na UA, e aos colegas mexicanos, salvadorenhos, coreanos e
venezuelanos das turmas com quem tive trocas estimulantes.
Ao Centro para Estudos Latino-Americanos da UA, ao que também atendi regularmente,
tendo sido um importante ponto de apoio com suas palestras, aulas e demais eventos com
acadêmicos de várias partes da América Latina, os quais sempre adocicados pela simpatia dos
professores e alunos, principalmente na figura do prof. Tom Zé da Silva. Ao Café Luccé da esquina
do campus, por ter sido um ambiente tão aconchegante no qual pude diferenciar meu local de
trabalho e beber tanto café e chá.
À mãinha, Rejane Vieira de Macêdo, a quem dedico esta tese e que é a maior responsável
por tudo de bom que tem me acontecido na vida. Na nossa luta pela sobrevivência, sua garra e
destemor diante das intempéries da injustiça social e da desigualdade de gênero lograram-nos, a
mim e a minha irmã, a possibilidade de viver os dias na sua melhor forma. Agradeço também ao
meu pai, Francisco Bruno Silva do Rego, bem como ao apoio importante da minha irmã Thayse
Vieira Cosme e meu cunhado Melqui Cosme, além de outros queridos parentes que sempre
torceram e se comprouveram com meu sucesso e de uma maneira ou de outra também me
apoiaram, como minhas tias paternas Rute e Ana Fortunato, Conceição Fernandes, Maria José do
Rego, minha avó paterna Odete Fortunato, e minhas tias maternas Gilceia, Gildete e Eliane Vieira,
e meus primos Herbert e Juliane Vieira.
Aos brasileiros que encontrei em Tucson: Lucas Reis e Everton; e, especialmente a Carolina
Lixa por todos nossos momentos. Foi bom ouvir o bom português brasileiro e dividir um pouco
dessa experiência com vocês.
Às amigas e colegas doutorandas da EA/UA, especialmente a Saffo Papantonopoulou por
tantas conversas instigantes sobre nossos objetos de pesquisa e os problemas do mundo, e a Jessica
Nelson por sua simpatia, companhia e conversas tão agradáveis.
Aos amigos e colegas acadêmicos no PPGAS/UFRN que me ouviram tantas vezes falar
dessa pesquisa e por nosso companheirismo diverso: Jociara Nóbrega, Paulo Gomes Filho, Maycon
Cunha. Aos outros amigos com quem compartilhei muito desse processo: Bruno Oliveira, Kássia
Gomes, Isabela Christina e Tatiane Barros. Ao Arthur Vinícius Ferreira e a Étienne Ferreira por
seu afável apoio e boa companhia. Ao meu amigo, que se tornou um irmão, Arthur Costa Novo,
por toda companhia e apoio amável que tem me proporcionado ao longo desse processo.
Aos queridos João Pedro Sant’Anna, amigo dos tempos de Orkut, que me ajudou revisando
o abstract, e ao seu pai Rutônio Sant’Anna que me auxiliou com a pesquisa no acervo da Fundação
Biblioteca Nacional do Brasil no Rio de Janeiro, sem o que não teria encontrado rico material
histórico sobre medicina trans. E, a Marta Oliveira pelo resumo em espanhol.
Aos colegas com quem trabalhei na revista Equatorial por ter sido ali um lugar de muito
aprendizado editorial, especialmente à generosidade criativa da profa. Angela Facundo.
Aos estadunidenses que se tornaram companhias queridas, adoçando meus dias em Tucson:
Britney Palomarez, Stephanie Wesley, Ashley Jernigan, Cameron Louie, Zoe Lamb, Alana Varner,
Sean MacVoy, Lenaie Oldham, Albert Jaime. Ao Brian Hannah que me apresentou a todos eles,
em primeiro lugar. Ao David Cervantes e receptividade de sua família. A uma das famílias mais
fascinantes que já conheci, os DeMars, através de Peter e Els-Marie, Sean, Lisette, Nicole e Adam
pela acolhida tão carinhosa e generosidade insólita, me convidando para suas casas, festejos
familiares, me mostrando a cidade, se preocupando com meu bem-estar, e compartilhando
angústias e esperanças sobre um mundo mais justo e igualitário. Aos meus housemates Stephanie
e Sean que se tornaram pessoas tão queridas e tão bem receptivas como irmãos calorosos.
Aos amigos e às amigas que conheci em Fortaleza, cuja companhia foi valorosa na minha
estadia na cidade, sendo também guias e orientadores no campo que me fizeram afeiçoar tão
profundamente pelo Ceará: Kaio Lemos, Lúcia Silva, Tel Cândido, Magda Almeida, Dário Bezerra,
Rodrigo Alves, Larícia Keury, Apollo Martins, Débora Britto, Fabíola Diógenes, Labelle Rainbow,
Daliliane e Otávio Queiroz, Felipe Lopes, entre outros. A todos os integrantes da Associação
Transmasculina do Ceará (ATRANSCE) que foram interessados nessa pesquisa, pela disposição
de tempo para responder às entrevistas e simpática receptividade para observação de seus
cotidianos, principalmente nas figuras de Kaio, Apollo e Dioniso.
Ao Hospital de Saúde Mental Prof. Frota Pinto, em Messejana, por ter permitido a
realização da pesquisa em suas dependências, especialmente ao coordenador do ATASH e do
SERTRANS Dr. Henrique Luz e a Diretora Geral do Hospital Dra. Magaly Mendes, e demais
funcionários que tão gentilmente cederam parte de seu tempo para me ouvir e responder.
Aos funcionários e às funcionárias do Centro de Referência Janaína Dutra, especialmente
ao coordenador Tel Cândido que tão simpaticamente me recebeu e cuja observação do dia a dia
foi possibilitada e que se tornou uma grande contribuição para essa pesquisa. Acompanhar
etnograficamente essa iniciativa tão valorosa me deixou marcas indeléveis.
Ao Grupo de Resistência Asa Branca (GRAB), principalmente nas figuras dos queridos
Dário Bezerra e Francisco Pedrosa pela generosa recepção às minhas visitas, pelas escutas aos meus
questionamentos e por terem tão gentilmente permitido que eu realizasse consulta ao seu vasto e
valiosíssimo arquivo.
A todos os interlocutores e às interlocutoras que participaram dessa pesquisa, dispensando
tempo de suas vidas para responder a entrevistas e por ter suportado um antropólogo os seguindo
nos seus trabalhos, nas suas casas, nos serviços de saúde, engajamentos políticos e vida pessoal.
Para além da obviedade de que sem vocês essa pesquisa não teria sido feita, lhes agradeço
imensamente por terem compartilhado um pouco de suas histórias e de suas lutas comigo e por
boa parte ter se tornado minha amiga, por ter me afetado e se tornado fonte arrebatadora de
inspiração para a vida.
This constant change in the content of culture, even
of whole cultural styles, is the sign of the infinite
fruitfulness of life. At the same time, it marks the
deep contradiction between life's eternal flux and the
objective validity and authenticity of the forms
through which it proceeds. It moves constantly
between death and resurrection – between
resurrection and death.
– Georg Simmel (1968 [1921]).
When we ask what is the matter with someone, we
are often in search of a diagnosis and a cure. If,
alternatively, we ask what matters to someone, we
are asking after their taste of the world – how it looks
to them, what is salient and what irrelevant.
– Henry Rubin (2003).
RESUMO
Esta tese busca compreender o processo sociopolítico e cultural de legitimação da supervisão biomédica da
transição de gênero enquanto matéria de saúde pública. O material empírico no qual esse trabalho se baseia
foi construído por meio de etnografia cuja observação participante contou com análise de documentos,
entrevistas de longa duração, estudo de acervos historiográficos e da literatura médico-psi especializada.
Acompanhou-se a mobilização de homens trans e demais sujeitos transmasculinos, bem como o trabalho
de médicos e outros profissionais de saúde e funcionários estatais no contexto institucional e pessoal, sejam
em serviços de saúde, em espaços de socialidade, de ativismo ou de governo para entender suas atuações e
experiências. Ao partir da região metropolitana correspondente a cidade de Fortaleza, no Ceará, procurou-
se gerar um quadro da heterogeneidade dos agentes implicados na conformação da atenção à saúde trans
como um instrumento básico à cidadania e como espaço de atividade científica benéfica à vida. Assim,
privilegia-se a descrição de interpretações locais de grupos sociais distintos, mas que entram em relação para
estabelecer a pertinência de uma transição biologicamente segura. O presente texto se concentra em dar
relevo aos fluxos de saberes das ciências bioquímicas, e não apenas das psi, ao lado das transformações da
abordagem médica diante das transexualidades. Com isso, descreve-se as estratégias políticas que permitem
a sujeitos trans reclamar a necessidade de cobertura pública da assistência médica e da sua apropriação em
diversos termos. Ao se preocupar com esse cenário, evidenciam-se as formas que as políticas da vida
assumem na contemporaneidade e como estão aí incluídos processos trans de medicalização e de produção
da ciência que permitem a existência e o aperfeiçoamento do eu diante de intervenções clínicas e cirúrgicas,
bem como as produções de conflitos e contradições. Nesse sentido, a produção de reinterpretações do
conhecimento biomédico, atrelada a mobilização social por serviços de saúde estruturados pelo Estado
constituiu um ativismo biossocial que politiza as modificações corporais também em níveis moleculares.
Essas interações orgânicas devem ser controladas pela assistência biomédica para que adoecimentos
decorrentes sejam prevenidos. Assim, assiste-se a novas feições da medicina trans que se coloca de uma
maneira diferenciada em relação às primeiras abordagens patologizantes, as quais formam uma cena
multifacetada de visões divergentes. Isso tudo possibilita a formação de um campo social específico à saúde
trans como matéria de política e de ciência. Esse é um recorte da vida social observada, e, nesse sentido,
investiu-se na exposição de experiências etnográficas que demarquem práticas corporais, agências,
subjetivação, movimentos por direitos em saúde, trajetórias biográficas, cuidado, itinerários terapêuticos,
processos de adoecimentos, dinâmicas profissionais, produção científica de conhecimentos, intervenções
biomédicas e a formação do Estado brasileiro através da circunscrição sociológica do Processo
Transexualizador no Sistema Único de Saúde.
Palavras-chave: Saúde trans. Medicina trans. SUS. Direitos. Transexualidade. Ceará. Saúde Pública.
Biocidadania. Ativismo biossocial. Transição de gênero. Biopolítica. Processos de subjetivação. Homens
trans. Brasil. Antropologia da Saúde. Etnografia.
RESUMEN
La seguridad biológica en la transición de género: una etnografía de las políticas de la vida en el
campo social de la salud trans en Brasil
Esta tese busca comprender el proceso sociopolítico y cultural de legitimación de la supervisión biomédica
de la transición de género mientras materia de salud pública. El material empírico en el cual ese trabajo se
basa fue construido por medio de etnografía cuya observación participante contó con el análisis de
documentos, entrevistas de larga duración, estudio de acervos historiográficos y de la literatura médica
especializada. Se acompañó la movilización de hombres trans y demás sujetos trans masculinos, como
también el trabajo de médicos y otros profesionales de salud y funcionarios estatales en el contexto
institucional y personal, sean en servicios de salud, en espacios de sociabilidad, de activismo o de gobierno
para entender sus actuaciones y experiencias. A partir de la región metropolitana correspondiente a la ciudad
de Fortaleza, Ceará/CE, se buscó generar un cuadro de heterogeneidad de los agentes implicados en la
conformación de la atención a la salud trans como un instrumento básico a la ciudadanía y como espacio de
actividad científica benéfica a la vida. Así, se privilegia la descripción de interpretaciones locales de grupos
sociales distintos, pero que entran en relación para establecer la pertinencia de una transición biológicamente
segura. El presente texto se concentra en dar importancia a los flujos de saberes de las ciencias bioquímicas,
y no solo de las ciencias psicológicas, al lado de las transformaciones del abordaje médico delante de las
transexualidades. Con eso, se describe las estrategias políticas que permiten a los sujetos trans reclamar la
necesidad de cobertura pública de asistencia médica y de su apropiación en diversos termos. Al se preocupar
con ese escenario, se evidencian las formas que las políticas de la vida asumen en la contemporaneidad y
cómo están incluidos procesos trans de medicalización y de producción de la ciencia que permiten la
existencia y el perfeccionamiento del yo delante de intervenciones clínicas y quirúrgicas, bien como las
producciones de conflictos y contradicciones. En ese sentido, la producción de reinterpretaciones del
conocimiento biomédico, vinculada a la movilización social por servicios de salud estructurados por el
Estado constituye un activismo biosocial que politiza las modificaciones corporales también en niveles
moleculares. Esas interacciones orgánicas deben ser controladas por la asistencia biomédica para que
enfermedades decurrentes sean prevenidas. Así, se asiste nuevas características de la medicina trans que se
coloca de una manera diferenciada con relación a los primeros abordajes patologizantes, las cuales forman
una escena de múltiples visiones divergentes. Eso todo posibilita a la formación de un campo social
específico a la salud trans como materia política y de ciencia. Ese es un recorte de la vida social observada,
y, en ese sentido, se invirtió en la exposición de experiencias etnográficas que demarquen prácticas
corporales, agencias, subjetivación, movimientos por los derechos en la salud, trayectorias biográficas,
cuidado, itinerarios terapéuticos, procesos de enfermedades, dinámicas profesionales, producción científica
de conocimientos, intervenciones biomédicas y la formación del Estado brasileño a través de la
circunscripción sociológica del Proceso Transexualizador en el Sistema Único de Saúde.
Palabras-clave: Salud trans. Medicina trans. SUS. Derechos. Transexualidad. Ceará. Salud Pública.
Biociudadanía. Activismo biosocial. Transición de género. Biopolítica. Procesos de subjetivación. Hombres
trans. Brasil. Antropología de la Salud. Etnografía.
ABSTRACT
Biological Safety in Gender Transition: An Ethnography of Life Politics in the Social Field of
Transgender Health in Brazil
This thesis seeks to understand the socio-political and cultural process of legitimacy for the biomedical
supervision of the gender transition as a matter of public health. The empirical material on which this work
is based was built through ethnography whose participant observation included document analysis, long-
term interviews, a study of historiographic collections, and specialized medical-psi literature. The
mobilization of trans men and other transmasculine subjects was followed, as well as the work of medical
doctors and other health professionals and state employees in their institutional and personal context,
whether in health services, in spaces of sociality, activism or government to comprehend their performances
and experiences. Departing from the metropolitan region corresponding to the city of Fortaleza, in the state
of Ceará, we sought to generate a picture of the heterogeneity of the agents involved in the making-up of a
health care as a basic instrument for trans citizenship and as a space for scientific activity beneficial to life.
Thus, it privileges the description of local interpretations of different social groups, but which come into
relationship to establish the relevance of a biologically safe transition. The present text focuses on
highlighting the knowledge flows of biochemical sciences, and not only of those named as psi, alongside
the changes in the medical approach to transsexualities. Thus, the political strategies that allow trans subjects
to claim the need for public coverage of medical care and its appropriation in different terms are described.
When concerned with this scenario, it evidences the forms that life politics assume in contemporary times
and how they include trans processes of medicalization and production of science that allow the existence
and improvement of the self in the face of clinical and surgical interventions, as well as the production of
conflicts and contradictions. In this sense, the production of reinterpretations of biomedical knowledge,
linked to social mobilization by health services structured by the State, constituted biosocial activism that
politicizes bodily changes also at molecular levels. These organic interactions must be controlled by
biomedical assistance so that the resulting illnesses are prevented. Thus, we are witnessing new features of
trans medicine that are placed differently concerning the first pathological approaches, which form a
multifaceted scene of divergent views. This all makes possible the formation of a specific social field to trans
health as a matter of politics and science. This is an excerpt of the observed social life, and, as such, we
invested in the exhibition of ethnographic experiences that demarcate: body practices, agencies,
subjectivation, movements for health rights, biographical trajectories, care, therapeutic itineraries, illness and
disease process, professional dynamics, discourses around identity, scientific production of knowledge,
biomedical interventions and the formation of the Brazilian State-nation through the sociological
circumscription of the Transexualizador Process in its Unified Health System.
Keywords: Transgender Health. Trans- Medicine. SUS. Rights. Transsexuality. Ceará. Public Health.
Biosocial Activism. Gender Transition. Biopolitics. Subjectivation processes. Transgender Men. Brazil.
Medical Anthropology. Ethnography.
RÉSUMÉ
La sécurité biologique dans la transition de genre: une ethnographie des politiques de vie dans le
champ social de la santé trans au Brésil
Cette thèse cherche à comprendre le processus sociopolitique et culturel de légitimation de la supervision
biomédicale de la transition de genre en matière de santé publique. Le matériel empirique sur lequel ce travail
est basé a été construit à travers l'ethnographie dont l'observation participante comprenait l'analyse de
documents, les entretiens de longue durée, l’étude des collections historiographiques et la littérature
spécialisée médicale-psi. La mobilisation des hommes trans et autres sujets trans masculins a été suivie, ainsi
que le travail des médecins et autres professionnels de la santé et des agents de l'État dans le contexte
institutionnel et personnel, que ce soit dans les services de santé, dans les espaces de socialité, d'activisme
ou de gouvernement pour comprendre leurs performances et leurs expériences. En partant de la région
métropolitaine correspondant à la ville de Fortaleza, au Ceará, nous avons cherché à générer une image de
l'hétérogénéité des agents impliqués dans la formation des soins de santé comme instrument de base de la
citoyenneté trans et comme espace d'activité scientifique bénéfique à la vie. Ainsi, il est privilégié de décrire
des interprétations locales de différents groupes sociaux, mais qui entrent en relation pour établir la
pertinence d'une transition biologiquement sûre. Le présent texte se concentre sur la mise en évidence des
flux de connaissances des sciences biochimiques, et pas seulement du psi, aux côtés des transformations de
l'approche médicale face aux transsexualités. Ainsi, les stratégies politiques qui permettent aux sujets trans
de revendiquer la nécessité d'une couverture publique des soins médicaux et leur appropriation en différents
termes sont décrites. Concernant ce scénario, les formes que les politiques de la vie prennent à l'époque
contemporaine et comment les processus trans de médicalisation et de production de science qui permettent
l'existence et l'amélioration de soi face aux interventions cliniques et chirurgicales sont mises en évidence,
ainsi que la production de conflits et de contradictions. En ce sens, la production de réinterprétations des
connaissances biomédicales, liées à la mobilisation sociale des services de santé structurés par l'État, a
constitué un activisme biosocial qui politise les changements corporels également au niveau moléculaire.
Ces interactions organiques doivent être contrôlées par une assistance biomédicale afin de prévenir les
maladies qui en résultent. On assiste ainsi à de nouvelles caractéristiques de la médecine trans qui se placent
différemment par rapport aux premières approches pathologiques, qui forment une scène multiforme de
points de vue divergents. Tout cela rend possible la formation d'un champ social spécifique à la santé trans
en tant que question politique et scientifique. Il s'agit d'un extrait de la vie sociale observée et, en ce sens, il
a été investi dans l'exposition d'expériences ethnographiques qui délimitent les pratiques corporelles, les
agences, la subjectivation, les mouvements pour les droits à la santé, les trajectoires biographiques, les soins,
les itinéraires thérapeutiques, les processus de la maladie, la dynamique professionnels, la production
scientifique de connaissances, les interventions biomédicales et la formation de l'État brésilien à travers la
circonscription sociologique du Processus Transexualizador dans le Système de Santé Unifié.
Mots-clés: Santé trans. Médecine trans. SUS. Droits. Transsexualité. Ceará. Santé publique. Biocity.
Activisme biosocial. Transition de genre. Biopolitique. Processus de subjectivation. Hommes trans. Brésil.
Anthropologie de la santé, ethnographie.
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
ABPS Associação Brasileira de Psicodrama e Sociodrama
ABRASITTI Associação Brasileira Profissional pela Saúde Integral de Pessoas Trans,
Travestis, Transexuais e Intersexo
ACETRANS Associação Cearense de Homens Trans
ANTRA Associação Nacional de Travestis e Transexuais
APA Associação Psiquiátrica Americana
APS Atenção Primária à Saúde
ABS Atenção Básica à Saúde
ATASH Atendimento Ambulatorial em Sexualidade Humana (HSM)
ATRAC Associação de Travestis do Ceará
ATRANSCE Associação Transmasculina do Ceará
CID Classificação Internacional de Doenças da OMS
CR Centro de Referência LGBT Janaína Dutra
DSM Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders
FEBRAP Federação Brasileira de Psicodrama
GRAB Grupo de Resistência Asa Branca
HSM Hospital de Saúde Mental Prof. Frota Pinto
IBRAT Instituto Brasileiro de Transmasculinidades
LAMCE Grupo Liberdade do Amor entre Mulheres Lésbicas do Ceará
LGBT Lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais
MEAC Maternidade-Escola Assis Chateaubriand
OMS Organização Mundial da Saúde
PT Partido dos Trabalhadores
SBRASH Sociedade Brasileira de Estudos em Sexualidade Humana
SERTRANS Ambulatório Serviço de Referência Transdisciplinar para Transgêneros
SoC/WPATH Standards of Care, da World Professional Association for Transgender
Health
WPATH World Professional Association for Transgender Health
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Figura 1 Mapa Político da Cidade de Fortaleza, Ceará............................................... 59
Figura 2 Mapa de sítios do trabalho de campo.......................................................... 77
Figura 3 O indivíduo psicologizado.......................................................................... 115
Figura 4 Reportagem “Mudança de sexo, pioneirismo na AL” n’O Estado de S. Paulo 121
Figura 5 Tributo ao Dr. Roberto Farina pelo Gender Networker.............................. 126
Figura 6 Quadro de Sintomas do Critério A do diagnóstico de Disforia de Gênero
do DSM-5.................................................................................................. 161
Figura 7 “Disforia”, de Jorge Oliveira...................................................................... 199
Figura 8 Mapa dos Serviços com atendimento em saúde trans.................................. 220
Figura 9 Mapa de itinerários terapêuticos de transição de gênero.............................. 233
Figura 10 Divulgação da Audiência Pública da DPGE................................................ 246
Figura 11 A Mesa...................................................................................................... 249
Figura 12 Os especialistas.......................................................................................... 250
Figura 13 Gráfico “Sou” ........................................................................................... 260
Figura 14 Convocação da Campanha para o Ambulatório Transexualizador no
Ceará......................................................................................................... 296
LISTA DE TABELAS
Tabela 1 Lista genérica e cronológica de experiências etnográficas............................. 78
Tabela 2 Relação de homens trans / transmasculinos entrevistados........................... 82
Tabela 3 Relação de médicas e médicos entrevistados.................................................. 87
Tabela 4 Classificação diagnóstica da transexualidade no DSM (1952-2013).............. 156
Tabela 5 Serviços e áreas profissionais no Processo Transexualizador atual............... 226
Tabela 6 Síntese dos procedimentos oferecidos no Processo Transexualizador......... 221
Sumário
– Introdução – ................................................................................................................................. 18
A saúde trans como problema de pesquisa........................................................................................................ 18
As tensões brasileiras entre gênero e sexualidade ............................................................................................. 30
A biomedicina contemporânea e a heterogeneidade do campo social da saúde trans ............................... 44
“Primeiro o meu Ceará” ....................................................................................................................................... 51
A escrita e a organização desta tese .................................................................................................................... 60
– Capítulo 1 – Um exercício de objetivação participante ................................................................ 64
1.1. O etnógrafo objetivado ................................................................................................................................. 64
1.2. Primeiros passos numa rede ......................................................................................................................... 67
1.3. Chegando em Fortaleza ................................................................................................................................. 73
1.4. Acompanhando e entrevistando homens trans e outros sujeitos transmasculinos ............................. 80
1.5. A etnografia de/entre setores estatais ......................................................................................................... 83
1.6. Seguindo médicos, cientistas e práticas científicas .................................................................................... 85
1.7. Reflexividade, ética antropológica e o Comitê de Ética da UFRN ........................................................ 88
1.7.1. A vida cotidiana da pesquisa ................................................................................................................. 88
1.7.2. O antropólogo sob o teste do desejo e da subjetividade .................................................................. 92
1.8. Compreendendo escalas ................................................................................................................................ 95
– Capítulo 2 – Os fluxos socioculturais da transexualidade............................................................ 96
2.1. Quando o todo é uma parte.......................................................................................................................... 96
2.2. Um antropólogo e um assunto espinhoso ............................................................................................... 102
2.3. Uma breve história da ciência sexual ......................................................................................................... 111
2.4. O caso brasileiro: a “heterossexualidade de alma” .................................................................................. 117
2.5. A explicação da raridade clínica ................................................................................................................. 127
2.6. A produção cultural cearense e as políticas da representação trans ..................................................... 131
2.7. Quando a parte é um todo .......................................................................................................................... 141
– Capítulo 3 – Corpo, aflição e adoecimento na linguagem das emoções .................................... 144
3.1. Na trilha da etnografia ................................................................................................................................. 144
3.2. Sob a ciência de um manual de saúde ....................................................................................................... 152
3.3. Contra a patologia ........................................................................................................................................ 166
3.4. Transição de gênero, adoecimento e emoções ........................................................................................ 174
3.4.1. A disforia como categoria classificatória do sofrimento ................................................................ 180
3.4.2. Fibromialgia: outra dor contestada .................................................................................................... 186
3.4.3. Um enfermo cuidando de si mesmo.................................................................................................. 189
3.4.4. Enquanto a mamoplastia não vem ..................................................................................................... 193
3.4.5. A linguagem dominante contra si mesma ......................................................................................... 198
3.5. A conquista da cidadania em saúde ........................................................................................................... 204
– Capítulo 4 – A política de saúde trans e os processos de formação de Estado .......................... 206
4.1. À procura de atenção...................................................................................................................................... 206
4.2. Uma construção de processos estatais e o campo da saúde .................................................................. 213
4.3. Os efeitos sociais do Processo Transexualizador .................................................................................... 216
4.4. A conquista do biológico ............................................................................................................................ 237
– Capítulo 5 – Biologia como política ........................................................................................... 239
5.1. A vida e a política ......................................................................................................................................... 239
5.2. O governo pela esperança ........................................................................................................................... 244
5.3. Os caminhos da biopolítica ........................................................................................................................ 257
5.4. Breve recurso à história de um começo .................................................................................................... 273
5.5. Em nome dos direitos, reunidos no templo ............................................................................................ 286
5.6. “Eu também quero ser SUS”...................................................................................................................... 293
5.7. Vidas em risco e ativismo biossocial ......................................................................................................... 299
5.8. Conflitos sociais e saúde .............................................................................................................................. 311
– Capítulo 6 – Sensibilidades e medicina trans no sertão ............................................................. 313
6.1. Para uma antropologia da medicina trans à brasileira............................................................................. 313
6.2. Formação e dinâmica do cenário médico cearense ................................................................................. 322
6.3. Trajetórias de sensibilização e carreira médica ........................................................................................ 327
6.4. Visões afirmativas ......................................................................................................................................... 348
– Conclusão – As políticas do cuidado na saúde trans ................................................................. 350
– Referências – .............................................................................................................................. 360
Anexo 1 – Sinopse de A Força do Querer ...................................................................................... 395
Anexo 2 - Quadro sinótico. Ambulatórios TT no Brasil. .............................................................. 396
18
– Introdução –
A saúde trans como problema de pesquisa
No final do segundo semestre de 2019, em Fortaleza, a Secretaria de Estado de Saúde do
Ceará (SESA) concluiu, junto ao Ministério da Saúde, a regulamentação de um Serviço de Atenção
Ambulatorial Especializado no Processo Transexualizador com instalação no Hospital de Saúde
Mental Prof. Frota Pinto conhecido popularmente como “o Mental”. Ao ser reformado para os
novos pacientes fora anunciado em ocasiões políticas como “medida sensível” da gestão do
governador Camilo Santana (PT). Embora alguns procedimentos cirúrgicos tenham sido realizados
noutro serviço da cidade a título experimental, não existia nenhum Serviço de Atenção Hospitalar
Especializado regulamentado nesse sentido até então no Sistema Único de Saúde (SUS) da região.
Essas são as duas atenções que compõem atualmente a política de saúde trans brasileira como parte
da Política Nacional de Saúde Integral LGBT lançada em 2008 pelo Ministério da Saúde. O que
poderia parecer uma simples assinatura de papeis burocráticos e um arranjo técnico em saúde, é,
na verdade, o resultado de um amplo, intrincado e longo processo sociopolítico – e cultural – de
instituição de um campo de saúde no qual pessoas precisaram ocupar posições sociais enquanto
pacientes1, ativistas políticos, profissionais de saúde, médicos, cientistas, técnicos e burocratas
estatais na formação de um universo social próprio de uma outra legitimidade médica e social para
a transexualidade. Esse ambulatório é tanto “um resultado” como tem sido um grande eixo de
atração animadora da atenção à saúde, ao cuidado e aos direitos trans no Brasil.
Entretanto, essa tese não é estritamente sobre o nascimento dessa política de assistência
nem é sobre o surgimento desse serviço em Fortaleza, mas trata do universo social que os torna
1 Havia no campo um uso difuso dos termos cliente e paciente para se referir àquele indivíduo que recebia cuidados e consultava um
profissional de saúde. O uso de cliente buscava demarcar uma visão de que quem estava sendo cuidado era um sujeito autônomo que
contratava ou utilizava um serviço. Acontece que paciente também poderia ocupar esse sentido. Mesmo compreendendo o intuito
do termo cliente, principalmente por médicos e médicas, prefiro usar aqui paciente ao me referir a sujeitos quando estiverem em relação
com médicos por considerar que apesar da busca pela demarcação da autonomia de todos os envolvidos no processo terapêutico a
posição desse profissional continua sendo a de alguém que detém um conhecimento e foi treinado para atuar num serviço de saúde.
Uma relação que implica cuidadores e cuidados mesmo que aquele que recebe cuidado também se cuide. O termo cliente, contudo,
se torna cabível quando há uma relação social monetizada entre o paciente pagante e o profissional que oferece um serviço pago.
Então, meu uso do termo paciente busca deixar em evidência a existência dessas relações e as posições dos sujeitos nelas, bem como
o âmbito governamental de onde partem. Assim, não concebo que palavras isoladas possam esclarecer seus sentidos sem
descrevermos o contexto no qual ganham vida.
19
possíveis e que os extrapola. Objetivo entender quais foram as condições sociais para a constituição
brasileira do que chamarei de campo social de saúde trans. Posiciono no coração dessa inquirição a
busca pela compreensão de como tal legitimidade foi operada coletivamente junto da consolidação
da figura do homem trans no âmbito da cidadania, como identidade social e enquanto foro
terapêutico. Para tanto, descrevo e pergunto quem e quais foram os agentes, as forças e os campos
sociais – e a relação entre eles – que se construíram e atuaram para erigir cuidados voltados a
pessoas que transicionam entre gêneros/sexos como um objeto legítimo aos esforços estatal e
científico em torno do SUS. Isso se coloca para responder principalmente: em que consiste, no
presente, essa legitimidade médica ou em saúde para a transexualidade? Nesse sentido, essa tese
disserta sobre mudanças: mudanças sociais no campo das identidades, da sexualidade, das
subjetividades, das políticas e do poder, dos corpos, das instituições, do cuidado e da organização
social. Os dados empíricos construídos aqui advêm primordialmente de etnografia realizada na
cidade de Fortaleza e sua região metropolitana e alcançam o quadro nacional e exterior ao país cujo
contexto se insere, se diferencia e movimenta cultural, política e socialmente. A tese procura
observar elementos culturais próprios às dinâmicas cearenses e àquilo que as transborda, não
visando replicar um “estudo de comunidade” nem sucumbir à “tentação da ilha”, mas dar conta da
“complexidade” que caracteriza, a seu modo, a vida urbana e a sociedade a nível regional e nacional.
Quero entender o que se mostrou ser uma interconexão de diferentes níveis e escalas do problema
da pesquisa. Além do mais, esse trabalho não se restringe ao que é comumente entendido como
“saúde” porque tal campo não existe como uma ilha e tudo mais que acontece “fora” dele lhe afeta
e é por ele influenciado de algum modo. As paredes dos serviços não cerram a “saúde”.
A perspectiva antropológica sobre a saúde a compreende como uma categoria que agrupa,
de maneira larga, representações, práticas, relações, saberes, discursos, instituições e espaços
socioculturais e políticos que buscam inscreverem-se como formadores e explicativos da vida
humana e dos processos físico-morais2 que a atravessa, e não se restringe a questões envolvendo
processos de adoecimento e cura. Mesmo considerando a diversidade subdisciplinar, saúde se refere
a tudo aquilo que produz e rompe a vida e os saberes construídos para explicá-la e resolver
problemas percebidos. A disciplina estuda os processos de saúde e doença, suas categorias e
tratamentos, o corpo, biotecnologias, sistemas de atenção à saúde como fenômenos sociais
circunscritos por contextos econômicos, políticos, ecológicos e culturais. Como mostra Didier
Fassin (2012 [2005]), a área da disciplina preocupada com a saúde tem se desenvolvido
grandemente desde suas preocupações com aquilo que define a vida e suas classificações. Assim
2 Luiz Fernando Dias Duarte (1994) propôs o uso de físico-moral ao invés de biopsicossocial como uma forma de contrabalancear o
dualismo corpo e mente que deu nascimento à locução e noção de doença mental, e assim assumir uma postura comparativa e
relativista.
20
como o autor, me a alinho a uma antropologia das políticas da vida para compreender formulações
sobre a saúde e a saúde mental como categorias da biomedicina “ocidental” (e ocidentalizada), mas
que estão situadas num vasto mundo social com outros agentes. De modo similar ao quadro francês
que Fassin (2012) descreve, a saúde apareceu em campo como um resultado da ausência de doença
ou como produção de bem-estar fruto de interações de órgãos e elementos moleculares. Havia
ainda um forte engajamento para mostrar que as relações sociais podiam fazer adoecer e impediam
o manejo de recursos para se manter uma vigília diante da biologia dos corpos. Assim, estive
preocupado teórico-metodologicamente com diferentes objetos que implicam referências também
diversas: serviços de saúde, documentos e agentes estatais e militantes, perspectivas e trajetórias
individuais de médicos, dinâmicas sociais, protocolos biomédicos, organizações políticas, produção
de conhecimento científico, socialidades e sociabilidades, processos estatais, representações sociais
e práticas sociais e corporais. Além disso, procurei olhar para o cenário de arte e de produção
midiática, jornalística e teatral como uma forma de ultrapassar linhas definitivas entre o que poderia
ser considerado interno e externo e enquanto uma maneira de verificar o alcance do objeto geral
base para a discussão que empreendo aqui, dado a crescente mediação que caracteriza a sociedade
brasileira e os lugares que a produção cultural tem na disseminação e conformação de práticas e
saberes, isto é, na sua capacidade de tornar público os problemas analisados. Isso também
corresponde a minha preocupação de não subsumir as vidas que observei em considerações
biomédicas isoladas. Procurei me manter fiel a essa visão, segundo um holismo metodológico
(Duarte, 1998b), que tem caracterizado tanto a antropologia para dar conta de um campo que se
apresenta como vasto e intrincado na sua diversidade e reprodução social. Por isso, no decorrer da
tese, a etnografia integra análises concorrentes a esses domínios e seus agentes sociais, uma vez que
participam, afetam e são produzidos pelo cenário da saúde trans.
O universo social da transexualidade se refere, assim, a dinâmicas sociais e políticas de um
cenário de diversos agentes reunidos pelas explicações, disputas, controvérsias e contradições
diante da biomedicina que tem a circunscrito como um contingente específico de intervenções,
pessoas e corpos. Conforme vi em campo, essa medicina não é apenas biológica, ela é tanto física
como química, e a clínica não é levada à prática apenas com questões psicológicas. Isso tanto tem
solapado diferenças relativas a processos de “mudança de gênero” desde muito presentes em
diferentes grupos sociais ocidentalizados e sociedades autóctones ao redor do mundo, como tem
sido uma dimensão concorrente de outras formas que compõem uma diversidade sexual e de
gênero no presente (ver Connell, 2012). Além disso, é possível dizer que não há um controle
absoluto, mas sujeitos, redes e relações heterogêneas que tem a biomedicina como um eixo de
atração. O que não é o mesmo de dizer que sempre existiu a transexualidade em toda a história e
21
em todas as culturas humanas, mas que a irradiação do conhecimento médico tem percorrido desde
suas formulações iniciais o mundo inteiro. Mesmo que eu considere que as transexualidades não
são as únicas formas de organização e conferição de sentido biossocial dessas experiências, esta
tese se restringe em seu escopo, objetivos e alcances.
Aproximo-me também do que Marcos Benedetti (2005, p. 17) concebeu com o conceito
de “universo trans” para se referir principalmente às experiências de travestis brasileiras por ver
nessa expressão uma forma de “ampliar o leque de definições possíveis no que se refere às
possibilidades de ‘transformações do gênero’”. Conforme continua o autor, “esta denominação
pretende abranger todas as ‘personificações’ de gênero polivalente, modificado ou transformado,
não somente aquelas das travestis”. Partindo de Benedetti, Larissa Pelúcio (2009, p. 24) chamou de
“universo travesti” um complexo de relações sociais que não apenas integra esses sujeitos, mas
também a clientela e tudo aquilo que entra em contato com elas no mercado sexual de um “universo
da noite” (enquanto Benedetti chama de “mundo da noite”) de prostituição para dar conta de um
sistema moral e material. Essas duas formulações teóricas são importantes na minha compreensão
de um universo específico que não é o mesmo de Benedetti ou de Pelúcio. Isto porque este mundo
social que descrevo é atravessado intimamente com as experiências de homens transexuais e outras
pessoas tidas pela categoria de transmasculinidade – uma tentativa desse cenário de diversificar
identificações com a masculinidade desde aqueles que nasceram identificadas como mulheres.
Assim, crio os seguintes objetivos específicos a serem discutidos e integrados ao problema
geral desta pesquisa: a) entender como a consolidação da figura social de homens trans contribui
para a organização e constituição da saúde trans em Fortaleza e na sua inserção nacional; b)
descrever os modos de (auto)cuidado em saúde e a construção de relações e interpretações sobre
processos de adoecimento paralelos ou relativos a transição de gênero, observando itinerários
terapêuticos, acessos a serviços, dinâmicas médico-paciente e disputas e apropriações dos saberes
biomédicos e psi; c) compreender os efeitos sociológicos para a política e para a atenção à saúde
trans do Processo Transexualizador do SUS e como isso se insere no quadro mais geral das políticas
de governo voltadas a diversidade sexual e de gênero no país; d) descrever como a transição de
gênero é reestabelecida como uma prática médica saudável e as diferenciações quanto a isso entre
ativistas e pacientes trans, profissionais de saúde e agentes de governo; e) descrever e entender a
constituição de um campo de atuação de médicos e médicas que constroem-se como profissionais
sensíveis à transexualidade, observando suas trajetórias biográficas, práticas clínicas, concepções
sobre sexo, disputas e conflitos que se inserem e as interpretações e explicações que constroem
sobre a vida humana para o entendimento e abordagem biomédica.
22
Como já têm demonstrado muitas pesquisas antropológicas e sociológicas – às quais faço
referência ao longo da tese – a transexualidade está, como universo reunidor de categorias de
pessoas, estreitamente ligado ao desenvolvimento e dinâmicas da biomedicina e, conforme os
homens trans têm ascendido à cena política, essa conexão tem ganhado novos relevos na sociedade
brasileira contemporânea. Tem se tornado, desde seu início como diagnose até sua transformação
e apropriação despatologizada, um núcleo no qual se expõem, se disputam e se produzem limites,
contatos, práticas e ideias sobre as relações entre natureza e cultura. Mas esse universo social é
muito amplo e não envolve apenas questões e contextos relacionados à saúde; existem gamas
variadas de cenários como de atividade judiciária, parentesco, assistencial, educacional, doutrinas
religiosas, e tudo mais que emerge como relevante tendo em vista o atravessamento da
transexualidade, isto é, esse contexto não contempla tudo sobre essas experiências, mas é nessa
dinâmica que estou aqui interessado. Em muito inspirado na metáfora espacial da sociologia dos
campos de Pierre Bourdieu (ex. 1989), pretendo dar conta de uma parcela do que compreendo ser
o campo social da saúde trans. Entendo isso como a integração de campos sociais cujos agentes,
saberes, instituições e práticas, ao atuarem entre si e ao se produzirem internamente, constroem
um campo maior quanto ao cuidado e à atenção em saúde voltados para transexuais, transgêneros,
travestis, e outras categorias de pessoas a partir do trânsito de gênero/sexo, da manutenção desse
trânsito, e de outros cuidados cuja ordem leve em consideração a questão da transição. Assim, esse
campo é o encontro de vários campos, os quais detêm seus interesses próprios e suas formas de
legitimidade também distintas. Ao entrar em contato esses agentes de origem diversas produzem
um choque que expõe tanto essas diferenças como as tentativas de amalgamar um objetivo e um
objeto comum à saúde trans. Isso não significa dizer que a medicina, o ativismo trans3, os setores
do Estado brasileiro e suas políticas de governo, entre outros, sejam unidades coesas em si mesmas.
A análise social dos campos sintetizada por Bourdieu oferece uma oportunidade de focar mais
numa dinâmica relacional, e não apenas nas características intrínsecas de cada um desses
campos/agentes, já que descreve apropriação, circulação, produção, trocas, saberes, posições, isto
é, todos os elementos que conferem legitimidade na prática desde uma arena de disputa e
dominação por meio da aquisição de recursos.
Nesse sentido, o trabalho desta tese se concentra em entender como o mote transicionar de
forma biologicamente segura movimenta e constitui esse campo com seus diferentes agentes e
3 Pesquisadores de dentro e de fora das ciências sociais tem adotado diferentes estratégias textuais para marcar a preocupação de
deixar claro que há muitas diferenças dentro do epíteto “trans”, alguns o usam acompanhado de asterisco (Monro, 2004, 2018;
Hines et al., 2017; de Jesus, 2012), outros usam hífen (Plemons, 2017), e há ainda o uso entre parêntesis para denotar que os sujeitos
não se definem somente através disso (Rubin, 1998; Teixeira, 2009; Oliveira, A. G., 2015). Não emprego essas marcações, de modo
que ao utilizar apenas trans já estarei me referindo a um termo guarda-chuva para falar a respeito de todo e qualquer experiência de
mudança de gênero mais ou menos permanente, mas as questões que essa tese se coloca endereçam primordialmente a homens e
outras pessoas trans com quem interagem e que usam o termo como adjetivo trans enquanto diminutivo de transexual.
23
conhecimentos. Relutantemente da minha parte, essa questão se tornou central para as relações e
vida social que estive a observar em campo, obrigando-me a lidar com ela de uma maneira que eu
não previra porque, como fui a campo com a postura de contribuir de alguma maneira para a
despatologização trans, falar de biologia pareceu a princípio uma contradição. Ao descobrir que a
biologia assume muitas formas perspectivas esse problema se dissipou. Como se manipula e
organiza hormônios sintéticos e “naturais”? Como as cirurgias são justificadas e racionalizadas?
Como aprender a regulação hormonal saudável é tão importante quanto a adoção duma linguagem
afirmativa nos serviços de saúde? Como transições de gênero são individualizadas? Quando a
justificativa de ativistas e pacientes trans em prol da supervisão médica (despatologizada) usa o
argumento da necessidade de ser acompanhado para que a transição não cause adoecimento, ao
mesmo tempo que médicos e médicas utilizam-se disso para justificar um atendimento
despatologizado e regulado pela biomedicina, ou rejeitam essa clínica e cirurgia, o biológico vem
para o centro não apenas da arena política, mas principalmente dos saberes e das práticas em torno
do transicionar em termos materiais. O que move esses agentes é, então, mais similar do que aquilo
que podem considerar de antemão. Isso tudo me leva a perguntar: o que biologia aí significa e
organiza? Como a dimensão material (a nível morfológico e molecular) dos corpos se torna
relevante nesse contexto? O que é feito, e não apenas dito, com os diferentes níveis orgânicos dos
corpos? Como a transição de gênero em termos físico-morais posiciona a questão de uma segurança
biológica principalmente para afirmá-la? Como, com isso, a vida humana é politizada, construída e
compreendida física e simbolicamente? E por fim, como a biologia é, portanto, situada? Se formos
considerar que a cultura é uma coisa pública – como mostrou Geertz (2008 [1973]) -, e que ela é
constituída num mundo que é feito por meio da prática (Bourdieu, 1996a, 1989; 2002a; 2009), cabe
perceber como todo esse cenário se publiciza e, ao fazê-lo, como se estrutura e reestrutura.
***
Na sua edição de 12 de outubro de 2017, a revista Veja apresentava algo de grande
reverberação nesse sentido. A sua capa trazia um título até então incomum ao noticiário brasileiro
e, portanto, surpreendente: “meu filho é trans”. Com um fundo branco, a foto apresentava o que
sugeria ser um homem de cabelos grisalhos por volta de 40/50 anos de idade e pai; estando de
costas, segura uma criança de cabelo longo que olha em nossa direção com um ar de suspeita e
cujo rosto vemos apenas parcialmente. Ele a segura em seus braços, e ela o abraça num gesto que
pode ser lido como procurando refúgio, proteção e consolo. Giulia Vidale, repórter que assina a
matéria incluída no caderno de saúde, trazia como chamada que “os transgêneros fazem parte do
cotidiano brasileiro, e já não se pode fingir que não existem, apenas por não combinarem com o
24
padrão”. Quando abri um dos exemplares físicos da revista confirmei a relação de parentesco dos
dois sujeitos da capa. Não são modelos fotografados em cena, mas pai e filha da “vida real” como
a matéria pleiteia retratar. Virando à página 76, a foto demonstra os dois de frente e de pé enquanto
a criança continua de rosto de perfil e o pai totalmente à vista. Uma citação no canto de página
termina a introdução visual: “‘no começo fiquei sem saber para onde correr’, diz Anderson, pai de
Carolina de 6 anos”. Ao longo da reportagem4 conhecemos histórias de, ao todo, seis famílias
diferentes, incluindo pessoas famosas como o apresentador de TV Marcelo Tas e seu filho trans, e
a modelo de passarela Lea T., filha transexual do ex-jogador de futebol e atual treinador Toninho
Cerezo, que ficou famoso nos anos 1970 ao se iniciar pelo Atlético Mineiro, e cujas narrativas têm
atraído particular interesse de jornalistas. Centrando-se na explicação biomédica, essa matéria5
discorre animada pela possibilidade de tal conhecimento apaziguar os ânimos e as dificuldades de
se lidar com um filho ou uma filha que se apresenta como de uma identidade de gênero diferente
do nascimento. Os pais e mães narram encontros com psiquiatras, pediatras e endocrinologistas
como especialistas de uma condição inata. A transexualidade, assim, é narrada como algo próprio
do berço, o que deteria na gestação alguma alteração que conformaria cérebros definidos entre
feminino e masculino. A jornalista começara seu texto aludindo à telenovela de grande audiência
A Força do Querer6, de autoria de Glória Perez, exibida e produzida pela Rede Globo, a quem atribui
“aguçada sensibilidade”. Então a dois dias de seu capítulo final, a novela tinha sido um fenômeno
de audiência, atraindo mais de 40 pontos marcados pelo Ibope7 ao ser exibida de abril a outubro
de 2017. Algo que justificava o grande interesse da sociedade brasileira no tema que a reportagem
da Veja apresentava com números estatísticos de uma população aproximada em milhares, opiniões
de especialistas e vozes de quem vive a “condição inata”, a “transgeneridade”.
Através da telenovela de 172 episódios, pela primeira vez no país esse tipo de obra ficcional
veiculava, e com destaque crescente de protagonista, um personagem caracterizado como homem
trans. Não apenas isso, estava posto na tela de modo inédito uma descrição de um processo de
4 A Veja havia protagonizado outras reportagens sobre temas de grande intensidade nacional, como o aborto na edição de setembro
de 1997, na qual anônimas e celebridades admitiram ter realizado a interrupção da gravidez. “O depoimento das mulheres e a
polêmica no Brasil” marcava a capa que levava o título: “Eu fiz aborto”, apresentando ainda fotos de frente das nove mulheres
citadas. Oito anos antes, em 20 de abril de 1989, a Veja publicava na sua capa uma foto de Cazuza, roqueiro de grande sucesso que
descrevia numa entrevista sua vivência com o vírus HIV, endereçado como a síndrome letal da Aids. “Uma vítima da Aids agoniza
em praça pública”, trazia a revista com a imagem do cantor de braços cruzados olhando de frente para a câmera. Até agora outras
edições que trataram diretamente da “temática LGBT” na revista são “O que é ser gay no Brasil”, 12/5/1993, n. 1287; “A vida fora
do armário”, 25/6/2003, n. 1808, “Sou bi, e daí?”, 21/12/2005, n. 1936 e “Casamento gay”, 10/4/2013, n. 2316. A revista, tem
sido, assim, uma tela de grandes temas nacionais, como indicou Carlos Guilherme do Valle (2000) à propósito do HIV/AIDS.
5 Meses antes, em 25 de março, a Veja Rio havia publicado uma matéria de capa homônima, mas de pouquíssima repercussão.
Assinada por Sofia Cerqueira, a matéria carioca trazia histórias diferentes da versão paulista no seu caderno Cidades.
6 A sinopse dessa telenovela pode ser conferida nos Anexos.
7 Os pontos de audiência da TV brasileira são medidos pela Kanar Ibope Media, uma empresa que gera o Painel Nacional de
Televisão e faz ajustes anuais de quantos lares e pessoas cada ponto representa de acordo com a praça (região estadual a partir da
capital) e período no país. Assim, em 2017, cada ponto representava nacionalmente 245,7 mil domicílios, cuja projeção alcançava
potencialmente cerca de 688,2 mil indivíduos. Ver Veja (2017), disponível em: . Acesso em: jul. 2019.
25
transição de gênero para homem de uma pessoa identificada ao nascer como mulher, entendido
assim como transexual. Essa transição se refere a um reposicionamento social de uma pessoa a
partir da mudança de gênero, de homem para mulher ou de mulher para homem, a qual indica
reconsiderações subjetivas e institucionais. A dimensão das modificações corporais medicamente
assistidas é um elemento central mesmo que haja várias formas delas acontecerem e de se tornarem
relevantes. Antes e durante a exibição, Perez enfatizava, por meio de diversos canais de
comunicação e propaganda, que detinha uma abordagem inovadora e bem fundamentada sobre
vários temas que estaria a tratar, incluindo a transexualidade. Pesquisadores da área de estudos de
gênero e sexualidade e ativistas trans8 foram, inclusive, convidados a participar de eventos nos
Estúdios Globo para ajudar a telenovelista e outros profissionais da empresa a se apropriarem do
debate sobre identidades de gênero e orientação sexual9.
Não se pode perder de vista que isso serviu para produzir uma atmosfera para o assunto
integrar a ordem do dia. Isso excede três elementos importantes do cinema enquanto tecnologia
de gênero, e que se aplicam a telenovela brasileira. Para Teresa de Lauretis (1992), estes se referem
ao processo de filmagem, ao produto na tela e a recepção subjetiva a quem se dirige. Esse período
“anterior” da obra de Perez é incluído mediante a necessidade da fundamentação para gerar a
legitimidade acerca de um tema “polêmico”, muito afeito à própria produção de novelas no Brasil
que segue a resposta da audiência e grupos de trabalho de recepção contínuos. Diferentemente de
outros similares, o folhetim apresentava-se como não tendo um casal de protagonistas isolados,
mas histórias que ganhariam destaque em algum momento da trama, e o núcleo de Ivan (antes
Ivana) era um deles. Logo no primeiro dia a conhecemos, uma criança usando o mesmo vestido
vermelho que sua mãe, Joyce usa ao seu lado, enquanto passeiam por um shopping center. O plano
da câmera as enquadra do alto a baixo mostrando seus vestidos esvoaçarem quando andam
femininas, carregando sacolas de compras. Em outra tomada de cena, vemos o irmão, aparentando
ser mais velho, enquanto corre, brincando com outra criança. Notamos a felicidade de Joyce em
ter tido um “casal de filhos”, um menino e uma menina, narrativa comum nas famílias brasileiras
no campo do desejo de filhos e que indica uma ode à reprodução social da heterossexualidade. Isso
seria motivo para conflito futuro a partir da transição de Ivan, uma vez que haveria um sentimento
de perda evocado principalmente pela mãe que não mais teria a única “filha mulher” para casar-se,
ter filhos e continuar a família por via uterina e heterossexual.
8 Estiveram presentes, por exemplo, a socióloga Berenice Bento, o antropólogo Sérgio Carrara, a psicóloga Jaqueline Gomes de
Jesus, cerca de vinte ativistas como Amália Fissher e Indianara Siqueira, além do psiquiatra Alexandre Saadeh.
9 Disponível em: . Acesso em: jul. 2019.
26
Durante toda a duração da novela, a autora constrói uma narrativa do que seria a trajetória
de um homem trans desde sua “descoberta” e “exame subjetivo de si” até a transição e o momento
de paz e tranquilidade que lhe seria o resultado. Constrói-se muito lentamente um drama que se
confirma enquanto “social” apenas no que compete ao processo de “aceitação” familiar e pessoal.
Muito embora a representação da homossexualidade tenha variado nas novelas desde uma figura
criminosa até aquela que Luiz Peret (2005) chamou de “heteronormatizada”, essa imagem de
Ivana/Ivan acompanha o foco dado a superação de conflitos advindos da aceitação social, isto é,
da “narrativa da revelação”. O elemento “sou assim”, quase naturalista, subjaz de modo
permanente. Não há uma explicação acerca da diversidade sexual e de gênero socialmente
constituída, mesmo que o novo Ivan continue interessado no antigo namorado, se assumindo
homem trans gay e posteriormente descobrindo-se grávido10. A releitura realizada pela família se
baseia em encontrar na medicina e na psicologia um ponto de apoio explicativo para reposicionar
esse novo sujeito enquanto homem. Essa é uma virada de representação de personagens não-
heterossexuais na teledramaturgia brasileira, uma vez que outras histórias estiveram imaginadas
num terreno algo intransponível da natureza11. Se tomarmos que as novelas no Brasil detêm, como
já apontou Laura Gomes (1991), um alto grau de institucionalidade social, uma vez que as assistir
convencionou-se num ritual diário para quase todas as classes sociais, não é de surpreender que
todos os interlocutores desta pesquisa falassem a respeito, e que um deles tenha trazido A Força do
Querer como um elemento biográfico disruptivo e revelador de si. A popularidade desse tipo de
obra ficcional encontra-se, para Gomes, no espaço que ocupa nas conversas e pela forma como
catalisa uma discussão nacionalmente. Mesmo com a consolidação da internet no país e no mundo
de maneira tão transformadora (Miller et al., 2016), a telenovela brasileira continua a ser um grande
veículo de informação e lazer, principalmente para o público que não se interessa ou não tem acesso
10 A Força do Querer entrou nas casas brasileiras com a média geral de 35.5 pontos; seu último capítulo, que mostrou também o
“final” de Ivan, se ele iria ou não perder o filho que esperava e se iria ou não voltar para o antigo namorado, registrou mais de 50
pontos no Ibope. Os críticos acostumados à análise de novelas costumavam repetir que “os fãs se emocionam com a história de
Ivan”, tendo sido “a escolha de uma atriz estreante um acerto da emissora”. Além de desconhecida pelo público de novelas a atriz
escolhida era muito magra e de estatura baixa, repetindo a morfologia corporal atribuída comumente a figura do homem trans.
11 Todas as outras histórias presentes em telenovelas sobre travestis ou mulheres transexuais já apresentavam as personagens após
o processo da transição de gênero, não víamos a “descoberta” identitária. De 1995 a 1996, ia ao ar Explode Coração, também escrita
por Perez, na qual foi retratada uma travesti interpretada por Floriano Peixoto chamada Sarita Vitta com uma narrativa mais
multidimensional e dramas para acessar trabalho formal, preconceito, práticas corporais e desejo sexual. Outras telenovelas e séries
brasileiras apresentaram personagens transexuais, mas dentre essas As Filhas da Mãe (2001-2002), de Sílvio de Abreu, se destaca
como um marco porque apresentou uma mulher trans como personagem principal. Chamada de Ramona, foi interpretada por
Cláudia Raia e sua história seguia as narrativas de brasileiras que costumavam viajar ao exterior para encontrar trabalho e/ou para
concretizar a transição de gênero. Ramona volta para o Rio de Janeiro como uma estilista de sucesso, “operada” e é sua história que
dinamiza a trama da novela ao lado da disputa de uma herança. Um grande ponto do drama estava em seu par romântico aceitar
que ela era uma transexual, vista ainda como parte do espectro da homossexualidade. Há, portanto, um lamento de sua
impossibilidade de casar oficialmente dado que a justiça brasileira não permitia a mudança nos documentos nem o casamento entre
pessoas do mesmo sexo. Diferentemente de Ivan, Ramona não foi retratada como ultrapassando o limite do natural
homossexual/homem. Essas três telenovelas detiveram grande repercussão de público e crítica e podem ser localizadas nesse longo
processo histórico de diversificação das experiências de gênero e sexualidade no Brasil.
27
a produção científica publicada de forma especializada ou a literatura. Algo que movimenta,
inclusive, o cenário on-line e se convencionou um medidor da audiência para as redes de televisão.
No curso da etnografia conheci Paulo, homem trans, de cor branca, aos 27 anos de idade,
que estava morando num abrigo inaugurado em 2018, na cidade de Fortaleza, voltado para receber
homens trans “em situação de vulnerabilidade”, e fora mantido enquanto esteve aberto de forma
independente pela Associação Transmasculina do Ceará (Atransce) com auxílio de doações. Paulo
se mudara há pouco tempo de Mossoró, no Rio Grande do Norte, e buscava refazer a vida no
Ceará. Antes, se colocava identitária e corporalmente como mulher lésbica. Sem parentes imediatos
que considerasse importante manter-se vinculado, ele passou a viver na capital cearense sozinho.
Quando lhe perguntei sobre como fora o processo inicial da transição, querendo que ele pudesse
me falar sobre possíveis conflitos e reorganizações no ambiente familiar, a resposta veio
acompanhada de como a novela de Glória Perez o ajudou a “organizar suas ideias”. “Foi a partir
da novela”, ele falava. Fiquei surpreso nesse momento porque não esperava que a obra pudesse ter
impactado sua vida. Ele continua, “eu não me adequava bem em nada, e eu me vi no Ivan”. Paulo
ainda não tinha realizado nenhum tipo de acompanhamento médico, nem administração de
testosterona quando fizemos a entrevista. “Tenho pouco tempo de transição”, completava; e não
estava ainda mais avançado nesse sentido porque não trabalhava e não tinha nenhum tipo de apoio
financeiro. Sua única forma de ter um teto sobre sua cabeça era estar morando no abrigo,
organizando-se recentemente para vender doces na rua.
A ideia de que um personagem, ou alguma personalidade famosa, possa ser um ponto de
apoio para ajudar alguém a rever a própria existência de modo subjetivo é um elemento comum
presente nas narrativas criadas pelos homens trans brasileiros, visando, portanto, dar sentido às
suas trajetórias biográficas. Isso tem suas similaridades com o processo histórico que possibilitou
o surgimento da transexualidade entre os Estados Unidos e a Europa12, como descrito por Joanne
Meyerowitz (2002). A historiadora relata que muitas pessoas comuns passavam a escrever para
jornais buscando saber a possibilidade de mudar de sexo quando, entre as décadas de 1940 e 1950,
se deparavam com notícias sobre a possibilidade de mudanças corporais a partir do manejo
hormonal em mamíferos e, principalmente, quando a história de Christine Jorgensen foi anunciada
pelo New Yorker Daily News em 1 de dezembro de 1952 como o primeiro caso de cirurgia de
mudança de sexo13. Os detalhes do processo que levaram Jorgensen a “se tornar” mulher
transformou-a numa “sensação de mídia de massa”, fazendo com que sua história “abrisse o debate
12 Mas também concomitante e concorrentemente noutras regiões como o Brasil (cf. Capítulo 2).
13 Me inspirando muito em Eric Plemons (2014, 2017), ao longo da tese eu emprego termos sem aspas como mudança de sexo,
redesignação sexual e mudança de gênero que, embora pareçam se referir a mesma “coisa” (a transição entre sexos/gêneros), se
referem a contextos epistemológicos e suas práticas específicos sobre o que é o sexo.
28
sobre a visibilidade e a mutabilidade do sexo” nos Estados Unidos (Meyerowitz, 2002, p. 2) e sendo
um grande marco tanto para a cultura de massa como para a ciência biomédica (Stryker, 2017; cf.
Jorgensen e Stryker, 2000)14.
Contudo, a telenovela de Perez coloca em evidência outra questão. Algo que aponta para
uma mudança considerável do cenário brasileiro num curto período. Quando eu realizei pesquisa
etnográfica em Natal para minha dissertação de mestrado entre 2014 e 2015, as referências que os
ativistas homens trans faziam eram geralmente aquelas que se remetiam a produções midiáticas de
ficção estrangeiras: eram filmes como Boys Don’t Cry (1999)15 e a série de TV The L Word (2004-
2009)16 (Rego, 2015, 2017). Os primeiros contatos que estabeleci no país naquele período eram
com alguns pouquíssimos homens trans que criavam canais no YouTube para registrar uma espécie
de diário falado da transição de gênero, e através de eventos de militância LGBT.
A telenovela de Glória Perez e as suas reverberações sociológicas demonstram que as
questões trans, através grandemente da figura do homem trans, entraram de vez no cenário
brasileiro atual de modo a atualizar um debate nacionalizado a respeito. Isso por causa do caráter
de massa que a telenovela atingiu desde muito na sociedade brasileira como um grande catalizador
de temas conservadores e progressistas (Leal, 1983; Ortiz, Borelli e Ramos, 1988; Gomes, 1991;
Santos, 2000; Souza, 2004), pois, como ouvíamos na época da exibição da novela, e como me
contou Paulo, pessoas que nunca haviam falado no assunto ou antes encontravam reservas sobre
a natureza humana se sensibilizavam com o sofrimento do personagem trans de Perez num sentido
surpreendente17. O reconhecimento e o apoio vinham por meio da espetacularização dramática da
dor, de modo que a ficcionalidade do personagem ajudava a criar a possibilidade de uma
identificação e de uma conexão que não tinha havido exatamente com a figura de Roberta Close.
A telenovela consegue, portanto, ser ainda mais penetrante na consciência coletiva porque produz,
na simulação, histórias que se transformam em memórias na tela, um espetáculo da diferença que
informa e anima o ativismo e a identificação social para além de pessoas trans. Essa formulação de
mundos sociais mediados tem sido apontada por antropólogas e antropólogos preocupados em
como telenovelas e outros gêneros televisivos continuam a ser importantes na contemporaneidade
(Abu-Lughod, 2005) e não fósseis de um passado que teria sido substituído pela internet. Esses
14 Na década de 1970 temos médicos brasileiros se referindo a transexualidade como jorgensenismo.
15 Filme sobre a trajetória não-ficcional de Brandon Teena, homem trans que foi assassinado em 1993. Foi dirigido pela diretora
Kimberly Peirce e deteve consideráveis efeitos sociais nos EUA (Rubin, 2003), e como se percebe também no Brasil. Houve uma
tensa disputa sobre a identidade de Brandon, se seria homem trans ou uma mulher lésbica. Para observar essas “guerras de fronteira”
como chamou Rubin (2013) pode-se consultar Tania Navarro-Swain (2000) que descreve Bradon como uma lésbica e Judith
Halberstam (2005) que o vê como queer (cf. ainda Rego, 2017 sobre esses conflitos no Brasil).
16 Exibido pelos canais Showtime e Warner Bros, o seriado de 6 temporadas trata das histórias de vida de um grupo de mulheres
lésbicas e bissexuais. Moira Sweeney, uma das personagens principais realiza a transição para homem, passando a se chamar Max.
17 Mesmo que, ao mesmo tempo, tenha havido uma reação negativa ao personagem e à trama por parte de críticos religiosos e de
críticos que consideravam a novela pouco linear na sua história.
29
sítios concorrem e se complementam. Até porque esse não é um caráter recente na organização da
vida social, a mediação pela imagem ocupa lugares variados mesmo antes das tecnologias
dinamizarem a disseminação da televisão e do cinema; de modo que é importante se abster de
recriar “lógicas opostas”, e ver que a televisão tanto engendra efeitos hegemônicos como anti-
hegemônicos (Ginsburg, Abu-Lughod, Larkin, 2002, p. 23). Mas é preciso ver a telenovela, por
seus elementos próprios e não apenas como parte da TV brasileira, como é um caso particular
dessa produção da realidade social mediada, de seu consumo, produção e circulação; e como isso
posiciona de forma mais direta, perceptível – enquanto elemento palpável no campo – e atualizada
de várias maneiras o que antropólogos18 têm apontando desde muito a respeito dos impactos da
televisão no mundo. Embora não seja o caso de fazer uma análise à parte nesse sentido, a maneira
como e o porquê essas mediações se tornarem relevantes na vida social em geral e no campo de
pesquisa indicam a altíssima efervescência da mudança de gênero no país aliada ao escopo da
transexualidade.
Entretanto, no Brasil, foi primeiro a história não ficcional de Roberta Close que
movimentou o país em larga escala quando em 1989, aos 20 anos de idade, realizara a cirurgia de
mudança de sexo no exterior. Se, nos anos 1990, o debate brasileiro crescia como crescera o
estadunidense décadas atrás, somente em 2017 com a história de Ivan é que se retoma na mesma
proporção, agora no lado dos homens, a discussão sobre outra forma de transexualidade. Apesar
da biografia de João W. Nery (2012) relatar que ele realizara sua cirurgia de mamoplastia aos 27
anos de idade em 1977, sua publicidade não gerou o mesmo alcance que essas histórias anteriores,
dada principalmente a clandestinidade do procedimento não autorizado pela legislação que o
obrigara a se manter em silêncio à sua época19. O mesmo se passara com Waldirene, que em 1971
obteve a cirurgia de mudança de sexo no Hospital das Clínicas em São Paulo, de modo ilegal20, e
não obteve a mesma amplitude midiática e pública que Roberta. O resgate dessas duas figuras (João
e Waldirene) é um artifício memorial do presente dessas décadas e não produtos midiáticos do
período em que aconteceram. Assim, o tipo de veiculação midiática que logrou massificação à
história de Ivan a respeito do que seria um homem trans contribui para sua relevância social e
18 Como o fizeram Raymond Williams (1974) que chamou a TV de “forma cultural”; Arjun Appadurai (1991) com seu conceito de
mediascapes para descrever a paisagem midiática como uma das formas nas quais os fluxos culturais navegam globalmente e Lila Abu-
Lughod (1997) sobre como a interpretação da cultura estaria transformada com o advento e relevância da televisão para disputas
políticas e representação social indígena e colonial.
19 João Nery é uma figura presente para organizar o ativismo de homens trans no Brasil, principalmente a partir das ações do
Instituto Brasileiro de Transmasculinidades (IBRAT) e de sua movimentação pela Internet nos últimos anos junto da reedição de
sua biografia em 2012. Em Fortaleza, a figura de Sílvio Lúcio, 54 anos, é trazida como “o primeiro homem trans do Ceará”,
personagem a ser respeitado e ouvido. Isso nos mostra como os contextos “regionais” e “nacionais” não estão coadunados em
uníssono, podendo as estratégias de ação política ser grandemente diferenciadas para além das escalas. Muito embora a estratégia
da memória que ativa agentes do passado para justificar o presente aconteça e use tanto de João como de Sílvio, o movimento de
Fortaleza fala do homem trans do presente, em como ele não tem o que comer, nem onde dormir por ter sido expulso de casa, a
estratégia local é mostrar como se vive em Fortaleza e como se precisa de proteção do Estado para não adoecer devido a transição.
20 Disponível em: . Acesso em: 1 ago. 2018.
30
política no país. Contudo, o que tornou possível que esse sujeito ocupasse um papel de personagem
protagonista numa obra ficcional de tamanha propulsão cultural e econômica, principalmente se
considerarmos o cenário brasileiro neoconservador que tem dominado ultimamente as discussões
políticas? É exatamente o estigma que esse personagem incorpora que o torna atrativo como um
drama que é ritualizado e espetacularizado. Mais do que isso, a pergunta relevante a ser colocada é:
como social, política e culturalmente um sujeito, tido como novo ou emergente em todos os
contextos que se insere atualmente, se consolida como uma pessoa específica a ser reconhecida no
Brasil? A novela levantou o debate nacional, mas ela não pode ser vista como a pedra de toque
desse movimento sociocultural, mas como um de seus desdobramentos e consequências
possibilitados por relações, práticas e agências sociais crescentes em articulação nas últimas
décadas. Ela é, no presente, uma forma de publicização específica dessa geração, mas que pode
ganhar outras feições no futuro. Assim, se Roberta Close foi um objeto de tensões culturais, assim
como João Nery e o ficcional Ivan, outros personagens podem surgir como relevantes nos seus
próprios períodos históricos. Ivan não viveu dramas em todas as áreas da vida social, era membro
de uma família rica e obteve o maior empecilho até que recebeu a aceitação de seus pais que
financiaram os procedimentos necessários para a transição. Algo que diferencia grandemente as
histórias dos interlocutores trans que narrarei nesta tese. Não se trata de cair em histórias fáceis e
difíceis. A ligação que Ivan produz com alguém de outro estrato social está naquilo que seu
espetáculo pode oferecer para pensar o eu e sua mudança, corporal e subjetivamente.
As tensões brasileiras entre gênero e sexualidade
A existência na vida comum, a participação na população e no movimento de lésbicas, gays,
travestis e transexuais (LGBT), a conformação de um sujeito a ser cuidado e que cuida de si, e a
própria corporificação de um cidadão específico que demanda políticas do Estado se
circunscrevem para gerar “o homem trans” como problema social reconhecível e legítimo. As
dificuldades em face à transição, ao cuidado da saúde integral, à educação, à moradia, ao ingresso
no mercado de trabalho, à vida afetivo-sexual, à violência etc. se tornam problemas amplificados
pela propulsão desse movimento maior acerca da diversidade sexual e de gênero. Mas, ao se
proporem como “específicos”, esses sujeitos muitas vezes encarnam conflitos e disputas ao serem
acusados de divisores e individualistas, principalmente porque o discurso principal dos ativistas tem
sido o da “invisibilização”, o que demanda mais ações e mais políticas para serem vistos e cuidados.
É nesse passo que a atenção à saúde fornecida pelo Estado nasce como objeto de engajamento
político tão centralizador. É a condição para realizar qualquer outro alcance cidadão. Assim, ao
mesmo tempo em que há essa dinâmica, ela é também um indicativo de que o movimento
31
transmasculino e a identidade de homem trans é o resultado da efervescência dessa grande rede
que se entende como uma comunidade imaginada de “sujeito LGBT” que tem um percurso
histórico transformado pela sua entrada no Estado brasileiro via políticas de governo nas quais
homossexuais, travestis e pessoas trans são foco de atuação e intervenção, e cuja base principal
esteve materializada no final do Governo Lula com as suas Conferências Nacionais LGBT desde
2008 (Aguião, 2014).
Esse é um cenário diverso que me fez perceber a importância de compreender nesse estudo
não apenas os homens trans como grupo unificado ou como pessoas agrupadas para os propósitos
dessa pesquisa. Isso tanto advém da multiplicidade de experiências que impedem um sujeito único,
dados tantos demarcadores sociais diferentes, como se refere à ausência de qualquer isolamento
enquanto ser social. Como as vidas dos interlocutores são construídas por causa de suas relações
com diversos agentes e instituições, é desejável como condição para entendê-las incluir na pesquisa
todo esse conjunto de pessoas em relação como um universo social. Mas a minha reação inicial foi
de desconforto quando eu me deparei à primeira vez com as disputas nas quais estavam envolvidos
os interlocutores, seja em torno de espaço no ativismo ou para atendimento específico nos serviços
estatais e de saúde. A preocupação estava em como eu iria explicar e descrever um cenário tão
disputado sem me sentir traindo um ou outro grupo de agentes. Como explicar pelos próprios
termos de cada um suas intenções, práticas e significados culturais, ao mesmo tempo que olharia
para o total da rede social que conformam? Lembrar que a ideia de uma sociedade fechada ou de
um grupo fechado em si mesmo não apenas é irreal em termos antropológicos, como é uma ideia
romântica e positivista da prática disciplinar, levou-me a olhar para as complexidades que se
estabelecem mesmo dentro de relações entre sujeitos agrupados e a olhar historicamente para suas
formações. Percebi que os conflitos e as disputas não estavam postos a esmo em Fortaleza, não
eram fruto de indivíduos instáveis que se desagradavam uns com os outros, como queriam fazer
crer algumas interpretações desse ou daquele interlocutor. Essas contendas eram uma reverberação
e parte do estabelecimento dos homens trans como sujeitos específicos, como problema social
reconhecível e legítimo dentro do mesmo movimento de legitimação da saúde trans. Nisso, muitas
vezes, a complexidade de suas experiências pode ficar subsumida no discurso central da figura a
ser estabelecida, o que também poderia ser um propulsor de conflitos. Atentar que os “homens
trans” e o seu cuidado em saúde é um problema social construído habilita essa pesquisa a ações
indispensáveis para sua realização.
Diante disso, o problema dessa pesquisa deixou de ser em si a constituição política e social
de homens trans como sujeitos, e se tornou a constituição política e social de um campo social, o
qual se dinamiza grandemente pela conformação desses indivíduos como sujeitos consolidados.
32
Esse campo é composto de vários campos, e se refere ao universo social da transexualidade com
diferentes agentes e regras próprias de onde partem. O que estou denominando como saúde trans
é como um amálgama de difícil fundição. Mas, porque então não incluir travestis e mulheres trans
também, já que a pesquisa se tornou sobre um campo social da saúde trans e não somente sobre
os homens trans?21 Tendo tido uma entrada particular desde esses últimos sujeitos me possibilitou
perceber que eles detêm uma dinamização sociológica que anima em grande parte a vivificação
desse campo social. Mas isso não impediu que a etnografia registrasse interações e diversas questões
que envolviam essas outras interlocutoras. Esse é um recorte metodológico da pesquisa também
porque são esses agentes sociais os que detêm menor espaço nas pesquisas realizadas até a
atualidade. Apesar dessa especificação, a saúde trans que aludo não é apenas uma “saúde trans
transmasculina”, porque meu objetivo é justamente demonstrar o cenário abrangente no qual
homens trans e transmasculinos se movimentam mesmo que referências a outros sujeitos trans e
travestis e homossexuais (e até outras formações identitárias) estejam presentes.
O que no âmbito do gênero e da sexualidade não-heterossexual é na atualidade remetido a
um número crescente de categorias de sujeitos, às vezes tão rigorosamente delineados e
essencialmente explicados, já foi entendido como ocupando um espaço nomeado de
homossexualidade – e seu posterior plural – para se agrupar práticas sexuais, desejo, identidades,
organização social, expressões e noções de pessoa. O germe da organização política da mobilização
brasileira em torno do que já se chamou de homossexualidades – isto é, desde o encontro de
sujeitos com a estrutura estatal e seu reconhecimento – tem sido geralmente localizado no seio das
(renascentes) agrupações de esquerda e da agitação pela liberdade que ganharam corpo, nas décadas
de 1970 e 1980, com a resistência à Ditadura Militar de 1964 e seu posterior período de
redemocratização desde os centros político-econômicos do país (MacRae, 1990; Valle, 2000;
Green, 1999, 2000b, 2003, 2012; Quinalha, 2017). Uma consulta, ainda, aos documentos
produzidos pelas comissões dos constituintes de 1987 mostra as disputas pela inclusão da menção
à proteção de homossexuais nos objetivos fundamentais da República. O termo “orientação
sexual”, usado pelos ativistas, acabou sendo excluído no último minuto para dar lugar a expressão
“quaisquer outras formas de discriminação”22 por pressão de deputados e deputadas cristãos
evangélicos e católicos. Mesmo sem essa inclusão, a atual constituição brasileira teve efeitos
sociopolíticos consideráveis na vida cotidiana brasileira no que tange a organização em torno de
direitos e ações coletivas no que se refere à diversidade de gênero e sexualidade – assim como o
21 As pesquisas em geral nesse tema trazem ou apenas mulheres trans ou como a maioria dos interlocutores, isso acaba colocando
algumas questões específicas. Ver Carla Machado (2010) para um panorama nesse sentido.
22 O artigo 3º da Constituição de 1988 determina os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, e em seu inciso IV
estabelece que o país deve “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas
de discriminação”. Ver Arquivos da Constituinte de 1987/1988 do Senado Federal, e Robert Howes (2003).
33
fez noutras esferas da vida coletiva. Isso forma um uníssono geralmente batucado para ouvidos
moucos: esse não é apenas o espaço do privado, mas está no centro da política nacional, cujos
difíceis lugares contravertidos permanentes indicam a indispensabilidade de entender a primeira
para compreender a segunda e vice-versa.
Nesse sentido, Richard Parker (1999, p. 2, tradução minha) mostrou que a
homossexualidade serviu como “um marcador chave da diferença em relação a heterossexualidade
normativa” durante o século XX, inclusive como parte da constituição da distinção entre – o que
se considerou – o eu ocidental e o outro não-ocidental23 à reprodução do regime sexual dominante,
isto é, o autor argumenta que a antropologia euro-estadunidense – que chamarei do norte global24
– buscou homogeneizar as diferenças sexuais internas de outras sociedades em ordem de construir
a universalidade das vidas gays e lésbicas de suas regiões de origem. Assim, podemos ver que a
concepção própria de um campo homossexual de identificação e prática erótica é resultado de uma
unificação de diferenciações já existentes no seio da cultura brasileira, e contra as quais se
insurgiram ativistas homossexuais para se incluírem no cenário do norte global (cf. MacRae, 1990;
Fry, 1987, 1990). Contudo, o processo brasileiro de reconhecimento social e político da
homossexualidade tanto a transformou como deu lugar à sua fragmentação também no campo da
cidadania, postulando uma caudilha de diferenciação – ou, talvez, seja mais seguro indicar que essas
diferenças se fazem agora presentes também na busca de direitos como categorias autônomas.
Como apontaram Carlos Guilherme do Valle e Júlio Assis Simões (2015, p. 17, n. 1), a estabilidade
que a categoria homossexualidade25 uma vez deteve para abrigar diferentes experiências se
colapsou, gerando variadas expressões para constituir o que desafia “o binarismo e a normatividade
heterossexual”. Mesmo que essa estabilidade fosse muito mais aparente do que uma realidade
empírica, ela funcionava politicamente e foi o centralizador das experiências.
É possível indagar, no rastro aberto pelos autores, como essas diferenças, antes reunidas
contravertida e uniformemente para dar lugar à categoria de homossexualidade, não apenas se
transformaram, mas também passaram a reclamar o status civilizatório e unificado em si mesmas?
Como se dá o processo social através do qual novas identidades trans e de não conformação geral
(não-binários, etc.) não se furtam a reproduzir esse mesmo movimento de outrora, de se inserir no
espaço do norte global e de se afirmarem unificadamente ainda que se defrontem com uma nova
diferenciação interna? E mais, como as novas estabilizações lidam com suas diferenciações internas,
23 Distinções essas (entre ocidental e não-ocidental) que considero pouco produtivas às análises antropológicas, a não ser que seu
escopo se refira às representações europeias a partir da Europa Ocidental como uma ideia cultural local a respeito do outro.
24 Inspiro-me nas proposições teóricas de Raewyin Connell (2007) a respeito da produção das Ciências Sociais entre as metrópoles
do norte global (antigos centros da Colonização e do Imperialismo) que compreende Estados Unidos e potências europeias. Essa
perspectiva atravessa toda a tese.
25 Ver Sérgio Carrara e Júlio Assis Simões (2007) para um certo panorama a respeito de pesquisas antropológicas sobre
homossexualidade masculina no Brasil.
34
que por certo, não param e são produzidas no seio dessa estabilização? Nisto, pode-se perceber a
multiplicidade de experiências e subjetividades tanto antes como durante esse processo. Tais
categorias de sujeitos surgem ou são reforçadas, muitas vezes apenas inicialmente, como modo de
convencer e de gerar a ação estatal para garantir acessos e construir diversos direitos. Este não é,
assim, o único espaço social em que acontecem. A especificação de um certo traço identitário com
suas explicações à diferenciação não impede que esse reforço à visibilização dê lugar a novas
margens e a agrupamentos imaginados que não deixam de produzir limites e borrões entre os
sujeitos, as ideias e as práticas que os animam e orientam – ou constrangem – em todas as direções
e não somente diante do Estado.
A consolidação da categoria transexualidade no norte global e sua circulação transnacional,
bem como a de transgênero, podem ser vistas juntas como a pedra de toque para a estabilização
dessas diferenças de um outro modo. O desejo erótico se torna algo secundário, uma vez que o
desejo pelo mesmo sexo é transformado quando a própria identificação é entendida como
descombinada com o próprio corpo. Mesmo que o desejo heterossexual já tenha estado presente
como algo presumido e um critério diagnóstico (Bolin, 1983; Butler, 2001; Bento, 2006, 2008) da
regulação médica, o foco tanto entre ativistas e pessoas trans como entre médicos recai sobre as
formulações de masculino e o feminino (Meadow, 2018). A figura de travestite, inicialmente no norte
global, se transforma para dar lugar a ideia de ser mulher como resultado de um processo social
que dá vida a outra categoria: a de transgênero. Esse último termo foi elaborado nos Estados
Unidos no curso do ativismo contra a violência, e em reação à classificação biomédica corrente na
década de 1990 solapando diferenças internas (Valentine, 2007). Esse trânsito subjetivo é de difícil
diferenciação no país (travesti/transexual), uma vez que procedimentos cirúrgicos e práticas do
cotidiano não são estanques para uma definição absoluta. São noções e posições de sujeito que
disputam espaço no Brasil contemporâneo como linhas tênues, geralmente aplicadas a si mesmas
por travestis que pode também se denominar mulheres trans (cf. Pinheiro, 2016). A construção
social da noção de travesti como substância para uma categoria do Eu desafiou (e ainda desafia)
entre nós a sua concepção como prática cultural realizada por homens ao usarem a vestimenta
feminina como festejo popular (Bastide, 1959) e como forma de expressão da homossexualidade
(Silva, 2005 [1950]).
Assim, uma diferença substancial entre o contexto brasileiro e o do norte global –
principalmente anglófono – é quanto ao processo de separação de gênero e sexualidade como
domínios distintos da vida humana. Se travestite perde sentido ontológico entre ativistas
estadunidenses para ser transgênero aquilo que consolida essa classificação, é a travesti que se
propulsa como categoria num primeiro momento no nosso caso e nos demais cenários latino-
35
americanos26. As pesquisas antropológicas e sociológicas sobre travestilidade no país, quando
reunidas, demonstram um processo social no qual o gênero feminino de designação de artigo na
esfera da linguagem – a travesti, ao invés de o travesti – é um dos primeiros baluartes dessa
politização27. Aí se realizava a primeira mais contundente separação de gênero e sexualidade como
reinos opostos, embora complementares. Isso tem se dado de tal modo que é praticamente
inexistente pesquisas sobre práticas sexuais, identidade sexual e erotismo entre pessoas trans. Algo
que faz parte do esforço coletivo dessa dinâmica tanto em relação à medicina como em relação ao
resto dos sujeitos ocupantes do que hoje denominamos de diversidade sexual e de gênero. Se gays
e lésbicas se separaram entre si e em relação aos heterossexuais, as travestis, e mais recentemente
os homens trans o fizeram de modos atualizados. Travestis passaram a não ser homossexuais numa
escala na qual eram o máximo do feminino em oposição aos masculinos do outro lado do espectro.
Essas pessoas se tornam nos anos 1990 sujeitos autônomos, algo diferente de décadas anteriores
quando estão incluídas por si próprias no borrão agrupado pela categoria homossexualidade. Isso
pode ser entrevisto nas poucas pesquisas feitas pela antropologia nesse grande cenário desde a
década de 1940 até 1980 (Valle, 2000; ver ainda Carrara e Simões, 2007) e no número crescente
principalmente daí em diante (Silva, 1991; Vale, 1997, 2005; Pelúcio, 2007; Benedetti, 2005; ver
Grossi, 2010). É através de uma politização em torno da saúde que travestis se tornam novas
pessoas28. O que tenho visto em campo é que o que ganha certa centralização é o maior peso dado
ao lugar do eu em definir a si próprio. A pessoa moderna como indivíduo é um norte no horizonte
e que é visto, por exemplo, na frase geralmente proferida por ativistas: “é trans quem diz quem
é”29, cujas defesas recaem sobre a autodeterminação individual.
Desde a separação entre homossexualidade e heterossexualidade, e da primeira em relação
a transexualidade e as posteriores categorias que tem surgido e continuam a emergir são produtos
construídos socialmente. Essas diferenciações partem da concepção reificada de que tais categorias
seriam definidas por suas oposições essenciais. Mas, como demonstrou Joan Scott (1991),
heterossexualidade não é definida enquanto o contrário de homossexualidade. Esse é um trabalho
de essencialização de ambos. Gênero e sexualidade são diferentes instâncias apenas como modelos,
não são factíveis empíricos, coisas observáveis do mesmo modo universalmente. Talvez seja essa
26 A similaridade cultural também acontece quando se compara a América Latina sobre a organização política em torno da categoria
de homossexualidade (Green e Babb, 2002; Green, 2003).
27 Um reflexo pode ser visto ao longo das pesquisas feitas no país – e nas traduções também (ex. Gattarri, 1985 [1977]) – sobre
travestis, ao se observar como a menção no masculino começou a ser substituída pela no feminino. A reedição em 2018 da etnografia
de Edward MacRae (2018b, 2018c) realizou essa modificação em relação à época de sua escrita original nos anos 1980 e publicação
como livro em 1990. O próprio autor indicava no seu texto de revisão que os tempos mudaram, o que pedia essa adequação
(MacRae, 2018a).
28 Algumas vezes observei em campo travestis ou mulheres trans corrigindo aquelas de menor estrato social ou sem grande
articulação política como não sendo homossexuais. “Você não é homossexual, isso é algo que colocaram na sua cabeça”, ouvia em
resposta a alguma afirmação de ser homossexual vinda daquela que também se denominava uma travesti. O borrão continua.
29 Embora o coloque noutra chave interpretativa, Balzer (2010) havia indicado esse mote para a definição identitária.
36
uma das lições antropológicas mais valiosas e permanentes do trabalho de Néstor Perlongher (2008
[1987]) sobre a prostituição viril paulista. Na contramão de uma crescente análise da vida
homossexual da época, o autor não define os interlocutores com identidades rígidas de acordo com
uma ideologia de libertação própria do grupo então autointitulado de “entendido” (Guimarães,
2004). Perlongher prefere descrever as práticas desses prostitutos segundos seus próprios termos
de hierarquização e segmentariedade que encampam noções de masculinidade. A cor da pele, a
situação financeira, o corpo e a origem são importantíssimos para se estabelecer o valor nessas
relações. O masculino e o feminino são parte dessas conformações identitárias que se ligam, no
plano da análise, ao desejo. Assim, falar de masculinidade aí expõe de maneira contundente como
os sujeitos se percebem e como circulam em redes sociais, como travestis e michês se dão nesse
cenário como dois opostos de um mesmo espectro homossexual. Perlongher (2008, p. 153)
diferencia que nem todas as práticas sexuais entre homens configura-se como identidade, uma vez
que podem falar sobre e se referir a questões libidinais e territoriais. E, dado que sim, nem todas as
identidades são individualizadas, definidas e conscientes, mas há aí sujeitos cuja formação se dá em
permanente fluxo a partir dos encontros que realizam através, como diz, de “códigos e suas
superfícies de inscrição em zonas do corpo social”. Mesmo que o autor estivesse preocupado com
as formas que a prostituição e essa rede de contatos se estabelecia por meio do território urbano,
levando-o a falar em territorialidade marginal (do desejo)30, ele expõe as possibilidades em que
sujeitos se constituem não como unidades totais, mas segundo oposições várias de idade, classe,
sexo (homem/mulher), entre outros31.
O antropólogo argentino radicado no Brasil em muito antecipava discussões que tem
permeado a antropologia do norte global sobre a não universalização da totalidade que aquela
região denota de si mesma, embora essa abordagem continue a ter menor abrangência. Como
mostrou Peter Fry (2008) em seu prefácio ao livro, o modelo anglo-saxão que demonstra haver
homossexuais, bissexuais e heterossexuais, embora tenha um grande apelo, não encontra
correspondência cultural universal. Esse mesmo modelo anglófono para falar de práticas sexuais e,
consequentemente, na sua criação de sujeitos, indivíduos ou pessoas, se repete no âmbito das
30 Para uma análise de um contexto mais recente que esse sobre territorialidade marginal, mas envolvendo especificamente travestis
em Fortaleza, ver Alexandre Vale (1997).
31 Richard Miskolci (2017) em recente pesquisa sobre circuitos de desejo entre homens em aplicativos de mensagens (como Grindr,
Tinder, entre outros), procurou entender suas formas de atuação na escolha de parceiros e demonstrou também que o masculino e
o feminino são dimensões impressionantemente importantes. Isto é, gênero e sexualidade não estão separados. As escolhas dos
parceiros sexuais continuam a indicar questões de masculinidade, mesmo que agora o foco que Miskolci torna relevante seja aquele
das relações mediadas pela Internet. Mas esse não é um esforço analítico que tem sido feito no campo das experiências trans, com
raras exceções (Bento, 2006a; 2006b). A consolidação da transexualidade e travestilidade como dimensões diferentes da
homossexualidade – voltado tanto para gays e lésbicas como para o governo e para a biomedicina – tem dado pouca vocalização
política a práticas eróticas e relações afetivas. Minha intenção inicial era dar conta de identidades sexuais, mas como minha
perspectiva seguiu as importâncias construídas localmente para a saúde trans, descrevo mais a ideia de possuir uma identidade de
gênero. O cidadão sexual de Weeks (1998) se torna o cidadão de gênero. Ver Valentine (2003) para essa dinâmica no contexto
estadunidense.
37
experiências trans/transgêneras/transexuais. A universalidade dessas também é apelativa no
presente para trazer conforto subjetivo de algo tão desafiado no cotidiano, e isso acontece tanto
no cenário do norte global (Meyerowitz, 2002) como do brasileiro. Os argumentos em torno da
construção da saúde trans de modo estruturado pelo Estado é totalmente vivificada pela reiteração
da separação entre sexo (como algo biológico), gênero e sexualidade.
Nesse sentido, David Valentine (2004, p. 215, tradução minha) se perguntava: “quais
experiências humanas contam como de gênero e quais como sexuais?”. O autor é levado a
comentar sobre a relação desses dois domínios, e argumenta que eles não existem separadamente,
mas que tem se convencionado nas Ciências Sociais e Humanidades como esferas independentes.
“Gênero” se referiria aos significados por meios dos quais se saberia quem é masculino ou
feminino; já “sexualidade” seria usado para entender o que esses corpos “generificados” fazem
entre si nos chamados atos sexuais. A proposição de Valentine é de seguir a premissa de que mais
do que ver a intersecção entre gênero e sexualidade precisamos, como antropólogos, se perguntar
quais experiências vividas esses termos podem descrever para sujeitos localizados cultural e
historicamente. Mas isso não é algo totalmente particular ao autor ou a sua origem acadêmica, ela
atravessa boa parte da antropologia brasileira paralelamente – e em alguns casos anteriormente.
Sérgio Carrara (2016) mostrou que duas vertentes teóricas têm se estabelecido no seio da disciplina
quanto às análises a respeito da homossexualidade32. Uma chama de “relativista” ou
“construcionista”, na qual identifica como estando presentes, desde os anos 1980, antropólogos
como Perlongher, MacRae e Peter Fry – além de Ruth Landes, na década de 1940. Nessa corrente
é de especial atenção a preocupação com a não universalidade do par homo/heterossexual, o qual
em muito estava posto como reproduzindo de algum modo o modelo psiquiátrico vigente. Doutro
lado, chamando agora de posição “essencialista”, Carrara se refere principalmente a Luiz Mott, que
deteve uma afirmação que seguia aquela dicotomia. Essas são perspectivas diretamente encaradas
pelos próprios autores citados por Carrara e não é simplesmente uma classificação exógena. Assim,
mesmo no cenário interno da estabilização da homossexualidade ou no seu desafio estava presente
uma relação difícil para estabelecer os limites entre gênero e sexualidade. A oposição entre ser/estar
homossexual, em grande parte marcada na literatura pelas pesquisas de Maria Luiza Heilborn
(1996), também demonstra que tanto no campo intelectual como fora dele, homossexuais e sujeitos
que não se cabiam nessa categoria oscilavam entre essas correntes construcionista/relativista
sintetizadas por Carrara em sua revisão.
32 Os lugares da sexualidade na Antropologia têm sido indicados em diversas ocasiões tanto para observar a sua entrada como objeto
de pesquisa (Vance, 1991) como a influência das ciências sexuais no modelo confessional que a disciplina pode assumir nas
abordagens de entrevistas (Lyons e Lyons, 2004). Ver ainda Duarte (2004) para observar essas tensões de modo mais abrangente.
38
A identidade vai ocupar um lugar central nas interpretações e classificações a respeito da
diversidade do desejo e do masculino e feminino – como também tem se situado nas análises de
outras áreas da vida social enquanto um leitmotiv (Valle, 2012). Tanto antes das travestis inaugurem
de vez o gênero como esfera à parte da sexualidade de modo mais radical, como posteriormente
com a diferenciação que introduzia a teoria queer no país. Estabelecida no norte global,
precisamente na baía de São Francisco nos Estados Unidos, o queer surgia na década de 1990 como
uma nova preocupação em desestabilizar as posições fixas que os estudos gays e lésbicas haviam
elaborado para desvincular homossexuais do escopo patológico. Teresa de Lauretis (1991) seria
aquela que institucionalizaria esta teorização e dava vazão junto a autoras como Judith Butler a uma
nova forma de ver essas relações (Plemons, 2017). Mesmo que essa perspectiva não fosse
totalmente nova aos intelectuais brasileiros, principalmente antropólogos, como mencionei, se
introduzia uma nova tensão identitária e de construções corporais. É interessante notar, contudo,
que enquanto no cenário brasileiro isso é usado como uma ferramenta conceitual para falar de
transexuais após os anos 2000 – primordialmente na Sociologia e nas Humanidades –, na costa
leste estadunidense na década anterior o queer embora tenha sido uma ponte política para pessoas
trans fora posteriormente rejeitado por teóricas como Susan Stryker (1991; 2004). A política em
torno do queer havia reunido mais homossexuais e implicava, em alguns setores intelectuais, uma
replicação da visão patológica da transexualidade. Como reação acontece outra separação, a teoria
trans chamada ironicamente por Stryker de o “gêmeo mal da teoria queer”, que segundo a
historiadora procura se formar como uma interdisciplinaridade de um campo acadêmico
preocupado em “observar a transexualidade e o cross-dressing, alguns aspectos da intersexualidade e
homossexualidade, investigações históricas e transculturais sobre a diversidade de gênero humana”
(Stryker, 2006, p. 3, tradução minha). Essa interpretação da teoria indica muito sobre as condições
sociais das históricas teóricas33 segundo as quais estamos atravessados de modo diverso. No Brasil,
o queer despontou como uma plataforma para explicar também o desejo tanto de mulheres
heterossexuais como aquele não heterossexual através, por exemplo, de Guacira Lopes Louro
(1997) que fazia um movimento teórico queer feminista para não separar gênero da sexualidade no
sentido de enfatizar a permanente circulação do feminino, do masculino e do desejo entre corpos
incomuns aos trânsitos. Louro pontuava, inspirada por Foucault, Butler e Weeks, identidades em
33 Usando de maneira larga o termo elaborado por Mariza Peirano (ex. 2014), quando esta se refere às linhagens entre teorias e entre
pesquisadores num processo contínuo de renovação e tramissão de conhecimentos. A incorporação da teoria queer no Brasil a
transformou, não apenas quanto a aplicação do termo a sujeitos com outras histórias e práticas culturais, mas também quanto a
dimensão do seu significado. No âmbito internacional fora dos Estados Unidos, queer é usado muito mais como um termo de
tradução transcultural, favorecendo assim muito mais a compreensão de uma audiência acadêmica anglófona – principalmente
estadunidense – e menos a sua descrição.
39
fluxo em meio a pressão da produção dos “normais”. Essa seria uma grande influência para os
estudos sobre transexualidade no país.
A identidade, assim, tanto para falar de homossexuais (ou aqueles de categorias alternativas
para falar dos trânsitos do desejo) como para compreender transexuais e travestis, também foi uma
das grandes pedras de toque dos estudos socioantropológicos porque foi uma forma de realocar e
de expurgar a patologização biomédica (cf. Fry e MacRae, 1981). Uma preocupação que, como
indica Raewyin Connell (2012) pode, contudo, deixar muito espaço descoberto para outras
questões igualmente ou talvez ainda mais cruciais para o dia a dia de pessoas trans, gays e lésbicas.
A crítica de Connell à hiper localização da identidade – ou seja, a política identitária na sua virada
discursiva preocupada apenas com representação – se fundamenta na observação de que é no norte
global que isso se torna primeiro um problema, e então é replicado no sul global e na Ásia. Não se
trata de entender que estudos sobre identidades não sejam algo relevadores sobre, por exemplo, o
contexto de violência, mas que as histórias e as vidas cotidianas inquietam também para outras
direções. Quanto mais o antropólogo se volta para contingentes distantes da classe média brasileira,
por exemplo, ou quando o “essencialismo estratégico” de experiências estabilizam-se sem recorrer
apenas a uma identidade de modo minimamente idealista, se questiona e se tumultua o eu indivisível
e total. Assim, outros elementos podem ganhar cada vez mais destaque. Além disso, a dimensão da
materialidade deve ser igualmente problematizada e indicada quanto as condições que estabelece.
Nesse sentido, estou procurando apreender as experiências e as formas da sua expressão
que cruzam diferentes domínios e confluem dentro da mesma estrutura social. Ao citar Wilhelm
Dilthey, Edward Bruner (1986a, p. 5, tradução minha) propôs que aquilo a vir primeiro para o
indivíduo é sempre a experiência e depois a realidade. Isso não significa uma referência a
comportamentos porque isto implicaria, como aponta a leitura do autor, haver um observador
exterior descrevendo as ações de alguém como uma audiência num evento. A experiência só pode
ser percebida como algo vivido, "o que é recebido pela nossa própria consciência", e isso é
constituído através de um trabalho de manifestação simbólica que organiza aquilo que se conta. Ao
se preencher as lacunas entre realidade e expressões se cria a experiência que geralmente se acha
como dada. Não há aí nenhuma equivalência. Nesse sentido, a “mudança cultural, continuidade
cultural e transmissão cultural ocorrem simultaneamente nas experiências e nas expressões da vida
social” (Bruner, 1986a, p. 12). Assim, o trabalho antropológico de descrição, análise ou
interpretação sempre conhece o mundo em movimento:
Não há nenhum contato cru ou experiências ingênuas [naive experiences], já que pessoas,
incluindo etnógrafos, sempre entram na sociedade no meio. A qualquer momento,
existem textos anteriores e convenções expressivas, e eles estão sempre em fluxo. Só
podemos começar com a última demonstração visual, a última performance. Uma vez
40
que a performance é concluída, contudo, a expressão mais recente afunda no passado e
torna-se anterior ao desempenho que segue (Bruner, 1986a, p. 12, tradução minha).
Pelo caráter sempre individual da experiência, nenhuma proximidade subjetiva anterior
confere maior poder para uma compreensão mais profunda. O antropólogo Eric Plemons (2017)
e o sociólogo Henry Rubin (1998, cf. 2003)34, ambos com uma vivência de transição de gênero
pessoal e que realizaram pesquisa sobre universos trans no contexto estadunidense, mostraram que
não havia aí uma melhor acessibilidade a vida social para seu estudo “cientificamente informado”.
De modo bem similar, mas no Brasil, Arthur Costa Novo (2019) também indicou como sua
experiência de transição não o habilitou necessariamente para observar os interlocutores. Ao
procurarem “se incluir dentro do texto”, como Plemons escreve, esses autores perceberam que
seus pontos de partida os orientaram para olhar para determinados problemas para investigar, mas
isso não eliminava as diferenças com os sujeitos com quem interagiram. O que evidenciam é que
não há prejuízo para suas etnografias por compartilharem de elementos experienciais junto do
objeto da pesquisa. A antropologia, assim, tem se movido desde a concepção que estabelecia a
posição social externa do etnógrafo como uma condição para produção de conhecimento e passou
a perceber também que essa posição de “outro”, do estranhamento, poderia ser gerada
independente de se fazer ou não parte daquilo que se estuda (ex. Malinowski, 1961 [1938]; Abu-
Lughod, 1991; Appadurai, 1988). Se tomarmos como uma maior facilidade de entendimento ser
mulher ao se estudar mulheres, ou homens ao se estudar homens, ou qualquer outro exemplo,
entramos nos riscos de tomar a experiência como uma evidência naturalizada que esconde como
as categorias são socialmente produzidas, assim como mostrou Joan Scott (1991) a propósito da
historiografia da diferença, mas que também nos serve para pensar o trabalho antropológico. O
que há, assim, são acessos a contextos que podem ser facilitados, mas não a sua compreensão per
se. A aproximação experiencial que fazemos como antropólogos, portanto, faz parte de uma opção
de dar novos lugares às expressões daquilo que vivemos. Eu mesmo realizei vários desses
movimentos com relação aos interlocutores e às interlocutoras, sejam pessoas trans ou médicos.
Assim, eu detinha também uma trajetória de um tipo de saída do armário conflituosa, enfrentando
ditames sobre a ausência da normalidade do que eu viria a dar forma como uma identidade sexual
e nos deslizes que eu estabelecia diante de modelos de masculinidade. E isso foi um forte elemento
que elenco para formar meu interesse, desde o mestrado, para entrada nesse campo de pesquisa,
bem como abriu alguns caminhos na realização da etnografia.
34 Há ainda, por exemplo, o sociólogo Aaron Devor (1997) que se descobriu homem trans no final da sua pesquisa sobre
transmasculinidade. Ele iniciou o trabalho de campo como uma mulher, e chegou até a publicar sua tese em livro com nome
feminino. Posteriormente, com o contato com esse contexto deteve novas possibilidades subjetivas e corporais para seu
entendimento expressivo sobre o que é sexo e gênero, levando-o a republicar seu livro com seu nome atual.
41
Como Roger Abrahams (1986) colocou, o etnógrafo engaja uma consciência dupla, uma
vez que participa e observa ao mesmo tempo – e isso é importante porque precisamos considerar
que isso se aplica às autoanálises feitas pelos interlocutores em entrevistas, já que estas estão
enquadras pelas perguntas colocadas pelo etnógrafo; assim, observamos/testemunhamos a
formulação das expressões não apenas nas interações que acompanhamos, pois, essas entrevistas
se dão em contexto etnográfico. Nesse sentido, essa tese se propõe a descrever, ao longo dos
capítulos, uma narrativa da mobilização política de ativistas e pacientes trans e médicos para a
constituição da saúde trans. Ao colocar a etnografia como narrativa me alio aos termos pensados
por Edward Bruner (1986b), para quem as descrições que fazem antropólogos estão contidas em
tempos históricos específicos. As narrativas, assim, se tornam "dispositivos interpretativos" que
podem organizar essa experiência que o etnógrafo é duplamente consciente, e que não é o mesmo
que a realidade – tanto porque ela não existe sem sua expressão.
A filiação teórica que estabeleço nesta tese implica, a meu ver, expor as tensões e as
construções locais na forma de práticas ao mesmo tempo que procuro compreender os sentidos
dessas reificações sem, contudo, também naturalizá-las. Não estou interessado em representações
de modo isolado, mas sua coadunação com materialidades que geram limites à vida social. Assim,
observo que gênero e sexualidade ao ser modelos só podem ser apreendidos na prática. Essa
distinção tem sido constantemente evocada para mostrar como diferenciar os caracteres sexuais e
aquilo que permitiria indicar que não há produção natural de certos aspectos moleculares ou não
dos corpos comumente trazidos à transformação de machos e fêmeas em homens e mulheres. Algo
nesse sentido surge no contexto dos estudos sociológicos interacionistas para indicar que gênero é
algo que é feito, e sexo seria aquilo que é identificado segundo parâmetros socialmente constituídos
quanto aos cromossomos e a genitália, por exemplo. Candace West e Don Zimmermann (1987, p.
127, tradução minha) apontaram décadas atrás que gênero poderia ser visto como uma “atividade
de administração situada da conduta” segundo “concepções normativas apropriadas para uma
categoria sexual”. Eles faziam ainda a observação de que: “enquanto são os indivíduos que fazem
gênero, a empresa é fundamentalmente interacional e institucional em caráter, pois, a prestação de
contas é uma característica das relações sociais e de seus interesses. O idioma é extraído da arena
institucional em que essas relações são realizadas” (West e Zimmermann, 1987, p. 136-7).
É nesse esteio, como nos moldes do feminismo construcionista, que Judith Butler (2003
[1990]), ao tecer uma crítica sobre a construção da categoria mulher na política do feminismo
demonstra que a diferença sexual é um produto de práticas, isto é, feminilidade e masculinidade
não emanariam naturalmente dos corpos, mas são eles que produzem o sexo através da reiteração
em atos (performance) das normas que os regulam. Assim, gênero e sexo se confundem como
42
categorias indissociáveis, de tal modo que a percepção de quais elementos dos corpos são de
homens e quais são de mulheres mudam através do tempo histórico da nossa sociedade, bem como
através da criatividade humana35. Butler36 demonstra exatamente que é o reconhecimento do outro
e não apenas de si mesmo que constitui essa diferença. Ou seja, por meio de uma relação de troca
que é comunicativa através dos corpos e de seus atos que se possibilita um processo social que se
naturaliza e materializa o sexo. Contudo, isso não significa que a materialidade dos corpos não
tenha um lugar nessa formulação, mas sim que essa fisicalidade é interpretada coletivamente.
Assim, há uma gama de modelos que constroem o sexo, sejam o binarismo, a definição
cromossômica, a narrativa biológica, a definição genital, a da mudança cirúrgica e até mesmo o
modelo da performatividade que acabo de expor.
Por isso que não procuro em nenhum momento dessa tese definir o fim e o início do sexo
ou do gênero, tampouco os limites entre gênero e sexualidade. Minha orientação é a de descrever
como esses elementos definidores são articulados pelos interlocutores e pelas regras morais e
sociais que os envolvem. Além disso, não estabeleço de modo central uma definição da identidade
discursivamente segundo estabilizações no plano da fala. Na ocasião da minha dissertação me
dediquei a estudar as formulações de gênero enquanto masculinidade nas experiências de homens
trans. Observei naquele momento que havia uma preocupação maior desses sujeitos em entrar na
categoria homem na dinamização do que constituiria seus aspectos masculinos (Rego, 2015). As
questões envolvendo masculinidades têm sido frequentes ao se pensar a respeito das experiências
de homens trans, de modo a perceber como os modelos manejados por eles se diferenciam ou se
assemelham a sujeitos permeados por outras identidades sociais. Esses estudos são potentes para
indicar também como a entrada à categoria homem e aos significados sociais de corpos masculinos
são organizadores de um lugar no mundo na produção da subjetividade. Guilherme Almeida (2012)
já mostrou que há uma multiplicidade de “grupos” nos quais poderíamos observar circulando
variadas práticas e noções de si que têm crescentemente sido chamadas de “transmasculinas”, ao
se partir de pessoas que foram assignadas como mulheres ao nascer, mas que se inserem
variavelmente dentro de concepções, incorporações e modos de vida longe da categoria mulher.
As indicações do autor aliadas a esta pesquisa e aquelas que já citei acima me fazem perceber que
35 Assim, o desejo passa a ser visto como um sentimento vivido por sujeitos específicos, separados em seus próprios termos sem
que haja uma naturalidade para a produção da heterossexualidade, mas a sua compulsoriedade a partir de regras e relações sociais
(Rubin, 1975, 2002; Rich, 1980).
36 A popularidade de Judith Butler (1990), principalmente de seu “Problemas de gênero”, é largamente visível na discussão expressiva
de suas análises filosóficas não apenas no cenário acadêmico das ciências sociais e humanidades, mas também no âmbito profissional
da saúde e na construção de políticas públicas. Eric Plemons (2017) demonstrou que a teoria da performatividade do gênero da
autora foi tão ampla que impactou a forma como médicos compreendem o assunto. A própria autora indicou isso na segunda edição
10 anos depois do seu livro principal (Butler, 1999). No Brasil, percebe-se a citação de Butler inclusive em guias publicados pela
Sociedade de Pediatria Brasileira (SPB) (ver Capítulo 6). Para discussões teóricas mais demoradas do pensamento de Butler ver,
entre outros, Bento (2006), Plemons (2017) e Piscitelli (2012).
43
tem se gerado um deslocamento cada vez mais acentuado tanto de uma “mulheridade” como das
identidades lésbicas, permitindo uma nova feição para a implosão da categoria da
homossexualidade já iniciada anteriormente por travestis e mulheres trans.
Tem sido demonstrado, como mencionei, que os estudos têm sido ocupados com
travestilidades e transexualidades femininas, principalmente devido a menor visibilização política
organizada de homens trans. Simone Ávila e Miriam Grossi (2010) apontavam para essa ausência,
algo que fora vocalizado posteriormente por outros autores e autoras (Almeida, 2010, 2012; Arán,
2012; Bento, 2012c; Rego, 2015, 2017b; Oliveira, A. G., 2015). É constante, ainda, a observação da
variedade de outras nomeações que podem ser usadas para se referir a tais sujeitos como
transhomem, transexual masculino e as expressões estrangeiras Female-to-Male Transsexual (FtM) e
transman. Porém, tenho observado no cenário cearense – e talvez para o brasileiro em geral – que
esses termos em inglês são tributários de um “início” dessa identificação que foi marcada pelo
contato de brasileiros com discussões euro-estadunidenses. Mas, ao contrário da palavra gay que
ainda é massivamente utilizada no país isso não se repete nesse caso. Além disso, FtM não marcou
essa emergência nacional; um termo que tem sido cada vez mais rejeitado por deixar o trânsito de
gênero explícito, diferentemente de outros cenários37. Assim, procuro demonstrar como o
convencimento do Estado brasileiro sobre a necessidade da cobertura pública para a transição
encontrou maior ressonância da visibilização, de forma nova e transformada, daquilo que Almeida
(2012, p. 516) observou como o grupo de indivíduos que "fazem e/ou desejam modificações
corporais através da hormonização por testosterona e de uma ou mais intervenções cirúrgicas, além
de se valerem em larga medida de outros recursos sociais [...]”. Esse é um dentre vários grupos que
compõem o universo amplo das transmasculinidades que, como observei em campo, não se
aproximam apenas de um “modelo convencional” de masculinidade ao diversificarem os modos
de identificação, mas que tem a categoria homem trans como um estabilizador sociopolítico das
diferenças. Isso não pode ser visto, contudo, como uma “reação” ou “resistência” ao “Estado”
simplesmente, mas como parte de dinâmicas de participação da formação estatal.
Nesse sentido, quero entender nesta tese o que é feito dessa identidade na prática como
uma tática que traz variações de raça, de classe e de instituição da vida saudável para se ligar
legitimamente a um campo de atenção à saúde. Assim, foco no que é relevante para a legitimação
da mediação médica para a transição como objeto estatal. A formulação da saúde trans, assim,
continua a perpassar na sua ideação e aplicação a separação de gênero e sexualidade, mesmo que
não sejam vistos da mesma forma de outrora. Essa efervescência política é captada nesse campo
de cuidado demandado para ser oferecido pelo Estado brasileiro. Mas o encontro da saúde com a
37 Ver por exemplo, Aaron H. Devor (1997), Henry Rubin (2003) e Jason Cromwell (1999).
44
política que desafia o binarismo heterossexual não é uma novidade, é uma questão germinal e
perene – acompanhando, inclusive, o desenvolvimento das ciências médicas e psi e as constantes
tentativas de repatologização (Fry e Carrara, 2016). Mesmo que, a exemplo de outros campos da
vida social, a saúde não “encontra” a política, mas é constituída por ela desde sempre, engajamentos
militantes, eventos e situações limites colocam em relevo e dramatizam também aquilo que já estava
em atuação. Por outro lado, os encontros dos movimentos organizados no campo da saúde não só
podem ser traçados historicamente, como podem ser explicados como processos de politização de
diferentes matérias. As dinâmicas da epidemia da AIDS revivificaram de muitas maneiras esse
encontro e o ativismo de homossexuais tanto no sul como no norte global (Epstein, 1996; Parker,
1997; Valle, 2000), tendo sido inclusive a grande plataforma que catapultou a articulação
sociopolítica – e cultural – das travestis, como já mencionei.
Algo similar fora articulado antes por mulheres lésbicas, as quais inferiam (e inferem) que
não eram “mulheres gays” (Almeida e Heilborn, 2008, p. 225), nem a homossexualidade
(preferindo lesbianismo ou lesbianidade) comum com seus colegas homens, uma forma indiscutível
de igualdade na marginalização (Heilborn, 2004; Navarro-Swain, 2000; MacRae, 1990; Mott, 1987).
Além da institucionalização do cuidado em saúde envolvendo o HIV/Aids, e da posterior discussão
do cuidado integral, a organização estatal de serviços que auxiliassem a transição de mulheres e
homens transexuais foi outro ponto alto do contato dessas militâncias com o campo da saúde e
seus agentes e espaços. Mesmo que isso não tenha acontecido da mesma forma que o ativismo em
torno do HIV/Aids, os dois campos guardam diversas similaridades que serão exploradas ao longo
da tese por se referirem ao campo da biomedicina. Logo, se a estabilidade da homossexualidade
como experiência e identidade entra em colapso, entra também a capacidade de organização social
da cidadania em torno de si, bem como a procura e reivindicação de cuidados específicos no campo
da saúde. No intercurso dessa diferenciação que se pretende generalizada para fins políticos, sociais
e culturais, como esse universo busca e oferece as condições à formação de um campo da saúde
trans?
A biomedicina contemporânea e a heterogeneidade do campo social da saúde trans
Ao se demarcar um problema de pesquisa com uma perspectiva de partida, como propõe
Pierre Bourdieu (1989, p. 36), permite-se ao pesquisador tirar do estado impensado o seu
pensamento, tornando-se preocupado também em compreender como se compreende. Isso
habilita a pensar a própria perspectiva do pesquisador porque expõe a perspectiva do problema
que se considera. Em segundo, fazer uma “história social da emergência desses problemas” possibilita
não se tornar “objeto dos problemas que se tomam para objeto”, observando como não são dados
45
naturais da existência comum. Contudo, ao racionalizar como aquilo que é estudado nessa pesquisa
se torna importante, percebo que sua própria realização pode contribuir para criar socialmente os
homens trans através do campo da saúde trans com seus agentes, discursos, instituições e
problemáticas, tornando-se, em alguma medida, um instrumento de consolidação no pensamento
contemporâneo. Não porque seja esse meu objetivo, o de criar uma defesa de advogado de qualquer
universo, mas porque tem-se percebido na antropologia a irresistível utilização do conhecimento
da disciplina de forma apropriada por diferentes grupos sociais em suas conformações
sociopolíticas. É algo sobre o que não se detém controle, e isso não é alheio a formulação da
realidade de algum modo. Bourdieu (1989) demonstrou que um problema social é fruto de intenso
trabalho coletivo, socialmente localizado a partir de agentes sociais.
Em todos os casos, descobrir-se-á que o problema, aceito como evidente pelo
positivismo vulgar [...], foi socialmente produzido, num trabalho coletivo de construção da
realidade social e por meio desse trabalho; e foi preciso que houvesse reuniões,
comissões, associações, ligas de defesa, movimentos, manifestações, petições,
requerimentos, deliberações, votos, tomadas de posição, projetos, programas, resoluções,
etc. para que aquilo que era e poderia ter continuado a ser um problema privado, particular,
singular, se tornasse num problema social, num problema público, de que se pode falar
publicamente [...] ou mesmo num problema oficial, objeto de tomadas de posição oficiais,
e até mesmo de leis ou decretos (Bourdieu, 1989, p. 37).
Essa construção se dá tanto no nível das relações dos sujeitos aqui considerados, como no
nível de objetivação como problema para essa pesquisa. Dessa maneira, homens trans, e não
“transhomem” ou “transgênero”, se tornam uma figura da ordem do dia no país, de alguém sobre
quem nada ou pouco se sabia para alguém que se conhece, um amigo ou conhecido, ou mesmo
sobre o que “viu na novela” quando esta dinamiza uma publicidade penetrante nas consciências
coletiva e individuais. Contudo, não estou me preocupando basicamente com representação.
“Homem trans” é a palavra levantada politicamente pelos ativistas e pessoas comuns com quem
conversei e convivi, seja no cotidiano ou nos eventos que dão vazão às demandas sociais diante do
Estado, seja para ocuparem espaços de legitimidade e aceitação diante de suas famílias e de outros
vínculos sociais. Outro termo muito utilizado ao lado de “homem trans” é o que se refere a noção
de “transmasculino” para dar conta de diferentes construções identitárias de pessoas identificadas
ao nascer como mulheres – acepção muito manejada para responder a uma “lógica da inclusão”, e
que não deixa de ser ela mesma a tentativa de estabilização das margens. Por outro lado, o termo
transgênero, apesar de ser conhecido, não era uma categoria local com importância significativa
para esses sujeitos, mas como algo mais próximo das travestis e mulheres trans. Isso não quer dizer
que esse cenário seja estanque, e pode-se passar a adotar outras categorias como transgênero; algo
46
que tem crescido no cenário midiático. Atualmente, a transexualidade, segundo os interlocutores,
tem muito mais força política para justificar a saúde pública do que transgeneridade.
A dimensão médica da transexualidade tem sido um terreno altamente contestável, dentro
e fora das disciplinas biomédicas. Para dar conta dessa efervescência ao mesmo tempo cultural e
política é preciso olhar para a sua heterogeneidade e complexidade, ao incluir, sob seus próprios
aspectos a atuação de médicos e médicas e a atuação de políticas de governo nesse cenário. Isso
permite com maior alcance entender como as experiências trans são diversas e como se articulam
com a concepção do gênero mutável junto da existência de entidades que permitem ao sexo sua
mudança, tanto quanto àquilo que está a nível orgânico para além da pele, como hormônios, ossos
e cromossomos, como as partes dos corpos como genitálias, rostos, seios, pelos, entre outros, que
são tomados da pele para fora. Assiste-se a uma retomada do biológico como justificativa política:
“não somos de papel, somos de carne e osso”, “somos homens e mulheres biológicos”,
“precisamos de cuidado para conseguir transicionar”, e “eu não quero transicionar e adoecer”. Mas
isso não quer dizer que esses elementos sejam simbolizados e manejados praticamente de forma
igual. Há um longo processo histórico e social que criou a categoria transexual através de sua
própria medicalização. Contudo, esse processo não se dá de forma isolada, e é o desdobramento,
ou foi tornado possível, por toda a formação histórica do que é entendido como sexo, como aquilo
que divide homens e mulheres “biologicamente”, e de como se entende social e politicamente o
corpo humano (Laqueur, 2001; Rohden, 2009) como também indicou Berenice Bento (2006). Só
se muda porque existem as definições e uma base material que é entendida e transformada para
caber em indicadores dessas formulações ontológicas. Não é possível pensar apenas em termos de
representação. É necessário que se compreendas essas experiências sem lidar com a materialidade
corporal e as condições que impõem. Nesse sentido, assim como me disponho a tomar
gênero/sexualidade como categorias próprias do campo, busco entender como sexo/gênero
enquanto dicotomia para organizar o que é orgânico e o que não é prevalece como categorias
discretas que são usadas pelos agentes sociais diversamente. O “construído” e o “relativismo”
extrapolaram as ciências sociais na mesma medida que o “biológico” faz desde as ciências
biológicas no mundo social. É também numa tensão entre essas duas áreas de conhecimento, e na
apropriação que fazem delas os sujeitos, que se dá a organização social da saúde trans.
A década de 1950 assistiu ao desenvolvimento de uma teoria médica, entronizada por Harry
Benjamin, de que a desconformidade de alguém diante de seu sexo estava relacionada a ser na
verdade do sexo oposto, de modo que a única resolução terapêutica seria “mudar o sexo”
cirurgicamente. Toda uma vasta literatura tem se dedicado a analisar e descrever todo o percurso
histórico dos saberes médico-psi tanto da homossexualidade como da transexualidade. Cabe
47
apontar que essa categoria é distinguida, na biomedicina, de homossexualidade inicialmente para
denotar a primeira como “inversão sexual total” e a segunda apenas como “inversão sexual”
(Rubin, 2003). Quando, nos anos 1970, o termo “disforia de gênero” substitui o termo
“transexualismo”, a patologia migra do corpo para a mente nos manuais de saúde – mas cabe
entender como essas mudanças são interpretadas localmente por profissionais de saúde. Agora, o
problema a ser resolvido não está mais no corpo apenas operável, ganha força a concepção de que
o corpo era errado porque não se adequava a mente correta (Hines, 2010). O trânsito e o corpo
separado entre masculino e feminino são dimensões fundamentais próprias de processos históricos
e sociais.
Não se chega a nenhuma conclusão irrefutável ou a uma aceitação generalizada sobre as
causas da transexualidade – algo muito similar às contestações quanto a homossexualidade.
Médicos, biólogos, psicólogos ou psicobiólogos continuam a procurar tais causas e tais tratamentos
mais adequados; teorias neurológicas circulam e gracejam entre profissionais de saúde e entre as
próprias pessoas trans que estabelecem relações diferenciadas com tais explicações. Ao observar
que não há nenhum teste indiscutível, nem nenhum achado empírico que possa assim reclamar
para o terreno do biológico – essa esfera mesma uma dimensão sociológica que fascina os cientistas
–, a origem das vontades para mudança de gênero/sexo, se admite aqui um interesse pelas
construções políticas e sociais dessas explicações. É cada vez mais forte essa naturalização, numa
relação estranha entre teorias socioantropológicas e pesquisas neurobiológicas. Não há, por outro
lado, uma unificação desse contingente científico, e a força bioquímica da medicina contemporânea
pode assumir lugares variados, seja para procurar as causas orgânicas da transexualidade, seja para
se importar com uma segurança biológica da transição de gênero. É nesse segundo aspecto da
medicina trans que concentrei minha etnografia em Fortaleza, a entendendo mais como uma área
de atuação e menos como uma especialização ipsis literis. É esse elemento de impedir o adoecimento
desencadeado pela transição sem supervisão que une todos os interlocutores nesse campo social
de saúde trans que estou aludindo. Algo que demarco a partir da constituição desse cenário como
um problema legítimo. A doença assim ganha um outro lugar, ela se move daquele espaço da causa da
transexualidade, para a segurança de realizar a transição. Isso é apelativo aos agentes públicos, aos
políticos eleitos, aos médicos, aos ativistas, aos parentes e aos amigos.
Um dos periódicos mais famosos mundialmente por traçar grandes temas públicos de saúde
para profissionais, The Lancet, chegou inclusive a publicar uma série de artigos para mostrar a
necessidade da capacitação continuada de médicos e médicas para garantir acesso a direitos a saúde
trans. Mas isso não deixou de perpassar a máxima da segurança biológica da transição de gênero.
Sem realizar uma administração sintética de hormônios, como manter a saúde? Isso faz com que
48
parte do problema dessa legitimidade perpasse por pesquisas bioquímicas e médicas sobre o nível
celular dessas interações, e que isso seja ensinado aos profissionais de saúde. Ao se mover de
revistas ou plataformas superespecializadas, a saúde trans se consolida sem precedentes. Publicada
em 17 de junho de 2016, a série Transgender Health trazia como prerrogativa o estigma social
enfrentando por transexuais e transgêneros e como essa parte da população estava localizada no
mundo inteiro, tornando tais cuidados um problema de saúde global (Reisner et al., 2016; Wylie et
al., 2016). A interseção entre perspectivas sociais e bioquímicas se fundem, e, numa visão
transformada, o biológico entra aqui de maneira nova para não significar doença, mas a naturalidade
da diversidade humana: “a incongruência de gênero é mais comum do que estudos clínicos
sugerem, e pode estar ligada a fatores biológicos” colocava Sam Winter et al. (2016) no principal
artigo da série. No Brasil, mesmo que pesquisas médicas ainda sejam inexpressivas se comparadas
a outros temas (Pinto e Silva, 2019), pesquisadores têm realizado estudos de várias ordens como
aqueles interessados em gerar segurança para a administração sintética de hormônios em relação a
sua reverberação orgânica (Linhares, 2019), e até mesmo sobre origens bioquímicas ou
neuroquímicas da transexualidade (Spizzirri, 2016), de modo que se remete até a gestação. Não
considerar esse cenário nos dá uma visão parcial da saúde trans, uma vez que isso anima em muito
esse campo, não no sentido apenas de barrar o acesso a atenção estruturada, mas principalmente
para sua justificativa. Essa é outra faceta da humanização, da normalização das experiências trans.
Mesmo que as proposições publicadas no The Lancet não expliquem a realidade médica brasileira,
elas nos indicam como uma nova abordagem tem sido legitimada aí. Os médicos e as médicas que
acompanhei em serviços de saúde e em congressos acadêmicos e profissionais não apenas leem
periódicos como esse, eles também os transformam pela interpretação, aplicação local e
socialidades que formalizam com outros agentes sociais. Isso implica observar as interações não
apenas de agentes agrupados em campos distintos, mas principalmente as relações de visões de
mundos que se referem ao que Gilberto Velho (1975, p. 60) chamou de “sistemas de classificação”
que conformam “mapas de orientação através dos quais as pessoas e os grupos se situam no
mundo, estabelecem suas estratégias, traçam seus objetivos e se organizam em geral”.
Assim, é possível entender como fronteiras são constituídas e semelhanças silenciadas entre
esses espaços sociais mais ou menos organizados e o contrário quando se refere ao dinamismo
interno percebido pelos agentes. Quer dizer, a heterogeneidade e a contiguidade das trajetórias de
vida e das obrigações morais às quais esses sujeitos estão ligados não se explicam por uma oposição
de campos, ela tanto é interna quanto externa num trabalho contínuo de diferenciação. Não tive o
contato com nenhum homem trans – ou outra pessoa trans e travesti – que não pertencesse a
camadas urbanas baixas. Assim, nenhuma diferença posso estabelecer quanto a sujeitos trans entre
49
variados estratos sociais. Em contrapartida, médicos e médicas estiveram com maior estabilidade
em camadas médias ou médias altas38, haja visto o status que a profissão confere. No senso comum,
a imagem do médico como alguém de alto status social devido a uma representação financeira de
vulto pouco fala sobre contratos precarizados, diferenças de gênero e sexualidade e sobrecarga de
atividades no trabalho. Portanto, a renda não é um fator decisivo para explicar as trajetórias dos
interlocutores em termos de divergências de campos sociais. O campo é importante na descrição
analítica para expor as linhas morais e sistemas de prestígio nos quais se situam e a que estão
fidelizados na sociedade contemporânea e não para conferir unidade absoluta que estabeleça
hierarquias entre vocabulários, ideias e práticas. Isso não quer dizer que os interlocutores não
avaliem uns aos outros, mas que não cabe ao antropólogo realizar tal avaliação, e sim mostrar como
ela funciona. Assim, cumpre observar como se dão os movimentos em redes que ligam seus
interesses políticos, profissionais e pessoais, situando posições de classe em um cenário mais
aberto. Como demonstrou Bourdieu (1987, p. 4, tradução minha), a classe social é antes um
construto teórico, mesmo que seja estabelecido sob uma base empírica. Como não existe na
realidade, esse conceito é uma objetivação contida na tarefa do analista de “construir o espaço que
nos permita explicar e predizer a maior quantidade possível de diferenças observadas entre
indivíduos, ou, o que é o mesmo, determinar os principais princípios de diferenciação necessária
ou suficiente para explicar ou predizer a totalidade de características observadas num dado
conjunto de indivíduos”. A dimensão econômica não é irrelevante, mas deve ser atravessada por
outros elementos das trajetórias vividas nesses espaços39. Por isso que é mais importante entender
as práticas através das quais os agentes se constroem, diferenciam e se assemelham entre si no
modo como estão enredados em habitus que são materializados como subjetividades em ação40.
Ao propor observar o campo da saúde trans como um espaço mais ou menos organizado
no qual redes se encontram, antes de formar grupos sociologicamente estáveis, não quero apontar
apenas para o elemento heterogêneo do cenário urbano. A vida social, o cotidiano, objetivada pela
análise aqui recobre relações que se estabelecem entre organismos e estruturas sociais que se
materializam em dinâmicas e contestações de poder e de reprodução social, como Estados-nação41,
38 Segundo o sentido que lhe deu Gilberto Velho (1974; 1981), denotando uma categoria socioeconômica mais ligada à renda.
39 Bourdieu (2006 [2000]) mede as posições no espaço social que constitui uma classe, ou um mundo social estruturado, a partir da
acumulação e circulação de recursos que os agentes sociais estabelecem. O autor realiza uma análise quantitativa para estabelecer o
peso desses recursos a tal ponto que haja uma certa precisão na localização no espaço a partir da possessão de capitais (ver também
Bourdieu, 1996c). Mas não recorrerei a essa técnica de análise. Estou mais interessado, contudo, em aplicar a ideia do campo como
um conceito abstrato, o qual é capaz de construir metodologicamente um espaço de atividade que tem uma emergência e uma certa
estrutura segundo processos de diferenciação.
40 A noção de habitus é importante nessa teorização porque une o agente a estrutura que lhe condiciona. Como um “sistema de
disposições duráveis e intransponíveis” unem “as experiências passadas” ao presente, ao mesmo tempo que compõe “uma matriz
de percepções, de apreciações e de ações” (Bourdieu, 1985, p. 65). Algumas leituras do autor entendem essa sua proposição como
hiperdeterminista, mas compreendo junto com ele que a estrutura é o plano que confere possibilidade ao agente, inclusive de
transformação de si mesmo.
41 Estou aqui mais interessado na dimensão estatal e menos na questão nacional.
50
corporações, organizações profissionais, associações políticas. Um fator particular disso se
circunscreve com a forma como a vida humana é entendida, manipulada e constituída, isto é, na
forma como se produzem políticas da vida.
Assim, o universo da saúde trans não pode ser entendido se não for feita referência ao
“século biotécnico” em que se constituiu o século XX, uma era de crescentes novas possibilidades
bioquímicas e médicas que foi, em primeiro lugar, o nascimento da categoria transexualidade. O
presente maleável dos corpos, com suas predições, traz à tona diversos pessimismos e anúncios do
fim da vida pela sua manipulação, como apontou Nikolas Rose (2007). Os procedimentos que são
necessários para encarnar uma transição de gênero segura biologicamente são próprios desse novo
espaço da biopolítica contemporânea e suas mudanças identificadas pelo autor. Ou, como chamou
mais diretamente, “caminhos”: o primeiro consiste num “estilo de pensamento” entendido como
molecularização. A vida é vista a nível molecular, “como um conjunto de mecanismos vitais
inteligíveis entre entidades moleculares que podem ser identificadas, isoladas, manipuladas,
mobilizadas, recombinadas, em novas práticas de intervenção, as quais não são mais contidas pela
normatividade aparente de uma ordem vital natural” (Rose, 2007, p. 5-7, tradução minha). O
segundo degrau dessa política, a otimização, diz respeito às tecnologias da vida que não estão mais
contidas por “polos” antagônicos entre saúde e doença. Rose aponta que isso não significa o seu
fim, mas que as intervenções procuram se apoiar nas melhores consequências para o futuro. Isso
tudo não deixa intacta a percepção do que são os seres humanos, e por isso novas formas de
subjetivação emergem. Assim, a cidadania é atravessada por essa nova ordem biológica, e no caso de
homens trans que procuram acesso a serviços, os direitos à saúde são estabelecidos em novas
formas de politização da vida. Nesse sentido, o abandono ou a vitória sobre perspectivas
patologizantes não implicam a ausência de outras formas de governo de condutas. As profissões
que demandam controle de expertise continuam a surgir, como aquelas apontadas por Rose, e
diversas formas de “administração de aspectos particulares” do que chama de “existência somática”
se materializam.
Esses caminhos geram, assim, o que o autor chama de economias de vitalidade. Elas incluem o
mundo social da transição de gênero assistida pela profissão médica e seu arrazoado científico. O
ser saudável se atualiza em dimensões que capitalizam biovalores e maneiras também novas de
buscar a verdade dos sujeitos. E isso não se dá apenas nas pesquisas que procuram a origem da
transexualidade, seja nos cérebros de pessoas trans ou nas gestações de suas mães, mas está contida
no cotidiano da busca e do atendimento em saúde no seu nível mais micro. E, principalmente, na
argumentação política em torno da garantia da oferta desses serviços. O direito à transição de
gênero medicamente supervisionada ganha um espaço nessa ordem da vida na qual a política se dá
51
em termos novos, de controle genético e de descobertas neurológicas. Quanto mais cientistas se
engajam em práticas que tem o sentido de aperfeiçoar procedimentos para efetivar a transição de
gênero, seja no nível celular ou não, mais se estabelece outra perspectiva para a biologia dos corpos.
Os estudos sobre transexualidade têm se concentrado grandemente nas tensões, violências
e no dinamismo sociológico que as formulações psiquiátricas postulam para a sua definição, haja
visto que tem sido as ciências psi uma porta de entrada para concretização de supervisão médica e
status legal da mudança de gênero. Mas, um outro lado disso tudo permanece descoberto: as
ciências bioquímicas. Como a repartição do sexo em várias partículas celulares e teciduais
circunscrevem o reconhecimento e a medicalização? Como organizam visões de mundo e unem –
mais do que separam – cientistas/médicos e pacientes/ativistas? Quais os lugares que esses saberes
ocupam na nova reformulação, no presente, de uma saúde trans segura? Não simplesmente para
dar vazão a oposição doença/normal, uma vez que essa dicotomia tem cada vez mais sido arrasada,
mas enquanto transição saudável/transição não saudável e transição com/sem saúde que, portanto,
causa doenças. Como o controle do diagnóstico é realizado, agora que há outra chave interpretativa
disponível? Se a transexualidade não é mais diagnosticada, como se dá essa leitura do outro através
da preocupação com a saúde dos órgãos, dos tecidos, de tudo aquilo que está da pele para dentro?
Isto é, como a segurança biológica se constituiu um elemento político para corroborar a
necessidade de o Estado nacional brasileiro assegurá-la em serviços de saúde? Talvez seja mais
importante chamar de segurança bioquímica, por ser essa uma junção de áreas de ciências distintas,
mas que se complementam. Contudo, prefiro o termo biológico porque esse ocupa uma
identificação rápida no senso comum presente no campo quanto a postulação da dicotomia
natureza/cultura.
“Primeiro o meu Ceará”
No Brasil, o ativismo e a saúde trans ganharam um novo capítulo histórico com a ascensão
decisiva de sujeitos com a identidade denominada de homem trans. Muito particularmente, esse
adjetivo, como apontei, tem sido um diminutivo de transexual e não de transgênero. Cientistas
sociais que procuraram historiografar o movimento de gays, lésbicas, travestis e pessoas trans no
país, como Mário Carvalho e Sérgio Carrara (2013), mostram que foi no decorrer da década de
1990 que, inspirada pela entrada de mulheres trans advindas do exterior, a categoria mulher
transexual ganhou mais relevo nessa mobilização social brasileira. Esse era o mesmo período em
que travesti se tornara uma identidade apartada da homossexualidade, e segundo, em que
associações políticas nasceram em quase todo o Brasil.
52
Como me ensinaram os interlocutores mais experientes, como o cearense Silvio Lúcio (54
anos) a movimentação transmasculina veio de modo muito mais tardio e foi marcada inicialmente
nesse mesmo período como figuras isoladas e desafiadas como identidades legítimas. Figuras
também como Alexandre Peixe (2018)42 e João W. Nery (2012, 2018) passeiam nesse cenário, junto,
desconfio, de outras pessoas que não ganharam os holofotes políticos. Semelhante ao que ocorreu
na cena estadunidense (Califia, 1997; Prosser, 1998a; Stryker, 2017; Valentine, 2007), livros
biográficos como o de Nery deram amplitude a essa categoria tida como nova por alguns
pesquisadores. As narrativas pessoais, contadas em primeira mão, se tornam impressionantemente
relevantes para que esses sujeitos saiam do anonimato (Ávila, 2014). É no virar dos anos 2000, com
intenso crescimento nos anos 2010, que associações transmasculinas se multiplicam e essas
identidades se tornam nacionalizadas. Nesse sentido, as pesquisas até agora feitas no país, como a
de Simone Ávila destacam inicialmente o Núcleo de Apoio a Homens Trans (NAHT) com atuação
em São Paulo e contato intenso com as formulações do Processo Transexualizador do SUS.
Andreas Boschetti era o seu coordenador, e como registra Ávila (2014), a partir de e-mails, o
interesse desse grupo estava em disseminar informações sobre os procedimentos cirúrgicos e
legislação específica para homens trans. Se cobrava aí diretamente o Hospital das Clínicas de São
Paulo, ligado à USP, para que os “riscos” e “benefícios” dessas cirurgias fossem explicados. Se essa
é uma articulação localizada, logo surge uma outra associação que sonhou com uma ação coletiva
coordenada por todo o país.
Foi o caso da Associação Brasileira de Homens Trans (ABHT) que se oficializou em 2012,
com irradiação política desde Recife, em Pernambuco, bem como na capital paulista. Com destaque
especial para ativistas como Leonardo Tenório, Leonardo Peçanha e Raicarlos Coelho, as ações do
grupo tentavam ultrapassar as fronteiras dos estados. Como mostrou Ávila (2014, p. 194), os
objetivos apresentados em eventos pela ABHT se referiam a despatologização da transexualidade
e buscavam “reivindicar a participação na construção de políticas públicas afirmativas para que as
pessoas trans tenham acesso a direitos fundamentais como saúde, educação, trabalho, habitação e
segurança” e a respectiva valorização de identidades que a autora chama de “transhomem”.
Contudo, essa articulação se enfraqueceu por disputas internas, e como dissidência de alguns de
seus integrantes sulistas deu nascimento, em 2013, ao Instituto Brasileiro de Transmasculinidades
(IBRAT), filiado agora a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA) (cf. Ávila,
2014) que teve ampla abrangência nacional43. O então novo grupo acompanhava a estrutura
42 Em recente artigo publicado em parceria com Fábio Morelli, Alexandre constrói um depoimento biográfico no qual reflete sobre
seu papel no movimento de homens trans ao denominá-los como “homens do futuro” (Peixe e Morelli, 2018).
43 Simone Ávila (2014) oferece um panorama nominal sobre o surgimento dessas três associações, ao partir de uma pesquisa por
meio de sites da internet, listas de e-mails, e ida a eventos políticos e entrevistas.
53
nacional da ANTRA, e foi pouco a pouco estabelecendo núcleos com coordenadores locais em
vários estados. Essa forma de organização do IBRAT é uma pedra de toque, se não para gerar uma
unidade política – que tem se demonstrada enfraquecida –, mas para oferecer um canal inicial de
vinculação. Entre 2014 e 2015, através de etnografia que eu realizava então em Natal, no Rio
Grande do Norte, pude acompanhar o surgimento do núcleo potiguar (Rego, 2015). Em reunião
numa das salas de aula da UFRN, ativistas da ANTRA apresentavam a homens trans interessados
do estado a possibilidade de filiação, com escolha de diretoria própria local. Isso gerou uma
importante plataforma, mas não pode ser visto como o único meio através do qual esses sujeitos
tiveram acesso a informações sobre procedimentos e legislação relativa à saúde trans que nascia no
país naquele período mais voltada para eles.
Aos poucos, disputas também locais dão nascimento a outras associações potiguares que
não estão ligadas ao IBRAT44. Desconfio que essas dinâmicas têm se desenvolvido em todo o país,
e, na medida que associações aglutinadoras têm sido importantes veículos para acessar gestores na
capital do país, elas também se mostraram de pouca força na cena local. Esse é o caso particular
também de Fortaleza, no Ceará, onde ativistas homens trans tanto participaram da criação do
IBRAT, como, posteriormente criaram outras associações locais com ou sem vinculação. É o caso,
inicialmente da Associação Cearense de Homens Trans (ACETRANS) e sua dissenção posterior,
a Associação Transmasculina do Ceará (ATRANSCE) que funcionam com estatutos e existência
jurídica próprias desde a segunda metade da década de 2010. Como noutros lugares, a cena política
transmasculina entra em relação, e é também um produto, com outras organizações locais de gays,
lésbicas, travestis e mulheres trans. Na terra cearense, esse ativismo pode ser traçado desde a
organização do VII Encontro Nacional de Travestis e Transexuais (ENTLAIDS) que, desde 1993
tem agido no enfrentamento e promoção da saúde relativa a pandemia de HIV/AIDS. Ao lado do
Grupo de Resistência Asa Branca – grupo de militância homossexual criado em 1989 –, a nascente
Associação de Travestis do Ceará (ATRAC) organizaram o evento que deu lugar no seu
encerramento à primeira Parada pela Diversidade Sexual de Fortaleza (Cândido, 2013).
Desde 2005, durante a XII edição do evento, é que ativistas transmasculinos se tornam
conhecidos por se registrarem com essa identidade (Peixe e Morelli, 2018). O que não significa que
esses sujeitos não estivessem presentes ou que estivessem situados em novas formas de
subjetividade diferentes de mulheres lésbicas. Tanto Peixe como Silvio Lúcio demonstram que
foram como lésbicas que entraram nessa cena política e que se sentiam inadaptados; algo diferente
de uma segunda geração de ativistas que começam a organizar eventos específicos45. É o caso, em
44 Nesse cenário são também importantes grupos como a Atransparência, coordenado pela ativista e geógrafa Rebecka de França e
a Atrevida, liderada por Jaqueline Brasil. Ver Rego (2015) para o nascimento do ativismo transmasculino no Rio Grande do Norte.
45 Similar ao contexto estadunidense (ver Rubin, 2003).
54
2013, do I Encontro de Homens Trans do Norte e Nordeste – e do país – organizado pela ABHT.
Realizado no Centro de Ciências Jurídicas da UFPB, em João Pessoa, contou ainda com o apoio
do Governo do Estado através da Secretaria da Mulher e da Diversidade Humana. Na ocasião,
tanto João W. Nery como Sílvio Lúcio estiveram presentes, o primeiro relançando sua biografia, e
o segundo, a sua primeira cinebiografia, o documentário Olhe pra mim de novo (2012), dirigido por
Kiko Goifman e Claudia Priscilla46. Entretanto, outro evento terá ainda mais projeção, embora
ambos tenham sido marcados por conflitos e contendas políticas. Dois anos depois, de 20 a 23 de
fevereiro de 2015, a dissidência da ABHT, o IBRAT realizava em São Paulo o chamado I Encontro
Nacional de Homens Trans (ENAHT). Também realizado noutra universidade pública, agora na
USP, o evento contou com a presença de ativistas de vários estados do país. Como resultado,
lançaram a Carta São Paulo. Um documento no qual apontavam treze pontos em caráter de
manifesto, sendo o oitavo o termo identitário que a mobilização nacionalizada iria seguir:
Este Encontro reafirma homens trans como a identidade política aglutinadora do nosso
movimento, sendo reconhecidas e citadas em todas as nossas ações e documentos o
amplo leque de transmasculinidades e as demandas correspondentes a esse amplo
conjunto de sujeitos, que inclui homens transexuais, homens trans intersexo e não
binários. Reitera também a necessidade de contemplar a diversidade de regional,
geracional, étnico-racial, de inserções de classe e de identidades e de expressões de gênero
no movimento (Carta São Paulo, ENAHT, 2015).
Essas dinâmicas são, portanto, recentes e igualmente vigorosas. Contudo, é preciso olhar
para isso tudo como um construto de legitimidade que organiza experiências bem diferentes entre
si47. Se repete em muito as formas políticas de subjetivação de outras identidades sexuais e de
gênero em evidência desde a década de 1980 no Brasil. O engajamento de travestis no cenário da
pandemia de HIV/AIDS demonstrava que sofriam formas diferentes de estigma (Vale, 2005), mas
homens trans embora também tenham usado o ENTLAIDS se diferenciam pelo seu foco crescente
na transição de gênero. Esses engajamentos se constituem com muita intensidade em torno da
retórica dos direitos humanos, os quais serão remetidos ao longo da tese como práticas culturais
contextualizadas (Preis, 1996; Segato, 2006). Atualmente, há uma diversidade considerável de
associações e de cenários de constituição políticas que nem sempre são nacionalizados segundo
olhares de pesquisadores.
Ao partir da região metropolitana de Fortaleza, no Ceará (ver Figura 1), a pesquisa procurou
situar-se ao mesmo tempo num enfoque algo regional e suas ligações nacionais e externas ao Brasil.
Essa abordagem traz desafios à descrição etnográfica, mas se fia no modo como os problemas
46 Lançado internacionalmente em 13 de fevereiro de 2012, o documentário foi indicado na categoria Melhor Documentário no
Teddy Award, um dos maiores festivais de cinema queer do mundo.
47 Outros Encontros têm sido organizados no país ao longo dos Estados que não tem ligação com o ENAHT, que também não
teve ainda uma segunda edição.
55
encarados se tornam relevantes localmente. As dinâmicas de ativismo trans em torno da saúde se
valem abertamente da necessidade de que as táticas de convencimento diante do Estado se
concentrem na própria cidade onde vivem porque chegaram à conclusão, após intensa participação
em atividades políticas noutras partes do país, que sem focalizar o lugar onde vivem os outros
ativistas de fora não o farão. “É preciso lutar por si e pelos seus”, diziam constantemente. Isso é
também o caso para preocupações advindas de outros agentes sociais, médicos e burocratas, quanto
a conformação de serviços que porventura venham a se tornar assistência trans. Esses últimos não
podem ser vistos como “respondendo” a pacientes que procuram atendimento, eles são parte dessa
dinâmica local e não uma reação. E isso se mostra numa intricada escala que, ao mesmo tempo, é
descrita como começando e terminando na região.
Nesse cenário, a conformação de um ativismo biossocial se erigiu como condição para que
se defendesse a abertura de um ambulatório, objeto em torno do qual a militância local tem se
dedicado grandemente desde seu nascimento – tendo sido, inclusive, a motivação para tal
associativismo. Em muitos aspectos diferentes e semelhantes às biossocialidades das identidades
clínicas construídas em torno do HIV/Aids ou HLTV (Valle, 2013), a demanda por direitos em
saúde trans se firma em negar a categoria médica nosológica (mesmo que não possa desconsiderar
as linhas ativistas que são contra a despatologização por fatores diversos). Assim como esse
contexto do HIV, nas palavras de Carlos Guilherme do Valle (2015), faz surgir um conjunto novo
de seres e coisas científico-biomédicas, a categoria transexualidade e suas técnicas biomédicas de
intervenção e classificação faz suscitar questões ligadas a moralidade, a ciência, a saúde, e,
principalmente a vida e a morte. Nesse sentido, procuro demonstrar como as dinâmicas por
cidadania em saúde do ativismo trans cearense ganham uma configuração biossocial. Muito embora
a transição de gênero – nem muito menos a transexualidade – seja uma questão de genômica
(Rabinow, 1996) ou de infecção de um vírus como o HIV que têm produzido uma formação
identitária a partir de uma condição biológica (Valle, 2015), essa experiência tem sido constituída
pelas formas como o conhecimento biomédico e suas tecnologias da vida leem e tomam os corpos
humanos (Rose, 2007). A chave desse ativismo trans tem se concentrado em dois fatores
primordiais que expõem fatores biológicos que são politizados ao mesmo tempo que são base para
subjetivação: o primeiro diz respeito ao argumento de que doenças decorrentes, por exemplo, de
neoplasias ou outras interações orgânicas patológicas podem ser reverberadas por uma transição
de gênero malfeita ao não se ter a supervisão médica; e, em segundo lugar, a ausência dessa transição
concluída acarreta uma vulnerabilidade que é pública por expor corpos ainda não acabados que
podem ser lidos dúbios e assim serem suscetíveis à violência de terceiros. Essa é uma segurança
biológica – ou uma biossegurança – que deve ser garantida pelo Estado brasileiro através do
56
Sistema Único de Saúde e pela aplicação científica de saberes sobre o corpo a nível molecular, uma
vez que a transição foi erigida localmente como uma condição para o acesso a cidadania plena de
sujeitos trans. Esse ativismo biossocial – segundo os termos de Valle (2015) – portanto, cria uma
biocidadania como estratégia política. E isso acontece dentro das formas que a biopolítica
contemporânea tem tomado, o caráter vivo do ser humano através da biomedicina e seu
desenvolvimento biotecnológico. E, no Ceará, isso ganha contornos próprios e vinculados em
diferentes escalas a outras regiões do país e da metrópole global.
***
Iracema, anagrama de América, seria a mulher virgem que era a guardiã dos segredos da
jurema, um vegetal que provoca estados alterados de consciência, e que teria se
apaixonado pelo homem branco, que aportou na costa. O casal multiétnico e
multicultural gerou o primeiro cearense, Moacir, o filho do sofrimento. O homem se
afasta, a mulher morre depois de dar à luz o filho e começa aí um processo de errância,
um mal-estar que não conhece tréguas, diante da aridez e infertilidade do solo, da escassez
de água, da pobreza atávica e da fome ancestral que nos marca até hoje (Carvalho, 2014,
p. 264).
A leitura do romance de José de Alencar, como mito fundador do cearense é feito por
Gilmar de Carvalho que elenca em seu artigo um número expressivo de elementos culturais locais
que são forjados na busca por uma particularidade. Os monumentos a Alencar se espalham pelo
estado, como na escultura da índia à beira mar ou a cidade que recebe seu nome. A pujança do
Centro Dragão do Mar, do Museu de Arte Contemporânea do Ceará e do Museu da Cultura
Cearense, bem como de outros organismos do governo estadual e municipal celebram o vigor da
criatividade local inscrita na literatura, na música, no cinema, nas artes plásticas, no teatro, e dão
lugar também aos movimentos por direitos. Esses e outros espaços compõem as cenas etnográficas
descritas nesta tese, mas não busco realizar nenhum estudo de comunidade. Não cabe, ainda,
retomar a história cearense desde os tempos da colonização e império. Mas, algo me impressionava
de modo particular, como um olhar de fora, e se referia ao cipoal intenso de atividade política de
grupos marginalizados.
As pesquisas realizadas sobre diferentes temáticas cearenses demonstravam uma
quantidade difícil de calcular de grupos organizados e de questões emergentes envolvendo
etnogêneses e sociogêneses indígenas e quilombolas, articulação por moradia de moradores de
favelas, periferia urbana ou comunidades marginais, acesso a saneamento básico, direito à cidade,
política eleitoral, farmácia viva no SUS e conselhos de saúde locais, e tantos outros48. Eu me sentia
num caldeirão de cidadania quanto mais visualizava essa literatura e vivia experiências etnográficas
48 Ver por ex., Richard Park (1999), Irlys Barreira (2001), Guilherme do Valle (2003), Alexandre Vale (2005) e Jessica Jerome (2014).
57
em torno dos direitos à saúde trans. Um dos amigos que fiz em campo me perguntou uma vez ao
que eu atribuía essa efervescência política na região. O que explicava haver tantos movimentos
sociais diferentes e tantas organizações atuantes ao longo de um considerável período histórico?
Embora não tenhamos chegado a nenhuma conclusão sobre origens, eu não deixava de associar
essa indicação, de que a política organizada era algo pulsante, com as próprias interpretações locais
sobre viver ali uma gente aguerrida e destemida. “O cearense vai à luta”. Algo que se confirmava
quando um ativista trans, refletindo sobre o engajamento que deveria formar, me disse: “primeiro
o meu Ceará”.
Essa minha observação não se dava por decorrência de uma surpresa por não esperar que
isso fosse possível, mas por comparar o Ceará com o próprio estado no qual eu nasci e cresci, seu
vizinho, o Rio Grande do Norte onde eu havia feito também uma pesquisa como já mencionei49.
Com isso eu ia estabelecendo leituras comparativas entre os dois contextos, algo que não replico
aqui, mas que compôs inicialmente meu dia a dia. A desigualdade social dos dois em muito os
aproxima50 e fora outro elemento que me saltava.
Numa pesquisa encomendada pela Fundação Perseu Abramo, organizada por Alfredo de
Oliveira (2014) na sua edição cearense, se mostrava uma forte desigualdade de acesso a renda. Dos
9 milhões de habitantes do estado contabilizados até 2010, mais de 4 milhões viviam apenas na
região metropolitana da capital. Os autores apontavam que “em 2000, o Ceará apresentava o pior
Índice de Gini entre os 27 estados brasileiros (0,626), evoluiu para 21ª colocação em 2010 (0,556),
ou seja, em dez anos reduziu a desigualdade em 11,1%, bem próximo da redução da
desigualdade brasileira (10,2%)”. Apesar de ter sido uma das regiões nas quais mais pessoas
ascenderam da extrema miséria entre 2006 e 2011, considerando apenas índices como o de
desenvolvimento humano51 e o coeficiente de Gini – que mede a diferença de renda entre os mais
pobres e os mais ricos –, a desigualdade social tem figurado com grandíssima intensidade.
Eu não conhecia Fortaleza antes de iniciar o trabalho de campo. A escolha pela cidade para
a pesquisa se deu pela sua proximidade com o Rio Grande do Norte e pela minha curiosidade sobre
questões ligadas a diversidade sexual e de gênero naquela região. Ao morar no Ceará, uma das
minhas principais preocupações era a de não reproduzir estereótipos que são produtos fáceis de
explicações sobre quem é e o que faz uma população circunscrita seja qual for o critério. Mas, cabia
49 Não se trata de comparar culturas políticas, aplicando os termos de Robert Putman (1996), para medir uma participação
democrática. Não é sob a chave do civismo que entendo aqui a política, mas como prática cultural e social que atravessa diferentes
espaços e via diversos agentes como setores do Estado brasileiro, associações ativistas, organizações médicas, prática clínica,
cuidado, abrigos, entre outros que serão descritos ao longo do trabalho.
50 Sobre o contexto socioeconômico norte-rio-grandense ver José Spinelli (2014).
51 O IDH é uma medida geométrica usada por economistas para se estabelecer o “índice de desenvolvimento humano”, e usa uma
média ponderada a partir de outros três índices: a expectativa de vida ao nascer, índice de educação (anos médios/anos esperados
de escolaridade), e o índice de renda, levando em consideração o produto interno bruto per capita.
58
entender o que havia de diferente e semelhante ali sobre o ativismo e a saúde trans em relação a
outras regiões do país já registradas no assunto. Algo que procuro demonstrar ao longo da tese.
Como parte rotineira de uma revisão bibliográfica, segui pesquisas já produzidas por outros
cientistas sociais para poder estabelecer uma relação com que eu passava a observar na minha
própria pesquisa. Assim, procurei inicialmente por estudos sobre gays, lésbicas e pessoas trans que
percebi serem numerosos em muitas áreas do conhecimento entre pesquisadores locais e advindos
de fora. Contudo, eram escassas ou inexistentes discussões em torno do tema específico dessa tese.
59
Figura 1 – Mapa político da cidade de Fortaleza, Ceará52
52 A cidade era dividida entre 7 regionais como mostradas no mapa até 2019, divisão criada pelo Governo Juraci Vieira de Magalhães nos anos 1990. Em 18 de dezembro, o governo Roberto Cláudio
(PDT) aprovou junto à Câmara de Vereadores uma maior divisão, agora para 12 Regionais. Cada uma possui uma secretaria que descentraliza a gestão da Prefeitura. Mantive a representação da divisão
de Magalhães porque foi o que animou o campo durante a pesquisa. cf. O Povo, 18 dez. 2019. Disponível em: . Acesso em: jun. 2020. Mapa adaptado por Cleyton Santos a partir do mapa criado pela Prefeitura de Fortaleza.
60
A escrita e a organização desta tese
A escrita da tese foi beneficiada pela minha estadia na Escola de Antropologia da
Universidade do Arizona, nos Estados Unidos. Lá fui coorientado pelo antropólogo Dr. Eric
Plemons, atendendo a seminários e as suas disciplinas de forma eletiva. O Instituto para Estudos
LGBT, coordenado pela profa. Susan Stryker, além do Centro para Estudos Latino-americanos
foram outros espaços da instituição aos quais atendia com regularidade para palestras e demais
atividades acadêmicas – embora estivesse filiado oficialmente apenas a Escola e ao Instituto.
Inicialmente, eu tinha a intenção de realizar mais pesquisa de campo em Tucson, cidade na qual
morei, mas fui demovido dessa ideia pela alta quantidade de material empírico que construí ainda
no Brasil. Assim, o estágio serviu para ter acesso a vasta bibliografia, principalmente em língua
inglesa sobre o tema da pesquisa, e ainda a oportunidade de trabalhar com o professor Plemons
que desenvolveu uma importante investigação etnográfica sobre medicina trans naquele país e em
países da América Latina. A estrutura de salas, bibliotecas, centro de esportes, e outras
dependências do campus, como a sala privativa que recebi, me propiciaram um dos melhores loci
de trabalho que eu poderia dispor. Além disso, ter tido a oportunidade de viver no país origem de
grande irradiação de conhecimentos sobre transexualidade foi de extrema importância para eu ter
tido contato com alguma parte da vida cultural e social que é levada junto com esses saberes que
se pretendem universais e naturais, mas que são transformados quando entram em outras escalas,
de modo a serem reconstituídos e refeitos onde quer que cheguem.
O esqueleto da tese, a revisão bibliográfica, bem como a organização de ideias-chave, de
argumentos e do material empírico foram realizados em grande parte quando eu ainda estava em
Tucson junto das orientações, à distância, da profa. Rozeli e presenciais do prof. Eric. A escrita
propriamente dita também começou no exterior, tendo alcançado as primeiras versões dos
capítulos 2, 3 e 5, e o esboço dos capítulos 4 e 6. O capítulo 1 é uma versão corrigida e modificada
de parte do texto apresentado para Qualificação da tese. Tudo foi escrito, reescrito ou revisado
quando de volta ao Brasil, testando limites das proposições iniciais pensadas alhures. A tese
contempla, assim, seis capítulos que conformam um todo articulado, de modo que o argumento
geral não ganha sentido sem pensá-los conjuntamente.
No capítulo 1, chamado de Um exercício de objetivação participante, acompanho a análise
epistemológica de métodos de pesquisa de Pierre Bourdieu (2003c; 2009; Bourdieu, Chamboredon
Passeron, 2002b [1968]) para descrever as condições sociais de possibilidade de realização da
etnografia desde os primeiros contatos que se deram em 2016 até o período de moradia em
Fortaleza de 2017 a 2018. Esse não é, contudo, um exercício de reflexividade etérea para expor
minha forma transcendente e afetada de ver o mundo social que aqui é tomado como objeto. O
61
exercício é de objetivar, nas palavras de Bourdieu, procura expor o sujeito da objetivação – o
pesquisador –, de modo a não rejeitar a objetividade, dimensão fundamental de uma pesquisa
científica, mas o objetivismo e o subjetivismo que são igualmente deficientes de possibilitar que se
analise, perceba e critique as posições do pesquisador e as condições que governam os problemas
que propõe entender, bem como a administração das noções espontâneas. Aqui articulo os
caminhos que percorri no campo e os limites e contensões impostas pelos interlocutores.
No capítulo 2, Os fluxos socioculturais da transexualidade, procuro entender a dimensão
transnacional da transexualidade, recorrendo a uma exposição histórica desses fluxos e origens
culturais no cenário médico-psi brasileiro desde os anos 1960 e de como esses saberes foram
apropriados por ativistas homens trans em Fortaleza a partir de sua promoção de uma peça teatral.
Como categoria diagnóstica, o transexualismo viajou o mundo inteiro alavancado pela comunidade
médica através de seus manuais de saúde de espraiamento global e dos organismos internacionais
de saúde e da divulgação científica. Realizei pesquisa no acervo da Fundação Biblioteca Nacional,
no Rio de Janeiro, no arquivo do Grupo de Resistência Asa Branca, em Fortaleza, nas Bibliotecas
da Universidade de São Paulo, consultando livros publicados, matérias jornalísticas e eventos
acadêmicos, bem como faço referência a trabalhos já realizados no tema. De modo criativo,
homens trans ativistas de Fortaleza extrapolam a medicina para se visibilizarem na vida coletiva,
mesmo que sua atuação política seja grandemente voltada para a constituição de serviços de saúde
que possam lhes atender de modo equânime como outros cidadãos brasileiros. Ao descrever uma
peça teatral sobre suas vidas que fora encenada em Fortaleza, região na qual o teatro é um grande
veículo cultural, símbolo e ativo na reprodução social mostro como esses saberes biomédicos são
transformados e desafiados nos palcos. Procuro unir a etnografia uma dimensão histórica que
considera as complexidades da vida social através do tempo.
No capítulo 3, Corpo, aflição e adoecimento na linguagem das emoções, descrevo como
homens trans utilizam-se e constituem uma linguagem das emoções para entender e representar
suas transições de gênero junto de trajetórias biográficas e itinerários terapêuticos de adoecimento
que as cruzam. Procuro analisar quais os sentidos do uso do termo disforia para se referir as
próprias emoções nesse processo de subjetivação que se intersecta com práticas corporais. Quais
são os limites da apropriação política de termos cunhados no campo da biomedicina? O que
significa sentir-se disfórico? Está aí uma reconciliação com o conhecimento biomédico
simplesmente? Tal descrição sentimental, entendida aqui como discursiva, é ela mesma apenas uma
forma apolítica de falar de si? Além de significar, o que sentir a disforia organiza socialmente? Nesse
sentido, o capítulo se divide em duas partes, na primeira discuto como as categorias presentes no
manual diagnóstico da Associação Psiquiátrica Americana (APA), o DSM, foi sendo modificado
62
ao longo das últimas décadas, de transexualismo até a presente disforia de gênero. Na segunda
parte, me concentro nas descrições de trajetórias e itinerários terapêuticos. A disforia descrita como
uma emoção que organiza as experiências de sofrimento age como um conjunto de práticas
discursivas, que reposicionam os sentidos que a disforia tem ocupado nos manuais de saúde.
O capítulo 4, A política de saúde trans e os processos de formação de Estado, descreve as
buscas dos interlocutores trans por serviços de atenção à saúde no espaço da atenção básica e
secundária. Isso procura demonstrar itinerários terapêuticos das transições de gênero, analisando
diferenças entre suas buscas por estruturas estatais e os cuidados que conformam paralelamente.
Percorro, junto com eles, suas entradas e saídas desses serviços. Procuro, com isso, demonstrar
primordialmente quais são os efeitos sociopolíticos do Processo Transexualizador (PTSUS) na
região. Devido a organização do Sistema Único de Saúde, é necessário percorrer os diferentes níveis
de atenção para acessar os procedimentos do PTSUS, já que ela tem sido pensada apenas no nível
terciário hospitalar. Assim, a busca pelos serviços básicos consiste em encontrar serviços sensíveis
que são caracterizados por funcionários que aplicam o nome social, e que não dificultam a marcação
de consultas mesmo quando não dizem respeito ao bairro de abrangência do posto de saúde.
Mesmo que nem todos os ativistas e pacientes que acompanhei nos serviços persigam os mesmos
procedimentos biomédicos e apliquem, aceitem e manejem da mesma maneira as práticas médicas,
cirúrgicas e clínicas, o campo da saúde é um grande mote de articulação política e que constitui um
foro terapêutico. Cuidar de si para se manter saudável é ter uma transição saudável. Isso leva a
refletir sobre como setores do Estado brasileiro se reproduzem na conformação da política de
saúde trans quando entram em contato com o ativismo. Inicialmente, havia planejado me
concentrar nesse capítulo a respeito do Centro de Referência Janaína Dutra (CR), setor de
assistência da Prefeitura de Fortaleza voltado para atender pessoas que sofreram violência por
decorrência de homofobia e transfobia – ou, como diziam também os interlocutores, LGBTfobia.
Contudo, percebi que o Centro era apenas um desses serviços que se percorria para buscar
atendimento, e assim dinamizei a descrição da tese seguindo esses itinerários e não me
concentrando num só serviço. Faço referência ao CR ao longo do texto.
Em Biologia como política, o capítulo 5, descrevo as estratégias e os encontros entre
diferentes agentes sociais para argumentar diante do Governo do Estado do Ceará e da Prefeitura
Municipal de Fortaleza, pela instalação dos serviços que compõem o PTSUS. Aqui demonstro
como se constituem os grupos organizados de ativismo transmasculino, seguindo os interlocutores
em eventos políticos, cotidiano profissional e pessoal. A ausência de serviços que proporcionem a
segura transição de gênero, isto é, medicamente assistida – e não medicamente controlada, como
diferenciam – é eleito como um dos propulsores das violências que sofrem inclusive na rua. Essa
63
argumentação é realizada principalmente através da politização do biológico, dos corpos quando
das interações bioquímicas provocadas pelos procedimentos da transição de gênero. Aqui ganha
relevo a consolidação da Associação Transmasculina do Ceará (ATRANSCE), e suas táticas
políticas e culturais para legitimar a existência social de uma certa subjetividade através da
observação participante e o auxílio de 20 entrevistas. O apelo para evitar o adoecimento, no caso
de uma transição desassistida, penetra nos setores estatais locais como um verdadeiro ativismo
biossocial que transforma entendimentos e concepções sobre biologia antes usados para lhes
impedir a transição através do controle diagnóstico. Com isso, é possível perceber como a saúde
trans pode ser uma formulação local.
O último capítulo, o 6, intitulado de Sensibilidades e medicina no sertão, se preocupa
especificamente com a perspectiva e atuação clínica de médicos e médicas sobre a conformação de
uma medicina especializada na transição de gênero de forma patologizada ou não. Como clínicos,
cirurgiões e professores universitários da região têm pensado e praticado uma terapêutica trans? O
que entendem como prática médica voltada para a assistência à transição de gênero ou ao controle
diagnóstico? Nesse capítulo elaboro de modo mais detalhado a dimensão que concebo como
“terapêutica trans”, seguindo formulações de diferentes pesquisadores. A terapêutica, como campo
médico que estuda os métodos e procedimentos próprios ao tratamento de adoecimentos, tem sido
vista ultimamente como um campo de métodos para diferentes procedimentos próprios da
transição de gênero e que contemplam questões sobre cuidado. Centralizo o capítulo na dimensão
da profissionalização desses médicos. Por que médicos e médicas estão se interessando em cursar
formações e em atuarem nesse campo quando se trata de uma arena marginal e, em certos sentidos
e contextos, malvista às suas carreiras? Quais são as trajetórias biográficas desses médicos? Sem um
serviço formalizado, como se articulam os profisisonais na região de Fortaleza? Quais as dimensões
conflitivas entre profissionais, entre aqueles “contrários” e os “favoráveis” à institucionalização de
serviços à supervisão da transição de gênero? Como os médicos se utilizam de uma linguagem das
emoções também para se demarcarem como profissionais sensíveis? O capítulo também segue a
recorrência etnográfica até aqui estabelecida, usando de entrevistas com 17 médicos e médicas, os
quais segui em seus trabalhos clínicos, em congressos profissionais/acadêmicos e noutras situações
de sociabilidade. A tese é concluída ao se observar os limites das discussões aqui empreendidas, o
alcance das formulações locais sobre o estabelecimento de uma política do cuidado e da atenção à
saúde trans brasileira desde Fortaleza, Ceará, e os novos cenários que se anunciam.
64
– Capítulo 1 –
Um exercício de objetivação participante
Durante todo o tempo em que ignora os limites inerentes ao ponto de vista que
assume sobre o objeto, o etnólogo condena-se a retomar inconscientemente por
sua conta a representação da acção que se impõe a um agente ou a um grupo
quando, desprovido do domínio prático de uma competência fortemente
valorizada, tem de se dar o seu substituto explícito e pelo menos semi-
formalizado sob a forma de um repertório de regras ou daquilo a que os
sociólogos, no melhor dos casos, incluem na noção de “papel”, quer dizer, o
programa predeterminado dos discursos e das ações que convêm a um certo
“uso”.
– Pierre Bourdieu (2002a [2000], p. 139).
1.1. O etnógrafo objetivado
Em alguns momentos da minha pesquisa de campo em Fortaleza, no Ceará, auferi a mim
mesmo enquanto observador participante a ilusão de fazer parte de um lugar ao qual não pertencia,
ou ainda de sentir alguma segurança por imaginar-me numa posição “estabelecida” que julgava de
vínculos de confiança com os interlocutores – posição essa que, ao contrário, não estava dada ao
natural, mas precisava ser sempre construída. Momentaneamente, cheguei a partilhar, apenas com
meu diário – é preciso dizer –, uma vontade de querer atuar com as pessoas com quem pesquisava,
sejam eles e elas médicas, ativistas trans (e/ou gays e lésbicas) ou técnicos do Estado quando lhes
observava diante de casos concretos de violências ou de carência de cuidados. Ou seja, de ter
alguma atuação na produção própria do cuidado e da sua carência que observava.
É igualmente verdade que muitas vezes fui indagado acerca de minhas aptidões para
desempenhar essa ou aquela atividade ordinária do cotidiano dos colaboradores. Porém, a ilusão
passageira de pertencer, de poder sê-lo como eram eles, logo se dissipava quando me lembravam,
seja direta ou indiretamente, que ali eu não era um ativista como os ativistas que ali “lutavam” – a
leitura de interlocutores era de que eu performava um “ativismo”, mas que seria do tipo
“acadêmico” –; nem funcionário do Estado o seria, dada a nebulosidade que envolvia o ofício do
antropólogo e ao fato de não ser dali empregado, ou menos ainda, médico, por razões óbvias
adicionais da extrema independência e autonomia do campo científico da medicina. Essa vontade
de atuar como atuavam os colaboradores em torno do problema do “cuidado” não partia de um
desejo de “tornar-me nativo” para entendê-los melhor (Geertz, 1999 [1983]), mas advinha da minha
preocupação com as vidas das pessoas que apresentavam sofrimentos diversos (em grande medida
65
atravessados por uma desigualdade social). Era proveniente de minhas angústias e inquietações
próprias do desejo de resolução. Tornou-se necessário perceber os limites de uma pesquisa
científica e de porque eu estava em campo realizando uma etnografia, e, portanto, do que pode
fazer a antropologia nesse sentido.
Não tenho clareza se sou um intelectual militante, nos termos de Florestan Fernandes
(1994), mas, de todo modo, foi por ter sido movido pela urgência dessa realidade que me voltei
para ela e a transformei num determinado problema de pesquisa. Os motivos desse meu interesse,
racionalizados nesse texto quase na forma de uma autoanálise (como na acepção de Bourdieu, 2005
[2004]), também se mostraram ser elementos que me ajudaram a entrar e circular em campo.
Percebo que isso adentra à reflexão feita na antropologia sobre a semelhança ou a diferença cultural
e social entre etnógrafo e grupos/problemas estudados sempre que categorias de pessoa separam
o pesquisador através de categorias e origens tão poderosamente engajadas pelos interlocutores,
isto é, por ex., ser mulher e não ter acesso a atmosfera masculina numa dada coletividade indígena
ou não – e vice-versa – (Strathern, 2006), mudanças à descrição trazidas por se estar na própria
sociedade (em casa) (Peirano, 2006) ou, ainda, estar num estrato social distinto da comunidade que
se estuda. Não há qualquer garantia para uma “melhor” interpretação, análise ou explicação por se
ser parte ou não daquilo que se estuda. A minha origem de pobreza, por exemplo, não me gerou
nenhuma habilidade especial para compreender as experiências de interlocutores que me contavam
ter sofrido, por exemplo, episódios de fome. Muito embora tenha me gerado uma simpatia e um
interesse particular em descrever suas narrativas, nossas formas de vivê-las encontravam muitas
divergências. A própria Alba Zaluar (1994) em sua introdução “metodológica e afetiva” mostrou
que a diferença social entre ela e seus interlocutores não impediu que pudesse adentrar no universo
social da Cidade de Deus que pesquisou. Se ela percebera que deveria evitar qualquer piedade que
desembocasse em “paternalismo”, compreendendo a hierarquia que os separava, eu também cada
vez mais entendia que não havia unicidade na pobreza e muitos recortes eram feitos socialmente
para diferenciá-la.
A experiência etnográfica é aquilo que, por meio de alguma forma de alteridade, propicia o
trabalho antropológico de compreensão/descrição da realidade social e da criatividade humana, e
não uma qualidade advinda de pertencimento social prévio. Algo que envolve não simplesmente
coleta de dados, mas vivência. É um exame objetivo e subjetivo de questões atrelado a convivência,
de certa forma contínua, que permite entendimentos sobre o outro de uma forma cientificamente
situada (Bourdieu, 2009). Mesmo que tenhamos que realizar abordagens diferentes de acordo com
o objeto de pesquisa, sempre está presente um movimento teórico e metodológico crucial:
estranhar e familiarizar o outro e a si mesmo nesse processo (Velho, 1981).
66
Incluíam-se nessa tônica inquietante as dimensões variadas, na vida social ativa das pessoas,
dos conflitos e das disputas que ganhavam corpo e da qual tomavam parte no campo que realizei
a etnografia. Quero dizer: ao tentar entender esses modos de cuidado em saúde, defrontei-me com
um universo intrincado de múltiplas redes e relações entre campos e grupos distintos que, para
além de toda produção de práticas e significados, estavam em luta entre si e contra outros universos
que não tomavam parte no reconhecimento de sua importância – o que compunha a produção
desse mundo social particular. Não estava claro para mim como interpretar, ou compreender, essas
relações emaranhadas de disputas, principalmente porque, em alguma medida, os interlocutores me
questionavam sobre minha posição a respeito de seus pontos de vista. Eu me questionava em como
realizar a observação sem tomar parte nas disputas. Como entrar na “luta” não como um
combatente, mas como um observador? Isso seria possível? Como manter a posição ética com
todos os nichos de interlocutores? Esse meu incômodo em lidar com tais combates no curso da
compressão do objeto em muito tem a ver com minha disposição crescente para evitar vivê-los
como meus, uma vez que era essa uma das requisições propostas “no campo”. E não
necessariamente tem a ver com uma fantasia que conta a história de um mundo harmônico sem
discordâncias e contradições. Essas preocupações que pareciam meio paralisantes no início se
converteram em reflexões em torno dos limites da minha atuação como antropólogo, sem deixar
de instarem-se como desafios à análise antropológica.
Tanto na tentativa de fugir de um subjetivismo narcisista que exacerba discursivamente
uma certa afetação, bem como ao assumir os princípios e limitações de uma pesquisa científica em
seu valor objetivista, proponho neste capítulo descrever e examinar, ou compreender, as
“condições de possibilidade” (Bourdieu, 2009 [1980]; 2003c) de minha atividade etnográfica. Não
apenas no sentido do que tornou realizável a construção de estratégias, imponderáveis e posições
vividas em campo, mas também da própria problemática da pesquisa; de modo que apareçam como
são, vestígios produzidos de processos de constituição do objeto, do sujeito e do emprego dos
instrumentos de objetivação – isto é, o que é utilizado para produzir dados postos à análise
científica: diários, gravadores, mapas, entrevistas, leitura de documentos, observação continuada.
Pierre Bourdieu (2003c; 2009) atribui a explicação dessas “condições” ao propósito central do
exercício do que chama de “objetivar a objetivação”, algo crucial para o controle da pesquisa que
contém diferentes modos e níveis de articulação. Assim, ao invés de conceber a observação
participante como uma atividade mágica da qual provém todo o conhecimento pronto para ser
apenas apresentado ou descrito, Bourdieu sugere realizar uma “objetivação participante”. Assim,
articulo neste capítulo suas proposições epistemológicas com a tradição reflexiva da antropologia
para situar o objeto de investigação e minha experiência etnográfica.
67
1.2. Primeiros passos numa rede
Os primeiros passos em direção a essa pesquisa começaram numa reunião de estudantes e
ativistas para discussão de direitos da população de lésbicas, gays, bissexuais e transgêneros (LGBT)
atrelados à rubrica dos direitos sociais de trabalhadores. O encontro era de pequena proporção,
mas isso não o impediu de sua ritualística: estávamos em círculo e ao centro, no chão, eram
expostos o colorismo das bandeiras de movimentos sociais: sindicatos e partidos comunistas;
ativismo trans, com sua bandeira de listras azul, rosa e branco; feminismo, com bandeira roxa e seu
símbolo de sexo feminino com punho erguido ao centro; e a bandeira com as seis cores do arco-
íris do acrônimo LGBT. Éramos não mais que doze pessoas, e na ocasião eu acompanhava a
participação de dois ativistas trans quando já estava no final da pesquisa de campo para a dissertação
de mestrado (Rego, 2015). Era sábado de manhã, e eu fora convidado por eles para estar lá. A
desigualdade social e o desmantelamento da estrutura educacional via projetos neoliberais foram o
centro do debate naquela ocasião no campus da UFRN. Contudo, a direção das intervenções desses
dois rapazes que menciono estava posta no âmbito do cuidado em saúde, trazido discursivamente
a partir da afirmação identitária. Estávamos em 2015 e o emergente ativismo transmasculino
natalense se colocava basicamente em termos identitários, sem quase nenhuma articulação concreta
com os serviços e políticas de Estado. O cuidado em saúde ali era colocado advindo da necessidade
de cuidar de si em meio a aplicação de testosterona sintética à transição de gênero, uma vez que a
compra e os níveis necessários de ingestão da droga passavam necessariamente pelo controle e pelo
conhecimento biomédico e farmacêutico. Foi por essa mão que descrevi o contexto de “saúde” até
aquele momento (Rego, 2015). A partir disso comecei a pensar como esses sujeitos vivenciariam
acessos a serviços de saúde para outros cuidados em termos de adoecimento e medicalização
referentes ou não a transição.
Fora da reunião, os ativistas e eu conversávamos, enquanto íamos para a parada de ônibus,
sobre como homens trans têm manejado cuidados em meio a experiências de gestação e aborto,
uma vez que isso começava a se erigir entre eles. Alguém conhecia alguém que já tinha interrompido
a gravidez, ou era de conhecimento geral que certo rapaz trans engravidara antes de iniciar a
transição corporal. Foi a partir desses lampejos de conversas que germinei o interesse de me
debruçar especificamente sobre como esses sujeitos constroem-se e são construídos enquanto tais
no curso do acesso e cuidado em saúde. Disso, decorri à elaboração de um projeto de pesquisa
sobre gestação, parto e pós-parto trans no Brasil contemporâneo. Não conhecia nenhum
interlocutor em potencial que tivesse engravidado e dado a luz ou que tivesse entrado em estado
de abortamento, mas o tema e a minha rede de contatos eram promissores. Contudo, essa mesma
rede me levou a questões noutra direção. Como meu interesse pessoal era o de pesquisar outra
68
região diferente da qual eu estava habituado, comecei a imaginar possíveis cidades nas quais a
pesquisa seria viável diante dos meus contatos e do financiamento. João Pessoa, na Paraíba parecia
uma boa alternativa, mas Fortaleza, no Ceará surgiu como o lócus de pesquisa por certos acasos e
estratégias que empreguei para estabelecer redes.
Durante a 30ª Reunião Brasileira de Antropologia, em João Pessoa, acabei conhecendo na
acomodação que fiquei hospedado um rapaz cearense e estudante da Universidade Federal do
Ceará que se tornou um amigo. Num dos dias no qual estávamos voltando para o hotel, falei de
minha pesquisa sobre saúde trans e, para minha surpresa, ele era amigo de uma profissional de
saúde que tinha alguma experiência nesse segmento. Como eu tinha um grande interesse em
alcançar esses profissionais, principalmente médicos, foi a oportunidade ideal para ser apresentado
a alguém. A nova interlocutora e eu trocamos contatos de telefone e começamos de imediato a
conversar sobre o tema via internet. Ela se mostraria, no decorrer do campo, como uma
colaboradora privilegiada para o acesso a outros profissionais e serviços.
Findado o evento e de volta para casa, em Natal, continuei a tentar estabelecer alguma
ligação com interlocutores que morassem em Fortaleza. Foi graças a um colaborador da época da
pesquisa do mestrado, natalense, que me tornei amigo de um outro rapaz trans morador daquela
cidade. Assim que ele me passou seu contato já começamos a conversar sobre minha pesquisa. De
antemão, o estabelecimento de uma confiança foi difícil. Ele queria saber quais eram meus
propósitos, quem eu era, porque eu me interessei por esse tema, entre outros. Apenas depois de
apresentar minha dissertação de mestrado é que, uma vez lida por ele, suscitou-se uma abertura
significativa da sua parte. Discutimos sobre minhas análises naquele trabalho e o interesse dele nos
propiciou uma relação amistosa que acabou se tornando um grande divisor de águas para me inserir
na cena que eu estava instigado a estudar53. Diante desses dois interlocutores, a médica e o líder
ativista, é que decidi me voltar definitivamente para Fortaleza. Aliado a isso, outro fator de interesse
pela região se deve a não haver estudos socioantropológicos que se detenham sobre esse universo
social específico. Muito embora a articulação de movimentos sociais desse tipo produza uma vida
social ativa das mais agitadas do país, ainda eram escassas tais pesquisas.
Desde esses primeiros contatos a partir de 2016, continuados por meio de conversas e
acompanhamento de diferentes situações pela internet, decorreu quase um ano para que eu
começasse a ir fisicamente a Fortaleza. Ainda à distância eu não fazia a menor ideia da grande
articulação que tornava possível a existência daquilo que passaria a ser o objeto sobre o qual eu
53 Isso dá novos contornos às políticas de recepção de audiência das etnografias, como visualizadas por Caroline Brettell (1993).
Mesmo que esse rapaz, e outros ativistas que fizeram o mesmo posteriormente, não fossem aqueles com quem realizei a etnografia
que liam, eles a comentavam, a compartilhavam e a usavam como baliza da minha integridade à medida de gostavam dela. Essa foi,
portanto, uma audiência a posteriori – e inesperada – que se viu refletida nas páginas que escrevi sobre um contexto diferente.
69
estava me propondo a estudar. O problema de pesquisa que eu estava levando a campo, dito de
modo genérico como a “saúde dos homens trans”, só se tornou um enquanto tal para os próprios
sujeitos – e não apenas para mim – por causa da construção de um mundo social que não é
composto apenas por eles, mas por um conjunto amplo de agentes, lugares, relações, instituições e
ideias que não apenas circulam, mas que são produzidas. Minha atenção, portanto, deveria seguir
para diferentes direções, de modo a compreender não apenas o objeto “em si” – se é que isso seja
concebível em algum nível –, mas o seu contexto e as relações sociais que o tornam possível. Como
percebera, o objeto eram as redes e seus nós.
O contato face a face iniciou em novembro de 2016, quando passei dois dias em Fortaleza
para acompanhar a assembleia de criação da Associação Transmasculina do Ceará (Atransce). Mas
foi a partir de maio de 2017, com algumas idas e vindas, que totalizei, até junho de 2018, um ano
de trabalho etnográfico continuado. A internet, quando estava em Natal, era um veículo que me
aproximava dos interlocutores, acompanhando algumas de suas atividades e mantendo conversas
regulares em bate-papo com ativistas e profissionais de saúde. Em maio de 2017, Kaio Lemos, o
líder trans a que já aludi, hospedou-me em sua casa, localizada no bairro de Fátima. Posteriormente,
passei a ficar em pousadas e, desde outubro de 2017, a morar sozinho num apartamento no Centro,
próximo ao Hospital de Emergência Instituto Dr. José Frota. A “saúde” era a atmosfera do meu
cotidiano ordinário, desde as saídas e voltas para casa por causa do hospital e de toda a sua dinâmica
e pacientes, profissionais e comércio especializado de seu entorno, até as conversas mais banais de
agentes do Estado, de homens trans e seus familiares, profissionais e estudantes de saúde com os
quais interagia. Adoecimentos, administração de medicamentos, idas ao médico e acesso a serviços
de saúde sempre eram tópicos de grande interesse. Não ao acaso, meu próprio objetivo me levava
a ver tais discussões sob o prisma de como o cenário de intenso sofrimento social e conflitos
desencadeados pela sexualidade e gênero que atravessava os interlocutores – sejam médicos,
homens trans ou agentes estatais – os levava a viver, nem sempre com clareza, adoecimentos e
processos de cura e medicalização que tinham esse recorte como propulsor principal.
A essa altura eu já detinha circulação livre entre os ativistas da Atransce, acompanhando
suas reuniões, atividades de conscientização pública, participação em eventos acadêmicos e de
ativismo, protestos, bem como convivendo com eles no recém-aberto Abrigo Thadeu Nascimento,
casa aberta por conta de dois rapazes que passaram a receber homens trans, e depois travestis, para
morar de forma provisória. Eram pessoas que haviam sido expulsas de casa. A primeira vez que
visitei Fortaleza no contexto da pesquisa foi para participar da assembleia de criação dessa
Associação, tendo sido chamado a falar para os presentes sobre antropologia. Foi quando conheci
pessoalmente o principal líder da cidade. Quando eu os visitei a segunda vez, poucos meses depois,
70
já se articulava a existência dessa casa, uma vez que começava a aumentar o número de homens
trans que moravam de favor ou na rua. À distância, por outro lado, foi quando isso se efetivou,
houve a mudança e a recepção de doação dos primeiros móveis que se uniram à mobília desses
dois líderes ativistas. Quando voltei para morar em Fortaleza (outubro de 2017), passei a visitar
diariamente o Abrigo, o qual se tornou o local central de articulação da Associação. Adotei o
costume de ir ou depois do almoço, para evitar comer no lugar e assim esquivar que me oferecessem
a escassa comida que tinham, ou de manhã no final de semana; a tarde e à noite eram momentos
de maior movimentação na casa, já que os “abrigados”, que chegaram a totalizar 11 pessoas,
voltavam dos cursos profissionalizantes fruto da articulação com escolas e setores de assistência
social da cidade. Nas vezes que fui à casa durante a manhã e me estendia pelo dia inteiro, levava
algum alimento para contribuir com o almoço e/ou também chegava a cozinhar, além de outros
pedidos que atendi para organizar mantimentos e fazer seu inventário, redigir atas de reuniões,
comunicar ativistas sobre atividades, etc.
Mesmo que a inserção na Atransce e no Abrigo tenha se mostrado profícua e bem
consolidada, era preciso, ficava cada vez mais claro, acompanhar essas pessoas noutros espaços
como serviços de saúde, de direitos humanos e de políticas públicas diversas. Para além disso, eu
necessitava observar etnograficamente agentes e instituições que compunham esse universo no
qual estavam inseridos os homens trans, o que se deu de uma maneira que eu não previ. Durante
as primeiras semanas na casa nova fui convidado pela médica que mencionei para fazer uma
apresentação num evento, duas semanas depois, que organizaria sobre “saúde LGBT” voltado para
alunos de cursos de saúde como medicina, fisioterapia, enfermagem, farmácia. O pedido era
específico: ela precisaria que eu falasse sobre os estudos de gênero e sexualidade a partir da
antropologia para explicar por que a noção de “ideologia de gênero” não existia como proposta
por movimentos neoconservadores. Isso se dava, segundo me explicara, devido aos conflitos que
vinham sendo gerados por sua abordagem médica sobre homossexuais, vida sexual feminina,
aborto e transexuais no curso do atendimento no hospital público que trabalha. Discursos na região
aumentavam sobre a tal ideologia, e se começava a organizar eventos na cidade para discutir seu
perigo à família tradicional.
Para atender o pedido da interlocutora preparei uma apresentação curta de dez minutos, e
quando estava no local do evento fui apresentado a ativistas e a funcionários do Centro de
Referência LGBT Janaína Dutra (CR), da Prefeitura Municipal de Fortaleza e de grupos de ativismo
como o Grupo de Resistência Asa Branca (GRAB). Esse momento também se tornou decisivo
para a pesquisa. Minha fala foi seguida de uma mesa redonda na qual discursaram os funcionários
dos serviços públicos na cidade e ativistas. No final dessas apresentações, que ainda contaram com
71
falas de duas médicas sobre a melhor abordagem da sexualidade de pacientes no momento da
anamnese, abordei os funcionários e ativistas para trocar contato e falar da pesquisa, mostrando
minha intenção de querer conversar com eles posteriormente sobre suas atuações em políticas
públicas. Eles já tinham me ouvido falar, e isso, acreditei naquele momento, fora uma boa entrada
imprevista para propor uma interlocução.
Dois dias depois desse evento, procurei o CR para ver a possibilidade de realizar uma
observação participante no local. O coordenador do serviço, que eu havia conhecido, mostrou-se
bem receptivo a minha proposta, mas estabeleceu alguns limites para minha inserção. Eu não
poderia abordar inicialmente e por conta própria os usuários do serviço, sob a justificativa de que
eles poderiam achar que a participação na minha pesquisa seria condição para concretizar o
atendimento, o que julgara ser altamente prejudicial por causa do cenário de vulnerabilidade social
que motivava a ida ao serviço. Ouvindo isso, redefini minha estratégia para me concentrar no
trabalho dos profissionais, que já era o meu objetivo desde o início, e não insisti sobre abordar os
usuários desde o início, tentando ganhar mais confiança para propor isso novamente no futuro.
Paralelamente, ainda estava às voltas com autorizações para realizar parte da pesquisa em
dois hospitais de Fortaleza: a Maternidade Escola Assis Chateaubriand (MEAC) e o Hospital de
Saúde Mental Prof. Frota Pinto (HSM), o primeiro localizado no Porangabuçu e o outro em
Messejana. Minha ideia era acompanhar atendimentos, principalmente interações entre pacientes e
profissionais de saúde nos espaços de livre circulação como corredores, salas de espera, entradas,
copa etc. Em nenhum momento propus acompanhar consultas ou analisar prontuários, temendo
ainda mais as restrições e resistências que poderiam surgir. Logo de início, a MEAC não autorizaria
a pesquisa se não fosse incluído um médico entre os autores do projeto, o que eu rejeitei, tentando
argumentar que se tratava de uma pesquisa para tese de doutorado e de que os médicos seriam os
próprios interlocutores. Minha alternativa, portanto, foi me voltar para o HSM, que primeiramente
também objetivava incluir um profissional na equipe, mas voltaram atrás e me autorizaram
pesquisar mediante a mudança do meu cronograma. Minha proposta era acompanhar o
Ambulatório do Processo Transexualizador que estava em vias de ser instalado no hospital, mas
como o serviço ainda não tinha sido autorizado pelo Governo do Estado do Ceará a iniciar as
atividades para novos pacientes, eu poderia fazer a pesquisa se eu pudesse esperar essa abertura.
Diante disso propus aos médicos do hospital que primeiramente eu realizaria entrevistas com eles,
e apenas depois da abertura seriam acompanhados os atendimentos, ao que concordaram para me
conceder a carta de anuência. Como eu detinha uma boa entrada com homens trans por meio da
Atransce, não me pareceu um grande problema essa estratégia, uma vez que eu poderia acompanhá-
los ao acessar serviços e cuidar da própria saúde de maneira mais capilarizada e caso a caso.
72
Contudo, após realizar entrevistas com todos os médicos, psicólogas e assistente social do
ambulatório, o próprio médico-chefe me permitiu circular nas salas de espera e dependências do
hospital, sem esperar aquela abertura “oficial” de antes.
Diante dessas limitações com as quais eu tive que lidar junto aos serviços públicos de saúde
e direitos humanos, adotei a técnica metodológica de “bola de neve” (Bott, 2001 [1957]) para poder
entrevistar médicos e médicas e homens trans, já que minha interação diária com eles estaria
reduzida nesses lugares. Esse método diz respeito a indicação para entrevistar um interlocutor a
partir de um anterior que já tenha sido entrevistado ou abordado, usando-se da confiança entre eles
para que o acesso seja possível e para que se parta de alguma dimensão ética para não gerar
constrangimento na abordagem. A premissa dessa técnica preconiza que se cesse a “bola de neve”
quando não houver nenhuma novidade nas falas dos novos entrevistados. Mas todas as entrevistas
se deram em contexto etnográfico. A ideia que foi concretizada posteriormente foi a de ir ao
encontro desses profissionais e de acompanhá-los, de segui-los, em seus eventos profissionais, em
suas clínicas particulares, nos hospitais ou unidades de saúde nos quais atendiam, ou ainda em
faculdades que porventura dessem aulas.
Esses primeiros passos me deram a possibilidade de perceber que era preciso unir
objetivamente o que parecia, a “olho nu”, caoticamente separado: homens trans, médicos, agentes
estatais, instituições e serviços. Instando-me a realizar uma etnografia não do “grupo organizado
de homens trans”, mas das relações construídas numa grande rede social complexa que materializa
o objeto dessa tese. Assim, foi preciso que, como os interlocutores, eu também circulasse entre
serviços e grupos organizados, ora acompanhando-os, ora sozinho, indo ao encontro desse ou
daquele agente e instituição. Nesse contexto, um conjunto de grupos diferenciados ultrapassavam
a si mesmos na constituição de um verdadeiro universo social que envolve o “cuidado em saúde
trans”, aqui observado desde os homens trans como se fossem o centro numa rede. Contudo, a
centralidade desse grupo de pessoas se refere mais a uma constituição dessa pesquisa e não
corresponde exatamente à vida real dessas relações, mais afeitas a uma descentralização dos pontos
entre os vínculos (Radcliffe-Brown, 2013 [1971]). Isso não impede que fluxos e movimentos sejam
desencadeados entre certos agentes, de modo que são mais as ideias e as práticas relativas a temas
que se centralizam.
Para entender como homens trans constroem-se como sujeitos no curso do cuidado em
saúde, e como problema social reconhecível, é imprescindível à etnografia e sua análise considerar
tudo com o que entram em relação diariamente, desde documentos a pessoas reais, desde ideias e
noções a produção de práticas e diferentes grupos imaginados, desde setores e funcionários estatais,
profissionais de saúde, protocolos e políticas até o contexto social urbano e político-econômico
73
maior a que tudo isso está circunscrito. Assim, estudar isoladamente o ativismo de homens trans,
procurando descrever como se organizam, que tipo de demandas articulam, que formas de política
constroem; ou, ainda, como cuidam de si mesmos no âmbito da medicalização e da cura frente a
adoecimentos diversos não faria nenhum sentido porque esses cenários não estão fechados a outras
relações sociais para existirem. Não poderíamos, ainda, alcançar entender seus efeitos se os
tratássemos tendo como único fim a si mesmos numa acepção ilhota. Não se trata de estabelecer
o que é externo e o que é interno, o que tem mais e menos impacto na formação do problema da
pesquisa, mas que estudar as experiências de homens trans e seus cuidados em saúde implica
estudar também todos os elementos que as determinam ou com os quais são instadas a interagir.
Não há nenhuma novidade quanto a esse tipo de questão. Desde o romantismo clássico da
antropologia, que estudava exóticos de ilhas distantes, que se lida com uma série de variados agentes
e grupos na constituição da cultura ou sociedade descrita; a diferença estava em apagar dos relatos
etnográficos os funcionários coloniais, os mediadores indígenas, os traficantes, as línguas francas,
os objetivos de financiamento da pesquisa (Sáez, 2013). Isso não quer dizer que um elemento de
todo um cenário não possa ser separado para descrição e análise, mas que sua concepção não pode
ser tomada nem assim produzida descontextualizada. A novidade muitas vezes, por outro lado,
encontra-se em assumir um tipo de abordagem relacional que leve em conta o máximo possível de
elementos (Bourdieu, 2003d; 2009).
1.3. Chegando em Fortaleza
Na primeira visita a Fortaleza, fiquei hospedado por dois dias num hostel para acompanhar
a criação da Atransce, evento54 que durou o domingo inteiro com leitura de regimento, criação de
diretorias, palavras motivacionais sobre a importância social e política dos movimentos sociais,
principalmente de homens trans. Eu aproveitei a localidade da igreja na qual ocorreu a reunião e
me hospedei próximo ao Dragão do Mar – um centro cultural estadual –, de modo que andava
pelas ruas da região com os interlocutores a pé. Essa oportunidade foi muito construtiva para a
pesquisa, estabeleci contatos com outras pessoas e me fiz ser visto, não apenas no cerimonial mais
oficioso da abertura da associação, mas também nas saídas à noite para conversar no centro
cultural. Essa visita inicial me fez refletir sobre os tipos de alcances que eu gostaria que tomasse a
análise e descrição desse trabalho. Assim, a etnografia que busquei construir foi alinhada à
necessidade de dar conta de espaços/relações sociais/dinâmicas diferentes (e aparentemente
separados) para entender um cenário que foi capaz de produzir – e de ser produzido – a figura dos
homens trans como sujeitos de cuidado e de direito.
54 Detenho-me com mais detalhes sobre essa reunião no capítulo 5 ao descrever a mobilização social trans.
74
Um modo de pensamento relacional, segundo Bourdieu (2004), romperia com uma visão
substancialista, levando a caracterizar todo elemento pelas relações que unem uns aos outros num
sistema. Novidade do método estrutural, essa acepção é isolada pelo autor como parte perene do
estruturalismo, em detrimento do restante da corrente teórica. A concepção insuperável seria essa
que observa ser as relações a partir das quais se tira o sentido e a função de um elemento num todo
social. O contrário disso corresponderia a uma forma “frazeriana”55 da etnografia, termo utilizado
pelo autor para se referir a um trabalho que descontextualiza e compara elementos de sistemas
diferentes. A despeito de toda a carga e consequências teóricas já muito criticadas do
estruturalismo, parece oportuno extrair, como o faz Bourdieu, a noção de “relacional” para pensar
teoricamente a problemática aqui estudada. Isso possibilitaria alcançar as relações tanto na forma
de articular os interlocutores no campo, como para compreender e descrever sua vida social como
posições, vínculos e relações sociais numa rede, e não como grupos que se chocam em atrito. É
nesse sentido que não se adota o estudo da perspectiva isolada dos homens trans sobre esse
contexto social, mas as diferentes visões segundo elas próprias, cada uma a sua maneira.
Não apenas o caráter relacional me desafiou na construção deste trabalho, como o
dinamismo do campo exigiu um esforço para pensar mudanças sociais no presente e suas ligações
com as trajetórias de políticas, serviços e interlocutores num passado recente. Abriu-se, assim, às
conformações dos processos sociais. Esse conceito indica uma perspectiva mais dinâmica da
estrutura social durante muito tempo entendida como estática, partindo dos auspícios de Radcliffe-
Brown. Se, como indicam os processualistas do círculo da Escola de Manchester com sua corrente
funcional-estruturalista, a atualização da estrutura social por meio de uma fluidez e de um
dinamismo se perfaz entre as ações de atores em interação e os contextos dos quais emergem,
deteríamos um certo equilíbrio entre a oposição clássica indivíduo/sociedade. Contudo, talvez
importe menos saber o que causa coesão e mudança para o equilíbrio da estrutura do que
compreender como os agentes em relação criam o mundo no qual vivem e naturalizam.
Os interlocutores, ao me narrarem eventos com menos de dez anos, trouxeram um
entendimento diacrônico necessário de ser adicionado à pesquisa, ao mesmo tempo que explicam
situações no tempo presente de modo sincrônico. A existência atual de políticas de governo
voltadas à população LGBT, a constituição de um campo social de ativismo e de serviços em saúde
específicos à transição de gênero e “sensíveis” às diferenças de gênero e sexualidade implicam e
requisitam uma abertura histórica e contemporânea. Não de modo a procurar perceber como as
relações mantém os grupos organicamente situados ou o contexto “em funcionamento”, mas para
55 Há de se recobrar, contudo, as continuidades que a antropologia moderna estabelece com o trabalho de Frazer. Para observar
discussões sobre o valor das relações para objetivar o mundo social e a cultura ver Strathern (2014b).
75
desconstruir e construir o que perpassa e molda as relações entre as pessoas. Embora a cena de
organização política homossexual cearense possa ser remontada há mais de trinta anos, quando da
criação do, ainda em atividade, GRAB, a organização autônoma de homens trans não tem dez anos
de atividade. O valor de perceber o cenário atual como fruto de um processo social tem seu peso
quando imaginamos que o Ceará possui um dinamismo de movimentos sociais de diferentes grupos
e demandas políticas.
A etnografia percebida como método e como mote epistemológico central de nossa
atividade científica é um passo inicial em direção à produção de dados mais aprofundados. Para
Mariza Peirano (2014, p. 386), boas etnografias detêm três condições: “i) consideram a
comunicação no contexto da situação (cf. Malinowski); ii) transformam, de maneira feliz, para a
linguagem escrita o que foi vivo e intenso na pesquisa de campo, transformando experiência em
texto; e iii) detectam a eficácia social das ações de forma analítica”. Assim, o desafio seria ultrapassar
o senso comum e construir uma linguagem que captasse o que as palavras escritas e ditas não
apenas dizem e descrevem56, mas criam um mundo de cujo campo a antropologia não deve se
abster. Foi seguindo essa premissa que passei a morar em Fortaleza para buscar adentrar em
dinâmicas locais que só o cotidiano poderia me trazer.
A ideia de “campo”, por outro lado, como algo para onde vai o antropólogo para realizar
a etnografia, precisa ser levada em consideração a fim de perceber os elementos que por vezes não
trazemos à tona e as ficções que naturalizamos (Ferguson e Gupta, 1997). Embora a internet no
contexto tanto de distância física de Fortaleza, como durante a estadia na cidade, tenha se mostrado
ligada às interações face a face, e lócus de expressão de disputas, a moradia me trouxe outras
dinâmicas para pensar as questões que propunha. E só foi por causa dessa moradia que foi possível
perceber a internet não como um espaço do qual se analisaria conteúdos, mas como parte das
interações que, como tal, não deixa de trazer diferentes questões devido ao seu caráter de espaço
de experiências e como forma de mediação. Como se tem particularmente observado, a exploração
de redes on-line não inclui necessariamente um deslocamento corporal tão rotineiro à antropologia.
Para Christine Hine (2015), a internet envolve um “engajamento com a imaginação”. Assim, sendo
parte da vida das pessoas que se convive na etnografia, o etnógrafo deve se envolver com ela já que
é parte de suas atividades. Acompanho a autora ao observar que essa imersão tanto aconteceu
como foi importante como estratégia de entrada no campo como uma rede social e como meio de
interação. Isso significa uma integração com o âmbito digital do cotidiano e não sua separação.
56 Uma vez que, como demonstrou Clifford Geertz (1999; 2008 [1988]), o que o antropólogo faz é escrever. E, ao considerarmos isso,
entram em jogo questões sobre políticas de representação (cf. Clifford e Marcus, 1986) que, contudo, não são um empecilho a
atividade antropológica, mas uma importante dimensão ética que pode ser situada (Abu-Lughod, 1991).
76
Sem querer fantasiar um anthropological blues (Da Matta, 1978), eu sentia um certo incômodo
pela mudança no meu próprio dia a dia a partir da viagem de maior duração em 2017. Naquele
momento não mais ficaria hospedado nas casas de interlocutores, o que julgava de certo modo
prejudicial devido à ausência de um espaço distante do que estava observando e participando. A
casa na qual passei a morar fora cedida por um amigo do meu pai, localizada no pequeno
Condomínio do Rio, de 40 apartamentos quarto-sala-banheiro, ocupado por trabalhadores e
estudantes universitários. O lugar não tinha muito conforto. Era comum faltar água no
condomínio, o que me levava a carregar água em baldes do andar de baixo até o meu apartamento
para poder cozinhar, limpar a casa e tomar banho. A convivência com os vizinhos, as goteiras nos
corredores e a indevida interrupção de energia elétrica eram contratempos regulares. Muitas vezes
eu me delongava fora de casa junto com os interlocutores para passar menos tempo no
apartamento. Contudo, essa moradia foi um dos meios pelos quais a pesquisa se concretizou, tanto
por questões financeiras – já que eu não pagava o aluguel –, como por causa de sua posição
geográfica na cidade. A casa ficava no Centro, a uma distância de poucos quarteirões, que eu
percorria a pé, do CR e do Abrigo da Atransce (ver Figura 2).
Inclusive, era comum após um dia inteiro no CR ou na Atransce seguir de um para o outro
sem passar em casa. Cheguei a realizar mais de 12 horas por dia de “campo”, deixando para o final
das noites a escrita do diário. Nem sempre conseguia descrever com afinco o dia que se passara,
principalmente em dias nos quais findava extremamente cansado. Então, lançava tópicos de
lembrete para detalhar no dia seguinte ao acordar mais cedo, antes de sair de novo. No início, eu
costumava tomar pequenas notas no decorrer do dia enquanto estava interagindo com os
colaboradores, mas percebi que nem sempre era possível sem perder alguma interação ou sem ter
algum pequeno impacto negativo diante dos interlocutores, que poderiam imaginar que eu estava
me distraindo com outros assuntos ou porque estaria registrando excessivamente cada detalhe.
“Você se lembra de tudo que acontece?”, me perguntaram uma vez. Quando eu respondi que
tentava me lembrar do máximo que podia, e não de tudo, recebi em seguida um “graças a Deus”
de tranquilidade. O registro no curso da interação se mostrou inibidor, mesmo que todos
soubessem para qual objetivo eu estava entre eles. Isso me fez abandonar a prática de tomar notas
em ação, o que poderia me impedir de vivenciar experiências que surgissem principalmente no
calor de momentos de tensão e conflito. Teria que confiar na memória, era minha preocupação.
77
Figura 2 – Mapa de parte dos percursos em campo
Fonte: Criado a partir da Base Cartográfica de Fortaleza (UFC), 201057.
Quando estava em casa à noite, escrevia no diário procurando manter um desencadeamento
cronológico dos acontecimentos, interações, conversas e entrevistas formais. Nem sempre eu
lembrava de tudo no momento da escrita inicial, o que me levava a voltar ao mesmo dia
posteriormente. Procurei sanar as limitações de um diário feito no computador, que está afeito à
facilidade da ferramenta “localizar” que dá ao etnógrafo a possibilidade de não reler tudo que
escreveu. Como mostrou Oscar Sáez (2013), sem reler o diário na sua íntegra se perde a chance de
atinar para questões não imaginadas ou esquecidas. Para evitar isso, além de imprimir todo o diário
para leitura, procurei registrar quando inseria cada nova informação em texto já feito. Por exemplo,
se chegasse a lembrar de detalhes de dias anteriores, ou até mesmo se rememorasse depois de
páginas à frente alguma questão já pontuada, eu voltava e abria um balão inserindo novas
57 Mapa criado para esta tese por Cleyton Santos. Base cartográfica disponível em: .
Acesso em: jan. 2020.
78
informações e detalhes. A ideia não era criar um registro etnográfico de alguma forma acabado,
nem de recair no fetiche das marcas de um diário de papel, mas de marcar seus vestígios ao longo
do processo de trabalho de campo de produção de dados.
Inspirando-me na Lista Cronológica de Eventos do Kula observados por Malinowski
(1978, p. 28), apresento na Tabela 1 a seguir uma ideia mais sucinta e direta do total do trabalho de
campo realizado por meio de uma lista de atividades que conformaram minhas experiências
etnográficas.
Tabela 1 – Lista Genérica e Cronológica de Experiências Etnográficas
Primeira parte, dezembro 2016.
Assembleia de criação da Associação Transmasculina do Ceará na Igreja Cristã
Contemporânea. Apresentação da pesquisa aos presentes e troca de contatos com
homens trans e psicólogos.
Segunda parte, maio 2017 – junho 2017.
Início do acompanhamento diário de ativistas em suas atividades pessoais e de militância.
Primeiros contatos presenciais regulares com médicos e ministração de oficinas a
profissionais solicitadas pelos próprios. Observação participante da Audiência Pública
“Transexualidade, pelo direito de existir” sobre a Abertura do Ambulatório do Processo
Transexualizador em Fortaleza, organizado pela Defensoria Pública do Estado do Ceará.
Primeiro contato com o Hospital de Saúde Mental Prof. Frota Pinto em Messejana;
conversas sobre a pesquisa com o chefe do ATASH.
Terceira parte, outubro 2017 – dezembro 2017.
Observação participante no Abrigo Thadeu Nascimento, da Atransce.
Acompanhamento de atividades de ativistas no curso da militância e da vida pessoal.
Observação participante do Centro de Referência Janaína Dutra no âmbito dos
profissionais, presente no cotidiano de reuniões, atendimentos e saídas para trabalho
externo. Realização das primeiras entrevistas com homens trans. Acompanhamento de
idas a serviços de saúde.
Quarta parte, janeiro 2018
Observação participante de atividades de militância dos homens trans e LGBT.
Observação do CRLGBT e suas atividades internas. Participação das atividades
envolvendo a Semana da Visibilidade Trans, evento que mobilizou a comunidade, que
entrou em conflito. Acompanhamento de idas a serviços de saúde.
Quinta parte, fevereiro 2018 – março 2018.
Continuação da observação do CRLGBT e suas atividades internas e externas.
Participação em atividades envolvendo médicos, como congressos profissionais e
palestras para discentes no âmbito da UFC. Acompanhamento de idas a serviços de
saúde.
Sexta parte, março 2018 – julho 2018.
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Realização da maior parte das entrevistas com médicos, profissionais da Prefeitura de
Fortaleza e de homens trans ativistas e não ativistas. Visitas contínuas ao Hospital de
Saúde Mental Prof. Frota Pinto, observação das interações nas salas de espera e
corredores do Ambulatório. Encontros com médicos em seus consultórios, ou nos
hospitais que trabalham, ou nas faculdades que dão aula. Acompanhamento de idas a
serviços de saúde, idas às farmácias. Visitas domiciliares às casas de homens trans em
Fortaleza, Maracanaú e Caucaia. Pesquisa no Arquivo do Grupo de Resistência Asa
Branca (GRAB), tomando notas de material jornalístico, informacional e político
produzido por terceiros e pelo GRAB.
Fonte: Autor.
Tentei estabelecer períodos de concentração entre os diferentes grupos e serviços, quando
me dei conta da dinamicidade relacional a que já aludi. Inicialmente me concentrei nas atividades
do Abrigo Thadeu Nascimento e da Atransce. Isso não me impediu de comparecer a eventos e
acompanhar atividades que se realizaram nesse mesmo período noutros grupos, como os médicos.
Assim, da terceira até a sexta parte (cf. Tabela 1) me concentrei na observação do Centro de
Referência, visitando o Abrigo com regularidade à noite e nos finais de semana, bem como
seguindo os interlocutores médicos, pacientes e ativistas em eventos, serviços de saúde e outros
setores estatais. A partir da sexta parte o foco recaiu com mais intensidade sobre os profissionais
de saúde e nos serviços que trabalhavam e nos quais homens trans atenderam em busca de cuidado,
observando os contatos entre esses sujeitos, isto é, procurei entender o contato e a dinâmica própria
de cada campo de agentes. Esse período também contou com pesquisa no arquivo do Grupo de
Resistência Asa Branca (GRAB) que possui material de registro histórico de suas atividades desde
sua fundação, bem como do material histórico recém-organizado pelo CR. Atendi ainda a poucas
reuniões e/ou eventos de outros grupos LGBT, como o Fórum LGBT Cearense e Associação de
Travestis do Ceará (ATRAC).
Assim, apesar de tentar definir períodos certos para cada um desses acessos, eles foram
acontecendo à medida que completava outro e conforme os interlocutores se mostraram dispostos
a dar entrevistas (sobre o que me deterei à frente), a me convidarem para atividades ou ao acaso de
situações de destaque entre ativistas e médicos e usuários dos serviços que tentei aproveitar. Além
disso, realizei pesquisa documental na Fundação Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro, e na
Biblioteca da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo que contam com livros, teses e
artigos de periódicos publicados por médicos sobre transexualismo ou disforia de gênero desde os
anos 196058. Além disso, durante o estágio sanduíche na Escola de Antropologia da Universidade
58 Essa consulta foi realizada em dois momentos. O primeiro ocorreu de modo presencial e anterior a entrada em Fortaleza, quando
de minha visita a essas cidades no início do curso do doutorado; e, o segundo se realizou durante e após o campo com a ajuda de
amigos que digitalizaram parte do material e o enviaram para mim de forma eletrônica. Esses contatos trabalhavam ou estudavam
na Fundação e na USP e foram um tipo de “interlocutores de arquivo”.
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do Arizona realizei pesquisa de arquivo no seu sistema de biblioteca para acessar acervos gays,
lésbicos e trans disponíveis de forma digital e impressa nos Estados Unidos. O Arquivo do jornal
Gender Networker publicado nos anos 1980 desde o Canadá por ativistas transgêneros foi
particularmente importante e ao qual me remeterei no Capítulo 2.
1.4. Acompanhando e entrevistando homens trans e outros sujeitos transmasculinos
Foram realizadas, ao todo, 20 entrevistas com homens trans ativistas e pessoas que assim
não se denominavam, mas que se incluem num espectro chamado de transmasculinidade.
Enquanto categoria identitária e como cenário de experiências corporais, ambos os termos serão
aludidos aos interlocutores trans com quem mantive maiores contatos. Fiz uso tanto da técnica de
bola de neve, já aludida no começo do capítulo, como conheci outros no curso de atividades e da
observação nos serviços de saúde. Cheguei, inclusive, a visitar as casas de alguns interlocutores,
sendo convidado a comer junto com eles, seja almoço ou lanches da tarde; conheci familiares,
como mães, esposas, irmãos e escutei suas histórias de parentesco. Quase sempre me sentia
constrangido a não aceitar a oferta de comida, porque pensava que alguns deles não teriam tanto
por que estavam inseridos em situações de pobreza, às vezes, extrema. Algumas vezes me oferecia
para comprar alguma parte da refeição para sanar um pouco tanto minha consciência, como para
não atrapalhar suas próprias estratégias alimentares limitadas. Isso não quer dizer que todos
estivessem em situações do que chamam de vulnerabilidade social intensa na qual a fome pode
estar à espreita. A maioria daqueles que estavam empregados trabalhavam ganhando um salário-
mínimo ou menos no setor de serviços do comércio local, ou eram vendedores ambulantes e
podem ser chamados de pobres ocupando estratos baixos de classe social – eles mesmos usavam
o termo pobre.
Além de terem sido feitas nas casas dos interlocutores, boa parte dessas entrevistas
transcorreram em lugares públicos, como parques e no bosque da Universidade Estadual do Ceará,
campus Fátima, próximo ao centro. Sem exceção, a situação econômica culminava em situações
como fome, restrição do ir e vir pela cidade e, como confluência disso, a ausência de acesso a
cuidado em saúde numa estrutura estatal. Uma consulta marcada há meses deixava de ser atendida
porque nos dias próximos não se tinha ao menos o dinheiro para o transporte público coletivo. O
contexto era de pobreza, levando-me a pensar que sua abertura a minha pesquisa em muito tinha
a ver com a sua popularidade. Como os ricos se colocam diante da transição de gênero e do cuidado
em geral? A pesquisa não logrou o contato etnográfico com nenhum sujeito que não fizesse parte
de “classes populares”, não tendo nada a inferir sobre outro contexto que não esse. Nem todos os
interlocutores que tinham alguma posição importante no campo me deram entrevistas. Um desses
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rapazes, por exemplo, estava totalmente fora de minha abordagem devido a sua reiterada posição
de não participar de nada que pudesse lhe associar a transexualidade de maneira pública. Por isso
fui desencorajado por alguns interlocutores a chamá-lo para a pesquisa. Além disso, nem todos
esses pacientes integrariam a mobilização política de modo articulado e regular. Dos 20
interlocutores homens trans entrevistados, oito tiveram algum tipo de experiência num serviço que
prestou atendimento a pessoas trans, o ATASH, mas todos os outros tentaram entrar no serviço
de alguma maneira. Enquanto construo a narrativa geral baseando-me em todas as entrevistas e
observação no qual o serviço era manejado nas interações sociais, recorro apenas a algumas
entrevistas e experiências de modo mais direto.
O próprio engajamento político respondia a posição de classe social, uma vez que a ausência
de recursos financeiros levava os interlocutores a recorrer a políticas e ações de governo com muito
mais urgência. Isso trazia ao ativismo um elemento forte de salvação, da consciência política e da
marginalização político-econômica que era abandonada após a entrada no movimento social e, às
vezes, no funcionalismo público por indicação. As novas formas de vida coletiva trazidas pelo
ativismo possibilitavam o aumento exponencial de redes de apoio e ajuda mútua, principalmente
quando algum interlocutor fora expulso de casa. A narrativa dessa expulsão do âmbito da família
funcionava muitas vezes como um elemento de um drama que contava a história de suas vidas e
criava um grande apelo diante dos setores estatais. Essas redes alargadas passavam a compor redes
de cuidado às quais recorrer mesmo mantendo vínculos com familiares, isto é, a expulsão não era
um elemento definitivo, muito embora isso fosse trazido como circunstância biográfica de
autenticidade de si (“sou tão verdadeiro que enfrentei essa grande dificuldade”). Essa tese, contudo,
não se debruça sobre parentesco, uma vez que os interlocutores estavam muito mais preocupados
em conseguir aquilo que concretizasse uma transição de gênero segura mediada pelo Estado. Isso
não significa dizer que a família não seja importante em suas vidas, mas que a atividade de
mobilização tinha um objetivo específico e que conformava o objeto do campo social da saúde
trans de modo mais visceral.
Na Tabela 2, a seguir, relaciono os homens trans entrevistados, buscando demonstrar a
cobertura sociológica inicial. As entrevistas também possibilitaram exceder a observação
participante, coletando histórias de adoecimentos e itinerários terapêuticos, isto é, o registro de
casos clínicos a partir de sua inserção na biografia na forma de memória59. Todas as categorias
59 O que estou a fazer remete mais ao que Michael Pollak (1992) chamou de “fatos de memória”, isto é, expressões que remetem a
percepções da realidade e não exatamente a acontecimentos ou fatos históricos, nem a uma “factualidade positivista”. Isso não
significa fuga do real, ou “mentira”, fabulação, artifícios. Significa como as pessoas viveram os eventos, o cotidiano, ao qual se
remete. A reconstrução do passado a partir da memória, da forma como os agentes relembram e constroem suas lembranças se dá
também em meio a conflitos entre grupos que constituem o mesmo contexto (Pollak, 1989). Sobre esse trabalho memorial há
grande investimento acadêmico, principalmente em torno do estudo de história oral ou relato oral, para a qual a historicização é
realizada através de histórias de vida e não dependente somente de fontes escritas (Debert, 1986; Pollak, 1992). Embora os temas
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usadas como descritores da tabela são provenientes de sua relevância etnográfica e da narrativa
pessoal. Esses são dados condensados e que no decorrer da tese serão acompanhados de outros
para situar sociologicamente cada um.
Tabela 2 – Relação de homens trans/transmasculinos entrevistados
ORIENTAÇÃO ATUAÇÃO NO NOME IDADE RELIGIÃO COR ESCOLARIDADE
SEXUAL ATIVISMO
Roberto 18 Nenhuma Parda “Indefinida” Técnico Atransce
Jurandir 19 Nenhuma Branca Bissexual E.M.60 Atransce
incompleto
Aristides 19 Nenhuma Negra Pansexual E.M. incompleto Atransce
Rivelino 20 Nenhuma Preta Pessoas E.M. completo Atransce
Luís 20 Católico Branca Heterossexual E.M. completo Nenhuma
Paulo 21 Ateu Etnia Pansexual E.M. completo Atransce
Indígena
Januário 23 Católica Branca Heterossexual Graduado Atransce
Reginaldo 24 Católica e Branca Heterossexual Graduado Nenhuma
Umbanda
Rosimário 24 Espírita Parda Bissexual E.M. completo Atransce
Wilton 24 Espírita Parda Heterossexual Graduado Atransce
Nelson 24 Umbanda e Preta Heterossexual E.M. completo Nenhuma
Espiritismo
Gabriel 25 Wicca Parda Heterossexual EJA61 completo Nenhuma
Salazar 26 Nenhuma Parda Pansexual E.M. completo Nenhuma
Paulo 27 Nenhuma Branca Heterossexual E.M. completo Atransce
Silas 28 Católico Parda Heterossexual E.M. completo Nenhuma
Magno 28 Cristão Parda Heterossexual E.M. completo Atransce
Daniel 36 Católico Branca Heterossexual E.M. completo Nenhuma
Zagreu 37 Ateu Branca Bissexual Graduado Atransce
Kaio 38 Nenhuma Branca Heterossexual Graduado Atransce
Sílvio 54 Candomblé Negra Heterossexual Graduado Nenhuma
Fonte: Autor.
variem desde de uma história das camadas populares (Cavignac, 2006), a memória tem sido acionada geralmente no contexto da
velhice, seja para narrar o envelhecimento ou a juventude de outrora (Bosi, 1994; Beauvoir, 1990; Elias, 2001b), seja para descrever
um contexto de eventos dramáticos e de experiências adjacentes em torno de adoecimentos, preconceitos e mobilização política,
como é o caso das pesquisas em torno da sexualidade e da epidemia do HIV/Aids décadas depois (cf. Valle e Simões, 2015), ou
ainda na reconstrução histórica de populações indígenas (Valle, 2003), entre outros. Por ser o trabalho de memorialização uma
questão marginal ao problema da tese, procurarei, na verdade, reunir as recorrências entre as entrevistas para, ao mesmo tempo que
apresentasse as experiências individuais gerasse um quadro coletivo no qual se construiu essa narrativa historicizada e entender os
seus usos no presente, o que me parece ainda em estado embrionário, devendo, portanto, a pesquisas futuras a tarefa de delinear
suas permanências.
60 Ensino Médio corresponde às séries do 1º. a 3º. ano e encerra o ciclo escolar básico.
61 Educação de Jovens e Adultos (EJA) é uma modalidade de ensino público brasileiro voltado para pessoas a partir de 15 anos de
idade que não concluíram o ensino na idade escolar.
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1.5. A etnografia de/entre setores estatais
Esta tese lidou o tempo todo com partes do Estado brasileiro em diferentes formatos de
serviços de assistência ou de organização burocrática. Não apenas li e consultei documentos de
governo, mas também observei o trabalho nas repartições e o acesso de interlocutores às suas
dinâmicas. Concentrei-me basicamente nas formas que a governança local se constituía desde a
Prefeitura de Fortaleza e do Governo do Estado do Ceará. Primordialmente, meu interesse esteve
localizado nas ações e estruturas voltadas de alguma forma para a diversidade sexual e de gênero,
isto é, minha atenção se voltara para determinadas instituições públicas devido à grande
centralidade atrativa e animadora das chamadas “políticas públicas LGBT” para a mobilização
social trans. Assim, procurei estabelecer uma observação cotidiana dos primeiros “aparelhos” –
como chamavam – da região nesse sentido. Após ter conhecido a iniciativa do Centro de Referência
LGBT Janaína Dutra62 (CR), e da Coordenadoria da Diversidade Sexual, a qual está ligada à
Prefeitura, pude realizar uma observação diária de seus atendimentos e dinâmicas internas. Isso se
demonstrou importante porque o CR é um grande ponto de irradiação política e se tornou um
lugar de atendimento à saúde mental de muitos homens trans através do serviço de psicologia que
oferecia. Ligados à Secretaria Municipal dos Direitos Humanos e Desenvolvimento Social, esses
setores constituíam oficialmente uma política de governo que tinha como foco sujeitos não-
heterossexuais.
No último trimestre de 2017, minha rotina era acordar às 6 horas da manhã para me
encaminhar para o CR que fica localizado à rua Pedro, número 1, no centro de Fortaleza. Lá eu
passava todo o período de expediente, das 8 horas da manhã às 17 horas da tarde. O prédio que
abriga o serviço aglutina outros setores da área de cidadania da Prefeitura de Fortaleza, dando à
convivência entre os setores dinamismos sobre ocupação de salas, recepção de usuários e
comportamento dos funcionários. A sala na qual funciona o CR era um vão dividido por paredes
removíveis. Na recepção pequena havia um birô, prateleiras com fichários na parede à esquerda
com material informativo sobre “políticas LGBT”, prevenção a Infecções Sexualmente
Transmissíveis, um pote de camisinhas e lubrificantes. Três cadeiras à frente da mesa da secretária
acompanhavam um bebedouro próximo à porta e davam à recepção um aperto considerável. Outra
porta de frente dava acesso a um vão maior no qual trabalhavam os demais técnicos: psicóloga,
62 Regido pela Lei Complementar n. 0133 de 28 de dezembro de 2012, o CR foi pensado como um “serviço de direitos humanos”.
Segundo um dos funcionários, a lei foi aprovada no último mandato de Luizianne Lins (PT), gestão na qual havia sido criado como
política de Estado. Com a mudança da gestão a partir de 2013, se tornou necessário garantir a continuidade da existência do serviço,
muito embora a lei não tenha previsto fundo financeiro próprio. Em seu artigo 2ª, a Lei municipal instituía que o CR deveria “prestar
serviço de proteção e defesa da população de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais (LGBT), em situação de violência
e/ou violação, omissão de direitos motivados pela questão da orientação sexual e/ou identidade de gênero na cidade de Fortaleza”.
A estrutura do serviço é fruto de um “orçamento participativo LGBT” realizado pela Prefeitura e tem sua origem na política federal
Brasil Sem Homofobia através de editais para serviços de proteção contra a violência homofóbica.
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advogado, assistente social, educadoras sociais e o coordenador. Noutro vão paralelo à recepção,
mas com entrada interna ao vão anterior, ficava o arquivo dos prontuários e material informacional;
e uma estante à esquerda da entrada criava uma pequena copa com utensílios de cozinha e lanches.
O espaço total era muito pequeno, e as salas nas quais se realizavam os atendimentos aos usuários
eram “emprestadas” no mesmo prédio porque “pertenciam” a outros setores. Depois de alguns
meses, por aptidão de negociação política de uma das funcionárias do setor, essas salas passaram a
pertencer ao CR para atendimento privativo.
No cotidiano do serviço foi possível observar a atuação profissional dos técnicos no curso
do atendimento aos usuários, percebendo a forma como geriam as histórias e davam resolução e
encaminhamento aos casos. Meu limite de acesso estava posto pelos funcionários, e eu não procurei
ultrapassá-lo, de modo que eu não poderia acessar prontuários diretamente e sozinho nem
acompanhar consultas particulares dos “atendidos” com os técnicos especialistas. Quando um
atendido era recebido a primeira vez, o assistente social “abria” um prontuário e preenchia a
primeira parte que competia a identificação básica (nome, sexo, idade, orientação sexual, identidade
de gênero, renda) e as demandas que teria escutado a partir de uma investigação que vai empreender
ao fazer perguntas. Assim, o CR intentava se inserir na rede de assistência social e de saúde pública
da região muito embora não fosse esse tipo de serviço. Como colocavam, eram uma porta de
entrada, um apoio para aqueles que não sabiam navegá-la.
O dia a dia no Centro me fascinava grandemente porque me possibilitava tanto acompanhar
profissionais trabalhando como pessoas à procura de algum tipo de cuidado ou proteção contra a
violência. Meu envolvimento se tornou tamanho que em grande parte do campo eu entendia que
iria realizar um grande estudo de caso sobre o serviço. Cheguei a realizar entrevistas de longa
duração com todos os funcionários, além de vários ativistas gays e lésbicas que circulam na cidade.
Mas percebi que não poderia ficar cerrado às suas paredes. Era necessário acompanhar
interlocutores homens trans em outros serviços porque o lugar não era o único procurado por
essas pessoas e nem oferecia totalmente os atendimentos que elas necessitavam. Constantemente,
homens trans davam com a porta na cara em postos de saúde diversos da região. O
encaminhamento feito pela psicóloga para serviços de saúde nem sempre detinha de força
suficiente capaz de amenizar a peregrinação a que eram submetidos os usuários na busca pelo que
chamavam de serviços e profissionais sensíveis, aqueles que fossem capazes de lhes atender sem
ofensas, com reconhecimento de identidade e particularidades clínicas para o devido cuidado de
prevenção à saúde. Ao procurar entender e seguir essa peregrinação, eram criados verdadeiros
itinerários sem os quais não se conseguia a marcação de consultas nas unidades básicas do SUS.
Entretanto, apesar da grande quantidade de dados empíricos que puderam ser construídos a partir
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da observação do cotidiano do Centro de Referência, eu acabara por perceber que a pesquisa não
era sobre o serviço. Ele era apenas um dentre vários setores estatais procurados e nos quais era
possível que pessoas trans emergissem como sujeitos objetos de governo, tenha isso ou não
consequências políticas e sociológicas previstas. Nesse sentido, me deparei com a dificuldade não
apenas de seguir esses sujeitos segundo as intempéries das ofertas dos serviços, mas também quanto
a compreensão de um campo em saúde especializado de alguma forma à transexualidade. Assim, o
CR passou a ocupar mais um pano de fundo do cenário de descrição do que um objeto em si de
análise: hospitais, postos de saúde, unidades de pronto atendimento, cartórios, secretarias da
Prefeitura, praças, eventos políticos de ativismo, bares, igrejas, casas, escolas e universidades,
consultórios particulares, entre outros espaços, mostravam a continuidade de lugares de técnicas
de governo e aqueles tidos como públicos e privados. Todos entravam e transbordavam, assim, à
conformação de processos de constituição do Estado.
1.6. Seguindo médicos, cientistas e práticas científicas
Abordar, acompanhar e entrevistar médicos e médicas foi, talvez, a etapa mais difícil da
etnografia. Mesmo que eu tenha tido o contato inicial com uma dessas profissionais logo no
começo da estada em Fortaleza, todos os outros precisaram ser igualmente convencidos das minhas
intenções e se fazer interessados por minhas problemáticas. A técnica de bola de neve por si só
não foi suficiente. Como já mencionei, alguns gestores de hospitais da cidade se mostraram
reticentes com minha pesquisa e um, inclusive, não emitiu a respectiva anuência. Então, era urgente
pensar novas estratégias que não aquelas de estar presente todos os dias num dado ambiente
fechado como salas de consulta, laboratórios, corredores dos hospitais, salas de cirurgia, entre
outros, que me haviam sido negados.
Para superar essa dificuldade me cabia, então, seguir esses interlocutores. Como propôs
Bruno Latour (2000 [1998]) sobre o estudo de engenheiros e cientistas, me restava seguir médicos
sociedade afora para poder compreendê-los. Mas o que parecia uma alternativa emergencial se
demonstrou muito proveitosa. Essa expressão não tem um sentido necessariamente literal, como
se estivéssemos sempre à rua seguindo pessoas aonde elas vão literalmente. Embora isso aconteça
em alguma medida, a ideia aqui é de observar práticas que criam os objetos e os fatos científicos
quando eles acontecem e não o “produto” que foi o resultado. Isso é particularmente relevante
porque, como têm apontado os estudos de ciência e tecnologia (Pickering, 1992), essa produção é
comumente apagada na exposição científica. Como aponta Latour, seria preciso observar a “caixa-
preta” aberta, e não procurar suas “influências e vieses sociais”. Era necessário que o etnógrafo
estivesse “ali antes que a caixa se fechasse”. Essa técnica implica conseguir seguir os passos de
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cientistas conforme eles atuam no seu dia a dia profissional, como no exemplo do autor: “nos
momentos e nos lugares nos quais planejam uma usina nuclear, desfazem uma teoria cosmológica,
modificam a estrutura de um hormônio para a contracepção ou desagregam os números usados
num novo modelo econômico” (Latour, 2000, p. 39). Assim, o antropólogo parte, junto com os
interlocutores, do objeto à produção. Diante dessa perspectiva metodológica percebi que precisava
tomar esses interlocutores como cientistas ainda que nem sempre estivessem envolvidos com
pesquisa de laboratório. Mesmo numa área bioquímica como a medicina contemporânea, o
conhecimento científico está para além da manipulação de material biológico humano ou não-
humano. Como percebera durante o campo, os discursos sobre os saberes e sobre as formas de
abordar pacientes trans e de manejar a transição de gênero e suas implicações para a saúde – seja
para negá-la ou afirmá-la – estavam contidos em formas científicas e eram assegurados também
nesses termos.
Então, o que fazem os médicos? E mais importante: o que faziam aqueles e aquelas com
quem eu tentava interagir? Elas e eles clinicavam e cirurgiavam, lecionavam e pesquisavam. A
primeira entrada que consegui estabelecer foi no plano pedagógico daqueles profissionais que
também lecionavam – diferentes formas e não apenas aulas convencionais. Assisti a palestras,
acompanhei fóruns de discussão, mesas redondas e congressos geralmente oferecidos aos alunos
de saúde da região. Com isso, passei a segui-los nas dinâmicas da comunidade médica de cunho
mais técnico, aqueles eventos de mercado e de divulgação de pesquisas e não apenas de clínica, isto
é, estive junto com eles em eventos variados além de em reuniões e demais atividades universitárias.
No âmbito das interações médico-paciente, eu me concentrava nos corredores e nos saguões dos
hospitais e clínicas, nos quais eu podia transitar para visitar algum médico ou receber notícias de
algum paciente que havia se submetido a procedimentos de transição. Então, eu me fazia presente
inclusive nas calçadas dos serviços de saúde e nas praças em frente aos hospitais e clínicas. Circular
nesses espaços e ser visto por médicos que não haviam ainda me dado tanta abertura facilitou a
nossa comunicação e permitiu o desenvolvimento de alguma confiança. Não consegui, contudo, a
aceitação de todos aqueles que abordei ou que me foram indicados por seus pares. Mas cheguei a
entrevistar ao todo 17 médicos e médicas embora tenha convivido com muitos outros que não
consegui entrevistar ou que rejeitaram o contato (ver Tabela 3).
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Tabela 3 – Relação de médicas e médicos entrevistados
NOME IDADE RELIGIÃO COR ORIENTAÇÃO ESPECIALIDADE ATUAÇÃO POLÍTICA
SEXUAL MÉDICA
Genivaldo 29 Nenhuma Branca Homossexual Psiquiatria Nenhuma
Geraldo 31 Nenhuma Branca Homossexual Psiquiatria Nenhuma
Clara 32 Espiritismo Branca Heterossexual MFC63 Feminismo
Gérson Psiquiatria Antipsiquiatria
35 Nenhuma Branca Homossexual MFC Direitos Humanos
Emanuel 35 Catolicismo Branca Heterossexual Endocrinologia Nenhuma
Carmela 37 Catolicismo Negra Heterossexual Ginecologia Direitos Humanos
Fátima 38 Nenhuma Branca Bissexual MFC Feminismo
Geraldina 38 Catolicismo Branca Heterossexual Ginecologia Feminismo
Clóvis 39 Catolicismo Branca Heterossexual Cirurgia Plástica Nenhuma
Cassandra 39 Catolicismo Branca Heterossexual Mastologia Feminismo
Graça 40 Catolicismo Branca Heterossexual Ginecologia Nenhuma
Marlene 40 Catolicismo Branca Heterossexual Endocrinologia Nenhuma
Aparecida 41 Nenhuma Parda Heterossexual Psiquiatria Nenhuma
Marinalva 51 Catolicismo Branca Heterossexual Endocrinologia Nenhuma
Celeste 54 Nenhuma Branca Heterossexual Psiquiatria Feminismo
Ginecologia
Álvaro 56 Catolicismo Parda Heterossexual Endocrinologia Nenhuma
Eliza 67 Espiritismo Negra Heterossexual Ginecologia Direitos Humanos
Fonte: Autor.
63 Medicina de Família e Comunidade (MFC).
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Assim, o ser visto para ser lembrado foi uma das condições para conseguir realizar, por fim,
as entrevistas que auxiliaram a observação. Esses meus trajetos me fizeram perceber que a clínica
era formada de modo continuado na comunidade de profissionais e não apenas entre as quatro
paredes dos consultórios. E pude explorar as diferenciações locais sobre clínica e pesquisa como
fontes legítimas de conhecimentos. Isso é fundamental para esta pesquisa porque, como venho
apontando nessa tese, os médicos e a medicina, apesar de serem muito mencionados, são os menos
compreendidos quando se fala em transexualidade. Não se tem procurado entender suas práticas e
suas interpretações em si mesmas, mas apenas o contato que tem com elas os sujeitos atendidos.
Mesmo que haja estudos importantes sobre a literatura produzida no contexto do norte global
sobre a mudança de sexo e todos os saberes adjacentes a sua emergência, isso não é suficiente nem
é antropologicamente relevante – sozinho – para compreender contextos específicos de atividade
médica. É por ter sido movido por essa inquietude e curiosidade que procurei observar esses
interlocutores nos termos científicos que se arvoram para ter as respostas locais diante da
transexualidade ou da transição de gênero como objeto médico.
1.7. Reflexividade, ética antropológica e o Comitê de Ética da UFRN64
1.7.1. A vida cotidiana da pesquisa
Como eu desejava realizar entrevistas com médicos, e de observar sua prática profissional
a aprovação da pesquisa pelo Comitê de Ética era uma questão fundamental, pois nenhum deles
me concederia entrevista nem os serviços aceitariam minha presença. A vida social ativa da ética,
como mostrou Patrice Schuch (2013, p. 32), fez todo o sentido conforme eu percorria o campo
antes de ter certeza sobre iniciar a etnografia. Esse “mundo social da ética” faz que essa categoria
transforme e movimente as pessoas, de modo a incutir as concepções científicas daqueles que
detêm a regulamentação e autorização de pesquisadores. Uma das primeiras perguntas que me
faziam em campo, ou que eu adiantei antes de qualquer tópico, era se a pesquisa já havia sido
aprovada. Isso particularizou a abordagem de várias maneiras, embora eu tenha procurado não
engessar as interações com o anúncio dessa burocracia. Mas, de todo modo, fazer o projeto ser
aprovado no Comitê de Ética tanto atrasou o início como implicou uma rotina de andar com papeis
para assinatura antes que a entrevista pudesse ser feita. Isso foi um dos fatores que me fizeram
optar por entrevistar qualquer pessoa apenas no final da etnografia.
64 Essa pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética da UFRN através de registro na Plataforma Brasil, e seguindo as regulamentações
da Resolução n. 510 de 7 de abril de 2016 do Conselho Nacional de Saúde. Identificação CAAE: 80926117.0.0000.5537, Parecer de
Aprovação n. 2.445.814.
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Conforme eu preenchia vários documentos exigidos para apreciação do projeto na instância
responsável da UFRN e os recebia de volta para correção devido aos menores detalhes possíveis,
como a falta de um carimbo ou o arquivo eletrônico não estar nos formatos .PDF e .DOC. Ficava
claro que eu necessitava aprender a percorrer esse Comitê que pode ser visto como funcionando nos
termos de setor estatal. As pesquisas antropológicas sobre o Estado-nação e suas estruturas têm
demonstrado que o uso efetivo de uma certa ação governamental ou de um serviço depende muito
do grau de aptidão do usuário de aprender a percorrer os caminhos, aprender as regras, a insistir
para ser atendido. E foi isso que aconteceu. Enquanto eu não aprendi o que era demandado do
serviço, nem sempre claramente, obtive várias rejeições até mesmo para que o início da análise
pudesse acontecer – sempre de ordem burocrática. O único problema de ordem ética fora
identificado no Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), no qual eu havia informado
que o consentimento se daria paulatinamente durante o desenrolar do campo. Isso não foi aceito
pelo parecerista técnico, que me pediu para detalhar como eu iria explicar os objetivos da pesquisa
e como obteria todo o consentimento de uma vez por todas. Mas como eu poderia prever o que
iria acontecer? Afinal de contas, eu estava lidando com gente, e não com uma cultura de micro-
organismos numa placa de Petri num laboratório. Mas eu deveria informar previamente os riscos
e formas de minimizá-los mesmo depois de apontar no projeto que esses riscos seriam mínimos e
que os próprios interlocutores regulariam minha presença em suas vidas. Isso não implicava que
eu não tivesse pensado sobre quais as melhores formas de abordagem e questões envolvidas com,
principalmente, entrevistar pessoas em situação de sofrimento – inclusive, lembrando do Código
de Ética da Associação Brasileira de Antropologia65 como um norte de atuação profissional.
Além do que já mencionei sobre as tentativas de certos gestores de incluírem funcionários
como coautores do meu projeto de pesquisa, um outro profissional de outro hospital teve uma
abordagem mais colaborativa e de aceitação após conversarmos sobre isso. Nos falamos tanto por
telefone como pessoalmente. Eu cheguei a lhe explicar que seria inviável para mim inserir um
médico na equipe porque ele faria parte dos interlocutores e porque essa se tratava de uma pesquisa
que culminaria na minha tese de doutorado. Cheguei ainda a dizer-lhe que nada nos impediria de
parcerias futuras em pesquisas colaborativas interdisciplinares, ao que tinha interesse. Ele me
respondera na ocasião que a equipe do hospital apenas havia pensado numa forma de eu ser
assistido, supervisionado, para me ajudar. Não tive certeza se iria conseguir realmente a anuência,
mas alguns dias depois recebi a notícia que a direção havia aprovado a pesquisa no HSM, conforme
condições que já explicitei sobre não abordar inicialmente os pacientes.
65 Disponível em: . Acesso em jul. 2020.
90
Assim, antes de cada entrevista eu explicava seus objetivos e apresentava o TCLE, pedindo
para que fosse assinado e rubricado em todas as páginas. Era uma atividade cansativa e aumentava
o período da conversa. Outro serviço da cidade, o Centro de Referência, também fez parte desse
processo de emissão de uma carta de anuência, mas sem maiores complicações. Tudo isso me
demonstrava que o trâmite burocrático da anuência não substituía a reiterada anuência que
antropólogos sempre estiveram familiarizados no cotidiano do trabalho de campo, e ao qual eu
também estive submetido a partir do controle da minha circulação, do que eu poderia chegar a
saber e sobre o que eu poderia perguntar.
A antropologia brasileira vem desde muito tempo se debruçado sobre questões éticas de
sua prática profissional regulada por setores estatais (cf. Duarte e Sarti, 2013). Tem sido apontado
como esse conjunto padronizado de procedimentos impõe a regulamentação oficial dos agentes
que gerem os Comitês de Ética que não costumam contar com antropólogos como membros
avaliadores. Isso perde de vista a diversidade da prática antropológica e procura tornar todas as
ciências sob as regras e as tradições das ciências da vida e da saúde. Não como se tivéssemos outra
ética, própria, transcendental, mas porque produzimos outro tipo de ciência, na qual se busca um
equilíbrio entre distanciamento e proximidade na construção do conhecimento. É evidente que o
trabalho do antropólogo não deve ser desregulado, mas que o conjunto de procedimentos e o
próprio caráter do que objetiva saber a disciplina escapa dos moldes de Termos de Consentimento
Livre e Esclarecido (TCLE) e das formulações de outras áreas do conhecimento. Claudia Fonseca
(2010) argumentou que não seria possível prever tudo que aconteceria em campo junto aos
interlocutores dado que a antropologia busca entender o “implícito”, o “não dito”. Nem o
antropólogo nem o colaborador conseguem antever perguntas, situações e interações em geral. O
consentimento ou a proibição da pesquisa pelas próprias pessoas se faz sentir em campo, uma vez
que portas se abrem ou se fecham.
Além disso, a questão do anonimato dos entrevistados e demais citados na pesquisa traz
um problema a ser pensado tanto pelo antropólogo como pelos interlocutores. Claudia Fonseca
(2010), por exemplo, apontou que isso é algo sério que deve ser encarado com as possíveis
implicações políticas e sociais para a vida de todos os envolvidos. O argumento da autora transcorre
para a indicação de que é sempre preferível usar nomes fictícios para proteger a integridade. Nesse
sentido, os nomes das pessoas aqui citados são fictícios na sua maioria. Uma parte desses sujeitos
rejeitou qualquer posição de anônimo. Como ativista político, a marcação de sua identidade de
forma pública realiza um registro histórico que considera importantíssimo para sua vida e para a
mobilização social em prol de direitos em saúde trans. Ao considerar isso, passo a usar seus nomes
originais. A nomeação é um elemento de tensão social também de outro modo. O emprego do
91
TCLE exige o emprego do nome completo e a assinatura – ou uso da digital para analfabetos – do
entrevistado. Contudo isso esbarrou num problema no campo, já que nem todos os homens trans
haviam realizado a retificação civil. Não querendo reproduzir as abordagens vexatórias que
significam o uso do nome de batismo que não corresponde a identificação de alguém deixei que as
pessoas trans ficassem livres para escolher se assinariam com o nome masculino ou com o
feminino. Todos assinaram com o masculino.
Há outra dimensão da ética que quero me ater. Como agir diante de cenários de intenso
sofrimento, inclusive psíquico? O que a violência percebida em campo enquanto sofrida pelos
interlocutores quer implicar à ética antropológica? David Valentine (2003) se perguntara a respeito
ao se deparar com um conjunto de práticas violentas contra pessoas trans. Ele argumenta que a
percepção da ética se complica quando se procura perceber como os interlocutores veem a
violência. Nesse sentido, fica ainda mais forte a acepção de levar a sério o que as pessoas nos dizem,
sem intenção de “ensiná-las” a agir. Isso nos mostra, ainda, como a ética precisa ser percebida de
modo etnográfico. O perigo de cair num relativismo raso aqui é real, mas deve ser sanado com a
reflexão e discussão que acontece na disciplina sobre os limites de nossa atuação. Nesse sentido,
não abordei ninguém sob intenso sofrimento quando procuravam cuidado no Centro de Referência
ou nos serviços de saúde. Por exemplo, quando um interlocutor que eu não consegui entrevistar,
havia marcado comigo para acompanhá-lo na ida à marcação de consulta num Centro de Atenção
Psicossocial (CAPS), não tentei insistir numa maior aproximação quando ele me falara que estava
sentindo-se numa crise de ansiedade, o que lhe impedia de comparecer ao médico. Outro rapaz
que seria um colaborador em potencial, por sua vez, não foi sequer abordado inicialmente. Este
procurava o Centro de Referência para uma Profilaxia Pós-Exposição (PEP). Esses e outros casos
se multiplicaram em campo, fazendo-me observar mais a atuação dos profissionais do que abordar
usuários em sofrimento66.
O fazer etnográfico, dessa maneira, urge cada vez mais por discussões e debates que
questionem não apenas as regulamentações dos Comitê de Ética, mas que continue a revisar os
parâmetros da própria disciplina. Se, ao me relacionar com um grupo de interlocutores, começo a
pensar se seria ético aceitar um convite para ida ao bar, se eu estarei ali também observando, é
preciso tencionar a questão, pois nem sempre os colaboradores acham que estão sendo
“observados”. Convites para uma festa de aniversário, para beber no bar, para comer na esquina
durante o almoço são momentos tidos por nós como informais para compor a etnografia, e é algo
que precisa ser elaborado de maneira reflexiva. Sem encerrar uma resposta, não é de se admirar se
66 Rozeli Porto (2020) mostrou, ao estudar mulheres com filhos com microcefalia, que interlocutores em sofrimento nos colocam
questões específicas para lidarmos no trabalho de campo. É preciso ter clareza da abordagem e, de acordo com o caso, observar
possibilidades ou não de entrada e continuidade de entrevistas, sempre considerando o que o ponto de vista das pessoas nos indica.
92
considerarmos que esse tipo de problema tem muito a ver com os parâmetros de ciência, de
objetividade neutra que recorta as ciências “duras”?
1.7.2. O antropólogo sob o teste do desejo e da subjetividade
Desde o início das minhas interações com grupos de ativismo trans, gay ou lésbico em
Fortaleza fui questionado sobre minha identidade sexual. Isso não era exatamente uma novidade
para mim porque havia acontecido também durante a pesquisa para a dissertação de mestrado. Mas
agora essa questão se dava de maneiras amplificadas e modificadas. Como fiz referência na
introdução, sempre houve algum tipo de tensão envolvendo a “sexualidade do antropólogo” tanto
quanto a teorização na disciplina – o como abordar certos temas, que categorias relativizar ou que
identidades essencializar – como na dinâmica cotidiana do trabalho de campo67. Não cheguei a ter
relações afetivo-sexuais com nenhum interlocutor, uma vez que considerei isso prejudicial para a
pesquisa, mas isso não significa dizer que eu não tenha me situado nos lugares que me colocavam.
A proximidade comunitária antevista na minha sexualidade me colocava questões como o
compartilhamento da minha história pessoal: que eu também narrasse minha própria trajetória
sobre o armário, histórias com namorados, a possibilidade do desejo por qualquer pessoa que seja
trans ou não – cuja moral me classificava como uma boa pessoa –, experiências íntimas, e que falasse
sobre meu corpo e suas partes específicas, entre outros. Assim, no meu caso, responder de volta –
não necessariamente em palavras verbalizadas – que eu compartilhava de uma certa experiência
percebida localmente como comum entre nós me possibilitou uma entrada significativa entre esses
colaboradores. Ocorria, ainda, alguma confusão pela minha convivência contínua com homens
trans e outros sujeitos transmasculinos: pessoas de fora desse círculo ora pensavam que eu era
outro homem trans e heterossexual, ora que eu seria trans e homossexual. Essas “leituras” sobre a
minha identidade e minhas possíveis práticas eróticas aconteciam assim como um certo teste do
desejo e da subjetividade.
Se eu realmente não sentia nenhum tipo de preconceito contra travestis e pessoas trans,
inferiam os interlocutores, isso seria provado se eu “ficasse” ou ao menos se dissesse que não tinha
nenhuma restrição no campo do desejo sobre isso. “Você ficaria com um homem trans?”, foi uma
pergunta que ouvia na mesa do bar ou noutros espaços quando gravávamos entrevistas. As
paqueras aconteciam, e elas também se davam nesse plano da atividade avaliativa moral do que eu
realmente pensava. Ao ponto, por exemplo, de um beijo ter sido “roubado” numa ocasião. Com as
67 Wagner de Carvalho (2012) faz uma etnografia com esportistas que envolve uma discussão direta nesse sentido, uma vez que sua
própria sexualidade como prática erótica esteve implicada na situação da pesquisa com seus interlocutores, tanto como técnica de
abordagem como de acesso às suas vidas.
93
mulheres trans e travestis esses questionamentos eram facilmente resolvidos quando me tomavam
como gay. O argumento mais forte que circulava nesse sentido seria aquele referente a lógica de
que, como estão dentro da categoria mulher ou fora da categoria homem, não teriam romances
nem envolvimento sexual com ninguém que não fosse um homem heterossexual. Essas são
dinâmicas no plano dos discursos em torno das práticas sexuais e o do amor diante da minha
presença – ou, mesmo com a minha presença – e não dizem respeito a outros cenários nos quais
essas últimas interlocutoras, principalmente, estão situadas68.
Assim, a sexualidade como habitus erótico era uma constante intensa na pesquisa de campo,
tanto quanto a essas primeiras interações que eu detive conforme conhecia novas pessoas como
quanto a própria vida social daqueles que acompanhava. Gênero e sexualidade se tornaram reinos
separados na vocalização política trans, como indiquei na introdução, mas se trata de partes de um
mesmo universo indivisível no plano da realidade concreta. As identidades sexuais e as identidades
de gênero eram, contudo, tratadas pelos sujeitos como coisas que alguém possui. Entretanto, eu não
tive particularmente uma angústia identitária em relação a tudo isso. Eu costumava considerar essas
investidas afetivo-sexuais como algo elogioso, e, sem dúvida teve um enorme impacto positivo na
possibilidade de realizar a pesquisa. Isso, de alguma maneira, era visto pelos interlocutores como
um elemento que nos unia em comunidade. Mas eu não reclamo nenhuma posição como uma
espécie de “antropólogo nativo” em termos sexuais e de gênero simplesmente porque isso não é
útil à descrição etnográfica por seu caráter engessante de uma pretensa igualdade absoluta que
geraria automaticamente compressões. Ao se debruçar sobre o termo nativo, Arjun Appadurai
(1988, p. 37) demonstrou há bastante tempo que “nativo” foi usado como se referindo a alguém
que não pertencia ao “Ocidente”. No caso clássico e mais genérico da disciplina isso estava
intimamente ligado a ideia de autenticidade, aponta o autor. Essa comparação tem seu valor
metafórico na minha reflexão. “Nativos apropriados são de alguma forma assumidos para
representar seus eus e suas histórias sem distorções e sem resíduos; em contrapartida, durante
muito os antropólogos apresentaram a si mesmos como seres complexos e diversos”. Ao me
chamar de nativo eu estaria não apenas cristalizando a mim, mas também os sujeitos que
compuseram a pesquisa por gerar uma unicidade subjetiva que não existe. Essa oposição ganha
relevo na antropologia como parte de sua reflexividade. Podemos entender essa reflexão contínua
da disciplina como nosso principal traço de preocupação ética que não se restringe a definir
posturas rígidas de abordagem, mas infere as consequências das nossas relações e da produção do
conhecimento de maneira contextual. Apontamos para a situacionalidade do conhecimento
68 Embora não as tenha entrevistado diretamente, convivi bastante com elas devido as dinâmicas do campo político LGBT. Essa
escolha se deve a um recorte metodológico. Assim, esses sujeitos compõem a descrição apenas no plano da observação.
94
(Cardoso, 1986; Durham, 1986; cf. Haraway, 1995). De todo modo, a sexualidade nesses termos é
algo com o qual o antropólogo lida, mas nem sempre isso é de relevância metodológica para a
entrada em campo.
Evelyn Blackwood (1995), a partir de seu trabalho de campo realizado numa vila
mulçumana na Sumatra Ocidental, na Indonésia, argumentou que esse é um aspecto ocultado, mas
atuante na nossa prática disciplinar. A negação da subjetividade de alguém em campo expõe e
desafia questões de exotização e de identidade no trabalho etnográfico. Dessa constatação a autora
se pergunta “se, a negação de nossa subjetividade no campo nos habilita à exotização na
antropologia; como o seu reconhecimento na nossa agência nas relações em campo combate essa
prática?” (Blackwood, 1995, p. 39, tradução minha). A experiência subjetiva da sexualidade, aponta,
desafia a distância entre “nós” e “eles”. Mesmo que a autora esteja se remetendo a pesquisas em
contextos não-ocidentais, ela não deixa de tocar a antropologia feita “em casa”. Ao ocultar e
mascarar a própria sexualidade incorre-se inevitavelmente à reificação da distância entre “nós” e
“eles”. E isso age numa pretensa neutralidade objetiva absoluta da ciência construída pelo
antropólogo.
Demasiadamente, padrões de objetividade científica na etnografia têm mascarado pontos
de vista que são meramente distantes e insensíveis (Kondo, 1986, p. 84). Haraway
eloquentemente define esta objetividade científica como: “o olhar de lugar nenhum”.
Este é um olhar que miticamente inscreve todos os corpos marcados, que faz com que
categorias não marcadas reivindiquem poder para ver e não ser visto, para representar
enquanto escapa da representação. Este olhar significa posições não marcadas de homem
e Branco (Blackwood, 1995, p. 40, tradução minha).
Ao se comparar com antropólogos que se casavam em campo e viajavam de volta para casa
com esposas, Blackwood demonstra seu desconforto pessoal e identitário com problemáticas
envolvendo um movimento político por afirmação lésbica e gay estadunidense. Isso não significa
uma impertinência à sua reflexão, mas a localiza. No caso particular dessa etnografia, a sexualidade
do antropólogo como não-heterossexual foi crucial para o estabelecimento de relações. Não se
pode perder de vista que isso se deu dessa forma porque essas categorias de pessoa foram vibrantes
culturalmente no campo, e não se deve a algo universalizável como faz parecer as indicações de
Blackwood. Assim, essas questões expõem que a dimensão ética de uma pesquisa não é medida
por um conjunto de procedimentos regulados isoladamente. A dimensão reflexiva da antropologia
tem colocado problemas desse tipo para a disciplina de maneira permanente. E cabe, portanto,
permitir que haja uma definição etnográfica para a ética sem entrar, por exemplo, num relativismo
que justificaria a violência, mas que a entende contextualmente.
95
1.8. Compreendendo escalas
Esse capítulo procurou mostrar as condições de possibilidade para o estabelecimento da
etnografia na qual se baseia essa tese. Procurei evitar um discurso de afetação que recria um tipo
de subjetivismo pouco útil à compreensão dos percursos metodológicos. Mesmo tendo em mente
que a neutralidade da ciência não existe de forma absoluta, e que estamos diante muito mais de um
tipo de “objetividade relativa” – nos termos de Roy Wagner (2010) –, isso não significa que se deva
abandonar o trabalho de objetivação de uma pesquisa. Assim, sigo os princípios epistemológicos
de se pensar que os dados empíricos são construídos, mas não por isso não são cientificamente
formulados. O controle que objetiva um problema e o transforma em objeto procura evitar aqui
tanto um subjetivismo como um objetivismo positivista (Bourdieu, Chamboredeau e Passeron,
1999 [1968]) que muitas vezes incorre em preocupações que não geram por si só uma pesquisa
antropológica situada. Assim, coube pontuar o caráter relacional e de atenção a processos sociais
que esta tese toma parte. Isso leva a considerar que além de lidar com campos sociais com sujeitos
com objetivos diversos e que de algum modo se alinham, estou integrando a compressão dos
problemas etnográficos com as diferentes escalas que assumem para se estabelecer.
As compreensões biomédicas sobre a transexualidade formuladas em diferentes sítios,
embora concentradas primordialmente no norte global, se irradiaram na forma de fluxos
socioculturais para o mundo inteiro e assumiram um caráter transnacional. Esse espraiamento de
conhecimentos científicos não é dependente de tecnologias da informação da nossa
contemporaneidade como a internet. Entre as décadas de 1950 e 1980, a medicina acadêmica foi
um cenário profícuo para aplicar pesquisas bioquímicas em mamíferos anteriores para possibilitar
que alguém pudesse mudar seu sexo. No próximo capítulo eu demonstro como é importante
considerar as escalas de forma antropológica para compreender as questões que estou tratando
aqui. Contudo, o caráter global de problemas e situações e experiências foi trazido à tona
particularmente pela epidemia de HIV/Aids que compartilha de muitas problemáticas que estou
discutindo e descrevendo (Valle, 2015; Bastos, 2010). Assim, cabe à etnografia dar conta desses
níveis que assume a vivência local da saúde trans, que, embora não diga respeito a uma infecção se
inscreve nos raios de controle, definição, controvérsia e contestação da medicina como uma ciência
globalizada. A permanência da transição de gênero como um objeto de intervenção desse campo
social de forte autonomia esclarece que processos de medicalização e de contestação trans ganham
escalas variadas e não estão restritos nesse sentido a (des)patologização, mas adentram as
transformações da medicina trans como uma “boa medicina” e as relações e respostas locais às
definições que esta carrega. O capítulo 2 busca, portanto, rastrear esses fluxos globais.
96
– Capítulo 2 –
Os fluxos socioculturais da transexualidade
Se o diagnóstico impende de uma computação de dados de várias
naturezas, ele pode, todavia, concluir pela existência da referida
síndrome transexual. [...]. Quer no Brasil, [...] quer em todo o
mundo científico, está bem reconhecida a existência dessa
entidade. [...]. Está cientificamente identificada descrita,
nosograficamente caracterizada e é hoje universalmente
reconhecida.
– Hilário Veiga de Carvalho, médico urologista
(1982a [1977], p. 257-8).
2.1. Quando o todo é uma parte
Nós somos vidas teimosas. A gente insiste naquilo que não foi feito para nós [...]. Todo
mundo já quis decifrar quem é mulher trans, quem é travesti, quem é homem trans, quem
é LGBT, nesse contexto de lutas, de resistência. Todo mundo quis já dizer uma palavra
para isso, dizer que são resistência, que são tudo, que são guerreiros, lutadores, militantes,
ativistas. Não somos nada disso, somos isso [...]: vidas teimosas [...]. Nós queremos ouvir
uma palavra do nosso dia a dia, do que a gente fala um para o outro. E a gente mesmo
fala isso um para o outro, e é isso que a gente escuta todo dia: “deixa de teimosia”, “pára
com isso”, “cai na real”. [...]. São as vidas teimosas (Kaio, entrevista 2018).
A noção de teimosia expressa por Kaio enquadra a constituição de si não enquanto um
sujeito isolado, mas como parte duma coletividade de sujeitos que, como julgam, é percebida por
conhecimentos em termos arbitrários às suas próprias vidas como sujeitos específicos e enquanto
seres humanos que estão vivos. A forma como lidam com essa arbitrariedade explicativa se dá no
âmbito de uma negociação com seus termos, mantendo uns e rejeitando outros. Enquanto faz
refletir uma ideia cearense, a teima explica algo muito propositivo que traz contornos culturais para
o ativismo trans. Ela ecoa uma insistência e obstinação contra algo para o que se ouviu diferentes
explicações definitivas. Segundo a forma como os próprios agentes representam a si mesmos, isso
explica como se movem contra discursos e um conjunto de práticas na tentativa de se consolidarem
como personagens concretos do cotidiano. Eles querem se tornar personagens óbvios da vida
social, e não exceções. Essa é sua primeira batalha.
97
Para além da classificação do cearense como nascido e vivendo no Ceará por muito tempo,
as ideias de hospitalidade, comicidade, teimosia69 e valentia “como um vaqueiro” são organizadas
simbolicamente no âmbito da representação na produção cultural através da literatura, da música,
das coberturas jornalísticas e de manifestações da cultura popular em geral (cf. Oliveira, 2015). O
caráter inventivo da ideia de cearensidade, ou de cultura cearense (Carvalho, 2014), não impede a
produção de efeitos sobre a constituição de sujeitos (Silva Neto, 2009). As diferentes emigrações
de cearenses para outras regiões do Brasil também denotam um caráter de “lutador” (Cardoso,
2011), contudo, a luta de que falam ativistas homens trans se dá no sentido de ficar no Ceará para
mudá-lo, de não se satisfazer com soluções apresentadas por gente de fora, isto é, ativistas de
caráter supostamente nacional que não vivem suas vidas.
As arbitrariedades que homens trans encontram no curso de seus ativismos e vida social –
isto é, toda uma gama de campos compostos por suas famílias, dinâmicas de acesso a renda, amigos,
parceiros ou parceiras sexuais, dinâmicas raciais, relações de classe, os profissionais de saúde
variados com quem interagem, políticos, políticas públicas, setores estatais, órgãos nacionais e
internacionais, saberes e tecnologias corporais e médicas – são parte de uma situação constituída
por fluxos globais que se tornou a categoria transexualidade. A dinâmica social e política que
engendram não está constituída de maneira isolada culturalmente. Nesse sentido, este capítulo
pretende descrever histórica e etnograficamente como o mundo social da saúde trans cearense, e
os problemas com os quais lidam seus agentes na ordem do conflito pela representação legítima,
estão situados num intrincado âmbito intercultural de fluxos transnacionais; e, o que significa
adotar uma visão holística para gerar uma compreensão mais aprofundada a seu respeito:
considerar o contexto de um amplo campo de valores culturais e mudanças históricas pelos quais
é gerado. Para tanto, este capítulo decorrerá para descrever a produção biomédica da
transexualidade no seu original cenário euro-estadunidense, no norte global, e sua produção e
reverberação brasileira, demonstrando como médicos e homens trans ativistas agiram, os primeiros
geralmente no tocante ao estabelecimento de uma categoria diagnóstica, e os segundos, de uma
categoria de sujeitos que extrapola – mas não rejeita terminantemente – a biomedicina e alcança a
produção cultural.
Diversas vezes durante o trabalho de campo os interlocutores se remetiam a saberes,
biotecnologias, modelos e instituições cujos pontos de referência extrapolavam suas localidades.
Isso se expressava também quando questionavam, como alguns médicos o faziam, se os reclames
de acesso a serviços de saúde de uma população autodenominada transexual – e o conjunto de
69 Algo encontrado também em diferentes expressões de cultura popular no Ceará, como na música “Terral”, cantada por Ednardo,
Amelinha e Belchior no álbum “Pessoal do Ceará” (Continental/Warner, 2002), que diz: “Eu tenho a mão que aperreia / Eu tenho
o sol e areia [...] Eu sou a nata do lixo, eu sou do luxo da aldeia / Eu sou do Ceará”.
98
médicos especialistas interessados – não seriam o resultado negativo e alienante da “globalização”
que veicularia informações sobre um tipo de diagnóstico. Os próprios agentes se reconheciam, de
alguma maneira, circulando em um mundo composto por espaços interior/exterior no qual
manejavam situações e interações enquanto profissionais ou enquanto sujeitos/ativistas.
Como categoria nosológica, a transexualidade se tornou uma categoria global cujos fluxos
transnacionais – relações mútuas, embora desiguais, entre origens e destinos no fluxo de ideias,
objetos, ideologias, tecnologias e imagens numa ampla economia de circulação materializada
localmente, tanto histórica como sociologicamente (Hannerz, 1996, 2003; Ericksen, 2003) – são
passíveis de serem traçados e a razão de sua globalidade. Isso oferece a oportunidade de pensar a
transexualidade em sua conformação cultural, com uma origem e com espraiamentos específicos
entre diferentes partes do mundo, de modo que esta tese constitui apenas um caso. Pensar a
constituição cultural a partir da metáfora de fluxo oferece70, como defendeu Ulf Hannerz (1996) e
outros, uma via de se pensar em termos processuais. Isso não quer dizer que tais processos sejam
de “fácil” concretização. Não se trata de simples transposição e transmissão de formas carregadas
de significados essenciais, mas de um processo com centralidade nas múltiplas influências culturais,
com história e com agentes que criam, recriam e transmitem suas interpretações e sentidos sobre
o mundo. A questão do fluxo ainda coloca em evidência a problemática da “fronteira”, cada vez
mais erodida como limites intransponíveis ou de pura alienação do outro, mas vista como o lugar
mesmo no qual a mudança social e a constituição cultural acontecem (Barth, 2000; Hannerz, 1996).
Se houve uma mudança no entendimento da antropologia a respeito das relações entre
sociedades, de uma relação de aculturação para uma relação de múltipla constituição71, o peso de
“novidade do presente” atribuído ao que se chama de “globalização”, como Thomas Ericksen
(2003) demonstrou, é, na verdade, antigo. Desde a década de 1990, muito tem se falado nas ciências
70 Sobre as diferentes aplicações que tratam do termo fluxo para se referir à formação cultural ou social, e ainda o lugar disso na
percepção macro antropológica da vida social, ver Gustavo Ribeiro (1997), Ufl Hannerz (1996; 1989), Arjun Appadurai (2015),
Anna Tsing (2002), Thomas Ericksen (2003) e Marshall Sahlins (2010).
71 As décadas de 1980 e 1990 foram um campo prolífico de produção antropológica sobre a “globalização”. Se tornara
indiscutivelmente evidente, principalmente por causa das tecnologias de informação, que o mundo todo estava de alguma maneira
conectado. Mas eventos específicos que se tornam processos sociais são particularmente importantes para que se pudesse perceber
e avaliar as escalas, esse é o caso primordial da pandemia do HIV/Aids. Esse debate gerou variados conceitos para a descrição da
circulação de ideias, mas também da continuada produção local daquilo que entrava em âmbito global, tais como, globalismo,
mundialização, glocalismo, imperialismo, colonialidade do poder e multiculturalismo. Embora essa asseveração não tenha sido
reinante em toda a história da disciplina como contrária à ideia de aculturação, ela é verdadeira para todo o período conhecido da
história da humanidade (Cusick, 2015). Segundo Marshall Sahlins (2010), esse foi um ponto de inflexão se não devido isoladamente,
ao menos foi grandemente popularizada por Claude Lévi-Strauss (1982 [1947]; 1999), cujos princípios de sua antropologia estrutural
se baseavam na acepção contrária então vigente, na de que diferenças culturais de interação entre povos eram dialeticamente
relacionadas. Vemos isso, por exemplo, tanto na sua análise estrutural da proibição do incesto – no qual se assentava a interação
matrimonial entre grupos como principal veículo de constituição da vida social –, como naquela dos mitos – a partir de que mostrou
a dinâmica relacional e de continuação das narrativas entre diferentes grupos étnicos, isto é, a diversidade das culturas não era
resultado do isolamento geográfico, mas das relações entre si ao se explorar as possibilidades de oposição, transformação e
transcendência (cf. Lévi-Strauss e Perrone-Moisés, 1999). Essa foi uma posição consolidada também pelo trabalho publicado em
1969 por Fredrik Barth (2000), Grupos étnicos e suas fronteiras, no qual se demostrava que as distinções étnicas não dependiam da falta
de interação e aceitação social. Eram as interações que produziam sistemas sociais comumente vistos como fechados, ordenados e
autorreproduzidos, e era isso mesmo que produzia a diferença cultural.
99
sociais que “o mundo está menor”, levando-se comumente ao emprego do conceito de
“globalização”, dado ao encurtamento das distâncias propiciado pela maior proeminência de
interações mediadas com a popularização de variadas tecnologias da comunicação como o rádio, a
televisão, o telegrama e o telefone (Thompson, 1998). Com a disseminação da internet, desde os
anos 1990, a troca de mensagens e informação adquiriu gradativamente uma maior e inédita rapidez
e instantaneidade. Foi a isso que Manuel Castells (2011) se referiu ao denominar a sociedade em
rede, propiciadora da “revolução tecnológica” que deu outro patamar à globalidade do capitalismo.
Nas décadas recentes, a popularização de artigos tecnológicos como computadores portáteis,
celulares inteligentes e da internet de banda larga deu outro rosto à comunicação mediada no
cotidiano, interferindo de maneira decisiva nas relações sociais (Miskolci, 2016).
Embora esse panorama apresente uma conectividade mundial, de modo a gerar uma
verdadeira “situação global” quanto a problemas sociais, diferentes antropólogos (Eriksen, 2003;
Hannerz, 1996, 2003; Nustad, 2003; Tsing, 2002) têm criticado a noção de globalização por verem
nela um obscurecimento da natureza limitada de muitos fluxos de troca e comunicação que faz
parte do mundo, tanto como lugares de larga escala, como de pequena dimensão. Ou, por
entenderem que o termo não capta de modo apropriado que universos simbólicos ligados a
produtos globais tenham uma realização sempre constituída desde um ponto específico por visões
de mundo e relações de poder. A crítica se coloca contra a acepção de um espaço global como um
espírito de força transcendental longe de gente de carne e osso; ou, como Eriksen (2003, p. 5,
tradução minha) argumenta: “um espírito mundial hegeliano sobrevoando acima e além das vidas
humanas”. Parte desses autores se propõem, portanto, a engajarem-se em torno do conceito de
“fluxos transnacionais”. Isso, acreditam, faria com que a análise expusesse que as ideias ou
substâncias que entram em fluxo são rastreáveis em suas origens e destinos e como são instigadas
pelas pessoas num contexto histórico demarcado. Ao invés de presumir a existência de processos
globais, seria preciso seguir os interlocutores e sua produção social e cultural, observando como
essas conexões não têm uma existência intrínseca, mas como se tornam uma parte importante do
mundo social72.
Nesse sentido, ao agrupar pesquisas sobre a noção de transexualidade, se percebe que é
possível auferir como ela tem assumido diferentes feições ao redor do mundo. Isso acontece seja
para afirmar a particularidade de uma categoria identitária cultural local e a rejeição de interlocutores
e do pesquisador em classificá-la como transexual, seja enquanto sua afirmação direta e
ressignificada mesmo em meio a grupos como o primeiro contexto. Realidades nacionais como
72 Outros antropólogos (por ex. Ribeiro, 1998; Appadurai, 2015), por outro lado, não veem no termo tanto problema, apontando
que o fluxo não deixa de ser percebido. Mas, de todo modo, o que permanece dessa querela teórica é a acepção de que o material
etnográfico é a bússola a partir da qual se parte para aplicar e construir teorias e metodologias de pesquisa.
100
Estados Unidos, Inglaterra, Austrália, Tailândia, Canadá e Brasil veem argumentações em torno da
transexualidade ou de um tipo de noção mais geral, a “não-conformidade de gênero” (Meadow,
2018; Hines, 2007; Aizura, 2018; Namaste, 2000). Outras categorias como hijras na Índia e kathoey
na Tailândia e travestis latino-americanas (Connell, 2012; Silva, 1993) e rupantarkami entre grupos
étnicos de língua bengali na Ásia (Dutta, 2012) também fazem parte de outras formas de nomear a
“mudança de gênero” ou os seus trânsitos73. Contudo, quando se considera apenas o cenário
estadunidense, a conformação cultural irradiadora mundialmente nem sempre é considerada
(Prosser, 1998a; Plemons, 2017; Hausman, 1995; Rubin, 2003; Cromwell, 1999). Exercício
fundamental para se aprofundar sobre as condições de possibilidade de surgimento e circulação
cultural e social de categorias de sujeitos, de diagnóstico e de interpenetração da biomedicina na
conformação contemporânea da vida.
Não estou inferindo uma “globalização da transexualidade” ou uma “trans-globalização”,
uma vez que não é possível existir uma única forma ou um quadro único de “globalização”. Nem
essa circulação transnacional que aqui se indica é apenas devedora das mudanças tecnológicas da
comunicação das décadas 1980 e 1990, uma vez que a circulação de conhecimento biomédico já se
constituía através da sua comunidade internacional bem anterior. O que existe são conexões e
fluxos globais que se tornam, cada uma a sua maneira, relevantes para o mundo social sob
inquirição. Se, na Tailândia descrita na etnografia de Aren Aizura (2018), a transexualidade é uma
categoria importante com ligações transnacionais, o fez por uma demanda turística particular que
levou o país a investir em hospitais particulares para oferecer serviços cirúrgicos a pacientes de
número crescente vindo de diferentes partes do mundo – o que não impediu, como Aizura
mostrou, que dinâmicas religiosas tailandesas formalizassem muitas das dinâmicas de cuidado em
saúde e os processos de transição de gênero, inclusive de pessoas viajando de fora para o país. Sua
pesquisa foca nas migrações de pessoas transexuais desencadeadas pela busca por supervisão
médica. É nesse passo que considero essa transnacionalização, mais do que alguma espécie de
quadro monolítico de “globalização”. Mesmo quando as pessoas trans não estão viajando à procura
de cuidado médico, o fluxo transnacional da transexualidade acontece porque ele se perfaz em meio
aos fluxos de conhecimento por meio das tradições científicas que tornaram esses conhecimentos
disponíveis em algum sentido e que foram, ainda, também construídos de modo multilocalizado.
Raewyn Connell (2012) de um lado, e Howard Ching (2012a; 2012b) de outro,
argumentaram a favor de observar a transexualidade em termos que extrapolem a vida social local
de comunidades ou grupos. Connell (2012, p. 858, tradução minha), em uma revisão extensa acerca
73 Isso, na verdade, não diz respeito simplesmente a nomes diferentes para as mesmas experiências e sim a concepções diferentes
cultural e sociopoliticamente que estão sendo agrupadas aqui mais a nível de tradução, do que a nível de uma semelhança absoluta.
101
da relação entre o pensamento feminista e mulheres transexuais, pontuou o caráter global da
constituição da “medicina transexual” e das discussões feministas a respeito, como chama, ao
ressaltar o seu desenvolvimento pela metrópole global – o conjunto de países euro-estadunidenses
que hoje ocupam o centro financeiro, político e científico do mundo. Ela mostra que isso expõe a
“situação distintiva e o poder da metrópole, o qual tem impacto sobre políticas corporais em todo
lugar”. Já Ching (2012b), em seu estudo sobre o eunucodeísmo na China, mostrou como categorias
locais que o asseguravam como prática foram sendo desafiadas por ontologias conceituais
associadas com a alteração de sexo. Reagindo a postulados que colocam os eunucos chineses de
séculos passados como transexuais, categorias de “castração voluntária” e “eunuco natural”
chinesas foram sendo colapsadas culturalmente, criando um espaço para a transexualidade se erigir
como categoria explicativa a fim de limpar a ideia da China como “civilização castrada”. Isso,
segundo o autor, acabou por apagar a linhagem histórica do corpo político chino que remonta aos
eunucos e às práticas de pés diminuídos de mulheres.
A partir dessa abordagem, Ching (2012a) propôs pensar a formação de estudos sobre
transgêneros na China, mostrando que deveria haver uma preocupação teórica sobre como a
transexualidade “viaja” entre tradições intelectuais. Antes de Ching, feministas como Sarah
Radcliffe, Nina Laurie e Robert Andolina (2003) se dedicaram a explicar o caráter transnacional do
gênero, ao mostrar o engajamento de líderes indígenas andinas em fóruns mundiais de direitos
humanos, e as dinâmicas de globalização que enredam as políticas públicas em escalas
internacionais e locais. Como veem, tem ocorrido uma expansão global de formas de pensamento
próprias do “Ocidente” que impactam a conformação de políticas de desenvolvimento pró-
indígenas com paradigmas específicos de gênero e capital. Essa tem sido uma preocupação perene
da agenda feminista. Assim, se o mundo acadêmico mundial é em grande parte pressionado pela
produção da metrópole global, como Raewyn Connell (2007) já demonstrou, enviando inclusive
teorias do centro e colhendo material empírico da periferia, é preciso saber como isso acontece
caso a caso, etnograficamente. A transexualidade enquanto categoria que “viaja”, ou como prefiro
dizer, como categoria em fluxo global, não está dissociada desse amplo contexto que envolve tantos
outros objetos e campos da vida social também localmente situados.
Embora não se trate de considerar que a vida social num dado lugar seja heteronomizada
apenas por causa desses fluxos socioculturais, eles são particularmente importantes quando
consideramos um dos principais veículos da transexualidade como categoria: a biomedicina
“ocidental”. Ela carrega consigo os princípios norteadores das culturas de onde se originam,
constituindo, portanto, uma geopolítica biomédica da ainda atual categoria psiquiátrica de disforia
de gênero (Bento, 2016). Isso é perceptível quando consideramos a produção e reprodução da
102
medicina como atividade profissional e campo de conhecimento e intervenção. Ela age como o
principal vetor e motor da transnacionalização da transexualidade, tanto pelos regimes de verdade
que oferece (Foucault, 2011), lidando com fases cruciais da vida e morte humanas, como por ela
própria ser um ator global (Sakoyan, Musso e Mulot, 2011), através da constituição de sua
comunidade internacional por meio de congressos, periódicos acadêmicos, organizações de
regulação, associações científicas e manuais de saúde – além de sua inscrição através do Estado-
nação e do comércio mundial que habita e formaliza (Biehl, 2011).
Nesse sentido, esse é um processo de medicalização. Pelo próprio caráter da interação entre
diferentes campos que a transexualidade enseja – como campo que engaja agentes e saberes,
tecnologias e instituições e visões de mundo diferentes –, a dimensão do conflito social é tanto
exacerbada quanto o é no interior de cada dimensão da vida social. Isso se reflete na minha posição
e identidade enquanto antropólogo e nas relações que procurei construir em campo para estudar
os problemas aqui delineados. Primeiro passo para compreendermos a participação ativa e inicial
da biomedicina na disseminação da categoria transexualidade no Brasil74, o que dá subsídios para a
volta ao período histórico do desenvolvimento da ciência sexual à brasileira e suas raízes alhures.
O capítulo é concluído com a descrição das estratégias empregadas por homens trans e outros
sujeitos tidos como “aliados” políticos em instituir práticas para que sejam visíveis como sujeitos
que existem para além da biomedicina a partir da produção cultural através de peças teatrais em
Fortaleza, um objeto cultural de intensa vida social local – algo que não rejeita totalmente as
explicações e tecnologias oferecidas pelas ciências psi e bioquímicas aplicadas na clínica e na cirurgia
médicas.
2.2. Um antropólogo e um assunto espinhoso
Já passava de meio dia quando eu cheguei no hospital público no qual Marinalva trabalhava.
Havia falado com ela há poucos dias por telefone, mas não tinha certeza se ela participaria da
pesquisa quando me encaminhei para lá. No contato mediado tentei resumir meus objetivos, e
como me interessava por uma diversidade de opiniões médicas sobre o assunto. Quando nos
encontramos precisei convencê-la a participar. Além dos objetivos gerais, apresentei o Parecer do
Comitê de Ética aprovando o projeto de pesquisa, bem como o questionário que almejava aplicar.
Após me ouvir e ler todo esse material cuidadosamente – um ritual corriqueiro com os profissionais
de saúde –, ela teceu comentários sobre o tema, principalmente de sua preocupação com o que
considera ser um alto índice atual de diagnósticos de disforia de gênero. Nesse momento cheguei
74 Uma vez que a disseminação de saberes sobre a transexualidade a partir dos ativistas trans, além de ser posterior ao trabalho
médico, corresponde a formação de um campo de atuação política por direitos, o descreverei nos próximos capítulos.
103
a achar que ela não participaria. Após aceitar, passa a tomar ainda a precaução de ouvir todas as
perguntas que levei esboçadas acompanhando-as à leitura com os próprios olhos quando ligamos
o gravador. Desde o início da nossa conversa ela questionara a crescente demanda por transição
assistida, e erigira dúvidas sobre a cientificidade de diagnósticos relacionados. Marinalva não se
considerava uma especialista no assunto, mas durante sua formação e atuação profissional não
deixou de ter alguma aproximação a respeito, como enfatizara.
Poder ouvi-la foi de extrema importância por dois fatores. Primeiro, porque o cenário
médico geral no Ceará – como ficará melhor descrito adiante – é muito heterogêneo sobre a
facilitação da assistência à transição de gênero e a um cuidado que leve em conta o reclame da
diferença feito por pacientes ativistas trans. Não quero trazer Marinalva como a representação per
se de uma atuação profissional não-afirmativa, mas lançar olhares sobre como ela dinamiza todo esse
contexto a seu modo. Isso porque a rejeição do aumento de pacientes que procuram serviços desse
tipo não está presente apenas entre médicos que rejeitam participar dessas assistências. Esse
cenário, contudo, não pode ser lido de modo maniqueísta, é preciso entender os saberes e práticas
que o constituem, isto é, como advoga para um maior rigor na supervisão médica da
transexualidade. Em segundo lugar, sua entrevista foi importante porque a divisão de
endocrinologia do hospital no qual trabalha ocupava entre outros agentes sociais uma posição
negativa porque seguia o rumor de que haveria se manifestado contrária à sua adesão ao serviço do
Processo Transexualizador na cidade. A ideia geral era de que seriam “conservadores”, e seguiam
certos argumentos científicos aliados a uma moral judaico-cristã. Por ser um hospital público geral
este seria o lugar mais “lógico” para implantação do referido Ambulatório, segundo me contaram
alguns profissionais e ativistas. Mas, isso não seria possível por uma falta de interesse, postulavam.
Não se trata de verificar se esse rumor é “verdadeiro” ou “calunioso”; isso não importa
para a descrição etnográfica porque independe disso a sua força social, uma vez que me interesso
em como esse rumor é utilizado pelos agentes para organizar suas percepções sobre o assunto e
estratégias políticas para criação do serviço em outros hospitais. Assim, ouvir profissionais desse
lugar se mostrou crucial. Entretanto, Marinalva foi a única médica do lugar que aceitou conversar
comigo. Mesmo com a ajuda de médicos já entrevistados para contatar outros profissionais, a
maioria de seus colegas – e de outros profissionais na região – respondeu não ter interesse na
pesquisa ou simplesmente ignorou minhas tentativas de contato. Minha aproximação com
Marinalva se deu também porque médicos com os quais já havia interagido, e que eram tidos e se
viam como especialistas ou simpatizantes de especializar-se no tema, me instavam a entrevistar e a
conhecer “outros médicos contrários”, isto é, me cobravam a “coletar” uma “diversidade de
104
opiniões” para que meu trabalho apresentasse “maior validade científica”. “Você precisa ouvir
quem não concorda, quem se opõe”, me diziam algumas vezes no saguão de outro hospital.
Porém, a recusa desses “outros médicos” ao tema alcançara, consequentemente, minhas
questões – médicos mesmo com pacientes trans regulares na assistência à transição também
rejeitaram participar. Muito provavelmente, esse cuidado excessivo que gerava inclusive recusa em
envolver-se com a pesquisa estava associada também a esse ambiente de conflitos constantes
baseados em discordância moral ou científica. Uma das médicas interlocutoras, especialista em
sexologia com forte atuação na área, já fora acusada, por exemplo, de fomentar “ideologia de
gênero”75 por outros profissionais que viam a transexualidade como prenúncio contra a natureza
humana normal – essa acusação lança luzes sobre as relações de força na área. Assim, se não
contribuíam para um serviço especializado, não iriam contribuir para uma pesquisa a respeito, vista
como uma contribuição indireta à questão.
Era recorrente que todos os interlocutores com os quais interagi fizessem algum
comentário ou se colocassem em alguma posição sobre conflitos passados entre pacientes trans e
médicos, entre os próprios médicos ou dos ativistas entre si na cidade. Isso se deu a tal ponto que
senti de uma maneira muito incômoda o que se materializava como uma atmosfera carregada de
tensões e acirradas disputas políticas. Apenas quando aceitei que a vida social em si, em qualquer
lugar e não apenas do campo que estava a estudar, é permeada por conflitos que pude entrever as
bases dessas contendas e seus objetos. Foi necessário voltar a Georg Simmel (1904) e lembrar,
como mostrou, que não apenas o conflito tem uma significância sociológica como é uma forma de
socialização fundamental da constituição das relações. Muitas leituras do autor têm colocado essa
proposição em termos de competição por recursos, mas é preciso observar não apenas o que ele
chamou de “relação formal de tensão” – os episódios particulares de atrito. Tanto um grupo social
quanto o indivíduo assumem suas “unidades”76 através da contradição. A “sociedade”, como
coloca, “requer alguma relação quantitativa de harmonia e desarmonia, associação e dissociação,
75 A expressão “ideologia de gênero” é usada por movimentos conservadores no Brasil e no exterior para reclamar por um retorno
à natureza humana dada por Deus, ou supostamente provada por uma “teoria biológica” sem respaldo atualmente, criticando
principalmente políticas, currículos e leis favoráveis à promoção de discussão sobre direitos das mulheres e sexualidades vistos como
riscos à integridade de uma família natural heterossexual. Iniciado originalmente em círculos religiosos católicos, se tornou um
“pânico moral” (cf. Miskolci, 2017) também presente na política brasileira de maneira secular com potencial eleitoral. Para uma
discussão mais aprofundada a respeito ver também Rogério Junqueira (2017).
76 Simmel demonstra, portanto que a “unidade” é construída pelos indivíduos em relação: “Nós descrevemos como unidade o
acordo e a conjunção de elementos sociais em contraste com suas disjunções, separações, desarmonias. Nós também usamos o
termo unidade, contudo, para se referir a síntese total de pessoas, energias, e formas num grupo, no qual a totalidade final é
construída, não apenas por aqueles fatores que são unificadores no sentido estrito, mas também por aqueles que são, no sentido
estrito, dualísticos” (Simmel, 1904, p. 491-2, tradução minha). Max Gluckman (1968, p. 221, tradução minha) faria um argumento
ligeiramente similar, mas partindo das considerações de Émile Durkheim (1996), para mostrar que a tensão e o conflito constituem
a produção do processo social e da sociedade. O autor propunha um método chamado de "modelo de equilíbrio" para estudar
sistemas sociais em mudança. Embora eu não aplique sua abordagem totalmente, apreendo alguns das suas proposições, como a de
que as mesmas pessoas não ocupam apenas um tipo de posição social, e a de que há um equilíbrio contínuo entre a mudança e a
continuidade social, em ordem de dar relevância ao “elemento tempo, desde que toda a realidade é um processo no tempo”.
105
simpatia e antipatia, em ordem de atingir uma formação definitiva” (Simmel, 1904, p. 491, tradução
minha). Sem isso, Simmel aponta, não seria possível existir nenhum “processo vital essencial” nem
“estrutura estável”. Isso tudo resulta e produz a dimensão subjetiva dos indivíduos manifestada
socialmente pelas emoções. Tendo isso em mente, eu não estava diante de uma excepcionalidade.
Aprendi que não era possível fugir do conflito. É nesse sentido que Gilberto Velho (1989; 2008;
2005) argumentou a necessidade de olharmos tanto para a unidade como para a fragmentação
enquanto formas que os indivíduos assumem ao constituírem a vida social.
Então, não era de se espantar as precauções tomadas pelos interlocutores em relação a
minha pesquisa e a desconfiança do que minha presença poderia incitar entre diferentes grupos e
agentes. Eles não me conheciam anteriormente. Os médicos sabiam que eu convivia com ativistas,
os ativistas sabiam que eu convivia com profissionais de saúde, e os funcionários do Estado do
mesmo modo. Era frequente ainda que ao fazerem comentários sobre outros campos e agentes,
ou sobre questões gerais que os recortassem todos, esperassem de mim alguma opinião que os
corroborasse ou que ao menos lhes dissesse que entendia a validade de seus pontos de vista. Isso
porque uma exposição considerada desabonadora poderia trazer consequências negativas à
profissão ou à atuação política, ou seja, às carreiras morais77 (Goffman, 1987) dos interlocutores.
A imagem de si diante de seu próprio grupo era um recurso essencial para um posicionamento
social. Nesse sentido, os agentes comungavam da preocupação com o estabelecimento de uma
trajetória, as quais são compostas de transformações na forma como são vistas pelos outros e por
si mesmos no decurso da interação social. Alçada como importante, essa interação e a produção
da própria imagem é crucial à manutenção da posição – não apenas de sujeito, mas também como
“profissionais” da política ou da biomedicina – que assumem ou desejam alcançar sobre eles,
individualmente e quanto ao grupo que pertencem.
Por isso, Marinalva não apenas visava a possibilidade de demarcar e registrar sua opinião
científica sobre o assunto, como avaliar se minhas intenções de pesquisa e dimensões éticas eram
seguras. Formada pela UFC, com residência médica em São Paulo, após considerar diferentes áreas,
acabou optando pela endocrinologia. Ela, que nascera em Fortaleza no final dos anos 1960, sempre
se encantou mais pela clínica do que pela cirurgia quando começou a cursar medicina. Sua escolha
pela especialidade perpassou sua preocupação com a alta incidência de diabetes na sua família, e,
como me diz sorrindo, sua baixa estatura, a qual queria entender melhor o porquê. Ela continua
sua explicação para dizer que “a especialidade vai muito de acordo com nossa história”, e para
77 Erving Goffman (1987, p. 112) define carreira moral ou “os aspectos morais da carreira” como “a sequência regular de mudanças
que a carreira provoca no eu da pessoa e em seu esquema de imagens para julgar a si mesma e aos outros”. Esse conceito implica
uma saída da dependência de falas das pessoas sobre como elas se imaginam, e permite à análise uma circulação entre o que fazem
e onde se situam. Não se trata, portanto, apenas de um estudo do eu, mas também da “sociedade significativa” na qual se está.
106
concluir assevera que se voltou à pediatria porque também era uma área de interesse anterior ligada
à sua vida pessoal. Seu foco, portanto, recaiu sobre questões endócrinas de desenvolvimento,
puberdade e crescimento. Na época de sua formação não teve nenhum contato com disciplinas,
materiais didáticos ou prática clínica ambulatorial envolvendo transexualidade, embora tenha tido
atuação junto a pacientes intersexo78. O contato com pessoas trans aconteceu no decorrer do seu
trabalho, mais de uma década após sua graduação. Sua narrativa voltava para 2002 – ou 2003, não
tinha certeza – quando alguém, que chamarei de Darci, por volta de 30 anos de idade, procurara
atendimento no serviço com uma “demanda de investigação genética e endócrina”.
[Ele veio] questionando se ele teria alguma... algum defeito genético ou endócrino porque
ele não se identificava no sexo de nascimento. E aí ele queria uma cirurgia, ele queria que
a gente diagnosticasse uma condição que... motivasse esse processo. E foi a primeira vez
que eu me deparei com isso, que na minha época de residência não existia ambulatório lá
na USP nesse tema. E ele já chegou [...] com todo um conjunto de impressos que ele
buscou na internet falando sobre, é.... o distúrbio de identidade de gênero, a disforia de
gênero. E na nossa investigação endócrina a gente realmente constatou que ele tinha um
cariótipo normal, ele era XY, a genitália masculina perfeita, não tinha nenhuma alteração
na genitália e não tinha nenhuma alteração hormonal. Os níveis hormonais dele eram
todos normais, assim, testosterona no nível masculino, e não tinha nenhuma outra
alteração. E aí, é, a gente pesquisando [nos guidelines] viu, assim, que era uma condição
muito rara e aí a gente encaminhou pra psiquiatria pra avaliação porque a gente leu nos
guidelines que a base do acompanhamento seria no CID, que era um CID da psiquiatria,
que tinha que ter um laudo psiquiátrico. E aí ele foi encaminhado, e na época [...] eu entrei
de licença (Marinalva, entrevista 2018).
A categoria “normal” é fortemente demarcada por Marinalva na apresentação da paciente,
e seu fio condutor na demarcação da opinião médica a respeito da transexualidade79. O interesse
pelo que Darci poderia apresentar ao exame da diferenciação sexual se estende até a “descoberta”
de sua não-intersexualidade, que passa a ser matéria psiquiátrica após “provado” que sua genética
não estaria entre os sexos. Como potencial intersexo, operava-se com um afastamento “natural”
da natureza ao se procurar a verdade daquilo que Darci fora ao hospital descobrir. A base genética
é um arsenal explicativo nos dois lados (Darci e médicos). Já como potencial transexual, o espaço
da unidade psi é trazido à tona como o ponto de partida, isto é, os profissionais de saúde seguiam
manuais, os quais postulavam a normalidade ora em relação ao biológico, ora em relação ao mental
78 A intersexualidade é definida pela variação genética de caracteres sexuais gonáticos, cromossômicos e/ou genitálicos que impedem
a classificação dos seres humanos como totalmente ditos de um único sexo. Há um amplo debate a respeito que a considera como
variação biológica da espécie humana e não como doença ou síndrome. Anne Fausto-Sterling (2002; 2000) discute a existência de
cinco sexos ao se partir de características celulares, argumentando que as explicações biológicas geralmente fixam apenas dois sexos
e nomeiam tais variações como erros genéticos. O trabalho não se propõe a descrever questões biomédicas ou políticas ligadas a
intersexualidade. Como se verá no capítulo 6 esse é um grande ponto de contato de médicos com o tema da “sexualidade humana”.
Ver Paula Machado (2008) para uma discussão sobre o contexto brasileiro de abordagem médica e de mobilização social de
intersexuais.
79 Contudo, não está presente na narração de Marinalva – importantíssima por ser o registro mais antigo no Ceará encontrado na
pesquisa de campo acerca da abordagem sobre a figura do transexual – uma preocupação com um “delinquente anormal”, essa
figura descrita por Michel Foucault (2014 [1972]) como o resultado de um longo processo histórico europeu de desenvolvimento
de um indivíduo a corrigir por seu afastamento da natureza, seja por suas práticas sexuais ou seja por seu corpo tido como
naturalmente não-natural, os chamados hermafroditas.
107
também dependente do biológico. Essa é uma querela permanente na produção científica crescente
no século XXI, de se genes ligados aos cromossomos sexuais ou hormônios sexuais presentes na
formação fetal, ou ainda ligações sinápticas e outras ordens do cérebro determinam ou não os
comportamentos associados ao masculino e ao feminino (Meyerowitz, 2002).
Opera-se aí, portanto, o que Georges Canguilhem (2009 [1966]) chamou de ciência do
normal e do patológico em torno do qual se constitui a medicina ocidental, articulando a definição
e o isolamento de órgãos, tecidos e células para classificá-las como doentes. É à doença, ou ao
anormal, que se direciona os saberes que o autor chama de “ciências da vida” – fisiologia, biologia,
patologia etc. – e que informam a prática médica. A vida se manifestaria no que é incomum, no
que perturba. Mesmo que Canguilhem atue numa defesa de uma definição do científico na
concepção do normal, e embora o alvo da prática médica e de suas disciplinas assistentes seja a
doença, sua filosofia da ciência ecoa uma crítica ao isolamento do patológico em partes do
organismo ou do mental. Através de sua argumentação da presença de valores de julgamento
envolvidos na classificação do patológico percebe-se os fundamentos que movem o que hoje
denominamos de ciência biomédica, e a prática clínica e cirúrgica por meio daquilo que mobilizam
principalmente na química e na biologia. Isso a torna o padrão de razoabilidade entre as ciências.
Anos depois, quando outro paciente surgira com a mesma demanda de Darci, Marinalva
me contara que a direção havia decidido que não havia estrutura disponível para uma nova
especialização clínica – indicando a todos os novos pacientes trans que procurassem os setores
estaduais. Com isso, diz: “me dei conta, assim, que era uma condição rara, mas fui me
surpreendendo com o aumento dessa demanda”. Quando lhe perguntei como ela via o lugar da
sua especialidade médica na assistência à transição de gênero, ela me apresenta suas dúvidas sobre
a necessidade de qualquer intervenção que não seja a psicoterápica.
Eu acho que é, existe um fenômeno, essa explosão, que eu entendo como uma explosão
de casos que está havendo. Não sei o que está movimentando isso. Eu acho que essa
globalização [com] essa rede de comunicação, tudo se amplifica. Até uma campanha de
vacina de repente vira um pânico geral. Basta lançar e aquilo se propaga. Então, eu não
sei se isso é um fator que está favorecendo essa difusão de informações, e uma certa
confusão nesse tema. Mas eu acho que é um fenômeno que merece ser compreendido e
analisado em todos os seus aspectos. O aspecto social, o aspecto emocional, o aspecto
biológico, o aspecto genético, o aspecto ambiental. Então, e como a questão biológica
envolve hormônios, a endocrinologia deve estar presente em qualquer equipe que se
proponha a prestar esse tipo de atendimento. Mas eu acho que não somente o endócrino,
o psiquiatra e o cirurgião, mais a biologia, a genética, é, a pesquisa de campo, a
antropologia. Acho tem que estar tudo junto porque tem que se compreender o
fenômeno. Do mesmo jeito que tem uma força tarefa para tentar entender a epidemia do
diabetes e da obesidade, deveria se pensar numa força tarefa para tentar entender esse
fenômeno da atualidade, e não somente a gente assistir (Marinalva, entrevista 2018).
108
Mesmo que a força-tarefa aludida por Marinalva exista em forte atuação nos dias atuais,
variando sua hegemonia no quadro da medicina geral ou sua força local de acordo com as relações
e as políticas no país no qual se desenvolva, o que importa aqui é procurar enxergar a lógica de seu
discurso. Isso porque ele é parte do que homens trans interlocutores dessa pesquisa se defrontam
em seus itinerários terapêuticos em torno de adoecimentos diversos e de processos de transição de
gênero. Quando a médica se pergunta então, como entender o fenômeno, ao se referir a disforia
de gênero, tentando elencar todos os espaços nos quais os seres humanos convivem, como escola,
família, trabalho, ela traz o biológico para o centro das explicações. A anamnese, a abordagem
clínica de construção de história de vida de um paciente, deveria chegar até, talvez, ao estudo da
gravidez80.
No intuito de tentar entender esse fenômeno, eu acho que quanto mais informações se
procurar colher da população no sentido de como tudo isso começou, como é esse
ambiente em casa, como são essas relações dentro da família, dentro da escola, dentro da
sociedade, é, como foi a gestação, o que a mãe consumia de alimento, de medicamento,
de exposição ambiental a um agente tóxico.... Então, tudo isso eu acho que tem que ser
incluído nessa avaliação. Não apenas a ponta do iceberg, “ah vou aqui fazer teu
processo”, não, mas a gente precisa entender para talvez agir com uma melhor prevenção
(Marinalva, entrevista 2018).
Ela diz que sabe que é uma população “fragilizada”, mas que “se isso é um fenômeno social
que gera tanto sofrimento, e que vai resultar numa mutilação, numa coisa artificial, onde que a
gente poderia estar agindo pra tentar dar um outro desfecho, que a pessoa possa viver bem sendo
quem ela é, sem precisar passar por um processo, uma metamorfose”, concluiu ao dizer que
entende dessa maneira. A biologia e a química surgem com grande peso explicativo para organizar
o que Darci apresentara segundo a narrativa de Marinalva. Ao invés de algo estabilizado, a médica
e a paciente, personagens centrais até aqui, se situam num vultuoso instável contexto de teorias,
opiniões e movimentos sociais que desafiam e tentam explicar as verdades reais sobre a
diferenciação sexual, o desejo e os limites e possibilidades de mudanças, protéticas ou não, dos
corpos humanos. Em sua hoje clássica crítica à sociobiologia aplicada à separação natural entre
homens e mulheres, a bióloga feminista Anne Fausto-Sterling (1985, p. 10) demonstrou que pontos
cegos são inerentes à prática científica. Quando cientistas, argumenta, analisam diferenças
macho/fêmea, eles o fazem através do prisma da cultura presente no cotidiano, usando-se de
concepções de seus contextos históricos e sociais para iluminar suas questões, experimentos e
interpretar seus resultados, isto é, cientistas muitas vezes não veem algo explícito, como diz, “que
está abaixo de seus narizes” porque teorias correntes podem não explicar o que está sendo
observado.
80 A procura pela verdade da transexualidade já no feto da gestante é uma prática crescente (Plemons, 2019a), e talvez atualize de
muitas maneiras moleculares o lugar da mãe como responsável.
109
Não se trata de afirmar que o trabalho proposto pela ciência seja impossível, mas que ele é
um trabalho de produção de seus problemas, métodos, objetos e aplicabilidade. Os limites
apontados por Fausto-Sterling na separação entre homens e mulheres usa de elementos biológicos
tidos como inerentes e explícitos. Esses, por outro lado, não são operados hegemonicamente pelas
práticas e ensino biomédicos para gerar algum entendimento sobre a possibilidade de mudanças de
sexo/gênero. Nem mesmo às variações cromossômicas na intersexualidade, as quais são tratadas
como anormalidades de indivíduos que poderiam ser biologicamente normais (Fausto-Sterling,
2000), ou que o são, mas que querem adulterar essa normalidade. Essa é a representação principal
do corpo na biomedicina. Michel Foucault (1963), ao tentar desnaturalizar a ideia de um corpo
pronto a ser estudado e cujos mistérios serão apenas descobertos pelo olhar do profissional médico,
situa como os modos de análise científica ativamente produzem o corpo como objeto apreensível.
Isso quer dizer que esse conhecimento, historicamente particular, é produzido mais do que
revelado pela ciência. É através de um rigoroso treinamento em como ver e interpretar que se
constituem os modos de ver o corpo a partir de suas partes recortadas – que não apenas se faz na
medicina, mas genericamente a partir da valorização diferenciada que os sujeitos estabelecem com
essa ou aquela parte do corpo (Le Breton, 2012).
Quando pergunto a Marinalva, no final da entrevista, indicações de outros médicos que
poderiam se interessar em participar da pesquisa, ela me diz que eu não encontraria muita gente
que compartilhasse sua opinião. “Sou exceção à regra”, assevera. Se eu tive uma maior dificuldade
com Marinalva e outros médicos que compartilhavam mais ou menos de suas considerações,
cheguei a ser o procurado por outros. Outros médicos, contudo, além de me indagarem sobre essa
grande imagem, me questionavam sobre se todos homens trans que procuravam atendimento
seriam mesmo transexuais ou se não estariam noutras categorias culturais a exemplo das diferenças
que se desenha comumente entre travestis brasileiras e mulheres transexuais, as primeiras vistas
sob o prisma da localidade e as segundas ligadas às teorias e classificações médicas que partem do
eixo euro-estadunidense. O que Marinalva demonstra, bem como outros médicos e as relações no
campo da medicina nas quais se inserem, é uma disputa em torno da classificação local da
transexualidade como questão e condição clínica, cujas faces esse capítulo descreve apenas uma.
Embora todas as categorias de doença, desordem e tratamento tenham cada uma sua própria
história única, em termos das possibilidades de sua consideração, a sua consolidação não responde
a uma mesma trajetória e pode deter diferentes atores e relações de acordo com a localidade
considerada. Se, no âmbito que Marinalva se insere há inclusive uma negativa da produção médica
institucionalizada a respeito do transexualismo e da disforia de gênero, outros médicos trabalham
110
na oposição dessa posição, se preocupando em caracterizar uma população sob a qual se deveria
intervir, cuidar e despatologizar.
Mesmo que o discurso de saúde envolvido no “cuidar de quem sofre” recorte todos os
profissionais, essas diferenças permanecem. Eles agem num contexto de produção de
representação cultural e social, algo que vai além de suas práticas clínicas de relação médico-
paciente, e figura nos debates e pedidos de opinião entre colegas, nas considerações em eventos
profissionais, nas leituras de manuais (ou guidelines), nas pesquisas que desenvolvem e nas conversas
com o antropólogo. Eles repetem em alguns sentidos, e inauguram práticas e ideias noutras
direções em relação ao processo histórico do que se denomina atualmente por transexualidade.
Embora haja atualmente profissionais que tenham uma atuação nessa área, como em qualquer
outra, possam ser vistos como especialistas, alguém a ser consultado, ainda se trata de um dos mais
contestáveis saberes no campo da biomedicina cearense em particular e brasileira em geral. E, foi
dessa maneira desde sua ascensão na década de 1950 quando surgiu como uma problemática
advinda da questão intersexo, acompanhada de um contexto histórico específico de
desenvolvimento tecnológico cirúrgico e de conhecimentos endocrinológicos do corpo humano e
animal nas ciências da vida. De maneira ainda mais contestatória se constituíram as considerações
clínicas sobre o “transexualismo feminino” ou a “disforia de gênero entre mulheres” no eixo
cultural euro-estadunidense e brasileiro.
De maneira exaustiva diferentes disciplinas no campo das humanidades, bem como ativistas
trans, tem se engajado em escrever uma história e os fundamentos da classificação biomédica acerca
da transexualidade e sua lógica de tratamento (Bolin, 1983; Hausman, 1995; Prosser, 1998b;
Meyerowitz, 2002; Rubin, 2003; Hines, 2010). Berenice Bento (2006) ao considerar as teses
psicanalíticas e endocrinológicas nas primeiras formulações do transexualismo propôs ver a
transexualidade como sendo produto de um dispositivo, nos termos que Michel Foucault (1988)
dá ao dispositivo da sexualidade, no qual se articulariam diferentes saberes para gerar uma forma
de reprodução/requisição de sujeitos específicos. Utilizando-se de um referencial teórico diferente,
a antropóloga Anne Bolin (1983) defendeu, já nos anos 1980, que a relação entre pacientes
mulheres transexuais e médicos estava imbuída em relações estruturais de poder. Sem repetir à
exaustão uma revisão histórica cabe olhar, principalmente a partir de historiadores, para o
desenvolvimento da ciência sexual e o lugar da transexualidade como seu desdobramento histórico
num fluxo transnacional de saber científico. Isso flui, carregando em si mesma, não apenas
conceitos objetivos e técnicos, mas diferentes aspectos culturais – o que nos insta ainda ao desafio
de não imaginar o contexto do norte global a partir de “uma cultura” monolítica.
111
2.3. Uma breve história da ciência sexual
Tentando fazer uma grande narrativa acerca da ciência do sexo, André Béjin (1985 [1982])
propôs pensar a sexologia entre “dois nascimentos”. O primeiro teria se dado no final do século
XIX, entre 1844 e 1886, com a publicação de dois livros homônimos, Psychopathia Sexualis, um
escrito por Heinrich Kaan e o outro por Richard von Krafft-Ebing81. Nesse último, o autor
apontava diferentes perversões sexuais, detendo grandíssima influência acadêmica e profissional.
Nesses 40 anos o foco estava sobre as definições científicas, mais do que sob o desenvolvimento
de terapêuticas; e, os objetos privilegiados eram as doenças venéreas, as psicopatologias sexuais (as
aberrações e sua degenerescência) e a eugenia.
A virada para uma “segunda sexologia”, Béjin sugere, teria se dado durante os 30 anos
seguintes a Primeira Guerra Mundial, no século XX, com as publicações de dois autores que irão
focalizar seus trabalhos tanto em estudo como em terapêutica, Wilhelm Reich (1922) e Alfred
Kinsey (1948). Os dois cientistas, não sem diferenças, centralizaram o objeto da sexologia sobre o
orgasmo, de modo que produzem um declínio da figura do psicanalista entronizada por Sigmund
Freud82 e seus seguidores para estudar problemas sexuais. Se dará aí um protagonismo de um
organicismo, pela promessa terapêutica de uma sexologia preocupada com problemas cotidianos
desencadeados pela impossibilidade do orgasmo do casal (heterossexual), objetivamente calculável
no corpo. Contudo, as sexologias apontadas por Béjin estiveram longe de formar quadros
homogêneos de ideias e práticas científicas. No longo percurso histórico desde o século XIX, no
qual foram germinados e consolidados entendimentos sobre normalidades e diferenças sobre sexo,
gênero e corpo humano, a diversidade científica era tamanha. Mesmo que, como mostram Michel
Foucault (1988), Jeffrey Weeks (1989) e Joanne Meyerowitz (2002), a medicina começou desde
então de modo crescente a se preocupar com questões sexuais ao se tentar classificar todos os atos
sexuais sem fins de procriação, houve também uma intensa produção parceira de movimentos por
liberação sexual e de conscientização de classe que teorizaram sobre sexualidade fora do mainstream
da ciência médica – e até mesmo de modo mal visto pelo establishment (Kool, 2013). Essas produções
de conhecimento sexual envolveram uma profusão de cientistas com diferentes agendas e
interesses, desde médicos marxistas (Meyenburg e Sigush, 1977) a cientistas feministas (Leng,
2017), abrangendo na sua formação inicial diferentes regiões da Europa.
81 Anna Schaffner (2012, p. 46) atribui a Krafft-Ebing o início da instituição moderna da ciência sexual, argumentando que ele pode
ser visto como estando entre modelos biológicos e psicológicos para explicar os “desejos sexuais perversos”, tendo apontado os
primeiros movimentos em direção a concepções psi da sexualidade. O caráter moderno está ligado ao afastamento de noções
religiosas, enquanto se defende o sexo como matéria de ciência.
82 É largamente reconhecido que Freud teve importância fundamental na constituição de uma ciência do sexo com um reclame
científico diferenciado de seus predecessores. Sua teoria da bissexualidade, inspirada na história grega e nas pesquisas antropológicas
sobre o exótico distante, produziram um afastamento decisivo de um determinismo biológico reinante à sua época. O autor
participou da consolidação do âmbito psicológico para explicar a sexualidade (cf. Kool, 2013).
112
A produção de diferentes disciplinas científicas, como psicologia, psiquiatria,
antropologia83, biologia, embriologia, ginecologia e por último a endocrinologia, percorreu um
intenso esforço para se consolidar como uma área coesa e centralizadora de produção do
conhecimento sobre sexualidade, gênero e sexo (Leng, 2017). Contudo, a ciência sexual ou
sexologia nunca foi, nem é atualmente, um projeto homogêneo e coerente. Toda essa tradição
intelectual, além das paralelas relações de poder na conformação da verdade sobre o sexo, é o pano
de fundo sobre o qual a ideia de transexualidade se tornou possível no final do século 20, num
período de intensa produção biomédica e psi transnacional.
Até mesmo pelo seu caráter mobilizador de intensos conflitos e disputas em torno do
entendimento do corpo e de seus próprios limites, a medicina preocupada com a transexualidade
se constitui dentro da segunda fase sexológica proposta por Béjin. Talvez em um grau maximizado,
porque reúne muitas noções e concepções de difícil separação histórica. A inversão sexual da
primeira sexologia assume outros contornos na nova ciência sexual cada vez mais biológica e
química. O crescimento da perseguição política na Alemanha mesmo antes da deflagração da
Segunda Guerra Mundial fez uma massa de cientistas e intelectuais migrarem para outros países.
Antes disso, a sexologia europeia já detinha uma grande influência ao redor do mundo, mas esse
contexto gerou uma reverberação particular de impacto naquela que foi produzida e
institucionalizada nos Estados Unidos desde o final da década de 1940 (Meyerowitz, 2002). Será
no cenário estadunidense que a transexualidade será desenvolvida de maneira mais intensa entre as
décadas de 1940 e 1970. Contudo, o primeiro movimento em direção a estabelecer o que hoje se
denomina “transexual” foi feito pelo médico endocrinologista Michael Dilon, em 1946, com sua
diferenciação de “homossexual” e homossexual. Foi a primeira vez que se formulou uma separação
entre diferentes tipos de homossexualidade para visualizar outra forma que o sexo poderia tomar.
Michael Dilon, que foi identificado ao nascer como mulher na Inglaterra de 1915, vivenciou
em si mesmo o primeiro caso de transição hormonal e cirúrgica. Realizou sua hormonização em
1939, sua mastectomia em 1942, e começou em 1945 uma série de procedimentos para construir
um pênis (Prosser, 1998b). Em Self: A Study in Ethics and Endocrinology, publicado em 1946, ele
explica o processo de mudança de sexo ao centralizar o “eu”, e não como “transexual”, através dos
graus de inversão que a literatura médica estabelecia na sua época. Ele diferencia a “homossexual
83 Embora pouco considerado dessa forma, a antropologia tem um papel fundamental na conformação de uma ciência sexual
moderna ao constituir a ideia do Outro e seu exotismo sexual. As pesquisas realizadas por antropólogos como Bronislaw Malinowski
(1978; 2013 [1923]), Margaret Mead (1979 [1935]) e Ruth Benedict (2013 [1934]), evidenciando as diferenças de comportamento
sexual entre culturas exóticas, tiveram um grande impacto na concepção da “diversidade” de possibilidades para o masculino e
feminino, separações outras entre homens e mulheres, e quanto às práticas sexuais – como reação às teorias psi entronizadas por
Freud. S. Kool (2013) atribui ao resgate do helenismo grego e suas instituições de educação pederasta feito por autores como Freud,
outro braço forte para basear teorias médicas da sexualidade. A ideia era a de que se noutros períodos históricos e sociedades a
sexualidade era pensada de maneira diferente da europeia, as avaliações médicas sobre as perversões eram avaliações morais e não
“científicas”. Assim, o princípio relativista antropológico (e não de cunho biológico, mas social e cultural) se tornou importante.
113
mulher masculino” e o “homossexual homem feminino” do “homossexual homem afeminado” e
a “homossexual mulher masculinizada”. Essa diferença é centrada entre homossexuais de caso
psicológico, e homossexuais de caso endocrinológico. Seu trabalho vai ecoar naquele feito por
outros para categorizar a transexualidade, sendo ele um dos primeiros que encampam em favor do
orgânico, mais do que do terreno psicológico.
Claramente, quando a mente não foi feita para caber no corpo, o corpo precisa ser feito
para caber, aproximadamente em algum grau, na mente, apesar dos preconceitos daqueles
que não sofreram dessas coisas, ainda a sofrer com algo que eles tão prontamente
condenam os outros. Nos indivíduos em que a presença de tecido misto ou órgãos mistos
é óbvia, é a constituição psicológica que deve ser consultada e não a predominância de
qualquer estrutura física específica (Dilon, 1946, p. 53, tradução minha).
Na verdade, a aproximação que Freud fez com a psicologia/psicanálise para desbiologizar
em algum sentido a homossexualidade, é realizada por Dilon no sentido inverso para dar à
endocrinologia o domínio da aplicação da explicação mental dessa diferente forma de
“homossexualidade” (ele não usa “homossexualismo”). O autor também estabelece a
endocrinologia como ciência primordial para o tipo de homossexual que nomeia para mudança de
sexo, em meio a querelas também com psicólogos. Para Dilon, esse outro tipo de homossexual se
devia a uma anormalidade glandular, a mesma classificação dada pelo também endocrinologista
Harry Benjamin originalmente em um artigo publicado em 1953, quando conceitua
“transexualismo” pela primeira vez como totalmente diferente do homossexualismo (Hausman,
1995). Segundo Jay Prosser (1998b), tanto Dilon como Benjamin chegam a se basear no mesmo
estudo de laboratório, de autoria de Eugen Steinach, realizado em animais para mudar seus sexos:
após serem castrados eram tratados com tecido gonadal de sexo diferente84.
O papel da endocrinologia no desenvolvimento da categoria de transexualidade é decisivo,
através de seu estabelecimento do isolamento e redistribuição dos hormônios sexuais (Rubin,
2003). Mas, o foco nos hormônios e nas glândulas não era tão novo assim quando Michael Dilon
e depois Harry Benjamin trataram de uma diferenciação de categoria (Hausman, 1995). Havelock
Ellis e Hirschfeld já haviam argumentado que a “inversão sexual” também era explicada por uma
“secreção interna”. Hausman (1995) chega a apontar que foi Hirschfeld que indicou ao amigo
Steinach que este fizesse experimentos em gônadas de animais. Essa preocupação da sexologia
entre inversão e as glândulas se tornou forte nos anos 1990 nos estudos que procuram explicar
uma etiologia transexual a partir da interação entre cérebro de transexuais e hormônios sexuais
(Prosser, 1998b). A germinação dessa nova categoria, que se referia a um trânsito de sexo, acredita-
84 Anne Fausto-Sterling (2000) faz uma importante descrição desse trabalho em ratos no laboratório, através do qual atribui a criação
do corpo sexuado por biólogos.
114
se largamente que foi feita com um maior foco psicológico por David O. Cauldwell, em 1949, com
o uso do termo psychopathia transsexualis, aludindo ao termo psychopathia sexualis empregado por
Kfrafft-Ebing para seus graus de inversões. Cauldwell (1949) concebe com o vocábulo o desejo de
viver como membro do “sexo ao qual alguém não pertence”, visto como uma patologia ou um
desejo psicológico passível de cura, mas de preferência evitável com atitudes preventivas centradas
na família. Contudo, Richard Ekins e Dave King (2001) demonstraram que a origem do termo não
está no trabalho de Cauldwell ou no de outro médico, Harry Benjamin, mas com Magnus
Hirschfeld, em 1923, ao cunhar o termo “seelischer Transsexualismus” (transexualismo psíquico)
para se referir uma categoria clínica que seria desenvolvida por Benjamin e apresentada pela
primeira vez numa palestra em 195385.
A validade de apontar essas “origens” não está numa marcação da história em si em “fatos
cronológicos”, ou numa atribuição da paternidade do conceito, mas para que possamos observar
o contexto no qual diferentes cientistas estão disputando e cunhando classificações, ao mesmo
tempo que permite perceber as trajetórias de categorias. Este não é o resultado da criatividade de
um autor isolado, mas um trabalho coletivo difuso. Aquilo que vai deter particular projeção
meteórica na comunidade médica, como demonstram diferentes autoras como Berenice Bento
(2006) e Joanne Meyerowitz (2002), será o trabalho do alemão Harry Benjamin, quando publica em
1966 seu livro The Transsexual Phenomenon, replicando sua publicação mais de uma década atrás. Esse
livro é o coroamento do trabalho de Benjamin, fruto de um longo período dedicado ao tema (King,
1993). Benjamin é, então, a figura principal na institucionalização da categoria transexual através
de seu argumento pela “cirurgia de redesignação sexual” e a criação de clínicas especializadas nos
Estados Unidos. O médico argumentava de maneira direta sobre uma nova condição médica, agora
de maneira mais bem sistematizada e classificada, e com um tratamento claro. Esse procedimento
foi defendido como sendo essencial para evitar o suicídio de pacientes que desejavam mudar de
sexo, e como o elemento principal para diferenciar os “transexuais verdadeiros”. Ele a vê como
uma condição médica que poderia ser curada através de cirurgia86, sem estabelecer uma prevenção.
A ideia de transexual aí faz sentido como uma reprodução de uma noção de inversão total em
relação a homossexualidade que era vista apenas como inversão (Rubin, 2003). Contudo, essa não
foi uma ideia facilmente consolidada no meio biomédico, uma vez que havia uma considerável
85 Benjamin visitou Hirschfeld no período do entreguerras quando conheceu o seu instituto e pacientes (Ekins e King, 2001).
86 A ideia da possibilidade de uma cirurgia para mudar de sexo não foi inventada por Harry Benjamin ou Michael Dilon. Essa era
uma demanda que estava presente também na opinião pública estadunidense e europeia. Como mostra Meyerowitz (2002), pacientes
procuravam médicos com tais demandas antes e depois do evento midiático que popularizou a cirurgia com a figura da mulher trans
Christine Jorgensen, em 1952 por Benjamin. Por outro lado, essa era uma questão crescente desde o século 19, com a ideia de
“intervenção cirúrgica em conversão sexual”, que levou pessoas a serem “mudadas” embora não se tenha clareza sobre os detalhes
dessas intervenções (Nataf, 1996). Ver Eric Plemons (2017) sobre a centralidade e os tipos de cirurgia elencados no contexto de
mudança de sexo estadunidense.
115
quantidade de psicólogos e psiquiatras que entendiam ser a intervenção cirúrgica algo desnecessário
e extremo. Postulava-se que a terapia psicológica era o único meio para que o indivíduo se
conscientizasse a viver com o “corpo natural”, embora detivesse uma “identidade sexual ou de
gênero” conflitante (Bento, 2006). Na Figura 3 abaixo essas teorias psi aparecem de forma
sintetizada, conformando uma unidade do entendimento do indivíduo desenvolvido. Essas partes
conformam alguém saudável ao corresponder a matriz heterossexual da inteligibilidade entre corpo,
sexo e gênero.
Figura 3 – O indivíduo psicologizado
Fonte: Autor.
A concepção pela psicologia, a partir de John Money, de “gênero” é um importante
elemento da constituição da transexualidade como categoria médico-psi e como diagnóstico.
Money postulou que os seres humanos teriam duas instâncias separadas que se complementavam.
Era a percepção subjetiva de pertencer a um sexo biológico e o próprio sexo visto organicamente.
A essa percepção chamou de “identidade de gênero” contida no interior do sujeito (Bento, 2006).
Aí se separariam dois elementos do sexo, o psíquico e o biológico, instâncias que sempre estiveram
presentes na ciência sexual, mas que aqui adquirem contornos diferenciados pela separação do
“aprendido” e do natural. A principal diferença entre os autores do entendimento psi não era tão
radical. Enquanto Green via que círculos de amigos e outros grupos de contato social formariam a
identidade de gênero de uma criança, Money e Stoller atribuíam um “papel” ainda mais forte à
família, e aos bons desempenhos de mães e pais, entre suas características heterossexuais de mãe
feminina carinhosa e pai masculino e provedor87. Isso corresponde a uma intensa preocupação com
o mental e o corporal em harmonia para representar um indivíduo completamente desenvolvido,
e heterossexual (Bento, 2006). Esse é um dos princípios fundamentais da cultural estadunidense,
87 Para uma discussão aprofundada das diferentes teorias psicológicas a respeito da identidade de gênero na conformação da ideia
de transexual ver Berenice Bento (2006).
116
com sua centralização na psicologização88 dos seres humanos como entidades autônomas, e
indivíduos livres na fundação da nação (Plemons, 2017).
Diferentes analistas da concepção de transexualismo – sendo eles historiadores ou não –
mostram que as teorias podem ser agrupadas em dois grandes grupos: os defensores das terapias
psi e os defensores da cirurgia. Anne Bolin (1983) propõe que o foco clínico dado a transexualidade
pela medicina, de modo a vê-la como síndrome sujeita a tratamento e observação, pode ser
agrupada em duas divisões concernentes às suas preocupações e métodos. Um grupo de teorias
que se concentram na ideia de nurture e outro na ideia de natureza. O primeiro na capacidade de a
socialização, isto é, a educação – no sentido durkheiminiano –, de explicar a identidade de gênero
conflitante com o “sexo biológico”, e o segundo no funcionamento endocrinológico do corpo
humano e sua capacidade de mudar o sexo. As duas divisões se concentram ainda, a primeira, em
pesquisas de ordem etiológica, e a segunda, enquanto ordem cirúrgica para responder à questão do
tratamento. Em todas elas há uma unanimidade, mesmo diante de suas diferenças entre advogar
pela cirurgia de mudança de sexo ou apenas pela terapia psicológica: a incerteza quanto à “origem”.
Assim, o desenvolvimento das ideias de transexualismo está dentro de um desdobramento
da ciência sexual. A unidade psicológica do indivíduo para explicar a mudança de sexo, e a diferença
entre identidade de gênero e sexo biológico, se baseia enquanto princípio metodológico e
conceitual na importância dada a psicologia individual. Mesmo que a influência cultural ou social
seja levantada desde as preocupações com as perversões e as inversões sexuais da ciência sexual
europeia de outrora, o elemento reavivado da biologia não pode ser desconsiderado, isto é, o corpo
é central mesmo que o foco biomédico na genitália e outros caracteres corporais ganhe a
companhia da importância crescente dada a forma como alguém, enquanto homem ou mulher,
masculino e feminino, interage para a constituição do que se entende por gênero (Plemons, 2017).
Embora essa não seja uma história universal e monolítica, sua formação se dando grandemente a
partir dos cenários nacionais europeus e estadunidense, a ciência sexual tem um caráter global na
sua própria constituição – não apenas porque as concepções científicas se espraiam mundialmente,
mas também pela coprodução paralela de tradições na Ásia, na África e na América Latina
(Fuechtner, Haynes e Jones, 2017). Instando-se à questão de como outras tradições nacionais e
contextos culturais não apenas recepcionaram essas teorias, mas como produziram suas próprias
versões. Quando a transexualidade enquanto categoria médica viaja trasnacionalmente, viaja com
ela a incerteza que carrega. No caso do Brasil, os cientistas e médicos estavam produzindo
88 O caráter psi da cultura estadunidense não é a única forma de psicologização no mundo “ocidental”. Na verdade, as ideias de
Freud se espalharam mundialmente numa velocidade impressionante desde suas primeiras publicações. Para uma análise acerca da
recepção e transformação brasileira da psicanálise, ver Jane Russo (2002). A particularidade estadunidense estaria muito mais nesse
elemento associado a projeção cultural de dominação mundial que se une a ideologia capitalista de pretenso discurso libertário
naquele país.
117
assistências e pesquisas paralelamente àquelas realizadas no cenário estadunidense, já no final da
década de 1960.
2.4. O caso brasileiro: a “heterossexualidade de alma”
O campo brasileiro da ciência sexual89 também é atravessado por disputas em torno de sua
autodenominação, objetos de pesquisa, disciplinas, ideias científicas, qualificação profissional e
mercado farmacêutico. E, inclusive, de sua narrativa historiográfica. Ele se constitui, desde sempre,
dividido entre entender a realidade nacional e um pertencimento a uma comunidade global de
atividade profissional e científica. A medicina é o grande ator responsável por esse contexto na
constituição de objetos de intervenção, tendo a psicologia (e a psicanálise) atividade paralela e, às
vezes, contestada. Assim como noutros contextos nacionais, segundo Jane Russo et al. (2009), o
termo sexologia para denominar o campo sofreu forte contestação e estigma na medicina brasileira.
Sua ligação com um ativismo por educação e reforma sexual em grande medida associado a uma
dimensão menos objetiva e “intuitiva” de saber sobre o corpo humano atraía pouco
reconhecimento do establishment biomédico.
Sérgio Carrara e Jane Russo (2002) demonstram que apesar de ter havido no Brasil entre o
final do século XIX e a década de 1920 uma crescente articulação de discursos sobre sexo, apenas
a partir dos anos 1930 é possível falar na atuação de “sexologistas”, e mesmo aí de modo modesto
e marginal. Essa foi a primeira fase ou “onda” da área no país, com as figuras sul-sudestinas de
José de Albuquerque e Hernani de Irajá. Entre outros fatores, o baixo prestígio do termo sexologia
fez eclodir outros termos como “saúde sexual”, “sexualidade humana” e “medicina sexual” para
organizar o campo. Outros médicos trataram de “questões” ou “problemas sexuais” sob a rubrica
de outras áreas vistas como mais respeitáveis, como é o caso da medicina-legal, neurologia e
psiquiatria. Isso se deve também ao monopólio da urologia e ginecologia-obstetrícia na certificação
de sexólogos no Brasil presente até o momento, mas em vias de reformulação90.
A “segunda sexologia” é vista por diferentes autores como aquela que se constituiu na
década de 1970, intimamente ligada à valorização de uma “cultura psicanalítica” pelas camadas
médias brasileiras (Ropa e Duarte, 1985; Duarte, 1986, 2017). Russo et al. (2009) demonstram isso
ao descrever que a sexologia encontrou particular lugar em organizações, institutos e clínicas
ginecológicas, de ampla aliança com psicólogos. Os autores sugerem que uma das condições desse
89 Para outro panorama na região latino-americana ver Mauro Brigeiro e Angela Facundo (2013). Os autores oferecem um panorama
a respeito da Colômbia. Na sua análise do processo de institucionalização da sexologia como campo profissional, eles demonstram
como os novos sexólogos enfrentaram um conservadorismo moral, ajudando a forjar um novo projeto de modernização num
cenário de grande heterogeneidade de especialistas. Certo peso explicativo sobre o prazer e a funcionalidade do orgasmo também
se repete nessa então emergente instituição da sexualidade, embora mais fortemente na década de 1970.
90 Durante a pesquisa de campo, psiquiatras e endocrinologistas não se viam como sexólogos, não necessariamente pela
diferenciação entre ideias científicas, mas pelo monopólio da certificação. Irei me deter sobre o campo atual no capítulo 6.
118
fortalecimento entre esses agentes deve-se a ligação histórica da ginecologia com problemas
entendidos como físico-morais, por lidarem com a saúde das mulheres, às quais foram vinculados,
no final do século XIX, os fenômenos patológicos orgânicos de influência emocional, “nervosa”
(cf. Rohden, 2001; Duarte, 1986). A década seguinte, 1980, é palco de um conflito entre a psicologia
e a medicina para o trato legítimo de problemas sexuais (cf. Russo et al., 2009)91. A terceira sexologia
brasileira, e que parece vigorar até então, seria aquela na qual a urologia e a figura do homem
heterossexual centralizam, principalmente a partir da invenção da pílula do Viagra (Conrad, 2007),
os problemas de saúde sob a rubrica de uma “medicina sexual” em torno das disfunções sexuais
(Russo et. al., 2009; Rohden, 2009)92.
Um objeto menos afoito nas historiografias brasileiras sobre a ciência sexual é o estudo e
intervenção clínico-cirúrgica do transexualismo como condição diferente do homossexualismo,
principalmente nas décadas de 1960 e 1970 quando se projeta como objeto médico sob o manto
de um problema de saúde curável e não revertível. Esse campo não se enquadra facilmente num
dos lados do enfoque geral da sexologia, foco no uso de fármacos ou foco na psicologia, embora
tenha sido beneficiada das duas influências – nem mesmo os médicos de então se denominavam
“sexólogos”. Essas primeiras movimentações em terras brasileiras se deram através da biomedicina
realizada pela Escola Paulista de Medicina da Universidade de São Paulo93, a partir da qual se dará
lugar a uma prolífica produção/atuação envolvendo psicólogos, psiquiatras, endocrinologistas,
cirurgiões plásticos, geneticistas/biólogos e ginecologistas com forte atuação na “questão
transexual”.
Esse primeiro fôlego institucional se dá aos auspícios de uma pretendida, mas contestada
autoridade médica, enormemente balizada tanto por um interesse científico, como pela procura de
um público desejoso da mudança de sexo e pela presença crescente de “pacientes hermafroditas”,
como parece entrever as descrições de médicos ligados a Escola Paulista. As ciências biomédicas
91 Através da criação de associações e organizações profissionais médicas, e posteriormente em torno da sexologia, tanto psicólogos
como médicos tentaram manter o monopólio da atividade científica de estudo e terapêutica em torno de problemas envolvendo o
sexo, a sexualidade. Ver Russo et al. (2009) para uma análise aprofundada desse contexto. Por deter iniciativa em torno de uma
subárea chamada de “sexologia”, a ginecologia acabou monopolizando o título, mas considera-se que atualmente a certificação é
irrelevante para a atividade profissional, uma vez que o título de médico já dá uma considerável estabilidade profissional e
legitimidade. Esse foi outro fator para não ter havido uma grande disputa pelo título de sexólogo no Brasil.
92 Como argumentarei melhor no capítulo 6, a intensidade com que a ciência sexual brasileira (termo amplo para todas as
preocupações envolvendo o corpo sexuado para a dimensão terapêutica de qualquer ordem) tem se debruçado sobre a
transexualidade/transição de gênero tem cada vez mais dado espaço também a outro tipo de medicina, uma medicina trans e não
simplesmente sexual. A medicina trans se preocupa não apenas com a satisfação do desejo, o foco muitas vezes – e percebo,
crescentemente – é com a fisicalidade e a molecularidade do corpo para sua “sexuação” (ou seja, o corpo sexuado).
93 Esse cenário particular de São Paulo parece estar muito fortemente ligado ao desenvolvimento industrial da capital paulista, na
qual se assistiu uma forte articulação biomédica, entre outras profissões, desde a década de 1930. Já nessa época inicial de
institucionalização de diferentes organizações, universidades, associações profissionais havia um forte interesse médico-legal por
indivíduos considerados perigosos, enquadrando-se os homossexuais homens (Green e Trindade, 2005) e os sujeitos tidos como
“mulher-macho” ou homossexuais femininos. Desde a década de 1930 é possível encontrar nos “Arquivos da Sociedade de
Medicina Legal e Criminologia de São Paulo” descrições médico-legais a respeito de “invertidas”, pessoas descritas como
homossexuais femininas que apresentavam querer viver como homem. Ver Luis Ferla (2005) sobre a formação da Medicina Legal
paulista e seu viés positivista-eugênico.
119
brasileiras se dedicam, portanto, à discussão do transexualismo quase no mesmo período em que
grandes centros europeus e estadunidenses, estando altamente familiarizada com publicações
científicas em línguas inglesa correntes à época – mostrando a posição do Brasil na circulação
transnacional de conhecimento médico.
Um estudo publicado, em 1976, por Luiza Campos Olazábal, como dissertação de
mestrado em Biologia na Universidade de São Paulo, propõe observar a “variação cromossômica
e dermopapilar no transexualismo”. Sua pesquisa, de cunho comparativo com o homossexualismo,
havia sido feita desde 1968 com 31 casos clínicos no Laboratório de Biologia Genética. Em parceria
com seu orientador, Pedro H. Saldanha, publicam no Brasil e no exterior uma série de artigos
científicos em periódicos e eventos acadêmicos de 1971 a 1978, que variam entre a isolada genética
e sua relação com a psicologia. Eles chegam a integrar, ainda, desde 1969, o Laboratório de
Genética Médica da Escola Paulista de Medicina, compondo uma equipe multidisciplinar. A grande
novidade sugerida por Saldanha e Olazábal (1976) durante o “Seminário sobre ‘Transexualismo’”
organizado pelo Departamento de Urologia da Universidade de São Paulo, em março de 1975,
estava em propor a análise citogenética de pacientes transexuais como auxílio no diagnóstico. Os
autores apresentavam seus resultados com ressalvas, mas indicavam que entender a estrutura celular
do genoma e a formação dos cromossomos dos pacientes seria uma importante ferramenta
diagnóstica.
Eles argumentam:
Como corolário da hipótese neuro-endócrina, postulou-se, na presente investigação, que
o mosaicismo94 quanto aos cromossomos sexuais, “detectável” ou críptico, das estruturas
hipotalâmicas que interessam a função da identidade sexual mente-soma (“gender role
identity”) poderia explicar a gênese do conflito: homossexualidade de corpo versus
heterossexualidade de alma (Saldanha e Olazábal, 1976, p. 253).
Num período no qual a homossexualidade também era considerada um problema de saúde
mental pela medicina, a tentativa recorrente se faz na separação dela e do transexualismo. A
heterossexualidade aí é natural, e a mente ou a alma abriga-a no último caso. Eles se baseiam
grandemente nas hipóteses difundidas por médicos como Harry Benjamin (1966) que, ainda sem
nenhum respaldo de pesquisa decisivo por ele mesmo reconhecido (Bolin, 1983), entendia que
havia alguma formação ou situação no hipotálamo que poderia explicar o que define como
transexualismo. A grande possibilidade que a constatação de mosaicismo cromossômico
apresentada por Olazábal e Saldanha oferece é a de retirar da intersexualidade uma origem para o
94 Em biologia, mosaicismo se refere a uma mutação no número de cromossomos das células do corpo no momento da divisão
celular após a fecundação. Ele pode ser germinativo, quando afeta apenas o espermatozoide e o óvulo, ou somático quando afeta
outras células. Disso pode resultar organicamente tanto as chamadas “síndromes sexuais”, bem como doenças como câncer, a
depender da alteração genômica ou celular. Ver Biesecker e Spinner (2013) para uma revisão atual das classes moleculares e clínicas
de mosaicismo e suas formas de detecção e informação biológica.
120
transexualismo. A grande ideia dos autores parece ser resultado do que Paul Rabinow (1999; 2007)
descreveu como sonho biomédico presente no início do mapeamento do genoma humano – a de
que após ter o mapa completo se poderia não apenas predizer doenças, mas alterar o ser humano.
A existência de casos de alteração numérica cromossômica, como as chamadas síndromes de
Klinefelter, Turner e a trissomia do Cromossomo 21 (Síndrome de Down), trazia (e traz) fortes
esperanças científicas para que o transexualismo pudesse ser enquadrado dentro desse panteão
biológico visto como inconteste95. Essa questão, contudo, é algo contemporâneo e não restrita ao
passado histórico da concepção médica da transexualidade.
Na verdade, houve e há uma grande disputa científica se o transexualismo deveria ser
entendido como uma condição intersexo – inclusive alguns grupos estadunidenses de ativismo
trans já veicularam essa ideia. P. L. Chau e Jonathan Herring (2002) chegaram a apontar que essa
querela de hipótese não tem aceitabilidade geral:
O argumento para classificar o transexualismo como um tipo de condição intersexual é
a evidência de que a identidade sexual de um indivíduo é fixada no cérebro durante o seu
nascimento. Em outras palavras, ao nascer o indivíduo não tem cérebro e genitálias
congruentes, e isso é uma condição intersexual tanto quando uma pessoa não tem
gônadas e genitais congruentes (Chau e Herring, 2002, p. 333, tradução minha).
Esse é um forte viés biológico seguido pelo trabalho da equipe de São Paulo, muito embora
não de modo isolado, uma vez que os argumentos sobre o transexualismo da grande figura desse
contexto, o médico cirurgião plástico Roberto Farina (1982 [1979]), é em muito orientado pelas
teorias psicológicas estadunidenses de Green, Stoller e Money. O que parece ser algo irreconciliável,
o aspecto biológico e o aspecto psicológico, se une na forma de uma psicobiologia no Brasil. Em
nenhum momento o cirurgião plástico defende “reversão” para curar, mas a cirurgia e, antes disso,
a terapia e acompanhamento atento. Junto das análises psicológicas há uma análise genética.
Desde o final dos anos 1960 até metade dos anos 1970, o trabalho paulista nesse contexto
aconteceu sem grandes perturbações. O Hospital das Clínicas de São Paulo recebia, entre o final
dos anos 1950 e começo dos anos 1960, pacientes “espontâneos” ou orientados por outros
profissionais procurando por mudança de sexo, descritos como extremamente em conflito consigo
mesmos. Em 13 de novembro de 1975, o jornal O Estado de S. Paulo tornava o trabalho da equipe
público através da indicação das cirurgias de Roberto Farina, catedrático de cirurgia da
Universidade de São Paulo. O Estadão cobria o evento científico internacional de urologia, como já
95 As controvérsias científicas continuam. Tanto a pesquisa dos autores está cheia de incertezas quanto a origem desse mosaicismo
hipotético e no que tange a amostragem de controle, quanto estão as tentativas mais recentes de realizá-la como a feita por María
Rumbo Naya (2015, p. 12, tradução minha) na Corunha, Espanha. A partir de quase 800 pessoas transexuais que compuseram um
estudo clínico, ela mostrou “não haver nenhuma alteração cariotípica específica da transexualidade”. Mesmo não havendo consenso
científico a hipótese endócrina entronizada por Benjamin continua sendo veiculada; pontuam-se ressalvas, mas fazem-se afirmações.
Interessa, portanto, entender a produção científica desses conhecimentos e as ligações que detêm com contextos socioculturais.
121
mencionei. Em uma pequena matéria de canto de página sobre as “novas atividades científicas” na
capital paulista. Era a primeira vez que o tema ganhava a opinião pública brasileira (Figura 4).
Figura 4 - Reportagem “Mudança de sexo, pioneirismo na AL” n’O Estado de S. Paulo
Fonte: O Estado de São Paulo (1975).
Pode-se ler o seguinte:
Cinquenta brasileiros, inclusive dois indígenas, estão se preparando para mudar de sexo,
por meio de uma cirurgia, já executada com êxito em outros nove pacientes, transexuais
masculinos. O autor das operações, cirurgião plástico Roberto Farina, apresentou ontem,
no encerramento do XV Congresso Brasileiro de Urologia, um filme de sua primeira
cirurgia de reversão sexual, realizada em 1971 (O Estado de S. Paulo, 1975, p. 18).
Após apresentar uma pequena biografia profissional de Farina, a reportagem continua:
Até agora [Farina] só realizou reversões do sexo masculino para o feminino. Mas, entre
os 50 pacientes que há um ano ou mais estão fazendo os testes psicológicos, psiquiátricos,
genéticos e hormonais – preparatórios à operação, há duas mulheres transexuais96, que
pretendem o reajustamento cirúrgico do sexo, ou seja, adaptar seus corpos ao sexo
psicológico masculino que possuem (O Estado de S. Paulo, 1975, p. 18).
Essa divulgação não apenas propiciou regozijo científico, como o expresso pelo colega de
Farina e chefe de Departamento de Urologia da USP, Afiz Sadi, quando este afirmara que a ciência
96 Um desses indivíduos se trata do ativista João W. Nery que publicaria anos mais tarde sua autobiografia, como já mencionei.
122
brasileira não estava atrás dos grandes centros internacionais “teoricamente mais desenvolvidos”.
Apenas três dias após a reportagem, sob petição do Procurador da Justiça do Ministério Público
de São Paulo, Luiz de Mello Kujawski (1975), um inquérito policial é instaurado para “reprimir
legalmente” o “ataque” contra os “bens físicos dos indivíduos” que fora proferido pelo cirurgião
plástico, mas que estão “protegidos pelo Estado”. Kujawski defendeu que esses “bens”, isto é, as
partes do corpo, são “inalienáveis”, “irrenunciáveis” e “indisponíveis”. Indivíduo nenhum poderia
dispor-lhes à mudança, ou seja, mesmo tendo havido consentimento dos pacientes, os médicos
seriam criminosos. Em seu argumento, o procurador faz uso do art. 129 do Código Penal de 1940,
que enquadra como sujeito à pena de reclusão aquele que propiciar perda ou mutilação de membro
ou função corporal em outrem.
O processo criminal que se segue tem uma importância histórica significativa porque
colocou a “questão transexual” numa posição liminar no país, e mobilizou a medicina paulista – e
foi ela mesma uma das razões para o país demorar décadas ainda para começar novamente a pensar
institucionalmente a saúde trans. E com sua ajuda, os próprios advogados produziram o trabalho
“A terapêutica cirúrgica do intersexual perante a justiça criminal: um caso de transexualismo
primário ou essencial” (Leite Jr., 2008). A isso se seguiu um verdadeiro dossiê: mais de 30 cartas
foram enviadas da Europa e dos Estados Unidos por médicos e psicólogos renomados em defesa
da cientificidade que baseou os procedimentos realizados por Farina (inclusive John Money), e
relatórios médico-legais foram escritos por colegas médicos com o mesmo intuito. O inquérito se
baseava fortemente no caso de Waldirene Nogueira, mulher trans que realizou a cirurgia
neovaginal, e foi encontrada ocasionalmente como substância para o processo porque havia
requerido anos antes mudança de nome e gênero no assento civil – Farina recusara-se a dar dados
pessoais de pacientes aos procuradores, o que faria o processo não ter respaldo legal por não ter a
prova para acusar (Rossi, 2018).
Em seu Parecer Médico-Legal apresentado em 1977, o médico Hilário Veiga de Carvalho,
catedrático de Medicina Legal da Universidade de São Paulo, recobre todo o histórico para
examinar desde o acesso até a cirurgia de Waldirene. Como foi ela quem procurou o serviço de
saúde, e como uma equipe composta de psiquiatra, psicóloga, geneticista, urologista, um a um,
examinou e aprovou o caráter transexual da paciente. Veiga de Carvalho resume, apontando como
a equipe de Farina configurou um padrão a ser seguido:
O diagnóstico deve ser feito de maneira atilada e pluridimensional. Como exemplo, sirva,
paradigmaticamente, o diagnóstico que foi realizado no caso ora em exame, de Valdir
Nogueira: a anamnese cuidadosa, exame somático minucioso, averiguações genéticas e
hormonais, análise psicológica e indagação psiquiátrica demorada e aprofundada,
avaliação sociológica do examinando e de suas condições de vida, de comportamento e
de ajustamento (Veiga de Carvalho, 1982a [1977], p. 257).
123
Nesse parecer Carvalho se empenha em demonstrar que a síndrome do transexualismo é
universalmente um fato científico irrefutável e reconhecido. Cita tanto médicos brasileiros como
profissionais de universidades estadunidenses e europeias. Para defender a cirurgia realizada por
Farina, Carvalho interpõe:
Necessária era a intervenção, pelo consenso unânime dos clínicos que estudaram o caso
em tela. Atenderam eles, certamente, ao conceito atual de saúde, que não cogita da
caracterização de doenças, estas ou aquelas, mas, sim, do “bem-estar físico, psíquico e
social” da paciente em exame. Este conceito moderno da OMS rege a conduta hodierna
da Medicina, em face do que se entende como doença. E, nesse conceito corretamente
formulado, agiram adequadamente os clínicos que chamaram o Prof. Dr. Roberto Farina
para corrigir o mal que afetava Valdir Nogueira. Aberra do consuetudinário hospitalar o
ocorrido com Valdir? Nem por isso deverá o inusitado deixar de ser atendido com
ciência, consciência e a indispensável hombridade – que também compete ao clínico
vinculado ao atendimento do seu cliente. O caso de Valdir Nogueira é reconhecido pela
nosografia médica internacional, inclusivamente da nossa Associação Paulista de
Medicina. E deveria ser atendido, como o foi, com diagnóstico rigorosamente acertado e
terapêutica indicada por consenso unanime de um ilustre grupo de excelentes
especialistas nos vários setores atinentes ao caso (Veiga de Carvalho, 1982a, p. 259).
O médico conclui pela irrefutabilidade biológica: “a sexualidade humana é muito mais
cerebral do que genital”, para argumentar que há, sim, cientificamente, “uma síndrome denominada
transexualismo”. O alvo eram os argumentos dos procuradores da justiça que colocavam Waldirene
como “um caso de homossexualismo”, e o resultado cirúrgico da mudança de sexo uma ode à
superficialidade e à prostituição, que colocava em perigo homens honestos. Contra isso, Carvalho
achava que mostrava que após um longo e multidisciplinar exame cuidadoso, provava-se, com
respaldo bioquímico, o sexo psicológico feminino de Waldirene. Contudo, Farina fora condenado
pelo juiz em primeira instância e um novo processo judicial foi iniciado com a mobilização
reforçada. O advogado Heleno Cláudio Fragoso (1979), conhecido na época por defender muitos
casos de pessoas condenadas e perseguidas pelos órgãos da Ditadura, é contratado para a defesa.
Em seu parecer, depois publicado na Revista de Direito Penal, Fragoso replica a extensa bibliografia
já publicada no país e no exterior e apelava para a qualidade científica da razão da cirurgia.
Enquanto problemática jurídica Heleno recorria ao conceito de “consentimento” para eximir
qualquer condenação penal diante de intervenções corporais presente na legislação que ele cita,
como a argentina, alemã e a estadunidense. Assim, a “superioridade de propósito”, segundo a qual
o que mais importa é ajudar o sofrimento alheio ganha um relevo considerável. Olhando para todo
o material de defensa para positivar a cirurgia – no acórdão do julgamento da segunda instância
(São Paulo, 1979) e nos pareceres médico-legais (Carvalho, 1982a [1977], 1982b [1978]) –, saltou
aos meus olhos a comparação da cirurgia de “reversão sexual” como qualquer outro procedimento
reparador do corpo humano, como um membro gangrenado que precisa ser amputado. Algo que
tem ganhado relevo atualmente.
124
Em 1979, Farina é então absolvido pela Comarca de São Paulo, mas isso o colocou no
imaginário médico brasileiro de maneira também negativa. Piadas sobre suas cirurgias eram
recorrentes durante o processo, não apenas em jornais paulistas, como entre profissionais de saúde.
O processo judicial também deixou as publicações do cirurgião em quase esquecimento, as
pesquisas de sua equipe não viraram currículo das escolas de medicina, muito embora Farina e
demais profissionais tenham realizado intervenções e estudos originais – Farina detalha em seu
livro que praticava em cadáveres as técnicas de cirurgia de mudança de sexo, não tendo ido aprendê-
las em centros internacionais. Nesse sentido, essa prática clínica e cirúrgica, junto com o caso
judicial de Farina, continuou grandemente à margem na medicina brasileira, embora tenha atuado
para consolidar o tema no país. Como consequência, os primeiros projetos de lei foram
apresentados no Congresso Nacional brasileiro tendo a transexualidade como tema.
Em 1979, o Deputado Federal José de Castro Coimbra (PTB-SP) apresentava o Projeto de
Lei 1.909 visando mudar o artigo do Código Penal que havia sido usado contra Farina. Os
argumentos de Coimbra se baseiam inteiramente na cientificidade do diagnóstico e no sofrimento
desencadeado com o suicídio daqueles que não obteriam a cirurgia de mudança de sexo. Para isso,
estabelece que transexualismo não seria o mesmo que homossexualismo, havendo no primeiro uma
rejeição total do sexo. A ideia era garantir segurança jurídica aos cirurgiões que viessem a performar
esse tipo de procedimento, mas ressalvava que deveria haver uma unanimidade diagnóstica entre
todos os membros da equipe interdisciplinar que atendesse os pacientes97. Além disso, enaltece que
a lei não deve subjugar o progresso científico, uma vez que a medicina não seria a mesma desde a
década de 1940 quando o Código Civil em questão fora sancionado. Embora tenha sido aprovado
em 1981, e sua tramitação não tivesse detido empecilhos nas comissões da Câmara e no próprio
Senado, o projeto é vetado integralmente pelo ex-Presidente da República João Figueiredo em
junho de 1984.
O argumento de Figueiredo se baseia inteiramente na opinião dos médicos à frente do
Ministério da Saúde, que viam com maus olhos a solução cirúrgica como terapêutica. O ex-
presidente, o último do Regime Militar iniciado em 1964, demonstra quão marginais e conflituosas
eram as opiniões médicas brasileiras sobre transexualidade não apenas na década de 1970, quando
Farina fora indiciado, mas em torno do período de redemocratização.
[...] Observa o Ministério da Saúde que os trabalhos científicos sobre transexualismo,
quando não tendenciosos, são polêmicos e limitam-se a registrar casos isolados sem tecer
quaisquer considerações de caráter teórico. [...]. Acrescenta, ainda, que o procedimento
cirúrgico é radical e irreversível, constituindo método simplista que não resolve a
97 O próprio Roberto Farina (1995 [1981]) publicaria um artigo na Folha de S. Paulo chamando a aprovação do projeto como a defesa
da “cidadania do transexual”. O cirurgião plástico se concentrava no artigo em defender a dimensão bioquímica para encontrar a
raiz do transexualismo desde a formação do embrião. Ganham espaço na explicação gônadas, hipotálamo, óvulos, cromossomos e
receptores cerebrais para gerar a imagem somática de um indivíduo.
125
patologia do transexual por não eliminar o conflito subjacente que lhe dá causa (Brasil,
1984, p. 1-2).
Assim, se propõe que cada caso seja tratado individualmente: “a legitimidade da conduta
médica seja examinada caso a caso e levada à apreciação da Justiça, visando a prevenir a
generalização de prática que deve ser adotada com parcimônia” (Brasil, 1984, p. 2). Apenas em
1985 outros projetos98 recomeçam a ser submetidos sobre o tema. Por outro lado, desde o começo
dessa década, cada vez mais próxima do fim da Ditadura Militar, aumentam as publicações sobre
transexualidade que não têm continuidade nas décadas seguintes. Em 1982, Farina publica seu livro
Transexualismo: do homem à mulher normal através dos estados de intersexualidade e das parafilias, no qual
além de fazer um grande apanhado de teorias médicas e psi sobre o tema, defende seu trabalho e a
existência de sofrimento dos “transexuais primários”, ou “de verdade”. Como mostrou Jorge Leite
Jr. (2008), Farina liga o transexual secundário, ou não verdadeiro, à perversidade e à
homossexualidade; e, apesar de tentar detalhar diferenças entre eles, não escapa de uma confusão
categórica ao misturar elementos que havia separado. No final do seu trabalho, chega inclusive a
se utilizar da eugenia: “achamos que do ponto de vista eugênico não haveria inconveniente se um
número qualquer de homens psicossexualmente disfóricos fossem castrados” (Farina, 1982, p.
196)99. Outros médicos, também do círculo de Farina (Figura 5) publicam livros sobre o assunto
no mesmo período, como é o caso do próprio Hilário Veiga de Carvalho e seu Transexualismo:
diagnóstico - conduta médica a ser adotada, publicado em 1981100, e de Antônio Chaves com Castração,
Esterilização, Mudança de Sexo, em 1980101, ambos pela editora Revista dos Tribunais, em torno da
qual uma gama de reflexões jurídicas102 sobre a mudança de sexo ganhou forma acerca do Direito
brasileiro (Gontijo, 2002)103.
98 Pietra Munin (2018), em sua revisão temática de projetos de lei apresentados no Congresso Nacional, os dividiu em três grupos.
O primeiro se refere aos projetos que se propuseram a garantir segurança legal aos médicos cirurgiões e/ou a permitir que o nome
do paciente pudesse ser alterado após as cirurgias, os quais se baseavam em argumentos científicos da transexualidade como uma
doença. O segundo grupo, dois projetos a partir de 2005, são apresentados por políticos religiosos que visavam proibir a mudança
civil mesmo após cirurgia, sem argumentos científicos. O terceiro grupo, em nada homogêneo, não se baseia em argumentos
medicalizantes ou religiosos, mas na prerrogativa dos direitos humanos para permitir a mudança de gênero e nome no registro civil
de transexuais. Cf. Munin (2018) para uma análise detalhada de cada projeto de lei e suas articulações políticas.
99 Farina, portanto, não representa uma digressão da orientação eugênica da medicina paulista, mas uma continuação.
100 Na biografia de Carvalho disponível na Academia de Medicina de São Paulo, esse livro não se encontra entre as mais prestigiosas
obras publicadas pelo médico, que ocupava a cadeira n. 122. Isso parece indicar a perene marginalidade do tema na medicina
brasileira. É estranho que Farina não se encontra entre seus titulares, já que ele era catedrático de cirurgia plástica da USP com uma
extensa produção, e muito elogiado por seus pares. Não é claro a razão disso.
101 Diferente do contexto paulista, médicos cariocas foram geralmente contra as cirurgias. Na dissertação de mestrado do psiquiatra
Pedro Jorge Daguer, publicada em 1977, o autor descreve que tinha atendimentos regulares de pacientes transexuais desde a virada
da década anterior numa clínica particular e no Ambulatório de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro, citando ainda
professores que trabalhavam no assunto. No final de seu texto há a defesa apenas da terapia psicológica e psiquiátrica. É interessante
ainda que o psiquiatra mobilize uma extensa literatura biomédica aliada a citação de Ruth Benedict e Margaret Mead para mostrar
que gênero é uma construção social, ao contrário do sexo, o que explicaria a existência de transexuais.
102 Ver Elizabeth Zambrano (2003) para observar os debates jurídicos dos anos 1990 em torno da transexualidade no Brasil.
103 Curiosamente, a editora não registra nenhum livro com a temática da transexualidade em seu catálogo atual ou histórico.
126
Figura 5 – Parte da reportagem sobre Farina no Gender Networker (1988)
Fonte: Gender Networker Archive.104
Nessa mesma década, a vida da modelo Roberta Close105, noticiada como transexual,
ganhou intensamente o engajamento da mídia brasileira. Ela recebeu um incrível fascínio televisivo
e impresso dos jornais e programas no país. Concedendo entrevistas em diferentes formatos,
posando como uma modelo internacional de sucesso, Close se fixou no imaginário brasileiro como
“a mulher mais bonita do Brasil é homem”, frase anunciada por um jornalista da época (Bento,
2008). Parece que a repercussão midiática do trabalho da equipe de São Paulo, comparada ao da
modelo, tem muito a ver com o período de Ditadura Militar, no qual o país estava imergido nos
anos 1970. Isso diferenciou a entrada dos dois episódios na cultura de massas, de modo que ambos
e suas repercussões representam as diferentes feições/momentos da sociedade brasileira. A própria
figura de Roberta Close, tendo realizado a cirurgia fora do país, já se estabelecia após os primeiros
trabalhos da medicina nacional106. Apesar do diagnóstico rígido, o “transexual verdadeiro” em São
Paulo não era um criminoso, era alguém que sofria sem ter culpa, como Waldirene como moça
104 Recorte de parte digitalizada de documento datilografado. Gender Networker Archive acessado a partir do sistema de bibliotecas da
Universidade do Arizona. O periódico era voltado para profissionais da saúde trans e nessa edição faziam uma homenagem ao
pioneirismo de Farina indicando principalmente que ele fora perseguido no Brasil e sua atuação cirúrgica.
105 Na sua biografia, Roberta Close se apresenta como intersexual, argumentando que desde que nasceu foi identificada dessa
maneira pelos médicos, e que sempre foi uma mulher em corpo “hermafrodita”. O médico havia informado a sua mãe que seus
testículos, não descidos, iriam se normalizar com o crescimento, mas nunca se realizou; a figura cada vez mais feminina destoante
de Roberta aumentou os conflitos com seu pai, tendo saído de casa muito jovem (Rito, 1998; ver Bento (2008).
106 A primeira transexual brasileira que se tem notícia a realizar a cirurgia de redesignação sexual, contudo, não foi nem Waldirene
(a primeira no país em 1971), nem Roberta Close, mas Jacqueline Galliarci. Sua cirurgia foi feita no Marrocos, em 1969 (Munin,
2018). A grande repercussão de Close, por outro lado, em muito se deve ao seu trabalho de modelo e circulação internacional.
127
honesta o personificou; em contrapartida, o transexual secundário, não-real, era um criminoso.
Assim, a figura do transexual como paciente de uma condição rara bio-psicológica foi a primeira
forma que a transexualidade ganhou institucionalmente no país.
2.5. A explicação da raridade clínica
O cenário da medicina trans brasileira se concentrou grandemente sobre as mulheres
transexuais a exemplo do contexto internacional, mas não deixou de fazer separações entre elas e
o que hoje se chama de homens trans. Sempre se estabelecia, principalmente a partir de dados
estatísticos estrangeiros, que mesmo sendo o transexualismo raro em geral, os segundos eram ainda
mais raros que as primeiras. Isso estava presente no trabalho de Olazábal e Saldanha, como em
outro artigo de revisão mais recente publicado pela médica Amanda Athayde (2001), ela aponta as
taxas de prevalência que se replica no país a partir da medicina euro-estadunidense:
[O transexualismo] não é uma condição comum, mas sua prevalência sofre grande
variação, como de 1 em 50.000 para 1 em 100.000 pessoas, podendo, os estudos
epidemiológicos que reportam uma freqüência maior, serem influenciados por erro de
diagnóstico diferencial. Os dados dos estudos mais antigos apontam, para o
transexualismo no adulto, 1 em 37.000 homens e 1 em 107.000 mulheres e, atualmente,
o mais recente, da Holanda, 1 em 11.900 homens e 1 em 30.400 mulheres (Athayde, 2001,
p. 409).
Isso parece indicar ainda a falta de legitimidade desse “outro lado” da transexualidade, a
masculina. O primeiro livro médico dedicado a caracterizar a especificidade do que se chamava de
“transexualismo feminino” ou “transexualismo em mulheres”, escrito pelo psiquiatra
estadunidense Leslie Lothstein (1983), já procurava argumentar que “as mulheres” teriam as
mesmas condições de apresentar “transexualismo”, mas que também deteriam diferenças
importantes. Ele chamava a atenção dos médicos para se interessarem por essa área estudo,
relegada, como defendeu, por causa de um preconceito contra mulheres. Como já vimos, havia um
debate caótico e cheio de discordâncias desde a década de 1950 sobre a transexualidade. A questão
das “mulheres transexuais” foi mais uma querela nessas discussões. Lothstein questiona as taxas de
prevalência comumente apresentadas até então para corroborar a ideia de que as “mulheres
transexuais” seriam mais raras; para ele, a diferença entre os dois grupos respondia às condições de
acesso e não a uma raridade real:
Como devemos avaliar os dados de incidência, prevalência e taxa sexual sobre o
transexualismo feminino? Não apenas os pesquisadores dos diferentes países
discordam, mas também há discordância entre os pesquisadores que trabalham juntos na
mesma clínica. Algumas das confusões e divergências podem se originar do fato de que
as clínicas de gênero tendem a ter suas próprias identidades únicas (dependendo muitas
vezes de sua existência quanto à disponibilidade de um cirurgião). Richard Green et al.
(1966) também documentaram o fato de que transexuais são vistos negativamente pela
128
profissão médica, e muitas mulheres transexuais podem evitar programas de gênero
respeitáveis em hospitais por medo de serem estigmatizadas (Lothstein, 1983, p. 310,
tradução minha).
Assim como Lothstein, outros médicos passaram a acusar colegas de dificultar ou
desencorajar o acesso às clínicas. A diferença apresentada por essas taxas, segundo o psiquiatra,
estava atribuída a esses profissionais serem homens e por terem proposto às “mulheres” a viver
sem a transição, dado ao pouco desenvolvimento de técnicas cirúrgicas. Lothstein (1983, p. 10,
tradução minha) está preocupado em estabelecer uma etiologia específica. Ao elencar uma série de
mitos a respeito, propõe que o “transexualismo feminino” não se trata de uma “desordem sexual”,
mas de uma “desordem de gênero”: “é primeiramente uma desordem no sistema do Eu,
consequência de um mal desenvolvimento na primeira infância, a distúrbios nas funções do ego, e
decorrente principalmente da personalidade borderline107 e distúrbios narcísicos”. Ou seja, até
mesmo o discurso do raro não era um consenso, embora tenha tido um forte impacto nas
explicações sobre a transexualidade.
O uso brasileiro dessas estatísticas de populações atendidas em serviços de saúde levantadas
por outros países, de modo a se gerar uma taxa de uma condição, é o resultado da ideia da
universalidade do objeto científico que não conhece limites culturais. É um indicador do lugar
ocupado pelos praticantes no país na comunidade internacional da medicina. Segue-se que a ciência
médica explica e trata os problemas dos seres humanos em qualquer lugar em que eles estejam, sua
biologia é universal, assim como o que a afetaria organicamente (Lock e Nguyen, 2010). No país,
esse caráter de raridade para medir ambas as experiências se deve em sua amplificação com a
possibilidade que a figura da travesti apresenta para a mudança de gênero, mesmo que esta tenha
sido uma categoria impura ao ser associada a dinamismos de ridicularização, ao crime, ou até como
extremismo da homossexualidade. Travesti existia como uma figura alternativa à ideia de mulher
trans. Já para os homens trans não haveria essa figura popular de trânsito de gênero tão impregnada
no pensamento coletivo. Athayde (2001, 405) diz que “em relação às mulheres transexuais existem
algumas diferenças, como, por exemplo: não existem mulheres travestis. Ou são ou não são
transexuais” – quando fala mulher transexual a médica se remete à contemporânea figura de
homens trans. Não há meio termo, ou se é mulher ou se é homem, não há trânsito algum. Isso
pode ser visto como os lugares que a figura de travesti ocupou ou ocupa na imaginação cultural
brasileira.
107 Atualmente chamado também de “transtorno de personalidade limítrofe”, o transtorno de borderline possui na medicina definições
que se referem a diferentes tipos e é considerado por psiquiatras como de altíssima lesividade. Esse transtorno causaria uma
instabilidade emocional e de autoimagem (Hospital Albert Einstein, s/d).
129
Esse elemento do raro para explicar a transexualidade no Brasil, por outro lado, fora
intensificado para se referir aos homens trans, e atravessou as décadas de 1970 e 1980, estando
presente inclusive nas primeiras tentativas de institucionalização de saúde trans pós-
redemocratização na década de 1990 – discutirei isso pormenorizadamente nos próximos capítulos,
o que quero reter disso agora é o caráter de continuidade da raridade. Mas isso não ficou restrito a
São Paulo, embora o estado também tenha contado com um novo serviço nessa década (Munin,
2018). Nesse período, e início dos anos 2000, hospitais gerais começam a oferecer serviços mais
sistematizados nesse sentido, como em Porto Alegre (Zambrano, 2003) e Goiás (Bento, 2006). Em
sua pesquisa realizada no final dos anos 1990, Bento, partindo também do Hospital das Clínicas
em Goiânia, descreve um cenário de protocolos de diagnóstico com uma rigidez que navegava lado
a lado com a ridicularização e os insultos aos pacientes. O aspecto do raro fora por ela indicado
naquele momento. Os médicos descritos apresentavam dificuldade para atender homens trans ou
nas palavras de um dos profissionais, “transformar Mariazinha em Joãozinho” era mais difícil.
Ainda segundo a autora:
Parece que a ciência não tem muita pressa em criar novas tecnologias para intervir nos
corpos-sexuados femininos, levando-me a pensar nas assimetrias de gênero na produção
das tecnologias para transformar os corpos femininos. Muitos cirurgiões argumentam
que são raros os casos de transexuais masculinos, o que não justificaria um investimento
em pesquisa para atender a uma clientela tão reduzida (Bento, 2006, p. 113).
Contudo, essa não é apenas uma história de outrora, o raro persiste como um fantasma.
Refiro-me à persistência da produção de uma noção que chamo de “raridade clínica” existente no
campo biomédico atual brasileiro como uma das explicações para a “transexualidade masculina”,
isto é, a ideia de que homens trans existiriam em menor número que travestis e mulheres transexuais
pelo caráter próprio da transexualidade. Algo não apenas corroborado por números de pacientes
nas primeiras décadas de certas pesquisas clínicas, mas por ser a sua mobilização social brasileira
mais recente que a de travestis e mulheres trans. Esse “raro”, na visão desses médicos e psicólogos,
não está disposto no sentido do que se tem denominado “doenças raras”, patologias cuja incidência
reside de cinco a sete habitantes para cada dez mil (Boy e Schamm, 2009) e, que têm sido objetos
de ativismos variados na ordem da cidadania por pesquisas genéticas (Health, Rapp e Taussig,
2007). Nesses casos, a raridade mobiliza cientistas a partir da pressão de pacientes e do interesse
da descoberta dos fatos científicos. No que se refere a transexualidade, o sentido de raridade parece
ter ocupado outrora um empecilho à existência de engajamento biomédico. E embora a noção de
raridade possa assumir diversas formas, ela não costuma acarretar ainda numa disposição de tornar
o raro comum à intervenção, mas produz um diagnóstico ou seu enrijecimento. Há, ainda, uma
semelhança na pressão social estabelecida sobre médicos e cientistas entre pacientes de doenças ou
130
síndromes genéticas e aqueles que demandam assistência à transição de gênero. Ambos os grupos
situam a vida como dependente das resoluções que as intervenções orgânicas podem produzir.
Deter-me-ei melhor sobre isso no capítulo 5, mas cabe apontar agora que a noção de raridade é
terminantemente afastada por pacientes trans, que defendem suas obviedades de existência porque
essa concepção costuma dificultar o acesso à clínica e à cirurgia – o que não significa que esses dois
universos não possam compartilhar elementos de mobilização social.
Se homens trans existem raramente, aquele que se apresenta como tal tem sobre si uma
redobrada vigilância para se provar, acarretando embargos às políticas de saúde pública e à
mobilização social. Isso se projetou na articulação política das primeiras figuras de homens trans a
se inserir com maior notoriedade, e insistência, na militância travesti e homossexual no país.
Sílvio Lúcio, 54 anos de idade, natural e residente do interior do Ceará, foi um desses
personagens. Foi chamado por parte do movimento local de “louco” ao dizer que não era uma
mulher lésbica, como se apresentava antes, mas um homem quando buscou reconhecimento como
transexual há mais de duas décadas108. Na nossa entrevista ele reflete: “a maior rejeição que teve foi
no movimento LGBT”. Foi no início da década de 2000 que começou a se informar sobre a
transexualidade, e após conhecer outro homem trans num dos encontros de ativismo LGBT na
capital do país, voltou para seu estado com a consciência de sê-lo. Ele aponta dificuldade para se
estabelecer como um ativista, com essa então nova categoria, num período em que era o único
conhecido na cena cearense. Quando começou a sua transição, tentou integrar uma associação de
travestis e mulheres trans de alcance nacional no país, mas não foi admitido por suas integrantes.
“Elas diziam não me reconhecer como homem transexual, como homem trans, porque ‘no Brasil
tinham poucos homens trans’, ‘não tinham homens trans’, não sei o que, alegaram coisas do tipo”.
Quando lhe perguntei quem mais havia no ativismo nesse período, ele responde que “éramos
poucos”:
Nunca teve muitos homens trans; porque assim, têm muitos homens trans, Cleiton, que
preferem não se expor porque é muito mais leve... a mulher, toda mulher tem leveza em
ter um amigo gay, simpático, engraçado, gentil, que leva sua bolsa, que ajuda a maquiar,
e tudo. E até na possibilidade de emprego é mais leve. Uma empresa recebe melhor,
funcionários de uma empresa recebem melhor um LGBT gay, entendeu, uma travesti,
do que um homem trans. Nós chocamos, entendeu? Muito. É como se assumir ser trans,
ou [ao se] ter uma aparência transmasculina, isso violentasse, rompesse alguma coisa de
foro íntimo das pessoas, entendeu? Então, não é tão simples, não foi tão fácil. Foi preciso
ir se revestindo de uma coragem, entendeu? E se expondo, certo, e têm muitos homens
trans que preferem não se expor (Sílvio, entrevista, 2018).
108 O que Sílvio (nome real) me descreve relembra em muito as chamadas “guerras de fronteira” que tomaram conta dos ativismos
lésbicos e de homens trans nos Estados Unidos quando o primeiro buscou se aproximar do feminismo hegemonicamente
heterossexual e rejeitou qualquer associação com identidades e práticas corporais consideradas masculinas. Nesse processo social,
como descreve Henry Rubin (2003), homens trans surgem naquele contexto como uma nova categoria que reclama não pertencer
a lesbianidade. A ausência de arquivos organizados no Brasil em torno da história LGBT dificulta uma análise similar no país. E as
dinâmicas atuais de relações políticas impendem que muitos ativistas entrem em grandes detalhes sobre esse período histórico, uma
vez que visam a preservação de suas fachadas – no sentido goffmaniano – e de suas carreiras morais.
131
Silvio prefere não entrar em muitos detalhes sobre contendas que vivenciou no período
inicial de sua transição. Sendo um ativista “antigo” e bem conhecido desde seu engajamento como
mulher lésbica demarca em toda a entrevista que encontrou muitas barreiras daqueles que deveriam
ter estendido a mão para lhe reconhecer. Fica claro que evita detalhar outras ocasiões conflituosas
para não gerar mais dessabores a partir da leitura dessa tese. A barreira da raridade que encontrou
no país, e em seu estado em particular, apesar de hoje ser algo bem menos visível, continua sendo
ainda nessa década de 2010 um objeto que pode surgir nas interações com profissionais de saúde,
muito embora seja algo em crescente estabelecimento nos ativismos LGBT.
O agrupamento de sujeitos em torno da categoria homem trans teve na condição de
raridade o grande cavalo de Troia de sua consolidação como sujeito de cuidado e de direitos não
apenas no Ceará. Para contradizê-la, esse ativismo não vai se concentrar apenas na articulação
diante de serviços, políticas e profissionais de saúde, mas vai extrapolá-la para o cenário da cultura
popular uma vez que se fazer visível na coletividade é uma maneira de ser aceito nas assistências.
Através de uma atuação política que ultrapassa campos sociais com limites muito delineados,
enquanto grupo, homens trans tentam influenciar a partir de fora o fechado campo social da
biomedicina. Isto é realizado também ao extrapolá-lo para garantir espaço nele mesmo, através da
interferência ou produção social em outro campo social, o da política cultural, por meio do
tradicional campo teatral cearense. Assim, é preciso observar como são constituídos engajamentos
no campo da política cultural, o que nos dá a possibilidade de entender os meandros nos quais esse
contexto se localiza e se constitui no âmbito maior dos fluxos transnacionais da transexualidade.
O teatro, aqui, será um elemento importante justamente pelo seu caráter social e histórico no estado
cearense. Como nos mostrará uma peça teatral produzida e encenada em Fortaleza sobre “as vidas
de homens trans”, os ativistas agiram culturalmente para erigirem-se como sujeitos.
Tendo em mente, como propôs Bourdieu (1996), que a arte constitui um campo de disputa
tanto dos artistas quanto do público que o recepciona, esses sujeitos trans também encontraram
tensões políticas ao serem representados nos palcos. Se considerarmos que a nomeação inefável
dos produtos artísticos corresponde a uma proteção de sua autonomia de ingerências externas,
como o cenário teatral cearense se produziu diante das tentativas exógenas de deslegitimação que
surgiram na cidade de Fortaleza por causa da encenação da transexualidade?
2.6. A produção cultural cearense e as políticas da representação trans
Em novembro de 2017, a 11ª edição do For Rainbow - Festival de Cinema e Cultura da
Diversidade Sexual exibiu 32 filmes a partir da inscrição de mais de mil títulos nacionais e
132
internacionais. A partir do tema “resistência LGBT ao conservadorismo e à opressão”, a edição
contava com financiamento público do Governo do Estado e do Governo Federal via emendas
parlamentares. O grande evento cultural tem programação gratuita, e tem ocorrido
tradicionalmente em Fortaleza, Ceará, envolvendo também apresentações de dança, musicais e
peças teatrais, além de debates e palestras sobre literatura e arte. O festival atrai um enorme público
local que consome e vê a “cultura”, isto é, obras de arte, resultado de produção cultural, que são
alçadas por espectadores como formas de lazer.
Desde que começou a ser produzido, a partir de sua décima edição, no Dragão do Mar, o
Festival alcançou uma projeção inédita. Em seus comunicados oficiais, a sua organização se propõe
ao “combate ao preconceito e à discriminação”, e “busca fortalecer a cultura LGBT em Fortaleza
e celebrar a diversidade que faz do Ceará um lugar plural” (For Rainbow, 2016). O objetivo, nesse
sentido, visa a construção da região como uma forte atmosfera de defesa de direitos. Através de
um exame das edições anteriores se percebe que o personagem homem trans não figurava de
maneira contínua nos produtos do Festival109. Isso mudaria nessa 11ª edição quando uma peça de
teatro foi fortemente veiculada, dias antes, com a proposta de contar histórias de sofrimento de
homens trans. Era a primeira vez que essa identidade era apresentada de modo claro e direto a
partir de histórias cearenses. O grupo de teatro fortalezense responsável pela peça anunciara-se dias
antes no jornal Tribuna do Ceará:
Outro Grupo de Teatro apresenta a peça “Histórias Compartilhadas” no Teatro Dragão
do Mar, sexta-feira (10), às 19h, com entrada gratuita. O monólogo traz Ari Areia em
cena com direção de Eduardo Bruno aprofundando uma discussão sobre transexualidade
masculina. A apresentação acontece com apoio da Secretaria da Cultura do Estado do
Ceará (Secult) por meio do Edital Cultura LGBT 2016. Não recomendado para menores
de 18 anos (Scaliotti, 2017).
Na entrevista que realizei com Ari Areia, ele me lembra que a peça estava em cartaz bem
antes disso, em 2015. Ele levara cerca de um ano para a sua preparação, a partir de levantamento
bibliográfico, entrevistas e auxílio de ativistas na preparação do texto. Ele e seu diretor trabalharam
na união desse material. Enquanto bloco de relatos biográficos presentes, figuras conhecidas como
o ativista carioca João W. Nery e o ator pornô estadunidense Buck Angel também são mencionadas
para além de nomes locais. Apesar de se localizar no cenário cearense, tenta-se atrelá-lo a
personagens reais num contexto tão extenso que comprova a sua universalidade. Essa é outra
característica da reprodução social da arte apontada por Pierre Bourdieu (1998), quando descreve
109 Em 2011, na sua quinta edição, o curta-metragem pernambucano Entre Lugares: a invisibilidade do homem trans apresentava a história
pessoal de dois ativistas. Com 12 minutos, dirigido por Lucas Patrese, o filme trazia o argumento de que gênero e sexualidade eram
temáticas diferentes, ao veicular que um dos personagens namorava uma travesti e o outro um homem. Em 2016, na décima edição,
o longa-metragem estadunidense O Garoto Real, direção de Saleece Haas, voltava a veicular a temática a partir da relação do
protagonista e sua mãe durante a transição de gênero.
133
sua pretensão a um caráter transcendental, cujos referentes à experiência sensível não se prenderiam
a particularismos. Adotando uma narrativa do sofrimento a peça centraliza o corpo, como já se
percebe na sua sinopse presente na propaganda que circulou antes e durante o Festival:
Corpo, Mídia, Gênero, Pênis, Mulher, Vagina, Homem, “Disforia”. Fragmentos do
Cotidiano e vozes misturadas. O eu como uma construção. O Gênero não como
meritocracia das genitálias. Corpos que, na tentativa de coexistir, rompem os limites da
resistência e fazem da presença um símbolo de luta. Para não se afogar em silêncio todos
os dias e cada dia mais um pouco, a gente tem que gritar: todos os corpos são certos
(Scaliotti, 2017, grifos meus).
A metáfora é de luta, de grito e de insistência, isto é, de teimosia, como já expressada por
Kaio no começo do capítulo. O objetivo é de demonstrar que o sofrimento vivido durante e por
causa da experiência da transição de gênero, “desencadeado pela sociedade”, é resultado de um
lugar que esse corpo ocupa, no sentido da não importância, do erro. Embora a peça não tenha sido
produzida ou encenada por atores trans, ela recebeu forte suporte e agradecimento do grupo
ativista local. Eu mesmo só soube da sua existência porque os interlocutores me chamaram para
assisti-la, após uma de minhas visitas ao Abrigo Thadeu Nascimento.
***
Quando cheguei à casa do Abrigo, no mesmo dia da exibição da peça, 10 de novembro de
2017, eles estavam envolvidos em terminar uma Ata de Reunião para submeter inscrições dos
ativistas para um curso de formação oferecido pela Prefeitura de Fortaleza. Era o último dia, e
estavam ansiosos porque parte da documentação necessária era confusa. Como eu já trabalhei
como secretário de um setor estatal, anos antes, tinha experiência com esse tipo de gênero textual,
então pedi para ver a Ata para saber se poderia ajudar. Percebi que era necessário formatar o texto
para que pudesse apresentar um formato oficial, com números ordinais ao lado das linhas,
parágrafo único, assinaturas dos presentes, entre outras características de sua linguagem
burocrática. A Ata, além de formulários com os dados dos inscritos (até dois ativistas), eram
obrigatórios para mostrar à Prefeitura que existiam como uma organização não-governamental.
Esse material deveria informar à Prefeitura que a ONG tinha um líder. Quando terminei de redigir
a Ata, ainda precisávamos das assinaturas de outros ativistas que não estavam no Abrigo naquele
momento, e então começamos a ligar para todos pudessem assiná-la.
A tensão aumentava conforme o tempo se passava. Isso porque estando prestes a anoitecer,
o prazo de inscrição acabaria às 18 horas. Alguns ativistas se preocupavam grandemente e achavam
que não daria tempo, refletindo que talvez fosse melhor desistir. Outros ativistas asseveravam que
precisavam tentar fazer até o fim, uma vez que já tiveram um grande trabalho até ali. Eu também
134
falei que iria dar certo. Após essa articulação conseguimos terminar de redigir a documentação e
os ativistas fizeram a inscrição através da internet. Um grande alívio se estendeu entre todos. Como
demonstraram pesquisas realizadas sobre setores de Estado (cf. Teixeira e Souza Lima, 2010), a
falta de conhecimento de como funcionam os serviços públicos impede ou retarda seu uso pelos
usuários, de modo que essas agências não articulam um aprendizado de como percorrer os
processos que materializam. Os usuários acabam aprendendo durante o uso dos serviços. Como
figuras recentes, e menos consolidadas que outros personagens do acrônimo LGBT, homens trans
também esbarram nessa prerrogativa do uso de serviços estatais que já foram percorridos por
outros agentes sociais em busca de direitos diferenciados; o que se agrava quando os ativistas não
detêm carreiras morais anteriores nesse campo, seja como lésbica/feminista ou como qualquer
outra micropolítica.
Toda essa articulação para se inscrever em um curso de formação da Prefeitura se dava,
portanto, em meio a outras atividades que os ativistas se incumbiam de participar. Estar presente
na cena estatal era tão importante quanto na cena cultural, uma vez que esses dois campos se
entrecruzam nas dinâmicas de relações sociais que se confundem. Além do mais, a produção
cultural local estava muito ligada a políticas de governo dos setores locais. Com a inscrição feita,
precisaríamos nos preparar para ir ao Dragão do Mar e prestigiar a peça sobre suas vidas. Parte
deles havia concedido entrevista para a sua produção, de modo que reconheceria mais tarde boa
parte das histórias ali dramatizadas, e das vozes que ecoaram de modo gravado pelo palco. Quando
chegamos ao “Dragão” fomos diretamente para o seu Teatro, e a peça já estava para começar sem
delongas. Uma parte de nós chegara em cima da hora, mas todos nós conseguimos ficar na primeira
fileira dos assentos. A animação era geral e nos voltamos ao palco, compenetrados. A minha
descrição corresponde muito mais a minha própria “experiência sensível”, não pretende ser um
retrato estático, por isso, posso relegar certos elementos a segundo plano e destacar outros. No
início da minha vida adulta vivi um pouco o teatro, uma vez que participei na minha cidade de
origem de grupos locais de teatro e convivi com artistas de teatro de bonecos e pintores. Assim,
estive inserido desde dentro desse universo social particular como agente e não como antropólogo.
Assistir ao monólogo de Ari Areia e acompanhar a recepção que ela teve me trouxe muitas
memórias desse período, algo que não trago para corroborar uma “descrição de um ator” como se
isso pudesse pretender maior fidedignidade – até porque há muito tempo que tomei outros rumos
biográficos e profissionais. A etnografia é perpassada por essa memória que construí, gerando
algumas referências que pude estabelecer ao considerar a importância dessa peça.
O monólogo começa antes de começar. Quando entrávamos no teatro uma pequena
câmera filmadora num tripé estava posicionada para a plateia, e um televisor pequeno projetava
135
nossas imagens. O ator, vestindo um terno cinza, sentava-se numa cadeira de assento alto
modelando pacientemente um boneco de massa de cor laranja. Os alto-falantes do teatro começam
a reproduzir um áudio diferente das imagens, se trata de um rapaz falando sobre seu processo de
transição de gênero. Eu reconheço sua voz, fico surpreso porque é um dos interlocutores dessa
pesquisa. Após alguns minutos, o ator se levanta e coloca a cadeira e o boneco de lado. Apenas à
frente do palco está agora iluminada, seu fundo permanece escuro. Com aquela câmera na mão
continua a filmar a plateia enquanto fala sobre as dificuldades de aceitar a si mesmo. Ele a alterna
para o próprio rosto, enquanto a sua imagem também é reproduzida na televisão. A fala agora
enfatiza que a medicina e o direito através dos médicos e dos juízes tentam demarcar quem é trans
por meio de uma “autorização”, mas que isso não deveria ser assim. As pessoas deveriam ser
“livres”! Menções aos corpos desviantes que ficam entre o homem e a mulher se materializam por
alguns minutos antes de um vídeo ser projetado no fundo do palco. Assistimos agora a um vídeo
pornô no qual o famoso primeiro ator homem trans Buck Angel faz sexo com uma travesti.
Enquanto assistimos ao filme pornô, o personagem da peça tira toda a sua roupa. Ele está
completamente nu agora, mas não por muito tempo: com uma fita branca, um esparadrapo que ele
corta com as próprias mãos, ele coloca seu pênis para trás/baixo do seu corpo, reproduzindo algo
similar à prática comum entre transformistas para esconder o falo e reproduzir uma vagina aparente
– ou, como chamam também travestis, transformistas, dragqueens e gays, a prática de “aquendar a
neca”110 (Santos, 2012). Nesse momento, duas mulheres se levantam da plateia e saem,
possivelmente incomodadas, e eu sentia um pouco de animação e surpresa. O vídeo pornográfico
chega ao seu fim. Continuando sem falar, o personagem posiciona no canto da frente do palco
uma mesinha alta com material cirúrgico. A câmera que ele usava no começo da história é
posicionada por ele mesmo para filmá-lo. Ele continua seminu. Abrindo uns pacotes de gaze, ele
levanta uma agulha e abre um acesso venoso em seu braço direito. Quando ele volta para trás, uma
cadeira de plástico com apoio para as costas apresenta um crucifixo. Enquanto tudo isso acontece
uma trilha sonora nos acompanha, nos possibilitando deter ainda mais atenção. O sangue do seu
braço agora desliza pelo Jesus crucificado. Eu estou completamente chocado com o que vejo, e
olho para os ativistas ao meu lado que olham tudo com muita compenetração. A figura do Jesus
em sangue é apresentada para comparar o sofrimento dos homens trans com o dele, numa ode ao
que o corpo sente na experiência que os sujeitos trans vivenciam. Jesus sofrera também porque
não o entenderam. O corpo é levado ao extremo e essa imagem sacra une os sofrimentos.
110 Segundo Joseylson dos Santos (2012, p. 119), que estudou a prática de se montar como dragqueen/transformista em Natal, Rio
Grande do Norte: “‘aquendar a neca’ é a forma de esconder a genitália: os testículos são posicionados na região pubiana. Depois o
pênis é puxado para trás e preso com adesivos (Emplastro Sabiá) ou com calcinhas sobrepostas bem justas”.
136
Ao limpar seu braço, a cadeira e o Jesus permanecendo no fundo do placo, ele vem para o
centro. Agora segura com dificuldade um garrafão cheio de água e começa um discurso. O palco é
escurecido à meia luz. O peso do garrafão parece incomodá-lo, é a forma de sua analogia de agonia.
O peso representa a sociedade, os outros. Na sua fala, o sofrimento mais uma vez é a figura
norteadora. Lamenta-se, diz que se chama Hiley, e não Jéssica; era difícil ser assim, complementa.
É a única vez que o ator encarna um personagem durante a peça, na qual ele se divide na maior
parte do tempo como um contador de história. Divergindo seus olhares em direções diferentes a
tensão aumenta. O seu ânimo fica mais energético depois de alguns minutos, o garrafão cai
estrepitosamente no chão de madeira do palco, rolando até a sua borda e derramando água para
todos os lados inclusive no carpete da plateia. Nesse momento eu penso, como ele conseguiu
autorização para molhar o teatro? Sem me demorar muito nas minhas reações paralelas, a peça
novamente capta minha atenção quando o ator, ainda seminu, passa a limpar a água do palco com
a própria roupa da qual havia se despido. O silêncio entre os espectadores é inquebrável, e eu olho
para suas feições paralisadas. Nosso ator então torce a roupa para colocar novamente a água no
garrafão esvaziado, com o auxílio de um funil.
Com a roupa espremida, ele a veste, ainda sem falar nada. Agora vestindo seu terno
molhado segura a mesma câmera na mão e vai para trás do palco. Outro vídeo começa a ser
projetado no mesmo lugar que a cena pornô de Buck Angel, e um rapaz lê uma carta que ele mesmo
escrevera, contando seu processo de intensa dúvida, confusão e ansiedade com o início de sua
percepção sobre ser um homem e não uma mulher. O espetáculo se encerra com o ator falando
em um microfone. Ele está no final do palco, recuado no canto esquerdo, e sua imagem aparece
no telão. Ele explica como Hiley era um homem trans estadunidense que se suicidou, e lê sua carta
escrita originalmente em inglês, mas traduzida pelo ator. A história acaba focalizando em como
alguém se reposiciona com outro eu real, diferente do que as pessoas a sua volta esperam. Por isso
sofrem uma continuada desvinculação daquilo que apresentam como novo, podendo chegar à
morte caso não encontrem suporte. A peça tem esse caráter recortado, cheio de esquetes que se
complementam como um quebra-cabeças confuso. Como na minha descrição, o propósito da
história parece ter sido o de representar as emoções em conflitos, a coragem da autoafirmação, e o
destino da morte produzida por aqueles que estão a volta, mas não se importam. O trato é
sociológico porque o indivíduo aí é o resultado de relações que o fazem viver ou deixam morrer
em meio a um indivíduo psicologizado. Portanto, a peça é uma crítica das relações.
O intuito de Ari Areia, como produtor da peça e ator, é propor uma crítica social, de modo
que os espectadores na plateia façam um autoexame para se colocarem não apenas no lugar do
outro retratado como herói, mas naqueles que, mesmo não estando na história de modo direto, são
137
os algozes diluídos. Isto é, os personagens que sofrem e que resistem em Histórias Compartilhadas
são resilientes em relação a todos aqueles que os cercam personificados na peça como “a
sociedade”. Ao partir de casos concretos e com uma pesquisa e não personagens fictícios, o
monólogo em muito se reproduz como teatro épico nos moldes dirigidos pelo médico e
dramaturgo marxista alemão Bertolt Brecht (1978). Era o que vinha à minha cabeça quando assistia
à peça: o teatro brechtiano. As primeiras lições que aprendi sobre o teatro na minha primeira
juventude eram que a encenação das emoções me obrigava a encarnar outra pessoa. Na peça de
Ari Areia, ele buscava o contrário, trazer a representação para o plano do real e não da ficção. A
mistura do silêncio, de falas sem rostos, de vídeo pornô, de exposição tensa do corpo, e de uma
continuada afirmação de que o ator estava representando – como quando o ator fica nu, mostrando
seu pênis – faz com que a peça tenha um impacto particular sobre quem a assiste, levando as ações
humanas ali teatralizadas a serem criticadas e refletidas. Não era o objetivo da peça realizar um
simulacro. Esse era um forte fundamento que Brecht implicava no seu teatro111. O teatrólogo
objetivava que a crítica fosse o centro da experiência de palco, de modo que o ator através de gestos
pudesse corporalizar a história através da sua montagem em cena. A beleza e a emoção não eram
tão importantes (Peixoto, 1980), e a intenção passa a ser a de manter um distanciamento do ator e
da história que ele conta, e não se confundir com ela totalmente. Segundo a proposta de Brecht, o
público precisaria saber num nível mínimo que a peça era uma representação, de modo que a crítica
fosse exacerbada aos seus olhos. Assim, o monólogo de Ari não procura recriar uma completa
realidade paralela, uma ficção realista.
Quando o palco se escureceu e a peça teve fim, o sentimento era de êxtase entre nós. As
palmas ecoaram pelo pequeno teatro do Dragão do Mar, e esperamos o ator sair da coxia e vir nos
cumprimentar. Tiramos fotos, apertos de mãos e abraços se estenderam entre todos. Ari Areia
oferecera-se para encenar a peça no Abrigo para que os ativistas pudessem angariar fundos para
suas atividades. A felicidade era tamanha. Saímos das dependências do prédio e fomos jantar, comer
um cachorro-quente na esquina. Enquanto comíamos, conversávamos sobre a importância daquele
momento, e como isso era algo novo. Kaio contava ainda que estava trabalhando num
documentário que seria lançado em breve, focando em sua trajetória e na de outro ativista que não
estava ali presente112. A produção cultural a respeito de suas particularidades estava ganhando forma
e se multiplicando. Eu não tinha me dado conta naquele momento como essa peça de teatro
significava algo sem precedentes na região e para o ativismo. Os homens trans, assim, de modo
111 Sobre a influência da teoria e da prática teatral de Bertolt Brecht ver Anatol Rosenfeld (1997) e Fernando Peixoto (1974).
112 Aqueles dois, dirigido pelo jornalista Émerson Maranhão, seria lançado em 2018, durante o 26º Festival Mix Brasil na capital de
São Paulo, no qual recebeu o prêmio Canal Brasil de Incentivo ao Curta-Metragem. O curta também ganharia no mesmo ano
prêmios na 12ª edição do For Rainbow em Fortaleza, Ceará, e, na 6ª edição do Recifest – Festival de Cinema e Diversidade Sexual
e de Gênero, em Recife, Pernambuco. O curta integra agora a plataforma sob demanda de filmes do Canal Brasil.
138
direto como personagens concretos estavam sendo representados como protagonistas num espaço
e com financiamento público através de uma das mais tradicionais e antigas produções como objeto
cultural cearense: o teatro. Na comunidade artística, a peça não encontrou oposições estéticas ou
políticas, como me contou Ari Areia. Há uma forte continuação da tradição teatral cearense, que
tem se caracterizado historicamente por sua criticidade aos costumes presentes no cotidiano, desde
o mais simples dos hábitos.
Não é recente uma tentativa de cearenses de resgatar ou reconstruir a história do estado ou
da cidade de Fortaleza, recusando a centralidade que o eixo Rio-São Paulo tem na historiografia
nacional nesse tema. O teatro na capital fortalezense passa a ter um grande destaque já na Primeira
República, principalmente por sua associação ao progresso que o cultivo artístico denotava na nova
elite brasileira (Lima, 2012). Até a década de 1930, esse círculo de produção cultural irá conhecer
nas figuras, como do promotor e dramaturgo Carlos Câmara, uma forte louvação ao homem do
sertão através do desenho de papeis sociais aos homens e às mulheres em torno do matrimônio.
Oposições valorativas contrárias de novo/antigo, campo/cidade, atraso/civilização se atrelam a
moral cristã, a qual, por sua vez, estava circunscrita à uma forma de dar luz ao que era essencial à
vida cotidiana. A dramaturgia local preocupava-se em representar relações equilibrada entre os
sexos e os modelos ascendentes da elite sobre certa brasilidade e cearensidade através de uma
comédia dos costumes (Costa, 2013; Lima, 2012). As relações entre os sexos, aí, fora um conteúdo
contínuo para falar do Ceará e do país. Contudo, a produção de arte de “viés LGBT”, aí incluído
o teatro, é algo contemporâneo ligado ao período da redemocratização pós-Ditadura Militar.
Quando Ari, nesse ínterim, estabelece uma ligação metafórica na sua peça entre o Jesus crucificado,
aliado a representação da transexualidade, constitui o combustível de uma reação negativa. Essa
resposta dos setores religiosos e conservadores da capital demonstra ainda a torção que se
estabelece com o espetáculo na forma de pensar a região.
A peça, entretanto, não fora criada especificamente para o Festival For Rainbow, mas como
trabalho de conclusão de curso de Ari em Comunicação Social/Jornalismo pela Universidade
Federal do Ceará. Realizando espetáculos na instituição, acabou atraindo as críticas de religiosos, a
ponto da Comissão de Liberdade Religiosa da secção estadual da Ordem dos Advogados do Brasil
(OAB) requerer investigação do Ministério Público em 2016. Inclusive, uma nota foi publicada
apontando o escândalo:
[...], enquanto o ator seminu derramava o próprio sangue sobre o símbolo religioso, um
filme pornô era exibido no telão. A universidade como ambiente de nascedouro,
proliferação e discussão de ideias, pode e deve apoiar todos e qualquer debate, mas dentro
dos limites estabelecidos na legislação brasileira. A Ordem dos Advogados do Brasil tem
o papel institucional de fiscalizar e/ou propor medidas para assegurar um ambiente
diversificado e respeitoso além de promover cidadania, bem como reparar danos
provocados por eventuais infrações legais (OAB-Ceará, 2016).
139
O jornal O Povo, em 9 de junho de 2016, informava também que comentários massivos
foram escritos através da internet condenando a peça de teatro. O ator chegou inclusive a receber
ameaças de agressão e de morte, tendo sido, inclusive, abordado por estranhos em público na rua.
A comparação que o monólogo procurou realizar encontrou certamente a ojeriza de pessoas que
não viram o espetáculo, mas apenas descrições e fotos. O problema aparente estava no aspecto
sacro violado com a presença de um Jesus crucificado. A Nota da OAB continua:
A bandeira levantada pelo ator Ari Areia do “Outro Grupo” de Teatro é pertinente e
merece respeito, porém para ilustrar e contextualizar suas ideias ele certamente pode usar
outros personagens históricos. A liberdade de expressão não é incontestável tampouco
pode violar ou ofender demais direitos constitucionais (Araújo, 2016).
A analogia com a crucificação de Jesus Cristo tem sido desde muito tempo utilizada em
diferentes obras de arte em todo o “Ocidente” (cf. Cartlidge e Elliott, 2001). A sua representação
artística foi impulsionada por séculos pela doutrina católica da Encarnação, que colocava o material
num nível de importância quase igual ao do espírito – Jesus como a encarnação de Deus para
redimir os pecados da humanidade (Woods Jr., 2008). Mas, no Brasil, encontrou particular rejeição
entre 2016 e 2017 quando foi associada a manifestações artísticas ligadas a população de
homossexuais, travestis e pessoas trans. Rompia-se o caráter imaculado da figura sacra, princípio
oposto ao atrelado a indivíduos tidos como invertidos sexuais ou de gênero.
Nesse sentido, em entrevista com Ari Areia, ele me lembra que a reação da OAB-Ceará e
de anônimos e figuras populares a sua peça ocorreu dentro de um contexto nacional de tentativas
de censura a obras de arte moralmente condenáveis113. Essas ações foram encabeçadas por políticos
e ativistas de direita e religiosos, como em direção a manifestações artísticas da performance de nu
La Bête, de Wagner Schwartz no Museu de Arte Moderna; a exposição Histórias da Sexualidade do
Museu de Arte de São Paulo na capital paulista; e, a Queermuseu – cartografias da diferença na arte da
brasileira, exposição realizada e fechada pelo Santander Cultural em Porto Alegre, no Rio Grande
do Sul. Esses episódios levaram vários museus no país a adotar a autocensura para evitar qualquer
ingerência externa (cf. Gonçalves Filho, 2017).
Em resposta à requisição da OAB, o Ministério Público local havia solicitado à Ari Areia e
sua companhia de teatro que respondessem um extenso questionário. Em sua argumentação,
113 Em 2019 essa reação esteve presente também na recepção de um episódio especial de Natal produzido pelo Porta dos Fundos
para o canal sob demanda Netflix. Grupos religiosos criaram abaixo-assinados na internet para tentar boicotar o programa. Primeira
tentação de Cristo, o episódio de mais de uma hora, trazia um Jesus delicado com um namorado afeminado, e que saíam do armário
para a família no decorrer da narrativa. A história ainda trazia Maria traindo José, e uma avó de Jesus racista. A reverberação foi
tanta que o Supremo Tribunal Federal foi envolvido porque um desembargador do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro chegou a
censurar o programa. O STF decidira em resposta que o episódio continuaria no ar. Disponível em:
; . Acesso
em jun. 2020.
140
estiveram presentes noções ligadas a liberdade de expressão e ao intento da peça de lançar luz sobre
a realidade social. Nesse sentido, se reclama a autonomia enquanto membro de campo social
específico: o da arte enquanto sua forma teatral. Foi entre religiosos e políticos profissionais de
onde veio uma reação simbólica de restringir o exercício artístico quando ele desafiava o postulado
de crença numa ordem de natureza. O argumento de que o “pecado” da obra era seu uso de uma
imagem sacra é um veículo para procurar sua censura, uma vez que as reações dizem respeito muito
mais a exposição da transexualidade como tema de arte e como “bandeira” política. Ainda mais
porque o que se chama em teoria teatral de “quarta parede”114 estava suspenso em Histórias
Compartilhadas, isto é, o excessivo lembrete de que o que se representava era um retrato do que
acontecia no cotidiano, uma crítica ao real e não a sua simulação, dava ainda mais energia a reação.
Para Pierre Bourdieu (1996), o campo de arte procura para si uma autonomia nos moldes
que se produza um discurso pela sua transcendência. Ou seja, de que o que ali se apresenta não é
passível de ser racionalizado porque é resultado de algo inatingível à consciência do analista. O
objetivo deveria ser apenas senti-la, sem questioná-la, sem formular suas origens. Esse não é o
propósito da peça de Ari Areia, como ficou exposto, mas o contrário, o de mostrar que sua
representação teatral não busca a simulação, a de que o ator não procura interpretar um homem
trans de modo per se. Assim, como argumentou Bourdieu (1998, p. 15), o campo artístico, um
mundo paradoxal que impõe seus “interesses desinteressados”, tem em sua obra de arte regida por
um princípio de existência permeado por aquilo que tem de histórico e de transhistórico. É ele
mesmo um “signo intencional habitado e regulado por alguma outra coisa, da qual ela é também
sintoma”. Essa peça e a reação negativa que causou demonstram as dinâmicas culturais e sociais
do tempo presente brasileiro, no qual o ativismo de homens trans no Ceará dá forma particular.
Nesse sentido, o campo artístico se confunde com o campo do poder, uma vez que as relações
entre eles, como mostrou Bourdieu são figuras de condição de suas produções.
Esse crescente número de produções culturais – filmes, peças de teatro, reportagens
jornalísticas, telenovelas – que tem a figura do homem trans como personagem principal demonstra
duas questões importantes, excedendo também o Ceará. Primeiro, que eles têm movimentado o
novo cenário de visibilidade de histórias trans do nosso tempo presente, de modo a amplificar tal
representação. E segundo, que eles próprios se tornaram sujeitos independentes. Não são mais um
extremo da lesbianidade, nem mesmo uma variação sem muita especificidade da transexualidade
feminina. Essa produção cultural não apenas expõe esse universo, ela o cria e recria. Quando temas,
questões ou problemas sociais são visíveis para serem representados, isso não indica apenas que se
114 “Quarta parede” se refere a perspectiva do espectador diante dum ambiente de representação. Isso corresponde a dizer que ao
permanecer a quarta parede se procura um simulacro na dramatização, a tê-la confundida com o real (Peixoto, 1980). Por exemplo,
a telenovela brasileira A Força do Querer foi um tipo de drama que manteve a “quarta parede”.
141
tornaram relevantes fora dessa imagem a ponto de influenciá-la, ela própria constitui o sujeito que
tenta representar. Não apenas se apresenta elementos, mas também se seleciona, excluindo outros.
Entretanto, há certo pessimismo na crítica a produtos como esse serem veiculados para dar
visibilidade a um grupo marginal. Reina Gossett, Eric Stanley e Johanna Burton (2017, p. xv,
tradução minha) argumentam que embora o hoje possa ser chamado de o “tempo da visibilidade
trans”, este é também o “tempo da violência anti-trans”. Para os autores, haveria na representação
trans uma armadilha. Ao ser produzida através de premissas capitalistas, a sua “positividade” dá
pouca garantia de proteção e promoção de melhores condições de vida para aqueles que não são
brancos e vivem situações de pobreza, isto é, dramas espetacularizados não iriam resolver
problemas econômicos. Os autores não veem, contudo, outros contextos nacionais nos quais essa
representação se dá aliada a setores do Estado-nação, como é o caso que acabei de descrever. A
peça de Ari Areia fora financiada por políticas de governo e foi encenada numa instituição pública.
Isso não quer dizer, contudo, que haja aí necessariamente menos “interesse capitalista”, mas que
ela faz parte de processos de formação estatal. Além disso, o teatro como espaço de performance
inserida no corpo social articula aquilo que Victor Turner (citado por Edith Turner, 1986, p. 10)115
chamou de “exploração do nosso futuro”. Assim como o ritual Ndembu que Turner (2005)
observou, o teatro se trata de uma arena de liminaridade na qual se gera um nível de poder simbólico
que tem uma eficácia própria. Como estabelece, “o teatro é um tipo de ritual vivo, em constante
mudança, que é congruente com a natureza de uma sociedade turbulenta que pode ser caracterizada
mais por devir do que por ser” (Turner, 1986, tradução minha, p. 10). Com seu propósito de mudar
as regras sociais que produzem o estigma para o trânsito de gênero e para outras formas de
corresponder sexo/gênero/desejo, a peça sobre a vida dos homens trans criou um ambiente no
qual essas normas morais foram suspensas através de sua crítica para tentar gerar sua modificação.
2.7. Quando a parte é um todo
Como procurei mostrar nesse capítulo, a transexualidade é uma categoria que reúne uma
considerável gama de objetos que ganham escalas variadas em meio a fluxos globais. Mas esses
fluxos se dão também localmente, no sentido de que assumem escalas internas ao cenário brasileiro
e não apenas deste para outras regiões estrangeiras. Procurei demonstrar como isso acontece
primordialmente através dos circuitos transnacionais da biomedicina como comunidade
profissional e científica. Periódicos, congressos, associações e mídia de massa são alguns desses
canais por meio dos quais a mudança de gênero explicada e produzida na medicina alcança
realidades nacionais tão distintas. Essa tese descreve, portanto, um caso particular dentro de tantos
115 A partir de manuscrito não publicado.
142
outros, mas isso não implica que não se possa gerar uma compreensão etnográfica sobre as
dinâmicas brasileiras. O global somente se torna relevante quando o local o produz dessa forma.
Isso pôde ser compreendido ao se considerar o encontro desses saberes e técnicas de intervenção
com noções locais de diferença e do corpo sexuado. Além disso, estratégias político-culturais
ganham um relevo imprevisto porque a recepção de formas culturais não se dá de maneira passiva
sem transformar aquilo com o que se entra em relação. Assim, não é possível falar em globalização
da transexualidade porque os fluxos que a carregam mundialmente estabelecem outras conexões e
dinâmicas locais que impedem um quadro único do global. Esses fluxos são internos e externos a
um dado contexto e se dão de forma transnacional. A transexualidade não se globaliza, ela flui ou
viaja globalmente encontrando categorias locais e processos sociais de produção dos fatos
científicos que condizem com as questões e a realidade sociocultural da região.
Conforme tentava alcançar interlocutores de agrupamentos divergentes entre si percebia as
tensões e as dinâmicas sociais que os enquadravam na produção desses fluxos próprios. Ao me
preocupar com essas perspectivas em conflito sentia um enorme incômodo porque precisei
aprender a administrar os modos como eu circulava, de uma maneira que eu não prejudicasse a
etnografia que estava tentando realizar com uma observação num universo tão heterogêneo. Assim,
integrei à etnografia uma análise histórica para poder situar o cenário ao longo das demais partes
da tese. Foi possível perceber como o cenário brasileiro, primeiramente estabelecido em São Paulo
– e com menos vigor de registro no Rio de Janeiro – entre as décadas de 1960 e 1970 conformaram
um momento para a identificação de um paciente então novo. As pesquisas historiográficas sobre
a medicina trans são incrivelmente escassas no Brasil, e geralmente pesquisas nas ciências sociais
têm utilizado isoladamente historiografias estrangeiras para posicionar o país. Por isso descrevi um
panorama a partir dos dados que consegui encontrar nas bibliotecas da Universidade de São Paulo,
no Arquivo do GRAB, na Fundação Biblioteca Nacional e em investigações já publicadas. Não foi
possível dar conta de tantos personagens diferentes, como é o caso da atividade intensa no Instituto
Médico-Legal de São Paulo no qual médicos faziam testes físicos e bioquímicos para averiguar o
sexo verdadeiro de mulheres que eram flagradas com passaportes falsos nos aeroportos daquela
região em plena Ditadura Militar, como mostram registros jornalísticos. Influenciados ainda pela
cultura psicanalítica em vigor naquele período, biólogos, urologistas, psiquiatras, endocrinologistas
e cirurgiões plásticos trabalhavam em pesquisas acadêmicas para determinar a origem da
transexualidade. Procurava-se na genética a verdade do sexo, e isso é particularmente importante
de registrar porque essa não é uma atividade presa no passado. Carece-se ainda de observar como
tudo isso tem se desenrolado em outras regiões do país, principalmente com atividade científica
143
própria mais antiga, como é o caso de Salvador e Pará. E como as medicinas trans têm se
estabelecido de modo mais recente para poder a historicização captar as suas transformações.
Ao invés de se restringir a ações coletivas apenas ligadas a serviços de saúde, homens trans
que acompanhei puderam contribuir para a produção de uma peça teatral e de a promover. Nessa
peça monólogo o ator Ari Areia pôde, com uma base brechtiana, articular diferentes elementos das
experiências biográficas desses sujeitos para fazer os espectadores se chocarem com a semelhança
que identificavam entre o drama do sofrimento na imagem sacra cristã de Jesus Cristo e a transição
que vive um homem trans. O paralelo foi criticado tanto por religiosos como por organizações
estatais locais que estabeleceram algum tipo de pressão institucional. Assim, os interlocutores
produziam discursos contra a ideia de raridade clínica que tem reforçado o diagnóstico e a rigidez
das dificuldades de se construir políticas de saúde trans no país e na região.
Saindo desse cenário mais público quero me voltar agora para as trajetórias e itinerários
terapêuticos trans para entender como conformam uma emoção específica para explicar o porquê
sofrem tanto ao buscar concretizar as transições de gênero de um modo físico-moral. E o que é
isso que sentem e que nomeiam de disforia. Durante o decurso do campo, eu percebia que o termo
disforia era constantemente usado e isso me gerou certo incômodo inicial. Mas não se tratava de
uma tática no plano do diagnóstico estratégico simplesmente. Ou seja, se apresentar como
reconhecendo a categoria explicativa dos manuais de saúde para ser classificado e, portanto, acessar
a assistência diferenciada à clínica e/ou à cirurgia. Ao transformar o uso dessa noção os
interlocutores colocam a linguagem dominante contra si mesma para organizar socialmente o que
sentem. Assim, a disforia como uma emoção é o objeto do próximo capítulo.
144
– Capítulo 3 –
Corpo, aflição e adoecimento na linguagem das
emoções
Eu sinto disforia, mas isso não significa que eu sou doente. É só um
sentimento. Por que o que eu sinto com meu corpo é doença, mas quando
uma pessoa que não é trans não gosta do corpo dela, ela é considerada
normal?
– Paulo, 21 anos, entrevista na sua casa.
3.1. Na trilha da etnografia
Era uma manhã nublada, incomum a Fortaleza. Cristóvão estava na recepção do Centro de
Referência LGBT Janaína Dutra (CR) à espera de sua próxima sessão com a psicóloga naquele dia.
Bem jovem, por volta dos vinte anos de idade, aguardava o atendimento sem acompanhante.
Enquanto isso, conversávamos sobre as várias tatuagens que ele tinha pelo corpo, a que elogio a
forma e a criatividade que assumem. Vejo que ele tem perto de seu pescoço um escrito em inglês,
que traduzida livremente seria: “meu corpo é uma cela116”. Apontando para a frase, pondera: “nem
tenho muita disforia, sou de boas com meu corpo”. Não havia lhe perguntado nada sobre seu
corpo ou sobre transexualidade, mas a frase cravada na sua pele poderia denotar o que ele acabara
de negar voluntariamente. Quando a psicóloga o chama, nos despedimos. Dias depois, ele
retornaria ao serviço. Nessa ocasião lhe pergunto se ele se interessaria em participar da pesquisa
com uma entrevista, e se eu poderia lhe acompanhar nas suas idas a serviços de saúde. Dali a alguns
dias ele iria tentar conseguir uma marcação de consulta com um psiquiatra junto ao Centro de
Atenção Psicossocial (CAPs)117 na região central da cidade. Como me explicava, não há vaga para
todo mundo que geralmente procura o serviço. Então, era necessário chegar à sede durante a
madrugada. A estratégia trata-se de ficar numa fila que se forma com outros potenciais usuários na
calçada do prédio antes de sua abertura. Seguindo a ordem, um funcionário costumava distribuir
116 “My body is a cage”.
117 Os CAPs são serviços de saúde local que integram a política de saúde mental do Sistema Único de Saúde (SUS), resultado da
Reforma Psiquiátrica brasileira e crítica ao modelo hospitalocêntrico (Brasil, 2004; Escorel, 1999; Teixeira, 1989). Tem gerência
municipal, embora seja definido com parâmetros federais. A ideia constitutiva do CAPs o inscreve como um serviço comunitário
de atendimento diário, de modo a relacionar os usuários com o convívio social que estão habituados. Em Fortaleza, contaria com
uma equipe de diferentes profissionais de saúde, de psiquiatra a massoterapeutas, envolvendo atividades em grupo, consultas e
distribuição de refeições para pessoas em situação de rua. Essa rede abarca quinze unidades, sendo seis “gerais”, sete “álcool e
drogas” (CAPsad) e dois “infantis” (CAPsi) (Fortaleza, s/d).
145
fichas assim que o serviço abrisse às sete horas da manhã. Havia aí uma ideia de persistência
reiterada comum no cenário do Sistema Único de Saúde (SUS) – uma ideia que responde a uma
“luta” dos usuários diante da precariedade (p. ex. Nascimento e Melo, 2014) – no caso desses
autores, no âmbito da atenção primária, e aqui repetida na atenção à saúde mental. Fora dessas
vagas limitadas, os pacientes em potencial deveriam retornar outro dia para uma nova tentativa. Se
eu quisesse, me confirmaria, poderia acompanhá-lo. Trocamos números de telefone, e ficamos nos
comunicando por mensagens de texto para saber quando iríamos; o que não aconteceu.
Na noite anterior ao dia que deveríamos nos encontrar, Cristóvão me avisaria que não iria
à marcação de consultas porque teve “uma crise”. Não se sentia bem para sair de casa, e, portanto,
havia adiado a ida ao serviço. Pergunto se naquele momento ele estaria melhor, quando me
responde que tinha “depressão” e “síndrome do pânico”. Essa crise não era uma novidade para
ele, a sentia de tempos em tempos, e por isso procuraria o psiquiatra. Aprendera a lidar com ela;
era melhor ficar em casa para não agravar seu estado, apontava. Cristóvão fazia alguma relação,
embora não totalmente, entre sua “crise” e a “disforia” que antes havia me descrito como algo que
não “sentia” ou “tinha junto ao corpo” com frequência. Era como se um estalo ocorresse na sua
vivência do cotidiano que colocaria em destaque sua falta de correspondência entre subjetividade
e corpo. Cristóvão não se considerava um ativista, não tinha posição de liderança e participava
muito raramente de atividades relativas ao ativismo. O uso do termo disforia me causara
estranhamento, mesmo que ele não o trouxesse como doença. Cheguei a achar que essa referência
fosse algo isolado, mas não era.
Alguns dias depois visitei uma médica cirurgiã num grande hospital público da cidade para
conversarmos sobre sua experiência de atendimento com pacientes trans. Enquanto a esperava
terminar suas consultas daquela tarde, alguém olhava em minha direção também sentado no
corredor à espera de sua consulta. Ele iria ali me questionar se eu seria também um homem trans.
Ele me fitava já não sei se por quanto tempo até que, ao cruzarmos olhares, ele vem em minha
direção. Seu sorriso largo o acompanha quando se apresenta, e muito rapidamente já está sentado
ao meu lado no banco antes vazio. Estávamos, afinal de contas, num lugar voltado à saúde
ginecológica. Esse espaço comum às mulheres o fizera pensar que os homens desacompanhados
seriam trans. Antes de perguntar se eu seria mesmo trans, nossa conversa se iniciara com ele
puxando assunto sobre estarmos nesse serviço. Contava-me que dias antes havia conhecido outro
rapaz ali mesmo, esse trans, que havia lhe explicado sobre o que era transexualidade. “Acho que
sou transexual, como aquele macho”, me dizia. Sem que eu o indagasse, me contou ainda que
estaria ali para ver uma “doutora” para outra “coisa”. Teve uma filha, e precisava fazer exames
ginecológicos de rotina. Ter conhecido o tal rapaz lhe traz novos sentidos sobre o que identificava
146
agora como angústias e dúvidas, achava que talvez o que sentia fosse “a disforia”. Não tinha muita
claridade sobre o que isso significava, falava entre pergunta e afirmação, a partir dos termos que
ouvira rapidamente – talvez tenha pesquisado na internet. Percebi que ele esperava, inicialmente,
que eu lhe desse mais informações sobre o que ele pensava ser algo compartilhado entre nós. Por
fim, ele mesmo me dizia ter decidido que iria falar para a médica, já que “o outro” havia sido
atendido ali também, a profissional “deve dizer algo”, concluiu. Roberval, de aparência muito
jovem, era masculino no seu modo de falar e andar. Embora estivesse aparentemente animado, se
mostrava aflito e gostaria de sair daquele estado de incerteza. Ele me dizia que queria se entender.
Nossa conversa intensa e imprevisível termina com ele se despedindo de mim ao chegar sua vez
de ser atendido, agora quando o corredor está quase vazio e sinto uma sensação de já estar ali há
bastante tempo.
Tanto Roberval como Cristóvão me falaram da “disforia” em contextos de serviços de
saúde, e isso, inferia, era o desencadeador que os fazia usar um termo tão caro a linguagem
biomédica para explicar suas experiências. Contudo, isso também se mostrou ocorrente noutras
situações e com outros interlocutores. Muitos dias depois desses dois encontros, visitava a casa de
um outro interlocutor, Rosimário, de 24 anos. Quando cheguei ele estava procurando seu bainder.
Eu observaria isso acontecer inúmeras vezes também com outros rapazes ao longo do nosso
convívio quando os visitei em suas casas. A procura do bainder antes de sair de casa implicava a
sua retirada tão logo se chegasse no ambiente íntimo da moradia, demonstrando o elemento de
público que essa roupa se atrela. Ele precisava ir ao mercado da esquina naquela hora e não iria sair
com o volume aparente dos seus intrusos – modo habitual de se referir às mamas. Para minha
surpresa, mesmo achando o bainder decide sair de casa sem usá-lo. Afinal de contas, me contara,
não estava com muita disforia naqueles dias, o que ainda demonstra que esse sentimento era
mensurável em quantidades diversas. A forma como esse desconforto era sentido poderia ser,
então, administrado a depender de sua intensidade. Rosimário era um ativista com certa
experiência, e o vi um sem número de vezes discursando sobre não ser anormal. A partir do nosso
convívio eu já sabia àquela altura que ele não se considerava doente, e se opunha à classificação
corrente da transexualidade como uma desordem mental passível de diagnóstico e protocolos.
Assim, de modo crescente fiquei absorto diante dos usos do termo “disforia”, o qual passei
a procurar observar tanto aquilo que isso implicaria ao cuidado em saúde como às práticas e aos
processos de subjetivação que dão forma e são construídos pelas experiências sociais. Mas não sem
alguma resistência inicial da minha parte. Ao reler meu diário, ainda durante o trabalho de campo,
notei que essa referência havia sido feita em muitas ocasiões anteriores a esses lampejos
etnográficos que acabo de descrever. Aparentemente, eu não dera muita importância a isso. Havia
147
rejeitado me ater ao que “sentir-se disfórico” poderia significar por entender naquele momento que
isso era sinônimo terminantemente de patologização. A recusa, agora infiro, foi decorrente do meu
espanto quanto ao que entendia ser uma contradição. Quando estava entre interlocutores sem
muita ou nenhuma carreira de militância atribuía à constituição dessa linguagem uma ausência de
politização das identidades diante da corrente medicalização da transexualidade. Nessa lógica eu
me perguntava: como poderiam fazer uso dessa categoria dando forma ao discurso dominante que
rege o diagnóstico e que tem na sua origem uma concepção de desordem mental? Quando ativistas
de larga educação formal ou experientes na militância também faziam referência a sentir a disforia
comecei a perceber que isso tinha a ver com o sentir emoções e não exatamente com identidades
num contexto de resistência política, isto é, dizer que sente disforia e agir concomitante a esse
sentimento era um meio através do qual se dava forma a experiências incorporadas de sofrimento.
Isso me levou a questionar, portanto, a classificação que eu mesmo fizera separando as pessoas
entre politizadas e despolitizadas. Diante disso, adicionei àquela, outra questão: o que significaria e
implicaria para suas vidas esse tipo de ressignificação? Se eu estava sendo movido por um interesse
e uma fidelidade etnográfica – com todas as ponderações possíveis diante de ilusões românticas de
objetividade e representação, as quais já foram discutidas no capítulo 1 –, seria preciso coadunar,
em uma só tarefa, o entendimento dessa minha recusa inicial e o que essas rearrumações políticas
e culturais acarretavam nas vidas observadas. Mais do que isso, seria necessário encarar a
contradição e os conflitos como constituidores e não como um problema etnográfico ou teórico
às explicações descritivas às quais me proponho.
Estava posto pela minha leitura um limite pré-definido para a ressignificação de discursos,
tecnologias e práticas que constituem as relações de poder, e, que nesse caso, se refere a influência
definidora do que é o ser humano realizada pela biomedicina ao definir sujeitos diagnosticáveis.
Algo em muito informado pela minha preocupação, anterior ao trabalho de campo, de contribuir
à despatologização do gênero, já referida por uma gama considerável de cientistas sociais e ativistas
mundialmente (cf. Stryker, 1994; Missé e Coll-Planas, 2010; Bento e Pelúcio, 2012b; Chiang, 2018)
– a isso retornarei melhor adiante. Eu me indagava se uma descrição do “se sentir disfórico” não
seria corroborar a patologização que eu e o próprio campo estávamos a disputar com outros
saberes. Tendo isso em mente comecei a refletir que a situação na qual havia me movimentado, a
de rejeitar práticas sociais aparentemente contraditórias que se expostas poderiam ser vistas como
negativas a investimentos políticos do grupo, estava dificultando – ou melhor, impedindo – a minha
observação sobre o objeto que tanto no campo da interação observável como no discurso
normativizado exibia a questão da “disforia” como uma emoção partícipe da vida diária e não como
um problema político a ser extirpado. A minha reflexão estava perpassada pela preocupação com
148
os efeitos da minha atuação como pesquisador que acaba, embora de maneiras diversas,
participante das relações sociais em que os grupos se engajam.
Percebi mais tarde que essa quase recusa etnográfica esteve alimentada pela politização do
universo social que me impactou inicialmente nas inteirezas dos métodos e na abordagem do
objeto. Eunice Durham (1986) apontou há décadas que esse é um problema enfrentado por
cientistas sociais, principalmente na antropologia, conforme se cobra – tanto de interlocutores
como de colegas de profissão – uma “responsabilidade social” dos antropólogos, já que lidamos
desde sempre com agrupamentos marginais na nossa própria sociedade. É possível perceber que
as questões apontadas por Durham não são de modo algum limitadas àquelas décadas, cujas
disputas políticas encharcadas com a redemocratização se impunham às ciências sociais no país. As
cobranças pelo “retorno dos resultados” se dão de muitas formas no presente, seja na procura da
aplicabilidade do conhecimento antropológico que tanto ela como Ruth Cardoso (1986) discutiram,
seja na atração que o cenário do ensino superior e da intelectualidade pode fornecer às disputas nas
quais os agentes sociais estão situados. A crítica de Cardoso ainda perpassava a observação de que
esse engajamento com os objetos de investigação não impediu que os pesquisadores continuassem
a reproduzir um positivismo que, fascinado pela empiria, não dava nenhum espaço a uma reflexão
crítica sobre a epistemologia dos métodos e sobre a politização dos cientistas.
Assim, cheguei à conclusão que procurar uma espécie de purismo epistêmico na vida social
observada – que a rejeição total da linguagem biomédica faria aludir –, não me levaria a entender
como os interlocutores se relacionam com um misto, confuso e contraditório, entre o não se ver
como doente e a “assimilação” de elementos de parte do que diz a biomedicina sobre uma categoria
de doença/desordem diagnosticável e tratável, isto é, essa recusa me impediria de entender as
experiências de sofrimento que estavam sendo observadas em campo e das quais os interlocutores
queriam tanto falar. Mas foram os próprios interlocutores que me tranquilizaram quanto a isso,
uma vez que respondiam às minhas questões sem muito alarde sobre o assunto, e dizendo com um
certo ar de obviedade desconcertante que essa era uma questão simples: “a disforia que sinto não
é doença e pronto”. Primeiramente, coube deixar que o campo trilhasse o caminho, de modo que
o ideal de contribuir à despatologização não impedisse de entender o que significaria e organizaria
o sentir-se disfórico aqui posto para além de concordar ou não com a atual patologia. Mesmo que
isso pareça contraditório numa consideração inicial, cabe perceber que essas pessoas não se viam
replicando noções de patologia que a linguagem dominante da biomedicina cravou nos (e foi
cravada pelos) manuais, na imaginação dos profissionais de saúde e nos protocolos admissionais
de cuidado. Não estou me referindo a reprodução de uma estratégia para ingressar em serviços de
saúde quando se diz o que os médicos e outros profissionais de acesso queriam ouvir. Embora isso
149
aconteça em determinadas situações – e não sem consequências subjetivas –, aludo agora à
capilaridade de experiências de sofrimento que a transição de gênero e processos sociais outros de
adoecimento (ou não) podem constituir e que são recortados simbolicamente pela linguagem das
emoções.
Neste, que é um de seus trabalhos mais recentes, Veena Das (2015, p. 2-3) se preocupa com
um caráter específico do sofrimento: a sua qualidade de ordinário, de comuníssimo; algo que é tão
comum que se mistura com a vivência de sentidos afetuosamente amorosos, doces, de intimidade
reconfortante. Não é um sofrimento que seja suficientemente dramático para ser compelido à
atenção generalizada, mas que é atuante nas vidas das pessoas. Nesse sentido, a sua absorção no
cotidiano não implica a ausência de sentimentos de sufocamento e de um certo grau de
“pressentimento”. A autora propõe tratar disso a partir do estudo da aflição, esse senso do sofrer
que para ela corresponde ao “ambiente” e a “sensibilidades” que não se referem necessariamente
a figura divina, mas que tratam do sentir-se como num abismo quase fatalista porque “parece tirar
a capacidade de muitos de engajarem-se na vida”. Das aponta, ainda, para a importância das
memórias que carregam consigo grande violência ou sofrimento, igualmente operantes na
construção de posturas resilientes. Por não ser as memórias totalmente amalhoados de sofrer é que
ela se pergunta: “como os movimentos entre esses diferentes limiares da vida carregam as marcas
do sofrimento que se suporta, das traições, bem como pequenos atos de bondade que tornaram
possível para alguns sobreviverem enquanto outros morrem?” (Das, 2015, p. 2, tradução minha).
Isso porque a autora recusa se fiar numa posição isolada entre, ou entender, as “experiências
subjetivas do sofrimento” ou as condições economicamente objetivas que são comumente trazidas
como o filtro que definiria suas escalas ou hesitações. As colocações de Veena Das a respeito do
sofrimento são particularmente interessantes para a descrição que objetivo nesse capítulo.
Mesmo que Fortaleza detenha, como vimos na Introdução, uma crescente desigualdade
socioeconômica e os interlocutores trans aqui reunidos sejam provenientes de situações variadas
de pobreza, certamente não é a capital da Índia, Déli, região da etnografia realizada pela
antropóloga. Assim, o contexto de pobreza indiano que a perpassa é bem diferente do brasileiro
de modo geral e do cearense em particular. Mas o caractere de “ordinariedade” do sofrimento, e
sua produção não alijada de momentos e situações de felicidade, é potente para descrever o cenário
no qual homens trans vivem. É isso que quero reter de sua análise. Homens trans não ocupam a
centralidade dos casos de violência letal da capital Fortaleza, como observei em campo e como
demonstra o último relatório publicado pelo CR (2017) a partir de uma pesquisa junto a delegacias
de polícia e outros órgãos judiciais. Essa “informação” também circulava e era produzida entre
ativistas trans, gays e lésbicas, de modo que se procurava qualificar narrativas de dor diante dos
150
setores estatais e das pessoas de forma ampla. Os interlocutores que acompanhei, embora
assumamos a máxima de que “não morram mais”, como ouvi reiteradamente entre disputas
retóricas de militantes, conformam trajetórias – inclusive, memoriais – de sofrimento. A sensação
de abismo, de deslocamento insuportável da vida possível esteve presente em suas biografias,
produzido também pela ausência de acesso à serviços regulares de saúde, e principalmente – o que
é base para aquele – por estarem em contextos de pobreza com a falta de uma renda mínima.
A capacidade discursiva do termo disforia é transformada para indicar não apenas questões
encobertas quanto às incorporações da hegemonia da biomedicina, mas também às experiências de
sofrimento que são produzidas de modo paralelizado. Era no seio da intimidade da vida cotidiana
que homens trans se diziam sentirem-se disfóricos, e não apenas nos corredores ou salas de espera
dos serviços ou dentro dos consultórios. Aliás, os dois contextos apresentavam sentidos diferentes
para o mesmo vocábulo. Com isso, aos poucos fui observando que esse compartilhamento de um
sentido diferenciado à disforia entre diferentes círculos de indivíduos e contextos demonstra ainda
como os sujeitos constroem, vivem e transformam suas vidas a partir do sofrimento que o
reposicionamento social de gênero pode produzir de modo unido ou paralelo a notações de
assujeitamento na vida social. Há aí um conjunto de emoções que dão um sentido e uma orientação
política diante da medicalização da transexualidade, e dos problemas que se defrontam com o
rearranjo posicional nas relações sociais. Mas não apenas isso, o sentido de sentir a disforia diz
respeito a algo que extrapola a concepção médica porque a coloca noutra zona de significado em
relação ao corpo. Assim, não se trata apenas de ver os sentidos como também entender o que
organiza. Isso indica um conjunto de “transações entre corpo e linguagem”, para usar uma
expressão de Veena Das (2007, p. 38), que, ao trabalhar a explicação e o reconhecimento do que
vive e sente envolve discurso e práticas sociais por meio do corpo.
É esse o meu interesse nesse capítulo, o de mostrar como tais questões participam da
subjetivação de homens trans e das formas como vivem e veem o mundo no qual estão inseridos.
Essa é uma descrição de como pessoas concretas modificaram a ideia de disforia de gênero, dando
lugares inesperados a ela ao transformar tanto a classificação biomédica quanto diversificando a
politização das vivências trans, isto é, o objetivo principal desse capítulo trata de descrever o que
significa e o que produz socialmente o sentir-se disfórico e suas condições sociais e simbólicas. Isso
não silencia relações políticas, como temia no início da pesquisa; na verdade, as expõe, uma vez
que considera como se constitui uma linguagem capaz de alcançar experiências de sofrimento que
evidencia a formação imbrincada de subjetividades (a visão e as estratégias de si mesmo diante da
coletividade), a atuação de processos de subjetivação (a formação de si por dinâmicas
socioculturais) e de subjetificação (a sujeição/dominação política de si por processos sociais). E
151
por isso elabora um movimento que coloca o biológico, ou a materialidade manejável do corpo,
no centro de uma perspectiva política que não procura por origens bioquímicas da transexualidade
– como tem se concentrado vários pesquisadores no campo das ciências naturais –, mas explica os
corpos como também entidades biológicas que recebem investimentos sociais. Aqui, o corpo é
interpretado e lidado numa linguagem das emoções que retira a aflição de sua qualidade negativa,
ao que me refiro enquanto mote à patologização, e a coloca como parte de um processo social de
mudança de gênero. Contudo, isso não impede processos de medicalização, mas os recentraliza.
Assim, se a transexualidade não é vista como uma doença, tampouco se abstêm de procurar a
regulação ou a assistência da medicina por causa das mudanças corporais que pode implicar no
campo da transição e da apelação explicativa que oferece.
Os profissionais que aplicam as categorias dos manuais de saúde e aqueles que entram nessa
seara como pacientes estão a todo momento elaborando os sentidos e dando vida às suas categorias
diagnósticas ao organizarem, elaborarem e/ou demandarem estrategicamente sua aplicação. Isso
porque os manuais ao serem objetos técnicos podem adquirir alta relevância social. Como
colocaram Marcel Mauss e Henri Huber (2003 [1904]) a respeito da magia, a técnica tem uma força
essencialmente coletiva. Por isso mesmo é necessário observar como ele se replica na vida social,
de modo a seguir como seus usos o extrapolam e o transbordam. Assim, a disforia de gênero perde
seu arcabouço de objeto, no vocabulário de Latour (1994), resultado de um processo de purificação
dentro do mundo científico ocidental que separa tudo em termos pretensamente puros, entidades
isoláveis em tipos específicos, materiais de natureza ou de cultura. Nesse sentido, a reelaboração
da disforia por homens trans – e por travestis e mulheres transexuais – se dá num contexto de
contato direto com a medicalização da transexualidade, e por consequência de seus sentimentos
em relação a seus corpos. Os manuais de saúde, os médicos e todos aqueles envolvidos no âmbito
da saúde trans – objetos, instâncias institucionais, pessoas concretas, relações –, isto é, no universo
da transexualidade, apresentam, produzem, rejeitam e reveem a categoria da disforia de gênero de
maneira totalmente imbrincada.
Esse capítulo foi dividido em duas partes. Na primeira, que contempla dois itens, discuto
como a categoria disforia de gênero é concebida pelo manual de saúde mental da Associação
Americana de Psiquiatria a partir da consideração local entre médicos de que ela não seria uma
patologização da transexualidade. Levando a discussão a revisitar como se erigiu as críticas e a
concepção de “patologização” do trânsito entre os gêneros entre acadêmicos e ativistas, tanto
dentro como fora do Brasil. Na segunda parte, que compreende também dois itens, descrevo
etnograficamente como homens trans apreendem e utilizam linguisticamente o termo disforia para
se referir a um conjunto de emoções vividas em processos de aflição a partir de itinerários
152
terapêuticos vividos no âmbito de processos diversos de adoecimento. Ressignificando um termo
apontado como um indicativo de doença mental, mas o reelaborando noutro prisma, demonstro
como se constitui uma categoria para explicar e narrar experiências de dor e sofrimento ligadas à
transição de gênero e ao cuidado em saúde quando se expõe a transexualidade como um marcador
social da diferença. A proposta analítica, portanto, é de não isolar a concepção da “disforia”
enquanto um condensamento de sentimentos sem relação com processos de cura e de busca por
assistência biomédica e psi para transicionar. Assim, como a disforia pode ser compreendida como
uma emoção socialmente circunscrita? Ao olharmos para as experiências próprias dos
interlocutores, o que acontece com a vivência dessa emoção, por exemplo, quando um homem
trans acometido com o vírus do zika precisa se automedicar em casa, evitando a ida ao pronto-
socorro? Ou, ainda, como itinerários terapêuticos118 de alguém que vive com fibromialgia ganha
outros contornos ao se considerar dores diversas que precisam, a seu modo, igualmente de
explicações para cenários quase inexplicáveis?
3.2. Sob a ciência de um manual de saúde
Para um jovem psiquiatra, Givanaldo, de 29 anos, com quem conversei num grande
hospital da região metropolitana de Fortaleza, a mudança de concepção da transexualidade
enquanto um “transtorno de identidade de gênero” para uma “disforia de gênero” representaria
um avanço médico para longe da patologia. Sua fala explícita nesse sentido indica haver uma
heterogeneidade de ideias que circulavam no campo profissional da saúde que tive contato na
etnografia:
Hoje em dia a minha ideia é de que a questão transexual não seja uma doença. E aí eu
acho que o DSM[-V] foi muito feliz nessa questão, porque mudou é.... o foco, porque
antes era transtorno de identidade de gênero. Ou seja, falava que se identificar com o
gênero era um transtorno. Hoje em dia é disforia de gênero, dizendo que o sofrimento
causado pela identificação é que é um transtorno que precisa de tratamento. Então, eu
acho que nesse ponto eu concordo com o DSM[-V], acho que se o transexual ele sofre
muito com aquela situação, aquilo tem um prejuízo na qualidade de vida dele, o
sofrimento significativo, eu acho.... Então, é...., o foco é no sofrimento que a pessoa tem
com essa identificação, então o diagnóstico seria baseado nisso, se há um sofrimento
118 Embora geralmente atribuída a Marc Augé, o termo itinerário terapêutico é de uso difuso tanto na França como no Brasil e tem
uma autoria de difícil rastreio genealógico que remonta pelo menos aos anos 1970. No país, Andréa Loyola primeiro utilizou o
conceito em 1983 para descrever os modos de estabelecimento de cura entre diferentes sistemas de saúde por pessoas que pendiam
entre legitimar as explicações religiosas e as científicas da biomedicina moderna. Paulo César Alves e Iara Souza (1999) usaram o
termo novamente com um referencial teórico para falar de escolha de pacientes, analisando suas representações sobre doenças e
cura, sem atrelar uma autoria à expressão, mas os ligando aos conceitos elucubrados por Gilberto Velho como trajetórias, projetos,
e campo de possibilidades. Talvez, de maior popularidade esteja um artigo escrito por Jean Langdon (1994) no qual a autora usa o
conceito para tratar da relação entre sistemas de saúde também diversos, o indígena Siona e do estado nacional que os indígenas
entraram em contato na América do Sul. Augé (1986, p. 85, tradução minha) se refere especificamente a “procedimentos
terapêuticos” com um pano de fundo processual para pensar as formas que se lida com as doenças. Nenhuma das três primeiras
publicações referenciam Augé. De todo modo, construo aqui uma percepção do conceito à luz dessas publicações, entendendo que
itinerários terapêuticos se referem a estratégias e trajetórias construídas por pessoas que estão implicadas em seus contextos
socioculturais na busca de atenção e de cuidado dentro do escopo da saúde em geral e não apenas da resolução e percepção de
adoecimentos, acionando agentes, saberes, práticas, sistemas de saúde diversos.
153
significativo então precisaria de tratamento. E o tratamento seria o acompanhamento
multiprofissional e, eventualmente, se fosse desejado, a cirurgia de transição (Genivaldo,
em entrevista em 2018).
A alteração que o médico enuncia fora admitida em 2013 pela Associação de Psiquiatria
Americana (APA) na quinta atualização de seu manual diagnóstico, o DSM. Três anos antes, em
2010, lançavam-se as formulações para isso e, em 2008, canais já eram abertos para o recebimento
de propostas de modificação. Embora outros termos, como incongruência de gênero, tenham sido
alçados como substitutos, o termo disforia de gênero foi o escolhido no final da revisão (Tosh,
2016). Essa mudança, na época em que foi veiculada, foi sugerida que estabeleceria um abandono
da patologia. Alguns pesquisadores indicaram, contudo, que ideias sobre normalidade de gênero e
de sexualidade continuaram operantes no manual (Tosh, 2016; Bento, 2016a; Maia, 2019). Já
outros, em contrapartida, divergem, como Eric Plemons (2017), que argumenta que a mudança
para disforia de gênero não patologizaria “o desejo para alterar características sexuais corporais
como transexualismo fizera”, nem patologizaria a “identidade como o diagnóstico interventor de
transtorno de identidade de gênero fizera”. Segundo o antropólogo, “a disforia de gênero
reconhece que viver como uma pessoa de gênero não-conforme [gender-nonconforming]119 pode causar
angústia clinicamente relevante para algumas pessoas” (Plemons, p. 102, tradução minha). É
preciso considerar ainda que os manuais não são recebidos da mesma maneira universalmente, e
seus usos locais têm o potencial de diferenciar a reprodução de práticas clínicas que patologizem
ou medicalizem120 – como demonstrarei no capítulo 6, essas mudanças mais recentes abriram
espaço para que médicos e médicas vissem a transexualidade de outra maneira.
Tem havido, assim, pontos de contenção e conflito altamente engajados entre acadêmicos
e ativistas sobre terminologias diagnósticas e a existência de diagnósticos relacionados a gênero. O
consenso recai na ideia de que há alguma dimensão da angústia nas experiências transexuais,
embora os sentimentos não sejam comumente eleitos como uma dimensão tão relevante para
entender a medicalização. A presença de tal definição num manual de saúde e suas descrições que
replicam ideias de masculino e feminino revelariam, assim, à patologização continuada. Seguindo a
119 “Gênero não-conforme” é uma categoria que tem crescido bastante no cenário estadunidense como algo que não está preso às
definições biomédicas da transexualidade. É uma forma guarda-chuva de se referir a quem se movimenta desde categorias
assinaladas de acordo com a biologia do nascimento. Isto pode se referir também a um “trânsito permanente” segundo o qual um
indivíduo cobra a não fixação em performances masculinas ou femininas e procura se colocar de maneira mais neutra na
identificação de gênero, tendo como pano de fundo uma maior fidelidade do eu. Tey Meadow (2018) estudou a intensificação dessa
categoria entre famílias com crianças trans. Numa de suas palestras, a qual eu atendi na Escola de Sociologia da UA, Meadow
demonstrara que essa era também uma identificação a qual ela mesma se aproximava. No cenário brasileiro há várias categorias que
realizam esse movimento, como nos mostrou há décadas por ex. a etnografia de Perlongher (1986).
120 Entendo aqui que medicalização não é o mesmo que patologização. A medicalização é todo processo de transformação de algo
em objeto de intervenção médica – clínica, cirúrgica, entre outras –, e patologização, embora possa estar aí contida, se refere
especificamente a transformação desse algo em doença, desordem ou síndrome com cura e/ou tratamento. Embora esses dois
termos sejam constantemente trazidos como sinônimos, é preciso diferenciá-los para perceber que pacientes trans – e médicos e
cientistas que se engajam nesse campo – mesmo que não aceitem a definição diagnóstica, continuam dentro de processos de
medicalização.
154
clarividência do psiquiatra em falar do assunto de maneira tão direta no campo, o que muito me
espantou num primeiro momento, quero entender nessa primeira parte do capítulo o elemento
“desconforto” – que remete a angústia – presente na diagnose da transexualidade que ganha relevo
entre o DSM-4 e o DSM-5 e que animara diferentes interações no campo de pesquisa para entender
como atua a presença crescente da descrição emocional nos manuais. Cabe unir a isso uma
compreensão das disputas dos próprios cientistas em torno desses guias.
Allan Frances, um dos médicos líderes da quarta revisão do DSM, escrevia no jornal The
New York Times, em maio de 2012, que essa então nova edição estava implicada em problemas de
ordem disciplinar, aferindo que a psiquiatria não poderia ser a única disciplina a deter um controle
sobre o manual, uma vez que seu uso e seus efeitos ultrapassam-na ao atingir diferentes áreas e
profissionais da saúde. Seu artigo é apenas uma pequena fração das proporções das críticas e do
escopo multidimensional que o manual tem atingido, dentro de um campo de tensionamentos
amplos. Contudo, antes de adentrar nas críticas que se erigiram acerca da medicalização da
transexualidade, cabe entender, em si mesmos, quais são os princípios de referência aos quais
Givanaldo alude ao elaborar que não haveria entendimento de doença numa concepção cujo foco
estaria agora recaído no “desconforto” e não mais no gênero. Cabe entender como acontece e o
que significa o deslocamento da diagnose da identidade para o sofrimento. Para isso, examinar
comparativamente as diferentes versões e edições do DSM apresenta a oportunidade de entender
as mudanças às quais foi submetido o manual, principalmente entre a quarta e a quinta edições
cujas definições da transexualidade ganharam as transformações mais recentes e pretensamente
mais radicais.
As modificações entre as versões do DSM, poder-se-ia considerar, estão baseadas nos
princípios adjacentes à ideia de “avanço”, contida na interpretação do psiquiatra, próprias de uma
espécie de resultado da conquista da racionalidade da ciência. Algo que também alimenta a
justificativa da proliferação de “desordens”, “doenças” e “transtornos” mentais presentes de modo
inédito ou revisado a cada nova publicação. Isso é perceptível até mesmo no crescimento de páginas
através das sete versões121, de 145 às 992 páginas. Cada nova edição ganhou dos médicos do período
o clamor de ser mais avançada, mais científica que a anterior. Essa Babel psiquiátrica é apresentada
como o fruto de novos tempos e de arrazoados mais precisos e menos viciosos. Essa visão
científica de progresso é o resultado de uma virada proporcionada pelo DSM-III, em 1980, no qual
os seus revisores clamaram para si a tarefa de defesa contra um sentimento antipsiquiatria geral que
121 Sem mencionar as reimpressões que trouxeram diferenças, a terceira edição teve duas versões, a primeira, DSM-III (1980) e a
revisada, o DSM-III-R (1987). A quarta edição também recebeu (DSM-IV-TR), em 2000, uma revisão, dando informações extras e
procurando tornar “mais claros” conceitos, de modo a se alinhar mais explicitamente ao Código Internacional de Doenças (CID)
da Organização Mundial da Saúde (OMS) (APA, 2000b, online).
155
tomou conta do Ocidente após a Segunda Guerra Mundial122 (Decker, 2013). As duas versões
anteriores do DSM tinham status e objetivos diferentes dos que se concretizaram a partir da terceira
publicação.
Na Tabela 4, a seguir, comparo as diferentes versões e edições do DSM, acompanhando a
mudança de categorização diagnóstica referente a sexualidade e gênero, seja de maneira unida ou
separada. Têm-se argumentado que a noção de transexualidade estaria “invisível” antes do DSM-
III (cf. Prosser, 1998a,1998b; Califa, 1997), contudo, quero argumentar que ela faz mais sentido a
partir de 1980 quando se materializa com nome próprio. É ao procurar uma especificação
generalizada para a diagnose cientificamente balizada que gênero e sexualidade se separam de vez
no manual, reproduzindo tais instâncias como entidades separadas da vida humana, orientação que
esteve no bojo do movimento homossexual do mesmo período e segundo o qual o desejo erótico
não definiria a identidade de gênero de alguém, isto é, ser homem e gay não seria consequentemente
uma equação que transformaria esse homem em mulher (Weston, 1991; Valentine, 2007). Algo que
o movimento trans irá repetir mais tarde (a isso voltarei no capítulo 5). A entrada da transexualidade
no DSM se dá, de maneira propriamente dita, portanto, em sua terceira edição como
“transexualismo” enquanto um “transtorno psicossexual” (APA, 1980, p. 261) muito
posteriormente às discussões médicas em torno da categoria que ocuparam páginas incontáveis de
periódicos e congressos científicos (Meyerowitz, 2002; Denny, 2002). No DSM-II o travestismo
era trazido como um “desvio sexual” no singular, demonstrando a mudança para “transtorno de
identidade de gênero”, embora mantivesse quase inalterados os mesmos critérios de concepção em
direção a algo tratável. Para realizar o diagnóstico, se concebia no DSM-III cinco critérios que iriam
se perpetuar, em princípio, até o manual atual:
A. Um senso de desconforto e inadequação sobre o próprio sexo anatômico; B. Desejo
de se livrar da própria genitália e de viver como um membro do outro sexo; C. A
perturbação tem sido contínua (não contida a períodos de estresse) por pelo menos dois
anos; D. Ausência de anormalidade genética ou intersexual. E. Não está relacionado a
outra desordem mental, tal como Esquizofrenia (APA, 1968, p. 263-4, tradução minha).
Como ainda vemos na Tabela 4, a versão revisada da terceira edição traz uma mudança
considerável, colocando um peso definidor na infância como prova do diagnóstico. É significativo,
portanto, a transposição da desordem de um capítulo autônomo, como estava na terceira versão
original, para ocupar uma subclasse de um capítulo sobre a infância, junto de outros “transtornos”
como o de hiperatividade. É possível fazer um paralelo entre as teorias psicanalíticas já aludidas no
capítulo anterior, segundo as quais a infância seria o momento por meio do qual se poderia traçar
122 Hannah Decker (2013) oferece uma historiografia a esse respeito, ao apontar figuras importantes do começo do século XX e o
cenário em transformação entre as décadas posteriores a Segunda Guerra Mundial até a década de 1970 que deram as condições
sociais para que o DSM-III fosse editado posteriormente.
156
Tabela 4 – Classificação diagnóstica relativa à transexualidade nas edições do DSM (1952-2013)
CATEGORIZAÇÃO CATEGORIZAÇÃO
EDIÇÃO/VERSÃO ANO CÓDIGO DIAGNÓSTICOS
GERAL ESPECÍFICA
DSM-I 1952 000-X63 Desvios Sexuais N/A123 Homossexualidade, Pedofilia, Fetichismo, Sadismo Sexual
(Estupro, Assédio Sexual e Mutilação) e Travestismo.124
DSM-II 1968 300-309 Transtornos de Desvios Sexuais Homossexualidade, Fetichismo, Pedofilia, Travestismo,
Personalidade e outros Exibicionismo, Voyeurismo, Sadismo, Masoquismo, Outros
transtornos mentais não- Desvios Sexuais, Desvio Sexual Inespecífico.
psicóticos
DSM-III 1980 302.5x Transtornos psicossexuais Transexualismo Transtorno de Identidade de Gênero; Transtorno de
Identidade de Gênero na Infância.
DSM-III-R 1987 302.60 Transtornos Usualmente Transtorno de Transtorno de Identidade de Gênero na Infância;
Evidenciados Identidade de Gênero Transexualismo; Transtorno de Identidade de Gênero de Tipo
Primeiramente na Infância não-transexual e Transtorno de Identidade de Gênero Não
ou Adolescência Específico.
DSM-IV 1994 302.6 Transtornos Sexuais e de Transtorno de Transtorno de Identidade de Gênero em Crianças; Transtorno
Identidade de Gênero Identidade de Gênero de Identidade de Gênero em Adolescentes e Adultos.
DSM-IV-TR 2000 302.6 Transtornos Sexuais e de Transtorno de Transtorno de Identidade de Gênero em Crianças; Transtorno
Identidade de Gênero Identidade de Gênero de Identidade de Gênero em Adolescentes e Adultos.
DSM-V 2013 302.6 Disforia de Gênero Disforia de Gênero Disforia de Gênero em Crianças; Disforia de Gênero em
Adolescentes e Adultos; Outra Disforia de Gênero
Especificada e Disforia de Gênero Não Especificada.
123 “N/A” se refere a “Nenhuma”.
124 Esses termos foram apenas citados no DSM-I, sem ocupar um diagnóstico com códigos e características claramente específicos.
157
biograficamente o “transtorno” de maneira profunda porque seria ali o espaço de formação do
sujeito. Daí saem outros diagnósticos, um específico ao adolescente que atingiu a puberdade,
“transexualismo”, e outro para adultos, chamado de “transtorno de identidade de gênero de tipo
não-transexual”, produzindo de maneira clara a diferença entre o “transexual de verdade” e os
ilusórios (APA, DSM-III-R, 1987, pp. 75-6).
Essas mudanças se alinham às transformações sofridas por todas as classificações
diagnósticas do DSM depois das duas primeiras versões do manual que se devem, segundo Steeves
Demazeux e Patrick Singy (2015), ao domínio da nosologia que antes era menos específica. Os
primeiros fundadores da psiquiatria estadunidense, no começo do século XX, não apreciavam um
aspecto mais formal do diagnóstico, o considerando rígido demais e facilmente sujeito a reificação.
Na década de 1960, por outro lado, já na segunda edição, o manual vai em direção a uma
padronização. Nesse período, pesquisas iniciais em psicofarmacologia, genética, epidemiologia e
neurociência ganham proeminência, levando a psiquiatria dos Estados Unidos a um papel de maior
relevo internacional ao abraçar um viés crescentemente positivista para melhor se adequar às
ciências então em consolidação (Castel, Castel e Lovell, 1982 apud Demazeux, 2015). As críticas
elaboradas pelos médicos engajados no primeiro manual sobre o segundo identificavam que a nova
classificação estaria sacrificando a simplicidade.
Assim, a mudança que o terceiro vórtice do DSM ocasionou não teria sido uma questão
teórica, segundo os seus “arquitetos”. Para Steeves Demazeux (2015) isso se deveu a uma “audácia
metodológica” no clamor da cientificidade:
Sua estratégia principal foi adotar uma abordagem a-teórica [...] juntamente com a
provisão de critérios clínicos específicos para cada desordem mental listada no manual.
Ao invés de apenas replicar as “ideologias” que dividiam a arena psiquiátrica em escolas
de pensamento conflitantes, o DSM tentou alcançar uma abordagem mais objetiva e
racional ao descrever os transtornos mentais de uma maneira que seria benéfica para
reforçar a psiquiatria como um verdadeiro ramo da medicina (Demazeux, 2015, p. 4,
tradução minha).
Mas não parou por aí, o progresso científico recorre ao discurso metodológico para revisar
cada edição do manual de maneira continuada, ao procurar adicionar a literatura que se tornava
disponível. Assim, o método é uma feição que homogeneíza as teorias em conflito. E, uma terceira
forma de ver a atuação desse ideal se dá em torno do Comitê da Força Tarefa designado para ter a
decisão final do que irá entrar ou sair do manual. A autoridade epistêmica se movia, assim, de uma
opinião acadêmica, que dominava os dois primeiros manuais ao serem liderados por figuras de
destaque na cena clínica, para uma “analítica” vinda de uma comunidade de especialistas. Isso se
referia, segundo Demazeux (2015), a uma mudança de um modelo professoral para um modelo de
especialistas, embora na prática essa passagem fosse mais idealista do que concreta. Esses arquitetos
158
irão procurar argumentar que se baseiam em validade e em confiabilidade, portanto, nada mais
científico; o que teria proporcionado uma revolta interna.
Ao se olhar para os comentadores das mudanças do DSM, isto é, médicos que discutem
em publicações periódicas e livros sobre as transformações de critérios que virão ou que já foram
manifestadas na nova versão ajuda a entender a subjacência da ideia de avanço científico. Por
exemplo, Kimberly Yonkers e Diana Clarke (2011) indicaram que teria havido discussões
biomédicas que sugeriram haver um viés (bias) que invalidava pesquisas incluídas como referência
para diagnósticos fincados no DSM, uma vez que essas pesquisas não consideravam o gênero dos
participantes. Investigações epidemiológicas de uso de questionários, por exemplo, ao requisitarem
respostas em estudos clínicos controlados perderam de observar que mulheres e homens poderiam
ter tendências de resposta diferentes por estarem situados de modo diferente no cotidiano. Assim,
homens iriam reportar menos “sintomas de tristeza e outras manifestações de depressão”, onde
mulheres poderiam reportar menos “mal-uso de substâncias” (segundo padrões de masculinidade
e papel da mulher no contexto estadunidense). A crítica das autoras não deixa de indicar a
“melhora” nas “taxas sexuais” do DSM, isto é, na maior consideração a respeito de uma equânime
descrição de homens e mulheres nos estudos epidemiológicos. Mas isso não impede que defendam
que a pretensão de neutralidade de gênero na verdade é falsa, uma vez que a inclusão de itens que
só foram vividos por mulheres gera uma taxa desproporcional para essa ou aquela condição. Isso
iria atrapalhar a própria medição de severidade nos padrões psiquiátricos de ciência.
Embora seja questionável a indicação de Yonkers e Clarke quanto à possibilidade de gerar
medidas regulares entre diferentes culturas para uma doença – já que o próprio conceito de doença
não é universal –, a discussão que empreendem é interessante por ser “boa para pensar”125 a
construção científica das diagnoses psi. Assim, as problemáticas relativas à confiabilidade perpassa
o manual inteiro e não apenas referente a categorias questionadas de desordem como gênero e
sexualidade, alcançando as bases do conhecimento de todas as classificações. Não estou dirimindo
a especificidade da patologização da transexualidade hoje, e da homossexualidade outrora; mas é
preciso olhar para a imagem total. Tem surgido, nesse sentido, uma enxurrada de contestações.
Médicos atuantes em versões anteriores, ou aqueles que trabalharam no próprio processo de
revisão da versão que tencionam, apresentam “visões internas” a respeito do “exagero” ou do
“controle” que intentam cada nova edição, como a descrita por Allan Frances (2013), que se referiu
a uma “inflação diagnóstica”. Isso não implica, contudo, um desabono do manual em si de sua
parte. Sobre a impossibilidade de uma definição útil, ou seja, sem questionamentos, para a
125 A expressão é de Claude Lévi-Strauss (1976), segundo quem investigações empíricas são importantes porque são “boas para
pensar” ao oferecer uma chave de entendimento sobre o objeto, isto é, um ponto de partida para um axioma sobre o mundo.
159
“desordem mental”, Frances escreveu que isso seria resolvido definindo cada transtorno
individualmente:
A má notícia que nós não podemos desenvolver uma definição útil para o conceito geral
de “transtorno mental” é balanceado pela ótima notícia de que nós podemos facilmente
definir cada uma das desordens mentais específicas. O método, introduzido pelo DSM-
III em 1980, é simples e efetivo. A descrição de cada transtorno do DSM é acompanhada
por um conjunto de critérios que lista de maneira bastante precisa termos cujos sintomas
os define, quantos devem estar presentes e sua duração necessária (Frances, 2013, p. 24,
tradução minha).
No seu ataque contra a revisão publicada, Frances (2013, p. 25) estabelece ainda que a
especificidade destruiu a simplicidade da prática psiquiátrica, construindo critérios rígidos. Para ele,
teria se invertido a máxima de Hipócrates, o “pai da medicina”: “é mais importante saber que tipo
de pessoa tem uma doença do que saber que tipo de doença a pessoa tem”.
O DSM tem que se manter simples, mas a psiquiatria não. O diagnóstico do DSM deveria
ser visto como apenas uma pequena parte de uma avaliação geral que iria gerar uma
compreensão integral para os aspectos individuais mais complicados de cada paciente.
Infelizmente, a abordagem do DSM tem sido muito influente – dominando o campo de
uma maneira que nós nunca intencionamos. Uma psiquiatria sutil se tornou uma
psiquiatria de lista, homogeneizando diferenças individuais e tratamentos personalizados.
A psiquiatria, antes muito peculiar e caótica, se tornou muito padronizada e insensata.
Programas de treinamento [em medicina] focam atenção excessiva em ensinar a diagnose
e não como gerar entendimentos sobre tudo mais que compreende o paciente (Frances,
2013, p. 25, tradução minha).
O que a crítica de Frances também demonstra é que o DSM não é o resultado de um campo
homogêneo, mas a impressão em papel de vitoriosos do momento num campo de disputa
científica. Isso não elimina as desestabilizações que diferentes grupos, sejam de médicos, sejam de
pacientes, fazem do manual. Assim, acompanhar as querelas teóricas dos próprios cientistas como
estou fazendo desde o começo desse item nos ajuda a observar o nível de “chapamento” dos
manuais, inclusive diante das próprias áreas médicas e outras ciências aí aplicadas. São os grupos
hegemônicos que vencem ao se inscreverem nesses manuais e não um consenso absoluto entre
cientistas. Os apoiadores das revisões que são publicadas advogam que tenha havido mudanças,
mas segundo Demazeux (2015), elas são apenas aparentes. A influência mundial que alcançou o
manual inscreveu no mundo social da medicina uma “psiquiatria de lista”, um montante de critérios
arbitrários que solapam as diferenças, e que se adequa a caracterização da medicina em geral no seu
conflito entre perspectivas integrais e visões superespecializadas.
Mas a questão ainda permanece: o que teria feito o psiquiatra Genivaldo considerar haver
menos patologia na atual quinta versão da nosologia quando comparada a anterior, uma vez que
mesmo mudando a base do diagnóstico, ele permanece? No capítulo precedente (re)vi aspectos
históricos e etnográficos da ideia de transexualidade, mas quanto a sua conformação à atual ideia
160
de disforia de gênero? Ela é concebida não apenas no seio de um processo continuado de
medicalização, mas também de disputa científica. E essa disputa inscreveu o sofrimento no
primeiro plano da medicalização.
Na quarta edição, publicada em 1994, os psiquiatras estadunidenses recorriam a ainda
maiores detalhes, e retiravam a exclusividade do “transtorno” contido no capítulo sobre infância
para ocupar um próprio novamente. Estava contido num capítulo chamado de “Transtornos
Sexuais e da Identidade de Gênero”, sendo uma das quatro categorias sob esse título, junto de
“Disfunções sexuais”, “Parafilias” e “Desordem sexual não especificada” (APA, 1994, p. 493).
Outras novidades aí se instituíram e o diagnóstico foi arrefecido. No critério B entrava um outro
elemento distintivo, o médico deveria ter a destreza de identificar se esse desejo de viver noutro
sexo seria para alcançar as suas “vantagens culturais”; caso o fosse, haveria aí uma desclassificação
do “transtorno...”. Agora, os critérios eram alterados apenas textualmente, mas não em si mesmos,
e figuravam, como:
A. Uma forte e persistente identificação de cruzar o gênero (não meramente um desejo
por alguma vantagem cultural almejada ao ser de outro sexo); B. Desconforto persistente
com o sexo ou o senso de inadequação com o papel de gênero atrelado ao sexo; C. A
perturbação não é concorrente com uma condição física de intersexo. D. A perturbação
causa clinicamente aflição significante ou prejuízo em áreas sociais e ocupacionais, entre
outras (APA, 1994, pp. 537-8, tradução minha).
No DSM-IV, portanto, a diferença entre crianças (meninos e meninas), adolescentes e
adultos se acentua ainda mais, de modo que há a indicação de fatores a serem enfocados dentro
dos critérios para cada grupo geracional. Além disso, era a primeira vez que se distinguia o
“transtorno de identidade de gênero” da “não conformidade aos estereótipos de papeis sexuais”,
manifestados na subversão de desejos de cruzar de gênero, em interesses e atividades. O
comportamento afeminado, no caso dos meninos (sissyishness) e, masculinizado, no caso das
meninas (tomboyishness), alertaria o manual, não deveria por si só definir a identificação. Ao indicar,
ainda, que o profissional não deveria escolher entre o diagnóstico de “transtorno...” e o de
“travestismo fetichista” (o uso da vestimenta de outro sexo com propósito de excitação sexual),
aparece a etiqueta “com disforia de gênero” para assegurar a classificação dupla. Há, por outro
lado, na edição seguinte, a quinta, uma mudança que apresentaria novos termos à classificação. A
“disforia” que antes serviria para indicar uma duplicidade do diagnóstico, torna-se a própria noção
a ser identificada e tratada. Teria havido aí, de fato, uma transformação classificatória? Vejamos a
explicação que o próprio manual126, na versão em língua portuguesa, oferece antes de apresentar
os sintomas e critérios diagnósticos. No começo, se reforça que:
126 Como venho propondo um estudo sobre o contexto brasileiro, nesse momento faço referência à tradução para língua portuguesa
brasileira publicada em 2014, e não ao original em língua inglesa estadunidense de 2013 também consultado.
161
O termo gênero é utilizado para denotar o papel público desempenhado (e em geral
juridicamente reconhecido) como menino ou menina, homem ou mulher; porém,
diferentemente de determinadas teorias construcionistas sociais, os fatores biológicos, em
interação com fatores sociais e psicológicos, são considerados como contribuindo para o desenvolvimento do
gênero (APA, 2014, p. 451, grifos meus).
Isso oferece a base para a definição de disforia de gênero que vem em seguida:
[...] Como termo descritivo geral, refere-se ao descontentamento afetivo/cognitivo de
um indivíduo com o gênero designado, embora seja definida mais especificamente
quando utilizada como categoria diagnóstica. [...] Disforia de gênero refere-se ao sofrimento
que pode acompanhar a incongruência entre o gênero experimentado ou expresso e o
gênero designado de uma pessoa. Embora essa incongruência não cause desconforto em
todos os indivíduos, muitos acabam sofrendo se as intervenções físicas desejadas por
meio de hormônios e/ou de cirurgia não estão disponíveis. O termo atual é mais
descritivo do que o termo anterior transtorno de identidade de gênero, do DSM-IV, e foca a
disforia como um problema clínico, e não como identidade por si própria (APA, 2014,
p. 452-453).
Somente após essa justificativa inicial é que o manual apresenta os critérios diagnósticos da
“Disforia de Gênero em Adolescentes e Adultos” que reproduzo a parte A na Figura 6 abaixo.
Figura 6 – Quadro de Sintomas do Critério A do diagnóstico de Disforia de Gênero do DSM-5
A. Incongruência acentuada entre o gênero experimentado/expresso e o gênero designado de uma
pessoa, com duração de pelo menos seis meses, manifestada por no mínimo dois dos seguintes:
1. Incongruência acentuada entre o gênero experimentado/expresso e as características sexuais primárias
e/ou secundárias (ou, em adolescentes jovens, as características sexuais secundárias previstas).
2. Forte desejo de livrar-se das próprias características sexuais primárias e/ou secundárias em razão de
incongruência acentuada com o gênero experimentado/expresso (ou, em adolescentes jovens, desejo de
impedir o desenvolvimento das características sexuais secundárias previstas).
3. Forte desejo pelas características sexuais primárias e/ou secundárias do outro gênero.
4. Forte desejo de pertencer ao outro gênero (ou a algum gênero alternativo diferente do designado).
5. Forte desejo de ser tratado como o outro gênero (ou como algum gênero alternativo diferente do
designado).
6. Forte convicção de ter os sentimentos e reações típicos do outro gênero (ou de algum gênero
alternativo diferente do designado).
(APA, 2013, pp. 452-3).
Os critérios seguem para sua parte tida como mais essencial, que diz: “a condição está
associada a sofrimento clinicamente significativo ou prejuízo no funcionamento social, profissional
ou em outras áreas importantes da vida do indivíduo” (APA, 2013, p. 453). Aí é possível observar
o lugar crescente das emoções nesse novo arranjo da medicalização. Como já vimos, a disforia
passa a ser, na década de 1980, um dos qualificadores do transtorno de identidade de gênero.
Norman M. Fisk (1974), médico atuante no Programa de Disforia de Gênero da Universidade de
Stanford127, na Califórnia nos Estados Unidos, ao se referir a publicações sobre transexualismo,
127 Criado em 1968 sob a direção do cirurgião plástico Dr. Donald Laub, o programa de Stanford foi um dos mais influentes no
âmbito da saúde transexual nos Estados Unidos (Plemons, 2017).
162
comentava acerca do uso do termo “síndrome de disforia de gênero” para dar maior
dimensionalidade a condição. Ele fora o primeiro a empregar o termo “disforia de gênero” para
alargar o raio de alcance de uma nosologia vista por ele como insuficiente presente no termo
transexualismo (Fisk, 1974, 1973, 1978). Em seu editorial, Fisk (1974) postulava que
transexualismo, como indicado por Benjamin, seria o tipo mais grave e severo de disforia, da qual
homossexualismo e travestismo seriam outros casos dos transtornos de gênero. Assim, o médico
indica que o novo termo diagnóstico seria uma melhor maneira de flexibilizar o atendimento.
Relatando o que teria sido a experiência de sua equipe em Stanford, apresenta que:
Ao empregar o termo diagnóstico de síndrome de disforia de gênero nossas indicações
para a terapia cirúrgica de conversão de sexo têm sido alargadas. Os pacientes agora
claramente entendem que se eles tivessem sido entrevistados cinco, dez ou vinte anos
atrás, eles não teriam sido diagnosticados como sendo transexuais clássicos. Estes
pacientes são informados que um diagnóstico de transexualismo não é, em nossa visão,
o único critério válido para decidir quem recebe conversão cirúrgica de sexo (Fisk, 1974,
p. 389, tradução minha).
Ao explicar o seu conceito de gênero, Fisk estabeleceu ainda:
A composição cromossômica, o sexo assinalado e o de criação, a morfologia genital
interna e externa, fatores endocrinológicos pré-natais e pós-natais, bem como
comportamento são todos aparentemente inter-relacionados com o conceito de gênero.
Uma definição do dicionário de disforia inclui insatisfação, ansiedade, inquietação e
desconforto (Fisk, 1974, p. 387, tradução minha).
O médico não concebe o termo a partir de uma pesquisa, nem mesmo intentando modificar
o DSM, mas a partir de sua experiência clínica (Tosh, 2016). E isso se estabelece dentro da primazia
das intervenções cirúrgicas como parte essencial da terapêutica. Aí, portanto, ele já indicava que os
caracteres a serem identificados como aludindo a identidade de gênero não deveriam abarcar um
diagnóstico restrito ao procedimento daquele contido no de transexualismo. São as emoções que
ganham proeminência, isto é, o descontentamento que gera sofrimento passaria, nesse método, a
ser mais evidenciado ao lado de um conceito de gênero que não sai de cena. Isso fica evidente
quando ele relata mais à frente que,
Nós procuramos avidamente por determinar quão bem ou mal uma pessoa em particular
tem lidado ou irá lidar na vida dela a partir de suas escolhas de gênero. Frequentemente,
pacientes têm vivido totalmente seus gêneros de escolha por muitos anos junto a
administração exógena de hormônios sexuais apropriados antes de virem à nossa clínica
(Fisk, 1974, p. 389, tradução minha).
O lidar bem ou não com o cotidiano, o que fica evidente na explanação de Fisk, se refere a
vivência das emoções e a “vivência real” do gênero. Assim, o gênero como um âmbito
individualizado é observado através do emocional como se o sentimento fosse a forma social que
ganha algo que é sentido de forma incorporada. No final do seu artigo, chega a defender sua clínica
163
dos ataques críticos sobre a necessidade de cirurgias para transição de gênero, as quais denomina
de “terapia cirúrgica de conversão sexual”. Seu argumento acompanha a missão do profissional
médico em ajudar alguém a diminuir sua aflição. Nisso, o clínico aponta que seria evidente que
qualquer psicoterapia uniformemente aplicada poderia falhar em aliviar os sintomas, isto é, sem
cirurgia, mas com psicologia não se poderia ajudar os pacientes:
Eu tenho tido a experiência desagradável de ouvir um número de colegas expressarem
suas opiniões de que a reorientação de gênero com conversão cirúrgica de sexo é um
“procedimento imoral” e, numa ocasião particular, vi na imprensa a colocação de que a
conversão cirúrgica de sexo é “equivalente a negligência médica”. É inconcebível para mim
como qualquer tentativa válida de aliviar o sofrimento e o desespero pode ser algo imoral (Fisk, 1974,
p. 390, tradução e ênfase minhas).
Se as influências teórico-metodológicas da equipe de Stanford não lograram grande sucesso
na promulgação do diagnóstico publicado nos anos 1980, ela pode ser sentida no atual manual em
vigor com considerável destaque. E ela demonstra uma separação ainda maior entre quem deseja
ou não cirurgias de redesignação sexual. Sob certos aspectos, o transexual de verdade continua
como figura quando o disfórico é separado daquele que teria uma manifestação amenizada da
incongruência de gênero, seja por não querer alguma cirurgia, seja por não preencher todos os
requisitos do diagnóstico. Um ano antes é que a equipe de Stanford publicara o livro resultado de
um Simpósio realizado a partir dos profissionais ali engajados, no qual Fisk expõe suas formulações.
Pierre-Henri Castel (2001, p. 90), que realizou uma cronologia a respeito do “fenômeno
transexual”, ao longo de 85 anos desde 1910, explica que Fisk com a descrição desse “híbrido
psiquiátrico-sociológico” “replicava palavra por palavra à demanda dos transexuais, transportando
seu autodiagnóstico (não se sentir do sexo adequado) para a definição médica da síndrome, e
consagrava no mesmo movimento como única escolha terapêutica aquela que eles solicitam
(hormônios e cirurgia)”. Na mesma publicação, Virginia Prince (1973) argumentava ainda mais
além, postulando que gênero e sexo não seriam a mesma coisa, de modo que haveria a disforia de
gênero e a disforia de sexo, a primeira se referindo ao estilo de vida, e a segunda, à anatomia sexual.
Para ela, a cirurgia e os hormônios não são soluções de gênero, mas de sexo, porque modificam o
corpo material e não o “papel social”. Paralelo a toda essa discussão que tem se demonstrado até
aqui, com uma perenidade enquanto seu conflito de definições, o que quero apreender é que a
disforia, ao contrário de transtorno de identidade gênero, é vista como um qualificador mais
científico e melhor descritor porque se conceberia sua forma de atingir as emoções, algo que o
DSM também atinge com outras categorias diagnósticas como depressão e ansiedade. Isso está
inserido, portanto, numa forma de se argumentar que se teria assumido uma postura menos
enviesada, a partir das críticas que o seguiram (Bento, 2016; ver também 2010a).
164
E é do seio desse debate que se pode ver reproduzindo a partir do grupo revisor instaurado
em 2008 e com propostas apresentadas em 2010 para mudar o texto do quinto manual publicado
em 2013. Kenneth Zucker (2015), chefe da sua Força Tarefa responsável pela escrita e definição
da seção respectiva através do Grupo de Trabalho de Transtornos de Identidade de Gênero e
Sexual, apresenta essas modificações nos mesmos auspícios do avanço científico que vimos até
aqui e que animaram todas as outras edições. Assim, a própria busca por cientificidade da psiquiatria
determina a forma como seus objetos de intervenção são definidos e abordados. Ao defender a
manutenção da transexualidade no DSM, Zucker (2015, p. 34) escreve em favor de uma garantia
do cuidado, procurando se associar com o argumento de que o novo “termo diagnóstico deveria,
de uma maneira mais transparente, indicar que se refere a ‘angustia’ (disforia) e não a identidade per
se”. Zucker (2015; e Zucker et al., 2013) tem se destacado nas últimas décadas como um dos
principais médicos a advogar por uma diagnose da transexualidade, principalmente no campo da
infância com sua proposição de “terapia de conversão” para prevenir o “desenvolvimento da
disforia de gênero”. Ele faz uma referência direta ao trabalho de Fisk, mas estabelecendo diferenças
importantes, como podemos ver. A adoção do termo disforia de gênero pelo manual a partir do
seu grupo revisor retirou a flexibilização presente nas formulações de Fisk, e alocou o termo, antes
oposto em algum grau ao termo transexualismo – com uma rigidez na sua adoção terminológica
(Tosh, 2016).
Ao contrário de ser postulado como algo novo, as emoções sempre foram algo presente
nas versões do DSM, estando de modo aliado e manifestando os caracteres a serem identificados
como desse ou daquele gênero. Comparativamente, vemos sendo manejadas diferentes concepções
sentimentais relativas ao corpo e a identidade de gênero que provam a transexualidade e passam,
gradativamente, a medicalizar as emoções e as experiências de sofrimento que são encontráveis
como sintomas. E isso não se perfaz apenas dos médicos aos pacientes, mas também vice-versa.
Nisso, pessoas normais manifestariam o oposto do que pessoas sofrem de gênero. Ao unir todas as
formulações das versões do manual se percebe um quadro repetitivo quanto aos elementos
emotivos da desordem de gênero para a autorização das mudanças corporais:
Pessoas transtornadas ou
disfóricas de gênero manifestariam:
Desconfortável e inadequada com o sexo anatômico
Ter os sentimentos do gênero oposto
Senso de inadequação com o gênero de nascimento
Perturbação desassociada com intersexualidade
Perturbação causa aflição, sofrimento e prejuízo social
165
Isso não significa que não haja transformações ao longo dessas continuidades. Se saiu de
cena um discurso que se dizia focar em caraterísticas identitárias – mesmo que isso não implique,
necessariamente o seu abandono na prática –, passando a recair sobre a manifestação de um
conjunto de sentimentos melancólicos que abarcariam uma experiência de sofrimento desmedida.
Algo que ocorre não como uma novidade, mas como um discurso oficial, uma medicalização das
emoções para a comprovação da identidade de gênero vista como atípica ou anormal e doentia.
Isso porque, como vimos, a apresentação de insatisfação com o próprio corpo como manifestada
por emoções sempre esteve presente desde a primeira formulação dos manuais psiquiátricos. O
que aconteceu com o último DSM foi uma transposição para a frente de um pano de fundo porque
esteve aliado ao conceito de gênero operador em tais diagnósticos. Tey Meadow (2018) mostrou,
assim, que a quinta versão retirou a heterossexualidade como elemento definidor, devido a uma
mudança cultural. O que não significa exatamente e automaticamente essa reverberação em outros
contextos sociais. Mas isso já tem tido efeitos no campo que observei, por isso, concordo com a
autora quando ela diz:
No entanto, existem diferenças importantes na classificação que marcam uma mudança
substancial nas compreensões culturais da diversidade de gênero. Para crianças e adultos,
a angústia sobre o sexo é um componente essencial para o diagnóstico, permitindo que
indivíduos que parecem satisfeitos escapem de sua captura. Além disso, o comitê
removeu o critério de atração sexual, reconhecendo o pequeno papel desempenhado pela
orientação sexual nos modelos de tratamento (Meadow, 2018, p. 62-3).
No campo eu não encontrava entre médicas e médicos com quem interagi considerações
sobre a heterossexualidade pretensa de alguém em procura de intervenção para a transição. O foco
esteve nas emoções. Em geral, críticas a essas mudanças comumente indicam que, na verdade, não
houve transformações, mas uma manutenção das raízes daquilo que veiculam colocar em novas
bases. Entretanto, considero que há aí mudanças sociais que indicam uma história espiralada e não
uma ordem de eventos desencadeados em etapas. De acordo com a forma como esse diagnóstico
é apresentado e modificado discursivamente se constituiu tanto uma crítica cultural como uma
crítica proveniente de disciplinas científicas dentro e fora da medicina em muitos lugares do mundo.
Como se pode observar no trabalho de Amess Suess Schwend (2015), a mobilização contra essa
patologia também ganhou os fluxos globais através dos quais a própria transexualidade se
constituiu128. Tais argumentações contra a patologização da transexualidade não se contêm em
fronteiras muito definidas. Isso não impede, contudo, que se constituam a partir de seus contextos
e ideologias nacionais sem os quais não poderiam fazer ou estabelecer sentido. Por deterem
considerável reverberação no Brasil, o contexto anglo-saxão, principalmente estadunidense, e o
128 Não procuro medir a eficácia dessa mobilização, mas no capítulo 6 exploro as formas como essa pressão social se encontra com
a autonomia do campo da medicina.
166
contexto espanhol serão aqui mais bem observados quando me proponho a elencar características
mais gerais das formulações brasileiras a esse respeito de movimentos teóricos nas ciências sociais
contra a patologia.
3.3. Contra a patologia
No âmbito das ciências sociais, as primeiras pesquisas de fôlego no Brasil tendo como foco
a transexualidade como categoria autônoma começaram a aparecer no começo dos anos 2000.
Desde o decênio anterior, antropólogos e antropólogas inauguraram seus interesses pela vida social
e pelas modificações corporais de travestis a partir das metrópoles do país (Silva, 1993; Oliveira,
1997; Florentino, 1998; Kulick, 1998; Benedetti, 2005; Vale, 1997, 2005; Pelúcio, 2005; Patrício,
2008; Cardozo, 2009) num corpo teórico que se convencionou chamar de estudo das travestilidades
(cf. Grossi, 2010). Em parte dessas etnografias já era possível vislumbrar personagens, mesmo que
tímidas, de mulheres transexuais, como a realizada por Hélio Silva (1993) quando descreve
transexuais de modo coadjuvante. Elas são as amigas ou as conhecidas de travestis com as quais os
autores e as próprias interlocutoras se comparam, tanto para se diferenciar como para se elegerem
(serem eleitas) como particularidade cultural brasileira. Isso fica particularmente evidente na
pesquisa de Maria Cecília Patrício (2008) sobre a circulação transnacional de travestis brasileiras
entre a Europa e o país. Enquanto sujeitos de sucesso – e de mistério quanto a se teriam ou não
realizado a chamada cirurgia de mudança de sexo –, as transexuais eram tidas (inclusive por si
mesmas) como mais mulheres que as travestis, estas estando mais próximas de homens
homossexuais do que daquelas. O quadro era desenhado num contexto de medicalização da
subjetividade e da transformação corporal, no qual a cirurgia de mudança de sexo e a viagem para
o exterior no objetivo de realizá-la era um mote importante dessa trajetória. Aí se destacam
categorias em disputa como trans e transex em relação a travesti.
Se as mulheres transexuais aí compõem a paisagem das travestis, elas começaram a ser
instadas como objeto de reflexão de modo mais evidente ainda junto a transformistas e dragqueens
no trabalho, por exemplo, de Juliana Jayme (2001). Fazendo um estudo comparativo entre Belo
Horizonte, no Brasil, e Lisboa, em Portugal, a antropóloga questiona as divisões entre essas
categorias dentro de um bojo que chama de transgender, utilizando assim mesmo o termo em inglês.
Quando apresenta a parcela de transexuais, Jayme as traz centradas no âmbito das cirurgias numa
dificuldade analítica em separá-las dos sujeitos que elenca. Ao descrever portugueses e brasileiros,
“os travestis” surgem como o contraponto local “dos transexuais” lusitanos, os quais são tidos
como recorrendo ao idioma médico por causa da “legitimação médica e jurídica da cirurgia de
modificação de sexo [...]. As categorizações sociais provavelmente os levam a procurar uma
167
atribuição (mesmo que não tenham o reconhecimento), uma vez que lá esta atribuição/cirurgia é
possível” (Jayme, 2001, p. 79).
Vemos através do trabalho de Jayme que nesse período no Brasil parece não ter ainda
explodido a preocupação com a diversidade de gênero com que atualmente nos defrontamos, de
uma maneira ou de outra. E a cirurgia ainda era o grande veículo para determinar a transexualidade
mesmo entre cientistas sociais, separando essas pessoas entre “operados” e “não-operados”.
Embora essa divisão possa surgir a partir de categorias nativas, o questionamento da medicalização
aí fica a cargo da identificação da cultura ser um veículo de diversificação de tudo e de todos, uma
roupa cultural de um corpo biológico. Nesse esteio, a médica Elizabeth Zambrano (2003), com sua
dissertação de mestrado em Antropologia Social, especifica seu estudo na transexualidade sem um
questionamento ou uma reflexão quanto a patologia. As designações que já vimos do DSM-IV são
trazidas na forma de anexos, e o conhecimento da medicina se coloca de modo ambíguo - cuja
autoridade apenas se referencia. Enquanto classificações são trazidas como arbitrárias, e a natureza
sexual como uma “realidade” entre aspas, o sexo é entendido como uma entidade biológica que
determina ser alguém transexual ou travesti a partir da transformação corporal da intervenção
médica cirúrgica. Para Zambrano (2003, p. 94), portanto, a conclusão é que “do ponto de vista
médico, os transexuais continuam sendo considerados como uma patologia; do ponto de vista
social, continuam sofrendo preconceitos e exclusões”. Poder-se-ia, contudo, extrair de seus dados
empíricos uma demonstração da dificuldade de separar as categorias de transexual e travesti que
ainda acontece no país (Pinheiro, 2016). Quando a autora apresenta, a seu modo, as estratégias de
afirmação e acesso às intervenções biomédicas uma de suas interlocutoras afirma que, por exemplo,
"dizer que é transexual fica mais científico” (Zambrano, 2003, p. 93), indicando-nos o quão borrado
podem se tornar os limites dessas diferenças.
A patologia da transexualidade só será trazida como um problema de investigação a partir
do trabalho de Berenice Bento, publicado em livro em 2006, mas defendido como tese de
doutorado em sociologia em 2003, na Universidade de Brasília. É evidente que Bento se alimenta,
em muito, do contexto espanhol particularmente animado pelo já forte ativismo transexual quando
realizara pesquisa em coletivos nas cidades de Valência, Madri e Catalunha. Nesse trabalho,
também realizado em Goiânia, Goiás, a autora se empenha em apresentar as teorias biomédicas
que formularam inicialmente o transexualismo e posteriormente o transtorno de identidade de
gênero como objetos de intervenção médica e psicoterapêutica, particularmente relativos a Harry
Benjamin, Robert Stoller e John Money, os quais já foram refletidos no capítulo precedente. Um
problema a ser questionado se dá em contraponto à posição biomédica de que o “transtorno” é,
na verdade, uma produção social historicamente situada que a socióloga chama com originalidade
168
de “dispositivo da transexualidade” apenas possível porque, como demonstrou Thomas Laqueur
(2001 [1992]), o ocidente europeu separou o ser humano em dois sexos distintos completamente.
Bento indica que os protocolos brasileiros de admissão à época articulam junto com as teorias
biomédicas uma correção de sujeitos vistos como não correspondendo a uma matriz normativa
heterossexual. O diagnóstico, então, procuraria produzir a heterossexualidade.
Bento (2006) faz um movimento de demarcar a pluralidade das transexualidades e critica
abertamente a conformação de uma narrativa única perseguida por médicos para autorizarem
intervenções cirúrgicas e hormonais, formulando que é preferível falar em “experiências
transexuais”, uma vez que reduzir a pessoa a tal vivência impede tanto de entender o que vive como
a reduz a estereótipos. Ao invés de se falar em “identidade transexual”, Bento (2006) propõe
observar a reunião de pessoas trans como uma comunidade das emoções, retomando a formulação
de Max Weber. É a experiência de trânsito que se forma, e de várias maneiras, e não uma
essencialização dos sujeitos que acontece no âmbito apenas ideal. Mais uma vez, a socióloga reforça
a crítica e o estudo da transexualidade produzida como patologia ao lançar O que é transexualidade,
demonstrando os processos arbitrários através dos quais médicos decidem quem é ou não
transexual de verdade (Bento, 2008) – essas observações da autora se dão antes da criação do
Processo Transexualizador em 2008. A isso segue Flávia Teixeira (2009) que formula um estudo a
partir de casos judiciais para entender as formas pelas quais pessoas transexuais ressignificam os
processos que vivenciam no decurso do acesso a políticas de saúde e do próprio trânsito de gênero.
Pensando numa estratégia linguística para se defrontar contra o discurso biomédico, Teixeira
emprega ainda o adjetivo “trans” entre parêntesis. Tais elaborações teóricas questionam a
apresentação da transexualidade como uma doença mental e se tornam o pano de fundo no qual
as pesquisas sociais – e nas humanidades como um todo – sobre o tema vão se desenvolver no
Brasil.
Uma consulta ao banco de dados da Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações (BDBT)
mostrará um crescimento exponencial no número desses trabalhos não apenas nas ciências sociais.
Embora tal Biblioteca, contando somente com 119 instituições (de 192 universidades públicas e
privadas existentes no país atualmente), nos dê apenas uma visão parcial, uma vez que nem todas
as universidades brasileiras estejam ali presentes, seu corpo já nos indica a explosão de pesquisas
nessa área temática. Note-se que ao todo são 195 dissertações e 58 teses nas áreas de psicologia,
direito, serviço social, saúde coletiva, humanidades, educação, sociologia, ciência política,
antropologia, fonoaudiologia e medicina entre 2001 e o primeiro semestre de 2020. Enquanto de
2001 a 2013 (12 anos) foram apenas 34 dissertações e 18 teses, é do ano de 2014 até metade de
2020 que se percebe esse estrondo (5 anos e meio) com 161 dissertações e 40 teses. Mais que o
169
dobro. O ano que apresenta isoladamente o maior número é 2015 com 22 dissertações e 4 teses.
Esses trabalhos129 não seguem, evidentemente, as mesmas orientações teórico-metodológicas nem
muito menos endereçam com profundidade e problematização a questão da produção social da
patologização da transexualidade. Quando não a tomam como ponto de partida óbvio – no sentido
de que a visão patogênica é rejeitada a título informativo –, não a assumem como tal.
Berenice Bento tem se destacado nessa problematização, partindo desde se gênero é uma
categoria cultural ou diagnóstica – dado que o conceito de identidade de gênero teria sido
formulado por um psicólogo para tratar intersexuais e transexuais –, até como ele é revisado,
indicando o caráter de lucro capitalista do manual e sua base científica rarefeita, apontando, assim,
para a geopolítica de tais formulações. O elemento cultural local do manual fica exposto ao se
considerar as pesquisas que justificam a manutenção da presença da transexualidade como categoria
diagnóstica, indicando a fragilidade dos métodos e das referências citadas pelos médicos do grupo
revisor. Suas análises recaem contextualmente a partir das edições de 1994 (Bento, 2006, 2008),
considerando que a de 2013 manteve a patologização (Bento, 2018). Nesse esteio, Berenice Bento
e Larissa Pelúcio (2012a, p. 573) propuseram uma “despatologização do gênero”, afirmando que
“são as normas de gênero que contribuirão para a formação de um parecer médico sobre os níveis
de feminilidade e masculinidade presentes nos demandantes”. E continuam: “serão elas que estarão
sendo citadas, em séries de efeitos discursivos que se vinculam às normas, quando, por exemplo,
se julga ao final de um processo se uma pessoa é um(a) ‘transexual de verdade’”. Essa forma de
patologia, aferem, é uma continuação da “patologização da sexualidade” operante no âmbito das
perversões sexuais e das homossexualidades (Bento e Pelúcio, 2012a, p. 572). Discutindo quatro
argumentos que endereçam a manutenção do diagnóstico de transexualidade, as autoras apontam
que suas bases são frágeis ao exame pormenorizado porque partem de normas de gênero e
sexualidade alinhadas à autoridade científica, à falta de eficiência do protocolo analítico, à divisão
natural entre os sexos, que não apresenta pureza nem mesmo bioquímica, e à concessão estratégica,
que teme que a saída do manual implique a parada de atendimento em saúde. Assim, entendem,
“se partirmos do pressuposto de que há múltiplas possibilidades de experiências e práticas de
gênero”, de modo a produzir diferentes sentidos às modificações corporais e à transição legal entre
os gêneros, “não há justificativa para definir um protocolo fundamentado no transtorno mental”
(Bento e Pelúcio, 2012a, p. 576). A expressão “patologização” é preferível a “psiquiatrização” do
gênero, defendem, uma vez que muitos outros campos do conhecimento agem na conformação
desse tipo de diagnóstico.
129 Detive-me apenas na leitura dos resumos desses trabalhos, e não li todos na íntegra, mas apenas aqueles mais próximos das
discussões que empreendo ao longo da tese. Os descritores usados nas buscas foram: transexualidade, transexualismo, trans,
transexualismo feminino, transexualismo masculino, disforia, disforia de gênero, homem trans, trans homem, transmasculinidade.
170
Poucas são ainda as pesquisas que procuram entender como as pessoas transexuais pensam
a patologização dentro e fora do Brasil. Nesse sentido, André Guerreiro Oliveira (2015) mostrou
que os discursos concernentes entre homens trans variavam entre apoiar a permanência da
transexualidade nos manuais de saúde e rejeitar terminantemente seu tratamento como um
problema médico. Os argumentos se baseiam, grandemente, no medo da perda130 de cobertura
legal para que o Estado brasileiro continue a oferecer e aumente a oferta de serviços de saúde que
operem o Processo Transexualizador. Na minha dissertação, embora não tenha tratado da
medicalização da transexualidade pelos operadores dos serviços de saúde observei como homens
trans de diferentes faixas etárias e estratos sociais não apenas não se viam como doentes mentais,
como reclamavam o direito e a necessidade de ter a supervisão de médicos quanto aos seus
processos de transição de gênero e para as possíveis interações de morbidades daí decorrentes por
causa do manejo endocrinológico (Rego, 2015). Esse é o caso também da pesquisa realizada em
João Pessoa por Juliana Alexandre (2015) quando demonstra que seus interlocutores se
preocupavam em seguir os parâmetros legais biomédicos para ter acesso às intervenções hormonais
e cirúrgicas, e não por se verem como doentes que precisavam ser curados e tratados. É interessante
notar que Alexandre traz a ideia de tutela para falar desse controle que é produzido nos processos
de autorização para se ter acesso a hormônios sexuais e possíveis cirurgias. As três pesquisas
acabam por demonstrar estratégias de lidar com o diagnóstico em meio ao se almejar o cuidado em
saúde e supervisões biomédicas aí localizadas mesmo diante dos protocolos rígidos ou da ausência
de serviços.
Na saúde coletiva esse debate também tem sido intenso. Daniela Murta (2011) em sua tese
de doutorado pensou especificamente sobre como pensar a despatologização ao mesmo tempo
que se pretende garantir a continuidade da cobertura estatal para a transição e o cuidado em geral.
Tanto aí como na publicação de outro artigo junto com Guilherme Almeida (2012) há um grande
reforço da qualidade intrínseca do SUS como garantidor desse tipo de atendimento. Os próprios
princípios do sistema brasileiro de universalidade, integralidade, equidade e participação social
oferecem os mecanismos para argumentação e garantia do cuidado em atenção à saúde estruturada
para esse fim. Nesse sentido, Márcia Arán (2010) apontou principalmente para os efeitos psíquicos
da vulnerabilidade social ao se procurar acessar esses serviços, o que gera ainda maior violência
simbólica – recobrando Bourdieu – e participação na patologização do gênero. Nessas
considerações tem sido muito marcante a acepção formulada por Bento (2006) sobre ser a
transexualidade uma experiência identitária “caracterizada pelo conflito com as normas de gênero”.
A autora mostrava que “definir a pessoa transexual como doente é aprisioná-lo, fixá-lo em uma
130 Isso também esteve presente noutros países, como demonstra, na Espanha, Missé (2010) e Missé e Coll-Planas (2010).
171
posição existencial que encontra no próprio indivíduo a fonte explicativa para seus conflitos,
perspectiva divergente daqueles que a interpretam como uma experiência identitária” (Bento, 2006,
p. 15).
O questionamento e a reflexão sobre os saberes biomédicos e psicológicos sobre a
transexualidade têm percorrido um longo caminho e se puseram de modo paralelo e/ou anterior
às formulações brasileiras, obtendo, desde o final da década de 1980, uma intensificação
extraordinária principalmente no cenário euro-estadunidense, mesmo que tenha alcançado
atualmente um nível global. Nos Estados Unidos, uma série de fatores contribuíram para gerar um
quadro contra essa forma de patologia. Após o fechamento das “clínicas de gênero” universitárias
no final da década de 1980, nas quais as intervenções médicas eram performadas em pessoas trans,
esse atendimento migrou para o mercado privado no apogeu de um modelo individualista centrado
no paciente (Bolin, 1983; Meyerowitz, 2002). Isso foi ainda acompanhado, segundo Eric Plemons
(2017), pelo aumento de médicos formados no país e na intensificação da privatização da saúde no
mesmo período. O autor demonstra que a narrativa de doença do “corpo errado” que havia
ganhado vida naquelas clínicas então fechadas fora desestabilizada, dando lugar a novas narrativas
de diferença de gênero. Os ativistas, portanto, argumentavam no começo da década de 1990 que
“a vontade para patologizar e medicalizar formas particulares generificadas de ser e de incorporação
era em si mesma indicativa de uma patologia social difusa” (Plemons, 2017, p. 48, ênfase do autor,
tradução minha).
Tomava-se aí a retórica dos movimentos feministas, de gays e lésbicas e dos direitos civis
que haviam ganhado força anteriormente, e adotava-se o termo “transgenerista” para materializar
também uma mobilização pelo fim da discriminação daqueles que não se encaixavam na rigidez
dos protocolos. Mas não se constituíram nesse movimento intelectual e ativista discursos
homogêneos; de um lado se encarava o diagnóstico ao celebrar o potencial de transgressão de
gênero131 e de outro se afirmava que a patologização impedia o direito à autodeterminação. Segundo
Plemons, essa última retórica se inspirou diretamente nos reclames ligados a autonomia corporal
presente no movimento das mulheres pelo direito ao aborto. Essa última visão não negava as
cirurgias como a primeira, mas advogava e defendia seu acesso sem a classificação patológica,
postulando que deveriam ser as próprias pessoas interessadas quem poderiam definir que tipo de
cirurgia seria aplicada ou não. Tais ativistas e acadêmicos se baseavam em valores estadunidenses
131 Encaixam-se as reflexões de Susan Stryker (1994) que comparam a experiência transexual a do monstro de Frankenstein presente
no romance de Mary Shelley, publicado em 1823, e as de Sandy Stone (1992) quando também critica a visão patogênica e naturalista
de feministas lésbicas ao denominar uma visão pós-transexual para o movimento trans. Para balanços recentes ver, por exemplo,
Stone e Stryker (2016) sobre os posicionamentos políticos e teóricos de Stone. Em entrevista concedida a mim, Stryker narrou que
naquele período havia um misto de incerteza e vigor nas reivindicações que a mobilização estadunidense constituía, mas que não
dava para prever suas reverberações (a entrevista encontra-se em fase de preparação para publicação e foi realizada quando do meu
estágio sanduíche na Universidade do Arizona, na qual Stryker é professora).
172
de autonomia, no qual um desejo individualista era uma razão legítima para qualquer cirurgia de
trânsito de gênero. Nesse contexto, continua Plemons, as intenções por mudanças corporais
cirúrgicas passam a não mais depender da contestação do discurso da patologia e do tratamento,
mas principalmente do discurso médico que crescia largamente enquanto um meio de alcançar
autenticidade e otimização pessoal através das cirurgias plásticas e de ser saudável.
Outro cenário em particular, com influência mundial, se circunscreve na Europa,
principalmente a partir da Espanha e por meio de movimentos articulados em diferentes países do
mundo. Esses movimentos têm um caráter de espraiamento internacional contra a definição da
transexualidade como doença mental nos manuais de saúde e nas políticas públicas (Bento e Suess,
2012; Bento e Pelúcio, 2012a; Suess Schwend, 2016). Envolvendo ativistas de dentro ou de fora da
academia, além de pesquisadores acadêmicos sob variados matizes sociais e políticos, esse contexto
produziu tanto reflexões teóricas como ações coletivas para tentar influenciar as revisões dos
manuais de saúde e para problematizar o “diagnóstico trans”. É nesse sentido que Judith Butler
(2010), no seu prólogo ao livro organizado por Miquel Missé e Gerard Coll-Planas (2010) sobre o
tema, reflete que os termos usados no DSM importam de verdade porque essas palavras são o canal
através do qual as pessoas trans são interpretadas no campo das autoridades médicas e, por
extensão, no terreno legal. Por ser esse manual tão central em todo o mundo para a prática clínica,
se constitui uma luta pela terminologia que se adota para se referir a pessoas trans. Por isso, Butler
(2010, p. 2, tradução minha) afirma ser um erro achar que se trata apenas de “nomes” ou “que são
apenas uma série de descrições”, “o poder social efetivo está estreitamente ligado ao léxico
estabelecido com o objeto de diagnosticar e avaliar os casos médicos e psicológicos das pessoas
transgênero”.
A discussão sobre a produção de uma patologia trans que se baseia em valores morais sobre
masculino e feminino, corpos normais e anormais, de modo que a oposição criativa de
natureza/cultura ganha vulto em torno da questão da linguagem como fica nítido na reflexão de
Butler, e que perpassa tanto as críticas acadêmicas como as ativistas (Suess Schwend, 2016) fora e
dentro do Brasil (Bento e Pelúcio, 2012a). Isso se constitui a partir de uma linhagem teórica que
antecede a conformação nitidamente autônoma da problemática trans, e se faz presente nas
reflexões sobre a constituição da heterossexualidade como uma linguagem porque a sexualidade e
o gênero como instâncias separadas na teoria se fizeram também como um discurso. Sua reflexão
se alinha a um corpo teórico, portanto, que irá tecer análises sobre a produção da homossexualidade
e da homofobia junto de uma análise da linguagem, da rejeição de termos e da politização de outras
palavras originalmente usadas de maneira negativa para ojerizar e abjetar homossexuais que aliam
os contrários tidos para heterossexuais, o homem feminino/a mulher masculina e com desejos
173
sexuais para outros homens/mulheres. Essa é uma tradição teórica que terá grande influência em
autores e autoras brasileiros que discorrem sobre transexualidade nesse século, e colocam questões
importantes sobre violência, desejo, discriminação e marginalidade de populações longe ou pouco
dissonantes do ideal hegemônico heterossexual (Sedgwick, 2007 [1993]; Butler, 2001, 2003 [1990];
De Lauretis, 1991; Preciado, 2008; Bento, 2006, 2008a) e que posteriormente se denomina de
estudos queer, atravessando diferentes disciplinas e áreas de estudos a partir Estados Unidos132.
É por isso que tanta incerteza tive ao pensar em descrever etnograficamente a conformação
da ressignificação da categoria psiquiátrica disforia de gênero quando utilizada e referenciada por
interlocutores homens trans no curso do trabalho de campo. Assim, foi necessário ter percorrido
essa reflexão para entender e explicar como a transexualidade foi ligada a um conjunto de
sentimentos medicalizados e como foram levantadas as críticas contrárias a essa constituição
diagnóstica das pessoas trans, tanto por autores e autoras brasileiros como por ativistas e
acadêmicos estrangeiros que influenciaram e produzem reflexões nesse sentido. Na segunda
metade do capítulo, sigo à descrição propriamente dita de como o termo “disforia” e não
necessariamente “disforia de gênero” é entendido localmente como um descritor de emoções e de
experiências de sofrimento. Não quero inferir que se estabelece uma relação identitária com a
categoria, como se houvesse uma autodenominação enquanto “disfóricos”. Mesmo que isso integre
processos de subjetivação, estar disfórico é um estado sentimental de nível variado e não uma
identidade. Trata-se de um discurso incorporado – no sentido de ser corporalmente situado e
vivido133 – que se coloca em meio aquilo que Bourdieu (2008 [1982], p. 81) chamou de “operações
sociais de nomeação” que constituem, como “luta de classificações”, as classes sociais de todos os
tipos134. Portanto, essas operações se dão dentro de disputas pela validade de palavras e aquilo que
organizam. Para evitar a essencialização, bem como para situar a sua complexidade, a etnografia
que continuo a seguir posiciona o “sentir-se disfórico” numa perspectiva do cuidado e da vivência
das emoções. Alia-se como os interlocutores se percebem vivendo processos de aflição em meio a
processos de transição de gênero e através de situações de cuidado em saúde que são agravadas
pela marcação social da transexualidade como uma diferença. Entender antropologicamente a
produção social das emoções implica levar a sério a concepção da linguagem de sua expressão e
organização social.
132 No Brasil, além de muitos cientistas sociais – e pedagogas – terem intensamente recepcionado os termos da teoria queer (ver
Louro, 2000; Miskolci, 2012; Pereira, 2012), se produziram formas alternativas ou traduções culturais dessa teorização, como é o
caso de Berenice Bento (2017) que formulou a ideia de “estudos transviados” e Larissa Pelúcio (2014) com sua “teoria cu”, as quais
procuram dar relevo aos trânsitos de gênero e sexualidade e aos problemas/confusões que causam nas relações sociais.
133 Sempre que eu usar o termo incorporado ou incorporação me referirei a modos nos quais as formas sociais se estabelecem
através do corpo, isto é, as maneiras como se sente corporalmente as regras sociais por meio do habitus, a que já me referi.
134 Nesse trabalho Bourdieu não formula classe social em termos apenas socioeconômicos, como um grupo que mantém uma
regularidade unida de renda e de hábitos, mas classe na sua acepção mais larga como um todo definido que pode se remeter a
qualquer tipo de classificação como por ex., o sexo, a idade, a etnia, entre outros.
174
3.4. Transição de gênero, adoecimento e emoções
A partir de Bence Solymár e Judit Tukács (2007), Raewyin Connell (2012) vocaliza a
“transicionalidade” como ideia-chave para entender e explicar a transexualidade. Sua preocupação
é de repensá-la como um processo de gênero no qual as dinâmicas sociais são mais importantes do
que as identidades, uma vez que estas não endereçariam suficientemente a dimensão da mudança
de posições sociais. Essa transição implica um trabalho corporal a tal ponto que o corpo se torna
crucial nessa experiência – como mostram várias pesquisas e não só a minha (Bento, 2006; 2008;
Rego, 2015; Solymár e Tukács, 2007; Connell, 2012) –, de modo que “o que é feito com os corpos
no curso das transições de gênero pode evocar horror e raiva, evocando medos sobre castração e
monstruosidade” (Connell, 2012, p. 866, tradução minha). A socióloga parte primordialmente das
experiências de mulheres transexuais nas quais a ideia de castração135 é um marco ao se pensar na
redesignação sexual pela transformação do pênis em vagina. O que ela quer indicar é o caráter
continuamente prático da transexualidade: que tipo de trabalho se enseja e se produz para mudar
de gênero. Isso não aponta para um alcance impossível de uma reta final, o foco está no processo
através do qual alguém se constitui ao lidar com o que chama de “estrutura de gênero”. Assim, é
melhor “pensar sobre processos poderosos de incorporação social como constantemente
engajando corpos e agência corporal, bem como práticas sociais e significados culturais” (Connell,
2012, p. 867, tradução minha).
Na minha pesquisa de mestrado observei que homens trans situavam duas dimensões,
embora unidas, da transição de gênero: uma se referia ao trabalho corporal e outra a um
engajamento subjetivo. Seria no terreno individual em interação social que alguém se estabeleceria
como noutro gênero por meio de um conflito, e assim começava sua transição sem necessariamente
acionar seu corpo – a narrativa, portanto, do “corpo-errado”. Dava-se como se o eu interior fosse
ontologicamente anterior ao corpo sobre o qual agora bastava adequar, uma teoria muito similar às
explicações psi e biomédicas que já vimos até aqui. Entretanto, essa importância dada a uma
descentralização de concepções sobre o corpo respondia ainda ao escrutínio biomédico sobre a
definição de quem seria ou não transexual de verdade: apenas após uma cirurgia de mudança de
sexo se poderia mudar o registro civil, apenas apresentando aversão ao corpo se poderia ser
enquadrado como transexual. A ideia é que não houvesse cirurgias nem modificações outras
obrigatórias. Contudo, isso transborda os ambientes de saúde, uma vez que o campo que
investiguei não se dava primordialmente com um contato com médicos e médicas dado que em
135 A castração tem sido uma ideia ou uma experiência recorrente nas reflexões sobre gênero e sexualidade, dentro e fora do
“Ocidente” europeu. Simone de Beauvoir (1970 [1949]) já a pensou para estudar a posição da mulher nas sociedades, comparando-
as a outras espécies animais e à experiência dos eunucos para mostrar que a ausência de pênis não era em si o que tornava a mulher
inferior nas “relações entre os sexos”.
175
Natal, no Rio Grande do Norte, à época, não havia nenhum serviço estruturado nesse sentido. Por
isso, era uma estratégia política trazer a subjetividade para um primeiro plano, ao mesmo tempo
em que essas descrições não subsumiam com o corpo como algo desimportante para esse processo
de subjetivação, presente, por exemplo, na metáfora do espelho (Rego, 2015)136.
A narrativa do espelho era uma dimensão importante nessas biografias que acabavam por
gerar uma representação do corpo pela transição. Se, num primeiro momento, parece ser deslocado
para dar vazão à razão subjetiva presente na mente – separada do corpo –, as descrições do
encontro com o espelho expressam novamente a centralidade da agência sobre o corpo, isto é, a
forma como alguém olha para si mesmo e produz sentidos sobre seu corpo que não estão
dissociados das expectativas culturais e sociais para o gênero a partir do qual, e por meio do qual,
se constitui uma experiência de desconforto e angústia que essa cena quer ser um extrato (Rego,
2015). Isso também esteve presente nas narrativas de vida dos interlocutores no curso da pesquisa
para essa tese. O espelho expõe algo do corpo, mesmo que aí possamos conceber que essa cena
dramaticamente concebida produz ela mesma os lugares que esse corpo ocupa e aquilo que se pode
fazer dele. Essa narrativa é expressa por meio das emoções e participa da produção da transição.
Embora nem todas as pessoas tenham a mesma relação com os corpos, no sentido justamente a
que responde a centralização da subjetividade para explicar a transexualidade, o corpo continua
sendo o lócus e uma dimensão importante do processo de trânsito entre os gêneros. A narrativa
da transição de gênero se materializa como um discurso no qual se organizam emoções vivenciadas
socialmente.
Mesmo que Raewyin Connell (2012) evoque que a transição implica um trabalho muitas
vezes árduo de engajamento corporal, cujo resultado e vivência processual implicam sentimentos
como medo e aversão, a experiência das emoções é um terreno pouco desbravado por
pesquisadores dessa temática. Chamara-me a atenção no trabalho de campo conversas entre os
interlocutores sobre o quão pouco frequente eram discussões sobre um certo mal-estar vivido por
eles. Descrições nesse sentido tem geralmente ocupado mais as páginas daqueles que apontam a
transexualidade como algo irreal ou doentio, como o faz a notória Sheila Jeffreys (2014) em seu
livro Gender Hurts. A feminista replicava os argumentos de décadas anteriores de Janice Raymond
(1979) para quem as mulheres transexuais seriam uma ameaça a mulheres lésbicas por um
qualificador masculino inerente levá-las à violência e à dominação das “mulheres de verdade”.
136 Cabe apontar, ainda, que é necessário não ter uma visão estanque da transição de gênero, uma categoria concebida também pelos
interlocutores como algo que tanto diz respeito ao trabalho múltiplo do reconhecimento oficial da mudança entre um gênero e
outro, como também se refere a experiências de uma vida inteira porque não é possível haver uma fixidez tão rígida que estabeleça
tipos puros de posições sociais. Era por isso que um dos interlocutores da época do mestrado me dizia que estava em transição
“desde sempre”. Além disso, as transições atingem quaisquer sujeitos, sejam eles trans ou não, porque os movimentos entre normas,
valores e corpos não são fixados como o ideal de heterossexualidade hegemônica peleja para conformar.
176
Jeffreys chega a defender que o discurso biomédico sobre, como chama, transgenerismo estaria
desestabilizando a comunidade gay e lésbica ao seduzi-la para a correção que a transexualidade
representaria. As cirurgias são por ela qualificadas como abuso médico dos direitos humanos.
Nesse sentido, é mister que nos ocupemos da produção social dos sentimentos no processo
da transição, e do conjunto de emoções a ele relativo, considerando como as próprias pessoas trans
produzem significados e organizam-se no âmbito dos sentimentos. Com isso, atrelam um
entendimento sobre o sentido e efeitos sociais dos eventos e das experiências que vivenciam. Isso
nos levaria ao afastamento de senso comum desprovido de reflexões com base empírica, nos
prevenindo do subjetivismo de Jeffreys. Haveria um mal-estar inerente a transição de gênero? Se esse
mal-estar existe, de que ele advém, e quais são seus efeitos? Como se produz sentido sobre ele?
Quero sugerir que, ao invés de pensar em “mal-estar”137, pode-se conceber como se constituem
processos de aflição no curso das transições e do conflito por elas produzidas. Não como algo
naturalizado, mas como nos instando a entender as condições sociais e simbólicas para sua
concepção, sensação e significação. Uma questão fundamental nesse sentido é compreender a
relação entre corpo e emoção. E mais precisamente, refletir sobre o que pode e o que não pode a
análise das emoções oferecer para entendermos a conformação “nativa” da disforia enquanto um
extrato de afetos, como nos ensinam os interlocutores dessa pesquisa sem repetir ipsis litteris os
sentidos atribuídos pela medicina e para quem a aversão ao se olhar no espelho, por exemplo, é a
manifestação da violência advinda dos conflitos sociais que são corporalizados.
A abordagem antropológica das emoções não guarda apenas uma vertente analítica, embora
seja comum o valor atribuído a etnografia como o único ponto de partida válido para os dados
empíricos. Com um status ambíguo, as emoções sempre estiveram presentes nas monografias na
disciplina, seja de modo natural ou como objeto além da alçada dos antropólogos e antropólogas
(Rezende e Coelho, 2010, 2011; Víctora e Coelho, 2019). Sua relevância inicial foi particularmente
observada nos trabalhos da vertente psicológica culturalista estadunidense segundo a qual os
indivíduos eram loci de observação para entender as formações do eu interior, algo que não pode
ser dissociado do status elevado na cultura daquele país: as emoções como expressão da parte mais
profunda e verdadeira do indivíduo. Isso fora replicado no estudo do outro exótico, ora por sua
reunião para formar uma psicologia coletiva (Mead, 1999 [1935]), ora para ser por ela estabelecida
conformando tipos coletivos de moralidades (Benedict, 2002 [1946])138. No desenvolvimento dessa
137 No sentido que subjaz na ideia psicanalítica de Sigmund Freud (1996 [1929]) sobre o desenvolvimento algo natural das emoções.
Assim, o autor explica os incentivos e impressões sentimentais como são cruciais para o eu interior mais profundo. Mal-estar
significa, portanto, a ausência de correspondência entre os sentidos e a satisfação de uma necessidade individual intensa.
138 Apesar de ter caído em desgraça, ocupando hoje uma posição apenas histórica, os trabalhos das chamadas escolas estadunidenses
de cultura e personalidade e seus continuadores renovados em “antropologia psicológica” – e dos antropólogos subespecializados
em linguística – ajudaram a assentar o interesse sob muitas das categorias e dimensões com as quais a antropologia hoje trabalha
como “eu”, “emoção”, “indivíduo”, “discurso” (speech), entre outros. E foram, elas mesmas, uma reação contrária a Freud. A própria
177
corrente se constituiu uma tradição que observava as emoções como propriedades das pessoas
ontologicamente anteriores ao social. A sua localização se daria na cultura, mas em termos muito
generalistas querendo apreender um “léxico emocional”. A linguagem seria a via de acesso para
entender as emoções, como o veículo de sua transmissão. A abordagem é, então, correspondente
a uma psicologia social dominada por um individualismo metodológico (Lutz e White, 1986). No
final da década de 1970 e início dos anos 1980, antropólogos e antropólogas começam a estudar as
emoções de diferentes maneiras dando mais relevo à dimensão sociocultural.
Crescia, assim, a rejeição quase ojerizada do viés “psicológico” naturalista que dominava
outras ciências e as primeiras apreensões da própria antropologia. Nesse contexto, novas
etnografias indígenas são escritas objetivando demonstrar um caráter eminentemente cultural, não
natural, dos afetos (p. ex. Lutz, 1988). Disso, as diferenças nas concepções teóricas ganham vulto
entre universalistas e relativistas, oposição que guarda à primeira o estabelecimento de uma
habilidade humana universal e suas variações como epifenômeno da essência de um fenômeno
natural, e à segunda, que rejeita a acepção de um estado interno de indivíduos e enfatiza a
diversidade cultural (Lutz e White, 1986). Outra oposição que goza de relativo relevo é aquela entre
descrições de sentimentos corporais ou significados culturais (Leavitt, 1996) através dos quais o
corpo (e o pensamento) é a matriz na qual a emoção é vivida (Rosaldo, 1980). Paulatinamente,
consolida-se uma visão cada vez mais relativista preocupada em indicar que o domínio das emoções
não poderia ser o mesmo em todas as culturas, isto é, não apenas as culturas detinham emoções
diferentes para os mesmos problemas, como sua expressão, controle e definição eram diversos.
Explorando os cruzamentos constitutivos entre a fala como recurso à comunicação e as
políticas da vida cotidiana, autores reunidos no volume editado por Lila Abu-Lughod e Catherine
Lutz (1990) marcam exemplarmente o que se tem chamado de “virada discursiva” ao reclamar pelo
caráter linguístico da expressão e do acesso metodológico às emoções. Na sua introdução, as
antropólogas realizam um balanço e buscam reorientar o campo nesse sentido. Abu-Lughod e Lutz
(1990a, p. 1-2, tradução minha) definem essa então nova abordagem pelo seu foco na “constituição
da emoção, e até pelo domínio da emoção em si mesmo, no discurso ou nas práticas de fala, por
sua interpretação da emoção referente a vida social mais do que a estados internos”. Mesmo não
se referindo ao eu interior, essa vertente considerava uma ligação imediata entre “as conversas
emocionais e as questões de sociabilidade e poder”. Partindo do pressuposto de que as emoções
são construtos socioculturais, interessam-se pelas “maneiras pelas quais a emoção toma seu
significado e sua força a partir da sua localização e performance no reino do discurso” (idem, p. 7).
concepção de que a linguagem acessa as emoções é um mérito desse período na sua preocupação com uma psicologia cultural
(Darnell, 2001). Ver Regna Darnell (2001) para um entendimento aprofundado desse campo.
178
Mais próximas de uma análise foucaultiana do discurso do que da abordagem da linguística que
dominava os trabalhos anteriores, tornava relevante considerar conversas, falas, expressões orais e
escritas, e até mesmo musicais. Não na forma de texto, mas como se constituem enquanto práticas
sociais, rejeitando assim um modelo mentalista para a descrição etnográfica. Essa virada é herdeira
dos trabalhos que exploraram as facetas das emoções por meio da performance e da linguagem. O
discurso apreende o sentimento partindo da concepção de que ele é um fenômeno que pode ser
visto na interação social majoritariamente verbal, levando a não desconsiderar o seu caráter de
mudança e contestação social.
Outra importante apreensão dessa vertente é sua afirmação de que as emoções não apenas
são informadas por valores e elementos culturais, mas como são elas mesmas operadoras de um
campo de atividade sociocultural ao produzir efeitos onde servem como idioma para comunicar e
para atingir diferentes assuntos relevantes da vida coletiva, como o conflito (White, 1990; Lutz,
1990). Essa importância dada ao discurso tem sido chamada de exagerada, sob acusações de que
não se daria o verdadeiro valor a como as emoções são incorporadas, isto é, como são sentidas
pelo corpo. De algum modo antecipando essas críticas, as autoras afirmaram que “a iniciativa para
assegurar que as emoções se mantêm incorporadas, contudo, deve ser vista como mais do que uma
tentativa para posicioná-las no corpo humano. Considerar a incorporação das emoções também
envolve teoricamente situá-las no corpo social para que se possa examinar como os discursos
emotivos são formados pela e nas formas das ecologias e economias políticas nas quais elas
surgem” (Abu-Lughod e Lutz, 1990a, p. 13, tradução minha). Ainda assim, a afirmação de Abu-
Lughod e Lutz (1990a) de que a emoção participa do discurso, mas não é ela mesma o discurso
caiu sob um escrutínio que passou a afirmar que as emoções não são apenas expressadas, elas são
produzidas através da linguagem (Allard, 2013) no movimento de sua expressão porque, de algum
modo, se o discurso apenas expressa, ele expressa algo interno ao sujeito, uma qualidade interior
profunda. Mesmo considerando aqui que analisar etnograficamente o lugar e o papel das emoções
na vida social implica que se deva considerá-las no modo como são produzidas, sentidas,
compreendidas e organizadas aliando-se ao que surge como efeito e consequência, as proposições
dos autores da vertente da virada discursiva permanecem pertinentes na forma como endereçam o
acesso do discurso às emoções e a forma como elas são vividas através de uma performance
cotidiana que alcança elementos considerados os mais banais.
Como se percebe até agora, os termos emoções, sentimentos e afetos têm sido usados de
modo sinonímico. Embora tenha havido certo interesse de alguns autores em separar
conceitualmente tais termos (Abu-Lughod, 1986; Besnier, 1990; Abu-Lughod e Lutz, 1990a;
Boellstorff, 2004; Wilce, 2009; Allard, 2013), compreende-se aqui não haver uma distinção
179
etnograficamente relevante a esse respeito para se passar a tal empreitada. Essa tem sido uma
dimensão que ora era acionada como uma capacidade individual de reagir a estímulos coletivos,
ora produzida inteiramente por causa do contato com outros no curso das interações sociais. Mas
não havia uma representação precisa que separasse “sentimentos” de “emoções” ou “afetos” – esse
último estava situado mais no âmbito afetivo-sexual entre parceiros amorosos. Essa concepção
contraditória animou a compreensão dos interlocutores sobre como “a sociedade” lhes produzia
os adoecimentos que viviam, sejam eles relativos ou não a uma consequência pela discriminação
que sofriam advinda dos seus trânsitos corporais e institucionais na busca por se posicionar
diferentemente nas relações de gênero ou pelo agravamento ou facilitação de adoecimentos outros.
Quando as teorias, terapêuticas e protocolos biomédicos estabelecem a angústia (distress)
como sintoma principal para reconhecer a disforia de gênero nos defrontamos principalmente com
a problemática da natureza das técnicas para medir esse sentimento, uma vez que é impossível
haver o mesmo nível mensurável de “angústia” a não ser se for definido arbitrariamente. Mary-Jo
Del Vecchio Good, Byron Good e Michael Fischer (1988) há muito já apontaram as dificuldades
de inferir uma medição desse tipo, algo já exposto nas etnografias de então. Ao analisar pesquisas
sobre sociedades do Oriente Médio, os autores mostraram que percepções públicas do
nacionalismo virulento e apaixonado e o fundamentalismo religioso tido como irracional eram
justapostos a uma leitura psiquiátrica que postulava que pacientes desse contexto somatizavam
angústias mais do que expressavam emoções. Ou seja, se medicalizavam os sentimentos vividos
contextualmente. Isso respondia a um interesse em descrever a “mente árabe” e um tipo de caráter
nacional. A dificuldade analítica recai de modo redobrado se a comparação é realizada entre
culturas, levando os autores a sugerirem que se deveria partir de discursos situados, se aliando as
formulações de Lila Abu-Lughod (1986) e outros antropólogos da virada discursiva. Se havia aí
uma formulação de “cultura” muito bem definida, podemos realocar a preocupação nas fronteiras
ou regiões produzidas pelos próprios grupos, comunidades e sujeitos, ao invés de impormos uma
cultura emocional específica. “A conceitualização da emoção como uma qualidade de experiência
representada em dimensões sutis da linguagem se afirma em contraste a recente pesquisa cognitiva
que focalizava quase exclusivamente em emoções como discretas, estados marcados e dimensões
referenciais do discurso emocional” (Good, Good e Fischer, 1988, p. 4, tradução minha).
Essas interpretações têm demonstrado, assim, o cruzamento indissociável entre experiência
das emoções, terapêuticas e adoecimento. Isso me insta a observar o cruzamento dessas
experiências com processos de saúde e doença e outras dimensões da vida social demarcadas por
outros marcadores sociais da diferença. Por isso que opto, ao continuar esse capítulo, em descrever
transições de gênero em meio as vivências relativas a itinerários terapêuticos. Não me refiro, agora,
180
aos protocolos admissionais do Processo Transexualizador em si, mas como o entrecruzamento
no campo da saúde e da diferença produzem experiências de sofrimento que reforçam processos
de aflição já presentes nos conflitos relativos aos de trânsitos de gênero. Para lidar, organizar e
significar essas experiências multifacetadas, os interlocutores são aqui descritos de modo a expor
suas estratégias no âmbito duma linguagem das emoções em meio a relações de cuidado e práticas
sociais que procuram constituir. A descrição disso se apresenta como a condição sem a qual não
poderíamos entender algo da concepção do sentir da disforia. Passo, a seguir, a recorrer num estilo
narrativo a histórias de processos de sofrimento cruzados por adoecimentos e por transições de
gênero, para, posteriormente, refletir sobre elas.
3.4.1. A disforia como categoria classificatória do sofrimento
Quando cheguei à casa de Paulo percebi que a fachada era bonita, pintada e parecia recém-
reformada. Ela destoava do resto da paisagem que compunha a rua, que era dominada por um
vermelho barro de casas e lajes nuas, sem reboco. A rua era larga e eu não via seu final. Essa imagem
é bem viva na minha memória, talvez porque fosse a primeira vez que visitava uma das favelas de
Fortaleza, as quais estavam com muita frequência nos jornais da cidade quando os jornalistas
escreviam longas ou rápidas notas sobre o tráfico de drogas e as brigas entre facções139. Havia muita
gente na rua naquele momento, ainda no meio da manhã. Crianças brincavam, correndo, outras
meninas adolescentes passavam carregando provavelmente irmãos mais novos nos braços; e os
pequenos comércios próximos, como a borracharia de frente, eram bem movimentados. Tinha
chegado ali de ônibus, seguindo as orientações de Paulo sobre qual “pegar”, em qual parada descer
e quanto eu teria que andar depois disso. O trajeto demorou um pouco e eu ainda me perdi; fui
descer bem depois do lugar indicado, tendo que voltar a pé. Após alguns minutos após ter avisado
que estava à sua porta, Lucíola, sua companheira, veio abrir o portão. Ela pedia para eu não reparar
na bagunça, após andarmos por um corredor cinza de térreo, apenas rebocado, diferente da fachada
do que agora percebia ser um pequeno grupo de quitinetes de um andar. Davam-me as boas-vindas
e pediam para que eu me sentasse, e logo mais iríamos começar a entrevista para a qual estava a
lhes visitar.
Paulo ainda estava terminando de se arrumar, colocando o seu bainder, para poder me
receber. Antes de iniciarmos, eles me ofereceram algo para comer como café da manhã. Enquanto
comíamos, conversamos bastante antes de começarmos a entrevista. Lucíola pergunta-nos se pode
139 Alba Zaluar (1985) experienciou algo semelhante na sua etnografia na Cidade de Deus, no Rio de Janeiro. Apesar de Paulo e
Lucíola morarem nessa região, possivelmente identificada como favela, o cenário não era de ocupação irregular do espaço, nem
houve uma significativa preponderância desse contexto para as reflexões que empreendo nessa tese. Além disso, não convivi com
eles na região. Para entender o contexto das facções e do crime organizado em Fortaleza ver Luiz Fábio S. Paiva (2019).
181
ficar presente, e eu digo que eles quem deveriam decidir e ela permanece. Sua casa de três pequenos
cômodos, incluindo um banheiro, é o que podem pagar com o salário-mínimo que Paulo recebe
de seu emprego como atendente de telemarketing. Seus planos são de se mudar dali o mais rápido
possível, e estavam à procura de um lugar em que se sentissem mais confortáveis. Lucíola procurava
emprego sem sucesso nos últimos meses. Sem experiência profissional, e jovem e trans, sempre
esbarrava na prerrogativa de seus documentos não combinarem com sua aparência feminina. Há
poucos meses começara a receber um benefício social do Bolsa Família. Embora possa parecer
pequeno, um pouco mais de cem reais, esse acréscimo na renda do casal fazia uma enorme
diferença no final do mês. Ambos não tinham contato com suas famílias de origem, nas quais não
eram bem-vindos. Paulo nos diz que Lucíola, sua companheira, é a única família que ele tem desde
que todos os seus familiares não se preocupam nem querem saber notícias a seu respeito. Esse
momento nos emociona e eles se abraçam. Conheço os dois antes de viverem juntos na casa atual,
pois acompanhava suas atividades nos grupos de ativismo da cidade e testemunhei quando se
conheceram e começaram a namorar. Sentiam-se a sós no mundo, e a companhia um do outro,
para além dos amigos do movimento social, os animava a vida possível para além daquela
precariedade que precisavam se defrontar cotidianamente tanto socioeconômica, como no âmago
das relações de gênero e sexualidade.
Paulo, particularmente, vinha se sentindo sobrecarregado com o emprego do qual não
gostava e do pequeno salário que não durava até final do mês. “Quando chegava dia 20 eu não
tinha mais o que comer”, dizia para lembrar que antes de viver com Lucíola passara fome. Vindo
de uma cidade de menos 20 mil habitantes no interior do Ceará, a 300km a norte da capital, Paulo
se reconhecia como indígena, mas gostaria de informar sua etnia. Sendo o filho mais novo de uma
família de “irmãos homens”, era culpado por seus parentes por não ter permanecido na sua cidade
após as mortes de sua mãe e avó, que ocorreram na mesma semana. Como foi identificado ao
nascer como mulher, me diz, esperava-se que tomasse conta dos irmãos, mas ele nunca se viu nessa
posição de cuidadora. Via-se sendo o mecânico que seu pai e irmãos eram, mas nunca permitiram
que aprendesse o ofício em casa. Com a ruptura que a morte de sua mãe representou, migra para
Fortaleza sozinho para tentar recomeçar a vida. Aos poucos, com uso da internet e eventos ativistas
na cidade, vai conhecendo outros homens trans, e chega a participar da organização política que
crescia na época em que eu fiz trabalho de campo. Na verdade, até o momento que mantivemos
contato no campo sua família não sabia nada sobre a sua transição. Apesar da dimensão coletiva
do movimento social, cada um desses interlocutores tem sua própria vida para contemplar com seu
próprio esforço. É o que fica nítido quando demonstram que os amigos ajudam, mas até um certo
ponto. É preciso ir à luta também por si mesmo.
182
Quando terminamos nossa entrevista de mais de uma hora, sigo com Paulo para a parada
de ônibus que fica numa rua paralela à sua; ele iria para o trabalho e entraria pouco depois das 14
horas da tarde e trabalharia até 22 horas da noite daquele dia. No caminho continuamos a
conversar, ao que me confidencia que não aguenta mais seu emprego. É constantemente assediado
pelos seus colegas e supervisores que lhe chamam por seu nome feminino de batismo e, vez ou
outra, é motivo de fofoca no ambiente de trabalho sobre ser doente ou ser um produto de forças
malignas através de uma perspectiva religiosa judaico-cristã. Mas o que pode fazer, me pergunta,
se sem esse emprego estaria fadado a fome imediata? Sem parentes a quem recorrer, não tem
alternativa a não ser se submeter a essa rotina excruciante. Já descemos do ônibus e caminhamos
por uma rua que dá acesso a empresa na qual trabalha. Antes de nos despedirmos reforça que toda
essa situação financeira e laboral está lhe fazendo adoecer. Como se não bastasse ter que lidar com
os desconfortos que seu corpo lhe trazia – por não ter os recursos para as modificações –, tudo se
tornava ainda mais difícil por não ter certeza se no dia seguinte conseguira se manter no emprego
ou se seria demitido – como outros foram recentemente na empresa na qual trabalha. Uma série
de incertezas estavam a sua espreita, da fome, do desemprego, de não se afirmar na identidade e
no corpo que deseja, elementos disjuntores que produzem um processo de aflição inquietante. A
sensação estava sendo quase insuportável, afirmava. Para tentar sanar as sensações que descrevia
como ansiedade, tristeza e inquietações começara a tentar uma consulta no CAPS com um
psiquiatra, o que não se demonstrou de fácil realização.
Antes dessa entrevista, Paulo tentara diversos encaminhamentos para conseguir marcação
com algum médico do serviço de sexologia da região que poderia iniciar alguma supervisão à sua
transição. Mas não vinha conseguindo fazer com que um médico de família o encaminhasse do
postinho para o hospital no qual havia uma sexóloga. Saímos da casa de amigos na qual estava num
dia anterior para um atendimento com uma assistente social da Prefeitura para conseguir tal
encaminhamento. Conforme chegamos lá, a assistente social ainda não se encontrava. Enquanto a
esperávamos, continuamos conversando sobre como ele tem se sentido sozinho, já que se mudara
para Fortaleza e não tinha familiares ali. Há poucas semanas havia conhecido melhor Lucíola, de
quem havia gostado particularmente, me confidenciando que estavam começando a “ficar”. “Ela é
trans como eu”, afirmava, “ela me entende muito”. A similaridade de suas experiências os tornavam
mais compreensíveis às estratégias que poderiam ter que assumir para a transição, a organização
das alterações corporais e a relação com as instituições estatais. Algo que uma pessoa não-trans
geralmente não entenderia, me diz. Passados mais de trinta minutos perguntamos novamente se a
assistente social ainda viria fazer o atendimento, ao que nos responde que ela estava presa no
trânsito, mas que logo chegaria. Passam das 10 horas da manhã quando Paulo é atendido, mas sai
183
dali sem o encaminhamento. Apenas a psicóloga do serviço poderia fazê-lo, de modo que precisaria
voltar outro dia. Saímos e o acompanho até a parada de ônibus ainda no centro da cidade, quando
ele retorna para casa já que entrará depois do almoço no trabalho.
As idas e vindas aos serviços ganham um agravamento ainda maior quando Paulo continua,
após tentar repetidas vezes, sem uma consulta com o psiquiatra para “resolver” o que denomina
de ansiedade. Passados vários dias da nossa entrevista na sua casa, à noite, recebo um telefonema
de sua companheira Lucíola me pedindo ajuda. Paulo estava tendo “uma crise” e se debatia após
sentir o que chama de “síndrome do pânico”. Ela me pede ajuda para contatar uma ambulância, e
me conta que estão há várias semanas tentando consultas nos postinhos do bairro no qual moram
e vizinhos, mas sem sucesso. Os bairros nos quais moram e eu morava eram geograficamente
opostos, e nesse momento estou em casa e me sinto muito impotente por não poder ir eu mesmo
lá ajudá-los; o que posso fazer, contudo, é ligar para a emergência, retornando seu telefonema para
dizer que estão a caminho. Fiquei a noite toda preocupado, e mais tarde procuro saber se as coisas
se normalizaram, mas consigo falar com Lucíola apenas no dia seguinte. Paulo passava bem, mas a
situação de sua ansiedade não havia se resolvido, uma vez que seus problemas que eram produzidos
socialmente, como a precariedade de seu emprego e a falta de acesso a consultas médicas para
dirimir suas preocupações diante de sua aflição com o corpo, também não chegaram a uma
resolução em primeiro lugar.
Paulo se via vivenciando um processo de adoecimento segundo uma linguagem e
inteligibilidade biomédicas, e por isso, o acesso ao psiquiatra era por ele indicado de forma tão
importante. Não seria apenas a terapia psicológica que iria ajudá-lo a “suportar” seu emprego, as
situações vexatórias que vivia lá e a falta de maiores recursos para comer melhor e morar bem. O
medicamento que o psiquiatra poderia oferecer para aplacar um pouco sua aflição que denominava
de ansiedade era a única saída que imaginava no momento. Ele definia-se “tendo” um “problema
psicológico” por causa do que estava vivenciando ultimamente. Dentre as vezes que procurou ser
encaminhado para o CAPS no postinho, lhe disseram que o serviço era apenas destinado a casos de
“risco de morte”. Ele me pergunta, “como saber quem está em risco de morte?”. A avaliação de
quem está bem ou não para ser apto ao atendimento psiquiátrico é, então, questionado por Paulo
ao continuar narrando os itinerários que teve que percorrer para conseguir alguma consulta no
âmbito do Processo Transexualizador.
Voltando a entrevista que realizamos na casa de Paulo, lhe pergunto o que ele tem pensando
sobre a transexualidade ser reconhecida através de um diagnóstico. Respondendo que não se
considerava doente, a conversa acaba envolvendo também Lucíola que expressa “sua opinião”,
como diz. Se no decorrer do dia a dia, e inclusive nas atividades do movimento social era expresso
184
que se sentiam mal com o próprio corpo, trazendo a categoria “disforia”, nosso diálogo a seguir
exemplifica como a consideram. Depois de dizer que gostaria de fazer todas as cirurgias
(mamoplastia, histerectomia, faloplastia), Paulo retoma nosso diálogo:
Paulo: [A disforia é] não se sentir bem com alguma coisa, uma coisa que tá te
incomodando, te fazendo mal e tu quer tirar e não consegue. Como se fosse uma coisa
no seu corpo que tá grudado e você não consegue tirar e te faz totalmente mal e você
não quer tá perto daquilo. É uma coisa que te faz tão mal que você nem consegue olhar
praquilo. [...]. Tem a ver com o corpo. Não vejo [como doença].
Lucíola: Porque.... Posso dar minha opinião?
Eu: Pode....
Lucíola: Porque disforia, se for pela base do significado da palavra, é quando você tem,
é.... aversão a algo que está no seu corpo. Então, eu acredito que toda pessoa tem.
Paulo: Toda pessoa tem, isso.
Lucíola: Principalmente as mulheres cis... e todas as mulheres, né, mulheres cis, todas as
mulheres, trans, travestis, porque a sociedade nos impõe a estética, né?! E se a gente perde
a estética, perde a validade pra eles...
Paulo: Até os homens também eu acho, os homens cis tem disforia.
Lucíola: Sim, tem.
Paulo: Tem homem cis que tem pênis pequeno e “ai, eu não gosto disso aqui, quero ele
maior”. Toma até remédio pra poder aumentar, né?! Ou então, tipo: “ah, eu não tenho
barba, quero ter barba, será se eu sou menos homem por causa disso?” Então tem
homem cis tem isso, só que pra eles é um mal-estar, e o nosso é a disforia, é a coisa da
cabeça, doente mental.
Lucíola: Mulheres que tem seios pequenos: “ah, tem que botar silicone”. Já vi uma amiga
minha que a mãe dela disse que quando ela crescesse ia pagar pra ela botar silicone. [...].
Paulo: Ou seja, é, as pessoas cis veem com isso só um desconforto que elas querem, tipo,
esteticizar e deixar melhor. E enquanto a gente, é, enquanto pra eles, eles veem a gente
como pessoas que tem problemas mentais que querem mudar uma parte do corpo pra
outra que nada tem a ver, quando eles fazem as mesmas coisas quando fazem cirurgias,
né?!
Lucíola: Todas as pessoas têm disforia, só que umas têm um grau maior (Entrevista com
Paulo e Lucíola, mar. 2018).
Vemos, assim, uma comparação que normaliza as mudanças corporais no decurso da
transição de gênero porque as estabelece lado a lado daquelas advindas pela via das cirurgias
estéticas140 e pelo desconforto que qualquer pessoa poderia sentir, desmedicalizando até certo
ponto sua percepção. A estratégia da comparação deixa em relevo que a liberação total das cirurgias
estéticas e o controle rígido das cirurgias e outras mudanças corporais das pessoas trans responde
140 A relação das cirurgias de redesignação sexual com as cirurgias estéticas era tomada por diferentes agentes sociais no curso do
trabalho de campo. Se, num primeiro momento, os pacientes e/ou ativistas inferiam que as primeiras não são “estéticas” para
assegurar uma necessidade de saúde, era aliada a segunda porque não lhe havia nenhuma regulação diagnóstica.
185
a uma moralidade e não a um risco genuíno desses procedimentos. Algo que será realizado por
outros interlocutores quando incorporaram explicações sobre como sentem uma disforia. Não se
preocupa, contudo, com a menção e grande articulação dos termos pelas ciências médicas que
formularam e aplicam as avaliações que selecionam os que podem ou não mudar partes do corpo.
Assim, Lucíola e Paulo veem que as cirurgias de transição deveriam ser enquadradas como
respostas às mesmas questões que as “cirurgias de estética” respondem: o aprimoramento do corpo
como um aperfeiçoamento de si.
Geíza Pereira Alves (2007) demonstrou que as formulações de pessoas que procuravam
cirurgias estéticas atribuíam como fundamento que essa modificação corporal fosse resultado de
uma razão que colocava a cirurgia para si ou para o outro. De um lado se tinha que isso advinha
da vontade de assegurar uma beleza para a continuidade do casamento, por exemplo; e para a
segunda, a racionalização estava numa maior presença de um individualismo que atribuía ao “sentir
bem consigo mesmo” o pilar dos desejos da mudança. O corpo ideal aí não é um propulsor isolado.
A cirurgia para si “revela também funções psicológicas e morais. Deixar a feiura tomar conta de si
caracteriza a um só tempo uma ruptura estética e psíquica, da qual decorre a perda da autoestima,
ressaltando-se que a dimensão ética é também rompida, pois se deixar ficar feia é interpretado
como má conduta pessoal” (Alves, 2007, p. 97).
O individualismo enquanto valor se torna, portanto, o fundamento de uma razão estética
para a cirurgia trans, uma vez que torna relevante uma noção de pessoa específica que a sua
garantiria. Segundo Louis Dumont (1985), indivíduo se refere tanto a “um objeto fora de nós”
como a “um valor”. Assim, “de um lado, o sujeito empírico que fala, pensa e quer, ou seja, a amostra
individual da espécie humana, tal como a encontramos em todas as sociedades; do outro, o ser moral
independente, autônomo e, por conseguinte, essencialmente não-social, portador dos nossos
valores supremos, e que se encontra em primeiro lugar em nossa ideologia moderna do homem e
da sociedade” (Dumont, 1985, p. 37). Embora não seja o caso de definir o mundo social que estou
considerado apenas perpassado pelo valor supremo do individualismo, é importante salientar a sua
importância como fonte de argumentação que atravessa as demandas pelas intervenções
biomédicas e as mudanças corporais que as extrapolam. Se articula, assim, a noção de pessoa como
explicada por Marcel Maus (2003), a qual foi resultado de um longo processo social que culmina
na fusão de diversas concepções que culminam no Eu indivisível, moral e consciente de si
psicologicamente.
O que Lucíola e Paulo propõem, então, é que as cirurgias trans possam ser reconhecidas
como legítimas nesse mesmo ditame pessoal ao atribuir à aflição incorporada aquilo que lhes leva
a querer para si uma mudança que é considerada tão permanente. Enquanto redefinem a disforia
186
como uma emoção individualizante, redefinem aquilo que pode cessá-la de ser sentida. A aflição
vivida expõe a razão do Eu ser respeitado no modo como é manifestado na vontade de concluir
uma mudança de gênero institucional e corporal. Esse elemento de “respeito ao Eu” é essencial
para a categoria explicada por Mauss. Assim, não é à toa que o termo aflição, o sofrer, remeta tanto
ao cristianismo. Não porque haja entre os interlocutores uma reprodução doutrinária da religião,
mas porque foi a ideologia cristã que deu à noção de pessoa sua qualidade metafísica (Mauss, 2003).
As relações sociais nas quais estamos todos inseridos nos levam a promover esse sujeito uno. A
disforia falada sem associação com uma patologia a coloca como uma forma transformada de parte
dessas experiências. Trata-se de tomar consciência de si mesmo para tentar, portanto, penetrar a
linguagem autorizada para a terapêutica trans, de modo que essa noção emocional possa procurar
despatologizar a transexualidade sem deixar de se relacionar com o campo das intervenções
biomédicas.
Noutros casos, como veremos a seguir, essas mudanças são trazidas num campo
racionalizado que diz: “eu só quero retirar meus intrusos porque para a sociedade eles pertencem
às mulheres, mas se não fosse assim eu não modificaria”. Contudo, a disforia como categoria
emocional vivida no corpo continua mesmo que noutras formas. Mostro uma continuação dessas
interpretações da aflição a partir de outros interlocutores procurando elencar outros elementos
como as questões e práticas em torno da adequação masculina das mamas e o atravessamento
dessas emoções por processos terapêuticos paralelos.
3.4.2. Fibromialgia: outra dor contestada
Zagreu já convivia com dores inexplicáveis por todo seu corpo bem antes de ter iniciado
sua transição. Nenhum médico conseguia explicar o porquê ele sentia dores musculares tão
intensas. Não havia exame laboratorial nem teste em consultório que pudesse aferi-las. Os sintomas
que apresentava também não eram claros e definidos e por isso chegou a ouvir, inclusive de
parentes, que tinha “frescurice crônica”. Em meio a outros processos de saúde, como um aborto
espontâneo e depressão, as dores, portanto não faziam sentido. Só depois de ter tido o que chamou
de “crise”, com o aparecimento de manchas roxas e inchaço no seu corpo, que houvera uma
preocupação generalizada no círculo familiar que o ajudou a ir ao pronto-socorro. Enquanto as
dores não se materializaram, elas não fizeram sentido para o círculo social de Zagreu. Enquanto
suas dores eram tidas no terreno do “psicológico”, pouco crédito lhe era dado; foi com a
incorporação dessas dores que se provou algo que ninguém acreditara ser real. Dirigiram-se, então,
à uma Unidade de Pronto Atendimento, uma vez que um médico conhecido da família que lá
187
atuava seria a melhor alternativa para dar algum diagnóstico confiável. Estava com fibromialgia.
“Aí ele me passou os pilares, que é um relaxante muscular, e mandou eu procurar um
dermatologista. Eu não tinha dinheiro pra pagar um particular; e na primeira vez que eu fui à
dermatologista ela disse que era psicológico”, conta. Apenas por ter tido acesso a um programa da
Prefeitura que conseguiu marcar essa consulta com maior rapidez.
Após nossa entrevista, Zagreu me indicou um grupo de discussão na internet no Facebook,
no qual ele participava por reunir pessoas de todo o país que narravam “viver com a síndrome da
fibromialgia”. Embora eu não tenha empreendido uma pesquisa per se no ambiente virtual, foi
possível perceber que os relatos replicavam a contestação tanto familiar quanto biomédica da
existência da dor e sua possibilidade diagnóstica como uma entidade etiológica factível. Zagreu
vivenciara um itinerário muito comum a pessoas diagnosticadas com essa síndrome. A literatura
acadêmica médica e psicológica no Brasil e no exterior tratam-na como um caso psicossomático
de doença (Araújo, 2006). Isso não impediu, necessariamente, o desenvolvimento de algumas
técnicas diagnósticas fisicamente verificáveis, como apalpamento da região e a verificação da
prevalência de dor sentida de modo concentrado ou irradiado. Desse modo, a fibromialgia é vista
como uma doença crônica com dores musculares por todo o corpo, enquanto uma “condição
reumática não-deformante” (Chaitow, 2002). Ainda assim, ela é percebida como algo psicológico,
sem explicações de origem orgânica unanimemente descritas (Besset et al. 2010)141. As dores são
descritas como agudas, difusas, latejantes, crônicas ou fortes; e ainda pode integrar fadiga,
sensibilidade muscular, mal-estar e problemas no sono, gástricos, humor, cognição e sensorial.
Ao associar esse cenário excruciante de dores musculares contestadas ao tratamento de sua
depressão, Zagreu narra que outro médico o indicara uma medicação antidepressiva. A
dermatologista o havia explicado que essa medicação iria ajudá-lo nos dois casos – alguma relação
é estabelecida etiologicamente entre depressão e fibromialgia. Isso mostra ainda a falta de consenso
sobre tratamento da doença. Com a recorrência ao psiquiatra pelo CAPs, Zagreu fora enquadrado
141 São escassas, atualmente, as pesquisas sobre fibromialgia, seja qual for a área científica, e isso se aprofunda quanto a pesquisas
antropológicas. A pequena literatura se concentra em psicologia, medicina e em terapia ocupacional. Contudo, tem crescido a
articulação política de pacientes para o reconhecimento do adoecimento. Diferentes projetos de lei tramitaram ou tramitam no
Congresso Nacional a respeito. O PL n. 6858/13, apresentado pela Deputada Federal Érica Kokay (PT) e aprovado na Câmara
Federal, procura instituir a obrigatoriedade do SUS em criar um tratamento especializado. Pelo que acompanhei no grupo de
discussão pela internet, as demandas principais são o reconhecimento biomédico da fibromialgia como doença que é sentida no
corpo, e não como algo produzida pela mente, e por isso menos real; e a cobertura do Estado brasileiro para, dentre outras coisas,
garantir licença de saúde do trabalho por decorrência de inaptidão física, aposentadoria por invalidez e auxílio-doença. Fala-se,
portanto, em direitos de quem sofre com fibromialgia, e de como, na perspectiva dos fribromiálgicos, a convivência do dia a dia e
as emoções produzidas daí podem produzir os sintomas ou criar “crises”. A depressão também tem sido uma outra recorrência
indicada pelos participantes do grupo de discussão, bem como a literatura biomédica e psi apontam que a fibromialgia a produz,
entre outros sintomas. Há, portanto, um campo profícuo a desbravar em pesquisas sobre os efeitos sociais e culturais e os sentidos
atribuídos ao adoecimento e a sua gestão médica, estatal e da própria produção sociológica de sua cronicidade, reconhecimento
médico e familiar, uma vez que o diagnóstico produz uma mudança significativa na vida das pessoas que são levadas a modificar
dieta e formas de produzir o próprio corpo, entre outras coisas. Assim, há a forte produção de uma identidade terapêutica que
necessita de pesquisa antropológica. Coube aqui apenas situar a trajetória de transição de gênero de Zagreu. Para uma pesquisa no
tema, na área de saúde, ver Vera Galli (2008).
188
num diagnóstico que combinava a cronicidade de suas dores, sua depressão e suas recorrências de
questionamentos sobre se considerar também masculino. Foi tido como psicótico, avalia. “[Eu]
tinha falado pra ele [o psiquiatra] que, na minha cabeça, eu tinha dupla personalidade, uma alma
feminina e uma masculina”. Pergunto-lhe se algum outro médico o havia dado esse diagnóstico,
mas não, como afirma: “não, é porque eu não entendia o problema, eu só achava que eu vivia um
teatro [...]”. E continua, “aí, como eu não me entendia direito, eu não tinha muito o que falar. E
quando eu falei mais ou menos o que estava sentindo, o médico disse que eu tinha psicose, mas ele
dizia, ‘tem problema não, se você for homem, eu sou viado’”. Mas, reiterava, “na minha cabeça
não fazia sentido se eu gostava de homem”. “E na minha cabeça também passava que, eu era
lésbica que gostava tanto de homem que virou um homem”. Aí, Zagreu entende que não conseguiu
entender sua identificação social porque não conseguia separar gênero de sexualidade.
Nesse período, a internet se apresentara como uma das poucas vias para alcançar outras
histórias de adoecimento e de entendimento sobre sexualidade. Encontrou primeiro um grupo de
discussão online sobre medicina alternativa. Num dado dia, uma participante perguntara quem teria
“disforia menstrual”142. Eu nunca tinha ouvido esse termo, e lhe pergunto a respeito. Ele também
não sabia quando ouviu a primeira vez. “É uma coisa muito comum, mulheres cis também têm e,
eu disse a ela que era muito pior no meu caso porque não era só a disforia menstrual, que eu não
gostava de ser mulher”.
Aí ela perguntou, “há quanto tempo” eu sentia isso e eu, “muito tempo”. Eu disse que
ela, “a vida toda”. Ela perguntou se eu sou lésbica e eu disse “não, eu sou bi”. “Pois eu
vou te botar pra falar com um amigo meu, vou te botar pra falar porque você precisa
falar com ele”. Aí ela me colocou nesse grupo que é um grupo de pessoas trans e marcou
o tal do amigo. O tal do amigo era um homem trans gay e ele conversou comigo e foi me
explicando.... E acendeu uma luzinha e tudo se iluminou, fez sentido, o gênero estava
ligado a opção sexual e eu não conseguia entender por que eu não gostava de mulher e
aí eu fui pesquisando mais, querendo saber mais sobre identidade trans (Zagreu,
entrevista 2018).
Nesse cenário que parece mais organizado na descrição do que no terreno que esses eventos
tiveram curso, um processo de aflição de Zagreu contemplara diferentes instâncias que tornava
difícil principalmente para ele mesmo entender. Essas explicações que ele buscava tiveram que ser
produzidas para fazer sentido, de modo que ele vivenciara duplamente uma ruptura biográfica.
Assim, gênero e sexualidade estavam atomicamente unidos, de modo que era necessário separá-los
para que uma possibilidade de entrada na categoria homem se tornasse viável, isto é, “fizesse
142 É considerada, pela biomedicina, um agravamento do transtorno pré-menstrual – a TPM –, o transtorno disfórico pré-menstrual.
Segundo o Boletim do Hospital Albert Einstein: o “transtorno disfórico pré-menstrual (TDPM) causa mudanças extremas de humor
que podem afetar o trabalho e prejudicar relacionamentos. Os sintomas incluem extrema tristeza, desânimo, irritabilidade ou raiva,
além dos sintomas comuns da síndrome pré-menstrual, como sensibilidade e inchaço nas mamas” (Hospital Albert Einstein, s/d,
on-line).
189
sentido”. Ou seja, seria homem e poderia continuar se relacionando afetivo-sexualmente com
homens, o que lhe tornaria bissexual já que também se relacionava com mulheres. Como, no
decorrer do diagnóstico, um profissional da medicina poderia, sem recorrer a arbitrariedade
estereotípica das posições sociais, encontrar os sentimentos que se faziam necessários para definir
a disforia de gênero? Zagreu, por outro lado, tem suas explicações a respeito dessa disforia, e define
o que sente em relação a isso. Quando lhe pergunto se ele já se considerara enfermo por causa de
não “gostar de ser mulher”, ele conclui: “se é uma doença, eu vejo que essa doença me curou
porque antes eu era um lixo e agora eu me sinto um ser humano”. Assim, a possibilidade de transitar
de gênero deu um novo sentido à vida de Zagreu, que agora não mais estava cerrado a uma vida
específica que lhe fazia se sentir mal.
Com isso, o sentir-se disfórico não tinha nada a ver com estar doente: era “uma emoção
ligada à maneira como a sociedade vê as pessoas trans, como a transfobia”, me conta. Para ele, esse
sentimento estava de acordo ao como “o mundo me vê [...]. Se o mundo não me visse por ser trans
como um não-homem, eu nem usava bainder, e nem operava”. Esse é o incômodo que sente. Mas
isso não o torna qualificável para ser definido como transexual de verdade para o cânone
biomédico. Esse é um fator que irá dificultar seus caminhos dentro do Sistema Único de Saúde, no
que tange aos protocolos e procedimentos regidos por entendimentos do Processo
Transexualizador. Assim, a identidade foi acessada através das emoções.
3.4.3. Um enfermo cuidando de si mesmo
Durante muito tempo de sua vida Reginaldo, de 24 anos, sabia da existência apenas de
travestis e mulheres transexuais. Foi através de publicações na internet que leu sobre homens trans,
e se perguntara instantaneamente: e existiria isso? Começou a pesquisar melhor sobre o assunto
em outros sítios on-line e percebeu, conta, que viu “algo que se encaixava”. As narrativas que
encontrou sobre uma infância marcada por conflitos entre mundos diferentes para meninos e
meninas era um elemento que também via na sua vida quando criança. Por muito tempo achou
que era igual ao seu pai, e quando notou que era igual a sua mãe “tudo desmoronou”. Ele se vira
noutra narrativa agora que lia sobre transexualidade. Mas diz, em tom de rememoração, que se
sentia mais parecido com os amigos gays do que com as amigas lésbicas antes da transição. Apesar
desse seu círculo de amizade ter sido um apoio e uma barreira, já que lhe cobravam de diferentes
maneiras uma posição de identidade fixa, narra que a dificuldade mais profunda foi em casa com
sua mãe, quem não sabia de nada que acontecia com o filho. “O seu próximo transita com você”,
completa, ao dizer que sua mãe teve que transicionar e viver em muitos sentidos os mesmos
190
conflitos que viveu antes de lhe contar. Para mostrar à mãe que vivia situações vexatórias
diariamente levou-a para acompanhá-lo para abrir uma conta bancária na Caixa Econômica
Federal. Os funcionários compartilhavam seu documento de batismo entre si, riam, gesticulavam,
e o acusaram de falsificador. Sua mãe não conseguia olhar para seu rosto, me conta. Depois desse
episódio sente que uma mudança significativa havia se iniciado junto a ela, que passa a acompanhá-
lo aos médicos e nas cirurgias a que iria se submeter depois. Foi ela inclusive quem cuidou dele, e
o ajudou a trocar os documentos.
A dimensão das emoções também se torna, na narrativa e na experiência de Reginaldo, um
elemento de prova que aciona uma moral que deve ser seguida. Se o filho vivera tal situação com
ela ao seu lado, o que deveria ter vivido sozinho? Foi pelo discurso reiterado do amor por ela, de
que ele não havia mudado por causa da transição, que a ajudou a “se transformar” noutra pessoa.
Essa mudança que Reginaldo aponta diz respeito a um entendimento de que sua essência enquanto
um bom filho, um bom trabalhador, uma boa pessoa ainda estava ali consigo. Sua transição de
gênero lhe trouxe muitos reveses com os quais teve que lidar, embora me fale que já pensara em
suicídio, e já perdera as contas de quantas vezes tivera que cuidar de si sozinho porque não
aguentaria a ida ao serviço de saúde para ser tratado como mulher. Um desses muitos casos é
quando sofreu de uma febre alta desencadeada pelo vírus da zika.
Num dado dia quando voltava do trabalho Reginaldo começou a sentir dores por todo seu
corpo, e uma febre que aos poucos aumentava de intensidade. A certeza de que o que sentia era
relativo à infecção pelo vírus da zika veio quando suas juntas e articulações persistiam em doer
mesmo quando parecia se normalizar a temperatura do seu corpo. Essa era uma lembrança viva
para ele, quando ficou doente e não pôde ir ao hospital. Mas não era a primeira vez, segundo ele,
que já teve uma otite (uma infecção no ouvido causada por bactérias) e dores dentárias, por ex.,
para o que sempre procurava alívio em medicações para dor para não ir ao pronto-socorro. No
período que “adoeceu de zika”, como coloca, casos se multiplicavam no país inteiro143. No caso do
Nordeste brasileiro, essa epidemia ficou particularmente dramática devido ao nascimento de bebês
com microcefalia, mais tarde atribuída à infecção da gestante nas primeiras semanas da gravidez.
Mesmo diante da gravidade de uma doença sobre a qual não se sabia muito naquele momento
143 Muito embora a infecção por zika possa não apresentar sintomas, os que surgem como mais comuns são dores locais nas
articulações, músculos e olhos, fadiga, febre, perda de apetite, suor, dor de cabeça, irritação na pele, vermelhidão nos olhos ou
vômito. A febre por zika vírus, juntamente com a febre por Chikungunya e a dengue, são arboviroses transmitidas pela picada do
mosquito do Aedes Aegypti. A zika foi primeiramente diagnosticada no país em 2015 e atingiu um pico em 2016 com 211.770 casos
prováveis. Apenas no Ceará foram ao todo 4.087 casos apenas dessa febre, que acompanha dados igualmente expressivos para
dengue e Chikungunya. Segundo o Boletim Epidemiológico do Ministério da Saúde (Brasil, 2019) em 2019 foram registrados 2.344
casos prováveis de zika em todo país, com uma incidência de 1,1 caso por 100 mil habitantes. Todo esse cenário desencadeou uma
série de engajamentos de pesquisadores, mídia e da população em geral, principalmente pela má formação fetal em gestantes
infectadas por zika e que deram à luz bebês com microcefalia, anomalia genética causada pelo vírus. Para uma leitura antropológica
desse contexto, principalmente das experiências das famílias com tais recém-nascidos ver Rozeli Porto (2020), Rozeli Porto e Patrícia
Costa (2017) e Débora Diniz (2016).
191
Reginaldo decidira não ir ao pronto-socorro para receber atendimento médico. Não valeria a pena,
me conta, porque seria atendido com o nome feminino de batismo. Nesse período de sua vida
ainda não havia feito a retificação civil, realizada mais tarde via decisão judicial, nem havia se
submetido a nenhuma cirurgia; o que o tornaria completamente exposto ao vexame pela dubiedade
que apresentava. Como tinha formação em enfermagem, e uma tia que trabalhava num hospital,
conseguiu cuidar de si mesmo. Isso era uma constância na sua vida desde que iniciou a transição
anos atrás. Ele, então, resume como tem vivido situações de adoecimento em geral:
Muitas vezes eu deixava de ir para o hospital para ficar em casa porque eu não queria
chegar no hospital e as pessoas me tratassem no feminino. Muitas vezes. No caso, por
exemplo, quando eu estava aqui em Fortaleza.... Eu já tive problema de dor de dente,
tenho problema no meu ouvido, meu ouvido ele sempre tem otite, ele tem a infecção.
Eu já deixei muitas vezes de ir ao médico. Eu cansei de tomar remédio para dor para não
ir para UPA, para não ir num canto ou no outro porque eu sabia que ele não ia me tratar
direito. Lá [no interior] eu tive zika, não fui para o hospital (Reginaldo, entrevista, out.
2018).
Pergunto-lhe como ele tinha cuidado de si quando teve a zika. Foi a ajuda de uma tia que
fez a diferença, trazendo medicação para sua casa. Só teve uma vez, até nossa entrevista, que ele
não teve como evitar a ida ao hospital embora sua preocupação continuasse sobre como seria
tratado na emergência. Após um dia de trabalho inteiro, Reginaldo descreve que estava tendo um
infarto:
Só teve uma vez que não deu pra não deixar de ir pro hospital. Foi uma emergência
mesmo que eu estava saindo de um plantão de 48 horas que eu tive um pico de estresse
muito grande que eu quase enfartei. Cheguei em casa passando mal. Eu disse, “mãe, eu
vou enfartar, mãe, tô enfartando”. Eu já tava sentindo mesmo, tava sentindo o peito
apertando e isso aqui dormente [toca o braço]. Eu disse, “eu tô enfartando”; 48h no
SAMU é pesado, nesse dia foi bem pesado. Aí eu peguei e fui pro hospital. Quando eu
cheguei lá a minha sorte é porque, assim, os médicos de lá todos me conhecem porque
eu sou do SAMU e a gente chega lá com paciente, e eles me trataram por Reginaldo,
sabe?! Tudo, por Reginaldo (Reginaldo, entrevista, out. 2018).
O diferencial, portanto, foi que lhe atenderam sem lhe chamar pelo nome feminino.
Reginaldo até demarca como foi essa parte da consulta após o médico afastar a possibilidade de
infarto. Segundo o médico, ele tivera um “pico de estresse”, “muito, mas muito grande”. Pergunto
se ele já tinha modificado seus documentos, que à época de 2017 ainda não contava com a
possibilidade atual de retificação simplificada no cartório:
Não, ainda não, eu tava só com a carteirinha do SUS com nome social. Até o Marcelo
que foi o médico que me atendeu, que ele sempre tá lá de prontidão se eu precisar, ele
perguntou assim, “Reginaldo, vou botar sua receita com nome social”. Aí eu disse assim,
“mas eu não tenho nenhum documento pra provar que eu sou o Reginaldo”; aí ele botou:
“pois eu vou botar o seu nome social, e entre parêntesis bem pequeno seu nome civil,
mas bem pequenininho mesmo” (Reginaldo, entrevista, out. 2018).
192
Reginaldo teve que achar um local no qual era conhecido para ser atendido mesmo diante
da gravidade da possibilidade de um infarto. Isso diferencia grandemente os itinerários terapêuticos
que percorre. Passou, assim, a tomar o psicotrópico Escitalopram para lhe ajudar a ter um período
de “ficar tranquilo” para se recuperar de todo o estresse que vivenciara ultimamente, uma vez
também que fora diagnosticado com depressão. A entrevista com Reginaldo foi realizada num
período de sua vida no qual ele já havia passado dos piores momentos de vergonha, humilhação e
vexatória por causa da sua transição. Na época da formação no nível de graduação, foi chamado
pela professora na frente de toda a turma de aberração, e que ele era um risco para os pacientes
com que ele entrasse em contato apenas porque ele estava querendo ser homem sem o ser. São
episódios como esse que o fazem sentir dificuldade de usar um banheiro público, por medo de ser
retirado de lá à força. Mesmo que agora ele considere “passar despercebido”, o medo persiste
porque ele já fora retirado de lá inúmeras vezes quando do começo da sua transição. Antes de
termos começado nossa conversa precisei ir ao banheiro, e ele me mostrou onde ficava porque era
minha primeira vez ali, mas ele não entrou mesmo que precisasse. Iria esperar chegar em casa. Ele
comenta que sabe que segurar a urina por muito tempo poderia desenvolver um quadro de infecção
urinária, mas não tem o que fazer, me diz. Não irá viver a potencialidade de ser arrancado do
banheiro e ser humilhado em público. Quando finalizávamos a entrevista lhe perguntei sobre a
classificação diagnóstica da disforia de gênero, como ele tem visto o assunto, se tem se engajado
em alguma atividade militante para a retirada do diagnóstico do manual de saúde, ele me responde,
seguindo de certo modo outros interlocutores como Zagreu, Paulo e Lucíola que também não se
vê como doente, mas isso não significa que ele não sinta disforia. Reginaldo descreve disforia como
um “sentimento que corrói por dentro”. Quando pergunto se isso seria uma questão médica ou
não ele conclui que
Não [remete a doença]... porque assim, no meu caso, e essa é a minha vivência.... Eu
tenho disforia. [...]. É a questão de ser transgênero. Eu tenho disforia, eu olho pra mim
no espelho nu e eu não consigo olhar meu genital, eu tenho aversão ao meu genital que
é a disforia, entendeu? Eu sou extremamente disfórico, eu tenho disforia genital. Eu tinha
a disforia mamária, eu tirei, perfeito, agora eu adoro andar sem camisa, adoro ir pra fora.
É um sentimento, a disforia é mais ligado a sentimento do que a doença. Isso me faz uma
pessoa que tem uma questão de um sentimento que está me corroendo por dentro e que
isso posteriormente pode me levar a ter uma doença, entendeu? (Reginaldo, entrevista,
out. 2018).
Assim com Lucíola, Paulo e Zagreu acima, Reginaldo também estabelece níveis e diferenças
para o que concebe como disforia. Fica ainda mais claro a relação do sentimento a uma parte do
corpo numa linguagem do “eu interior” e como o precursor, se não cuidado, para gerar um
adoecimento posterior. Algo muito aproximado das definições do manual que já vimos até aqui. O
uso de um idioma biomédico para descrever a própria experiência de conflito com o corpo e com
193
as pessoas com quem interage socialmente por causa desse corpo constituído ao longo da vida traz
as dificuldades de estar lidando com um idioma que confere sentido, ao mesmo tempo que se
rejeita suas contenções regulatórias e limitadoras. Isso porque quem não se encaixaria na vivência
mais extrema desse sentimento estaria fora da definição do transexual de verdade. Ao falar em
“disforia mamária”, Reginaldo também demarca e organiza as emoções que postulava como
indicativo de sua transexualidade. Esse é, de fato, como observado em campo, um elemento
altamente importante no decurso da transição porque em muitos casos ele é o elemento/a parte
do corpo que mais evidencia uma feminilidade para o outro. Ao tentar se produzir um efeito
contrário a esse na interação social, os interlocutores constituem diferentes estratégias discursivas,
práticas, para produzir seus corpos enquanto a mastectomia não se torna uma possibilidade.
3.4.4. Enquanto a mamoplastia não vem
Além de se envolverem, como qualquer pessoa, no decurso de processos de adoecimento
como vimos até agora, as questões que circunscrevem a organização das emoções para falar e para
produzir a transição de gênero se dão também no âmbito do manejo do peitoral. A cirurgia de
mastectomia ou mamoplastia masculinizadora144 é uma possibilidade distante para homens trans
em Fortaleza. Durante o trabalho de campo, apenas dois deles a haviam realizado, ambos pelo SUS
– o segundo via decisão judicial –, e outros encontravam-se em meio a estratégias para concretizá-
la um dia no futuro. Mas essa cirurgia tem sido um objeto, de fato, fora do horizonte da vida
cotidiana dos interlocutores que necessitam lidar com questões práticas de garantia de moradia,
adoecimento e alimentação.
Uma das maneiras de remediar a impossibilidade da mamoplastia se concentrava na
compressão do peitoral para fazê-lo se tornar visualmente tido como masculino; algo que era
realizado por meio do uso do que se denomina de bainder (ou binder)145 – qualquer espécie de faixa
ou vestimenta que suprima os seios abaixo das roupas. O objetivo é fazer com que ninguém
perceba seu uso em público. Contudo, as práticas para fazer os seios sumirem não se realizam em
144 A mastectomia é uma cirurgia orientada para diferentes casos de reconstrução, remoção ou transformação das mamas,
envolvendo, conforme o caso diferentes técnicas e diagnósticos. O termo mamoplastia tem sido utilizado para denotar mais
diretamente a mudança estética nos padrões peitorais e não a remoção em si das mamas, a exemplo também da mamoplastia de
aumento, de redução ou elevação. Ela recebe o adjetivo de masculinizadora quando concernente às modificações para a aparência
masculina de homens trans. Preocupam-me aqui as estratégias dos interlocutores quando não se tem acesso ainda a essa possibilidade
cirúrgica.
145 O termo binder que significa, em língua inglesa, encadernador, capa, atadura, máquina de enfardar ou faixa provém do verbo to
bind que tem muitas definições e, se traduzido para a língua portuguesa teria diferentes termos possíveis, como ligar, vincular,
encadernar, prender, atar, amarrar, comprometer, colar, limitar, impor, grudar, entre outros. O Dicionário de Cambridge de Língua
Inglesa, editado pela editora da Universidade de Cambridge, em Londres, não lista nenhum significado relativo ao objeto de
vestuário aqui referido. O sentido atribuído com o uso do termo estrangeiro para nomear o vestuário, binder, tem a ver com a prática
de atar, prender, amarrar, suprimir o peitoral para trazê-lo à aparência do tido como masculino. Como o termo binder se tornou de
uso popular no país, me refiro ao termo numa versão aportuguesada, bainder.
194
função da cirurgia que se espera realizar num futuro próximo, embora possam ser repensadas em
vista disso. Essa é uma das primeiras modificações corporais realizadas, embora não incisivas, no
decurso da transição de gênero. O uso continuado da compressão acabava por modificar a forma
do peitoral, podendo produzir dores e dificuldade respiratória, entre outros adoecimentos –
inclusive tem o potencial de interferir no resultado da cirurgia posteriormente. De maneira ainda
mais direta, observar tais práticas como práticas sociais tem o potencial de expor a definição de
disforia como um sentimento longe da patologia, como venho descrevendo até aqui, e nos dá a
dimensão da incorporação das emoções no mundo social – ou corpo social, como diria Abu-
Lughod e Lutz (1990a) – no qual ela é produzida.
Salazar, de 26 anos, costumava andar pelas ruas de Fortaleza vestindo duas camisas. Sempre
que nos encontrávamos tinha a impressão de serem de um tecido grosso e espesso, e eram sempre
em tons escuros. Tudo para dar, visualmente, a impressão de que ele não teria seios. A região
estadual tem um clima semiárido quente, com baixíssimos índices pluviométricos. No litoral, a
temperatura média é menos severa, mas continua a apresentar a característica de um calor
semiúmido. Isso não impedia Salazar, só tornava sua tarefa mais árdua, ao precisar se locomover
pela cidade, como ao tomar um ônibus lotado para ir trabalhar ou para se consultar no hospital no
qual fazia acompanhamento médico quanto a sua transição. Ele não usa nem nunca usou bainder.
Salazar tinha receio de que seu uso contínuo lhe causasse problemas médicos como dificuldade
respiratória – que já teve na infância – ou que atrapalhasse a cirurgia de mamoplastia
masculinizadora que sonhava realizar.
Salazar apresenta-se, nesse sentido, como uma das exceções que encontrei em campo. A
grande e expressiva maioria dos homens trans que conheci – e também daqueles que ouvi falar –
empregavam o bainder como, quero sugerir, técnica corporal. Contudo, o que Salazar realizava não
deixava de ser também, ela mesma, uma técnica desse tipo, e assim, cabe descrever que tais práticas
eram estratégias diante das angústias sentidas quanto a possuir “intrusos” em seus corpos. E isso
está aliado, de modo socialmente relevante, a expectativa da mamoplastia. Diante da dificuldade de
acesso a essa cirurgia, principalmente pelos longos caminhos a serem percorridos no Processo
Transexualizador e ao limite de recursos financeiros para realizá-la no mercado privado, o uso do
bainder constituíra uma economia política de uma gestão corporal. Isso envolvia a importância da
interação social em classificar os corpos, mas também as representações e significados do que as
partes do corpo inferiam diferentemente. A média de tempo que se poderia passar usando o bainder
poderia chegar até oito horas por dia, por causa da saída de casa para o emprego ou para a escola.
Numa das reuniões da militância local, num dado domingo, que contava como presentes
ativistas e aliados – além de curiosos, pessoas que queriam ouvir sobre transexualidade porque
195
estavam convivendo com a possibilidade de iniciar ou não a transição – somos apresentados a um
documentário realizado de modo caseiro. Depoimentos diversos se sobrepõem para explicar como
se dá as suas experiências como homens transexuais, quais escolhas necessitaram fazer, em que
práticas se detiveram no curso da transição, como se articularam politicamente, e que médicos
procuraram. Um elemento marcante dessa descrição é o que se refere a se sentir disfórico. Não
havia médicos nem profissionais de saúde presentes entre nós, essa não era, portanto, a intenção
do vídeo, a de convencer e falar o que se geralmente se quer ouvir para combinar com as descrições
dos manuais. Segurando o seu celular, Januário falava de frente para a câmera que o uso do bainder
corresponder a tal sentimento. Não estava ele com vergonha, ou identificando um sintoma. Estava
descrevendo uma experiência. Essa era a introdução para que se pudesse falar da articulação
necessária para convencer as instâncias estatais locais a estruturarem um serviço de saúde que
pudesse assisti-los à transição e/ou no campo dos direitos humanos – algo que ganhará maior
relevo no próximo capítulo. Aqui, um discurso que também estava colocado para os outros era
posto em prática para o próprio grupo. Era demarcada, assim, uma diferença por meio dos
sentimentos incorporados. Outros dias depois dali, quando pude entrevistar outro interlocutor,
Jurandir, também jovem de 20 anos, ele resumia sua trajetória até a categoria homem trans da
seguinte maneira:
Eu tive uma crise existencial muito grande. No meio dessa crise eu procurei na internet
algo que eu pudesse esconder meus intrusos, né? E aí, no meio disso eu achei o bainder.
Foi uma coisa que levou a outra assim. Eu procurei algo na internet como esconder os
intrusos, e aí apareceu o bainder, e do bainder apareceu homens trans, e aí eu comecei a
conhecer mais. Nunca tinha ouvido falar (Januário, entrevista 2018).
Para ele, havia um sentimento em relação a partes do corpo que se tornaram tão relevantes
que foi necessário procurar uma maneira caseira de diminuir os “intrusos”. Nunca tinha ouvido
falar em transexualidade antes, e o bainder não era um elemento crucial, à princípio, de se definir
como homem trans. Eram as emoções que sentia em relação ao seu corpo. Já fazia dois anos que
usava diariamente o bainder, aprendera pela internet a como usar. Ele comprava a faixa de elástico
e unia duas com uma costura, colocando colchetes nas bordas para fechar após envolver em si
mesmo. Mas as dores eram contínuas, me dizia, sempre que usava o bainder, embora só usasse
quando saísse de casa. Contudo, conclui que suas dores são maiores porque ainda sente dores nas
costas por causa do parto normal que teve anos atrás, quando deu à luz a sua única filha. “Sinto
uma fisgada como se tivesse amassando”, e continua, “é a dor do parto”. Mas isso não impedia que
Jurandir usasse o bainder, mas o fazia procurar tomar estratégias para diminuir as dores, como usar
apenas ao sair de casa. Depois de usar, dele mesmo produzir, Jurandir compra de Januário o seu
primeiro bainder com um melhor acabamento.
196
Sendo crescente o número de pessoas que passam a usar bainder como compressor do
peitoral, Januário tem a ideia de passar a vendê-lo em série. No início, comprava o artigo através
de um vendedor que morava na região sudeste do país, mas começou a não gostar do material. E,
como percebera que era um material de pouca qualidade, como descreve, começa a refletir sobre
as formas de confeccioná-lo para si mesmo. Comprou, então, um elástico e procurou uma
costureira local, mas o primeiro ficou muito apertado. Notou que tinha tirado as medidas erradas,
e percebeu que se media 75 cm de peito, deveria medir o elástico em média em 65 cm, era o
exemplo que me dava. Era necessário ficar apertado, mas não tanto. Como não havia nenhum
vendedor de bainders na região Nordeste, e seus amigos pediam para ele vender, começou a
produzir em escala maior, e chegava a vender em torno de 12 peças por mês. Ao divulgar para
outros estados, também impulsionado por outros homens trans, suas vendas aumentam e na época
da entrevista sua renda advinha desse negócio. Mas demora até chegar aos tipos de bainder que
confecciona atualmente:
Eu prefiro trabalhar com uma qualidade que vai durar mais e cobrar um preço justo. [...]
E o meu bainder é de regulagem, [...] o meu é colchete, tem 3 medidas, tipo, você acha
muito acochado, tá muito apertado, você vai lá e coloca a medida mais folgada, se você
achou folgada, coloca na medida mais apertada... E tem uma esponjinha na parte do
colchete que não marca a roupa e protege a pele pra não ficar marcado, não ficar
vermelho (Januário, entrevista, 2017).
Quando lhe perguntei como ele tinha chegado nesses tipos e medidas, ele explica:
Eu fui fazendo aos poucos, fui fazendo pra mim, testando pra mim e aí achei tá massa,
tá confortável e fui fazendo. [...]. Eu vendo 6 modelos. Tem os “bainder faixa”, são 6
modelos. Aí tem os bainder faixa. Tem uma faixa que é 10cm de largura, tenho 2 faixas
que é 16 cm, 3 faixas que é 24 cm, e 4 faixas que é 32 cm. O elástico [que] dá a volta. A
largura que eu falo é largura aqui [vertical], não é largura de cumprimento. É a medida da
pessoa, né? Esse aqui meu é de 10 cm, é pra quem tem os intrusos pequenos e quem já
tá, tipo, em hormonioterapia que já vai secando [os peitos]. Aí, esse é o melhor, eu acho,
[...], porque ele não pega no diafragma da gente, ele não pega, ele acaba aqui, ó146, é como
se fosse um top. É só os intrusos, em cima dos intrusos. O de 2 faixas vem até aqui mais
ou menos147. O de 3 faixa vem até aqui148, e o de 4 faixas vem bem aqui149. Mas é a minha
medida, né? (Januário, entrevista, 2017).
Conforme percebe que sentira dores contínuas, sua preocupação aumenta para fazer um
“bainder mais saudável” para diminuir o incômodo ao usá-lo e para tentar dirimir algum
adoecimento decorrente. Comparando com os bainders que comprara de outros vendedores,
Januário descrevia que eram de tecido grosso, que esquentavam e machucavam a pele. Era preciso
pensar num com um tecido melhor. Por isso pensa em confecção com uma malha:
146 Toca na região torácica do final dos intrusos.
147 O tamanho aumenta para baixo dos intrusos, passando uma vértebra.
148 O terceiro segue um aumento na mesma proporção.
149 O quarto tamanho toca no diafragma.
197
Eu mudei o tecido, fiz com malha de compressão, malha de cinta, que é um tecido bem
fininho, que é aquele tecido fino que não marca a roupa, e fiz um forro, é.... Esse forro
foi difícil, assim. [...]. Foi uma dica que eu recebi de uma costureira [...], “eu acho que isso
aí se fizer um forro com material de biquíni ia ficar perfeito, porque ia ajudar com o suor
e não ia machucar a pele”. Aí eu levei pra costureira, fiz a modelagem de novo pra botar
esse forro. Aí os bainders são de tecido de malha cirúrgica e o forro. Aí tem esses dois
modelos de colete. Eu quero desenvolver outros de colete, eu não sei como, mas eu quero
estudar pra desenvolver outra coisa (Januário, entrevista, 2017).
Numa das minhas visitas a sua casa, ele me mostrara os bainders que vendia. Coloca em
cima da sua cama, e ia me explicando os tipos diferentes de acordo com o tamanho e formas. Mas,
um elemento era o mais fundamental para pensar num bainder saudável, o tamanho dos intrusos.
Quanto maior os peitos fossem, maior seria a dificuldade de permanecer um modo saudável. Isso
porque um grande volume peitoral implicava um tecido ou faixa de elástico maior, o que acabava
por pressionar a região do diafragma, aumentando o incômodo, que se refere a esse quarto modelo
que ele me explicara e que tinha criado a partir de uma demanda de outro homem trans:
Aí o que que tinha problema, só vendia mais o de 16 cm, que é de 2 faixas, que é o
tradicional. Só que quem tem, tipo.... Eu tenho 75 de medida, um exemplo, a galera que
tem 90 cm, 100cm, não cabe, sai, pula fora mesmo. E aí, eu comecei a fazer de 3 faixas
que era pra quem tinha mais ou menos de 80 a 100 e o de 4 faixas que eu não fiz pra
vender esse mesmo, pra colocar na loja, eu fiz um teste que o menino pediu, um menino
implorou: “cara, faz um mais largo pra mim”, eu disse, “mas cara não vai dar certo, vai
ficar te incomodando, é muito elástico e tal”. Aí o cara ficou implorando lá e tal e aí eu
fiz, como teste só pra ele. Só que ficou muito bom pra medida dele. E ficou, e pega aqui,
ó, e o cara era gordinho, e pegava aqui, e ficou tipo uma espécie de cinta (Januário,
entrevista, 2017).
Nesse longo trajeto que foi entender como fazer um bainder mais saudável e mais
condizendo com os corpos diversos, Januário percebia também como criar uma forma de sustento.
Vindo de uma família de agricultores do interior do Ceará, ou ele “arrumaria” um emprego na
capital ou necessitaria voltar para a casa da mãe. Acompanhar a criação da “loja de bainders” de
Januário nos dá uma perspectiva mais geral sobre o uso desse tipo de compressor peitoral. A
justificativa que mais aparecia, era, portanto, atrelada a uma resolução emocional que a forma do
peitoral poderia tomar. Para ele, o bainder é um artigo diário importante, pois como descreve, “os
intrusos” são a região corporal que sente “mais disforia”. Isso não implica que Januário não tome
medidas para aumentar o conforto ao usá-lo, e, portanto, de manter um uso saudável. Mesmo
quando falamos sobre cirurgias, suas vontades vão nesse sentido. “Eu quero fazer a retirada do
útero e do ovário. Eu tenho, tipo assim, eu tenho disforia com os intrusos, mas eu queria fazer
primeiro essa [histerectomia e ooforectomia] do que a [cirurgia] dos intrusos porque eu acho que
tem mais riscos. [...]. Se desse para escolher eu queria essas duas primeiras, depois fazer a
mastec[tomia]”.
198
Assim, o uso do bainder por esses sujeitos se inscreve como uma medida material para
sanar o sentimento da disforia. Não é algo que façam com prazer, mas sim com lamento, já que
precisam e não dispõem dos meios financeiros para financiar uma cirurgia de mamoplastia com
algum cirurgião, nem estão próximos de realizá-la no Sistema Único de Saúde. Esses
procedimentos são os últimos num longo processo de transição que é instituído por protocolos
rígidos como um itinerário terapêutico que precisa ser entendido e vivido através de longas jornadas
de visita a serviços, consulta a médicos, manejo de saberes em biomedicina e tantas outras
concessões e práticas corporais que também necessitam dar vida. Mas há aí uma resiliência que me
impressionou muitas vezes no campo. Essa forma de se colocar pessoalmente diante de uma aflição
tão difícil de ser descrita em voz alta demonstra que nem a linguagem hegemônica das ciências
bioquímicas e psi nem suas abordagens científicas poderiam retirá-los de suas formas de ver a vida
de outro modo. Mesmo que seja através desse corpo de conhecimento que acessam a possibilidade
de mudar de gênero, isso não significa que estejam submetidos totalmente. A ordinariedade desses
processos de sofrimento implicam formas intrincadas de agência e de estrutura ao mesmo tempo.
3.4.5. A linguagem dominante contra si mesma
Enquanto esperava Januário (que citei acima) para uma das nossas entrevistas, acabei
entrando numa das salas do complexo do Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura onde havíamos
agendado nosso encontro – estávamos no primeiro semestre de 2018. Dentre as exposições abertas
uma chamara particularmente minha atenção: Narrativas e alteridade – O outro em nós. A mostra ficava
no Piso Superior do Museu da Cultura Cearense, e compunha o evento “Encontro de Agosto
2016”. Com 54 fotógrafos do Nordeste, sendo 23 cearenses, a temática era diversa dentro do
campo da “diferença”. A ideia era trazer “questões universais”, como ficou registrado no texto de
abertura logo na entrada do trajeto das imagens. Um quadro me assaltou os sentidos naquela minha
visita despretensiosa. Era um mosaico com seis fotos, de igual tamanho, de um homem cuja pele
pintada de branco ia se “quebrando” pouco a pouco a cada foto. A tinta endurecera no rosto e
estava caindo em meio a expressões de dor e horror do fotografado. Não teve como não relacionar
esse quadro e as narrativas que acabei de descrever ao longo do capítulo, principalmente porque o
título da obra era mesmo Disforia (Figura 7). De autoria de Jorge Oliveira, um jovem artista negro
de Fortaleza, o quadro compunha um conjunto de outras fotografias que retratavam emoções
sendo vividas intensamente. Para minha surpresa não havia nenhuma menção a transexualidade,
disforia de gênero, nada relativo ainda a sexualidade, gênero ou identidade. O uso do termo indica,
portanto, uma popularização de sua concepção que tem assumido diversos diagnósticos no campo
199
biomédico, mas que o extrapolam. Como os interlocutores me ensinaram, todos nós podemos
sentir disforia, e era isso que Jorge retratava.
Figura 7 – Disforia, de Jorge Oliveira
Fonte: Fotografia do quadro retirada pelo autor.
Os interlocutores dessa pesquisa mostram que mesmo tendo a biomedicina uma linguagem
que os enquadra de uma determinada maneira passível ao diagnóstico, esses conjuntos de discursos
que a compõem podem ser apropriados. Quais os efeitos sociais produzidos pelas narrativas de
homens trans que dizem “sentir uma disforia”? O que a máxima “sentir-se disfórico” guarda
discursivamente? Seria possível ultrapassar a linguagem dominante utilizando uma categoria
manejada por ela?
Émile Durkheim e Marcel Mauss (2003 [1903]), ao estudarem diversas formas de
classificação de povos tradicionais melanésios, mostraram que é por meio das relações sociais que
as classificações são realizadas. Assim, quando a biomedicina registra categorias como descritoras
de seus objetos, ela não detém controle absoluto de como essas nomeações adentram o mundo
social mais abrangente. Os autores estivam preocupados, eles mesmos, em classificar as
classificações desde sistemas mais simples até os mais complexos. E, ao fazê-lo, compararam o
pensamento dito primitivo com o científico, argumentando que se referem ao mesmo princípio de
ordenamento. Isso possibilita observar que a disforia como algo que é tornado objeto de
intervenção por uma razão científica determinada entra em outras formas de “sistemáticas” e de
“ordens”. Como colocaram ao se referir a unidades sociais como fratrias e totens, o “que caracteriza
as referidas classificações é que as ideias estão nelas organizadas de acordo com o modelo fornecido
pela sociedade. Mas desde que esta organização da mentalidade coletiva exista, ela é suscetível de
200
reagir à sua causa e de contribuir para modificá-la” (Durkheim e Mauss, 2003, p. 189). Assim, a
indicação de Bourdieu, a qual já me referi, de que os agentes sociais estão inseridos em lutas
classificatórias nos faz perceber que esses processos de nomeação são ininterruptos.
A antropologia tem registrado e estudado diferentes reapropriações políticas de termos que
se tornaram categorias sociais concebidas originalmente para se referir a seres humanos – seja ou
não como sujeitos e agrupamentos de sujeitos num sentido foucaultiano – de modo inferiorizado
ou estigmatizado. Isso não é privilégio do Brasil, nem da antropologia, mas a disciplina no país tem
tido particular interesse na questão. Variados termos antes pejorativos, usados para demarcar
hierarquias sociais e o domínio político, sofreram uma modificação de sentido através de processos
sociais direcionados pelos próprios grupos antes sob escrutínio heurístico visando a dominação.
Embora processos muito semelhantes tenham havido noutros lugares, entre nós isso acontece com
“índio” e “indígena” (Valle, 2005; Carneiro da Cunha, 2009), “negro” (Munanga, 1990),
“homossexual” (Simões e Carrara, 2007; Carrara, 2016) – e demais termos relativos: “viado”,
“bicha”, “sapatão” –, “travesti”, entre outros que põem desafios à comparação devido às suas
particularidades históricas e sociológicas e dos objetos que engajam e politizam. A ligação entre
estes exemplos é, portanto, uma política de contra-ataque. Entre esses termos há aqueles
desenvolvidos para a dominação colonial, seja ou não usando de vestes pseudocientíficas, e aqueles
próprios do cotidiano concebidos para o insulto e a injúria. Ambas as dimensões se entrecruzam e
acabam produzindo o objeto sobre o qual se estabelecem. O que nem sempre é previsto nesses
movimentos é sua reação política e social por meio da reconstituição simbólica da linguagem da
dominação, mas isso não é realizado de qualquer maneira e não sem limites. É uma premissa
foucaultiana, portanto, afirmar que o discurso que fala sobre sujeitos estabelece a sua própria
produção e mantém sua contenção.
Refletindo sobre os limites das ressignificações do termo “queer” no cenário estadunidense,
Butler (1993) problematiza a relação difícil entre a fidelidade da categoria com suas formulações
originárias de insulto homofóbico e as reapropriações realizadas por ativistas daquele país. Se, ao
proporem uma teoria queer, acadêmicos positivaram a palavra não intencionando uma identidade
per se, a sua recolocação identitária deu novos contornos muitas vezes pouco questionadores de
suas raízes culturais e de seus sentidos primeiros. Sua proposição, que já é explícita no título, é a de
fomentar a concepção de uma queer crítico. A reflexão de Butler é “boa para pensar” as
reapropriações do se sentir disfórico estabelecidas pelos homens trans da pesquisa, muito embora
não se estabeleça aí qualquer relação com o “queer”. Isso porque a autora está questionando o uso
político de um termo que antes ocupara outros espaços e cuja ligação não seria possível de destituir
totalmente. É o caso, portanto, de “disforia”, algo, como vimos, gestado nas explicações clínicas e,
201
posteriormente transfigurado aos manuais diagnósticos para identificar e reclassificar a
transexualidade. O modo como os interlocutores apreendem isso como um conjunto de
sentimentos reorganiza experiências cotidianas de aflição sentidas e vividas em relação ao corpo.
Para Kaio, em muito alinhado com Zagreu, Lucíola, Januário, Paulo, Reginaldo e Januário,
a noção de disforia excede e não é propriedade da patologia. Nesse sentido, se trata de um
sentimento que foi patologizado. Quando pergunto a este se ele sente a “disforia”, como outros
interlocutores já descreveram, ele me diz que “sim, sempre, e muitas vezes”, e continua:
A disforia é uma sensação, um sentimento, todo mundo tem, todo ser humano tem na
medida em que você.... Você nunca viu uma pessoa cis dizer assim, “ah eu não estou
suportando essa barba, preciso tirar”; “ah, eu não tô suportando esse cabelo, tenho que
cortar”; “ah, essa roupa não tá...”; “ah, eu tô me sentindo gordo”; “ah, eu tô me sentindo
magro”; ah num sei o que, ah num sei o que.... “Eu tenho que fazer alguma coisa pra
mudar isso”? Isso é disforia! É um sentimento de incômodo que você precisa se livrar
daquele incômodo pra ficar bem, tá entendendo? (Kaio, entrevista, 2018).
A disforia é, assim, algo que se sente corporalmente, mas não no sentido que advém das
profundezas orgânicas ou psíquicas. É um sentimento que pode ser sentido por qualquer pessoa
por causa de qualquer motivo de insatisfação corporal. Por isso, se alguém deseja se submeter a
uma cirurgia estética, por exemplo, de rinoplastia – modificação da estrutura nasal – e, utiliza-se do
argumento de que está infeliz com a forma que seu nariz assume, nenhum tipo de protocolo de
controle seria necessário para autorizar o médico a performá-la. O argumento de Kaio é de que
suas vontades para mudanças corporais sejam tratadas da mesma forma. Em meio a uma discussão
que tivemos na sua casa sobre os manuais diagnósticos e a classificação da transexualidade150, ele
esclarece que o problema que vê está em ser algo passível de diagnóstico:
O problema é que o nosso incômodo [eles] transformaram isso como doença e o
incômodo dos outros como normalidade. O nosso incômodo é anormal e o incômodo
deles é normal. Você dizer que tá gordo e quer emagrecer, é um incômodo normal; você
dizer que tá magro e quer engordar é um incômodo normal; você dizer que é.... “Preciso
fazer uma cirurgia no meu peito que tá muito grande”, “quero ele pequeno” isso é um
incômodo normal ou o contrário, um incômodo normal, tá entendendo? E por aí vai,
então, assim, o nosso incômodo, o nosso incômodo é considerado doentio (Kaio,
entrevista, 2018).
Duas questões se sobrepõem, não apenas das formulações de Kaio, mas de todos os
interlocutores até agora mencionados. A primeira diz respeito a como a disforia, ao ser identificada
e narrada como um sentimento cujas explicações para minhas perguntas eram quase sempre
trazidas com um ar de obviedade, aponta para a capacidade micropolítica das emoções, e não uma
pronta e simples despolitização ao se assimilar acriticamente categorias biomédicas. Se admitirmos
150 Estávamos considerando a quinta versão do DSM e a nova versão do CID-11 que passou a mencionar “incongruência de gênero”
num capítulo sobre condições de saúde e não mais como transexualismo.
202
que o uso da “disforia” como categoria emocional estabelece algum tipo de reconciliação com o
discurso biomédico, até mesmo uma retórica de reconciliação pode estabelecer alguma posição de
resiliência. Ser a própria identificação como transexual uma ressignificação de um termo médico,
já aponta para as possibilidades da reação política a um conhecimento hegemônico. A disforia
descrita aqui, assim, dramatiza e altera as relações de poder (do diagnóstico através de uma relação
entre quem diagnostica e quem é diagnosticado).
Assim, a disforia sentida e expressada por homens trans demonstra-se como um caso de
como as emoções atualizam por meio da vivência subjetiva dos indivíduos, as dimensões macro da
organização social, como já apontado por Lila Abu-Lughod e Catherine Lutz (1990b)151. Tanto o
sentir-se disfórico como o discurso sobre a disforia como um sentimento expõem as relações e
dinâmicas de poder nas quais os homens trans estão situados, e de como os corpos são construídos
e reconstituídos através das interações sociais. Mas não se trata apenas de como o outro me faz
sentir um “mal-estar” porque eu apresentaria caracteres dúbios de gênero e/ou sexualidade não
condizentes com a posição social que se demanda, tem a ver também com como eu sinto o
“incômodo” através do meu corpo, isto é, a disforia é uma categoria de uma linguagem do
sofrimento, que não se restringe a ser uma resposta às cobranças sociais, mas que elas mesmas
produzem essa emoção categorizada em novos termos ao usar os termos do diagnóstico,
desnaturalizando-o. A tática é de transformar a emoção presente no manual em uma emoção
descaracterizada medicamente. Contudo, o que se faz com o termo disforia – tanto no campo
biomédico, como no do movimento social e na vida cotidiana de seus pacientes – não é o mesmo
campo social e cultural daquele próprio das categorias de acusação como tem sido os termos
“queer”, “viado” e “negro”. Nesse sentido, esse elemento do mundo social da transexualidade tem
uma proximidade muito maior com contextos nos quais categorias biomédicas de doenças são
ressignificadas por grupos de pacientes que a incorporam em suas lutas diárias por reconhecimento
científico.
Continuando nossa conversa, Kaio ainda explica o lugar dessas emoções de incômodo com
o corpo no diagnóstico da transexualidade entre as diferentes definições que até hoje já burilaram
os manuais – transexualismo, transtorno de identidade de gênero (TIG), disforia de gênero. A
própria definição diagnóstica de emoções que provam a transexualidade detém de certo efeito na
forma como as pessoas trans em contato com o conhecimento biomédico se ressignificam, mesmo
que, como exposto até aqui, sentir-se disfórico não signifique estar doente, mas institui uma
linguagem para o sofrimento. Sob a égide do TIG, Kaio explica “que não era nem pra ter esse
incômodo, você não era pra ter esse incômodo, você não está incomodado, você está no lugar
151 Ver também Coelho (2010).
203
certo, você está apenas com um problema mental e não consegue enxergar isso”. E, continua
depois que lhe peço para explicar melhor, uma vez que não havia entendido:
Desvio mental.... Porque assim, na verdade, nós éramos “10 F64” que é doença mental,
que é isso que tô te dizendo, né?! “Você não está incomodado com seu corpo, você tá
com um desvio mental, você tem que se encontrar como mulher e como homem”. Mas
aí como a gente rebateu, rebateu, rebateu, e relutou, aí a gente foi pro “barra zero”.
Fomos pra disforia. Não é mais tão mental, é só pra dizer que é uma disforia que vem do
mental, ainda está dentro da patologia. Só deu meio que uma aliviada, está entendendo?
(Kaio, entrevista, 2018).
A segunda questão que essa discussão aponta, principalmente exposta nas representações
formuladas e expressadas por Kaio, é quanto às mudanças sociais das práticas e saberes biomédicos
e o que mais se institui como relativo no mundo social de saúde trans. Os diferentes termos
diagnósticos, apesar de permanecerem articulando ideias de masculino e feminino, homem e
mulher a serem identificadas, trazem consigo diversas formas de abordar e de conceber a
transexualidade e as intervenções médico-clínicas. Assim, a medicina trans brasileira de hoje não é
a mesma daquela praticada pelo circuito profissional de Roberto Farina – de influência teórico-
clínica da acepção de transexualismo de Benjamin –, tampouco a que tomou forma nos serviços
de saúde constituídos para um modesto atendimento especializado durante a década de 1990 com
os auspícios da implantação do SUS – no âmbito ainda do transtorno de identidade de gênero das
versões do DSM de 1993. E cada vez mais se distancia do contexto de criação do Processo
Transexualizador do final da década de 2008 – igualmente devedora do cenário anterior. A
biomedicina preocupada com esse nicho populacional não apenas não é mais a mesma no Brasil e
no mundo, como se aproxima cada vez mais, se já não é ela mesma um exemplo, das formas que
as ciências da vida têm assumido na contemporaneidade nas suas feições biopolíticas, de melhoria
da saúde do indivíduo e do avanço das tecnologias biomédicas que se transformaram em
verdadeiras tecnologias da vida. Quando Kaio me responde quais as atividades que o movimento
social tem articulado na região no âmbito da despatologização, o cuidado da vida ganha uma forma
particular ao defender que é preciso, primeiro, constituir uma estrutura que torne capaz e hábil esse
cuidado pela via da saúde pública. A necessidade de ser estratégico advém de urgências:
Nada! E não pretendemos tão cedo. Porque primeiro para se despatologizar, você
primeiro tem que criar uma estrutura pra segurar. Como é que você vai dizer assim.... No
momento que nós estamos, um atendimento com a endocrinologista, essa cirurgia que
eu fiz ainda está ancorado naquilo ali. Se eu chegar com um movimento, ou um
movimento chegar, chegar o que for, e quebrar aquilo ali, pra onde que nós vamos?
Precisa criar uma base, uma estrutura, o ambulatório é isso, é essa base, é essa estrutura.
Depois que essa base existir.... Por que São Paulo tá tão acirrado pra isso? Porque já tem
base. Nós não temos base. Nós vamos pra onde? [...]. Nós vamos para onde? [...]. Aí, não
tem uma estrutura pra brigar. É preciso criar um mecanismo e uma estrutura. Depois que
se pensar um mecanismo e uma estrutura em funcionamento, aí sim você pode dialogar
204
a desconstrução desse sistema. [...]. Aí, a gente pode pensar nesse diálogo, tá entendendo?
Mas se eu não tenho nada, eu não vou ter mais nada ainda (Kaio, entrevista, 2018).
Contudo, não se trata de se apontar apenas para o movimento de uma estratégia. Não
questionar a patologização para garantir os procedimentos cirúrgicos e o cuidado em geral é um
argumento que tem se tornado comum e tem sido igualmente criticado como um “erro de
estratégia” (Suess Schwend, 2018). Esse é o elemento mais direto que se apreende das ideias de
Kaio. Mas quero apontar, junto com ele, que a questão aqui não é, em si, o medo pelas
consequências dessas mudanças diagnósticas, mas que fundamentações fazem as demandas
políticas em saúde andar mais rápido para atender às suas necessidades. Quero inferir ainda que
essa discussão nos direciona para pensar as diferenças de contextos no país, tanto históricas como
culturais e sociais, porque o alcance e a cobertura que o setor público de saúde abarca se situa
diferentemente em cada região, tanto pelos movimentos sociais, mas também pelos interesses e
práticas de profissionais de saúde e dos setores estatais como um todo. Como a dinâmica política
de procurar que uma atenção à saúde trans seja estruturada no Estado, segundo os seus próprios
termos, produz ou reverbera na formação da subjetividade?
3.5. A conquista da cidadania em saúde
Procurei, nesse capítulo, compreender como o termo disforia tem sido formulado como
um conjunto de emoções concernentes a experiências de sofrimento. Essa disforia pôde ser
visualizada nas narrativas de transição de gênero. Nessas emoções encontram-se diferentes
sentimentos que endereçam o se sentir aflito com o próprio corpo. Através de um exame de como
a noção de disforia de gênero ganhou forma no DSM como uma categoria diagnóstica reificada
como mais flexível e apenas descritora, a primeira parte do capítulo seguiu para mostrar ainda como
emerge a crítica contra a patologização da transexualidade no Brasil. A segunda parte ficou a cargo
das descrições de experiências particulares de interlocutores que no decurso de suas transições
também vivenciaram itinerários terapêuticos para cuidar de processos de adoecimento que se
entrecruzam com os cuidados que buscam, e com os itinerários que concebem para transicionar.
Numa nova forma de politizar a própria existência e a relação com o conhecimento biomédico,
homens trans se veem sentindo emoções que tem uma grande base sociológica para sua concepção,
embora ela seja sentida no corpo e individualmente. A disforia como o sofrer com o corpo marca-
se como algo próprio da transição de gênero, e pertencente aos exames subjetivos e a materialidade
que leva alguém a construir a si mesmo de forma diferente daquilo que aprendeu desde o
nascimento. Assim, esses sujeitos agem como se invertessem a ordem dos elementos de uma
equação. Como outra forma de ver as emoções que vivenciam, e as próprias experiências e
205
argumentações para suas modificações corporais, novos reposicionamentos sociais passam de
numerador para denominador. Mas isso não ocorre apenas como “resistência” ou “resiliência” aos
conhecimentos hegemônicos, mas uma nova maneira de ressignificar as histórias que escutam
sobre si mesmos que não rompem totalmente com os caracteres do enquadramento biomédico. A
micropolítica de se perceber sentindo algo com o nome de disforia, mesmo que seja o termo usado
para gerir um diagnóstico, se institui porque descreve que o mal-estar e a aflição existem, e elas
podem até receber o nome de disforia, mas elas não são sintomas de uma doença. Sentir-se
disfórico fala também dos lugares que alguém que transiciona ocupa no decurso desse caminho e
na própria concepção de sua possibilidade. Ela descreve relações de poder contra as quais é
necessário se fazer visível.
A forma de se sanar, de apaziguar esse sofrimento que se vive com o próprio corpo, mesmo
que nisso o produza, é pelo Sistema Único de Saúde como única via possível num cenário de
pobreza. A justificativa central para que o SUS “olhe” para pessoas trans administrando serviços
especializados e não dificultando o acesso à sua rede integral e primária é um só: só é possível
garantir vidas trans se houver suporte do Estado que tem o dever de prover todos os cidadãos. No
próximo capítulo, portanto, passarei à descrição etnográfica da busca por serviços de saúde para
ter acesso as modificações que necessitam para resolver os problemas que fizeram com que
sentissem a disforia. Como mostrarei, esses itinerários de transição de gênero para sanar a disforia
ganham forma sob os efeitos da política de saúde trans brasileira, o Processo Transexualizador.
Mesmo que na época da pesquisa (e das narrativas produzidas na reflexão biográfica das entrevistas)
não existisse nenhum Ambulatório formal que oferecesse esse tipo de assistência, é possível
identificar que pacientes e ativistas constroem o direito a acessá-la localmente. Isso cria a
justificativa para os setores estatais cearenses, como alguém se dissesse: “procuramos assistência e
não obtivemos como outros cidadãos, portanto, é obrigação do Estado fornecer esses serviços
porque nossas vidas dependem disso”.
206
– Capítulo 4 –
A política de saúde trans e os processos de
formação de Estado
A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas
sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros
agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para a
promoção, proteção e recuperação.
– Constituição da República Federativa do Brasil (1988).
4.1. À procura de atenção
Era pleno meio-dia e Aristides, Rosivaldo e eu descíamos a pé a rua onde eles moravam. A
sensação térmica era quase avassaladora enquanto caminhávamos alternando entre o asfalto e a
calçada à procura de sombras que amenizassem de alguma maneira o calor que sentíamos. Iríamos
percorrer ainda uma distância de dois quilômetros até o posto de saúde152 que ficava localizado
num bairro vizinho. Antes de sairmos de casa pensei que usaríamos o transporte público. Quando
perguntei, tentando enfatizar sua necessidade, me responderam que não seria preciso, então me
resignei. Eu os acompanharia numa consulta já marcada, aquele momento, há quinze dias. Alguns
quarteirões depois entramos noutro beco e acabamos saindo, ao sul, na Avenida 13 de Maio.
Perguntei por que eles estavam indo naquele horário se a consulta era mais tarde, então me
explicaram que se não estivessem no postinho para confirmar o atendimento com antecedência a
funcionária colocaria outra pessoa no lugar. A regra foi esclarecida da seguinte maneira: para evitar
que usuários marcassem e não comparecessem era necessário chegar uma hora antes porque se não
o fizessem a vaga seria passada para o próximo registrado numa chamada de espera. A demanda
era alta e não se poderia deixar de atender quem precisava/e se esforçava para estar presente,
gerando assim essa dualidade moral. Eles (e eu também) não havíamos almoçado ainda, e se
tivéssemos parado para fazê-lo eles perderiam a hora marcada. Continuamos seguindo pela avenida
longamente até que entramos no bairro do posto. Localizado num recuo aberto que lhe dava grande
destaque em relação as demais edificações de uma rua larga, o serviço era pintado com as cores e
152 Termo usado pela Prefeitura de Fortaleza para se referir às Unidades de Atenção Primária à Saúde (UAPS) que compõem a
política de Atenção Primária à Saúde por ela gerenciada. Segundo documentos oficiais da Prefeitura, a cidade conta com 113 postos
de saúde sob sua responsabilidade espalhados pelas sete Regionais (forma como o município administrativamente organizava os
seus bairros até o final de 2019).
207
outros emblemas da Prefeitura (azul, branco, verde) por dentro e por fora, deixando claro a que
nível de administração estatal pertencia.
A preocupação de Aristides e Rosivaldo em respeitarem os horários estabelecidos era
reforçada principalmente pelo tipo de acesso que tiveram ao posto de saúde. É de conhecimento
geral local que cada um desses postinhos atende privilegiadamente os moradores dos “territórios”
que abrangem, os quais, por sua vez, pertencem a uma “comunidade” própria. Cada usuário deveria
recorrer ao posto de seu bairro munido de comprovante de residência. Alguns funcionários diziam,
contudo, que essa medida organizacional era apenas um princípio para facilitar o trabalho e evitar
a superlotação de uns serviços enquanto outros estariam esvaziados. O que os interlocutores
aprenderam é que para cada população subdividida havia uma estrutura específica, mas isso podia
depender do funcionário em questão no momento da marcação de consultas. Cada serviço se
tornara na cidade um microcosmo particular, mesmo que todos eles estivessem ligados à política
de Atenção Primária organizada pelo município e à rede do SUS. Alguns desses postos se tornaram
conhecidos também por serem classificados moralmente153 como “bons” ou “ruins” por homens
trans, de acordo com a abrangência da clínica, da marcação de exames e outros procedimentos que
ofereceram sem dificuldades. Como Aristides e Rosivaldo não moravam nesse bairro do postinho
para o qual nos direcionávamos, eles tiveram que contar com a aceitação da funcionária para que
marcasse ou não a consulta. Eles se dirigiram para lá, 15 dias atrás, sabendo que outros rapazes
trans já haviam sido atendidos ali, tendo inclusive conseguido encaminhamento para o setor
hospitalar terciário no qual existia um Ambulatório de Sexologia recém-criado na cidade. A
intenção de ir para esse serviço era de acessar desde um atendimento clínico genérico – entendido
que seria mais “humanizado” por ser uma profissional “especialista” – até a entrada no “sistema”
para que pudessem contar o tempo necessário para conseguir ser aceitos para procedimentos
cirúrgicos à transição de gênero154. Mesmo que na cidade não existisse um ambulatório do processo
transexualizador estar apto documentalmente era um trunfo para conseguir consultas inclusive com
médicos no mercado privado. Então, como me contavam no nosso caminho, precisaram ir e “fazer
muito choro” para a recepcionista marcar a consulta, ou seja, convencer a funcionária. Tinham
esperança disso se concretizar justamente porque outros conseguiram antes deles. Isso tornava o
serviço não apenas “bom”, mas “sensível”.
153 Compreendo aqui a moralidade a partir de Émile Durkheim (2000, 1996 [1912], 2008 [1925]), que primeiro mostrou que seu
fundamento social provém das representações sociais e do conjunto das interações entre a consciência coletiva e a consciência
individual. A despeito de seus interesses de reforma social, é possível apreender sua sociologia da moral. Para o autor, “há uma
característica comum a todas as ações que comumente chamamos morais, que é o fato de que estas se dão segundo regras
preestabelecidas. Conduzir-se moralmente é agir em conformidade com uma norma, que determina a conduta a ser seguida antes
mesmo que tomemos partido acerca do que devemos fazer. O domínio da moral é o domínio do dever e o dever é uma ação
prescrita” (Durkheim, 2008, p. 39). Os funcionários do posto de saúde fizeram suas regras, e diante dessa autoridade os
interlocutores observaram a utilidade de seu cumprimento e a ausência de outras opções.
154 Como veremos adiante no itinerário vivido por outro interlocutor, essa entrada no sistema se complexifica de outras maneiras.
208
Embora possa haver aí a atuação de noções em torno do reconhecimento heteronormativo
de pacientes como transexuais de verdade, é necessário alargar a compreensão da saúde trans para
incluir os meandros da estrutura do sistema de saúde brasileiro na sua “oferta” e na sua “procura”,
isto é, quero entender a organização social da atenção à saúde que, embora inclua relações de gênero
e sexualidade alcança outras questões e posições sociais quanto as diferenças de classe e de raça,
além do modo diverso de como os serviços se tornam acessíveis. E isso não cabe apenas aos
cuidados que pessoas trans e travestis buscam no âmbito das atenções à saúde de modo geral, mas
também no campo da política trans à mudança de sexo como entendida pelo Ministério da Saúde
desde que iniciou sua regulação nacional. Isso busca enxergar uma pluralidade de questões
presentes na conformação do tipo de acesso que Aristides e Rosivaldo, a exemplo de outros
interlocutores, conseguiram formalizar desde o nível primário.
Grosso modo, o atual funcionamento da Atenção Básica – também chamada de Atenção
Primária155 – do Sistema Único de Saúde preconiza-se como a sua “porta de entrada”, de modo
que se possa se atender inicialmente e filtrar o encaminhamento para que se siga numa rede de
serviços organizados de modo descentralizado da média à alta complexidade. Nesse nível inicial há
várias estratégias e iniciativas que definem sua organização, incluindo exames, vacinas, consultas
(Matta e Morosini, 2008). A despeito da idealização daqueles que imaginaram originalmente o SUS
em todo o país, essa rede muitas vezes pode se transformar em focos de atenção dentro de linhas
hierárquicas que os pacientes percorrem – e muitas vezes precisam vencer –, desenhando itinerários
terapêuticos diversos. Os municípios brasileiros são, assim, o maior concentrador operacional de
oferta dessa atenção, mesmo que haja uma legislação suplementar à Constituição Federal de 1988
que institua a parceria financeira com outros níveis de poder estatal, o Governo do Estado e o
Governo Federal, para o seu custeio. Essa descentralização gerencial de setores do SUS produz um
emaranhado de políticas de saúde que podem ter seu financiamento e idealização concentrados
numa esfera estatal, mas tem sua prática levada à cabo noutro contexto bem diferente. O que nem
sempre é indicado e compreendido nesse sentido é que tais políticas e ações de saúde só podem
passar a existir localmente se elas forem concebidas e pensadas como legítimas e, portanto,
necessárias também em nível local. Assim, não se trata de averiguar o que “se faz na ponta”, como
se diz geralmente sobre de políticas de saúde, como se as diferenças com o que é pensado em
Brasília seja um indicativo puro e simples de ineficiência de ações “bem gestadas” e “mal aplicadas”.
155 Os dois termos representam concepções diferentes acerca da idealização do que animaria o setor dentro do Sistema Único de
Saúde. Sanitaristas ligados a reforma do sistema no processo de democratização propõem chamar de Atenção Básica, e não de
Atenção Primária, argumentando que isso não reforçaria a ideia de hierarquização de um sistema que não preconizaria a saúde
integral e a existência de uma rede em saúde (cf. Giovanella, 2018; Cecilio e Reis, 2018).
209
Isso é algo profundamente relevante para entendermos o processo transexualizador e sua
constituição nas regiões brasileiras.
Duas pesquisas me forneceram pistas nesse sentido, a etnografia de Jessica Jerome (2015)
sobre a implantação do SUS no Ceará nos anos 1990 e a pesquisa historiográfica de Luiz Araújo
Neto e Luiz Teixeira (2018) sobre como o câncer foi transformado em um “problema médico-
social” entre os anos 1940 e 1950 para poder ser relevante à intervenção biomédica no Ceará.
Jerome demonstra através de uma observação densa como médicos e outros profissionais de saúde
se defrontavam com categorias e compreensões da população em geral para aplicarem a
transformação do sistema de saúde. Havia aí um conjunto de práticas que buscavam idealmente
romper com um modelo de atenção visto como pouco cidadão porque fincado em bases de
relações de troca e não como direito inerente. Os moradores do Pirambu, sítio específico estudado
pela antropóloga, também se engajaram para desafiar um sistema individualizado antecessor e
concorrente ao SUS construindo passeatas, reclames midiatizados e práticas de cura alternativas
que preconizavam um desenho mais coletivizado através do plantio e consumo de plantas. Assim,
se produziu um campo que contribuiu para o estabelecimento de um sistema universal localmente.
Já Araújo Neto e Teixeira (2018, p. 183) procuram mostrar de modo mais direto como o câncer,
atualmente indiscutivelmente uma doença que engaja e sensibiliza, necessitou ser erigido
socialmente como um problema de saúde para ser aceito como adoecimento no Ceará. Não foi
algo dado. Referindo-se a um período histórico muito anterior àquele que nasceu da Constituição
de 1988, tocado por Jerome, os autores acabam por explicar como a criação da assistência à saúde
voltada para “cancerosos” foi um trabalho coletivo no sentido durkheminiano. No início da década
de 1940, as neoplasias não eram interessantes à medicina e à saúde pública cearense, as quais
estavam voltadas principalmente às endemias rurais e epidemias urbanas. Araújo Neto e Teixeira
(2018, p. 183) demonstram que houve um “processo de ‘enquadramento’ do câncer” como fruto
do trabalho de “um grupo de médicos cearenses com forte presença nos círculos da profissão,
articulando-se com projetos e iniciativas locais e nacionais a fim de pôr o tema das neoplasias na
agenda de grandes interesses da população cearense, pelo menos das elites”. Os historiadores não
isolam a região e demonstram que foram diferentes níveis desse processo social com a criação de
setores estatais, engajamento científico e político e mudanças na sociedade brasileira que
possibilitaram que o câncer se tornasse um problema cearense.
Ambas as pesquisas, de Jerome e de Araújo Neto e Teixeira, já demonstram que
“concepções de cima” no campo da saúde/biomedicina – isto é, da capital federal ou doutras
metrópoles instadas ao centro do país – não se reproduzem simplesmente em outras regiões do
país de maneira automática. Elas necessitam ser produzidas. E, portanto, precisam ser
210
compreendidas dentro de processos diferentes mesmo que possamos perceber as escalas que
incutem seu entrecruzamento. Ao ler esses autores e a autora enxerguei muito do processo
sociopolítico que tem dado ânimo à saúde trans no Ceará que, a despeito da velocidade que nem
sempre é vista como ideal por entusiastas, tem sido contemporaneamente um campo no qual essa
legitimidade tem se constituído. Esse cenário e sua materialização legal têm como efeito uma
intrincada subdivisão de esferas de atuação política que se constituem, e precisam ser constituídas,
também no âmbito de direitos em saúde ao longo do território brasileiro. E isso é particularmente
relevante para a atenção à saúde que os interlocutores trans procuram.
No Brasil, desde 2008, existe oficialmente uma política de saúde do SUS chamada de
Processo Transexualizador, na forma de ambulatório especializado e enquanto atenção cirúrgica
visando a transição de gênero. Nesse sentido, o Ministério da Saúde – junto com o Conselho
Federal de Medicina – estabelecem continuamente regras operacionais com prazos, etapas e tipos
de procedimentos oferecidos e orientações de atuação clínica nesse sentido. Com uma história que
remonta à década de 1960 no país, como referi no capítulo 2, essa política necessita, contudo, ser
dividida em sua gestão com os Governos dos Estados e dos Municípios como qualquer política do
SUS. Para que um ambulatório desse tipo seja habilitado – isto é, reconhecido como apto a
performar o programa –, instâncias locais devem oferecer mão de obra e o lugar hospitalar, os quais
são então habilitados pelo Governo Federal a funcionarem e, portanto, a receberem recursos
financeiros para parte de seu custeio e o reconhecimento como um serviço específico. Não se trata,
simplesmente, de uma automática implantação. Observei na pesquisa que entender os meandros
dessa estrutura é uma peça-chave para que possamos compreender os efeitos sociológicos dessa
política sobre a atuação em saúde no Brasil mesmo quando o Processo Transexualizador ali “não
exista” habilitado. Meus argumentos nesse capítulo são que: primeiramente, como bússola legal (e
moral) influencia o cuidado constituído no país para o acesso a atendimentos em torno do processo
de transição de gênero, e, em segundo lugar, que o cenário sociopolítico – inclusive, histórico –
tem determinado o desenvolvimento ou a sua atuação como política, da busca por cuidado pelos
pacientes/ativistas e a medicina trans localmente. Desde o primeiro serviço criado no país,
observando a história dessa política, a história do SUS, e a dos movimentos sociais trans (e LGBT),
se pode perceber que a existência ou não desse tipo de ambulatório é o resultado de forças
sociopolíticas que se fazem presentes diante dos Governos Estaduais e/ou das Prefeituras. Não é
um ativismo simplesmente diante do poder central no país, é um ativismo dirigido para os poderes
locais156 porque é localmente que se materializa o cuidado e a atenção em saúde. Isso também não é
156 Poder central e poderes locais são termos usados aqui em relação contextual com o intuito de delimitar a estrutura estatal e a
articulação política em torno e através dela, isto é, o que seria um poder local numa dada atmosfera política pode se tornar um poder
central quando a relação considera outros agentes e estruturas.
211
algo proveniente apenas da militância trans, mas necessita estar articulado com um corpo científico
e médico local, uma vez que o Ministério da Saúde não tem a força para sua instalação “desde
cima” mesmo que tenha procurado regular as iniciativas (que sempre foram locais) desde 1997 com
sua portaria autorizando de modo experimental as cirurgias em mulheres trans em hospitais
universitários.
A etnografia realizada em Fortaleza me demonstrou que mesmo não existindo oficialmente
esse serviço na cidade, tanto pacientes trans como profissionais de saúde não deixaram de
conformar serviços e procura por algo nesse sentido; e nem se deixou que muito do trabalho
realizado nesse sentido fosse influenciado por seus princípios. Isso possibilitou que viesse a ser
discutida e materializada a sua oficialização, uma vez que foi necessário que diversos agentes
criassem uma atmosfera de legitimidade para tanto. A atenção em saúde voltada às pessoas trans
precisou existir negativamente para que a política de saúde trans pudesse ser reclamada: é essa parte
da história que descrevo nesse capítulo, a da negação da atenção e da sua procura.
O objetivo desse capítulo é, portanto, entender como se produziu esse “ambiente” na
região cearense, partindo da observação de (e do que foi reportado nas entrevistas sobre) itinerários
terapêuticos de homens trans quanto a transição de gênero mediada pela medicina. Não pretendo
aqui descrever o ativismo per se; sobre isso me deterei no capítulo seguinte. Procuro compreender
os processos e os contextos micro da busca por atenção à saúde porque esse é também um
elemento que acaba por criar a legitimidade diante do Estado-nação e não apenas a mobilização
oficial que se dá de maneira clara e direta para as instituições. Esse cenário é particularmente
relevante porque foi possível observar o Processo Transexualizador desde os processos que
possibilitaram seu nascimento num lugar específico, e a ação da política mesmo sem sua
oficialidade. Com isso, se percebe que os serviços desse tipo já existentes no país nasceram a partir
da mesma ordem de fatores, levando-nos a ver como essa política de saúde federal responde, pelo
contrário, às dinâmicas localizadas. Partindo dessa observação se pode, portanto, inferir que com
isso o Estado brasileiro em sua estrutura produz a si mesmo ao procurar regular a saúde trans.
Nesse sentido, faço mais referência à noção de “atenção” do que a de cuidado, uma vez
que a falta mais sentida e mais reivindicada na vida de homens trans que acompanhei foi aquela
correspondente a uma estrutura em saúde que os atendesse de maneira que confirmasse os direitos
que reclamam. Como mostrarei ao longo do capítulo, entendo que a atenção integra o cuidado157, mas
157 Há uma forte produção bibliográfica sobre cuidado (tanto em saúde como noutras áreas da vida humana) na antropologia, na
sociologia e na área interdisciplinar dos estudos feministas (cf. Mol, 2008; Tamanini, 2018). Nos países de língua inglesa do norte
global a palavra care é usada tanto em termos de atenção à saúde como para se referir ao cuidado de maneira abrangente, algo que
se repete na bibliografia produzida por seus acadêmicos. Como deixarei claro ao longo da descrição, partindo do campo etnográfico,
é relevante diferenciar que cuidado não é o mesmo que atenção, embora o primeiro possa – e de acordo com os interlocutores, deva
– estar presente na segunda. Ademais, no Brasil, sanitaristas e cientistas sociais tem pensado os serviços como modos de “atenção
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não são o mesmo. Essa distinção ajuda a compreender as estratégias para acessar os serviços, os
procedimentos, os mecanismos e as estruturas trazidas à tona por um conjunto de profissionais
específicos que manejam recursos materiais e conhecimentos também próprio às suas áreas de
atuação. Aristides e Rosivaldo se ligam a redes de cuidado entre amigos e entre parentes
independentemente de conseguirem ou não uma consulta médica158, porém é a atenção à saúde como
estrutura estatal organizada que eles realmente não têm às suas disposições. O “Estado brasileiro”
como uma figura monolítica é, então, acusado de omitir um atendimento digno, uma atenção.
Quando me remeto ao conceito de itinerários terapêuticos de transição de gênero não se
trata de considerar que seja “uma doença” a ser corrigida com a transição, mas sim ao fato de
pessoas trans engajarem-se em trajetórias de cuidado biomédico para prevenir e para curar
adoecimentos que surjam nesse processo de mudança de gênero. São pessoas concretas que
procuram a intervenção biomédica e situam-se em caminhos para alcançá-la, mesmo que esse
encontro, quando aconteça, não seja uma relação ausente de conflitos e contradições. As angústias
em torno da necessidade de se consultar com um médico e de se acessar procedimentos oferecidos
por serviços do sistema público de saúde entreveem tanto a ausência de meios econômicos para
realizá-los fora dali, como do renome e do reconhecimento – legitimidade – que esses profissionais
adquirem quando esses sujeitos procuram transicionar sem, com isso, comprometer a saúde. A
dimensão do adoecimento está presente, não do lado da origem da transexualidade, mas de um
caminho saudável para alcançar aquilo que é tido como necessário em termos corporais e mentais.
Isso produz, como mostrarei, moralidades sobre continuar “com saúde”. Assim, neste capítulo, eu
não realizo uma etnografia centrada num único serviço, mas privilegiarei o acompanhamento de
homens trans nos caminhos e nas estratégias que construíam para acessar esses serviços de saúde,
de modo que eu adentro e saio desses espaços junto com eles.
Antes de voltar à observação do posto de saúde, com que iniciei o capítulo, cabe esclarecer
como entendo aqui “o Estado” a partir do processo de formação de sua maquinaria e de ideias a
seu respeito. Assim, poderíamos desnaturalizar a existência desse ou daquele serviço de saúde e do
próprio SUS, tanto ao enxergarmos suas histórias quanto as suas reverberações. Nesse ínterim, se
produziram dinâmicas que não apenas participam, mas são em si mesmas processos de formação
do Estado, uma vez que a luta por direitos em saúde trans perpassa intimamente pela saúde pública
enquanto oferta de serviços entendidos como parte do dever pelo Estado brasileiro para cidadãos
que têm direitos. Nisso, é possível perceber como se constrói “o Estado” no processo de reclamar
à saúde” e instituem essa expressão como parte da linguagem que descreve a maquinaria estatal (cf. Giovanella, 2018). Assim,
considero salutar fazer essa diferenciação e adotar esse termo para representar a organização da saúde pública.
158 Como procurei mostrar no capítulo 3 as estratégias dos interlocutores para cuidarem de seus processos variados de adoecimento
em meio a transição.
213
sua ausência ou seu excesso e de demandar sua ação em diferentes escalas. Torna-se visível, assim,
os efeitos e transformações dos discursos institucionalizados na Constituição Federativa de 1988,
num movimento descritivo que atravessa ao mesmo tempo os itinerários terapêuticos à transição
de gênero de homens trans e seu contato com a estrutura do SUS como uma formação estatal.
4.2. Uma construção de processos estatais e o campo da saúde
A abordagem contemporânea em antropologia159 no Brasil sobre “o Estado” e, ainda, sobre
o “Estado-nação” tem produzido uma vasta bibliografia que levou à contestação – inspirada
também por outras ciências sociais – de ideias que o tomem como uma entidade que exista
essencialmente. Privilegia-se aí um ponto de vista etnográfico da produção de sua maquinaria – e
o acesso à ela em diferentes frentes e maneiras como usuário, operador ou apropriador –, das
percepções que se tem sobre ela, e de seus efeitos numa variedade temática e de abordagem teórica
(cf. Beviláqua e Leirner, 2000; Teixeira e Souza Lima, 2010; Castilho, Teixeira, Souza Lima, 2014;
Souza Lima, 2013)160. As reflexões de Philip Abrams (1988 [1977]) têm sido umas das inspirações
nesse sentido. Fazendo uma digressão sobre o lugar do Estado desde as teorias sociológicas,
marxistas e das teorias da ciência política, apontando para a separação do social e do político como
reinos distintos, o autor concebe que “o Estado não é uma realidade que se esconde atrás da
máscara da prática política. É, ele mesmo, a máscara que previne que vejamos a prática política
como ela é. Isto é, se poderia quase dizer, a mente de um mundo sem mente, o objetivo de
condições sem propósito, o ópio do cidadão” (Abrams, 1988, p. 82, tradução minha). É por isso
que ele argumenta que o que existe não é o Estado em si mesmo, como um agente que tem força
sobre os indivíduos, mas uma “estrutura centrada num governo”, “unificada e dominante” e,
também, como ideia que é projetada, e que circula como uma crença. Philip Abrams busca mostrar
que tanto esse Estado-sistema como esse Estado-como-ideia, como chama, são o que de fato existe
a dominar as ações individuais.
159. O “estudo do Estado” tem praticamente um incontável número de correntes teóricas e áreas disciplinares, indo das tidas como
mais óbvias como a ciência política, marxismo e filosofia até aquelas a isso recentemente afeitas como a teoria queer. Reflexões
feministas embrionárias têm tido, nesse sentido, considerável influência nas ciências sociais e humanidades de diversas matizes.
Essas vão de uma gama de teóricas que entendiam o Estado como uma instância e realidade dadas até aquelas que começaram a
entender que a mudança da opressão das mulheres adviria apenas se elas mesmas entrassem e mudassem o Estado, visto como
masculinizado e neutralizado no sentido de ser controlado pelos homens para seu proveito próprio e com feições que não
demonstrassem suas reais raízes políticas diante das relações de gênero (ver Machado, 2016). Não cabe aqui, ainda, cobrir o processo
histórico de formação do Estado moderno, que parte desde a ascensão do capitalismo e da burguesia com o Estado Absolutista, e
as posteriores mudanças nessa organização estatal com a queda das monarquias e ascensão da ideia de democracia e transformações
do liberalismo econômico (cf. ex. Anderson, 1991; Elias, 1994).
160 Para um panorama, principalmente quanto ao contexto urbano a nível nacional e desde o exterior – incluindo uma comparação
com a ciência política e a sociologia – ver os textos de Souza Lima e Castro (2015) e Souza Lima e Teixeira (2010). Como os autores
mostram, os primeiros estudos estiveram interessados nos despossuídos, como os pobres, “os Outros”, em como reagiam e
resistiam às “políticas sociais”. Mas esse é um contexto urbano da sociedade nacional, como se chamava o âmbito não-indígena dos
estudos antropológicos. Nesse último, é forte e crescente a abordagem política da formação, sociogênese e resistência de grupos
étnicos e da sua pacificação e assimilação pelo Estado-nação brasileiro, seja quanto às terras amazônicas, ao Nordeste Indígena, e
outras regiões no país (cf. ex. Oliveira, 2014; Souza Lima, 1995; Valle, 2003).
214
Assim, levo em consideração na sua análise do Estado moderno e burocrático a premissa
de que é a “estrutura” e são as pessoas e seus grupos ao operá-la que são os agentes que, de fato,
existem no mundo empírico. Abrams defende que a proposta de se “combater o Estado” é algo
que não leva em consideração que a disputa se dá entre os grupos, ou melhor dizendo, entre classes,
e não entre um agente sem rosto e sem substância que estariam fora dele “na sociedade”. A isso o
autor dá o nome de “véu de ilusão”. Aqui, a separação entre dois campos estanques “sociedade” e
“Estado” é terminantemente rejeitado. Por isso que o autor é irônico em dizer que não se “estuda
o Estado”, mas o que se faz da ideia do estatal e de seus recursos161. É possível, assim, reter de
Abrams principalmente a recusa em enxergar no Estado um ator monolítico com uma mente
própria apartada. Algo que será também chamado à atenção por Timothy Mitchell (1999, p. 76) ao
dizer que o Estado é ao mesmo tempo um “construto ideológico” e uma “força material”.
Reflexões algo herdeiras das proposições de Norbert Elias (2006 [1972], p. 157) sobre como “o
Estado” é uma ideia difusa, cujo poder penetrante é aquele do “Estado nacional” que detém sua
forma contemporânea no modelo liberal burguês e democrata. Elias reclamava da ausência de
preocupação sociológica na literatura de sua época sobre a formação do Estado-nação, abstraída
em conceitos como “totalidade social” ou “sistema social”. Para o autor, considerar a formação de
Estado poderá mostrar como a integração que culmina em Estados e nações é o resultado de um
processo no qual se conjuga “uma série de tensões e conflitos específicos, lutas de equilíbrio de
poder que não são acidentais, mas estruturalmente concomitantes com o movimento em direção à
maior interdependência das ‘partes’ de um ‘todo’” (Elias, 2006, p. 159). No seu programa de estudo
propõe que é necessário distinguir o que são as “ideologias nacionais” e o que são os processos de
“integração e desintegração”. Assim, se poderia observar como se constituem a nação, forma
contemporânea do Estado, como um sistema de valor e as tensões e os grupos que disputam entre
si o controle ou a entrada nas ideologias e na estrutura estatais. Isso é importante de assinalar tanto
porque é essa a forma como estamos incluídos nas relações sociais que são abarcadas como matéria
de administração de governo, como a retórica brasileira em torno da gênese de políticas
governamentais e direitos humanos relativos à diversidade sexual e de gênero não deixou de
assumir uma forma nacionalista particular.
161 O que leva, por extensão, à contestação da existência em si mesma do que se chama de “sociedade civil”, a qual pode ser
percebida tanto como uma ideia quanto uma prática cultural nas sociedades de Estados modernos. Entendo que não há aí uma
força anônima contrabalanceando o “poder estatal”, mas um idioma de organização social diante das políticas estatais. E são esses
grupos que podem ser estudados e o modo como manejam essa linguagem estatal em meio as suas ações coletivas. A circulação
dessa proposição é resultado do que Timothy Mitchell (1999) chamou de “efeito de Estado”, que produz a ideia de que há essa
separação, mas que corresponde a uma ideologia. Angela Facundo Navia (2014, p. 86) ao estudar a política brasileira do refúgio
demonstrou que essa unidade social funciona nas relações entre sujeitos e agentes de estado atravessado por uma certa moralidade.
Então, esse termo ganha sentido relativo a certos objetos de um mundo social próprio. No caso da autora, as falas sobre
"participação da sociedade civil" se referem a determinada ONG, a Cáritas que age junto a refugiados, a certas institituições públicas
e ainda a organizações que trabalham ou não com migrantes. Nesse processo social são criados os “outros” dessa categoria. Assim,
ao se falar em “sociedade civil” é preciso ter em mente sua significância sociológica contextual.
215
Mesmo que sejam os grupos entre si que disputem a operação daquilo que constitua o
aparato institucional, é pouco produtivo para a compreensão enrijecer o olhar e ver apenas grupos
de interesse atuando num fundo utilitarista e cujo jogo responderia ao binarismo
dominados/dominadores, ou tampouco observar apenas a resistência e não entender como se dá
esse roubo e centralização da autoridade tão enfatizados por Max Weber (2011 [1967]) na sua forma
de violência e depois por Bourdieu (2014 [2012]) na forma simbólica que, como tal, possui efeitos
consideráveis sobre a vida social162. Ao contrário, há aí a produção de processos estatais como
processos sociais. Assim, por mais que se leve em consideração que o poder transborda e não se
vincula isoladamente às estruturas estatais, “ao Estado”, a posse de seus espaços e recursos é um
objeto de disputa altamente estratégico para os grupos e movimentos sociais com todos os seus
agentes engajados nas permanências ou nas mudanças. Raewyn Connell (1990, p. 509) já apontou
que seria necessário enfatizar o Estado não como uma “coisa”, mas como um “processo”. E, ao
fazê-lo, compreenderíamos como o aparato institucional estatal torna possível a regulação sobre as
pessoas, de modo que a sexualidade e as relações de gênero não são acessórias, mas pontos
essenciais desse funcionamento junto aos processos de coordenação interna a essa estrutura para
lhes dar um grau de coerência.
Nesse sentido, estou preocupado neste capítulo em considerar um estudo da atenção à
saúde como setores estatais em suas práticas administrativas a partir do seu acesso (de fora para
dentro), procurando descrever como os agentes constroem o “Estado” e o atualizam, reagem e o
transbordam. Isso é fundamental porque ativistas, pacientes, profissionais de saúde e outros
funcionários de governo – procuradores, advogados, porteiros, assistentes de limpeza, enfermeiras,
psicólogos, diretores, gestores, educadores – se situam nessas instâncias as produzindo
continuadamente e constituindo fluxos e processos tanto enquanto grandes eventos como no
cotidiano mais simples e banal. Entender a constituição do Processo Transexualizador como uma
forma de “fazer Estado”, nos termos de Antônio Carlos de Souza Lima (2015, 2013), tem o
potencial para mostrar como o contingente de relações sociais e de práticas relativos à saúde trans
se intrincam e são objetivadas e subjetivadas através das ideologias estatais e de agentes específicos
no cotidiano de seus trabalhos administrativos, uma vez principalmente que o Sistema Único de
Saúde no qual está alojado e foi gestado é uma das maiores políticas governamentais do Estado
brasileiro. Percebi que todos os setores nos quais os interlocutores buscavam cuidado ou
162 Partindo da assertiva de que estudar o Estado era em si uma tarefa difícil porque suas ideias penetravam no pensamento dos
pesquisadores, Bourdieu chega inicialmente à teorização de que: “O Estado é o que fundamenta a integração lógica e a integração
moral do mundo social, e, por conseguinte, o consenso fundamental sobre o sentido do mundo social que é a condição mesma dos
conflitos a propósito do mundo social. Em outras palavras, para que o próprio conflito sobre o mundo social seja possível, é preciso
haver uma espécie de acordo sobre os terrenos de desacordo e sobre os modos de expressão do desacordo” (Bourdieu, 2014, p.
23).
216
praticavam suas atuações em saúde e áreas administrativas estavam situados e em disputa entre si
no âmbito estatal. Assim, as dimensões do sistema de saúde privada são pouco ou nada alcançadas.
Num primeiro momento se poderia considerar que tal empreitada etnográfica seria
impossível de se realizar em Fortaleza, no Ceará, já que, como já assinalei, um Ambulatório deste
tipo não existia na cidade em todo o tempo da pesquisa. Contudo, isso não implica que a existência
das normativas e leis que o regem no cenário federal não produzam, principalmente na forma de
efeitos estatais, consequências sociais sobre os agentes e as estruturas do maquinário burocrático e
de atenção à saúde locais. Esse é um primeiro ponto a considerar: o Processo Transexualizador
instituído no país no final da década de 2000 se reproduz por todos os lados mesmo sem que ele
seja regulamentado163. O segundo leva à confirmação do primeiro: ativistas trans e médicos e
gestores e funcionários públicos se galgam na sua existência e na possibilidade de sua aplicação
local para demandar direitos sociais em saúde e para inscreverem-se enquanto praticantes e
pacientes deste tipo de atenção. Por isso que o capítulo transcorre descrevendo em relevo a política
de saúde trans brasileira como um processo de formação do Estado-nação, que, como tal não inclui
apenas o maquinário e seus agentes oficiais, mas também, como colocaram Souza Lima e Castro
(2015, p. 35), as “diferentes modalidades de organizações que estão fora desse âmbito, mas que
exercem funções de governo”, isto é, organizações não-governamentais, movimentos sociais e
agências de fomento e organismos nacionais e internacionais.
4.3. Os efeitos sociais do Processo Transexualizador
Quando Aristides, Rosivaldo e eu finalmente entramos no posto de saúde primeiramente
bebemos água no bebedouro à esquerda da entrada para tentar apaziguar o calor, após a longa
caminhada de quase 30 minutos ao sol. Quase esbaforidos notamos que já havia outros pacientes
à espera de consultas naquela tarde. Não fomos os primeiros a chegar. Provavelmente compelidos
pela mesma obrigatoriedade de confirmar a ida, essas pessoas já estavam na recepção, enquanto
outras mais chegariam posteriormente enquanto ali estávamos. Uma grande sala retangular era
ocupada com cadeiras de ferro e plástico dispostas horizontalmente em relação a entrada em três
fileiras, além do bebedouro à esquerda uma grande placa informando os serviços disponíveis estava
fixada na parede à direita. A recepção ficava bem em frente à porta e estava protegida por uma
vidraça transparente que ia do balcão até o teto. Essa sala de espera dava ainda para dois corredores,
um de cada lado da recepção, nos quais ficavam consultórios e salas de triagem e pesagem e a
163 Isso não quer dizer que não haja diferenças quando se tem uma atenção à saúde assim instituída. Estou apontando para os efeitos
da política governamental do Processo Transexualizador na conformação da atenção e do cuidado que podem exceder sua existência
de fato.
217
farmácia. A maioria desses pacientes que já esperavam antes da nossa chegada eram mulheres com
crianças e idosas, e, em menor número, idosos. Eu percebo que nossa chegada inspirou olhares
que nos examinavam com atenção. Como não houve nenhuma interação acompanhada de fala
direta não posso inferir exatamente o que pensavam os curiosos, mas nesse momento me questiono
se não seria a “verdade sobre o sexo” o que lhes movia a se deterem tão longamente nas nossas
figuras, já que os rapazes e eu não deixávamos de suscitar alguma dúvida quanto às nossas personas
enquanto homens. Era como líamos os olhares de canto de olho, como identificávamos, que
evitavam o contato direto e de confronto aberto.
Sem deixar que essa atmosfera nos incomodasse grandemente nos voltamos para a
conversa entre nós mesmos. Logo após nos sentarmos nas últimas cadeiras de espera, Aristides e
Rosivaldo percebem que já era hora de falar com a recepcionista para apresentar o comprovante
da marcação e confirmar a consulta. Uma fila já começava a se formar, eles então aguardaram.
Após alguns minutos a confirmação foi feita e continuamos a esperar. Num dado momento da
nossa conversa Aristides nos pergunta se o médico de família que iria lhe atender poderia receitar
alguma medicação para ansiedade. Ele nos dizia que tinha muita dificuldade para dormir. Rosivaldo
completa que também sentia o mesmo, e que acha que o médico talvez o encaminhasse para um
psiquiatra se fosse dito isso. Aristides já havia se consultado com outros profissionais para sua
transição de gênero, e tinha vivido um desconfortável processo de identificação do transexual de
verdade. Como eles estavam ali primordialmente para serem encaminhados para algum serviço que
mediasse a conclusão de suas transições, qualquer elemento que pudesse lhes distanciar disso
deveria ser afastado sem titubeio. Um desses fatores, desde a experiência dos interlocutores, era a
existência de algum adoecimento que quando diagnosticado teria servido de empecilho para o
andamento da transição. Aristides, então, desiste de mencionar qualquer problema de saúde. A
ideia é, portanto, limpar ao máximo a solicitação ao médico, e conseguir o acesso a outro nível do
SUS, esse que, sabem, detinha de uma especialista que poderia lhes atender de maneira afirmativa.
Aristides voltaria a mencionar que quando fora atendido noutro serviço de saúde mental da cidade
recebera uma receita de antidepressivo leve, mas que não estava disponível na farmácia do hospital.
Enquanto conversávamos entre nós o tempo passara rápido e uma enfermeira já começava
a chamar os pacientes para serem pesados e terem as temperaturas medidas. Não sabíamos quem
era o médico e quando um rapaz jovem passa por nós de jaleco inferimos que talvez fosse ele quem
estaria atendendo naquela tarde. Algo que primeiro chama a atenção dos meninos é o seu porte
atlético e a beleza que identificam. Muito simpático, ele então nos chama para entrar na sala todos
juntos já que eu estava os acompanhando e ambos iriam se consultar. Esperamos novamente de
pé num canto do consultório enquanto Aristides é o primeiro a ser ouvido. O médico, sentado
218
atrás do seu birô, pergunta-lhe o que o trazia ali. Apresentando-se, sem rodeios, como alguém
transgênero, ele então explica que precisava de um encaminhamento para uma médica que atende
em um dos hospitais terciários da cidade que conta com um recém-criado Ambulatório de
Sexologia. O jovem médico confirma que se tratava de “uma especialista”, o que Aristides assente.
A pergunta de praxe se ele teria alguma doença atual é totalmente negada, mas Rosivaldo e eu
sabemos que ele não está totalmente “bem” de saúde. Porém pensavam que procurar qualquer
atenção nesse sentido poderia colocar em risco o encaminhamento. Mesmo que não conhecêssemos
o médico que os atendia, não valeria a pena arriscar. Sem maiores delongas nosso amigo recebe o
encaminhamento impresso. O mesmo se repete com Rosivaldo, que também nega qualquer
cuidado fora da transição. Quando acaba de consultar os dois, Dr. Giraldo se explica, dizendo que
marcou um CID164 genérico sobre sexualidade nos documentos porque era necessário
burocraticamente, o que evitaria o retorno e o insucesso da ida ao hospital caso algum outro
funcionário pudesse questionar a legitimidade do encaminhamento. O CID ali marcado era descrito
como “z700 – acompanhamento às atitudes em matéria de sexualidade”. A explicação do médico
fora totalmente inesperada e surpreendera positivamente os interlocutores que consideraram a
explicação uma sensibilidade e um reconhecimento de que não eram doentes de verdade. No
documento de Aristides agora em mãos, líamos:
Paciente, 24 anos, sem comorbidades, transgênero
necessita de avaliação para encaminhamento
adequado em serviço de referência.
A felicidade entre eles era enorme, mais um passo dado para a transição. Tudo parecia nos
conformes: além de constar o seu nome completo, o de sua mãe, o número do cartão do SUS,
havia a informação de que detinha o gênero masculino. Não era a primeira vez que os rapazes
tentavam se consultar na Atenção Básica para conseguir esse tipo de encaminhamento. Aí se
poderia achar que não haveria nenhuma preocupação de se tornar um usuário contínuo desse nível
de atenção, mas a pequena fração de tempo que ficamos no posto já nos mostrou a carga de tensão
que suas presenças implicam quando deixam margem a seus corpos. Ainda sem iniciar o processo
de hormonização, Rosivaldo, com 19 anos de idade, era franzino e deixava grande dubiedade,
diferente de Aristides, de 24 anos, que já tinha alguma barba no rosto, mas que também não tinha
completado a transição que desejava e que incluía cirurgias. Ambos eram pardos, sem renda fixa e
moravam fora da casa da família de origem. O SUS, assim, era a única possibilidade de conseguirem
qualquer mediação médica para realizar suas transições. De posse do encaminhamento, agora
164 Código de Identificação de Doenças, da Organização Mundial de Saúde.
219
sabiam que poderiam se dirigir ao hospital e tentar marcar outra consulta, e assim o itinerário
continuava.
O médico que nos atendera no posto de saúde parecia conhecer algo sobre transexualidade
e transição de gênero e não apresentava nenhuma dúvida ou questionamento para além de suas
perguntas de praxe. O posto sensível parecia então corresponder ao deliberado oficialmente pelo
Processo Transexualizador para a Atenção Básica: o uso do nome social e o encaminhamento
regulado. Como uma política de saúde hospitalar e ambulatorial, não há nenhum procedimento ou
acompanhamento realizável no primeiro nível do SUS165. Isso acaba por retirar qualquer forma de
vínculo de usuário e afastava dali os interlocutores, já que eles necessitavam percorrer a cidade para
encontrar um “posto sensível” como aquele do bairro vizinho às suas casas. Mesmo que não
houvesse regulamentado um serviço nesse sentido, Aristides e Rosivaldo já sabiam como as regras
funcionavam e então percorriam a rede de saúde conforme tais normas para acessar o mínimo que
podiam da mediação que precisavam para não adoecerem no processo da transição. Não deixa de
existir assim um papel do nível primário do SUS para a política de saúde trans brasileira: afirmativo
ou negativo, ao sabor do microcosmo que o serviço constitui diante da malha estatal de atenção.
Assim, os efeitos dessa política sobre a atenção em geral são ainda mais evidentes na sua
desarticulação entre atenção básica e outros níveis.
Mas as dificuldades de acesso não se restringem a lugares onde não há a estruturação formal
da política de saúde trans. Mesmo que ela exista os sujeitos têm sido levados a longas negociações
que excedem o itinerário terapêutico formal descrito nas portarias do Ministério da Saúde.
Guilherme Almeida (2010, p. 125) demostrou, a partir de sua experiência pessoal e de relatos de
outras pessoas trans, que: “alguns de nós tivemos dificuldades para a inserção nos programas, que
podem ser apresentadas em pelo menos três planos analíticos: o subjetivo-familiar, o econômico-
profissional e o programático”. Essas dimensões envolvem outros agentes como parentes, patrões
e a própria dinâmica estatal de burocracia para admissão. Esse pragmatismo ausente, segundo
Almeida (2010) se manifestava ao não ser possível obter “informações sobre a localização dos
programas, as formas de obter o primeiro atendimento, os critérios de inclusão e permanência,
assim como o fato de que o serviço é público e gratuito”. Assim, o que estou descrevendo se refere
ao funcionamento dessa política através de sua ação de permeabilidade nas relações sociais que a
torna ainda mais invisível, porém não deixa de se impor sob os ombros dos sujeitos.
165 Diferentes pesquisadores já demonstraram uma certa evitação de usuários em relação a Atenção Básica, e o desejo de recorrerem
a outros níveis superiores da rede de saúde devido a fatores como a identificação dessa atenção com os pobres (Reigada e Romano,
2018), a superespecialização da biomedicina, a maior oferta de procedimentos e a melhor estrutura desses últimos, entre outros,
eram fatores apontados por médicos com quem conversei na pesquisa. Assim, é algo que se repete nas experiências de atenção e
cuidado buscadas por pessoas trans. Contudo, isso se especifica quando observamos a intensa rejeição de suas presenças nesses
espaços, algo que extrapola ou não corresponde apenas a profissionais de saúde e emana inclusive de outros usuários e funcionários
administrativos.
220
No mapa a seguir (Figura 8) é possível observar ainda a atual distribuição de serviços que
existem no país, bem como as atenções que detiveram no passado – esses representados por
prédios – algum tipo de atendimento. Considerei importante não incluir apenas aqueles referentes
ao PTSUS porque demonstro que há uma continuidade e não uma radical mudança na base
epistemológica na acepção do paciente mesmo que novos procedimentos sejam agora
considerados, conforme se observa na Tabela 6.
Figura 8 - Mapa de serviços com atenção à saúde trans no Brasil (1960-2020)
Fonte: Mapa feito por Cleyton Santos a partir dos dados do autor e de Almeida e Santos (2018)166.
166 No anexo 2 é possível conferir o Quadro Sinótico construído por Almeida e Santos (2018) no qual eles reúnem os serviços de
saúde (ambulatórios TT) que tiveram notícia até 2020. Eu incluí ainda um dado a mais sobre outro Ambulatório em funcionamento
no RN.
221
Tabela 6 – Síntese dos procedimentos realizados no Processo Transexualizador do SUS (1997-2019)
CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA
NOSOLOGIA PROCEDIMENTOS APTIDÃO DO STATUS LOCAIS APTOS
PACIENTE
Resolução n. Transexual como portador Neocolpovulvoplastia; 21 anos; Experimental Hospitais Universitários e
1.482/1997 de “desvio psicológico Neofaloplastia; Diagnóstico de Hospitais Públicos com
permanente de identidade Procedimentos transexualismo; Pesquisa
sexual” complementares sobre Terapia Psicológica
gônadas e caracteres sexuais Ausência de características
secundários; inapropriadas à cirurgia
Hormonioterapia
Resolução n. Idem Idem Idem e Experimental Cirurgias do fenótipo
1.652/2002 Ausência de outros apenas cirurgias do masculino para feminino
transtornos mentais. fenótipo feminino em qualquer hospital;
para masculino Cirurgias do fenótipo
feminino para masculino
apenas em hospitais
universitários e públicos
com pesquisa
Resolução n. Idem Idem e Idem Experimental Idem
1.955/2010 Adenomastectomia, apenas a
Histerectomia, neofaloplastia,
Gonadectomias enquanto as
demais liberadas
Resolução n. Substituição por diagnóstico Idem e Adulto a partir de 18 anos; Experimental Qualquer hospital
2.265/2019 de “incongruência de gênero Inclusão de bloqueio de Infanto-juvenil a partir de apenas
ou transgênero” puberdade para menores de 16 16 anos; neofaloplastia Neofaloplastia é
anos e Menores de 16 anos experimental, mas pode
Cirúrgicos acima de 16 anos; ser realizada fora do SUS
Mamoplastia de aumento; desde que seguida
cirurgias pélvicas; orientações do CEP.
Faloplastias
222
MINISTÉRIO DA SAÚDE
DOCUMENTO OBJETO LOCAIS
Portaria nº Cria o Processo Transexualizador nas 3 esferas de gestão e o atrela a Resolução n. 1.652/2002 do CFM Hospitais Universitários
1.707/2008 ou Públicos com Pesquisa
Portaria nº Define características das Unidades de Atendimento, custo e tipos de procedimentos e formas de credenciamento Idem
457/2008 dos serviços de saúde
Portaria nº Incorpora processos judiciais que obrigam a inclusão de procedimentos e institui a integralidade do cuidado Qualquer Hospital
2.803/2013
Portaria nº Descentraliza a oferta de procedimentos junto a gestores estaduais Qualquer Hospital
807/2017
Fonte: Autor a partir das portarias e resoluções mencionadas.
222
***
Embora a instituição do Processo Transexualizador no final dos anos 2000 tenha
fomentado e possibilitado uma série de reverberações sociais no âmbito do movimento social e da
atenção à saúde, ele apresenta uma continuidade histórica das regras atuais de diagnóstico e
admissão em seus protocolos que remonta às experiências de serviços paulistas e cariocas da década
de 1960 e 1970 sobre as quais já me debrucei no capítulo 2. Cabe lembrar que o processo vivenciado
por Waldirene167 nos anos 1960/1970, nos demonstra que o processo de mudanças corporais e a
sua admissão, a exemplo do que aconteceu com outras pessoas trans atendidas naquele período,
tem uma grande similaridade com o que já tem sido descrito por pesquisas sociológicas e doutras
áreas como serviço social e saúde coletiva desde os anos 1990 até os anos 2000 (Bento, 2006, 2008;
Trindade, 2016; Murta, 2007, 2011; Almeida, 2010). Waldirene, assim, foi descrita como tendo
atendido voluntariamente ao serviço ambulatorial do Hospital das Clínicas da Universidade de São
Paulo e tendo seguido um período de dois anos de avaliação psicológica para diagnóstico por
equipe multidisciplinar que antecedeu os procedimentos cirúrgicos aos quais foi submetida.
Embora as técnicas cirúrgicas não sejam as mesmas, dados novos aperfeiçoamentos, já se
performava a mudança de sexo de ambos os gêneros nas décadas de 1960/70. O baque que sofreu
esse tipo de assistência em saúde – de iniciativa universitária – devido ao processo judicial contra
Farina na década de 1970 e 1980 levou a um silenciamento dessas atividades clínicas e cirúrgicas
no país, tendo sido apenas após a criação do SUS retomada através da Portaria n. 1.482 de 1997
que permitia cirurgias de transgenitalização, e posteriormente atualizado pela Resolução do
Conselho Federal de Medicina n. 1.652 em 2002168. Na criação do então novo sistema de saúde se
instituía um conjunto de procedimentos mais focados nas mulheres transexuais. Nesse período,
ambulatórios seriam criados em Porto Alegre, Goiânia e São Paulo, o que respondia já a articulação
local de profissionais de saúde no período da redemocratização (Arán, Murta e Lionço, 2009a,
2009b; Lionço, 2009; Munin, 2018). Renasce, assim, no passo de um sistema público e universal a
permissão para cirurgias, mas não especificamente uma atenção à saúde trans de modo
federalizado. Já com 12 anos, essa política foi sendo constituída também por um processo social
de judicialização em saúde, que possibilitou a oferta de vários procedimentos atualmente
disponíveis (Arán, 2012; Arán, Murta e Linço, 2009)169. Mas inicialmente ela foi gerada no encontro
entre os ativismos gay, lésbica, travesti e trans e o Estado brasileiro.
167 Já citada no capítulo 2. A mulher transexual que se submeteu a cirurgia com Roberto Farina em 1971.
168 No anexo 3 exponho as Portarias já publicadas pelo MS e as Resoluções do CFM e que tipo de novidade à política do Processo
Transexualizador cada uma introduziu. A introdução de tecnologias no SUS segue uma linha burocrática que vai da criação da
política, consulta pública através da instância reguladora dessa introdução biotecnológica e atuação. Isso não significa dizer que as
políticas não sejam alteradas após sua publicação, como tem sido, através de instâncias judiciais e de pressão política.
169 Essa é uma estratégica que ainda é presente, como vi em campo, e ao que irei fazer referência no capítulo 5.
223
Será com a nova regulamentação anunciada no final da I Conferência Nacional GLBT,
realizada em Brasília em junho de 2008, que se começa a criar finalmente uma política de saúde
centralizada nacionalmente. Essa nova estruturação era rondada por um ânimo ideológico que
intersectava o interesse médico-científico revigorado após o hiato produzido pela perseguição
política contra Farina. Durante a conferência, o programa não estava pronto e acabado, mas foi
divulgado o início da consulta pública. O ministro da saúde José Gomes Temporão anunciava, de
modo rápido, na cerimônia de abertura que:
A partir dos resultados desta conferência, o Ministério da Saúde iniciará um processo de
consulta pública para a elaboração de uma política específica para esta população. E até
o final deste mês, o Ministério da Saúde, eu assinarei, nós lançaremos uma Portaria que
inclui no Sistema Único de Saúde a cirurgia para mudança de sexo dentro de um processo
transexualizador (José Gomes Temporão, 2008, Anais da I Conferência Nacional GLBT, p.
271).
Como se pode observar consultando os Anais da Conferência, nos quais encontram-se
transcritas as falas dos participantes, todas as vezes que se defende a criação de uma política desse
tipo, bem como uma mais abrangente de saúde integral, se evoca os princípios do Sistema Único
de Saúde implantado na década de 1990. A história da Reforma Sanitária é um ponto nodal de
justificativa para o Processo Transexualizador que seria então constituído enquanto produto direto
e vitalizado por seus ideais. Dr. José Ivo Pedrosa, noutra ocasião do evento, durante o Painel 5,
“Poder Público Federal”, composto majoritariamente por médicos, chamava ainda à atenção para
ser essa política parte de algo maior que ela:
Ontem, foi anunciado pelo Ministro o processo transexualizador e eu gostaria de mudar
um pouco o papel do processo transexualizador, porque, hoje, na imprensa, apagou a
Conferência e só tinha nas manchetes: “Ministro anuncia o processo transexualizador”.
Quer dizer, não se falava na Conferência. E aí eu quero colocar de que o processo
transexualizador, ele faz parte de uma política mais ampla, que estamos chamando
“política nacional de saúde integral de gays, lésbicas, bissexuais, transgêneros e
travestis”170. Ontem, o Ministro falou en passant dessa política. Essa política, dentro de
um mês vai estar em consulta pública, onde toda a sociedade pode opinar (Dr. José Ivo
Pedrosa, 2008, p. 123-4, Anais da I Conferência Nacional GLBT).
Pedrosa queria defender que a base jurídica dessa nova política estava alicerçada no que é
defendido no SUS como um todo, e era esse sistema que deveria ser o objeto de constante
170 A Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (LGBT) foi criada pela Portaria n.
2836 de 1 de dezembro de 2011, e buscava instituir uma difusão da particularidade dos cuidados em saúde desta população, visando
assim “eliminar” discriminação e preconceito presentes nos serviços. A política é tida como de baixa consolidação no país. Cf. Luiz
Mello, Brito e Maroja (2012) sobre um panorama das políticas de saúde LGBT. No campo ela era mencionada apenas por
profissionais de saúde envolvidos diretamente com a temática, tidos como “especialistas” por seus colegas. Em 2015 e em 2016 o
MS lançou, respectivamente, três campanhas provenientes dessa política por meio de cartilhas para profissionais de saúde: a “Saúde
das mulheres Lésbicas e Bissexuais”, “Saúde Homens Gays e Bissexuais” e “Saúde Trans”; foram as últimas ações nesse sentido
antes da queda de Presidenta Dilma Rousseff através do impedimento legislativo, contudo, de modo geral, políticas desse tipo foram
profundamente enfraquecidas em seu governo. Hoje boa parte desse material não está mais disponível para baixar no sítio eletrônico
do MS.
224
engajamento de todos para garantir que a saúde continuasse como um direito. “E a gente briga
porque a saúde, no mundo da vida, é tratada como mercadoria. Então, o SUS foi resultado dessa
briga do rochedo com o mar” (idem, p. 124). Assim, embora se baseasse grandemente no “Brasil
Sem Homofobia” lançado pelo Governo Lula171, o Processo Transexualizador deveria ser visto
desde uma perspectiva que unisse a “determinação social da saúde e doença, sendo a exclusão e a
discriminação como fatores de sofrimento” e seu teor de “transversalidade” intersetorial dentro do
Estado brasileiro para recuperar o conceito de saúde presente na Constituição de 1988 (idem, p.
124) que não estava aliado unicamente à doença. Para os participantes do Painel 5 seria a ideia de
promoção à saúde presente no programa Mais Saúde172 que deveria ser vista como a raiz das políticas
de saúde para a população LGBT. Os anúncios do ministro da saúde também suscitaram outras
respostas para além da reação sobre a veiculação na mídia enunciada por Pedrosa. Para um homem
trans que participou da ocasião, havia consideráveis ausências quanto a essas novas formulações.
Quer dizer, a proposta não estaria alcançando específica e claramente esses sujeitos com a mesma
amplitude que as mulheres trans, por exemplo.
Numa entrevista concedida pelo ministro nos dias próximos à Conferência, Silvio Lúcio,
54 anos, um ativista cearense homem trans173 com larga carreira ativista que estava presente na
ocasião o questionava a respeito da ausência de homens trans nas políticas de saúde. Quando
entrevistei Silvio, ele rememorava como seu questionamento chamou a atenção de jornalistas, e foi
um estopim para discutirem um maior espaço para esse contingente de pessoas que estavam assim
sendo alçadas a importância de população. Silvio localiza esse episódio como estando dentro da
sua trajetória de luta por direitos diante de sua negação. Quando lhe perguntei sobre situações desse
tipo, ele resume sua determinação e procura se colocar enquanto figura de combatente político.
Sílvio Lúcio não lembra detalhes desses eventos, mas é categórico em argumentar que os espaços
de homens trans nas políticas de saúde foram conquistados, assim como de outros sujeitos, a partir
do confronto diante das ausências:
Não, eu fui pra frente, eu não me intimidei não com a rejeição. Eu fui pro embate. Hoje
eu sou reconhecido, hoje o movimento nacional me reconhece como homem trans sim,
171 O programa “Brasil Sem Homofobia: Programa de Combate à Violência e à Discriminação contra GLTB e Promoção da
Cidadania Homossexual” foi lançado em 2004 após grande articulação política de grupos e movimentos sociais LGBT de todo o
país, e buscava ser um mote para campanhas, políticas, ações e estratégias contra a violência. O documento que detalha o programa
foi dedicado com um texto escrito por Luiz Mott à advogada e ativista trans cearense Janaína Dutra que se destacou grandemente
no cenário da promoção de políticas de Estado.
172 O Programa foi lançado em 2008 dentro de um panorama desenvolvimentista que aliava o direito à saúde ao desenvolvimento
econômico do país, uma vez que isso era visto como uma forma de impulsionar a diminuição das desigualdades sociais. Era um
programa de metas com dotação orçamentária para cada estratégia e tinha como cronograma a atuação de 2008 a 2011. Nas suas
diretrizes o documento sintetizava que: “a estratégia adotada neste programa articula o aprofundamento da Reforma Sanitária
brasileira com um novo padrão de desenvolvimento comprometido com o crescimento, o bem-estar e a equidade. A melhoria das
condições de saúde do cidadão brasileiro constitui o grande objetivo estratégico. O conjunto de medidas e ações concretas volta-se
para a melhoria da qualidade de vida da população, contribuindo para que o SUS seja definitivamente percebido como um
patrimônio da sociedade brasileira” (Brasil, 2008, p. 8).
173 Já mencionado no capítulo 2.
225
homem trans de luta. [...]. [Sobre] o processo transexualizador do SUS, a primeira portaria
do ministro da saúde [...] só beneficiava mulheres trans porque eles diziam que no Brasil
não tinha homens trans. Foi preciso que [se questionasse] – se você entrar na internet
você vai ver, “Silvio Lucio, homem trans, interpela o ministro durante uma coletiva da
imprensa questionando porque que as mulheres trans.... Ele lançando uma campanha em
Brasília para o processo transexualizador e ambulatórios do SUS para mulheres trans, na
portaria não contemplava os homens trans (Sílvio, 54 anos, 2018, entrevista).
É possível ver a ênfase dada aos homens trans quanto a divulgação da existência do então
novo Processo Transexualizador. Das mais de 150 indicações do “Eixo Saúde”, e após várias
proposições envolvendo procedimentos, atendimentos clínicos, campanhas de sensibilização e
vacinação, se propunha que o Estado brasileiro estimulasse “a divulgação dos programas do
processo transexualizador e outros serviços existentes de atendimento especialmente, para homens
transexuais” (Brasil, 2008, p. 181). Assim, desde a consulta e publicação da portaria que instituiu
o Processo Transexualizador, este tem mudado consideravelmente no âmbito da oferta de
procedimentos cirúrgicos e no escopo de pacientes que atende. Ao mesmo tempo em que os atuais
procedimentos incluídos na política não são fruto simplesmente da Conferência, tampouco se deve
desconsiderar as idealizações veiculadas no evento, e sua base jurídica para o reconhecimento174.
Algumas delas foram fruto de pressão de movimentos sociais (Arán, Murta e Lionço, 2009), e
outras de interesse médico e do desenvolvimento biotecnológico incluído nessa atenção à saúde.
De modo geral se pode entrever que entre as continuações e as mudanças da abordagem clínica e
cirúrgica tem-se um itinerário terapêutico imposto às pessoas trans mesmo quando não há
consenso quanto a patologização entre profissionais de saúde de um dado serviço, já que a
legislação em vigor aparece como um empecilho. Esse processo terapêutico para a transição pode
ser visualizado através da seguinte representação:
Encaminhamento da Atenção Básica para a Atenção Especializada →
Tratamento psiquiátrico e/ou psicológico de, no mínimo, 2 anos →
Teste de vida real (vestir roupas do gênero identificado) →
Laudo de disforia de gênero →
Atendimento com endocrinologista →
Exames laboratoriais para análise cromossômica e hormonal →
Terapia hormonal →
Cirurgias.
Segundo os documentos reguladores, principalmente as portarias do Ministério da Saúde e
as Resoluções do Conselho Federal de Medicina, se observa que se propõe uma linha de cuidado
174 Num contexto no qual as cirurgias não faziam parte de um programa instituído, se buscava sua legitimação no SUS. Nesse
sentido, em 2007, a 3ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região emitiu decisão favorável à ação ajuizada para obrigar o
governo brasileiro a ofertar as cirurgias de tipo neocolpovulvoplastia, neofaloplastia e/ou procedimentos complementares sobre
gônadas e caracteres sexuais secundários, mas foi anulada pela então ministra do Supremo Tribunal Federal Ellen Gracie
respondendo ao pedido do Ministério Público Federal (STF, 2007). Assim, causou certo alvoroço midiático as declarações do
ministro da saúde sobre a oferta dessas cirurgias em 2008. Em 2018, o ativismo social trans reivindicava no mesmo tribunal a não
exigência dessas cirurgias para o reconhecimento legal do gênero de identificação (STF, 2018).
226
na atenção básica e na atenção especializada. A primeira ficaria responsável pela identificação do
usuário e seu encaminhamento à segunda. Continuando o modelo da equipe de Farina, uma equipe
que se pretende “interdisciplinar e multiprofissional” averiguaria se o paciente entraria nos critérios,
e se, portanto, seria identificado como transexual. Assim, se atuaria tanto no âmbito de um serviço
de “Atenção Ambulatorial Especializado” quanto num serviço de “Atenção Hospitalar
Especializado”. Como o ministro Temporão anunciou na época, o Ministério da Saúde passaria,
então, a verificar se os serviços estariam “aptos” a realizar esse tipo de atendimento, com uma série
de profissionais na área biomédica, como mostra a Tabela 5, atualmente175.
Tabela 5 – Serviços e áreas profissionais no Processo Transexualizador atual
Serviço Ambulatorial Serviço Hospitalar
Responsável técnico com nível superior Responsável técnico médico
Psiquiatria e psicologia Psiquiatria e psicologia
Enfermagem Assistência Social
Assistência Social Enfermagem e técnicos de enfermagem
Endocrinologia e clínica geral Urologia, Ginecologia, Cirurgia Plástica,
Endocrinologia
Fonte: elaborado pelo autor a partir da Portaria GM/MS n. 2.803/2013.
Outros médicos também poderiam compor a equipe multiprofissional, mas não são
imprescindíveis para a habilitação governamental, como otorrinolaringologista, mastologista e
fonoaudiólogo. Isso não significa afirmar, contudo, que todos os serviços do tipo que existam se
deem exatamente com esse pessoal profissional, mas não se pode ignorar que essa normalização é
um guia legal e de legitimidade técnica sobre a atuação da medicina em relação a transição de
gênero. Por isso que, mesmo que as regras não correspondam totalmente ao cotidiano da busca
por acesso e das condições materiais dos profissionais, tais formulações técnicas detêm efeitos
consideráveis. Já com 12 anos de existência, essa política de saúde tem se configurado num dos
maiores motes de engajamento político e de esperança para a promoção à saúde de diversos
contingentes de pessoas trans, principalmente aquelas sem acesso financeiro ao mercado privado
que ainda não tem uma grande inserção comercial nesse sentido – embora esteja crescendo. Num
dos mais recentes eventos alusivos, em 12 de dezembro de 2018, o Ministério da Saúde realizaria
um seminário em homenagem a João W. Nery para discutir o histórico do programa e seus alcances.
Como relato do que havia sido feito até aquele momento, a Secretaria de Atenção à Saúde trazia
uma listagem de sete ambulatórios habilitados nos estados do Rio de Janeiro, Minas Gerais, São
Paulo, Paraná, Espírito Santo, Bahia e Paraíba; e cinco com habilitação para ambas as atenções nos
175 Ver também Resolução do CFM n. 2.265/2019.
227
estados do Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro, São Paulo, Goiás e Pernambuco. Na rubrica de
“iniciativas locais”, isto é, sem habilitação oficial se documentavam seis ambulatórios no Sudeste
(dos quais 5 eram em São Paulo), cinco no Nordeste, três no Centro-Oeste e um no Norte e outro
no Sul (ver Figura 8). Alguns pesquisadores têm tentado mapear o desenvolvimento desses serviços
pelo país desde a regulamentação de 2008.
Segundo pesquisa realizada por Márcia Arán e Daniela Murta (2009), junto aos serviços
existentes até 2008, se encarava uma grande dificuldade para aplicação local. Ao todo,
contabilizaram dez serviços funcionando nas cidades de Porto Alegre, Rio de Janeiro, São Paulo,
Goiânia, Belo Horizonte e Brasília. Com uma abordagem qualitativa, as autoras entravam em
contato com os responsáveis pelos serviços e transcorriam para entrevistas com profissionais e
pacientes, mas nem todos esses concordaram em fornecer informações. Procurando realizar um
esforço similar para documentar os serviços existentes, Guilherme Almeida e Márcia Santos (2019)
realizaram uma pesquisa em jornais e canais de notícias, além de consulta a ativistas trans. Ao
refletir sobre a dispersão desses serviços sob a égide do Processo Transexualizador, os autores
inferem principalmente a falta de recursos financeiros para sua efetivação e o papel do Ministério
da Saúde num contexto simpático a políticas sociais para o aumento dos serviços:
Os serviços de saúde habilitados para serem centros de referência, ou seja, para a
realização de todos os níveis de atenção se desenvolveram muito pouco no país, pela
quase absoluta ausência de investimento público nesta direção. É possível dizer que estes
serviços só não fecharam suas portas porque estão situados em universidades públicas e
contam com equipes profissionais que continuam conduzindo as atividades a despeito
das condições de trabalho insuficientes (Almeida e Santos, 2019, p. 8).
Os autores observam que antes do trabalho de institucionalização do MS, havia uma
descentralização original, quando era de iniciativa exclusiva dos centros universitários, algo que
teria sido recobrado mais recentemente com a expansão da atenção básica. A investida ministerial
procurou, portanto, centralizar o modelo de assistência à saúde trans. Embora eu não discorde
dessa observação, quero argumentar que, mesmo na sua feição centralizadora, essa atenção no
Brasil sempre foi uma questão local. Quando esses locais são os mesmos que estão mais próximos
do centro do poder político nacional, isto é, as metrópoles ou grandes cidades do eixo São
Paulo/Rio de Janeiro, suas histórias se tornam mais visíveis e ganham um caráter mais
nacionalizado. A realidade do país, assim, perpassa o entendimento de sua regionalização (Castro,
1989; Albuquerque Jr., 2013) e que se reverbera sob a formação da saúde trans brasileira. Isso não
significa inferir uma perseguição de regiões orquestrada pelo “centro do poder”, mas que são
dinâmicas que são representadas como brasileiras com um chapamento de sua regionalização.
Tendo como base tanto as pesquisas dos referidos autores e autoras, e a minha própria, pode-se
228
perceber que esse espraiamento da política não deve ser visto como uma expansão de um governo
central, mas de sua construção local dentro de um universo verdadeiramente geopolítico numa
intrincada relação de poderes locais e poder central de governo. Nesse sentido, as dinâmicas do
país entre centralização e descentralização que marcam o Estado brasileiro também nos ajudam a
entender a constituição dessa política e suas complexidades.
Essa é uma vertente do problema desta tese que imaginei a partir das proposições e
reflexões dos interlocutores quando afirmavam nas entrevistas e no cotidiano observado que não
lhes fazia muita diferença participar de organizações com ares nacionais se essas mesmas pessoas
de outros estados e com pretensões aglutinadoras não iam “lutar por elas” nas suas cidades
cearenses. Isso porque a busca pela atenção à saúde e seu cuidado era local. Não se viajava para
outros estados, a não ser muito raramente. Suas vidas eram em Fortaleza, e era lá que se davam
suas dificuldades em conseguir marcar uma consulta em postos de saúde, era lá onde se sofria
estigma no dia a dia etc., como descrevi com Aristides e Rosivaldo. Essa quase peregrinação de
homens trans que acompanhei era algo intenso antes e depois da minha entrada no campo. Outro
rapaz, Antônio, de 26 anos, a quem conheci num salão de espera do Hospital de Saúde Mental
Prof. Frota Pinto, em Messejana, já estava há mais de dois anos àquela altura tentando ter sua
indicação para modificar seu registro civil e para as cirurgias que pretendia realizar. A partir dessa
outra experiência de busca por atenção pude entrever na descrição um contexto bem diverso de
itinerários terapêuticos construídos à revelia do que se pretendeu centralizar no MS em 2008 e
depois em 2013. Não simplesmente porque não havia um serviço desse tipo “habilitado” na região,
já que os efeitos dessa política eram sentidos constantemente, mas porque principalmente se
constituía um embate político e de cuidado para promover a saúde de si mesmo ao se transicionar
com saúde.
***
Quando passei a visitar com mais frequência o Hospital de Saúde Mental, buscando
encontrar pacientes e profissionais de saúde do ATASH176, conheci Antônio enquanto ele
aguardava mais uma consulta com o seu psiquiatra. A situação do nosso encontro foi de certo
modo inesperada. O serviço funcionava especificamente duas vezes por semana, então eu
procurava realizar observação apenas nos dias das consultas marcadas. Nesse dado dia, me
encontraria com alguns médicos e já fui autorizado pelo chefe do serviço a realizar meu trabalho
de campo. A ideia, como já mencionei, era de observar as dependências coletivas do lugar: salas de
espera, corredores, portarias, isto é, tudo aquilo que não fosse a própria consulta médica
176 Como já me referi, é um serviço ambulatorial que atendia pacientes sob a rubrica da sexualidade, primeiro espaço na cidade a
iniciar atendimentos em saúde para transexuais e travestis.
229
individualizada177. Quando chegava no hospital, tentava assim ter conversas simples com pacientes
que estivessem à espera para anunciar a pesquisa e perguntar se estariam dispostos a participar.
Após alguns minutos observando que os pacientes ali presentes já se conheciam e mantinham
conversas interessadas entre si, me sentia um pouco intimidado a buscar interagir, até que uma
conhecida chegara no ambiente e foi uma boa oportunidade para as apresentações. Quando
finalmente conversava com Antônio, ele já sabia quem eu era, e aparentemente todo mundo. Outra
moça que aguardava atendimento me interpelava com surpresa quando trocávamos nomes: “ah,
então você é o antropólogo?! Ouvi falar muito da sua pesquisa”. Um casal de pais de uma
adolescente trans também escutam nossa conversa e vêm me cumprimentar, também surpresos de
estarmos ali juntos. A animação se generalizou e seguimos dando abraços uns nos outros. Eles já
sabiam sobre a pesquisa que eu estava fazendo em Fortaleza, quem eu era, e desde quando eu
estava na cidade, de modo que meu trabalho em lhes explicar qualquer coisa era tido com ares de
obviedade. Essa receptividade surpreendentemente afável que eu já detinha e não sabia acelerou
muitas das participações e dos contatos com interlocutores que atendiam ao serviço, como foi o
caso de Antônio. Isso facilitou uma confiança que demandaria muito mais tempo para ser
construída num contexto de atendimentos improvisados no campo da saúde trans que implicavam
uma atmosfera pequena a qual observar.
Ao perguntar a Antônio há quanto tempo atendia ao ATASH, ele me respondera que já
“estava ali” havia três anos. Como o serviço fica localizado muito longe da sua casa, toda ida às
consultas era praticamente uma viagem entre cidades. No começo dos seus atendimentos não havia
nenhum profissional de psicologia para a terapia que é demandada pelos protocolos do Ministério
da Saúde. Então era apenas com o psiquiatra que poderia contar. Por isso ele ainda não tinha os
dois anos exigidos de terapia psicológica prévia para qualquer procedimento cirúrgico,
principalmente aquele referente a mamoplastia que ele desejava mais do que qualquer outro178.
Trocamos contato para continuar conversando fora do serviço, já que ele aceitara participar da
pesquisa com uma entrevista. Continuamos falando enquanto esperávamos sua vez da consulta,
quando me dizia não se sentir em paz enquanto não se submetesse a essa cirurgia. “Atrapalha muito
minha vida”, e completava: “corro muitos riscos”. Antônio se remetia a haver alguma violência no
seu cotidiano se as pessoas que não conhece o encontrassem na rua e identificassem que ele tinha
seios. Isso Já lhe acontecera diversas versas, e sempre de forma agressiva. “Elas batem mesmo,
xingam”. Ele puxa a camisa e mostra que dá para perceber que está usando duas faixas de tecido
177 Como o hospital detém de uma grande gama de ambulatórios e diferentes serviços, me detive naquele com a abordagem voltada
ao atendimento de transexuais e travestis. Entrarei mais detidamente nesse serviço nos próximos capítulos, agora meu objetivo é
descrever o itinerário de Antônio.
178 Enquanto escrevo essas páginas ele já tinha feito essa cirurgia.
230
espesso para diminuir o volume desses “intrusos”. Já que não gosta de usar bainders, é assim que sai
à rua mesmo no forte calor de Fortaleza. Mas ainda não é capaz de esconder totalmente o peitoral.
Uma vez quando usava o transporte coletivo foi xingado por um estranho. Então, me conta, a
cirurgia é uma “condição” para sua “segurança”179. Para sanar essa insegurança ele usa roupas largas,
e no dia estava usando uma camisa social de tecido que imitava um jeans e por baixo uma camisa
também escura. Ele me dizia que isso lhe gerava também mal-entendidos porque os outros podiam
achar que ele era mais gordo do que era.
A principal queixa de Antônio naquele dia era que tudo isso que ele vivia não parecia ser
suficiente para receber os laudos que precisava para ter acesso às cirurgias e à mudança de
documentos, à época ainda não autorizado sem processos judiciais. Isso porque até mesmo no
setor privado não havia cirurgiões “confiáveis”180 que performassem os procedimentos sem toda a
documentação exigida no SUS. Mas, me lembrava, “Não dá pra ter cirurgia se não tem laudo”. Já
são três anos sendo acompanhado nesse serviço por um psiquiatra, repetia. E aí, ele me pergunta,
e diz que pergunta à psicóloga que lhe atende atualmente, se tem que esperar mais dois anos para
ter o documento. E completava, “eu sou virginiano, então quando a pessoa diz que vai ver e
demonstra incerteza, aquilo já me deixa aflito, e eu sei que ela não vai fazer”. “Vamos ver”, repetia
com angústia. Ele está visivelmente insatisfeito com o tempo dos protocolos que lhe parecem
arbitrários e não reconhecem suas agruras. Era o que reiteraria noutro dia quando nos encontramos
novamente para uma entrevista e me narrava com mais detalhes os caminhos que havia percorrido
até ali para concretizar sua transição.
Antônio morava com a família, que também não lhe dava muito suporte nesse sentido.
Ganhando um salário-mínimo, trabalhava num emprego de telemarketing que lhe possibilitava
alguma autonomia, embora limitada. Chegou a ser expulso de casa pelos conflitos que se
intensificaram com a sua maior identificação masculina e a rejeição de parentes, mas ainda não
havia muita clareza sobre viver noutro gênero, isto é, “saiu” de casa em meio a uma tormenta
subjetiva. Um amigo gay ativista lhe contara que talvez todas essas dificuldades que vivia tinham a
ver com ele ter nascido assim no sexo errado. “Há pessoas que são assim, que nasce nesse corpo, mas
tem outro gênero”. Diferente de outros interlocutores, Antônio teve contato com o serviço
ambulatorial do ATASH por ter sido socorrido numa Unidade de Pronto Atendimento (UPA)
após uma tentativa de suicídio durante sua morada fora da casa da família. Por estar constrangido,
179 Vê-se aí uma ideia de “biossegurança”. No próximo capítulo mostrarei como esse discurso e essa narrativa são usados diante das
instituições governamentais para justificar a existência de serviços de saúde voltados para pessoas trans em Fortaleza.
180 Era uma grande preocupação se submeter a procedimentos com qualquer cirurgião, já que um procedimento malsucedido lhes
custaria cicatrizes indesejadas e até pós-operatórios mais difíceis e perigosos às suas saúdes.
231
chegou a tentar convencer o médico de que não foi uma tentativa de suicídio, mas o médico não
acreditou. Esse tratamento do plantonista causou grande surpresa a Antônio que se sentiu cuidado:
Eu tentei subestimar a inteligência do médico, né?! Aí eu disse que tomei sem querer e
tal, por engano. Aí ele disse assim – quando veio o próximo paciente já pra ser atendido
–, “não enfermeira, espera só um pouco pra eu ter uma palavra (me chamou de ela ainda
porque eu não tinha feito a transição), pra ter uma palavra com ela, tá bom, que já atendo
o outro?!”. Aí ele falou: “olha, eu sei que isso aí não foi sem querer [...]. Isso aí você fez
uma tentativa de suicídio”. [...]. Aí ele perguntou assim... [...]. Aí, eu até me sensibilizei
assim, porque pela primeira vez na minha vida um médico tá sendo humano comigo,
porque eles têm até medo de chegar perto da gente. [Ele perguntou o] porque, né?! Aí eu
falei que não me sentia assim, e tal. Acho que pela definição que eu falei que eu disse que
não me sentia eu, que me sentia estranho, eu acho que daí ele tirou, né, alguma coisa. Aí
ele, “como assim?” “Eu não sei, eu não me sinto eu assim”[, respondi]. Aí ele falou, “não
se sente mulher?”, questionou. Aí eu fiquei meio assim, receoso e tal, aquele olho
mexendo, aí eu falei aquele “é” com reticências. Aí ele, “olha”, aí ele falou que tinha....
“Tem um centro de atendimento aqui chamado ATASH em Messejana181, você já ouviu
falar?”. E eu nunca tinha ouvido falar. [...]. Aí ele prescreveu lá a informação e assim ó,
“procura isso aqui, procure que é melhor, isso pode te ajudar de alguma maneira. Se não,
se não for isso, que eu acho que é, vai ter algumas terapias, outros problemas que você
pode tá passando, mas procure” (Antônio, entrevista, 2018).
De uma forma bem atípica Antônio chegou ao serviço ambulatorial encaminhado por um
serviço de emergência que havia lhe prestado socorro. A atitude do médico de não se contentar
com as primeiras explicações que ouvia se mostrou como algo de sensibilidade, que confirmava
sua condição de humanidade que havia sido negada quando os atendimentos que recebeu
anteriormente não lhe perguntavam sobre seus sofrimentos de modo interessado. Apesar da
consulta ter sido sensível, Antônio pensou em não ir ao serviço mesmo com essa indicação. Sua
depressão, como indica, havia lhe colocado numa posição de profunda desestabilização sobre quem
era. Quando constrói essa narrativa através da entrevista fica claro que nesse momento havia uma
espécie de esperança a que se apegou no último minuto e que lhe possibilitou ir. Com a visita ao
Hospital realizou uma triagem e marcou uma consulta para três meses depois com um psiquiatra
que realizou uma anamnese que procurou recobrar desde sua infância. Daí ele recebeu a explicação
de que iria fazer “algumas terapias” para “verificar se seria transexual”:
Aí ele [o psiquiatra] disse que eu iria começar a fazer umas terapias lá. [...]. Lá tinha uma
médica que explicou se você falou, se a gente vai ver, vai ser analisado, vai fazer terapias
com outros médicos também. “Se a gente identificar que [...] você é uma pessoa
transexual”, porque às vezes não é.... Ela deixou bem claro isso pra mim. Tipo, “se não
for, se for um problema a gente vai providenciar alguma coisa, alguma terapia, mas se a
gente identificar realmente que é, a gente vai montar um relatório, vai encaminhar você
para a Dra. [Sexóloga] para fazer a terapia com hormônio” (Antônio, entrevista, 2018).
181 O serviço do ATASH a essa altura já tinha ganhado considerável popularidade na região, devido a sua característica de ser
localizado num hospital escola ligado às universidades locais.
232
Assim, além de percorrer um caminho fora do serviço, Antônio também percorreu um
itinerário interno para compreender se era transexual. Ele não coloca essa verificação em termos
negativos. Sua intenção era entender o seu eu, e ali os profissionais eram vistos inicialmente como
médicos que o ajudariam. Outros interlocutores também narram esse percurso quando atenderam
ao mesmo serviço. Mas, diferente desses, Antônio não peregrinou entre postos de saúde da atenção
básica já munido de toda uma compreensão de sua identidade e da necessidade de procedimentos
para mudanças corporais serem acompanhados por especialistas. Não especialistas nas identidades,
mas nas transformações corporais. Apenas após seis meses de terapia interna é que ele é indicado
para a terapia hormonal e seu acompanhamento para as primeiras mudanças emergirem fisicamente
e se adequarem ao que já estava claro na sua ideia de si. Esses diversos caminhos, que parecem
mais estradas tortuosas, pelos quais tem caminhado Antônio foram muito mais aflitivos que sua
narrativa pode deixar transparecer. A forma como responde ao médico no pronto socorro, de
maneira acanhada, já demonstrava sua total insegurança com a relação médico-paciente mesmo
estando diante de uma abordagem em algum sentido afirmativa. Ao comparar aquele médico e a
médica sexóloga do ambulatório, o caráter de humanidade do atendimento acontece quando não
há repulsa. Antônio pontuava que essa médica o tratava como se fosse parte dela.
Ao descrever até aqui o contato de Aristides e Rosivaldo, na atenção básica, e Antônio, do
pronto socorro ao ambulatório, minha intenção é apresentar duas dimensões possíveis de uma série
de diversos itinerários construídos pelos interlocutores – a ideia de construído aqui se fia no
entendimento que suas ações, deliberadas ou não, no contexto no qual estão inseridos os levaram
a trilhar os caminhos que compuseram suas experiências de busca por atenção à saúde. Uma atenção
com cuidado, mas ainda assim a busca estava centrada na estrutura estatal sensibilizada que alia os
vinte homens trans entrevistados na pesquisa. Para fazer justiça etnográfica com outros
interlocutores seria preciso descrever seus contextos de modo igualmente pormenorizado, e para
evitar uma superficialidade que as citações en passant podem produzir, me detive nas experiências
de Aristides, Rosivaldo e Antônio.
No mapa a seguir (Figura 9) é possível observar uma distribuição dos serviços aos quais os
interlocutores atenderam, tanto aqueles que são vistos como sensíveis como aqueles que
dificultaram o atendimento de alguma maneira, os não-sensíveis. Com essa marcação geográfica
mais ou menos exata procuro sintetizar e cruzar todas as narrativas dos interlocutores e a
observação que realizei. Ao retirar a marcação dos limites entre os bairros procurei gerar algum
anonimato para essas unidades de saúde e deixar mais evidente o caráter de rede desses itinerários
terapêuticos que acabam sendo constituídos na busca por atendimento que descrevi acima a partir
233
da observação participante. As linhas que cruzam o mapa da cidade de Fortaleza correspondem a
avenidas principais.
Figura 9 – Mapa de itinerários terapêuticos de transição de gênero nos serviços de saúde
Fonte: Feito por Cleyton Santos para esta tese a partir dos dados do autor.
Os pontos de cor magenta representam lugares nos quais os homens trans receberam parte
ou totalmente aquilo que procuravam na forma de consultas, procedimentos, exames e/ou
medicamentos. Os pontos de cor preta correspondem aqueles serviços nos quais não conseguiram
nenhum tipo de cuidado e que geraram alguma desesperança que os levou a parar
momentaneamente a procura. Os pontos mais próximos entre si se referem aos mesmos ambientes,
uma vez que quero demonstrar como o mesmo lugar pode ter significados diferentes para
indivíduos diferentes, isto é, enquanto um pode deter sucesso nas suas demandas, outro não. Os
fatores que têm determinado esse acesso podem ser ligados a postura desse ou daquele profissional
de saúde e de como o microcosmo do serviço articula a diferença de gênero e sexualidade. A
234
marcação de círculos em volta de cada ponto busca demonstrar se o itinerário foi interrompido ali
ou se ele continuou. Assim, a superposição desses círculos pontilhados e/ou contínuos se refere a
caminhos percorridos por sujeitos diferentes num mesmo lugar. Essas unidades de saúde são todas
públicas, podendo ser clínicas de prática universitária, hospitais secundários ou terciários e
pequenos postinhos. Essa representação com o mapa ajuda a entender o caráter de circulação que
essa busca por atenção tomou no cotidiano de homens trans que entrevistei. Ao demarcarem uma
presença na região, atendendo a serviços de saúde, procurando profissionais específicos já
conhecidos na região e ainda registrando os lugares que não conseguiram nenhum acesso os
interlocutores, criaram uma atmosfera da “ausência do cuidado” que corroborará para que a
demanda pelo Ambulatório do Processo Transexualizador seja reivindicado.
Como venho procurando demonstrar, a política de saúde trans brasileira atual – o Processo
Transexualizador – produz aquilo que George Simmel (2011 [1907) chamou de “consequências
sociais” sobre o sistema de saúde e sobre a busca por cuidado. O autor mostrou que a inserção de
novos elementos numa dada interação social pode ocasionar mudanças nas posições dos
indivíduos, é a isso que chama de “consequências”. Mas, de modo geral, toda relação se constitui
como uma troca e traz mais do que aquilo que é objeto de engajamento entre os indivíduos.
Contudo, esses indivíduos não estão aí compreendidos como entidades autônomas. Na sua análise
da inserção do dinheiro nas relações entre donos de terras e arrendatários no berço do capitalismo,
o autor observa que a moeda se constitui como um valor e um símbolo que modifica a forma como
essas duas posições sociais se relacionam, produzindo novos sentidos sobre si mesmos e sobre a
própria relação na qual estão caracterizados. Mesmo sem precisar o surgimento do dinheiro
historicamente, Simmel argumenta que ele não simplesmente apareceu como uma coisa acabada.
Nesse sentido, o dinheiro tem sido definido como um “valor abstrato”. Como um objeto
visível, o dinheiro é a substância que incorpora o valor econômico abstrato, numa
maneira similar ao som das palavras, que é uma ocorrência acústico-fisiológica, mas que
só tem significado para nós através da representação que carrega ou simboliza. Se o valor
econômico dos objetos é constituído pela sua relação mútua de permutabilidade, então o
dinheiro é a expressão autônoma dessa relação (Simmel, 2011, p. 170, tradução minha).
A própria existência do significado do dinheiro é para o autor aquilo que “representa” a sua
consequência na vida social. Apesar da disparidade do que Simmel analisa e aquilo que eu descrevo,
o conceito de “consequências” é bastante elucidativo para compreendermos os efeitos que uma
política estatal produz mesmo quando ela não exista “de direito” porque ela não deixa de produzir
novas posições sociais. Assim como o dinheiro produziu na sua penetração na vida cotidiana uma
forma de “objetivação do estilo de vida”182, o Processo Transexualizador tem produzido uma
182 Outro estudo que Simmel (1973 [1902], p. 23) realizou e que também fez considerações a esse respeito foi sobre as consequências
da urbanização na vida humana. Como sede da economia monetária, como propõe, a metrópole é um objeto de estudo que o autor
235
objetivação do cuidado em saúde trans não apenas no campo da transição de gênero. Isso porque
ela tem atravessado os serviços de saúde e passa a existir de facto no âmbito local, modificando as
relações sociais dos indivíduos ali inseridos. Como essa política é um programa eminentemente
especializado, ela tem pouca força para produzir um ambiente que os interlocutores chamam de
sensível na atenção básica, não apenas por causa de uma má vontade de profissionais. Essa seria
uma compreensão simplista. O nível primário do SUS não é uma parte nodal nessa política porque
ele apenas “encaminha”, ele não integra seu cotidiano à atenção à saúde trans na sua multiplicidade
para além da transição de gênero. Ao partirem dessas experiências de busca por atenção à saúde,
os interlocutores que começaram a se envolver com ativismo sociopolítico em torno da questão
trans inferem que necessitavam reunir forças locais para ter acesso a essa atenção. Uma “luta”
nacional, assim, parece inócua diante de seus cotidianos que são vividos em Fortaleza, e não em
São Paulo ou no Rio de Janeiro, metrópoles nas quais as iniciativas clínicas desde o final do século
passado foram constituídas como modelos para todo o país, enquanto um modelo nacional que
não se adapta às particularidades de todas as regiões. Da mesma maneira que os serviços de saúde
não reproduzem de maneira automática tudo aquilo que é realizado noutras regiões do país, apesar
de se basearem legalmente na legislação do Processo Transexualizador e naquilo que é estabelecido
na comunidade médica, os ativistas trans cearenses também aprendem bastante com outros
militantes que conhecem em congressos e outros eventos políticos, mas procuram criar seus
próprios movimentos localmente. A tensão regional fica exposta quando, por exemplo, ativistas
dessa ou daquela região não se engajam a nível federal – isto é, diante do Ministério da Saúde –
com a mesma proporção e força que o fazem quando são assuntos que eles mesmos não têm acesso
em suas localidades. É nesse sentido que faz nascer um ativismo trans em saúde no Ceará, um que
se volte e faça justiça com as necessidades e desigualdades locais, mesmo que não deixem uma
atuação multinível (diante do Estado brasileiro em suas feições municipais, federais e estaduais).
***
Mesmo que as iniciativas tenham sempre sido locais, a regulamentação (e controle) do
MS/CFM teve um grande papel de maximizar as possibilidades dessas iniciativas locais
acontecerem por outras regiões do país, fora do eixo São Paulo-Rio de Janeiro, por causa da
legitimidade científica, técnica e burocrática que confere – incluindo aí, é claro, o seu financiamento
estatal “multinível” sem o qual o serviço de saúde não funciona. Falar da atenção à saúde trans –
chega logo que conclui seu estudo do dinheiro. A modernidade traz novas formas de vida – ou como chama, formas sociais – que
transforma a própria subjetividade. A cidade produz o indivíduo por meio do "desenvolvimento da cultura moderna" que produz
um relevo preponderante "do que se poderia chamar de o 'espírito objetivo' sobre o 'espírito subjetivo'”. É uma diferenciação que
produz uma individualização de si.
236
incluindo aqui todas as iniciativas de programas, políticas, serviços de saúde oferecidos por
profissionais de saúde dentro ou fora das universidades - é falar de processos de formação do
Estado. O Estado brasileiro não participa e controla a saúde trans apenas quando o Ministério da
Saúde passa a exercer controles claros, em 1997, em escala nacional. Os especialistas de saúde
paulistas e cariocas dos anos 1960, 1970 e 1990, assim como os atuais, desde 2008, que não são
classificados como “habilitados” estão incutidos em ações estatais, eles são parte do Estado
brasileiro e, mesmo sem sua consciência objetiva, integram medidas de governo - algo que embora
se aproxime não é o mesmo que Bourdieu afirma sobre sermos todos atravessados pelo Estado.
São serviços estatais em seu financiamento, em sua legitimidade, em sua feição simbólica.
Muito embora haja atualmente uma maior entrada de outros setores governamentais como
as Secretarias de Estado e as Secretarias Municipais, a saúde trans brasileira está alimentada e
vivificada continuadamente por atores estatais desde o interior das universidades. Na ausência de
maior escopo mercadológico desse tipo de intervenção biomédica, as universidades mantiveram o
interesse científico – seja qual for a área, se biomédica ou social –, mas elas não têm deixado a cena
nas últimas duas décadas. Algo bem diferente aconteceu nos Estados Unidos, onde o serviço de
saúde de caráter patologizante foi atribuído a sua localização universitária. Ativistas e muitos
pesquisadores estadunidenses tendem a reverberar que a saída da medicina trans das universidades
lhe possibilitou o florescimento ao direito individual à mudança de gênero. Ter-se-ia chegado a um
momento no qual não seria o “poder médico” que decidiria se alguém seria transexual nos centros
de produção de conhecimento universitários, mas sim a capacidade individual de escolha.
Contudo, aí, a baliza do acesso – nem sempre vista dessa maneira – será a capacidade
financeira do cliente-paciente. É o individualismo que assegura a possibilidade da mudança de
gênero medicamente assistida no ponto mais profundo desses discursos e práticas estadunidenses,
e não o direito à saúde coletivamente pensado como ofertado obrigatoriamente pelo Estado e
acessado seguramente por cidadãos. Ainda que se chegue ao âmbito de uma “discursividade dos
direitos”, o ânimo provém de uma máxima exacerbação do indivíduo como valor que atravessa a
cultura estadunidense como um todo – algo que justifica a prática médica, a lógica terapêutica, a
decisão à transição e suas modificações corporais, a não interferência do Estado em criar medidas
de controle (mesmo que essa ausência já seja uma medida de regulação). Mesmo que não se possa
dizer que serviços no mercado privado no Brasil não nasçam nesse sentido, até porque já há notícias
de que eles têm surgido de maneira tímida183, o que eu observei em Fortaleza, e o que se desenha
numa escala nacional, não é uma rejeição às universidades associadas à patologia. Essa associação
183 E eu mesmo acompanhei algumas iniciativas nesse sentido.
237
acontece com o governo central nas suas medidas de controle e regulamentação alinhavadas por
conselhos de classe.
4.4. A conquista do biológico
Neste capítulo procurei demonstrar como homens trans conformavam itinerários
terapêuticos nas suas buscas por mediação médica para a transição de gênero, aliado a uma
localização sociológica de que essa ausência de acesso efetivo e afirmativo no sistema de saúde em
Fortaleza corrobora um cenário para a justificativa da falta do Estado brasileiro diante de seus
direitos em saúde. Algo que acaba por galgar discursos e práticas que justificam que o Estado em
seus diferentes níveis e os governos locais constituam serviços específicos e deem as condições
para que as demais partes do sistema não os rejeitem. Partindo da concepção de itinerários
terapêuticos à transição de gênero descrevi primordialmente as trajetórias de três interlocutores no
curso de suas buscas para chegar à atenção à saúde e ao cuidado e representei em mapa esses
caminhos percorridos por todos os 20 interlocutores entrevistados.
Entender que há aí verdadeiros itinerários é relevante porque responde as preocupações de
pessoas trans em acessarem uma estrutura estatal que lhes forneças as condições para transicionar
sem correr o risco de adoecer no processo. Ao fazer uma distinção entre atenção à saúde e cuidado
procurei enfatizar a formação estatal no decurso da constituição da saúde trans no país, e as
próprias experiências de homens trans que não apenas indispunham de capacidades financeiras,
mas também buscavam alicerçar um contexto de garantia de direitos. Se até os médicos no mercado
privado seguem as prerrogativas do MS/CFM, não há outra alternativa a não ser encarar entrar no
sistema público de modo a conseguir viver o Processo Transexualizador, mesmo que sua estrutura
seja menor que seus efeitos sociais naquela que lhes é disponível.
Essa parte da tese poderia ter tomado outros caminhos para seguir o mesmo argumento
como mostrar o paralelo de cuidados sem a mediação biomédica profissional – embora os seus
saberes estivessem presentes nas práticas levadas à cabo em casa – em relação a ida aos serviços de
saúde. Decidi recorrer à indicação dos efeitos do Processo Transexualizador na atenção à saúde
local por entender que isso ilustra melhor de modo etnográfico, e de maneira direta e objetiva, os
meandros que dão sustentação às práticas dos interlocutores ativistas homens trans que se
construíram enquanto ativismo político e como parte de um escopo terapêutico que em muito
pode acionar uma identidade nesse sentido para que as instituições de governo e a comunidade
médica os escute.
No próximo capítulo procuro descrever, então, como esse terreno se estabelece para
convencer os agentes sociais diversos com os quais entram em contato na forma de um ativismo
238
que põe claramente que sem o direito à saúde garantido na forma do Ambulatório e do Serviço
Hospitalar que garanta a transição de gênero, eles terão tentado transicionar de qualquer maneira
porque o sofrimento ao não o fazer é simplesmente intolerável. Esse é um ativismo biossocial no
sentido de sua politização das relações até alcançar uma biologização da política. O risco de
transicionar põe em evidência adoecimentos muito variados que são e seriam produzidos no âmbito
da ausência de verificação e de vigilância da ação das intervenções biomédicas em seus corpos, isto
é, se recorre à conquista política do biológico como parte de um processo de cidadania: a
compreensão de como funciona a hormonização, de como são as técnicas cirúrgicas e seus efeitos
e preparos, e todas as interações que podem ocorrer nesse percurso. Descrevo, portanto, as
diferentes estratégias e políticas construídas nesse sentido e como esse foi o espaço privilegiado
para o nascimento do ativismo transmasculino cearense que ganhou vida primordialmente através
dos direitos à saúde como base para qualquer outro direito também igualmente importante. Vários
pontos do argumento desse capítulo são demonstrados no próximo. Os efeitos sociais do PTSUS
não se fazem refletir apenas na busca por uma atenção à saúde assim estruturada, mas também
participa da forma como a relação médico-paciente e o cuidado de si é produzido.
239
– Capítulo 5 –
Biologia como política
Tem pessoas trans que estão morrendo, tem pessoas trans que estão
doentes. [...]. Do movimento dos homens trans nós temos uma pessoa,
um menino, que se hormoniza de forma clandestina, sem
acompanhamento, que hoje está com câncer. E isso é culpa de quem?
É culpa do Estado que não nos deu um aparato. [...]. Nós não
queremos as pessoas tomando algo que não seja a quantidade certa,
que vai futuramente prejudicar sua saúde física e mental.
- Januário, 23 anos, em discurso na 1ª. Audiência Pública para o Ambulatório do
Processo Transexualizador em Fortaleza, Ceará, 8 de julho de 2017.
5.1. A vida e a política
Encontrei Kaio e Januário pela primeira vez numa tarde de dezembro de 2016. Nos falamos
antes através da internet, com alguns meses de intervalo, por meio da indicação de um amigo em
comum – este que tinha sido um interlocutor na pesquisa para o mestrado184. Era uma tarde de
festa no popularmente conhecido “Dragão”, e os visitantes, que chegavam sozinhos, em grupo ou
em casais logo se aglomeravam nas diferentes dependências e andares do lugar. Em poucos
minutos após minha chegada éramos todos ali algo em torno de centenas de milhares de pessoas.
Para conversarmos mais tranquilamente entramos num café. Um pequeno espaço com luzes baixas
e mesinhas estreitas. Minha intenção era a de apresentar-lhes os objetivos da pesquisa e sondar
sobre se estariam abertos a colaborar à sua aplicação. Animados com a proposta, eles me
introduziam ao cenário local, descrevendo uma cena de ativismo marcado por disputas e conflitos
que eu venho descrevendo até aqui. Esse estabelecimento social, político e cultural de suas figuras
específicas como sujeitos de cuidado e sujeitos de direitos demarcava-se como o eixo central dessas
contendas e transformações. Por isso, este capítulo poderia, sem perder o objetivo, se chamar
“conflito social e saúde”. Eles não falavam especificamente sobre o que eu viera inicialmente
interessado em estudar, que eram as relações de parentesco; eles falavam de volta sobre seus
problemas e questões para “ter” acesso a serviços para “transicionar com saúde” e para cuidar de
si de maneira geral, de tal modo que o primeiro era a condição para o segundo. Não bastava não
184 Ver Rego (2015).
240
haver violência na relação médico-paciente. Para haver o cuidado era necessário ter uma transição
“segura biologicamente”, sem riscos185 à saúde. Esse era o foco da narrativa e de práticas sociais de
grande parte de sua mobilização por direitos, que fez sua militância tomar a forma de um ativismo
biossocial que se centra na garantia da vida ao longo e após a transição. Isso vai operar uma nova
feição do movimento para garantir acesso à saúde: a produção de uma dimensão “bio” da vida que
detém grande apelo sociopolítico.
A imagem de personagem exótico e a ser questionado para ser conhecido, identificado e
provado – que vimos no capítulo 2 – postulava-se no presente por todos os lados, de modo que a
interação social por meio da qual engajavam socialidades esteve refratária a esse obstáculo político
para o reconhecimento de seus direitos e cobertura de bem-estar social pelo Estado-nação
brasileiro. Ainda mais, foi necessário argumentar porque precisariam de atendimento em saúde
mesmo não dizendo ser a transexualidade uma doença, gerando outra direção para o adoecimento,
e não o mental em si, mas o físico. A especificidade dos homens trans como sujeitos se perfazia,
de maneira controvertida e em diferentes escalas, por meio da construção de uma narrativa
atravessada pelo uso, ora politicamente estratégico, ora socialmente organizador do que se vem a
entender como elementos de “biologia”, isto é, são sujeitos que tem corpos como qualquer pessoa,
e que têm necessidades físicas como qualquer um, mas desenvolvem necessidades outras a partir
da transição que implicam uma cobertura estatal centrada no argumento de que a transexualidade
é um elemento comum da vida humana. Um aspecto que gera uma diferença que é também
corporal e que afeta – talvez, influencie – processos da vida experienciados por eles. Assim,
afirmações que os chamavam de homens trans em oposição a homens biológicos (os não-trans, ou
cis como colocam) indicariam que eles seriam feitos de papel. Mas não teriam eles células? Não
teriam eles pele? Não seriam eles também de carne e osso? Essa demanda para que se reconheça
que seus corpos biológicos existem e precisam ser cuidados faz sentido, como ficará exposto ao
longo do capítulo, porque se trata de uma feição da atividade da tecnologia de governo da
biopolítica em sua contemporaneidade.
Nesse sentido, a explicação do porquê são homens trans junto ao porquê de o Estado dever
lhes prestar atenção em saúde diferenciada mesmo quando não seriam doentes por serem trans é
atravessada por uma noção de uma “natureza” dos corpos como chave política, e de uma
especificidade biológica de um grupo a posteriori das novas necessidades em saúde advindas a partir
185 É verdadeiramente diverso e amplo o emprego do conceito de risco na antropologia e na sociologia. Na sociologia fala-se bastante
sobre “sociedade de risco”, e como indivíduos fazem práticas que põem em risco suas vidas por prazer e identificação social como
esportes radicais, modificações corporais, entre outros, contidos na ideia de “conduta de risco” (Le Breton, 2018; Morrisey, 2008;
Zarias e Le Breton, 2019), e risco à vida ligado a deterioração do meio ambiente (Douglas, 1983). Mas não são desses tipos de risco
que falo nessa tese, mas de um risco no campo da saúde por causa da biologia dos corpos.
241
da transição de gênero186 que implicam o acompanhamento da ação das biotecnologias. A dimensão
do adoecimento era uma parte dessa política, mas não simplesmente no sentido de que se usa a
classificação da disforia de gênero para conseguir o atendimento. A experiência da doença entra
aqui no âmbito do seu desenvolvimento devido ao não acompanhamento da transição, e a outros
adoecimentos que se alteram por causa do recorte biossocial situado pela transexualidade. Isso
porque as consequências sociais da ausência de cobertura em saúde são circunscritas materialmente,
ou em outras palavras, são refletidas em seus corpos. Essa colocação nada tem a ver com ser
geneticamente diferenciado187. Isso significa o uso da biologia, ou do que se acredita sê-la, como
tática política, isto é, de engajar-se em formas de prática social e discursos capazes de convencer o
Estado contemporâneo em seus próprios termos. Essa linguagem estatal, e a forma de ser de
governo, desde muito obedecem ao entendimento formulado historicamente de que os seres
humanos são seres organicamente viventes. Assim, a política toma a vida inteiramente. Isto é o que
Michel Foucault (1988, 1999, 2001, 2008a, 2008b, 2012a) concebe como biopolítica: uma forma de
tecnologia de governo que estabelece o conjunto dos seres humanos como população, de modo a
administrá-los em suas recorrências; fazendo-os, também, cuidarem de si mesmos nas suas
individualidades e controlando a produção dos seus corpos. Na ordem do ativismo que usa as
“armas” do Estado para conquistar direitos através de sua cobertura social há a produção de efeitos
sobre os modos de objetivação e subjetivação de si mesmos que estão longe do controle dos
indivíduos ou de grupos sociais determinados. O que antes era estratégico, se é que é possível
determinar o início e o fim desse limite, não se furta a participar ativamente como elemento de
organização social e de simbolização e, portanto, de subjetividade.
No âmbito do Ceará, essa formação é atravessada amplamente pelo mundo social da saúde
– com seus serviços, profissionais, regras, procedimentos, processos, objetos e sujeitos –,
principalmente por ser o corpo um objeto material manejável pelas técnicas biomédicas, um fator
primordial para essa nova colocação de si; e ser o corpo o próprio limite no qual se manifesta a
vida humana. Assim, ao entendermos como a cidadania trans no contexto do Ceará foi atravessada
pelas dinâmicas biopolíticas apreenderemos a descrição da própria constituição cidadã das pessoas
trans no Brasil, uma vez que se indica aqui que essa última foi vivificada pela emergência do homem
trans como categoria política e terapêutica. Oposições entre natureza/cultura, social/biológico
186 Isso será problematizado no decorrer deste capítulo – no capítulo 3 mostrei como itinerários terapêuticos diversos eram
atravessados pela busca por cuidado em saúde à transição.
187 Nessa pesquisa não ficou evidente de força decisiva um argumento pró saúde trans em torno de uma diferenciação genética ou
cerebral. Contudo, noutros contextos isso tem estado presente de maneira controvertida. Isso ocupou e ocupa as páginas dos
estudos biomédicos, descritos no capítulo 2. Eric Plemons (2019a), em sua pesquisa, também tem identificado como médicos e
mulheres transexuais têm procurado no cérebro uma diferenciação orgânica que explicaria a transexualidade; e, como mulheres
trans estadunidenses têm procurado cirurgias de feminilização facial para atingir uma feição de “mulher biológica” (Plemons, 2019b).
A ideia de natureza para circunscrever ser ou não transexual esteve presente em campo, mas não como resultado da genética.
242
eram realizadas no campo pelos interlocutores, sendo que são suas maneiras de traçar o início e o
fim das unidades desses pares que exponho. Procuro descrever como as explicações locais ganham
forma e orientam ações e socialidades quando o “fato biológico” atravessa a cidadania. Quer dizer,
homens trans dizem para o Estado brasileiro que serviços devem ser estruturados porque seus
corpos podem adoecer diante de transições malfeitas sem mediação biomédica. Esse malfeito está
tanto no caso de algum adoecimento acontecer como nas feições masculinas pretendidas não serem
atingidas.
Assim, mostro como as modificações corporais ou o manejo orgânico da vida e as
necessidades concebidas a partir daí foram todas politizadas pelos ativistas enquanto tais,
circunscrições que são materiais. As perguntas mais importantes que faço, assim, são: como e de
que forma ao usar estrategicamente a linguagem e as ideias contidas no modus operandi biopolítico
do Estado-nação brasileiro, os ativistas homens trans acabam por se subjetivar (e não se sujeitar)
através daquilo que lograram apenas ser um intermédio para chegar ao objeto de suas militâncias?
Como essa política extrapola as táticas estratégicas de convencimento e constituem suas
subjetividades? Como essa cidadania se torna biocidadania? Ao formular essas perguntas já passo
a indicar que essa estratégia acontece, o que significa que para respondê-la preciso descrever como
se dão essas táticas. Enquadro esse cenário de subjetivação nas práticas tanto como mobilização
voltada para as políticas de governo como enquanto ordenador de laços e relações no cotidiano.
Isso produz formas de biossocialidades na acepção de Paul Rabinow (1996a; 2008) e de outros
autores e autoras que têm se preocupado com a dinamicidade da biologização e condições de saúde
como elemento material de simbolização e política da vida social (Rose, 2001; Petryna, 2002; Rose
e Novas, 2005; Valle, 2015).
Ao me dar conta desse contexto no curso do trabalho de campo, rejeitei por grande período
esses termos de análise por considerá-los um problema para o ativismo. A saber, como relações
sociais e políticas são constituídas em torno do trabalho orgânico da transição. Estava posto que
ao falar de biologia quando me referisse a transexuais e cidadania estaria fazendo um movimento
contrário ao que propõe a militância, já que um grande elemento desse ativismo é negar com
radicalidade uma prisão biológica para definir gênero e sexualidade, isto é, por ex., que homens são
homens por terem nascido com um pênis, ou que estes últimos são mais “biológicos”. Contudo,
ao chegar à conclusão que essa minha preocupação ética estava confundindo os elementos de
biologia e da vida – entre aqueles reivindicados e aqueles rejeitados pelos interlocutores –,
impedindo a própria análise de considerar como objeto algo tão importante para o campo, que
eram as condições de saúde e as mudanças corporais pelas quais perpassam os sujeitos, revi que
estava perdendo de vista um lócus da vida social que observara e sua construção de um mundo
243
verdadeiramente biossocial. A impressão de contraditoriedade que isso talvez produza se justifica
apenas se acharmos que a vida social e cultural é um terreno simples e não dado a conflitos,
contradições, confusões organizadas apenas nas palavras escritas do antropólogo. Mais do que isso,
não considerei no início que as relações com a biomedicina se dão tanto entre reforço e recriação
de elementos da “natureza” como concessões para seu aperfeiçoamento, adestramento e
reformulação.
O ativismo trans que descrevo se constituiu a partir de um deslocamento desde um
encontro aleatório de pessoas interessadas em mudar de gênero/sexo atendentes de um antigo
serviço de saúde para um associativismo de homens trans cientes da organização e funcionamento
do Estado-nação e dos saberes biomédicos que os legitimam. Esta é a apresentação de um nível
específico da biopolítica. A atividade de se fazer cumprir uma cobertura estatal perpassou a
clarividência dos ativistas de que eles deveriam construir-se enquanto sujeitos terapêuticos ao
mesmo tempo que enquanto sujeitos de direitos. Quem seria essa figura que deveria receber
atenção biomédica e burocrática da máquina pública? E por quê? Um dos pontos altos disso
durante o campo de pesquisa se deu quando enfim aconteceu a primeira Audiência Pública para se
discutir, com autoridades locais, médicos e ativistas trans, a instalação de um serviço do Processo
Transexualizador no Ceará, de modo que sua intensidade tomou a forma de um evento que expôs
as relações sociais e de poder que davam forma ao contexto local tanto pelo que desencadeou
quanto pelo que foi desencadeada. E é por esse momento que retomarei a etnografia nesse capítulo,
percorrendo, entre idas e vindas, o processo social que deu lugar e que ajudou a fomentar adiante.
Esse capítulo não está dividido em grandes blocos, mas percorre primeiramente a formação
da mobilização, depois a articulação do ativismo e, por último, procura entender as consequências
sociais da intersecção entre saúde e política no âmbito da cidadania e da terapêutica trans para que
se constitua o direito à saúde no âmbito do Sistema Único de Saúde. Não estabelecerei uma
descrição que siga uma ordem cronológica rígida por considerar que isso não me salvaguarda dos
problemas quanto ao tempo na etnografia (Fabian, 2013 [1983]). Utilizando-me tanto do trabalho
de memória dos ativistas como o meu de observação participante, os eventos e as experiências
descritas e relatadas vão e vem no tempo dos interlocutores e da etnografia. Tento vislumbrar que
ao mesmo tempo que lutavam por direitos ao acesso a serviços públicos de saúde demonstravam
estratégias para cuidar de si sem a supervisão técnica que perseguiam politicamente. Assim, procuro
alcançar a descrição etnográfica de discursos e práticas bio-socio-políticas.
244
5.2. O governo pela esperança
Éramos cinco pessoas apertadas num carro de aplicativo indo desde as proximidades do
centro em direção ao bairro Eng. Luciano Cavalcante. Esse trajeto levaria mais de uma hora de
ônibus urbano se não tivéssemos nos unido para pagar o transporte alternativo. Isso não era
particularmente atípico, já que a subida dos preços do transporte público fez com que crescesse o
uso de tais medidas para otimizar o tempo e o dinheiro de que se dispõe. Saímos da casa de Kaio,
na qual havíamos dormido na noite anterior, porque intencionávamos chegar com a máxima
antecedência possível à sede da Defensoria Pública cearense. Eu acompanhava, naquela manhã de
8 de junho de 2017, três ativistas e uma de suas companheiras. A esperança que circulava entre nós
era de que a Audiência Pública que iria acontecer logo mais pudesse finalmente ser a pedra de toque
para a criação, através do Sistema Único de Saúde (SUS), do Ambulatório do Processo
Transexualizador pela Secretaria de Saúde do Ceará. Os ativistas cearenses, principalmente homens
trans, pretendiam processar judicialmente o Governo. A Audiência fora convocada pelos
defensores públicos e se apresentava como uma conciliação para evitar extrajudicialmente esse
possível litígio.
Uma Audiência Pública é um instrumento estatal que detém um ideal de participação frente
às ações dos poderes governamentais. O objetivo principal seria o de fazer ouvir os diferentes
setores do que se chama em campo de “sociedade civil”, isto é, todas as pessoas e grupos que não
seriam parte estrita do aparelho burocrático do Estado-nação. Como tal, é apresentada como uma
democratização das decisões de governo. Mas não há consenso sobre se efetivamente uma
audiência geraria o ideal que anuncia. Pesquisadores como Huw Beynon (1999), se contrapondo a
visão daqueles que propõem ser as audiências apenas ocasiões para a encenação e atualização do
poder do Estado, afirma que é possível haver conquistas e que esses eventos não seriam apenas
palco de dominação. Partindo dessas formulações Jorge Lopes et al. (2006) descrevem como uma
audiência, realizada em Angra dos Reis, sobre a instalação de uma usina nuclear manifestou os
atores e interesses em cena. Antes de se anteciparem para responder ao questionamento de se o
evento seria ou não útil, os autores procuraram mostrar como o público participante gerou fissuras
nos espaços com suas opiniões e vozes, propiciando certa mudança no rumo dos acontecimentos.
A etnografia desse acontecimento tem o potencial de ser um momento propício para a observação
da expressão das disputas e dos grupos sociais que permeiam o campo ao qual dizem respeito.
Segundo Jacques Defrance (1988), citado por Lopes et al. (2006), há nas audiências públicas
uma marcação de dois tipos de situação. Uma se trata da “comunicação e informação recíproca”
que diz respeito a forma como os promotores da Audiência querem que ela seja vista. A outra
situação compreende como os participantes pretendem que seja visto o evento enquanto uma
245
“negociação em uma relação de forças”. Haveria, portanto, a oscilação entre ambas as formas de
organização. Lopes et al. (2006) descrevem que isso ocorrera em Angra dos Reis. Já no caso de
Fortaleza aqui refletido quase toda a Audiência se deu conforme a organização dos seus
promotores, mas não no final quando foi aberto ao “público” fora da mesa de autoridades para
comentarem ou fazerem perguntas. Nesse momento houve uma transposição das forças para dar
lugar uma explosão de ideias e de “colocar para fora” os anseios, como diria um ativista homem
trans de idade avançada ao iniciar a sessão.
A “Audiência do Ambulatório”, assim, foi um evento que inspirou grande excitação por
parecer, apenas por sua simples realização, uma espécie de reconhecimento de direitos. Mais tarde
naquele dia a defensora pública Sandra Sá irá anunciar a razão governamental que guiou a resposta
da secretaria de Estado a suas ações vistas como mobilização à “luta LGBT”:
Nós levamos a demanda para a Secretaria de Saúde na pessoa do Dr. Pedro que foi de
uma receptividade, assim, incomum; que, muitas vezes quando a gente, a Defensoria
Pública entra com ações, então está em litígio e é muito difícil o Poder Público se
comunicar com as instituições. Mas no caso da Secretaria de Saúde aqui nós já tivemos a
demanda acolhida de pronto. Eu antes de eu falar Dr. Pedro já tava dizendo “eu já sei o
que é, e já tá acatado”. A luta é de vocês, a luta é uma luta de muitos anos, eu acho que o
acontecimento desse episódio da Dandara188, de certa forma deu mais visibilidade a luta,
mas muita gente tá sofrendo, vocês sofrem todo dia, e podem contar com o Núcleo de
Direitos Humanos como um território seguro de militância LGBT do Estado do Ceará
(Def. Sandra Sá).
Como Jorge Sérgio Lopes et. al. (2004) não quero recorrer à afirmação de um certo grau de
utilidade ou efetividade desse momento. Interessa-me mais entender o que esse evento expressou,
não apenas sobre o que vinha acontecendo na cidade, como a respeito dos lugares que ocupou no
processo social da constituição da saúde trans como um objeto de engajamento e ação científica,
técnica, de gestão de governo, burocrática e política. Sigo a descrição da audiência em sua liturgia,
inspirando-me em Max Gluckman (2010 [1940]) e na sua etnografia de uma situação social189, para
abarcar as experiências dos interlocutores, seu desenvolvimento, fissuras e reforço das hierarquias
sociais confluídos pelos participantes. O caráter de processo judicial, e sua representação de uma
força que se impõe, já se inicia com a excitação prévia na divulgação do evento, como se vê na
Figura 10 reproduzida a seguir, que circulou pela internet ao ser veiculada por perfis oficiais do
Governo do Estado do Ceará, por ativistas, pessoas anônimas, e por jornais locais como o Diário
do Nordeste.
188 Dandara dos Santos foi uma travesti brutalmente espancada e assassinada em Fortaleza. Voltarei a isso adiante.
189 Gluckman (2010) mostrou como um evento político ordinário – a inauguração de uma ponte – exprimia a ordem social de uma
sociedade sul-africana e sua hierarquia dos grupos locais. É esse tipo de ocasião expressiva que o autor denomina de situação social.
Isso se constituiu, portanto, como uma abordagem etnográfica ao situar histórica e socialmente os elementos estruturais que
orientavam os atores sociais na determinada ocasião e como esta reverbera na sociedade e é, ela mesma, seu resultado.
246
Os ativistas que residiam no interior do estado chegavam à capital já na noite anterior para
se prepararem para se fazer presentes, e a casa de Kaio era um ponto de apoio importante no qual
nos encontramos. A expectativa era grande e tinha permeado nossas conversas desde meses atrás,
quando a audiência fora marcada. Decidimos pedir uma pizza para jantar naquela noite de
antecipação quando todos chegaram. Enquanto comemos, assistimos a filmes envolvendo
personagens LGBT até que vamos todos dormir. Como o espaço não era muito grande, durmo na
sala numa rede, enquanto os demais, Kaio, Magno e sua companheira Valéria, dormem no quarto
dividindo uma cama de casal. Acordo na manhã seguinte muito cedo, já com o sol no meu rosto,
que atravessava a janela de vidro da sala. Logo todos acordam e tomamos café, e começamos a nos
preparar para sair. Ajudo Valéria a escolher uma blusa, já que estava indecisa. A ideia é que todos
nós nos apresentemos bem-vestidos, afinal, é um evento solene de grande expectativa. Após os
preparativos chamamos o táxi. Para nossa sorte, o motorista não se importou em levar um
passageiro extra, já que éramos 5 pessoas contando com Januário que chegou depois. Depois de
um percurso considerável descemos no que, só depois, percebi ser a lateral do prédio da sede da
Defensoria. Relativamente próximo à Câmara de Vereadores de Fortaleza, chegava a ocupar um
quarteirão inteiro. Conforme vou me localizando, Valéria comenta que o lugar seria um pouco
remoto para a maioria das pessoas, e de difícil acesso para “quem realmente precisa”, o que escuto
com curiosidade. Kaio e eu não demoramos a ir em direção à entrada, do lado direito de onde
estávamos, enquanto os outros param para comprar café de um ambulante onde estacionamos.
Figura 10 – Divulgação da Audiência Pública da DPGE
Fonte: Defensoria Pública Geral do Estado do Ceará (2017).
247
Antes de entrarmos, Reginaldo sai pela porta da frente em nossa direção. Era a primeira
vez que o encontrava, embora já tivesse ouvido falar sobre ele como um ativista da região. Ele
parece um pouco nervoso, e nos conta, segurando papeis escritos à mão, o discurso que preparou
para falar quando lhe for dada essa abertura na Audiência. “Tenho muito a dizer; temos muito a
dizer, essa Audiência não vai ser suficiente para resolver nossos direitos”, completava. Era a
primeira vez que algo dessa magnitude acontecia, com a presença de um Secretário de Governo
Estadual falando em público sobre um serviço de saúde voltado a travestis e transexuais. A
animação fazia muito sentido. Enquanto eles fumam, conversamos sobre as dificuldades jurídicas
que Reginaldo tem encontrado por tentar mudar de nome e sexo no seu registro civil. Ali mesmo
nos conta que seu advogado, um defensor público assinalado pela Defensoria para seu caso, já que
não dispunha de recursos próprios, estava há alguns anos sem resolver sua situação. Reginaldo
desconfiava que o dito profissional o “enrolava”, dificultando o andamento do processo por causa
das crenças religiosas que professaria. Muito insatisfeito com isso, pretende colocar carne e sangue
em seu discurso de logo mais. Após quase uma hora conversando na calçada da frente do prédio,
entramos e ficamos próximos a entrada da sala na qual acontecerá a Audiência, um auditório amplo
com capacidade, julguei, para mais de 200 pessoas. No saguão continuamos a conversar sobre essas
e outras dificuldades vividas pelos interlocutores no decurso dessa ou daquela etapa do processo
de transição. Em tudo, como ficará exposto no desenrolar da descrição da Audiência propriamente
dita, a faixa de renda dos interlocutores e de suas famílias é um dos principais fatores de porque
estavam presentes ali naquela manhã. Os direitos se tornaram uma linguagem potente dentro do
conflito entre os setores estatais e os pacientes, ativistas, militantes e seus familiares para a cobertura
em saúde que geraria “segurança biomédica” tanto ao se transicionar, como para “viver em
sociedade” sem ser violentado. Sem essa cobertura julgam que não poderiam estar em pé de
igualdade com outra pessoa que não transiciona. Aos poucos o saguão é tomado de gente, e vamos
entrando no auditório que logo é ocupado quase na sua totalidade.
Antes da Audiência começar de fato alguns homens trans e mulheres trans e travestis dão
entrevistas a jornais da região, e conforme se segue, dois homens com câmeras nos ombros
circulam pela sala, dando enfoque principal nas pessoas trans e travestis. É algo que me incomodou
um pouco, à princípio, porque percebi haver um foco exacerbado na filmagem de pacientes e
ativistas. Quando compartilhei minha sensação sobre isso, Kaio achara que não havia algo ruim
nisso porque seria bom para a militância. Era ótimo para a causa. Entendi que a visibilidade é a
chave, e não se poderia renunciar a nenhum veículo. Eu estava sentado na quarta fileira da frente
para trás, entre os interlocutores, e era constante a luz forte da câmera em nossa direção quase nos
ofuscando. Eram, assim, as duas câmaras posicionadas uma de cada lado das fileiras dos assentos
248
dando closes certeiros em rostos, nas posturas, nas conversas, um curso de múltiplos ângulos e
enquadramentos. Muitos dos ativistas também se valiam de gravadores e celulares para fotografar
e gravar em áudio e em vídeo o momento. Como Valéria julgava antes de sairmos de casa, todos e
todas estavam bem vestidos. Foi uma preocupação que nos calhou já que apareceríamos na TV. O
recurso midiático será forte em toda aquela manhã.
Após alguns minutos de nossa entrada no auditório, a Audiência começa em todo seu ritual
protocolar e o qual sumarizo em seis etapas descritas em três atos: 1) A mestre de Cerimônias
anuncia a Audiência e seus objetivos, e como é realizado o trabalho da DPGE; 2) A Mesa é
composta e passa-se a palavra a cada um de seus integrantes; 3) Apresentação do Projeto do
Ambulatório e Equipe Multidisciplinar responsável pelo chefe do setor do Hospital de Saúde
Mental Frota Pinto Jr.; 4) Apresentação da participação da Secretaria de Saúde no planejamento e
demais membros da Mesa; 5) Debate feito pelo “público” da Audiência a partir de
questionamentos, perguntas e ponderações; momento no qual os ativistas falam com vigor; 6)
Finalização da situação com encaminhamentos e momento para fotos com os ativistas e outras
pessoas trans e travestis presentes. O foco da minha descrição, assim, recai sobre as figuras de
homens trans particularmente, o que responde aos objetivos dessa tese, mas não significa que
outros sujeitos como travestis e mulheres trans não estivessem lá presentes e atuantes.
Ato I
A cerimonialista, vestida de preto em trajes sociais, finalmente anuncia pelo som
amplificado do microfone o início da Audiência Pública que, como demarca, foi intitulada
“Transexualidade: pelo direito de existir”. Em seguida, um vídeo propagando a “missão” dos
defensores públicos é exibido no telão, e assistimos ao relato do cotidiano e dos setores temáticos
internos, como o Núcleo de Direitos Humanos, que se veem com o objetivo de “resgatar os direitos
dos menos favorecidos socialmente”. Quem ainda não estava sentado na plateia entra no auditório
e começa-se a fazer um silêncio para fazer seguir a burocracia. Nesse momento, Valéria, Magno e
eu já estamos sentados um ao lado do outro. Kaio e Januário, peças centrais do dia de hoje estavam
na primeira fileira a postos para ocuparem a fala quando for dada a oportunidade. Uma a uma, cada
autoridade é chamada para ocupar a “Mesa”, antes vazia, seguindo-se de aplausos de deferimento
e uma ordem hierárquica desde o secretário de saúde, perpassando pelos defensores, deputados
estaduais e funcionários da administração municipal e estadual envolvidos com políticas públicas
LGBT e ativistas. Percebe-se que a composição segue as mulheres como as operadoras do Direito,
junto com o Promotor do Ministério Público, e os homens se sobressaem em número como
249
representantes de setores do Estado municipal e estadual. Das pessoas trans, duas mulheres, uma
enquanto representante da Associação de Travestis do Ceará (ATRAC), outra como funcionária
pública, um homem trans como representante da Associação Transmasculina do Ceará (Atransce),
além do deputado estadual Renato Roseno, pelo PSOL.
Figura 11 – A Mesa
Fonte: Foto do Autor.
Quando olho para trás procurando observar a ocupação do auditório percebo uma
disposição de assentos curiosa. Quase todos os ativistas e pacientes trans estão sentados ao lado
esquerdo, enquanto o outro lado, sem estar totalmente preenchido sentam-se majoritariamente
médicos, advogados e outros especialistas. Era perceptível nas primeiras fileiras de ambos os lados
se sentarem os homens trans em número quase absoluto, em boa parte acompanhados de suas
companheiras diferentemente das travestis que estavam sem cônjuges. O que se seguiu me
surpreendeu, à medida que as expectativas dos interlocutores não foram totalmente atendidas
quanto ao que diziam que iria acontecer ali. Eles mesmos esperavam algo da Audiência que
comumente não se alcança, que é o objeto absolutamente acabado daquilo que se reivindica.
Os membros da Mesa de abertura finalmente tomam a palavra. A defensora pública geral
Mariana Lobo inicia com um discurso que focaliza em demarcar que a Audiência é fruto da
sensibilização dos “operadores do Direito” para a temática trans, e que esse seria um trabalho que
a Defensoria viria fazendo naquele período. Sensibilizar é uma missão que é alcançada quando os
direitos são recuperados. A identidade de gênero é erigida, então, como um direito, para apresentar
naquele momento um projeto para implantar o Ambulatório. O Secretário de Saúde, Dr. Henrique
Javi, recebe o microfone de Mariana para falar que a “causa é nobre”, precisando focalizar nas
melhorias e não nos problemas. Assim, começa a explicar como se dará o atendimento que
responderá a demanda referenciada, isto é, a rede de atenção básica irá ser a porta de entrada para,
então, haver o encaminhamento para o serviço especializado. O secretário cita o Governador
Camilo Santana (PT) e o Prefeito de Fortaleza Roberto Cláudio (PSB) para informar que há planos
250
de construir uma Policlínica para onde o Ambulatório deverá migrar, mas que no atual instante o
serviço deverá ser implantado no Hospital de Saúde Mental de Messejana, o Frota Pinto Jr. Como
veremos, esse será um motivo de imbróglio, uma vez que os pacientes trans não querem qualquer
associação com pacientes em tratamento para saúde mental. Algo que já se falava antes da
Audiência acontecer por se ter conhecimento dessa intenção. O secretário endereça ainda a
responsabilidade do SUS, de como o sistema é a política mais social de todas. O “indivíduo” que
fora impactado pela violência reflete no sistema que precisa gastar mais para recuperar alguém que
fora danificado dentro de um atendimento não adequado. Assim, a ideia é que o novo serviço trate
os pacientes com dignidade e segurança. Nesse momento ele nos diz que os médicos estão na
plateia e pede para que fiquem de pé. Dr. Henrique é anunciado agora como o representante que
continuará a expor o projeto do ambulatório em nome da Secretaria e que anuncia que o antigo
serviço de saúde sexual ATASH, que funcionava no Hospital de Saúde Mental, será substituído
por um Ambulatório específico para atender pacientes transexuais e travestis. É dada ainda a
palavra para algum outro médico falar. Uma jovem médica ginecologista é ovacionada quando pega
o microfone, ela é conhecida na cidade pela sua atuação na área e suas poucas palavras de
engrandecimento do cuidado em saúde para pessoas trans é seguida de aplausos calorosos
unânimes. Estavam ainda ali o endocrinologista, um urologista, um cirurgião, a assistente social e
dois psiquiatras. Alguns desses profissionais eram bem conhecidos dos ativistas porque eles os têm
atendido em seus serviços particulares e em hospitais públicos da capital.
Figura 12 – Os médicos especialistas
Fonte: Autor.
251
Ato II
Com isso, o chefe do setor no Hospital é chamado para apresentar finalmente o projeto.
Ele, que estava sentado no lado direito, se levanta sob aplausos e vai à frente para usar o auxílio de
uma apresentação de slides. Nesse momento o silêncio no ambiente encontrou o seu mais absoluto
pico. Todos estamos vidrados para entender quais seriam os horários de atendimento, quantas
vagas haveria e que profissionais estariam disponíveis. Vale ressaltar o grande dispêndio da
apresentação no quesito “metodologia”, como chama, detalhando número de salas no hospital,
especialidades médicas contempladas na equipe, e como se dará o fluxo de admissão e
encaminhamentos. Todos os médicos que estavam na sala são chamados pelo nome para irem à
frente. Aplausos continuam a ecoar pela sala, e os rostos felizes se generalizam com largos sorrisos
de ponta a ponta do ambiente.
Em seu discurso, o médico nos explicava que a “população trans vive um sofrimento e
vulnerabilidade acarretados pelas condições de vida por causa dos preconceitos”. Chega a citar
termos como “heteronormatividade” e “cisnormatividade”, os quais, segundo diz, produziram a
violência “concreta e simbólica”. Haveria, portanto, a necessidade da intensificação da
“sensibilização dos servidores”. O Ambulatório é anunciado para “resgatar os direitos humanos”,
“levar respeito à diversidade e democracia, reafirmando os princípios do SUS”. Ele reitera ainda
que o serviço mudará do local, saindo do ATASH no qual será instalado, passando para a futura
Policlínica em construção. Essa promessa será outro ponto de tensão no final do evento. A
estrutura física manejada no antigo hospital é então detalhada: seis consultórios, uma sala para
terapia em grupo, uma sala para secretaria do serviço, outra para espera. A projeção chega ao slide
dos horários e Kaio e eu trocamos olhares; ele estava animado, e eu acabei inflamado por toda a
excitação ao meu redor. Segundas-feiras às tardes, e o restante da semana pela manhã, é o
estabelecido para o atendimento que receberá pacientes encaminhados desde as unidades básicas
de saúde. Ao chegar no serviço ambulatorial se seguiria outro processo admissional interno: uma
espécie de avaliação específica, passando pela avaliação médica do psiquiatra, psicólogo e assistente
social, e então a sequência do médico da equipe de outras especialidades. Agora todos os médicos
são chamados para ficar à frente junto com o chefe do serviço, os quais são apresentados por nome
e área. Parecia que tudo que tanto os ativistas reclamavam estava sendo materializado ali na nossa
frente, agora víamos médicos e não apenas promessa.
Quando todos voltam aos seus lugares, escoltados ainda sob os aplausos, começa-se
novamente a “dar a palavra” – como anuncia-se – para “membros da mesa”, reiniciando com os
ativistas representantes dos pacientes que demandam o serviço, aqueles que “sofrem”. Apesar do
252
tempo ser de três minutos, todos falam muito abertamente. Renata, travesti ativista da ATRAC,
começa pela sua insatisfação com a localização do Ambulatório no mesmo hospital notoriamente
conhecido como de “loucos” na cidade. Aquele não era o seu espaço, ela não era doida. Ao ser
enfática sobre isso, Renata fala em estigma e diz que ser atendida ali significaria uma “sentença de
morte” porque ficariam feridas com o estigma. Como ela iria conseguir um emprego se achassem
que frequentava um lugar assim? Ao que conclui: “percorri o mundo todo, Fortaleza é a cidade que
mais exporta travestis para prostituição para fora do país”. E por fim repete a frase ecoada pelo
ativismo das travestis na cidade: “quem vai chorar por nós?”. Nesse momento, a cerimonialista
agradece a fala de Renata, e pede desculpas por ter dito “o travesti” ao invés de ter usado o artigo
no feminino para se referir as travestis. Todos batem palmas e repetem “é isso mesmo”, “muito
bem”, “ah, agora sim”, aceitando o reconhecimento da mestra de cerimônias.
A vez de falar de Januário, ativista da Atransce, tão esperada por nós finalmente chega, que
logo aponta sua felicidade de estar ali:
Hoje é um dia muito feliz pra gente porque esse momento foi muito esperado e houve
muita luta pra que nós pudéssemos estar aqui reivindicando o que nos é de direito. Existe
uma Portaria que foi aprovada há 9 anos que garante o Ambulatório Transexualizador,
que em vários outros estados já existem implantados e desenvolvem esse trabalho. E que
o nosso estado não tem, ainda. E [...] você comparando.... Porque existem outros estados
que têm uma população trans muito, muito menor que do que a do nosso estado, e que
simplesmente tem todo um aparato pra essas pessoas, para os homens e mulheres trans,
e as travestis (Januário, 23 anos).
Já tendo ouvido os médicos e secretário de saúde falar sobre o projeto de implantação do
serviço e da crítica que se levantou sobre o problema de o local ser o Hospital Mental, Januário
relata que os transexuais já sofrem preconceito e que transexualidade não é um distúrbio:
Então, representando aqui os meninos, que junto com as mulheres também lutaram
bastante pra que esse dia pudesse chegar. Falando um pouco dessa questão do Hospital
Mental. Eu acho que vocês entendem um pouco, devem entender, ou procurar abrir o
coração pra entender que nós somos marginalizados diariamente, massacrados pelo
preconceito de toda uma sociedade que tem uma cultura preconceituosa e culturalmente
imposto. E quando a gente fala “não queremos estar no hospital mental” é porque nós
já somos taxados como pessoas loucas, como Renata já relatou [...]. Quando você chega
numa UBS, pra passar pelo clínico geral... O clínico, na maioria das vezes, olha pra sua
cara e diz que “isso não existe”, que “isso é coisa da sua cabeça”. Ou, quando é
encaminhado é pra ser tratado como tendo um distúrbio mental. E não é, transexualidade
não é isso [...]. Ser implantado no hospital mental vai criar uma certa, tipo uma aversão a
isso nas pessoas (Januário, 23 anos).
Assim, a associação com a loucura será algo que reforçará o sofrimento que já vivenciam.
E, apesar das outras pessoas que não são trans acharem em sua parte que não seria necessário ter
um serviço de saúde específico para transexuais, Januário reforça o argumento de que ter direitos
segue a particularidade humana que, como tal, também se repete na transexualidade:
253
O que nós precisamos é ser tratados como humanos. Ser tratados de forma humanizada.
Eu não quero ser diferente, eu não quero ser tratado melhor que uma pessoa cis. Porque
algumas pessoas acham que pra nós termos os nossos direitos, os direitos das outras
pessoas têm que ser afetados. Porque quando a gente vai pra conversar com a população,
que alguém vai e relata assim: “mas não tem saúde nem pra gente, porque vocês querem
uma coisa só pra vocês?”. Então, não é, não é que nós queremos algo só pra nós. Todo
humano é, existe a sua particularidade, entendeu? É isso que a gente quer, nós não
queremos ser melhores do que ninguém. Nós não merecemos ter algo “só pra você”, que
“vai só beneficiar você”. Não, nós fazemos parte da sociedade. As pessoas não
conseguem entender e ver que se eu for pra uma UBS, se eu for pra um posto,
simplesmente se eu tiver gripado, se eu tiver um resfriado, eu não vou ser tratado da
mesma forma dela. Eu vou ser desrespeitado, porque a primeira coisa que eu vou fazer é
apresentar meu cartão do SUS, e a primeira coisa que eu vou ouvir: “isso não existe”
(Januário, 23 anos).
Os episódios que Januário viveu nos postos de saúde da Atenção Primária são
compartilhados por todos os seus amigos e colegas homens trans. “Se você já é hormonizado, e
você vai pra uma sala de espera; tá lá o sujeito todo barbudo, e aí aparece lá o nome no telão
“fulaninha de tal de tal”, cheio de gente, aí você se levanta lá e o pessoal já começa a te olhar, tipo:
‘que que isso, que diab’é isso!?’, entendeu? Já começa o desrespeito ali”. Os tratamentos que podem
ser considerados insignificantes são, portanto, potentes para gerar sofrimento. O nome de acordo
com a identidade de gênero, e o uso dos pronomes certos são tão importantes quanto a consulta
com o médico para que o paciente procurou o serviço. Então, nenhuma organização de serviço
pode acontecer sem que a equipe de profissionais seja devidamente preparada, como propõe
Januário. Assim, ele só considera que passará a “existir” quando houver o Ambulatório do Processo
Transexualizador na sua cidade. “Eu acho que os transexuais do estado do Ceará eles simplesmente
não existem ainda. A partir da inauguração que, do começo desse Ambulatório, que ele comece
realmente a funcionar e atender a demanda, é que nós vamos poder dizer que, ‘sim, nós nascemos,
nós existimos’”. Assim, a sua percepção da existência está atrelada ao alcance do serviço público
de saúde, é a via para seus direitos. Sem o ambulatório há o risco de saúde, e mais importante, um
risco de vida para aqueles que não tem o devido acompanhamento médico:
Tem pessoas trans que estão morrendo, tem pessoas trans que estão doentes. [...]. Do
movimento dos homens trans nós temos uma pessoa, um menino, que se hormoniza de
forma clandestina, sem acompanhamento, que hoje está com câncer. E isso é culpa de
quem? É culpa do Estado que não nos deu um aparato. Assim, quando eu falo culpa do
Estado porque eu sei, eu acompanhei o processo dele, ele bateu várias vezes no hospital;
houve um engano por conta do seu nome social, por conta da sua aparência e do seu
nome civil, e ele foi atrás de tratamento e não conseguiu, e hoje essa pessoa tá passando
por uma barra. Nós não queremos as pessoas tomando algo que não seja a quantidade
certa, que vai futuramente prejudicar sua saúde física e mental. Então, pra finalizar [...].
Espero que realmente o Ambulatório seja implantado, que funcione de forma que vá nos
amparar, e que nos faça nascer pra toda uma sociedade (Januário, 23 anos).
254
Januário finaliza seu discurso e outros representantes de instituições e organizações seguem
“com a palavra”. Reforça-se, assim, a perspectiva de que há direitos que são negados por não existir
um serviço específico para a transição de gênero e por não haver uma capilaridade no sistema de
saúde que garanta o acesso aos serviços que já existem para toda a população. A vida só poderia
ser vivida se alguém tem acesso a sua particularidade humana. E uma forma de atingir isso seria se
fosse garantida a mediação médica da transição. Outros falantes da mesa do Ministério Público, da
Defensoria Geral da União (DPU), vereadora e deputado estadual e coordenadores de políticas
LGBT locais seguem em uníssono. A grande questão está no direito negado. O direito a ter à
disposição um cuidado em saúde que não patologize, que não repita o sofrimento que vivem na
rua. É por essa via, sem deixar de fora o porquê se detém direitos ao Ambulatório, que homens
trans, travestis e mulheres trans irão na próxima etapa da Audiência desconsiderar o tempo máximo
de fala da “plateia”. Agora dão lugar a um motim para expressar suas opiniões, suas experiências e
suas dores.
Ato III
Havia o receio, naquela manhã, de que a Policlínica anunciada como destino futuro do
Ambulatório nunca fosse construída, e que o Hospital de Messejana seria como uma eterna forma
de prisão, de afastamento da normalidade por estar associada à saúde mental. Num dado momento
o representante da secretaria de saúde voltaria para os ativistas para dizer que o Hospital de
Messejana foi o único serviço da cidade que concordou em implantar o Ambulatório, portanto,
não há outro lugar. E que, além disso, é o serviço com maior experiência médica e vontade de atuar
na área. O debate que corre agora entre os pacientes e ativistas é se deveriam ou não aceitar. Se não
aceitarem Messejana, o serviço não irá sair agora, e para alguns, não se pode esperar, já para outros
seria melhor ter um lugar ideal ou não ter nenhum. A discordância ecoa no ambiente, e os ânimos
se afloram. Sucessivos ativistas vão à tribuna para mostrar que devem ir ao Ambulatório na forma
como se tem ofertado pela Secretaria porque assim se terá garantias de direitos. “Não estamos
recebendo favores, isso aqui é garantia de direitos”, diria Silvinha, travesti militante. Quando chega
a vez de Sílvio Lúcio, 53 anos – já mencionado –, ele toma o microfone e extrapola o tempo de
dois minutos dado pela mediadora da mesa, quebrando assim o protocolo. Ao redor vejo rostos
surpresos e alguns horrorizados. Outros batem palmas para a iniciativa e demoram a parar para
ouvi-lo:
Doutora, me permita, eu não aceito dois minutos, sabe por quê? Nós passamos trinta e
cinco anos na militância pra um dia chegar aqui e dizer pra senhora o que nós desejamos
e esperamos [...]. Nós ouvimos doze pessoas aí que tiveram os minutos que quiseram
para falar e para dizer o que vão fazer, e a senhora me dá dois minutos para eu dizer
como eu preciso e desejo ser atendido? É um desrespeito! (Sílvio Lúcio, 53 anos).
255
Nesse momento, boa parte do que Sílvio fala se tornou inaudível de onde eu estava sentado,
dados os aplausos e aos gritos de euforia que tomam o auditório. Quando a mediadora diz que
precisa fazer o trabalho chato, ele continua para afirmar que precisa falar. O silêncio retorna:
Bom dia a todos, bom dia a todas. Nós estamos aqui hoje. Eu me chamo Sílvio Lúcio,
homem trans, 35 anos de militância. O primeiro homem do estado do Ceará que ousou
dizer “eu sou homem”, Doutor. O primeiro homem no Brasil que se candidatou a
vereador com o nome de Sílvio Lúcio. O primeiro homem trans que foi a São Paulo
como um louco para procurar outro homem trans para dizer como é que eu escondia os
meus peitos. Eu sou Sílvio Lúcio, o homem que teria a coragem de ir a televisão e dizer
“eu sou homem”, e no outro dia eu ser chamado de louco na rua, e no outro dia minha
esposa ser apontada, e no outro dia a família dizer, “não nos procure mais porque nós
temos vergonha de você”. [...]. Todos vocês aqui eu me emociono. Nós somos Dandara.
[...]. Nós somos jogados de uma ponte todas as noites. [...]. Em todo o Brasil está
acontecendo um retrocesso de nossos direitos adquiridos! E nós hoje estamos aqui para
receber um Ambulatório TT. Não importa onde ele seja, ele podia ser nos fundos do
quintal da minha casa, tá certo!? [...]. Eu vou estar lá, eu vou estar lá, e quero ser recebido
como Sílvio Lúcio! [...]. Não importa, Doutora, se me chamem de louco porque eu vou
ao Hospital de Messejana, eu só quero que no Ambulatório eu seja reconhecido como
Sílvio Lúcio [...], atendido humanizadoramente (Sílvio Lúcio, 53 anos).
O discurso de Sílvio Lúcio se prolonga ainda longamente, demarcando que não é doente
por ser transexual, nem que deseja receber favor de médicos, mas que precisa e tem o direito a um
Ambulatório que tenha serviços de forma eficiente. Quando descreve a vida difícil de sofrimento
das pessoas trans e travestis, concorda com outra falante trans anterior de que “nós somos oriundos
das sombras da noite”. Mas, acrescenta a diferença entre elas, travestis e mulheres trans, e os
homens trans:
Mas para nós homens trans nem a noite sobra, nem o dia tem o sol porque nós.... Nós
não servimos nem pra prostituição, tá certo?! Muitos de nós não se enquadram no perfil
de cabeleireiro, o que sobrou pra nós? As escolas não nos cabem porque os professores
não nos respeitam, porque o professor é da Universal, outro é evangélico, outro é
católico. Como diz uma vereadora em Maracanaú esses dias [...], “Sílvio, eu não posso
votar contra meus princípios”. Que princípios, porra, eu sou um ser humano!? Deveria
ter princípios para não me violentar! (Sílvio Lúcio, 53 anos).
Sílvio finaliza sua oratória pedindo desculpas por ter ultrapassado o tempo, mas se justifica
dizendo que é muito difícil ser trans, que é muito difícil dizer a sua esposa para ter paciência que
conseguirão adotar um filho, que é muito difícil ser abordado como “ela” todos os dias mesmo por
pessoas que o conhecem há mais de quinze anos. Esse foi um momento de desabafo. Outros
presentes também falam posteriormente, mas se acorda em voltar a delimitar o tempo de cada um.
O que os discursos de todos têm em comum é quanto à urgência da implantação do Ambulatório
do Processo Transexualizador em Fortaleza, no Ceará, de que sem isso travestis e transexuais não
terão os mesmos direitos nem a mesma livre circulação e uma vida livre como outros cidadãos que
não são trans. Evidentemente que a questão do nome social também foi forte, mas ela esteve
256
atrelada ao cuidado em saúde principalmente para a transição de gênero acontecer com segurança.
Contudo, uma voz no final da Audiência questionou a presença do serviço num hospital de saúde
mental mais uma vez, e inferiu ser preciso esperar para que seja implantado na futura Policlínica.
Que se preciso fosse, seria melhor esperar dez anos pelo melhor lugar. Diante disso, vários ativistas
e pacientes começam a dizer a idade e quanto terão se for preciso esperar dez anos a mais. “Eu
tenho 53 anos, vou ter 63”, “eu terei 44”, “eu terei 40”. “Não podemos esperar”!
O representante da secretaria de saúde levanta, então, o questionamento de se realmente
querem o Ambulatório em Messejana porque o Governo irá reformar o prédio, contratar equipe,
e que é preciso ter cuidado com o dinheiro público. Nesse momento, todos voltam a falar ao
mesmo tempo até que a voz da maioria prefere o ambulatório para logo. Sem a transição, sem a
segurança médica que almejam, não podem viver em segurança no dia a dia na rua. Com o
adiantado da hora, já passam das 13 horas da tarde, todos ainda sem almoço, a fome apertando,
então decidem partir para a leitura e aprovação dos encaminhamentos do que foi discutido. Decide-
se, portanto, pela construção do ambulatório em Messejana porque não se pode esperar para viver.
***
A ideia de antiguidade da militância funciona como instrumento de legitimidade, como
vemos nos discursos de Sílvio, de modo que no caso dos transexuais isso seria mais recente e a
violência mais forte. E só agora esses ativistas teriam saído totalmente do que chamam das sombras.
Agora há destemor para lutar às claras, sem vergonha. E a isso atribui também a determinação de
ativistas jovens aos quais cita os nomes e agradece por não deixarem a “luta” morrer. A Audiência,
portanto, não é o início desse ativismo com vistas a constituição de um serviço dentro do SUS. Foi
um longo percurso até ali, embora também não tenha sido o final dessa história de engajamento
diante do Estado-nação brasileiro. Contudo, esse evento demarcou um importante momento para
a história do movimento social tanto para os direitos desse grupo social, como de um movimento
em torno do SUS. Essa junção se dá pela centralidade que o Ambulatório ocupou nos
agenciamentos políticos e sociais dos homens trans, de tal modo que isso fez e faz parte, mesmo
na sua ausência – e talvez mais por isso – da sua constituição subjetiva. O principal argumento que
ronda todas as falas dos militantes e/ou pacientes trans é a de que o sofrimento vivido se deve à
falta de cuidado em saúde apropriado. Sem o acompanhamento médico não é possível transicionar
em segurança, um discurso mais forte entre homens trans do que entre travestis e mulheres trans.
Essa segurança tem a ver com o corpo biológico, com a ausência ou diminuição de riscos, de tal
modo que se faz refletir no convívio social de um indivíduo diminuído em sua subjetividade por
causa do corpo em sua materialidade. Nesse campo, o corpo natural (biologicamente pré-dado)
257
não é visto como avesso aos aprimoramentos, construção ou correções biotecnológicas, nem
mesmo está em contrariedade com o argumento que estabelece haver uma diversidade humana que
pressupõe a defesa da transexualidade como uma dessas variações.
A audiência ofereceu naquele momento uma esperança que se demonstrou governar à
espera dos ativistas meses após o prometido para sua abertura. Assim, sua importância não está
apenas na exposição ou expressão dos campos de força atuantes na região. Como mostrarei a
seguir, embora não tenham sido os únicos em si, alguns caminhos trilhados pelos ativistas homens
trans foram decisivos para que a Audiência se tornasse possível, e para que o Governo estadual se
prontificasse com o compromisso de instituir o serviço. Ao entender como funciona a linguagem
estatal, homens trans de diferentes idades necessitaram inserir-se nela para serem ouvidos e para
que qualquer demanda fosse entendida como justa e necessária. Antes de discutir se os
encaminhamentos da Audiência foram ou não acatados e quais as suas reverberações, de modo a
entender como andou a criação efetiva do Ambulatório cabe descrever como homens trans se
conformaram como sujeitos e, portanto, como população que deve ser gerida pelo Estado para
que a Audiência se tornasse uma possibilidade concreta. Adoto a estratégia de escrita de voltar
agora às situações e experiências anteriores a esse evento que acabo de descrever para, então,
retornar aos engajamentos que foram posteriores.
5.3. Os caminhos da biopolítica
Meses antes da Audiência acontecer eu acompanhava Kaio numa de suas idas à Defensoria
estadual. A judicialização foi uma via poderosa encontrada por ele e outros ativistas trans não
apenas para impulsionarem ações coletivas, mas também para conseguirem efetivar procedimentos
e acessos a medicamentos para si próprios, bem como para procurar resolver conflitos cotidianos.
Eu estava na sua casa, onde ele me recebeu de braços abertos, para que eu pudesse acompanhá-lo
para realizar a pesquisa de campo. Acordamos cedo nesse dia, nem tomamos café, e saímos logo
para pegar um ônibus na calçada do IFCE, na central Avenida 13 de Maio. O bairro ao qual nos
dirigíamos era distante; pegamos um ônibus lotado e vamos em pé todo o percurso. Enquanto
tentávamos nos equilibrar o telefone de Kaio toca e a defensora estadual o avisa que ele deveria
procurar a Defensoria da União, que seria onde ele poderia judicializar algo contra a União. A
ligação foi bem vista por ele já que estávamos ainda distantes do nosso destino original, descemos
e chamamos um carro por aplicativo. Agora noutro ponto da cidade, chegamos na Defensoria da
União, mas, mesmo a defensora não podendo nos atender, ela desce até a recepção para uma
conversa rápida, e explica a Kaio diante de seu pedido de processar judicialmente uma instância
federal por estar sofrendo preconceito por ser um homem trans, que a DPU apenas trataria de
258
demandas coletivas, isto é, com reverberação coletiva. Saímos de lá de ônibus em direção ao centro,
para que ele fosse trabalhar. No caminho vamos conversando ainda sobre a luta pelo Ambulatório.
Ele, então, faz uma analogia paternalista explicando que o Estado não cuida, e é como um pai, e as
defensorias cuidam e ajudam, e, portanto, seriam como mães. Nessa imagem familiar, a mãe obriga
o pai a conceder aquilo de que se necessita. O que cabe reter dessa explicação não é nenhum
suposto caráter psicanalítico, mas como o conflito com o Estado é visto de maneira diluída, no
qual as instâncias estatais ora se dividem, ora se coadunam num mesmo sistema no qual formas de
opressão, concessão e companheirismo se materializam nada feitas a ideias simplistas. Nessa
interação é preciso entender a linguagem estatal e como se movimentar dentro das instituições, e
quando essa ou aquela administração se torna “o Estado”.
E, Kaio demonstra um domínio cirúrgico da legislação vigente e entende, como nenhum
outro interlocutor que conheci, o que é necessário fazer para se ter acesso aos mecanismos que
precisa para concretizar sua transição de gênero. De volta à sua casa, conversamos ainda sobre
como ele teve que manejar com outros ativistas uma pesquisa no intuito de demonstrar aos
defensores públicos o quanto de pessoas existiriam em Fortaleza, o quão grande seria essa
população e quais suas recorrências no campo da saúde. É baseando-se no argumento
populacional, de um problema que atinge a muitos e não apenas a um indivíduo, que Januário
critica o governo estadual dizendo que estados com “população menor” já teriam ambulatórios, ao
contrário de Fortaleza com um alto contingente. É a noção que movimenta todos os ativistas em
seus reclames. Na verdade, essa ideia também circulava entre os médicos que cheguei a entrevistar.
Tamanha foi minha surpresa quando fui contatado, via e-mail, por um médico de Fortaleza
que desejaria falar comigo sobre transexualidade. Um de seus alunos havia procurado publicações
de alguma natureza que fizessem alusão a hormonização de homens trans, foi quem intermediou
o contato e, posteriormente, me passou para conversar pela internet com ele para marcarmos uma
visita em seu consultório. Não pensei muito e achei a procura algo importante para a pesquisa
também, seria um momento de falar sobre a pesquisa. Uma pergunta que ele me fizera em seu
consultório me pareceu marcante. Ele queria me ouvir, saber o que eu sabia, se eu poderia informar
quantos homens trans haveria na cidade: “qual é a população?”. Eu estava no início da pesquisa, e,
portanto, pouco ou nada sabia nesse sentido, nem agora é possível inferir uma quantidade exata
porque não há meios para realizar essa conta. Mas trocamos o que sabíamos sobre o cenário local
de procura por cuidado em saúde.
Aliando-se isso as atividades dos ativistas de gerarem um quadro populacional para servir
em suas próprias ações coletivas, passei a observar como a inteligibilidade estatal de suas demandas
perpassava integralmente a condição de se erigir como uma população, e como tal possui
259
recorrências estatísticas no seu modo de vida, e na sua condição em saúde, e que desemboca na
qualidade e no acesso de direitos. Para tanto, um questionário a ser disponibilizado na internet foi
redigido e liberado para que travestis, homens e mulheres trans pudessem respondê-lo; o objetivo
visível ao respondente dizia: “Objetivo: Mapear Travestis, Mulheres trans e Homens trans do
Ceará, levar os dados colhidos para a Defensoria Pública da União. Por favor, responda ao
questionário que será entregue em abril de 2017”. Num total de quinze perguntas, o formulário
partia do nome, identidade social, cidade de moradia, e aquelas concernentes aos procedimentos
realizados ou não no âmbito das cirurgias e de atendimentos clínicos em endocrinologia,
fonoaudiologia, e ainda o psicológico, urológico, ginecológico, e formas de hormonização.
Percebe-se que a ideia é de gerar um mapa da cidade através do mapa dos seus cidadãos específicos
separados em um grupo social que pode ser contado em todas as características que importavam.
Com autorização dos interlocutores reproduzo abaixo gráficos com as estatísticas as quais
esses formulários chegaram, bem como as categorias presentes nas 114 respostas – das quais 79
vieram de homens trans – ao chamado da Atransce, entre fevereiro e abril de 2017. Isso nos ajuda
a entender o que os ativistas trans recobrem para gerar um quadro de que existem como uma
população, e como tentam replicar uma técnica de governo – a pesquisa censitária – para se
tornarem visíveis e para alcançar o olhar dos burocratas e dos políticos. Embora majoritariamente
da capital do estado, o formulário contou ainda com interlocutores moradores das cidades
cearenses de Crato, Acopiara, Sobral, Pacajus, Maracanaú, Irauçuba, Quixeramobim, Iguatu,
Caucaia, Aracati, Capistrano, Maranguape e Juazeiro do Norte. No âmbito identitário, o “Sou”
demarcava a pergunta e três respostas bem definidas (Homem trans, mulher trans, travesti) e um
espaço para outro (Figura 13)190.
Entre os respondentes apenas 16 pessoas tiveram algum contato ou mantém consultas
regulares com médicos ginecologistas. Dos médicos que estariam sem consultas periódicas, o
endocrinologista é o principal profissional erigido pelas respostas, de modo que tudo esteve
colocado em termos de ter um “acompanhamento” para poder iniciar a hormonização ou terapia
hormonal – as categorias mudam –, como chamam, em segurança ou “legalmente” para denotar
que a testosterona sintética no caso dos homens trans é regulada e controlada com receitas que são
retidas pelo Ministério da Saúde, mas que, de todo modo alcança-se a ideia de acompanhamento
190 Enquanto eu revisava esse capítulo a Atransce divulgava uma nova pesquisa de aspecto censitário focada na saúde de “homens
trans e transmasculinos”. Com um formulário longo e ainda melhor articulado, se pretende agora alcançar o Brasil inteiro numa
associação da organização cearense com outras de outras partes do país. Chamado de "Mapeamento da saúde dos homens
trans/transmasculinos demandas, cuidados, prevenções, atendimentos, saúde menta e HIV/AIDS no SUS", conta com a
participação da Rede de Pessoas Trans e Travestis Vivendo com HIV/AIDS (RNTTHP), Fórum Nacional de Travestis e
Transexuais Negros e Negras (Fonatrans) e a Rede Distrital Trans e apresentava o seguinte objetivo: “Este mapeamento tem como
objetivo apresentar e discutir as necessidades e demandas de saúde de homens trans/transmasculinos, bem como as prevenções
e cuidados relacionados ao HIV/AIDS/ISTs em busca de garantias de acesso e promoções de ações para cuidados integrais
de sua saúde no Sistema Único de Saúde (SUS)”.
260
médico com saúde ou de transição com saúde. Quanto ao tempo de administração de hormônios por
homens trans, especificamente, há uma variação entre dois meses a dezoito anos, e impera o uso
“sem acompanhamento” (80%), indiscriminado, como relatam, de modo que 53,6% já se
hormoniza, contra 46,4% que não. Adiante descrevem as práticas corporais em torno da
testosterona sintética, e os números seguem majoritariamente os produtos que coincidentemente
são mais baratos do mercado, de maior facilidade de venda e de potência hormonal acrescida
devido a maior quantidade de ésteres presentes191.
Figura 13 - Gráfico “Sou”
Outro
Sou
Travesti (Não
3% Binário)
1%
Mulher
trans
23%
Homem
trans
73%
Fonte: Atransce.
Ainda sobre cirurgias realizadas contam apenas duas “mamoplastias masculinizadoras” e
três “próteses mamárias”, contra todo o resto que ainda não realizou nenhum procedimento
cirúrgico requerido para transição de gênero, embora todos e todas tenham respondido desejar
realizar “redesignação” sexual e “próteses mamárias” (no caso das mulheres) e “mastectomia” (no
caso dos homens). Uma mulher trans foi mais específica ainda e listou cirurgias de “feminilização
facial (avanço da linha do cabelo, frontoplastia, blefaroplastia, recontorno mandibular, redução das
linhas de expressão, redução do pomo de adão)”, além de próteses mamárias. A desigualdade de
perspectiva desses procedimentos entre homens e mulheres responde também ao desenvolvimento
biotecnológico das técnicas presentes na abordagem biomédica, o que, como já vimos no capítulo
2, está diretamente relacionado aos lugares que esses sujeitos ocupam social e culturalmente.
Um outro formulário também criado pelos ativistas da Atransce percorria outro tema, o da
violência contra pessoas trans, obtendo bem menos respostas (30 no total). Quase todos e todas
relataram violência física por parte dos familiares, enquanto uma parcela menor adveio de estranhos
na rua. Um dos homens trans respondeu o seguinte quando uma pergunta inquiria sobre
abordagem policial: “Sim. Foi uma tortura psicológica muito grande. Eles me abordaram como se
eu fosse um vagabundo, já foram logo colocando a arma e pegando em mim, perceberam a faixa
191 Um éster pode ser entendido como uma unidade de medida de substrato sintético hormonal. Abordarei adiante as práticas
corporais, as estratégias políticas e as relações sociais que circundam e produzem os usos da testosterona sintética e de origem
orgânica pelos homens trans.
261
[bainder que comprime as mamas] e que eu não tinha volume foram logo perguntando que porra
era aquela e me xingando dizendo que eu era um vagabundo que ia fazer coisas ruins e eu sem
conseguir falar”. Já outro, escreveu: “Sim, eles riram e mandaram eu tomar jeito”. Noutra ocasião,
o policial teria liberado outro rapaz por ter percebido um “sexo feminino”. “Sim. O policial ficou
bastante constrangido e com certo medo, porque quando viu a identidade ele percebeu que eu era
do sexo feminino e que poderia dar queixa e me deixou ir”. Os relatos de violência seguem ainda
que 15 homens trans descreveram que sofreram algum tipo de assédio sexual ou estupro por
estranhos ou membros da família. Assim, tais formulários procuraram criar uma perspectiva do
que é a vida quando não se tem um cuidado em saúde garantido, principalmente no que tange à
transição de gênero que se tem se tornado, por falta de “acompanhamento com saúde” uma
condição de saúde e um direito humano para os interlocutores, isto é, se já tivessem acesso a uma
cirurgia de mamoplastia, os rapazes anônimos do formulário não teriam sido abordados da maneira
que foram pelos policiais, ora atribuídos a um lugar de mulher, ora a de um potencial fora da lei. A
carga moral de ambas as figuras potenciais é potente, e demonstra que a violência da rua é também
uma consequência da falta de cuidado em saúde que deveria ser garantido pelo Estado.
Não é o caso, contudo, de tomar as respostas a esses questionários como um retrato da
“população trans” de Fortaleza, sua exatidão estatística ou sua qualidade de survey não está aqui
sendo inferida, comprovada ou contestada porque seu valor recai noutra coisa. Assim, numa
linguagem estatística, importa menos querer saber se tais dados possuem “ruídos”, ou qual parte é
“não-relevante”, ou ainda qual seria em si a média ponderada, a mediana ou a moda dos números,
a frequência absoluta ou relativa das repostas, ou ainda se os criadores conseguiram delimitar
variáveis. Tais estatísticas demonstram a preocupação dos ativistas em relatarem um cenário de
abandono do “poder público”, e da “vulnerabilidade” de um grupo social numa linguagem
reconhecida, a dos números. Tem-se o uso político da estatística e de uma espécie de tentativa de
censo. O sofrimento necessitava ser quantificado. E, mais importante do que ser um “grupo” é ser
uma “população”. Foi a segunda dessas figuras que se procurou desenhar com tais formulários,
discursos e demais ações coletivas. Os homens trans descobriram, mais tardiamente que outros
nichos, que eles precisariam ser constituídos como população para alcançar de fato a existência
enquanto pessoas específicas que têm direitos específicos. O sofrimento deles poderia ser
traduzível para os números, de alguma maneira. Isso porque essa população tem recorrências que
deveriam ser explicitadas, padrões que deveriam ser tornados óbvios, definições que deveriam ser
claras e diretas, corpos que necessitariam se tornar visíveis, e uma diferença que, como tal, precisaria
ser descrita em comparação com os outros. Em suma, sua definição deveria atingir a ciência da
inteligibilidade estatal, procurando replicá-la, moldar-se às suas lógicas internas no tratamento e
262
concepção de seu objeto de engajamento: a população como um conjunto de seres humanos que
estão vivos. E os formulários da Atransce diziam: “vejam, nós estamos vivos como uma população,
e se o Estado-nação não se preocupar conosco estaremos condenados a parar a vida”. Assim, eles
desejam sair do polo de risco de suas mortes para a gerência de suas vidas.
***
O caso dos homens, e das pessoas trans em geral, no engajamento para a constituição de
serviços de saúde afirmativos – bem como os de fundo de geração de diagnóstico – se inscreve no
âmbito do encontro entre os conceitos de vida e de política. Um sem número de tentativas
acadêmicas tem se erigido no anseio de dar conta teoricamente dessa particular reunião ou relação.
Isso porque nosso tempo presente tem lidado, na terra brasileira e na conexão global, com crises,
atores e processos desencadeados pela interferência e debates acalorados sobre questões das mais
variáveis como a idade para se aposentar, cuidado em saúde, vigilância eletrônica em massa,
imigração, segurança, novas e assustadoras pandemias e epidemias, bem como o continuado
desenvolvimento de novas tecnologias que têm a capacidade de mudar e gerar conhecimento em
diferentes níveis sobre os corpos. Os exemplos seguem segundo demonstram diversas pesquisas
socioantropológicas, como a problemática da distribuição de medicamentos no caso do HIV/Aids,
a fome, a associação entre a ideia de raça, hábitos alimentares e novas doenças de contaminação
em massa, aborto, reprodução, o efeito climático da nossa relação com a natureza e a consequente
potencialidade de não sobrevivência da espécie humana, os testes de compatibilidade familiar e
ancestral através do DNA e o critério biológico associado ao reconhecimento de cidadania por
Estados, os revigorados pânicos sexuais, a luta de grupos pelo reconhecimento de suas condições
de saúde ou adoecimentos, o racismo estatal, a instituição das políticas públicas enquanto políticas
religiosas, as ansiedades em torno da superpopulação mundial. A lista talvez seja infinita. A vida,
assim, nunca esteve tanto no centro do poder de forma tão generalizada. E isso tem dado a forma
como governos e instituições se transformam, e a violência se espraia.
Isso não significa consenso entre as ciências sobre como abordar a vida. Discorrendo desde
a definição dada por Georges Canguilhem, para quem qualquer coisa que detivesse uma história,
que contivesse um nascimento e uma morte estaria viva, Didier Fassin (2017, p. 14) demonstra que
os filósofos desde Aristóteles tentaram conciliar um dualismo da vida: “conhecimento e
experiência, biologia e história” – claramente remetendo às formulações de Foucault. Essas duas
dimensões fariam da vida uma entidade a partir da sua forma material e da indeterminação do seu
curso. Nesse primeiro aspecto tem-se os seres humanos numa vasta comunidade de seres viventes
junto a plantas e animais, e no outro, como seres viventes excepcionais por decorrência da
263
capacidade de consciência e linguagem. Nas últimas décadas, porém, o autor aponta para um
recrudescimento dessa dupla face desenhada de modo irreconciliável. No seu senso biológico, o
estudo dos seres vivos mudou em escala e perspectiva, da mecânica quântica para o nível molecular
da biologia. “A descoberta da hélice dupla do DNA [...] constituiu a fundação de uma nova
concepção da vida, agora baseada na informação e na sua replicação” (p. 14). Nem mesmo a
epigenética contemporânea, segundo Fassin, conseguiu desafiar o paradigma gerado pela
decodificação do genoma humano que refinou as pesquisas que lhe foram anteriores sobre o DNA.
Assim, tanto a biofísica como a bioquímica explicam a vida em termos de uma molecularização da
“matéria vivente”:
Em suma, na exploração da vida como um fenômeno biológico, a mudança da conjuntura
para o experimento, do macroscópico para o microscópico, e dos corpos às moléculas,
tem progressivamente reduzido o entendimento da vida a sua mais básica unidade
material - a reunião de átomos –, enquanto que, simultaneamente, [tal explicação] se
expande massivamente em tempo e espaço: seres humanos são, inclusive, dissolvidos
numa rede espaço-temporal de componentes moleculares da vida surgida há bilhões de
anos e que pode estar presentes em outras partes do universo (Fassin, 2017, p. 14,
tradução minha).
Do outro lado desse duplo, a vida é reconstituída como biografia, como história, não tão
cumulativa quanto o sentido biológico. Tal instituição é traçada por Fassin desde os primeiros
novelistas na literatura que criaram uma forma mais ou menos linear de desdobramento de eventos.
Nas ciências sociais, por outro lado, “desde o início, ao longo dos desenvolvimentos importantes
na teoria e na metodologia pelos fundadores da disciplina, a história de vida tem tido um papel
central” (p. 15). Mas isso se intensificou com a “virada narrativa”, Fassin aponta; enquanto reação
ao estruturalismo com a crítica feminista e os estudos pós-coloniais, o reconhecimento dos
indivíduos, suas histórias e suas palavras tomaram a ordem do dia. Os subalternos não deveriam
mais ser objeto de fala, mas os sujeitos com vozes próprias.
Toda essa digressão realizada por Fassin empreende uma descrição das origens de duas
linhas traçadas para abordar a vida. À primeira deu o nome de “naturalista” e à segunda de
“humanista”. “As moléculas que indicam a presença da vida” e os indivíduos que contam os fatos
de sua própria história demarcam duas perspectivas diferentes e, pode-se dizer, em combate entre
si. Fassin se pergunta, portanto, se uma reconciliação entre tais dimensões seria imaginável ou
desejável no âmbito de uma antropologia da vida. Tradicionalmente, mesmo lidando com as vidas
dos “nativos”, seja de modo sincrônico ou diacrônico, estas eram o material para as análises de
outros objetos: parentesco, mitos, práticas religiosas etc. “A vida em si era raramente vista como
um objeto de conhecimento no mesmo nível que outras categorias”. Contudo, mais recentemente,
a vida foi construída como objeto na antropologia oscilando entre a linha naturalista ou a
264
humanista. A forma mais aproximada de combinar as duas perspectivas têm sido, para o autor, a
antropologia médica, “na qual a doença se situa no ponto de encontro entre biologia e biografia”
(Fassin, 2017, p. 16). Após longas considerações de abordagens internas a antropologia, entre o
fenomenológico – a vida teria um início e um fim num longo movimento –, o antológico – a vida
a partir da representação que é feita de todos os seres viventes –, e o culturalista – a vida como
concebida diferentemente em suas funcionalidades em cada localidade –, Fassin chega à conclusão
de que “uma abordagem totalizante interessada em constituir uma antropologia da vida parece,
assim, condenada a fracassar, ou ao menos, a abandonar o que nós poderíamos chamar de
humanidade da vida – as dimensões moral, política, histórica e social das vidas humanas como elas
emergem tanto da matéria viva como da existência vivida” (p. 17). Didier Fassin (2017, p. 13) está
preocupado em analisar o que chama de “economia moral da vida”, ou talvez seja mais apropriado
dizer, em como essa economia tem gerado desigualdades. Por essa economia ele entende, assim,
“a produção, circulação, apropriação, e contestação de valores e afetos, em torno de um objeto,
um problema, ou mais largamente, um fato social – nesse caso, a vida”, no modo como ela faz
sentido e é dada num certo período de tempo resultando em vidas valorizadas e outras
desvalorizadas. Um paradoxo engenhoso no governo da vida que estaríamos situados na
contemporaneidade.
Isso está associado aquilo que Michel Foucault demonstrou acerca tanto as ciências
humanas como das ciências exatas/naturais, que se produzem no mesmo sistema do poder sobre
a vida e sua instituição do indivíduo e de seu assujeitamento. O autor descreve como a conduta
humana foi anexada à ciência. Havendo aí uma diferença entre sua descrição pela literatura e sua
objetificação pelos saberes especializados. Em As palavras e as coisas, Foucault (1999a [1966])
estabelece uma análise aprofundada de como o homem se tornou objeto de conhecimento na
modernidade, argumentando para os problemas da noção de sujeito. Mas, em seu curso, Em defesa
da sociedade (1999b [1997]) ao se recapitular essa análise podemos ver que esses dois polos separados
por Fassin detiveram, na verdade, o mesmo germe. O intuito de Foucault era demostrar que as
ciências humanas não se desenvolveram como processo de racionalidade das ciências exatas. “[...]
O processo que tornou fundamentalmente possível o discurso das ciências humanas foi a
justaposição de dois mecanismos e de dois tipos de discursos absolutamente heterogêneos: de um
lado, a organização do direito em torno da soberania, do outro, a mecânica das coerções exercidas
pelas disciplinas” (Foucault, 1999b, p. 46). Assim, a vida como história e a vida como molécula,
embora possam ter potenciais políticos diferenciados, se rotacionam no mesmo eixo.
Por disciplina, Foucault (1988; 1999b; 2008a, 2008b) está se referido a uma forma de poder
que se desenvolveu entre os séculos XVII e XVIII e se sobrepôs à antiga formulação do poder
265
baseada na ideia de soberania. Essa última dizia respeito a uma teoria do direito segundo a qual se
justificava o soberano, o rei, deter o domínio sobre o território e sobre os súditos segundo sua
vontade e sua lei. Assim, o poder soberano se exercitava através de uma dupla ação chamada pelo
autor de “fazer morrer e deixar viver”. Mas isso acontece de forma limitada. Quando o soberano
envia seus súditos à guerra ou quando os sentencia à morte o faz como justificativa de se proteger
e de proteger sua lei. É uma forma indireta de dispor das vidas. O direito de vida e morte é
condicionado à defesa do soberano e a sua sobrevivência enquanto tal. Assim, na idade clássica, o
Ocidente muda os mecanismos de poder, e o “confisco” – de riquezas e das terras que antes eram
o centro do poder – passa a ser apenas uma de suas formas. “Com isso, o direito de morte tenderá
a se deslocar ou, pelo menos, a se apoiar nas exigências de um poder que gere a vida e a se ordenar
em função de seus reclamos” (1988, p. 128). O corpo social, os corpos de todos, e não apenas o
do soberano, passa a ser o alvo da proteção. Mas essa “proteção” não é aquela que geralmente se
conjura, mas proteger para produzir. Ao poder disciplinar Foucault está relacionando todo um
conjunto de disciplinas que visavam moldar os corpos dos seres humanos segundo tecnologias que
serão desenvolvidas192 como a escola, a prisão, o lugar de produção, como a fábrica e o hospital.
As disciplinas fazem com o corpo um exercício contínuo para aumentar suas capacidades, suas
forças, aumentar também sua utilidade em prol do sistema econômico capitalista então nascente.
A isso deu o nome de anátomo-política do corpo humano, uma vez que é ao corpo em sua
produtividade e em sua capacidade física que se refere a reflexões em torno do aprendizado e da
ordem da sociedade.
Essa dimensão da mudança do poder é fundamental porque ela se integra junto de outra
que já foi várias vezes aqui referida, a biopolítica ou o biopoder. Formar-se-ia mais tarde, na metade
do século XVIII, e se centra no corpo não como anatomia, mas como o limite da espécie humana.
Poderia ser dito que antes a política usa do corpo na sua superfície como uma máquina para,
posteriormente, atravessá-lo, isto é, “no corpo transpassado pela mecânica do ser vivo e como
suporte dos processos biológicos: a proliferação, os nascimentos e a mortalidade, o nível de saúde,
a duração da vida, a longevidade, com todas as condições de que podem fazê-los variar; tais
processos são assumidos mediante toda uma série de intervenções e controles reguladores: uma
biopolítica da população” (Foucault, 1988, p. 131). Temos, assim, uma verdadeira relação de
reciprocidade, de um lado o desempenho do corpo e do outro os processos da vida, levando-se a
considerar que não é possível se referir à última sem observar a primeira porque ao mesmo tempo
que as disciplinas do corpo são criadas, cria-se também a preocupação com elementos da vida
192 Não adentrarei no desenvolvimento histórico desse poder. É possível conferir Segurança, Território, População (2008a) e Nascimento
da Biopolítica (2008b), nos quais Foucault demonstra mais pormenorizadamente esse poder sobre o corpo, o inserindo num quadro
amplo do surgimento do liberalismo econômico.
266
humana em um ritmo observável como um conjunto de problemas, os quais se referem a
natalidade, saúde pública, habitação, migração, longevidade, entre outros. Isso chega, segundo
Foucault (1988, p. 131-2), à “sujeição dos corpos” e no “controle das populações” e dá-se início “a
era do bio-poder”.
“Sem a menor dúvida, [esse tipo de poder] foi elemento indispensável ao desenvolvimento
do capitalismo, que só pôde ser garantido à custa da inserção controlada dos corpos no aparelho
de produção e por meio de um ajustamento dos fenômenos de população aos processos
econômicos” (Foucault, 1988, p. 132). Agora, o que antes era a prerrogativa do soberano de “fazer
morrer e deixar viver” torna-se o contrário, e o Estado, no seu processo de tornar possível sua
majoração do poder econômico coloca a vida no plano central, fazendo viver e deixando morrer
os indivíduos eles mesmos produzidos pelo que geralmente se acha ser ao que se resiste, isto é, as
pessoas seriam o ponto de resistência ao poder. Mas Foucault (1999b, p. 35) vai demonstrar que
esse indivíduo é o produto do poder sobre a vida e sobre o corpo como máquina e não algo surgido
fora dele para impedi-lo. Essa tecnologia é, portanto, de dupla face, ela produz o sujeito que
assujeita, e faz com que esse mesmo sujeito se institua como tal por sua própria vontade. O
biopoder e a anátomo-política – a disciplina do corpo e a regulação da população – são
instrumentos da dominação da classe burguesa. E esse controle burguês atingiu e interveio em
todos os níveis da vida humana em seus lados históricos e celulares. Esse tipo de poder não
descarta, assim, o fazer morrer. Foucault demonstrou que várias contradições se materializam nesse
cenário, como a pena de morte, a guerra (matar para viver). Assim, a morte, o matar, serve de
ferramenta para fazer viver, mas fazer viver o contrário daquilo que se mata e que morre. Não
apenas pela ação da figura do Estado e seus mecanismos de poder e disciplinamento; esse poder é
generalizado, ele perfura o corpo social de tal maneira que ele não está nas mãos de uma pessoa
específica, ele circula. Para entender o poder o autor levanta uma precaução de método e com isso
o conceitua:
Não tomar o poder como um fenômeno maciço e homogêneo – dominação de um
indivíduo sobre os outros, de um grupo sobre os outros, de uma classe sobre as outras –
; ter bem em mente que o poder, exceto ao considera-lo de muito alto e de muito longe,
não é algo que se partilhe entre aqueles que o têm e que o detêm exclusivamente, e aqueles
que não o têm e que são submetidos a ele. O poder, acho eu, deve ser analisado como
uma coisa que circula, ou melhor, como uma coisa que só funciona em cadeia [...]. O
poder funciona. O poder se exerce em rede e, nessa rede, não só os indivíduos circulam,
mas estão sempre em posição de ser submetidos a esse poder e também de exercê-lo.
Jamais eles são o alvo inerte ou consentidor do poder, são sempre seus intermediários.
Em ouras palavras, o poder transita pelos indivíduos, não se aplica a eles (Foucault,
1999b, p. 35).
Isso lança um olhar claro sobre a continuação desse poder biológico e disciplinar entre os
indivíduos, uns contra os outros, não de modo hobbesiano, mas no sentido de que a morte e o
267
assujeitamento não se dão apenas entre a população de um Estado em relação a de outro, se dá
internamente. Mas isso não significa uma democratização do poder em sentido lato porque esses
mecanismos de controle funcionam ao lado de mecanismos de exclusão, de uma aparelhagem de
vigilância, da medicalização da sexualidade que geram o que Foucault chamou de “micromecânica
do poder” (Foucault, 1999b, p. 38). Mas, se esse poder gera a ideia de população como algo tão
importante assim, o que ela é? Elas são as estatísticas que as descrevem apenas? Que problemas
são esses a partir dos quais se refere e é possível entendê-la? Ela não é simplesmente a totalidade
de habitantes.
A população aparece nas discussões de Foucault como um problema deduzido de outro
problema, esse anterior em concretude, que diz respeito a preservação da série de indivíduos e de
seu comportamento como membro dessa aglutinação estatística e recorrente de seres vivos. Em
diferentes análises o autor dá exemplos, como a escassez de alimentos na Europa – que o autor
analisa a partir das considerações de economistas (Foucault, 2008b, p. 40) – e as grandes pandemias,
como a peste bubônica analisada quando de sua administração francesa que ocasionou, junto com
outros contextos, o nascimento da medicina social (Foucault, 2012a). Contudo, a população não é
uma noção totalmente nova, embora seja tão central para a biopolítica e como tal versão tenha
surgido no século XVIII. Essa velha ideia é chamada de “negativa” porque se referia apenas a uma
falta de membros súditos do soberano em caso de uma grande mortandade desencadeada por
pandemias, fome, desastres climáticos ou guerras. Foucault explica a população da mesma maneira
que explicou o poder soberano, sua definição estava posta naquilo que era seu contrário: população
sendo observada quando havia uma depopulação, e a vida quando havia o morrer. Passa-se do
“gênero humano” para a “espécie humana”, aí tem-se a transformação de onde departe o poder.
Mas, com a mudança para o fazer viver vem também a mudança do tratamento dessa massa de
indivíduos agrupados num todo articulado que se integra e que é influenciado pelas suas condições
de subsistência. Dá-se lugar a noção de população em sua forma “positiva”: ela tem uma natureza
própria sobre a qual o poder deve investir. Constitui-se, portanto, a criação da ideia de
“naturalidade” da população dada por seu meio geográfico, seu meio de produção, seu conjunto
de condutas. Ela “é um conjunto de elementos, no interior do qual podem-se notar constantes e
regularidades até nos acidentes, no interior do qual pode-se identificar o universal do desejo
produzindo regularmente o benefício de todos” (Foucault, 2008a, p. 98). E é por meio dessas
variáveis que se pode modificá-la. Isso leva ainda a ser necessário assinalar que é a propósito da
“arte de governar”, como explicou Foucault se tratar uma racionalidade de governo, uma
governamentalidade, que se teria a população e se teria o homem como figura entronizadas pelas
ciências humanas:
268
É a partir da constituição da população como correlato das técnicas de poder que
pudemos ver abrir-se toda uma série de domínios de objetos para saberes possíveis. Em
contrapartida, foi por que esses saberes recortavam sem cessar novos objetos que a
população pode se constituir, se continuar, se manter como correlativo privilegiado dos
modernos mecanismos de poder (Foucault, 2008a, p. 103).
Então, temos assim duas séries apresentadas por Foucault: a série corpo-organismo-
disciplina-instituição e a série população-processos biológicos-mecanismos de regulação-Estado.
Isso porque o poder disciplinar e o poder biológico se dão em áreas distintas, embora não se possa
perder de vista sua atuação simultânea. São duas “formas básicas” do poder sobre a vida. A
“tecnologia disciplinar” orienta e controla o corpo individual, enquanto a “tecnologia de governo”
que alça a população através de uma “tecnologia de segurança”, e que procura se direcionar às
características de massa do “corpo social”, tem como alvo também suas condições de variação. O
intuito é prevenir e compensar os perigos e riscos da sua existência como uma entidade biológica
(Foucault, 2008a). Esse foco na população como objeto de engajamento da nova racionalidade de
governo fará, por exemplo, Didier Fassin (2017) argumentar que o verdadeiro foco da biopolítica
não é a vida, o que Foucault teria negligenciado ao discorrer sobre o seu conceito. Para isso, Fassin
sugere o conceito de “políticas da vida”. O primeiro termo estaria ligado à população, e o segundo
faria justiça aos elementos biológicos da vida tomados pelo poder. Evocando filósofos políticos
como Hannah Arendt, Ferenc Fehér e Agnes Heller, o autor propõe explicar que o conceito de
biopolítica não representaria apropriadamente a relação entre política e vida, e com isso não se
ultrapassaria na análise nada além da população e da governamentalidade. A biopolítica estaria
interessada em tecnologias empregadas, nas análises dos problemas e soluções cujo foco seria
apenas a figura da população, tendo como direção certa a demografia e a epidemiologia para
identificar prioridades de saúde e uma infraestrutura para intervir com maior eficácia. Já uma análise
em termos de “política da vida”, para Fassin, olharia para “como o reconhecimento da vida como
um bem supremo justifica a violação da soberania do Estado” (Fassin, 2017, p. 52-3, tradução
minha). Fassin então sumariza sua proposta conceitual: “a biopolítica trata do enquadramento de
governo dos seres humanos, enquanto a política da vida pertence a sua substância. Um está
interessado nas técnicas e racionalidades da administração da população, enquanto a outra foca na
diferenciação no tratamento das vidas e de seus sentidos em termos de valor desigual”.
Isso se refere, segundo Paul Rabinow Nikolas Rose (2006) às transformações que a
Biopolítica sofreu desde o século XX. Os autores demonstram que:
As racionalidades, estratégias e tecnologias do biopoder mudaram ao longo do século
XX, assim como a administração da saúde e da vida coletiva tornou-se um objetivo chave
de Estados governamentalizados, e novas configurações da verdade, do poder e da
subjetividade surgiram para dar suporte às racionalidades do bem-estar e da segurança,
assim como aquelas de saúde e higiene [...]. No século XX, os Estados não apenas
269
desenvolveram ou apoiaram mecanismos de segurança, mas também acolheram,
organizaram e racionalizaram os fios soltos da provisão médica, especificaram e
regularam padrões de habitação, engajaram-se em campanhas de educação de saúde e
coisas similares (Rabinow; Rose, 2006, p. 24).
Mas o tempo presente não se resultou apenas de tais mudanças. Novas “formações
coletivas” surgiram entre os séculos XX e XXI, acompanhadas de novos modos de individualização
e ideias de autonomia aliadas a direitos à saúde, à vida, à liberdade, entre outros, que é
crescentemente percebida nos termos corporais e vitais (Rabinow, 1996; Rose e Novas, 2005; Rose,
2001). Seguindo tais pesquisas, Rabinow e Rose (2006) concluem que essa face atual da biopolítica
“opera de acordo com a lógica da vitalidade, não da mortalidade: apesar de seus circuitos de
exclusão, deixar morrer não é fazer morrer”. Ou, como disse Fassin (2004), estamos na
contemporaneidade diante de bio-lógicas. Assim, “podemos usar o termo biopolítica para abarcar
todas as estratégias específicas e contestações sobre as problematizações da vitalidade humana
coletiva, morbidade e mortalidade, sobre as formas de conhecimento, regimes de autoridade e
práticas de intervenção que são desejáveis, legítimas e eficazes” (Rabinow e Rose, 2006, p. 24). Mas
isso não significa uma saída dos conceitos foucaultianos. Os antropólogos propõem que o conceito
de “biopoder” na atualidade deva incluir os elementos seguintes: 1) “discursos de verdade sobre o
caráter vital dos seres humanos” – e isso não implica uma solidão para os argumentos biológicos,
podendo eles se unirem a estilos outros como demográficos e sociológicos; 2) “estratégias de
intervenção sobre a existência coletiva em nome da vida e da morte” – sejam populações
“desterritorializadas” ou “coletividades emergentes”; e 3) “modos de subjetivação” – os indivíduos
são levados a cuidar de si mesmos em nome da própria saúde ou vida, da família e/ou de alguma
coletividade (Rabinow e Rose, 2006, p. 29). Juntos, esses três âmbitos levantados pelos autores
continuam, portanto, a força analítica das constatações de Foucault.
Assim, no campo da governamentalidade do Estado entra em ação o terreno do “social” –
os “corpos não-estatais” como organizações, pesquisadores, médicos, feministas e todos os outros
tipos de reformadores sociais –, fazendo com que esses organismos atuem no âmbito do biopoder.
Isso provoca um processo que dá lugar ao surgimento de novos tipos de grupos de indivíduos,
que, segundo Rabinow e Rose (2006, p. 36-7), definem suas cidadanias quanto se imbuem ao direito
à vida, à saúde, e também à cura. É isso que fazem os ativistas e pacientes trans ao reclamarem para
si um cuidado de saúde diferenciado, ao lado de outras garantias sociais de bem-estar. Outro
elemento de sua reforma social – aliado dos outros já mencionados – se deu na eloquência política
em torno do assassinato da travesti Dandara dos Santos, de 45 anos.
Dandara, que até o seu terrível assassinato era praticamente desconhecida, tomou a cena
política e social do ativismo de gays, lésbicas e pessoas trans primeiro no Ceará e depois a nível
270
nacional. Não me cabe analisar de maneira exaustiva os contornos sociológicos de sua morte, mas
como ela adentrou nas vicissitudes da política. No dia 15 de fevereiro de 2017, Dandara foi
torturada com diferentes formas de espancamento e posteriormente alvejada com tiros à queima
roupa, tendo a ceifa de sua vida concluída com uma paulada que lhe causou traumatismo craniano.
A violência letal de travestis, e de outras pessoas trans e homossexuais, é particularmente intensa e
carregada de detalhes aterrorizantes no Brasil contemporâneo (Bento, 2014, 2016; Carrara e
Vianna, 2006), de modo que sua questão é um grande tema do ativismo que se desenvolve no
país193. Mas a morte de Dandara apresentou um elemento novo: tudo fora gravado com o auxílio
de uma câmera de celular por um dos culpados194. Três dias após sua morte, um vídeo circularia
largamente por toda a internet, sendo amplificada sua veiculação inclusive por ativistas. Redes
sociais como Facebook, Twitter, e inclusive aplicativos de mensagens como o WhatsApp
receberiam o compartilhamento em massa da filmagem da via crucis de Dandara.
É possível observar a moça com uma camisa amarela na mão usada para limpar seu sangue,
sentada numa área cimentada, pedindo para parar de apanhar. Estava em plena luz do dia, numa
rua do bairro residencial Bom Jardim. A sua volta, além dos assassinos, outras pessoas presentes
na rua testemunhavam o ocorrido e gritavam incitando a violência. Noutro vídeo, posteriormente
em circulação, aparecem cinco homens a espancando junto da verbalização de insultos tentando
fazê-la subir num carrinho de mão: “Suba, suba! Não vai subir, não?”. “Viado fêi”. “Sobe logo! A
‘mundiça’ tá de calcinha e tudo”. Tais vídeos atingiram ampla repercussão195 a ponto de chegaram
a ser comentados pelo Governador do Ceará Camilo Santana (PT) e pelo Prefeito de Fortaleza
Roberto Cláudio (PSB) que emitiram notas públicas acionando suas respectivas secretarias de
segurança e direitos humanos. Diria o governador: “total empenho no sentido de identificar e punir
cada um dos criminosos”196. A comoção continuava também através dos comentários de anônimos
nas notícias dos jornais, uns criticavam a presença da matéria ao indicar haver temas mais
importantes, e outros pediam a morte dos assassinos197. A isso se seguiram manifestações de
193 A Associação Nacional de Travestis e Transexuais, ANTRA, é uma das principais ONGs a realizar um trabalho de levantamento
detalhado de cada morte por decorrência de preconceito de gênero e sexual, e lançam, anualmente, um relatório de assassinatos
com fotos e informações sobre o crime e a vítima. Algo similar é realizado pelo Centro de Referência Janaína Dutra em Fortaleza,
Ceará. Para conferir o último dossiê lançado pela ANTRA, referente a 2019, conferir:
.
194 Ao todo foram seis suspeitos, sendo cinco menores de idade, todos homens, e foram levados a júri popular, e seguidamente
considerados culpados durante julgamento no 1º Salão do Júri do Fórum Clóvis Beviláqua, em Fortaleza. As penas recebidas foram
individualizadas, mas todos foram condenados. O julgamento teve início no dia 4 de março de 2018. Na época, os ativistas que
acompanhei tentaram ocupar assentos durante o julgamento, mas havia poucos disponíveis. Quem não conseguiu entrar ficou do
lado de fora segurando faixas de protesto e emitindo palavras de ordem. Algo bem visto pelos ativistas foi o enquadramento do
caso como “preconceito, ódio e atordoamento”. Inclusive foram utilizadas durante o julgamento as palavras homofobia e transfobia.
Os assentos foram de difícil acesso, e não consegui nenhum, nem tantos outros ativistas que também desejavam estar presentes.
Para acompanhar a cobertura jornalística, cf. . Ver também O Povo, 10 mar. 2017.
195 Tribuna do Ceará, 5 mar. 2017.
196 Tribuna do Ceará, 4 mar. 2017.
197 Nexo Jornal, 14 fev. 2019.
271
protesto pedindo “justiça”, e que foram também noticiadas pelos jornais locais198. Inclusive, um
livro de memórias biográficas chegou a ser escrito por uma amiga de Dandara e fora publicado
recentemente199, fazendo coro a obra de arte que levou seu nome e que foi projetada por um artista
brasileiro e exposta em Nova York200. O alcance foi generalizado. Mass isso não se deu
simplesmente por causa da mídia, da gravação. Os ativistas fizeram desse evento um fato, a prova
de suas reivindicações. Durante o campo pude observar tais articulações, de modo que isso foi
incluído em suas demandas por saúde: o fato que tais assassinos fossem julgados e presos.
Além de Dandara, outras travestis apareciam constantemente nos jornais como tendo sido
espancadas ou mortas principalmente em Fortaleza e região metropolitana, além de suicídios. Pode-
se perguntar, contudo, o que fez os assassinos gravarem vídeos do crime, sem levar em conta que
estariam gerando provas irrefutáveis contra si mesmos. Talvez a certeza da impunidade? E se
olharmos para esse terrível evento e virmos que o que moveu o crime e sua gravação foi esse
atravessamento do poder sobre a vida, paradoxalmente manifestado no direito de matar, que se dá
nos indivíduos e confirmado pelo “deixar morrer” estatal? Estava acontecendo ali a continuação
da política. E isso gerou um grande mote ao enfrentamento, para a resistência, dos que ainda
estavam vivos em prol do combate dos motivos que levaram os jovens adolescentes a se sentirem
autorizados e empossados de tamanho poder para limpar o outro, ou como diria Berenice Bento
(2014; 2016) a respeito de outros casos de crimes letais e violência física, o trabalho de uma assepsia,
quer dizer, o matar para limpar a si mesmo. Mata-se o outro para poder ter a própria vida que foi
questionada continuada, ou melhor, sentida como ameaçada pela simples existência alheia. E, mais
ainda, segundo a autora, tais corpos se tornam arquivos vivos da história de um drama daqueles
marcados pela margem brasileira. Se o poder biológico, esse poder de engajamento populacional,
da vida como espécie humana não está contido nas mãos do Estado, mas distribuído por
instituições subestatais, e ainda, circulam entre os indivíduos e o poder, os jovens rapazes
exerceram tal vislumbramento da limpeza moral que representa o aniquilamento da vida. O suplício
de Dandara passou a representar, na luta por direitos em saúde, a prova do que dizem os ativistas
sobre estarem à mercê quando não são incluídos pelo Estado-nação na população que governa.
Com isso, os ativistas mostravam que o que aconteceu com Dandara não aconteceu apenas com
ela, porque além dela não ter sido a primeira das vítimas contadas nos milhares, poderia muito
facilmente não ser a última. O crime contra Dandara era, portanto, um crime contra toda a
198 Tribuna do Ceará, 7 mar. 2017.
199 O Casulo Dandara (2019), escrito pela policial civil investigadora do caso Vitória Holanda, foi lançado durante a XIII Bienal
Internacional do Livro do Ceará, em Fortaleza, no dia 21 de agosto de 2019 e teve distribuição gratuita.
200 Blog Gay, 2 de jan. 2020. Criada pelo artista Rubem Robierb, a escultura, que leva o nome Dandara, é um par de asas brancas de
borboleta, feita de fibra de vidro e fixada numa base de aço; possui 10 metros de altura e 13 metros de largura. Compõe, ainda, a
série artística Máquina dos Sonhos, e foi anunciada para ser exposta de modo permanente em Miami, nos EUA.
272
população de gays, lésbicas, travestis e transexuais. Daí o sentido do termo usado pelos ativistas de
“LGBTfobia”. A violência contra essas pessoas se transformou num dado demográfico, e
epidemiológico.
Por isso que, em segundo plano, a referência feita a Dandara durante a Audiência Pública
ser um argumento inalienável. Circulava, ainda, antes deste evento, que o Governador havia sido
sensibilizado pelo que acontecera da violência letal, tornando o pedido pelo Ambulatório tão
irrecusável. Assim, as estratégias dos interlocutores para que se concretizem suas demandas de
acesso à saúde, à estrutura pública de saúde, que lhes é condição para conseguirem viver em
segurança perpassa tanto e faz sentido nos termos do poder sobre a vida. E isso se associa, talvez
como pontos que se unem e fecham um círculo, à procura pela Defensoria em primeiro lugar, à
realização do censo pela Atransce, à própria Audiência, ao lugar central do cuidado em saúde, aos
reclames pelo nome social. A vida desta população parece, portanto, ficar visível como tornava o
poder soberano, quando se dispunha de suas mortes. Assim, a ideia de risco costura essas e outras
táticas. Risco para saúde física e mental desencadeado principalmente pela ausência de
“acompanhamento seguro”, e consequentemente pelo que tudo isso provoca: falta de
correspondência sexo/gênero/desejo e que gera um alvo da violência física e morte, interação
medicamentosa ou instabilidade hormonal – porque fora dos padrões desejados para fins
específicos – e doenças que podem daí surgir e a diminuição da longevidade. Essa ideia de risco
em saúde – e saúde em risco – está presente em todas as discussões que já realizei até aqui, como
nas preocupações de Marinalva (capítulo 2), nas intersecções entre transição e experiências da
doença, bem como nas entranhas do diagnóstico (capítulo 3) mesmo que elas difiram como irão se
diferenciar outras formas que irei descrever ao longo do restante da tese. Os termos, portanto, são
de vitalidade, e entram no cenário da biomedicalização, da moralidade do cuidar da própria saúde
e de fugir dos mecanismos biopolíticos de exclusão – no restante do capítulo esses elementos
ganham profundidade junto da teorização dessa noção de risco. Não apenas fuga, mas de
transformação, de mudar tais mecanismos para aqueles de governo.
Mas e quanto às consequências sociais disso para a formação de sujeitos? Se, como mostrou
Foucault em diferentes ocasiões (1988; 2006 [2001]; 2008a, principalmente), um dos resultados – e
ainda mais, o próprio pré-requisito – do poder sobre a vida é gerar sujeitos e uma verdade sobre
eles, como essa constituição de corpos é reinstituída quando são esses corpos, esses indivíduos
atravessados pelo poder em resistência que lutam de volta na linguagem da biopolítica, replicando-
a e transformando-a dentro de suas estratégias?
Os homens trans, grupo político a partir do qual desenvolvi essa etnografia – apesar desse
estudo os extrapolarem de muitas maneiras –, aprenderam essa linguagem dos direitos e formaram
273
suas prerrogativas nos termos de uma “transição em segurança” e de uma segurança posterior por
causa da qual a formação de uma percepção de existência enquanto população é tão importante.
Como continuarei a mostrar ao longo do restante do capítulo, essa segurança é construída como
biológica e é também política. Mas, antes de adentrar nos meandros dessas práticas e questões
propriamente ditas cabe entender “onde tudo começou”. Por isso, discorro a seguir acerca dos
primeiros cenários nos quais os interlocutores se uniram e começaram a se mobilizar, aprendendo
esse trabalho biológico da transição e a linguagem dos direitos. Isso se deu quando conheceram
uns aos outros num serviço de saúde que não fora projetado para eles. Agora, volto ainda mais na
reconstrução de um passado recente da mobilização política: da dispersão ao associativismo até
alcançar, entre idas e vindas, uma análise etnográfica de questões e acontecimentos posteriores a
Audiência Pública, e que tocam nas experiências dos homens trans no campo de práticas e dos
saberes.
5.4. Breve recurso à história de um começo
As primeiras interações nas quais estive inserido traziam o nome de um serviço de saúde
que atendera, de modo especializado, pacientes transexuais e travestis operacionalizado na sua
maior parte por médicos voluntários e estudantes residentes. Durante muito tempo os
interlocutores, de todos os lados, falavam como num código indiscernível para mim sobre isso.
Não entendia o que exatamente e como tinham se desenrolado conflitos que pareciam ter sido a
animação do lugar. Nem um nem outro (ex-)paciente ou profissional queria muito se deter em
detalhes, mas era patente que todos tinham algum tipo de queixa, as quais me relataram
posteriormente. Apenas com o aprofundamento da nossa relação que comecei a entender o que
antes parecia um borrão201.
Tratava-se do Atendimento Ambulatorial em Sexualidade Humana, criado em 2009,
conhecido pela sua sigla, ATASH, do Hospital de Saúde Mental Prof. Frota Pinto (HSM)202, e
localizado no bairro de Messejana. A imagem que se desenhava era de ter sido foco de grandes
201 Escrever sobre isso, contudo, não deixa de cair no risco da má percepção sobre se eu estaria tomando essa ou aquela posição, se
levaria a sério essa ou aquela perspectiva, e se ao fazê-lo estivesse anunciando a verdade sobre o mundo vivido como se, ao falar
sobre ele, estivesse afirmando como ele deveria ser. Isso porque, como mostrou Bourdieu (2002), a dificuldade de se transmitir um
discurso científico sobre o mundo social se dá porque boa parte dos discursos sobre ele se trata de um discurso normativo, de modo
que fala-se dele para afirmar se vai bem ou mal: “quando você diz as coisas são assim, pensam que você está dizendo as coisas devem ser
assim, ou é bom que as coisas sejam dessa forma, ou ainda o contrário, as coisas não devem mais ser assim” (Bourdieu, 2002, p. 14, destaque do
autor). E essa dificuldade se duplica quando consideramos que descrevemos etnograficamente as experiências sociais tais como se
apresentam para os indivíduos que as vivem e elaboram discursos sobre elas de acordo com a legitimidade que desejam construir
com suas expressões (Bruner, 1986a).
202 Gerido pelo Governo do Estado do Ceará, o HSM é o principal serviço de saúde mental do SUS da região. Conta com uma
residência médica em psiquiatria, com assistência de 9 ambulatórios, psicoterapia, dois hospitais-dia, internação psiquiátrica, pronto-
atendimento, atenção à infância e adolescência, a dependentes químicos e a outros atendimentos na área, totalizando 180 leitos de
internação.
274
contendas no âmbito da relação médico-paciente. Dentro desse período “memorializado”, o
ATASH não funcionou como Ambulatório do Processo Transexualizador, mas sim voltado aos
“transtornos da sexualidade”, principalmente no campo das parafilias203. Num primeiro momento,
imaginei que a forma como as pessoas trans começaram a frequentar o serviço teria se dado por
uma propaganda boca a boca entre pacientes, que, sabendo do tema da sexualidade teria atraído
travestis, depois mulheres transexuais e por fim os homens trans. Apesar desse movimento ter se
realizado, uma outra grande via de acesso foi indicada como sendo de adoecimento mental:
O ATASH não é um Ambulatório Transexualizador, ele é um ambulatório de transtornos
de sexualidade humana. Ele vai trabalhar essas questões das parafilias. E, como nós
[trans] estamos ancorados ainda na CID, era o local mais conveniente da saúde pública,
de ser tratado, de ser acompanhado. E também não é do interesse da medicina estudar
essa questão, trabalhar essa questão, então... ou seja, nesse ano de 2014 ou até
anteriormente a isso, não existia assim um interesse da medicina nesse sentido. Existia
um número muito pequeno, muito restrito de pessoas que não estavam interessadas em
ser estudadas, mas estavam interessadas em fazer esse acompanhamento, mas não porque
elas queriam algo saudável, no sentido de medicamentos, mas porque a grande maioria
desse número pequeno fazia um outro processo que era a depressão; o adoecimento da
depressão (Kaio, 38 anos, 2018).
Entretanto, a despeito dos objetivos iniciais, o serviço ganha um rumo diferenciado para
todos os atendentes e profissionais quando a questão trans ganha ainda mais evidência no cotidiano
do atendimento. Um aspecto disso se refere a ter se tornado um lugar fundamental não apenas
pelos sentimentos contraditórios que inspirava, mas também pelo seu lugar na história do
movimento trans na cidade. Ao mesmo tempo que foi o primeiro serviço a aceitar receber essa
população, tendo sido, portanto, o primeiríssimo espaço em que grande parte de seus pacientes
tomaram qualquer conhecimento sobre a transexualidade, foi onde chegaram a conhecer outras
pessoas trans. Além disso, o lugar continuava trazendo lembranças fortes de procedimentos de
patologização. Nesse misto, apesar da detratória que ocupou às vezes, a existência desse serviço
desencadeou a aglutinação inicial de homens trans no Ceará que vieram a se tornar ativistas204. Eles
se dedicariam inicialmente às melhorias do serviço, e, posteriormente, à projeção da possibilidade
de se lutar por um espaço maior no Sistema Único de Saúde local.
Como toda reconstrução memorial – que também busco incutir um viés etnográfico –,
essas linhas não procuram ser “o retrato fidedigno do que aconteceu”, ou uma representação que
busca contar a “verdade” sobre acontecimentos. Essa recusa à busca de um ipso facto não implica
203 Na psiquiatria, parafilia se refere ao que se chama no campo de “distúrbios psíquicos” que se caracterizam pela obsessão e
fantasias a práticas sexuais cuja excitação advém de crianças, animais, objetos inanimados, cadáveres, entre outras. O que se chama
de “transtorno transvéstico” está incluído nesse campo de obsessão sexual atípica, o que sugeriria ter sido o grupo das travestis o
primeiro da população trans a ser atraída para esse serviço de saúde. Todos esses são diagnósticos correntes no DSM 5.
204 O que não é o mesmo que dizer que o serviço teve esse objetivo, que sem ele a aglutinação não teria acontecido ou que sem ele
teria se dado de uma forma mais próxima do ideal – embora eu não saiba o que seja –, algo que não se poderia afirmar sem entrar
numa previsão do futuro própria de um subjetivismo maniqueísta cheia de juízo de valor.
275
tampouco um relativismo205 vulgar que generaliza e homogeneíza o contexto descrito, ou que, por
exemplo, relativizaria a violência relatada. Significa, antes, descrever como os interlocutores
percebem, no tempo presente no qual se deu cada entrevista, as experiências que viveram
circunscritas tanto por um ato biográfico como uma memória coletiva que, como tais são
delineados no momento da sua narrativa. Cabe notar o que essa narrativa faz, e não apenas o que
quer dizer e que conteúdo organiza206, isto é, sua importância não se centra simplesmente por ter sido
algo que, por ter acontecido, desencadeou os eventos do presente, mas por ser seu uso no presente,
uma espécie de totem ao avesso da luta que se realiza agora. A narrativa do passado está à serviço
do caminho que se quer construir no presente. O espaço temporal entre o “tempo do ATASH” e
aquele da etnografia no qual eu “estava lá” é consideravelmente pequeno207, mas isso não impediu
que ele fosse suficiente para que os interlocutores trabalhassem para constituir uma memória capaz
de animar um engajamento que diz: “veja como fomos tratados e patologizados ali, nós temos
direito a um serviço diferente, um que nos atenda de maneira humanizada e o Estado é o grande
responsável por essa garantia”. Essa “memorialização”, do que captei apenas o germe, era como
uma arma da ação coletiva.
Isto se expressou, uma vez mais, quando estávamos em pleno domingo e nos reuníamos
na garagem da casa onde funcionava o abrigo gerido pela Atransce. A reunião se iniciou com um
resgate, com o auxílio de fotos dos encontros anteriores. Algo que se tornava costumeiro. O
elemento novo para mim ali seria a apresentação de um videodocumentário, caseiro, feito pelos
próprios ativistas da associação. Na ocasião não havia nenhuma figura de importância burocrática
e decisória governamental, o foco era mesmo os ativistas e neófitos em início de transição que
visitavam o lugar à primeira vez. Procurava-se, antes de tudo, decidir o que fazer diante da
continuada não inauguração do Ambulatório, mesmo após meses desde a dramática Audiência
Pública e as repetidas promessas quebradas pela Secretaria de Saúde, que marcou diversas datas de
abertura. Com uso de câmeras de celular se produzia o cotidiano: eles apareciam em diferentes
cenários, ora caminhando pensativos em estradas e ruas, ora falando direto para o possível
espectador, entrelaçando vários depoimentos de transição até culminar na filmagem de serviços de
saúde. No vídeo, um dos ativistas aparece entrando no HSM, explicando como funcionava o
Ambulatório. A filmagem é antiga, de quando ia para consultas no local anos atrás. Vemos a
205 O relativismo como princípio epistemológico foi fundamental à instituição da antropologia moderna, e não se furta de ser ainda
uma característica essencial da disciplina dada a perene variabilidade das práticas sociais e das culturas. Muito já se discutiu a respeito,
apontando os limites de sua aplicação (Velho, 1991), seus problemas à discussão dos direitos humanos (Preis, 1996; Segato, 2006),
bem como sua continuada necessidade metodológica sob novas roupagens conceituais que considere também sua limitação
(Wagner, 2010).
206 Como esse capítulo se dedica à mobilização dos homens trans, apresento no capítulo 6 as experiências de parte dos profissionais
de saúde que atuaram no passado e atuavam no tempo da pesquisa em Fortaleza.
207 Esse intervalo foi de menos de dois anos, e o “tempo do ATASH” esteve contido nas narrativas dos interlocutores entre 2009 a
2015. No final de 2016 já começávamos a interagir tendo em vista essa pesquisa.
276
portaria, depois caminhamos com ele pela pequena estrada de tijolos entre palmeiras, e entramos
pela sala de triagem do hospital com suas cadeiras enfileiradas diante de outra portaria. Outro
acesso se abria a um corredor, o qual ao atravessar se chegaria ao espaço que funcionava o ATASH,
um dentre outros ambulatórios. Percebi que todos esses elementos narrativos buscavam criar a
história de um começo, constituída na trajetória de alguns interlocutores; ao que remeto para chegar
às suas experiências no serviço e ao trabalho de “memorialização”.
Reginaldo, na época com 21 anos de idade, começou a frequentar o ambulatório em 2015;
ele se juntaria, por um período curto de tempo e de modo regular, a outros poucos rapazes que se
denominariam de homens trans em meio a um número mais expressivo de travestis e outro menor
de mulheres trans. Nossa entrevista se deu em 2017, e há mais de dois anos não era mais um
paciente. Inicialmente, sua ida ao serviço se deu a contragosto. Ele relutara em comparecer ao
hospital devido a sua ligação com “doença mental”, mesmo que fosse ali o único serviço possível
diante do quadro que desenhava: ele associava dores intensas na região da pélvis e incômodos nas
mamas a seu longo período de hormonização sem mediação médica:
O ATASH foi assim... Eu tenho uma mulher trans que ela é muito minha amiga de muitos
anos. E ela já frequentava o ATASH acho que há uns 3 anos, sabe? Ela é uma das pessoas
mais antigas no ATASH. E aí, eu cheguei pra ela e disse assim: “Regina, cara eu não
consegui a ajuda do endócrino, eu não tô conseguindo em canto nenhum, me ajuda, o
que que eu faço? Eles estão mandando ir pro Hospital Mental, eu não quero ir pro
Hospital Mental”. Aí ela disse assim: “olha Reginaldo, aqui no Hospital Mental tem o
ATASH, que é pra onde eu vou, que eles me ajudam nisso, venha também”. Aí eu disse,
“Nanda, eu não quero ir pro Hospital Mental” e aquela coisa. E aí, foi passando o tempo,
passando o tempo, e aí eu conheci o Raimundo. Aí o Raimundo disse, “Reginaldo, eu
vou pro ATASH”. Aí, o Magno, que já era meu amigo antes do Raimundo disse pra mim,
“bora pro ATASH, eu já tô no ATASH acho que há uns dois anos” na época, ele tava.
Aí eu disse, “cara, eu não quero ir pro ATASH” (Reginaldo, 24 anos, entrevista).
Mas chegou um momento em que Reginaldo não poderia fugir dessa única possibilidade,
uma vez que não tinha recursos financeiros para a contratação de um plano de saúde nem para
pagar consultas particulares avulsas. Sentindo dores por mais de três meses, e com a insistência de
amigos que já acessavam o lugar, é demovido do receio do estigma e consegue um atendimento de
emergência:
Chegou um período que eu estava em situação de emergência. Eu estava com problemas
sérios na mama e no útero por causa dos hormônios. [...]. Eu disse, “não, cara, eu tô
sentindo muita dor”. [...]. Eu sentia uma cólica tão forte que parecia que eu tava
abortando alguém por conta dessas questões né, que você tem que fazer o
acompanhamento. Aí eu disse, “não, eu vou pro ATASH”. [...]. Uns dois, três meses
[sentindo dores]. Eu tava aguentando porque eu não queria ajuda de ninguém, não falava
pra ninguém. Aí eu peguei, “Raimundo, me ajuda a entrar no ATASH” (Reginaldo, 24
anos, entrevista).
277
Como me conta, suas consultas individuais seguiram com psiquiatra, ginecologista,
psicólogo e uma sexóloga. Uma médica em particular lhe chamara atenção por seu encorajamento
ao engajamento político, “ela nos colocava pra cima”, dizia; em meio a outros que via como
patologizantes. Com a constância ao hospital, ele percebeu que se passava a formar terapias
coletivas e rodas de conversa que estavam grandemente centradas na relação com a genitália para
falar da transexualidade. Isso, me narrou Reginaldo, era motivo para grande desconforto de sua
parte, e avalia que também para a maioria. Era levado a expor em público seus sentimentos
incorporados, seu nome civil e social, e tudo parecia que iria ser resolvido primeiro pela publicidade,
fazendo-os falar. Pelas narrativas dos interlocutores, parece ter havido uma intensidade dessas
práticas clínicas grupais um ano antes da entrada de Reginaldo. Em 2014, ocorreram a maior parte
dos encontros coletivos movimentados pela sua aura de necessidade para o prosseguimento do
acompanhamento, embora tenham ocorrido desde 2013 até 2015. Mas pouco a pouco ocorreria
uma grande evasão dos atendidos, levando o serviço a rever as reuniões. As consultas particulares,
assim, se intensificaram como objeto de grande engajamento, principalmente pela necessidade da
prescrição de receitas controladas para compra de hormônios sintéticos nas farmácias e para uma
espécie de controle da “boa saúde” que dá forma a preocupação das receitas208. Mas, não se tratava
de buscar a receita por si mesma. A ideia de se cuidar era um imperativo, e se o médico não
admitisse a entrada para a hormonização, esse cuidado iria ter que se dar sem essa supervisão. Um
cuidado sob risco, mas ainda assim um cuidado de si. Narrando as primeiras consultas que teve,
Kaio continua:
Eu tive o primeiro atendimento com a sexóloga. Depois eu tive o atendimento com o
psiquiatra que foi a minha primeira consulta, que aí ele vai fazer tipo um processo de
busca histórica da sua vida, uma linha do tempo, ele vai te ouvir e querer entender como
que suas lembranças de infância e de adolescência até os dias atuais. Mas ele não instiga
a você dizer coisas especificas, você fica livre pra falar. Ele queria só saber dessa linha do
tempo de quando eu era criança até os dias de hoje, e aí eu fui falando esses processos, e
depois que eu terminei ele perguntou como eu me sentia. Aí foi quando ele, porque tem
uma hora que o psiquiatra é mais sistemático; ele é diferente do psicólogo que vai muito
mais na questão da essência do ser, ele vai pra essência, mas ao mesmo tempo ele vai para
a parte mais sistemática que é entender o que ele chama de metabolismo, que aí ele vai
fazer perguntas mais diretas: você tem crise de choro? Você tem dificuldades pra dormir?
Você tem dificuldades pra estudar? Você tem disforia com seu corpo? (Kaio, 2018).
Nessa rememoração, um elemento me foi então surpreendente depois que perguntei
maiores detalhes dessa última parte da consulta:
208 Desde que o direito brasileiro funcionava sob a égide do diagnóstico, sem as consultas não se poderia obter laudos, e sem os
laudos não se poderia prosseguir com a mudança de assento civil, o que fazia de cada consulta um locus precioso dentro de todo o
processo legal de transição. Isso mudou a partir do julgamento do Supremo Tribunal Federal a respeito da Ação Direta de
Inconstitucionalidade 4275, em 2019, que repercutiu tese geral autorizando que transgêneros possam modificar nome e sexo no
registro civil direto sob via administrativa junto ao cartório sem a necessidade de laudos ou cirurgias (STF, 2018). Mas isso não
implica automática e necessariamente uma desmedicalização das mudanças do assento civil.
278
E aí ele não espera respostas longas, ele quer respostas curtas porque ele já vai fazendo
uma pergunta e botando outra, então entende que ele entra num momento mais
sistemático que eu observei isso, um momento mais sistemático, né.... E aí ele vai fazendo
essas perguntas muito rápidas. E no final, sempre isso acontecia: em todos as consultas
ele pede um tempo. Ele sai da sala e ele diz assim: agora você espera aqui. Antes eu não
entendia, eu tinha muito medo desse tempo (Kaio, 2018).
Isso demonstra um elemento que tem sido pouco ou nada considerado nas dinâmicas desse
tipo de diagnóstico: a relação médico-paciente como uma relação de classe. Não apenas no sentido
atribuído por Luc Boltanski (2004), segundo o qual o médico poderia adotar uma postura diferente
de acordo com a origem de classe do paciente que se refere como “doente”, e do paciente deter de
elementos avaliativos diferentes de acordo com essa mesma origem. Refiro-me principalmente a
relação médico-paciente ser constituída para além de uma postura consciente, mas quando das
disposições incorporadas que, portanto, estão naturalizadas, isto é, o que poderia parecer algo óbvio
e simples nessa relação pode suscitar reverberações inusitadas que modificam o cuidado e/ou
geram angústia e integram experiências de sofrimento. É o que reforça o diagnóstico da
transexualidade e acaba por recortar a vida dos sujeitos de outras maneiras.
Os interlocutores, na sua maioria na casa dos 20 anos de idade, com pouca ou nenhuma
instrução formal, e provenientes de famílias de classes populares, pouco ou nada conheciam do
funcionamento de um hospital-escola como o Hospital de Messejana. Dado ao aumento dos cursos
de medicina, e impulsionado pela criação desses cursos, quase todos os hospitais na região de
Fortaleza – o que não é diferente do resto do país – são serviços terciários que também funcionam
como centros de treinamento para futuros profissionais de saúde. Isso se tornou algo normal no
SUS. Como uma preceptoria de psiquiatria funciona no HSM, os atendimentos realizados com as
pessoas trans eram em sua grande maioria feitos por residentes, fazendo da “sexualidade humana”
um dos braços teórico-práticos desse treinamento. Os interlocutores na época não sabiam de toda
essa estrutura, e começaram a perceber um padrão inusitado que Kaio narrou. Sempre ao final de
uma consulta o médico, que eles não sabiam ser um residente, saía da sala e iria ter com o supervisor
para confirmar os resultados da consulta e os encaminhamentos a serem dados ao paciente. Como
o serviço funcionava no térreo, o estudante subia às escadas e demorava alguns minutos até voltar.
Isso começou a gerar burburinhos de que talvez, por ser um “hospital mental”, o médico poderia
voltar com enfermeiros para um internamento forçado. Não por conta da transexualidade, temiam
que fossem diagnosticados com loucura, daí o medo representado pela ausência temporária do
residente então percebido como médico209. No diálogo com Kaio que reproduzo isso fica ainda
mais detalhado:
209 Vê-se, portanto, a atuação da ideia da loucura atrelada ao diagnóstico seguida pela internação forçada, confirmando o grande
estigma que associam ao hospital de saúde mental os atender.
279
- Kaio: Era, a gente210 tinha muito medo, mas depois que a gente começou a ficar mais
amigo e tudo mais a gente começou a conversar sobre isso, porque eu descobri que esse
medo que eu tinha não era só meu.
- Ele fazia isso com todo mundo?
- Com todo mundo. A gente depois foi falando e eu fui descobrindo que era um medo
de todo mundo.
- Aí ele saia e passava quanto tempo?
- E a gente até brincava. A gente dizia assim: “fica de olho na porta ou então fica de olho
no tempo, se a gente não voltar cês tem que ir atrás”. Então ele passava, era em torno de
dez, quinze minutos, vinte minutos no máximo, e você ficava naquela sala fechada com
o ventilador fazendo aqueles ruídos muito fortes e você não sabia o que é que ia
acontecer. [...]. Muito aterrorizante. [...]. E agora eu já sei, né?! Com o tempo eu percebi
o que é essa saída.
- E o que é?
- A saída pra encontrar com o Dr. [Preceptor]. [...]. Porque eles são alunos esses médicos,
eles não podem tomar nenhuma decisão, eles têm que passar pelo Dr. E, o que acontece,
ele ia lá e dizia: ‘Cleiton, eu conversei com ele agora’... Eles anotam tudo, traz, e agora a
gente vai fazer o quê? Ele vai tomar algum tipo de medicação? Ele tem algum transtorno?
Qual o transtorno? Qual a medicação? Aí se tem algum transtorno vai dizer: não, ele não
tem transtorno, então já pode começar a hormonioterapia, entendeu? Aí, ele vinha já com
essa resposta (Kaio, 2018, entrevista).
Somente com o tempo eles perceberam que se tratava de um estudante, e que a saída da
sala era para confirmar a consulta, já que não era um médico formado. Mas, toda a postura encarada
pelo residente não encarnava um aprendizado, que poderia ser questionada se o fosse, e sim uma
relação médico-paciente de autoridade. Assim, dois elementos foram fundamentais para a
produção social de toda essa angústia, a qual ocupa um certo lugar nessa narrativa que diz:
“sofremos no SUS e queremos agora um SUS que não nos faça sofrer, que cuide da gente”. Em
primeiro lugar, a diferença de estratos sociais entre os dois polos dessa relação, e em segundo, a
própria reprodução da medicina. Nesse sentido, a hormonização ou hormonioterapia era uma das
preocupações mais eloquentes desse período porque materializava a mudança corporal possível
num contexto clínico sem acesso a cirurgias de redesignação sexual, além de ser essa uma etapa
anterior àquelas no processo de supervisão médica da transição. Com uma autorização de um
médico nesse sentido, diversas portas – embora de difíceis entradas – se abriam porque com o
encaminhamento poderia procurar serviços de atenção básica para realizar exames de sangue, de
nível hormonal e outros que pudessem atestar estar saudáveis para começar o tratamento. Como
veremos a seguir, a testosterona tem lugares contravertidos, sendo ou não percebido como
remédio. Cabe apreender agora que esse percurso de diagnóstico, que descrevo uma síntese, era a
forma de admissão para prosseguir com os procedimentos, e criando um padrão para modelar
210 Kaio se refere a outros pacientes do serviço, principalmente homens trans.
280
aqueles que procuram transicionar de gênero e de sexo. Algo que já me debrucei no capítulo 3, mas
que aqui cabe demonstrar que esse período da memória recente dos homens trans se insere à sua
maneira dentro do cenário que já tem sido desenhado por pesquisadores que estudaram questões
trans a partir de outras regiões do país.
Desde o contexto de Farina, passando pela reabertura de serviços voltados a transexuais e
travestis no final da década de 1990 de modo irregular (cf. capítulo 2) e as primeiras décadas de
2000 e de 2010 com os primeiros ambulatórios, vê-se a produção do transexual verdadeiro para
que as pessoas trans consigam entrar em serviços e continuarem com os atendimentos a suas
demandas. E, com isso, se exclui sujeitos de processos e procedimentos de transição baseando-se
em noções circunscritas socialmente quanto a natureza sexuada dos corpos, das relações de gênero
e da sexualidade. A maioria dessas análises, que abarcam muitas disciplinas diferentes, se centram
grandemente no discurso, de entendimentos sobre performances e formas de se criar gênero no
cotidiano através da postura individual em interação com outros sujeitos, tendo a fala e a
comunicação um caráter importante211. Muito raramente a materialidade da transexualidade é
endereçada numa perspectiva da prática, do que se faz com os corpos e pelos corpos – algo mais
forte nas reflexões que lhe são anteriores das travestilidades (cf. Grossi, 2010). Essas pesquisas têm
indicado o caráter diagnóstico das relações de pessoas trans com profissionais de saúde – e do
direito – quanto à entrada nos serviços de transição, bem como na instituição das normativas das
políticas de saúde do Sistema Único de Saúde (cf. Matos et al., 2020).
Nesse sentido, as lembranças reconstruídas pelos interlocutores apontam a
heterossexualidade como vetor de avaliação. Conforme observam, eles começaram a perceber que
“quem dizia ser gay era cortado do tratamento” por não ser transexual, fazendo-os não apenas
prestarem atenção nas próprias narrativas, mas também a ajudar uns aos outros para adequar as
respostas, tornando a todos aptos ao reconhecimento daquilo que era postulado como
característico da transexualidade. A heterossexualidade era o fundamento do diagnóstico. Isso não
é particularmente inusitado. Bento (2006) demonstrou que a sexualidade era uma grande régua
dessa avaliação médica e psi no Brasil dos anos 1990, de modo que havia uma cobrança e uma
expectativa de que a mudança de gênero trouxesse uma recompatibilização entre sexo e desejo. Ser
homem e mudar para mulher, na linguagem da mudança de sexo, implicaria ser heterossexual e
desejar um homem, e reconstituir todo o panorama da mulher casada e com filhos de um ponto
211 Nem todas as regiões do país detém de pesquisas sobre transexualidade e cuidado em saúde, e alguns estados da federação ou
regiões detêm mais áreas cobertas nesse sentido que outras. Com essa indicação não quero sugerir que haja por parte dos autores
uma preocupação cultural da região descrita – na verdade, quase sempre se atrai atenção para o Brasil e não para a localidade que
não é vista em termos históricos e culturais. Alguns lugares de partida nas ciências sociais foram: Recife, PE, Goiânia, GO, Brasília,
DF, Vitória, ES, Rio de Janeiro, RJ, Belo Horizonte, MG, Porto Alegre, RS, Natal, RN, João Pessoa, PE (Bento, 2006; 2008; Lanz,
2014; Teixeira, 2009; Murta, 2007, 2011; Trindade, 2016; Tosta, 2015; Rego, 2015; Oliveira, A. G., 2015; Alexandre, 2015; Zambrano,
2002; Jayme, 2001; Quintela, 2014; Oliveira, 2013; Braz e Souza, 2017).
281
de vista moral. A autora vira, pela primeira vez aqui no país, o que outros pesquisadores e ativistas
observam em seus contextos além-mar (Bolin, 1983; Stone, 1992; Hird, 2002; Martínez-Guzmán e
Íñiguez-Rueda, 2010; Rubin 2004, Stryker, 1994, entre outros)212.
A clarividência de Kaio se voltaria para analisar por que foi liberado para começar a
hormonioterapia e não outros de seus amigos que também frequentavam o serviço com frequência:
Eu estava apto porque, apesar de eu ainda ter signos femininos, todas as perguntas diretas
que foram feitas que eu respondi, todas foram chaves.... Tipo, aquelas chavinhas, “tá
liberando, tá liberando”. Perguntas desse tipo: você é heterossexual? Sim. Você é casado
com uma mulher? Uma mulher cis? Eles não usam esse termo, eles dizem uma mulher
biológica.... Sim. Você faz uso de drogas? Não. Você tem depressão? Não. Você chora
facilmente? Não. Você tem problemas pra dormir? Não. Você tem problemas pra
estudar? Não. Você precisa de algum medicamento pra se sentir bem, calmante? Não...
então essas respostas foram que me liberaram, foram elas que abriram pra eu fazer a
hormonioterapia. E eu percebi que os outros foram interrompidos por causa dessas
perguntas, foi por isso que eu conversei com o Rômulo. [...]. Não foi a minha vida que
eu contei, foram as respostas técnicas que foram faladas (Kaio, 2018, entrevista).
Ao comentar sobre um caso anedótico de um paciente homem trans do hospital que havia
chutado portas e faltado com o decoro diante dos médicos, o qual fora retirado do atendimento
conforme completa a base da sua argumentação, Kaio mostra que já sabia que havia uma técnica
empregada para identificar pessoas transexuais. “Existe uma técnica que os médicos usam pra saber
se você está [bem], se ele pode passar ou não [a testosterona]. Se ele perceber na conversa que tá
tendo contigo, que tu demonstra”. Orientando entre si, o grupo formado por homens trans no
ATASH passa a se organizar em torno da premissa enunciada por um deles: “você vai dizer que
você é hétero, você vai dizer que não tem depressão”. E, pouco a pouco os que haviam sido
impedidos teriam mudado de postura e de respostas, ocasionando a autorização médica que
confirmava na clínica a teoria empregada, e não vice-versa. Essa posição quanto ao que se espera
ouvir e não o “contar a própria vida”, como Kaio demarcou, por vezes já foi situado como
“estratégia” diante o diagnóstico e do acesso aos procedimentos (Garfinkel, 1967; Stone, 1991;
Hausman, 1995; Prosser, 1998; Bento, 2006; Teixeira, 2009), mas isso também se insere nos
desafios que as narrativas de transição encontram diante de profissionais de saúde e assistentes
sociais (Najmabadi, 2014).
Se a “prova” diagnóstica está na narrativa fornecida pelo paciente, se dela desconfiam os
médicos e se sobre ela confabulam os atendidos para gerar acesso aos procedimentos com
supervisão biomédica e cirúrgica à transição, a essência etiológica manifesta-se enredada numa teia
contraditória sem-saída, postulando a inescapável questão da impossibilidade de uma “verdade”
uma vez que a “memória” não é um produto factual. Assim, a “mentira” aponta para outras
212 No capítulo 3 me detive pormenorizadamente na questão da patologização, portanto não irei repeti-la.
282
questões maiores e não se trata simplesmente de desvio ético, nem muito menos significa e aponta
para práticas universais. A mentira ocupou teóricas trans na década de 1990 quando o movimento
estadunidense recrudesceu inicialmente diante da reformulação do DSM-IV em 1994 (ver capítulo
3). Ativistas e acadêmicas tanto recorriam às suas próprias trajetórias como analisavam
autobiografias escritas por transexuais anos antes. Hausman (1995) irá colocar, de modo que pode
ser considerado extremamente utilitarista, a procura por tecnologias para transicionar como
objetivo da estratégia de mentir. No Brasil, Bento (2006, p. 62) se destaca inicialmente, partindo
das narrativas de transexuais para mostrar que o contexto de violências da vida anterior e fora do
hospital preparou essas pessoas para se situarem diante do diagnóstico: “alguns mecanismos
utilizados são [...]: autoconstruir-se como vítima, o silêncio e a essencialização de suas identidades
por meio de uma narrativa que aponta para um ‘desde sempre fui assim’ e o ‘mentir’”. Outro
elemento que parece pouco refletido por Kaio, e ausente das análises sobre a mentira, dizem
respeito aos lugares dessa espécie de cálculo de risco com as perguntas sobre problemas de saúde
dos médicos, o que não se resume a uma preocupação com a heterossexualidade. Qual a relação
entre negar uma terapêutica, mentindo sobre a sua necessidade para conseguir o acesso a mediação
médica à transição, e a busca por “estar saudável” durante a transição?
Assim, a mentira é vista como uma fase imediata de uma resistência política ao sentir a
imposição da ideia de haver um transexual verdadeiro próprio das categorias que não apenas
medicalizam, mas a veem como adoecimento com uma etiologia observável através da narrativa
memorial. Mas poderíamos olhar para outro lado da “mentira”, a sua produção sociocultural.
Nisso, o mais importante não é o conteúdo que a mentira enuncia – nem muito menos o ato de
mentir em si mesmo –, mas os sentidos de sua necessidade e o que ela produz. Mesmo que não
desconsidere o elemento “resistência” já apontado por outras sociólogas e antropólogas, estou mais
interessado em olhar para essas práticas discursivas como produtoras de realidade, que, ao
formularem relações sociais têm consequências sociais porque não deixam incólumes as posições
dos indivíduos e seus sentidos atribuídos (Simmel, 2011 [1978]). Ainda mais se considerarmos que
o conflito tem um elemento de sociação e não de separação, isto é, ele une e cria relações (Simmel,
1904). Não apenas se resiste ao campo de força do mundo social, o agente o institui em suas ações
e menos de modo implosivo do que gostariam as narrativas. Assim, mesmo que o ATASH, nos
fatos da memória coletiva aqui descrita, não tenha sido um ambulatório do Processo
Transexualizador, suas regras como legislação em saúde pública e as dos manuais em vigor
mostram-se ali flutuantes e direcionadoras213.
213 Por ser a única normativa legal em vigor no país detém reverberações generalizadas constituidoras de um verdadeiro sistema,
sobre o qual pouco enxerga análises individualizadas desse ou daquele agente apartado do social.
283
Mas, como mostrou-me Zagreu214, nem todos estavam ali dispostos a seguir uma narrativa
heterossexual, mostrando outro tipo de relação com o diagnóstico. Tendo tido apenas uma
consulta com um psiquiatra, ele se apresenta como bissexual e se estranha com a surpresa do
médico: “ele perguntou se eu tinha algum desconforto em fazer sexo com homem e eu “não”, e
perguntou se eu era ativo”. Como me diz, o que não faz sentido é alguém considerar de antemão
que ele seja heterossexual: “e não fazia o menor sentido ele me colocar dentro de uma caixinha,
não faz o menor sentido”. Depois disso nunca mais voltou ao serviço, uma vez que sua admissão
estava apenas aprovada para a depressão com que fora diagnosticado. Mas, como o hospital era
muito longe da sua casa, compensaria muito mais visitar um CAPs. Zagreu, contudo, faz uma
ressalva, dizendo que um amigo215 que continuava sendo atendido no serviço havia identificado
uma mudança de postura dos profissionais, de modo ainda a relembrar que talvez tenha tido um
papel nessa transformação:
Porque durante a consulta eu expliquei a ele que não tinha nada a ver identidade com
sexualidade. Um homem pode gostar de outro homem. Por que um homem trans não
pode gostar de outro homem? Eu acho que também acendeu a luzinha dele, sabe?! E
pelo que eu ouvi dizer, está melhor essa questão; não precisa chegar lá e se fingir de
hétero (Zagreu, 37 anos, entrevista).
Esse cenário de conflitos, como se percebe, era atravessado por variadas questões nas
percepções dos pacientes homens trans e parece ter apenas crescido quando pacientes e médicos
se defrontavam com seus limites de demanda e de autoridade216. Assim, a heterossexualidade não
era o único recorte nessa admissão a um serviço que funcionava com trabalho voluntário. Um
episódio particular modificou definitivamente as relações entre esses agentes que trabalhavam e
atendiam, modificando drasticamente a dinâmica do lugar. Após perceberem o aumento dos
pacientes e do clima conflituoso crescente, a hormonização é vista como o principal objetivo das
consultas. Isso não impedira que os homens trans se surpreendessem com a novidade de um dia
comum de ida ao ambulatório: deveriam assinar um termo indicando a ciência que não seria mais
dada supervisão para a transição no campo da hormonioterapia e do encaminhamento cirúrgico,
nem seriam formulados laudos psicológicos ou psiquiátricos (esses necessários à época para
requerer a mudança civil). Isso gerou uma primeira ação coletiva desse grupo político na forma de
214 Já mencionado no capítulo 3.
215 “Um amigo meu que é gay cem por cento”, acrescentara.
216 Há aí uma outra feição, mais próxima da materialidade corporal em torno de todo um conjunto de práticas relativo a exames
laboratoriais, análises anatômicas genitais, verificação cromossômica e cariotípica do DNA, comparações biológicas com a
intersexualidade, cálculos de riscos, domínio dos procedimentos biomédicos e cirúrgicos, vigilância da saúde pré e durante a
transição, administração hormonal e sua individualização somática, etc., que não apenas recorta os almejos das estratégias discursivas
nas quais incluem as mentiras, como realizam a constituição desse mundo social. Sobre isso me deterei no âmbito do presente, mais
à frente, deixando esse recurso memorial para os conflitos que os antecedem.
284
uma carta-repúdio lançada majoritariamente na internet e nos jornais locais em tom de denúncia,
de cerceamento de direitos à saúde:
Nós, do Instituto Brasileiro de Transmasculinidade Ceará (IBRAT)217 e pacientes de Atendimento
Ambulatorial em Sexualidade Humana (ATASH), vimos por meio desta manifestar o nosso
veemente repúdio ao documento “Termo de Ciência, Compromisso e Responsabilidade para
Pacientes com Disforia de Gênero”218 apresentado no dia 01 de outubro de 2015, quinta-feira,
na reunião de grupo de homens e mulheres transexuais no ATASH às 14 horas no
Hospital de Saúde Mental Professor Frota Pinto, Messejana. Entendemos o documento que
estabelece condições ao tratamento para que o paciente seja admitido (a) neste
ambulatório no qual diz oferecer os seguintes serviços: atendimento psiquiátrico
ambulatorial, tratamento psicolofarmacológico, psicoeducacional, hormonioterapia
supervisionada, encaminhamento para psicoterapia e encaminhamento para outras
especialidades. Por conseguinte, a realidade mostra-se diferente, condizendo apenas ao
atendimento psiquiátrico ambulatorial, tratamento psicolofarmacológico,
psicoeducacional e encaminhamento para psicoterapia (Carta-Repúdio do IBRAT-CE,
2015, grifos dos autores).
Assim, os homens trans se recusaram a assinar o Termo, gerando um escalonamento maior
do conflito que já ocorria. A parte mais impactante da Carta-Repúdio se referia ao
acompanhamento hormonal, cujo profissional anteriormente atuante ainda seria indicado como
pouco apto por um endocrinologista reconhecido:
A hormonioterapia supervisionada está comprometida por conta do afastamento, por
motivos profissionais do atual profissional encarregado, que mesmo em sua atividade não
era totalmente habilitado para o acompanhamento por ser especialista em Sexologia
Humana e Ginecologista, mesmo tendo apoio externo de um endócrino em poucas
situações (Carta-Repúdio do IBRAT-CE, 2015).
No final da Carta, após indicar que a exclusão do atendimento proveniente da falta a
consultas marcadas não considerava a situação econômica dos pacientes, pediam que fossem
transferidos para o Hospital das Clínicas da cidade, fazendo-se cumprir a legislação regente do
Processo Transexualizador e cobrando “um atendimento mais humanizado”. Mas, como me
narraram os diferentes interlocutores que lá atenderam, o que decorre dessa demanda dos pacientes
como movimento social é uma desestruturação dos serviços indicados na Carta. Isso gerou uma
dispersão, fazendo com que procurassem outras unidades de saúde de acordo com o que julgavam
ser a sensibilidade dos funcionários estatais do SUS, e que descreverei a seguir.
Buscariam, ainda, os jornais da região para que notas fossem veiculadas em tons de
denúncia de que o direito em saúde estava sendo negado e vilipendiado pela ausência de médicos
217 O IBRAT é uma organização não-governamental criada em torno da mobilização de homens trans no sudeste do país (cf. Ávila,
2014). Nesse período, os cearenses estavam aglutinados sob essa ONG e se tornaram uma célula regional de sua atuação nacional.
Posteriormente, como mostrarei, surgem divergências políticas e há uma cisão que os faz criar uma associação de caráter local vista
como mais útil às suas demandas sociais diante do Estado. Isso também foi acompanhado noutros estados do Brasil que detinham
“núcleos” do IBRAT na sua pretensão de ser um organismo nacional. Para o mestrado estudei o núcleo organizado em Natal, no
Rio Grande do Norte (Rego, 2015).
218 Não consegui ter acesso a esse Termo.
285
do serviço antigo. Em fevereiro de 2016, algumas notícias começam, então, a veicular a
insuficiência do serviço em suprir uma demanda crescente e o direito em saúde, e já mencionam a
Audiência Pública, na qual já me detive. A pequena matéria chamava-se: “Transexuais. A luta pelo
atendimento humanizado e necessário”, e concluía:
Até março próximo [...] os transexuais buscam soluções em uma audiência pública. “Para
que a gente seja atendido no Hospital das Clínicas. Porque lá tem todos os profissionais
e o processo transexualizador pode ser cumprido ali”, entende. “A gente não precisa só de
psiquiatra. A gente precisa fazer todo o processo de forma legal e saudável. Não é uma luta só do
Ceará, mas é do Brasil. A gente ainda está amadurecendo (nas questões de gênero)”,
conclui (O Povo, 28 fev. 2016a, destaques meus).
Noutra matéria, no mesmo dia, o mesmo jornal entrevistaria um médico do serviço do
HSM, o qual afirmava que “a realidade é bem triste porque, realmente, não tem nenhum serviço
estruturado” para atender transexuais para a transição. Demarcando ainda mais a responsabilidade
do “Estado”, citando portarias e os princípios do SUS, o repórter completava:
O Estado não tem um sistema público de saúde preparado para seguir as orientações do
Ministério da Saúde (MS), determinadas em portaria, referentes à realização do processo
transexualizador. “No Ceará, não existe nenhum serviço estruturado para esse processo”,
avalia o psiquiatra Henrique Luz, coordenador do Ambulatório de Transtornos da
Sexualidade Humana (Atash – Hospital de Saúde Mental de Messejana) (O Povo, 28 fev.
2016b).
Embora não tenham sido contemplados nas suas reivindicações imediatas, o que aconteceu
no ATASH impulsionou a caminhada até o associativismo dos homens trans. Esse episódio fez
parte do que contribuiu para fomentar uma aliança entre eles. Esse período memorializado tem
uma participação na automodelação dos homens trans, no sentido que foi ali que tiveram pela
primeira vez que existir, ao mesmo tempo, como identidade social, como categoria terapêutica e
como grupo político. Foi aí onde perceberam a importância da identidade voltada para um cuidado
elegível, como disse-me Zagreu: “eles me obrigaram a me definir”. Sendo, portanto, a identidade
nomeada como homem trans porque seria “mais uma questão política e por questão de facilitar as
coisas”. Mas essa posição identitária como parte da posição social assumida diante dos serviços e
dos profissionais de saúde não se encerraria em si mesma. Havia aí uma fachada219, a qual não
impedia de deter consequências subjetivas e sociais na vida de Zagreu e na vida de outras pessoas
trans. Ele me diria minutos depois do gravador parar que algumas mudanças corporais ele desejaria,
mas mais para “facilitar” seu convívio com os outros, referindo-se às suas mamas. Desejava que
219 O sociólogo Erving Goffman (1975, 2011 [1955]) denominou de fachada um conjunto de modos de expressão através dos quais
os atores sociais se valem para deixar a impressão esperada por outros e por si desejada no curso de uma interação social. O conceito
se remete ao que o ator exprime tanto de modo deliberado, como de modo inconsciente. Isso ganha especial forma quando se
considera que a relação médico-paciente aqui descrita ganha o modo daquilo que o autor chamou de “interação estratégica”, aquela
na qual ambos os atores que interagem cobrem e descobrem informações constituindo um “jogo de expressões” (Goffman, 1971).
286
elas não fossem lidas como naturalmente femininas. Assim, colocava-se identitariamente mais
como “não-binário”, uma categoria em crescente efervescência que necessita de uma pesquisa a
parte e que significaria uma forma de não necessitar escolher entre gêneros para a expressão
pessoal. Como tal, Zagreu não se via replicando toda uma radicalidade entre homem ou mulher, e
por isso se via como “transmasculino”, uma espécie de termo chave para agrupar todos aqueles
que ainda não postulam o reconhecimento como homem trans, mas que se direcionam a isso, ou
que, tendo sido marcados como mulher, não se identificam como tal nem como homem, embora
mais próximo desse último que daquele.
Mesmo que a fachada assumida por Zagreu fosse algo visto como importante para sua luta
política, isso não impedia que noutras situações ele assumisse sua transmasculinidade ao invés de
uma identidade como homem trans. Foi por sua causa, majoritariamente, que a recente Atransce
ganhou o nome atual, embora já tenha levado no nome o termo “homem”. Se fosse ser replicado
dessa maneira, Zagreu não concordaria em fazer parte da associação. Ele me explica que se vê
como: “masculino neutro que performa a feminilidade porque não é viado. Mas isso fica muito
difícil de explicar até pra quem é trans, mas os meninos sabem, os meninos da associação. Tanto é
que o nome da associação mudou por minha causa porque ia ser Associação dos Homens Trans
do Ceará” e passou a ser chamada de Associação Transmasculina do Ceará. Isso não implica uma
contradição paralisante para a ação coletiva, como percebi, uma vez que os discursos podem e
precisam mudar de acordo com os objetivos de cada momento e com aqueles que querem atingir
com suas mobilizações em cada contexto determinado. Há, assim, aquilo que se faz e diz entre si,
e aquilo que se faz e diz diante dos burocratas e dos profissionais de saúde. Isso, contudo, não fica
apenas no plano estratégico, o que se diz e faz para o outro no campo da conquista de direitos
acaba por integrar aquilo que se faz e diz entre e para si.
5.5. Em nome dos direitos, reunidos no templo
Mais de um ano depois do cotidiano descrito no ATASH, eu acompanhava alguns ativistas
numa manhã de domingo em direção a reunião que criaria oficialmente a primeira organização não-
governamental voltada para homens trans, a Associação Transmasculina do Ceará (Atransce). Por
oficialização entendo, seguindo os interlocutores, a criação oficial de uma ONG com estatuto,
representantes, comissões de atuação diferenciada, regras de funcionamento explícitas,
periodicidade de reunião, emissão de documentos oficiais, e instituição legal junto a cartórios com
o consequente cadastro nacional de pessoa jurídica (CNPJ), de modo que se torne uma entidade
organizada e especializada que esteja apta a receber recursos do Estado e a atuar como
representante da “sociedade civil” para influenciar decisões administrativas e governamentais.
287
Até o fim da pesquisa, a Atransce não havia conquistado uma sede própria, e nesse período
de oficialização, para o meu espanto, a reunião se deu numa igreja. O grupo religioso que
congregava nesse templo se chamava Igreja Cristã Contemporânea, e se insere naquilo que tem
sido chamado geralmente de “Igreja Inclusiva”, muito embora não haja essa intitulação local. Não
interpretam que a homossexualidade seja um “pecado”, um desvio da natureza humana criada pelo
deus da cristandade, mas elementos da diversidade humana. Foi possível entrever em campo que a
transexualidade também era manejada dessa maneira pela Igreja, tendo sito ela muito presente,
angariando doações ao Abrigo e recebendo os interlocutores na sua congregação para oferecer-
lhes espaços para reuniões220.
Saímos cedo naquele dia com a rua deserta à procura do templo, o qual nunca havíamos
visitado. Passamos sem perceber pelo prédio certo, até que nos demos conta de voltar e recomeçar
nossa procura e ficamos diante duma porta de madeira ladeada com dois jarros com plantas. “Deve
ser aqui, tem cara de igreja”, concordaríamos. Depois do fiel chegar para abrir a porta, adentramos
o local e esperaríamos a chegada dos demais. Pouco a pouco os que chegavam ajudavam na
arrumação do ambiente. A companheira de outro ativista começava a fixar nas paredes cartazes
feitos no computador e impressos em papel ofício branco. “Transformar! Transcender!
Transcorrer! Transmitir!”, era fixado na parede paralela àquela na qual outro banner, agora da
própria congregação, dizia: “o Senhor é Meu Pastor.... E ele sabe que eu sou gay”, acompanhado
de uma foto de um jovem com a mão e o rosto pintados com as cores do arco-íris, branco, e de
olhos fechados em sinal de circunspecção. Criava-se, assim, uma atmosfera de luta, de reclame, na
qual até as paredes falavam.
O espaço cedido para realização do evento naquele dia de novembro era pequeno, mas
destoavam-se aos meus olhos o púlpito de madeira orvalhada que seria coberto mais tarde por uma
bandeira trans221 e a grande e imponente cruz do mesmo material fixada na parede logo atrás. A
sala principal dava acesso a um vão que levava a uma cozinha com banheiro. A despeito da
pequenez do templo os visitantes não se acanhavam, o salão estava cheio e a lotação nos deixava
220 No curso da etnografia percebi que travestis, mulheres e homens trans possuiam variadas posições religiosas, e todos eram
deístas. Dentro dessa multiplicidade havia aqueles que eram assíduos a terreiros de candomblé e demais religiões de matriz africana,
que atendiam a “células” de orientação cristã evangélica, reuniões espíritas e até mesmo wiccas. Há, ainda, um forte trânsito religioso
de acordo com o potencial do grupo ou da religião para a qual se migra poder explicar e oferecer apoio moral e espiritual para a
transição de gênero sem a associação da transexualidade a desvio da natureza, pecado ou possessão demoníaca ou de espíritos com
más intenções. Assim, a vida religiosa será um grande elemento na vida dos interlocutores, seja porque tem experiências de
religiosidade vividas em comunidades, seja porque tiveram que lidar com os dogmas e doutrinas seguidos por familiares e que se
chocavam com a possibilidade de ser transexual. Para estudos sobre sexualidade e religião ver Marcelo Natividade (2010) e Emerson
Giumbelli (2005).
221 A chamada de Bandeira do Orgulho Transgênero é visualmente constituída de cinco listras horizontais, as quais se intervalam
sucessivamente com as cores azul claro, rosa clara e branco, rosa clara e azul. A bandeira foi criada em 1999 pela veterana da marinha
estadunidense e ativista trans Monica Helms. Hasteada à primeira vez na Parada do Orgulho LGBTQ+ em Phoenix, Arizona, em
2000, foi doada à coleção queer do Instituto Smithsonian em 2014. O azul significa, tradicionalmente, os meninos, o rosa, as meninas
e o branco visava representar aqueles em transição, intersexos ou que buscam o gênero neutro. Ver Helms (s/d).
288
quase amontoados entre ativistas trans, médicos e outros pesquisadores. Era domingo, e o
momento havia sido marcado com muita antecedência. “Todos trabalham e moram longe”, me
diria antes Kaio ao me explicar como organizara a ocasião.
Enquanto os últimos preparativos com o computador eram finalizados para exibição de
um slide show – como aquele que já vimos no item anterior –, um dos líderes começava a apresentar
o propósito da reunião. Vindos dos bairros mais variados e de distâncias consideráveis aqueles
homens trans estavam criando uma ONG com nome e estatuto próprios. Esse é o primeiro
elemento da fala de abertura de um dos ativistas, que seguira o agradecimento da cessão do templo
para a reunião. A Atransce é alçada como uma forma de acessar o Estado, diferente de outros
grupos que não se denominam com os termos reconhecidos como associação. Assim, o discurso
começa a fazer uma oposição entra a luta individual e a luta coletiva. Muitos dos presentes ali nunca
tinham ido a uma reunião de militância organizada, e antes só se conheciam pela internet. Os
direitos são conquistados, e não dados por políticos ou quaisquer outras pessoas. Por isso, o Brasil,
afirmam, é um lugar onde algo só muda se “se chegar a 100”, querendo dizer que apenas uma
coletividade poderia gerar um efeito para criar políticas públicas. A saúde como um direito só virá
se a demanda for criada, tanto porque ninguém adivinha o que acontece no cotidiano – aludindo
especificamente aos médicos –, como não se legitima o discurso da necessidade em saúde apenas
partindo de uma pessoa. É preciso unir forças para conquistar o Ambulatório. Finalmente o
computador fica pronto, e agora exibem vídeos e fotos para falar de como os homens trans do
Ceará tem militado até então.
O discurso de incentivo à luta política ganha outras proporções quando se utiliza uma
analogia cristã, anunciando que Deus é amor e justiça, e que é uma mãe também. Na militância é
preciso entender, portanto, que todos são humanos, inclusive as lideranças, e que podem errar. A
vida, assim, não é apenas hormônios, tem vida profissional, tem vida amorosa, e outras
necessidades que também precisam ser supridas. Mas, pergunta Kaio, “adianta você fazer o
processo e seu irmão não?”, isto é, como você poderia ficar em paz tendo sua transição de gênero
assistida medicamente enquanto outro homem trans não consegue porque não teve os recursos
suficientes para realizá-la? Disso irrompe outra fala de um ativista sentado nas cadeiras da plateia
sobre individualidade, que é preciso se unir, não ser tão individualista. Todos concordam.
Mesmo que estivessem ali principalmente para articular uma mobilização voltada a criação
do Ambulatório, a vida, concluem, é mais do que isso. “A vida não é hormônio e cirurgia, é se
manter unido, é viver”, disse outro. Agora, um dos ativistas pede para que todos nós façamos um
minuto de silêncio para honrar todos aqueles homens, mulheres trans e travestis que morreram
sem assistência, para aqueles que morreram lutando por seus direitos, e ainda para outros que estão
289
entre a vida e a morte em algum leito de hospital, que sofrem a violência do cotidiano, e que não
tem a quem recorrer, aos que se desesperam. Seguimos calados, e pouco depois uma salva de
palmas interrompe o silêncio com vigor. O momento é de alegria, e não de luto. A luta anima-os,
e passamos para a segunda parte da reunião, a qual é chamada de “assembleia”, outro termo
legalmente legítimo para que o Estado reconheça a associação que estava ali sendo criada. Pego de
surpresa nesse momento, um dos militantes pede para que eu faça uma “fala”. A ideia agora é que
haja discursos de “profissionais”, incluindo aí os médicos e outros profissionais de saúde. Nenhum
médico apareceu nesse momento, visitariam depois de modo rápido. Tendo que organizar um
discurso naquele momento, a pedido de que eu discorra sobre “a sociedade” me uno a uma
professora universitária e a uma psicóloga da cidade que têm experiências acadêmicas e clínica com
sujeitos trans, ambas conhecidas da maioria dos presentes. Minhas palavras são bem breves, e
elogio a mobilização ali nascente, e ainda menciono que o vínculo que eles criam entre si é
indispensável para aquela luta. Ao todo, nós três, não demoramos muito, e as palmas já encerram
essa parte e passamos a apresentação do Estatuto da Associação. Mas antes de realmente ser lido,
outros ativistas tomam a palavra na frente, ao lado do púlpito, para também discursarem.
Januário primeiramente diz que “ama a luta”, embora seja difícil fazer ativismo. Falando de
amizade, de quem são seus amigos de verdade, explana seu processo de transição, de como veio a
refletir e a vivenciar as angústias sobre ser ou não mulher. Valdinei, outro ativista jovem, e o qual
eu não cheguei a entrevistar, também engancha seu discurso falando de amizade. Os discursos são
valorativos, de como os vínculos sociais mudam por causa dos novos rearranjos da transição. Em
meio a fala de Valdinei, umas médicas chegam no templo, e há um certo alvoroço. As pessoas
falam e as recepcionam com muito entusiasmo. Valdinei, então, continua, e agora sua fala tenciona
que tem depressão, e que já fora usuário de cocaína, e se considera um guerreiro por estar saindo
dessa “situação”. Está feliz porque se refez e porque ajuda os amigos a conseguir também. Rivaney
agora fala, se diz que ainda é pré-T, que não fez grandes alterações corporais, e que se sentiu muito
desesperado porque não sabia quem procurar, com quem falar, o que ler sobre o assunto. E assim
seguimos com sucessivas declarações pessoais sobre experiências de transição. Kaio retoma a
palavra e anuncia que há uma luta para ir à luta. Assim, eles necessitam de uma Associação
específica para homens trans porque cada segmento da diversidade sexual tem suas
particularidades, tem suas próprias demandas. E só assim conseguem ser visíveis. Assim, o
Regimento, ou Estatuto, como também chama, passa a ser lido. Cada artigo, item, regra, divisão de
comissões seguem sendo ou não aprovados. Aí, Kaio para a leitura para explicar que a Atransce
não tem caráter nacional, e que ela objetiva as demandas locais, porque só eles podem lutar para
que tenham direitos garantidos, e não pessoas de fora com discursos nacionais. Um debate
290
acalorado ganha forma quando se falam das alianças políticas, e acabam decidindo que tomariam
muito cuidado com alianças com políticos eleitos. E assim, diferentes questões vão surgindo e
sendo debatidas.
Uma outra psicóloga que estava na plateia pede para falar quando alguém sugere criar um
banco de dados sobre a transição, e todos concordam, seguindo para falar do papel do psicólogo
na vida deles. Para ela, o atendimento é muito importante, a terapia para ajudar as pessoas a se
entenderem, e não para diagnosticá-los. Mas, afirma, é preciso que não se escondam, que se
assumam. Com isso, cita a própria trajetória, e se apresenta como lésbica. Se não tivesse saído do
armário222 não teria mudado a mente da sua mãe que antes detinha discursos homofóbicos, e agora
a aceita com amor. Eu vejo nos rostos dos ativistas ali presentes que concordam sobre se aceitar e
se assumir, mas não é unânime o ânimo com o acompanhamento psicoterapêutico quando foi
mencionado.
Aos poucos, os “profissionais”, com minha exceção, vão embora. O debate então segue
sobre ajudar uns aos outros, uma vez que nem todos têm emprego e não podem ficar
comparecendo às reuniões com muita frequência. É dito que as reuniões podem ser pensadas com
muita antecedência, e que também poderiam fazê-las pela internet, além de se poder ajudar com o
pagamento da passagem do colega, ou “irmão”, como se referiam às vezes, para comparecer a
futuras reuniões. Já passa do meio-dia, e estão todos visivelmente com fome. Agora, um almoço é
servido para todos os presentes, organizado e oferecido por membros fiéis da igreja, alguns chegam
para ajudar a servir, e eu me ofereço. A assembleia, então, toma o dia adentro, e são criadas as
comissões, como conselho fiscal, cultural, presidência, secretaria, entre outras. Todos os que se
oferecem para ocupar essas posições são aprovados e vão à frente para uma foto imponente com
a bandeira trans. Estão bem felizes, e o dia parece ter sido muito promissor. Acabada a aprovação
do Regimento/Estatuto, da posse dos membros nas comissões, passamos a criação de um banco
de dados para saber que tipo de acompanhamentos médicos e psicológicos têm os homens trans
presentes. Com isso, poderiam articular o contato com esse ou aquele profissional, vendo possível
atendimento na rede pública, encaminhamentos. Estava, assim, criada oficialmente a Atransce.
Isso não significa que não tenha havido antes outras formas de aglutinação de homens
trans, sendo essa “oficial”, “verdadeira”, e as outras anteriores “de mentira”, inoficiosas. A
categoria oficial busca criar uma legitimidade política porque existiram antes três formas de
aglomerações de pacientes/ativistas homens trans que não conseguiram permanecer organizadas.
222 No vocabulário da subjetividade dos homens trans não era tão forte a ideia de sair do armário nos termos do reconhecimento
de si com outro desejo e outro gênero no âmbito desafiante à norma heterossexual, a não ser que tenha vivido uma revelação como
homossexual antes de transexual, usando essa narrativa para falar da sexualidade, vista como apartada do gênero. Voltarei a essas
questões identitárias ao cruzá-las com processos de política e de medicalização.
291
Uma, inicialmente quando da convivência no “tempo do ATASH”, outra pelo cooptação da
nascente IBRAT, e uma terceira que seria uma tentativa de oficialização que não vingou por
divergências políticas entre os integrantes. A primeira era mais uma troca de experiências via
internet entre os pacientes do serviço de saúde, e que recebia o nome de “Homens Trans CE”. Ali,
como me conta Kaio, trocavam narrativas sobre o convívio familiar, a busca por reconhecimento
por parentes, e, principalmente, buscava-se informações sobre mudanças e técnicas corporais no
âmbito da transição, enviavam-se fotos de intrusos e inclusive de genitálias. A ideia era tentar
entender se o que se passava era “normal”, e se estavam no caminho certo. Isso tudo acontecera
muito antes da minha entrada em campo e recobre os primeiros momentos de ida ao ATASH,
muito embora ainda existam grupos de discussão nesse sentido atualmente223.
Quando fizeram parte do IBRAT de modo explícito, os ativistas perceberam que uma
organização chamada de Instituto não teria grande apelo político para requerer mudanças
governamentais. A reclamação de que isso não seria reconhecido com facilidade como uma ONG,
os teria feito criar uma outra mais próxima daquelas que já existiam na região para outros
seguimentos da diversidade sexual e de gênero224. Além disso, havia uma outra queixa, de que os
ativismos de outras regiões do país não se engajavam de maneira equânime para conquista de
espaços e direitos ainda não cobertos noutros estados, como era o caso do Ceará que não detinha
ainda de Ambulatório do Processo Transexualizador:
O IBRAT ainda hoje é uma coisa muito do Sul, sudeste, ele não sobe para a região do
Nordeste, entendeu? Ele não vê nem Norte nem Nordeste, ele não tem força. Não tem
por que começa pelo próprio nome: é um instituto. Ele não tem força no governo.
Governo fortalece movimentos como associações e ONGs. Fora isso, o governo entende
que não é uma organização de investimento, que possa ter investimento, está
entendendo? (Kaio, entrevista).
Assim, como Kaio me explica, a linguagem usada pelo ativismo é tão importante quanto
suas táticas e ações coletivas. Queixando-se da má escolha do nome, outros ativistas também
endereçariam a mesma reclamação. Por isso que decidiram criar a Associação Cearense
Transmasculina, a antiga Cetrans, como chamam. Uma organização que não chegou a ser
oficializada, embora tenham ocorrido diversos encontros e articulações. Durante muito tempo eu
não conseguira entender o que havia acontecido, os discursos sobre o passado dessa organização
223 Um grupo de discussão no WhatsApp era mantido, mas minha entrada não foi cogitada nem autorizada. Era apenas para homens
trans, e como eu era visto como cisgênero havia restrições quanto a minha circulação em alguns espaços, o que incluía o âmbito
digital.
224 O Grupo de Resistencia Asa Branca (Grab) criado em 1989 como movimento homossexual com grandíssima atuação em políticas
de inclusão e voltadas para prevenção e conscientização envolvendo HIV/Aids; a Associação de Travestis do Ceará (Atrac) criada
por Janaína Dutra, ex-integrante do GRAB, procurando uma maior visibilidade para travestis, e o Grupo Liberdade do Amor entre
Mulheres Lésbicas do Ceará (Lamce) seguindo também àquelas são outras organizações não-governamentais que tentaram dialogar
com o Estado, com maior ou menor sucesso, em grande parte pela desenvoltura com a linguagem governamental e com as alianças
políticas disponíveis.
292
eram nebulosos e pouco se entrava em detalhes sobre os conflitos que eclodiram sua inoperância.
Como outros assuntos, só consegui entender no final do período da pesquisa de campo. “Teve a
Cetrans e aí a gente teve alguns problemas internos de comunicação que já veio externo, atingiu o
interno, depois sai para o externo e acaba a associação de uma certa forma entre aspas, o título ele
encerra [...]”, completaria outro interlocutor. Quando tento entender melhor essa situação de
disrupção, Kaio me conta que se deveu a discordâncias de como se aliar aos políticos eleitos, e
como gerir a ação coletiva. “Quando você junta essas alianças, você tá querendo dizer que não só
aquelas pessoas vão te apoiar e te ajudar [...]”, acrescenta. Mas nem todos concordariam com a
associação a esse ou a aquele político, ou a político nenhum. A ideia que Kaio discorre é, portanto,
de que se pudesse fazer alianças com qualquer político para fazer andar as propostas políticas de
mudança legal e de criação de serviços de saúde. Mas isso causou grandes contendas, ativistas se
afastaram da cena, e nesse ínterim há o racha, no qual se diluiria esse agrupamento da Cetrans, e
posteriormente se reformaria outra parcela dissidente com a Atransce.
Isso, contudo, não vem sem esforço, reagrupar implica trabalho para não perder o que já
se havia conquistado. Quando pergunto como foi esse reajuntamento de ativistas, ele me fala de
cansaço. O trabalho cotidiano do ativismo se mostra cansativo:
É um desafio porque você trabalha, né? E você trabalha e você trabalha e todo o trabalho
é cansativo, e todo trabalho leva tempo e o trabalho da militância é um trabalho
extremamente cansativo. E que leva muito tempo. E o tempo quando eu falo, não tô me
referindo ao tempo de anos, o tempo mesmo é de 24 horas (Kaio, entrevista, 2018).
Assim, Kaio quer mostrar que não se trata apenas de uma mudança de nome da associação.
Trata-se de um retrabalho de imagem do grupo, e das atividades nas quais se engaja. E mais forte
do que isso, trata de “desconstruir discursos”, como acentua. E isso exige muito esforço, inclusive
para a vida pessoal do militante que tem que lidar com novas feições que a política toma por causa
dos rachas, das contendas, das estratégias empregadas. Descrevendo a intensidade desse novo
trabalho, ele explica: “já pensou se fosse tipo assim: desmonta essa parede e monta de novo, era
mais fácil [...]. Essa fachada aqui, quebrar e botar Atransce e pronto”. Não seria simplesmente isso.
“A gente vai desconstruir discursos, e essa desconstrução é muito difícil”, procura completar. Esse
discurso de liderança pontua fortemente as reviravoltas das ações coletivas que nem sempre
ganham legitimidade interna antes de ser colocada em prática para que se possa alcançar a tão
almejada reforma social. Os ativistas como reformadores sociais se veem necessitados de se dedicar
completamente, tão intensamente isso ocupa suas vidas não por essa ou aquela hora do dia. É
emblemático que Kaio faça uma separação entre tempo “de anos” e tempo “de 24 horas”. Não se
faz essa reforma se dedicando a conta gotas, nem mesmo da noite para o dia. Assim, a cada nova
parada de uma estratégia que não deu tão certo como se pensou antes de operacionalizá-la, é preciso
293
repensar novas formas de alcançar os tomadores de decisões burocráticas. Quando, muitos meses
depois da criação oficial da Atransce, de toda a articulação para promover a Audiência Pública –
esta última que não saiu como esperado –, eles têm diante de si mesmos a problemática de como
radicalizar o movimento sem perder legitimidade para que o que fora anunciado seja realmente
implantado no sistema de saúde a nível estadual.
5.6. “Eu também quero ser SUS”
Na reunião que comecei a descrever para falar de como a luta dos homens trans se dava
também através de um trabalho de memorialização225, o seu objetivo principal era o de dar uma
resposta a demora na abertura do Ambulatório do Processo Transexualizador que fora anunciado
e prometido durante a primeira Audiência Pública, e que naquele momento completava 6 meses
de aniversário de atraso. O que poderiam efetivamente fazer para pressionar o governo do Estado?
Quais estratégias empregar para gerar efeito sobre os ombros daqueles a quem recaem as decisões
administrativas que precisariam ser tomadas para dar vida ao serviço, ao mesmo tempo que não se
cria uma imagem negativa para o ativismo? Como cobrar explicações do porquê do atraso?
Se o documentário exibido no início daquela assembleia procurou criar uma memória,
como todo início das outras reuniões, o vídeo apresentava uma série de “depoimentos” de homens
trans – ativistas ou não – que procuravam argumentar pela necessidade do “acompanhamento
médico”, sem o qual não se poderia manter a saúde e evitar adoecimentos durante a transição de
gênero. Exibe, ainda, ampolas de testosteronas, caixas do fármaco e receitas. Vicentino, de 19 anos,
do Juazeiro do Norte, segundo a aparecer no filme, fala que sem o Ambulatório não seria possível
fazer o “processo hormonal” porque não possui nenhuma forma de acessar o fármaco. Magno, de
28 anos, fala em tom de narrador onisciente, explicando que “tomar de forma ilegal” a testosterona
acarreta um risco porque não é possível saber o quanto o “corpo precisa”. “Você”, se referindo ao
genérico homem trans, necessita “passar” por um médico, especificamente por um
endocrinologista para averiguar as taxas hormonais. Januário, de 23 anos, agrava ainda mais a
situação imaginada, explicando que viver no interior do Estado torna a transição ainda mais difícil
porque não consegue um profissional que queira atendê-lo. Isso, explica, leva a uma hormonização
ilegal, clandestina, arriscando a própria vida. No vídeo fica notória uma separação entre experiência
hormonal clandestina e saudável, essa última com supervisão médica. A linguagem da legalidade se
associa de vez a da saúde. Mesmo que tente fazer exames sanguíneos de rotina, Januário afirma que
não sabe ler as taxas, nem as analisar, ou acompanhar seu progresso hormonal para equacionar
225 Na seção 4.4.
294
seus avanços na aquisição de caracteres sexuais secundários e a permanência de sua saúde. Sua
explicação continua falando sobre o bainder, em como esse oferece um risco para a saúde, algo
que seria usado por causa da “disforia que é sentida” no corpo, explica. Assim, o bainder poderia
causar problemas de saúde em todo o corpo e em vários níveis, na coluna, na atividade respiratória,
e no desenvolvimento de câncer, assevera. Ele ainda conclui seu reclame mostrando que também
é comum o uso indiscriminado de outra substância, o Minoxidil, para o nascimento de barba226, e
que haveria aí um risco devido aos efeitos colaterais. Descrever a apresentação do conteúdo desse
documentário é uma chave-analítica porque ele foi intencionado para o convencimento das
autoridades médicas e burocráticas estatais. Ele visa popularizar um cotidiano “pouco conhecido”
da saúde que é esse dos homens trans em comparação com outros sujeitos que mudam de gênero.
Em meio a tantas discussões, interessa-me pontuar a problematização que os ativistas
fazem da ausência do Ambulatório, por causa do atraso na sua inauguração. Num dado momento
a reunião para e vamos fazer café, na cozinha. De volta, Kaio explica novamente como se deu a
“luta” para conseguir organizar a audiência. De primeira mão, se ouvia que o Governador havia
disponibilizado verba para o serviço abrir ao passo que se dizia consternado com a tortura e
assassinato da travesti Dandara dos Santos. Mas que, mesmo assim, havia sido oferecido só o
Hospital Mental. Recapitulam, assim, o que acontecera na Audiência. Seria preciso pressionar para
que outro hospital da cidade encarasse a abertura dessa atenção especializada, embora tenha sido
anunciado pelos funcionários de governo que apenas o “Mental” teria interesse. Mas quais seriam
os outros serviços? Respondendo a isso é que os ativistas começam a discutir sobre os hospitais
possíveis. Não poderia ser o “IJF”227, diria outro. Haveria o Frotinha da Parangaba228, ou ainda o
São José229, e até o Hospital do Coração230. Nem mesmo o Hospital das Clínicas Walter Cantídio,
que é federal, havia demonstrado interesse. O “Estado”, por isso, não teria como intervir na
autonomia interna. Há muitos serviços na cidade, avaliariam, mas quase nenhum se interessa pelos
seus direitos. A rede de saúde do SUS não é pequena. Ao falar apenas de serviços de grande porte
226 Minoxidil é um fármaco que reduz a pressão arterial ao promover vasodilatação de longa duração e intensa, tendo sido usado
desde sua promoção como ação hipotensora, em 1965, no tratamento de hipertensão arterial (Elsevier, 2016). O Minoxidil também
provoca, ao ser aplicado na pele do rosto e no couro cabeludo, um processo bioquímico que produz o crescimento de pelo e a
diminuição da calvície, respectivamente. O termo hirsutismo foi usado para denotar um quadro patológico de excesso de pelugem
em mulheres (Zuuren; Fedorowicz; Schoones, 2016). Tornou-se extremamente popular nos últimos anos no Brasil, e durante toda
a pesquisa de campo pude acompanhar além do cotidiano dos ativistas, fóruns de discussão pela internet, de modo que vi uma
intensa preocupação em seu manuseio adequado e eficaz para crescimento de barba associada a produção material da masculinidade.
Algo que não está restrito ou impulsionado por homens trans.
227 O Instituto Dr. José Frota é um hospital de nível terciário referência no socorro de vítimas de traumas graves, e integra a rede
do SUS da Prefeitura de Fortaleza, localizado no centro, na mesma rua na qual eu morei para fazer o trabalho de campo. Os ativistas
tinham plena razão de descartar esse serviço, já que era voltado apenas para casos de alta complexidade, lesões, queimaduras e
intoxicações. Numa determinada ocasião, um ativista havia fraturado a perna teve que ser encaminhado para outro hospital porque
o IJF o atenderia apenas se fosse fratura exposta.
228 A Prefeitura de Fortaleza denomina de Frotinha os hospitais de média complexidade com atendimento secundário, levando
assim o nome do bairro.
229 Hospital São José de Doenças Infecciosas (HSJ) gerido pelo Governo do Estado, na Parquelândia.
230 Hospital do Coração Dr. Carlos Alberto Studart Gomes, no bairro de Messejana, é gerido também pelo Governo do Estado.
295
são 11 hospitais estaduais, dos quais 8 estão na capital e 3 no interior, sem mencionar centros
médicos e institutos especializados e os hospitais federais universitários231. Mesmo que
ambulatórios LGBT tenham sido previstos no último Plano Estadual de Saúde cearense (Ceará,
2016), e que haja essa variabilidade de serviços terciários, não havia nenhuma notícia sobre prazos
e efetivações claras para um atendimento especializado à supervisão da transição, isto é, ouviam
apenas novas e novas datas que nunca eram cumpridas. Porém, isso não intimidou os ativistas que
se veem num jogo que precisa ser vencido.
“Onde está o Ambulatório? Queremos satisfação. Eles têm que falar o que está
acontecendo com o ambulatório fantasma”, repetiam os presentes. Nos dividíamos naquele dia na
garagem do Abrigo, uns sentados em almofadas, outros num colchão de casal, e cadeiras, ou até
mesmo o chão. Estava cheio o lugar. Alguém sugere que se pense uma ação contundente, objetiva,
para ser realizada e chamar a atenção do “Estado”. Talvez tentar uma nova audiência? Perguntar
novamente sobre os prazos? Procurar o Ministério Público? Surgem como questões sem resposta
em um primeiro momento. Um ato de protesto é, então, proposto. Mas como realizá-lo? E como
mobilizar as pessoas trans a participar, se perguntariam. Nesse momento, eu que estava fazendo a
“relatoria” da reunião pergunto o que acham de uma campanha publicitária sobre a necessidade
deles. Rivelino, um jovem de 20 anos, que estava mais calado, concorda e sugere que seja feita em
março, após muitos outros gostarem da ideia de uma campanha.
O debate se acalora de modo crescente sobre quando começar e o que fazer, até se gerar
um consenso sobre começar a soltar chamadas após o dia da visibilidade trans que ocorre
tradicionalmente no dia 29 de janeiro. Kaio surge com a ideia de um vídeo de um minuto, e começa
a pensar como dividir o trabalho para criar uma arte. Mas como chamar essa campanha? Januário
propõe que se fale sobre eles também quererem fazer parte do SUS, ser o SUS, pois são excluídos.
Poderiam, assim, começar com a frase: “Você sabia que as pessoas trans não conseguem acessar a
saúde?”. E com isso fica decidido que o mote será “Eu também quero ser SUS”, ideia de Januário.
Naquela mesma hora, Januário faz um desenho com letras cursivas dessa chamada: “Eu também
quero ser SUS”, logo depois fixado na parede. Fica, portanto, decidido que o mote deve ser
adicionado “Campanha pelo Ambulatório Transexualizador no Ceará.
#EuTambémQueroSerSUS”. A proposta é que cada pessoa trans gravasse um vídeo curto
justificando o porquê se precisa incluir de modo equânime pessoas trans no Sistema Único de
Saúde. A campanha se torna, assim, uma ação coletiva que objetiva tomar grandes proporções,
incluindo, inclusive, pessoas não trans que deveriam dizer que apoiavam a campanha também com
gravações. O vídeo seria gravado de modo caseiro, e enviado para que pudesse ser carregado na
231 A Maternidade-Escola Assis Chateaubriand (MEAC) e o Hospital das Clínicas Walter Cantídio.
296
página da Atransce e na página de um evento com a mesma chamada no Facebook. Além disso,
enviariam os vídeos por mensagem, usando, por exemplo, o aplicativo WhatsApp. A campanha
empolga a todos. Logo que terminamos, um evento é criado no Facebook com o seguinte texto
explicativo e orientador e uma imagem ilustrativa (Figura 14):
Sabemos que o Estado do Ceará ainda está muito atrasado com as políticas públicas de
saúde para a população TRANS, sabemos também que o tão sonhado e famoso
ambulatório só existe em sonho mesmo! Nesse sentido, essa campanha tem por objetivo
movermos através da sociedade civil, dos movimentos sociais, de cada pessoa trans e
principalmente da mídia dar uma sacudida no Estado, afinal de contas o que foi
prometido tem que ser cumprido! Envie para o e-mail da associação:
atransce@gmail.com uma foto sua e um vídeo de 30 segundos falando da importância
do ambulatório e no final diga: EU TAMBÉM QUERO SER SUS! (Atransce, 2018).
Figura 14 – Convocação da Campanha para o
Ambulatório Transexualizador no Ceará
Fonte: Evento no Facebook criado pela Atransce.
Aos poucos, os vídeos vão sendo adicionados na página da Atransce e ligados ao evento, e
as pessoas participantes também expressam o tom da campanha com um filtro para fotos criado
com a chamada em formato de indexador digital232. Ganha uma grande materialidade digital, o
direito à saúde presente na atual Constituição da República, mais que isso, os artigos que indicam
se tornam eles mesmos como armas de luta política. Se outros têm acesso a serviços para suas
necessidades, por que não têm também os homens e as pessoas trans em geral? A capital
fortalezense há muito se caracteriza por intensa mobilização nesse sentido, e em diversos
segmentos sociais, como já demonstrei no capítulo 4. Os meandros constituídos pelos ativistas
trans, e principalmente homens trans sobre quem recai o interesse nesse estudo, é de reviver um
engajamento político que se aproxima da animação que tomou conta do surgimento do SUS. Isso
não significa uma forma única de se relacionar com os serviços públicos, que são entendidos pelas
232 A marcação digital gera um link online dentro da rede capaz de reunir qualquer publicação que o acompanhe, gerando um
indexador: #EuTambémQueroSerSUS. Em inglês, chama-se de hashtag.
297
pessoas não como “de todos” porque eles não lhes têm acesso. O trabalho da reforma social que
lhes foi autoatribuído é de fazer com que esse “público” os alcancem. Os termos de uma análise
que se preocupe em apontar um clientelismo perdem de observar o que significa e como os atores
vivem a política. As figuras do prefeito e do governador na capital cearense não são personificadas
como alvos individuais para os quais deve-se engajar o convencimento para a criação do serviço de
saúde. A estratégia recai principalmente na geração de uma comoção que se quer popular mais do
que pública. Por isso se recorre a jornais, se faz passeatas, se narra o sofrimento, convoca
audiências, se promove peças teatrais, se produz documentários, se busca defensores públicos,
baseando-se, primordialmente, no fato de que há um conjunto de parâmetros legais que
reconhecem a saúde como direito do cidadão brasileiro: a Constituição. A linguagem do corpo
saudável, do risco de vida por causa de transição sem supervisão, sua associação com um certo
legalismo, se constrói num âmbito coletivo que se quer representativo de um grupo social.
Os vídeos que são enviados a Atransce logo ganham a página do evento no Facebook.
Identificando-se através de nome, cidade de origem e identidade social, cada pessoa anuncia o
porquê a cobertura da saúde pública para a transição é importante para sua vida. Entre homens
trans, mulheres trans, pessoas não-trans heterossexuais, gênero fluido, como demarcam, anunciam
que também querem ser SUS, que também precisam e devem fazer parte da política brasileira de
saúde, como mostram alguns trechos transcritos de parte desses vídeos:
Teoricamente, perante a Constituição, todos nós temos direito a saúde enquanto cidadãos
brasileiros, mas na prática a realidade é outra. Nós, pessoas trans, estamos passando por
uma dificuldade tamanha porque não temos ambulatório, certo? Nós não queremos
privilégios, queremos equidade enquanto pessoas, enquanto cidadãos brasileiros nós temos, sim, direito à
saúde. Por isso eu também quero ser SUS (Homem trans).
Segundo a OMS, saúde é o bem-estar biopsicossocial e a OMS e o DSM consideram a
transexualidade uma patologia mental. Então, para que nós tenhamos nosso bem-estar
biopsicossocial, é necessário que tenhamos o Ambulatório do Processo
Transexualizador. Queremos que o Estado cumpra essa necessidade referente à Portaria
desde 2008, ou seja, está fazendo 10 anos que o SUS tem essa portaria do Ambulatório
Transexualizador. Queremos o cumprimento dela. Eu também quero ser SUS! (Mulher
trans).
Eu gostaria muito de poder de usufruir desse serviço porque é uma terapia um pouco
cara. Seria muito bom pra mim poder tá tomando o hormônio e ser uma pessoa mais feliz. Eu também
quero ser SUS (Homem trans).
Além de todos os preconceitos e violências que as pessoas trans tem que enfrentar todos
os dias, muitas pessoas ainda são obrigadas a se medicar, a se automedicar, porque o SUS
não oferece esse tipo de tratamento de transição. Então, o que acontece? Isso é muito
perigoso pra saúde; e todos nós, pela Constituição, temos o direito garantido à saúde.
Então é urgente, já passou da hora da gente ter um ambulatório específico pra atender
essa demanda de transição, um ambulatório transexualizador, para que as pessoas trans possam
fazer isso com segurança [...] eu também quero ser SUS (mulher cis heterossexual).
298
Sou homem trans, e o ambulatório transexualizador seria importante para eu ter acesso,
ou me ajudar a sair dessa casca que não me pertence. Por que não? Eu também quero ser SUS
(homem trans).
Os discursos presentes nas justificativas que se materializaram na Audiência pública meses
antes se repetem na campanha Eu Também Quero Ser SUS. E isso se apoia definitivamente na
questão da segurança para a vida, que se refere a uma segurança corporal, algo que deve ter
assistência de um especialista que faça com que não se desenvolva nenhuma complicação, condição
ou adoecimento. A campanha dos minivídeos recobre também uma forma de centralizar o ativismo
no âmbito do biológico, presente na questão do risco da autohormonização – elemento mais
urgente devido à mudança que desencadeia para a vivência das interações sociais. Como se percebe
a partir dos exemplos etnográficos até aqui descritos, nenhum argumento dos ativistas se baseia
em recobrir ou garantir essa ou aquela idealização social de masculinidade ou feminilidade para
basear o reclame político. O quadro ontológico identitário não é o motor principal de direitos, mas,
como ficará mais claro adiante, ele é afetado pela forma como a política é direcionada. Assim, ao
enfatizar o par segurança/risco para justificar um ambulatório no Estado – tanto no sentido de que
essa administração hormonal já acontece, como nos efeitos que sua não realização acarreta no
âmbito das emoções e da violência –, acaba-se por gerar um tipo de cidadania que será atravessada
pela politização do biológico, por suas características visíveis, vilipendiadas e estigmatizadas,
invisíveis e sentidas, e que diz: “não há nada que se possa fazer, eu sou transexual, e se não tenho
supervisão e apoio biomédico e estatal estarei à mercê da violência pública na rua que identifica
meu trânsito de gênero”; e, que afirma: “sem esse apoio especializado eu estarei à mercê de
interações bioquímicas sentidas no meu corpo que poderão me adoecer e até me matar por causa
da administração hormonal realizada sozinha pelo calor da angústia e do sofrimento”.
Procurarei mostrar, a seguir, quais as consequências sociais dessa feição “bio” para se tornar
um cidadão, procurando, com isso, entender os arranjos de ajuda mútua e de perseguição de um
cuidado médico que seja capaz de dirimir os perigos de uma transição de gênero que, por extensão
daquilo que se lê sobre direitos inscritos na Constituição brasileira, deve ser mediada medicamente
com recursos públicos: ser SUS é ser um cidadão/cidadã brasileiro/a que não está impedido de
viver o próprio corpo, nem solto à própria sorte da violência e do risco que mudanças corporais
podem acarretar sem supervisão, e que persegue os corpos identificados como trânsitos, anormais
e passíveis de correção. Esse caráter de biocidadania não implica simplesmente, como se verá, uma
essencialização per se de elementos biológicos para fundamentação ontológica, nem a ausência da
dimensão “humana” dos direitos, ela é sua amplificação e extensão para outros domínios: é a
politização da corporalidade biológica e a sua produção social.
299
5.7. Vidas em risco e ativismo biossocial
Os discursos políticos para justificar serviços voltados à saúde trans em Fortaleza têm cada
vez mais se concentrado na necessidade de sujeitos cujos corpos enfrentam o risco de adoecimento
por terem sido manejados por objetos biomédicos desregulados233 – cirurgias, hormônios sexuais
sintéticos e outros produtos fármacos e biotecnologias – e que são passíveis de sofrer a violência
nas interações no cotidiano por ter um corpo cuja dubiedade é indesejada, questionada e conflitante
com os signos e as performances vinculadas e incorporadas na geração de um processo de
estigmatização. Entender que homens trans com quem convivi se preocupam com essas questões
enquanto primeira ordem não significa essencializar todas as experiências trans nesses termos.
Mesmo que haja muitos sujeitos trans que não desejam todas ou nenhuma cirurgia ou, ainda,
aqueles que procuram estar num trânsito permanente – questionando, inclusive, a existência
ontológica das ideias de polos entre os quais se transitaria –, não implica que para outrem essa
transitoriedade deixe de ser um problema não apenas de representação, mas de vida.
Ademais, o trânsito não é a única via através da qual essa preocupação se coloca, ela se
excede porque a hormonização é algo permanente, e são, portanto, permanentes – ao menos na
perspectiva de longo prazo – as ideias e as práticas que se criam concernentes a “riscos” à saúde.
Essas foram as dimensões que se sobressaíram no trabalho de convencimento das autoridades
estatais e biomédicas que descrevi até agora, o que, por outro lado, comporta uma miríade de
tensões. Isso acaba gerando uma feição particular para o reclame dos direitos em saúde trans, a
qual se caracteriza como uma atividade de ativismo biossocial que acaba por se concentrar nas
dimensões biológicas da transição, mesmo quando tratam de interações sociais quando partem do
que o corpo apresenta ou imagina apresentar materialmente. Como reverberação, isso acaba por
gerar uma dimensão “bio” da sua cidadania.
Pode-se entender uma gama de abordagens nesse sentido a partir do termo guarda-chuva
“biocidadania”, o qual tem sido empregado para descrever toda forma social que abarque lutas por
direitos ligadas a modos de pertencimento, demandas por acesso a recursos e cuidados em saúde,
além de requisição de pesquisas e intervenções biomédicas feitas sob uma base biológica,
vinculando, nisso, subjetividades, produção de identidades e sentimentos com dimensões
disciplinares e diferenciadoras. Outros termos se aliam a cidadania num crescimento vertiginoso
de literatura, tais como cidadania médica, biológica, em saúde, bio-cidadania digital, corporal,
genética, biocultural, terapêutica, farmacêutica e ainda ativismo biossocial. Essa base biológica se
233 Isto é, procedimentos e práticas não realizados por falta de recursos, por conta própria ou mal executados por profissionais mal
treinados.
300
refere a uma multiplicidade de problemáticas que politizam e produzem socialmente a dimensão
biológica dos corpos para garantir direitos que devem ser cobertos pelo Estado-nação a que se está
circunscrito, referindo-se a, por exemplo, status genético compartilhado, ferimentos,
adoecimentos, adicção, acesso a medicamentos, HIV/Aids (e outras infecções sexuais), demandas
de saúde em geral, demandas de saber genético, deficiência, raça e imigração. Como se percebe, a
adjetivação do conceito de cidadania faz deixar em relevo esse ou aquele aspecto principal de
engajamento sociopolítico, mas isso não implica a ausência de cruzamentos234. Fazendo referências
a essas questões e similares, outros autores utilizaram termos como biomedicalização e
biossocialidade para chegar com maior vigor nas relações e nas dinâmicas sociais (Lupton, 1995;
Rabinow, 1996, 2008; Petryna, 2002; Rose e Novas, 2005; Ecks, 2005; Rose, 2007; Health, Rapp e
Taussig, 2007; Gibbon e Novas, 2008; Lock e Nguyen, 2010; Pollock, 2012; Valle, 2015;
Heinemann e Lemke, 2014; Greenhough, 2014; Creary, 2018). Assim, o elemento bio para
descrever o ativismo, dinâmicas e relações sociais, e a forma tomada pela cidadania, se inscreve
tanto como uma ferramenta conceitual quanto como um processo social no campo da saúde.
O ativismo sociopolítico em torno de questões de saúde é amplo e tem um longo percurso
histórico e que tem especificidades de acordo com contextos nacionais e regionais. Na sociologia
e na saúde coletiva geralmente atende pela expressão de “movimentos sociais em saúde” (Brown
et al., 2004; Brown e Zavestoski, 2004), o que se refere à multiplicidade vasta da atividade política
de trabalhadores, mulheres, soropositivos no ativismo de AIDS, deficiência, pessoas em situação
de privação de liberdade, doenças raras, ativistas contra danos à saúde provocados por poluição e
má administração de químicos que danificam o meio ambiente, acessibilidade do cuidado da
população pobre, reverberações físicas das mudanças corporais entre travestis, entre outros. Esse
tipo de ativismo que tenta influenciar as decisões de gestores e de agentes estatais na conformação
de serviços e atendimentos age em diferentes frentes, levantando questões como acesso a serviços
de saúde, adoecimentos contestados, experiência da doença e deficiência, e desigualdade em saúde
baseada em diferenças de gênero, classe, sexualidade, raça e etnicidade (Brown et al., 2004, p. 679).
No caso daqueles que buscam auxílio ou suporte biomédico para a transição de gênero e o
reconhecimento social que esta propicia pode ser datada, no mínimo, desde o começo da década
de 1980 (Bolin, 1983). Contudo, nem sempre a dimensão “bio” foi politizada da mesma maneira,
uma vez que ela foi transformada pelas atividades científicas em torno da genética e do genoma
humano no final do século XX (Rabinow, 1996). Todo esse conjunto de pesquisas e teorizações
tem em comum o mundo social circunscrito pelas reverberações das ciências naturais e biológicas
234 Essa adjetivação não é restrita ao campo da saúde, e são mesmo infinitas para contar conforme muda o objeto de engajamento
ao qual se procura garantir acesso: internet, literatura, participação popular, religiosidade, entre outros.
301
quanto às mudanças e controle no seu objeto: a vida como biologia, embora possam centralizar-se
em determinados elementos da configuração biossocial, como demonstraram Sarah Gibbon e
Carlos Novas (2008).
Essa dimensão que pode assumir o reclame dos direitos em saúde ganhou particular
popularidade a partir da densa etnografia realizada por Adriana Petryna (2002) na Ucrânia afetada
pelo desastre de Chernobyl. Seu emprego original do termo “cidadania biológica” segue um rigor
analítico próprio do objeto que considera: a radiação do acidente da usina causou consequências
permanentes entre os moradores da região, gerando mortes, deficiências e mudanças genéticas,
engajando médicos, vítimas e governantes, isto é, a explosão de reatores nucleares provocada pelos
funcionários estatais para testar seu tempo de ativação provocou danos na imunidade humana e na
estrutura genética das células, contaminando ainda o solo e a água. As vítimas se organizaram para
cobrar do governo uma cobertura de cuidado em saúde e indenizatória em termos de um Estado
de bem-estar social. Articulou-se, ainda, o interesse médico em estudar e aplicar terapias. Tendo o
acidente acontecido ainda quando a região era parte da União Soviética, que demorou em responder
e conter os danos da explosão, o novo processo de independência da Ucrânia que se desenvolveu
com o colapso socialista também se utilizou desse acidente para alimentar os reclames nacionalistas
do novo Estado e país. Petryna explica que essa feição da cidadania e das demandas em torno de
recursos econômicos se mistura com o discurso dos direitos humanos. A antropóloga, assim, define
a cidadania biológica como:
Uma demanda massiva, porém, seletiva de acesso a uma forma de Estado de Bem-Estar
Social baseada em critérios legais, científicos e médicos que tanto reconhecem a lesão
biológica como a compensam. Tais demandas têm sido também formuladas no contexto
de perdas fundamentais - perdas de segurança primárias, tais como empregabilidade e
proteções estatais contra inflação e corrosão geral de categorias político-legais. Lutas
sobre produtos médicos escassos e sobre os critérios que constituem uma legitimidade
do reclame à cidadania são parte de um terreno pós-socialista desconhecido (Petryna,
2002, p. 6, tradução minha).
Antes de Petryna, Paul Rabinow (1996a) publicava, sobre o Projeto de Genoma Humano,
que ao ser mapeado iluminaria novas formas de identidade, de se relacionar com a biologia e de se
criar comunidades, gerando, por isso, o que o autor chamou de biossocialidade. Assim, temos o
traçado histórico teórico de como essa dimensão bio, ao lidar com saúde e doença, morte e vida,
circunscreve novas relações e sujeitos, gerando grande interesse nas conformações sociais que as
biotecnologias e o conhecimento e práticas biomédicas e de controle biológico acarretariam (cf.
Valle, 2015). Ao invés de uma explicação sociobiológica235, o antropólogo indicava um campo de
235 A abordagem sociobiológica pretendeu associar elementos sociais da vida humana a um fundamento genético de explicação
evolutiva para o comportamento e as relações. Segundo Marshal Sahlins (1977, p. 5, tradução minha), isso reproduzia uma fusão de
um entendimento tradicional da “seleção natural” e a teoria da ação social própria à competitividade de mercado da cultura euro-
302
dinâmicas sociais novas até então. Isso se insere dentro de um arcabouço de governo que se baseia
na vida em si mesma em termos biológicos – como Michel Foucault descreveu como “biopoder”
e o que já refleti nas páginas precedentes –, e no qual desenvolveu-se um campo de disputa entre
Estados e grupos de indivíduos que reclamam direitos e deveres a partir dessa relação ao partir de
argumentações em torno de uma biologia corporal. Com o conceito, Rabinow (2008) quis fazer
referência a práticas como modificação e manejo genéticos, a obrigação para provimento de saúde
em resposta a fatores de riscos, novas formas de socialidade em torno de questões de adoecimento.
Por biossocialidade, então, o autor procurava mostrar o embaraço dos limites entre natureza e
cultura por essa nascente biologia molecular que teve impactos culturais e sociais consideráveis.
Rabinow afirma, portanto, que “se a sociobiologia é cultura construída com base numa metáfora
da natureza, então na biossocialidade a natureza será modelada na cultura compreendida como
prática; ela será conhecida e refeita através da técnica, a natureza finalmente se tornará artificial,
exatamente como a cultura se tornou natural” (Rabinow, 1996, p. 143-4). Como categoria
heurística, não há aí um elemento de “natureza” para explicar essa forma de relacionalidade. O que
parecia, então, quase uma visão de futuro (Rabinow, 2008; Gibbon e Novas, 2008), se confirma
nas diferentes pesquisas e articulações em torno das consequências de se mapear o genoma
humano, o genoma de vírus e outras formas de molecularizar a vida humana.
Muito embora a transexualidade seja tomada como algo social e cultural para sua concepção
de possibilidade, não sendo ela defendida como causada por fatores genéticos pelos homens trans
na sua mobilização sociopolítica, a dimensão biossocial de seu ativismo se confirma inicialmente
pela centralidade em que colocam os processos de saúde e doença para justificar a necessidade da
cobertura estatal e por ser a experiência de transição de gênero incutida no corpo, o qual tem sido
cada vez mais molecularizado pelas ciências naturais à conformação de procedimentos e
tecnologias que possibilitem tais modificações ou readaptações. O argumento que convence é o
argumento objetivamente utilizado: adoecem porque não transicionam com supervisão médica. As
vidas trans não estão, portanto, dissociadas dessas “novas” feições de se constituir o ser humano,
e são fortemente influenciados os debates e o desenvolvimento de biotecnologias para a transição
e a manutenção do risco em saúde de quem muda de gênero. Pode-se ver, ainda, a transição como
um processo biossocial nos termos aqui refletidos. Quando essas questões ganham relevo na
atividade sociopolítica diante do Estado-nação, a cidadania é então transformada desde seu modo
mais tradicional.
estadunidense, isto é, era uma proposição pseudocientífica de que “a organização social é muito mais, e nada mais, o resultado
comportamental da interação de organismos tendo inclinações fixadas biologicamente”.
303
Alargando a concepção empregada por Petryna e a aplicando para além do contexto por
ela instituído, e usando-se também das indicações de Rabinow, Nikolas Rose e Carlos Novas (2005,
p. 440, tradução minha), veem esse tipo de cidadania como uma forma ativa de reclame político
que tem amplitudes globais. Para eles, ela se refere a “todos os projetos de cidadania que ligam suas
concepções de cidadania a crenças sobre a existência biológica dos seres humanos como indivíduos,
como famílias e linhagens, como comunidades, como populações e como raças e espécie”, sem se
limitar a comunidades nacionais imaginadas. Cada vez mais, argumentam, os grupos e os indivíduos
procuram se conectar globalmente, recorrendo a organismos de associação internacional. Contudo,
a dimensão comunitária nacional não deixa de existir. Os indivíduos “se ligam aos seus
conterrâneos e os distinguem de si, vistos com pouca ou nenhuma cidadania, parcialmente em
termos biológicos. Esses sensos biológicos de identificação e afiliação fazem certos tipos de
demandas éticas possíveis: demandas de si mesmo; nos parentes, comunidades e sociedade; e
naqueles que exercitam autoridade” (Rose e Novas, 2005, p. 441, tradução minha), isto é, a
cidadania biológica significa novas formas de conexão entre biologia e identidade. Nesse sentido,
os corpos humanos são biotecnologicamente exploráveis, podem ser fragmentados e são
fisicamente refeitos por tecnologias e pelo consumo de fármacos.
Adele Clarke et al. (2003) não usam o termo biocidadania, mas biomedicalização. A meu
ver, as autoras se preocupam menos com cidadania e mais com os efeitos do processo de
transformação da medicina, cujas análises se mantêm relevantes para o presente estudo. Elas
também analisam menos as articulações dos pacientes e sujeitos que entram em contato com essas
dinâmicas e mais as estruturas biomédicas que têm cada vez mais regido as relações com os corpos
e com o cuidado. As autoras indicam que houve uma passagem de uma era da medicalização para
outra chamada de biomedicalização. Essa “virada” se referiria a uma mudança de focalização; antes,
a medicina estaria centrada na sua consolidação ao tornar condições e problemas humanos em
problemas médicos para que pudesse se expandir. Com o aumento do seu domínio político, e a
produção tecnológica, a medicina passaria a transformar e não mais apenas a controlar/criar seus
objetos. A biomedicalização se trataria desses “processos multidirecionais, multissituados e
complexos de medicalização que hoje têm sido tanto expandidos como reconstituídos através de
práticas e formas sociais emergentes de uma alta e crescente medicina técnico-científica” (Clarke et
al., 2003, p. 162, tradução minha). A biomedicina foi, assim, tecnocientificizada pelo aumento
integrado de infraestruturas que registram, gravam, processam informações sobre pacientes, e
adentram cada vez mais numa molecularização e geneticização da vida. Por isso que as autoras
falam em identidades técnico-científicas e não em cidadania biológica. Novas especialidades
médicas surgem, assim, baseadas na reunião de “loci de práticas e conhecimento sobre populações
304
distintas e de gêneros de ciência e tecnologia”, também distintas (p. 168). Mas o foco é retirado do
paradigma da definição, do diagnóstico, da classificação e do tratamento de doenças, para a um
paradigma que embora também defina, diagnostique, trate e classifique, lida agora com esse
processo voltado para os riscos e a transformação da saúde. “As doenças e os riscos são
conceitualizados ao nível dos genes, das moléculas, das proteínas” (p. 168) e não apenas a níveis
de órgãos e das células. Os corpos e as identidades também têm lugar nessas considerações. Agora
não mais o foco está na normalização dos corpos, mas na sua customização: é uma ação dupla. Os
corpos são individualizados, há drogas, tecnologias e dispositivos que individualizam, que
transformam os corpos junto a identidades que são aí coletivizadas.
São por essas questões que Clarke et al. (2003) afirmam que estaríamos na era da
biomedicalização caracterizada pela reorganização político-econômica da medicina e seu novo foco
em saúde entendido através do cálculo de risco. Novas identidades e trabalhos corporais
configuram essa virada tecnocientífica. As autoras não determinam uma data de nascimento para
essa era, mas tentam situá-la no presente após a Segunda Guerra Mundial com a comercialização
intensificada da medicina e das técnicas de intervenção, registro, venda, e sua capacidade de criar
identidades (Clarke et al., 2010) que esteve alimentada pelo novo papel assumido pelos Estados
Unidos como potência mundial, ocupando o espaço antes das potências europeias coloniais. Essa
potencialização estadunidense mundializou suas práticas culturais intercruzadas com práticas
científicas. A ausência de considerações sobre cidadania na teorização de Clarke et al. (2003) é
bastante situada por sua delimitação dos Estados Unidos, onde não há um sistema de saúde de
acesso universal. Quando se considera essa biomedicalização contemporânea, ela adquire outras
feições em contextos nos quais sistemas de saúde pública gratuitos existem, como o Brasil. Muito
embora o mercado continue presente em todos esses lugares, a permanência do direito em saúde
materializado em leis, serviços, treinamento profissional, age, consideravelmente, entre aqueles que
buscam cuidado, imbuindo as pessoas na busca por cidadania ao serem recortadas como cidadãos
que não têm acesso à infraestrutura de que o Estado-nação dispõe.
Quando homens trans centralizam seus discursos por acesso à saúde para que sejam
construídos serviços, para que médicos sejam treinados apropriadamente para os atender dentro
de suas especificidades e não para os diagnosticar, o risco é uma das categorias mais frequentes que
ganha relevo e expressividade. É o que convence agentes de saúde e agentes estatais, é o que invade
as instituições, e torna seus discursos legíveis, compreensíveis e unificados com outros grupos que
não lhes são alheios ou apenas diferentes. E o risco se refere a todos os campos da transição: à
hormonização, às cirurgias, à clínica psi e à médica, aos antigos laudos para mudança do assento
civil e a adoecimentos paralelos que podem tornar a transição arriscada de ser realizada ou ter uma
305
experiência de sofrimento intensificada. Mas também se fala dos riscos das interações sociais: ao
ser reconhecido na rua como alguém que usa um bainder, tem sua integridade física ameaçada. Nos
capítulos três e quatro, eu me dediquei a demonstrar como isso se realizava quanto a processos de
adoecimentos variados e na procura pela transição de gênero.
Outra forma de visualizar essa questão esteve nas descrições sobre uma segurança em
espaços públicos que era ameaçada pela leitura de terceiros a respeito de uma certa dubiedade do
corpo, como é o caso da abordagem policial. Diferentes homens trans integram suas narrativas de
sofrimento com eventos de averiguação policial em Fortaleza, nos quais os policiais revistam os
homens percebidos e as policiais, as mulheres percebidas. Numa determinada ocasião, quando um
policial fora revistar um dos interlocutores e sentira o volume do bainder por debaixo da camiseta
inferiu que aquilo se tratava de alguma forma de esconder uma arma ou droga. Isso foi recorrente
entre outros interlocutores. Assim, o corpo ainda não transicionado na intenção que se buscava
gerava sofrimento por oferecer um risco a uma má percepção do outro nas interações cotidianas,
nas quais ser homem levava-os a ter determinadas interações. Quando um desses interlocutores
anunciava que era transexual, os policiais costumavam rir e chamar uma policial feminina para
vistoria, gerando também por isso outro desconforto. Assim, um elemento físico do corpo ganha
centralidade e é visto como oferecendo risco à saúde.
Isto é, o risco também atinge algo que aparentemente não tem ligação com o cuidado, a
algo fora de seus corpos, mesmo que estejam falando de níveis corporais diversos, e do sofrimento
incorporado. Por deter de um apelo tão forte junto aos setores estatais, a feição que assumem as
dinâmicas de biocidadania na mobilização e articulação trans como estratégia política não deixa de
produzir efeitos na formação da identidade e na percepção de si e do cuidado. Essas estratégias
para assegurar demandas em saúde se dão, portanto, em termos biológicos mesmo que não estejam
se referindo a genética especificamente. É no campo da corporalidade física, da molécula, do risco
da saúde, e do risco da vida que é colocado quando práticas à transição são vistas como potenciais
à produção, por exemplo, de um quadro cancerígeno, como Januário aludiu na Audiência Pública.
Contudo, risco não é algo autoevidente, nem como categoria nem como fenômeno236.
Segundo Mary Douglas (1983), as preocupações e ações em torno de algo assim classificado não
se baseiam na iminência de perigos intrínsecos, automaticamente percebidos, isto é, riscos não são
236 Mary Douglas (1983, 2003) indica que os primeiros usos do conceito de risco estiveram presentes nas análises matemáticas como
um conceito de expectativas que se baseia em padrões de frequências desenvolvido por teóricos da probabilidade. Na sua reação a
teorias matemáticas que explicavam não haver a concepção de risco entre pessoas leigas, Douglas demonstra que a ideia em si de
risco é bem anterior ao seu uso teórico na matemática, e perpassa todas as ações dos indivíduos. A intenção da autora é mostrar
que é comum o “pensamento probabilístico” (Douglas, 2003, p. 51) e não uma invenção de cientistas ocidentais. Contudo, o termo
risco desde muito adquiriu outros significados que não aqueles da matemática e passou a invadir a vida cultural e política, denotando
moralmente apenas algo negativo, isto é, a percepção de que não existiria um risco bom, apenas riscos ruins, e de que risco se torna
sinônimo de perigo (Lupton, 1995) (ver também Le Breton, 2012b).
306
“aceitados”, eles são construídos coletivamente; só se tornam enquanto tais quando são assim
julgados. Assim, “declarações de risco são declarações morais de uma sociedade cientificada”
(Beck, 1992, p. 172). Lupton (1995), que indica um conjunto de três discursos genéricos sobre risco
(aqueles aplicados a um grupo que não tem acesso suficiente aos recursos e serviços, aqueles como
consequência de um estilo de vida e outros que enfatizam as dinâmicas ecológicas como
proveniência), acrescenta, assim, para uma natureza simbólica, de modo que a sua percepção se
constitui socioculturalmente como uma experiência. Nesse sentido, por ex., Gifford (1986), citada
por Lupton (1996), ao estudar vivências de mulheres enquadradas como em risco de desenvolver
lúpus, já argumentava que risco se torna um estado vivido de saúde/doença e um sintoma de
doença futura, algo que é internalizado como um estado de ser. A própria ideação e marcação de
estar em risco produz experiências subjetivas e emoções aflitivas. Por isso, os homens trans
precisaram ter recorrido a uma série de estratégias para produzir o risco visível aos agentes estatais.
Mas não é apenas um discurso que se faz como estratégia, o risco é vivido como prática, e não
apenas no sentido de “atos de fala”, mas principalmente como prática social.
O manejo do risco237 (em saúde) para transicionar e o risco (para a vida) causado pelo não
transicionar se materializam principalmente no campo da farmaceuticalização, a qual não se refere
apenas a administração de testosterona sintética, mas todo o trabalho envolvido no uso de
substâncias produzidas socialmente como fármacos de transição, nos quais se incluem
principalmente o Minoxidil para completar o trabalho de masculinizar o corpo através do fazer
nascer pelos, e com isso, fazer emergir o masculino. Isso indica processos sociais de
biomedicalização que não se restringem às vias da patologização, mesmo que nesse contexto os
homens trans também lidem com eles, e recobrem dinâmicas morais sobre o cuidado do outro e
suas possíveis consequências coletivas. Como dizem homens trans, “nem todo mundo tem uma
boa genética”, fazendo alusão ao crescimento de pelos faciais mesmo após o uso contínuo de
diferentes ésteres de testosterona. A ideia de “boa genética” aqui aciona que as sínteses hormonais
não farão emergir nada muito diferente dos traços hereditários biológicos que se tem na linha
familiar, isto é, se seu pai não tinha pelos no rosto, você provavelmente terá muitas dificuldades de
tê-los mesmo com a hormonização contínua e supervisionada. O hormônio apenas aciona sua
capacidade genética. Não se criaria algo do nada. Aí se tem uma noção de fazer emergir não apenas
o masculino, mas o de expor traços genéticos. Isso confere uma explicação de porque alguns
desenvolvem barbas completas apenas com a administração hormonal, enquanto outros faltam o
preenchimento do bigode, e outros não conseguem nada além de pelos esparsos na pele do rosto
mesmo após meses ou anos.
237 O risco também é uma categoria presente nos discursos e nas práticas médicas que analisarei no próximo capítulo.
307
Assim, o Minoxidil entra aqui para obrigar esses pelos a saírem, embora se entenda que a
genética limite sua ação. Mas os usos desse fármaco não se dão sem tensões, pois há uma
moralidade que envolve sua utilização e a percepção de sua necessidade. De um lado, há a menção
de que para fazer o fármaco funcionar é preciso ter “disciplina”, seguir à risca as instruções; por
outro lado, se tem a ideia de que usar o Minoxidil é expor-se sem necessidade a riscos à saúde – os
interlocutores entre si culpam uns aos outros de que quem critica o uso desse fármaco é porque
possui todos ou os mínimos recursos para transição a contento, enquanto àqueles, o uso de
Minoxidil depõe contra o ativismo porque demonstraria um uso indiscriminado de uma substância
controlada. Isso se evidenciou, por exemplo, quando conversava com Kaio sobre o ativismo e suas
diferenças regionais, uma vez que nem sempre as demandas de um lugar são encampadas por
outros se não forem iguais. Num desses conflitos e divergências sociopolíticas, um dos ativistas
teria acusado homens trans do Nordeste de fazer uso “sem receita” de Minoxidil, algo que na
acusação seria vista como prejudicial à saúde. Insultado com essa acusação, Kaio me conta que isso
não leva em consideração a particularidade do acesso à saúde que há em seu estado para pessoas
trans. A noção de ilegalidade é uma referência ao risco que se corre ao usar fármacos sem indicação,
sem vigilância, sem testes prévios e contínuos. Expressando sua indignação, ele me descreve um
desses conflitos:
[Anda] dizendo aí que nós do Nordeste usamos Minoxidil sem
receita e que isso é prejudicial à saúde. Para ele que tem acesso a tudo vir me dizer o que
é prejudicial à minha saúde? Que que ele tem feito por mim para que eu tenha um
atendimento, para que eu não use nada ilegal? O que que ele tem feito? Ele não faz nada.
É muito fácil para ele dizer que a gente toma hormônio ilegal ou outras coisas ilegais,
dizer que aquilo faz mal à saúde, que parem de usar.... É fácil para ele porque ele usa tudo
sendo acompanhado. Isso para mim é hipocrisia. (Kaio, entrevista, 2018).
A moral de uma boa saúde que deve ser perseguida também é evidente na acusação que
sofre Kaio e, a reboque, outros homens trans cearenses. Suas formas alternativas de superar a falta
de acesso a serviços, consultas, fármacos legalizados são alocados na esfera do super risco, do risco
inadmissível quando o contexto muda a relação com os profissionais de saúde. Isso não quer dizer
que transicionar seja um problema que deveria ser evitado para não se ter riscos à vida, mas que
esses riscos à vida advêm de uma transição não supervisionada. Esse ativismo biossocial, no sentido
que o emprega Carlos Guilherme do Valle (2015) como mobilização em torno de condições
terapêuticas, que homens trans constroem como meio de serem reconhecidos como cidadãos que
têm demandas, direitos e necessidades específicas se produz principalmente através da ideia de que
sem vigilância algo de ruim pode e quase sempre acontece. Ao falar de ativismo biossocial, o autor
está interessado em entender como “pessoas têm se unido em torno de certas ideias e práticas
relacionadas a vida, saúde e doença, moralidade e política” (Valle, 2015, p. 33). Embora os
308
interlocutores homens trans ativistas não elaborem suas necessidades de acesso aos direitos em
termos de serem doentes, no sentido de acreditarem estar “doentes de transexualidade” – embora
haja contextos que acionam as classificações diagnósticas dos manuais de saúde –, o foco de suas
uniões em torno de “ideias e práticas” sobre vida, saúde, doença, política e moral tem muitas
similaridades com o mundo social do HIV/Aids por causa da articulação que ser trans e demandar
modificações em tantos níveis diferentes da biologia corporal posicionar questões sobre a vida e
sobre adoecimentos, engajando cientistas de diferentes lugares para melhor construir transições
saudáveis, sem adoecerem. A doença existe como risco, e risco é sinônimo de doença. Embora o
elemento bio não esteja associado necessariamente à genética, o está na doença que pode advir
porque o nível hormonal não é o correto, porque a cirurgia foi malfeita, entre outros.
Assim, essa mobilização acaba por gerar novos significados à cidadania. Encontro o
elemento “bio”, inicialmente como uma estratégia política que, pouco a pouco, toma conta das
práticas e das representações trans de cuidado e adentra na subjetivação e identidade de homens
trans: não são transexuais raros (capítulo 2), compõem uma população com recorrências e com
situações de sofrimento, demandam cuidado em saúde pública e trabalho de profissionais médicos
(este capítulo), e que vivem situações de risco de adoecimento e de vida pela não cobertura estatal
para que possam transicionar em segurança e devido a não conseguirem acessar serviços de saúde
para adoecimentos comuns (capítulo 3). A ideia de risco elabora de maneira politizada a dimensão
orgânica dos corpos, e a inclui no que se tem chamado de “corpo político”, essas práticas de como
o corpo é percebido e representado através das relações sociais. Isso também lida com o que se
chamou de fato biológico, com as diferenças sexuais, mas não as toma de modo ontológico pré-
discursivamente.
A ideia de risco na mediação médica na experiência da transexualidade parece indicar um
caminho similar daquele percorrido no campo das deficiências. De uma medicina autorizativa para
uma medicina mediadora, é esse movimento que os reformadores sociais querem assistir
acontecendo, é a essa última que engajam os ativistas trans interlocutores, e não uma rejeição das
explicações todas da biomedicina. A linguagem do diagnóstico parece estar sendo substituída – ou
pelo menos fundida ou transformada e redirecionada – pela linguagem do risco. Não mais se repete
a busca pelo diagnóstico estratégico a todo custo238, mas foca-se nos riscos de uma transição sem
supervisão médica para garantir direitos à saúde. Com isso poderão vir novas (ou atualizadas)
formas de disciplina e diferenciação, tanto mais quanto as (bio)tecnologias avancem em sua
238 Isso não significa que não haja pessoas trans que se sintam confortáveis e em paz com o diagnóstico, uma vez que isso retira
tanto a dimensão da culpa pela saída da designação do nascimento como lhes devolve a vida através de um saber autorizado que
oferece um caminho a ser seguido em meio às incertezas que podem parecer definir suas perspectivas. Esse meu apontamento não
é uma defesa do diagnóstico, mas não me furto de tecer tais considerações, já que meu trabalho antropológico primeiro é entender
e não impor juízos de valores.
309
eficiência no manejo dos corpos – como, por exemplo, o alcance da faloplastia com a certeza da
permanência da libido em homens trans nos mesmos ou superiores moldes daqueles já alcançados
da vulvoplastia; pesquisas avancem em fonoaudiologia para treino das novas vozes; novas técnicas
sejam desenvolvidas ou antigas aprimoradas para deixarem cada vez menos vestígios dos corpos
de antes (principalmente quanto as mamoplastias); e, ainda, que se estabeleça a longo prazo uma
vigilância da hormonização em indivíduos desde o nascimento até a morte, gerando um quadro
amplo das respostas à sua administração sintética, entre outros. Essas constituições científicas não
deixam os sonhos dos rapazes com quem convivi, e que me diziam ser a incerteza de certas cirurgias
de redesignação a razão de suas rejeições a realizá-las mesmo se oferecidas a seu alcance.
Outro elemento dessa verdadeira biotática política se liga à demanda em saúde que se refere
ao discurso lógico de que: como transicionam para um corpo diferente, essa diferença implica
cuidados médicos específicos pós e durante a transição. Não poderia esperar, por exemplo, que se
relacione com o cuidado reprodutivo e consultivo à ginecologia da mesma maneira que fazem as
mulheres que não são trans. Como argumentam, não se quer um tratamento excepcional, mas
necessitam de ser encarnados de uma forma diferente daquela a qual eram tratados antes da
transição, no feminino. Percebe-se aí que a ida à ginecologia tem um grande efeito sobre a
identidade daquela que homens trans procuram se desvincular. Por isso que se idealiza “uma
mesma ginecologia, mas diferente”. Esse processo social que erige uma tática política a atingir uma
forma de ativismo biossocial acaba por transformar a cidadania trans também numa biocidadania.
Não em termos unívocos e excludentes de outras feições, mas tão mais necessário quanto mais
próximo está dos regulamentos que tornam possíveis serem compreendidos pelas ciências da vida
biomedicalizadas e por agentes estatais a ela submetidos. Aí se tem orbitado sobre os seguintes
eixos, os quais venho descrevendo etnograficamente até aqui e que assim oferecem um sumário do
meu argumento:
1. Nós somos trans, existimos, e nada podemos fazer para não ser quem somos. O que
somos demanda mudanças corporais que tem diferentes níveis de manejo e as quais são
cruciais para nossa saúde mental e física em termos de segurança que previne a violência e
o adoecimento. 2. As alterações corporais fazem emergir ao nível do visível e invisível quem
somos. 3. As alterações corporais acarretam a necessidade de cuidado e vigilância para que
não desenvolvamos doenças ou problemas de saúde devido a práticas e tecnologias mal
executadas no decurso e após a transição de gênero. 4. A mente e, consequentemente, o
corpo adoecem se não adequo o que pretendo. 5. A violência contra a população trans em
geral é diminuída quando se é reconhecido na interação social como alguém em trânsito. 6.
310
O acesso a políticas de saúde e tecnologias oferecidas no âmbito da saúde pública (SUS). 7.
A vida social das cirurgias – mesmo sendo, na prática, de difícil acesso, tem uma grande
potência de organização social – porque implica a ação da conquista do espaço para
produzir uma estrutura que consiga garanti-la e porque produz outras práticas que acabam
sendo vivenciadas para além da sua espera (bainders). 8. O contexto e judicialização do
acesso à saúde e à mudança de registro civil também se utiliza dessa narrativa biológica. 9.
A noção de existirem como população. 10. A cobrança de que médicos façam pesquisas
sobre procedimentos que precisam.
Essas questões lançam luz sobre as formas e os alcances inesperados que podem se
materializar no ativismo sociopolítico em geral, e nesse particular caso trans. Vivendo relações
sociais cada vez mais atravessadas por uma biomedicalização tecnocientificizada, não poderia ficar
sem efeito suas reverberações sobre a vida de homens e mulheres trans de um lado, e de
profissionais de saúde de outro, que escolheram lidar com um cuidado afirmativo239 nesse sentido.
Assim, é necessário não ficar apenas na superficialidade dos corpos, no que tange as suas
modificações de transição, mas alcançar aquilo que é feito das moléculas que emergem ao visível a
matéria que é tanto significada como produzida socialmente. Quando discutiu sobre o papel da
despatologização na cidadania trans, Davy, Sørlie e Suess Schwend (2018, p. 13) chamaram atenção
para uma dimensão corporal dos direitos, sem com isso atingir, de fato, a sua dimensão para além
dessas superfícies. O que se faz da saúde, dos direitos e da subjetividade quando são as células que
se tornam importantes para o argumento que convence os políticos e os médicos? Os hormônios
sintéticos existem enquanto agentes que interagem com células e que as produzem
bioquimicamente. É assim que surgem para os profissionais, principalmente os médicos e as
médicas, que receitam exames investigativos sobre taxas hormonais prévias ao encaminhamento à
terapia hormonal. É nessa materialidade que pode se encarregar a legitimidade diante dos setores
estatais que organizam os serviços em seus diferentes níveis. Para saber de sua necessidade e da
segurança em usá-los precisa-se acessar suas formas, observar suas taxas, acompanhar as interações
que causam naquilo que é invisível na interação química, mas que emerge e a impacta naquilo que
apresenta os corpos e que participa das interações sociais. Munidos dessa evidência, os ativistas
agem para convencer os responsáveis pelos serviços, os controladores farmacêuticos, os políticos.
Por isso que a cidadania trans, assim, é transformada pela emergência política dessas questões cada
vez mais presentes e evidentes na vida dos ativistas e dos pacientes, que politizaram assuntos e
239 No próximo capítulo objetivo aprofundar essa discussão a partir dos médicos.
311
elementos bioquímicos que sempre estiveram no horizonte dos profissionais diretos ou indiretos
de saúde: os biólogos, os médicos, os enfermeiros, e até os peritos do Direito, entre outros.
Isso tudo dá outros contornos pouco usuais à cidadania trans, principalmente quanto a sua
dimensão de saúde que tem sido aqui o centro do ativismo sociopolítico e cultural. A forma
biossocial que assumiu traz à tona novas direções para agir e pensar diante da conformação de
direitos à saúde, e de direitos trans em geral, porque esses são tidos como garantidos apenas se já
tiver sido constituído o acesso universal e gratuito a serviços de saúde desde a transição de gênero.
Como poderiam, pensam os ativistas, estarem em pé de igualdade com outros sujeitos que não
necessitaram construir tais esforços? Assim, o ativismo biossocial dos interlocutores demonstra
que cidadania trans não se perfaz apenas em torno de questões de assentamento civil, muito embora
elas não estejam ausentes do cuidado em saúde. A questão central é que essa política politiza o
corpo da pele para dentro e não apenas esse corpo visível e aquilo que o representa (mudanças no
registro civil, e garantias de acesso a instituições, práticas e rituais comuns como casamento,
reprodução, educação etc.).
5.8. Conflitos sociais e saúde
Procurei, ao longo desse capítulo, descrever como a mobilização e articulação de homens
trans como grupo sociopolítico lidou, construiu e articulou discursos em saúde para poder justificar
suas necessidades que corroborassem a abertura do Ambulatório do Processo Transexualizador
em específico, e de maior receptividade nos serviços públicos de saúde em geral. Nesse sentido, o
risco é a categoria principal que expõe o engajamento em torno da política do direito à saúde ligada
a uma biologização das relações. Esse é o discurso que convence. A complexidade disso leva-nos
a pensar como essa forma de ação coletiva mesmo não advogando pela essencialidade do ser em
primeira ordem, procura encontrar a manifestação daquilo que os une e os diferencia em relação
àqueles que não são trans, isto é, como equiparar a necessidade em saúde trans em relação àqueles
que já necessitaram de modo inconteste de cobertura que já se encontra em ação, mas de modo
deficitário ou precário? Uma forma de responder a isso é articular uma política do corpo, como
chamei, da pele para dentro ao expor as alterações e operações biológicas que esperam realizar no
decurso da transição de gênero.
O capítulo poderia ter tomado outras direções, mas privilegiei a descrição de discursos e
suas ações cujo esforço estava em convencer o Estado-nação. Outra forma de fazê-lo teria sido o
de descrever etnograficamente as práticas em torno das quais essa biossocialidade também se
exporia, talvez até mais cruamente, de como se lida no cotidiano e nos serviços de saúde com a
testagem da testosterona e outras formas de verificação e, portanto, de vigilância, de informações
312
sanguíneas que irão ser importantes para os técnicos da medicina na produção das receitas e da
escolha de qual marca de hormônio sintético usar e como operar os ciclos de aplicação. Poderia
também ter descrito engajamento em torno de cirurgias e como uma razão estética se cruza com
uma razão do saudável e da emergência de um eu apropriado. Isso não significa dizer que aja aí
apenas questões puramente tecnificadas como se ao dizê-lo dessa forma estivéssemos excluindo de
suas práticas as relações, os significados e a política. Essa outra direção da explicação etnográfica
poderia ainda abarcar outras questões que surgiram em campo, como as mudanças vocais durante
a transição que impactam diretamente o desempenho profissional daqueles que cantam; como me
indicou um dos interlocutores, isso demonstra a necessidade de ser atendido por um fonoaudiólogo
tanto para observar a “saúde da voz” como para ajudar a pessoa em transição a não perder sua
prática vocal, mas a se reposicionar no contexto do canto quando se muda de tenor para contralto,
por exemplo.
Ao tomar também a forma de ativismo biossocial, a política dos homens trans em saúde
evidencia outras dimensões pouco exploradas com clareza por outros ativistas e por muitos
acadêmicos. Mesmo que não se trate aqui de opor uma dimensão que rejeita uma perspectiva de
construcionismo social e aquela que a emprega radicalmente, os interlocutores enquadram suas
experiências de saúde e de bem-estar social com questões que lhe são urgentes e que demandam o
entendimento de como seus corpos funcionam molercularmente para que aquilo que seja visível
condiga com aquilo que se subjetiva. Tudo isso se dá, assim, numa atmosfera de grande conflito
social e intensa turbulência política para que haja uma consolidação de identidades em contrapartida
àquelas já estabelecidas no meio denominado como a “comunidade LGBT+” e as estratégias de
conquista e convencimento de agentes médicos e burocráticos. Essa política que, sem querer,
constitui-se como uma cidadania que não desconsidera a politização do biológico ou a biologização
das relações se resume no seguinte: “sem a cobertura estatal em saúde pública sofremos os riscos
de adoecer e de morrer porque as pessoas na rua são um risco para nós se nós formos vistos como
travestidos de homem; as práticas de mudança corporal e molecular, que realizamos pela urgência
do sofrimento de estar num corpo que não condiz com nossas vidas, nos deixam em risco de saúde
porque as realizamos sem domínio e conhecimento técnico-científico”.
Ao tomar essa fórmula política, sem o prejuízo do acionamento de outros reclames e de
outros estilos de se fazer política, a atuação social desse ativismo não deixa de gerar consequências
nos outros campos que integram o domínio da saúde trans que esses movimentos sociais trans
desejam construir. Cumpre, assim, observar e entender esses outros espaços a partir das
perspectivas de seus próprios atores e ver como constituem esse grande campo social e como se
diferenciam por sua natureza própria de autoreprodução: “os médicos”.
313
– Capítulo 6 –
Sensibilidades e medicina trans no sertão
A sociedade está mudando e as ciências humanas estão olhando
[...] e estudando isso à medida que está acontecendo. E as ciências
médicas e biomédicas [...] têm uma fase de negação até que aquilo
se impõe de tal forma [...] que não tem como se ignorar que
aquele grupo precisa de especificidades do cuidado. Só que,
enquanto se está criando protocolos para cuidar daquilo, aquilo
já mudou [...]. Então, eu tenho a sensação [de] que a gente sempre
está... que a medicina sempre está atrasada em relação ao que é
necessário de necessidades de cuidado.
– Carmela, médica (entrevista, 2018).
6.1. Para uma antropologia da medicina trans à brasileira
Em alusão ao “Dia de 29 de janeiro”240, a Sociedade Brasileira de Medicina de Família e
Comunidade (SBMFC) lançou, no dia 31 daquele mês, uma nota pública na qual discutia a
necessidade de se incluir na Atenção Primária do SUS cuidados para travestis e pessoas trans.
Apresentava-se, de maneira inusitada, parâmetros técnicos para a atividade de supervisão e
mediação médica para a transição de gênero, dosagens indicadas para hormonização e orientações
clínicas, esclarecia-se termos inclusivos, discutia-se formas de abordar pacientes, de entender
problemáticas de consentimento e riscos de procedimentos. Em suma, se estabelecia a posição
formal de uma comunidade de médicos e médicas sensíveis à violência sofrida por uma população
específica e a necessidade de se compreender, abordar e tomar tecnicamente para si a atuação em
atenção à saúde para esse grupo de pacientes. Isso é particularmente inovador haja visto que o nível
primário tem sido elegido apenas como porta de entrada e não um dos lugares onde procedimentos
realmente serão feitos segundo a atual política de saúde trans, como demonstrei no capítulo 4. Era
a primeira vez que uma sociedade médica fazia isso de modo tão abertamente despatologizante
com um protocolo afirmativo. Apresentando uma posição frontalmente contrária ao diagnóstico
do “transexual de verdade”, a nota estabelecia:
Da mesma forma como reconhece-se o direito à autodeterminação de gênero para
retificação de nome e gênero em documentos civis, é necessário respeitar estudos
240 Celebração nacional em prol de visibilidade política da população trans e travesti, já mencionada no capítulo 5.
314
acadêmicos e perspectivas do movimento social pela despatologização das identidades
trans de que não é possível realizar diagnóstico de gênero, pois trata-se de uma identidade
construída a partir de parâmetros sociais, culturais e históricos durante um longo período
de vida e que não representa um problema de saúde (SBMFC, 2019, online, grifos
originais).
O texto da SBMFC foi fruto de uma discussão proveniente de seu grupo temático em
gênero e sexualidade, a qual ganhou relevância particular a partir de questões colocadas por médicos
e médicas numa publicação na internet. Um tema que ganhou bastante relevo foi aquele sobre a
continuidade da administração de hormônios em casos de gravidez de homens trans, uma vez que
alguns profissionais expressavam preocupação sobre os riscos enquanto alguns ativistas trans
acusavam qualquer orientação nesse sentido como controle, reflexo de patologização. Havia uma
inquietação de médicos e médicas a respeito, principalmente, devido a possíveis consequências
hormonais para o feto, como produção de genitália ambígua. Mas as indagações levantadas não se
resumiam a isso. A problemática do risco atravessava implicações de várias ordens para a prevenção
de neoplasias e eventuais cardiopatias, por exemplo. Essa publicação técnica e profissional, sugiro,
indica uma reviravolta que tem sido produzida na medicina brasileira nos últimos anos, e que
demonstra um processo de consolidação da legitimidade de um tipo específico de medicina. Essa
legitimidade é contemporaneamente avivada pela concorrência de perspectivas afirmativas e
diagnósticas devido ao crescimento vertiginoso das primeiras. Essa medicina eu denomino de
medicina trans, e não medicina transexual. O primeiro termo se propõe mais aberto à diversidade
sexual e de gênero que este último, mais associado às primeiras investidas médico-psi241. Não se
trata de uma especialidade como ginecologia ou cardiologia, mas como um cenário de atuação
clínica e cirúrgica que maneja diferentes subáreas da biomedicina para concretizar sua intervenção
e mediação.
Portanto, não é exatamente o mesmo que a medicina sexual que se preocupa com processos
terapêuticos, de quadros bioquímicos, biofísicos ou psicológicos, visando a aptidão de indivíduos
para um correto desempenho do desejo. Essa distinção é relevante porque observo que a “lógica
do tratamento” do transexualismo/disforia de gênero, como chamou Henry Rubin (2003), é
animada por diferentes concepções concorrentes para formar uma lógica do cuidado trans, uma vez
que no Brasil tem ganhado maior relevância uma abordagem despatologizada que não implica uma
desmedicalização e dá novos espaços para outros tipos de diagnósticos atuarem nas relações
médico-paciente e nas formulações científicas de como investigar interações bioquímicas e técnicas
cirúrgicas que auxiliem uma transição saudável e uma transição com saúde. Essas duas locuções
denotam sentidos sutilmente diferentes. No primeiro caso, diz respeito a compreensão de que a
241 Iniciativas da segunda metade do século XX, como demonstrei no capítulo 2.
315
transição ao ocasionar a alteração corporal (molecular e física) poderia desenvolver adoecimentos
que geralmente podem ser evitados se houver supervisão atenciosa. No segundo sentido, se refere
à ideia de que o indivíduo não está doente antes da transição e pode realizá-la sem admitir a piora
desse processo de adoecimento. Percebo que o primeiro sentido é bem mais presente numa
abordagem afirmativa, e o segundo atinge um peso de controle diagnóstico maior. Isso não quer
dizer que a primeira não se preocupe com uma avaliação de um estado de saúde anterior a transição,
mas que isso não é necessariamente utilizado para um diagnóstico, como acontece na segunda
abordagem. Essas duas lógicas disputam entre si espaço e não indico haver um domínio absoluto
dessa última. Tal dinâmica, envolve, ainda, uma imaginação cultural que liga preocupações
científicas e medos e pânicos morais da preservação da vida dos seres humanos – como já descrevi
no caso de Marinalva, descrito no capítulo 2, e que guarda várias semelhanças com a resposta social
ao HIV/Aids (Valle, 2000, 2015).
A categoria medicina trans é entendida compreendendo um universo social da assistência, da
atividade científica e da mediação biomédica à transição de gênero, e não busca dar conta de todas
as problemáticas que circunscrevem isoladamente itinerários terapêuticos de outras ordens que não
estejam aí associados. Ou seja, medicina trans é uma locução diminutiva para medicina da transição de
gênero. Isso não significa atribuir à saúde trans apenas a esfera da transição, muito pelo contrário, já
que separar os sujeitos trans numa medicina “específica” seria aquilo que os superficializaria porque
os isolaria em apenas um aspecto de suas vidas. Por tal expressão entendo abarcar as terapêuticas
constituídas e as epistemologias que lhes sustentam, que justificam tal medicina como uma prática
benéfica à vida humana e às formas de ação que engajam cientistas e profissionais de saúde em
todas as suas manifestações implícitas e explícitas. Faço ainda uma relação estreita com o que Eric
Plemons (2017, p. 7, tradução minha) concebe como terapêutica trans: “a estrutura lógica dentro da
qual várias intervenções passam a fazer sentido como ‘boa medicina’”. Assim, as suas práticas e
concepções orbitam entre responder a origens, racionalidades de tratamento e medidas de resultados. O
autor desenha uma relação direta com as compreensões da lógica do cuidado empreendidas por
Annemarie Mol (2008):
Como todas as lógicas de tratamento, a terapêutica trans liga entendimentos de origens
(qual é a natureza da preocupação pela qual as pessoas trans buscam intervenções
cirúrgicas, ou o objetivo para o qual correspondem intervenções específicas?),
racionalidades de tratamento (quais intervenções são respostas apropriadas a essa
preocupação ou objetivo?), medidas de resultados (como nós saberemos se tais intervenções
adequadamente endereçaram esta preocupação ou alcançaram seu objetivo?). Essas
questões e suas respostas trabalham juntas para determinar que tipo de coisa é “trans”
como um objeto clínico que pode organizar intervenções clínicas específicas; elas formam
esse objeto como um tipo de projeto corporal ao qual intervenções particulares parecem
naturalmente e racionalmente corresponder (Plemons, 2017, p. 6-7, tradução e ênfase
minhas).
316
Portanto, essas questões não são uma prerrogativa apenas de “contextos patologizantes” –
e que com certeza não são ainda projetos de certos médicos, mas são também trazidos à luz por
pacientes –; essas dimensões da prática médica ligam todos os cenários, afirmativos ou não, porque
o que muda entre eles é a terapêutica trans que engajam. Separá-los entre a percepção da
transexualidade (ou transgeneridade)242 como objeto clínico válido à intervenção perde de vista que
essa legitimidade pode partir de concepções diferentes243. Isto leva-nos a perguntar: o que acontece
quando médicos não são unânimes quanto às origens, mas atuam juntos na geração de práticas de
cuidado e na medição de seus resultados?
Assim, este capítulo tem como objetivo principal compreender a entrada de médicos e
médicas no cenário da medicina trans, partindo da consideração, segundo Gilberto Velho (1986),
de que trajetórias de vida são formadoras de experiências de subjetividade. Atenho-me,
principalmente, a como suas carreiras na medicina dão ou não espaço para que esse tipo de atuação
se torne possível. Ao procurar entender as explicações dos interlocutores sobre o contato com
pacientes em processo de transição de gênero procuro dar relevo a como essa relação se torna um
“projeto individual” (Velho, 1985, p. 31) enquanto um projeto de profissão. O projeto como “uma
tentativa consciente de dar um sentido ou uma coerência” a uma “experiência fragmentadora”
compõe o mundo social e, portanto, se circunscreve particularmente nas cobranças da biomedicina
na formação de novos profissionais. Com isso, demonstro contextos de prática médica e disputas
e reprodução disciplinares através das narrativas de si.
Entendo que não são apenas médicos e médicas que conformam a atenção em saúde, mas
inclui-se uma gama variada de outros profissionais atuantes nos serviços de saúde desde o porteiro
até a sua diretoria burocrática. Porém, por considerar questões de abordagem metodológica
possíveis no campo e o escopo da pesquisa, irei considerar apenas a medicina e seus profissionais
devido a sua formação enquanto campo social se incutir de modo muito particular na definição e
242 Embora parte do movimento social trans inste que transgeneridade e transgênero sejam conceitos menos patologizantes do que
transexualidade e transexual – no argumento de que esses foram inventados pela medicina e aqueles não – ambos os conjuntos de
termos foram gestados em relação com a medicina; essas oposições se referem mais a seus usos e reinterpretações, que pertencem
a múltiplos e compõem diversos cenários. Assim é o caso também do termo cisgênero, que tem raiz nas proposições do psiquiatra e
sexólogo alemão Volkmar Sigusch (1994, 1998, cf. 2011) para responder a sua proposição de interpretar o que chamou de
neossexualidade (cissexuais em oposição a transexuais). Além disso, é possível perceber como categorias gestadas por ativistas como
ferramentas de mudança social também podem ser incorporadas nos discursos médicos de modo a extrapolar suas intenções iniciais
e até de revertê-las. Foi algo, dentre outros elementos, que Claudia Castañeda (2015) mostrou ao analisar o modelo
desenvolvimentista da abordagem médica diante de crianças e jovens trans no contexto estadunidense.
243 Emprego o termo afirmativo no sentido da facilitação e da ausência de critérios diagnósticos, os quais quando presentes podem
produzir uma negação do cuidado na sua plenitude. O termo em língua portuguesa de “confirmação de gênero” usado para se
referir a cirurgias e outros procedimentos relativos à transição de gênero entre médicos e nos protocolos oficiais mais recentes
detém alguma rejeição por se considerar que tais práticas biomédicas provariam (e por isso confirmariam) a transgeneridade ou
transexualidade de alguém. Confirmação e afirmação são, portanto, noções diferentes e têm empregos variados e serão aqui
referenciados nos contextos e sentidos que aparecem no campo observado.
317
prática das terapêuticas trans244. Cumpre entender como o contexto sociocultural do Ceará
circunscreveu uma atuação clínica e cirúrgica em torno da medicina trans, observando relações
entre emoções e política, e as bases epistemológicas de cunho racional e científico, além dos motes
e tropos sobre o que sexo e gênero vêm a ser. O foco desse capítulo, portanto, não é mostrar os
médicos em atendimento de modo per se – de maneira nenhuma avaliando suas condutas nem
orientando “boas práticas” –, mas o de situá-los e situá-las a partir das interpretações e
subjetivações que narram e indicam nas entrevistas e nos momentos de interações nos quais se deu
a observação etnográfica nos serviços de saúde em que trabalham a partir dos espaços públicos de
circulação, da atividade docente e da divulgação científica em eventos.
Algo que gostaria de considerar neste capítulo, e que nem sempre é trazido à tona, é que a
medicina trans está intimamente ligada ao tipo de sistema de saúde em que ela emerge e se
transforma, e não apenas a concepções de sexo e gênero. A compreensão do que é feito por
exemplo nos Estados Unidos quanto a isso não pode ser transportado para entender o contexto
brasileiro simplesmente porque os manuais de saúde, os guias de orientações clínico-cirúrgicas e as
teorias originárias não são recebidas, interpretadas e postas em prática exatamente da mesma
maneira em todos os lugares, mesmo que a ideologia médica – que também tem origens específicas
e transformadas – possa universalizar sua prática e solapar as diferenças locais. Além disso, a
sociedade brasileira, e suas múltiplas formações socioculturais ao longo do território nacional,
difere substancialmente em termos das posições sociais de homens e mulheres, noções de
masculinidade e feminilidade, dinâmicas sociopolíticas, e inclusive no modo como as mudanças
sociais ocorrem. Plemons propõe sua abordagem teórico-metodológica sobre a medicina trans
partindo de sua pesquisa sobre a cirurgia de feminização facial, de como esse procedimento se
tornou necessário para confirmar o gênero e provar o sexo de alguém. Como explica, o rosto se
tornou um elemento fundamental do sexo na sociedade estadunidense porque o que é sexo se
transformou socialmente. Por isso que o elemento de transformação da terapêutica trans é tão
latente: para explicar por que cirurgias de transgenitalização não são suficientes demanda-se
crescentemente modificar também o rosto.
Contudo, considero pertinente o emprego da noção de terapêutica trans porque no Brasil
é crescente não apenas os tipos de procedimentos cirúrgicos que são tornados como necessários245,
244 Outras áreas das ciências da saúde no Brasil pouco ou nada normalizaram suas atuações nesse sentido, com exceção do
pioneirismo da psicologia que detém resoluções técnicas para a clínica de seus profissionais (CFP, 2018). Até a sua resolução n.
2.265 de 2019 o CFM tentou normatizar o trabalho de outras áreas, mas desde essa normativa se ateve apenas ao seu campo. Essa
é uma questão de pesquisa que merece ser mais bem explorada pela antropologia no país: o que tem pensado e como tem agido
outros conselhos de profissionais de saúde, como da enfermagem, fisioterapia, terapia ocupacional, serviço social?
245 Conforme demonstrei no capítulo 4, as portarias e resoluções do Ministério da Saúde e do Conselho Federal de Medicina têm
cada vez mais incluído novos procedimentos ao longo de suas atualizações. Conforme vi em campo, principalmente no cenário do
sistema de saúde suplementar (o mercado privado), crescem o número de médicos e de clínicas que oferecem muitos procedimentos
diferentes para a transição de gênero como feminização facial, feminização corporal, entre outros.
318
mas porque é cada vez maior a concorrência entre práticas médicas opostas: o que estou chamando
de um lado, diagnósticas e, de outro, afirmativas, as quais disputam entre si a representação legítima
do conhecimento e prática biomédica no tema246. Tal definição tem mais um propósito
metodológico, uma vez que considero que sua conformação na realidade social possa assumir
feições muito mais borradas.
A radicalidade da diferença da posição formal da SBMFC e aquela do Conselho Federal de
Medicina dos anos 1970 – como demonstrei no capítulo 2 – e até mesmo as normativas atualmente
vigentes, desde os protocolos do Processo Transexualizador, demonstram mudanças sociais que
não implicam, contudo, uma mudança que aponte para substituições radicais de saberes e práticas,
mas antes superposições e justaposições que criam/confirmam a heterogeneidade de camadas e
espaços na medicina brasileira. Uma publicação anterior, de outra sociedade médica, trazia um
posicionamento diferente daquele apresentado pela SBMFC. A Sociedade Brasileira de Pediatria,
através de seu Departamento Científico de Adolescência, lançava, em junho de 2017, o seu Guia
Prático de Atualização. Aí se apresentava como o/a pediatra deveria “diagnosticar” e “tratar” a
disforia de gênero em crianças e adolescentes, estando alerta para elementos que servem de prova
para tanto numa interface multidisciplinar dentro da biomedicina. Antes de apresentar os critérios
que já vimos no capítulo 3 sobre a contemporaneidade do diagnóstico, o documento indicava:
A avaliação clínica inicial deve privilegiar o sujeito, acolhendo-o de forma empática e
integralizada. Um acompanhamento individualizado e contínuo é indispensável nestes
casos e o pediatra tem um papel fundamental de aconselhamento e encaminhamento para
o acompanhamento psicológico do adolescente e seus familiares. Deve-se identificar se o
indivíduo preenche os critérios diagnósticos, se apresenta interesse em realizar intervenções
clínicas ou cirúrgicas para mudança de gênero no futuro, avaliar o suporte social
(sobretudo para o paciente e a família), assim como os aspectos relacionados à saúde
mental (SBP, 2017, p. 6, ênfase minha).
Assim como a SBMFC estava preocupada em mostrar como o médico de família e
comunidade poderia se preparar para atender clinicamente pessoas trans, indicando que a
hormonização deveria ser realizada já na Atenção Primária, a SBP também indicava como o médico
pediatra deveria trabalhar. Contudo, as duas posições e abordagens são fortemente antagônicas, de
modo que a SBP está total e profundamente ancorada no DSM-5 e na procura por critérios de
definição de transexuais de verdade cuja ênfase estabelece que transexuais seriam sempre em menor
número em relação aos pacientes que demandam tal pertencimento (o caráter da raridade ainda é
presente). Essas publicações representam em muito as concepções científicas e as leituras de como
abordar o ser humano que animam tais associações; a primeira estando mais bem localizada numa
246 Há, ainda, o contingente da medicina que duvida da validade científica da transexualidade e rejeita qualquer alteração corporal,
como foi o caso exemplificado pela médica Marinalva, citada no capítulo 2.
319
medicina afirmativa e a segunda numa medicina diagnóstica. Nesse sentido, a disparidade das duas
Sociedades não se refere a uma questão temporal, haja visto o pequeniníssimo intervalo entre as
duas publicações (2017 e 2020). Por isso não é suficiente entender como os primeiros teóricos
biomédicos conceberam a transexualidade e o contexto no qual a mudança de sexo se tornou uma
possibilidade factível à ciência. É necessário integrar compreensões etnográficas de como a atuação
clínica e cirúrgica se dá na contemporaneidade a partir de contextos específicos, de modo a
perceber ainda como os profissionais reinterpretam não apenas as teorias que concebem a
transexualidade biomedicamente, mas também como aplicam protocolos de intervenção e
constituem linhas de atenção à saúde à luz do presente e das mudanças sociais que vivem e dos
sistemas de saúde em que estão inseridos.
A discrepância das publicações da SBMFC e SBP, bem como o que irei descrever nesse
capítulo, demonstram que as posições oficiais dos documentos do Ministério da Saúde e do
Conselho Federal de Medicina contemporaneamente – e isso é também verdade para o passado,
como demonstram o caso Farina e as disputas em torno da possibilidade das cirurgias no contexto
paulista descritos no capítulo 2 – estão longe da unanimidade e representam, por outro lado, as
concepções que compelem aqueles profissionais que estão ocupando tais diretorias, gestão e
representação profissional e acadêmica. Vê-se uma oposição de médicos e médicas de família e
comunidade à Resolução n. 2.265, de 20 de setembro de 2019, do CFM que buscou atualizar os
termos do cuidado em saúde trans no país, mantendo critérios diagnósticos apesar de sua linguagem
parecer mais afirmativa, como já indicou uma análise detida de Amana Matos et al. (2020). Mesmo
com a atuação do Conselho através de resoluções, portarias e outros documentos, e a existência da
política de saúde, não existe ainda nenhuma organização, manuais ou guias clínicos e cirúrgicos de
grande alcance sobre saúde trans no Brasil a partir de sociedades específicas. Essa movimentação
acontece, por sua vez, dentro dos grupos que se organizam de uma maneira frouxa a partir de suas
próprias associações e áreas de carreira – ou redes difusas, como é o caso do Ceará –, como
percebe-se através dos guias lançados pela SBMFC e SBP.
Noutra direção, com um formato interdisciplinar, surgiu, em junho de 2017, no eixo São
Paulo/Rio de Janeiro/Brasília, a Associação Brasileira Profissional pela Saúde Integral de Travestis,
Transexuais e Intersexos (ABRASITTI/BRPATH)247, reunindo profissionais de saúde variados
que também são funcionários do Ministério da Saúde e alguns médicos e ativistas trans. A Abrasitti
se apresenta como sendo uma versão brasileira da Associação Profissional Mundial de Saúde
Transgênera (WPATH, na sigla em inglês) e que reúne nos Estados Unidos médicos clínicos e
247 A atual presidente da ABRASITTI é a farmacêutica e ativista travesti Alícia Krüger. Disponível em:
. Acesso em: jul. 2020.
320
cirurgiões e ativistas em torno de serviços e saberes no tema248 ao indicar profissionais, um guia de
orientações biomédicas e organização de eventos científicos. Trata-se, atualmente, de um dos
organismos mais influentes globalmente na saúde trans. Embora os membros da versão atuante no
país possam ter estado presentes junto aos setores estatais e tenham participado de algum modo
da última edição das orientações do CFM sobre o Processo Transexualizador, lançado em 2019, a
sua atuação ainda não detém de reverberação orgânica no cotidiano da saúde trans ao longo do
território nacional. Os médicos e as médicas que conheci e convivi faziam referência ao guia Padrões
de Cuidado (Standards of Care), da WPATH, mas não conheciam ou não tinham contato com a
Abrasitti. Isso é interessante de pontuar para demonstrar o contexto da pesquisa e o cenário
brasileiro atual. Entender essas associações, contudo, seja nacional ou estrangeira, pouco nos revela
sobre a medicina brasileira feita no chão do SUS e do sistema suplementar.
Uma vertente do meu interesse de pesquisa para o doutorado sempre foi integrar diferentes
perspectivas sobre o mundo social da saúde trans. Com isso, compreender as práticas de médicos
e médicas atuantes nesse sentido se tornou condição primeira para levar a cabo esse objetivo. Tanto
porque um entendimento maior sobre o universo da saúde demanda, fundamentalmente, a inclusão
de profissionais de saúde, como demonstraram Rozeli Porto (2009) a respeito do aborto e Carlos
Guilherme do Valle (2000) sobre o contexto da resposta brasileira a pandemia de HIV/Aids. A
literatura e as pesquisas antropológicas sobre o campo social da saúde trans são férteis – e em
crescimento vertiginoso, como já demonstrei no capítulo 3 – em demonstrar as relações médico-
paciente desde a visão dos usuários dos serviços – além de também serem proeminentes pesquisas
em várias áreas do conhecimento sobre temas variados. Não há ainda uma pesquisa social, nem
muito menos etnográfica, sobre a medicina trans brasileira e seus profissionais de algum modo
desde “dentro” de suas práticas, isto é, que leve em consideração o que esses sujeitos compreendem
de si mesmos e como agem profissional e cientificamente de um modo que se possa partir de seus
próprios termos para analisá-los e descrevê-los249.
No Brasil, pesquisas sobre médicos têm movido antropólogos e antropólogas em cenários
como o da concepção da medicina de família (Bonet, 2014), aprendizagem de residentes (Bonet,
2004), atividade docente e clínica (Camargo Jr., 2004), emergência hospitalar (Giglio-Jacquemot,
2005; Sarti, 2005), resposta ao HIV/Aids (Valle, 2000) e até as abordagens historiográficas sobre a
248 A WPATH nasceu como Associação Internacional Harry Benjamin de Disforia de Gênero (HBIGDA) emergida, portanto, da
interlocução com as formulações iniciais de Benjamin mesmo que não tenha deixado de sofrer transformações desde então. Na
minha dissertação refleti sobre a versão contemporânea de seu manual, o Padrões de Cuidado (Rego, 2015). Ver Castañeda (2015) e
Bento (2008; 2010b) para a relação desse manual em sua versão original e outros manuais de saúde (os quais já foram discutidas no
capítulo 3).
249 Pesquisas etnográficas como a de Eric Plemons (2017), no contexto euro-estadunidense especificamente, sobre a medicina trans
ainda são bem menores em relação àquelas sobre outros agentes no universo social trans, como bem me demonstrou em
comunicação pessoal no período de co-orientação do estágio sanduíche realizado em 2018-19 em Tucson/EUA. Ou seja, essa
escassez não é apenas brasileira.
321
formação da ginecologia (Rohden, 2001) com uma forte concentração regional que parte
majoritariamente desde o Rio de Janeiro (cf. Leibing, 2004), além de saúde indígena no Norte
(Pereira, 2012) e no Nordeste do país (Neves, 2017) e do atendimento hospitalar de mulheres em
abortamento e o problema da objeção de consciência (Silva, 2017), por exemplo. Entretanto, tais
estudos são pouco expressivos quando comparados a pesquisas com sujeitos à procura de cura em
relações médico-paciente ou numa atmosfera de pluralismo de especialistas terapêuticos externos
a biomedicina ocidentalizada (Loyola, 1985; Duarte, 1986; Jerome, 2015; Bastos, 2018), bem como
diante das consequências sociais de pandemias como a do vírus da zika na subjetivação de crianças
(Valim, 2020). E, até mesmo, se relativas às pesquisas mais frequentes sobre questões diversas,
envolvendo enfermeiras ou assistentes sociais (Porto, 2009; Silva, 2010; Fleischer, 2018), agentes
comunitários de saúde (Santos, 2016), sexólogos (Russo et al, 2009; Carrara e Russo, 2002),
psicanalistas e psicólogas (Russo, 1993, 2002) e demais agentes sociais formuladores de políticas
públicas (Maluf, 2010).
Assim, em geral, é mais frequente que médicos estejam relacionados com os pacientes em
pesquisas antropológicas do que ocupem um cenário etnográfico no qual sejam os interlocutores
privilegiados (Luna, 2007; cf. Sarti, 2010). A dificuldade de acesso a esses interlocutores médicos
parece ser um dos elementos mais fortes para caracterizar esse cenário de escassas pesquisas250.
Embora compreendam estar num cenário heterogêneo, ainda dizem respeito a um campo social
de altíssima autonomia e menos suscetível aos olhares esotéricos. Como resultado disso percebo
que tem detido maior apelo pesquisas socioantropológicas que se concentram mais nos pacientes
do que nos próprios médicos. Isso pode ser visto também como um resultado das mudanças no
paradigma hegemônico da biomedicina, desde primeira metade do século XX251, a partir das quais
mais atenção foi dada a um modelo centrado no paciente e na sua subjetividade e menos ancorado
apenas na busca pelo tratamento de doenças (Mol, 2002; Lock e Nguyen, 2010; Jerome, 2015). A
figura do médico como um sujeito em meio a contextos que o animam tem aí menos força. As
pesquisas antropológicas, por outro lado, têm se preocupado desde a passagem do século XIX e o
começo do século XX com os especialistas de cura de comunidades indígenas. E esse interesse foi
redobrado quando os antropólogos se voltaram cada vez mais para as suas próprias sociedades
250 Antropólogos e antropólogas têm ainda apontado para a dificuldade de acessarem grupos sociais específicos, dado o seu princípio
de distinção social, como as elites econômicas e as elites políticas (Teixeira, 2004; Teixeira, Lobo e Abreu, 2019) – políticos eletivos
profissionais – que compõem classes sociais médias altas e altas (Nader, 1972). Contudo, as dificuldades que tive não são
necessariamente dessa ordem, mas dizem respeito ao caráter de campo social de altíssima autonomia que tem a medicina.
250 Fazer essa observação não significa dizer que ativistas “não sejam politizados”, mas, sim um fator de desinteresse indicado por
parte dos interlocutores médicos.
251 Mesmo que não fosse seu foco de análise, Talcott Parsons (1991 [1951], p. 289, tradução minha) já indicava, na década de 1950,
o crescimento da ênfase na saúde preventiva pela medicina, a qual passava a se preocupar também em “controlar as condições que
produzem a doença”. A segunda metade do século XX, portanto, assiste à globalização dessa perspectiva e não a sua emergência
absoluta que teve lugar nos Estados Unidos, o cenário que passa a solapar a influência do modelo biomédico francês no Brasil (ver
Bonet, 2004).
322
com os estudos sobre o sistema biomédico ocidental e seu racionalismo (Eisenberg, 1977;
Kleinman, 1986; Good, 1994; Dein, 2007) e as formas alternativas produzidas pelas explicações
populares sobre doença e cura (Duarte, 1986, 1998a, 1998b). Além de tudo isso, como qualquer
etnografia, tais barreiras situam-se desde a capacidade de inserção e a rede de contatos do etnógrafo
e da etnógrafa. Diante dessa ausência se torna quanto mais necessário se debruçar sobre a atuação
e as perspectivas – representações, práticas, discursos – de médicos e médicas a respeito de seus
trabalhos/carreiras e de suas trajetórias na conformação de processos de subjetivação. Nesse
sentido, esse capítulo se interessa por uma descrição que entenda esses interlocutores por eles
mesmos. Mas, cabe antes situar historicamente a prática médica local e sua inserção nacional em
relação a medicina trans.
6.2. Formação e dinâmica do cenário médico cearense
A historiografia já realizada sobre a medicina cearense não indica nenhuma movimentação
de força em relação à sexualidade, nem muito menos à terapêutica trans, mais antiga do que aquela
que encontrei em campo; o que não significa dizer que ela não tenha existido, e, sim que as
pesquisas até aqui são inconclusivas a respeito ou não se preocuparam com o tema. A grande
preocupação de saúde pública que engajava gestores governamentais e médicos fora, desde o
período colonial até o início do século XX, as epidemias que se tornaram endêmicas, como a febre
amarela, a cólera e a varíola oitocentista e novecentista na capital e em várias cidades do estado
(Martins, 2013; Garcia, 2011; Bezerra, 2002; Jerome, 2015). Segundo Francisco Barbosa (2012), o
desenvolvimento da “estrutura de saúde” da região esteve aliado nesse período à precariedade, de
modo que os serviços eram aprimorados ou criados conforme mostravam-se insuficientes ou
inexistentes ao exporem um forte quadro de sofrimento e dor dos moradores. O foco de atuação
recaía numa administração governamental que girava em torno de propiciar uma salubridade
urbana por meio da criação de “comissões de socorro”, preparação de equipamentos, contratação
de profissionais sem, com isso, possibilitar um maior controle das infecções e dos tratamentos.
O Centro Médico Cearense, criado na primeira metade do século XX, se erigiu como um
espaço para o desenvolvimento e consolidação da medicina da região. A história da saúde nesse
momento assiste a uma construção social do prestígio do médico acadêmico. Unindo ainda
dentistas e farmacêuticos, a revista do Centro, chamada de Ceará Médico, foi publicada entre 1913 e
1979 como um meio de difusão da produção local para o resto do país. Segundo Ana Garcia (2011),
esses profissionais procuravam legitimar suas práticas clínicas com propagandas de abordagens
medicamentosas ao lado de relatos de casos e pesquisas. Além disso, a historiadora demonstra que
foram realizados congressos e alianças profissionais com organismos internacionais como a
323
Fundação Rockfeller e regionais como a comunidade médica paulista, também em consolidação
nesse período de início da industrialização brasileira. Nesse processo de consolidação cearense,
Garcia reforça que:
Pode-se observar as realizações de alguns médicos ao fundarem instituições destinadas à
organização da saúde pública de Fortaleza no início do século XX, e que apesar de
contarem com apoio Estadual e Federal partiam de ideias e ações individuais de alguns
médicos. Deve-se destacar que a ideia sobre saúde passava por transformações em
Fortaleza, nesse período, já que as práticas médicas advindas com a medicina acadêmica
estavam predominando e acentuando mais ainda a distância a rejeição às práticas
populares de cura (Garcia, 2011, p. 25).
Muito embora não seja minha intenção recobrar toda a história da saúde pública do Ceará,
cabe evidenciar a observação de Ana Garcia quanto a continuidade histórica da resistência local
quanto a interferências externas, isto é, que nem sempre aquilo que era trazido de fora era visto
como inovador pela comunidade científica cearense, nem seria aceito de antemão pela população.
A legitimidade construída pelo grupo em torno da Ceará Médico chega, então, a possibilitar a criação
da Faculdade de Medicina que hoje integra a Universidade Federal do Ceará, como meio de formar
em casa os profissionais hábeis para tratar a população e de trabalhar também em contextos de
prevenção à saúde. No âmbito da reforma sanitária da República Velha, o estado foi um dos últimos
da região do atual Nordeste a se beneficiar dos programas federais de saúde, dada a maior
importância política atribuída à época a Salvador e Recife. É o que explica Jessica Jerome (2015, p.
46, tradução minha), ao mostrar, contudo, que ao chegarem na região esses programas ajudaram a
organização da expansão “[d]os serviços médicos no estado e sustentou um modelo de cuidado em
saúde que enfatizou mais um cuidado preventivo do que um cuidado curativo oferecido em clínicas
comunitárias”252.
A reprodução social, no seu sentido bourdieuriano, da medicina cearense perpassou, no seu
início de consolidação no século XX, a afirmação política das próprias elites locais (Gadelha, 2012).
Mesmo que no decorrer do campo de pesquisa eu não tenha deixado de identificar interlocutoras
e interlocutores que eram provenientes de famílias de classe média alta ou alta, percebendo suas
posições como importantes atualmente nas universidades e nas instâncias governamentais da
capital, esse cenário se diversificou grandemente dada, entre outros fatores, a maciça circulação
nacional de estudantes e de profissionais formados entre residências e postos permanentes, ao
aumento da mão de obra treinada e a estruturação estatal de um sistema unificado de acesso à
252 Pesquisadoras como Jessica Jerome (2015) e Ana Garcia (2011) fazem um panorama abrangente dos diferentes períodos
históricos do país e do Ceará para mostrar o desenvolvimento de ideias de prevenção em saúde e dos germes do atual Sistema Único
de Saúde. Jerome argumenta que essas raízes são perceptíveis nos programas da República Velha, como o Funrural, e as políticas
getulistas, movimentando ideais que ganham vulto crescente até culminar no SUS. O atual sistema não é simplesmente fruto da
redemocratização dos anos 1970/80.
324
universidade e a consolidação da medicina como carreira. A migração interna de profissionais gera,
portanto, uma diversidade de suas origens e não incute uma automática e imediata reprodução da
elite local de maneira totalizante. Essas duas dinâmicas, portanto, estão presentes no grupo de
médicos e médicas que conheci em Fortaleza.
Assim como não há uma sociedade de medicina trans consolidada de alcance nacional, não
há uma do tipo regional. Entretanto, essas “comunidades” não deixam de se formar, mesmo que
não tenham limites muito claros. O que existe no país é mais uma rede articulada na qual se conhece
os profissionais, suas habilidades e especialidades, práticas e experiências que se tornam notórias.
O envolvimento desses médicos com a terapêutica trans se dá de uma maneira aparentemente
pouco organizada. Isso também diz respeito ao caso particular do contexto cearense. Eu precisei
conhecer alguns integrantes dessa rede para poder navegá-la e entendê-la. Aqui, a técnica de bola
de neve como tática metodológica ganha um sentido etnográfico tanto por se mostrar como
artifício para o acesso aos interlocutores e ao universo, como por ser essa a sua forma de
organização profissional: um modo difuso de organização em rede. Essa não é, em si, uma
produção intrinsicamente própria da medicina trans, mas esteve presente na dinâmica particular de
processos de consolidação de áreas na biomedicina moderna como nos fazem entrever as
comparações com outros processos, como o reconhecimento das neoplasias, das epidemias e do
SUS no Ceará já elucidados até aqui. Não estou inferindo que medicina trans ganhará o mesmo
status organizado desses outros estratos biomédicos, embora haja essa possibilidade conforme se
ganhe maior consolidação científica. Não procuro prever o futuro. O que há até agora são essas
redes de profissionais que se materializam na organização de congressos e outros tipos de eventos,
publicações, cursos de formação, indicação de colegas entre pacientes e criação de serviços.
É importante apontar essa especificidade do cenário local porque grupo social e rede social
não correspondem às mesmas unidades. Estou me referindo, portanto, àquilo que Elizabeth Bott
(2001, p. 58, tradução minha) chamou de “relações sociais externas” que assumem a forma de uma
“rede social” (network). Nessa formação, “apenas alguns indivíduos, e não todos, detêm relações
sociais uns com os outros”. Já em um “grupo organizado os indivíduos componentes criam um
todo social maior com objetivos comuns, papeis interdependentes e uma subcultura distintiva”. A
rede de médicos em torno da terapêutica trans poderia ser pensada como grupo se, conforme
distinção apontada por Bott, for considerado o seu sentido lato enquanto “qualquer coletividade
cujos membros são similares de alguma maneira; esta definição pode incluir categorias, classes
lógicas, agregados, bem como unidades sociais coesas” (Bott, 2001, p. 58, n. 1)253.
253 Ver Bott (2001) para observar uma considerável linhagem teórica sobre o conceito de rede na antropologia, indo de Rivers a
Radcliffe-Brown e outros autores até a década de 1950. No capítulo 1 demonstrei como as relações e as redes se constituíram a
forma como tomou o objeto desta tese.
325
Por haver, o que parecia à princípio, formações tão borradas que apresentavam grande
dificuldade para ser contidas em um agrupamento mais estrito – só depois cheguei às formulações
de rede social –, eu me perguntava no decorrer do trabalho de campo porque os profissionais que
conheci – incluindo aqueles que não aceitaram as entrevistas – se interessavam por uma prática
clínica (e, às vezes, cirúrgica) pouco valorizada em meio aos seus pares imediatos do cotidiano e
em meio à medicina acadêmica brasileira em geral. Mesmo que seja reconhecida, com protocolos
de atenção atualmente em documentos oficiais do Ministério da Saúde e do Conselho Federal de
Medicina, essa não é uma área de atuação de grandes holofotes positivos, ou como alguns
colocavam, de “atração financeira” vultuosa, como por exemplo neoplasias (uma das áreas de maior
dispêndio econômico público e privado para os governos e pacientes diretamente pagantes) como
me reiteravam os interlocutores. A clínica relativa à supervisão da transição de gênero, é por outro
lado, um espaço de grandíssima politização, e isso tem sido erigido por alguns médicos como um
dos motivos para se afastarem dessa atuação. Inclusive, a medicina trans pode atrair um certo
estigma profissional em determinados círculos, como pude perceber ao acompanhar interlocutoras
e interlocutores em diversos momentos como em eventos científicos e nas dependências coletivas
dos serviços que trabalhavam. Não deixam de surgir, por exemplo, piadas entre colegas ou
acusações por pura divergência teórica, e que não podem ser vistas como dissociadas de elementos
socioculturais próprios das relações de gênero (já que a maioria desses profissionais interessados
são mulheres). Isto é, as vulnerabilizações que esses sujeitos vivenciam por causa de suas posições
nas relações de gênero tanto lhes dá acesso a uma área pouco valorizada, como pode gerar uma
substância para acusações de sua pouca cientificidade. Nesse sentido, o status da medicina trans
pode ser muito ambíguo, e ainda oscilar entre uma boa medicina, e uma medicina menor, a uma
medicina ruim, ou menos científica, no âmbito mais geral da comunidade de especialistas. Muitas
das categorias de acusação marcadas contra Farina, na década de 1970, são renovadas no presente,
seja por profissionais ditos sensíveis, seja por seus contrários.
Como já mencionei, tive grandes dificuldades para concretizar uma inserção etnográfica
nesse contexto, principalmente porque procurava acompanhar a clínica e a cirurgia, mas meu acesso
a tais profissionais se deu majoritariamente em salas de espera dos serviços, seus corredores,
saguões, contatos de calçada, congressos científicos, e, quase sempre, consultórios sem pacientes
quando me recebiam após um longo período de trabalho. Mas, ao seguir a rede de médicos e
médicas pude tirar o melhor proveito metodológico dos contatos possíveis e passei a ver com bons
olhos essas interações, suas possibilidades e limitações para responder minhas questões. Até porque
a presença do pesquisador em consultórios durante consultas particulares entre médicos e
pacientes/clientes não implica alcançar um conhecimento mais profundo sobre essa relação nem
326
sobre o cuidado e a atenção à saúde em geral. Gravar tiques e maneirismos, marcar gagueiras ou
hesitações nas falas, ou ainda posturas em um momento tão específico de modo isolado de todo o
funcionamento do serviço e das vidas pessoais e profissionais desses agentes não garante uma
melhor pesquisa. Uma vez que as interações nesses ambientes não deixam de ser também
codificadas sociocultural e politicamente, dados daí construídos não fornecem materiais mais
fidedignos em si. Uma consulta, por outro lado, ao ser assistida pelo etnógrafo pode inclusive ser
um empecilho para o acompanhamento de certos interlocutores pacientes fora do serviço. O que
quero dizer é que há aspectos positivos e negativos da presença do pesquisador em todos os lugares
que circula e dados diferenciados, mas não “melhores”. Todos os microcenários que envolvem
agentes sociais no campo da saúde são igualmente atuantes na conformação de seu universo e
“falam” ao pesquisador.
Pela pequenez do número de interlocutores que consegui entrevistar, como já indiquei, a
manutenção do anonimato é de difícil efetivação, já que alguns desses são muito bem conhecidos
e um nome fictício talvez não seja suficiente para impedir que leitores bem informados os
reconheçam. Como próprio de um campo em ascensão, sujeitos individualizados ganham grande
destaque por seu pioneirismo, e isso não é diferente aqui. Contudo, como já mencionei, preservarei
esses nomes fictícios e procuro borrar as identificações na medida do possível para protegê-los. De
antemão, é bom salientar que não imputo à minha descrição etnográfica nenhum teor avaliativo
em termos morais ou de eficácia desses profissionais segundo nenhuma perspectiva que não seja a
deles, e procuro entender a lógica de suas práticas, no sentido bourdieuriano. Isso não significa
inferir que eu me aparte subjetivamente de modo absoluto da realização da pesquisa ou que as
técnicas que eu empregue sejam neutras em si mesmas. Minha subjetividade se manifestou de várias
maneiras em campo e na análise (também à mesa), principalmente na minha admiração diante do
trabalho de médicos que me pareciam tão dedicados a facilitar e “ajudar” pessoas trans a
transicionarem “em segurança”. Contudo, isso não implica que o pesquisador, como nos
demonstrou Bourdieu, Chamboredon e Passeron (2002b), não possa trabalhar para romper com
as pré-noções através do emprego de técnicas de ruptura com os princípios que tomam o mundo
social como dado e apenas lido pelo pesquisador ao buscar sua objetivação. Procurei, portanto,
sempre animar meu olhar para entender aquilo que constituía as narrativas e as bases
epistemológicas dos entendimentos dos interlocutores sobre sexo, gênero e sexualidade e sobre o
próprio trabalho da biomedicina. Como uma das formas de romper com uma sociologia
espontânea acerca desses médicos, não me instei ao trabalho de identificação de médicos
patologizadores versus médicos afirmativos. São os próprios interlocutores que demonstram se
observam ou não a transexualidade como algo diagnosticável e essa não é uma imposição
327
moralizante da minha parte sobre o que fazem. Quando, por exemplo, perguntava a uma médica
sobre como enxergava a classificação nosológica da transexualidade, ela me respondia que via como
“dentro do espectro sim do distúrbio”. Então, o que me importava observar não era simplesmente
sua assertiva quanto a isso, mas entender quais são as explicações que a levam a formulá-la. Como
isso ganha sentido? Sobre que noções/narrativas acerca de sexo e gênero se assentam? E como
práticas são levadas à cabo? Seriam essas sempre idênticas quando há a identificação do
“transtorno”, “distúrbio” ou “disforia de gênero”? Mesmo que eu não apresente respostas para
todas as perguntas que realizo nessa tese, e principalmente nesse capítulo, procuro entender os
processos de subjetivação desses profissionais desde suas expressões próprias.
Para realizar uma etnografia da medicina trans no Ceará seguirei para a descrição dos meus
encontros e observações daquilo que foi possível, e a uma descrição da formação dessa rede através
das trajetórias sociais desses profissionais em meio a carreira e a especialização na terapêutica trans
na clínica ou na cirurgia. Isso não deixa de gerar também um certo quadro de historicidade, mas
não tenho interesse em separar uma história genérica254, nem muito menos recobro uma simples e
mecânica cronologia sem sujeitos. As histórias de vida dos profissionais estão situadas
etnograficamente no campo que observei, mas participam da estruturação do campo da medicina
trans. Isso tudo recobra e não separa agências a estruturas sociais, as quais são indissociáveis, isto
é, o primeiro sempre compõe e reproduz o segundo num longo processo no qual as normas são
construídas e desconstruídas. Assim, as experiências de médicos e médicas que conheci ganham
forma como realidade vivida expressadas por suas autoanálises.
6.3. Trajetórias de sensibilização e carreira médica
Numa primeira consideração imaginei que o interesse de profissionais pela medicina trans
seria decorrente de experiências nas quais teriam sido marcados subjetivamente no âmbito das
relações de gênero e sexualidade por terem ocupado algum tipo de posição marginalizada. Essa era
uma espécie de hipótese de trabalho que gostaria de verificar conforme o campo se aprofundava,
uma vez que os primeiros interlocutores que conheci viveram algo nesse sentido. Embora eu tenha
254 Têm-se apontado, na antropologia, para o fato de etnografias se tornarem registros históricos, uma vez que são descrições
situadas em períodos específicos das vidas dos pesquisadores e do contexto social dos interlocutores. Assim, não me proponho a
fazer uma historiografia no seu sentido lato, mas estar a par dos movimentos teórico-metodológicos que ganham as etnografias,
principalmente quando são pesquisas de momentos marcantes porque embrionários de um certo campo. Embora não seja meu
objetivo aqui, acabo por me aproximar tanto dessa clareza quanto aos dados etnográficos se tornarem registros e construção do
tempo (Lévi-Strauss, 1976 [1962]; Fabian, 2013 [1983]), como de uma concepção de “história genética” como conceituada por
Bourdieu. Para o autor, esse tipo de sociologia histórica (sinônimo de história genética) “procura captar esses processos de criação
permanente que visam transformar as estruturas a partir de constrangimentos objetivamente inscritos na estrutura e no espírito das
pessoas, processos que mudam a estrutura e que são moldados em parte pelo estado anterior da estrutura” (Bourdieu, 2012, p. 124).
A filosofia da história que orienta o autor diz respeito à premissa de que toda história está presente em todos os instantes e inscrita
na objetividade do mundo social e na subjetividade dos agentes que farão essa história. Isso não significa que um instante inicial
preveja o futuro. O essencial aqui é que a cada novo instante o “espaço dos possíveis não é infinito” e se estreita.
328
percebido que isso era realmente um elemento presente em boa parte das trajetórias, esse não era
o único fator usado localmente para explicar esse engajamento científico e clínico em Fortaleza.
Então, uma pergunta recorrente que me fazia era como tinham tido acesso a qualquer discussão
científica sobre transexualidade em termos gerais e como percebiam suas iniciações técnicas no
assunto. Nenhum deles e delas havia recebido qualquer tipo de treinamento ou formação na época
da graduação em medicina sobre gênero, muito menos ainda, sobre cuidados para população trans.
Sempre me respondiam: “nada”, de modo que suas salas de aula foram ocupadas apenas por
materiais sobre disfunções sexuais, reprodução humana, considerando fecundação e
desenvolvimento do feto e uma diferenciação entre os sexos a partir da neurologia. Quando muito,
pouquíssimos inclusive, atenderam a atividades extracurriculares para discussões sobre relações de
gênero e práticas sexuais por meio de organização autônoma de algum professor. Mas nada havia
nesse sentido de forma atrelada ao projeto pedagógico do curso.
Todos os contatos que esses interlocutores tiveram com o tema, portanto, se deram quando
já estavam inseridos no mercado de trabalho, uns já a partir da residência médica e outros já
completamente formados. Assim, esse processo interessado e engajado de formação educacional
continuada poderia ser visto por parte desses profissionais como sendo fruto de um processo de
sensibilização. Para outros, a sensibilização adveio de uma influência de um colega visto como um
especialista, e, portanto, alguém com respaldo para ser ouvido. Essa formação, contudo, nem
sempre se dava enquanto um curso em sentido estrito: um estudo autodidata poderia ser a base de
alguma aptidão. Mas a empatia com o outro, com o sofrimento com o diferente, era vista como
base de um interesse que não fora alicerçado desde os currículos do ensino de medicina. A
“educação escolar” – cursos de especialização, graduação, pós-graduação e cursos livres de curta
duração –, por outro lado, era a marca dos profissionais que subjetivaram a si mesmos sem o
intermédio direto de outros médicos para se dedicarem ao tema no início de suas preocupações a
respeito. De qualquer maneira, esse treinamento ou formação era posterior à conquista deste
campo de saúde e não o contrário.
Como era frequente, as médicas e os médicos atribuíam suas especializações – ginecologista
ou psiquiatra, por ex. – a uma ligação subjetiva com a área, segundo a qual explicava como tinham
sido escolhidos e não o oposto255. Alguns interlocutores chegavam a afirmar com muita obviedade
a área para a qual se voltaram, já que o pai ou a mãe o fizeram antes. E isso não era diferente em
relação à atuação na terapêutica trans. Aí, ser um profissional de saúde sensível era tido como a
base para atuar em atenções relativas a esses determinados pacientes ou de sua inclusão numa
clínica generalista ou integral e até, para parte deles, de militar em torno de um tipo de saúde integral
255 Marinalva indicava esse cenário a respeito da própria trajetória, como descrevi no capítulo 2, item 2.2.
329
que não os excluíssem, e agisse para inclui-los. O termo sensível é mais uma acunha para si mesmo
do que para outros, ou seja, diz respeito aos próprios processos de subjetivação numa carreira
moral. Assim, entender o interesse pelo trabalho em atenção à saúde que afirmasse cuidados
relativos à supervisão da transição de gênero implica também compreender as trajetórias de
percurso na carreira médica, já que esse interesse não é algo à parte. Percebi que era necessário
associar às trajetórias sociais que procurava descrever as dimensões tanto de ingresso na medicina
como na terapêutica trans. Então, eu passei a me perguntar: como se dava essa sensibilização? E,
quais eram seus elementos principais? Haveria uma única forma de ser sensível? Como emoções e
arrazoados científicos se entrelaçam? Procurando entender essas questões percebi que esse
percurso dos interlocutores se dava como uma trajetória pessoal socialmente constituída, um
processo de subjetivação que passo a chamar de trajetória de sensibilização, sobre a qual temos o
seguinte esquema genérico256:
Esse esquema ilustrativo não objetiva dar a falsa ideia de um processo cuja sequência é
rigidamente ordenada, passo após passo sem retorno, mas, sim uma trajetória espiralada mesmo
que algumas sequências possam ser atribuídas pelos interlocutores. Essas dimensões podem ser
borradas, de acordo com as narrativas. Mas, a formação básica – a graduação – sem nenhum
treinamento com explicações científicas ou abordagens de pacientes trans em transição de gênero
era um ponto de partida compartilhado por todos e todas, assim como as primeiras experiências
profissionais terem sido o espaço de primeiro contato257. Ao não haver um grupo social coesamente
cristalizado na região, e, sim uma rede, é no nível da análise e não da realidade social que concebo
dois grandes agrupamentos de interlocutores para sintetizar as principais diferenças e semelhanças
que se erigem entre os entrevistados. Isso significa dizer que não há como aventar, por exemplo, o
256 Não recorrerei à explicação individualizada de todos os médicos entrevistados (17 profissionais), mas às trajetórias mais
representativas e, posteriormente, à sua síntese.
257 Todos os interlocutores têm ou tiveram alguma inserção acadêmica de treinamento de futuros médicos, e, nesse sentido,
ensinaram algo para seus alunos, diferentemente do que vivenciaram na própria formação. Eu mesmo fui convidado várias vezes
para participar de pequenos eventos ou atividades pedagógicas cujo público eram seus alunos e alunas.
330
grupo de médicos sensíveis e o grupo de médicos insensíveis, nem mesmo é possível indicar que a subjetivação
de uma experiência pessoal versus a subjetivação via contexto profissional defina diferenças
circunstanciais na prática médica a ponto de estabelecer um grupo social. As experiências pessoais e
profissionais se entrelaçam avassaladoramente, a ponto de ser inócuo querer separá-las de maneira
a encontrar núcleos comuns entre os interlocutores de modo radical. A oposição sensível versus
insensível não é aplicável pela simples razão de ser uma nomeação moralizante, e surgir apenas em
contexto. Portanto, não chamo ninguém de sensível nem de insensível, mas indico como essas
categorias fazem sentido nas trajetórias narradas. Uma das carreiras que saltou aos meus olhos foi
a de Carmela, médica ginecologista de 37 anos, que teve uma longa formação após a graduação na
qual descobriu a sexologia como uma área de atuação. Sua narrativa de si me ajudou a organizar as
outras e a pensar melhor a trajetória de sensibilização.
Ao terminar a graduação, Carmela teve um anseio de ir à África. Sua vontade era trabalhar
em um contexto que necessitasse incrivelmente de médicos, e ela estava sensibilizada e decidida a
cruzar o atlântico. Mas, depois de ser persuadida por seu pai, que lhe falara que se ela queria ajudar
gente necessitada deveria ir para o sertão, acaba decidindo trabalhar num posto de saúde numa
pequena cidade nos confins do Piauí. No começo, era apenas ela e uma colega, e, com pouco
tempo, restou apenas ela nessa pequena unidade de saúde. Ela trabalhava como uma médica
generalista, e algo próxima do que se denomina atualmente como médica de família e comunidade,
isto é, ela “fazia tudo”, como me dizia. Agia segundo um cuidado em saúde integral. Não tinha
feito a sua residência em ginecologia ainda, pois desejava trabalhar por não ter condições financeiras
de conseguir sua autonomia e precisava disso antes de entrar na sua formação posterior. Mas antes
de entrar na residência passa a trabalhar noutro serviço, numa cidade mais próxima de Teresina.
Essas duas experiências de trabalho foram marcantes em sua vida, pois lhe colocaram em contato
com uma pobreza extrema que culminava numa completa falta de acesso da população à educação
básica. As descrições de seu dia a dia nesses serviços são como imagens vivas na minha memória
de um cotidiano que não era dependente de máquinas, não apenas porque não havia ali recursos
para financiá-las, mas porque dependia de gente, de médicas que pudessem fazer seu trabalho no
calor da necessidade dos moradores. Esse período de sua vida profissional detém um importante
espaço de subjetivação. É aí que germina seu interesse em ser sexóloga, após decidir ir para a
ginecologia. Algo importante nessa carreira é a forma como as histórias dos pacientes impactam
subjetivamente Carmela – também recorrente na maioria dos interlocutores. Um caso que lembrou
em nossas entrevistas foi o de uma mulher que a procurara durante dias repetidos no plantão para
ter uma receita de um remédio para dormir. Depois de muita insistência, essa senhora lhe
confidenciara seus motivos para precisar da medicação:
331
Ela um dia chegou e começou a falar um monte de coisa e eu resolvi parar e escutar [...],
[e perguntei] “por que você toma esses remédios, qual é a necessidade disso?”. E aí ela
contou para mim que o marido dela era alcoólatra, bebia muito e quando ele chegava em
casa ele queria ter relação [sexual], então ela tinha que estar dormindo porque senão ela
ia ter que ter relação. [...]. Lembro que conversando com ela resolvi orientá-la e passei
um lubrificante – e nessa época eu jamais na minha cabeça imaginei que um dia eu fosse
ser sexóloga, e nunca tinha prescrito um lubrificante na vida, nem tinha visto ninguém
prescrever e nunca tinha usado também [...], mas eu tinha visto isso e veio aquele estalo
e eu prescrevi o lubrificante para ela e aí nunca mais vi essa mulher. Ela não ia mais no
plantão e um belo dia eu fui fazer as compras e encontrei ela, toda linda, vestido novo. É
muito lindo isso, sabe, muito emocionante. Ela estava de vestido novo, e ela veio me
abraçar e disse que eu tinha mudado a vida dela completamente, porque quando o marido
dela foi ter relação com ela, ela não sentiu dor porque ela passou o tubo de lubrificante,
e ela sentiu até prazer. E aí como ela sentiu prazer e ele não tinha mais aquela sensação
que estava machucando ela, ele também não estava mais bebendo e eles estavam vivendo
super bem por causa de um tubinho de KY (Carmela, entrevista, 2018).
O que sua paciente havia lhe dito em consulta era um relato de dores no momento das
práticas sexuais, e isso havia acarretado um problema para a relação do casal. Carmela era jovem
nessa época, no começo dos seus 20 anos de idade, e foram mais essas experiências de atendimento
que tiveram um espaço maior em seu crescimento pessoal, subjetivação, do que aquelas fora dali
como num espaço separado. Antes de entrar no emprego no posto de saúde, especificamente no
Programa de Saúde da Família, havia tentado entrar no internato de psiquiatria, mas desistiu da
ideia mesmo tendo sempre gostado de psicologia e psiquiatria, como me colocava. Mas a
experiência na APS mudou sua vida:
Mas na vida o PSF, como a gente atendia todas as faixas etárias, vários quadros desde
hipertensão e diabetes até pré-natal, doença mental, era tudo muito florido, eu acabava
conversando muito com as pessoas, e como eu não tinha amigos lá [na cidade do interior],
então os meus pacientes eram os meus amigos. Era ali que eu podia conversar, era ali que
eu me sentia porque eu tinha mais conhecimento, eu tinha mais experiência, embora eles
tivessem muita experiência de vida dentro daquela cultura deles, mas ali eu tinha muito
mais informação para passar e ali eu me sentia (Carmela, entrevista, 2018).
Esse período de trabalho como generalista lhe deu uma vasta visão de mundo que não
detinha antes, principalmente, pela pluralidade de histórias de vida que lhe tocaram profundamente.
Essa narrativa, viva em detalhes, que constrói um processo de subjetivação, entrelaça vida pessoal
e vida profissional, e é um aspecto comum não apenas de médicos envolvidos com medicina trans.
Essas explicações que centralizam o indivíduo são próprias de experiências sociais cada vez mais
evidentes no país, como demonstrou Gilberto Velho (1987; 1986; 2001, 2013). Suas análises, e de
outras antropólogas que têm pesquisado estratos médios urbanos (Russo, 1993; Kuschnir, 2000;
Salém, 2007; Rial, 2008; Alcântara, 2009), mostraram conflitos e percursos identitários atravessados
por pares de oposição sociológica que pressionam os sujeitos ora para se individualizarem, ora para
darem maior vazão à ligação coletiva com seus contextos de origem, principalmente familiar.
332
Assim, a carreira médica se mostrava para Carmela, e para os outros interlocutores, como um
percurso de independência da família e autonomia.
Reforça-se, assim, aquilo que denominou Velho (1986, p. 24) sobre o indivíduo, o qual se
transforma na “unidade mínima significativa da vida social” num cosmo no qual o discurso
psicologizante adentra diferentes domínios que recortam o cotidiano, produzindo tanto
fragmentações como continuidades. Assim, o teor psicológico com que é trazido o sujeito é uma
feição de um processo social de formação dessa entidade social que é o indivíduo. A subjetividade
– esse elemento interno – é o mote sociologicamente fundamentado. Nessa percepção de si as
trajetórias dessa constituição subjetiva não se constituem como em uma única via. Ou seja, não há
um único lado desse caminho vivido como produtor de si mesmo, mas há múltiplas e caóticas
dimensões que são organizadas mais no nível da narrativa biográfica. É nessa vivência, ao mesmo
tempo pessoal e profissional, que a medicina trans pode ser produzida como um projeto para os
interlocutores, no sentido que lhe dá ao termo Velho (1986, 2013). Nesse momento de construir
uma memória (que marca as entrevistas), médicos e médicas estiveram dando sentido às suas
trajetórias ao construírem uma biografia ordenada desde um contexto social extremamente
heterogêneo. Isso não significa dizer que a atuação na terapêutica trans surge como um interesse
pronto e acabado desde o início desses caminhos percorridos e vividos, mas ganha forma
paulatinamente até se impor de tal forma que se torna um projeto. Como coloca o autor: “o projeto
e a memória associam-se e articulam-se ao dar significado à vida e às ações dos indivíduos, em
outros termos, à própria identidade. [...] São visões retrospectivas e prospectivas que situam o
indivíduo, suas motivações e o significado de suas ações dentro de uma conjuntura de vida, na
sucessão das etapas de sua trajetória” (Velho, 2013, p. 65). Nesse sentido,
Embora o ator, em princípio, não seja necessariamente um indivíduo,
podendo ser um grupo social, um partido, ou outra categoria, creio que
toda a noção de projeto está indissoluvelmente imbrincada à ideia de
indivíduo-sujeito. [...]. Portanto, se a memória permite uma visão
retrospectiva mais ou menos organizada de uma trajetória e biografia, o
projeto é a antecipação no futuro dessas trajetória e biografia, na medida
em que busca, através do estabelecimento de objetivos e fins, a
organização dos meios através dos quais esses poderão ser atingidos
(Velho, 2013, p. 65).
Nesse sentido, Gilberto Velho (2013, p. 67) propõe que o projeto é uma ferramenta com a
qual os atores sociais negociam a constituição da realidade entre si, de tal modo que é ele mesmo
“como meio de comunicação, como maneira de expressar, articular interesses, objetivos,
sentimentos, aspirações para o mundo”. Contudo, não há aí uma substância racional, antes, é
333
resultado de uma “deliberação consciente” que se tornou possível a partir de um campo de
possibilidades no qual esses sujeitos estão inseridos. Assim, a multiplicidade de motivações e a
própria fragmentação sociocultural produz projetos, mas também conflitos e contradição numa
sociedade de grande heterogeneidade e escalas variadas da vida social.
Essa fragmentação também se reproduz no campo profissional da medicina e estabelece
um microcosmo no qual os indivíduos são levados a procurar uma identificação específica com
determinada prática biomédica. Mas essa foi uma dificuldade que Carmela enfrentou desde o início.
Após alguns anos de prática clínica chega a decidir fazer a residência em ginecologia,
principalmente, porque ao fazê-lo ganharia mais tempo para escolher uma subárea na qual iria atuar,
dado que o campo ainda era um pouco amplo e lhe conferia uma possibilidade de atuação bem
mais diversa:
E aí lá também chegou a época de fazer a prova de residência. Finalmente eu resolvi fazer
ginecol. porque [em] ginecol. eu ia ganhar mais três anos para escolher de novo o que é
que eu ia fazer. Eu ia poder fazer tudo porque ginecol. conversa, ginecol. é meio clinico,
ginecol. opera, ginecol. faz exames, ginecol. mexe com os hormônios e eu até então
depois desse tempo – na verdade, não foram dois anos, foi um ano e meio –, eu também
não consegui decidir o que eu queria, eu queria continuar fazendo de tudo (Carmela,
entrevista, 2018).
Assim, a ginecologia como subárea da medicina não é um campo de especialidade uniforme,
como poderia parecer para um olhar externo. Então, Carmela lutava contra uma pressão para
superespecializar-se num determinado problema, ser objeto único de intervenção contínua. O
passo para a sexologia surge como um resultado de um desconforto. Esse mal-estar tinha a ver
com não se sentir capacitada para lidar com questões tão amplas trazidas por suas pacientes, algo
que ela não tinha sido iniciada para abordar. “Aí quando eu estava na residência, eu fui aprendendo
a operar [...], mas eu continuava tendo aquela coisa de gostar de conversar. As pessoas diziam que
eu tinha um jeito muito humanizado de atender, muito acolhedor e aí quando eu terminei a
residência, eu não me sentia muito preparada como ginecologista”. Foi diante de um cenário de
insatisfação sobre uma aptidão pessoal maior para dar conta do que lhe diziam suas pacientes que
decide ouvir o chamado de uma amiga que lhe indicou cursar sexologia. É aí que decide se
matricular em um curso em São Paulo. Essa formação escolarizada lhe exigiu grande esforço e
dispêndio financeiro pessoal, pois como morava e trabalhava em Fortaleza, necessitava ir
mensalmente à capital paulista para as aulas teóricas e posteriormente para o estágio. Esse curso
tinha uma seleção rigorosa, que contava com entrevista e análise de currículo. Carmela me conta
que na entrevista as questões pontuadas pelo entrevistador eram focadas em empatia e
atendimento. Mas se as práticas sexuais de mulheres foram o canal através do qual Carmela chegou
à profissionalização em sexologia, essas não se tornaram o único tema dentro da sexualidade em
que passaria a atuar. Foi nesse curso, que se referia a uma especialização em sexualidade humana, onde
334
conheceu a primeira vez sobre transexualidade. Ao concluir essa formação, ela pôde requerer à
Federação Brasileira de Ginecologia e Obstetrícia (FEBRASGO) o diploma de especialista em
Sexologia, após realizar um teste escrito no qual foi aprovada.
Ao contrário de Carmela, nem todos os médicos e médicas com quem interagi tinham
trajetórias que resultavam na formação escolarizada em “sexualidade humana”, seja porque não
detinham dos mesmos cenários de partida e disposição – a existência de um curso em outra região
do país dificulta bastante esse interesse –, seja porque as tradições disciplinares não detêm
historicamente de grandes espaços para a medicina sexual ou para a terapia sexual. Álvaro,
endocrinologista, de 56 anos de idade, me narrou uma trajetória diferente daquela de Carmela.
Tendo se formado no final dos anos 1980, e residência no início dos anos 1990, primeiro realizou
uma formação em clínica médica para poder ir para a endocrinologia. Seu contato com essa área se
deu a partir de seu interesse de especializar-se em endocrinologia pediatra. Na residência que fez
na USP teve contato com os chamados distúrbios de diferenciação sexual, os quais correspondem
ao que se nomeia na medicina de síndromes genéticas. Nesse grupo se encaixam os
desenvolvimentos cromossômicos de trissomias, genitália ambígua, e outras formas do que se
percebe como desordens endocrinológicas. Após longos anos trabalhando no tema em hospitais
de referência em Fortaleza, Álvaro tem um maior contato com travestis, e, posteriormente, foi
procurado por pacientes em seu consultório particular por ter se tornado conhecido na cidade por
seu trabalho. A própria área de atuação colocava Álvaro no centro de questões envolvendo a
transição de gênero. Ele via essa ligação como natural, já que estava trabalhando com o sexo a
partir da atividade hormonal. Não havia aí, portanto, grandes explicações disruptivas de
subjetivação, como aquelas que vimos com Carmela258, contudo as interações com a diferença não
deixaram de se fazer presente no processo de biografia que constituiu nossa entrevista. No seu
caso, não se tratava de uma relação médico-paciente estrita. Por já ter um contato com uma certa
diferenciação sexual, isso lhe aproximou de uma situação nos arredores do hospital onde trabalhou
por anos, o levando a pensar melhor a respeito do “mundo trans”, como coloca:
Eu te disse que dou plantão quinta-feira à noite, então.... Eu saio às seis horas da manhã
[...] do hospital. [Esse] fica na praça da Lagoinha, no Beco da Poeira, ali naquele centrão.
E todos os dias eu atravesso a rua, ando dois quarteirões que o estacionamento está aqui
e eu pego o meu carro. Toda sexta de manhã eu faço isso. E aí eu atravessei a rua, quando
eu atravessei a rua tinha uma trans na minha frente, talvez a uns dois ou três metros, e
ela foi seguindo o mesmo caminho, ela foi na frente e eu fui atrás. Eu posso dizer que
aproximadamente cem pessoas que a ultrapassaram soltaram piada. 100%. [Piadas] de
todos os níveis, desde “ei bonitinha”, “ei me chupa aqui”, “ei viado”.... Aí eu pensei
assim, “puxa, sexta-feira, 7 horas [da manhã], essa pobre já está escutando isso. Imagino
como é que ela chega no final da semana. Exausta, não é?! (Álvaro, entrevista 2018).
258 O próprio contato que estabeleci com Álvaro foi de menor intensidade do que com Carmela, o que pode ter determinado o nível
de abertura com que ambos me narraram suas trajetórias e expuseram processos de subjetivação.
335
Quando Álvaro continua sua explicação, ele lembra que não há como alguém ser tratado
dessa maneira vexatória e não ser afetado. Ele faz uma comparação com o que ouviu num curso
de medicina alternativa muitos anos atrás na sua carreira:
Eu já fiz um curso há muito tempo [...] de medicina alternativa. [...]. E tinha um exercício
da aura. Não sei se você já viu alguma coisa sobre isso, que todo mundo tem uma aura.
Então, eles tinham umas medidas, umas pirâmides, era coisa alternativa. Eles faziam
assim e viam a aura da pessoa, e colocavam a pessoa no centro, mediam a aura e
começavam a falar coisa ruim daquela pessoa. “Olha o cabelo dela”, “olha a roupa dela”,
“olha o sapato dela”.... Era um exercício. Você notava a pessoa murchando, murchando,
murchando a aura de defesa. Quando você fala bem a pessoa cresce. Aí eu digo, essa
coitada a aura dela deve ser igual a uma uva passa, murcha. Porque é o tempo todinho
aquele negócio em cima. E [essas pessoas] são muito resistentes, as trans femininas [...].
Elas seguram aquilo ali 24h por dia. Eu admiro (Álvaro, entrevista 2018).
A menção da leitura da aura através de um curso de medicina alternativa é trazida por
Álvaro pela força que assume enquanto figura de linguagem. O médico não defende exercer
nenhum tipo de abordagem clínica nesse sentido. Essa era uma forma discursiva dele exemplificar
como o estado de ânimo e o bem-estar de alguém não poderiam passar incólumes a uma violência
desse tipo. A dimensão de esoterismo, contudo, é algo relevante para “quebrar” com concepções
tradicionais da clínica. Ele se referia principalmente a travestis que trabalhavam como profissionais
do sexo nas ruas de Fortaleza. Nas consultas que realiza com seus pacientes esse elemento da
percepção do sofrimento é algo que Álvaro tem prestado bastante atenção.
Já Jovelina, outra médica com bastante experiência, com 68 anos de idade, já teve esse
contato numa espécie de formação continuada que realizou após seu curso de medicina, realizado
há mais de 40 anos. Na sua “época”, como me conta, estava começando a surgir a Residência
Médica, então o internato foi a única forma de treinamento no hospital que teve de maneira
formal259. Nascida em Goiás, mas formada em Pernambuco, foi no sertão que aprendeu de fato a
ser a médica que deveria ser, tendo aprendido o que chama de “Interiologia”. Foi no interior do
país que obteve a sua formação mais prática possível, nos anos 1970, no início de sua juventude,
ao atuar por mais de 4 anos atendendo desde mordida de jacaré até doença de chagas no que,
atualmente, se aproxima da Atenção Primária do SUS. Nesse período Jovelina e seu companheiro
trabalhavam de forma também voluntária em serviços organizados pelo bispado local. Após essa
medicina sertaneja que teve grande influência e impacto subjetivo na vida de Jovelina, ela migra
para São Paulo para procurar uma formação em sexualidade:
259 Atualmente o internato compõe parte da formação básica em medicina, e a Residência um treinamento no qual o médico formado
em generalista recebe uma bolsa do Ministério da Saúde e atua como um profissional ao mesmo tempo em que recebe um treino
específico ao término do qual é reconhecido como especialista em uma determinada subárea. Para ingresso na Residência, o médico
formado necessita ser aprovado num teste escrito.
336
Depois fui pra São Paulo. Nessa época eu comecei a me interessar pela sexualidade e eu
fui buscar uma formação em São Paulo. Eu fiz um curso que eu acho que foi o melhor
curso que eu fiz, melhor que o de medicina, que era o estudo da sexualidade humana para
formar pesquisadores, terapeutas sexuais e educadores. [...]. Tinha sociólogo, médico,
psicólogo.... [Foi] no Sé de Sapiências de São Paulo. Foi muito bom porque a partir desse
curso, com toda a visão da antropologia, da história da sexualidade, abriu meu horizonte
em relação ao ser humano muito mais do que a faculdade de medicina, que é organicista
(Jovelina, entrevista 2018).
Esse curso em sexualidade humana muda a vida profissional de Jovelina. A partir daí, ela
se transfere da clínica médica para a psicoterapia ao ter contato com uma vertente de terapia psi
concorrente da psicanálise, o psicodrama260. Nesse período, a FEBRASGO ainda não detinha o
controle dos diplomas de sexologia, e o SESC de São Paulo foi a instituição que conferiu essa
titulação para Jovelina. Ao acompanhar sua trajetória, podemos compreender a formação de uma
vertente dos especialistas em sexualidade no campo psi e biomédico brasileiro:
A medicina se apropriou porque a Sociedade Brasileira de Sexualidade Humana, Sbrash,
vem de dentro da Sociedade Brasileira de Ginecologia Obstetrícia. Um dos grandes
pioneiros nessa história é o Nelson Vitiello que era um ginecologista. Então formou-se e
ficou essa ligação, mas a própria Sbrash, a federada de sexualidade, sempre teve como
tônica abrir para essas três áreas: pesquisa, educação e terapia. Só que medicina é um
clube muito grande, e foi se apropriando e se apropriando (Jovelina, entrevista 2018).
Mas Jovelina observa que houve mudanças consideráveis nesse cenário. Como me diz,
ninguém mais faz “apenas sexologia” porque as especialidades se multiplicam grandemente. Ao se
concentrar na psicoterapia, para de atuar especificamente como ginecologista ou como médica
generalista. É com essa abordagem que seu interesse na “sexualidade humana” atinge a terapêutica
trans. Sua maior força nesse sentido se dará na formação de outros psicodramatistas e de médicos
em treinamento como residentes na região de Fortaleza para onde migrara desde São Paulo. Nesse
sentido, a clínica envolvendo pacientes trans é uma reverberação inesperada, já que o foco da
atuação do serviço que ajudou a criar estava voltado para problemáticas relativas a desempenho do
habitus erótico tanto no âmbito da resposta fisiológica quanto nas terapias psi, além do campo das
parafilias. As questões de gênero, como coloca, foram se modificando ao longo desse atendimento
uma vez que o manual do DSM também ia mudando. Isso não implica uma aplicação automática
sem modificações locais, mas indica a influência inescapável das normas técnicas da APA que já
discuti no capítulo 3.
260 O psicodrama é uma psicoterapia coletiva na qual acontece uma representação teatral espontânea e amadora. Usa-se essa
dramatização para abordar e explorar, para conhecer, a psique humana com foco no desenvolvimento do indivíduo através da
expressão catártica das emoções. No país, foi criada em São Paulo, nos anos 1970, a Associação Brasileira de Psicodrama e
Sociodrama (ABPS) e, em 1976, a Federação Brasileira de Psicodrama (FEBRAP) que regula a formação através da união de
diferentes instituições e sociedades. Durante o trabalho de campo fui instado a participar de algumas sessões de psicodrama
enquanto observava os profissionais. Outras especialidades psi também surgiram no Brasil aliadas à psicanálise ou como sua
concorrente, como é o caso da terapia corporal surgida nos anos 1980, no Rio de Janeiro, como estudada por Jane Russo (1993) e
que preconizava ser a fala insuficiente para alcançar a cura psi.
337
Assim, com exceção de Álvaro até agora, o alcance da medicina trans se deu de modo
inesperado como um resultado da busca por capacitação clínica voltada para as práticas sexuais,
ganhando status crescente à medida que esses profissionais vivenciavam suas carreiras. É o caso de
Geraldo, Graça, Germana, Gérson, Genivaldo e Geraldina que procuraram uma formação mais
escolarizada acerca da sexualidade humana. Eles tiveram oportunidades garantidas pela Residência
Médica que realizaram, por cursos de curta duração ou de pós-graduação stricto sensu. Contudo, ela
poderia ocupar um segundo plano em meio a outros objetos de maior interesse e vinculação
subjetiva nas trajetórias de outros médicos, como Cassandra, Clóvis, Emanuel, Marlene, Clara e
Fátima – isso não quer dizer que os médicos anteriores não trabalhassem com outras temáticas,
mas que a relevância da terapêutica trans era maior. Mesmo atuantes e identitariamente percebidos
como sensíveis à saúde trans, isto é, a colocando com uma prática profissional guiada pelo
conhecimento científico e pela empatia e, não por preconceito, a maioria teve o autodidatismo e o
próprio atendimento como dimensões formadoras:
Não [tive], aí eu sempre trabalhei com essa clientela [trans], da parte da sexualidade, desde
as crianças [...]. Assim, trans mesmo eu acho que faz uns dez anos que eu atendo, quando
nem se falava disso (Álvaro, endocrinologista, entrevista 2018).
Zero. Sexualidade eu falo em geral, o máximo que a gente vê na residência é puberdade
precoce, é puberdade atrasada, são problemas do desenvolvimento sexual, genitália
ambígua etc., mas sexualidade dessa forma, não (Emanuel, endocrinologista, entrevista
2018).
Não, só o que eu aprendi na medicina em família [e comunidade]. [...]. Na atenção
primária, eu acho que eles [pacientes trans] têm uma dificuldade de chegar, de acesso
inclusive. Então eu tive uma época [...] que a gente fazia uma atividade com as
profissionais do sexo, foi a época que eu mais tive contato (Fátima, MFC, entrevista
2018).
Mas isso não é colocado como algo imutável. Essa transformação é explicada como sendo
imposta pela presença das demandas de pacientes que deve ser considerada. É o que expõe, por
sua vez, Cassandra, mastologista, de 39 anos de idade:
Eu acho que o futuro vai ser que a gente vai ter que começar a se aprofundar mais. Eu
acho que isso vai ser uma coisa muito rotineira, agora com essa questão do nome que
facilitou muito, mudar o nome social que antes era um processo terrível e agora parece
que basta ir ao cartório. Então assim, isso já vai fazer com que facilite muito essa
transição, eu acho que as pessoas vão começar a aparecer, os homens trans vão começar
a aparecer mais (Cassandra, entrevista, 2018).
Uma realidade clínica, portanto, se imporia de tal forma que seria bastante difícil não
procurar alguma formação escolarizada. A previsão de Cassandra é resultado do crescente número
de pacientes que a procuram tanto no hospital público que trabalha como na sua clínica privada.
Quando seu nome ganhou popularidade recente entre pessoas trans da região, sua prática cirúrgica
ganhou status de boa medicina pela preocupação estética dos pacientes e pela sua lisura na exigência
338
documental de acordo com os protocolos do Ministério da Saúde. A sua inserção na terapêutica
trans se constituiu a partir da indicação de uma amiga que também é médica e que era considerada
especialista na área, portanto, uma profissional que tinha respaldo científico e técnico.
Quando se considera o lugar essencial do treinamento clínico realizado no hospital para a
formação do médico (Foucault, 2006; Baszanger, 1983 citado por Bonet, 2004), e se percebe a
completa ausência de qualquer observação sobre a diversidade sexual e de gênero, se produz uma
maior dificuldade de inserção de carreira nesse sentido. Uma vez que não foram confrontados pelo
controle pedagógico da aprendizagem da biomedicina, esses profissionais não puderam vivenciar
uma terapêutica trans inserida em “experiências clínicas” que os levassem a praticar uma
“responsabilidade médica”. Esses dois últimos fatores (que formam um híbrido, a responsabilidade
clínica) são elementos centrais, segundo Howard Becker et al. (1977 [1961], p. 241, tradução minha),
nessa entrada disciplinar261. Para os autores, a “responsabilidade só pode ser exercitada sob
pacientes. Mais do que isso, a responsabilidade é indivisível e pode apenas ser exercitada por uma
pessoa sobre um paciente numa situação dada. Responsabilidade pode ser delegada para o outro,
mas somente uma pessoa pode exercê-la”. Assim, a “assimilação dos valores médicos” alicerçada
no binarismo de gênero e na diferenciação sexual através de uma narrativa biológica única se tornou
um empecilho para que se possa considerar a possibilidade de atendimentos que conformem a
transição de gênero como prática benéfica à vida. Isso porque o “empirismo controlado”, como
colocou Foucault (2006 [1980]), é fundamental para criar o novo médico. Algo que foi instituído
historicamente com o advento da clínica, do hospital como lugar de ensino. É essa experiência que
torna distinto o profissional do leigo:
O essencial da formação de um oficial de saúde são os anos de prática [...]; o médico
completa o ensino teórico que recebeu com uma experiência clínica: é esta diferença entre
prática e clínica que constitui, sem dúvida, a parte mais nova da legislação do ano XI. A
prática exigida do oficial de saúde é um empirismo controlado: saber fazer depois de ter
visto; a experiência é integrada no nível da percepção, da memória e da repetição, isto é,
no nível do exemplo. Na clínica, trata-se de uma estrutura muito mais sutil e complexa,
em que a integração da experiência se faz em um olhar que é, ao mesmo tempo, saber; é
toda uma nova codificação do campo de objetos que intervém. Abrir-se-á a prática aos
oficiais de saúde, mas reservar-se-á aos médicos a iniciação à clínica (Foucault, 2006, p.
89).
Foucault está se referindo às mudanças europeias na constituição de uma formação que
autoriza ao médico seu exercício. Nascia aí uma diferenciação entre os médicos e os outros
profissionais de saúde, que são inseridos nesse campo como auxiliares daqueles. Nesse sentido, as
visitas contínuas aos leitos dos pacientes se tornam uma peça nodal porque é um microcosmo no
261 Esse é o caso inclusive do treinamento médico que lida com cadáveres, como indicaram Joseph Lella e Dorothy Pawluch (1988).
339
qual há um recorte que Foucault chamou para limitar um domínio mais vastos de acontecimentos.
A descrição do filósofo sobre o caráter de sensibilidade concreta da experiência clínica não ressoa
totalmente com as descrições de médicos e médicas que conheci, que diziam que precisavam se
sensibilizar no decorrer de suas carreiras para poder acessar a terapêutica trans. Uma vez ganha
essa forma de ver as coisas de um modo diferente, cabia-lhes o dever de sensibilizar outros. Isso
era tão mais verdadeiro quanto maior era o envolvimento e a atuação da interlocutora ou do
interlocutor na medicina trans. Para Foucault (2006, p. 132-3): “o olhar médico não é o de um olho
intelectual capaz de perceber, sob os fenômenos, a pureza não modificável das essências. É um
olhar da sensibilidade concreta, um olhar que vai de corpo a corpo, cujo trajeto inteiro se situa no
espaço da manifestação sensível. Para a clínica, toda a verdade é verdade sensível; [...]”. Foucault
está se referindo à ferramenta mais imediata do trabalho médico de avaliação do doente, que se
utiliza daquilo que observa: “o olhar clínico é um olhar que queima as coisas até sua extrema
verdade”, isto é, se decompõe aquilo que se busca construir. Mas os interlocutores não estão
fazendo essa referência exatamente. Mesmo que haja elementos nesse discurso quanto a
aprendizagem de como abordar um paciente trans, o foco está no trabalho emocional que se traduz
no convencimento que foi operado em si mesmo através de estar sensível ao sofrimento alheio.
Ou seja, fala-se sobre acessar uma vontade para lidar não apenas com a terapêutica trans, mas
também com a integralidade do cuidado, segundo a qual o indivíduo está localizado para além da
sua transição de gênero.
Ao olharmos para o período de graduação dos interlocutores descritos até aqui, entre as
décadas de 1970 e o final dos anos 1990, pode ser percebido que a terapêutica trans – e até mesmo
a existência de um paciente com uma identidade de gênero diversa – não ocupava nenhum lugar
na medicina brasileira que não o da ilegitimidade. Essas décadas foram marcadas, primeiro, pela
perda do espaço da medicina trans (conforme o caso Farina) e, em segundo, pelo pouco impacto
da emergência dos recém-criados serviços ambulatoriais após a implantação do SUS em algumas
capitais do país, como descrevi nos capítulos 2 e 4. Nesse sentido, a trajetória de sensibilização se
apresenta como um fator decisivo para se produzir uma reaprendizagem que possibilite a entrada
nesse campo. É essa trajetória que impulsiona o interesse por querer vivenciar uma
responsabilidade clínica voltada para a transição de gênero principalmente, uma vez que as maiores
resistências que relatam de si e dos colegas eram posicionadas no terreno da inexperiência. Essa
reorganização de conhecimentos clínicos se dá de uma maneira muito mais conflituosa, uma vez
que acontece no âmbito da subjetivação muito mais livre e externa aos controles pedagógicos que
poderiam ter concretizado uma socialização profissional que tivesse tomado a terapêutica trans
como objeto legítimo.
340
O cenário das emoções, o sensibilizar-se, é apresentado pelos interlocutores como o nível
no qual primeiro se dá essa legitimação clínica. De modo paralelo ou posterior a essa reelaboração
subjetiva é que os profissionais se confrontam com a contestação da transição de gênero como não
comprovada cientificamente para transformá-la em benéfica para a saúde de alguém que demanda
a modificação de algo antes percebido como imutável: o sexo. Poderia se supor que, ao se estar na
carreira médica como um profissional formado, a autoridade seja absoluta, entretanto, os
interlocutores encontraram formas de constrangimento. Quando observamos, como fez Howard
Becker (1952, p. 470, tradução minha), que a carreira se refere a “séries padronizadas de
ajustamentos feitas pelo indivíduo” para integrar-se à “rede social de instituições, organizações
formais e relações informais” na qual o trabalho é realizado, não parece tão surpreendente que os
conflitos e regras morais também fossem atuantes na carreira dos interlocutores. Essa forma de se
ajustar é feita tanto entre posições de graus diferenciados (verticalmente) numa dada cena de
prestígio, numa hierarquia, quanto na forma de uma mobilidade entre posições de mesmo valor
social (horizontalmente). O estudo de Becker foi realizado entre professores da rede pública de
Chicago, mas aqui pode ser percebido como esse modelo teórico se aplica ao caso dos médicos.
Há, do mesmo modo, posições de prestígio divergentes, como áreas mais rentáveis e influências
morais correspondentes. Nesse sentido, quando os interlocutores faziam parte também de algum
grupo socialmente minoritário, isso refletia na trajetória constituída nessa carreira médica. Aí, suas
posições de sujeitos menos valorizados hierarquicamente em termos de gênero e de sexualidade
também se manifestaram.
Na verdade, se produz quase os mesmos elementos presentes nas suas formações nas
escolas de medicina quando boa parte deles e delas sofreram assédios morais ou sexuais, homofobia
ou racismo. Esse é um cenário similar àquele descrito pela extensa pesquisa de Becker et al. (1977),
na qual observaram que o treinamento hospitalar de estudantes de medicina era alicerçado por uma
hierarquia que atribuía aos homens heterossexuais brancos o maior status que refletia no processo
de formação. Essa ausência de formação específica levou esses médicos à constituição de uma
“formação na vida” que entrelaça vida pessoa e carreira, e transforma, como todos os percursos de
entrada na disciplina, carreiras morais. Assim, as trajetórias de sensibilização que já apresentei até
aqui podem assumir outras feições, como são as histórias de vida de Geraldo e de Fátima.
***
Geraldo seguiu um caminho similar ao de Carmela até a medicina. Ele tinha um interesse
constante por psicologia, mas entrou no curso de medicina sem muito planejamento. Como me
disse, esse não era o grande sonho de sua vida. Querendo sair da sua cidade natal, no interior do
341
Piauí, viajou para Fortaleza para realizar sua residência em psiquiatria. Foi então que seu primeiro
contato se deu com o tema da sexualidade, uma vez que o hospital de saúde mental detinha de
ambulatórios que atuavam nesse sentido:
Desde antes de eu pensar no que eu queria fazer para estudar, eu já tinha um certo
interesse, assim, bem intuitivo mesmo por questões psicológicas. Então quando tinha um
livro de psicologia eu lia algumas coisas e achava bem interessante e aí para o vestibular
eu fiz porque eu tinha uma afinidade maior pelas disciplinas que poderiam se pensar que
eram da área da saúde. Então, eu fiz medicina mais por causa disso, eu nunca pensei,
“nossa eu quero ser médico”, assim na minha vida, não. Foi por conta de exclusão
mesmo. Aí eu passei. Ao longo do curso eu fui até ficando meio frustrado porque eu não
gostava de nada que ia aparecendo, até que eu cheguei na disciplina de ginecologia. E eu
gostei talvez porque a ginecologia já tivesse uma proximidade com a questão da
sexualidade. [...]. Você perguntou se houve alguma abordagem sobre sexualidade de
forma separada, realmente não houve, eu tive um contato pequeno com a questão da
sexualidade na ginecologia, mas nada em questão relacionada a gênero, mais coisas de
disfunção sexual, e na psiquiatria eu tive um pouco de contato, mas assim [sobre] os
transtornos da sexualidade, também nada especifico para transexualidade ou outras
questões de gênero. Então assim, eu pensava que eu ia fazer ginecologia, mas depois que
eu fiz uma prova para estagiar no hospital psiquiátrico, no meu primeiro plantão eu vi,
“é isso aqui que eu quero fazer” (Geraldo, entrevista 2018).
A psiquiatria surge para Geraldo como o resultado também de um processo de
psicologização de si. Como me mostrou, continuava fazendo terapia psicanalítica, visitando o divã
com frequência. Quando lhe perguntei sobre seu interesse e escolha quanto a medicina trans, me
pontuava que via sua vida pessoal, sua própria sexualidade como homossexual, como uma ponte
que o ajudou a vislumbrar essa como área de sua atuação. Geraldo me respondeu quando elaborei
uma pergunta mais direta sobre isso:
Acho que sim, eu penso que sim, bastante. Tem muito a ver com isso também. Por talvez,
isso são elaborações que eu vou fazendo ao longo dos anos, de perceber que havia essa
questão diferente da maioria das pessoas e de [...] sofrer por conta disso, de discriminação,
intolerância, muito embora eu nunca tenha sido vítima de uma coisa assim muito
explicita, muito violenta (Geraldo, entrevista 2018).
Quando questionei sobre como isso se mostrava nas relações com outros colegas de
profissão, me confirma que havia percebido uma homofobia difusa, isto é, através de práticas
dispersas de indivíduos no dia a dia e não como práticas institucionais claras e explícitas:
Mais aquelas coisas sutis do dia a dia. Então acho que por isso, acho que também tem a
ver com isso, de eu ter buscado esse estudo. Não sei, pra tentar entender melhor essas
questões. [...]. É, outras situações [indiretas] e aí não sei, não sei o que passa pela cabeça
da pessoa que faz isso sabendo que eu sou homossexual e acabam fazendo comentários
às vezes pejorativos, não sei como é que é pra elas, pra mim é uma coisa mais tranquila.
Em outras épocas já foi mais difícil (Geraldo, entrevista 2018).
Próprio de suas elucubrações psicanalíticas, Geraldo apresentava tais formulações e
explicações sobre suas trajetórias de modo ainda incerto. O cotidiano com colegas tinha feito com
342
que ele se defrontasse com situações que poderiam exigir um posicionamento mais direto. Uma
vez, como lembrou, fora indagado num evento acadêmico e profissional porque homossexuais se
interessavam mais por sexualidade como objeto de estudo. Havia aí uma inferência que dizia ser
esses sujeitos de interesse apenas para si mesmos. De uma maneira ou de outra, Geraldo e a maioria
dos interlocutores vivenciaram algum tipo de conflito que expuseram e geraram tipos diferenciados
de preconceitos, por serem mulheres ou homens homossexuais, em suas carreiras. Isso dificulta
seus percursos, ao mesmo tempo que lhes dá um acesso compreensivo a experiências que, mesmo
não podendo ser balizadas como iguais, são aproximadas quanto à existência de estigmas. Fátima,
médica de família e comunidade, expôs isso numa das nossas entrevistas de maneira direta e fulcral.
Quando lhe perguntei sobre se ser mulher havia produzido alguma dificuldade na sua carreira, sua
resposta imediata foi “sim, todo dia”, embora isso não aconteça de modo explícito:
É uma violência meio estrutural, sempre tem que estar provando que você é capaz, isso
é muito comum. Tenho a impressão de que tem diminuído ao longo dos anos para cá,
mas você fala uma coisa e uma outra pessoa que é homem fala a mesma coisa e as pessoas
ouvem o cara, inclusive na mesma reunião, entendeu? Então isso eu tenho percebido ao
longo dos anos, nas participações e locais de decisão principalmente, numa fala que não
é escutada ou é interrompida muitas vezes. [...], mas teve acho que uma situação que acho
que essa foi quando eu, na verdade, acordei [para o] que era o feminismo, [sobre] a
importância de tá lutando Foi quando me convidaram pra fazer parte da gestão de uma
instituição e a pessoa que era o presidente – no momento eu não percebi que eu estava
recém-parida – aí ele me ligou e disse assim: “Fátima, você é muito importante, as suas
visões fazem parte e se assemelham com a nossa e a gente acha que você é um nome
legal para estar compondo a chapa, mas como você tem filhos, então a gente pensou que
eu poderia assumir como presidente e você ficaria como vice”. Então, assim, aí eu disse
OK, no momento não me caiu a ficha, mas depois.... (Fátima, entrevista, 2018).
Assim como Fátima, todas as outras mulheres médicas entrevistadas vivenciaram alguma
forma de situação vexatória por parte de colegas – assédio moral e sexual –, ou foram preteridas
por clientes mulheres e profissionais da saúde de outras áreas, também mulheres, em favor de
médicos homens vistos como mais competentes (principalmente na área de atuação cirúrgica). Isso
é importante de considerar porque localiza o trabalho duplo dessas profissionais que constroem
uma carreira em meio a obstáculos desse tipo. Isso demonstra a heterogeneidade do campo, e
indica que essas experiências assim situadas, embora não sejam unanimidades, compõem um
quadro considerável. Isso, contudo, não significa dizer que tais profissionais se interessaram pela
medicina trans porque viveram recortes de gênero que lhe chocaram de alguma forma por causa
de questões morais e de hierarquização nas carreiras que construíram. Não é uma equação tão
simples. Esse é um elemento dentre vários, mas não deixa de ser um fator importante para formar
trajetórias nas quais a medicina trans apareça no horizonte, no campo de possibilidades de carreira,
como um projeto. Mesmo médicos que não narraram nenhuma forma de estigma para si mesmos
se interessaram pela terapêutica trans e apontaram outros motivos, como é o caso de Álvaro, que
343
não vê nenhuma “motivação” direta, mas percebe como uma boa ação aliada da atividade médica
guiada pela ciência.
O humanitarismo passeia, mesmo que de modo diferenciado, por essas trajetórias de
maneira frouxa e nem sempre é trazido à tona como um objeto de engajamento profissional. Não
o humanitarismo enquanto política de governo de populações em vidas precárias cujos contextos
são de fome, desastres naturais, epidemias e outros eventos de grandes escalas, isto é, aquele
humanitarismo enquanto um guia moral, como demostrou Didier Fassin (2012, p. 247, tradução
minha) sobre a política global contemporânea. A razão humanitária, como chamou, circunscreve
uma poderosa atração emocional e não deixa de produzir hierarquias de humanidade. Essa lógica
é própria do nosso tempo presente, e diz respeito a como “sentimentos morais tem se tornado
generalizados como um quadro de referência na vida política”. Embora a saúde trans não condiga
com nenhum dos cenários humanitários descritos por Fassin, ela assiste, como cena de atenção à
saúde, a afirmação da humanidade daqueles que buscam atendimento em meio a uma vida
ordinariamente afligida. Quando Álvaro me falava em entrevista que não atendia pacientes trans
mediante pagamento, mas de graça, dizia que o montante se cobrado dava para “comprar um lugar
no céu”. Ele não estava ali se preocupando com as entradas financeiras que não se efetivaram, mas
afirmando a sua boa ação mediante a ser um ônus que carregava. Ele se sentia compelido a fazer
esses atendimentos diante do sofrimento de que ouvia testemunhos.
Assim, as trajetórias em direção à medicina trans são tão diversas que se torna difícil o
trabalho de síntese que procuraria agrupar esses profissionais segundo suas maiores semelhanças e
diferenças. Contudo, todos esses percursos se efetivam nas vidas desses médicos e médicas como
produtores de subjetivação. Como me mostram, eles e elas não permanecem os mesmos. Algo é
transformado com essa interação que expõe a violência e a diferença de classe, isso porque as
maiores tensões e dificuldades se encontram entre pobres. Nada disso implica ausentar-se do rigor
científico para concretizar a prática médica clínica ou cirúrgica. É pela prática assim orientada que
se consegue realizar alguma diferença. Não se busca uma piedade, a qual é vista como algo negativo
para aqueles que buscam atendimento. Isso tenciona os acessos a esse universo, mas não explicam
em si o trabalho realizado na medicina trans, isso é, a engrenagem e as ferramentas que dispõem
para concretizar a medicina trans.
***
Tentar dissociar o que, na competência científica, seria pura representação social, poder
simbólico, marcado por todo um “aparelho” (no sentido de Pascal) de emblemas e de
signos, e o que seria pura capacidade técnica, é cair na armadilha constitutiva de toda
competência, razão social que se legitima apresentando-se como razão puramente técnica
344
(conforme vemos, por exemplo, nos usos tecnocráticos da noção de competência)
(Bourdieu, 1983, p. 123).
Assim, a ciência é vista por Bourdieu como um campo social que, como qualquer um, é
governado por regras e valorizações das ações dos agentes. Ao se tentar separar a técnica daquilo
que seria apenas representação cai-se no problema de não enxergar que a própria produção dessa
técnica nunca está apartada dos princípios que governam o universo social a que diz respeito. A
sua razão social é constitutiva da sua existência em si. Nesse sentido, me interessei grandemente
em observar como medidas de hormônios sexuais sintéticos eram operacionalizadas, como técnicas
cirúrgicas eram escolhidas para determinados corpos, e como compreender e manejar saberes em
biologia celular para chegar a uma transição saudável eram também condizentes com o sistema de
ideias ao qual médicos estavam ligados. Isso porque observei ser necessário ultrapassar as
operações que procuram o transexual de verdade para entender as racionalidades biomédicas que
animam uma terapêutica da transição de gênero vista como possível, isto é, é necessário ir além da
patologização para compreender que a medicina continua com seus arrazoados próprios de
intervenção mesmo quando não há um interesse específico em reificar diferenças de gênero como
essências de uma diferença sexual binária.
Nas suas diferentes análises dos campos sociais sobre os quais se debruçou – economia,
política, arte, ciência, sociologia e antropologia como disciplinas, entre outros –, Bourdieu (2006,
1989, 1996c, 1983, 2003c) atribuiu a sua força a uma capacidade de reprodução autônoma de
diferenças externas. O controle que a medicina estabelece para o treinamento de novos
profissionais e para o desempenho posterior, e até mesmo diferentes táticas como divulgação do
conhecimento científico que produz e a delimitação de tarefas que só ela pode realizar em relação
a outras áreas de saúde (o ato médico, por exemplo), demonstra o seu altíssimo grau de autonomia
e até do excesso de força política que estabelece – isto é, para outros domínios, como a política
eletiva. Qualquer forma de esoterismo é punida. Com seus conselhos, associações e sociedades e
escolas de formação, residência e internato, a medicina se autorreproduz de maneira controlada e
vigiada, de tal modo que nada causa mais horror e risco à vida do que um falso médico noticiado
no jornal da manhã. Esse é um escândalo que causa um medo inquestionável. No processo social
de consolidação e legitimação, encontra-se a medicina num trabalho de transformar problemas
humanos em matéria de sua intervenção, o que acaba, por sua vez, possibilitando um sentido mais
legítimo no cotidiano para esse novo objeto. São várias as práticas que conflituosamente se
sobrepõem a dinâmicas diversas de outros especialistas e explicações terapêuticas.
No presente brasileiro, as práticas da supervisão médica para a transição são altamente
reguladas por políticas de governo (capítulo 4), de modo que as restrições, regras e orientações do
345
atual Processo Transexualizador podem limitar esse trabalho, fazendo com que esses profissionais
se tornem, ao agirem sozinhos, atados de alguma forma a tais prerrogativas morais e legais. Mas
isso não impede que uma abordagem afirmativa se reproduza. No campo vez ou outra a imagem
de Farina era referida, principalmente, para dizer que não se estava pondo em risco a própria
carreira ao ir contra a lei. E ninguém poderia cobrar isso de suas partes. Mas seguir os protocolos
não se trata apenas de não perder a licença, eles também materializam o cânone médico no assunto
e orientam a ação. Nesse sentido, me perguntava: como médicos e médicas enxergam a corrente
presença da disforia de gênero com critérios diagnósticos no DSM-5? Como pensam suas práticas
clínicas e/ou cirurgias em face das regras brasileiras? Como se veem atuantes nesse cenário como
cientistas em meio a concepções envolvendo sexo e gênero? E, por fim, como leem os protocolos
e os manuais de saúde?
Todos os médicos entrevistados mostraram que em algum momento de suas atuações nada
conheciam sobre transição de gênero, e mesmo tendo algum conhecimento sobre diversidade
sexual e de gênero, não sabiam como efetivar o acompanhamento. Numa das minhas visitas a
serviços de saúde para encontrar esse ou aquele médico, indicado por outro para a pesquisa, eu
conversei, à oeste de Fortaleza, num bairro popular, com uma médica de família já quando não
havia nenhum paciente no serviço. Clara tinha 32 anos e atendia sozinha como médica de família.
Já era final de expediente e passamos mais de uma hora em entrevista. Quando saí de lá já era noite.
Em seu pequeno e aconchegante consultório, Clara me contava que costumava atender moradores
trans que moravam no bairro que compunha a comunidade territorial do posto, mas se considerava
um pouco perdida sobre para onde referenciá-lo quando se tratava de hormonização e até cirurgias
pretendidas. Não conhecia serviço nenhum na cidade nesse sentido. Como também não recebera
nenhuma forma de treinamento na graduação, seu contato inicial com o tema fora na residência de
medicina de família:
Eu acho que homens e mulheres trans sempre têm uma relação com a saúde, com os
médicos principalmente, muito de desconfiança, e com razão. Sendo bem sincera eu acho
que existe muito preconceito na medicina em geral e aí eu vejo que as pessoas nunca
estão muito abertas, nunca vêm muito abertas para discutir a transexualidade em si,
porque eu acho que elas pensam que não vão ser bem recebidas nesse aspecto. Então eu
acho que a maior diferença que eu noto de quando essas pessoas chegam até mim é que
muitas vezes eu já percebo uma barreira que normalmente eu consigo quebrar porque a
minha visão é outra, não é essa que é o senso comum para médicos, infelizmente. Mas,
eu acho que essas pessoas já vêm com uma barreira sobre esse assunto a ser discutido [...]
(Clara, entrevista 2018).
A medicina de família e comunidade é trazida por Clara como a razão para sua visão
diferenciada sobre a diversidade sexual e de gênero, principalmente porque a MFC oferecia uma
perspectiva de saúde integral e não da Clínica Geral e das especialidades médicas, incessantemente,
346
à procura de doenças e não de cuidado de pessoas. Seguindo a nota pública da SBMFC, citada no
início do capítulo, e muito antes desse documento ser produzido e publicado, Clara já estava
pensando suas premissas com a pouca experiência que tem no assunto. Seu ponto de partida era
colocado como de uma medicina diferenciada:
A minha especialidade [é] a que mais deve ter o contato nesse aspecto, porque, primeiro,
a atenção primária é a porta de entrada para qualquer serviço secundário ou terciário que
você precise. Você nunca vai conseguir chegar num serviço secundário ou terciário sem
passar pela atenção primária, então precisa estar na atenção primária inicialmente, e
segundo porque é a pessoa que provavelmente que acompanhou toda essa descoberta,
todo esse sofrimento de não se entender o gênero com o qual nasceu e de querer
modificar para o que a pessoa sente, para o que ela sente que ela é. Então, eu acho que
de todas as especialidades, [a MFC] é a que mais deveria ter relação com isso, sim (Clara,
MFC, entrevista 2018).
A ideia que Clara contempla é uma que coloca a medicina como uma supervisão e não
como uma autorização para modificações corporais ou enquadramento subjetivo que os
diagnósticos reproduzem. Na graduação se deveria, assim, aprender a mediar e não a diagnosticar.
Ela conclui que a transição de gênero deveria ser vista como um ciclo de vida, e como tal tem tudo
a ver com a medicina de família. “Isso é um ciclo de vida, esse processo da transição, e é um ciclo
onde a pessoa vai precisar de apoio em todos os sentidos, então eu acho que tem tudo a ver com
a minha especialidade”. Essa concepção se torna ainda mais forte quando Clara posiciona a
transição em meio a todas as outras regularidades que está acostumada a ver no posto de saúde.
Ao pensar na MFC, ela conclui que a transição (o querer a mudança de gênero) é uma parte da vida
que pode acontecer e que pode afetar a saúde e não é o próprio problema de saúde:
O médico de família é o médico responsável primeiro pela coordenação do cuidado
daquela pessoa e por acompanhar o indivíduo nas diversas fases de vida e ciclos de vida
pelos quais a gente passa, então eu atendo pessoas de qualquer idade com quaisquer
problemas de saúde, ou com nenhum problema de saúde inclusive, e o nosso principal
foco é a prevenção de agravos, prevenção de doenças, e o acompanhamento de pacientes
que estejam precisando fazer uma rotina, um pré-natal, então eu atendo pré-natais, eu
atendo crianças. [...]. Eu atendo idosos, a gente faz visitas domiciliares de pacientes
acanhados, e pacientes com doenças crônicas, hipertensos, diabéticos, com problemas
cardíacos, com hipotireoidismo, então a gente atende qualquer pessoa, na verdade. E o
foco da medicina de família não é na doença, e sim na pessoa. Então, até a questão da
saúde mental que a gente falou antes é algo que a gente vê no nosso dia a dia o tempo
inteiro.
Depois de uma pausa ela continua:
Algo que a gente discute é como o ciclo das nossas vidas altera a nossa saúde, existem
ciclos que são previsíveis, existem ciclos que não são, então para os previsíveis a gente
tenta fazer a pessoa se apropriar de que aquele ciclo vai chegar e ela tem que estar
preparada para passar por ele.... Então o nosso papel é esse, ouvir a pessoa, o contexto
em que ela vive, saber orientar de acordo com os conhecimentos que ela tem, com a vida
que ela tem, com as facilidades ou dificuldades. Então o papel é entender a pessoa,
347
conhecer a pessoa, conhecer o ambiente onde ela está inserida e ver o que pode fazer
pela saúde dela (Clara, entrevista 2018).
Um diferencial da sua “especialidade” ganha relevo na visão de que é esse pano de fundo
que percebe o outro em como ele quer ser e não como ele deveria ser:
É isso o que a medicina de família me ensinou, que o meu foco [é] com a pessoa não é
na doença dela. É no que ela é, é no que ela quer ser, é nos sonhos dela, é no futuro que
ele pretende ter, é no que ela está fazendo para atingir esse futuro. [...]. Eu acho que essa
abordagem não é muito vista pelos médicos na maioria das vezes, eu mesmo só fui me
apropriar direitinho dela na residência. Por isso as pessoas tendem a medicalizar tudo, a
tornar tudo patológico e aí por isso esse preconceito. Então eu acho que por isso a minha
visão é diferente, como eu acredito que a maioria dos médicos de família vai ser nesse
aspecto (Clara, entrevista 2018).
O estabelecimento da medicina de família e comunidade no Brasil favoreceu outra forma
para a relação entre médico e paciente. Segundo Octávio Bonet (2014), a institucionalização no
país dessa especialidade perseguiu uma ideia de totalidade no período de conformação dos
Programas de Saúde da Família, impulsionado pela nova reestruturação do sistema de saúde
brasileiro, o SUS. A ideia de integralidade a que Clara se refere é central na epistemologia da
medicina de família, uma vez que outra visão é estabelecida para aquele que é atendido. Segundo
Bonet (2014), esse paciente se torna uma pessoa:
Essa integralidade, que implicará uma visão diferente, está associada diretamente com a
ideia de que o compromisso do médico de família com a pessoa não termina com o fim
da doença ou a resolução do problema, mas sim que este pode ser estabelecido antes da
aparição de um problema. Essa permanência da relação configura a característica da
especialidade, chamada continuidade (Bonet, 2014, p. 172).
Essa é uma perspectiva que deixará de animar apenas a medicina de família no campo
observado. Mesmo que ginecologistas, psiquiatras e endocrinologistas não repliquem na mesma
profundidade a ideia de integralidade, principalmente conformando, tal qual uma continuidade do
acompanhamento como faz Clara, a ideia de que o sujeito que procura a transição de gênero é uma
pessoa complexa como qualquer outra, e que tem um eu que precisa atingir o bem-estar, se repete.
Essa mudança corporal e institucional ensejaria a ideia de multidimensionalidade do indivíduo
entronizada pelos médicos de família. Assim como essa, a área de expertise da terapêutica trans se
mostra como uma medicina das margens. Tanto no sentido de que os profissionais que por ela se
interessam estiveram marcados majoritariamente por posições de sujeito marginal, como no
sentido de que a perspectiva afirmativa ainda se estabelece às margens da biomedicina hegemônica.
A visão de Clara não é unânime. Outros médicos chegaram a pensar suas especialidades diante do
processo de transição de gênero. Num cenário mais abrangente, a legitimidade encontra-se ora na
assertiva da obrigatoriedade do atendimento psiquiátrico, ora entende que são equipes
348
multidisciplinares em ambulatórios que devem realizar esse trabalho. Na supervisão afirmativa,
esses pacientes são também instados a cuidarem da própria saúde mental, principalmente quando
foram vítimas de situações de violência. O que não é também unânime entre esses médicos é qual
especialidade deveria ser a porta de entrada dessa assistência, se a medicina de família ou se a
psiquiatria. Compreendo que quanto mais forte for uma perspectiva despatologizada, mais a
autorização psiquiátrica perde espaço para a continuidade do atendimento oferecida
emblematicamente pela medicina de família.
6.4. Visões afirmativas
Nesse capítulo procurei situar as trajetórias de médicos e médicas em direção a medicina
trans, demostrando de maneira objetiva os dilemas e as questões que fazem entrelaçar suas carreiras
e o interesse pela atuação em clínica e cirurgia voltadas para a transição de gênero. Dada a minha
inserção na rede de profissionais organizados de forma difusa, isto é, sem constituir um grupo
social específico e unitário, passei a fazer uso da técnica de bola de neve e da presença em eventos
para que pudesse ter acesso para que as entrevistas fossem possíveis. Algumas questões, contudo,
não foram incluídas nesse capítulo dado seu escopo principal ter se dedicado às entradas no âmbito
da carreira na terapêutica trans, como dinâmicas em torno do controle ao acesso a hormônios,
cirurgias, e outras problemáticas envolvendo a necessidade da patologização. A maioria dos
interlocutores não viam a transexualidade como algo patológico a ser diagnosticado, mas eu
percebo que isso não significa que se elimine por completo – e não busco conferir que haja ou não
essa possibilidade, pois isso seria ceder à tentação ao profetismo – a tutela e a relação médico-
paciente que identifica problemas e autoriza procedimentos como acontece em qualquer relação e
sobre qualquer processo de medicalização. Tampouco poderia ser dito que a patologização seja a
única via, quando é postulada, através da qual isso se materializa.
A heterogeneidade desses sujeitos é vasta, e se refere as concepções relacionadas a como
veem a transexualidade, como se situam politicamente e como manejam saberes biomédicos sobre
transicionar. Há, por outro lado, certa unanimidade sobre os riscos presentes nas cirurgias e na
administração de testosterona sintética sem supervisão. Não pretendi aqui dar conta de todos os
meandros da atuação médica envolvendo a terapêutica trans, mas lançar luzes sobre como pensam
e os caminhos que viveram para chegar aonde estão como profissionais. Isso porque a trajetória é
um elemento social importante de ser entendido, principalmente porque foi por conta própria que
esses interlocutores se tornaram aptos a ter uma conversa detida, a ouvir as angústias de pacientes
e a “ajudá-los”, já que esse é um direito que se sentem instados a fazer cumprir. Contudo, essas
trajetórias pessoais se encontram envernizadas com uma vivência das emoções, de modo que a
349
atuação médica não deixa de buscar um ideal de cientificidade que reflete na ideia de segurança
para o paciente.
Pela ausência de pesquisas antropológicas sobre a atuação de médicos e médicas na
medicina trans procurei dar conta, portanto, de trajetórias. Como o cenário que tive acesso é
consideravelmente pequeno, dado que suas figuras mais notórias são popularmente identificáveis,
não descrevi cenários específicos de atuação clínica. O que as análises desse capítulo acabam por
demonstrar é que há uma confluência de vertentes concorrentes sobre a abordagem da transição
de gênero na medicina brasileira, e essas não se restringem a níveis de preocupação por um
transexual de verdade. As visões afirmativas, despatologizadas, estão cada vez mais presentes. Isso,
por sua vez, não implica nem uma ausência de medicalização, nem uma completa e absoluta
transformação da biomedicina enquanto área científica e de intervenção no cotidiano.
350
– Conclusão –
As políticas do cuidado na saúde trans
Ao me debruçar sobre os objetivos desse trabalho procurei recobrir, primordialmente a
partir de uma etnografia, um cenário composto de diferentes agentes sociais que estabelecem a
legitimidade de uma assistência em saúde pública voltada para a transição de gênero. O país abriga
uma intensa e crescente produção em várias áreas do conhecimento sobre a transexualidade,
demonstrando as maneiras pelas quais rígidos mecanismos de controle se materializaram para que
o acesso à atenção à saúde fosse realizado, a oferta da possibilidade de mudança social e corporal
para uma noção de pessoa contrária àquela identificada ao nascer. Essas pesquisas também têm
evidenciado uma grande diversidade nesse cenário e o que indicam categorias de sujeitos que são
geralmente agrupadas nos termos trans, transgênero ou transexual – e outros termos de criatividade
ilimitada. Como minha intenção principal era de descrever essa efervescência ao lado da
consolidação do ativismo transmasculino na região metropolitana de Fortaleza, no Ceará, me
concentrei em entender quais eram as forças sociais e como se dava o dinamismo relacional cujo
contato produzia um universo social próprio.
O foco se deu, portanto, para expor o que considerei ser pouco explorado pelas pesquisas
até agora: a integração de médicos, pacientes e ativistas trans e agentes de governo, demonstrando
a importância também das ciências bioquímicas e sua aplicação à reprodução nos cuidados em
saúde e na medicina contemporânea. Não procurei centralizar minhas descrições nos termos de
uma definição identitária, dando relevo, por outro lado, a experiências, práticas e seus discursos. A
pesquisa observou que, ao contrário do que se poderia supor, há muito mais semelhanças do que
diferenças entre pacientes e ativistas trans e médicos e médicas na constituição de uma abordagem
biomédica para garantir uma transição de gênero biologicamente segura. Isso não significa afirmar que
pessoas trans estão submetidas aos saberes biomédico, mas que há aí uma relação de mútua
significação. Aí o corpo detém sua centralidade nas experiências trans, mas é articulado pelos
351
sujeitos de uma maneira que não se rejeita a compreensão social dos eventos orgânicos que
produzem as mudanças. Além disso, situei culturalmente esse cenário ao pontuar como ativistas
trans agem em torno de produções artísticas, pois a legitimidade advém de se fazer presente no
mundo de outras maneiras. Ao se reclamar do Estado-nação brasileiro uma cobertura para
assegurar a transição de gênero supervisionada medicamente, esses agentes não simplesmente
“resistem”, eles tanto participam de processos de formação estatal como se subjetivam. Na hora
de escolher suas estratégias para a conquista da cidadania, homens trans sentiram, na constituição
do eu, os efeitos sociais de sua mobilização e do encontro com outros campos sociais com os quais
interagem. Os médicos, por sua vez, podem também ser visto nesse mesmo processo de
subjetivação enquanto circunscrevem-se como cientistas, clínicos e/ou cirurgiões de uma
determinada terapêutica num cenário heterogêneo para a definição do que seja trans, sexo, gênero
e sexualidade. Procuro realizar nessa conclusão não apenas uma síntese da tese, mas explorar as
limitações das minhas análises, as questões que deixei descobertas e os novos cenários que ora se
anunciam.
A atenção à saúde e a biomedicina afirmativa
Embora a patologização das identidades trans não tenha sido tratada sempre de modo
aberto e empenhado pelo ativismo local que observei, essa era uma preocupação difusa de homens
trans. Não se tratava simplesmente de usar de modo estratégico os manuais de saúde e suas
definições de desordem para assegurar a existência – e, no caso do Ceará, a implantação – de
serviços e de abordagens médicas. Esses interlocutores giraram noutra direção a engrenagem da
narrativa biológica e urgiam que seus direitos estavam limitados pelo não desenvolvimento de um
cuidado afirmativo produzido numa atenção estruturada. Mas esse movimento não se realizava em termos
de advogar que gênero seria performático, como se os ativistas anunciassem os termos da teoria de
Butler para os agentes estatais, o reforço estava em não negar o aspecto orgânico, molecular,
bioquímico dos corpos, mudando a perspectiva a partir da qual isso se tornava relevante
politicamente. Com isso, produziram sentidos biossociais para seus reclames e práticas cotidianas.
Aí não se põe em xeque a transexualidade – ou os transbordamentos práticos e identitários que as
formulações de manuais e guias de orientação podem indicar.
Na dinâmica interacional, na qual o uso do nome civil estava em desacordo com o nome
social, se criava uma barreira inclusive para se esperar o atendimento em recepções de postos de
saúde, hospitais e outras formas de assistência. Quando as relações médico/paciente procuravam
diagnosticar as vontades de se mudar a própria identidade de gênero se produzia um ambiente
interativo de aflição, no qual o paciente se via como tendo que produzir justificativas morais para
352
o cuidado. Partindo da vasta bibliografia brasileira em saúde pública e saúde coletiva, que chama a
estrutura estatal do sistema de saúde de atenção à saúde e a observação de itinerários terapêuticos de
transição de gênero e processos de adoecimento paralelos, percebi que seria pertinente fazer uma
diferenciação entre atenção e cuidado.
A noção de cuidado tem uma amplitude variada nas Ciências Sociais e nas Humanidades, e
tem sido abordado como atividades contínuas que são centrais para sustentação de comunidades e
necessidades individuais. Ajudar, observar, ouvir, conversar, vestir o outro e cozinhar são, por
exemplo, práticas através das quais alguém cuida de si e do outro. A dimensão feminina disso tem
sido apontada por teóricas feministas como um produto de relações de gênero que cobram das
mulheres uma maior afetividade no âmbito da família e do trabalho, de tal modo que profissões
que cuidam são tidas como pouco afeitas aos homens (Tamarini, 2018; Porto, 2009). Assim, isso
pode ser percebido tanto como uma relação quanto como uma prática nas quais os que recebem e
os que dão entram em circuitos de troca com forte potencial de ajuda mútua. A dimensão da dádiva
é crucial no seu estabelecimento. Mas isso não se dá apenas no espaço de interações com parentes
e amigos. Ao olhar para recortes que expõem questões envolvendo sexualidade, raça, etnicidade e
deficiência se desafiam concepções sobre a universalidade do cuidar como instância feminina que
fica materializado com a concepção do “trabalho do amor” apontado pelos estudos feministas.
Mas como isso pode ser observado sob a chave interpretativa da busca por serviços de saúde
organizados por políticas de governo ou instâncias estatais? Não se trocam apenas serviços, nem
se oferece apenas cuidados, relações de troca são constituídas na sua formulação de significado
para que o cuidado em saúde seja efetivado. Como mostrou Allain Caillé (2014, p. 63), “em todo
ato médico, existe, necessariamente, uma parcela significativa e, às vezes, absolutamente decisiva
de dádiva”. Ao pensar nisso é possível fazer uma comparação com a práticas envolvendo
deficiência, com aquelas do contexto de quem vive com HIV/AIDS e quanto a comunidades de
gays e lésbicas.
Os sujeitos que vivem experiências de deficiência, por exemplo, se defrontaram com uma
dinâmica que expõe um limite tênue no qual o cuidado pode se transformar em violência quando
não é deixado espaço para a autonomia cotidiana e também pela falta de ações governamentais,
que são chamadas a produzir políticas, e de suporte familiar, como tem demonstrado Anahí Guedes
(2014). No caso das vivências daqueles que convivem com o vírus do HIV/Aids, a superposição
da sorologia como um definidor de quem são e que destinos detêm produz aquilo que Carlos
Guilherme do Valle (2013) apontou sobre o que o ativismo em resposta inferia: a morte civil, uma
morte em vida de sujeitos que são transformados em objetos de pânicos morais. A demora na
resposta à pandemia da infecção por HIV levou homens gays, hemofílicos, pessoas negras e
353
mulheres a se reunirem em diferentes comunidades para conformar aquilo que estava então posto
como obrigação dos Estados, uma vez que não havia disposição inicial na forma de políticas (Valle,
2000). Como mostrou também Weeks (1995 citado por Hines, 2007) sobre o contexto inglês, isso
gerou práticas de cuidado através de uma noção de comunidade imbuída nas noções de identidade
e resistência. A ausência de vínculos familiares rompidos por decorrência da “saída do armário” de
gays e lésbicas – considerando o contexto estadunidense – também gerou uma ideia de que novas
famílias poderiam ser construídas para alicerçar as ajudas que amigos poderiam produzir entre si
(Weston, 1991). Esse cenário de fatores disruptivos na vida coletiva quanto a infecções e ao
reconhecimento de novas identidades e sujeitos também é o caso, e não apenas do norte global
(Epstein, 1996), em que redes de ajuda mútua se formaram para suprir a carência de políticas de
governo e reconhecimento social, como demonstraram as pesquisas de Carlos Guilherme do Valle
(2000; 2013; 2015) sobre os grupos tanto de infectados por HTLV como soropositivos no Brasil.
A ausência de cuidado produziu comunidades e impulsionou uma busca por direitos, gerando o
que o autor chama em diferentes ocasiões de cidadania terapêutica. A mobilização social é, assim,
uma chave para compreender processos de visibilização.
Isso tudo – deficiência, resposta ao HIV/Aids, reconhecimento gay e lésbico – é “bom
para pensar” o cuidado em saúde trans. Não porque eu esteja inferindo que “trans” signifique uma
experiência da deficiência ou ser infectado por algum vírus – aliás, essa comparação se torna um
problema quando há o trabalho da própria moral que percebe essas experiências como mais abjetas.
A transição de gênero posiciona, para pessoas trans que integrei a essa pesquisa, um contato
contínuo com saberes e práticas biomédicas, e não apenas porque as alterações corporais se
tornaram possíveis pelas transformações nas concepções de sexo, mas também porque crescem
preocupações em torno de adoecimentos que podem se desenvolver devido às más interações
bioquímicas, esperadas ou não. Isso traz à tona novas formas de medicalização que podem não
estar associadas à patologização de identidades não-heterossexuais.
Quando alguém que realiza sozinho aplicações de testosterona sintética descobre, meses
depois, que tem um cisto no útero, ou começa a sentir dores regulares, como se estabelece a
percepção do cuidado que deveria ser oferecido por uma assistência governamental que é
reclamada? O medo de desenvolver um quadro cancerígeno é algo presente, mesmo que nem
sempre se conheça muitos exemplos próximos de outras pessoas que o tenham vivido. Como,
então, pensar a transição de gênero de alguém que vive com diabetes – e não faz nenhum
tratamento para isso –, mas continua com a ingestão avulsa de hormônios? Essa preocupação é
corrente e situa os interlocutores com quem convivi nas margens dos cuidados que demandam.
Assim, esses sujeitos têm estratégias para transicionar ao manejarem os conhecimentos biomédicos
354
quando não têm acesso a consultas, exames e procedimentos. A via para isso acontecer,
principalmente, está na compra de receitas ou ampolas por terceiros, ou pela circulação de ampolas
entre aqueles que a obtiveram com prescrição médica. Mas há outros recursos sociais, como uma
redobrada atenção para o consumo de alimentos que ajudem o metabolismo a produzir mais
testosterona que estrogênio e o uso de substâncias que fazem crescer os pelos corporais. Assim,
encontram diversas maneiras paralelas à estrutura de saúde pública e suplementar. Mas esses
caminhos são geralmente tidos como não saudáveis, ou, até mesmo, pelo emprego moral do termo
ilegal com alta carga de estigma. Então, o que tem faltado não é um cuidado de si, mas um cuidado
que advenha de uma estrutura formal sem as prerrogativas da patologização. É isso que levou a
grande mobilização de associações ativistas trans no Ceará a requerer do governo local a
implantação da única política disponível no país que assiste à transição, o Processo
Transexualizador, que tem sido marcado continuadamente por um viés de controle de diagnósticos
e cobrança de verdades sobre os sujeitos. Isso acontece mesmo quando o serviço não existe de
fato, já que a política se inscreve como um tipo de jurisdição biomédica para os profissionais e
gestores de saúde.
Isso tudo se encontra com as novas e emergentes transformações que sofrem as abordagens
e as perspectivas de médicos que se interessam por se especializar na supervisão da transição ou
simplesmente por não rejeitar pacientes trans na saúde integral. A tese demonstrou que a saúde
trans se compõe de muitos agentes que não comungam das mesmas obrigações morais e formas
de legitimação, nem mesmo das mesmas noções sobre o que seja o sexo. Esse contato não deixa
de produzir um campo maior de articulação para um objetivo comum: o estabelecimento da saúde
trans como área de atuação clínica e cirúrgica benéfica à vida humana. Há, aí, uma disputa de visões
de mundo internas ao próprio mundo social da medicina que tem uma estrutura própria. Mas é
preciso olhar para esse cenário particular a partir de si mesmo. A terapêutica trans não é a mesma
daquela promovida por Harry Benjamin ou John Money, e as novas formas da biomedicina abordar
a vida constituem os modos como a transição de gênero tem sido vista como uma prática saudável
que precisa, entretanto, ser supervisionada na sua atuação bioquímica, embora isso não implique
uma substituição de uma visão patologizante por uma apenas medicalizante. Essas proposições se
sobrepõem, se justapõem e são concorrentes até mesmo num mesmo serviço de saúde.
Questões e problemas em aberto
Essa tese, como qualquer pesquisa, foi feita de escolhas sobre como tratar e construir o
material empírico e quais elementos evidenciar para construir seu argumento, de modo que parece
haver muito mais questões deixadas de fora do que acolhidas. Essa etnografia surgiu para mim a
355
partir de uma questão mal resolvida durante a minha dissertação de mestrado. Na ocasião, eu dei
pouca atenção a dinâmicas envolvendo serviços de saúde, concentrando-me no aspecto subjetivo
e ligado às problemáticas colocadas pelas intervenções das ciências psi na vida de homens trans,
bem como a um ativismo voltado para o cotidiano e não diretamente para as instituições. Assim,
investigar a dimensão biológica da transição, e desse modo desnaturalizá-la, pareceu algo inacabado
naquele momento. Com isso, percebi que se constrói um ativismo, sentidos e práticas biossociais
que buscam justificar a transexualidade – ou a experiência trans em geral – e as práticas de
intervenções bioquímicas e físicas como constituidoras de biossocialidades, relações que unem o
social e aquilo entendido como biológico na formação da vida. Vali-me grandemente das
formulações de Carlos Guilherme do Valle (2015; 2018) quando aplica e extrapola várias
proposições de autores como Paul Rabinow e Nicolas Rose, a quem também recorri. A ideia de
ativismo biossocial é um termo tomado de empréstimo das descrições de Valle (2015) que utilizo
para mostrar que o mundo social da saúde trans é animado por esses sentidos e relações. Contudo,
não me detive com grande espaço para as práticas e técnicas corporais que os interlocutores trans
realizaram ou os médicos assistiram, uma vez que meu foco esteve no reclame político para que
isso tudo se tornasse estruturado pelo Estado.
Além disso, não houve espaço para tratar a contento de questões envolvendo raça, racismo
e racialismos diversos que se inscreveram nas vidas dos interlocutores, uma vez que tratar disso
demandaria uma problematização teórica, metodológica e empírica considerável. Isso não quer
dizer que esses problemas sejam menores. Há uma necessidade indiscutível de tratar
antropologicamente como o racismo se constitui em Fortaleza, no Ceará, e como a seu passo se
constrói também branquitude e outras formas paralelas de identificação e desigualdade racial, e não
apenas negritude. Outra ausência marcante é a da não inclusão direta de travestis e mulheres trans
como entrevistadas, muito embora elas tenham se feito presentes na pesquisa no decurso da
observação participante. Isso se deveu primordialmente pelo meu interesse em cobrir uma parcela
tão significa de grupos transmasculinos que ainda são pouco considerados nas pesquisas do tema
no país. Como apontei no início do texto, também não cobri a descrição de relações sexuais, mesmo
que isso seja muito relevante. Por força de uma legitimação no campo da diferenciação com gays e
lésbicas, a questão das práticas sexuais não é trazida para o foco do ativismo trans. Há, assim, um
conjunto de retóricas e de investimentos políticos e de intimidade que são direcionados para a
esfera estatal ou para as dinâmicas de escolha de parceiros e parceiras, a conquista amorosa e os
dramas marcados e sentidos corporalmente em interações que envolvem romance. Pude
acompanhar, por exemplo, quando interlocutores se apaixonavam uns pelos outros e como isso
trazia um senso de dignidade ao serem correspondidos. Nesse sentido, a minha identidade sexual
356
e de gênero, nos termos do campo, foi um elemento muito importante para minha aproximação,
uma vez que ser reconhecido como gay e homem me fazia compartilhar várias experiências com
os interlocutores, que eram tomadas como expressão combustível para uma certa confiança. Uma
das perguntas que me rodeavam era se eu me envolveria afetivo-sexualmente com um homem
trans, o que procurava investigar, se eu realmente os considerava homens. Por ser gay, minha
rejeição seria tomada como preconceito. Embora essas questões tenham estado no meu campo de
interesse de pesquisa inicial, percebi que a tese precisava ser otimizada dentro de um recorte
específico.
Não inclui ao longo da tese considerações sobre os meandros de mediação que acabei
tomando parte no decurso do trabalho de campo. Inúmeras vezes eu informava a homens trans
pacientes e/ou ativistas sobre serviços que eu havia conhecido no meu mapeamento na cidade ou
também anunciava a essa ou àquela médica ou médico que havia outros serviços públicos da região
para os quais eles poderiam referenciar pacientes. Isso se materializava para mim porque boa parte
dos homens trans tinham particular dificuldade em conseguir encontrar serviços sensíveis, como
diziam. Então, quando eu conhecia algum lugar no qual eles que poderiam ser admitidos, mesmo
que não fosse inicialmente para procedimentos de transição, eu compartilhava essa informação.
Alguns médicos que atendem regularmente em postos de saúde na Atenção Primária,
principalmente, também não sabiam que outros servidores públicos nessa área tinham grande
experiência com a qual eles poderiam entrar em contato.
Além disso, realizei muitas outras ações a pedidos, como falar com algum parente de um
jovem trans que estava “se assumindo” para os pais, fazer atas para as reuniões das associações
ativistas ou ajudar profissionais de saúde a acessarem artigos, ou outras “ajudas” sobre escrita
acadêmica, métodos de pesquisa social e dar aulas de “capacitação em gênero e sexualidade” para
funcionários dos serviços onde trabalhavam. Escolhi sempre que pude realizar essa “mediação”
durante entrevistas ou quando alguém compartilhava angústias nesse sentido e eu estava presente.
Isso me pareceu uma dimensão ética e de retorno que eu poderia oferecer aos interlocutores de
diferentes campos sociais como um elemento muito ínfimo diante das suas necessidades mais
amplas. Eu me perguntava se isso poderia ser considerado uma espécie de mediação. Teria sido eu
um mediador? Carlos Guilherme do Valle (2017, p. 31) definiu “práticas de mediação como relação,
comunicação, trocas e fluxos intersubjetivos entre pessoas e grupos em mundos sociais específicos,
cujos saberes e modos de significação são articulados”. Mas eu não era um membro do universo
que eu investigava, não era um ativista nem um médico – mesmo que tenha recebido definições e
convites para fazer ativismo ou para cursar medicina. Valle está considerando ativistas de
HIV/Aids que se tornaram experts biossociais relacionando saberes entre diferentes agentes e
357
mundos sociais, dimensão na qual entrava em dinâmicas de poder. Eu não considero ter atuado
nesse sentido, os experts biossociais eram os próprios ativistas homens trans que reuniam
informações sobre hormonização e as compartilhava, reuniam médicos para informar a amigos e
colegas sobre quem consultar e até onde ir quando adoeciam. A mediação que realizei, se for
possível assim chamá-la, foi mais próxima daquilo que Rozeli Porto (2017) chamou de “mediação
informal” em saúde. Seguindo sua definição, percebo que estive posicionado, por minha própria
escolha e por demanda dos interlocutores, em relações sociais nas quais essa “ponte” valeria a pena
ser feita entre sujeitos, instituições e saberes/práticas para seu benefício. Eu não utilizei isso como
um elemento monetizado para acessar a disponibilidade dos interlocutores, mas sempre o fazia
após já ter estabelecido contatos duradouros e realizado entrevistas.
Além do mais, como outro ponto de preocupação, os médicos não constituem os únicos
profissionais de saúde, nem os únicos funcionários públicos, com os quais homens trans, travestis
e mulheres trans interagem no processo de transição de gênero ou do reconhecimento da mudança.
Assistentes sociais, psicólogas, fisioterapeutas, advogados, tabeliãs de cartório de notas,
enfermeiras, por exemplo, são igualmente importantes, e circunscrevem a seu modo mundos
sociais específicos que demandam investigações próprias. Também não tive contato como gostaria
com cirurgiões e cirurgiãs que performassem cirurgias de mudança de sexo, redesignação sexual ou
afirmação de gênero – conforme multiplicam-se as categorias dessas intervenções. Pude entrevistar
dois: um cirurgião plástico e uma cirurgiã especializada em procedimentos de mamoplastia. O
acesso a cirurgias trans é de difícil concretização, uma vez que esses especialistas são mais
inacessíveis por uma redobrada atenção que envolvem as reverberações políticas, éticas e de
carreira. Assim, esse é, talvez, um dos campos mais encobertos da saúde trans no país.
Por ser esse um cenário de intensa disputa política, envolvendo mobilização social de
pacientes, interesses e limites de atuação de profissionais e precariedade de serviços, questões
envolvendo a legislação em saúde nesse sentido são de altíssima relevância não apenas para esses
sujeitos alcançarem resoluções para aquilo que lhes causa sofrimento e violência. Procurei
considerar esse conjunto de documentos de governo para mostrar, principalmente, que apesar de
sua força considerável, ele ainda não explica o que acontece no contato direto da clínica e sobre as
estratégias e experiências de médicos e pessoas trans. Com isso, essa tese procurou contribuir, a
partir da antropologia, para gerar um quadro mais heterogêneo da saúde trans aumentando os
agentes e as perspectivas que não são comumente descritos nas pesquisas já realizadas. A segurança
biológica de se concretizar uma transição de gênero benéfica tem cada vez mais se justaposto a
considerações patologizantes, e anunciam um cenário no qual a biomedicalização permanece e
vislumbra outras experiências. O meu foco no mundo da saúde não pode ser visto como um
358
isolamento de questões trans como questões biomédicas, mas responde ao objeto de engajamento
do campo que observei. A dimensão da transição segura não é apenas médica, ela envolve muitos
significados e dinâmicas culturais e políticas como tentei mostrar ao fazer interagir no texto da tese
diferentes domínios sociais. Minha intenção foi, assim, entender como esse universo social
conformava uma política da vida.
Novos cenários
Quando terminava de revisar o texto me deparei com uma série de propagandas on-line
sobre clínicas privadas recém-abertas no país que oferecem cirurgias para a transição de gênero. Os
anúncios surgiam nas linhas do tempo de várias redes sociais nas quais mantenho perfis pessoais.
Percebi que minha inserção de pesquisa nos últimos quase sete anos, desde o mestrado, me tornou
parte do público potencial, segundo os algoritmos de consumo que coletam dados dos usuários na
internet. As publicações, assim, trazem médicos dando depoimentos em vídeos de porquê
escolheram trabalhar nesse ramo quando eles poderiam não ter optado em fazê-lo – “eu tinha
minha clínica” –, o que dá muito relevo a uma trajetória. Os procedimentos são listados e separados
em imagens específicas com seus termos, fotos de ex-pacientes e explicações de sua necessidade.
Vídeos e mais fotos são compartilhadas das salas de cirurgias no momento de procedimentos sendo
feitao, e reportagens em telejornais têm crescido com a sua divulgação. Isso acentua o caráter moral
da escolha da atuação na terapêutica trans, assim como demonstrei ao longo da tese a respeito dos
médicos que conheci.
Contudo, esse cenário privado – que não é essencialmente novo, mas que tem agora
crescido – coloca muitas novas questões para o campo social da saúde trans. Como os ativismos
trans se posicionarão diante de um contexto em que a legitimidade desse atendimento pode
perpassar a ideia de consumo e de acentuação do eu ainda mais extremada e não apenas a de
cidadania como tem se articulado em torno do SUS? Como mostrei, esse reclame cidadão não
impede a articulação do indivíduo como um sujeito uno e indivisível. Formar-se-ia uma cidadania
em saúde pelo consumo? Que formas ganham a conformação da subjetividade intersectada por
esse tipo de entrada no cuidado em saúde? Como isso se insere nos outros contextos de produção
de lugares para o consumo como já mostrado por Isadora França (2012)? Conforme a legislação
na área tem liberado a atuação no sistema suplementar de saúde desses procedimentos, como ficará
o treinamento e as dimensões de subjetivação e as dinâmicas de inserção de carreira para médicos
e médicas? Estaríamos assistindo a emergência de algo similar ao que se realizou nos Estados
Unidos e em países como a Tailândia e Marrocos, nos quais essas clínicas têm se popularizado de
diferentes maneiras e atraído inclusive estrangeiros? Que formas tomariam agora as estratégias,
359
trajetórias e narrativas de pessoas trans com relação à transição conforme se estrutura um mercado
de consumo próprio? Mas como isso poderia se manter tendo em vista a enorme desigualdade
brasileira? As trajetórias em torno de cirurgias que acompanhei mostraram que nem sempre isso é
um empecilho definitivo, uma vez que observei homens trans realizando economias financeiras ou
empréstimos consignados para pagar uma mamoplastia junto a um cirurgião no mercado privado.
Mas, sem sombra de dúvidas, esses novos cenários que se desenham suscitam muitas perguntas e
apresentam-se potencialmente para gerar outras formas de se construir sujeitos, emoções, relações
de poder e a imaginação cultural em torno do que é o sexo, gênero e sexualidade.
360
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transgenitalização e revoga a Resolução n. 1.482/1997.
CFM. Conselho Federal de Medicina. Resolução n. 1.955/2010. Dispõe sobre a cirurgia de
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CFM. Conselho Federal de Medicina. Resolução n. 2.265/2019. Dispõe sobre o cuidado específico
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Anexo 1 – Sinopse de A Força do Querer
Se existe algo comum a todo ser humano é que todos temos um sonho, um desejo, um querer - que diz
respeito a amor, dinheiro, sucesso, identidade, poder, realização profissional. Movidos pelo querer,
somos o tempo todo desafiados a fazer escolhas. Escolhas que nos fazem bem ou que se voltam contra
nós. Num tempo em que as distâncias são relativas e a vida de todos é arrebatada por uma enxurrada de
informações, onde surgem novas linguagens, novos modelos e novos códigos. Essas questões se
traduzem através da história de diferentes personagens, seus quereres e suas escolhas. Mais uma vez,
como é comum a todos os seus trabalhos, a autora vai falar de diversidade, de tolerância, das dificuldades
de compreender e aceitar o que é diferente de nós. Caio, advogado de formação, largou a possibilidade
de administrar uma das maiores empresas do Brasil, a Garcia, quando Bibi terminou o relacionamento
com ele. Sem olhar para trás, trocou o Rio de Janeiro para ir se aventurar nos Estados Unidos. Passados
quase 15 anos, Caio entende que esse é o momento de voltar ao Brasil e encarar o que deixou para trás.
Um homem movido por ideais éticos, que, ao conseguir crescer e ter sucesso em um alto cargo ligado à
Justiça, vive um grande conflito íntimo ao ver sua vida cruzar novamente com a de Bibi, que terá, então,
enveredado pela vida do crime. Bibi não conseguiu terminar a faculdade de Direito, onde conheceu Caio,
mas tem certeza de que fez a escolha certa ao abandonar este homem, que dividiu seu amor por ela com
o amor pela profissão. É do tipo que ama demais, quer e só entende o amor em temperatura máxima.
Conhece e casa-se com Rubinho. Hoje, quem tem a possibilidade de administrar a Garcia é Ruy, filho
de Eugenio, um dos donos do negócio. O jovem da alta sociedade carioca parece ter a vida organizada:
além da posição profissional, está noivo de Cibele – uma mulher de família rica e com futuro promissor.
Mas, em uma viagem de trabalho a Parazinho – vila fictícia no Pará –, ele fica encantado por Ritinha.
Ritinha adora a atenção de Ruy. Flertar com o carioca a faz se sentir desejada, ela adora sentir o fascínio
que exerce sobre os homens, assim como as sereias. Apesar de ser noiva de Zeca, um rapaz conhecido
por sua boa índole e perdidamente apaixonado por ela, nada a impede de jogar com Ruy. Ritinha gosta
de seduzir, conquistar, e isso é instintivo nela. Quer a liberdade de seguir seus impulsos. Zeca é um tipo
rude, passional, coração enorme. Nascido e criado em Parazinho, é caminhoneiro e tem no veículo não
só um trabalho, mas um sonho realizado. Está feliz com sua amada e não poderia desejar que a vida
fosse melhor. Mas, ao saber do envolvimento de Ritinha com Ruy, decide se mudar para Niterói, no Rio
de Janeiro, e recomeçar. Zeca quer reconquistar seu meio de trabalho e se libertar do fascínio que Ritinha
exerce sobre ele. Lá, conhece Jeiza, uma mulher diferente de todas as pessoas que Zeca já conheceu.
Jeiza é policial, trabalha no Batalhão de Ações com Cães e sonha em se tornar lutadora de MMA. Ao
ver o sofrimento de Zeca, se aproxima dele e tenta ajudá-lo a esquecer Ritinha. Enquanto Ruy se prepara
para assumir a Garcia, Eugênio, pai do jovem, quer sair do posto de chefia e seguir a tão sonhada carreira
de advogado. É um homem capaz de esmagar o seu querer, abrir mão de suas vontades, para atender à
necessidade dos outros. Joyce, esposa de Eugênio, é uma mulher que cultua tudo o que diz respeito à
beleza e ao feminino. Criou a filha Ivana para vê-la como uma extensão de si própria. Vive seus maiores
conflitos e dificuldades quando a menina se revela trans homem. Ivana quer resgatar sua identidade, é
um homem que nasceu num corpo de mulher. As histórias desses personagens se cruzam quando a saga
de cada um os leva ao limite e os faz ultrapassar horizontes, desafiar as próprias barreiras e vencer
conflitos internos. A força do querer de um afeta a força do querer do outro e pode determinar os rumos
inesperados desta história262.
262 Texto extraído de notícia da TV Globo. Autoria de Glória Perez, e direção artística de Rogério Gomes. Disponível em:
.
Acesso em: jul. 2020.
396
Anexo 2 - Quadro sinótico. Ambulatórios TT no Brasil.
N R Estado Nome do serviço Cidade Ano Gestão Observações N
1 Acre Sem Informação
2 Amapá Sem Informação
3 Amazonas Ambulatório para Manaus 2017 UEAM Policlínica PAM da
Transgêneros Codajás.
4 Pará Ambulatório de Saúde Integral Belém 2017 Secretaria de Estado de Unidade de Referência
para Travestis e Transexuais Saúde Pública (Sespa) e Especializada em Doenças
de Justiça e Direitos Infecto-Parasitárias e
Humanos (SEJUDH) Especiais (Uredipe)
5 Roraima Sem Informação
6 Rondônia Sem Informação 02
7 Tocantins Ambulatório de Saúde TT Palmas Disputado Secretaria Estadual de A Defensoria Pública do
localmente. Saúde/Prefeitura de Estado e o MS (grupo
Sem Palmas/Prefeitura de Atrato) seguem
previsão. Araguaína/Prefeitura pressionando os governos.
de Gurupi
8 Alagoas Ambulatório de Acolhimento e Maceió 2019 Secretaria Estadual de O Ambulatório
Cuidado Integral de Pessoas Saúde (Sesau) Especializado em Terapia
Lésbicas, Bissexuais, Travestis Hormonal do HU/UFAL
e Transexuais (LGBT) foi fechado em 2014. O
segundo ambulatório foi
aberto em dezembro de
2019.
9 Bahia Ambulatório Transexualizador Salvador 2018 UFBA/Ebserh Complexo Hospitalar
do Complexo Hospitalar Universitário Professor
Universitário Professor Edgard Edgard Santos (HUPES)
Santos da UFBA. 10
10 Ceará Ambulatório Serviço de Fortaleza 2019 Secretaria de Saúde do Hospital Mental Prof.
Referência Transdisciplinar Estado (SESA) Frota Pinto. Pressão do
para Transgêneros (Sertrans) movimento social
(ATRANSCE) por 3 anos
consecutivos.
11 Maranhão Ambulatório de Sexualidade São Luís 2017 UFMA/Ebserh Hospital Universitário da
UFMA.
12 Paraíba Ambulatório de Saúde Integral João Pessoa 2013 Secretaria de Estado da Complexo Hospitalar
para Travestis e Transexuais Saúde Clementino Fraga (UFPB).
(TT/PB) (SES)/UFPB/Ebserh
13 Pernambuco Espaço de Cuidado e Recife 2014 UFPE/Ebserh Hospital das Clínicas da
Acolhimento Trans do HC UFPE.
14 Piauí Ambulatório Integrado Dirceu Teresina 2020 Fundação Hospitalar Pressão através do
Mendes Arcoverde (Fepiserh) e Secretaria Ministério Público.
de Estado de Saúde
15 Rio Grande Ambulatório Estadual de Natal 2019 Secretaria Estadual de Hospital Giselda Trigueiro.
do Norte Saúde Integral de Transexuais Saúde Pública (Sesap)
e Travestis no RN
Linha de cuidado a Saúde da Mossoró 2019 Universidade do Ainda não Habilitado, mas
população LGBTT na cidade Estado do Rio Grande encontra-se em
de Mossoró do Norte (UERN) funcionamento com gestão
da Faculdade de
Enfermagem (FAEN) da
UERN. Encontra-se em
disputa local para a
implantação municipal da
Política Nacional de Saúde
Integral LGBT263
16 Sergipe Ambulatório Trans de Lagarto Sergipe Pelo menos Secretaria Municipal de Hospital Universitário da
2016 Saúde de Lagarto (SE), UFS de Lagarto (SE)
Secretaria Estadual de
Saúde e UFS/Ebserh
17 Distrito Ambulatório Trans do DF Brasília 2017 Secretaria de Saúde do Hospital Dia da 508/509
Federal DF (SES-DF) Sul
Ambulatório de Gênero da Brasília 2016 HU-UnB/Ebserh Hospital Universitário da
Psicologia UnB
18 Goiás Ambulatório TX – Serviço Goiânia 2017 Secretaria de Estado da Funciona no Hospital
Especializado do Processo Saúde Alberto Rassi (HGG) 04
Transexualizador
263 Esta informação sobre o Ambulatório em Mossoró, no RN, foi incluída por mim a partir de contato direto com funcionários do
serviço e não consta no Quadro original de Almeida e Santos (2018). Considerei importante incluir esse serviço porque travestis e
pessoas trans têm sido ali atendidas para procedimentos de transição e cuidados em geral, bem como tem sido um objeto de
engajamento político local. Assim, os autores contavam 9 Ambulatórios no Nordeste, e passo então a contabilizar 10 e,
consequentemente o total geral passa de 27 a 28 ambulatórios.
Centro Oeste Nordeste Norte
397
Núcleo de Ações Básicas de Itumbiara SI Secretaria Municipal de NABS Itumbiara
Saúde Saúde
19 Mato Ambulatório Trans do Estado Cuiabá Está sendo Secretaria de Estado de Pressão do MPE sobre o
Grosso disputado. Saúde governo estadual. A
Uma previsão é que seja
previsão de inaugurado no Hospital
inauguração Júlio Müller.
para 2020
20 Mato G do Ambulatório Transexualizador Campo 2017 UFMS/Ebserh Funciona no Hospital
Sul do Grande Universitário Maria
Aparecida Pedrossian
21 Espírito Ambulatório de Diversidade Vitória 2018 UFES/Ebserh Hospital Universitário
Santo de Gênero (habilitação) Cassiano Antonio Moraes
(HUCAM)
22 Minas Ambulatório de Saúde Integral Belo 2017 Secretaria de Estado de Ambulatório de
Gerais da População de Travestis e Horizonte Saúde e Fundação Dermatologia e
Transexuais ou Ambulatório Hospitalar do Estado Infectologia do Hospital
Trans Anyky Lima de MG (FHEMIG) Eduardo de Menezes 08
(HEM)
Projeto Em cima do Salto – Uberlândia 2017 UFU/Ebserh Hospital das Clínicas
Saúde Educação e Cidadania (habilitação) (HCU) da UFU.
23 Rio de Ambulatório de Disforia de Rio de NI Secretaria de Estado de Instituto Estadual de
Janeiro Gênero Janeiro Saúde/Fundação Saúde Diabetes e Endocrinologia
Luiz Capriglione (IEDE).
Ambulatório de Atenção à Niterói 2019 Fundação Municipal de Policlínica de
saúde da População Travesti e Saúde de Niterói Especialidades Dr. Sylvio
Transexual João W. Nery Picanço
24 São Paulo Ambulatório de Saúde Integral São Paulo 2010 Secretaria de Estado da Centro de Referência e
para Travestis e Transexuais Saúde Treinamento DST/Aids-
SP
Ambulatório de Saúde T São José do 2008 Prefeitura de S. José do UBS Dr. Domingo
Rio Preto Rio Preto Marcolino Braile
Ambulatório do Núcleo de São Paulo 2017 UNIFESP/Ebserh Rua Napoleão de Barros
Estudos, Pesquisa, Extensão e n.859, Vila Clementino
Assistência à Pessoa Trans
Prof. Roberto Farina
25 Paraná Centro de Pesquisa e Curitiba 2013 Secretaria de Estado da 2ª Regional de Saúde em
Atendimento a Travestis e Saúde Curitiba
Transexuais - CPATT
26 Rio G. do Ambulatório para atendimento de Porto Alegre 2019 Secretaria Municipal da Centro Municipal de Saúde
Sul saúde integral de homens e Saúde Modelo
mulheres trans e travestis
04
Ambulatório TT Rio Grande 2016 FURG/Ebserh Hospital Universitário Dr.
Miguel Riet Corrêa Jr.
27 Santa Ambulatório Trans – Centro Florianópolis 2015 Secretaria Municipal de Centro de Saúde da Lagoa
Catarina de Saúde do Estreito Saúde
TOTAIS 28
Fonte: Almeida e Santos (2018) a partir de matérias jornalísticas até abril de 2020.
Sul Sudeste