Contando o passado, tecendo a saudade: a construção simbólica do engenho açucareiro em José Lins do Rego (1919-1943) Diego José Fernandes Freire UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE PRÓ-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA – MESTRADO ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: HISTÓRIA E ESPAÇOS LINHA DE PESQUISA II: CULTURA, PODER E REPRESENTAÇÕES ESPACIAIS CONTANDO O PASSADO, TECENDO A SAUDADE: a construção simbólica do engenho açucareiro em José Lins do Rego (1919-1943) Diego José Fernandes Freire Natal/RN 2014 Diego José Fernandes Freire CONTANDO O PASSADO, TECENDO A SAUDADE: a construção simbólica do engenho açucareiro em José Lins do Rego (1919-1943) Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre no Curso de Pós-Graduação em História, Área de Concentração em História e Espaços, Linha de Pesquisa II, Cultura, Poder e Representações Espaciais, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, sob a orientação do Prof. Dr. Durval Muniz de Albuquerque Júnior. Natal/RN 2014 Diego José Fernandes Freire CONTANDO O PASSADO, TECENDO A SAUDADE: a construção simbólica do engenho açucareiro em José Lins do Rego (1919-1943) Dissertação aprovada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre no Curso de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, pela comissão formada pelos professores: ___________________________________________________________________________ Durval Muniz de Albuquerque Júnior (Orientador - UFRN) ___________________________________________________________________________ Fernando Felizardo Nicolazzi (Examinador externo - UFRGS) ___________________________________________________________________________ Raimundo Pereira Alencar Arrais (Examinador Interno - UFRN) ___________________________________________________________________________ Renato Amado Peixoto (Suplente - UFRN) Natal/RN, _________de__________________de____________ Com afeto, admiração e gratidão, dedico este trabalho aos meus pais (Ronaldo e Eliane) e aos meus irmãos (Anderson, Bruno e Thiago), presenças marcantes na minha vida. AGRADECIMENTOS Mais do que cumprir um protocolo acadêmico, ou encenar um mero ritual, gostaria de fazer das próximas folhas um espaço de agradecimento, um espaço para externar minha gratidão para com aquelas pessoas que foram fundamentais para a realização do corrente trabalho. Se as palavras encurtam distancias, quero fazer delas uma ponte para abraçar as pessoas cujos nomes serão a seguir citados. Guardo alegremente dentro de mim uma dívida para com dois professores ainda da minha época de graduação. Wicliffe de Andrade e Raimundo Nonato, de vocês recolhi ensinamentos para formar o professor que hoje procuro ser. Nas suas aulas aprendi não só conteúdos de história, como recebi também lições acerca do que é ser um bom profissional de ensino. Permanecendo nos anos da graduação, menciono ainda os meus colegas de base de pesquisa, aprendizes a historiadores que, durante muitas tardes, discutiram comigo textos e documentos que hoje fazem parte desta dissertação: Daniel César, Felipe Alves, Henrique Lopes e Priscilla Farias. Com esses e com as séries de atividades que fizemos, tive realmente uma genuína iniciação científica. Evoco ainda os nomes de Artur Torquato e Francisco Firmino Sales Neto, jovens pesquisadores dedicados nos quais mirei para trilhar meus próprios caminhos. Ao segundo, o colega Neto, sou grato pelo apoio e incentivo dado durante toda a pesquisa de mestrado. Igualmente importante na minha trajetória de pesquisa e escrita deste trabalho, foi a historiadora norte-americana Courtney Campbell, com quem pude compartilhar ideias e alguns documentos sobre José Lins do Rego e Gilberto Freyre. Na pós-graduação em História, conheci também pessoas que foram de suma importância para a minha pesquisa. Sou grato a todos os colegas de minha turma de mestrado, companheiros e companheiras de sala com quem dividi muitos momentos de aprendizado, de alegria e de tensão. Em especial, cito os amigos Felipe Tavares, Elynaldo Gonçalves (Naldinho), Thyago Ruzemberg e Tiago Tavares, amigos com quem partilhei não só conhecimentos, mas também vários momentos de diversão e de descontração. Encontrar com um de vocês, seja nos corredores da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) ou em uma mesa qualquer, era garantia de uma agradável conversa, daquelas que aliviavam toda a tensão de dias de leitura e de escrita. Os professores da linha II do programa de pós-graduação em História (PPGH) que ministraram disciplinas a minha turma também foram fundamentais para a execução do meu trabalho. Devo a Helder Viana, Henrique Alonso e Santiago Júnior, docentes que muito me ensinaram ao longo de um ano, algumas análises presentes neste texto. De forma especial, evoco Renato Amado Peixoto, professor que, desde a época da graduação, tem me proporcionado aulas interessantíssimas, nas quais a discussão teórica sempre se apresentou de forma instigante. Agradeço também pela sua participação em minha banca de qualificação, a qual contou também com a presença e a contribuição valiosa de Raimundo Arrais. Ainda no âmbito do PPGH, cito os nomes de Isabele e Luan, secretários atenciosos e pacientes, com os quais contei para resolver algumas pendências acadêmicas. Dívida enorme, impossível de saldar, tenho para com Durval Muniz de Albuquerque Júnior, o orientador deste trabalho. Desde 2009, quando comecei a participar das reuniões e das atividades de seu seleto grupo de pesquisa, venho aprendendo com este historiador que é uma das minhas grandes referências historiográficas. Ele foi o professor que eu nunca tive em sala de aula, mas mesmo assim foi a pessoa que mais me ensinou e quem mais contribuiu para a minha formação enquanto historiador e pessoa. Esta dissertação é produto deste nosso longo convívio não só intelectual, como também afetivo, partilhado alegremente por mim ao longo de minha estadia na UFRN. Deixando o universo acadêmico, registro a importância dos diversos funcionários das instituições em que pesquisei, homens e mulheres essenciais em qualquer pesquisa histórica. A Moises Farias, funcionário do Museu José Lins do Rego (MJLR), sou grato não só por ter colocado a minha disposição todo o acervo do MJLR, mas também pelo nosso passeio por algumas praias paraibanas e pelo Centro de João Pessoa. Pessoas acolhedoras e prestativas como você fornece-nos um ânimo a mais na difícil atividade de pesquisa nos arquivos. Vicente Serejo, jornalista renomado da cidade do Natal e dono de um acervo vastíssimo, como tive o prazer de comprovar, também merece uma menção nestas páginas. Alguns livros citados neste trabalho foram consultados em sua biblioteca particular, gentilmente colocada à minha disposição. A pesquisa em Maceió, realizada no início de 2013, teria sido muito mais difícil sem a ajuda de minha “família alagoana”. Tio Beto e tia Chiquinha, não esquecendo também dos meus primos Kathiúscia, Yuri e Wagner, foram as pessoas que deram todo o apoio logístico nas minhas diversas idas ao Instituto Histórico e Geográfico Alagoano, bem como ao Arquivo Público do Estado de Alagoas. O mesmo acolhimento que recebi em Maceió, junto aos meus familiares, fui encontrar também em Macaíba, interior do Rio Grande do Norte, local onde vim a começar minha vida de professor do Estado. Edília Faustino, diretora da Escola Estadual Henrique Castriciano de Souza, foi a mulher generosa e gentil que muito me ajudou nessa difícil conciliação entre dar aula na Educação Básica e cursar um mestrado. À sua filha Adriana Silva e ao seu genro Ranier Nascimento agradeço por uma agradável visita ao Engenho Ferreiro Torto. Graças a essas duas pessoas, pude usar meu “arquivos dos pés” e sentir um espaço que eu estava me acostumando a “ver” somente pelos livros. Deixo para o final a menção àquela pessoa que tornou a experiência de pesquisa e escrita bem mais suave e prazerosa. Maiara Juliana foi a mulher que vivenciou mais fortemente o mestrado comigo, na dupla condição de namorada e companheira de turma. As dúvidas de um texto, as alegrias de um documento achado, os temores quanto ao futuro, as viagens para apresentar trabalhos em congressos, os momentos de “folga” da pesquisa e muitas outras ocasiões foram compartilhadas com ela. Não sei se este texto tem sua beleza, Maiarita, mas asseguro que ele traz do início ao fim suas marcas. Muito obrigado por não só ter lido todas as páginas que escrevi como por ter estado ao meu lado, até mesmo quando eu não podia estar com você. Por fim, agradeço a CAPES pela concessão da bolsa que me deu mais tranquilidade e me permitiu a realização de algumas viagens de pesquisa. Sou grato também a todos aqueles que indiretamente contribuíram para a realização deste trabalho. Sintam-se todos abraçados! Escrever (e ler) é como submergir num abismo em que acreditamos ter descoberto objetos maravilhosos. Quando voltamos à superfície, só trazemos pedras comuns e pedaços de vidro e algo assim como uma inquietude nova no olhar. O escrito (e o lido) não é senão um traço visível e sempre decepcionante de uma aventura que, enfim, se revelou impossível. E, no entanto, voltamos transformados. Nossos olhos apreenderam uma nova insatisfação e não se acostumam mais à falta de brilho e de mistério daquilo que se nos oferece à luz do dia. E algo em nosso peito nos diz que, na profundidade, ainda resplandece, imutável e desconhecido, o tesouro. Jorge Larrosa RESUMO Investigamos, neste trabalho, a construção simbólica de uma determinada espacialidade. Partimos do pressuposto teórico que os mais diferentes espaços são construções sociais, fruto de investimentos materiais e simbólicos, realizados em dados momentos e por determinados fatores. Nesse sentido, examinamos a fabricação simbólica do engenho açucareiro a partir de algumas produções literárias do romancista paraibano José Lins do Rego. Almejamos inquirir acerca da dimensão simbólica – significados, valores e imagens – mobilizada por esse literato para constituir a propriedade canavieira. Concedendo uma atenção especial às obras do chamado “ciclo da cana de açúcar”, questionamos-nos sobre os sentidos e significados agenciados pelo discurso literário de José Lins para ficcionar o engenho, forjando essa espacialidade de uma dada maneira. Situando-nos no campo da história cultural, trabalhamos com uma variedade de fontes: romances literários, prefácios de livros, escritos memorialísticos e jornalísticos, cartas trocadas entres intelectuais e livros de história. Nosso recorte temporal vai de 1919 – início da atividade intelectual de José Lins – a 1943 – publicação de Fogo Morto, último romance por nós analisado. Em termos simbólicos, o que seria o engenho, essa espacialidade que marcou soberanamente a vida e a obra literária de José Lins do Rego? Foi o questionamento estrutural que moveu a corrente pesquisa. PALAVRAS-CHAVE: José Lins do Rego. Literatura. Engenho. Construção simbólica. ABSTRACT In this work I have searched the symbolical sense of a specific place. I have started from the theoretical assumption that places are social relations resulting from material and symbolical conditions developed in a certain time and by certain factors. In this sense, I have analyzed the symbolical aspect of sugar plantation from some literary works created by the writer José Lins do Rego from the state of Paraíba. I intend to analyze the symbolical dimension – senses, values and images – used by this writer to show the sugar plantation. Giving special attention to the works from the named “cycle of sugar plantation”, I have searched for the senses and meanings used in José Lins do Rego literary discourse to create a fictional sugar plantation, showing this place in a specific way. Based in cultural history, I have used several sources: literary works, prefaces of books, memory works, journalistic works, letters written by intellectual men and history books. My time of analysis is from 1919 – the beginning of José Lins do Rego’s intellectual activity - until 1943 – publication of Fogo Morto, last literary work that I have analyzed. In symbolical terms, what is sugar plantation, this place that has totally touched José Lins do Regos’ life and literary work? That was the structural question that has determined the present research. KEYWORDS: José Lins do Rego. Literature. Sugar plantation. Symbolical sense. INSTITUIÇÕES PESQUISADAS 1) Em Maceió: APEA – Arquivo Público do Estado de Alagoas IHGA – Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas 2) Em João Pessoa: MJLR – Museu José Lins do Rego BJGB – Biblioteca Juarez da Gama Batista 3) Em Natal: BCZM – Biblioteca Central Zila Mamede (Universidade Federal do Rio Grande do Norte) FJA – Fundação José Augusto ICC – Instituto Câmara Cascudo 4) Em Recife: APEP – Arquivo Público do Estado de Pernambuco BPEP – Biblioteca Pública do Estado de Pernambuco FGF – Fundação Gilberto Freyre FJA – Fundação Joaquim Nabuco 5) No Rio de Janeiro: BN - Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro LISTA DE IMAGENS Figura 1: Foto de José Lins do Rego em 1918 ....................................................................... 39 Figura 2: Foto da Rua do Imperador, Recife, 1924 ............................................................... 40 Figura 3: Foto de Olívio Montenegro (em pé), José Lins e Gilberto Freyre, 1930.................61 Figura 4: Foto da réplica da estátua da Liberdade, Maceió, sem data ................................... 88 Figura 5: Foto dos membros das rodas literárias maceioenses .............................................. 97 Figura 6: Foto de Jorge de Lima e José Lins, em 1928 ........................................................101 Figura 7: Símbolo que consta na capa da 4⁰ edição de Senhora de engenho .......................152 Figura 8: Imagem fac-similar da página de abertura dos manuscritos originais de Menino de engenho ..................................................................................................................................175 Figura 9: Capas de Menino de engenho (segunda edição) e Banguê....................................214 Figura 10: Notícia sobre a inauguração da José Olympio Editora........................................216 Figura 11: Capa da primeira edição de Fogo Morto..............................................................262 SUMÁRIO Na encruzilhada: história, espaço e literatura (Introdução) .............................................................. 15 Parte I: Ao rés do chão: os lugares de José Lins do Rego Capítulo 1: Os anos recifenses e a adesão ao tradicionalismo freyreano ......................................... 37 1.1 Só um panfletário? O boêmio, o panfletário e o crítico literário ................................................ 37 1.2 Unidos pela amizade e pela tradição: José Lins e Gilberto Freyre ............................................. 57 Capítulo 2: Os anos maceioenses e as rodas literárias ..................................................................... 80 2.1 Discursos que calam e que exaltam ............................................................................................ 80 2.2 O nativo tradicionalista-regionalista ........................................................................................... 83 2.3 A participação nas rodas literárias .............................................................................................. 85 2.4 José Lins do Rego: “o crítico do Norte” ..................................................................................... 97 2.5 As rodas literárias em ação ....................................................................................................... 104 Parte II: Abram-se as porteiras: a literatura de engenho Capítulo 3: O engenho da memória: Massangana (1900), o discurso inaugural da literatura de engenho ........................................................................................................................................... 110 3.1 O engenho Massangana e Minha Formação ............................................................................ 113 3.2 Sentidos da construção discursiva do Massangana .................................................................. 117 3.3 No reino da memória encantada ............................................................................................... 128 3.4 A invenção de uma espacialidade ............................................................................................. 130 Capítulo 4: Do engenho da memória ao engenho da ficção: Senhora de engenho (1921) ............. 134 4.1 Um autor, duas cidades: Mario Sette, entre o Recife Antigo e o Recife Moderno .................. 134 4.2 O primeiro 28best-seller da literatura de engenho ................................................................... 138 4.3 Ecos de Massangana: o engenho de Mario Sette ...................................................................... 141 4.4 Engenho, símbolo do rural idealizado: o ruralismo de Mario Sette ......................................... 159 Capítulo 5: O engenho entre a memória e a ficção: Menino de engenho (1932) ........................... 166 5.1 Entre palmas e pedras: José Lins do Rego e a literatura de engenho ....................................... 166 5.2 O engenho do menino: Santa Rosa, um reino encantado ........................................................ 172 5.3 O engenho da história: Santa Rosa, um reino patriarcal ......................................................... 183 5.4 O engenho (anti)moderno ......................................................................................................... 195 5.5 O engenho do adulto: Santa Rosa, espaço da saudade ............................................................. 201 Parte III: Fecham-se as porteiras: os engenhos decadentes Capítulo 6: O outono do patriarcado: o engenho decadente em Banguê ....................................... 209 6.1 Banguê e o efervescente mercado de livros no Brasil .............................................................. 209 6.2 Entre o avô e o neto: a decadência do engenho ........................................................................ 217 6.3 O senhor de engenho postiço: o fim do Santa Rosa ................................................................. 228 6.4 Com suspiros de saudade: a crítica social de Banguê .............................................................. 239 Capítulo 7: O patriarcado em ruínas: o engenho de Fogo Morto .................................................. 245 7.1 De Maceió para o Rio de Janeiro: o romancista integrado à capital......................................... 245 7.2 A experiência saudosa de retorno ao engenho ......................................................................... 253 7.3 Vida e morte do Santa Fé: o engenho de Fogo Morto .............................................................. 260 7.4 Vidas decadentes: a ruína do engenho como uma tragédia coletiva ........................................ 278 7.5 A dor das coisas que se passaram: engenho decadente, espaço da tristeza .............................. 289 A poética do engenho: um palimpsesto escrito na saudade (Considerações finais) ....................... 296 Fontes e referências bibliográficas ................................................................................................. 304 15 Introdução Na encruzilhada: história, espaço e literatura Literatura e história não podem traçar fronteiras quietas, mas sim encruzilhadas estranhas. Antonio Paulo Rezende 1 No imaginário 2 brasileiro dos anos 1920-1950, o engenho açucareiro constituía-se como um dos principais locus da brasilidade. A essência do Brasil estava aí, a origem de uma identidade nacional, a alma de um ser brasileiro que deveria ser preservada tinha seu lugar neste espaço. Sem dúvida, o engenho foi uma das peças que ajudou a compor a ideia de uma brasilidade, resguardada em um universo rural, tradicional e civilizado, suposta origem do país. Se, por um lado, o rural brasileiro era sinônimo de atraso, de rusticidade, em uma palavra, estrutura a ser superada pela modernização, que nas décadas iniciais do século XX já grassava de forma mais intensa na nação, esse mesmo rural revelava-se também como locus principal da brasilidade. Inúmeros discursos e outras práticas sociais contribuíram para essa associação entre engenho e identidade nacional 3 . Contudo, nas décadas iniciais do século passado, o engenho não encarnava somente o “espírito nacional”. Outros valores, outros sentidos, outras imagens plasmaram-se nesta espacialidade, constituindo-a. Espaço de proporções territoriais consideráveis, marcado por uma natureza exuberantemente verde, na qual seus habitantes, a despeito de diferenças hierárquicas, viveriam na mais perfeita e sincera harmonia, semelhante aos primeiros tempos da humanidade no Jardim do Éden. Espaço refúgio de uma tradição, capaz de oferecer aos seus egressos uma vida autêntica, tranquila, na contramão do estilo de vida artificial e agitado das cidades. Espaço governado por um senhor dito patriarcal, cuja autoridade e poder somente o tempo e a morte poderiam ser capazes de abalar. Espaço com pretensões imortais, sempre lembrado e resgatado pela memória. Espaço da infância rural, da meninice agrária, dito e visto 1 REZENDE, Antonio Paulo. Ruídos do efêmero: histórias de dentro e de fora. Recife: Editora da UFPE, 2010, p. 138. 2 Noção que a partir de 1960 invadiu as ciências humanas, em especial a história e a antropologia, significa o que, em termos de crenças, sensibilidades e ideias sobre uma gama variada de assuntos, uma parcela numerosa e extensa de homens de uma dada sociedade possuem em comum. Mais informações em: DURANT, Gilbert. O imaginário: ensaio acerca das ciências e da filosofia da imagem. Rio de Janeiro: DIFEL, 2001. 3 TOLETINO, Célia. O cangaço ou o rural como um tempo pré-civilizado. In: ______. O Rural no Cinema Brasileiro. São Paulo: Edunesp, 2001. p. 66. 16 com saudade. Espaço do passado, símbolo de uma classe social aristocrática que outrora exibiu sua grandeza em uma casa grande elevada acima de tudo e de todos. Espaço objeto de uma série de discursos que tentam contornar o tempo. Espaço que, na sociedade brasileira do alvorecer do século XX, viu sua história ser destruída e reconstruída. Espaço que, em determinado momento da história, viu seu comandante maior não encontrar sucessores e, assim, ter sua existência ameaçada. Espaço que, com a chegada das usinas, acabou derrapando na rampa do progresso, deslizando rumo à decadência socioeconômica. Espaço que a sociedade moderna e industrial, sedenta de marcos históricos e símbolos pretéritos, etiquetou de patrimônio histórico, paisagem para o turista, mero lugar de visitação. Espaço que a partir das décadas iniciais do século passado foi se tornando apenas uma sombra do que fora no passado. Espaço carregado de passado e vazio de futuro, marcado cada vez mais pela ruína, pela miséria e pela morte de todo um sistema social dito patriarcal. Os dois últimos parágrafos acima resumiram alguns dos principais sentidos mobilizados por uma série de discursos para constituir o engenho de açúcar dito nordestino. Em fins do século XIX e décadas iniciais da era seguinte, a espacialidade que desde o século XVI acolheu a produção açucareira na colônia portuguesa deixou de ser vista apenas enquanto tal. Não mais tão somente o complexo açucareiro, o mundo gerador do açúcar, a unidade produtiva deste produto na antiga terra de Santa Cruz (um dos primeiros nomes dados a colônia portuguesa). No ano de 1900, publicou-se um discurso fundador do que poderíamos chamar de uma literatura de engenho. Tal discurso inaugural rompeu com uma certa visibilidade e dizibilidade 4 do engenho, a qual entendia este espaço, em grande medida, como a estrutura produtiva do açúcar, a base material da colônia lusitana 5 . Os sentidos arrolados no segundo e terceiro parágrafos desta introdução foram escritos com base nesse discurso fundador, mas também na gama de outros discursos que lhe seguiram. Entendemos por literatura de engenho, inicialmente, uma variedade de enunciados provenientes de diversas áreas de saber, mas que se unificam em torno de uma valorização comum do engenho, que entendem a propriedade açucareira muito além de sua dimensão produtiva. Trata-se de um conjunto de semelhantes, de discursos aparentados entre si. Tal noção tenta cobrir os discursos romanescos, memorialísticos, históricos e sociológicos que 4 Estas noções sinalizam para determinadas maneiras de ver e dizer um objeto, as quais obedecem a certos conceitos, temas, imagens e valores. Trata-se de categorias estruturantes: “o que se pode concluir é que cada formação histórica vê e faz ver tudo o que pode, em função de suas condições de visibilidade, assim como diz tudo o que pode, em função de suas condições de enunciado”. DELEUZE, Gilles. Foucault. São Paulo: Brasiliense, 1988, p. 68. 5 O grande exemplo dessa visão foi o tratado do jesuíta João Antonio Andreoni, Cultura e opulência do Brasil por suas drogas e minas. Ver: ANTONIL, André João. Cultura e opulência do Brasil por sua drogas e minas. São Paulo: Nacional, 1967. 17 circularam nos anos iniciais do século XX e que expressaram uma visão saudosa e idealizada do engenho. Estes discursos acabaram por forjar uma nova identidade para o engenho, espacialidade não mais vista unicamente como um centro de produção açucareira. De uma forma teoricamente mais precisa, pensamos a literatura de engenho como uma formação discursiva, conforme a conceituação do autor de A arqueologia do saber. Neste livro de cunho epistemológico, voltado para explicitar um método de análise, praticado nos seus livros anteriores, Michel Foucault definiu tal conceito como o sistema de formação dos discursos, como o elemento estruturante dos enunciados, como a rede normativa que preside a emergência e a circulação das práticas discursivas, estabelecendo suas regras, temas, imagens e conceitos: São as condições de existência de um discurso [...] um conjunto de regras anônimas, históricas, sempre determinadas no tempo e no espaço, que definiriam, em uma dada época e para uma determinada área social, econômica, geográfica ou linguística, as condições de exercício da função enunciativa 6 . A formação discursiva seria como uma espécie de lei do enunciado, normatividade discursiva situada historicamente. O discurso surgiria e circularia dentro e a partir desta estrutura, a qual se formou em determinada época por dados fatores. Foucault não imaginou um sistema de formação dos discursos a-histórico, descolado do mundo, a pairar sobre os homens. Os discursos sociais, para sua irrupção e funcionamento, dependeriam de uma certa ordem ou sistema. Desse modo, entendemos a literatura de engenho como um sistema de formação que presidiu no Brasil um conjunto de “falas” sobre o engenho, a partir do final do século XIX. O engenho de açúcar brasileiro não era um objeto livre, sobre o qual poder-se-ia falar o que se quisesse, sobre o qual se veria o que se quisesse. Como apontou Foucault, “não se pode falar de qualquer coisa em qualquer época; não é fácil dizer alguma coisa nova; não basta abrir os olhos, prestar atenção, ou tomar consciência, para que novos objetos logo se iluminem”7. O dizer e o ver não são tão somente meras faculdades naturais, instintivas, mas sim aparelhos humanos carregados de cultura, de história, que obedecem a certos códigos sociais. A literatura de engenho foi a estrutura discursiva que condicionou o olhar e o falar de muitos discursos sobre a propriedade açucareira. Os discursos do engenho, proferidos com grande 6 FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007, p. 133. 7 FOUCAULT, Michel. Op. Cit., 2007, p. 50. 18 frequência nos anos 1920-1940, não partiam simplesmente de quem os enunciava, do sujeito consciente, como partiam também de um elemento maior que os orquestrava. Esse elemento maior, condicionador de certos discursos, chamamos de literatura de engenho. A formação discursiva literatura de engenho emergiu a partir de uma gama de transformações ocorridas no Brasil, quando da transição do século XIX para a era seguinte. A Abolição da escravidão, a Proclamação da República, o crescimento das cidades, os processos de modernização das principais capitais brasileiras, a entrada no país de máquinas e demais produtos oriundos da revolução industrial, assim como de imigrantes europeus, a preocupação com a cultura e a identidade nacional, em suma, a instauração de uma sociedade moderna e burguesa, com traços capitalistas, fizeram irromper um novo regime discursivo para os banguês 8 . Com essas modificações, o engenho não poderia mais ser apenas o local de produção do açúcar, a unidade produtiva de um produto comercializável. Segundo Durval Muniz de Albuquerque Júnior, as transformações do início do século XX afetaram a maneira pela qual os homens entendiam os espaços, fazendo irromper uma nova racionalidade para significar a nação e a região. Para explicitar a irrupção da literatura de engenho, vale a pena citarmos as palavras daquele historiador: O convívio tranquilo entre olho e espaço era profundamente transtornado e transformado pelo crescente advento dos artifícios mecânicos. O espaço perdia cada vez mais sua dimensão natural, geográfica, para se tornar uma dimensão histórica, artificial, construída pelo homem. As cidades em crescimento acelerado, a rapidez dos transportes e das comunicações, o trabalho realizado em meio artificiais aceleravam esta “desnaturalização” do espaço. O equilíbrio natural do meio é quebrado. Nas metrópoles se misturavam épocas, classes, sentimentos e costumes locais os mais diversos. Os espaços pareciam se partir em mil pedaços, a geografia entrar em ruína. O real parecia se decompor em mil planos que precisavam ser novamente ordenados por homens atônitos 9 . Ante as mudanças que varriam o país, transformando sua feição, novos códigos, condizentes com o presente de alteração, precisavam ser urdidos para definir o engenho, espacialidade que também sofria em seu interior mutações técnicas e sociais. Era a usina que aportava agora com um novo comandante, o engenho central que surgia como uma possibilidade, novas máquinas para a produção açucareira e novos tipos sociais entravam em cena. O engenho moderno, isto é, de fins do século XIX e décadas iniciais do século XX, não 8 Usado neste trabalho como sinônimo de engenho. Quando usarmos no sentido de engenho primitivo, movido a tração animal, especificaremos. 9 ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. A invenção do Nordeste: e outras artes. São Paulo: Cortez, 2009, p. 60. 19 era mais do tipo banguê, propriedade movida pela força animal, de produção açucareira baixa e artesanal, na qual o chefe e sua família faziam questão de nele morar. O engenho, assim como outras espacialidades, perdia sua constância histórica, sua dimensão natural, sofria mutações, metamorfoseava-se. Como, então, definir o engenho? De que modo se deveria organizar conceitualmente o seu passado, a sua história, o seu presente? Foram questionamentos que ecoaram na mente de muitos homens, homens que presenciaram essas alterações no Brasil. De acordo com Fernando Nicolazzi, no Brasil do prelúdio do século XX, existia, sobretudo entre os homens de letras, uma incompreensão temporal quanto ao presente. Alceu Amoroso Lima, Manoel Bonfim, Silvio Romero, Graça Aranha, Euclides da Cunha e inúmeros outros letrados externaram um sentimento de estranhamento para com sua época. A sociedade parecia ser algo fugidio, desordenado, e o tempo atual não se mostrava como algo claro e facilmente inteligível. Perguntava-se pelo o quê constituía a pátria nacional, questionava-se a cultura brasileira, inquiria-se acerca do povo brasileiro, e ouvia-se inúmeras e contraditórias respostas. Não havia acordos quanto a situação nacional. A instabilidade, a desorientação, a confusão parecia reinar no país para alguns intelectuais do começo do século XX. Tal sentimento vinha, em grande medida, das transformações profundas que sacudiam a nação brasileira desde fins do Oitocentos, as quais geravam os mais disparatados diagnósticos sobre a nação brasileira 10 . Diante de um presente que provocava estranhamentos e incompreensões, outros temas, novas imagens, sentidos diferentes precisavam agora ser organizados para definir o engenho. O sistema conceitual que concebia esta espacialidade como o mundo do açúcar, dominado por um senhor de engenho sustentado por uma gama de servos, mostrava-se em descompasso com a história, com o presente, com a realidade do Brasil de fins do século XIX. Foi aí que irrompeu a literatura de engenho, nascida não de uma evolução linear como de um caos, organizando a caoticidade do mundo, a dispersão de falas para enunciar novas formas de ver e dizer o engenho. Tal formação discursiva teve seu instante de aparecimento no momento em que o olhar humano precisava reordenar o real que se apresentava caótico, signo carente de significado. A sociedade brasileira em mutação decidiu pelo aparecimento da literatura de engenho, ordem discursiva a partir da qual uma gama de enunciados sobre o banguê irradiaram. 10 NICOLAZZI, Fernando. Um estilo de História. A viagem, a memória, o ensaio: sobre Casa-grande & senzala e a representação do passado. São Paulo: Unesp, 2011, 1-13. 20 Indivíduos como Joaquim Nabuco, Mario Sette, José Américo de Almeida, Julio Bello, Jorge de Lima, Cícero Dias e Gilberto Freyre enunciaram discursos nos quais podemos perceber um forte encantamento para com o engenho, visto como um espaço cuja importância sobressai e muito a dimensão econômica. Os diversos escritores ligados à literatura de engenho produziram suas obras no momento em que no Brasil já começava a implantar-se, com certo vigor, uma sociedade burguesa, baseada em valores modernos, sacudida por processos de modernização que transformavam a vida das pessoas. Quando a literatura de engenho ganhou vitalidade, a sociedade brasileira das principais capitais do país passava por alterações ligadas à urbanização, à industrialização, ao aumento populacional, entre outras mudanças. Tais transformações encaminhavam o Brasil rumo a um país moderno, em que o progresso econômico e social era sempre a meta 11 . Com isso, o engenho tornava-se algo do passado, uma rusticidade que escritores tentavam preservar com suas escrituras. Entres estes, estava José Lins do Rego (1901-1957), homem que receberá atenção especial neste trabalho. Nascido em 1901, na várzea paraibana, em um engenho familiar 12 , José Lins foi um dos principais nomes da literatura de engenho. Seus cinco primeiro romances ficcionaram, em perspectiva realista, memorialista e saudosista, o apogeu e a decadência dos engenhos ditos nordestinos. Na história da literatura brasileira, nenhum outro autor teve seu nome tão ligado ao banguê quanto o romancista paraibano. O “romancista do engenho”: eis um dos epítetos que a crítica literária lhe reservou. O homem que se dizia menino de engenho dedicou boa parte de sua obra literária a romancear o que seria a vida nos banguês: seus momentos áureos, seus dramas. O que Gilberto Freyre fez com seu ensaísmo histórico, com sua trilogia que tratou da ascensão e declínio do patriarcalismo, diz-se que fez também José Lins na literatura, com algumas de suas principais produções, ainda que em proporções bem menores. Porém, o principal objetivo desta dissertação não é tanto relacionar um sujeito e um espaço. O presente trabalho procurará analisar a construção simbólica do engenho açucareiro em José Lins do Rego, romancista que se fez e foi feito como o grande expoente da literatura de engenho no Brasil. Interessa-nos enveredar pelos sentidos e significados com os quais o escritor forjou de uma determinada maneira o banguê. A partir de sua produção discursiva, uma dimensão simbólica foi agrupada ao engenho, constituindo-o de um dado jeito, de uma 11 Sobre as transformações do início do século XX no Brasil, ver: SEVCENKO, Nicolau. O prelúdio republicano: astúcias da ordem e ilusões do progresso; NOVAIS, Fernando A.; SEVCENKO, Nicolau (Org.). História da Vida privada no Brasil: da Belle Époque à era do Rádio. São Paulo: Companhia das Letras, vol. 3, 1998; e PEREIRA, Carlos Alberto M. (Org) A invenção do Brasil moderno. RJ, Rocco, 1994. 12 O local preciso onde José Lins nasceu é ainda objeto de polêmica. Uns apontam o engenho Corredor e outros apontam o engenho Itapuá. O fato é que ambos se localizavam na várzea paraibana. Ver: FIGUEREDO JUNIOR, Nestor Pinto. Onde nasceu José Lins do Rego, afinal? João Pessoa: Ideia, 2000. 21 dada cor, com uma tal faceta. “Des-agrupar” essa dimensão imaterial do espaço, ou seja, mostrar o processo histórico de atribuição de significados, de colagem de sentidos, devolvê- los a história, é a nossa tarefa nesta dissertação. Não nos interessa tanto a dimensão física, material do engenho, mas sim sua face simbólica, construída discursivamente por José Lins, mediante sua escrita literária. Os valores, os significados e as imagens 13 agenciadas para pensar a propriedade canavieira formam o que entendemos por dimensão simbólica do espaço e constitui o campo no qual pretendemos nos mover para realizarmos nossa investigação. Dessa forma, historiograficamente, situamos-nos na corrente da história cultural. Vinculamos nossa pesquisa a tal campo não porque trabalhamos com a literatura, vista muitas vezes como “o” objeto cultural por excelência. O que nos aproxima da história cultural, tal qual vem sendo praticada nas últimas décadas 14 , é o nosso enfoque, a nossa abordagem que procura dar uma centralidade a produção de sentidos, a maneira como os homens ou determinados grupos sociais enxergaram e significaram seus mundos. O enfoque dado por nós a produção e apropriação simbólica dos espaços habilita-nos a enveredar pelo universo social a partir do qual os diferente sentidos são mobilizados para pensar e sentir a realidade. As produções literárias por nós investigadas são elementos culturais não por serem feitas por indivíduos esclarecidos, escolarizados, mas sim por fazerem parte de um conjunto maior (a cultura) a partir do qual os significados sociais são partilhados e construídos pelos homens para explicarem o mundo 15 . O fato de privilegiarmos a faceta sensível de nosso objeto não significa que iremos trabalhar a partir do dualismo material X simbólico. Procuraremos rejeitar os binarismos, em especial esse, pois entendemos que “os espaços são misturas inextricáveis de dimensões concretas e dimensões simbólicas”16. Não negamos a materialidade do engenho açucareiro, apenas nos centraremos na maneira como um conjunto de romances significaram tal 13 Entendemos imagem como uma representação visual, oriunda também de textos, de palavras, da linguagem escrita. A frase posta no papel pela mão de um escritor tem o poder de criar imagens tanto quanto o pincel na mão de um pintor que desliza em uma tela. Toda escrita, através de determinados recursos linguísticos, possui uma potência visual, isto é, uma capacidade de criar determinadas visualizações, de forjar imagens, cenas, retratos. A visualização é entendida como efeito da linguagem escrita Ver: MITCHELL, William John Thomas. Imágenes textuales. In: Teoría de la imagem. Madrid: Ediciones Akal, S.A., 2009. p. 102-136. MITCHELL, W. T. J. Como caçar e ser caçado por imagens: entrevista. Brasilia: E-compós, Vol. 12, Num. 1, Jan/Abr. 2009. Concedida a Daniel B. Portuga e Rose de M. Rocha. Disponível em: . Acesso em 10 jul. 2012. 14 PESAVENTO, Sandra Jatahy. História & história cultura. Belo Horizonte; Autêntica, 2012. HUNT, Lynn. A nova história cultural. São Paulo: Martins Fontes, 1992. CHARTIER, Roger. O mundo como vontade de representação. Estudos avançados, São Paulo, Vol. 11, Num. 5, 1991. 15 Sobre essa concepção de cultura, ver: GEERTZ, Clifford. A Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: LTC, 1989. 16 ALBUQUERQUE JR, Durval Muniz. O teatro da história: o espaço entre cenas e cenários. In:______.Nos destinos de fronteira: História, espaço e identidade regional. Recife: Bagaço, 2008, p. 82. 22 materialidade. Ademais, conforme esperamos mostrar ao longo de nosso trabalho, a partir do século XX a dimensão material do banguê não será mais seu elemento definidor, pelo menos para certos grupos sociais. Sua suposta essência não virá mais de sua estrutura produtiva, como ocorreu durante muito tempo. Para todo um conjunto de discursos vinculados a literatura de engenho, o banguê não seria mais um mero local de produção açucareira. Nesse sentido, indagamos: quais foram os sentidos e significados produzidos por José Lins em seus romances para fabricar o engenho açucareiro? Quais foram as condições históricas que tornaram possíveis esses sentidos e significados? De que modo e por que foram fabricados? Tais são as questões estruturantes da pesquisa, as quais serão tomadas não como questionamentos que nos obrigam a uma resposta pronta e acabada. Não, nossas problemáticas servem-nos de orientação e estruturação. Trata-se de problemáticas que visam direcionar nosso caminhar, pois as veredas da história precisam ser percorridas a partir de certos direcionamentos. Para examinarmos a constituição simbólica do engenho, tal qual fabricada por José Lins, selecionaremos como material privilegiado de análise três romances: Menino de engenho (1932), Banguê (1934) e Fogo Morto (1943). Tais produções literárias, escritas em momentos diferentes da vida de seu autor, fazem parte daquilo que a crítica literária nacional dos anos 1930-1940 denominou de “ciclo da cana-de-açúcar”, isto é, conjunto de romances que retratam o mundo do engenho em seus momentos de auge e de declínio. Nos livros que compõem aquele ciclo literário, a propriedade açucareira ocupou um papel especial, quase alçado à categoria de personagem principal. Na impossibilidade de analisarmos todos os romances que compõem o “ciclo da cana- de-açúcar”17, tomamos como corpo documental principal desta pesquisa os três romances supracitados, pois os mesmos contam a história dos dois principais engenhos daquele ciclo: Santa Rosa e Santa Fé. Menino de engenho e Banguê ficcionaram a primeira propriedade açucareira, ao passo que Fogo Morto debruçou-se sobre a segunda propriedade. Assim, o engenho foi o nosso critério maior para recortamos a obra literária de José Lins para nossa análise. Escolhemos os romances do escritor paraibano que trataram justamente da propriedade canavieira, pois o nosso enfoque está voltado para esta espacialidade em sua dimensão sensível. Mais do que a obra romanesca de José Lins ou a sua escrita literária, o que 17 Embora não seja algo consensual, podemos apontar que os romances que compõem o tal ciclo são: Menino de engenho (1932), Doidinho (1933), Banguê (1934), O moleque Ricardo (1935), Usina (1936) e Fogo Morto (1943). 23 queremos investigar em nossa dissertação é a fabricação simbólica do engenho, tecida pelo literato a partir de alguns de seus livros. Diante disso, uma pergunta se impõe: como analisaremos tais produções literárias? Qual será a nossa postura ante a literatura, produção discursiva que ainda provoca certo mal estar em alguns historiadores, notadamente naqueles que acreditam ser possível uma hierarquização das fontes históricas a partir de um critério de veracidade? Colocamos estas perguntas por que não tememos o trabalho com a literatura nem tampouco a repudiamos. Pensamos que o uso desta modalidade discursiva por parte dos historiadores precisa ser consciente e reflexivo, jamais inocente e simplório, como se a literatura fosse mais um documento a se prestar servilmente ao império da história. Nossa postura diante da literatura será profana. Pretendemos tratar as produções literárias como objetos mundanos, como produtos do mundo demasiado humano, frutos de práticas sociais historicamente localizadas. Não encararemos a literatura como um objeto em si mesmo, deslocado da sociedade, como se fosse um objeto sacralizado que pairaria sobre os homens. Queremos trazê-la para o universo histórico, para a vida dos seres mortais, para o rés do chão das coisas temporais e finitas. A literatura vem da história, das produções humanas. Para sustentarmos tal posição, nos valeremos da noção de discurso, tal qual definida e operada pelo filósofo francês Michel Foucault. Em sua aula inaugural no College de France, em 1970, Michel Foucault apresentou algumas maneiras pelas quais devemos entender o que seria um discurso. Seguem as recomendações do filósofo: Os discursos devem ser tratados como práticas descontínuas, que se cruzam por vezes, mas também se ignoram ou se excluem. Não transformar o discurso em um jogo de significações prévias; não imaginar que o mundo nos apresenta uma face legível que teríamos de decifrar apenas; ele não é cúmplice de nosso conhecimento; não há providência pré-discursiva que o disponha a nosso favor. Deve-se conceber o discurso como uma violência que fazemos às coisas, como uma prática que lhe impomos em todo caso 18 . Pensamos os discursos como práticas sociais historicamente localizáveis, como acontecimentos que irrompem a partir de dadas relações de poder e saber. O discurso será visto como positividade, ou seja, não o encaremos como uma atividade de decifração de uma realidade que lhe é exterior, mas sim como uma prática construtora de mundos. Entre o mundo e o discurso, a relação não é de leitura inocente e passiva, mera tradução, mas é de 18 FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: Loyola, 2012, p. 50. 24 violência, de conquista, de dominação e de criação. Contudo, procuremos não exagerar muito a dimensão construtiva do discurso, pois as construções discursivas, uma vez criadas, reverberam na criação de novos discursos e de novas práticas. O discurso cria e é criado pela realidade, uma prática social que produz, mas que é também produzida socialmente, conforme nos alertou Roger Chartier 19 . Tal noção de discurso será aplicada aos romances de José Lins, analisados aqui para problematizarmos a faceta simbólica do banguê. E isso não implica em um tratamento que desconsidere as especificidades da literatura. Quando for necessário, procuraremos respeitar as particularidades de tal saber, haja vista que a própria noção de discurso carrega em si a ideia de especificidade, de que determinadas regras presidem e estruturam dados discursos 20 . O que este conceito implica, quando aplicado à literatura, é que esta será vista como um produto histórico, como um monumento 21 esculpido em dado momento da história, por dadas forças sociais. Como assinalou o autor de A arqueologia do saber, “o discurso não tem apenas um sentido ou uma verdade, mas uma história”22. Ao encararmos os romances que compõem o “ciclo da cana-de-açúcar” como discurso estaremos distanciando-nos da perspectiva que entende a literatura como espelho da realidade, mera reprodução de um referente externo. Não vemos os romances sob o signo da mimesis. A literatura para nós é prática histórica, discurso criador de mundos, monumento a ser descrito historicamente, a ser desmontado em sua pretensa inteireza. Os romances de José Lins, assim, não nos serão útil para adentrarmos em um universo, para conhecermos melhor um passado, mas nos servirá, sim, para problematizarmos a construção simbólica de uma espacialidade, para percebemos como determinados sentidos foram produzidos para forjar um dado espaço. Nosso tratamento metodológico para com as produções literárias consiste em não mais os ver “como conjuntos de signos (elementos significantes que remetem a conteúdos ou a representações), mas como práticas que formam sistematicamente os objetos de que falam”23. Distanciar-nos-emos da tendência, muito comum, aliás, de ver a literatura de José Lins como um texto que traduziria a história dos 19 CHARTIER, Roger. Por uma sociologia das práticas culturais. In:_______. História cultural: entre práticas e representações. Lisboa: Difel, 1990. 20 FOUCAULT, Michel. Op. Cit., 2012, p. 08. 21 Mais informações sobre a noção de monumento, ver: FOUCAULT, Michel. Op., Cit., 2007, 6-13. LE GOFF, Jacques. Documento/Monumento. In:______. História e Memória. Campinas. São Paulo: Editora da Unicamp, 2013. 22 FOUCAULT, Michel. Op. Cit., 2007, p. 144. 23 FOUCAULT, Michel. Op. Cit., 2007, p. 55. 25 engenhos, como espelho do passado patriarcal brasileiro 24 . Mais que tradução, vemos construção da espacialidade, pois os discursos são práticas sociais construtoras de realidades, formadora de mundos, conforme já apontamos. A noção de ficção, entendida como fiction, ou seja, como uma operação narrativa construtiva, como um ato poético que organiza e seleciona dados elementos a fim de apresentar um determinado arranjo textual, também nos será útil para pensarmos a literatura. Essa produção discursiva apresentar-se-á para nós como um saber-fazer, como uma tessitura elaborada fio a fio, como um gesto criativo de um dado indivíduo, sem que a ação deste seja algo completamente autônomo, soberano, apartado de uma sociedade. Ficção não está muito distante de invenção, no sentido de produção 25 . Porém, a escrita de um romance, a elaboração de uma ficção romanesca, será sempre um ato poético socialmente condicionado, a despeito de suas especificidades. José Lins ficcionou seus livros, isto é, teceu suas tramas, seus personagens, seus espaços e seus enredos a partir de um dado contexto, embora sem se reduzir totalmente a ele. No estudo da ficção literária, da produção romanesca, procuraremos proceder como Antoine Compagnon: “sem desconhecer a tensão entre criação e história, entre texto e contexto ou entre autor e leitor, proporei aqui sua conjunção, indispensável ao bem-estar do estudo literário”26. Trabalharemos as produções literárias de José Lins, sobretudo quando atinentes ao engenho açucareiro, nesta tensão entre criação e história, entre texto e contexto. Trabalhar com literatura envolve sempre esse risco de acabar resvalando para um destes elementos, privilegiando ou o texto ou o contexto, de modo que tentaremos, contudo, resistir a essa tentação. Buscaremos ao longo do nosso trabalho conjugar equilibradamente história e literatura na análise do texto romanesco de José Lins. A análise da construção simbólica do engenho neste literato requererá de nós a atenção tanto para a narrativa quanto para o seu entorno social e histórico. Como podemos perceber a partir da discussão realizada até o presente momento, o problema do espaço é vital em nossa pesquisa. Durante muito tempo na historiografia, notadamente na francesa, o espaço era tomado como algo natural, componente a priori da 24 O crítico literário Otto Maria Carpeaux foi o grande expoente desta tendência. Nas suas palavras, “os historiadores do futuro aproveitar-se-ão desse documento – a obra literária de José Lins - para reconstruir todo um mundo”. Ver: LOUSADA, Wilson. Breve notícia de José Lins Rego (introdução). In; REGO, J.L. Menino de Engenho. 25 Ed. Rio de Janeiro. Olympio, 1977, p. 2. 25 Para mais informações sobre essa noção elementar de ficção, ver: GEERTZ, Clifford. Uma descrição densa: por uma teoria interpretativa da cultura. In: ______. Op., Cit., 1989, p. 25-26. 26 COMPAGNON, Antoine. Literatura para Quê? Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2009, p. 20-21. 26 história que se contava, não merecedor de muitas elucubrações 27 . Para nós, entretanto, o espaço assume uma importância enorme. Inicialmente, entendemos as diferentes espacialidades como objetos históricos, como um campo de análise para o qual os historiadores devem se voltar, como de fato estão fazendo desde a segunda metade do século XX, pelo menos. Nossa compreensão procurará seguir a visão de Michel de Certeau, segundo a qual os espaços são frutos de práticas sociais, de movimentos humanos em determinados momentos 28 . Eis a visão sintética de de Certeau sobre espaço: Existe espaço sempre que se tomam em conta vetores de direção, quantidade de velocidade e a variável tempo. O espaço é um cruzamento de móveis. É de certo modo animado pelo conjunto de movimentos que aí se desdobram. Espaço é o efeito produzido pelas operações que o orientam, o circunstanciam, o temporalizam 29 . Para o autor de A invenção do cotidiano, só existirá espaço quando houver práticas para produzi-lo, para engendrar ação, movimento e tempo. São as práticas sociais que qualificam os espaços, que lhe dão origem, pois supõem direção, velocidade e tempo. Ao enfatizar esses três elementos como constitutivos das espacialidades, Michel de Certeau quer enfatizar a dimensão do movimento, do efeito criador e temporal, os quais estão sempre na origem de um espaço, contrapondo-se, assim, a noção de lugar, entendida como fixidez, estaticidade. Longe de ser uma anterioridade, o espaço nasce de um movimento, de um dado agir, de uma determinada ação. O conceito de prática certeauniana, elemento vital para entendermos a noção de espaço, recobre uma gama de atividades sociais, as quais vão desde o caminhar pela cidade, passando pelos mapas e relatos de espaço, até chegar às atribuições de sentidos produzidas pelos homens ordinários. Para Michel de Certeau, até o cotidiano, universo encarado muitas vezes como o reino do automatismo, conteria práticas sociais, isto é, movimentos humanos de criação e burla da ordem instituída. O espaço é, pois, criação humana, engendrado a partir das práticas sociais, as quais podem ser materiais e simbólicas. Assim, tal categoria perde sua faceta natural, podendo vir a ser objeto de estudo dos historiadores. 27 ALBUQUERQUE JR, Durval Muniz. Op. Cit, 2008, p. 31-125. 28 CERTEAU, Michel de. Praticas de espaço. In:_______. A invenção do cotidiano: Artes de Fazer. Petrópolis, Rio de Janeiro; Vozes, 1994. 29 CERTEAU, Michel de. Op. Cit., 1994, p. 202. 27 Os dois filósofos franceses aqui citados podem ser aproximados, a despeito de suas diferenças, pela valorização das práticas sociais 30 , por entenderam que o mundo social é o que as práticas humanas dele fizeram. Segundo Paul Veyne, em um famoso e polêmico texto de 1978, Michel Foucault teria revolucionado a escrita da história em razão não só de sua atenção às praticas, mas, sobretudo, devido ao tratamento que deu a tal noção. O historiador francês apontou que o filósofo de Poitiers, em seus estudos, partia sempre de práticas sociais, as quais eram vistas como elementos criadores de objetos. A loucura, a prisão, o Homem, a sexualidade, as ciências e uma série de outros objetos que tomamos como naturais, existentes desde sempre, são na verdade objetivações de práticas. Para Paul Veyne, tudo gira em volta desse paradoxo, que é a tese central de Foucault, e a mais original: o que é feito, o objeto, se explica pelo que foi o fazer em cada momento da história; enganamo-nos quando pensamos que o fazer, a prática, se explica a partir do que é feito. Em vez de enfrentar o problema em seu verdadeiro cerne, que é a prática, partimos da extremidade, que é o objeto, de tal modo que as práticas sucessivas parecem reações a um mesmo objeto, “material” ou “racional”, que seria dado inicialmente31. A grande lição de Michel Foucault para os historiadores consistiria em mostrar que não se deve partir dos objetos, supondo-os a priori e constantes ao longo da história. Deve-se recusar este tratamento naturalizante, em nome de uma postura que parta das práticas sociais, encaradas como ações, atos sociais e históricos produtores de realidades. O zelo foucaultiano pelas práticas torná-lo-ia um historiador, pois interessar-se por elas é atentar para o que os homens fazem, para o que os homens produzem em dados momentos da história. Assim como em Michel de Certeau, a noção de prática seria um elemento central dos diversos trabalhos de Michel Foucault, constatação essa feita não só por Paul Veyne como também por Pierre Billouet, um dos biógrafos do autor de Vigiar e Punir 32 . Desse modo, nosso trabalho encara o engenho (o objeto), em especial sua dimensão simbólica, como fruto de práticas sociais, entre as quais destacamos os romances de José Lins, entendidos aqui como discursos. A literatura constitui-se como um objeto privilegiado para analisarmos a construção simbólica de espacialidades. Se ela é vista como uma prática discursiva (Michel Foucault) e o espaço é encarado como produto de práticas (Michel de 30 Cabe lembrar aqui que o objetivo de A invenção do cotidiano foi formular uma teoria das práticas cotidianas da sociedade de massa francesa. Sobre isso, ver a introdução deste livro. 31 VEYNE, Paul. Foucault revoluciona a história. In:______. Como se escreve a história. Brasília: Editora da UNB, 1982, p. 257. 32 BILLOUET, Pierre. Foucault. São Paulo: Estação Liberdade, 2003. 28 Certeau), temos aí um material valioso para pensarmos a construção dos mais diferentes espaços. A literatura pode ser, metodologicamente, pensada e tratada como uma prática discursiva construtora de espacialidades. Somemos a isso o fato de que, em toda literatura, o espaço é uma dimensão fundamental, explicitamente criada, produzida por uma dada escritura. Entre os diversos elementos que compõem um romance (narrador, personagem, tempo, enredo, entre outros), figura-se também o espaço, entendido não como uma anterioridade da escrita, mas sim como produto de um trabalho narrativo. Para que as espacialidades apareçam, é preciso, tanto na história como na literatura, uma operação de criação realizada pelo historiador e literato. Desde os anos 1960, estas duas figuras de saber compactuam a crença de que o espaço é uma construção humana, deram-se as mãos para pensarem a fabricação das mais distintas espacialidades na história e na literatura 33 . O espaço pode unir historiadores e literatos, a despeito de suas especificidades disciplinares. Desde o início dos anos 1970, a tradicional fronteira – estabelecida mais pelos historiadores do que pelos literatos – que separava história e literatura vem sendo estreitada, de modo que nos últimos anos a aproximação entre estes dois saberes vem sendo praticada sem muitos receios. O temor do historiador metódico e objetivo frente à literatura, encarada como um documento bastante subjetivo e ficcional, parece não mais acometer os seguidores da musa Clio. A literatura, assim como a antropologia, geografia, economia e psicologia, tem sido chamada para o diálogo com a história, a fim de que os limites entre as duas modalidades de conhecimento, outrora bastante afastados, sejam aproximados. Se atualmente é consenso afirmar que a história muito tem de literatura, em razão da questão da narrativa e da linguagem, não o é menos a afirmação inversa: a literatura muito tem de história, do tempo, do momento no qual foi produzida. Esta dupla consciência permite que uma disciplina se valha da outra e que a fronteira entre ambas diminua. A história, enquanto saber disciplinar, pode contribuir com a literatura, do mesmo modo que esta com aquela. A tendência é para a aproximação, para o que uma pode oferecer a outra, e não mais para o afastamento disciplinar, conforme ocorreu no século XIX e nas décadas inicias do 33 Para a compreensão de alguns especialistas acerca do espaço na literatura, ver: LINS, Osman. O espaço romanesco: conceitos e possibilidades. In:____. Lima Barreto e o espaço romanesco. São Paulo: Ática, 1976. DIMAS, Antonio. Espaço e romance. São Paulo: Ática, 1986. FILHO, Ozíris Borges; BARBOSA, Sidney (Org.). Poética do espaço literário. São Paulo: Claraluz, 2009. Este último livro reúne uma gama de artigos de literatos especializados no tratamento do espaço a partir da literatura e nos permitiu diagnosticar a concepção atual dos profissionais em foco sobre as espacialidades. 29 século seguinte 34 . Por isso propomos um trabalho que toma as produções literárias como elementos essenciais da nossa investigação. Não queremos apartar a literatura da história, mas sim fazer com que essas duas modalidades de conhecimento tenham seus laços estreitados, que uma sirva para pensar a outra. A literatura é o elemento construtor do espaço que pretendemos inquirir, a saber: o engenho açucareiro. Assim, ela será posta para pensar tanto questões históricas quanto literárias. Nosso interesse por José Lins do Rego já vem de longa data. Em 2009, o autor deste texto ingressou no projeto Achegas de saudade: as condições históricas de emergência de consciências e sensibilidades saudosistas no Brasil e em Portugal entre o final do século XIX e meados do século XX 35 , na condição de bolsista de iniciação científica. Nesta iniciativa acadêmica, além de estudar o tradicionalismo no romancista, vivenciamos uma situação específica que muito me instigou para a pesquisa acadêmica e, em especial, para a investigação da vida e obra literária de José Lins. Ao nos deparar com os romances do literato paraibano, uma das leituras privilegiadas daquele projeto, pudemos rememorar um autor que tinha lido há muito tempo, ainda na puberdade. Porém, o Menino de engenho que agora lia com olhos acadêmicos, com a lupa de quem almejava aprender um ofício, não me pareceu o mesmo da leitura de adolescência. O mesmo livro recebeu da “mesma” pessoa duas leituras extremamente diferentes. “Como pode isso?” Foi o que pensei, surpreso. Tal fato intrigante inquietou-me ao mesmo tempo em que me impulsionou a leitura dos outros romances de José Lins. E assim, movido por uma inquietação pessoal nascida do choque de uma leitura de um mesmo livro feita em tempos diferentes, cresceu em mim o interesse pelo romancista paraibano, do qual esta pesquisa é o primeiro grande fruto. Além da literatura, pensada como um discurso que fabrica espaços e que está integrada a uma dada formação discursiva, utilizaremos também outros tipos de fontes 36 , como, por exemplo: artigos jornalísticos de periódicos pernambucanos, alagoanos, paraibanos e cariocas, cartas trocadas entre certos escritores 37 , relatos memorialísticos, prefácios de 34 A relação entre história e literatura foi por nós aprofundada em: FERNANDES, Diego José. Ao rés do chão: História e Literatura. Revista de teoria da história. Ano 4, Núm. 8, Dez./2012, 106-125. 35 ALBUQUERQUE JUNIOR, Durval Muniz de. Achegas de saudade: as condições históricas de emergência de consciências e sensibilidades saudosistas no Brasil e em Portugal entre o final do século XIX e meados do século XX. Projeto de pesquisa apresentado ao CNPQ, Natal, 2009. 36 Nossas fontes foram consultadas nas diversos instituições em que pesquisamos, conforme destacamos nas páginas que abrem este trabalho. Ver item Instituições pesquisadas. 37 Basicamente, a correspondência ativa e passiva de José Lins com Gilberto Freyre, que nos foi disponibilizado pelo Museu José Lins do Rego, em João Pessoa. Tal material foi catalogado por Sônia Maria van Dijck Lima e Nestor Figueredo Júnior, ambos professores do Departamento de Letras da Universidade Federal de João Pessoa. 30 obras, crônicas literárias, livros de história e poesias. Como se percebe, adotamos um vasto corpo documental, a fim de que não venhamos a tratar a literatura como uma produção a parte, como que isolada das demais produções intelectuais. Na nossa perspectiva, os romances de José Lins fazem parte de um circuito discursivo, de modo que serão entendidos e trabalhados a partir de suas relações com outros textos. Conforme se verá, procuramos sempre aproximar nossas fontes, pensando-as a partir de um certa rede textual. Assim como os romances, nossos outros materiais documentais, mencionados no parágrafo acima, não serão tomados como testemunhos do passado, vozes sinceras de um outro tempo, janelas para observarmos o que se passou, mas sim como tijolos para edificarmos nossa interpretação. Esta será montada a partir de diversos fragmentos textuais, os quais constituirão a argamassa para erigirmos nossa visão do passado. Recortamos nossas fontes não para colhermos nela uma verdade, mas sim para formularmos nossa explanação sobre essa verdade, para produzirmos nossa versão do passado. Trabalhamos nossas fontes, como se verá, a partir do estabelecimento de certos recortes, determinados agrupamentos e dadas séries, a fim de escaparmos de uma perspectiva que não problematiza a massa documental, que apenas pinça determinadas informações convenientes. Procuraremos trabalhar os documentos, interpretando cada passagem e, quando possível, cruzando as informações de nossas fontes. Cada documento citado cumpre a função de nos auxiliar no desenvolvimento de uma interpretação. Não o queremos para reviver o que se passou nem tampouco para descobrimos “a” verdade. Necessitamos das fontes para aparelharmos nossa operação historiográfica38, para urdimos nossa narrativa e oferecermos uma visão crítica do passado. Nossos documentos são como fios tricotados para formar um tecido relativamente coeso e firme 39 . A história necessita do documento não para resgatar o passado ou para produzir uma verdade histórica, mas sim para elaborar um discurso coerente, verossímil, “próximo do que poderia ter acontecido”40. Nossas fontes são nossos materiais de trabalho e, assim como a teoria, visam contribuir com a nossa leitura/perspectiva do passado. A história é a leitura do que se passou, a interpretação dos fatos passados, a arte de tecer uma narrativa para refigurar o que se passou e ficar em seu lugar. Sem a interpretação do historiador, sem o seu olhar interrogativo e sem a 38 Indica o trabalho do historiador, gestado a partir de um lugar social, do uso de uma série de técnicas sobre documentos e de uma narrativa escrita. Ver: CERTEAU, Michel de. A operação historiográfica. In: ______. A escrita da história. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1982. 39 VEYNE, Paul. Como se escreve a história. Brasília: Editora da UNB, 2009, p. 42-45. 40 RICOEUR, Paul. A realidade do passado histórico. In:_____. Tempo e narrativa. Campinas: Papirus, Tomo III, 1997. 31 sua análise problematizadora das fontes, não há operação historiográfica, mas apenas compilação documental. O recorte temporal de nosso trabalho situa-se, formalmente, entre 1919-1943. O primeiro ano marca o início efetivo da atividade literário-jornalística de José Lins, bem como seu ingresso na consagrada Faculdade de Direito do Recife. Já o ano final de nosso recorte temporal aponta para a data de publicação do último romance de José Lins que será por nós analisado: Fogo Morto, publicado em 1943. Como nossa pesquisa está centrada em um indivíduo, nas obras literárias que esse escreveu, as balizas temporais foram pensadas a partir do sujeito. Porém, tratam-se apenas de balizas, de orientações relativas. Por isso, em alguns momentos, quando julgamos necessário, recuamos para antes de 1919 e avançamos na temporalidade para além de 1943. Por fim, o texto que se segue está estruturado em três partes. As partes serão as unidades maiores de nossa dissertação e são compostas de alguns capítulos. Nas duas partes iniciais, composta de cinco capítulos no total, procuramos historicizar a produção literária de José Lins, bem como iniciar a análise de seus romances, a qual será feita nas partes subsequentes. Para historicizarmos a literatura, foi preciso um método, dado que tal procedimento não é tão simples, não se reduz a mera exposição do contexto social que antecede as obras, como ainda pensam alguns. Nesse sentido, optamos por realizar uma historicização biográfica, isto é, uma discussão acerca da trajetória de vida do indivíduo, destacando os principais elementos que contribuíram para o aparecimento do romancista. A parte I intitulada Ao rés do chão: os lugares José Lins do Rego, composta de dois capítulos, procurou realizar esse empreendimento. Na parte II, denominada de Abram-se as porteiras: a literatura de engenho e composta de três capítulos, tentamos uma historicização discursiva, ou seja, uma análise da literatura de engenho, regime que orquestrou, em grande medida, os romances de José Lins. Esta foi nossa estratégia para historicizarmos os textos literários: de um lado, a vida do sujeito (parte I), e de outro, os discursos que estruturaram suas produções romanescas (parte II). Ela justifica-se, em termos teórico-metodológicos, por entendermos que a literatura é um discurso que pode ser historicamente localizado, rastreado em suas condições de possibilidade. O capítulo 1 da parte I trata da estadia do paraibano em Recife, quando José Lins era estudante de Direito, e de sua adesão ao tradicionalismo freyreano. O capítulo seguinte aborda o período maceioense, destacando a integração literária de José Lins no cenário letrado alagoano. Nestes dois primeiros capítulos, buscamos elaborar uma discussão na qual o espaço (no caso, as cidades) fossem um componente da narrativa. Com este capítulo, fechamos a 32 proposta de historicização biográfica da literatura, objetivo da nossa parte I. Em seguida, passamos para uma outra parte da nossa dissertação, mas que também se propõe ao empreendimento de historicização da literatura, sem, contudo, terminar nele, haja vista que iniciamos a análise dos romances de José Lins. A segunda parte de nosso trabalho almejou analisar o engenho em duas produções específicas. No capítulo 3 desta parte, centramos nossa reflexão sobre o capítulo Massangana, presente em Minha Formação, escrito por Joaquim Nabuco e publicado em 1900. Tal produção memorialística seria o discurso fundador da literatura de engenho, o momento de ruptura para com toda uma tradição discursiva sobre a propriedade açucareira. Muito do que José Lins escreveu sobre os engenhos seria tributário de Joaquim Nabuco. Assim, investigamos a construção simbólica do engenho nas memórias do ilustre pernambucano para explicitarmos a emergência de um conjunto de enunciados que serão, mais na frente, reativados por outros escritores, incluindo-se aí José Lins do Rego. Assim como o capítulo Massangana, outra produção literária foi fundamental para o discurso de José Lins sobre os engenhos: trata-se do romance Senhora de engenho, publicado em 1921, da autoria de Mario Sette. O capítulo 4 da parte II problematiza a propriedade açucareira neste romance, tentando perceber como tal espacialidade foi, em termos simbólicos, fabricada. Julgamos que o romance que iniciou a obra literária de José Lins – Menino de engenho – deve ser compreendido a partir das obras acima especificadas de Joaquim Nabuco e Mario Sette, as quais constituem as condições discursivas de possibilidade da produção literária de 1932 do romancista paraibano. O primogênito literário de José Lins estava inserido dentro de uma formação discursiva, apoiava-se no mesmo sistema de formação enunciativa que as produções discursivas dos autores de Minha Formação e Senhora de engenho. Para entendermos a construção simbólica do engenho em José Lins do Rego, precisamos retroagir para estes dois textos, na medida em que Menino de engenho, conforme veremos, estabeleceu uma clara relação com eles. O engenho ficcionado no romance de 1932 lembrou, em muitos aspectos, a imagem da propriedade açucareira tal qual elaborada por Joaquim Nabuco e Mario Sette. A parte II de nosso trabalho, que se debruça sobre um conjunto de discursos aparentados, constituindo o que denominamos de literatura de engenho, procurou seguir a orientação de que “a análise enunciativa supõe que se levem em consideração os fenômenos de recorrência. Todo enunciado compreende um campo de elementos antecedentes em relação aos quais se situa, mas que tem o poder de reorganizar e de redistribuir segundo relações 33 novas”41. Para a produção literária Menino de engenho, no que diz respeito à fabricação do engenho, os enunciados do capítulo Massangana de Minha Formação e de Senhora de engenho formam esse campo discursivo antecedente de que nos alerta Michel Foucault. Por isso que antes de analisarmos tal romance debruçaremo-nos sobre aqueles dois textos. Nossa análise sobre os discursos que precederam o início da obra literária de José Lins se justifica ainda em razão de as entendermos como o arquivo a partir do qual o literato paraibano compôs seus romances, notadamente os agrupados sob a expressão “ciclo da cana- de-açúcar”. Arquivo seria um conjunto de enunciados que não só antecede os enunciados como estabelece com eles relações de possibilidades. Não seria um estoque do passado, local de relíquias discursivas, mero armazém, pois teria um papel no presente, a saber: permitir e interditar a fala. Daí porque Michel Foucault pensou o Arquivo como “a lei do que pode ser dito, o sistema que rege os enunciados”42. Tal noção não constitui um sistema fechado e limitado, permeável apenas a alguns enunciados, mas apresenta-se como algo dinâmico, flexível, frequentemente atualizado pela admissão de novos discursos. O arquivo seria um universo sempre em expansão. Pensando as produções supracitadas de Joaquim Nabuco e Mario Sette como um arquivo simbólico ao qual José Lins recorreu para ficcionar seus engenhos, nosso empreendimento histórico realizado na parte II tentou aproximar-se de uma arqueologia: descrição histórica que escava a emergência de um discurso ao nível de um arquivo, ou seja, a partir de um conjunto de discursos antecedentes. Por isso finalizamos a parte II, no capítulo 5, com a análise do engenho em Menino de engenho, mostrando a linhagem discursiva a partir da qual José Lins teceu seu romance, bem como analisando o engenho em tal produção literária. A construção simbólica do engenho no literato paraibano, iniciado em 1932, se deu a partir de um conjunto de enunciados predecessores, ligados a literatura de engenho e que formaram o arquivo simbólico do literato paraibano. Daí a necessidade de uma arqueologia 43 , de um estudo histórico que rastreei os enunciados que antecederam o discurso que se quer analisar. Além dessas duas partes, onde historicizamos a produção literária de José Lins e iniciamos a análise de seus romances, nossa dissertação contém ainda uma última parte. A parte III pretendeu continuar o exame dos romances, isto é, a discussão sobre os sentidos e 41 FOUCAULT, Michel. Op. Cit., 2007, p. 141. 42 FOUCAULT, Michel. Op. Cit., 2007, p. 147. e FOUCAULT, Michel. Michel Foucault explica seu ultimo livro. In:_______. Arqueologia das ciências e história dos sistemas de pensamento. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008, p. 145. Coleção Ditos & Escritos II. 43 Sobre tal noção, ver: FOUCAULT, Michel. Op. Cit., 2007, p. 151-199. 34 significados mobilizados para tecer o engenho. Ela foi composta apenas de dois capítulos, cada um dos quais examinando um romance específico. As produções literárias apreciadas foram Banguê (1934) e Fogo Morto (1943). Escolhemos esses materiais, ainda que afastados temporalmente um do outro, em razão de ambos terem como espaço principal o engenho e produzirem uma determinada visão de sua decadência. Assim como Menino de engenho, as produções literárias de José Lins de 1934 e de 1943 passam-se em determinados engenhos, porém diferenciam-se por ficcionarem não a propriedade açucareira em seu esplendor, mas sim em seu processo de ruína. Aliás, Banguê está intimamente ligado ao primeiro romance, por também passar-se no engenho Santa Rosa e ter Carlinhos como personagem central. Assim, o fato de Banguê e Fogo Morto terem como palco central engenhos em débâcle justifica nosso empreendimento de analisá-los em uma única parte. A última parte de nossa dissertação, denominada Fecham-se as porteiras: os engenhos decadentes, procurou discutir a construção decadentista da propriedade açucareira. A construção simbólica do engenho em José Lins do Rego não estaria de toda completa caso parássemos na parte II, isto é, caso encerrássemos nossas análises nos romances que forjaram uma imagem grandiosa do banguê. A espacialidade açucareira foi fabricada também a partir de uma perspectiva decadentista, que procurou ficcionar o fim do engenho, mostrando o drama coletivo que decorreu dessa decadência. Julgamos que Banguê e Fogo Morto encerraram a construção simbólica do engenho, fecharam a representação desta espacialidade, urdindo-a como um espaço da decadência, isto é, como um universo marcado pela destruição, pela miséria, pelo fim de uma sociedade. Assim, o capítulo 6 desta parte concentrou-se na análise do romance de 1934 e o capítulo seguinte debruçou-se sobre Fogo Morto. Nestes dois capítulos finais, investigamos a maneira como se produziu o engenho decadente, como se teceu uma imagem decadentista e saudosista para o universo banguezeiro. Dessa forma, nossa pesquisa se situa em uma encruzilhada, isto é, no cruzamento entre história, espaço e literatura. Nosso trabalho tentará fazer com que essas três categoriais dialoguem entre si, que uma sirva para pensar a outra, que uma possa contribuir com a outra. Não queremos aparta-las, traçar fronteiras e limites, mas sim imbricá-las, misturá-las, embaralhá-las, pô-las para funcionar em conjunto. Até porque as três noções são intercambiáveis, haja vista que o espaço é parte integrante tanto da história quanto da literatura: não pode haver história sem espaço tanto quanto não pode existir literatura sem espaço. Nossos aportes teóricos, em grande medida oriundos de autores franceses, formam nossa tentativa de pensar em conjunto as categorias de história, literatura e espaço. A análise da construção simbólica do engenho em José Lins do Rego, nosso principal objetivo, será o 35 elemento que tentará articular história, espaço e literatura ao longo de toda nossa dissertação. O que sairá dessa articulação, nem sempre bem vista por muitos historiadores? É o que começaremos a ver a seguir. 36 Parte I Ao rés do chão: os lugares de José Lins do Rego 37 Capítulo 1 Os anos recifenses e a adesão ao tradicionalismo freyreano 1.1 Só um panfletário? O boêmio, o panfletário e o crítico literário Nos primeiros meses de 1919, o jovem paraibano José Lins do Rego ingressava na tradicional Faculdade de Direito do Recife, após concluir o curso secundário no Ginásio Pernambucano, onde estudava desde 1917, dois anos depois de sua chegada ao Recife. Neto de senhor de engenho da várzea paraibana, do coronel José Lins Cavalcanti de Albuquerque, José Lins, indo estudar Ciências Jurídicas no Recife, seguia o exemplo de vários jovens ligados à elite açucareira nordestina, ávida por ter em seu seio um representante do saber jurídico para auxiliar nos seus negócios. Embora a Faculdade de Direito do Recife nas décadas iniciais do século XX não fosse a mesma instituição dos tempos de Silvio Romero e Tobias Barreto, tal centro de ensino ainda desfrutava de um considerável prestígio social. Vários intelectuais renomados no meio pernambucano, como Farias Neves Sobrinho, Netto Campello, Joaquim Pimenta e Odilon Nestor, passeavam pelos corredores daquela Faculdade. O indivíduo, seja na condição de estudante ou professor, que circulava na Faculdade, gozava de certa estima na sociedade. Acadêmico era o título simbólico que revestia as pessoas que ingressavam em tal estabelecimento de ensino, dotando-as de um capital simbólico 44 na sociedade recifense 45 . A vida do acadêmico José Lins na Faculdade de Direito, mantida graças às mesadas do avô, que queria ver o neto como um doutor, foi marcada por um desinteresse pelo curso. O estudante paraibano não se dedicou com afinco aos estudos. Seu desempenho no segundo ano do curso consistiu em uma aprovação “simplesmente” em quase todas as disciplinas. No quarto ano, novamente um fraco desempenho: aprovado “simplesmente” em todas as disciplinas, exceto na de Direito Comercial, pois perdeu o exame da mesma 46 . Segundo Edson Nery da Fonseca, estudioso pernambucano da obra de Gilberto Freyre e ex-bibliotecário da Faculdade, o “simplão”, como era chamada por muitos estudantes e professores a aprovação 44 Usado aqui no sentido de bens imateriais. Refere-se à capacidade dos indivíduos adquirirem certas propriedades distintivas, as quais lhe conferem um prestígio e uma boa reputação social. BOURDIEU, Pierre. Os usos sociais da ciência: por uma sociologia do campo científico. São Paulo: Editora UNESP, 2004. e BOURDIEU, Pierre. Razões Práticas: sobre a teoria da ação. Papirus, 1996. 45 Para mais informações sobre a Faculdade de Direito de Recife, ver: SCHWARCZ, Lilia M. A faculdade de Direito de Recife. In:_____. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil (1870- 1930). São Paulo: Companhia das Letras, 1993. 46 A Província, 02 de Dezembro de 1920; A Província, 15 de Março de 1923. 38 “simplesmente” em uma disciplina, correspondia ao rendimento mínimo para uma aprovação em uma das cadeiras do curso de Ciências Jurídicas 47 . O próprio José Lins registrou da seguinte maneira sua estadia na Faculdade: O estudante José Lins do Rego, aquele que mal sabia onde ficavam as vossas salas de aulas, mas que era íntimo de todas as agitações da escola, o que gritava pelos vossos corredores, cantando em voz alta e desafinada árias de operetas da moda, o que botava apelidos, o que se fizera de terror em arruaças de rua e boemia, o rapaz perdido, o aluno péssimo de Dr. Amazonas, bacharel de 1923, que não entrou no quadro de formatura, porque consumiu em cerveja da rua do Santo Amaro as verbas do avô. [...] Fui criatura de triste figura em curso de generosas simplesmente, o estudante que brincou com vossas grandezas, sem levar em conta as responsabilidades de sua geração 48 . As palavras do bacharel traçam a figura de um estudante que pensava a Faculdade mais como um espaço de sociabilidade, isto é, como um local para conhecer novas pessoas, fazer novas amizades, encontrar rápidos divertimentos etc., do que como um centro de ensino formador, voltada para a constituição de uma intelectualidade ou classe dirigente das instituições estatais. Elas revelam que José Lins, na sua época de acadêmico, não estava muito preocupado com sua formação enquanto bacharel em Ciências Jurídicas. A musa das letras jurídicas não seduziu o jovem paraibano, não conseguiu despertar nele interesse e ânimo. Daí por que, já formado, em 1925, José Lins teve apenas uma rápida atuação na área jurídica, isto é, trabalhou menos de um ano como promotor público, em Manhuaçu, interior de Minas Gerais, emprego arranjado pelo seu sogro Antonio Massa, na época senador e um homem de prestígio político no país. Em uma carta de 1927, endereçada ao seu grande amigo Gilberto Freyre, José Lins assim se lembrava desse trabalho: “felizmente o meu cargo não exigia que eu estivesse a aparecer. Se não seria uma vergonha”49. O desprezo pelo ofício jurídico foi confessado novamente em um depoimento concedido a Francisco de Assis Barbosa, em 18 de dezembro de 1941: “em 1925 fui nomeado promotor público em Manhuaçu, no interior de Minas. Passei o ano lendo e conversando com José de Queiroz Lima”50. José Lins do Rego foi mais um indivíduo que desfrutou das benesses e comodidades do funcionalismo público brasileiro. 47 FONSECA, Edson Nery da. José Lins do Rego e o Recife. In:_____.O Recife revisitado. Natal: Edufrn, 2002. 48 REGO, José Lins do. Nordestinas. In: ________. Bota de sete léguas. Rio de Janeiro: Editora A Noite, 1951, p. 137-139. O texto é fruto de um discurso que o autor iria pronunciar na Faculdade de Direito do Recife. A data do discurso não foi revelada. 49 Carta de José Lins do Rego para Gilberto Freyre, 04 de agosto de 1927. 50 BARBOSA, Francisco de Assis. Foi a velha Totônia que me ensinou a contar história. In: CONTUTINHO, Eduardo F.; CASTRO, Ângela B. (Orgs.). Fortuna crítica: José Lins do Rego. Rio de Janeiro/João Pessoa: 39 Figura 2: Foto de José Lins do Rego em 1918 Acervo da Fundação Joaquim Nabuco A passagem destacada mais acima indicia também o comportamento boêmio do depoente. A boemia foi, certamente, um dos elementos que contribuíram para José Lins não ter em muita conta as atividades de estudante. A presença nas aulas, a leitura dos livros, a realização de exames e provas, ou seja, a rotina acadêmica apresentava-se como algo enfadonho, desinteressante. As conversas nos cafés e bares, as polêmicas literárias nos corredores e a agitação de movimentos sociais exerciam maior fascínio no estudante paraibano. José Lins entregou-se à vida de jovem boêmio e militante social, rapaz tanto da esquina Lafaiete’’51 como dos comícios políticos. Segundo Souza Barros, José Lins e seu companheiro de atividade política, Osório Borba, eram visitantes costumeiros do Café Continental. Ao contrário do que ocorria com Gilberto Freyre, por exemplo, era rotineira a presença do primeiro nos bares e cafés recifenses da Rua do Imperador e Santo Amaro 52 . Barbosa Mello, que fez parte da turma de Ciência Jurídicas de José Lins, apontou que foi companheiro deste em muitas “noitadas alegres” e lembra-se do neto de senhor de engenho como o “velho companheiro de farras pernambucanas”53. A grande amizade acadêmica de José Lins, feita nas instâncias da Faculdade de Direito, foi justamente com o estudante gaúcho Raul Bopp, rapaz também boêmio e aventureiro, que teve a ideia de cursar Ciências Jurídicas em vários estados do país, devido ao seu projeto de viajar pelo Brasil, o que o fez passar Civilização Brasileira/Funesc, 1991, p. 65. José Queiroz Lima (1883-1933) foi um promotor e político cearense. Em 1926, trabalhou como promotor na mesma promotoria em que José Lins trabalhava. Daí a amizade entre ambos. 51 Alusão ao Café Continental, localizado na famosa Rua do Imperador, no Recife, onde localizavam-se os principais jornais e as principais lojas comerciais da cidade. Trata-se de um espaço que arregimentava muitos jovens estudantes. Ver: BARROS, Souza. Joaquim Cardozo e o cenáculo da Lafaiete. In:_______. A década de 20 em Pernambuco. Recife: Fundação da cultura, 1985, 217-245. 52 BARROS, Op. Cit., 1985, p. 231. 53 MELLO, Barbosa. Escritor fiel ao seu meio. In: MARTINS, Eduardo. José Lins do Rego: o homem e a obra. João Pessoa: Secretária de educação e cultura, 1980, p. 369-361. 40 quase 10 anos para se formar em Direito (1918-1925) 54 . Relembrando sua amizade com o “amigo mochileiro”, José Lins apontou o seguinte: “Bopp foi uma bomba para mim. Ensinou- me a beber uísque. Ele foi minha grande amizade literária”55. Figura 3: Foto da Rua do Imperador, Recife, 1924 Acervo da Fundação Joaquim Nabuco Não devemos encarar esse comportamento boêmio de José Lins como uma idiossincrasia, algo particular a tal indivíduo. Na verdade, a vida boêmia era a marca de parte considerável da juventude acadêmica recifense dos anos 1920. A cidade do Recife, com uma população que só que crescia, com serviços de bondes e automóveis, bares, cafés, cinemas, livrarias e teatros, possibilitava um estilo de vida urbano mais informal e desregrado 56 . Benedito Monteiro, Ascenso Ferreira, Joaquim Cardozo, Luis Jardim, Austro-Costa e vários outros jovens literatos da época eram presenças marcantes na Rua do Imperador. França Pereira, no seu estudo sobre um século de vida literária em Pernambuco, presente no Livro do Nordeste (1825-1925), criticou duramente os jovens boêmios recifenses: Que teriam deixado num desvão de gaveta, n’alguma perdida “pasta” ou “álbum”, revista ou jornal, os outros boêmios? [...] Ninguém o sabe. Espíritos fadados a luzir, deslumbrar e desaparecer, sem levar nem deixar saudades, porque não se fixavam, cumpriram apenas uma finalidade: a de estrellas errantes na celagem do pensamento. Aquelles lettrados não faziam literatura, convertiam-na em trocos meudos para as despesas diárias da 54 BOPP, Raul. Vida e morte da antropofagia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967. 55 BARBOSA, Francisco de Assis. Op. Cit., 1991, p. 60. 56 Mais informações em: REZENDE, Antônio Paulo. Desencantos modernos: histórias da cidade de Recife na década de 20. Recife: Fundarpe, 1997, p. 21-107. 41 palestra, em torno das taças espumosas “champagne”, ou de meia dúzia de “whiskies” e “bocks” de cerveja. [...] Cessado o pretexto, eclipzavam-se os originaes boêmios, como sombras chinesas; sem muita vez deixar de sua passagem mais que uma gargalhada e um nome 57 . O comportamento boêmio de boa parte desta juventude ligada às elites era tão marcante que levou o autor do artigo a se perguntar pelo seu legado, pela sua contribuição às letras pernambucanas. Se os boêmios da “Veneza Americana” deram ou não uma contribuição ao meio literário recifense é uma outra questão, da qual não nos ocuparemos no presente trabalho. Importa destacar que a boemia era uma atividade social relativamente praticada entre os jovens que viviam no Recife dos anos 1920. Somente assim faria sentido a crítica de França Pereira. José Lins do Rego tinha, assim, vários companheiros de boemia, jovens que enveredavam pelo caminho das farras noturnas, dos divertimentos fáceis e das longas conversas regadas a álcool, custeadas por mesadas familiares. Além da boemia, o acadêmico paraibano se envolveu também no que Gilberto Freyre, em diversos textos, chamou de “panfletarismo político”. Segundo o autor de Casa Grande & Senzala, José Lins, por volta dos anos 1922-1923, estava atolado no jornalismo político mais baixo, na imprensa falaciosa e mercenária. Gilberto Freyre referia-se à atividade do seu futuro grande amigo no jornal Dom Casmurro, um periódico panfletário de vida breve (01/11/1922 a 16/04/1923) que sacudiu a vida política recifense e que circulou justamente naqueles anos. Luiz do Nascimento, estudioso da imprensa pernambucana, forneceu as seguintes informações sobre tal periódico: Crítica social. Alta política. Literatura e arte. Entrou em circulação no dia 01 de Novembro de 1922, formato de 32 X 22, com 12 páginas a três colunas de composição. Direção de Osório Borba e José Lins do Rego. Trabalho gráfico na firma de Costa Pinto & Cia., a rua Duque de Caxias, N° 96, aí também instalada a redação. Circulava às segundas feiras 58 . Na apresentação do primeiro número do semanário constava que o objetivo do mesmo era “refletir o movimento das ideias de hoje, com a divulgação do pensamento novo que uma geração de elite elabora na obscuridade dos meios nortistas, forçando a inércia e a indiferença provincianas”59. Tal intento era “contra os moldes da impressa ultraconservadora, cuja falsa doutrina de moderação oculta, muitas vezes, uma orientação de acomodatismo, de alheamento 57 PEREIRA, França. Um século de vida literária em Pernambuco. In: FREYRE, Gilberto. Livro do Nordeste (1825-1925). Recife: Arquivo Público Estadual, 1970, p. 109 (versão fac-similar do original de 1925). 58 NASCIMENTO, Luiz do. Dom Casmurro. In:_____.História da imprensa pernambucana. Recife: Universidade federal de Pernambuco, editora universitária, 1982, p. 147-148. 59 Dom Casmurro, 01 de novembro de 1922. 42 à vida ambiente, de inércia egoística”60. Criado por Osório Borba e José Lins do Rego – o primeiro já um jornalista político conhecido e o outro ainda um acadêmico –, tal semanário tentou alcançar seu objetivo a partir da crônica política, escrita tanto por seus dois diretores como por nomes como Joaquim Pimenta, Oscar Pereira, Bazilio Monteiro e outros. Tais escritos abordavam a vida política nos níveis locais, estaduais e nacionais. O governo pernambucano, presidido na época pelo juiz Sergio Loreto, era um dos principais alvos de Dom Casmurro, bem como a figura de Estácio Coimbra, parente familiar de Gilberto Freyre. O panfletarismo político, elemento reivindicado pelos próprios diretores do semanário para definir o periódico, advém da agitada disputa entre “Borbistas” e “Pessoistas”, que esquentou o clima político da sociedade pernambucana nos primeiros anos da década de 1920. Tal disputa se iniciou com o vazio governamental deixado pelo político José Bezerra, que governou apenas entre 1919-1920, em razão de sua morte. A partir daí foi dada a corrida para a disputa pela sucessão governamental. O embate envolveu, basicamente, dois grupos políticos: “borbistas”, liderados pelo senador e ex-governador do estado Manuel Borba, que lançou a candidatura de José Henrique Carneiro da Cunha, que era apoiado, por sua vez, por Joaquim Pimenta, e “pessoistas”, comandados pela família dos Pessoa de Queiroz e com apoio de amplos setores do governo estadual e federal. Estes lançaram a candidatura de Lima Castro, na época já prefeito de Recife. O fato de os “pessoistas” terem o apoio do então presidente do Brasil Epitácio Pessoa fez com que a disputa ganhasse contornos de o local contra o nacional. Os seguidores de Manoel Borba, dentre os quais se incluía José Lins e Osório Borba com o Dom Casmurro, colocavam-se como autonomistas, contras as ditas intenções intervencionistas do governo pernambucano, apoiado em nível federal. O problema da centralização X descentralização do poder voltava a aparecer aqui. Os comandados pela família Pessoa de Queiroz representariam as intenções centralizadoras do governo, as forças centrífugas do Estado Brasileiro, ao passo que os “borbistas” encarnariam os anseios descentralizadores, adeptos do estadualismo nacional. Assim, de uma sucessão governamental a nível estadual passou-se a uma discussão sobre a estrutura do Estado Brasileiro e acerca das supostas intenções. O semanário Dom Casmurro lutou pelos “borbistas” contra os “pessoistas”. Comprovava isso a abertura do periódico às colaborações de Joaquim Pimenta, um dos lideres 60 Dom Casmurro, 01 de novembro de 1922. 43 do movimento autonomista e dos operários recifenses 61 . É provável que José Lins tenha convidado aquele para contribuir no jornal que dirigia, uma vez que em 1922-1923 Joaquim Pimenta era professor substituto da Faculdade de Direito do Recife e partilhava na época com o estudante paraibano o apoio a Manoel Borba. Nessa época, os dois acadêmicos estreitaram os laços, em uma relação de admiração mútua 62 . Segundo Luiz do Nascimento, o periódico ora em apreço sofreu muitas ameaças e perseguições políticas, devido à sua postura extremamente crítica em relação à política local. Oscar Pereira, um dos colaboradores do semanário, afirmou em suas memórias que “os amigos de Sergio Loreto ameaçaram Agostinho Bezerra de prisão e de outras coisas a mais, caso continuasse a imprimir o Dom Casmurro. Ao mesmo tempo, procuraram Tomé Gibson, exigindo-lhe a demissão sumária de Osório Borba do cargo de redator do Jornal Pequeno”63. O golpe final no jornal panfletário foi dado em 30 de abril de 1923, quando determinados indivíduos invadiram a oficina de Nelson Firmo e a destruíram. Nem os exemplares antigos de Dom Casmurro escaparam, em uma nítida operação de destruição e apagamento da memória 64 . Porém, a atuação de José Lins a favor dos borbistas não se resumia somente a sua ação no Dom Casmurro. Nesse contexto de disputa política governamental e talvez influenciado pelo orador de sucesso que era Joaquim Pimenta, o acadêmico neto de senhor de engenho também praticava discursos inflamados em praças e ruas. Ao lado da vida desinteressante de estudante de Ciências Jurídicas, atuava também como um militante social, a proferir discursos e mais discursos, tentando empolgar as massas urbanas. Eis a lembrança do adulto já consagrado romancista sobre essa sua faceta: “este é o Recife de minha mocidade, dos meus primeiros arroubos cívicos, com seu povo, povo que, em estudante, procurei conquistar, sem sucesso, em discursos de praça pública”65. Em um depoimento a Francisco de Assis Barbosa, em 1941, confessava que no Recife dos anos 1920 “tinha grande vontade de ser um grande orador acadêmico e agitar as multidões. Tinha grande vontade de ser jornalista político e dizer muito desaforo”66. 61 O movimento autonomista foi a reação de políticos e intelectuais pernambucanos, nos anos iniciais da década de 1920, contra as medidas ditas intervencionista do presidente Epitácio Pessoa em Pernambuco. Ver: BARROS, Souza. Op. Cit., 1985, p. 85-108. 62 Como se mostrará mais na frente, José Lins chegou a eleger Joaquim Pimenta como um dos grandes nomes da geração de literatos pernambucano dos anos 1920. 63 NASCIMENTO, Luiz do. Op. Cit. 1982, p. 149. 64 No arquivo público do Estado Pernambucano constam apenas alguns números do semanário, justamente aqueles que sobreviveram ao ataque das autoridades políticas: os números 1 e 3, de novembro de 1922, e os 17 e 18, de fevereiro de 1923. 65 REGO, José Lins do. Op. Cit., 1951, p. 140. 66 BARBOSA, Francisco de Assis. Op. Cit., 1991, p. 60. 44 O conteúdo desses atos públicos eram, em sua maioria, as questões da política local: crítica ao governo, denúncia da miséria econômica e social do povo recifense, a violência social. José Lins tinha certo apreço por essa atividade de ativista social: “a oratória me fascinava. Vivia promovendo greves só para fazer os meus discursos de dó de peito. Saí muito pelo interior do estado (Pernambuco) com o senador Manoel Borba, na campanha de sucessão do governo José Bezerra, contra as intervenções de Epitácio Pessoa”67. Gilberto Freyre também comentou essa faceta do seu amigo: “falara de improviso nos comícios dos chamados “autonomistas” de Pernambuco; gastara-se na mais estéril e vã das retóricas demagógicas”68. O jornal A província de 26 de novembro de 1921 noticiou um discurso do “eloquente e talentoso acadêmico José Lins do Rego, que interpretou o sentir da mocidade”69. Essa performance versou sobre a morte do jovem Edgar de Oliveira, “injustamente assassinado dias atrás”. Como se percebe, o estudante paraibano da Faculdade assumiu-se publicamente como um orador representante de determinados grupos sociais, orador que se deixou envolver tanto por questões sociais como por querelas políticas. A militância política foi tal que José Lins chegou a ser apontado por Luis Lima como um dos jornalistas líderes da política local 70 . A boemia e o ativismo político, elementos presentes no acadêmico José Lins, conforme estamos mostrando, fez com que Gilberto Freyre reduzisse o seu amigo paraibano a condição de mero “panfletário político”. Segundo o mestre de Apipucos, quando retornou ao Recife em 08 de março de 1923 71 , José Lins não passava de um jovem jornalista político, a praticar subliteratura em periódicos demagógicos de oposição. Em vários textos, Gilberto Freyre ratificou que seu amigo estava deformado, perdido pelo panfletarismo político. Fiquemos apenas em uma única citação: Ainda alcancei José Lins do Rego escrevendo artigos, com ânimo combativo, num jornal do Recife, já em decadência, e, panfletariamente, em Dom Casmurro. Panfletariamente contra o Governador interino Severino Pinheiro, contra Sergio Loreto, contra o genro do Governador e Diretor de Saúde Pública, o brilhante Amaury de Medeiros, contra Estácio Coimbra, então Vice-Presidente da Republica. Dom Casmurro era financiado por grupo hostil a todos esses 72 . 67 BARBOSA, Francisco de Assis. Op. Cit., 1991, p. 60-61. 68 FREYRE, Gilberto. José Lins do Rego e eu. In:______. Alhos & Bugalhos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1978, p. 49. 69 A Província, 26 de Novembro de 1921. As informações seguintes foram produzidas a partir deste jornal. 70 Souza Barros, no seu já citado livro, realizou uma pesquisa de opinião com vários pernambucanos ilustres que vivenciaram a década de 1920. Os resultados de tal pesquisa encontram-se espalhados pelas páginas de seu livro. A referência a José Lins como um líder político está em: BARROS, Souza. Op. Cit., 1985, p. 186. 71 FERNANDES, Aníbal. Gilberto Freyre. Diário de Pernambuco, 08 de Março de 1923. 72 FREYRE, Gilberto. Em torno da Recifensização de José Lins do Rego. Ciência & Trópico. Recife, V. 10, N.2, p175-178, Jul./Dez., 1982, p. 180. Chamamos a atenção para o fato de que o autor desta citação representa o 45 Embora na época do retorno de Gilberto Freyre ao Recife a militância política de José Lins tenha já esfriado um pouco, pois seu auge coincide com o primeiro ano do semanário Dom Casmurro, o jovem recém-chegado do exterior representou o acadêmico paraibano como um “panfletário zangado: um menino a roncar como uma fera contra o presidente Bernardes, contra Estácio Coimbra, contra Coelho Neto, contra a Academia Brasileira de Letras”73. Na pena do sociólogo pernambucano, o rapaz de 22 anos virava um menino insensato, alguém desprovido do juízo adulto que lhe pudesse pôr um freio nas mãos. Ao reapresentar José Lins como um “menino a roncar como uma fera”, Gilberto Freyre passava a ideia de que aquele não sabia o que fazia, agia como um jovem infantilizado, sem causa nem razão. Essa representação freyreana do passado ativista de José Lins deve ser relativizada por dois motivos. Primeiro porque ela está inserida dentro de uma estratégia discursiva de consagração do pernambucano. Ela está permeada por um objetivo, o qual consiste em valorizar o impacto de Gilberto Freyre na – usemos a metáfora do próprio Freyre – “conversão de Lins do Rêgo panfletário demagógico para José Lins do Rêgo escritor”74. Quase todos os textos de Freyre sobre José Lins estão imbuídos de uma intenção consagradora de seu próprio papel junto ao escritor paraibano. O pernambucano visou colocar-se como uma das principais causas para o paraibano vir a torna-se romancista, como se dissesse que sem Gilberto Freyre não haveria um José Lins do Rego literato. Por isso o passado deste, ou melhor, a época anterior ao contato com Gilberto Freyre, é menorizada, a fim de se afirmar o quão importante um foi para o outro, o quanto um contribuiu para o aparecimento do outro. Assim, o processo de “conversão” de “Lins do Rêgo em José Lins do Rêgo”, ou seja, de panfletário em romancista, teria ocorrido a partir da ação catequizadora de Gilberto Freyre, que lhe mostrou o caminho a seguir. O sentido de consagração que entendemos não está ligado à fama, à notoriedade, uma vez que Gilberto Freyre, quando escreveu seus diversos textos sobre José Lins, já era um intelectual reconhecido nacionalmente e internacionalmente. A estratégia de consagração, que dizemos existir nos textos freyreanos sobre José Lins, relaciona-se a uma tentativa de consagrar Gilberto Freyre como o grande responsável pelo aparecimento do romancista paraibano. Trata-se, pois, de algo mais específico e pontual. Ao falar sobre José Lins, não era jornal do Recife como um periódico já em decadência. Todavia, Luiz do Nascimento e Souza Barros, nos seus livros já citados aqui, apontam tal jornal como um dos grandes jornais da década de 1920. Ver: NASCIMENTO, Luiz do. Op., Cit., 1982, p. 94. E BARROS, Souza. Op.,Cit., 1985, p.181. 73 FREYRE, Gilberto. Op. Cit., 1978, p. 49. 74 FREYRE, Gilberto. Op. Cit., 1978, p. 42. 46 necessariamente a consagração intelectual que Freyre buscava, dado que já a tinha. O que ambicionava era a consagração como aquele que gerou um romancista, que fez aparecer um literato para o mundo. Tal estratégia freyreana, na verdade, extrapola o aparecimento do romancista José Lins, para alcançar o que se convencionou chamar de “Romance de 30”75: Eu seria, entretanto, mais do que exagerado em minha galanteria de vivos para com mortos, se me prestasse à farsa de aceitar em silêncio aquela suposta coincidência (aparecimento na mesma década de Casa Grande e senzala e do “Romance do Nordeste”), omitindo-me nos acontecimentos daquela época e fingindo-me espectador do aparecimento, em nosso país, de uma nova literatura de ficção 76 . O mestre de Apipucos queria consagrar-se como o elemento que desencadeou a produção literária de uma série de romancista nordestinos, entre os quais estaria, especialmente, José Lins do Rego. Gilberto Freyre assumiu esse papel e essa participação, enfatizando que a obra literária ligada ao “Romance de 30” surgiu a partir de sua pregação regionalista e tradicionalista, a qual “revelou” para o Brasil a riqueza de uma região. Em segundo lugar, como toda estratégia de consagração, o intento freyreano operou silenciamentos, ao passo que destacou outros elementos, justamente aqueles que lhes eram mais convenientes. É assim que observamos, nos diversos textos freyreanos sobre José Lins antes do contato com Gilberto Freyre, o mestre de Apipucos ocultar a atividade de crítico literário do paraibano, desenvolvida em jornais como o Jornal do Recife, ao mesmo tempo em que se esmera em sublinhar as suas lições sobre a língua e a literatura inglesa, o sentimento regional, o valor do passado e da tradição etc., revelados ao jovem paraibano. A escrita de Gilberto Freyre, como toda narrativa, realizou cortes intencionais, fez omissões e grifos num único golpe. Como a contribuição destacada por Gilberto Freyre à vida e obra de José Lins é bastante conhecida e não exige um esforço maior do que uma leitura dos textos que já apontamos, vamos nos deter, por hora, nos apagamentos que o ensaísta pernambucano realizou. A escrita freyreana, quando se debruçou sobre a vida de José Lins no seu período recifense anterior ao regresso de Gilberto Freyre, em 1923, praticamente nada mencionou do 75 O Romance de 30 compreende uma volumosa produção publicada entre o final década de 1920 e final da década de 1930, que, em termos amplos, compreende o romance de corte realista, seja este introspectivo ou não, que se preocupou com varias questões sociais proeminentes do Brasil daquelas décadas. Mais informações em: BUENO, Luís. Dois problemas gerais. In:_____. Uma história do romance de 30. São Paulo: Edusp/ Campinas: Unicamp, 2006. 76 FREYRE, Gilberto. Recordando José Lins do Rego. In:______. Vida, forma e cor. Rio de Janeiro: Record, 1987, p.58. 47 lugar de sujeito 77 que aquele tentava ocupar, quando era ainda um acadêmico. Ao ler apenas os textos de Freyre ficamos com a impressão de que José Lins, antes de conhecer o jovem promissor que voltava de uma longa temporada de estudos nos Estados Unidos e viagens pela Europa, não passava de um reles estudante, aprisionado no jornalismo político. Em alguns textos do próprio José Lins também ficamos com essa impressão: “para mim tivera começo naquela tarde de nosso encontro a minha existência literária”78. Será que a existência literária de José Lins começou realmente naquela tarde? É o que veremos a seguir. José Lins do Rego quando chegou ao Recife para cursar Ciências Jurídicas, em 1919, já vinha como um jovem que escrevia para a imprensa. Não só escrevia para um jornal, o Diário do Estado (Paraíba), como mantinha uma coluna neste, intitulada Ligeiros Traços, onde publicava semanalmente artigos curtos, os quais podem ser agrupados em dois grupos, um ligado a crítica literária e outro relacionado a temas da atualidade. Dos artigos publicados nesta sessão, podemos mencionar: Pelas crianças pobres (11.01.1919), Amor às árvores 79 (14.01.1919), Liberdade de imprensa (22. 01.1919), Pela conferencia da paz (26.01.1919), Ave, Rui! (15.02.1919) e O homem da paz (02.03.1919). Todos estes artigos, assinados com o nome “José Lins do Rego”, podem ser agrupados em uma única rubrica, a de artigos que versam sobre temas contemporâneos. Tratavam-se de textos que comentavam e analisavam acontecimentos do presente do autor: a mortalidade infantil, a modernização que levava a derrubada das árvores, a perseguição política aos jornais paraibanos, o fim da Grande Guerra e a realização da Conferencia da Paz em Paris, a candidatura de Rui Barbosa à presidência da Republica e as conferências de Oliveira Lima na Argentina. Tais colaborações ao Diário do Estado indicia que José Lins estava atento à sua época e procurava tecer reflexões sobre determinados fatos de seu tempo. De certa forma, o jovem engajado e preocupado com as questões sociais e políticas já aparecia um pouco aqui. Ao lado desses artigos mais engajados, na coluna Ligeiros Traços podemos também visualizar timidamente um pequeno grupo de artigos, voltados para a crítica literária. É o 77 Tal noção indica as posições que um indivíduo ocupa na ordem dos saberes de cada época. Com ela quer-se destacar que a autoria depende do discurso, que está articulado com este, não se constituindo como uma anterioridade, um sujeito a priori. O autor se constrói junto com o texto. Ver: FOUCAULT, Michel. O que é um autor? 4. ed. Lisboa: Vega, 2000. 78 REGO, José Lins do. Notas sobre Gilberto Freyre. In: FREYRE, Gilberto. Região e Tradição. Rio de Janeiro: Record, 1968, p. 22. 79 Vale a pena destacar que este artigo de José Lins é, em cinco anos, anterior a Semana da Árvore, realizada pelo Centro regionalista tradicionalista do Nordeste, a qual foi realizada em 1924. É anterior ainda ao primeiro artigo de Gilberto Freyre, no Diário de Pernambuco, em defesa das árvores, o qual só veio à tona em 04/09/1921. Ver: FREYRE Gilberto. “29”. In:_____. Tempo de aprendiz. São Paulo: IBRASA; INL, 1979, p. 136-138. 48 caso, por exemplo, do artigo Um grande poeta (24.01.1919), no qual José Lins pontuou considerações sobre a obra de dois poetas pernambucanos: Farias Neves Sobrinho 80 e Olegário Mariano 81. Segundo o autor, “entre os vivos, velhos e novos poetas de Pernambuco, o mais doutrinador, o mais clássico na linguagem, é sem duvida o dr. Farias Neves”82. O elogio do autor mostra não sou a sua predileção pelo poeta citado, como também revela um certo conhecimento do meio intelectual pernambucano, o que lhe assegurava fazer comparações avaliativas. O mesmo se pode inferir, agora sobre o meio artístico paraibano, quando José Lins sentenciou “aqui na Paraíba, poucos conhecem os versos admiráveis deste tão inspirado poeta”83. Sobre Olegário Mariano, afirmava-se que “seduz pelos quebrantos de suas rimas maviosas; o cintilante cantor da Estatuária prende, atrai atenção do leitor pelos conceitos filosóficos, pureza e bela construção da sintaxe 84”. Destaquemos aqui que o autor penetrou no modo de operar do poeta, avaliou sua linguagem, sua maneira de tecer a poesia, bem como pensou no leitor. Comentário e reflexão de um crítico literário em potencial, de quem podia pensar e repensar o fazer literário e o efeito deste no leitor. Ainda ligados a esses primeiros passos de crítico literário no Diário do Estado, com uma sessão própria, podemos destacar o artigo sobre um outro poeta, desta vez paraibano, Coriolano de Medeiros (30.01.1919) 85, a quem José Lins tem como “ilustre mestre”. Aqui comentou a principal obra do poeta, seu livro de contos Do litoral ao Sertão (1919): “conta à sombra dos juazeiros verdejantes a dor pungente dos sertanejos retirantes, ao barulho monótono das ondas revoltadas, a mágoa de uma amante que, olhando a imensidão dos mares, procura ver se distingue a brancura imaculada de uma vela, a jangada que nunca mais voltou”86. O autor resenhou uma obra, divulgou-a para o público e mostrou sua potencialidade. Interessante pontuarmos que nesse momento o estilo literário de José Lins estava bastante distante da linguagem coloquial, curta e direta que iria, mais tarde como romancista, lhe consagrar. Sobre isso, vejamos mais um trecho do artigo: “não vejo aqui na Paraíba um 80 Professor de português e latim de José Lins no Ginásio Pernambucano. Foi um poeta neoparnasiano (1872- 1927), que viveu e morreu no Recife. Autor de Pôr do sol (1920) e Sol posto (1923). Ver: PINTO, César Braga. Notas do organizador. In: REGO, José Lins do. Ligeiros traços. Rio de Janeiro: José Olympio, 2007, p. 283. 81 Poeta parnasiano-simbolista (1889-1958) de Pernambuco, foi bastante popular no Rio de Janeiro e ficou conhecido como “poeta das cigarras”. Depois de Últimas cigarras (1915), publicou o livro de poesia Água corrente (1918). PINTO, César Braga. Op. Cit., 2007, p. 282. 82 REGO, José Lins do. Op. Cit., 2007, p. 51. 83 REGO, José Lins do. Op. Cit., 2007, p.52. 84 REGO, José Lins do. Op. Cit., 2007, p.52. 85 João Rodrigues Coriolano de Medeiros (1874-1975), escritor e autor do livro de contos Do litoral ao sertão. PINTO, César Braga. Op. Cit., 2007, p. 283. 86 REGO, José Lins do. Op. Cit., 2007, p. 60. 49 cérebro que imagine com mais largueza de ideias e maviosidade de estilo, uma história de amores em que a saudade cante um passado de doçuras, e as lágrimas, testamentos sagrados de idílios apaixonados, lavem as manchas do pecado 87”. Tratando de contos e poesias, José Lins nessa época investia em uma linguagem mais poética e lírica, com períodos mais longos e rebuscados. Para pensar a obra de outros autores, acabou muitas vezes adotando o estilo narrativo de quem está avaliando. Este lugar de sujeito de crítico literário, precocemente desenvolvido no Diário do Estado, será melhor desenvolvido em um jornal recifense, o Jornal do Recife 88 , do qual começou a fazer parte em meados de 1921. Vivendo em Recife desde 1915, José Lins começou a se integrar no meio jornalístico da cidade. Como apontamos, a condição de acadêmico da Faculdade dotava o jovem de um certo capital simbólico, ou seja, conferia ao jovem estudante um status, uma distinção que muitos jovens na sociedade recifense não podiam ter, dado que aquela instituição de ensino era privilégio de famílias que podiam investir financeiramente nos seus filhos. Tal prestígio abriu caminho para a entrada nos jornais, em um momento em que a imprensa pernambucana crescia e se diversificava. Sobre a imprensa pernambucana nos anos 1920, Souza Barros teceu os seguintes comentários: É necessário atentar que, à época, a imprensa, como divulgação, centralizava um poder muito maior que hoje. Não se podia admitir um intelectual se ele não aparecesse na imprensa numa atividade qualquer, nela trabalhando diretamente ou levando como colaborador as suas produções. A dificuldade dos meios editoriais, sobretudo os especializados, as revistas técnicas, etc. faziam do jornal o divulgador central de tudo o que aparecia. Raro, assim, o intelectual ou técnico que, ao precisar dos meios de comunicação, não se tornasse jornalista, e começava então a ser notado 89 . A porta da imprensa estava aberta para jovens estudantes como José Lins, e por ela este entrou, inicialmente em um jornal pequeno, o Vida moderna, um semanário ilustrado de artes, sports, elegâncias e atualidades, que circulou entre o início de 1919 e meados de 1920, dirigido por Tavares Almeida 90 . Neste jornal, considerando os artigos que César Braga 87 REGO, José Lins do. Op. Cit., 2007. p. 61. 88 Discordamos aqui de Neroaldo Pontes, quando diz que José Lins no jornal do Recife dedicou-se “particularmente ao jornalismo político-partidário, defendendo o borbismo e criticando a situação política”. AZEVEDO, Neroaldo Pontes de. Modernismo e Regionalismo: Os anos 20 em Pernambuco. João Pessoa/Recife: UFPB/Editora Universitária; UFPE/Editoria universitária, 1996. p. 36. 89 BARROS, Souza. Op. Cit., 1985. p. 180. 90 Mais informações em: NASCIMENTO, Luiz do. Op., Cit., 1982. p.77-79. 50 conseguiu localizar 91 , não vemos José Lins assumir o lugar de sujeito de crítico literário. Seus artigos versam sobre temas atuais, tais quais aqueles primeiros artigos comentados do Diário do Estado, e são assinados apenas com “J.L. do Rego”. No entanto, foi no semanário Vida moderna que José Lins publicou seu famoso e polêmico artigo A erudição de um almofadinha (12.06.1920), no qual ridicularizava os jovens eruditos que procuravam de tudo saber um pouco, obtendo apenas um conhecimento superficial, uma erudição de almofada 92 . Provavelmente, esta colaboração, pelo tom irônico e crítico, trouxera considerável popularidade ao seu autor. Com o fim de Vida moderna, em 24 de Julho de 1920, José Lins passou a colaborar no Jornal do Recife 93 , como adiantamos. Sua entrada nesse jornal ocorreu mediante um convite de Philemon de Albuquerque (secretário do jornal), para o qual José Lins disse sim. Segundo José Aderaldo Castelo, a razão do convite foi a saída de Barbosa Lima Sobrinho 94 do quadro de colaboradores do jornal. Os primeiros trabalhos neste periódico, datados dos últimos meses de 1921 e com a assinatura de “Lins do Rego”, ocupavam uma sessão específica, a de crônica social. De fato, os primeiros textos de José Lins no jornal ora em análise têm um ar ficcional, beirando a contos. São textos que ficcionavam situações reais de vida, a partir da criação de alguns personagens. Assim, observamos José Lins contar as experiências amorosas e narcóticas de personagens como João Eduardo (A confissão de um artificial, 06.11.1921) 95 , Mário (A última carta, 25.10.1921) 96 e Carlos (Miss fragilidade, 04.09.1921) 97 . Nestes textos de crônica social vemos uma dose de imaginação literária, dada pela criação de personagens e pela narração das experiências que estes passavam, narrações essas que não se prendem somente ao personagem, mas também a certos locais da cidade de Recife. Artigo significativo que José Lins escreveu para o Jornal do Recife, dentro da sessão de crônica social, foi um intitulado Os que voltam a vida (30.10.1921) 98 . A colaboração narrou os prazerosos momentos boêmios de um rapaz anônimo que, graças ao seu comportamento desregrado, renasceu para vida, para suportar a rotina de trabalho e estudo. José Lins parece ter tomado a boemia, que nesse momento a praticava largamente, como matéria prima da sua crônica. Sobre ela, assim se expressou: “um fim de boêmia é sempre 91 REGO, José Lins do. Op. Cit., 2007, p. 79-84. 92 REGO, José Lins do. Op. Cit., 2007, p. 81-82. 93 Tradicional jornal da cidade de Recife, que circulou entre 1859-1938. Mais informações em: NASCIMENTO, Luiz do. Op., Cit., 1982, p. 94-159. 94 CASTELO, José Aderaldo. José Lins do Rego: modernismo e regionalismo. São Paulo: Edart, 1961, p.86. 95 REGO, José Lins do. Op. Cit., 2007, p. 98-99. 96 REGO, José Lins do. Op. Cit., 2007, p. 97. 97 REGO, José Lins do. Op. Cit., 2007, p. 85. 98 REGO, José Lins do. Op. Cit., 2007, p. 97. 51 assim, muito triste. No começo o imprevisto dos prazeres, a vida sem perigos, o abandono às dificuldades. Vive-se para a vida romântica, para o ideal, para o amor. E a alegria une-se às lágrimas nos mesmos desdéns de ceticismo”99. Acreditamos que aqui, além de uma crônica social, um registro fictício da realidade, tratava-se também de uma nota pessoal, dado que o autor na época em que produzia tal artigo adotava um comportamento boêmio, conforme mostramos no início. Assim, o jornalista e o boêmio, facetas de um “mesmo” indivíduo, frequentemente se entrelaçavam. Todavia, a maior parte das colaborações de José Lins no Jornal do Recife dizem respeito a temas literários. Como já apontamos, o estudante paraibano tentou nesse periódico, de uma forma mais sistemática, construir o lugar de sujeito de crítico literário. Lembremos que esta atividade aconteceu em paralelo com o José Lins boêmio e ativista político. Nas suas colaborações ao Jornal do Recife também vemos expressões dessas três facetas 100 . No perfil intelectual do autor que estamos tentando traçar, a boemia, a militância político-social e a crítica literária não se separavam. Estamos destacando o José Lins crítico literário para mostrarmos que, ao contrário do que Gilberto Freyre apontou, a vida do seu amigo paraibano, antes de conhecê-lo, não se reduzia ao mero panfletarismo político. Esta representação freyreana deve ser entendida como uma estratégia de consagração do autor de Casa Grande & Senzala, que diversas vezes tentou superdimensionar seu impacto na vida e obra do acadêmico e escritor neto de senhor de engenho. Poderíamos apontar vários artigos de José Lins no Jornal do Recife que lhe permitiram ocupar a posição de crítico literário no meio intelectual pernambucano 101 . No entanto, escolheremos aqueles que julgamos mais significativos e/ou que embasarão discussões nos próximos capítulos. Nesse sentido, um dos primeiros artigos de crítico literário que José Lins produziu para o periódico ora em tela foi um denominado sugestivamente de Os novos (01.01.1922), onde realizou uma espécie de balanço da atual geração literária de Pernambuco, comparando-a com a gloriosa geração da escola de Recife de Tobias Barreto e Silvio Romero. Daí o titulo do artigo, Os novos. Tratava-se, portanto, de um texto de mapeamento dos novos literatos pernambucanos, bem como de um diagnóstico avaliativo destes em relação aos antigos. 99 REGO, José Lins do. Op. Cit., 2007, p. 97. 100 Vale a pena destacar que, quando da disputa governamental em razão do falecimento de José Bezerra, o Jornal do Recife se posicionou a favor dos “borbistas”. Assim, José Lins, na época, escrevia para dois jornais de oposição aos “pessoistas”. Ver: NASCIMENTO, Luiz do. Op. Cit., 1982, p. 145. 101 É pertinente destacarmos que, segundo César Braga, depois dos primeiros artigos de crônica social no jornal do Recife, José Lins passa a ter seus artigos estampados na primeira página do jornal. Ver: PINTO, César Braga. Ordem e tradição: a conversão regionalista de José Lins do Rego. In: Revista IEB, N.52., Set./Mar. 2011, p. 13- 42, p. 19. 52 Como literatos de expressão, nesta época, o aspirante a crítico literário José Lins citou, basicamente, os seguintes nomes: Laurindo Leão, Joaquim Pimenta, Silva Lobato, Austro- Costa, Múcio Leão 102 , Lucio Varejão e Barbosa Lima Sobrinho. Sobre cada uma dessas “grandes emoções poéticas”103, teceu breves e elogiosos comentários. Porém, concluiu que, por mais expressivos poeticamente que sejam esses autores, não poderíamos igualá-los aos antigos pernambucanos, verdadeiros monumentos intelectuais da pernambucanidade: aqueles tempos românticos de Castro Alves e Tobias Barreto, período de grandes fermentações, não se repetem em nossa história. Foi um caso esporádico em Pernambuco. A Faculdade de Direito perdeu a sua função social, sendo nada mais do que uma grande casa cheia de grandes cérebros que não agem 104 . A comparação dos antigos com os novos levou José Lins a criticar até a Faculdade, instituição de ensino que conhecia bem. A exemplo de outros artigos aqui comentados, a produção jornalística ora em observação indicia que José Lins era um jovem que conhecia não só os literatos de sua época, mas também os renomados homens de letras de outrora, o que lhe possibilitava uma comparação entre os novos e os antigos. Somente alguém que conhecesse o meio intelectual local, que lesse as obras dos autores, que estivesse minimamente integrado no circuito literário recifense era capaz de produzir um texto como esse. Embora adotasse comportamentos boêmios e militasse em causas sociais e políticas, José Lins circulava entre os literatos locais, conhecia suas obras e refletia sobre elas. Pelo artigo Os novos, vemos uma figura de saber 105 que emite avaliações sobre um conjunto de autores, que incursiona sem timidez no campo da crítica literária. Outro artigo de crítico literário escrito para o Jornal do Recife por José Lins, quando ainda era um acadêmico boêmio envolvido em militância social e política, foi sobre o livro A 102 Múcio Carneiro Leão (1898-1969) foi um jornalista, poeta, contista e orador nascido no Recife e formado em Direito na Faculdade de Direito do Recife, mas que viveu muito tempo no Rio de Janeiro, onde conviveu fraternalmente com Manuel Bandeira, Cassiano Ricardo, Ronald de Carvalho, entre outros literatos. Além de colaborar em jornais (Jornal do Brasil, Correio da Manhã, A Manhã), escreveu livros de poesia, contos e romances. Ver: FILHOS, Murilo Melo. Múcio Leão: Centenário. Rio de Janeiro: ABL, 1998. José Lins chegou a escrever um livro sobre esse literato, porém o mesmo, apesar de já impresso, não chegou a ser publicado. A notícia deste livro, impresso provavelmente pela gráfica Costa Pinto & Cia, é dada por Gilberto Freyre, mas também pelo jornal Dom Casmurro. Ver: FREYRE, Gilberto. Op., Cit., 1972, 47. E Dom Casmurro, 01 de novembro de 1922. 103 REGO, José Lins do. Op. Cit., 2007, p. 121. 104 REGO, José Lins do. Op. Cit., 2007, p. 123. 105 Tal expressão indica a adoção de um tipo ou perfil de autor ligado a um dado saber. Nesse sentido, historiador, filósofo, sociólogo, crítico literário etc. podem ser tomados como exemplos de determinadas figura de saber. Ver: FOUCAULT, Michel. Op., Cit., 2000, p. 42. 53 comédia dos erros do poeta alagoano Jorge de Lima. O artigo tem por nome o próprio título da obra. É pertinente apontarmos que o livro de ensaios de Jorge de Lima só foi publicado em 1923, mas José Lins já o teria lido antes, em 1922, podendo assim escrever uma resenha sobre o mesmo em 19 de maio deste ano. O próprio autor do artigo acusou o recebimento do livro: “Jorge de Lima mandou, para mim, que levo a vida pela urgência irrefreável de meus nervos, o seu livro inédito, o seu grande livro de mestre”106. O motivo pelo qual Jorge de Lima, provavelmente sem nunca ter se encontrado com José Lins 107 , mandou seu livro inédito para este é um caso que deixamos para investigação futura. Talvez, o poeta alagoano, conhecendo os artigos de crítica literária de José Lins no Jornal do Recife, periódico que tinha um grande poder de circulação pelos estados vizinhos a Pernambuco (Jorge de Lima, na época, residia em Maceió), tenha mandado um exemplar de sua obra para ser resenhada pelo acadêmico paraibano, com o interesse de obter maior projeção para o seu nome e escritos. Para não ficarmos em especulações, o fato é que José Lins resenhou o livro, avaliou suas qualidades e enalteceu o autor: Escrito em ótima gramática e sobre assuntos difíceis, A comédia dos erros é um livro, e sobretudo um livro que fica. O escritor aliou-se ao artista, em procurar e brunir o bloco, dando-nos assuntos versados, com ideias, levezas de ironia, centelhas de estilo. [...] Agradam, embora a aspereza dos assuntos. Além da obra, propriamente de cultura há no livro de Jorge de Lima a saliência bem elevada de um observador de tipos. A qualidade de detalhes, a força de prender a atenção e dissecar 108 . E o crítico literário fez mais do que saudar o livro, exaltar suas qualidades. Pensou o seu conteúdo, sua forma, estilo e agudeza de análise. Isso por que José Lins assumia a figura de saber que trata da literatura, que pondera sobre a linguagem, sobre o modus operandi do autor acerca do qual discorria. O tratamento que o estudante paraibano deu ao seu objeto foi o tratamento de um crítico literário. José Lins, pretendente a crítico literário, como muitos jovens talentos que atuavam na imprensa da época, resenhou livros de amigos. Na imprensa nacional das primeiras décadas do século XX era muito comum a prática de resenhar obras de amigos ou conhecidos. As primeiras notas sobre um texto, geralmente, saiam como um gesto de amizade ou consideração, ajudando, assim, a promoção de escritores-amigos ou conhecidos. Com o estudante paraibano não foi diferente. No Jornal do Recife, em 18 de Junho de 1922, vemos 106 REGO, José Lins do. Op. Cit., 2007, p. 204. Grifos nossos. 107 No artigo, depreendemos que José Lins ficou sabendo de Jorge de Lima através de Jayme de Altavilla e Mario Marroquim. 108 REGO, José Lins do. Op. Cit., 2007, p. 205-206. 54 uma análise sua sobre o livro Reflexões de uma cabra de José Américo de Almeida, autor paraibano que José Lins conheceu em 1919, quando ainda tinha 18 anos e acabara de entrar na Faculdade de Direito do Recife. Sobre seu conterrâneo paraibano, José Lins apontou que era “um mestre de estilo, o mais elegante da publicística paraibana”109. Sobre o livro: é o seu primeiro estudo de costumes sertanejos. Está ainda sem as linhas e os traços precisos dos hábitos patriarcais destes recantos bárbaros. José Américo fez realizar esta obra, dando-nos o carrancismo paterno com as suas exigências medonhas. É a vida originalíssima dos sertões que ele vai nos oferecer 110 . Mesmo sendo livro de um amigo, de alguém que admirava muito e de quem muito se aproximou, José Lins não se eximiu de fazer uma crítica, acerca da ausência dos hábitos patriarcais dos personagens sertanejos. Outro amigo que teve seu livro comentado foi Olívio Montenegro, erudito promotor paraibano que José Lins conheceu nos seus primeiros tempos na Faculdade, mais precisamente em 1918. Na verdade, Olívio Montenegro, até o contato com Gilberto Freyre, foi o grande mentor intelectual do futuro escritor paraibano. Dono de uma grande erudição literária, conhecendo, sobretudo, a literatura francesa, o dr. Olívio indicava muitas leituras para o jovem estudante José Lins. Nas numerosas cartas trocadas entre ambos, observamos uma densa discussão sobre literatura e arte, bem como recomendações de leituras feitas pelo promotor ao estudante. Não é a toa que o primeiro romance de José Lins vai ser dedicado, entre outros nomes, a Olívio Montenegro. Precisa ainda ser melhor estudada a relação entre estes dois paraibanos 111 . Em 1922, Olívio Montenegro publicou seu romance Os irmãos Marçal, livro que obteve logo a aprovação de José Lins, também no Jornal do Recife, em 20 de agosto de 1922. O estudante paraibano diz ter-se encantado com o personagem principal do romance, Farmâncio Marçal, “que Olívio não criou, mas passou para a ficção, é um tipo universal. Vive em toda parte onde houver a elementar liberdade de locomoção e uma porção de homens a sofrer”112. O autor elogiou também o poder de tocar o leitor que o romance/romancista possuía. Os irmãos Marçal seria um romance que, ao final da leitura, o leitor acabaria sensibilizado, emocionado com a história dos consanguíneos Marçal. Na sua análise da obra, 109 REGO, José Lins do. Op. Cit., 2007, p. 211. 110 REGO, José Lins do. Op. Cit., 2007, p. 212. 111 No museu José Lins do Rego, localizado na Fundação Espaço Cultural da Paraíba (FUNESC), João Pessoa, encontram-se 132 cartas catalogas de Olívio Montenegro a José Lins do Rego. Tal catalogação foi feita pelo projeto arquivístico de Sônia Maria Van Dijck. 112 REGO, José Lins do. Op. Cit., 2007, p. 236. 55 além de considerar os personagens, José Lins pensou também no leitor, na maneira como este se relacionaria com o objeto de sua leitura. O lugar de sujeito de crítico literário, que viemos nas últimas páginas mostrando para desmistificar a representação freyreana de que a vida de José Lins antes de 1923 reduzia-se ao mero panfleto político, à subliteratura de jornalismo político, foi ocupado não só no Diário do Estado e no Jornal do Recife. No Dom Casmurro, semanário assumidamente panfletário, como já apontamos, o acadêmico paraibano também encarnou aquela figura de saber. No jornal de criação conjunta com Osório Borba, José Lins comentou livros de Lima Barreto (06. 11.1922) 113 e Jorge de Lima (23.02.1923) 114 . Particularmente significativo, é o artigo Enquanto os futuristas de S. Paulo fazem ridículos, uma geração no Rio salva a cultura brasileira (13.11.1922). Como o título sugere, temos aqui uma crítica ao modernismo paulista, ligado aos Andrades. Para o estudante da Faculdade de Direito do Recife, Enquanto a mocidade de uma cidade industrial inventa originalidades fáceis a custo de escândalo e ignorância, um grupo de pensadores adolescentes planta a Árvore Nova, alimentando-a de talento, de novidade e cultura. A mocidade paulista entendeu que ia revolucionar o mundo. É bem uma ingênua vontade esta 115 . Ao invés de louvar os pretensos feitos revolucionários do grupo da Klaxon 116 , José Lins não só desconfiou dos anseios modernistas, como os viu como algo ingênuo e infantil. Na verdade, o futuro romancista discordou do programa modernista. Ao invés de se “arrasar com a cultura brasileira”, urgiria “uma nova descoberta do Brasil ao Brasil. Porque país no mundo se desconhece mais”117. E quem estava promovendo esse descobrimento não eram os modernistas paulistas, mas sim um grupo de jovens ligados a Árvore Nova, revista “que tem um programa de bandeirante: descobrir especiarias Brasil afora”118. Assim, o jovem crítico literário se posicionava no caloroso debate existente no Recife dos anos 1920, debate que distribuía uns a favor do modernismo (como o jornalista Joaquim Inojosa) e tantos outros 113 REGO, José Lins do. Op. Cit., 2007, p. 247. 114 REGO, José Lins do. Op. Cit., 2007, p. 251-252. 115 REGO, José Lins do. Op. Cit., 2007, p. 248. 116 Foi uma revista paulista, de periodicidade mensal, que circulou entre os anos de 1922-1923 e que abrigou em seu interior alguns renomados defensores da arte moderna: Mario de Andrade, Oswaldo de Andrade, Tarsilia do Amaral, Anita Malfatti, Sergio Buarque de Holanda, entre outros. Mais informações em: . Acesso em 27 fev. 2013. 117 REGO, José Lins do. Op. Cit., 2007, p. 249. 118 REGO, José Lins do. Op. Cit., 2007, p. 250. 56 contra 119 . José Lins colocou-se como crítico desse movimento, levantando a bandeira de uma revista carioca, liderada por Tasso de Silveira e Rocha de Andrade. Mais do que destacar a posição em relação ao modernismo, o que queremos sublinhar com este polêmico artigo é o fato de que, em um jornal assumidamente panfletário, apontado por Gilberto Freyre como a grande prova de que seu amigo paraibano antes de conhecê-lo estava atolado na politicagem, José Lins estava construindo um lugar de sujeito de crítico literário. Ao mesmo tempo em que fazia suas campanhas políticas e práticas boêmias, o acadêmico paraibano realizava a atividade de quem pensava e se preocupava com as Letras nacionais. Como já indicamos, o boêmio, o ativista político e o crítico literário conviviam no indivíduo José Lins do Rego. A atuação deste nos diversos jornais aqui mostrados, comprovam que não se pode reduzir, como fez Gilberto Freyre, o período acadêmico daquele a atividade de panfletário político. O fato do mestre de Apicucos o fazer indicia, na verdade, uma estratégia de consagração dele mesmo, de se colocar como aquele que retirou José Lins da politicagem e o levou para o caminho das letras. Não foi bem isso o que aconteceu. Como esperamos ter mostrado, José Lins, ao mesmo tempo em que praticava a boêmia e o jornalismo político, construía-se também como crítico literário, desde pelo menos seus primeiros artigos como colaborador da imprensa, ainda no Diário do Estado, onde contava com uma sessão própria, alimentada semanalmente. Antes de conhecer Gilberto Freyre, nos idos de março de 1923, José Lins não era um reles estudante, alguém sem existência literária, esperando um mestre para lhe revelar o caminho a seguir, como os textos de Freyre querem nos fazer crer. Embora adotasse a boemia e o panfletarismo político, ele não se reduzia a isso. O perfil intelectual de José Lins, que viemos neste tópico tentando retraçar, contempla, além do comportamento boêmio e da militância sócio-política, a figura de saber de crítico literário. Ainda que o romancista consagrado, ao relembrar seus primeiros contatos com Gilberto Freyre, afirme que “não tinha existência literária” antes do encontro com este, o que se evidencia, a partir de seus artigos tanto no jornal paraibano como na imprensa recifense, é a existência de um atividade literária, ligada ao oficio jornalístico de crítico literário. O fato de José Lins, nos idos de 1923, quase lançar um livro sobre Múcio Leão, comprova que vinha praticando exercícios de crítico literário e era com este lugar de sujeito que tentava se projetar no meio intelectual pernambucano. Como quem escreveu regularmente desde os 18 anos de idade para um jornal, contribuiu em três jornais na imprensa pernambucana, resenhou vários livros, participou de 119 Para uma reconstrução e análise deste debate, ver: AZEVEDO, Neroaldo Pontes de. Op. Cit., 1996. 57 algumas polêmicas literárias e quase lançou um livro sobre um literato pode dizer que não tinha existência literária? José Lins do Rego tinha, sim, existência literária, ainda que ele mesmo tenha tentado negar, reforçando a versão freyreana de ser o responsável por seu aparecimento no mundo das Letras. Sylvio Rabello, pernambucano que vivenciou os anos 1920 em Recife, colaborando em vários jornais, apontou que José Lins estava entre “os nomes de maior influência em Pernambuco, no que diz respeito a vida intelectual”120. Assim, outras pessoas perceberam a existência literária de José Lins. Não foram apenas suas farras noturnas e mobilizações políticas que chamaram a atenção do meio letrado recifense. 1.2 Unidos pela amizade e pela tradição: José Lins e Gilberto Freyre Um mundo sem avós, como uma casa ou uma família onde não há avós, é um mundo incompleto 121 . Com a nossa discussão anterior, não queremos negar a influência que Gilberto Freyre exerceu sobre a vida e obra de José Lins do Rego. Ao assinalarmos que o futuro romancista paraibano, antes do contato com Gilberto Freyre, não era só um panfletário político, interessava-nos muito mais cartografar o perfil intelectual do jovem paraibano do que recusar a ação influenciadora de seu grande amigo pernambucano. O mesmo podemos apontar sobre a estratégia de consagração freyreana, existente nos escritos sobre José Lins: ela também não se presta para recusar o impacto que o escritor de Apipucos teve na vida e obra de José Lins. Um quadro histórico dos anos que o escritor paraibano passou no Recife não estaria de todo completo se faltasse a relação entre o estudante paraibano e o jovem pernambucano recém- formado no estrangeiro. Tal é do quê nos ocuparemos nesta sessão. A relação entre Gilberto Freyre e José Lins marcou uma amizade de dois escritores pouco vista entre os intelectuais brasileiros. Os estudiosos dos dois autores são unânimes em apontar o sentimento fraterno que existiu entre um e outro. Os quatro estudos biográficos sobre Freyre, por exemplo, destacam a relação do autor de Sobrados e Mucambos com o neto de senhor de engenho 122 . O principal estudo sobre José Lins, a tese de livre docência de José 120 Os outros nomes citados foram Gilberto Freyre, Oliveira Lima e Farias Neves Sobrinho. BARROS, Souza. Op. Cit., 1985, p. 303. 121 Carta de Gilberto Freyre para José Lins do Rego de 02 de agosto de1931. 122 MENESES, Diogo de Melo. Gilberto Freyre. Rio de Janeiro: ECB, 1944, 57-64. CHACON, Vamireh. Gilberto Freyre: uma biografia intelectual. Recife: Companhia Editora Nacional, 1993. PALLARES-BURKE, M.L.G. Gilberto Freyre: um vitoriano nos trópicos. São Paulo: Unesp, 2005, p. 167-178. LARRETA, Enrique R.; GUILLERMO, Giucci. Gilberto Freyre: Uma biografia cultural, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, p. 232-242. 58 Aderaldo Castelo, defendida em 1957 e publicada em 1961, também sublinhou, em longas páginas, a relação do futuro romancista com o sociólogo de Apipucos. Assim, apontar a amizade entre Freyre e José Lins já é quase um lugar comum, quando se trata de pensar a relação entre os dois autores. Porém, para o analista que tenta pensar como um influiu no outro, esta tão declarada amizade constitui-se em um certo problema. Isso porque o sentimento fraternal entre Gilberto Freyre e José Lins permeia tudo o que um falou sobre o outro, sobretudo quando se trata dos escritos do pernambucano sobre o paraibano. Quando analisamos os textos de José Lins sobre Gilberto Freyre é imprescindível termos em mente a grande amizade que os uniu, o sentimento fraterno que os enlaçou. Uma breve seleção de trechos das cartas que José Lins enviou para seu grande amigo recifense servirá para percebermos a intensidade desta amizade. Em uma carta datada de 1926, José Lins expressou que tinha Freyre sempre como parte de todos os seus pensamentos, seja nas horas de alegria ou nas de tristeza 123 . Após três anos do intenso convívio entre ambos, que se iniciou no ano de 1923, José Lins ainda tinha o amigo recifense como alguém especial, de quem estava sempre a lembrar. Em 1933, assim se declarava: “Li sua carta e ela me fez pensar nos tempos do começo de nossa amizade quando eu recebia as suas cartas e lia para mais de duas vezes, tempos estes que foram os maiores de minha vida”. Da amizade com Gilberto Freyre, José Lins guardava grande estima e saudade, quiçá até uma necessidade vital para sua existência. É o que identificamos em vários trechos de diferentes cartas: Cada dia que se passa mais eu sinto que não poderei viver longe de V. Estes meus meses que passei aqui com V. foram os mais deliciosos de toda a minha vida. E sem a sua companhia eu teria ido ao fundo 124 . Estou ansioso que V. chegue. Só com você eu me sinto seguro, só com V. eu sei resolver as coisas 125 . Faltando V. como pode aguentar a vida este seu fraco amigo? [...] Sem V., como poderei resistir aos meus desesperos? Você ainda é nos meus momentos de agonia a imagem que me chega. Eu digo quando me vem chegando a crise: Gilberto acha que tudo isto é besteira, que eu não tenho 123 Carta de José Lins do Rego a Gilberto Freyre, sem dia e mês, de 1926. É oportuno deixarmos registrado desde já que José Lins, na sua correspondência com Freyre, tinha o hábito de não datar o mês e o dia da carta, identificando apenas o ano. 124 Carta de José Lins do Rego a Gilberto Freyre de 1935, sem dia e mês. 125 Carta de José Lins do Rego a Gilberto Freyre de 1937, sem dia e mês. 59 nada. E o equilíbrio volta. Sem o grande amigo, a minha vida vira em nada 126 . Os trechos acima, destacados de diferentes cartas, dão o tom do sentimento que José Lins dedicava afetuosamente a Gilberto Freyre. O paraibano estava ligado por uma afetividade enorme ao seu amigo pernambucano, ao ponto de confessar sua dependência em relação ao confrade. Na amizade com Gilberto Freyre, José Lins via seu “maior patrimônio de vida”127. Ao longo de toda sua vida, o escritor paraibano conservou esse patrimônio. A amizade entre os dois foi interrompida tragicamente no ano de 1957, devido ao falecimento do escritor paraibano. José Lins tinha apenas 56 anos de idade. Quando de sua morte, Gilberto Freyre lamentou, afirmando que “sabendo-o morto, sinto-me como que ferido de morte. E com certeza, incompleto. Com êle morto, sou um vivo incompleto”, e em seguida testemunhou para a posteridade sua fraterna relação com o falecido romancista: Aquele a quem mais me abandonei e aquele de quem mais recebi. Aquele em que mais confiei e aquele que mais confiou em mim. Aquele em quem eu mais me senti e aquele que mais se sentiu em mim. Aquele que, vivo, era parte da minha vida e morto é o comêço da minha morte. Mais do que isto: o comêço da morte de toda uma geração. 128 José Lins e Gilberto Freyre, um era parte do outro, pois foram companheiros de vida ao longo de muitos anos, ainda que afastados espacialmente. Durante a amizade, partilharam ideias, posições políticas, anseios e decepções, por isso que, como costumava apontar Freyre, a vida de um muito tem da vida do outro. Vale a pena destacarmos que na correspondência entre os dois, não foi só o paraibano que externou seu apego ao pernambucano. Gilberto Freyre também, em vários trechos de cartas, declarou sua amizade ao amigo. Fiquemos apenas com um trecho, bastante elucidativo: Eu hoje já não me correspondo com quase ninguém, tenho deixado que a distancia va empallidecendo muita amizade feita por este mundo afora, onde tenho deixado alguma coisa de mim. [...] Mas isso para dizer o seguinte: que estimaria que também a sua amizade não fosse embora da minha vida, so por umas miseráveis leguas de um estadosinho do Brasil a outro. Escreva-me sempre uma linha ou outra. Falta V., sua companhia, sua conversa, sem V. o Recife sempre me parece incompleto 129 . 126 Carta de José Lins do Rego a Gilberto Freyre de 1938, reproduzida em: FREYRE, Gilberto. Op. Cit., 1987, p.62. 127 Carta de José Lins do Rego a Gilberto Freyre, de 1943, sem dia e mês. 128 FREYRE, Gilberto. José Lins do Rêgo. Diário de Pernambuco. Recife, 15 set. 1957. 129 Carta de Gilberto Freyre a José Lins do Rego, de 31 de janeiro de 1927. 60 Portanto, uma grande amabilidade marcou a relação entre José Lins e Gilberto Freyre, um sentimento de amizade e admiração mútua, ainda que mais da parte do primeiro para o segundo. Termos isso em mente é muito importante, pois a influência do futuro sociólogo se deu a partir desta relação de intensa afeição com José Lins. Daí porque este dizia que Gilberto Freyre era ao mesmo tempo seu mestre e amigo. Sem dúvida, tanto para José Lins quanto para Gilberto Freyre, a amizade partilhada foi uma via de construção de si, ou seja, através deste intenso contato, ambos os sujeitos puderam se constituir de um dado jeito, com um tal pensamento, com uma tal sensibilidade. Amigos desde a juventude, compartilhando ideias, sentimentos e experiências, desfrutando diversos contatos e trocando textos, os dois homens foram moldando suas personalidades a partir de uma fraterna convivência, foram urdindo alguns pontos de suas individualidades. A amizade não só os uniu como também os construiu e os constituiu. A amizade entre duas pessoas, quando realmente forte, como a que existiu entre José Lins e Gilberto Freyre, acaba por se tornar uma experiência constitutiva dos próprios indivíduos envolvidos. Por ela formam-se não só laços e afetos, como também subjetividades. Conforme veremos, muitas das ideias e projetos de José Lins nasceram a partir de seu contato com Gilberto Freyre. A ligação entre os dois escritores era tão forte que a crítica a um acabava resvalando no outro. É o que inferimos das irônicas palavras de Austro-Costa: Se você (Gilberto Freyre), gingando, passa Da irônica população Por entre o sorriso anônimo O Lins também sai gingando Entre dentes exclamando - Mestre! Meu mestre e pseudônimo 130 . Tais provocações confirmam as palavras de José Lins no famoso prefácio do livro Região e Tradição, quando apontou que “caí na imitação, no mero pastiche”131 (isso em relação a Gilberto Freyre). Na verdade, quando este chegou ao Recife, em 08 de março de 1923, aportava como um jovem intelectual relativamente conhecido na capital pernambucana, desfrutando de certo prestígio e boa reputação intelectual, em razão dos seus artigos publicados aos domingos no Diário de Pernambuco. O jovem José Lins conhecia a relativa fama do rapaz que saiu adolescente para terminar seus estudos na América. Segundo os 130 Ao Freyre com Ypsilon. A Pilhéria, 08 de Setembro de 1923. Reproduzido e consultado em: AZEVEDO, Neroaldo Pontes de. Op., Cit., 1997, p. 131. 131 FREYRE, Gilberto. Prefácio de José Lins do Rego. In:______. Região e Tradição. Rio de Janeiro: Record, 1968, p. 22. 61 manuscritos da biografia feita por José Lins sobre Gilberto Freyre 132 , exposto por Diogo de Mello Meneses, o jovem paraibano teria ouvido falar de Gilberto Freyre em 1916, quando ele se dirigiu à Paraíba para proferir uma conferencia sobre “Spencer e o problema da educação do Brasil”133. Depois daí, quando foi para o Recife, é provável que José Lins tenha tornado-se um leitor dos artigos da série “Da outra América” (publicados no Diário de Pernambuco entre 03 de novembro de 1918 e 20 de agosto de 1922), da lavra de Gilberto Freyre. Figura 4: Olívio Montenegro (em pé), José Lins e Gilberto Freyre. Foto de 1930 Acervo da Fundação Gilberto Freyre Os primeiros dias da estadia de Gilberto Freyre no Recife confirmaram a imagem de um jovem engajado com as questões socioculturais de sua cidade natal. Antes mesmo de voltar para o Brasil, quando escrevia seus artigos dos Estados Unidos, Freyre intervinha em algumas querelas que ocorriam na capital de Pernambuco, mediante seus artigos jornalísticos, os quais eram marcados por um pensamento tradicionalista, que valorizava as árvores da cidade, as ruas estreitas e “à vontades” do Recife Antigo134, bem como seus nomes poéticos e históricos, além dos romances tradicionais e regionais de Mario Sette 135 . Esse jovem 132 Por volta de 1927, mais ou menos, José Lins iniciou um projeto de biografia sobre Gilberto Freyre. Porém, o objeto da biografia, apesar de no início ter apoiado a ideia, mostrou-se contrário, impedindo que seu amigo paraibano viesse a publicar o material. José Lins cumpriu a vontade de Freyre, mas guardou os manuscritos. Ver: BARBOSA, Francisco de Assis. Op. Cit., 1991, p. 63. 133 MENESES, Diogo de Melo. Trechos de um livro inédito de José Lins do Rego. In:____. Gilberto Freyre. Rio de Janeiro: ECB, 1944, p. 62. 134 Segundo o historiado Raimundo Arrais, nas décadas iniciais do século XX, uma série de escritores e intelectuais que tinham uma relação afetiva com o Recife criaram uma espacialidade imaginária, o Recife Antigo ou o Recife de outrora, situada temporalmente nas décadas finais do século XIX e anos iniciais do século XX. Mais informações em: ARRAIS, Raimundo. A cidade escrita: o Recife do século XIX visto pelos escritores do século XX. In:______. O pântano e o riacho: a formação do espaço público no Recife do século XIX. São Paulo: Humanitas/FFLCH/USP, 2004, p. 21-97. E ARRAIS, Raimundo. A capital da Saudade. Recife: Bagaço, 2006. 135 Para uma apreciação em relação ao comportamento de Freyre quando de seu retorno ao Recife, ver: AZEVEDO, Neroaldo Pontes de. Op., Cit., 1996, p. 125-143. 62 pernambucano de 20 e poucos anos de idade que defendia o passado, que escrevia e falava em nome da tradição, a despeito de ter conhecido e se formado nos centros da modernidade, encontrará grande acolhimento e ressonância em um outro jovem, em Jose Lins. Como o tradicionalismo freyreano foi legado ao estudante paraibano? Eis a questão chave deste tópico. Vinte dias após o reencontro de Gilberto Freyre com o Recife, o ilustre recém-chegado foi homenageado pela sua antiga escola, o Colégio Americano Batista, onde estudou até 1918. Tal escola, na figura de seu diretor, que foi também professor de Freyre, França Pereira, organizou uma singela festa, com “chá, refrescos e bolinhos”136. Após ser apresentado pelo seu antigo mestre como “uma das mais fortes organizações intelectuais da nova geração”, foi dada a palavra ao homenageado da tarde, o qual fez bem mais do que agradecer a solenidade. Com um discurso curto, porém bastante intenso, Freyre aproveitou a ocasião para se dirigir à “velha guarda” e à nova geração com palavras de incentivo à ação social. Segundo o jovem orador, o fim da Grande Guerra lançava a sociedade para um certo “imperativo categórico” (expressão kantiana usada por Freyre), para uma necessidade histórica que adolescentes, jovens e adultos deveriam se engajar. Nas palavras do tradicionalista: O que se deve fazer, o que os da geração nova temos a fazer é, com aquele espírito de caridade de que se não fartar de recomendar São Paulo e, ao mesmo tempo, com a firmeza de São Francisco de Sales, assumirmos as responsabilidades de reatar a tradição do Bom Senso, a tradição de nossos avós, há cinquenta anos interrompida 137. O dever da sociedade pós I Guerra, a fim de reconstruir o mundo em ruínas, consistiria em se realinhar com a tradição, com o passado que a sociedade burguesa transformou em mera etapa superada pela linha do progresso. Aos moços e moças, e aos adultos também, Freyre recomendava o brado do Bom Senso (grifado com iniciais maiúsculas), visto como algo precioso, que nada mais seria do que o que já estava estabelecido, o que já foi normatizado, instituído. Era a tradição protegida das vicissitudes da instável sociedade moderna. O alvo da crítica freyreana era claro: a sociedade moderna, ela seria o inimigo a combater, em nome da tradição. Para esta ser preservada, seria necessário o combate contra 136 FREYRE, Gilberto. Gilberto Freyre (notícia de homenagem com discurso). In:______.Tempos de Aprendiz. São Paulo: IBRASA; INL, V.2. 1979, p.378. 137 FREYRE, Gilberto. Op. Cit., 1979, p. 376. 63 às forças da disciplina social, contra o “rousseanismo” que empolgou desastrosamente nossos predecessores e é a raiz de tantos males moderno; contra o cientificismo com a sua concepção estritamente objetiva da realidade; contra a mania do modernismo a todo pano; contra a ganância material; contra o exagerado individualismo. [...] Estúpido seria procurarmos, neste momento, o desgarramento das tradições e das relações naturais 138 . Os principais “ismos” da modernidade, valores tão declamados pela sociedade burguesa, afiguravam-se a Freyre como as causas do declínio social. Cientificismo, modernismo (não só enquanto movimento estético), materialismo e individualismo eram os agentes responsáveis pela falta de bom senso na sociedade e pelo declínio das tradições, pelo rompimento com o passado. Como tantos autores que presenciaram minimamente a trágica e traumática experiência da Grande Guerra, Gilberto Freyre também expressava um pessimismo quanto ao futuro da sociedade moderna 139. Para o jovem que voltava guardando nos “olhos a triste paisagem dos cemitérios da guerra, milhares de cruzes de pau preto”, o futuro deveria pronunciar um retorno ao passado, fazer uma curva em direção à tradição. À teoria do Progresso, mito iluminista que assinalava que a humanidade caminhava sempre para um por vir melhor do que o presente, Freyre reservava uma enorme falta de fé. O futuro não estaria à frente, mas sim atrás, no passado, na sociedade vivida pelo seu avô, quando a modernidade era apenas um desejo. Quando da conferência proferida no Colégio Americano Batista, nos dias finais de março, não sabemos se José Lins já conhecia pessoalmente Gilberto Freyre nem tampouco se estava presente na mesma. No entanto, é plausível supormos que o acadêmico paraibano tomou conhecimento da palestra, uma vez que esta foi publicada no Diário de Pernambuco, em 28 de março de 1923. Como um jornalista que colaborava em dois jornais recifense e que frequentava muito a Rua do Imperador, onde o Diário de Pernambuco se localizava, é provável que José Lins tenha lido o discurso de Freyre neste jornal. Um dos jornais mais antigos da praça, o Diário de Pernambuco era muito lido pela sociedade recifense, sobretudo pelos jovens que cooperavam na imprensa. Apologia pro generatione sua 140 , conferência realizada no Teatro Santa Rosa, na Paraíba, nos primeiros dias de abril de 1924, foi uma espécie de aprofundamento do discurso 138 FREYRE, Gilberto. Op., Cit., 1979, p. 377. 139 Sobre o pessimismo reinante no pós I Guerra, ver: HOBSBAWM, Eric. A era da catástrofe. In:_____.Era dos extremos. São Paulo: Companhia das letras, 1995, p. 29-223. 140 Nossa análise dessa conferência foi baseada no texto original, e não no texto republicado em Região e Tradição, pois o que foi colocado neste continha algumas modificações, feita na época da publicação do livro, 64 proferido por Gilberto Freyre no seu antigo colégio, nos primeiros meses do ano de 1923. O responsável pela conferência foi Carlos Dias Fernandes, jornalista paraibano diretor do jornal Diário do Estado, que convidou Gilberto Freyre para a palestra. Porém, a publicação de Apologia pro generatione sua na imprensa paraibana, em 05 de abril no periódico A União, ficou aos encargos de uma comissão, a qual contava com os seguintes nomes: Carlos Dias Fernandes, José Américo de Almeida, Adhemar Vidal, Antenor Navarro e José Lins do Rego 141 . Tal qual a primeira conferência, a palestra na Paraíba também foi marcada por um tom de incitação à ação social. Tratava-se também de um chamado para a atuação, para o engajamento da nova geração nos problemas do presente. A novidade em relação ao discurso proferido no Colégio Americano Batista residiu no uso da noção de geração. Em toda sua fala, do começo ao fim, o pernambucano operou com a ideia de que os jovens de 20 e poucos anos de idade do ano de 1924 estariam irmanados por um dever comum, dado pelo destino também comum criado pelo pós-guerra. Na mocidade brasileira deveria existir uma “consciência de geração”, ou seja, a consciência de que o presente problemático, herança da I Guerra, conspiraria para que todos os jovens dessem as mãos para um “programa de geração”. Freyre comparou a noção de geração a uma embarcação cujos homens partilham os mesmo temores em relação ao mar e os mesmo sonhos em direção à terra firme. Os adolescentes que viveram o conflito bélico de 1914 formariam uma geração, a mocidade do pós-guerra, tendo, assim, uma série de compromissos e atitudes em comum para realizarem. Com tal compreensão, Gilberto Freyre se dirigiu a mocidade presente no recinto artístico do Santa Rosa, para abordar a vida de dois jovens estrangeiros: Randolph Bourne (1886-1918) e Ernesto Psichari (1883-1914), dois rapazes de diferentes nacionalidades (um estadunidense e outro francês, respectivamente) mas que enfrentaram seu presente e tiveram breves vidas. Ao falar desses dois homens, Freyre disse ter “a impressão de falar de compatriotas. Elles fundaram com o sangue a pátria que é a geração dos que hoje somos os homens de vinte e de trinta anos”142. A impressão de falar de compatrícios foi dada pelo fato de que tanto Bourne quanto Psichari foram moços que, segundo Freyre, tiveram em “agudo o em 1941. Encontramos o texto original no site da fundação Gilberto Freyre. Disponível em: . Acesso em 15 mar. 2013. Tal opção explica a ausência de páginas na conferência e, consequentemente, nas nossas referencias bibliográficas. 141 Tal informação foi obtida a partir do estudo de FIGUEREDO JUNIOR, Nestor. Pela mão de Gilberto Freyre ao menino de engenho. João Pessoa: Ideia, 2000, p. 48. 142 FREYRE, Gilberto. Op. Cit., 1924. 65 espírito de geração, a consciência de geração”, de pertencer a uma juventude que deveria se engajar nos combates sociais. O visitante pernambucano teceu algumas considerações sobre Randolph Bourne e Ernesto Psichari, a fim de ressaltar a militância social de cada um. O primeiro, amante da discussão, da controvérsia, se insurgiu contra a tendência para o conforto mental característica das burguesias de ventre cheio. Ao pendor tão americano para as soluções materiais; ao patriotismo optimista, inimigo de qualquer esforço de introspecção ou crítica social, elle oppoz um espírito amigo, até à volúpia, das ideias, da especulação, da controvérsia, da claridade. Sobretudo da claridade. E agudo – tão agudo que a sua crítica dos vícios americanos de vida e de cultura foi uma como serie de incisões em madeira pôdre 143 . Bourne foi representado por Gilberto Freyre como um homem de ação, que se ocupava, para fazer suas críticas, não só de assuntos sociais e culturais, mas também de políticos e econômicos, relativos aos Estados Unidos. O liberalismo, na sua face política e econômica, não passou imune pela veia crítica do jovem estadunidense. Ernesto Psichari, neto do famoso intelectual francês Ernest Renan, também adotou uma postura de censura em relação a sua época. Gilberto Freyre dedicou mais tempo a falar sobre Psichari do que a Bourne. Isso porque o parisiense encarnaria o projeto freyreano já exposto no breve discurso pronunciado no Colégio Americano Batista, a saber: o repúdio ao presente moderno e burguês em nome da tradição. A trajetória de vida de Psichari, jovem que se alistou a contra gosto no Exército, seguindo pelo deserto africano, onde passou quase dez anos e ao final se reconciliou com a Igreja Católica Apostólica Romana e com o movimento reacionário francês, representado pela Action française, mostrou-se para Freyre como o retorno à tradição, a revalorização do passado que havia sido desvalorizado. Psichari seria o símbolo do “bom senso” e a encarnação do “espírito de ordem”. A partir daí o pernambucano desenvolveu a leitura de que em Psichari a reacção não foi só contra o pae; foi também contra o avô. Contra duas gerações. As duas gerações que principalmente constituíram na França o “stupide XIX éme siècle” de que nos fala Leon Daudet. [...] Dir-se- ia que o caso de Psichari voltando à ordem, à tradição, à continuidade histórica foi todo um drama intimo; que o avô Renan quebrara um dia em mil pedaços o crucifixo da família; e veio o neto e o recompoz. [...] Assim 143 FREYRE, Gilberto. Op. Cit., 1924. 66 voltou Ernesto Psichari a ordem de que sahira o avô, pela orgia da mesma inteligência. “Rectificou o avo”, disse Maurice Barrés144. Psichari se reencontrando com o passado, com a tradição, fez dele, segundo Freyre, os pais de seus pais, isto é, aquele que teve a missão de educar seus pais no retorno ao pretérito. O jovem francês materializou o conflito humano do filho se reconstruindo enquanto reacionário, contra o pai e o avô, símbolos de uma geração ávida por modernices: “Le père se disant nouveau, et, l’enfant, au contraire, fairsant office de vieil homme”145. Daí se apontar que o neto corrigiu o avô. Essa leitura de Randolph Bourne e, principalmente, de Ernesto Psichari, permitiu a Gilberto Freyre convocar seus companheiros de geração a um verdadeiro programa de (ger)ação, tal qual já tinha esboçado em pronunciamento público anterior. Por toda a parte o programa de pensamento e acção da mocidade é hoje um programa de rectificação. No Brasil, é preciso que rectifiquemos os falsos valores de que há cinquenta annos vivemos, reintegrando-nos no Brasil brasileiro dos nossos avós. Contra o ideal absorvente de transformar o paiz num vasto 202 de Jacinto, ideal que é desde a Republica a tendência, agora acentuada pela fartura de dinheiro, ergamo-nos, os novos homens do Brasil. Que exceda o conforto dos fogões a gaz, dos water closets de porcellana, da luz electrica, o ideal de cultura e de vida brasileira. Que a Nossa Senhora do Brasil tenha mais de Maria do que de Martha 146 . Mais uma vez, em uma performance pública, com um tom forte e apelativo à ação, Gilberto Freyre direcionou seus ataques à sociedade moderna, à sociedade dos confortos materiais, das inovações tecnológicas e das novas práticas e valores sociais, que no começo do século XX começava a se impor nas principais capitais do Brasil. Para o pernambucano, urgia combater tudo isso, em nome da tradição. Era preciso voltar ao tempo anterior à sociedade burguesa, ou seja, à época do Brasil patriarcal, suposto recôndito da tradição nacional. A referência ao avô cumpre a função de metáfora do passado e da tradição, sempre vista como mais familiar e acolhedora, tal qual os carinhos de um avô para com um neto. Freyre usou e abusou de metáforas familiares, a fim de sublinhar o caráter enternecedor do passado, cativando seus expectadores e leitores. Dessa forma, Gilberto Freyre propôs, em tom de manifesto, à mocidade de sua época, um programa não tanto de ação como de reação, reação contra os valores e práticas da 144 FREYRE, Gilberto. Op. Cit., 1924. 145 FREYRE, Gilberto. Op. Cit., 1924. Tradução livre: “O pai se dizendo jovem e o filho, ao contrário, fazendo o papel de homem velho” 146 FREYRE, Gilberto. Op. Cit., 1924. 67 sociedade moderna, contra a dita tendência moderna de desapego ao passado e a tradição, contra o que estava pretensamente naturalmente estabelecido. A conferência-manifesto conclamava para a defesa da ordem, do Bom Senso (grifado com iniciais maiúsculas), da tradição. Fora daí o Brasil estaria em um caminho antinatural, longe de sua essência, de seu verdadeiro rumo histórico. Caberia às novas gerações endireitar os trilhos da nação, fazendo a volta ao passado, passado que, com a República, vinha ficando cada vez mais para trás. É pertinente apontar que Gilberto Freyre valorizou bastante sua fala em terras paraibanas. Duas cartas a dois dos seus amigos paraibanos se prestam para apontarmos bem isso. Em carta de 26 de abril de 1924 a Olívio Montenegro, se expressou Freyre: Infelizmente da conferência só me resta o borrão. Um borrão indecifrável. Por isso não o envio. O MS, este segue para a impressão em Paraíba. Uma vez impresso o trabalho, V. será um dos primeiros a quem enviarei um exemplar – com a minha simpatia e o meu afeto. Essa conferência representa um dos meus melhores esforços – talvez o melhor pela sua sinceridade e pela sua tensão mental e – mais que isso – espiritual. É para poucos. Dos ouvintes, três ou quatros a perceberam. Dos leitores, quase o mesmo número a perceberá. Não digo isso por vaidade, Olívio. Digo isto por sinceridade. E talvez ali esteja antes um defeito a corrigir que uma virtude a continuar – esse meu limitado poder de comunicação 147 . Como se depreende do trecho bastante eloquente, Freyre teve na época toda uma estima pela sua conferência, vendo nela muito mais do que um mero discurso em público. De fato, como esperamos ter mostrado, a palestra no teatro representou tanto uma sofisticação de ideias que vinha sendo trabalhadas como um verdadeiro manifesto para uma ação tradicionalista, ação essa que será desenvolvida mediante a criação do Centro Regionalista do Nordeste, em 1924, órgão “defensor” (inventor?) do passado e das tradições desta região148. A conferência marcava, de uma maneira pública, aberta e convidativa, a guinada freyreana para o tradicionalismo, para a defesa do passado. Duas cartas de Gilberto Freyre para José Lins, uma das pessoas responsáveis pela publicação da conferência, indiciam também a importância desta. Em 14 de junho de 1924, o pernambucano indagou: “que resolveram sobre a conferência? Tinham outro papel? Aquelle papel fino não serve. No caso de não haver do outro quero que me remettam o MS – conforme telegraphei e escrevi ao Adhemar”149. Dois dias depois, reafirmou sua posição: “não posso 147 FREYRE, Gilberto. Cartas do próprio punho sobre pessoas e coisas do Brasil e do estrangeiro. Recife: MEC, 1978, p. 225. 148 Para uma análise deste movimento, conferir: AZEVEDO, Neroaldo Pontes de. Op. Cit., 1996, p. 143-173. 149 Carta de Gilberto Freyre a José Lins Rego, 14 de junho de 1924. 68 transigir nos pontos allegados. Papel fino não serve.”150. As exigências do pernambucano não devem ser vistas como mero capricho, mas sim como expressão de cuidado para com algo valorado como de suma importância. A conferência carregava e transportava as ideias de Freyre. Era o suporte destas. Para a felicidade e tranquilidade de Freyre, a exigência de não se publicar em papel fino foi aceita. A conferência foi publicada, com tiragem de 200 exemplares numerados e contendo 29 páginas. Com ela, Gilberto Freyre aproveitou para homenagear seus amigos do estrangeiro, todos conhecidos quando de seu período de formação em universidades norte-americanas: Francis Butler Simkins, Regis de Beaulieu e Rudiger Bilden. As ideias tradicionalistas de tal conferência ecoaram fortemente nos ouvidos do jovem José Lins. Este deve ter ouvido com toda sua atenção aquelas palavras que exaltavam a ordem, o bom senso, a tradição, o avô, em uma palavra: o passado. No recém-bacharel formado em Ciências Jurídicas, o dr. José Lins, um jovem que ainda não sabia ao certo para onde drenar a seiva ainda virgem das suas forças, Apologia pro generatione sua significou a abertura para um caminho, a possibilidade de enveredar por um movimento. Nas próximas linhas, mostraremos o impacto que a conferência de Gilberto Freyre teve em José Lins. Para tal, analisaremos alguns artigos e trechos das cartas deste último para aquele. Como já apontamos, nos primeiros meses de 1924 José Lins veio a fixar-se no engenho de sua família, na Paraíba, após obter o grau de bacharel em Ciências Jurídicas, pela Faculdade de Direito do Recife. Mesmo recluso em uma vida rural, distante das cidades, o jovem recém-formado continuou ligado às letras. Em 01 de junho de 1924, passados quase dois meses da conferência de Freyre, a revista paraibana Era Nova 151 veio a público com um artigo de José Lins, intitulado Apontamentos sobre um livro de ensaios. Ocupando novamente o lugar de sujeito de crítico literário, José Lins discorreu sobre o livro Ensaios contemporâneos (1923), de Múcio Leão. A resenha foi, quase toda, em tom de censura, censura em relação ao fato do autor do livro ser um leitor assumido de Ernest Renan. Segundo José Lins, este não seria mais uma boa influência para as novas gerações. O tempo de se ler Ernest Renan teria passado, ficado nos anos 1870 do século XIX. É assim que o crítico 150 Carta de Gilberto Freyre para José Lins do Rego, de 16 de junho de 1924. 151 Era Nova foi uma revista quinzenal, ilustrada em papel couchê e publicada na Paraíba entre 1921-1926, o que lhe permitiu chegar ao número 100. Foi fundada por Severino Lucena em 27 de março de 1921. Mais informações em: SILVA, Laélia Maria R. da. Contribuição a história literária da Paraíba: um estudo da revista Era Nova. Dissertação. Programa de pós graduação em Letras da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), João Pessoa, 1980. 69 recomenda Ernest Psichari, autor francês apresentado por Freyre na conferência no teatro Santa Rosa 152 . Nesta resenha, José Lins colocou trechos que lembravam bastante as palavras do autor de Apologia pro generatione sua. É o que obervamos na seguinte passagem: Em 28 de fevereiro de 1924, centenário de Renan, Barrès falou oficialmente de Renan. Falou do seu mestre para exaltar-lhe os netos: Ernest e Michel Psichari, que vieram salvar o avô tão doente. Ernest Psichari, que além de “santo de igreja” foi um poeta da cruz, um poeta que purificou uma herança de erros, o único Renan que está vivo para o mundo e para Deus 153 . Freyre, na sua conferência, fez menção à palestra de Barrès em homenagem ao centenário de Renan, bem como apontou a possibilidade de Psichari ser, um dia, considerado “santo de igreja”154. A ideia de que Psichari foi “um poeta que purificou uma herança de erros”, expressada pelo crítico José Lins, também foi colocada por Gilberto Freyre em sua conferência. A intertextualidade existente entre o artigo de José Lins e Apologia pro generatione sua mostra claramente que algumas ideias desta foram veiculadas pelo acadêmico paraibano. José Lins parece ter também aceitado o elogio freyreno sobre Ernesto Psichari, ao ponto de admoestar um autor – Múcio Leão – para rever suas prioridades de leitura. Foi graças ao conhecimento de Psichari, tal qual lhe apresentou seu amigo pernambucano, que o crítico paraibano pôde repreender Múcio Leão e elaborar sua resenha crítica. No mês seguinte ao artigo sobre o livro Ensaios contemporâneos (1923), a Era Nova publicou mais um artigo de José Lins. Passados mais de dois meses da conferência de Gilberto Freyre, podemos ainda detectar ecos da mesma em mais um escrito de José Lins. O número de julho da Era Nova trouxe ao público mais uma resenha, agora sobre o livro A Paraíba e seus problemas (1923), do seu amigo conterrâneo José Américo de Almeida. A exemplo de outras resenhas sobre José Américo, seu autor elogiou as qualidades do seu amigo paraibano. Dessa vez, apontou a capacidade de descrever a paisagem da região, dando-lhe uma grande “cor local”, como grande mérito do autor e do livro. Porém, o que mais nos interessa nesta resenha é o diálogo que estabeleceu com a conferência de Freyre de 1924. Atentando-se para as semelhanças entre a análise de José Lins sobre o livro de José Américo e Apologia pro generatione sua, o primeiro elemento que nos chama atenção foi uso 152 Na biblioteca pessoal de José Lins, existente no museu José Lins do Rego, em João Pessoa, pudemos verificar a existência apenas de um único livro de Psichari, o Le voyage du centurion (1915). Porém, as páginas destes não estavam sublinhadas nem tampouco recortadas. O que pode indiciar a não leitura. 153 REGO, José Lins do. Op. Cit., 2007, p. 257. 154 FREYRE, Gilberto. Op. Cit., 1924. 70 do termo geração. Embora não use exatamente como Gilberto Freyre usou, a noção de geração apareceu claramente no artigo de José Lins. Não é à toa que a palavra aparece seis vezes no texto. Tal fato indica que o jovem paraibano estava pensando em termos de geração, estava começando a dedicar reflexões sobre essa noção. É o que podemos inferir das seguintes passagens: O Sr. José Américo de Almeida deixou em 1908 a Faculdade, para esconder- se de sua geração numa promotoria pública da Paraíba. Enquanto os seus colegas do café Ruy abriam a boca pelo Brasil afora, ele deixou-se ficar em silêncio 155 . O que mais me espantou, porém, no Sr. José Américo de Almeida, foi o seu ponto de vista de reacionário que ele sustentou para os de sua geração 156 . Faço justiça a essa geração que foi a geração de Augusto dos Anjos. Foi das melhores destes últimos 15 anos 157 . A conferência de Freyre parece ter chamado a atenção de José Lins para a noção de geração, fazendo este usar, de uma certa maneira, ainda que bem simples e distante da de que seu amigo pernambucano tinha usado. Pela última citação, observamos que José Lins chegou até a estabelecer juízos de valor sobre determinadas gerações de brasileiros e paraibanos. O que nos autoriza aferir o quanto tinha internalizado a noção de geração. Além do termo geração, outras palavras pronunciadas por Gilberto Freyre em sua palestra de 1924 apareceram no artigo ora em apreço. É o caso da expressão “espírito de ordem”. José Lins afirmou que José Américo possuía um “espírito de ordem”158. Quando tratou sobre a ordem, que o conterrâneo paraibano defenderia tão bem, o paralelo com Apologia pro generatione sua foi inevitável: A ordem imagina-se mesmo necessitando de sangue para a conquista sobre a desordem, aquela de que Psichari andava a suar sangue pelos desertos da África. Ordem que o neto de Renan vivia a pedir a Deus para si e para França. Neste sentido o mundo todo, depois da guerra, anda a sofrer uma crise bem profunda. [...] Nesta nossa ordem de aparência descobre-se o agudo crítico muito de braços cruzados diante do fato consumado, mais medo que respeito à autoridade 159 . 155 REGO, José Lins do. Op. Cit., 2007, p. 260. Grifos nossos. 156 REGO, José Lins do. Op. Cit., 2007, p. 261. Grifos nossos. 157 REGO, José Lins do. Op. Cit., 2007, p. 262. Grifos nossos. 158 REGO, José Lins do. Op. Cit., 2007, p. 266. 159 REGO, José Lins do. Op. Cit., 2007, p. 267. 71 Destaquemos que José Lins não só citou Psichari como veiculou novamente uma ideia cara à Freyre na sua conferência, a saber, a visão segundo a qual a realidade pós I Guerra era traumática e problemática para todos. O paraibano expressou também a necessidade da ordem, de se estabelecer uma certa ordem, perspectiva também expressada pelo autor de Apologia pro generatione sua. A impressão que nos fica é que José Lins estabeleceu um diálogo com esta palestra. Por isso a predominância de conceitos, autores e termos desta no seu artigo. Os dois artigos da Era Nova, analisados brevemente acima, revelam a repercussão que a conferência de Freyre no Santa Rosa obteve em José Lins. Este produziu dois artigos nos quais podemos aferir a influência daquela palestra. José Lins parece ter produzido seus artigos muito sob a luz das ideias expostas por Freyre em Apologia pro generatione sua. Todavia, um outro artigo, também publicado na Era Nova, explicíta não só os efeitos deste discurso, como marca também a adesão de José Lins ao tradicionalismo freyreano. Trata-se do texto divulgado pelo número de setembro de 1924 da Era Nova, intitulado Carta de uma geração aos srs. Gilberto Freyre e Jackson de Figueredo 160 . O texto todo se mostra como uma espécie de elogio e apoio às ações de Gilberto Freyre e Jackson de Figueredo 161 , dois homens que se afiguravam a José Lins como defensores da tradição e da ordem. O jovem paraibano, com essa carta-artigo, decidiu seguir o tradicionalismo, nos moldes recomendados por Gilberto Freyre. Como o título do artigo insinua, novamente José Lins operou a sua maneira com a noção de geração. Eis como se inicia o artigo: “eu quero falar aos srs., que foram os melhores espíritos de reação à revolta. E falando assim tenho a certeza que toda a minha geração teria a mesma ânsia de vos falar” 162. O autor, pensando novamente em termos de geração, visou alçar-se a condição de porta-voz de seus companheiros de faixa etária. José Lins avaliou estar representando uma geração, alguém que lhe dava a voz. E o final do texto confirma esse posicionamento: “a minha geração está de animo feito para convosco refazer o 160 REGO, José Lins do. Op. Cit., 2007, p. 271-278. 161 No início dos anos 1920, os dois escritores, um no Recife e outro no Rio de Janeiro, adotavam uma postura de engajamento social. Freyre, como é notório, praticava, por meio de artigos, a defesa da tradição e a crítica às intervenções urbana no Recife, bem como uma certa censura ao movimento Modernista de 1922. Já Jackson de Figueredo (1891-1928) praticava um jornalismo político, disparando contra o Tenentismo, a favor do presidente Artur Bernardes. Além desse combate, começou a partir de 1918 (ano de sua conversão ao catolicismo) a difundir princípios religiosos ligados a Igreja Católica. Nesse sentido, entre 1921-1922 fundou o Centro Dom Vital e o jornal A Ordem, órgãos voltados para defender princípios clericais contra as doutrinas modernas. Os textos dessa fase de militante político e religioso foram reunidos nos seguintes livros: FIGUEREDO, Jackson de. Literatura reacionária. Rio de Janeiro: Centro Dom Vital, 1924. e _______. A coluna de fogo. Rio de Janeiro: Anuário do Brasil, 1925. 162 REGO, José Lins do. Op. Cit., 2007, p. 271 72 Brasil. Se Deus não mandar o contrário”163. José Lins só pôde falar em nome de sua geração porque se imaginava na condição de representante dela. Trata-se, assim, de mais um eco daquelas palavras de Gilberto Freyre, pronunciadas há mais de um ano na Paraíba. O paraibano não só usou de uma maneira própria o termo geração como se viu como o porta- voz de sua geração. Daí o título do artigo. O texto Carta de uma geração aos srs. Gilberto Freyre e Jackson de Figueredo foi montado a partir do esquema freyreano, isto é, com base na visão exposta em Apologia pro generatione sua segundo a qual os filhos devem romper com os pais e encaminhar-se rumo a tradição dos avós, vista como a verdadeira vocação das novas gerações, tal qual o Pscihari lido por Freyre. Assim, José Lins iniciou seu artigo criticando os pais, ou seja, a geração anterior à sua: Há bem pouco um de nossos ídolos, já de cabelos brancos, fizera toda uma apologia ao assassinato. Todos sabemos que este ídolo foi o Sr. Graça Aranha, que nem teve vergonha de seus netos. Tudo o que nós sabíamos vinha dum espírito criado a leite artificial. E os nossos pais merecem toda a culpa. Eles quiseram levar a experimentação a este requinte de perversidade: experimentar com os seus próprios filhos. E nos deram amas-secas como Zola, como Taine, como Renan, como Spencer e, piores ainda, os Bossi, os Junqueiros, os Haeckel etc. Em vez de soldados de chumbo e das sadias aulas de catecismos, os nossos pais nos botaram a brincar com aparelhos de laboratório. A nossa cultura foi toda assim. [...] E assim fomos feitos, para pensar e agir 164 . O autor do fragmento textual acima usou metáforas que sinalizam para a relação entre pai e filho, justamente porque estava pensando sob o céu freyreano. Da relação entre a geração de 1870 e a geração do pós-guerra, que José Lins ideou representar, surgiu a crítica à primeira, como um grupo que legou a geração seguinte um péssimo legado. A falta de “espírito de ordem” – que levou Graça Aranha a romper com Academia Brasileira de Letras, em 1924 –, o cientificismo, o positivismo, o liberalismo e o estrangeirismo da belle époque foram tomados como o legado podre da geração anterior a de José Lins. Por isso a necessidade de romper com os pais, de escrever uma carta às novas gerações anunciando a ruptura em relação à geração precedente. A ruptura com a geração anterior, segundo José Lins, deve ser creditada aos combates sociais de Gilberto Freyre e Jackson de Figueredo: 163 REGO, José Lins do. Op. Cit., 2007, p. 278. 164 REGO, José Lins do. Op. Cit., 2007, p. 271-272. 73 Foi quando os srs. vieram, em momento agudo, em voz de bons amigos, falar a nós todos. E diziam coisas que foram bem dentro. Que nos estão, é verdade que com muito sofrimento, nos refazendo. Custam demais essas transições de cultura. Mas o necessário era que tiveste em nossos corações lugar onde deixar qualquer coisa. E isto conseguistes 165 . O autor destas palavras deu aqui seu depoimento, fez da folha de papel um espaço para confessar suas dívidas em relação às palavras de Gilberto Freyre e Jackson de Figueredo, as quais lhe provocaram certas transformações, rumo ao tradicionalismo, à defesa da ordem. A partir da ação conservadora daqueles dois “espíritos de combate”, pôde José Lins refazer-se, pôde romper com a geração passada, com seus pais, com os defensores de doutrinas modernas, e verte-se para o mundo do seu avô, o universo de sua infância rural. Semelhante ao que ocorrera com Ernest Psichari, tal qual encenado por Freyre em sua conferência, José Lins teria rompido com seu pai e se aproximado da geração de seu avô. Após romper com seus pais, ou seja, com a geração anterior, e se aproximado da geração de seu avô, o paraibano formado em Ciências Jurídicas assumiu seu lado tradicionalista, mediante a reivindicação de uma identidade de classe e de uma tradição. É o que podemos depreender de suas palavras: Porque, afinal de contas, o nosso único destino é o destino de homens rurais. Não somos nem militaristas, nem positivistas, nem democratas, nem futuristas. Somos senhores de engenho, fazendeiros e católicos apostólicos romanos. Fugindo daí estamos de braços com a anarquia, porque fugimos de nossa verdadeira vocação 166 . O jovem que estava administrando o engenho de sua família, substituindo seu avô que tinha falecido há pouco tempo, adotou sua identidade por uma dupla via: negativa, ao dizer o que não é, e positiva, ao dizer o que é. José Lins estava convicto de sua vocação, de seu destino de homem rural, afeito a vida no campo. Sabia o que queria e o que não queria. Ao reivindicar uma identidade social de senhor de engenho, estava expressando muito mais do que uma consciência de classe. Acreditamos que o gesto identitário de José Lins deve ser encarado como a tentativa de se ligar ao passado, de se abraçar com a sua tradição rural, tradição que pretensamente lhe corria nas veias, devido a sua herança familiar. Alguns meses antes de escrever sua carta-artigo, seu avô José Lins Cavalcanti de Albuquerque tinha 165 REGO, José Lins do. Op. Cit., 2007, p. 273. 166 REGO, José Lins do. Op. Cit., 2007, p. 275. 74 falecido, deixando um grande vazio na sua vida 167 . Em carta de 30 de setembro de 1924 (na mesma época em que sua carta-artigo tinha sido publicada) a Gilberto Freyre, confidenciou ao amigo recifense: “estou me preparando para tomar conta do engenho. Para o ano serei finalmente senhor de engenho”168. O que vemos aqui é o desejo de continuar a tradição, de mantê-la viva. É o José Lins do Rego tentando se construir enquanto partícipe de uma tradição familiar, é o homem dizendo sim ao seu passado, a sua herança. Ao optar pela tradição, José Lins acreditava estar escolhendo a ordem, a segurança, a autoridade. O tradicionalismo escolhido é inseparável de um espírito de ordem, de um certo conservadorismo. A expressão “bom senso”, tão usada por Gilberto Freyre e acolhida por José Lins, é a marca de uma atitude tradicionalista e conservadora. O que não poderia ser diferente, dado que seu tradicionalismo irrompeu na esteira do pensamento de Gilberto Freyre, intelectual que, nos anos 1920, assumia uma posição tradicionalista e reacionária, sobretudo em relação à sociedade moderna. O apego a Igreja Católica e as ideias religiosas de Jackson de Figueredo, entendemos como produto dessa aproximação com o tradicionalismo freyreano. Essa virada para o tradicionalismo correspondeu não só a uma postura pública e intelectual, evidenciada pelos artigos, mas também repercutiu na esfera privada de José Lins. Além de almejar ser senhor de engenho, mantendo viva a tradição da família, o jovem outrora boêmio confessou estar pensando em se casar, a fim de “pôr chumbos nos pés”: “eu, meu caro Gilberto, vou resolver meu caso. Preciso de ordem, meu caro Gilberto. Ordem e ordem. Acabei por isto com meu ridículo casamento com o Recife. Aqui na Paraíba encontrei uma criatura interessante. E sobretudo da melhor família da terra”169. E em carta de 30 de setembro de 1924, na mesma em que afirmava a vontade de ser senhor de engenho, dava notícia ao amigo pernambucano de seu casamento: “casei no dia 21 de setembro, como lhe mandei dizer, mais por necessidade de ordem que de coração”170. Como bem percebeu Cesar-Braga, a palavra ordem, usada no âmbito privado nas duas cartas, correspondia também a uma atitude pública, política e intelectual de José Lins 171 . É o homem paraibano afirmando-se, na vida pública e pessoal, como tradicionalista, possuidor de bom senso e espírito de ordem, como pregou Gilberto Freyre. Destaquemos ainda que José Lins anunciou seu casamento com Filomena Massa de uma forma bem tradicionalista, típica do Brasil dito patriarcal, no qual as uniões matrimoniais 167 Em carta de 29 de junho de1924, Gilberto Freyre acusa recebimento de uma “carta trajada de preto” de José Lins do Rego. 168 Carta de José Lins do Rego a Gilberto Freyre, 30 de outubro de 1924. 169 Carta de José Lins do Rego a Gilberto Freyre, sem data de mês, 1924. 170 Carta de José Lins do Rego a Gilberto Freyre, 30 de outubro de 1924. 171 PINTO, César-Braga. Op., Cit., 2011, p. 41. 75 eram feitas menos baseadas no sentimento e mais nos interesses familiares e financeiros. Ao assinalar que casava mais por necessidade de ordem do que de coração, o nosso autor aproximou-se de uma prática social tradicional, ao mesmo tempo em que se distanciou de uma atitude que, no Brasil dos anos 1920, já começava a ter considerável ocorrência social: o casamento por amor, no qual os sentimentos individuais pesavam mais do que os familiares. Segundo Mary Del Priore, embora a união matrimonial por interesse familiar, uma espécie de contrato no qual os pais tinham uma importância fundamental, ainda fosse hegemônica, o século XX, sobretudo nas grandes capitais brasileiras, já apresentava casamentos firmados unicamente a partir do sentimento, do amor que unia homem e mulher 172 . Porém, a união matrimonial de José Lins e Filomena Massa, a criatura interessante que encontrou, foi realizada à moda antiga, a maneira das famílias aristocráticas do Brasil imperial, bem distante do amor-romântico, forma social amorosa que iria se estabelecer na República. Até o início do século XX, predominava no Brasil o casamento como um contrato social, no qual costumava-se celebrar o interesse material de ambas as partes envolvidas. O matrimônio de José Lins foi, assim, um típico gesto tradicionalista, familista, realizado a revelia do presente, a despeito das práticas amorosas que começava a se impor no país. Foi mais um momento de afirmação e construção do sujeito José Lins tradicionalista e conservador, homem que não sucumbia ao seu presente moderno. Assim, Gilberto Freyre influiu em José Lins a partir de sua pregação tradicionalista. Mostrou ao seu amigo paraibano o caminho da tradição, a vereda da valorização do passado. E isso em um contexto de intensa amizade e admiração, muito mais da parte do paraibano pelo pernambucano do que o inverso. Como esperamos ter mostrado, as duas conferências de Freyre, uma no Recife de 1923 e outro na Paraíba de 1924, foram vitais para o aparecimento do José Lins tradicionalista. A Freyre este deve a crença de que o passado é muito mais do que mero tempo passado, tempo a ser superado pelo progresso da humanidade. Com seu amigo pernambucano, José Lins aprendeu o valor das tradições, do passado. É neste sentido que devemos entender a afirmação de José Lins sobre a importância do autor de Casa Grande & Senzala: “começava assim a existir para mim um outro mundo”173. O mundo que o futuro romancista falou é o mundo pretérito, o passado como fonte de inspiração, como temporalidade/espacialidade a ser valorizada e recuperada. 172 Para uma discussão sobre as formas amorosas no Brasil dos séculos XIX e XX, ver: DEL PRIORE, Mary. História do amor no Brasil. São Paulo: Contexto, 2006, p. 121-337. 173 REGO, José Lins do. Op. Cit., 1968, p. 23. 76 Essa atitude de valorização do passado, típica de Gilberto Freyre nos anos iniciais de 1920, pode ser aferida pelo seguinte trecho: Depois foi a nossa viagem à Paraíba. E a conferencia que lá proferiu, e o nosso passeio pelos engenhos de meus parentes. Eu mostrando a minha gente e a minha terra, os partido de cana, os banguês, os tios e as tias, e tudo aquilo lhe parecendo melhor do que eu pensava que fosse. Levei-o com medo de que não se desapontasse e, pelo contrário, gostou muito de tudo 174 . Na mesma época em que Gilberto Freyre proferiu sua conferência, ocorreu também sua viagem com José Lins pelos engenhos da Paraíba 175 . Tal fato deve ter proporcionado a José Lins tempo suficiente para conversar com seu amigo sobre suas ideias expostas no teatro Santa Rosa. Sobre essa viagem, assim a relembrou José Lins: “a minha melhor recordação, de mais intensa saudade, é daquela nossa primeira viagem à Paraíba. Nunca vivi dias tão inteligentes”176. Gilberto Freyre deve ter apontado seu dedo para mostrar a José Lins a necessidade de valorar tudo aquilo que eles estavam vendo, de modo que a paisagem açucareira observada cumprisse um fim pedagógico. O engenho, com sua casa-grande e senzala, com sua paisagem esverdeada e com seus tipos sociais característicos, deve ter, provavelmente, chamado a atenção de Freyre, já na época um frequentador e valorizador de engenhos de açúcar. Dos inúmeros locais percorridos por Gilberto Freyre ao longo de sua juventude (1918- 1930), o engenho surgiu como uma paisagem privilegiada e afetiva, sempre, quando possível, revisitada fisicamente. Segundo os biógrafos do renomado pernambucano, um dos primeiros locais que logo fez questão de rever, quando do seu retorno ao Brasil, foi o engenho São Severino dos Ramos, propriedade de seus familiares e onde passava férias quando criança 177 . Sobre tal espacialidade familiar, confessou o viajante Freyre já adulto: “o primeiro engenho que conheci e que sempre hei de rever com emoção particular”178. São conhecidas ainda as andanças de Freyre e de outros jovens pelos engenhos em ruínas de Pernambuco e Alagoas. Pedro Paranhos e Julio Bello, ambos pernambucanos, senhores de engenho e conhecedores do meio rural, foram os principais companheiros de viagens freyreana pelo universo do massapé. 174 REGO, José Lins do. Op. Cit., 1968, p. 26. 175 Um dos engenhos paraibanos visitados foi o Pau D’Arco, no município de Sapé, cidade próxima a Pilar. Tal propriedade foi o território da infância de Augusto dos Anjos (1884-1914), poeta paraibano, que também muito escreveu sobre os banguês. 176 Carta de José Lins do Rego a Gilberto Freyre, sem dia e mês, 1924. 177 LARRETA, Enrique R.; GUILLERMO, Giucci. Gilberto Freyre: Uma biografia cultural, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, p. 219. 178 FREYRE, Gilberto. Casa Grande e Senzala. Formação da família brasileira sob o regime de economia patriarchal. Rio de Janeiro: MAIA & SCHMIDT, 1933. p. XLII. 77 Local de inúmeras de suas viagens, o engenho para o andarilho Gilberto Freyre era tanto um local de conhecimento, espécie de fonte empírica para o estudo do passado patriarcal nacional, como era também uma paisagem afetiva, que agradava seus olhos. Ao se deparar com uma casa grande elevada, Freyre adotava tanto a postura do etnógrafo cientista, com seu bloco de notas a colher informações e dados, quanto a atitude romântica de um jovem que se deparava com um passado significativo, identitário, capaz de despertar saudade. Assim, as viagens ao engenho obedeciam a um duplo propósito, qual seja, uma finalidade intelectual, de estudo, mas também um intento afetivo. Provavelmente, foi com esses propósitos que Gilberto Freyre e José Lins percorreram no ano de 1924 os banguês paraibanos, perscrutando e sentindo em cada casa-grande visitada, em cada canavial percorrido tanto um tema de pesquisa de campo quanto uma página sensível do passado de ambos e da nação brasileira. Podemos pensar que as viagens aos engenhos nordestinos, realizadas por José Lins e Gilberto Freyre nos anos 1920, constituem-se enquanto experiências de formação, isto é, como momentos em que os dois jovens estão formando suas subjetividades, urdindo suas sensibilidades e concepções de mundo. Formação, noção implícita aqui, relaciona-se não com um processo fechado e conclusivo, mas sim como uma experiência aberta, como um devir identitário em constante mudança. Como assinalou o pedagogo espanhol Jorge Larrosa, La idea de formación no se entiende teleológicamente, en función de su fin, en lós términos del estado final que sería su culminación. El proceso de la formación está pensado más bien como una aventura. La formación es un viaje abierta, un viaje que no puede estar anticipado, y un viaje interior, un viaje en el que uno se deja afectar en ló próprio. 179 Viajantes durante a mocidade, período áureo da formação, José Lins e Gilberto Freyre andaram pela zona da mata paraibana, onde entraram em contato com vestígios materiais de um mundo que dizia respeito às raízes genealógicas de ambos. Ali, em meio aos rios e aos canaviais, em contato com senhores de engenho e cabras da bagaceira, os dois aprenderam e apreenderam elementos de uma sociedade banguezeira, treinaram seus olhares para vislumbrar um universo para o qual estavam dedicando apreço e simpatia. O itinerário pelas propriedades açucareiras da Paraíba proporcionava não só prazer e diversão aos dois jovens, como também gerava conhecimento, contribuindo para a formação 179 LARROSA, Jorge. La experiência de la lectura. Estudios sobre literatura y formación. Barcelona: Laertes, 1996, p. 271. Tradução livre: “A ideia de formação não é compreendida teleologicamente, em razão de seu fim, nos termos do estado final que seria o seu ponto culminante. O processo de formação foi pensado mais como uma aventura. A formação é uma viagem aberta, uma viagem que não pode ser prevista, é uma viagem interior, uma viagem em que se é influenciado por si mesmo”. 78 de dadas subjetividades. A viagem aos engenhos tinha, assim, um papel formativo, contribuía para os indivíduos virem a ser aquilo que foram em um determinado momento de suas vidas. Certamente, a postura tradicionalista de José Lins e Freyre se alimentou dessas excursões sentimentais e intelectuais pelo universo açucareiro nordestino. Como tradicionalistas, os dois viajantes procuravam pedaços de um passado regional e nacional, caçavam relíquias de um outro tempo, tesouros escondidos da sociedade patriarcal. O passado rural de José Lins se coadunava muito bem com as ideias expostas pelo conferencista de Apologia pro generatione sua. Ali estava uma temporalidade, um passado que pelas décadas dos anos 1920/1930 estava sendo no Brasil inventado como um espaço tradicional, um pretérito que deveria ser preservado, nem que seja tão somente em uma página de romance ou de memórias. Pelas ideias tradicionalistas de Gilberto Freyre, José Lins pôde perceber que no seu passado rural estava um mundo a ser valorizado, defendido e continuado. Foi aí que emergiu o tradicionalista José Lins. Com esse olhar tradicionalista, formado a partir das ideias freyreanas, pôde observar e valorizar seu mundo da infância, seu tempo de menino de engenho. Tal visada passadista está na base de seus primeiros romances, quase todos eles dedicados ao passado de uma região, embora o futuro romancista tenha de esperar mais alguns anos para aparecer. No entanto, lembremos que alguns anos antes de se lançar como romancista em 1932, com Menino de Engenho, José Lins pensava em escrever as memórias de seu avô. A figura do avô, tanto para Gilberto Freyre quanto para o escritor paraibano, representava o passado patriarcal dos engenhos, um estilo de vida dito tradicional e rural, merecedor de páginas literárias e ensaísticas. Lembremos que Casa Grande & Senzala foi dedicado aos avós, maternos e paternos, de Gilberto Freyre: Alfredo Alves da Silva Freire, Maria Raymunda da Rocha Wanderley, Ulysses Pernambucano de Mello e Francisca da Cunha Teixeira de Mello. José Lins e Gilberto Freyre não se esqueceram dos seus avós, de seus familiares da época patriarcal. Mencionando-os, era como se os dois tradicionalistas preservassem elementos do passado, como se prestassem um culto aos antepassados, indivíduos que não podiam ser jamais esquecidos. Nessa adesão de José Lins ao tradicionalismo, não vemos um ato de passividade. Não julgamos José Lins defensor do passado como mero produto de Gilberto Freyre, como se esse fosse um senhor que moldasse a seu bel prazer um vaso. Não, não foi isso. Na aceitação do tradicionalismo, vemos um ato de sujeito, de alguém que escolheu colocar-se na esfera pública como tradicionalista. A opção pelo tradicionalismo foi uma opção, e não um ato passivo ou uma imposição de Gilberto Freyre. Se José Lins do Rego fez na literatura o que 79 Gilberto Freyre fez na sociologia e na história, como não se cansam de apontar os críticos literários, devemos lembrar as palavras de Jacques Derrida: “a herança nunca é um dado, mas uma tarefa”180. O herdeiro escolhe a herança, assim como José Lins optou pelo tradicionalismo. 180 DERRIDA, Jacques. Espectros de Marx. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994, p. 95. 80 Capítulo 2 Os anos maceioenses e as rodas literárias Em Maceió a gente caminha um bocado e se dependura dos morros sôbre as alagoas.. .em Maceió a agua do mar se derrete brasileiramente inchada por poder refletir um templo impossivelmente grego...em Maceió, Jorge de Lima... em Maceió, Lins do Rego... Mario de Andrade 181 . 2.1 Discursos que calam e que exaltam Após a adesão ao tradicionalismo freyreano, ocorrida no ano de 1924, quando ainda estava na Paraíba, José Lins seguiu para Manhuaçu, interior de Minas Gerais. Naquela localidade, entre 1925-1926, atuou como promotor público. Tal emprego foi conseguido através da mediação do sogro de José Lins, o na época senador Antonio Massa. A estadia em terras mineiras não o agradou muito. O ofício jurídico e a vida em uma cidade extremamente interiorana fizeram crescer no promotor paraibano o desejo de voltar à sua região, seja para a Paraíba ou para o Recife. Até que, por volta do segundo semestre de 1926, em carta deste ano a Gilberto Freyre, José Lins anunciou sua ida para Maceió, onde passou quase dez anos 182 . Novamente, o cargo de fiscal de banco a ser ocupado nesta nova cidade foi obtido graças à atuação do pai de sua esposa 183 , homem que já tinha ajudado José Lins diversas vezes. Antonio Massa era um homem de muito influencia, como podemos depreender a partir de suas intervenções. Em 14 de dezembro de 1926, a bordo do vapor Pará, chegava a Maceió um homem de terno branco, bem vestido, com óculos, bengala e costeletas que logo chamaram a atenção de muitos 184 . Este homem era José Lins do Rego, que chegava à capital alagoana como um desconhecido, mas que a deixará como um homem conhecido nacionalmente. Os anos maceioenses de José Lins não foram e não são levados muito em conta pelos estudiosos de 181 Carta de Mario de Andrade a Jorge de Lima, 19 de maio de 1929. Reproduzido e consultado em ROCHA, Tadeu. Modernismo e regionalismo. Maceió: Imprensa oficial de Alagoas, 1964, p.162-163. 182 Carta de José Lins do Rego para Gilberto Freyre, sem mês, 1926. 183 A informação foi dada pela filha de José Lins. Ver: REGO, Elizabeth Lins do. José Lins do Rego, meu pai. Ciência & Trópico. Recife, V. 10, N.2, p.193-202, Jul./Dez., 1982, p. 194. 184 SANTANA, Moacir M. História do modernismo alagoano. Maceió: EDUFAL, 1980, p. 39. 81 sua obra literária. Na verdade, o que podemos observar é um certo silenciamento discursivo em torno daquela temporada. Gilberto Freyre, nos seus textos sobre José Lins, quase não aborda a época em que seu amigo esteve em Maceió. Para o ensaísta pernambucano, Maceió não teria sido muito importante, não passaria de um mero capítulo na vida do paraibano, pois teria sido o Recife, a grande metrópole regional, que teria contribuído para a obra literária de José Lins. Encontramos a defesa de tal visão em dois textos de Gilberto Freyre, um de 1953 (quando José Lins ainda era vivo) e outro de 1982, na comemoração dos 80 anos do nascimento do escritor. No primeiro texto, sugestivamente intitulado José Lins do Rego e o Recife, publicado no Diário de Pernambuco, Freyre asseverou: No Recife e sob estímulos e sugestões recifenses - do meio, da paisagem, do passado recifense - é que se definiu no autor de Banguê a vocação literária. Ao Recife pertence talvez metade da glória alcançada por esse autêntico brasileiro do Nordeste através de uma obra ainda incompleta mas já monumental. Sem o Recife sua personalidade não seria o que é. [...] Daí eu poder dizer com segurança do brasileiro hoje glorioso que é o romancista de Fogo Morto que ele é [...]um homem do Recife 185 . Tal texto foi produzido em um contexto de homenagem. Alguns recifenses amigos e admiradores de José Lins, que estavam recebendo a visita deste, decidiram elaborar um almoço para o renomado romancista. Freyre elaborou as palavras da citação acima para esta ocasião. Através delas, podemos inferir que o seu autor almejou colocar sua cidade natal como um elemento central para o aparecimento do romancista: o Recife contribuiu para a obra literária de José Lins. A ânsia de conceder ares de sujeito à capital pernambucana levou o pretenso discípulo de Franz Boas a assinalar o determinismo geográfico segundo o qual sem o Recife José Lins não seria o que foi. Ao conceder tamanha importância ao Recife, o discípulo assumido deixa de lado o relativismo cultural de seu mestre, a medida em que afirmou que, a uma espacialidade, corresponderia casualmente uma atividade literária, um escritor. Quase trinta anos depois, Gilberto Freyre, novamente em um contexto de celebração, ratificou sua visão acerca da relação entre José Lins e o Recife. Agora em um artigo denominado Em torno da recifensização de José Lins do Rego, observamos a defesa da mesma ideia: 185 Diário de Pernambuco, 20 de Junho de 1953. Reproduzido e consultado em: . Acesso em 04 fev. 2013. 82 Sem o Recife, porém, ele não teria se realizado nem como escritor nem como personalidade. Porque o Recife sendo, no essencial de suas formas de vivência, quase tão cidade como o Rio, dá ao recifensizado, seja qual for sua origem menos urbana, voz, gestos, visões, risos, predisposições de quem, à condição de provinciano, acrescenta a de recifense 186 . José Lins, mediante as palavras de Gilberto Freyre, tornou-se não só um homem do Recife, como se tornou um romancista. À cidade tão amada por Freyre caberia a glória de um escritor. O espaço, aqui, é agente causal, fator determinador de produtos, gerador de personalidades e vocações literárias. O Recife, pelo tipo de cidade que era, pela vivência que proporcionava aos seus egressos, teria, pois, influído para o aparecimento do literato José Lins do Rego. E assim olvidou-se a Paraíba, Maceió e o Rio de Janeiro, ao mesmo tempo em que se valorizou enormemente Recife. Estes dois textos, analisados brevemente acima, são produtos também da estratégia freyrenana de consagração, de sua tentativa de se colocar como o grande fator responsável pela obra de José Lins. Ao valorizar a cidade de Recife, o mestre de Apipucos estava, sutilmente, corroborando seu próprio discurso, segundo o qual foi principalmente por sua influência que um mero estudante enredado no jornalismo político local tornou-se um escritor conhecido nacionalmente. Nas duas últimas citações destacadas acima, onde se tem “Recife” pode-se ler, em grande medida, “Gilberto Freyre”. Além da cidade, os textos falam também de um citadino, de um escritor que tentou afirmar sua contribuição para o nascimento de um outro escritor. Falando do Recife, Gilberto Freyre falava de si mesmo. A valorização exacerbada da cidade de Recife, feita inicialmente por Freyre, levou vários estudos a menosprezarem a estadia de José Lins em outras localidades, sobretudo em Maceió. Como exemplo dessa postura, podemos citar os trabalhos de José Aderaldo Castello, Pávula Maria Sales do Nascimento 187 e Mariana Chaguri 188 , os quais dedicaram apenas ligeiros parágrafos aos anos maceioenses de José Lins. Tal fato indicia o rebaixamento que tal período sofreu, bem como a força das palavras de Gilberto Freyre, as quais elegeram Recife como a cidade principal na vida e obra de José Lins. Como todo discurso, o do pernambucano 186 FREYRE, Gilberto. Op. Cit., 1982, p. 175. 187 NASCIMENTO, Pávula Maria Sales. Espelhos de Mim: entre as utopias e as heterotopias da memória em José Lins do Rego e José Américo de Almeida. Dissertação. Programa de pós graduação em História da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG), Campina Grande, 2009. 188 O trabalho desta autora, fruto de uma dissertação premiada pela Associação Nacional dos professores de Ciências Sociais (ANPOCS), discute os contextos intelectuais pelos quais passou José Lins. Nesse sentido, discute-se a estadia de José Lins no Recife (1919-1924) e no Rio de Janeiro (1935-1957). Como se vê, o contexto intelectual de Maceió, a despeito de sua existência, é descartada pela autora. Vemos aqui tanto uma opção acadêmica e metodológica como a reprodução de um silenciamento discursivo. Ver: CHAGURI, Mariana. O romancista e o engenho: José Lins do Rego e o regionalismo nordestino dos anos 1920-1930. São Paulo: Hucitec: ANPOCS, 2009. 83 operou silenciamentos e destaques, produziu esquecimentos e lembranças. Contudo, para nós, os anos maceioenses do neto de senhor de engenho foram essenciais para a obra literária que veio a produzir. É sobre esses anos que o capítulo ora em foco irá se debruçar, tentando mostrar a atuação de José Lins na capital alagoana e a importância de tal cidade para a vida e obra do romancista. 2.2 O nativo tradicionalista-regionalista Quando José Lins chegou a Maceió, quase no primeiro dia da segunda quinzena de dezembro de 1926, não era apenas o adepto do tradicionalismo freyreano que chegava. Entre 1924 e fins de 1926, tinha fundido seu tradicionalismo com o regionalismo, tal qual ocorria com o movimento Regionalista de 1924, surgido no Recife, a partir da mobilização de Gilberto Freyre, Odilon Nestor e Morais Coutinho. Naquele intervalo temporal, José Lins entrou em contato com as ideias regionalistas de seu amigo pernambucano, através do Livro do Nordeste e dos artigos do Diário de Pernambuco, que veiculavam informações e ideias de tal movimento. Aquele livro trouxe três ensaios de Gilberto Freyre, nos quais, em graus variados, podemos perceber a difusão de ideias regionalistas 189 . Inicialmente cotado para contribuir com o livro, José Lins não figurou entre os autores do livro comemorativo do centenário do Diário, mas apontou ter “grande interesse no livro do Nordeste”190. Em 13 de março de 1927, José Lins publicou um artigo de primeira página no Jornal de Alagoas, no qual defendia a boa tradição da arquitetura colonial dita nordestina, os móveis de jacarandás das casas grandes e igrejas bem como as capelas dos engenhos nortistas ou nordestinos 191 . Tais elementos foram tomados pelo autor “não como um simples amontoado, sim como patrimônios vivos”192. Neste artigo, tradição e região se unem, um se alimenta do outro. A fusão em José Lins do tradicionalismo com o regionalismo não deve nos causar surpresa. Como esperamos ter mostrado, o tradicionalismo a que aderiu postulava o respeito à tradição, a reabilitação do passado, metaforizado na figura do avô. O tradicionalismo para 189 Os três artigos foram Vida social no Nordeste (1825-1925), A pintura no Nordeste e A cultura da canna no Nordeste. Esses três trabalhos de Freyre disseminaram a visão segundo a qual a região Nordeste, a qual estava sendo inventada por essa época, era o refúgio da alma brasileira, o reservatório da tradição nacional, uma espacialidade original e autêntica, principal reduto da brasilidade. Ver: FREYRE, Gilberto (Org.). Op. Cit., 1970. 190 Carta de José Lins do Rego para Gilberto Freyre, 01 de dezembro de 1925. 191 No final dos anos 1920, Norte e Nordeste eram usados para denominar o recorte regional no qual o estado de Alagoas se inseria, pois se vivia uma época de transição entre as duas denominações. Ver: ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. A invenção do Nordeste e outras artes. 4 Ed. São Paulo: Cortez; Recife: Massangana, 2009, p. 56. 192 Jornal de Alagoas, 13 de março de 1927. 84 José Lins consistia na revalidação do passado, na defesa da ordem ligada a uma sociedade pré-moderna. Tal visão coadunava-se muito bem com os princípios regionalistas do movimento de 1924, na medida em que este também se pautava pela defesa do passado, encarnado nas ditas tradições da região: Anima-o largo patriotismo nordestino, que se exprime na defesa das nossas cousas e das nossas tradições, no aproveitamento delas como motivos de arte, no desenvolvimento dos interesses do Nordeste, região cujas raízes naturais e históricas se entrelaçam e cujos destinos se confundem num só 193 . O regionalismo, tal qual propunha os seguidores deste movimento, e em especial Gilberto Freyre, consistia na defesa de uma região, a região hoje chamada de Nordeste, defesa essa que se pautava a partir do que se entendia como típico, característico, tradicional desta espacialidade. O tradicional, o caráter da região, estaria no passado, na herança lusitana, mais presente em Pernambuco e nos Estados vizinhos a este. A essência da região estava pretensamente alojada na sociedade patriarcal dita nordestina, na casa-grande e senzala, na arquitetura com que esta foi produzida, nos bolinhos e quitutes que saiam de sua farta cozinha. A tradição defendida pelos regionalistas não estava no presente, na sociedade moderno-burguesa que paulatinamente se implantava no Recife. Os automóveis, os edifícios de fins do século XIX, as ruas largas e bem pavimentadas, as igrejas reformadas com estilos arquitetônicos de fin de siècle e outros equipamentos ligados ao mundo moderno não empolgavam os regionalistas. É sintomático que regionalista-tradicionalistas como Julio Bello, Mario Sette, Gilberto Freyre, Aníbal Fernandes tenham expressado, em alguns momentos de suas vidas, críticas às tendências modernas que varriam o Recife das décadas iniciais do século passado, no mesmo momento em que proclamavam a necessidade de preservar o passado, freando assim o ímpeto modernista. Assim, tradicionalismo e regionalismo se confundiam e se completavam. A definição a seguir serve para os dois movimentos: defesa de certos elementos da região a qual estavam vinculados. O passado, a sociedade patriarcal, era um valor vital para as duas posturas, do mesmo modo que a crítica ao presente burguês e moderno. Por isso que Gilberto Freyre, relembrando o movimento regionalista em textos bem posteriores, pôde (re)denominar o movimento de 1924 de regionalista-tradicionalista 194 . Região e tradição podiam se equiparar. 193 Diário de Pernambuco, 30 de abril de 1924. 194 Trata-se do prefácio a primeira edição do livro Manifesto regionalista de 1926. As notícias do Diário de Pernambuco quando tratam do movimento, aborda-o sempre como intitulado de movimento regionalista. É assim 85 Desse modo, a tendência tradicionalista de José Lins preparava-o para o movimento regionalista de 1924. Tradicionalista a partir da pregação freyreana, o paraibano estava a um passo do regionalismo. Seu tradicionalismo se fundiu com o regionalismo, de modo que região e tradição passaram a ser tomados como valores essenciais 195 de sua visão de mundo. A linha que separava tradicionalismo e regionalismo era muito tênue. No período em que estava na Paraíba e em Manhuaçu, José Lins cruzou esta linha, chegando a Maceió como um adepto e divulgador do regionalismo, ainda que tal movimento tenha já na época (fins de 1926) encerrado oficialmente suas ações 196 . Quando da publicação do manifesto regionalista, em 1953, por Gilberto Freyre, José Lins saudou tal iniciativa, escrevendo um artigo no Diário de Pernambuco no qual se colocava como herdeiro do regionalismo: “sou, por este modo, um descendente direto do movimento regionalista de 1926”197. Embora tais palavras tenham sido expressas a partir de uma rememoração, fica explicitado, no mínimo, uma certa relação entre quem as pronunciou e o movimento regionalista. Se o escritor consagrado relembrou um movimento ocorrido há quase 40 anos atrás, é porque o considerava fundamental na construção de sua identidade como escritor. José Lins se identificava com o regionalismo, razão que o fez se reportar em artigo a este movimento. 2.3 A participação nas rodas literárias Os diversos momentos e ocasiões nas quais os homens de letras se sociabilizam, seja em um botequim, café, praça, salão de um evento ou qualquer outro espaço, constitui o que entendemos por rodas literárias. Trata-se de um conceito que chama a atenção para a interação social dos intelectuais e a gama de atitudes e práticas que emergem dessa interação 198 . Ele nos será útil para demonstrarmos que a estadia de José Lins em Maceió foi marcada pela sua integração no ambiente intelectual alagoano. que aparece, e não como movimento regionalista-tradicionalista. Freyre fez esse acréscimo a posteriori. Ver: FREYRE, Gilberto. Vinte e cinco anos depois. In:______.Manifesto regionalista. Recife: FUNDAJ. Massangana, 1996, p. 88. 195 Lembremos que José Lins prefaciou um livro de Gilberto Freyre denominado justamente de Região e Tradição. Ver: REGO, José Lins do. Op. Cit., 1968. 196 Segundo Neroaldo Pontes, a última referencia que se tem sobre o movimento regionalista é em 10 de agosto de 1926, no Diário de Pernambuco, quando noticia uma reunião. Ver: AZEVEDO, Neroaldo Pontes de. Op., Cit., 1996, p. 149. 197 Diário de Pernambuco, 14 de Janeiro de 1953. 198 Formulamos tal conceituação a partir da leitura do artigo de: SILVA, Simone. As rodas literárias no Brasil nas décadas de 1920-1930. Latitude, V. 2, N. 2, pág. 182-210, 2008. 86 Das rodas literárias, ou seja, da série de encontros e vivências que os intelectuais partilhavam em Maceió, José Lins não esteve alheio. Pelo contrário, podemos identificar que o nativo recém-chegado participou de vários momentos de sociabilidade ligado às rodas literárias maceioenses. Em 1926, a cidade que recebia José Lins passava, do ponto vista intelectual, por uma certa efervescência cultural, ligada a repercussão do modernismo da Semana de Arte de 1922. Como muitas capitais do Nordeste, os anos 1920 na capital de Alagoas foi marcado pela polêmica entre aqueles que concordavam com o modernismo e aqueles outros que repudiavam tal movimento estético, visto como futurismo, destruidor do passado e das tradições 199 . Maceió vivia, pelas décadas iniciais do século XX, um certo florescimento das letras. A criação da Academia Alagoana de Letras, em 1919, bem como a criação de algumas entidades culturais, como a Academias dos Dez Unidos (1923), Cenáculo Alagoano das Letras (1926) e Grêmio literário Guimarães Passos (1927), são elementos sintomáticos de um ambiente intelectual que passava por certa ebulição 200 . A estas instituições, devemos ainda acrescentar os diversos jornais que compunham a imprensa alagoana, que surgiu efetivamente no estado em 1851, com o jornal Filangelho 201 . Jornal de Alagoas, o Semeador, Diário da Manhã, Gazeta de notícias e A Republica eram os principais periódicos que fermentavam a vida intelectual maceioense, oferecendo aos literatos da cidade um meio para divulgar suas produções. Como é notório, no Brasil do início século do XX, escrever em um e para um jornal era uma espécie de pré-condição para a atividade de um homem de letras. Além das instituições culturais e dos jornais, os homens de letras alagoanos circulavam também pelo Café do Cupertino, espaço que servia tanto para as discussões sobre arte quanto para os momentos de descontração. Tal estabelecimento comercial, parada obrigatório dos intelectuais locais, também era chamado de Bar Central, e localizava-se em um ponto central de Maceió: em frente ao relógio oficial da cidade. As rodas literárias, portanto, se formavam e se alimentavam de todo este ambiente intelectual, proporcionando aos seus participantes, em sua maioria literatos ou aspirantes a tal título, momentos de sociabilidade. 199 Para uma análise sobre o modernismo em Alagoas, ver: SANTANA, Moacir Medeiros de. História do modernismo em Alagoas (1922-1932). Maceió: EDUFAL, 1980 200 Para uma análise sobre estas entidades culturais, ver: LEBENSZTAYN, Leda. Academias, arte nova e canjica: antecedentes da Novidade. In:______. Graciliano Ramos e a Novidade: o astrônomo do inferno e os meninos impossíveis. Tese. Programa de Pós Graduação em literatura brasileira da Universidade São Paulo (USP), São Paulo, 2009. 201 BARROS, Francisco Reinaldo Amorim de. ABC das Alagoas: Dicionário biobibliográfico, histórico e geográfico das Alagoas. Brasília: Senado Federal, conselho editorial, Tomo II, 2005, p. 65. 87 Esse cenário artístico propício à literatura advinha, em grande medida, de uma prospera situação econômica desfrutada no início do século XX em Alagoas, centralizada principalmente em Maceió. A capital alagoana, entre a segunda e a terceira década do século passado, passava por um surto de progresso. Como outras capitais da região Norte/Nordeste nos anos 1920/1930, Maceió experimentava um conjunto de melhoramentos materiais, dado pela construção de avenidas e abertura de ruas estreitas, construção de edifícios envidraçados, calçamento e saneamento de ruas, implantação de usinas e serviço de bondes, cinema e criação/expansão de linhas férreas 202 . Tal impulso modernizador foi paulatinamente fazendo com que a face tradicional da cidade coexistisse também com uma dimensão moderna. Destacam-se aqui ligeiras reformas em algumas igrejas antigas de Maceió, como a ocorrida, por exemplo, na igreja Bom Jesus dos Martírios, edificada em 1881 e reparada, em suas torres e escadarias, na década de 1920 203 . Não só as igrejas tradicionais, mas também ruas inteiras recebiam uma faceta moderna. Foi o que aconteceu com a Rua Sá e Albuquerque, hoje um dos marcos histórico da cidade, recebendo a construção de praças e edifícios públicos e comerciais modernos. Na Maceió vivida por José Lins (1926-1935), a paisagem urbana moderna se acotovelava com um panorama citadino tradicional, fruto da época colonial e imperial. Aloísio Branco, admirador e amigo de José Lins, apontou certa vez ser ainda possível na capital alagoana de 1929 praticar o “sport do pittoresco”204, isto é, percorrer recantos típicos e históricos da urbe, os quais evocariam uma época não marcada pela “tyrannia de cizento do cimento armado”205. Assim, o moderno e o tradicional, o cinzento de cimento e o pitoresco, o novo e o antigo conviviam na espacialidade urbana. Com essas transformações materiais, a modernidade aportava na cidade, redesenhando não só a paisagem da urbe, como também infundindo novos hábitos, valores e práticas sociais na população maceioense. O Jornal de Alagoas de 16 de setembro de 1928 estampou em sua página inicial o anúncio da Loja Paris, localizada no centro da cidade, convidando o leitor para ir visitar o estabelecimento comercial e “conhecer as mais recentes novidades da moda parisiense: sedas, fantasias, encharpes, Chapeos, fitas, flores, rendas, leques, perfumes, lenços etc.”206. Como várias cidades do Brasil, no período inicial da era anterior, a capital do século XIX, Paris, exercia certo fascínio na mente de muitos maceioenses. Um clima de 202 BRANDÃO, Moreno. Alagoas em 1925. In: FREYRE, Gilberto. Op. Cit., 1970, p. 162-163. 203 BARROS, Francisco Reinaldo Amorim de. Op. Cit., Tomo II, 2005, p. 202. 204 Jornal de Alagoas, 13 de abril de 1929. 205 Idem. 206 Jornal de Alagoas, 16 de Setembro de 1928. 88 modernidade, de anseio pelo novo, pelo estrangeiro importado, acometia a população citadina. Talvez isso explique o fato curioso de, em 1918, a municipalidade maceioense ter erigido, no bairro do Jaraguá, uma réplica da estátua estadunidense da Liberdade, a única em território brasileiro 207 . Figura 5: Foto da réplica da estátua da Liberdade, Maceió, sem data Acervo do site fotos antigas de Alagoas O surto de progresso existente em Alagoas, o qual promoveu um processo de modernização em Maceió, resultou da situação privilegiada do açúcar em seu território. Entre 1920-1940, Maceió teve uma população entre 74.166 e 90.253 habitantes. No censo de 1920, ocupou a décima posição entre as cidades mais populosas do Brasil. Em 1940, decaiu para a décima segunda posição 208 . Tal população, em sua maioria, beneficiou-se de um plano governamental de incentivo a produção açucareira. Dois governantes do estado ora em tela, Costa Rego (1926-1928) e Álvaro Pães (1928-1930), aplicaram uma política de valorização do açúcar, que, em linhas gerais, modernizou a produção canavieira de Alagoas. Desde quando tal federação se separou de Pernambuco, em 1817, que o açúcar consistia no seu grande produto econômico, gerador de maiores receitas para o Estado. Os dois últimos governadores de Alagoas da década de 20 procuraram revitalizar a força do açúcar para o cenário econômico do estado. Nesse sentido, diversas iniciativas foram realizadas. 207 Disponível em . Acesso em 10 mai. 2013. 208 Ver os recenseamentos gerais do Brasil, dos anos 1920 e 1940. Ver: MAIC – Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio. Recenseamento do Brazil. Rio de Janeiro: Typografia da Estatística, 1922. E IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas. Censo Demográfico: população e habitação. Rio de Janeiro: Serviço Gráfico do IBGE, 1940. 89 Criação de um banco agrícola, aumento das estradas férreas, modernização do porto Jaraguá e dos engenhos movidos a animais e instauração de um gabinete de tecnologia agrícola foram as principais iniciativas do governo alagoano para potencializar a economia local 209 . Tal política modernizadora parece ter surtido efeito, de modo que Alagoas, em 1929, chegou a contar com 355 engenhos movidos a vapor, ficando entre os estados nordestinos com maior número de engenhos industrializados, atrás apenas de Pernambuco, que na época continha 695. Nos anos 1930, abrigava 23 usinas, constituindo-se como o terceiro estado (atrás de Pernambuco e Sergipe) com maior quantidade de usinas. Porém, a modernização da produção canavieira alagoana não deve ser creditada apenas aos governos pró-açúcar de Costa Rego e Álvaro Pães. Engenhos movidos a vapor de máquinas, por exemplo, existiam no território alagoano desde 1875 e usinas de açúcar instalaram-se em tal região desde 1892 210 . Como um estado que dependia muito dos ganhos do açúcar, Alagoas parece ter acompanho Pernambuco no processo de modernização da produção canavieira. Tal fato proporcionou uma estabilidade econômica ao estado, sobretudo à sua capital, favorecendo a um florescimento das produções artísticas. Ao chegar a Maceió, José Lins encontrou uma cidade próspera, alimentada pelo lucro do açúcar. Em 17 de Junho de 1928, José Lins foi convidado e escalado para participar da festa da “Arte nova”, evento realizado por alguns intelectuais ligados ao Cenáculo Alagoano das Letras e destinado a celebrar o modernismo. Segundo Moacir Medeiros de Santana, este evento foi “a Semana de arte moderna de um dia só”211, ou seja, foi uma festividade modernista, voltada para celebrar uma suposta nova era para as letras nacionais. Ao lado de literatos como Jorge de Lima, Valdemar Cavalcanti 212 e Jayme de Altavila 213 , José Lins foi selecionado para proferir uma palestra, a qual foi intitulada de Ideias novas 214 . Duas outras 209 Jornal de Alagoas de 10 de abril de 1927, 12 de maio de 1927, 17 de fevereiro de 1928, 19 de maio de 1929 e 5 de fevereiro de 1930. 210 Os dados deste parágrafo foram baseados nos seguintes livros: DIEGUES JUNIOR, Manuel. O engenho de açúcar no Nordeste. Rio de Janeiro: Serviço de informação agrícola, ministério da agricultura, 1952, p.28. e BARROS, Francisco Reinaldo Amorim de. Op. Cit., Tomo II, 2005, p. 198-200. 211 SANTANA, Moacir Medeiros de. Op. Cit., 1980, p. 25. ANDRADE, Manuel Correia de. Usinas e destilarias nas Alagoas. Coleção Mossoroense, serie C, volume 779, 1992. 212 Foi um jornalista e crítico literário alagoano, nascido em 1912 e falecido em 1982. Viveu em Maceió até 1933, quando se mudou para o Rio de Janeiro, sendo nesta cidade o grande companheiro de idas aos estádios de futebol com José Lins. Na capital alagoana atuou em vários jornais (O Semeador, Gazetas de notícias e Jornal de Alagoas) e atuou junto a algumas entidades culturais (Grêmio literário Guimarães Passos e Cenáculo Alagoano de Letras). Mais informações em: SANTANA, Moacir Medeiros de. Op. Cit., 1980, p. 94-99. 213 Intelectual alagoano, nascido em Maceió, em 1895. Foi um dos fundadores do Instituto Histórico Geográfico Alagoano e da Academia Alagoana de Letras. Em 1923, formou-se em Direito, na Faculdade de Direito da Universidade do Rio de Janeiro. Escreveu romances literários, poesias, contos e livros de história, Direito e economia. Além de literato, atuou também na política, como Deputado estadual (1929-1930) e como Prefeito de Maceió (1927-1928). Mais informações em: BARROS, Francisco Reinaldo Amorim de. Op. Cit., 2005, p. 60-62. 214 Jornal de Alagoas, 17 de Junho de 1928. 90 importantes iniciativas que tiveram a participação de José Lins e que ocorreram em 1928, diz respeito à recepção de alguns importantes artistas brasileiros. Em 8 de dezembro, a bordo do vapor Manaus, desceu em terras alagoanas um dos mais importante nomes do modernismo: Mario de Andrade. Para celebrar a chegada do importante articulador da Semana de Arte, a intelectualidade maceioense preparou um “almoço com comidas e refrescos da terra”215. José Lins não só esteve presente no almoço como foi, ao lado de Jorge de Lima, principal representante do modernismo em Alagoas, recepcionar pessoalmente no porto a chegada do autor de Macunaíma (1928). Fato semelhante voltou a ocorrer no dia 14 de dezembro. Desta vez, José Lins e Jorge de Lima recepcionaram os escritores pernambucanos Luiz Cedro, Martins Capistrano e Manuel Bandeira, com quem almoçaram e perambularam pelos recantos pitorescos de Maceió 216 . Além de participar de eventos públicos ligados às letras e recepcionar figuras proeminentes do meio intelectual nacional, o fiscal de banco paraibano vinculou-se também a iniciativas culturais. No começo de fevereiro de 1932, foi criada a “Liga contra o empréstimo de livros”. Tal agremiação, que aglutinou vários intelectuais locais, se destinava a “despertar o interesse da comunidade alagoana pelas coisas do espírito”217. A proposta consistia em fazer com que o livro fosse um objeto de fácil e rápido acesso para o maior número de pessoas possíveis. Tratava-se de estimular a compra e venda de livros. Por isso o nome da iniciativa. Almejava-se sensibilizar a população local para a aquisição de livros, que os citadinos criassem um apreço por este produto cultural. No dia primeiro de maio, foi organizada uma “grande feira de livros para vendagem popular”218. Outra participação de José Lins no meio intelectual alagoano ocorreu quando do festival de música e literatura, realizado em 27 de fevereiro de 1932 no teatro Deodoro. Tal festival contou com a participação de dois artistas nordestinos, um ligado a música e outro ligado a poesia. Daí o titulo do festival. As atrações artísticas eram o músico alagoano Hekel Tavares 219 e o poeta pernambucano Ascenso Ferreira, bastante conhecido nas rodas literárias recifenses como um exímio declamador de poesias que “serviam não tanto para se ler como 215 Jornal de Alagoas, 11 de dezembro de 1928. 216 Jornal de Alagoas, 15 de dezembro de 1928. 217 SANTANA, Moacir Medeiros de. Op. Cit., 1980, p. 151. 218 Jornal de Alagoas, 05 de maio de 1932. 219 Musico e compositor alagoano, nascido em 1896, em Satuba, interior de Alagoas. Em 1921, foi para o Rio de Janeiro estudar orquestração e aí começou sua carreira de musico. Especializou-se em musicas para peças teatrais, as quais misturavam o erudito e o popular. Mais informações em: SANTANA, Moacir Medeiros de. Op. Cit., 1980, p. 165-166. 91 para se ouvir”220. José Lins, que conhecia apenas de nome as duas atrações, fez a apresentação de tal festival, introduzindo a plateia do teatro na vida e obra de Hekel Tavares e Ascenso Ferreira 221 . Tais fatos ocorridos em diferentes anos indica que José Lins estava integrado no ambiente intelectual alagoano, que estava sendo tratado pelos seus pares como um homem de letras, como alguém que desfrutava de certo prestígio social e era respeitado intelectualmente. O fato de participar de discussões sobre a arte moderna, de recepcionar e apresentar intelectuais conhecidos nacionalmente e de se associar a empreendimentos culturais, nos permite apontar que José Lins estava transitando no circuito intelectual maceioense, que era uma presença marcante nos momentos de sociabilidade dos homens de letras residentes na capital de Alagoas. O fiscal de banco paraibano era um dos principais nomes das rodas literárias, na medida em que participava de vários eventos e ocasiões organizadas por literatos. É o que podemos entrever do testemunho de Rachel de Queiroz, escritora que também vivenciou a atmosfera literária de Maceió: É que nós surgimos no mesmo tempo: Jorge, eu, Graciliano, Zé Lins, Amando Fontes. Éramos um grupo de contemporâneos e ainda amigos. A gente se frequentava muito. Nesse período em Maceió, por coincidência, Zé Lins morava lá, engraçado. Ele era fiscal de imposto de consumo e morava lá. E o Aurélio Buarque também morava lá; era de lá. Era uma roda de tantos que depois vieram para cá! Então a gente tinha um botequim, um café, um ponto chique em Maceió, onde a gente reunia-se todas as tardes a tomar um choppinho, um cafezinho a conversar. Depois viemos para cá [Rio de Janeiro], o Alberto Passos Guimarães, Valdemar Cavalcanti, Aurélio Buarque de Holanda, Graciliano e Zé Lins. Nos reunimos em Maceió nesse período [anos 1930] 222 . O relato memorialístico da escritora traça a existência daquilo que estamos chamando, conceitualmente, de rodas literárias, isto é, os encontros dos homens de letras, seus momentos de sociabilidade, os quais costumavam ocorrer em cafés e botequins. Tais ocasiões favoreciam até a criação de laços de amizade. Zé Lins, como era chamado José Lins pelos amigos mais íntimos, frequentou as rodas literárias alagoanas. Por isso fez amizade com 220 Souza Barros apontou que Ascenso Ferreira produzia versos audíveis que, quando escritos, não tinham a mesma beleza e impacto poético do que quando eram declamados. No café da esquina Lafaiete, Ascenso Ferreira varias vezes declamou seu poema Sertão e se despedia quase sempre com um famoso trecho de um de seus poemas: “adeus, eu voltarei ao Sol da primavera”. Ver: BARROS, Souza. Op. Cit., 1985, p. 217. 221 Jornal de Alagoas, 2 de março de 1932. 222 Entrevista de Rachel de Queiroz concedida a Gustavo Sorá, em 25 de fevereiro de 1997. Ver: SILVA, Simone. Op. Cit., 2008, p. 192. Cumpre apontarmos que José Lins, em Maceió, trabalhou como fiscal de banco, e não como fiscal de consumo, como falou a escritora. Foi no Rio de Janeiro, para onde se mudou em 1935, que ele trabalhou como fiscal de imposto de consumo. Rachel de Queiroz, portanto, confundiu-se. 92 Rachel de Queiroz, Graciliano Ramos, Valdemar Cavalcanti, Aurélio Buarque de Holanda 223 , Jorge de Lima e tantos outros, antes mesmo de se consagrar como romancista. As rodas literárias geravam não só discussões artísticas como produziam também afetividades entre seus partícipes, levando a formação de grupos intelectuais e artísticos. É importante frisarmos que as pessoas com as quais José Lins estava em contanto eram escritores que ou já tinham obtido certo prestígio regional e até nacional ou estavam em vias de obter tal consagração. Jorge de Lima e Rachel de Queiroz, por exemplo, eram companheiros intelectuais de José Lins que, nos anos iniciais dos anos 1930, já tinham produções literárias reconhecidas no país. Jorge de Lima (1893-1953) foi um dos literatos mais conhecidos de Maceió. Proveniente de uma família rica, atuou na capital alagoana como professor, jornalista, pintor, poeta, romancista, médico, deputado estadual e vereador. Antes de conhecer pessoalmente o futuro autor de Menino de engenho, Jorge de Lima já tinha produzido os versos parnasianos que lhe tornaram conhecido no meio letrado nacional: Acendedor de Lampiões (1910) e XIV Alexandrinos (1914). Ainda em Maceió, nos anos 1920, publicaria os seguintes livros: Comédia dos erros (1923), Poemas (1927), Salomão e as mulheres (1927), Novos poemas (1928) e Dois ensaios (1928). Como se pode inferir, Jorge de Lima tinha uma considerável produção literária, a qual continuaria a ser alimentada nos anos 1930. Além de literato, era valorizado no meio local em razão também de seu ofício como médico, membro da Academia Alagoana de Letras e colaborador do Jornal de Alagoas. Entre os literatos alagoanos, Jorge de Lima era o mais valorizado em seu estado e fora dele 224 . Junto com seu amigo paraibano, exerceu grande influência na mocidade alagoana. Assim como Jorge de Lima, Rachel de Queiroz (1910-2003) começou a conviver com José Lins quando já tinha se lançado como escritora de romances. Em 1931, aportou em Maceió, junto com seu esposo, o poeta alagoano José Auto da Cruz 225 . Recém-casada, a escritora cearense de ainda 21 anos de idade deixou o Estado do Ceará para viver na terra do seu marido e foi nela que escreveu seu segundo romance, intitulado João Miguel (1932). 223 Intelectual maceioense, nascido em 1910, em Passo de Camaragibe, interior de Alagoas. Ganhou notoriedade nacional em razão de sua obra filológica, a qual culminou com a publicação, em 1975, do novo dicionário da língua portuguesa, conhecido como “Aurélio”. Em Maceió, cidade que chegou em 1923, atuou como crítico literário em diversos jornais da imprensa maceioense e participou da entidade cultura Grêmio Literário Guimarães Passos. Em 1936, formou-se em Direito pela Faculdade de Direito do Recife e em 1938 mudou-se para o Rio de Janeiro. Mais informações em: SANTANA, Moacir Medeiros de. Op. Cit., 1980, p. 85-86. 224 Mais informações em: BUENO, Alexis (Org.). Jorge de Lima: poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1997. 225 As informações sobre Rachel de Queiroz em Maceió foram baseadas em: ROCHA, Tadeu. Op. Cit., 1964, p. 70. 93 Tratava-se de um romance publicado após dois anos da sua obra de estreia: O quinze (1930). A primeira produção literária de Rachel de Queiroz, escrita ainda em 1929, quando estava em Fortaleza e publicada com dinheiro emprestado pelos seus pais, logrou considerável sucesso. Além das resenhas elogiosas de Frederico Schmidt (que em 1931 será quem lançará a segunda edição) e Mario de Andrade, O quinze foi agraciado ainda com o prêmio Fundação Graça Aranha, em 1931. Desse modo, o meio letrado alagoano recebia uma mulher que já tinha revelado ao Brasil seus dotes literários. Em Maceió, assim como José Lins, Rachel de Queiroz também se integrou no universo intelectual da cidade. Como tantos literatos de Alagoas, colaborou também no jornal de Alagoas. Desde os 19 anos de idade que a autora de João Miguel (1932) contribuía com a imprensa local, escrevendo crônicas literárias para jornais como o Ceará. Em Maceió não foi diferente. Além dessa atividade, exerceu também o ofício de professora de história. Em 1939, mudou-se para o Rio de Janeiro, a fim de aí estabelecer residência definitiva. Diferentemente de Rachel de Queiroz, Graciliano Ramos (1892-1953) 226 , outro companheiro ilustre de José Lins no cenário letrado maceioense, chegou à capital alagoana sem ter produzido nenhum livro. Porém, o futuro autor de Catés (1933) já era alguém conhecido em Maceió, isso porque desde 1905 alternava períodos de vivência nesta cidade e desde 1909 escrevia para o Jornal de Alagoas. De 1910 a 1930, Graciliano Ramos morou em Palmeira dos Índios, a fim de gerenciar a loja comercial de seu pai. Durante esse longo período passado em uma cidade do interior de Alagoas, o escritor alagoano deixou o comércio de seu pai e tornou-se prefeito de Palmeira dos Índios, em 1928. Após escrever os relatórios que chamaram a atenção de Frederico Schmidt 227 , Graciliano Ramos renunciou ao cargo de prefeito e voltou a residir em Maceió, em 1930. A partir daí começou uma amizade com José Lins e com uma série de outros participes das rodas literárias alagoanas. Jorge Amado, escritor baiano que nos idos de 1930 visitou Maceió, assim relembrou seu encontro com Graciliano Ramos: Fui encontrá-lo num bar; tomava café preto em xícara grande, cercado pelos intelectuais da terra — todos eles reconheciam a ascendência do autor ainda 226 As informações sobre Graciliano Ramos foram baseadas em: LEBENSZTAYN, Leda. Graciliano Ramos e a Novidade: o astrônomo do inferno e os meninos impossíveis. Tese. Programa de Pós Graduação em literatura brasileira da Universidade de São Paulo (USP), São Paulo, 2009. 227 Em 1929, Graciliano Ramos escreveu um relatório de prestação de contas ao governador do Estado de Alagoas. Tal documento, após circular entre os literatos deste Estado, devido a sua qualidade literária, chegou às mãos do editor de livros Frederico Schmidt, que ficou impressionado e perguntou ao seu autor se o mesmo não teria algum material literário para ser publicado. 94 inédito, era o centro da roda. Ficamos amigos imediatamente. Fiquei amigo também de todo o poderoso grupo de escritores que vivia em Maceió. Digo vivia, pois, além dos alagoanos — Graciliano, Valdemar, Aurélio Buarque de Hollanda, Alberto Passos Guimarães, Raul Lima, Theo Brandão, José Auto, Diegues Júnior, Carlos Moliterno, o poeta Aluísio Branco e o contista Carlos Paurílio — ali residiam, na ocasião, José Lins do Rego e Rachel de Queiroz, dois dos mais importantes entre os jovens romancistas 228 . Pelo trecho acima observamos não só a lembrança de um encontro entre dois homens de letras, como também inferimos a existência e a ação do ambiente letrado maceioense. Jorge Amado registrou um dos vários momentos de sociabilidade ocorridos entre os literatos em Maceió, os quais costumavam se reunir em bares, cafés, praças, residências e clubes. A capital alagoana, por volta dos anos 1930, aparentava ser uma “cidade literária”, dada a presença de inúmeros letrados que começavam a se projetar nacionalmente como escritores. O fato de Maceió contar com alguns letrados já consagrados nacionalmente e outros tantos em vias de consagração intelectual, faz-nos pensar que tal cidade rivalizava com alguns centros de produção cultural do país, notadamente Rio de Janeiro, São Paulo e Recife. Ao retraçarmos alguns elementos do universo literário maceioense dos anos 1920-1930, fica-nos a impressão de que a capital onde José Lins chegava gozava de certa autonomia intelectual perante aquelas três cidades. Por mais que a Faculdade de Direito do Recife tenha atraído e formado muitos homens de letras alagoanos e que o Rio de Janeiro tenha sido o destino de muitos indivíduos letrados, Maceió da segunda e terceira década do século XX aparentava ter sua vivência intelectual sustentada por elementos internos, próprios à cidade. A imprensa local, contando com três importantes jornais (Jornal de Alagoas, O Semeador e Diário da Manhã), as pequenas livrarias e editoras, as entidades culturais, as instituições de ensino e os espaços de sociabilidade onde os homens de letras se reuniam, conforme já apontamos, faziam da capital de Alagoas uma espécie de “cidade literária”, isto é, um espaço cuja produção cultural mostrava-se proeminente e relativamente autônoma em relação aos outros centros espirituais do Brasil. Maceió, com seu meio intelectual efervescente, alçava-se à condição de uma espacialidade produtora e exportadora de ideias, livros e intelectuais. Tal cidade, no recorte temporal de nosso trabalho, não se mostrava de modo algum como uma periferia totalmente dependente de um centro cultural irradiador e dominador. Ela conseguia manter sua vida espiritual não de toda presa aos centros culturais do país, ou seja, a Rio de Janeiro, São Paulo e Recife. 228 AMADO, Jorge. O dia em que conheci Graciliano. Revista Status, São Paulo, novembro de 1978, p. 150-151. 95 Porém, o fato de alguns homens de letras estarem em Maceió a partir de 1930 não deve nos fazer imaginar que tal cidade atraiu, de uma forma quase irresistível, os letrados de outras localidades. José Lins do Rego, Rachel de Queiroz e Graciliano Ramos não se mudaram para a capital alagoana por que iriam encontrar nela um cenário intelectual efervescente. Os três escritores encontraram-se em Maceió em razão de motivos casuais, pontuais: proposta de emprego para um, casamento para uma outra e renúncia de um cargo publico para um terceiro. Ainda que esta cidade, nas décadas de 20 e 30 do século XX, passasse por uma ebulição cultural, contando com uma geração que mais alguns anos iria obter sucesso nacional (Jorge de Lima, Aurélio Buarque de Holanda, Manuel Diégues Junior 229 , Valdemar Cavalcanti e outros), não foi por causa disso que José Lins e Rachel de Queiroz foram nela residir. É provável que apenas Graciliano Ramos soubesse do ambiente literário maceioense dos anos 1920/1930, haja vista que morava perto daí. O universo intelectual em Maceió parece ter se formado tanto a partir de elementos internos (as entidades culturais, a imprensa, a Academia Alagoana de Letras, as escolas e a boa situação econômica da cidade) quanto a partir das novas figuras literárias que aportavam na capital alagoana. Não devemos superestimá-lo ou idealizá-lo, vendo nele a razão de alguns literatos terem migrado para Maceió. O principal centro intelectual do país permanecia sendo o Rio de Janeiro, de modo que uma capital da região Nordeste como Maceió não poderia jamais desbancar completamente a cidade carioca, despindo-a de sua centralidade cultural. Daí por que, a partir de 1935, veremos vários literatos (Jorge de Lima, José Lins, Valdemar Cavalcanti, Aurélio Buarque, Rachel de Queiroz, Graciliano Ramos, entre outros) que residiam em Maceió nos anos 1920 e início de 1930 mudarem para a capital do Brasil, a fim de consolidarem sua carreira literária. Presença marcante nos meios literários, José Lins exercia papel de destaque frente à juventude intelectual de Maceió. Jovens aspirantes a literatos como Valdemar Cavalcanti, Aloíso Branco 230 e Aurélio Buarque de Holanda, moços que nos anos 1930 mal tinham 229 Intelectual alagoano, nascido em 1912, em Maceió. Em 1927, fundou o Grêmio Literário Guimarães Passos, instituição da qual foi presidente por dois anos (1927-1929) e que arregimentou vários jovens literatos de Maceió. Colaborou ainda na imprensa maceioense. Em 1935, formou-se em Direito pela Faculdade de Direito do Recife. Nesta cidade, quando de sua estadia como acadêmico, conheceu Gilberto Freyre e assistiu alguns cursos ministrados pelo autor de Casa Grande & Senzala, aprofundando-se nos conhecimentos antropológicos e sociólogos, os quais foram aplicados para estudar, em especial, a zona da mata alagoana, região a qual dedicou alguns livros e artigos. Em 1938, radicou-se no Rio de Janeiro. Mais informações em: SANTANA, Moacir Medeiros de. Op. Cit., 1980, p. 78-80. 230 Jovem poeta e jornalista alagoano, nascido em 1909 e natural de São Luiz do Quitunde, interior de Alagoas. Em 1924, radicou-se em Maceió a fim de terminar seus estudos no Liceu Alagoano e em 1932 mudou-se para o Recife, formando-se quatro anos depois em Direito pela Faculdade de Direito do Recife. Em Maceió atuou na 96 completado 20 anos de idade, desenvolveram uma considerável admiração por José Lins. Os três costumavam se dirigir a residência deste e passar horas e horas do dia conversando com o dono da casa sobre política e literatura. A biblioteca do paraibano também era um atrativo para a longa visita destes jovens. Muitos artigos que José Lins escrevia para o Jornal de Alagoas eram “madrugadamente” lidos por seus admiradores juvenis. Semelhante a Gilberto Freyre, nos anos iniciais da década de 1920 no Recife, José Lins, nos anos passados em Maceió, vivia cercado por rapazes que lhe tinham em alta conta 231 e sobre os quais exercia, além de fascínio, certa influência. O poeta Aloísio Branco foi o jovem que José Lins mais influenciou. Segundo Moacir Medeiros de Santana, devemos ao fiscal de banco paraibano a descoberta desse poeta. Em 25 de janeiro de 1928, o Jornal de Alagoas estampou um artigo sobre “um poeta menino”, no qual José Lins apontava Neste menino irrequieto que nos invade a casa para dizer tolices e mexer pelos livros e recantos, há um verdadeiro poeta. E poeta elle é, apezar de toda a sua tagarelice e água de chocalho que lhe deram a beber em S. Luiz do Quitunde. As poesias que elle faz trazem a frescura e graça duma coisa com que a gente se sente bem em companhia 232 . Com tais palavras, Aloísio Branco, que na época tinha 19 anos de idade, estava sendo não só apresentado ao meio intelectual maceioense, como estava sendo consagrado como poeta. Frisemos que na época do artigo o “poeta menino” não tinha publicado nenhum poema, o que viria a acontecer somente em 1929, com os versos denominados de Inverno 233 . Ocorre que Aloísio Branco, na condição de estudante e amigos de vários outros estudantes, já circulava pelas rodas literárias de sua cidade. Era prática comum entre aqueles que circulavam no universo letrado compartilharem seus trabalhos, a fim de serem criticados e aprimorados. Foi assim que José Lins conheceu os poemas de Aloísio Branco e pôde consagrá-lo como um “poeta menino”. Ser admirado por jovens aspirantes a literatos e lançar novos talentos literários só podia ocorrer porque o fiscal de banco paraibano era muito mais do que um burocrático funcionário público: era alguém que transitava entre os intelectuais e estava integrado no meio literário alagoano. imprensa, publicando poesias e estudos literários, e no governo do Estado, como secretário de gabinete. Em 1937, faleceu precocemente. Ver: BARROS, Francisco Reinaldo Amorim de. Op. Cit., Tomo I, 2005, p. 165. 231 Sobre a relação de José Lins com a mocidade alagoana, conferir os depoimentos de: FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Revelações sobre José Lins do Rego. In:______. Seleta em prosa e verso: Aurélio Buarque de Holanda. Rio de Janeiro: José Olympio, 1979. CAVALCANTI, Valdemar. José Lins, cronista. Ciência & Trópico. Recife, V. 10, N.2, p.143-148, Jul./Dez., 1982. 232 Jornal de Alagoas, 25 de janeiro de 1928. 233 SANTANA, Moacir Medeiros de. Op. Cit., 1980, p. 94. 97 Figura 6: Membros das rodas literárias maceioenses: Valdemar Cavalcanti, Graciliano Ramos, Aloísio Branco, Rachel de Queiroz e José Auto. Foto tirada por José Lins, em 1933, Maceió Acervo do Instituto Histórico Geográfico Alagoano 2.4 José Lins do Rego: “o crítico do Norte” A integração de José Lins no universo intelectual de Maceió ocorreu, em grande medida, graças a sua intensa atuação no Jornal de Alagoas. Neste periódico, começou a escrever seus artigos domingueiros, os quais se iniciaram com menos de dois meses de sua chegada à Maceió. Em 8 de fevereiro de 1927, já encontramos produções jornalísticas de José Lins. O Jornal de Alagoas surgiu em 1908, por iniciativa de um jornalista pernambucano chamado Luiz Silveira, que visava elaborar um noticiário de oposição ao governo alagoano, na época representado por Euclides Viera Malta, político que já vinha no segundo mandato de governo. Nos primeiros anos do século XX, a exemplo de outras capitais da região, Maceió encontrava-se dominada por oligarquias locais, ligadas à família Malta 234 . Localizado na Rua Boa Vista, no centro de Maceió, tal jornal nos anos 1920/1930 chegava aos seus assinantes diariamente com um número de oito páginas, que cobria uma variedade de assuntos (política, economia, humor, publicidade etc.) em um formato de 39,5 x 27, 5 cm. Em 7 de julho de 1993, fechou suas velhas portas, para nunca mais abrir. Foi o jornal que teve maior duração de vida na imprensa alagoana: 85 anos de existência ininterrupta. Nomes como Graciliano Ramos, Jorge de Lima, Rachel de Queiroz, Assis Chateaubriand, Gilberto Freyre, Valdemar Cavalcanti, Aurélio Buarque de Holanda, Jaime de Altavila e tantos outros nomes que viriam a se tornar ilustres contribuíram em algum momento para o Jornal de Alagoas. Neste órgão jornalístico, José Lins consolidou seu lugar 234 Euclides Viera Malta governou Alagoas em dois mandatos: 1900-1903 e 1906-1909. No período em que não governou, 1903-1906, um representante de sua família ocupou o posto: Joaquim Paula Viera Malta. Tais informações foram baseadas no livro JORNAL DE Alagoas 80 anos. Maceió. Jornal de Alagoas, 1988. 98 de sujeito de crítico literário, posição essa iniciada ainda na Paraíba e Recife, quando ainda era um estudante. Jorge de Lima, colaborador do Jornal de Alagoas desde o início dos anos 1920 e homem de grande prestígio no meio intelectual maceioense, deve ter facilitado o ingresso de José Lins neste periódico, pois já conhecia minimamente a atuação do paraibano na imprensa pernambucana. O fato é que em 8 de fevereiro de 1927 José Lins estreava na imprensa alagoana com um artigo sobre um livro que “o Sr. Assis Chateaubriand escreveu a propósito do quadriênio Bernardes”235. Quase todos os trabalhos estampados no Jornal de Alagoas tinham a marca da literatura. Livros de literatos recentemente publicados e a vida e obra de escritores eram os principais assuntos sobre os quais José Lins versava. Se na imprensa paraibana, entre 1918- 1919, tratava também de assuntos sociais e nos jornais pernambucanos dos anos iniciais da década de 1920 não deixava a política de lado, em Maceió, contudo, o fiscal de banco paraibano iria se concentrar quase que exclusivamente na literatura, nas Letras. Sobre a sua atuação na imprensa alagoana, assim discorreu seu amigo de rodas literárias, Valdemar Cavalcanti: José Lins fez com mais constância, por força de suas preferências naturais, um tipo de jornalismo literário: artigos e crônicas sobre temas de cultura. O que se passava no mundo das letras e das artes, aqui e ali, isso era sempre assunto de sua predileção. O livro que acabava de sair do prelo, a idéia lançada por um escritor ou por um grupo de escritores, a estréia de um poeta, um novo prêmio concedido - tudo era material para os seus comentários. Davam, pois, as suas leituras um alto rendimento imediato. Foi assim nos tempos de Maceió, quando o conheci 236 . Convivendo com uma série de literatos, circulando entre eles, a literatura passou a ser o principal assunto, a grande preocupação. E assim José Lins foi solidificando o lugar de sujeito de crítico literário, iniciado no Recife. Homem casado, pai de família e com emprego público, gozando de estabilidade financeira, passou a deixar de lado a vida de boêmio e panfletário político. Botou ordem na sua vida e resolveu se ocupar da literatura, lendo livros e mais livros, bem como escrevendo sobre autores e mais autores. O casamento com a literatura, começado ainda em Recife, se consolidou em Maceió, quando José Lins passou a assumir de vez o posto de crítico literário. Foram vários os artigos de crítico literário no Jornal de Alagoas. Autores como Assis Chateaubriand (08.02.1927), Olívio Montenegro (20.02.1927), Manuel Bandeira 235 Jornal de Alagoas, 8 de fevereiro de 1927. 236 CAVALCANTI, Valdemar. Op. Cit., 1982, p. 144. 99 (27.03.1927), Raul Bopp (10.05.1927), Jorge de Lima (29.05.1927), Machado de Assis (12.06.1927), José Veríssimo (23.06.1927), Gilberto Freyre (16.12.1927), Aloísio Branco (25.01.1928), Ascenso Ferreira (03.02.1928), João Ribeiro (17.02.1928), José Américo de Almeida (06.03.1928), Tasso da Silveira (04.04.1929), Euclides da Cunha (14.04.1928), José de Alencar (01.05. 1929), Marcel Proust (16.05.1929) e muitos outros nomes ligados a literatura nacional e internacional dedicou José Lins artigos, os quais, em sua maioria, estampavam a primeira página do jornal. Diante da quantidade extensa de artigos de crítico literário, escolheremos para comentar apenas duas produções, as quais julgamos serem as mais relevantes para os nossos propósitos. Em 3 de abril de 1927, José Lins escreveu um artigo de primeira página sobre um livro chamado Fructidor, do poeta alagoano Pedro Lobão Filho. Este teria enviado seu livro de soneto a José Lins, tanto como uma prova de coleguismo quanto como um pedido de crítica. Entendendo que a crítica não consistia em “um meio para estreitar amizades pelo elogio”237, o autor do artigo censurou a produção do poeta local, afirmando que seus sonetos eram “apenas o trabalho de suas mãos, em tenaz esforço para o bem acabadinho”238. Lobão Filho seria um daqueles poetas que ainda insistiam em produzir à luz dos preceitos Parnasianos, o que gerava “uma poesia apenas para os olhos, e não para a alma”239. Diante disso, o crítico literário José Lins recomendou que o poeta “perdesse o juízo, isto é, que à sua sensatez demasiada desses dias de folga aos seus sentidos, deixando agir com liberdade as suas forças de intuição. Porque em poesia o bom senso está, às vezes, em não se ter bom senso”240. Tais comentários provocaram grande polêmica no meio intelectual alagoano, pois, até então, José Lins não era tão conhecido na capital. Ninguém esperava que o fiscal de banco paraibano criticasse um poeta local reconhecidíssimo nas rodas literárias maceioenses. Lobão Filho (1888- 1948), poeta da “velha guarda”, era membro da Academia Alagoana de Letras e, mais tarde, em 1930, foi eleito presidente da Academia Guimarães Passos (antigo grêmio Guimarães Passos) 241 . Ademais, Fructidor, segundo livro do poeta, havia sido bem recebido pela crítica nacional, chegando até a receber elogios de Álvaro Moreira em um jornal do Rio de Janeiro 242 . O poeta não aceitou os comentários hostis do forasteiro que nem um ano tinha na capital alagoana. Em 9 de abril de 1927, Lobão Filho escreveu um artigo, também estampado 237 Jornal de Alagoas, 3 de abril de 1927. 238 Idem. 239 Jornal de Alagoas, 3 de abril de 1927. 240 Idem. 241 SANTANA, Moacir Medeiros de. Op. Cit., 1980, p. 205. 242 Jornal de Alagoas, 10 de agosto de 1958. 100 na primeira página, denominado apenas Resposta..., no qual procurou desqualificar a avaliação de José Lins, assinalando que seus comentários foram “insensatos e frágeis, fruto de uma erudição de almanach”243. O autor da resposta também expressou recomendações a José Lins: “desejo apenas que o acatado jornalista deixe de escrever sobre poesia, que é uma matéria de que infelizmente nada percebe. Não faltará certamente assumpto para o chronista dar expansão à sua brilhante intelligencia”244. A réplica de Lobão Filho apimentou ainda mais o debate e tornou José Lins conhecido entre os literatos de Maceió. Porém, o debate não parou na réplica. Em 10 de abril, portanto um dia após a réplica de Lobão Filho, José Lins elaborou rapidamente sua tréplica, intitulada Ainda sobre o Fructidor, também publicada em primeira página. Em um longo artigo, o autor ironizou e reafirmou sua posição inicial sobre o livro do poeta, porém, dessa vez, de uma forma ainda mais incisiva e provocativa. Eis as palavras de José Lins: A verdade é que me curei completamente com Fruticdor. Para insomnia, posso afirmar, o livro do Sr. Lobão Filho é uma maravilha. E de tão fortes efeitos que tenho medo de com elle pegar a doença do sonno dos negros da Africa. [...] José Lins do Rego declara que padecendo há annos de terríveis insomnias, depois de procurar todos os recursos da sciencia, e se submeter a tratamentos dolorosos, como a leitura de versos de Alberto Oliveira, romances de Coelho Neto e philosophia de Graça Aranha, veio a se curar radicalmente com o uso d’uma só leitura do Fruticdor, do maravilhoso Dr. Lobão Filho 245 . Com essas palavras irônicas teve fim a contenda entre os dois autores. A repercussão desse debate foi enorme, ao ponto de três participantes das rodas literárias alagoanas terem mencionado tal debate 246 . Segue abaixo o testemunho de um deles: Um Domingo (lembro-me bem), José Lins desancou um poeta semiparnasiano da terra, apontando-lhe à inspiração novos caminhos. Aquilo me deu um abalo dos diabos, porém de certo modo me agradou. No Domingo seguinte, novo artigo, agora replicando o poeta, que se defendera zangado. Ai o escritor manifestava, além do espírito crítico, um talento polêmico dos mais devastadores que já vi 247 . 243 Jornal de Alagoas, 9 de abril de 1927. 244 Jornal de Alagoas, 09 de abril de 1927. 245 Jornal de Alagoas, 10 de abril de 1927. 246 Os três foram Romeu de Avellar, Aurélio Buarque de Holanda e Valdemar Cavalcanti. Ver, respectivamente: Jornal de Alagoas, 10 de agosto de 1958. FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Op. Cit., 1979, p. 165-166 e CAVALCANTI, Valdemar. Op. Cit., 1982. 247 FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Op. Cit., 1979, p. 165-166. 101 Podemos inferir que um dos efeitos do debate entre José Lins e Lobão Filho foi não só a repercussão do primeiro, mas também o impacto exercido entre os mais jovens, entre os quais estava o autor do fragmento textual acima, Aurélio Buarque. A contenda serviu tanto para projetar a figura de crítico literário de José Lins como para influenciar a mocidade intelectual de Maceió, na medida em que no texto deste pululavam ensinamentos sobre a arte e a poesia. No ambiente intelectual maceioense, projetava-se o fiscal de banco como um crítico que não dispensava debates e que crescia aos olhos da mocidade entusiasmada com seus artigos no Jornal de Alagoas. Se a projeção local veio com a disputa com Lobão Filho, o reconhecimento nacional não iria tardar muito. No mesmo ano de sua diatribe com o poeta local, José Lins publicou um artigo-estudo sobre um caderno de poesia de Jorge de Lima. Em 1927, José Lins e Jorge de Lima já se conheciam e eram amigos. Lembremos que José Lins já tinha escrito alguns artigos sobre seu amigo alagoano poeta. Além do artigo de 19 de maio de 1922, no Jornal do Recife, escreveu também um extenso artigo sobre o romance Salomão e as mulheres, publicado em 29 de maio de 1927 no Jornal de Alagoas. A relação entre os dois homens de letras não era somente intelectual, mas também de amizade. Antes mesmo de Poemas ser publicado, o paraibano teve acesso aos manuscritos originais, podendo pioneiramente realizar um artigo- estudo. Além disso, quando esse livro de Jorge de Lima foi publicado, entre os nomes a que era dedicado estava o de José Lins do Rego, junto com o de Gilberto Freyre e Manuel Bandeira. A grande amizade de José Lins em Maceió foi com o poeta Jorge de Lima. Figura 7: Jorge de Lima e José Lins, em 1928 Acervo do Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas Em 27 de novembro de 1927, o Jornal de Alagoas estampou em sua primeira página a primeira parte do artigo-estudo de José Lins sobre uma produção literária de Jorge de Lima. O título do artigo-estudo era Notas sobre um caderno de poesias. Tal denominação se justificava 102 em razão de Jorge de Lima ter repassado os manuscritos originais de uma produção literária que ainda estava por vir. Na sua produção, dividida em duas partes, as quais foram publicadas no Jornal de Alagoas em dias diferentes 248 , José Lins teceu uma investigação literária que articulou a vida e a obra de Jorge de Lima. O texto do crítico literário refletiu sobre a trajetória artística do amigo alagoano. A partir daí, José Lins foi discorrendo sobre as poesias que compunham o tal caderno. Segundo o autor de Notas sobre um caderno de poesias, Jorge de Lima, até o ano de 1927, vivia preso, cativo de uma escola literária, o parnasianismo. O poeta alagoano estaria acorrentado “pelo soneto bonito e pelo capricho gramatical da frase”, de modo que “passou dez anos fazendo sonetos de chave de ouro”249. E continua José Lins com a metáfora da prisão: “este caderno de Jorge de Lima bem que se poderia chamar ‘as impressões dum homem que esteve em cárcere’. E são estes poemas mesmo um canto comovido à terra de que ele esteve segregado”250. O responsável por trazer o prisioneiro a liberdade teria sido um outro poeta: Manuel Bandeira. José Lins apontou que a ruptura do autor de XIV Alexandrino com o Parnasianismo teria ocorrido graças ao poema Evocação do Recife, o qual lhe revelou o valor da terra natal, do pedaço de terra original, da infância e do passado. Jorge de Lima teria mudado sua estética por causa daquele poema de Manuel Bandeira, de modo que o poema O mundo do menino impossível seria o grande marco da transição ocorrida pela influência do poeta pernambucano. A guinada para o Modernismo teria sido motivada por um poema regionalista. Além de discorrer sobre a ruptura de Jorge de Lima com o parnasianismo, Notas sobre um caderno de poesia abordou também os poemas contidos em tal caderno. Sobre eles, elogiou-se a dimensão regionalista e telúrica: “eu poderia dizer que com esse seu caderno de poemas o Nordeste teve o seu primeiro livro de poesia. [...] É a vida de dentro da terra, da vida sentimental do Nordeste, a maior parte dos poemas desse caderno. Se encontra o Nordeste por toda a parte em seus poemas”251. Na ótica de José Lins, Jorge de Lima teria produzido versos regionalistas, nos quais se poderia perceber a “evocação lírica de um nordestino a evocar sua terra”252. O modernismo do poeta alagoano estaria imbricado com um regionalismo, oriundo da poesia de Manuel Bandeira. O caderno de poesias de Jorge de Lima deve ter fortalecido ainda mais a postura tradicionalista-regionalista de José Lins, uma vez 248 Jornal de Alagoas, 27 de Novembro e 04 de dezembro, de 1927. 249 Jornal de Alagoas, 27 de Novembro de 1927. 250 Idem. 251 Jornal de Alagoas 04 de dezembro, de 1927. 252 Idem. 103 que abordava temas condizentes com esta postura. O crítico literário não poderia deixar de valorizar no tal material sua nota regional e passadista 253 . Este artigo-estudo de José Lins sobre o caderno de poesia de Jorge de Lima teve uma enorme repercussão, tanto no meio local quanto nos principais centros intelectuais do país. Seu primeiro efeito diz respeito ao fato de ter se transformado em posfácio, quando da publicação do caderno de poesia. Quando este virou o livro Poemas, Notas sobre um caderno de poesias virou o posfácio deste livro, conforme já adiantamos. O artigo jornalístico de José Lins, originalmente publicado no Jornal de Alagoas, foi saudado por vários intelectuais alagoanos (em especial por Jorge de Lima). Aluísio Branco, Estácio Gomes e Arnon de Mello, nomes ligados às rodas literárias em Maceió, apontaram a qualidade do texto do crítico paraibano 254 . A partir da incorporação do artigo-estudo ao livro, na condição de posfácio, seu raio de alcance foi ampliado consideravelmente, de modo que o texto de José Lins chegou a vários pontos do país, obtendo excelente recepção. C. da Veiga Lima (19.02.1928), Paulo Prado (26.02.1928), Fábio Luz (04.03.1928) e Barreto Filho (23.03.1928) tiveram trechos de seus artigos transcritos no Jornal de Alagoas, nos quais foi forte o elogio a Notas sobre um caderno de poesia. Para ficarmos apenas com uma amostra, reproduzamos as palavras de Fábio Luz, crítico do jornal carioca Correio do Brasil, que chegou até a citar passagens do artigo-estudo de José Lins: Em appendice ao livro de Jorge de Lima há umas notas sobre um caderno de poesias, de José Lins do Rego, em que é estudada magnificamente a transição do poeta do Accendedor de Lampeões, para essa forma livre de poetar. [...] O vigoroso artigo de José Lins do Rego é quase o histórico da tentativa fracassada da fundação de uma escola literária por decreto e cheia de regras para estabelecer a liberdade completa das composições literárias em prosa ou verso. Elle faz ressaltar a importância, que a renovação da arte, tendente a estabelecer a arte brasileira, tomou no Norte. O crítico carioca não só elogiou o artigo-estudo, como também comentou consideravelmente o trabalho de seu companheiro de crítica. Além de ter destacado em seu texto algumas passagens do trabalho de José Lins. Essa boa recepção nacional do artigo-estudo fez seu autor ser conhecido nacionalmente. José Lins era agora, em fins de 1927, um nome com certa popularidade 253 Para uma análise sobre o livro Poemas de Jorge de Lima, ver: LEBENSZTAYN, Leda. “e as pedrinhas bailem”; A literatura regional, moderna e universal de Alagoas nos anos 1930. Revista Desenredos, Ano II, N. 05, Abril-Maio-Junho, 2010. 254 Jornal de Alagoas, 31 de janeiro de 1928; Jornal de Alagoas, 05 de fevereiro de 1928; Jornal de Alagoas, 27 de maio de 1928. 104 nacional, alguém que tinha conseguido relativa fama. Ganhou notoriedade nacional como o “crítico do Norte”255. Sobre a época anterior a publicação de Menino de engenho, assim se expressou Rachel de Queiroz acerca de José Lins: “era nome feito nas rodas intelectuais do Recife e até do Rio, autor de artigos, ensaios e estudos de crítica; já tinha bem afiada a sua ferramenta e completara sua formação literária”256. Em Maceió, com seu estudo sobre um caderno de poesias de Jorge de Lima, conseguiu José Lins consagrar-se com crítico literário, ocupando definitivamente este lugar de sujeito, posição essa que, ao lado da de autor de romance, foi assumida durante quase toda sua existência enquanto um homem de letras. Porém, a atividade de crítico não trouxe apenas um lugar de sujeito, mas fez também com que o fiscal de banco paraibano se integrasse no ambiente literário alagoano. Escrevendo regularmente para o Jornal de Alagoas, um dos principais periódicos daquele Estado, José Lins alcançou notoriedade na cidade de Maceió e fora dela. Como colaborador de um renomado jornal, onde alimentava semanalmente assuntos ligados à literatura, conseguiu obter capital simbólico e social 257 para transitar no meio da intelectualidade maceioense. O exercício do lugar de sujeito de crítico literário na imprensa permitiu que José Lins atuasse nas principais rodas literárias da capital alagoana. E essa atuação foi vital para o aparecimento do romancista. É o que veremos a seguir, antes de finalizarmos o capítulo. 2.5 As rodas literárias em ação Nos primeiros meses de 1932, José Lins publicou seu primeiro romance, Menino de engenho, construindo para si um novo lugar de sujeito: autor de romances. Dessa data em diante, a posição de crítico literário, que vinha sendo exercida até então, será minimizada, em nome da escrita de novos romances. A posição de autor de romances, que veio a ocupar a partir de 1932, foi bastante favorecida pela integração de José Lins com o ambiente letrado maceioense. Se o exercício da crítica literária abriu as portas para a participação nas rodas literárias, conforme esperamos ter mostrado, foram estas que mostraram ao fiscal de banco paraibano o caminho para a publicação de um romance. Nas linhas que se seguem, 255 Jornal de Alagoas, 03 de Julho de 1932. 256 QUEIROZ, Rachel de. Menino de engenho: 40 anos. In: REGO, José Lins do. Menino de engenho. Rio de Janeiro: José Olympio, 2010, p.18. 257 Capital social é usado aqui para se referir ao conjunto de relações sociais (amizades, contatos profissionais, laços de parentescos e outros relações) que um indivíduo pode manter e acumular em uma sociedade, transformando-os em algo socialmente vantajoso. Trata-se da capacidade de obter certas relações sociais, de estabelecer contatos socialmente úteis. Ver: BOURDIEU, Pierre. Op., Cit., 1996. E BOURDIEU, Pierre. Op. Cit., 2004. 105 discorremos acerca da publicação de Menino de engenho, destacando a importância do circuito intelectual no qual estava bem conectado o autor deste romance. A influência das rodas literárias no lançamento do romance de estreia do “crítico do Norte” se fez notória desde o início. Quando José Lins escreveu seu romance, ainda em folhas de um caderno escolar, quem o datilografou foi um membro das rodas literárias que o fiscal de banco tanto frequentava: Valdemar Cavalcanti 258 . Coube a este jovem decifrar a letra miúda e garranchosa do futuro romancista. O datilógrafo de Menino de engenho só teve acesso aos manuscritos originais porque era um companheiro de José Lins no ambiente letrado de Alagoas, assim como só datilografou tal material porque guardava forte estima, amizade e companheirismo intelectual para com o crítico. Somente um membro das rodas literárias poderia ter acesso aos manuscritos, pois o convívio frequente entre os homens de letras gerava certos privilégios e solidariedades intelectuais. Os partícipes das rodas literárias costumam se ligar por laços afetivos e por uma cumplicidade intelectual, originando-se daí uma série de atitudes e práticas. Uma vez datilografado os manuscritos, a tarefa que se impunha era procurar um editor. Porém, para chegar ao editor, foi necessária a mediação de alguém que não só conhecesse editores, mas que exercesse certo poder de influência sobre os produtores de livros, alguém que gozasse de capital simbólico suficiente para assegurar e legitimar a publicação. Foi assim que os manuscritos originais de Menino de engenho, já datilografados, chegaram às mãos de um outro membro das rodas literárias alagoana, estrategicamente escolhido. Jorge de Lima foi o intelectual, companheiro de José Lins no ambiente literário, escolhido para levar o texto datilografado para um editor. O poeta alagoano, por uma razão que desconhecemos, não o pode fazer pessoalmente, mas incumbiu seu irmão de realizar tal tarefa. É o que apontou o editor de Menino de engenho: “os originais me vieram às mãos através de Hildebrando de Lima, incumbido pelo poeta Jorge de Lima, seu irmão, de pedir preço à tipografia”259. Jorge de Lima era a pessoa mais indicada para mediar a publicação de Menino de Engenho, pois, além de amigo e companheiro de José Lins no universo intelectual maceioense, era um literato consagrado em sua cidade e fora dela, que tinha já vários livros publicados. O romance de 1932 de José Lins saiu justamente pela editora que havia recentemente publicado um livro do poeta alagoano: a Adersen Editores 260 . Tal editora surgiu 258 FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Op. Cit., 1979, p. 168. 259 HERSEN, S. O. O primeiro editor. In: MARTINS, Eduardo. Op. Cit., 1980, p. 345. 260 LIMA, Jorge. Poemas escolhidos. Maceió: Andersen Ed., 1932. 106 em 1930, a partir da iniciativa de dois jornalistas alagoanos, Adolfo Aizen e Sebastião de Oliveira Hersen, os quais perceberam as inúmeras dificuldades existentes na cidade para a publicação de livros. O empreendimento dos alagoanos durou pouco tempo e lançou poucos autores, pois em 1936 decretava seu fechamento. Como tantas pequenas editoras, a Adersen teve vida curta. Lançar livros em um país cuja população analfabeta atingia mais de 50 % dos brasileiros não era lá uma atividade fácil 261 , para a qual qualquer homem poderia se lançar. No anos 1931-1932, o mercado editorial nacional ainda estava em vias de aquecimento, o que iria acontecer efetivamente a partir de 1934, mais ou menos. A editora que se tornaria o grande nome do mercado editorial dos anos 1930, a José Olympio, tinha acabado de se instalar no Rio de Janeiro, vindo de São Paulo, onde surgiu em 1931. Se nas duas principais cidades do país existiam consideráveis dificuldades para publicação de livros nacionais, nas outras localidades a situação era ainda mais precária. No Brasil, até os anos 1930, era comum aos autores de livros custearem suas próprias obras e praticamente nada receberem da venda de seus materiais. Foi assim com os dois primeiros romances de José Lins, um de 1932 e outro de 1933. Para o romancista paraibano, a situação só mudou em 1934, quando o editor José Olympio ampliou o mercado editorial, oferecendo-lhe a publicação de Banguê, na qual custearia uma tiragem de dez mil exemplares e ofereceria pagamento adiantado ao autor do romance. Este foi um fato inédito na história do livro no Brasil, mas que a partir de então começaria a se tornar comum 262 . Embora José Lins tivesse um capital financeiro para custear seu livro de estreia, acumulado após alguns anos de serviço no funcionalismo público, faltava-lhe indicações, carecia-lhe homens que apostassem no seu talento e ousassem lançar um romance de alguém que só tinha até então fama como crítico literário. Assim, Jorge de Lima foi o tiro certeiro para mediar a publicação do romance inicial de José Lins, atuando como aquele que emprestava certa legitimidade ao futuro autor. Por isso Menino de engenho foi dedicado, entre outros nomes, a Jorge de Lima, que usou seu capital simbólico e social para mediar a publicação do romance de 1932 de seu amigo paraibano. Dessa forma, dois amigos e companheiros de José Lins das rodas literárias foram vitais para o aparecimento de Menino de engenho. Esse veio ao público no ano de 1932 justamente pela ação de pessoas que faziam parte do mesmo establishment intelectual a que 261 Em 1920, o censo demográfico do IBGE acusou uma taxa de analfabetismo na população brasileira de 65%. No senso seguinte, em 1940, a taxa caiu para 56, 1%. Ver: MAIC, Op. Cit., 1922. E IBGE, Op. Cit., 1940. 262 Para uma discussão sobre o mercado editorial brasileiro e sobre a editora José Olympio, ver: SORÁ, Gustavo. Brasilianas. A Casa José Olympio e a Instituição do Livro Nacional. Tese. Programa de Pós Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rio de Janeiro, 1998. 107 José Lins pertencia em Alagoas. Caso o paraibano não tivesse integrado ao circuito letrado de Alagoas, é bem provável que seu romance de estreia atrasasse alguns anos. Para um livro vir à baila, é necessária toda uma rede intelectual capaz de favorecer a sua publicação. José Lins em Maceió contava com essa rede intelectual, por que era membro dela, circulava por e através dela. Ao participar das rodas literárias, estabeleceu com os partícipes desses laços de companheirismo intelectual. Quando Menino de engenho foi publicado, o Jornal de Alagoas estampou em sua primeira página a reprodução do artigo de Valdemar Cavalcanti no Boletim de Ariel, no qual saudava o aparecimento da primeira novela de seu amigo José Lins do Rego 263 . Não bastasse datilografar os manuscritos originais, o companheiro de rodas literárias do romancista paraibano se encarregou também da divulgação de Menino de engenho. Assim como o gesto de datilógrafo, a resenha feita por Valdemar Cavalcanti pode ser entendida como a manifestação de alguém que nutria, além de amizade, forte admiração e cumplicidade intelectual com o “crítico do Norte”. Era mais uma contribuição das rodas literárias maceioenses para a vida e obra de José Lins do Rego. Ângela de Castro Gomes destacou a importância das rodas literárias para o aparecimento de intelectuais, mostrando como os momentos de sociabilidade partilhados pelos homens de letras são fundamentais para sua existência. Segundo a historiadora: O convívio entre intelectuais, como a leitura, é fundamental para o desenvolvimento de ideias e sensibilidades. Para escrever, pintar, compor etc., o intelectual precisa estar envolvido em um circuito de sociabilidade que, ao mesmo tempo, o situe no mundo cultural e lhe permite interpretar o mundo político e social de seu tempo. Por isso afirma-se que não é tanto a condição de intelectual que desencadeia uma estratégia de sociabilidade e, sim, ao contrário, a participação numa rede de contatos é que demarca a específica inserção de um intelectual no mundo cultural. Intelectuais são, portanto, homens cuja produção é sempre influenciada pela participação em associações, mais ou menos formais, e em uma série de outros grupos, que salientam por práticas culturais de oralidade e/ou escrita 264 . Apesar de longa, a citação presta-se para pensarmos não só a situação de José Lins em Maceió, como também a influência do ambiente letrado maceioense na produção de sua obra. O romancista paraibano só pôde se constituir enquanto tal porque convivia com uma gama de literatos em um universo letrado propício a literatura. Ao contrário do que ocorreu em Recife dos primeiros anos de 1920, aconteceu na capital alagoana: José Lins cercou e foi cercado 263 Jornal de Alagoas, 03 de julho de 1932. 264 GOMES, Angela de Castro. Em família: a correspondência entre Oliveira Lima e Gilberto Freyre. In: _____ (Org.). Escrita de si, escrita da história. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2004, p. 51. 108 pela literatura, através de uma participação no universo intelectual alagoano. A contribuição de Maceió consistiu em proporcionar ao escrito paraibano um ambiente letrado no qual poderia não só se integrar, como desenvolver-se e forjar-se como um romancista. Foi a partir daí que José Lins aproveitou sua veia tradicionalista-regionalista para produzir sua obra literária. Em Maceió, sob a influência e estímulos de vários escritores, alguns deles reconhecidos nacionalmente, José Lins escreveu seus três primeiros romances: Menino de Engenho (1932), Doidinho (1933) e Banguê (1934). Tal produção literária, alimentada anualmente, foi bastante favorecida pelo convívio do romancista paraibano com os homens de letras da cidade de Maceió. Sobre os anos maceioenses, assim se exprimiu José Lins: “relembro a fase alagoana de minha vida como tempos fecundos, época de floração de minha carreira. Saia do aprendizado para fazer qualquer coisa com as minhas próprias mãos”265. Tais palavras foram ditas em 1942, quando o escritor já era consagrado como um dos grandes nomes da literatura nacional. Não foi à toa que a origem de seu ofício enquanto romancista foi alojada em Maceió, tempo em que estava em intenso contato com os literatos maceioenses. Sobre esses, ainda apontou: “muito lhes devo pelo que me animaram, pelo interesse, pelo calor com que me ajudaram a escrever os meus primeiros romances”266. Convivendo em meio as rodas literárias alagoanas, José Lins desfrutou de um ambiente fértil em discussões literárias, rico em contatos pessoais e estimulador de produções artísticas. 265 REGO, José Lins do. Gordos e Magros. Rio de Janeiro: Casa do estudante do Brasil, 1942, p. XIII. 266 REGO, José Lins do. Op. Cit., 1942, p. XII. 109 Parte II Abram-se as porteiras: a literatura de engenho 110 Capítulo 3 O engenho da memória: Massangana (1900), o discurso inaugural da literatura de engenho 267 Nabuco, num capítulo da “Minha Formação”, tocara com mão de mestre num manancial escondido. José Lins do Rego 268 . A trajetória intelectual de José Lins, que retraçamos nos capítulos da parte anterior, foi o nosso guia para enveredarmos pela floresta da historicização da literatura. Com ela, pudemos vislumbrar como aquele autor chegou a ocupar o lugar de sujeito de autor de romances. Os capítulos precedentes foram orquestrados como base no intuito de mostrar como a obra literária de José Lins veio à tona, como foi possível produzi-la, escrevê-la. Nesse sentido, elegemos o percurso de vida sinuoso de um indivíduo para apontarmos os elementos a partir dos quais uma produção literária romanesca foi possível. A vida do paraibano foi a nossa bússola para historicizarmos seus romances. No entanto, a historicização literária, centrada na biografia de um homem, que iniciamos nas páginas anteriores, ainda não está de toda adequada. Falta ainda um fator igualmente vital para historicizarmos a literatura de José Lins do Rego. A produção literária de José Lins não pôde emergir somente graças ao seu tradicionalismo-regionalismo e seus anos maceioenses. Esses foram, sem dúvida, elementos vitais, mas, para além deles, é preciso termos em mente que o nosso autor, ao escrever seus romances, continuava um saber que teve seu ponto de irrupção em fins do século XIX. Ao produzir seus livros, o paraibano se inseria numa malha discursiva, pensava a partir de uma série de enunciados que lhe precediam e que lhe condicionavam. O discurso que José Lins a partir de 1932 passou a veicular estava dentro de uma regularidade discursiva, obedecia a uma gama de topos 269 que foram instituídos pela formação discursiva literatura de engenho. A 267 Uma primeira versão deste capítulo, bastante reduzida, foi publicada em: FERNANDES, Diego José. Imagens da escrita, escrita das imagens: visualizações do engenho em Minha Formação. Revista Cordis, São Paulo, Num. 9., p. 51-84, Jul./Dez. 2012. 268 REGO, José Lins do. In: BELLO, Julio. Memórias de um senhor de engenho. Rio de Janeiro: José Olympio, 1938, p. XIX. 269 Sobre a noção de topos, ver: KOSELLECK, Reinhart. História Magistra Vitae: sobre a dissolução do topos na história moderna em movimento. In:_______. Futuro passado: contribuição a semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto, 2006, p. 21-61. 111 produção literária do paraibano que se iniciou com Menino de engenho era mais um discurso ligado à literatura de engenho, que nos anos 1920 e 1930 grassava no Brasil com certa vitalidade, estruturando uma gama de práticas discursivas. Sua existência só foi possível no interior deste sistema discursivo. Todavia, antes ainda das décadas iniciais do século XX, irrompeu um discurso que podemos apontar como fundador da literatura de engenho, lançando, pioneiramente, as bases para uma visão gloriosa do engenho. Trata-se do capítulo Massangana, presente no livro Minha Formação de Joaquim Nabuco (1849-1910), o qual em 1900, ano de sua publicação, rememorou o engenho em páginas autobiográficas hoje célebres. O Massangana, engenho da meninice de Joaquim Nabuco, não estava mais na “vista” do pernambucano, desde quando o deixou quando tinha ainda oito anos de idade, em 1857. No entanto, o político pernambucano dele não se esqueceu, ao ponto de, entre 1893-1899, anos da escrita das suas memórias, dedicar-lhe notas bastante elogiosas. A distância temporal e espacial não fez com que Nabuco deixasse na escuridão do esquecimento o território familiar de seus primeiros anos de vida. Suas memórias escritas veem, pois, constituírem-se na linguagem que tentará dar conta de uma ausência material, dado que o engenho não lhe é mais possível ver, a não ser pelas lentes da memória. Tal qual se foram seus primeiros tempos de vida, foi-se também seu banguê 270 da tenra idade. Muito mais do que contar sua estadia em Massangana, o autor de Minha Formação tratou de construir uma determinada perspectiva acerca deste espaço, mostrando como lhe foi vital para seu desenvolvimento humano e político. Reviver o engenho, visualizando para si e para os leitores, sem dúvida foi um dos objetivos de Nabuco ao escrever suas memórias de formação. Tal espacialidade teve um papel crucial na vida do diplomata pernambucano. Por isso a necessidade de abordá-lo em linhas autobiográficas: mostrar sua importância, seu papel, sua ação na vida de um homem que se tornou um renomado personagem da história brasileira. No presente capítulo, visamos explicitar o modelo narrativo sobre os engenhos a partir do qual uma série de autores, entres os quais situaremos José Lins com seus romances, serviram-se para exporem sua visão sobre o banguê dito nordestino. Trata-se de, através da análise do engenho em Minha Formação, mostrar o discurso inaugural da literatura de engenho, discurso esse que orquestrou uma gama de outras produções discursivas posteriores. O discurso de Joaquim Nabuco sobre sua infância rural constituiu o primeiro produto da 270 Banguê é usado nesta parte como sinônimo de engenho açucareiro. 112 formação discursiva literatura de engenho. Uma visão exaltada do engenho irrompeu com o capítulo Massangana, conforme veremos a seguir. Escolhemos ainda as memórias de Joaquim Nabuco porque pensamos que tal obra é inaugural do topos literário do engenho como espaço da saudade 271 , ou seja, acreditamos que ela instituiu o banguê senhorial nordestino como um espaço do qual se deve sentir saudade, como um espaço superior ante outros espaços. A partir de Nabuco, o engenho vai ser dito e visto quase sempre como algo do passado, da infância, da gloriosa época patriarcal brasileira, da qual se tem toda uma afetividade saudosa. Com aquele autor, o banguê tornou-se algo da e para memória, um espaço que só a lembrança seria capaz de retirar do esquecimento. O engenho vem da memória nostálgica. Todo topos é instituído no discurso, fruto de uma operação linguística, jamais sendo algo inerente a certas descrições. Os topos atuam no sentido de sedimentar uma compreensão, de solidificar significados, cristalizando determinados sentidos para dados objetos. Trata-se de uma fala recorrente sobre um dado ente, um conjunto de imagens e sentidos frequentemente repetidos de forma deliberada ou involuntária a respeito de um elemento. Ele é algo marcado pela continuidade, pela repetição, estrutura discursiva elaborada e reelaborada por uma gama de discursos, o que lhe confere certa longevidade. O engenho, como veremos, é um feixe de significados recursivos, justamente por estar ligado a certos topos, os quais aparecem pioneiramente pontilhados por Joaquim Nabuco. O capítulo Massangana, assim, revelou-se com um texto fundador, momento discursivo inaugural da literatura de engenho. E por que consideramos o texto de Nabuco como um relato fundador? Conforme esperamos mostrar neste capítulo, o autor de Minha Formação, com um estilo literário marcante que o particularizará na literatura brasileira, construiu uma visão bastante sofisticada e engenhosa da propriedade açucareira. Na sessão sobre Massangana, Joaquim Nabuco foi além de uma simples descrição memorialística dos anos passados em tal propriedade. Como veremos mais a frente, o engenho surgirá como muito mais do que um mero cenário da meninice ou uma paisagem bucólica. Nabuco conferirá um peso enorme ao seu banguê e fará dele um espaço grandioso e sublime, vital para sua vida. Tal construção discursiva, associada a outros elementos que veremos no decorrer de nosso trabalho, fez com que o texto de Nabuco sobre Massangana fosse frequentemente referenciado e atualizado quando o assunto fosse os engenhos açucareiros. 271 Sobre a noção de espaço da saudade, ver: ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz. Espaços da saudade. In:_____. A invenção do Nordeste e outras artes. 4 Ed. São Paulo: Cortez; Recife: Massangana, 2009. 113 Sendo assim, analisaremos o texto memorialístico de Joaquim Nabuco, a narrativa 272 evocativa deste autor, sem nos preocuparmos muito com o que está “fora do texto”, a fim de inquirirmos a irrupção de uma matriz narrativa sobre o mundo dos banguês. Para tal, centralizaremos na construção discursiva do engenho de infância tal qual operada por Nabuco em suas memórias escritas. Como o abolicionista pernambucano inaugurou toda uma tradição discursiva enaltecedora do engenho? Qual foi a imagem que Minha Formação mobilizou para o engenho Massangana? Quais os expedientes linguísticos utilizados para a fabricação de uma específica visão acerca do engenho? São as perguntas estruturadoras deste capítulo. Em suma, acompanharemos a linguagem escrita de Nabuco nas suas reminiscências a fim de percebermos como uma particular perspectiva do engenho foi fabricada, fundando toda uma literatura de engenho posterior 273 . 3.1 O engenho Massangana e Minha Formação Joaquim Aurélio Barreto Nabuco de Araújo, filho do eminente jurista e político baiano, José Tomás Nabuco de Araújo Filho, do qual fez a volumosa biografia intitulada Um estadista do Império 274 , nasceu em 19 de agosto de 1849, no Recife, em uma tradicional e abastada família patriarcal. Nesse mesmo ano, seu pai foi eleito deputado, o que fez com que fosse, juntamente com a esposa, para o Rio de Janeiro, cidade onde estabeleceu residência. Com isso, o menino Quincas, como era chamado carinhosamente Nabuco, ficou aos encargos da madrinha Ana Rosa Falcão de Carvalho e do padrinho Joaquim Aurélio de Carvalho, no engenho Massangana, propriedade deste casal. Sua estadia nesta terra foi até 1857, quando ela passou para posse de outras pessoas, em virtude do falecimento de sua madrinha. Depois de deixar seu “paraíso perdido”275, seguiu para o Rio de Janeiro, a fim de continuar seus estudos. Em 1859 passou a estudar no colégio do Barão de Tauthpoeus em 272 Entendemos a narrativa, a linguagem escrita de Nabuco, como “o estabelecimento de uma organização temporal, através de que o diverso, o irregular e o acidental entram em uma ordem; ordem que não é anterior ao ato da escrita mas coincidente com ela; que é pois constitutiva de seu objeto” . Tal definição nos previne daquilo que Pierre Bourdieu chamou de “ilusão biográfica”. A partir dela, pensamos a escrita memorialística como um empreendimento ordeiro da vida. Ver: LIMA, Luiz Costa. A aguarrás do tempo. Rio de Janeiro: Rocco, 1989. p. 17. e BOURDIEU, Pierre. A ilusão biográfica. In:_____. Razões práticas. Sobre a teoria da ação. São Paulo: Editora Papirus, 1996. p. 74-75. 273 Para nossa análise, tomamos como objeto a primeira edição de Minha Formação, exemplar digitalizado do acervo Brasiliana USP. Por conta disso, em quase todas as citações, manteremos a ortografia da primeira edição. Consultamos outras edições, para vermos algumas modificações e para conhecemos a introdução que alguns autores fizeram à autobiografia de Joaquim Nabuco. 274 NABUCO, Joaquim. Um estadista do Império: Nabuco de Araújo, sua vida, suas opiniões, sua época. 4. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1975. 275 NABUCO, Joaquim. Minha Formação. São Paulo: Brasiliana USP, 1900, p. 222. 114 regime de internato, aprendendo muito neste local, e, no ano seguinte, ingressou no famoso colégio Pedro II 276 . Mais tarde, em 1866, entrou para a Faculdade de Direito de São Paulo, mas se bacharelou em Ciências Jurídicas, em 1869, no Recife. Os anos seguintes, já não tanto de formação acadêmica, são marcados por viagens à Europa e aos Estados Unidos, participação na imprensa e movimentos sociais, notadamente no abolicionismo, do qual foi um dos fundadores. Quando começou a fazer as anotações que mais tarde, em 1900, dariam na publicação de Minha Formação, Nabuco já era alguém consagrado: jurista, jornalista, político e diplomata de capacidade quase inquestionável no meio intelectual brasileiro 277 . Ademais, antes de 1900 (ano da publicação das memórias), Nabuco já tinha publicado O abolicionismo, em 1883, e Um estadista do Império, em 1899 (publicação do último tomo) 278 . Assim, já era uma figura conhecida nacional e internacionalmente. Como tantas autobiografias, a sua também veio na época da glória, marcando mais um momento de consagração do indivíduo Joaquim Nabuco. Segundo Luiz Costa Lima, as memórias de Joaquim Nabuco foram escritas em um momento de turbulência pessoal. Após a Proclamação da República no Brasil, em 1889, o monarquista pernambucano retirou-se para o exílio e iniciou uma fase de isolamento, solidão e introspecção. De acordo com o crítico literário maranhense, tal período foi uma época de “luto e dificuldades financeiras extremas, Nabuco se autoexila e faz da memória e do estudo de documentos, que reunia e examinava desde 1893, sua salvaguarda contra o desarvoramento da existência”279. O gesto de voltar-se ao passado, feito por Nabuco, parece ter sido motivado pelo presente de agonia e incerteza, vivido em fins do século XIX. A chama do memorialismo acendeu-se com um presente desolador. Diante disso, Minha Formação marcou o momento de construção da memória do passado de Joaquim Nabuco. Com tal obra, produzida em fins do século XIX e publicada integralmente na aurora de uma nova era, seu autor enquadrava seu passado, selecionava para a posterioridade uma determinada faceta da vida e obra de Joaquim Nabuco, ilustre homem do meio intelectual brasileiro. Passados os anos de diplomata, findado os combates pelo fim da escravidão e decaída a monarquia, era preciso dizer para a sociedade brasileira, da sua época e 276 Nabuco retrata a importância de Tauthpoeus para sua formação no capítulo XXV de Minha Formação. Ver NABUCO, Op. Cit., 1900, p. 284-300. 277 Na terceira página de Minha Formação consta, logo abaixo do nome de Joaquim Nabuco, “da Academia de Letras e do Instituto Histórico e Geographico”. NABUCO, Op. Cit., 1900, p. 3. 278 NABUCO, Joaquim. O abolicionismo. Brasília: UnB, 2003. 279 LIMA, Luiz Costa. Nabuco: Trauma e Crítica. In: ______. Intervenções. São Paulo: Edusp, 2002, p. 341. 115 do futuro, quem foi Joaquim Nabuco, de onde ele veio, por onde andou, o que fez, pensou e sentiu. A autobiografia de 1900 fornecerá tais respostas. Minha Formação, publicado pela Editora Garnier e dedicado aos filhos de Nabuco, foi todo estruturado de modo a mostrar os principais elementos que concorreram para a formação de seu autor. O livro foi divido em 26 capítulos, cada um dos quais mostrando a influência de um dado fator para formar o autor conhecido nacionalmente, cobrindo uma temporalidade de mais ou menos 30 anos (1859-1889). Segundo Durval Muniz de Albuquerque Júnior, a “ideia de formação é teleológica, pressupõe um tempo que se preenche e que se satura, um tempo que aponta para um final como conclusão e fechamento da trajetória de um Eu que apareceria aí formado, completo”280. Nabuco aparentou entender sua formação deste modo, ou seja, como um processo linear e finito. Sobre o objetivo de suas memórias, assinalou: “a primeira idea fôra contar minha formação monarchica; depois, alargando o assumpto, minha formação político-litteraria; por ultimo, desenvolvendo-o sempre, minha formação humana”281. A formação aqui foi entendida como o desenvolvimento de sua personalidade, postura política, orientação religiosa e gosto literário. Sua escrita de si foi para revelar como apareceu um Joaquim Nabuco humanista, monarquista, católico e literariamente anglo-saxão. A noção de formação, entendida como o desenvolvimento humanitário, político e humanístico do indivíduo, era algo bastante caro aos intelectuais do Brasil oitocentista. Muitos estadistas brasileiros do século XIX, além de políticos, eram também homens de letras. Política e letras andavam, muitas vezes, juntas no campo político do Brasil imperial 282 . Daí porque Joaquim Nabuco falou em formação político-literária. Sua noção de formação aponta ainda para um processo educativo mais amplo, cujo fim era não tanto a instrução, entendida como uma educação voltada para o acúmulo de conhecimento, mas sim para o desenvolvimento de sua personalidade e de seu caráter. Joaquim Nabuco formou-se não para ser alguém instruído, mestre detentor de um vasto conhecimento sem utilidade social, mas sim para ser uma pessoa capaz de entender o mundo e agir nele. Sua formação nas duas Faculdades de Direito do país (São Paulo e Recife), centros de ensino que primavam por fornecer ao país braços e mentes para dirigir a nação, infundiu no 280 ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz. De armazém à campo cultivável: a instrução e a formação como diferentes formas de aprendizagem e como diferentes relações com o saber e com a leitura, produzindo subjetividades e sujeitos outros. Revista Línguas & Letras, Cascavel, V.6, N.10, p. 249-271, 2005. 281 NABUCO, Op. Cit., 1900, p. 210. 282 Sobre a discussão do conceito de formação em Joaquim Nabuco, conferir o artigo de MARICONI, Italo. Um estadista sensitivo. A noção de formação e o papel do literário em Minha Formação de Joaquim Nabuco. Revista Brasileira de Ciências Sociais, Vol. 16, Num. 46, 2001. 116 acadêmico Nabuco certo senso pragmático e utilitário, típico da sociedade burguesa-liberal que começava a acenar no Brasil dos anos 1870. Embora atado familiarmente a origens aristocráticas e rurais, Joaquim Nabuco formou-se enquanto um indivíduo urbano, capaz de viver e conviver com princípios sociais burgueses e modernos, o que, de fato, aconteceu na sua vida, em especial quando transitou pelos Estados Unidos e Europa. A própria noção de formação, ao contrário da de instrução, relacionada a formações sociais tradicionais, está ligada a uma sociedade urbano-industrial 283 , onde o indivíduo ocupa um lugar de destaque. O fato do banguê Massangana figurar nas memórias, em um livro que expõe os fatores que concorreram para uma formação, já é por si só significativo 284 . Ao lado de personalidades políticas e literárias, de cidades famosas, como Londres, Paris, Washington e Vaticano, está o engenho, também retratado como elemento formador. Mesmo tendo passado menos de dez anos nele, a influência da terra e das pessoas que viviam nela foi dita como sendo sentida. Aponta-nos Nabuco: os primeiros oito annos da vida foram assim, em certo sentido, os de minha formação instinctiva, ou moral, definitiva [...]. Passei esse período inicial, tão remoto, porém, mais presente do que qualquer outro, em um engenho de Pernambuco, minha província natal 285 . Mesmo sendo um tempo tão remoto e curto, a influência exerceu-se. Deu o engenho sua contribuição no desenvolvimento do menino. Conseguiu ficar presente na vida do sujeito Nabuco como uma luz forte que não se apaga nem com o tempo nem tampouco com a distância espacial. Daí a necessidade de revivê-lo, de (re)visualizá-lo em linhas autobiográficas. Interessante pontuarmos que autores como Gilberto Freyre e José Lins do Rego, que passaram breves períodos da infância em um engenho, também colocaram esta espacialidade como algo central em suas vidas. A valorização do engenho parece não depender necessariamente do tempo que se passou nele, mas sim de uma suposta influência exercida 286 . Tal é o que certos discursos valorizadores do engenho quer nos fazer crer. 283 ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz. Op. Cit., 2005. 284 Um dado pertinente diz respeito a quantidade de páginas dedicadas ao engenho, que somam o número de 15 páginas, constituindo-se como o quarto maior capítulo. O maior de todos retrata sua visita ao Vaticano (23 páginas), o segundo é o da Abolição (19 páginas) e o terceiro é o que trata do pai (18 páginas). 285 NABUCO, Op. Cit., 1900, p. 211. 286 Sobre isso, conferir as memórias escritas destes autores. Ver FREYRE, Gilberto. Tempo Morto e Outros Tempos. Rio de Janeiro: José Olympio, 1975. e REGO, José Lins do. Meus verdes anos. Rio de Janeiro: José Olympio, 1956. 117 Também é sugestiva a posição que o capítulo sobre o engenho, intitulado apenas Massangana, ocupou no livro de memórias de Joaquim Nabuco. Trata-se do vigésimo capítulo, já um dos últimos, e foi colocado entre o capítulo nomeado de Eleição de deputado e o Abolição. Como bem percebeu Alfredo Bosi, o capítulo sobre o engenho estava entre as memórias de 1878-1888, justamente o “tempo forte da campanha pela libertação dos escravos” 287. Massangana foi, assim, o capítulo que abriu as memórias sobre o movimento Abolicionista, como se o autor quisesse nos mostrar que a causa primeira de sua militância social advém da estadia que passou no banguê de sua madrinha. O motor primevo de sua luta abolicionista foi Massangana; “eu trazia da infância o interesse pelo escravo” 288. E assim, a partir de uma relação que se pretende direta e causal entre antiescravismo e banguê de infância, uma imagem do engenho foi aos poucos sendo encenada. 3.2 Sentidos da construção discursiva do Massangana De fato, uma das imagens que Nabuco construiu para o engenho de sua meninice consistia no Massangana como uma força mobilizadora, uma espécie de agente histórico atuante em sua vida. Eis uma das mais famosas passagens do livro: “Massangana ficou sendo a séde do meu oráculo íntimo: para impellir-me, para deter-me, e, sendo preciso, para resgatar-me, a voz, o frêmito sagrado, viria sempre de lá. Mors omnia solvit ” 289. O engenho foi aqui representado como um sujeito histórico ao mesmo tempo humano e divino, que ora fazia Nabuco parar, ora o fazia seguir. Tratava-se de algo interior, que teria poderes para impulsionar a ação individual. A despeito da morte do Massangana, de sua destruição para Nabuco, este ainda o representou como uma espécie de entidade, que lembrava a figura do oráculo antigo, pois nas horas difíceis aparecia como a fonte de conselho, de sabedoria, de orientação ante os dilemas da vida. A saída do engenho não foi de maneira alguma o fim da espacialidade para Joaquim Nabuco, na medida em que o preservou dentro de si, como uma espécie de um ser que seria sempre rememorado e consultado. Como força interior, o engenho estaria livre da destruição material, viverá enquanto viver o sujeito que o abrigou em seu íntimo. O sentido do engenho como agente histórico ganhou mais consistência quando o autor de O abolicionismo assinalou seu combate contra a escravidão, colocando-o como fruto de 287 BOSI, Alfredo. Joaquim Nabuco memorialista. Estudos avançados, Vol. 24, Num. 69, 2010, p. 88. 288 NABUCO, Op. Cit., 1900, p. 209. 289 NABUCO, Op. Cit., 1900, p. 223. Tradução livre: “a morte resolve tudo”. 118 sua vivência no Massangana: “a escravidão para mim cabe toda em um quadro inesquecido da infância, em uma primeira impressão, que decidiu, estou certo, do emprego ulterior de minha vida”290. Figuramos o banguê, espaço onde se deu a infância de Nabuco, como o elemento que determinou as ações posteriores do menino Quincas, sua militância contra a escravatura. A imagem do engenho não foi senão de uma força impulsionadora, atuante, semelhante “as cordas soltas, mas ainda vibrantes, de um instrumento que não mais existe”291. Daí o autor dizer, sobre o tempo que passou em contato vivo com aquela força modeladora: “meus moldes de idéas e de sentimentos datam quasi todos d’essa epocha”292. O Massangana foi forjado como um fator essencial para o antiescravismo de Nabuco, como a essência de sua vocação antiescravocrata. Ora, a grande causa do abolicionista, aquilo que lhe trouxe mais prestígio e o fez, talvez, entrar para história, foi colocado como produto de um espaço, das relações sociais e das pessoas que ali tinham seu lugar. “Eu trazia da infancia o interesse, a compaixão, o sentimento pelo escravo – bolbo que devia dar a única flor da minha carreira”293. Seguramente, onde se tem infância podemos ler engenho, na medida em que sua meninice foi desfrutada neste espaço. Com isso, o Massangana ganhou uma importância cabal: causa da grande obra de Nabuco. A uma obra grandiosa – o combate à escravidão – corresponderia um fator também grandioso – o engenho. Pensando a narrativa como ordenação temporal, tal como nos recomenda o crítico literário Luiz Costa Lima, a propriedade Massangana foi recriada como o elemento que ligou o menino Quincas ao adulto Joaquim Nabuco, o menino de engenho ao ardoroso antiescravista 294 . Estabeleceu-se uma continuidade, dentro do tempo narrativo, entre a temporalidade da meninice, desfrutada no engenho, e a vida de homem feito a lutar pelo fim da escravidão. Ao colocar o banguê como fator crucial para seu antiescravismo, o memorialista Nabuco criou a visualização de uma linha temporal ordenada. O Massangana era, pois, peça da montagem da narrativa que ligava tempos distintos, que enlaçou com um nó firme o menino e o homem adulto, o passado e o presente. A impressão que nos deu foi que o fervoroso monarquista pernambucano quis colocar também o engenho Massangana na história, como fator desencadeador de seus combates sociais. Ao assinalar que o engenho contribuiu para sua formação, esta espacialidade ganhou ares de sujeito, de força, de agente atuante. Da memória individual para a história coletiva, tal 290 NABUCO, Op. Cit., 1900, p. 215. 291 NABUCO, Op. Cit., 1900, p. 214. 292 NABUCO, Op. Cit., 1900, p. 215. 293 NABUCO, Op. Cit., 1900, p. 203-204. 294 LIMA, Op. Cit., 1989, p. 17. 119 foi o movimento que Nabuco fez. Com isso, forjou-se uma visão do banguê como força presente, atuante e responsável por atos e desejos humanos. A memória de Joaquim Nabuco do engenho parece ter concedido poderes a essa espacialidade. Sendo assim, o memorialista reproduziu as terras de sua infância não como um espaço qualquer, mero cenário, que diria respeito somente a um período distante, mas sim como algo vivo e atuante, como uma força histórica fundamental para a formação de sua persona. Mediante a escrita autobiográfica, foi construindo relações de causalidade entre o engenho e suas ideias e atuações públicas, de modo que ficou a imagem do primeiro como algo que influiu decisivamente na vida do indivíduo. O combate à escravidão e a sensibilidade humanitária figuram como uma dívida ao Massangana. As causalidades parecem ter sido os elementos que permitiu a fabricação do engenho como agente histórico. As metáforas (oráculo, a voz, o frêmito sagrado) tem também um papel importante para não só marcar a relação de causa e efeito, mas para permitir uma determinada visualização do engenho. As imagens vêm com mais clareza a partir do uso figurativo das palavras, pois “la representacion visual no puede representarse a si mesma; tiene que ser representada por el discurso”295. A maneira como Nabuco usou a linguagem escrita, quando selecionou tal ou qual palavra, fazendo a descrição metafórica, acionou uma determinada visualidade do engenho, a qual acreditamos consistir no Massangana como um agente histórico. A visualização depende do discurso, do manejo das palavras, habilidade que Joaquim Nabuco, assim como a retórica e a oratória, dominava muito bem. Interessante pontuarmos que essa representação do Massangana como agente ou força impulsionadora desencadeou na posteridade ardorosas discussões. Em 1969, quase setenta anos depois da publicação de Minha Formação, o intelectual pernambucano Sylvio Rabello (1889-1972) escreveu um texto intitulado Retrato de Joaquim Nabuco no I.J.N.P.S 296 , no qual criticava a leitura de “muitos intelectuais aflorados em conhecimento” segundo a qual o Massangana seria o elemento responsável pela personalidade do abolicionista pernambucano. Assim se exprimiu Sylvio Rabello: A um menino de oito anos, por mais sensível que fosse ao contacto do mundo, não bastariam a paisagem e a atividade do engenho para cavar tão fundo os traços essenciais de sua personalidade. Creio que não foi Massangana em sua condição propriamente física que teria feito o milagre de 295 MITCHELL, William John Thomas. Imágenes textuales. In:_______. Teoría de la imagem. Madrid: Ediciones Akal, S.A., 2009. p. 142. Tradução livre: “A representação visual não pode representar-se a si mesma; deve ser representada pelo discurso”. 296 Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais. 120 prender Nabuco às recordações dos primeiros anos, a tal ponto que o engenho fosse para ele a “sede de seu oráculo íntimo”297. Passados alguns anos do texto de Rabello, o norte riograndense Nilo Pereira (1909- 1992) externaria sua discordância em relação a aquele autor, escrevendo um artigo sugestivamente intitulado Joaquim Nabuco, menino de engenho. Neste trabalho, seu autor defendeu fervorosamente a perspectiva que vemos até então discutindo, a saber, do Massangana como um agente histórico na vida de Joaquim Nabuco. Segundo Nilo Pereira, foi ali, na paisagem da infância, que surgiu o abolicionista nesse juramento feito diante dos túmulos dos “santos pretos”, que dormiam o sono do perdão no silêncio e na evocação de Massangana. Eis o Nabuco, menino de engenho, a receber a inspiração da sua infância para a grande campanha abolicionista, que o tomou pela vida toda. [...] Ali, no Massangana, Nabuco adquiriu todas as forças para fazer face à luta contra a escravidão 298 . Dessa forma, o sentido do Massangana como uma força atuante, fundamental para a formação de Joaquim Nabuco, em geral, e do seu combate contra a escravidão em particular, gerou uma discussão onde podemos mapear posturas discordantes – como a de Sylvio Rabello – e favoráveis – como a de Nilo Pereira. Aquele intelectual recifense se insurgiu contra a possibilidade de uma breve vivência em um engenho ser suficiente para formar uma personalidade adulta, ao passo que o norte riograndense Nilo Pereira afirmou convictamente que “Nabuco vem todo inteiro do seu engenho Massangana”299. Para um, a impossibilidade de um espaço brevemente experimentado na infância ser capaz de moldar uma formação e determinar atos e desejos. Para outro, a possibilidade de uma vida se formar quando de um contanto com um espaço rico em natureza, tipos sociais e história. Nosso objetivo, ao retratarmos brevemente este debate, é apenas para enfatizarmos que a perspectiva do banguê que estamos aqui discutindo recebeu atenção de diferentes intelectuais, seja para negá-la ou afirmá-la. Longe de nosso intuito é dizer quem está certo ou errado. Antes, queremos realçar que a visão de Nabuco sobre seu engenho de meninice suscitou debates e posturas divergentes. O sentido do Massangana como um agente histórico caiu em discussão, recebeu atenção, provocou posições opostas, como podemos inferir a partir 297 RABELLO, Sylvio. Retrato de Joaquim Nabuco no I.J.N.P.S. Boletim do Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais, n. 16, 1969, p. 26-27. 298 PEREIRA, Nilo. Joaquim Nabuco, menino de engenho. In: ______. Ensaios de história regional. Recife: Universitária, 1972. 299 PEREIRA, op. cit., 1972, p. 227. 121 do debate entre Sylvio Rabello e Nilo Pereira. No entanto, esse não foi o único efeito na posteridade. O significado do engenho açucareiro como uma força atuante também foi expressado por um outro pernambucano, também admirador da vida e obra de Joaquim Nabuco. Trata-se de Cícero Dias (1907-2003), reconhecido pintor brasileiro que nasceu e viveu sua infância em três engenhos pernambucanos: Noruega, Contendas e Jundiá. Nos últimos anos de sua vida, o pintor pernambucano decidiu escrever suas memórias, porém no ano de 2003 viu-se obrigado a interromper seu projeto, em razão de seu falecimento, deixando assim sua autobiografia inacabada. Mesmo assim, em 2011, publicaram-se suas memórias inconclusas, já que elas abrangiam uma temporalidade relativamente considerável. A publicação foi sugestivamente intitulada de Eu vi o mundo 300 , alusão ao conjunto artístico que reuniu as obras mais famosas de Cícero Dias: Eu vi o mundo... E ele começava no Recife. Eis o que Cícero Dias apontou sobre os engenhos de sua meninice: Vivi em três casas-grandes: Noruega, Contendas e Jundiá. Jundiá foi a capital de minha infância. Lá recebi o sopro da vida. A vida que levei nesses engenhos foi estimulante para as obras que mostrei mundo afora. Antes que a nostalgia me cercasse, a arte ia me jogando para frente. Foi a grande cúmplice de tudo o que fiz. Um produto mágico dos engenhos 301 . O engenho, ou melhor, os engenhos, foram construídos discursivamente como espaços que teriam dado uma contribuição para a vida profissional de Cícero Dias. O que o pintor fez, em termos de artes, teria sido feito a partir de algumas contribuições dadas pelo engenho, em especial pelo banguê Jundiá. Os quadros que produziu, em especial na sua primeira fase, a etapa regionalista, deve-os o seu autor aos engenhos, ao território experimentado na idade tenra. O sopro de vida que apontou ter recendido de e em Jundiá revelaria, assim, uma ambiguidade: apontaria tanto para o local onde nasceu como para o elemento a partir do qual iniciou sua vida artística como pintor. Do engenho teria vindo seu nascimento como homem e como pintor. Eis o quadro imaginado por Cícero Dias. Ao longo do livro, a narrativa memorialística de Cícero Dias sobre sua meninice como menino de engenho avançou no sentido de mostrar que os banguês onde viveu possuíam uma ambientação sugestiva, estimuladora da arte. Noruega, Contendas e Jundiá não eram meros engenhos, mas sim realidades favoráveis à pintura, ao despertar da consciência artística. Assim como Joaquim Nabuco, convivendo no Massangana, foi predisposto ao 300 DIAS, Cícero. Eu vi o mundo. São Paulo: Cosac & Naify, 2011. 301 DIAS, Cícero. Op. Cit., 2011, p. 14. 122 antiescravismo, temos Cícero Dias, inclinado à pintura graças aos engenhos. Em uma entrevista realizada em 2000, por Cesar Leal, o artista pernambucano também expressou a construção discursiva que estamos aqui discutindo: “Jundiá era a capital da minha infância. Lá recebi o sopro da vida. Que vida? A vida que levei por esses Engenhos. Ela foi estimulante para a minha obra. Obras minhas, criadas pelas minhas mãos e que as mostrei pelo mundo afora”302. O texto indicia não só o uso de palavras e frase usadas nas memórias escritas, como sinaliza também para a visão do engenho como um agente, como uma força atuante e contribuinte na vida do indivíduo. A representação de Nabuco sobre Massangana parece ter atingido uma longevidade, chegando aos anos 2000 e atingido Cícero Dias, que a usou para expressar sua dívida para com os espaços de sua meninice rural, a suposta origem de seus primeiros quadros. O engenho como agente, elemento influenciador de vidas e personalidades, tornou-se um topos em vários discursos ligados a literatura de engenho. Porém, o banguê como força atuante não foi o único sentido com que o autor de Minha Formação construiu seu “paraíso de infância”. Outro significado do engenho que salta ao leitor nas linhas de sua autobiografia consistia em uma imagem de uma terra grandiosa e extensa, algo próximo do que podemos chamar de um reino, caso entendamos que este guarda determinadas características 303 . Acompanhemos as primeiras descrições do Massangana: a terra era uma das mais vastas e pittorescas da zona do Cabo [...]. Nunca se me retira da vista esse panno de fundo da minha primeira existência [...]. A população do pequeno domínio, inteiramente fechado a qualquer ingerência de fóra, como todos os outros feudos da escravidão 304 . Percebemos os seguintes elementos na construção discursiva do engenho: território extenso, fechado, autônomo, que abrigaria uma enorme e variada população de “sinhás, inhós, aderentes, escravos e rendeiros”305. O engenho foi tecido como uma propriedade alargada, independente, uma espécie de reino feudal. A noção de domínio nos remete para uma terra senhorial de proporções territoriais consideráveis (apesar do adjetivo pequeno anteposto) e 302 LEAL, Cesar. Conversando com Cícero Dias. Entrevista realizada em 2000. Disponível em: . Acesso em: 11 mai. 2013. 303 Apontamos cinco, as quais no decorrer do texto serão operacionalizadas: 1) espaço personalizado na figura de uma autoridade, no caso um rei; 2) espaço coeso e agrupado, tanto em termos humanos quanto territoriais; 3) espaço que tende a ser territorialmente extenso; 4) espaço que tende a ser autossuficiente e 5) espaço ligado às sociedades aristocráticas. Tais características foram baseadas a partir das seguintes referências bibliográficas: DUBY, George. As três ordens ou o imaginário feudal. Lisboa: Estampa, 1994. BLOCH, Marc. A sociedade feudal. Porto: Edições 70, 2001, p. 432-502. e GIORDANI, Mário Curtis. História dos reinos bárbaros. Rio de Janeiro: Vozes, Vol. II 1976. 304 NABUCO, Op. Cit., 1900, p. 211. 305 Idem. 123 que goza de certa autonomia perante outros espaços. Nabuco usou um vocabulário medieval (domínio e feudo) para caracterizar suas terras 306 como uma espacialidade vasta, onde a comunicação com outros espaços quase não ocorreria, em razão da grandeza territorial. As noções medievais de feudo e domínio foram agenciadas por Nabuco para ressaltar a dimensão totalizante do engenho: um local que viveria por si mesmo, terra que não precisaria do contato com outras plagas para viver e sobreviver. Sobre a perspectiva que Nabuco criou para o Massangana, Alfredo Bosi destacou “a imagem de uma ilha, um oásis, imagens que implicam a existência de um outro mundo que se estende além de seus confins”307. De fato, concordamos com o crítico literário, ao apontar o engenho de Nabuco como um espaço que se recolhe, isolado de outros espaços, como se bastasse a si mesmo. Interessante pontuarmos que a própria figuração da natureza existente no banguê obedece a isso: “era por essa agua [do rio Ipojuca] quasi dormente sobre os seus largos bancos de areia que se embarcava o assucar para o Recife”308. O contato, o movimento, o curto fluxo, advém de águas quase dormentes. A relação entre o engenho e outras plagas se dá a partir de um movimento vagaroso, como se entre o banguê e outros lugares houvesse um percurso moroso. O Massangana foi criado como um espaço afastado e isolado, autossuficiente. Essa representação do engenho como um espaço estável cujo tempo social seria lento parece contrastar com outros espaços ligados à sociedade burguesa e moderna, marcados pela dinamicidade e flexibilidade. No engenho, ao contrário da cidade, a vida passaria devagar, sem muita presa, num ritmo social dito natural, pois os homens que habitam tal espacialidade teriam “um resguardo em questões de lucro, próprio das classes que não traficam”309. O resguardo ao lucro, que Nabuco apontou existir no Massangana, pode ser visto como uma resistência às relações capitalistas, que instauram no espaço um outro tempo, uma outra experiência espacial 310 . Protegido da influência capitalista, que já na segunda metade do século XIX rondava os engenhos brasileiros, preservava-se o mundo campestre e as relações 306 Gilberto Freyre e José Lins do Rego, autores que também produziram obras enaltecedoras do engenho, também usaram de termos medievais para caracterizar os banguês açucareiros, conforme veremos nos próximos capítulos. Sobre isso, para já adiantar, ver FREYRE, Gilberto. Vida social no Nordeste (1825-1925). In: ______. (Org.). Livro do Nordeste. Recife: Arquivo Público Estadual, 1970 (versão fac-similar do original de 1925) e REGO, Op. Cit., 1934. 307 BOSI, Op. Cit., 2010, p. 90. 308 NABUCO, Op. Cit., 1900, p. 211. 309 NABUCO, Op. Cit., 1900, p. 215. 310 Sobre as diferentes experiências espaço-temporais, a partir do medievo e passando pela modernidade e pós- modernidade, ver: HARVEY, David. A experiência do espaço e do tempo. In: _______. A condição pós- moderna: São Paulo: Edições Loyola, 1992. 124 sociais ditas patriarcais. Desse modo, faria sentido o uso daqueles termos medievalizantes (feudo e domínio), ou seja, conferem ao engenho uma dimensão aristocrática e estamental. A partir dessa elaboração do engenho, vejamos como Nabuco relembrou a casa-grande do Massangana: “no centro do pequeno cantão de escravos levantava-se a residência do senhor, olhando para os edifícios da moagem, e tendo por traz, em uma ondulação do terreno, a capela”311. O espaço central do engenho foi figurado como uma torre residencial, que se colocava bem acima do terreno, tudo e a todos vendo. Uma terra vasta exigiria uma casa- grande elevada, onde o senhor de engenho pudesse, a partir dela, passear seus olhos orgulhosos e vigilantes pelo extenso domínio. À grandiosidade do território corresponderia igualmente a grandiosidade da residência. Banguê e casa-grande se unem em uma construção discursiva que enalteceu esses dois espaços. Pensamos que na descrição mais acima da casa-grande há uma positividade do espaço representado. Como nos alerta Yi-Fu Tuan, na cultura ocidental as noções de alto – baixo e centro – periferia supõem valorações positivas ou negativas. Joaquim Nabuco, ao retratar a residência do senhor de engenho como um espaço que se ergue, que se levanta, o dota de uma imponência patriarcal, de uma qualificação positiva. O alto é o sublime, o maravilhoso e majestoso, ao passo que o baixo é terreno, mundano, pequeno 312 . O sentido do engenho como um reino foi reforçado quando Nabuco abordou as relações sociais existentes entre o senhor de engenho e os escravos: “aspirei a dedicação de velhos servidores que me reputavam o herdeiro presumptivo do pequeno domínio de que fa- ziam parte”313. A linguagem que retrata o tratamento entre os homens, baseado em valores de dedicação, honra, família e hereditariedade, reforça a noção de reino, de domínio. Em um espaço como este, os homens e as mulheres tenderiam mais a se pautar por essas noções. Mais uma vez, o monarquista abolicionista valeu-se de uma gramática medieval para retratar aspectos do Massangana. Neste espaço, as noções de dedicação, herdeiro e domínio fariam sentido, o que nos autoriza a pensar no engenho forjado como um reino, território que abrigaria relações aristocráticas e nobiliárquicas, de modo nenhum burguesas. O engenho, como um reino, estaria ligado a uma sociedade anterior a uma formação social burguesa. O vínculo entre relações sociais e espaço, de modo a se visualizar este como um reino, foi novamente enfatizado na seguinte passagem: 311 NABUCO, Op. Cit., 1900, p. 211. 312 TUAN, Yi Fu. Corpo, relações pessoais e valores espaciais. In: ______. Espaço e lugar. São Paulo: Difel, 2005, p. 42-46. 313 NABUCO, Op. Cit., 1900, p. 216. 125 [...] eu receio que essa espécie particular de escravidão tenha existido sómente em propriedades muito antigas, administradas durante gerações seguidas com o mesmo espírito de humanidade, e onde uma longa here- ditariedade de relações fixas entre senhor e os escravos tivessem feito de um e outros uma espécie de tribo patriarchal isolada do mundo 314 . Nabuco acreditou que o tratamento afetivo para com os cativos, que viu em Massangana, teria sido algo particular de determinados tipos de engenho. E que tipos eram esses? Aqueles cuja administração passou de geração para geração, sendo muito antigos. Ora, a imagem do reino também aqui aparece, na medida em que um reinado tende a passar de geração a geração, levando consigo a marca do tempo. A todo o momento o memorialista nos chama a atenção para o aspecto isolado, autônomo do seu engenho de meninice. A grandeza, a vastidão que permite pouco contato com o mundo, parece ser o elemento central da perspectiva do engenho como um reino. Ora, a noção de reino, tal como estamos mobilizando aqui para explicar um dos sentidos forjado por Joaquim Nabuco para recriar o engenho, contém uma carga aristocrática. Reino fala de um mundo não burguês e de uma temporalidade anterior à modernidade. De uma época em que os valores e visões de mundo ainda não tinham ganhado feições burguesas e modernas. Reino aponta, pois, para uma sociedade hierárquica e nobiliárquica, de fortes traços rurais. Além disso, reino sinaliza ainda para uma unidade territorial que tende a ser vasta, um agrupamento espacial humano coeso, que cobre uma extensa faixa de terra, a qual é mantida graças a uma autoridade superior. Todo reino se pretende minimamente unido, homogêneo. Em um reino, as clivagens e fissuras tendem a ser abafadas, em nome da coesão social, da harmonia entre todos 315 . Quando Nabuco deixou seu “primeiro paraíso”, devido “a mudança de senhor”, que era “o que havia de mais terrível na escravidão”, a imagem foi de um reino desfeito, despedaçado: “todo esse pequeno mundo, tal qual se havia formado durante duas ou três gerações em torno d’aquelle centro, não mais existia depois d’ella [sua madrinha]; seu último suspiro o tinha feito quebrar-se em pedaços”316. A visão que o autor montou do fim de Massangana foi semelhante à fragmentação de um reino que, com a morte de seu governante, se viu esmigalhado em pedaços. A ruína de suas terras da infância foi como o 314 NABUCO, Op. Cit., 1900, p. 217. 315 Não foi isso que Gilberto Freyre, na sua clássica obra Casa Grande & Senzala, tentou fazer, mostrar o reino patriarcal nordestino como uma comunidade unida, com poucas fissuras? No ensaio de 1933, o sociólogo de Apipucos harmonizou as diferenças entre senhores e escravos, brancos e negros, casa-grande e senzala, embora não deixasse de pontuar as violências e atritos frequentes existentes na sociedade patriarcal. A tese freyreana da mestiçagem veio justamente nos falar do convívio comunitário relativamente harmônico que existiu no Brasil dos séculos XVI-XVII. Ver: FREYRE, Gilberto. Casa Grande e Senzala. Op. Cit., 1933. 316 NABUCO, Op. Cit., 1900, p. 217 e 221. 126 desmoronamento de um vasto reino que se desfez em pedaços. Tal foi a imagem que nos passou Nabuco. O poderio do engenho foi identificado com o poderio de uma pessoa, que no caso de Nabuco seria sua madrinha, retratada como uma senhora matriarcal. Interessante pontuarmos que Joaquim Nabuco, ao contrário de uma série de outros autores que se autocolocaram como influenciados por ele (Gilberto Freyre, Julio Bello e José Lins do Rego), não mostrou uma valorização exacerbada da figura do senhor de engenho, do patriarca. No capítulo Massangana, nem o avô nem tampouco o pai foi objeto de muitos elogios, como o foi a madrinha. Era esta quem governava o engenho, quem exercia o poder, quem encarnava a autoridade. Daí porque, segundo Evaldo Cabral de Melo, Nabuco teria mudado o nome do engenho de “MassanganO” para “MassanganA”, ou seja, femininizando-o para valorizar a figura da madrinha 317 . O feminino parece dominar na memória de Nabuco sobre o seu engenho de criança, justamente em razão de sua afeição pela madrinha. Como um reino, o engenho também seria um espaço personalizado, marcado e identificado pela presença de uma persona, vista como autoridade. Aqui identificamos uma certa ambiguidade na visão deste espaço. A partir da descrição de Joaquim Nabuco, o Massangana lembraria um reino patriarcal, contudo, o banguê que se assemelha a um reino patriarcal era governado por uma mulher. Que reino patriarcal seria esse, comandado por uma mulher? A ambiguidade diminui um pouco quando atentamos para a descrição desta mulher: ella era de grande corpulencia, caminhando com dificuldade, constantemente assentada. [...] minha madrinha occupava sempre a cabeceira de uma grande mesa de trabalho, onde jogava cartas, dava tarefa para a costura e para as rendas a um numeroso pessoal, provava o ponto dos doces, examinava as tisanas para enfermaria defronte, distribuía as peças de prata a seus afilhados e protegidos, recebia os amigos que vinham todas as semanas attrahidos pelo regalo de sua mesa e de sua hospitalidade, adorada por toda sua gente, fingindo um ar severo 318 . Massangana seria governado por uma senhora que realizava inúmeras tarefas, a despeito de suas dificuldades físicas. A madrinha de Nabuco, comandando o banguê, substituiria muito bem o senhor de engenho, seu falecido marido. Ela não foi dita como uma mulher viúva, a lamentar a ausência do marido e indisposta ao governo do engenho. Tratava- se de uma senhora de engenho, a ocupar firmemente a mesa patriarcal, a distribuir e cobrar tarefas e a receber os amigos. Nabuco não mostrou uma mulher recolhida ao lar, entregue as 317 BOSI, Op. Cit., 2010, p. 10. 318 NABUCO, Op. Cit., 1900, p. 219. 127 lamúrias pela ausência do marido. Com isso, o engenho governado por uma mulher preservava seu aspecto aristocrático, autoritário e hierárquico. A mulher comandava o enge- nho como se fosse um patriarca, sentava em uma enorme mesa de trabalho como se fosse um senhor a ditar ordens 319 . Ana Rosa Falcão, uma senhora matriarcal, substituiria o senhor de engenho. Joaquim Nabuco, tecendo o perfil de sua madrinha, criou um personagem que aparecerá em várias outras produções discursivas: a senhora de engenho. O fim da espacialidade Massangana, tal qual rememorado pelo homem que quando menino viveu neste espaço, foi trágico, como se encerrasse um espetáculo, tal é o que nos mostra a escrita imagética de Nabuco: “a noite da morte da minha madrinha é a cortina preta que separa do resto de minha vida a scena de minha infância” 320. O fim da senhora de engenho seria o fim do reino, que seria também o fim trágico do espetáculo. Espaço personalístico, tal qual um reino, o engenho não poderia viver sem a figura de uma autoridade, seja esta um senhor ou uma senhora de engenho. O significado do engenho como um reino de terras extensas e afastadas, como um domínio “patriarcal” rural e autônomo foi obtida mais a partir das descrições do que das metáforas, como ocorreu com o sentido do engenho como agente histórico. Ao redescrever o banguê, as águas, a casa-grande e sua madrinha, Nabuco teceu uma visão particular de seu espaço favorito da infância. Quando o narrador-memorialista retratou sua terra de origem, as pessoas e as relações sociais existentes nela, emergiu do texto um significado para o Massangana. Este foi obtida mediante caracterizações de determinados aspectos da realidade. No entanto, os sentidos do engenho (agente histórico e reino) não dependem somente de elementos linguísticos pontuais, mas também de uma visão geral que Nabuco guardava alegremente do seu banguê de criança 321 . 319 Gilberto Freyre em vários textos exaltou a figura da madrinha de Joaquim Nabuco, ao ponto de erigi-la ao posto de modelo de “senhora de engenho”. Sobre isso, consultar a parte inicial da conferência de Freyre sobre Nabuco, realizada em 1949, intitulada revolucionário conservador. Mais informações em FREYRE, Gilberto. Revolucionário conservador. In: ______. Quase política. Rio de Janeiro: José Olympio, 1950. 320 NABUCO, Op. Cit., 1900, p. 221. 321 É certo que se poderia aventar outros fatores extratextuais para a representação do engenho de Joaquim Nabuco. Porém, neste nosso capítulo, como afirmamos no início, optamos por fazer uma discussão que nos deixasse ligado ao texto, que raras vezes nos permitisse sair do material e objeto de análise. Essa orientação explica e justifica muito das reflexões feitas nesta sessão. 128 3.3 No reino da memória encantada Como esperamos ter mostrado, a narrativa de si de Joaquim Nabuco, por meio de certos expedientes literários (relações causais, metáforas e descrições), acionou determinados sentidos para constituir o engenho. Mostrar esses sentidos e como eles foram obtidos foi o que tentamos fazer neste capítulo. Todavia, exige ainda que tentemos explicar a razão daqueles dois significados do Massangana (agente histórico e reino), já que, como historiadores, temos por obrigação de ofício fornecer possíveis explicações. Nesse sentido, uma explicação provável da imagem do engenho como uma força atuante e um reino vasto encontra plausibilidade na visão idealizada de Nabuco sobre suas terras de infância. Ao lermos o capítulo sobre o engenho, chama-nos atenção o deslum- bramento que a memória do engenho causou no narrador-autor. Este, do alto dos seus quase 50 anos de idade, vividos em grande medida distante do engenho e do meio rural brasileiro, aparentava estar encantado com a lembrança de seu território da infância. É o próprio Nabuco que exclamou: “ah! Querida e abençoada memoria”322. Joaquim Nabuco foi um indivíduo cosmopolita, que conheceu várias cidades do mundo, chegando até a morar em algumas delas. Sua subjetividade continha a marca de um mundo moderno que estava em integração, os diversos países em contato por uma rede de transporte e comunicação que no século XIX já começava a se afirmar com consistência. Depois que o menino Quincas saiu de Massangana, em 1857, o adulto Nabuco poucas vezes retornou ao seu “paraíso de infância”, haja vista que o engenho passou a ter outros donos. Digamos que o pernambucano diplomata saiu do engenho para conhecer o mundo e só voltou ao banguê tempos depois através da memória, mediante o esforço de rememoração. Foi uma memória distante e saudosa do engenho que condicionou sua construção discursiva deste espaço como um agente histórico e reino extenso. Foi a partir de sua rememoração afetiva que Nabuco teceu sentidos para o banguê. Tal encantamento vazou por diversas partes para a escrita, em várias passagens. Fiquemos apenas em uma única passagem, que retrata de modo geral o banguê: O declinar do sol era deslumbrante, pedaços inteiros da planície trans- formavam-se em uma poeira d’ouro; a bocca da noite, hora das boninas e dos bacuraus, era agradável e balsâmica, depois o silencio dos céos estrellados, majestoso e profundo. De todas essas impressões nenhuma morrerá em mim. Os filhos de pescadores sentirão sempre debaixo dos pés o 322 NABUCO, Op. Cit., 1900, p. 220. 129 roçar das areias da praia e ouvirão o ruído da vaga. Eu por vezes acredito pisar a espessa camada de cannas caídas da moenda e escuto o rangido longínquo dos grandes carros de boi... 323 O tom da passagem é nitidamente lírico e romântico, revelando um encantamento com a lembrança da terra, a qual se mostrava inesquecível. Para Nabuco, o engenho era sublime e grandioso. Por isso sua descrição do mesmo foi idealizada e poética. Tudo se revelava maravilhoso no Massangana. Engenho, espaço excelso, inolvidável. Para Luiz Costa Lima, o lirismo seria um elemento essencial para entendermos a visão que Joaquim Nabuco mobilizou para seu engenho de infância. O lirismo do autor de Minha Formação seria “um sentimento, o deixar-se invadir por ondas emocionais em que o espírito se expande e regala. [...] Um estado de fantasia, onde a lenda, dispersa, nebulosa e etérea, ganhava a palma sobre a história” 324. O lírico tende a sobrepor à realidade seus sentimentos, projetar na história suas sensibilidades. Nabuco talvez tenha feito isso: lançado no Massangana, “revisitado” pela memória nostálgica, suas emoções de homem saudoso pelo Brasil, pelo seu engenho, pelo seu passado. Um lirismo parece ter não só abastecido a escrita do capítulo Massangana como condicionado a visão da propriedade de Ana Rosa Falcão. Foi desse sentimento e dessa postura que a escrita de Nabuco parece ter se alimentado para inscrever seu território da infância. Encantado com o engenho, como não visualizá-lo como algo grandioso, vasto, como um reino feudal? O engenho não poderia de maneira alguma ser algo pequeno, um simples pedaço de terra. A visão idealizada do Massangana aparenta estar na base da ideia deste como um reino, dado que tal noção carrega uma aura de grandiosidade, de excelência. A valorização exacerbada do engenho conduziu a mão de Nabuco a retratar seu espaço da infância como um reino de terras vastas, alargadas e autossuficiente. Visão e visualização do engenho se encontraram, portanto. A passagem anterior também colocou a propriedade agrária da madrinha de Nabuco como algo inesquecível, que sempre estará na memória do autor. Para o adulto que quando menino passou oito anos no Massangana, este será sempre lembrado; “de todas essas impressões nenhuma morrerá em mim”. Um desejo de combater a finitude do engenho pareceu mover Nabuco, que queria oferecer um lugar seguro àquela espacialidade. E o lugar que o abolicionista reservou ao seu engenho foi justamente o de motor da sua luta contra a escravidão. Elaborando o engenho como um agente histórico, como o elemento que o levou a 323 NABUCO, Op. Cit., 1900, p. 212. 324 LIMA, Luiz Costa. Op. Cit., 2002, p. 348. 130 se solidarizar com a causa dos escravos, garantia-se a memória do Massangana. Sempre que se falar de Nabuco, de seu combate incansável contra a escravidão, falar-se-á do banguê. Em todo capítulo Massangana há o claro desejo simbiótico de unir engenho e antiescravismo, na medida em que aquele era o espaço do contato das raças, da mistura dos grupos, da harmonia social, da união entre casa-grande e senzala. Portanto, os significados colocados para forjar o engenho Massangana aparentam beber dessa visão fascinada que Joaquim Nabuco nutria pelo seu espaço da infância. O peso dessa visão lírica do engenho pode ser aferido quando contrastamos com o que Carolina Nabuco, filha do ilustre Pernambuco, escreveu sobre o Massangana, referindo-se a este espaço como “apenas um pequeno engenho de vida patriarcal”325. Na escrita desencantada da filha que não viveu no banguê, esta espacialidade perdeu toda a grandeza que recebeu da escrita de Joaquim Nabuco. A filha deste, no livro que conta a história do pai, reservou pouco espaço para o Massangana. Não há nenhum capítulo, nem tampouco um mísero tópico, para o espaço que, segundo Joaquim Nabuco, formou sua personalidade e decidiu por seus combates contra a escravidão. Para nós, esse silêncio “fala” muito: indicia uma visão não idealizada de Carolina Nabuco sobre o Massangana. Ao contrário do pai, a filha não revelou um encantamento com a terra de Ana Rosa Falcão, não bebeu de uma memória paterna saudosa. 3.4 A invenção de uma espacialidade O capítulo intitulado Massangana de Minha Formação, onde viemos até então analisando a construção discursiva do engenho, constituiu um texto de suma importância. Trata-se de um texto inaugural, fundador de um certo topos sobre a grande propriedade açucareira, conforme já adiantamos. Antes das memórias de Joaquim Nabuco, predominava uma visão técnica do engenho. Este era encarada sob o signo da produção açucareira, do fazer quase manual e artesanal do açúcar. O tratado do padre jesuíta André João de Antonil (pseudônimo de João Antonio Andreoni), publicado em 1711, intitulado Cultura e opulência do Brasil por suas drogas e minas 326 , constituiu o grande modelo da postura que entendia o engenho como o “mundo gerador do açúcar”. Na escrita do clérigo, o engenho não tinha um caráter afetivo nem tampouco identitário, apenas maquinal e engenhoso. Segundo Alfredo Bosi, Andreoni escreveu seu longo tratado a fim de fornecer um minucioso manual sobre o complexo açucareiro. Interessava-lhe instruir aqueles que 325 NABUCO, Carolina. A vida de Joaquim Nabuco. Rio de Janeiro: Nacional, 1928, p. 21. 326 ANTONIL, André João. Cultura e opulência do Brasil por sua drogas e minas. São Paulo: Nacional, 1967. 131 porventura não conhecessem a atividade açucareira e quisessem por ela enveredar. Daí a predominância de informações extremamente técnicas sobre a produção do açúcar 327 . Nas palavras de Alfredo Bosi, Cultura e Opulência Não vai além da racionalidade do guarda-livros de uma empresa agroexportadora. A arte contábil se diz, em língua toscana, ragioneira. Não vai além das coisas e os números, mas vai até o fim e até o fundo, o que permite coerência na interpretação do todo. Quando a utilidade a curto prazo se torna critério absoluto de ação, valores do “justo” e do “verdadeiro” caem rapidamente na orbita dos cálculos imediatos. Essa é a razão inerente ao discurso mercantil-colonial. Esse, o pensamento que ditou, de ponta a ponta, o livro mais enxuto e pragmático jamais escrito sobre nossas riquezas coloniais. Fruto sazonal do ideal mercantilista, o trabalho de Antonil levou a tais extremos de perfeição o método de descobrir útil e utilitariamente o mapa da mina 328 . Livro pragmático, orquestrado sob o som do mercantilismo, a visão de Antonil do engenho tratou tal espacialidade apenas como algo material, como um bem produtivo a ser bem dirigido e bem aproveitado. Uma visão maquinal, racionalista e utilitária do engenho, apenas. O titulo dos capítulos que compõem os livros das quatro partes da obra Cultura e Opulência seria sintomático dessa visão tecnicista da propriedade açucareira. Antonil expressou uma perspectiva fria e seca sobre os engenhos, bem distante daquela que mais tarde Joaquim Nabuco iria expressar. O mesmo podemos assinalar acerca dos textos que vários cronistas dos séculos XVII- XVIII escreveram sobre o engenho. O preparo do açúcar nas diferentes etapas, sua quantidade e consumo, o número de instalações e pessoas, os “profissionais” necessários, o tamanho da propriedade e o estado do solo eram as grandes preocupações dos viajantes e cronistas que relatavam o universo do banguê açucareiro. Nenhuma gota de saudade, de memória encantada apareceu na pena Jean de Léry, Fernão Cardim, Pero de Magalhães, Gabriel Soares de Souza, Frei Vicente do Salvador, Antonil e outros cronistas que relataram o engenho. A produção do açúcar dava o tom nos escritos setecentistas e oitocentistas sobre o engenho 329 . Joaquim Nabuco, com sua visão do Massangana, deslocou esta visão técnica e maquinal do engenho, inventando uma espacialidade que deveria ser vista sob as lentes da memória e sentida com o nervo da saudade. Como apontado no início deste capítulo, foi o 327 BOSI, Alfredo. Antonil ou as lágrimas da mercadoria. In:_______. Dialética da colonização. São Paulo: Companhia das letras, 1992. 328 BOSI, Alfredo. Op. Cit., 1992, p. 158-159. 329 Para uma análise das narrativas anteriores a Minha Formação sobre o engenho, conferir o capítulo I e II da dissertação de: GUEDES, Nathassia Maria de Farias. Discursos sobre o mundo do engenho: uma leitura das obras de Antonil e Mario Sette. Dissertação. Programa de Pós-graduação em Linguística da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), João Pessoa, 2009. 132 ilustre diplomata pernambucano que inaugurou toda uma literatura de engenho que surgiria nos anos 1920-1930, literatura essa que enalteceu o engenho, a terra da cana de açúcar mostrada como um espaço agradável e sublime, do qual se deve sentir saudade. A saudade que Nabuco apontou sentir do escravo era, na verdade, a saudade do engenho, da vivência neste espaço, das relações ditas patriarcais que se davam ali 330 . Ora, como pode um abolicionista tão convicto e inflamado sentir saudades da escravidão? Ocorre que a escravidão para Nabuco, tal qual aparece no capítulo Massangana, não tem a marca do horror, da crueldade, da violência, como teria mais tarde para vários outros autores do século XX. O escravismo em Nabuco, descrito em Minha Formação, assim como para Gilberto Freyre, foi adocicado pelas relações sociais patriarcais existentes no engenho, ou seja, a relação entre senhor e escravo guardaria uma certa afetividade entre ambos, preservaria um laço de respeito, honra e dedicação que conferiria um grau de ternura entre aquele que era senhor e aquele que era servo. É o que depreendemos da passagem seguinte, sobre a escravidão vista pelo menino Quincas e lembrado pelo homem adulto: “Absorvi-a no leite preto que me amamentou; Ella envolveu-me com uma caricia muda toda a minha infancia”331. A escravidão não é aqui o mando do senhor, o grito e o castigo, a posse do homem sobre a coisa, mas sim o contato afetuoso entre os indivíduos, os laços firmados na meninice entre a criança e sua mãe negra. Em Massangana, a partir da descrição autobiográfica, não há muito espaço para o conflito, para a violência. A infância rural do menino Quincas seu deu em um universo harmônico, apaziguado pela figura de um senhor e senhora de engenho bondosos. Seu engenho é espaço encantado, sem conflitos, reino inesquecível, espaço da e para a saudade. Na pena de Joaquim Nabuco, o Massangana deixou de ser mero cenário de infância, assim como era muito mais do que uma simples unidade produtiva de açúcar. É significativo que o erudito pernambucano não se detenha muito na dimensão econômica de seu engenho de meninice. A impressão que fica é que o banguê, para Nabuco, era muito mais do que mero local onde se produzia açúcar e seus derivados. Esta face entra muito pouco na sua visão so- bre o engenho. Para Nabuco e para uma gama de outros autores do alvorecer do século XX, o engenho dito nordestino não é somente uma unidade de produção do açúcar, mas é o cenário da infância passada no meio rural, local de reminiscências agradáveis, página acalentadora de 330 NABUCO, Op. Cit., 1900, p. 216. Interessante apontarmos que um outro indivíduo ligado a literatura de engenho, Julio Bello, expressou também, nos fins dos anos 1930, uma saudade da escravidão, dos escravos do engenho. Ver: BELLO, Julio. Op. Cit., 1938, p. 223. 331 NABUCO, Joaquim. Op. Cit., 1900, p. 216. 133 um passado que não deve ser esquecido. É significativo que, já no século XX, alguns autores tenham escrito memórias do tempo desfrutado no engenho 332 . Joaquim Nabuco aparenta ter sido o primeiro a expor essa visão saudosa do engenho, a qual será reproduzida, com algumas diferenças apenas, por autores das décadas de 1920 e de 1930, como Mario Sette, José Américo de Almeida, Jorge de Lima, Gilberto Freyre, Julio Bello, José Lins do Rego e outros homens de letras. O engenho encarado como um espaço acolhedor e tradicional, que harmonizaria as diferenças e conflitos sociais entre senhor e escravo, patrão e empregado, onde o homem poderia encontrar a felicidade plena e o prazer de viver junto a uma natureza exuberante, apareceu pontuado pioneiramente por Nabuco, no seu capítulo Massangana de Minha Formação. Daí porque muitos daqueles intelectuais citados, sobretudo os três últimos, mostram, quando não uma filiação intelectual direta (caso de Gilberto Freyre), uma opinião bastante elogiosa sobre o pernambucano abolicionista. Como apontou Oliveira Lima, no seu discurso na Academia Pernambucana de Letras em 1921, Nabuco produziu “as paginas mais tocantes das nossas lettras sobre os velhos engenhos de assucar”333. Essa visão “tocada”, afetivizada e enternecedora encontrou considerável acolhimento na literatura brasileira das décadas iniciais do século XX. Não nos cabe neste capítulo desenvolver a relação entre a perspectiva de Nabuco sobre o engenho e alguns literatos dos anos 1920-30 que também escreveram sobre este espaço, tarefa essa que demandaria uma outra sessão. No entanto, não podemos deixar de assinalar esta relação, uma vez que, assinalando-a, podemos aferir melhor a relevância do capítulo Massangana de Minha Formação para a posteridade. Muito do que se escreveu sobre o engenho açucareiro foi tributário das memórias de Joaquim Nabuco. Este, a partir de sua memória saudosa, fabricou uma espacialidade que mais tarde será entendida por uma geração como um espaço central da vida brasileira, do passado patriarcal desta nação. Joaquim Nabuco instituiu uma nova visibilidade e dizibilidade do engenho açucareiro nortista. Massangana não entrou somente para a história, como parecia querer Nabuco 334 , mas adentrou também por outros portões disciplinares, conforme veremos a seguir. 332 O maior exemplo a ser apontado aqui diz respeito ao livro de estreia (1932) do romancista paraibano José Lins do Rego, intitulado Menino de engenho, o qual foi concebido originariamente como memórias de um menino de engenho. É este o título que aparece nos manuscritos originais do romance. 333 LIMA, Oliveira. Discurso na Academia Pernambucana de Letras, 1921. In: CENTENÁRIO da Academia Pernambucana de Letras: os de ontem, os de hoje, os de sempre. Revista da Academia Pernambucana de Letras. Recife: APL, 2001, v. 1, p. 23. 334 Em 1984, o Governo do Estado de Pernambuco tombou Massangana, declarando-o monumento histórico de Pernambuco. Em 1990, nova iniciativa de preservação: a Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco (Fundarpe) tombou o engenho como Parque Nacional da Abolição. Ver: . Acesso em 22 abr. 2013. 134 Capítulo 4 Do engenho da memória ao engenho da ficção: Senhora de engenho (1921) 4.1 Um autor, duas cidades: Mario Sette, entre o Recife Antigo e o Recife Moderno Em fins de fevereiro de 1921, um outro pernambucano deu continuidade a literatura de engenho, provocando nesta formação discursiva certos deslocamentos. Mario Sette foi o responsável por trazer o elogio de Joaquim Nabuco ao engenho para a forma de romance, para o formato de novela regional. Senhora de engenho, publicada nos últimos dias de fevereiro, em 1921, veio à tona destilando muito afeto em relação à zona açucareira pernambucana. O encantamento para com o banguê, pioneiramente expressado nas memórias de Nabuco, agora alcançava uma nova modalidade discursiva. Das memórias para a ficção, tal foi o movimento que o escritor pernambucano operou no interior da literatura de engenho, com a publicação de seu romance regional. A literatura de engenho recebeu com Mario Sette um novo alento, fortificou-se e consolidou-se. Além de Senhora de engenho, o pernambucano publicou O vigia da casa- grande, em 1924, produção literária que também exaltava a propriedade canavieira. Na verdade, tal produção é uma espécie de continuação do primeiro romance de Mario Sette. Se na produção literária de 1921 o literato pernambucano focou nos indivíduos ligados a casa- grande, em O vigia da casa-grande o foco se deslocou para os trabalhadores do engenho, para os “de baixo”, por assim dizer. Excetuando essa diferença de foco, a valorização do engenho, a crença de que esta espacialidade representaria uma vida melhor, onde todos eram felizes, permeia os dois romances. Em ambos, o engenho foi mitificado, idealizado, encarado como um espaço superior. No presente capítulo, dedicaremos nossa análise ao romance Senhora de engenho, em razão de seu pioneirismo romanesco, tentando mostrar como o seu autor construiu discursivamente o engenho, fazendo irromper mais um discurso valorizador da propriedade açucareira e que influenciará os romances de José Lins. Continuaremos nossa arqueologia 335 335 Entendemos a arqueologia como um empreendimento histórico que traça um começo (archè), que escava as condições de possibilidade de um discurso, que desenha a emergência de um saber a partir de uma gama de discursos aparentados (arquivo). Arqueologia seria, assim, nosso método de análise discursiva. Como apontamos na introdução, nesta parte II de nosso trabalho operaremos no nível dos discursos irrompidos a partir de uma formação discursiva. A literatura de engenho seria essa estrutura e as séries de produções textuais que a compõem seriam os discursos por nós analisados. Nossos referenciais foram: FOUCAULT, Michel. Arqueologia 135 dos discursos que precederam e condicionaram a obra literária do romancista paraibano. Assim como na autobiografia de Joaquim Nabuco, interessa-nos perceber a dimensão simbólica com a qual o banguê açucareiro foi revestido, constituindo-o de uma dada maneira, através da pena de Mario Sette, a fim de que possamos identificar a existência de um arquivo de imagens e significados sobre o banguê do qual José Lins se valerá para escrever suas primeiras produções literárias. As construções discursivas do engenho feitas por Joaquim Nabuco e Mario Sette constituem a linhagem discursiva ao qual o autor de Menino de engenho se vinculou, conforme mostraremos ainda nesta parte. Por hora, foquemos em mais um discurso da literatura de engenho, que serviu, mais tarde, de fonte para a escritura do “ciclo da cana-de-açúcar”. Mario Rodrigues Settey67 336 foi um literato pernambucano que gozou de considerável popularidade no Recife dos anos 1920 a 1940, em razão de sua vasta obra literária, vazada em uma declarada paixão pelo estado de Pernambuco e sua capital em especial. Nascido no Recife, em 1886, no seio de uma família urbana, rica e tradicional, Mario Sette escreveu contos, poesias, romances e livros de história. Além dessas produções, dedicou-se também a escrever artigos de jornais, em vários periódicos recifenses (Diario de Pernambuco, A Provincia, Jornal O Pequeno) e até cariocas (Revista do Brasil). Na sua cidade natal, era visto como o “Dr. Mario”, um digno homem de letras. No entanto, o “doutor” não passou como aluno por nenhuma faculdade. Sua formação escolar estacionou nos preparatórios para o ingresso na Faculdade de Direito do Recife. Nos anos de juventude, anos de decisão, Mario Sette optou por não se tornar um acadêmico, preferindo ir trabalhar em certos estabelecimentos comerciais, talvez por uma necessidade financeira. O fato é que, em 1901, após uma traumática estadia no Rio de Janeiro, morando com sua mãe e o padrasto 337 , ele retornou ao Recife e começou a trabalhar no escritório de seu tio, Enedino Sette, como despachante. O escritor pernambucano, proveniente de uma classe média urbana 338 , grupo social em formação no Recife de fins do século XIX, valorizou enormemente o trabalho, valorização do saber. Rio de Janeiro: Forense universitária, 1986. REVEL, Judith. Foucault: conceitos essenciais. São Paulo: Claraluz, 2005, p. 16-18. 336 As informações biográficas sobre Mario Sette foram retiradas do site , endereço eletrônico que armazena diversas informações sobre o escritor. Acesso em: 10 jan. 2013. 337 Segundo Hilton Sette, filho de Mario Sette, este escritor, quando criança, viu-se obrigado a mudar para o Rio de Janeiro, em 1897, devido ao falecimento de seu pai. Passando alguns anos, a mãe de Mario Sette arranjou novo casamento, obrigando seu filho a conviver com um padrasto que muito lhe maltratava. Aos 15 anos de idade, não aguentando mais a convivência com o esposo de sua mãe, Mario Sette retornou ao Recife, para viver com seu tio. 338 Segundo Paulo Sergio Pinheiro, é consenso na historiografia brasileira afirmar-se que a República foi o momento de surgimento de uma classe média urbana, um grupo social específico, intermediário entre o 136 essa que, veremos, vazou para seu romance de estreia, Senhora de engenho. Sua produção literária correu em paralelo com seus empregos. Depois do ofício no escritório de seu tio, Mario Sette foi trabalhar, já casado, como despachante na repartição da Great Western, linha férrea que corria por algumas áreas da região Norte do Brasil. Em 1908, novo emprego, no depósito da Companhia de Tecidos Paulistas, como supervisor dos serviços de embalagem e despejo aí realizados. Desde os 15 anos de idade Mario Sette dedicou-se ao trabalho, livrou-se da ociosidade, pois, morando com o tio paterno, não podia dar-se ao luxo de ser sustentando pela família. A estabilização profissional de Mario Sette só veio em 1909, quando passou em primeiro lugar no concurso para a estatal Correios e Telégrafos de Pernambuco. Embora no Brasil dos anos 1900 um emprego público não tivesse a estabilidade que tem hoje, Mario Sette conseguiu se firmar nesta empresa, chegando até o posto de diretor geral, nos anos 1930. Com esse emprego público, conseguiu estabilidade financeira para se dedicar com afinco a literatura. Sua atividade literária iniciou-se em 1914, com um livro de contos, intitulado Ao clarão dos obuses. Após quatros anos, lançou mais uma coletânea de contos, porém, dessa vez, regionais: Rosas e espinhos. A partir daqui, Mario Sette iniciou algumas produções regionalistas, cujo auge foi alcançado em 1921 com o romance Senhora de engenho. Segundo Hilton Sette, o romance setteano de 1921 surgiu a partir de uma visita que seu pai realizou alguns anos antes a Tracunhaém, um povoado rústico localizado na zona rural Pernambucana. Conta o filho do escritor recifense que este se impressionou com a paisagem de Tracunhaém: a novidade de uma viagem de trem, o sol a doirar o verde da paisagem, os partidos de cana beirando a linha férrea, ocorrências de mata coroando os cimos das elevações, o rumorejar de riachos nos fundos dos vales, aqui e ali a presença de banguês com suas casas-grandes, suas moitas, seu bueiros fumegantes, seus aromas de meu cozinhando 339 . Ao entrar em contato com esse universo rural, bastante diferente do meio urbano recifense, onde morava, Mario Sette teve sua atenção despertada. Na época, Tracunhaém não passava de um vilarejo com uma pequena população, nem constituía ainda município de proletariado e a burguesia agroexportadora. Os profissionais liberais – médicos, advogados, alfaiates e engenheiros -, militares, pequenos comerciantes, imigrantes assalariados, pequenos industriais e funcionários públicos de baixo escalão estatal comporiam essa classe média, por si só heterogênea e nebulosa. Ver: PINHEIRO, Paulo Sergio. Classes médias urbanas: formação, natureza e intervenção política. In: FAUSTO, Boris (Dir.). O Brasil republicano. Sociedade e instituições (1889-1930). Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1990. 339 SETTE, Hilton. Prefácio. In: SETTE, Mario. Senhora de engenho. Recife: Editora Asa Pernambuco, coleção Nordeste em evidencia, 1986, p. 4. 137 Pernambuco, o que só veio ocorrer em 1963. Já o Recife das décadas iniciais do século XX passava por muitas transformações. Destaquemos aqui as reformas do Porto e do bairro do Recife, iniciadas em 1908, portanto contemporâneas de Mario Sette. Tais reformas urbanas remodelaram espaços, abriram ruas e avenidas, destruíram casa e igrejas, criaram novas paisagens urbanas 340 . Os Azevedos do Poço, romance setteano, aproveitou esse contexto de mudanças materiais para constituir o pano de fundo de sua história. De modo algum o escritor recifense esteve alheio às transformações citadinas à sua volta. O presente de transformações lhe inquietava. Senhora de engenho, produto da observação de um espaço que se contrastava com a cidade de Recife, mostra um traço que marcou toda a obra literária de Mario Sette: a relação tensa com a modernidade. Podemos apontar que o escritor pernambucano produziu seus livros sob o impacto de um processo histórico que, a partir da segunda metade do século XIX, aportou de forma mais clara no Recife. A cidade que transformava-se, que deixava suas feições coloniais, que adquiria novas formas e personagens, aguçou os sentidos de Mario Sette. A partir daí este foi constituindo-se e sendo constituído como o cronista da cidade, como o indivíduo que observava a urbe, como literato que registrava as transformações urbanas. As produções setteanas, a partir dos anos 1920, irromperam na e da cidade moderna. Foi o contato com o meio citadino, na época passando por diversas transformações de ordem cultural e social, que uma prática literária foi sendo gestada. Da urbe pretensamente hodierna, Mario Sette observava a sua sociedade, rascunhava seus cadernos escolares e compunha seus livros em uma máquina de escrever de última geração para a época 341 . Do começo ao fim, a modernidade se fazia presente. O Recife de bondes e maxambombas, de moças trabalhando nas lojas comercias do centro, de arcos de igrejas derrubados para arejar a cidade, de ruas largas para favorecer a circulação de bens e pessoas, de luz elétrica e de água encanada, em suma, o Recife moderno, pensado como sendo o oposto do Recife Antigo, feriu o espírito de Mario Sette e motivou sua obra literária. Como podemos pensar a partir de George Simmel, as cidades modernas do início do século passado, mesmo aquelas que guardavam especificidades em relação à 340 Para uma análise das reformas do porto e do Bairro do Recife, ver: LUBAMBO, Cátia Wanderley. O bairro do Recife: entre o corpo santo e o marco zero. Recife: Fundação de cultura da cidade do Recife, 1991. 341 Rascunhar e depois passar a escrever em uma máquina de escrever eram uma das etapas do trabalho literário de Mario Sette, conforme dito por seu filho Hilton Sette. Ver: Entrevista com o professor Hilton Sette. In: ALMEIDA, Magdalena. Mario Sette: o retratista da palavra. Recife: Fundação de Cultura da cidade do Recife, 2000, p. 242. 138 Europa, impactavam as mentes citadinas, atiçavam os indivíduos, mexiam com seus sentidos e sensibilidades, despertando sensações e anseios 342 . Sem a modernidade recifense, o autor de Arruar não teria escrito boa parte de seus livros, ou pelo menos teria produzido outros tipos de textos. Sua obra literária nasceu na encruzilhada de uma cidade que desaparecia e outra que aparecia, entre a morte e a vida de uma urbe. Por isso ela oscilou entre a crônica saudosa do que era o Recife e o registro entusiasmado do que estava se tornando sua cidade natal. O Recife Antigo e o Recife Moderno, símbolos do passado e do presente de uma cidade, fascinava Mario Sette, que a estas temporalidades/espacialidades dedicou várias produções literárias. Segundo Magdalena Almeida, o tradicional e o moderno permeiam quase todos os livros setteanos, ora chocando- se, ora harmonizando-se 343 . Senhora de engenho não escapou desse choque/harmonização. 4.2 O primeiro best-seller da literatura de engenho O romance setteano de 1921 retratou a história de Nestor, filho do casal Casusa e D. Ignacinha, possuidores de um engenho chamado Águas Claras, localizado em Trancunhaém. Nestor nasceu e viveu sua infância no engenho de seus pais, até quando se mudou para o Recife, a fim de realizar os preparatórios para o ingresso na Faculdade de Direito do Recife. A ficção, narrada em terceira pessoa e com fortes elementos históricos, inicia-se com o filho do senhor de engenho já adulto, estudante do curso de Ciências Jurídicas, afeito a vida urbana e moderna, e avesso a vida no engenho. A trama narrativa desenvolvida por Mario Sette girou em tornou da reconciliação de Nestor com sua terra natal. Tratava-se do filho ingrato fazendo as pazes com sua origem, religando-se com seu passado, com sua tradição familiar. Senhora de engenho, composto de 14 capítulos, pode ser divido em dois grandes momentos: primeiro, a reconciliação de Nestor com a vida no engenho e, segundo, a conversão de sua esposa, Hortência, a essa mesma vida. Boa parte do romance se ocupou desse segundo momento. Hortência era uma personagem ligada à cidade moderna, nascida no Rio de Janeiro. Conheceu seu futuro esposo quando Nestor foi terminar seu curso de Ciências Jurídicas na capital federal do Brasil dos anos 1920. Os dois se casaram, viveram no Rio de Janeiro e passaram mais de 12 anos sem ir a Águas Claras. Funcionário público nesta cidade, Nestor evitava mostrar suas origens familiares à sua esposa carioca. Até que seu amigo de infância 342 SIMMEL, George. Grandes Cidades e a Vida do Espírito (1903). Mana, Rio de Janeiro, v.11, n. 2, outubro de 2005. Disponível em: . Acesso em: 30 mai. 2013. 343 ALMEIDA, Magdalena. Op. Cit., 2000, p. 29. 139 rural, Lúcio, comunicou-lhe a indolência dos pais, já com idades avançadas, e cobrou seu retornou ao engenho Águas Claras. Nestor decidiu então rever seus pais e conseguiu convencer sua mulher a irem juntos a Tracunhaém, passar uma breve temporada. A partir da chegada do casal ao engenho, começará a religação do filho ausente com a terra familiar e a conversão da estrangeira urbana à vivência rural no banguê. Para conferir uma maior dramaticidade à história, Mario Sette inseriu a figura de Maria da Betânia, flor silvestre do engenho, companheira de infância de Nestor, por quem escondia uma enorme paixão. Tal personagem feminina, prenderá a atenção do leitor, para uma possível separação entre Nestor e Hortência. Com esse enredo simples, de poucos personagens e centrado basicamente em um único espaço, o engenho, Senhora de engenho atingiu enorme sucesso na sociedade brasileira dos anos 1920. Lançado em 1921, com uma tiragem de mil exemplares, com recursos financeiros do próprio autor, tal romance atingiu rapidamente sucessivas edições. Em março de 1921, apenas dois meses após o lançamento do livro, uma nova edição de mil exemplares foi impressa, também custeada por Mario Sette. Em novembro do mesmo ano, Monteiro Lobato, editor que nos ano 1920 dedicou-se a publicar livros nacionais, instigando o então precário mercado editorial do Brasil 344 , lançou a terceira edição de Senhora de engenho, em uma tiragem de cinco mil exemplares, distribuídas nas principais capitais do país. Assim, em 1921, o primeiro romance de Mario Sette conhecera três edições. A quarta veio em 1923, por uma editora lusitana, Lello, ligada a livraria Chardron de Paris, localizada na cidade de Porto, em Portugal 345 . O sucesso internacional consolidou-se com a tradução espanhola, publicada na Argentina, ainda nos anos 1920. A crítica literária da época saudou elogiosamente o livro. Tanto a imprensa pernambucana quanto a imprensa do sul do país rendeu elogios a Senhora de engenho. Aníbal Fernandes, Farias Neves Sobrinho, Lucio Varejão e Gilberto Freyre, grandes nomes da imprensa recifense na época, exaltaram o romance. Freyre, por exemplo, apontou como ponto alto do livro justamente aquilo que nos interessa aqui: a nota regional, a valorização tradicionalista do engenho, a capacidade de Mario Sette captar a paisagem canavieira 344 Constatando que a maioria dos livros de autores brasileiros eram impressos na Europa, em especial na editora francesa Garnier, Monteiro Lobato começou na segunda década do século XX uma empreitada editorial de valorização do livro nacional. Em 1918, comprou a Revista do Brasil e custeou a impressão de seu próprio livro, Urupês. Alguns anos depois, fundou a editora Monteiro Lobato e Cia, assim como sua revista, voltada para os escritores nacionais. Mais informações em: HALLEWELL, Laurence. O livro no Brasil: sua história. São Paulo: EdUSP, 1985, p. 235-267. 345 Esta é a edição que tomamos para análise. A partir da quinta edição, Mario Sette realizou algumas alterações, sobretudo na linguagem do romance. Optamos por manter, em sua quase totalidade, a ortografia original do livro com o qual trabalhamos. 140 pernambucana, a despeito de algumas fragilidades, dadas pelo falar artificial e erudito dos personagens 346 . Monteiro Lobato, Ronald de Carvalho e Tristão de Ataíde, assim como seus pares pernambucanos, também consagraram o romance setteano de estreia. De norte a sul do país, Mario Sette recebia aplausos pelo livro que produzira. Outros fatos também indiciam o sucesso de Senhora de engenho. Em agosto de 1921 iniciou-se o processo de admissão de Mario Sette a Academia Pernambucana de Letras 347 , provavelmente como efeito do sucesso de Senhora de engenho. Em 04 de fevereiro de 1922, o escritor recifense foi empossado, no salão nobre do Instituto Arqueológico de Pernambuco, saudado pelo presidente da Academia Pernambucana, França Pereira 348 . Após quase vinte anos da publicação de Senhora de engenho, tal romance alcançou os palcos do Recife: em 1940 foi adaptada pelo próprio Mario Sette e encenada no teatro Santa Isabel, pelo grupo Amadores dos Bancários. Segundo Magdalena Almeida, foi para esta ocasião que o cantor pernambucano Lourenço da Fonseca, conhecido como Capiba, compôs a musica Maria Betânia, conhecida nacionalmente na voz de Nelson Gonçalves 349 . Senhora de engenho, portanto, marcou o momento em que a literatura de engenho gozou de considerável popularidade no cenário literário nacional. Com tal romance, o discurso valorizador do banguê ganhou ressonância social, atingiu vários indivíduos, espalhou-se pela sociedade brasileira, enformando muitos outros textos e subjetividades. A Mario Sette caberia o posto não só de precursor do “Romance de 30”, tradicionalmente lhe atribuído 350 , mas também o de veiculador da visão encantada do engenho, difundindo-a por vários setores da sociedade. Hoje um livro praticamente esquecido, raro em muitas prateleiras, Senhora de engenho revela-se como um livro de suma importância na história da literatura brasileira. Para nós, em especial, sua relevância é afirmada dentro de um conjunto maior que estamos chamando de literatura de engenho. Em termos obviamente anacrônicos 351 , poderíamos assinalar que ele foi o primeiro best-seller da literatura de engenho. 346 FREYRE, Gilberto. Tempo de aprendiz. São Paulo: IBRASA, 1979, p. 150-152. 347 A Província, 16 de agosto de 1921. 348 A Província, 04 de fevereiro de 1922. 349 ALMEIDA, Magdalena. Op., Cit., 2000, p. 102. 350 Para Moema Selma D’ Andrea, cabe a Mario Sette o posto de fundador do modernismo nordestino, precursor do “romance de 30”, e não a José Américo de Almeida, com seu romance A Bagaceira. Ver: D’ANDREA, Moema Selma. A tradição re(des)coberta. Campinas: Editora da Unicamp, 2010, p. 163-183. 351 Nossa postura diante do anacronismo não é de pura rejeição e horror. Se toda história é escrita no presente, se parte sempre desta temporalidade, o anacronismo é inevitável. O que fazemos é combater o mal anacronismo, aquele que reduz o passado ao presente, deforma a compreensão daquele. Ver: OLIVEIRA, Sarah Luna. Desafios da escrita da história: considerações sobre o anacronismo. Pergaminho (UFPB),1(0), p. 131-144. 141 4.3 Ecos de Massangana: o engenho de Mario Sette - Este cheiro de mel adóça mesmo a alma da gente. 352 Elegendo o engenho como espacialidade central de sua história, Senhora de engenho conferiu não só uma centralidade a tal espacialidade, como também o dotou de uma importância enorme. No romance ora em foco, a propriedade açucareira cumpre um papel que vai além do de ambientar as ações dos personagens, de emoldurar a trama narrativa. Na verdade, os dois banguês da ficção, Águas Claras e Cachoeira Azul, participam da história, como se fossem um personagem. Isso em razão dos dois principais sentidos com os quais Mario Sette construiu a propriedade açucareira no seu livro. Passemos nas linhas abaixo a discutirmos a visão setteana do engenho, tal qual veiculada pelo romance de estreia de 1921. Um primeiro sentido diz respeito ao engenho como um lugar, isto é, do banguê como um centro identitário, como um espaço prenhe de significados e sentidos pessoais. Segundo Yi-fu Tuan, “lugares são sempre centros aos quais atribuímos valor”353, ou seja, lugar é sempre algo familiar, significativo, emotivo, íntimo, capaz de sensibilizar um indivíduo. Em Senhora de engenho, a propriedade açucareira seria esse lugar, local onde todos se sentiriam bem, onde imperaria um bem estar. Nos engenhos do romance, percebemos toda uma relação afetiva dos personagens para com tal espacialidade. Os personagens da ficção são, quase todos, afeitos aos engenhos, acostumados a vivência neste espaço. Foquemos no protagonista da história, Nestor: Quando sahira do Rio, embora as saudades fossem grandes, temia aborrecer- se no engenho, como dantes. Mas agora tinha era vontade de percorrer, passo a passo, aqueles recantos evocativos, trepar ás collinas, descer ao rio, metter- se pelas estradas. [...] A alegria entrava-lhe pelo coração, quasi o suffocava! Aspirava forte o cheiro do melaço que vinha do engenho... 354 Quando Nestor voltou a Águas Claras, seu território da infância, foi rapidamente tomado de imensa alegria pelo engenho, sentimento esse inesperado em alguém que vinha da cidade grande. O filho do senhor de engenho, tendo passado longas temporadas em contato com a vida urbana e moderna, representada pelas cidades de Recife e Rio de Janeiro, duas cidades que Mario Sette conheceu bem, temia não se acostumar mais a vida campestre, tornar-se indiferente ao banguê. Porém, o narrador onisciente da história comunicou ao leitor 352 SETTE, Mario. Op. Cit., 1923, p. 255. 353 TUAN, Yi-fu. Op. Cit., 1983, p. 04. 354 SETTE, Mario. Senhora de engenho. Porto: Lelo, 1923, p. 115. Grifos nossos. 142 a religação do filho ausente com a sua terra de origem. Como o ocorreu essa religação? Como o filho ingrato se reconciliou com a terra paterna? Eis umas das problemáticas que movem o livro. A religação entre Nestor e o engenho aconteceu em razão do caráter identitário deste espaço. Para o protagonista do romance, Águas Claras constituía-se como um “recanto evocativo”, conforme podemos ler na última citação. O banguê evocava sua infância agrária, convocava experiências pueris. Ele permitia uma aproximação entre o adulto que receava ser estranho à vida rural e o menino que viveu no engenho. O engenho enlaçava temporalidades, unia presente e passado. Segundo um outro personagem, Lúcio de Andrade, no banguê “a infância nos sorri a um canto e a velhice não nos amedronta, de outro”355. Assim, o engenho, através de uma visão enternecedora, identificava-se com o passado, com a infância dos personagens. Não havia, pois, motivo para temê-lo e, sobretudo, para rejeitá-lo. Ele deveria ser o destino de Nestor, assim como de todos os homens, até da sociedade brasileira, como veremos mais na frente. Águas Claras era uma espécie de ponte para o passado: podia-se sentir a infância através dele. Águas Claras era, de um modo geral, um recanto evocativo do passado, em especial da infância. O engenho foi, inicialmente, tecido por Mario Sette como um “cenário de reminiscência”356, “página do passado”357. O trecho a seguir, retratando a fala de Nestor, marcou bem o que estamos discutindo: “Entrando em Águas Claras, reencontrei a minh’alma de infancia, como quando, em menino, de volta do collegio, nas férias”358. A partir dessa visão identitária do engenho, elegeu-se alguns recintos privilegiados para evocar a memória de Nestor. Existiria no banguê certo locais onde se poderia sentir mais efetivamente o passado. Um primeiro exemplo desses locais seria o terraço: “como se sentia feliz, no terraço de grades verdes onde montava em creança, á guisa de cavallo”359. Ao encontrar o terraço da casa-grande, o filho de Casusa e Ignacinha não via apenas um bloco de concreto, mas entrevia sua meninice, feria-lhe na retina flash backs do passado de criança solta no engenho. Semelhante ao terraço, acontecia com um outro recinto. Eis o que nos apontou a voz narrativa de Senhora de engenho: “toda a sua meninice se evocava em frente do oratório humilde da família, daquellas redomas bojudas. Três gerações, dos cabellos algodoados dos tataravós aos cachos louros das creanças de Conceição, haviam orado, ali. Fé, piedade, 355 SETTE, Mario. Op. Cit., 1923, p. 146. 356 SETTE, Mario. Op. Cit., 1923, p. 149. 357 SETTE, Mario. Op. Cit., 1923, p. 115. 358 SETTE, Mario. Op. Cit., 1923, p. 192. 359 SETTE, Mario. Op. Cit., 1923, p. 129. 143 tradição”360. O quarto dos santos da casa-grande de Águas Claras, onde ficava o oratório, evocava não só a infância de Nestor, como apontava também para toda uma tradição familiar, para o passado de um clã. Com isso, infundia-se passado e tradição no engenho. A passagem do oratório é bastante significativa para pensarmos não só na dimensão simbólica do engenho, mas também em uma faceta do autor de Senhora de engenho. Ela indicia a dimensão religiosa de Mario Sette, adepto do catolicismo. Segundo Hilton Sette, seu “pai era muito religioso, não de igreja, não era de frequentar a igreja, não era de ir à missa todo domingo. Mas era muito convencido, com muita fé, muito amigo da religião, sobretudo de Nossa Senhora do Carmo”361. Hilton Sette seguiu na entrevista afirmando que seu pai morreu acreditando firmemente que reencontraria seus filhos no céu. A religiosidade do escritor pernambucano, um catolicismo à brasileira, não muito ortodoxo e mais liberal, vazou para seu romance de estreia. Nossa Senhora do Carmo era a padroeira de Trancunhaém e era para ela que Nestor rezava, quando entrou no santuário da família. A história de Senhora de engenho iniciou-se com o relato de uma procissão mariana (culto a Maria, mãe do menino Jesus). Tais fatos do enredo refletem a crença religiosa do autor, um católico não muito dos bancos das igrejas, como muitos brasileiros da época, mas nem por isso menos crente e incrédulo dos princípios do catolicismo. Podemos perceber o catolicismo de Mario Sette nas seguintes palavras de Lúcio, quando em conversa com Nestor: A nós brazileiros, nenhum motivo milita em favor do anti-clericalismo. Na nossa historia o padre surde nas mais nobres e arriscadas tarefas. [...] O catholicismo é uma religião da nossa raça, irmanada aos nossos feitos, cruz que se alteia ao lado de nossa bandeira, hontem, colonos que fomos, hoje, povo livre que somos 362 . Tal visão, advogando o catolicismo como autêntica religião do Brasil, posicionava seu veiculador no debate existente na sociedade. À época de Mario Sette, marcada ainda pelas correntes do materialismo, evolucionismo e positivismo, a crítica à Igreja Católica, vista como uma instituição arcaica e retrógrada, era encabeçada por muitos grupos sociais, notadamente os bacharéis republicanos 363 . Para muitos, os padres não teriam mais lugar na sociedade moderna, devendo-se restringir unicamente aos templos religiosos. Tal posicionamento era 360 SETTE, Mario. Op. Cit., 1923, p. 223. 361 Entrevista de Magdalena Almeida à Hilton Sette, em 15 de setembro de 1997. Ver: ALMEIDA, Magdalena. Op. Cit., 2000, p. 237. 362 SETTE, Mario. Op. Cit., 1923, p. 49-50. 363 Para um panorama geral desse debate, ver: MOURA, Sergio Lobo de; ALMEIDA, José Maria Gouvêa de. In: FAUSTO, Boris (Dir.). Op. Cit., 1990, p. 337-342. 144 contrariado por católicos como Jackson de Figueredo e Pe. Leonel França, os quais exerceram nos anos 1920 uma considerável militância religiosa. O autor de Senhora de engenho parece posicionar-se nessas contendas, defendendo o catolicismo, afirmando-o como um traço intrínseco da sociedade brasileira. A Igreja, por estar no nosso passado, por ter feito parte de nossa formação, deveria permanecer no nosso presente e futuro. O brasileiro deveria conserva-se católico, fiel à sua história. Porém, essa dimensão religiosa do engenho, ecos do catolicismo de Mario Sette, prestava-se também para a construção identitária do banguê, enunciado como um espaço que trazia a marca dos antepassados, das crenças religiosas dos predecessores da família. Águas Claras seria, assim, carregado de passado, seja o tempo da infância, seja o pretérito dos antepassados, a tradição familiar. Foi graças essa dimensão significativa que Nestor pôde reconciliar-se com a propriedade açucareira, espacialidade que lhe dizia respeito, que lhe evocava o passado, a infância, a linhagem da família. Mario Sette colocou na boca de Nestor as seguintes palavras, concernentes a sua reconciliação com o engenho: “Ignoras [Hortênsia] a renascença de amor que sinto por estas terras, por este engenho que é um patrimônio. Como que me acho reconciliado commigo proprio”364. Vivendo em uma espacialidade onde alguns locais evocava sua memória de infância e outros locais convocava seu passado familiar, Nestor acabou por reencontrar-se, por identificar-se com seu verdadeiro “Eu”. O jovem outrora reticente ao engenho, ligado à vida urbana, descrente das religiosidades e tradições familiares, estava agora senhor de si mesmo, encontrava-se ciente de sua identidade como filho de senhor de engenho, herdeiro de um patrimônio a ser continuado. O engenho foi urdido como um espaço familiar, centro marcado pelo passado de uma família. Ele seria o elemento que unificaria a história de um clã específico, que daria unidade a todo um passado genealógico. A casa-grande, por exemplo, seria o local onde inúmeras gerações suceder-se-iam ao longo do tempo. No engenho, os filhos sucediam aos pais, que por sua vez tinham substituído aos avós. Com Nestor não foi diferente, na medida em que substituiu seu pai no governo de Águas Claras. A linhagem, a tradição familiar de comando do banguê, não poderia ser jamais rompida. Por isso a presença dos antepassados poderia ser sentida, pois o filho não passava de uma continuação do avô. O passado estava sempre presente. Eis o comentário de Lúcio sobre a decisão de Nestor de ficar na propriedade de sua família: 364 SETTE, Mario. Op. Cit., 1923, p. 146. 145 Ainda bem que você confrontou o lar moderno dos seus sogros, - esse lar para que você tinha gabos logo que chegou ao Rio, - com o velho tecto paterno, calmo, simples e sincero. [...] É o padrão antigo do solar brazileiro, despido de artifícios, sem estofos de seda, sem cegonha melancholicas nos tapetes, sem quadros de preço nas paredes, mas com uma cousa preciosa dentro: o coração da família 365 . Desse modo, a propriedade de Nestor foi ficcionada como uma espécie de sacrário das tradições familiares, como o legitimo abrigo do passado doméstico. O coração da família, existente no engenho, deveria triunfar sobre os lares modernos e urbanos, essa parece ser uma metáfora para falar do passado que pulsa dentro do banguê, para indicar que a tradição da prole nunca era esquecida, permitindo, assim, o culto aos antepassados. O filho sobrevindo ao pai seria como um tipo de ritual que permitiria manter sempre acesa a chama do passado genealógico. Engenho, reduto da família. O sentido de Águas Claras como lugar, como um recanto íntimo a Nestor e a vários outros personagens, nos causa certo estranhamento. Como apontamos, Mario Sette foi um indivíduo ligado ao meio urbano. Sua infância foi passada em Recife, Olinda, Santos e Rio de Janeiro. Além de ter visitado algumas cidades da Europa, na adolescência. O engenho, a infância de menino de engenho, não encontramos na sua biografia. Mario Sette conheceu os banguês apenas em breves visitas. Como, então, o autor de Senhora de engenho pôde falar do engenho como um espaço identitário, como um “recanto evocativo”, “cenário da infância”, “página do passado”? Como explicar a nota intimista que o romance setteano de 1921 mobilizou para caracterizar Águas Claras? Ocorre que o significado do engenho como uma espacialidade ligada ao passado, ao mundo da infância, já havia sido posto por Joaquim Nabuco. Embora o diplomata pernambucano não tenha desenvolvido muito esse sentido, conforme vimos no capítulo anterior, ficou subtendido que Massangana era seu território da infância. Massangana, para um recifense como Mario Sette, não poderia ser outra coisa se não o local onde Joaquim Nabuco desfrutou sua meninice, descrita em Minha Formação. No autor destas memórias, o banguê era, entre outras coisas, o mundo da infância rural, da meninice agrária, ao qual Mario Sette aparentou ter recorrido. Na autobiografia de Joaquim Nabuco, o capítulo que recuou mais no passado, atingindo a infância, foi justamente o Massangana. Nos anos 1920, já aparentava ser lugar-comum, entre os letrados, atribuir ao capítulo Massangana de Minha Formação a mais bem feita descrição do engenho. Oliveira Lima, em discurso de 1921 na Academia Pernambucana de Letras, e Arthur Muniz, em carta a Mario 365 SETTE, Mario. Op. Cit., 1923, p. 141-142. 146 Sette transcrita no jornal A Provincia 366 , atestaram o valor das linhas escritas por Nabuco para se referir ao seu engenho de infância. Certamente, as ideias de Joaquim Nabuco, já desde o início do século XX um dos grandes nomes da história pernambucana, circulavam no meio letrado recifense, meio esse que Mario Sette não só conhecia como integrava. Desse modo, o sentido de Águas Claras como um lugar, como um espaço evocador de memórias, capaz de seduzir Nestor para a vida campestre, parece-nos provir da construção simbólica de Massangana, tal qual operada por Joaquim Nabuco, em sua autobiografia. Como já apontamos, o autor de Minha Formação foi o marco inaugural da literatura de engenho, discurso valorizador do engenho e ao qual Senhora de engenho vinculou-se. Ninguém escreve sem ler, de modo que é bastante plausível supormos que Mario Sette, conhecedor da literatura brasileira e amante da história pernambucana, conhecesse os escritos de Joaquim Nabuco. O discurso nabuconiano sobre Massangana constitui o que Michel Foucault chamou de texto primeiro, isto é, o discurso fundador de um conjunto discursivo, o ponto inicial de textos aparentados, “um discurso que renasce em cada um de seus pontos, que reaparece sem cessar, em todo frescor, a partir das coisas, dos sentimentos ou dos pensamentos”367. Os discursos existem em relação com outros discursos, para ora aproximar-se, ora afastar-se, de maneira que Senhora de engenho mais se aproximou do que se afastou do capitulo Massangana do livro de Nabuco. Porém, não podemos afirmar que Mario Sette, ao forjar o engenho como cenário da infância, espacialidade identitária ligada ao passado, como lugar, simplesmente reproduziu o que estava implícito no discurso de Joaquim Nabuco sobre Massangana. Como assinalamos, o autor de Minha Formação apenas pontilhou o sentido do engenho como “página do passado”, desenvolvendo mais significados que interpretamos como reino e agente. Coube ao autor de Senhora de engenho desenvolver e aprofundar a imagem do engenho como mundo da infância, cenário de reminiscências. Assim, em vez de uma relação reprodutora, teríamos entre Joaquim Nabuco e Mario Sette uma relação de apropriação 368 : o segundo se apropriou de um sentido não muito desenvolvido pelo primeiro. O gesto de Mario Sette não indica uma passividade, mas sim um ato de criação, de decisão. Acrescentemos que Mario Sette fez o significado do engenho como “página do passado” funcionar em uma modalidade discursiva diferente daquela imaginada por Nabuco: em um, as memórias, no outro, a ficção romanesca. 366 A Província, 21 de março de 1921. 367 FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: Edições Loyola, 2012, p. 22. 368 CHARTIER, Roger. A história cultural: Entre práticas e representações. Lisboa: DIFEL, 2002, p. 13-69. 147 Longe da mera reprodução, estaríamos diante de uma operação criativa, poética, que deslocou determinado sentido para forjar a propriedade açucareira. Assim como Mario Sette, outro recifense, admirador e leitor confesso de Joaquim Nabuco, expressou uma visão identitária do engenho. Trata-se de Gilberto Freyre, que no prefácio de Casa Grande & Senzala, afirmou A história social da casa-grande é a história intima de quase todo brasileiro: de sua vida domestica, conjugal, sob o patriarchalismo escravocrata e polygamo; da sua vida de menino; do seu christianismo reduzido a religião de familia e influenciado pelas crendices da senzala 369 . Tal como Joaquim Nabuco e Mario Sette, o autor da citação acima identificou o engenho, representado pela casa-grande, como o ambiente da meninice, espaço ligado ao pretérito, para o qual todos os brasileiros guardariam laços de pertencimento, seja em um passado próximo, seja em um tempo mais longínquo. Na pena de Gilberto Freyre, o engenho era a origem do Brasil, o ponto inicial da vida dos brasileiros, palco da história nacional. O banguê seria como “um passado que emenda com a vida de cada um”370. Engenho, espacialidade do passado brasileiro. Casa Grande & Senzala, em 1933, reforçou e sofisticou a construção identitária que se processava, desde 1900 com Joaquim Nabuco, do engenho. Ao forjar o engenho como um pedaço da vida íntima de cada brasileiro, Gilberto Freyre aproveitou tanto o passado pessoal como menino de engenho na propriedade São Severino, de seu tio, como o passado do Brasil, quando o engenho teve um papel fundamental na formação e economia deste país, nos tempos em que era colônia de Portugal. Uma das principais marcas do ensaísmo histórico freyreano é a fusão entre a memória individual- pessoal e a memória coletiva-nacional 371 . O engenho emerge nessa e dessa encruzilhada. Ele é tanto o passado do indivíduo como o é também da nação. Desse modo, para o autor de Casa Grande & Senzala, não teria como o Brasil nem muito menos o brasileiro fugir da herança do banguê, de sua ligação com a propriedade canavieira. Portanto, Gilberto Freyre também construiu uma visão identitária do engenho, ainda que bem mais sofisticada e complexa do que a de Mario Sette. Para um, o engenho estaria ligado à infância individual. Já para o outro, estaria ligado não só a infância individual 369 FREYRE, Gilberto. Op. Cit., 1933, p. XXX. 370 FREYRE, Gilberto. Op. Cit., 1933, p. XXXI 371 Para uma discussão sobre o ensaio histórico, este gênero fronteiriço e híbrido, que mistura exigências históricas e literárias, cientificas e artísticas, e que marcou a escrita da história de muitos autores do início do século XX, bem como do papel da memória na escrita historiográfica de Gilberto Freyre, ver: NICOLAZZI, Fernando. Um estilo de História. A viagem, a memória, o ensaio: sobre Casa-grande & senzala e a representação do passado. São Paulo: Unesp, 2011, 321-449. 148 de cada brasileiro, como estaria também relacionada à própria história Brasil. Os dois pernambucanos, contudo, celebraram o engenho, visto por ambos como algo do passado, como marca indestrutível de um tempo, como uma herança inescapável. O protagonista de Senhora de engenho, Nestor, ficou em Águas Claras por entender que ali era seu lugar, ou seja, era um espaço significativo, que lhe dizia respeito, que sinalizava tanto para seu passado como para seu futuro. Na ficção setteana de 1921, o banguê foi tecido como lugar, como um centro identitário, em razão da dimensão pretérita existente em tal espacialidade. A infância de Nestor e o passado de sua família poderiam ser evocados ali, na propriedade açucareira. Isso conferiria a Águas Claras um caráter significativo, pessoal, íntimo. Com isso, o engenho emerge das páginas de Senhora de engenho como um espaço identitário, que traz a marca do tempo, do passado familiar e, assim, torna-se um lugar. Como mostrou Yi Fu Tuan, o tempo é um elemento fundamental para a criação de lugares: é com o tempo que um mero local torna-se um espaço significativo, íntimo, afetivo 372 . O tempo, mais precisamente o passado, foi o que conferiu ao engenho a dimensão identitária que fez Nestor voltar à terra paterna. Para Nestor, o engenho era um patrimônio familiar, bem material a ser não só preservado, como desenvolvido. Tal foi o que Nestor fez, seguindo os ensinamentos de Lúcio, seu amigo e cunhado. Ele, vivendo em Águas Claras, assumiu sua posição de herdeiro e tornou-se senhor de engenho. Com isso, resolveu modernizar a propriedade agrária de seus pais, trazer os progressos materiais para o banguê que, com o antigo comando do seu pai, estava bastante precário e necessitado de desenvolvimento. No dia em que fez a experiência dos arados adquiridos recentemente, cousa nova para a vida rotineira do engenho, levou a família a ver o trabalho. A terra afofada ia abrindo o seio argiloso em sulcos parallelos, onde cahiam os gomos das canas para a germinação. A alegria boiava nos semblantes de todos numa solidariedade de entusiasmo pelo primeiro sopro de progresso em Aguas Claras 373 . Mario Sette construiu uma história em que os engenhos, embora trouxessem a marca do passado, precisavam do progresso, a fim de manterem-se. É assim que vemos em Senhora de engenho Nestor e Lúcio, o primeiro em Águas Claras e o outro em Cachoeira Azul, modernizarem a propriedade açucareira. O engenho, para sobreviver, para ser futuro, precisaria juntar ao seu passado o presente. Passado, presente e futuro, as três temporalidades, 372 TUAN, Yi Fu. Op. Cit., 1983, p. 198-220. 373 SETTE, Mario. Op. Cit., 1923, p. 193. 149 necessitariam conviver no engenho, a fim de que este garantisse sua existência. A modernização era algo necessário, de modo algum inimigo a ser combatido ou expulso. Era a solução, a garantia do presente no futuro. Nestor e Lúcio, dois bacharéis (um em direito e o outro em engenharia, respectivamente) que modernizaram seus engenhos, encarnariam a figura do reformador, tipo social que no Brasil dos anos 1920 já grassava no meio rural nacional, em especial em Pernambuco 374 . Tratava-se de indivíduos dotados de espíritos práticos e capitalistas, que modernizavam o banguê, que investiam em maquinários e na contratação de profissionais, a fim de melhorar a produção açucareira, fazendo-a competir no disputado mercado nacional e internacional. Tais indivíduos tinham consciência da crise açucareira, da necessidade de reformar materialmente o engenho, único modo de livrar este do declínio. Mario Sette levou para o plano ficcional tal figura, de modo que os dois bacharéis do romance seriam seus reflexos. Nestor e Lúcio seriam os responsáveis pelo sopro de progresso que infundiu nova vida às suas propriedades açucareiras. Ambos encarnariam o espírito técnico, pragmático e utilitário da sociedade burguesa, a despeito de serem senhores de engenho. Ao inserir engenhos modernizados, o autor de Senhora de engenho indiciou estar ciente das transformações tecnológicas ocorridas no meio rural nacional, notadamente em Pernambuco. Desde 1874, quando da instalação da primeira usina em Pernambuco, principal polo da produção açucareira no Brasil, ocorria uma modernização dos engenhos 375 . As usinas e os engenhos centrais 376 , favorecidos com subsídios estatais, entraram em ação, a fim de aumentar a produtividade do açúcar nacional. Tal processo de modernização açucareira foi impondo um destino aos banguês tradicionais, isto é, movidos à tração animal: ou modernizavam-se minimamente, para atuarem como fornecedores de cana e outras matérias primas às usinas, ou transformavam-se em unidades industriais, bem aparelhadas e com profissionais qualificados, regidos com base em princípios capitalistas. Daí um estudioso do tema, Manuel Correia de Andrade, ter apontado que “poucos foram os banguês que sobreviveram até a segunda metade do século XX”377. O banguê foi definido pelo geógrafo 374 ANDRADE, Manuel Correia de. História das usinas de açúcar em Pernambuco. Recife: Massangana, 1989, p. 36. 375 Para uma análise da modernização açucareira em Pernambuco, ver: EISENBERG, Peter L. Modernização sem mudança: indústria açucareira em Pernambuco (1840-1910). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977, p. 29-145. 376 Nos anos finais do Império, o governo brasileiro adotou a política de criação de engenhos centrais, isto é, unidades produtivas relativamente modernizadas, que tentariam centralizar a produção açucareira em uma região, produzindo açúcar e comprando cana à engenhos menores e rústicos. Para uma discussão sobre tal política e as razões de seu fracasso, ver: EISENBERG, Peter L. Op. Cit., 1977, p. 111-145. 377 ANDRADE, Manuel Correia de. Op. Cit,1989, p. 16. 150 como sendo o engenho primitivo, aquele movido por tração animal, que estava ficando para trás, entrando em declínio, ante o processo de modernização da produção açucareira. A partir do alvorecer do século XX, unidades agrícolas modernizadas foram se impondo na paisagem rural pernambucana. Manuel Diégues Junior afirmou que o censo de 1920 já indicava quase 700 engenhos a vapor existentes em Pernambuco 378 . Peter Eisenberg, em seu estudo sobre a industrialização açucareira em Pernambuco, assinalou que os anos de 1890-1910 foram um período de expansão usineira, em razão, sobretudo, da falência dos projetos de engenhos centrais e dos incentivos estatais. Até a crise dos anos 1930, as usinas foram se impondo, substituindo os engenhos arcaicos. Tanto foi assim que, a partir de 1927, a safra total do açúcar nacional contou com uma maior contribuição das usinas. O volume de açúcar produzido nas unidades industriais superava, assim, a quantidade de açúcar gerado nos engenhos 379 . A modernização açucareira era, portanto, o horizonte de expectativa 380 dos engenhos. Ou era a modernização ou era a decadência. Mario Sette captou bem esse imperativo social, a exigência de modernização dos engenhos. Ao contrário de muitos discursos da literatura de engenho, crítico ao progresso material, Senhora de engenho não mostrou um repúdio a modernização. A usina, grande símbolo da modernização açucareira, não apareceu como inimiga do engenho no romance setteano de 1921. Na verdade, uma relação amistosa se estabeleceu com ela: “o bonito é ver nas usinas o assucar sahir prompto, alvo, com poucas horas, das turbinas”381. A usina impressionaria, fascinaria, e mais do que isso: deveria ser um aliado, alguém que viria para aumentar a produção açucareira. O escritor pernambucano não repudiou a usina porque tinha consciência de que somente a modernização poderia livrar os engenhos da decadência. Logo, era bem vista, fazia parte de um processo tecnológico necessário. Para o meio rural, era indispensável a modernização da produção canavieira, único caminho capaz de livrar os engenhos da decadência. Mario Sette, embora tivesse tendenciais tradicionalistas e regionalistas, era um homem citadino, ligado ao comércio, onde trabalhou muitos anos, até ocupar um cargo público em 1909. Seu pai, Antonio Sette Junior, trabalhou até antes de falecer (1897) na alfândega, o que possibilitava uma boa condição financeira à sua família. Ainda criança, o filho de Antonio Sette Junior e Ana Emilia de Andrade Luna Sette realizou o sonho de muitos jovens 378 JUNIOR, Manuel Diegues. Op. Cit., 1952, p. 28. 379 EISENBERG, Peter L. Op. Cit., 1977, p. 132. 380 A tendência possível do presente, o futuro intuído, o futuro do presente que pode ser entrevisto ainda nesta temporalidade. Ver: KOSELLECK, Reinhart. Op. Cit, 2006, p. 305-329. 381 SETTE, Mario. Op. Cit., 1923, p. 126. 151 brasileiros de fins do século XIX: passar uma temporada na Europa. Por volta dos dez anos, Mario Sette conheceu por alguns meses cidades portuguesas, espanholas e francesas. Apenas uma família com recursos financeiros elevados poderiam dar-se ao luxo de passar períodos no Velho Mundo. Essa condição de homem ligado às classes médias recifenses, próximo do comércio e conhecedor de urbes estrangeiras, fez o pernambucano aliar ao seu tradicionalismo uma postura mais conivente com a modernização. Assim, muito mais do que uma condenação ou negação da modernização, Mario Sette expôs em seu primeiro romance uma perspectiva conciliatória entre o antigo e o moderno, entre o engenho e a usina, entre o passado e o presente. A perspectiva da modernização conservadora, do “mudar para manter”, parece ter sido defendida pelo autor de Senhora de engenho. Fato esse que justifica o caráter pontual do saudosismo presente no romance. Não caberia uma postura radicalmente saudosista, uma vez que a solução estaria no presente, o passado ainda poderia ser mantido, desde que os engenhos adotassem um pouco de modernização. O passado era passível de harmonização com o presente e o futuro. Essa visão conciliatória foi expressa também por um outro romancista, José Américo de Almeida, em A bagaceira 382 , literato paraibano amigo de Mario Sette. A modernização dos engenhos empreendida pelos reformadores Nestor e Lúcio esfriou a nota passadista e saudosista do romance. Ao contrário do capítulo Massangana, de Joaquim Nabuco, banhado em saudades pelo engenho, a ficção ora em tela não destilou muita saudade pelo banguê. Para ter saudade é necessário o afastamento, a distancia temporal, o corte entre passado e presente. Em Joaquim Nabuco, percebemos essa ruptura, identificamos o vão temporal/espacial que separou o menino e o adulto, o passado e o presente. Já em Senhora de engenho, quase não há afastamento dos personagens em relação ao engenho. Como assinalamos, os principais personagens de tal romance são todos ligados aos engenhos, à terra natal, o que dificulta a saudade. Como sentir saudade de um espaço que ainda é presente? Como ser saudosista se o presente ainda esta ligado ao passado, se o hoje repetirá o ontem? O saudosismo de Senhora de engenho apareceu no romance como algo pontual, pontilhado apenas em algumas passagens e breves momentos. Nestor, enquanto estava no Rio 382 Temos ciência de que o romance de 1928 de José Américo se passa no engenho (Marzagão), porém, decidimos não analisá-lo por entendermos que não se trata efetivamente de um discurso ligado a literatura de engenho, embora apresente alguns elementos ligados a esta formação discursiva. A Bagaceira ficciona o drama dos retirantes sertanejos, que em períodos de seca deixam o sertão e migram para o brejo. O engenho atua mais como pano de fundo, como contexto espacial do drama. A ênfase não está tanto no banguê quanto está na situação conflituosa entre dois tipos sociais distintos (o sertanejo e o brejeiro). Ver: ALMEIDA, José Américo de. A Bagaceira. Rio de Janeiro: José Olympio, 1982. 152 de Janeiro, não sentia saudades do engenho, pois nesse momento era um bacharel com emprego público fascinado pela cidade grande, pela vida moderna. Tal sentimento só irrompeu quando o protagonista voltou ao engenho e teve sua memória da infância aguçada pelo contato com seu “cenário da infância”. Passado o momento de reencontro com a terra da meninice, a saudade deu lugar a um outro sentimento, que será dominante: a esperança, o otimismo para o com o futuro, a expectativa para com o tempo em que Hortência aclimatar- se-ia ao engenho e este prosperaria, progrediria. A ficção de 1921 distanciou-se de um saudosismo passadista, que faz os olhos estarem sempre voltados para o passado. Assim, Mario Sette não se valeu muito da saudade passadista para forjar o engenho, como fez Nabuco com Massangana. Aquele literato pernambucano nunca se separou do engenho porque nunca viveu em um, nunca soube o que seria uma saudade do engenho. Como sentir saudade de um espaço que pouco se conheceu? Ainda através dos dois reformadores, Mario Sette transmitiu pelas páginas de seu romance a valorização do trabalho, típico ideal da sociedade burguês-liberal que se solidificava no Recife do começo do século XX. O trabalho como atividade dignificadora do homem, como meio que possibilitaria ascensão social dos indivíduos e como elemento transformador da natureza, apareceu muito bem pontuado em Senhora de engenho, através dos personagens Nestor e Lúcio, os quais são dedicados à lida agrícola, ao oficio de senhor de engenho. Nesse sentido, não podemos deixar de pontuar as palavras da capa do romance, que atuam como uma espécie de lema do livro: decus in labore 383 . A expressão em latim parece veicular o ideal de trabalho, a importância e o valor do labor para o homem, em particular, e para a sociedade em geral. Quando os homens trabalham, a vida melhora, a economia prospera e a sociedade agradece. Eis um dos ensinamentos do romance setteano de 1921. Figura 8: Símbolo que consta na capa da 4⁰ edição de Senhora de engenho. 383 Tradução livre: “Orgulho no trabalho”. 153 De acordo com Antonio Paulo Rezende, a crítica ao ócio e ao mendiguismo foi frequente no Recife das décadas iniciais do século passado. Na sociedade burguesa que desde o século XIX vinha se implantando na capital pernambucana, a necessidade de trabalho, de os homens terem uma ocupação, um oficio para se dedicar e, assim, contribuir para o crescimento da cidade, era quase um imperativo social. A população recifense deveria se engajar no mundo do trabalho, no universo produtivo. Não se admite homens sadios parados 384 . Era a época do homo faber, ou seja, da formação da classe operaria, bem com do ideal segundo o qual todos os homens deveriam trabalhar, única maneira de sustentarem-se na vida e progredirem socialmente. Sem trabalho ninguém viveria, todos os homens deveriam ter uma ocupação, e não somente aqueles identificados com as classes baixas. A sociedade brasileira dos anos 1920 distanciava-se da visão aristocrática segundo a qual o trabalho denegria o homem, bestilizava-o, rebaixava-o a condição de animal. Agora, passados mais de 30 anos da Abolição da escravidão, a época era de valorização do trabalho. Nos idos do século XX, começava a se fortalecer na sociedade brasileira a crença burguesa e moderna do trabalho como fonte de realização para o indivíduo. Senhora de engenho, ao exaltar o trabalho, ressoava não só esse acorde histórico- social, como também expressava uma nota individual. Lembremos que seu autor, Mario Sette, foi um indivíduo ligado, originalmente, às classes médias, que ascendeu socialmente a partir do trabalho, ao qual se dedicou desde os 15 anos de idade, conforme já apontamos. Sua produção literária, provavelmente, foi custeada a partir dos recursos que obtinha com seu emprego. Mario Sette não escreveu suas obras a partir da ajuda de um mecenas, nem muito menos dedicava sua vida unicamente às letras. Esta era apenas mais uma atividade que o pernambucano realizava. Não vivia dela nem, talvez, para ela. A vida do escritor pernambucano comprovaria o valor do trabalho humano. Daí seu romance valorizar tal categoria, alcançando, assim, o ideário de sua época. Reconectado Nestor ao engenho, ao seu “recanto evocativo”, a trama narrativa passou a focar na conversão de sua esposa carioca, Hortência, que foi bem mais “incrédula” em relação a Águas Claras do que seu marido. Se este retornou a vida rural graças ao caráter significativo do engenho, sua mulher vinculou-se ao banguê a partir de outros fatores. Porém, tanto na transformação de Nestor quanto na de Hortência a propriedade agrária exerceu uma suposta influência. No caso da mulher, sua mudança ocorreu primeiro em relação à gravidez, representada como obra do engenho. Hortência, há mais de nove anos casada com Nestor, não 384 REZENDE, Antonio. Op. Cit., 1997, p. 50. 154 conseguia ter filho. Foi dada como infértil, incapaz de gerar descendentes, o que muito lhe entristecia. Quando se mudou para o Águas Claras, passando a desfrutar o suposto ar puro dos campos, a carioca engravidou, para alegria de todos da casa-grande. A gravidez de Hortência foi atribuída ao engenho, á terra fértil do banguê: “semente, boa que seja, em terra estéril, não germinará ou dará planta maninha”385. Através desta metáfora naturalizante, proveniente do universo rural, vislumbramos o papel e o poder do engenho. Enquanto estava no Rio de Janeiro, visto como um espaço degradante, que desvirtua as pessoas, que as corrompe, tal qual aconteceu com Nestor, Hortência não conseguia engravidar. Enquanto habitava o meio urbano, solo corrompido pelo estilo de vida profano, ela não conseguia gerar um herdeiro. Senhora de engenho expressou uma visão negativa da cidade: comparou-a aos vinhos finos, que perturbam os sentidos, enlouquecem a mente, instigam pecados e vícios, corrompem as famílias 386 . Em um ambiente citadino a prole não se multiplica, assim como a semente em um solo infértil não frutifica. Hortência precisou mudar de solo, necessitou encontrar o engenho para poder conceder um filho a Nestor. A terra produtiva, o massapê fértil tornou a mulher de Nestor também produtiva. Porém, a gravidez e o nascimento do filho não foram suficientes para trazê-la para junto de Águas Claras. Após parir uma menina, a mulher do protagonista foi acometida por uma infecção, que quase tirou- lhe a vida. Tal como na gravidez, foi necessária novamente a intervenção do engenho para salvá-la, para livrá-la da doença. Tal foi o que visou transmitir-nos o narrador da ficção. Quando Hortência já estava recuperada da infecção, eis as palavras do médico, profissional que, no Brasil dos anos 1920, encarnava a razão, o racionalismo, a ciência: “O dr. Castro e Silva, chegando, gabou-lhe os bons ares: - nunca pensei que ficasse robusta tão depressa! Quando sahiu do leito, franqueza, temi a convalescença...Tão fraca! Mas esta terra é milagrosa!”387. Mario Sette colocou na voz do representante da cultura moderna uma possível relação entre a doença de Hortência e a sua “cura”, pretensamente ocorrida em razão da terra milagrosa. Onde se lê terra, podemos certamente ler engenho. O ambiente do banguê, rico em natureza, arejado com ares ditos puros, teria livrado a esposa de Nestor da morte. Até mesmo um médico perceberia a ação reparadora do engenho. O protagonista da ficção romanesca também sinalizou para o milagre da terra: “milagres, a terra natal nunca deixou de fazer”388. 385 SETTE, Mario. Op. Cit., 1923, p. 243. 386 SETTE, Mario. Op. Cit., 1923, p. 57. 387 SETTE, Mario. Op. Cit., 1923, p. 242. Grifos nossos. 388 SETTE, Mario. Op. Cit., 1923, p. 244. 155 Por mais que até as décadas iniciais do século XX fosse comum no Brasil a crença de que o ar campestre curaria enfermidades, tendo até certo respaldo científico 389 , o registro dessa informação por Mario Sette em seu romance não nos parece indicar uma mera atitude documental. Tal informação histórica entrou na ficção setteana não tanto como um registro histórico, como a marca de um tempo, mas sim como um fator que visa mostrar os poderes do engenho, da terra supostamente milagrosa. O registro cumpre, pois, não tanto uma função histórica. Seria a ação de Águas Claras na conversão de Hortência que Mario Sette visou destacar, ao trazer para seu romance a crença social de que o ar dos campos sararia moléstias. A confirmação de que o engenho “curou” a moléstia de Hortência nos foi dada nas últimas páginas de Senhora de engenho, através das palavras de Nestor e da voz narrativa. A passagem é longa mas indicia claramente o papel do engenho na vida não só de Hortência, como de Nestor e de outros personagens: - Nem pequeno, nem pobre. Nossa terra é grande e é rica. Tão grande, que conquista os estranhos, tão rica que reparte o legado da sua fortuna. Aqui está um exemplo. E elle estreitava o busto da esposa, ambos tocados de ternura, as vistas perdidas ao longe pelos mares verdes das plantações, pela bayonetas côr de esperanças dos cannaviaes, que, em vez de derramarem a dôr e o crepe, adoçam as boccas, nutrem o sangue, dão vida, dão riqueza que frutifica do solo, que fulge nesse ouro doce crystallisado nos socegados labores das casas de purgar 390 . Primeiramente, a fala de Nestor, que se dirigiu a esposa. O engenho conquistou Hortência, o ser estranho à vida rural, trouxe-lhe para vida campestre que desconhecia e até repugnava. E mais: Águas Claras repartiu sua riqueza, sua prosperidade, sua abundância com a carioca, tornando-a, também, produtiva, fértil, como seu solo. Daí as palavras do narrador: “dão vida”. A riqueza do engenho não estaria somente no seu tamanho, como estaria na prosperidade que produziria para seus habitantes. Em contato com as terras do banguê, Nestor e Hortência prosperam, tiveram a filha tão esperada, alcançaram a felicidade, encontraram seu lugar. Em Águas Claras, o casal finalmente formaria uma família, composta de esposo, esposa e filha. Segundo Moema Selma D’ Andrea, a “cura” de Hortência pelo engenho deve ser vista como uma “ressurreição simbólica: a carioca morria para a cidade e renascia para o campo”391. De fato, após a gravidez e a recuperação, ambos os acontecimentos supostamente 389 Para uma discussão sobre tal crença, ver: ARRAIS, Raimundo. Op. Cit., 2004, p. 361-477. 390 SETTE, Mario. Op. Cit., 1923, p. 254. 391 D’ANDREA, Moema Selma. Op., Cit., 2010, p. 180. 156 ocorridos devido à ação da terra milagrosa do Águas Claras, a mulher de Nestor estaria integrada ao engenho. A vida mundana no Rio de Janeiro seria coisa do passado. Hortência era agora a senhora de engenho do Águas Claras. Sua investidura ocorreu no principal momento da vida banguezeira: na botada, momento em que o engenho safrejava. Como em um ritual tradicional, foi D. Inacinha, antiga senhora de engenho, que passou seu posto para sua nora. Senhora de engenho, seria, pois, um título cuja transmissão seria almejada por muitas mulheres. Assim como com Nestor modernizando Águas Claras selava-se sua religação com a vida rural, com Hortência senhora de engenho confirmava-se a integração da carioca ao meio banguezeiro que lhe acolheu. Ela não seria mais a moça carioca, flor estranha ao engenho, mas sim fruto da terra. Nestor e Hortência viveriam felizes no engenho. O engenho seria como que uma religião: exigiria uma conversão por parte daqueles que desconheciam tal espacialidade. Semelhante a uma terra santa, a um espaço sacralizado, para viver no banguê era necessária estar em comunhão com ele, torna-se parte dele, através de um processo de religação. Uma vez convertido, o indivíduo outrora estranho ao banguê tornar-se-ia parte dele, e o engenho seria também parte do corpo de quem o habitava. Haveria, assim, uma simbiose entre sujeito e espaço, um compondo o outro. Residiria aí razão para o corpo de Hortência ter gestado uma criança, gestação essa só ocorrida em Águas Claras. O engenho possuiria as criaturas, torná-los-ia como a terra, produtiva e fértil. Uma das principais características de Senhora de engenho relaciona-se ao seu vocabulário religioso. Metáforas do universo cristão foram agenciadas para narrar a história de Nestor e Hortência, bem como para descrever a propriedade açucareira. Termos como conversão, religação, milagre, benção, culto, pecado, arrependimento, ressurreição, entre outros, todos provenientes de um discurso religioso, pululam nas páginas do romance. Essa dimensão mística também envolveu o engenho, tornado-o um espaço sagrado, banhado pela água benta dos fieis. Mario Sette, adepto das crenças cristãs, homem de muita fé em Deus e em Maria, santificou Águas Claras, fê-lo até uma terra milagrosa, para a qual os homens deveriam render culto. Como um servo obediente aos princípios cristãos, o engenho também faria suas caridades, distribuiria entre seus habitantes suas riquezas e frutos, sem egoísmo e vaidade nenhuma. Ao destacar a ação do engenho na vida de Hortência, primeira tornando-a fértil e em seguida curando-a da moléstia que lhe acometeu após o parto, vislumbramos Águas Claras como agente, como fator desencadeador de determinados acontecimentos. Mario Sette aparentou ter inserido no seu plano ficcional o papel que Joaquim Nabuco conferiu ao Massangana em suas memórias escritas. Do mesmo modo que devemos atribuir ao engenho 157 de infância de Nabuco o seu antiescravismo, devemos fazer com Hortência, atribuindo ao Águas Claras sua gravidez e integração ao meio rural. Os dois autores partilharam o topos do engenho como sujeito, como agente gerador de ações e casos. O banguê seria uma força, um elemento propulsor, em uma palavra, uma entidade capaz de intervir na vida das pessoas, sejam estas do mundo que se diz real ou do plano ficcional. O engenho formaria personalidades, no caso de Joaquim Nabuco, e mudaria vidas, para Mario Sette. Assim como o sentido do engenho como cenário da infância, temos novamente aqui uma relação entre o discurso de Senhora de engenho e o discurso inaugural da literatura de engenho. O banguê como mola propulsora, causa de acontecimentos, agente que interfere na história a partir de intervenções individuais, fabricado por Joaquim Nabuco, ressoou nas páginas do romance de estreia de Mario Sette. O engenho, para este autor, era sujeito da história. A ele se deve a religação de Nestor ao mundo rural, bem como a conversão de Hortência a esse mesmo universo. O grande herói de Senhora de engenho não são os personagens, como é o banguê, responsável pelo desfecho final do romance: a união entre Nestor e Hortência, formando um casal de senhor e senhora de engenho. Não seria exagero nosso se apontássemos que Mario Sette quer nos fazer crer que, se não fosse Águas Claras, o destino dos protagonistas seria a vida urbana, o Rio de Janeiro. Engenho, espacialidade sujeito da história. Interessante pontuarmos que Mario Sette conferiu uma importância considerável a senhora de engenho. Embora a modernização do Águas Claras e do Cachoeira Azul tenha ocorrida a partir da ação de homens, o comando do banguê, para ser completo, precisaria do “toque” feminino. Este se mostraria indispensável. Vejamos a ação da senhora de engenho Hortência: Hortência, radiosa, visivelmente alegre, dando ordens, na sala de jantar, para que as mucamas, em fartas bandejas, fossem servir aos convidados café, chocolate, bolinhos. A uma, corrigia as dobras do vestido de chita nova, a outra, endireitava o avental bordado. Ao senhor vigário, ordenava servir- se 392 . Embora as ações da senhora de engenho estejam referidas ao universo doméstico, podemos perceber que a senhora de engenho estava sendo representada como uma figura ativa, como alguém que exercia poder sobre outras pessoas. Mesmo no dia de festa, ela trabalhava, comandava a esfera doméstica da casa-grande. Hortência exercia atribuições. 392 SETTE, Mario. Op. Cit., 1923, p. 245-246. 158 Outra atribuição da senhora de engenho seria atender os necessitados e inválidos que batiam à porta da casa-grande, aos quais sempre reservava um horário da manhã para atendê-los 393 . A comandanta do engenho sentava-se a beira dos batentes que principiavam a entrada da casa- grande e atendia àqueles que precisavam de sua ajuda. Com uma postura paternalista, entregava remédios, roupas e alimentos aos necessitados. No dia da botada, a senhora de engenho, e não o senhor de engenho, tinha papel de destaque, dirigia a celebração, tomava a frente do processo. Hortência, visivelmente envaidecida, subira os degráos da moenda, depondo a gramínea nos tambores que entrerodaram, esmagando, escorrendo o caldo turvo, gommoso, caminho do parol. O motor barulhava, o volante tomára impulso, outras cannas, espremidas nos cylintros, faxiadas, espumarentas, reencetavam a bella e grande faina agrícola, generosamente fecunda, perfumada e sadia, riqueza tradicional da terra bondosa, que a uns vira nascer e a outros acolhia no mesmo sorriso de amor 394 . A mulher caberia também atribuições de comando, de gerência e administração. O senhor de engenho não governava sozinho. A terra, idealizada como bela e perfumada, semelhante aos sorrisos de uma mulher faceira, deveria receber a atenção da senhora de engenho, responsável pelo momento festivo em que as máquinas moem a cana e destilam no ar o cheiro forte do melaço de cana espremida. Hortência, senhora de engenho, não seria uma figura estranha aos processos produtivos do Águas Claras. Uma vez acolhida nessa e por essa terra campestre, ela deveria participar da “botada”, comandando a ocasião no qual o engenho mostrava sua produtividade. A fabricação simbólica de Hortência contém alguns aspectos que lembram muito a figura de Ana Rosa Falcão, tal qual construída memorialisticamente por Joaquim Nabuco. Ambas as mulheres foram imaginadas como senhoras de engenho, criaturas matriarcais que se empenhavam no governo do engenho. Tanto a esposa de Nestor quanto a madrinha do menino Quincas exerciam um papel importantíssimo no banguê, sobretudo a senhora de engenho enviuvada. Tanto Águas Claras quanto Massangana foram figuradas com uma clara dimensão feminina: são perfumadas como as rosas de um belo jardim, acariciam como uma mulher apaixonada e repartem seus frutos e riquezas como uma mãe caridosa. A personificação da terra, elemento recorrente na literatura de engenho, pende quase sempre para uma humanização ligada a imagem da mulher. 393 SETTE, Mario. Op. Cit., 1923, p. 121. 394 SETTE, Mario. Op. Cit., 1923, p. 248. 159 Dessa forma, senhor e senhora de engenho se juntavam no comando do banguê, de modo que um precisava do outro. Ambos eram indispensáveis para a boa gerência do engenho. Ao senhor caberia os aspectos relacionados à produção e venda do açúcar (máquinas, trabalhadores, preços e instalações físicas), isto é, o mundo do trabalho fora da casa-grande, e a senhora se reservava o cuidado para com os afazeres domésticos e o auxílio aos necessitados, ou seja, o mundo do trabalho ligado à casa-grande. Embora tal divisão sexual do trabalho mostre-se hoje como conservadora e machista, Mario Sette demonstrou um certo progressismo para a sua época, na medida em que tencionou evidenciar a importância da figura da senhora de engenho para a administração do banguê. A senhora de engenho teria sua utilidade para a vida campestre, daria uma contribuição para o comando da propriedade açucareira. No entanto, com Hortência senhora de engenho, Mario Sette quis enfatizar não tanto o papel da mulher no comando do banguê como a ação do Águas Claras na integração de uma figura que se mostrou, no início, relutante a vida agrária. Hortência estava agora afeiçoada ao engenho, assumia suas funções, “con-formava-se” ao seu lugar. Em última instância, a conversão da esposa de Nestor à vida no engenho, tornando-se a senhora de engenho (título do romance) cumpriu o papel de exaltar esta espacialidade, vista como o agente desta conversão. Ao engenho caberia o milagre da conversão. Além de ser lugar, “página do passado”, “cenário da infância”, o engenho operaria também milagres. 4.4 Engenho, símbolo do rural idealizado: o ruralismo de Mario Sette Para Moema Selma D’ Andrea, Senhora de engenho teria um objetivo ideológico claro: “comprovar a supremacia do meio rural sobre o meio urbano, com a neutralização do último, que é posto para ser negado”395. Embora não trabalhemos com a noção marxista de ideologia, não podemos deixar de assinalar que a autora de A tradição re(des)coberta percebeu bem a tese do romance de estreia de Mario Sette. Poderíamos dizer que Senhora de engenho é um romance de tese, isto é, um livro que foi escrito para demonstrar uma assertiva, para expor e defender uma ideia a priori. O enredo da produção literária foi montado justamente para comprovar a superioridade do universo rural sobre a zona citadina. Neste espaço, Nestor e Hortência não foram felizes, conforme vimos. Como apontou um personagem do romance, Nestor, “que andou por outros mundos, mais bonitos, mais 395 D’ANDREA, Moema Selma. Op. Cit., 2010, p. 181. 160 adiantados, porém veio a ser feliz na sua terra, no logar onde nasceu”396. O objetivo de Mario Sette encontra-se não tanto por de trás destas palavras, como que na superfície mesmo delas. Gilles Deleuze, comentando a noção foucaultiana de enunciado, afirmou que “nele, no enunciado, tudo é real, e nele toda realidade está manifesta; importa apenas o que foi formulado, ali, em dado momento, e com tais lacunas, tais brancos”397. Recusamos a visão segundo a qual precisaríamos desvendar o enunciado, retira-lhe o véu ideológico para vislumbrarmos suas reais intenções. O escritor pernambucano não ocultou seu intento, como se tivesse utilizado seu romance para encobrir um propósito. As intenções do autor, seus valores e sua visão de mundo, não se camuflam por entre as palavras, mas aparecem manifestas nelas mesmo, na superfície do texto. Não, a tese setteana do rural como um espaço superior a cidade foi anunciada claramente, desde o início do romance. Não nos constrange afirmar que o romance de Mario Sette possui um objetivo preciso, uma dimensão política, entendida como um interesse social claro. A literatura para nós não é uma atividade desinteressada, mero deleite de uma mente criativa, mas sim instrumento de luta pelas significações dos espaços. Seguimos Said quando afirma que “nenhum de nós está totalmente ausente da luta pela geografia. Essa luta é complexa e interessante porque não se restringe a soldados e canhões, abrangendo também ideias, formas, imagens e representações”398. Infundir dados sentidos para certos espaços, valorar de forma positiva ou negativo o campo ou a cidade mostra-se como algo político, interesseiro, estratégico. É também a partir dessa dimensão simbólica, dada pelos significados, valores e imagens, que percebemos e vivemos os espaços, que os vemos e os sentimos. Daí a validade de narrativas que textualizam os espaços: elas têm poderes constitutivos. Em seu romance de 1921, Mario Sette lutou para proliferar o meio rural com determinados sentidos. Segundo Roger Chartier, os livros não constituem abstrações textuais, mero ajuntamento de palavras em um suporte material, não começam quando a introdução ou o capitulo primeiro se iniciam. Os autores de textos encarregam-se de colocar nos seus escritos o que o historiador francês chamou de dispositivos de leitura, ou seja, estabelecem mecanismos capazes de orientar uma leitura, tentando, assim, dirigir a visão do leitor para um dado ponto. A capa do livro, as ilustrações em algumas páginas, as epigrafes e a introdução, por exemplo, seriam dispositivos de leitura que tentariam disciplinarizar a leitura do texto escrito. A leitura de um livro, alerta Chartier, começa já desde a capa, seguindo elementos que 396 SETTE, Mario. Op. Cit., 1923, p. 254. 397 DELEUZE, Gilles. Op. Cit., 2005, p. 15 398 SAID, E. Cultura e Imperialismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 38. 161 antecedem o texto propriamente dito 399 . Essas recomendações são fundamentais para entendermos o objetivo de Mario Sette com sua ficção de 1921. Conforme Magdalena Almeida, um dos principais traços da escrita de Mario Sette seria a sua dimensão pedagógica. Os livros que o pernambucano produziu, em sua maioria, conteriam uma dimensão instrutiva, traria para seus contemporâneos um dado ensinamento. O valor do passado, a importância dos costumes antigos, a validade da história, o sentimento regional e o amor ao campo seriam uma das diversas lições que sua obra literária espalhou para a sua época. A literatura de Mario Sette seria, em certa medida, um meio para atingir um dado fim 400 . Podemos perceber essa instrumentalização da literatura no romance Senhora de engenho, que também procurou veicular uma determinada lição ao seu presente e ao futuro. Na página que antecede o capítulo I, vemos uma epigrafe que aparenta condensar todo o propósito de Mario Sette com o seu romance. Trata-se de um texto retirado de algum livro de Oliveira Viana. Vejamos: Para nacionalizar nossa mocidade não basta instrui-la no manejo da espada – symbolo brilhante desse patriotismo militar, que é alguma coisa: mas é preciso, sobretudo, ensina-la a amar a terra, a amar o campo, a amar o arado e a sua jugada – symbolos toscos e obscuros desse patriotismo civil, que é quase tudo. Tal frase de abertura de Senhora de engenho retrata o objetivo geral do romance, explicita qual é o desejo do autor quanto à sua obra. O leitor do romance regional ora em apreço, ao terminar as 256 páginas do livro, deveria ser infundido de um amor pelo universo rural brasileiro. Tal seria o que Mario Sette esperaria dos seus leitores. O patriotismo que o autor pensa que seu romance ajudaria a fomentar não seria o nacionalismo militar, que faz o cidadão matar e morrer pela sua nação. Seu nacionalismo é outro, relaciona-se com a terra, com o meio agrário. O patriotismo que Sette quer infundir no leitor é um nacionalismo telúrico, um sentimento de valorização do campo, de apego à terra, do espaço rural brasileiro, espaço esse que, nas décadas iniciais do século XX, estava ficando cada vez mais distante do horizonte de expectativa da população brasileira. Recife, capital que o intelectual pernambucano conhecia muito bem, vinha desde o século XIX passando por um processo de modernização que tragava a população rural para o meio urbano. Inúmeros intelectuais que viveram na capital 399 CHARTIER, Roger. Formas e Sentido: cultura escrita entre distinção e apropriação. Campinas: mercado de letras, 2003, p. 17-49. 400 ALMEIDA, Magdalena. Op. Cit., 2000, p. 24. 162 pernambucana das décadas iniciais do século XX registraram ou denunciaram as profundas mudanças que faziam desaparecer aquele ar pitoresco e campesino que existia no Recife até a segunda metade do século XIX. No nascer do século passado, tal cidade já era vista por muitos como a “metrópole regional”, ainda que bem diferente e menor do que as metrópoles europeias, que constituam os modelos de cidade grande e moderna para o Brasil da época. Lembremos que, em 1920, Recife constituía-se como a quarta cidade mais populosa do Brasil, com um agregado humano de 238.843 habitantes, atrás de Rio de Janeiro, São Paulo e Salvador. A crença de que o rural constitui um universo superior à cidade, que é mais autêntico e tradicional que o meio urbano, acompanhou vários países que passaram por um processo de urbanização. O crescimento das cidades, a concentração da população no universo citadino, associado a mudanças de valores, hábitos e práticas, tende a gerar um sentimento de valorização do rural. A idealização do campo emerge, muitas vezes, com o aparecimento da cidade moderna, industrializada, concentradora não só da população como também de uma gama de serviços, capitais e bens, os quais atraem os habitantes do rural para seu interior. A cidade moderna vai crescendo e tendendo a deixar no ar um saudosismo pelo mundo que ficou para trás. Para Raymond Willians, na Europa do século XIX, a era do progresso, da industrialização, das máquinas, das metrópoles modernas foi um período áureo para o aparecimento de visões que tomam o campo como símbolo de uma “idade de ouro” perfeita 401 . No Brasil, segundo Sandra Jatahy Pesavento, as décadas iniciais do século XX, que marcam o momento de intensa modernização de capitais como Recife, Rio de Janeiro, Porto Alegre e Salvador, foi o tempo no qual irromperam discursos que “glamourizavam o rural, o passado agrário, entendido como o paradigma do bom viver social”. Para pensarmos essa relação entre cidade moderna e discursos enaltecedores do rural, vale a pena citarmos as palavras da historiadora brasileira: Com a emergência da metrópole e de todos os elementos de positividade e negatividade a ela associados, ocorre também a repontuação valorativa da natureza. Ao se acentuar a representação da cidade-virtude, a urbe propicia deslumbramento e fascínio para aqueles egressos do meio rural ou de centros menores. Da mesma forma, ao se colocar a ênfase na cidade-vício, a reconstituição idílica do campo comparece, com a glamourização dos costumes simples. [...] Deve-se, contudo, levar em conta que, em um e outro caso, é do exterior que se articula a nova visão, que se constrói pela distancia 401 WILLIANS, Raymond. O campo e a cidade: na história e na literatura. São Paulo: Companhia das letras, 1989. 163 do olhar. Entretanto, em uma e outra situação - seja na fascinação diante das luzes da cidade, seja na recuperação idílica do campo como paisagem – o elemento que desencadeia a representação é o advento da metrópole. A emergência da grande cidade é o referente que condensa as questões, coloca os problemas, reorienta o olhar 402 . A valorização do rural já traria, pois, a marca da cidade, já indiciaria a presença do meio citadino ao qual quer se contrapor, ao qual quer se mostrar superior. Discursos que louvam o campo, que pensam encontrar neste uma vida autêntica e tradicional, revelam também a presença de um Outro que assusta, que mete medo e pavor. O campo é louvado quando a cidade é apedrejada. O romance setteano de 1921 não fez somente o elogio do rural, mostrando-o como um universo encantador, puro e perfumado, banhado por uma natureza exuberante, como também alojou a brasilidade nesse mundo agrário idealizado. Como indica sua epigrafe, Senhora de engenho foi escrito em um momento em que o nacionalismo, a discussão nacional, o sentimento de brasilidade exercia um forte apelo social. A preocupação com a cultura nacional, com o ser brasileiro, com uma identidade que pretensamente definisse o país, a brasilidade, fortaleceu-se enormemente nos anos 1920-1930, conforme nos alertou Antonio Candido. A Semana de Arte Moderna de 1922, a criação do Partido Comunista no mesmo ano, o movimento Tenentista, o regionalismo freyreano de 1924, as iniciativas editoriais de Monteiro Lobato e outros acontecimentos dão bem o tom da questão nacional, que se agudizava no Brasil dos anos 1920 403 . A nota nacional, a preocupação com a brasilidade, ressoou em Mario Sette. Para o escritor pernambucano, o campo encarnaria o nacional, representaria a verdadeira face da nação. Eis as palavras de Lúcio, modelo de senhor de engenho que foi a inspiração de Nestor: Deixa-lo [Nestor] aprender, por si, não ser o Brazil sómente renques de palácios altos, gramados à beira mar, mas também, e sobretudo, o emmaranhado das mattas virgens, os campanários brancos dos povoados serranos, as manchas esmeraldinas dos campos, as fitas brancas das estradas... 404 O fragmento textual destacado acima encaminha a brasilidade rumo ao campo, ao mesmo tempo em que relativiza o enunciado segundo o qual a identidade nacional estaria no Rio de Janeiro, local, na ficção, onde Nestor morava e para o qual rendia elogios. A capital 402 PESAVENTO, Sandra J. O imaginário da cidade: visões literárias do urbano. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2002, p. 229. 403 CANDIDO, Antonio. A Revolução de 1930 e a cultura. Revista novos estudos Cebrap, São Paulo, Num., 4, Abril, 1984, p.27-35. 404 SETTE, Mario. Op. Cit., 1923, p. 57. 164 federal, urbana, passando por processos de modernização e pela influência de culturas estrangeiras, notadamente a francesa, não teria a pureza dos campos, a autenticidade do universo rural. O Brasil virgem, não corrompido pela invasão estrangeira, ainda intacto, estaria no campo, na zona rural, onde o engenho se localizaria. A partir da crença de que o rural alojaria o nacional, Mario Sette esboçou seu regionalismo, seu sentimento de valorização da terra de origem. Para ele, haveria uma diferença entre pátria e terra: a primeira se deveria querer bem, já a segunda se deveria amar. Assim como querer bem é diferente de amar, o narrador de Senhora de engenho pontuou que a pátria seria diferente da terra que nos viu nascer, onde crescemos e recebemos o amor paterno 405 . A terra seria mais do que a nação, a região mais que o país. Porém, o regionalismo setteano não se configurou como separatismo: “longe de nos separamos carecemos de nos conhecer melhor, aproximando-nos. Aspirar a desagregação territorial é desfallecer na fé que devemos ter nos desígnios deste bloco magnífico”406. Esta discussão sobre o nacional, a preocupação com a identidade brasileira, marcou uma importante diferença entre Joaquim Nabuco e Mario Sette. Na construção simbólica que este operou do engenho, a questão nacional estava bem mais latente do que no capítulo Massangana de Minha Formação. Por meio de uma visão que fixou a brasilidade no rural, o banguê emergiu como locus privilegiado da identidade nacional, atribuição essa não fixada por Nabuco. Embora o diplomata pernambucano tenha revelado toda uma preocupação com o Brasil, não encontramos nele nenhuma posição acerca do engenho encarnar ou não o rosto natural do seu país. Como dissemos, a procura pela verdadeira face brasileira parece ter sido algo mais urgente a partir da segunda década do século XX. Daí porque Joaquim Nabuco não se pronunciou sobre a relação entre rural/engenho e brasilidade, ao passo que Mario Sette sim, conforme estamos discutindo. Dessa forma, Senhora de engenho foi todo estruturado de modo a valorizar o universo agrário brasileiro, o qual foi forjado de forma idealizada e como locus da brasilidade. O autor pretendeu fazer um romance rural, isto é, não só uma história que se passasse neste universo, mas que procurasse, sobretudo, glorificá-lo, declamar sua superioridade ante a cidade. Dentro desse projeto enaltecedor do campo, Mario Sette elegeu o engenho Águas Claras como espaço privilegiado de sua ficção regionalista. A história do romance se centrou basicamente naquela espacialidade. 405 SETTE, Mario. Op. Cit., 1923, p. 56. 406 SETTE, Mario. Op. Cit., 1923, p. 53. 165 Para nós isso é bastante significativo, pois é como se o romancista pensasse que o banguê açucareiro encarnasse o paradigma do bom viver no meio rural. É como se Sette pensasse que a melhor maneira de expor a superioridade do campo em relação à cidade consistisse em contar uma história que se passasse em um engenho. A vida neste espaço materializaria as pretensões do literato de propagandear aos seus contemporâneos o apreço pela vida campestre. O engenho, situado no meio rural, forneceria um modelo de vida que a sociedade brasileira deveria seguir. Tal espaço seria a síntese do rural visto como um meio tradicional, ideal para uma vida feliz, amena, sem conflitos nenhum. Engenho, símbolo do campo idealizado. Por isso que, em Senhora de engenho, banguê e rural se confundem, de modo que um remete o outro. Mario Sette quase diluiu o engenho como parte de um conjunto rural glamourizado. Todavia, essa estratégia romanesca acabou por forjar a propriedade açucareira como o espaço que resumiria o que seria o rural para o autor de Senhora de engenho. Engenho, símbolo do rural idealizado. 166 Capítulo 5 O engenho entre a memória e a ficção: Menino de engenho (1932) Sob a história, a memória e o esquecimento. Sob a memória e o esquecimento, a vida. Mas escrever a vida é uma outra história. Inacabamento. Paul Ricoeur 407 5.1 Entre palmas e pedras: José Lins do Rego e a literatura de engenho As memórias escritas de Joaquim Nabuco sobre Massangana e os romances de Mario Sette, ambientados em engenhos pernambucanos, constituem os precursores da obra literária de José Lins, no que diz respeito à valorização do mundo dos engenhos. Ao escrever seu romance de estreia, o literato paraibano inseriu-se em um continuum discursivo que lhe antecedia. Da literatura de engenho, ele tirou e absorveu muitos elementos para produzir seus primeiros romances, conforme veremos neste capítulo. O conjunto de discursos que compõem o saber da literatura de engenho foi fundamental para a escritura do seu “ciclo da cana-de- açúcar”. Assim como a memória, as experiências passadas, elementos tão retomados pela crítica literária para explicar sua obra literária, os precursores discursivos de José Lins formaram um arquivo simbólico ao qual o romancista paraibano recorreu inúmeras vezes para escrever seus livros. Uma gama de enunciados não só antecederam como condicionaram seu discurso, pois “não há enunciado livre, neutro e independente; mas sempre um enunciado fazendo parte de uma série ou conjunto, desempenhando um papel no meio dos outros, neles se apoiando e deles se distinguindo. Não há enunciados que não suponha outros”408. A obra literária de José Lins, mais especificamente aquela que ficcionou engenhos, constitui um enunciado em meio a outros enunciados, ou seja, trata-se de um discurso envolvido com outros discursos submetidos a uma mesma formação discursiva. Antes de analisarmos a propriedade canavieira em Menino de engenho, identificando sua feitura simbólica e relação com os discursos predecessores, cumpre apontarmos algumas considerações acerca da relação entre José Lins e os dois autores ligados a literatura de 407 RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Campinas: Editora da Unicamp, 2007, p. 459. 408 FOUCAULT, Michel. Op. Cit., 2007, p. 112. 167 engenho que analisamos nos dois últimos capítulos desta parte. Se a literatura de José Lins foi tributária de textos anteriores, é pertinente discutirmos brevemente o que o romancista paraibano pensou sobre os autores destes textos. Dessa discussão, poderemos lançar um pouco mais de luz sobre a literatura de engenho. Ao contrário da relação entre José Lins e Mario Sette, a visão daquele sobre Joaquim Nabuco é bem mais fácil de mapear. Desde o início de sua juventude, até os últimos anos de sua vida, José Lins manteve-se como um admirador confesso do autor de Minha Formação. Em um artigo de janeiro de 1919, sobre o livro de um jurista, Dr. José Rodrigues de Carvalho, o jovem paraibano já indiciava sua leitura de Joaquim Nabuco 409 . Ainda no mesmo ano, passado apenas um mês e alguns dias do artigo anterior, José Lins citou Nabuco como um modelo de intelectual brasileiro: homem de qualidade literária indubitável e preocupado com os problemas do país. A posteridade deveria ver no ilustre pernambucano alguém que não dissociou literatura e vida, letras e nação. Joaquim Nabuco, para o jovem autor do artigo, seria um exemplo para os letrados brasileiros 410 . Com 18 anos de idade, José Lins já tinha lido Joaquim Nabuco. Segundo Nelson Werneck Sondré, o primeiro texto de José Lins publicado em um periódico, teria sido sobre Joaquim Nabuco. Tratava-se de um trabalho pequeno, quando o futuro romancista ainda tinha 15 anos de idade. O mesmo teria sido publicado na revista ligada a escola onde José Lins estudava: revista Pio X, do instituto Pio X, tradicional colégio paraibano 411 , frequentando por ele entre 1912-1915. O fato é que a mesma leitura elogiosa e a admiração que identificamos no florescer da atividade intelectual de José Lins, podemos observar também no momento em que já era um autor consagrado, reconhecido e valorizado nacionalmente. O livro póstumo de ensaios intitulado O vulcão e a fonte, que reuniu artigos e crônicas jornalistas de José Lins escritas nos anos de 1940 e 1950, apresentaram ao público três textos sobre Joaquim Nabuco. Nos três artigos, a nota elogiosa fez-se presente. Em um dos textos, vemos “o Nabuco dos canaviais, o menino de Massangana, o tribuno do Teatro Santa Isabel se amalgamaram em maravilhoso espécime de natureza humana”412, e em outro “lutou como um leão, debateu todos os problemas em discussão, foi um deputado admirável”413. A visão elogiosa da juventude parece fazer-se aqui também presente. 409 O título do artigo era “liberdade de imprensa”. Ver: REGO, José Lins do. Op. Cit., 2007, 48-50. 410 REGO, José Lins do. Op. Cit., 2007, p. 62-64. 411 SONDRÉ, Nelson Werneck. José Lins do Rego. In: _______. Orientações do Pensamento Brasileiro. Rio de Janeiro: Editora Vecchi, 1942, p. 130. 412 REGO, José Lins do. O vulcão e a fonte. Rio de Janeiro: Edições o Cruzeiro, 1958, p. 154. 413 REGO, José Lins do. Op. Cit., 1958, p. 160. 168 Sobre as memórias de Joaquim Nabuco, disse-nos José Lins: “é a terceira vez que leio o livro de Nabuco. [...] Minha Formação é um livro capaz de salvar uma geração de fim de regime”414. Não sabemos ao certo quando o literato paraibano escreveu tais linhas, mas fica claro o seu apreço pela autobiografia de Joaquim Nabuco, livro que já vinha lendo pela terceira vez. Minha Formação aparenta ter sido um livro visitado e revisitado por José Lins, que lhe teve em alta conta, visto como as maiores memórias escritas da literatura brasileira. Tratava-se de um livro que injetaria esperança a mocidade, que incentivaria a juventude e que atestaria o valor da boa formação humanística. O capítulo Massangana não passou desapercebido por José Lins, de modo que no seu ensaio Presença do Nordeste na literatura, texto de 1957 que elegeu as páginas literárias ditas mais representativas da região Nordeste, asseverou que De Pernambuco sairia a página mágica do Massangana de Nabuco, o que há de mais emotivo em prosa brasileira, qualquer coisa como a “canção do exílio” de Gonçalves dias. A terra nativa comunicara-lhe o maior alumbramento. “Massangana” ficou para ser uma maravilha de prosa banhada pelas lágrimas de uma saudade de grande coração. Pernambuco dos canaviais, das mães-negras, das tias matronas, do esplendor do açúcar, está inteiro na narrativa do neto do morgado do Cabo 415 . O autor da citação acima fez uma leitura sensível do capítulo Massangana, isto é, procurou sentir a sentimentalidade que enformava o texto, tentou captar as sensibilidades que deram origem ao capítulo de Joaquim Nabuco. A emotividade do texto foi objeto de José Lins. E mais: o engenho da infância de Nabuco espelharia uma região, assim como evocaria um tempo, o tempo áureo do açúcar, do Brasil dos canaviais verdes e ondulantes. Massangana, a busca do tempo e do espaço perdidos. Ainda sobre Minha Formação, José Lins do Rego expressou palavras que parecem apontar para sua concepção de literatura, para o seu próprio fazer literário: “ao reler Minha Formação me ficou a certeza da verdadeira importância da literatura para fixar o tempo”416. A temporalidade pretensamente fixada por Nabuco em suas memórias seria a época do patriarcado, o momento áureo dos banguês pernambucanos. Nesse sentido, a função da literatura, a sua relevância social, não seria outra que não a fixação de um tempo, de uma sociedade, de um universo pretérito. O literato na ótica de José Lins, semelhante a um historiador, seria aquele que conseguisse tornar o tempo passado um tempo presente, fixado 414 REGO, José Lins do. Op. Cit., 1958, p. 157. 415 REGO, José Lins do. Presença do Nordeste na literatura. Rio de Janeiro: Ministério da educação e cultura, 1957, p. 17. 416 REGO, José Lins do. Op. Cit., 1958, p. 152. 169 em uma página, estampado em um livro. E não foi isso que a obra literária de José Lins tentou fazer, fixar o apogeu e a decadência dos engenhos? A leitura da obra de Nabuco parece ter influído na concepção de literatura do romancista paraibano. A leitura de Massangana deve ter sido das mais agradáveis para José Lins, homem que, assim como Nabuco, desfrutou a infância nos engenhos e que, chegado à vida adulta, optou por um tradicionalismo que valorizava o passado agrário de uma região. É plausível supormos que tal texto tenha tocado o coração do literato paraibano, reavivando na sua mente lembranças do passado, quem sabe fazendo até lagrimas jorrarem do seu rosto, sedento por imagens da meninice. Em um indivíduo que desde os 24 anos de idade decidiu-se pela valorização do passado, momento em que a maioria dos jovens pensariam no futuro, as páginas evocativas da meninice rural de Joaquim Nabuco devem ter sido lidas com a maior emoção e encantamento. Certamente, a escrita de Massagana seria um dos principais motivos para José Lins admirar e exaltar a figura de Joaquim Nabuco. Ao contrário de Joaquim Nabuco, em nossa pesquisa não encontramos nenhum artigo de José Lins sobre Mario Sette nem tampouco sobre Senhora de engenho. Nem nos anos 1920 nem na década seguinte, o literato paraibano ocupou-se do escritor pernambucano. José Lins parece ter ignorado a obra literária de Mario Sette, mesmo esta tendo vários pontos de contato com as suas produções literárias, conforme vermos. Talvez, esse silencio discursivo indique um certo receio de José Lins de ser visto como um plagiador do romance de Mario Sette. Ao não comentar nenhum livro deste, mesmo atuando na imprensa como um crítico literário, o futuro romancista agia como se desconhecesse as produções literárias setteanas dos anos 1920, evitando, assim, o risco de confundir-se com elas. No entanto, é muito provável que o paraibano, desde sua época recifense, conhecesse a obra literária do pernambucano. O silêncio e a indiferença podem ser posturas significativas. Porém, essa lacuna não inviabilizou nossa proposta de pensarmos a relação entre José Lins e Mario Sette, a partir do romance de estreia deste. Em Maceió, o fiscal de banco fez uma importante referência ao livro Senhora de engenho. Em 6 de março de 1928, o Jornal de Alagoas veio a praça com um extenso artigo de José Lins sobre o romance A bagaceira, de José Américo de Almeida, no qual seu autor saudou o trabalho de seu conterrâneo e amigo como o “verdadeiro romance do Nordeste”. Foi nesse artigo-resenha que encontramos a referência a Mario Sette. Acompanhemos as palavras de José Lins sobre a ficção setteana de 1921: “o seu romance [de José Américo] teve o nascimento igual ao dos poemas. Creou-se nelle com a leitura de um falso livro que por muito tempo espalharam como o romance de vida rural do 170 Nordeste: o “Senhora de engenho”, do Sr. Mario Sette”417. Segundo o crítico literário paraibano, A bagaceira foi escrito a partir de uma motivação: escrever um livro que expressasse realmente uma região. A centelha de tal motivação teria se acendido com a leitura de José Américo do romance de estreia de Mario Sette, pois este não teria conseguido captar bem o regional, a localidade. José Américo, com seu novo romance, teria feito aquilo que Mario Sette não pôde fazer. José Lins foi enfático ao dizer que Senhora de engenho não passava de uma obra de fantasia. Continuemos na crítica do colaborador do Jornal de Alagoas: No romance do engenho banguê, as fornalhas deviam dar mais calor às coisas. Mario Sette não fizera propriamente um romance. Puzera, apenas, numas paysagens de “kodac” umas figurinhas de papelão, muito parecidas com gente. Como obra de silhuetista, boa coisa. Mas, por mais que queiramos as silhuetas de papelão não falam, não comem, não sofrem. Faltava ao “senhora de engenho” quantidade de vida, embora a ternura de alguns pedaços enternecesse muito as senhoras, porque as senhoras se enternecem sempre com fantasias. E o escriptor pernambucano quiz mesmo fazer obrinha de fantazia 418 . O romance de estreia de Mario Sette, para José Lins, carecia de vida, de calor humano, de gente mesmo. Além de não conseguir capturar uma pretensa essência da região e do espaço selecionado (o engenho), o autor de Senhora de engenho teria falhado também nos personagens, tecidos como seres que não lembrariam os humanos, em suas dores, sofrimentos e esperanças. Daí o crítico chegar até a negar o estatuto de romance, pois este deveria pulsar em vida, retratar as coisas humanas, estremecer em humanidade. Em vez de reproduzir a realidade, Mario Sette teria fantasiado a mesma. As criações do escritor pernambucano seriam fantasiosas, postiças, distante da realidade. Ao acusar o romance setteano de irreal, José Lins fazia muito mais do que crítica literária, fazia muito mais do que um ataque a obra literária em (des)apreço. Suas palavras sobre Mario Sette destituía-o do posto de primeiro “romancista do engenho”, que lhe era atribuído pela imprensa nortista 419 . O pernambucano não teria feito um autêntico romance do Nordeste. Tal título caberia a José Américo de Almeida, com o livro A Bagaceira, conforme já adiantamos. O autor de Senhora de engenho não passaria de um burguês citadino, criado na cidade grande, homem viajado pelas capitais brasileiras. O verdadeiro romancista do engenho, aquele que poderia fazer um legítimo romance do Nordeste, precisaria ter sido criado na zona 417 Jornal de Alagoas, 6 de março de 1928. 418 Idem. 419 A Província, 23 de março de 1921; A Província, 01 de agosto de 1922. 171 rural, junto da casa-grande, em meio aos canaviais, aos campos verdes e as águas do açude. Assim, faltaria à Mario Sette experiência de vida, contanto com a terra que pretendeu narrar. O romancista do engenho teria que ser um menino de engenho, como o foi José Américo e José Lins. Na ótica deste, Senhora de engenho careceria de realidade porque seu idealizador não vivenciou o mundo dos engenhos, apenas o conheceu em breves visitas de turista urbano embasbacado com o campo. Seu passado não estava fincado na terra do massapê. Faltava-lhe autoridade, pensava e julgava José Lins. Embora tenhamos trazido a crítica de José Lins a Mario Sette para pensarmos a relação entre o primeiro e a literatura de engenho, não podemos deixar de pontuar uma importante diferença. Lembremos que Gilberto Freyre, ao resenhar Senhora de engenho, apontou como mérito do romance e do romancista a capacidade de retratar a cor local. Para o jovem pernambucano, Mario Sette seria sim um excelente paisagista. Conforme vimos, a leitura de José Lins diferiu bastante da do seu amigo (dito por muitos como mestre), na medida em que assinalou que o autor de Senhora de engenho não teria conseguido expressar uma suposta verdadeira face da região. Se para Freyre Mario Sette retratou bem a paisagem, já para José Lins tal retratação teria deixado muito a desejar. O crítico literário paraibano também não seguiu seu amigo pernambucano quando apontou que a grande fragilidade do romance setteano seria a linguagem artificial dos personagens. José Lins nem mencionou a questão da linguagem. Sua crítica foi outra, centrando-se na ausência de realismo, seja do engenho, seja da região e personagens. O grande pecado de Mario Sette teria sido a fantasia, a visão dita fantasiosa do mundo dos engenhos, quando José Lins queria, na verdade, um realismo. A visão negativa de José Lins acerca de Senhora de engenho indicia algo que julgamos muito importante. A literatura de engenho não constituía algo pacífico, sem tensões e disputas. Rejeitamos a imagem de um saber pastoral e harmônico, no qual os discursos se completam pacificamente, sem atritos nenhum. Antes, queremos assinalar que a literatura de engenho estava marcada por embates e posicionamentos divergentes, por vezes até agressivos, como bem mostra a apreciação de José Lins a Mario Sette. Trata-se de um bloco discursivo com rachaduras a tremer, a tensionar. As desarmonias entre Gilberto Freyre, José Lins e Mario Sette são sintomáticas do fato de que nem sempre os autores ligados à literatura de engenho concordavam entre si, como se vivessem na mais perfeita e bela comunhão. Como nos lembrou Foucault, todo saber é campo de embate, espaço livre para disputas, ataques e 172 defesas 420 . Se José Lins bateu palmas para Joaquim Nabuco e suas memórias escritas, por outro lado quase apedrejou Senhora de engenho, encarado como um romance postiço, inautêntico, irreal. 5.2 O engenho do menino: Santa Rosa, um reino encantado O primeiro romance de José Lins do Rego, Menino de engenho, narrou as experiências da infância do personagem Carlinhos, ocorridas no engenho Santa Rosa. Reconstruir o mundo da meninice agrária, a vida de um menino de engenho da várzea do rio Paraíba, foi a grande intenção do romancista. Tal propósito pode ser aferido nas próprias palavras do literato, ao comentar, passados quatros anos, o objetivo do seu romance de estreia: “comecei querendo apenas escrever umas memórias que fossem as de todos os meninos criados nas casas-grandes dos engenhos nordestinos. Seria apenas um pedaço de vida que eu queria contar”421. Ao enunciar que queria apenas contar um pedaço de vida da infância banguezeira, José Lins inseria-se na tradição milenar dos contadores de história, indivíduos que despretensiosamente dedicavam-se a narrar histórias passadas. O objetivo da ação seria dado pelo próprio ato de narrar, de trazer para o presente as mais disparatadas situações ocorridas em um tempo pretérito, uma vez que se partia do pressuposto de que o passado ensinava. Os tempos idos teriam sua utilidade, daí a validade de contar histórias. O narrador de Menino de engenho, em muitas passagens, conforme veremos, materializou a figura do contador de história, corporificou a imagem de um indivíduo que encena narrativas pretéritas para uma plateia. A infância de uma criança no universo açucareiro emergiu na narrativa literária a partir desta figura. Contar o passado, narrar a infância, foi mesmo um dos objetivos do romance de 1932 de José Lins do Rego. Menino engenho é, assim, texto de um conteur. Em 1932, nosso autor demonstrava uma preocupação que acometeu muitos intelectuais das décadas iniciais do século XX: a busca pela infância, pelo mundo da criança. Gilberto Freyre com sua tese Social life in Brazil in the middle of the 19th century (1922) 422 , Manuel Bandeira com seu poema Evocação do Recife (1925), Jorge de Lima com seu poemeto O mundo do menino impossível (1925) e Cícero Dias com suas telas regionalistas 420 FOUCAULT, Michel. Op. Cit., 2007, p. 202. 421 REGO, José Lins do. Usina. Rio de Janeiro: José Olympio, 1936, p. 3. 422 No prefácio ao livro que traduziu sua tese universitária para o português, Gilberto Freyre apontou que a motivação do seu trabalho encontrou um desejo da tenra idade: saber como foi a época histórica na qual seus avôs foram jovens, isto é, meados do século XIX. Aqui também temos o adulto tentando encontrar a infância, por meio do estudo da época dos avôs. FREYRE, Gilberto. Vida social no Brasil nos meados do século XIX. Recife: ministério da educação e cultura, 1964, p. 52. 173 iniciais (1933) indiciaram, cada um deles em graus diferenciados, uma tentativa de resgate da infância, recuperação essa que José Lins, nos anos 1930, tentou praticar também. O presente da sociedade brasileira de profundas mudanças, partilhado por esses autores, incitava a uma volta ao passado, ao tempo da infância, a uma busca do mundo perdido. Interessante assinalarmos que a busca pela “infância perdida” realizada por esses literatos, quase todos eles ligados a elite açucareira nortista, agora decadente, deu-se ainda na juventude, exceto talvez no caso de Manuel Bandeira, que publicou Evocação do Recife quando tinha 42 anos de idade. Gilberto Freyre, Cícero Dias e José Lins preocuparam-se com a meninice, com o mundo rural da criança, quando ainda não tinham chegado nem aos 25 anos de idade. Eram jovens saudosos que buscavam um universo pueril que lhes pareciam distante, afastado do tempo. A história acelerava-se, o mundo marchava, a sociedade vertia rumo ao futuro e deixava para trás suas infâncias. E eles não esperaram, como tradicionalmente acontece, pela velhice para rememorarem o passado, para relembraram nostalgicamente a época de menino de engenho. Gilberto Freyre, por exemplo, nos anos iniciais da década de 20, esboçou algumas vezes a intenção de elaborar um projeto cuja temática central seria a história dos meninos brasileiros, o passado das crianças das diferentes regiões do Brasil. Para o pernambucano, a história oficial, praticada pelos profissionais e eruditos, havia esquecido os meninos, centrando-se quase que exclusivamente nos adultos 423 . Se crermos nas palavras escritas pelo autor do texto Serei um escritor obseno? 424 , seu grande livro de 1933 adveio, originariamente, desse projeto, do empreendimento de escrever uma história da criança brasileira. No entanto, mais do que uma revolução para a historiografia da época ou a antecipação de um tema histórico hoje muito praticado, o que vemos nesse projeto freyreano é a busca pela infância perdida, anseio de muitos jovens brasileiros que descendiam de um passado pretensamente glorioso. A inquietação com a meninice relacionava-se com a percepção de que o passado agrário, povoado de engenhos, rios, açudes e casas-grandes, ficava cada vez mais distante, recuperável somente pela escrita, pela história. Nenhum outro autor da nossa literatura parece ter escrito tanto sobre a infância quanto José Lins do Rego. Embora nas letras brasileiras tenham se destacados alguns memorialistas, nenhum deles rememorou tanto a meninice quanto aquele literato paraibano. Seus dois primeiros romances trataram da tenra idade: para a infância rural, Menino de engenho, e para a infância escolar, Doidinho, em 1933. Se sua obra literária começou ficcionando 423 FREYRE, Gilberto. Op. Cit., 1979, p. 147-149, 189-191. 424 FREYRE, Gilberto. Op. Cit., 1978, 178-186. 174 memorialisticamente a época de criança no engenho, ela encerrou-se também na infância, também no engenho. Trata-se das memórias de José Lins, Meus verdes anos, publicadas em 1956. Mais de 300 páginas foram dedicadas novamente à vida de menino de engenho, agora sob o signo assumido da musa Mnemósine. A obra literária de José Lins parece mesmo desenhar um ciclo: terminou justamente onde começou. Mais do que uma mera repetição, tal fato indicia para nós a importância que se conferiu a meninice experimentada no engenho. Esta seria a “época de ouro”, os anos dourados, quase dizíamos adocicados de José Lins. Tanto em Menino de engenho quanto em Meus verdes anos, o engenho seria o elemento responsável por espacializar a memória. Na ficção e na memória, a infância esteve intimamente ligada à propriedade açucareira. Segundo Maurice Halbwachs, a memória teria dois suportes fundamentais: o tempo e o espaço. Aponta-nos o sociólogo francês que estas duas categorias seriam constitutivas da memória, pois toda e qualquer lembrança tenderia a estar situada em um espaço e em um tempo. A memória só seria inteligível porque se passaria em um tempo e em um espaço mais ou menos delimitados 425 . Nesse sentido, para José Lins do Rego, o engenho seria o suporte espacial e temporal de sua memória. Com tal espacialidade, o romancista situava o espaço e o tempo de sua meninice, tornava inteligível para si e para os outros os seus verdes anos desfrutados no banguê. A lembrança dos banhos de rios, das brincadeiras com os moleques da bagaceira, do cheiro de cana esmagada, do grito do senhor de engenho e da iniciação sexual com negras e com os animas, estaria espacializada e temporalizada no engenho. Ledo Ivo, poeta alagoano e amigo do fiscal de banco paraibano quando de sua estadia em Maceió, afirmou certa vez que Menino de engenho teria sido motivado pela intenção de escrever a biografia de José Lins Cavalcanti de Albuquerque, avô de José Lins. Da história do coronel, passou-se para a ficção da infância no engenho 426 . Para além da questão da origem, veremos que a figura do avô ocupou importante papel no romance. Um traço importante da produção literária em apreço diz respeito ao memorialismo. Para traçar ficcionalmente a infância rural de um menino de engenho, seu autor valeu-se de sua própria vivência, passada no engenho Corredor, localizado em Pilar, município da Paraíba. Após seu nascimento, em 1901, José Lins migrou para o engenho do seu avô, onde foi criado até ter que ir estudar na cidade, o que ocorreu em 1909. O vínculo entre o passado do autor e o romance de 1932 ficou bem expresso nos manuscritos originas de Menino de engenho, quando o título da produção literária ainda era “memórias de um menino de 425 HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Vértice e Revisitados Tribunais, 1990, p. 22. 426 IVO, Lêdo. Anos de aprendizagem. In: MARTINS, Eduardo. Op. Cit., 1980, p. 37-44. 175 engenho”. Na última hora, as vésperas da publicação, o literato riscou o “memórias” e ofereceu ao público apenas a história de um menino de engenho, conforme podemos visualizar na imagem mais abaixo. No entanto, tal gesto não conseguiu eliminar efetivamente o memorialismo do romance. Conforme veremos, um jogo entre memória e ficção, entre realidade e fantasia, entre história e mito marcou Menino de engenho. Figura 9: Imagem fac-similar da página de abertura dos manuscritos originais de Menino de engenho Acervo do Museu José Lins do Rego O romance foi dividido em 40 capítulos, todos eles curtos e breves, escritos em uma linguagem coloquial e direta, sem muitos diálogos. A voz narrativa apresentou-se em primeira pessoa, de modo que houve uma associação entre narrador e personagem. Tal atributo fez a narrativa romanesca fluir com certa naturalidade, dando até, algumas vezes, a impressão de oralidade. Com sua narrativa linear, avançando de capítulo em capítulo, lemos Menino de engenho como se estivéssemos com alguém diante de nós contando histórias de um tempo passado. Boa parte dos analistas da obra literária de José Lins concorda que seu primeiro romance foi uma espécie de grande painel da infância rural, desfrutada nos antigos banguês 427 . Cada capítulo do livro serviria para expor um determinado aspecto do Santa Rosa, semelhante a imagens em uma galeria artística. Ao final do livro, ficamos com um grande quadro mental do engenho. Menino e engenho rivalizam como personagens principais do romance. É difícil apontar quem é o protagonista da história. Na verdade, podemos observar que existiu uma simbiose entre Carlinhos e Santa Rosa. Como em Senhora de engenho, boa parte dos personagens eram afeitos ao engenho, irmanados com esta espacialidade. Concordamos com Antonio Candido quando apontou que “a realidade literária não é o menino nem o engenho, 427 Referimos aqui aos trabalhos de José Aderaldo Castelo, Ivan Bichara, Neroaldo Pontes de Azevedo e Antonio Candido, os quais podem ser lidos nos livros: COUTINHO, Eduardo F.; CASTRO, Angela Bezerra de. Op. Cit., 1990. e MARTINS, Eduardo. Op. Cit., 1980. 176 mas menino e engenho, unidos, indiscerníveis”428. Na medida em que o narrador foi descrevendo sua infância no engenho, não foi apenas uma vida que foi se desenrolando, como foi também o próprio Santa Rosa. A infância de Carlinhos era inseparável do engenho, do banguê que lhe acolheu. O engenho do avô de Carlinhos foi o elemento que conferiu unidade ao romance. Os diversos capítulos do livro se unem pelo Santa Rosa, por mostrar uma faceta da vida de menino neste espaço. O espaço, portanto, gozou de considerável centralidade em Menino de engenho. Folheamos o engenho a partir do capítulo 04. Até em então, a voz narrativa ocupou-se das primeiras lembranças do narrador-personagem, isto é, da tragédia familiar que acometeu Carlinhos, que teve a mãe assassinada pelo próprio marido, pai do menino, em seguida encaminhado para a prisão 429 . Dupla tragédia: morte da mãe e prisão do pai, mais tarde encarcerado no hospício. Após essa situação fatídica, o menino foi levado ao engenho de seu avô materno, espaço que desconhecia. Começou aqui uma nova vida para o protagonista mirim. É como se a voz narrativa dividisse a vida de Carlinhos entre antes e depois do Santo Rosa, de modo que o espaço figuraria como um marco biográfico, como um divisor de águas. “Três dias depois da tragédia levaram-me para o engenho do meu avô materno. Eu ia ficar ali morando com ele. Um mundo novo se abria para mim”430. A partir da chegada e estadia do menino neste mundo que lhe será como um admirável mundo novo, a construção simbólica do engenho foi ganhando corpo. Ao contrário do que ocorreu com Joaquim Nabuco, a noção do engenho como um reino apareceu de forma explicitamente nomeada no romance de estreia de José Lins. Se em Massangana não encontramos tal adjetivo, inserindo-o a partir da nossa interpretação, em Menino de engenho observamos que a voz narrativa utilizou claramente tal adjetivação. O Santa Rosa foi tecido, inicialmente, como um reino, semelhante à tessitura de Joaquim Nabuco. A diferença consiste em que, no caso do romance de 1932, o uso explícito do termo reino para forjar o engenho lançou-nos no universo da metáfora. Ao apontar o Santa Rosa como um reino, José Lins utilizou-se de uma figura de linguagem, mais precisamente, de uma metáfora. Dessa forma, para realizarmos nossa discussão, precisaremos assinalar brevemente 428 CANDIDO, Antonio. O observador literário. São Paulo: Conselho estadual de cultura, 1959, p. 53. 429 Em suas memórias, José Lins não confirmou essa versão, indicando apenas a morte de sua mãe, não fazendo nenhuma referência a assassinato nem tampouco a loucura do pai. Ver: REGO, José Lins do. Meus verdes anos. Rio de Janeiro: José Olympio, 1956, p. 9. 430 REGO, José Lins. Menino de engenho. Rio de Janeiro: José Olympio, 1934, p. 16. (A) Usaremos neste capítulo esta edição, que é a segunda do romance, mas primeira publicada pela José Olympio. Optamos por manter, em sua quase totalidade, a ortografia original do livro. 177 como procederemos, em termos teórico-metodológicos, diante da metáfora do engenho como um reino. Para interpretarmos tal metáfora, tecida por José Lins em Menino de engenho, procuraremos seguir, em certa medida, as considerações do filósofo francês Paul Ricoeur. Para pensar a metáfora, Ricoeur discute uma gama de elementos, dentre os quais o enunciado textual se sobressai. Se boa parte das teorias sobre a metáfora destacou o papel da palavra, do signo 431 , a visão ricoeuriana vai sublinhar a importância do texto para o entendimento da metáfora. Em vez de uma semiótica da palavra, temos uma semântica da frase, ou seja, a proposta para estudar a metáfora “é consagrada ao exame direto do papel do enunciado, como portador de um sentido completo e acabado, na produção do sentido metafórico”432. Ao analista caberá situar a metáfora em seu contexto de enunciação, isto é, na frase, no texto. Somente assim poderemos interpretar tal recurso linguístico, pois “a metáfora tem a ver com a semântica da frase, antes de dizer respeito à semântica da palavra. E, visto que uma metáfora só faz sentido numa enunciação, ela é um fenômeno de predicação, não de denominação”433. A metáfora gesta-se no e pelo texto. Assim, para interpretarmos uma metáfora é imprescindível averiguarmos o enunciado, o texto de modo geral. A metáfora do engenho como um reino será vista em seu conjunto maior: a narrativa romanesca 434 . Nesse sentido, passemos a análise da feitura simbólica do engenho na ficção de José Lins do Rego. Carlinhos, ao começar sua vida nova no Santa Rosa, acostumou-se “a imaginar o engenho como qualquer cousa de um conto de fadas, de um reino fabuloso”435. Essa foi a primeira associação entre engenho e reino. Antes, no entanto, podemos observar que o adjetivo reino apareceu ligado à caracterização do engenho como um conto de fadas. O Santa Rosa seria um reino fabuloso porque o menino habituou-se a imaginá-lo como um espaço como que saído dos contos de fadas. Em Menino de engenho, a noção de reino foi, primeiramente, ligada a uma dimensão lendária. A propriedade do avô de Carlinhos seria um espaço prenhe do maravilhoso, do irreal, daquilo que o discurso racional costuma rotular de 431 Exemplo dessa postura consiste na visão do minidicionário Aurélio, o qual assinala a metáfora como um “tropo em que a significação natural duma palavra é substituída por outra com que tem relação de semelhança”. Ver: FERREIRA, Aurélio B. de H. Minidicionário da língua portuguesa. Rio de Janeiro, 4. Ed. Rev. Ampliada: Nova Fronteira, 2000, p. 459. 432 RICOEUR, Paul. A metáfora viva. São Paulo: Loyola, 2005, p. 107. 433 RICOEUR, Paul. Teoria da interpretação. Lisboa: Edições 70, 1999, p. 61. 434 Embora as ideias de Paul Ricoeur nos lancem no texto, procuraremos, quando julgarmos oportuno, sairmos do universo narrativo do romance, seja para sinalizarmos para outros textos ou para apontarmos para o extratextual. Por isso assinalamos que usaremos as ideias de Paul Ricoeur em certa medida. 435 REGO, José Lins do. Op. Cit., 1934, p. 18. (A) 178 fantasioso. Reino, aqui, não teria um sentido histórico nem tampouco realístico, mas sim mítico, sobrenatural. Ao descrever a visita de uma contadora de história, a velha Totonha, que perambulava pelos engenhos relatando histórias de Trancoso (contos populares, provenientes de uma tradição oral que remetem a Portugal dos séculos XVI-XVII), podemos identificar uma equiparação entre a noção de reino e sua dimensão lendária: Quando ella (a senhora Totonha) queria pintar um reino, era como se estivesse falando dum engenho fabuloso. Os rios e as florestas por onde andavam os seus personagens se pareciam muito com o Parahyba e a Mata do Rolo. O seu Barba Azul era um senhor de engenho de Pernambuco 436 . Reino apareceu nitidamente ligado a um engenho fabuloso. O que indicia que essa noção foi mobilizada para arquitetar o Santa Rosa como um espaço lendário, tal qual os personagens de uma história de Trancoso. A identificação foi tal que a voz narrativa aproximou certos elementos da narrativa mitológica da senhora contadora com outros elementos do engenho. O rio (Parahyba) e a floresta (mata do Rolo) da terra de José Paulino, avô de Carlinhos, lembrariam os rios e as flores das histórias de Trancoso veiculadas por Totonha. E mais: o próprio senhor de engenho do Santa Rosa poderia ser aproximado de uma figura lendária, o Barba Azul. Tais aproximações foram tecendo o engenho com uma roupagem mítica, atravessada por elementos alegóricos. Como o engenho é um reino fabuloso, espaço onde o maravilhoso e o fantástico têm lugar, nada impede que seja aproximado às histórias de Trancoso, aos personagens lendários de narrativas folclóricas. Tal parece ser o raciocínio do narrador-personagem da ficção. Reino e engenho fabuloso confundem-se e aproximam-se, um servindo para definir o outro. De fato, pela leitura de Menino de engenho, observamos que um mundo meio mágico desvelou-se perante os olhos dos leitores. Em alguns episódios do romance, o Santa Rosa pareceu ser um espaço lendário. A visão do engenho como um reino fabuloso explicaria muitas histórias presentes no romance, como, por exemplo, os casos de lobisomem, papa-figo e outras assombrações, bem como a visita de contadores de histórias. Sobre isso, encontramos uma longa citação da voz narrativa sobre as crenças de Carlinhos: 436 REGO, José Lins do. Op. Cit., 1934, p. 89. (A) 179 Eu acreditava em tudo isto, e muitas vezes fui dormir com o susto desses bichos infernaes.[...] E a verdade é que tudo isto criava para mim uma vida real. O lobisomem existia, era de carne e osso, bebia sangue de gente. Eu acreditava nelle com mais convicção do que acreditava em Deus. [...] Elle ficava tão perto da gente, ali na mata do Rolo, com suas unhas de espetos e os seus pés de cabra! Um mundo inteiro de duendes em carne e osso viviam para mim. E o que de Deus nos contavam eram tudo muito do ar, muito do céo, muito do começo do mundo 437 . Embora tal passagem não traga explicitamente a relação entre engenho e reino, ela contribuiu para esta associação, na medida em que a metáfora não é algo da palavra ou da frase, mas sim do texto, conforme apontamos. Não se pode isolar a metáfora do texto, torná-la a parte do enunciado. A metáfora é parte integrante do texto, tem existência neste 438 . Reino fabuloso, mágico, o engenho Santa Rosa foi envolvido em uma áurea mítica, lendária. Para o narrador que apresentou sua infância de menino de engenho, este espaço mostrava-se como algo fabuloso, fantástico, povoado de criaturas lendárias. O engenho é um reino porque é um espaço tocado pelo maravilhoso, pelo irreal. E essa dimensão, na ótica do narrador, de tão presente fazia-se mais crível do que certos elementos religiosos, os quais são vistos com certo ceticismo. Para o narrador que descreveu suas experiências de menino de engenho, as historias de Trancoso, os papas-figos, duendes, caiporas e outros personagens lendários revelavam-se mais presentes do que certas figuras religiosas. Estas não conseguiam sensibilizar a criança. Mais do que um espaço religioso, o Santa Rosa foi fabricado como um espaço encantado, reino fabuloso povoado de criaturas lendárias. O banguê povoado de criaturas mágicas parece ter sido instituído, pela primeira vez na literatura de engenho, por José Lins com seu Menino de engenho. Nos livros de Joaquim Nabuco e Mario Sette não encontramos tal dimensão fantasiosa. Ao instituir uma áurea lendária para o engenho, nosso literato paraibano teve seu esforço continuado por outros autores. Nas recordações escritas de Cícero Dias, um dos grandes amigos de José Lins, também pudemos detectar a propriedade açucareira imaginada como um reino encantado. Na sua já citada entrevista a Cesar Leal, no ano de 2000, o pintor pernambucano rememorou sua infância passada “nas três casas grande de meus avós: Noruega, Contendas, Jundiá. As três formavam um reino encantado, em que Jundiá era a capital, a capital de minha infância”439. Cícero Dias também usou a noção de reino para evocar seus engenhos. Seu uso foi bastante semelhante ao manejado por José Lins. 437 REGO, José Lins do. Op. Cit., 1934, p. 83-85. (A) 438 RICOEUR, Paul. Op. Cit., 2005, p. 154. 439 LEAL, Cesar. Op. Cit., 2000. 180 Uma passagem de Eu vi o mundo, em particular, serve bem para aproximarmos o pintor pernambucano e o literato paraibano, no que concerne ao engenho evocado com feições lendárias. Segue abaixo a maneira como Cícero Dias recordou o clima de um dos seus engenhos: A atmosfera do engenho era mágica. Eu não podia fugir ao meu destino. Surreal latente, vivo, real. Boi voando em época flamenga. O bumba meu boi ritmando, penetrando pela noite afora até o raiar do dia. Sonoridade rara e misteriosa: os carreiros, o chiado das rodas, as rodas-d’agua dos engenhos. Os mitos todos percorriam uma atmosfera de espaços encantados. Os emblemas voando – Olinda, Itamaracá, Pernambuco -, voando nesses espaços siderais, sobre marés e campinas verdes. [...] Os engenhos se transformavam em lendas. Lindas lendas da minha infância 440 . Assim como José Lins em Menino de engenho, o autor das palavras acima ideou o engenho como uma espacialidade encantada, fabulou seu território da infância como um mundo mágico. Vivendo em três diferentes engenhos, Cícero Dias teria desfrutado uma atmosfera surreal, pontilhada de mitos. Na lembrança do pernambucano, a geografia dos engenhos seria uma miscelânea entre o real e o mítico, o histórico e o lendário. Entranhado na casa-grande, nas casas de açúcar e na área livre que circulava os engenhos, haveria uma atmosfera surreal. O místico recobria os engenhos. Provavelmente, sua pintura surrealista adviria daí. Sendo assim, Cícero Dias, evocando seus engenhos da meninice, acabou mitificando seus espaços da infância agrária. Sua memória acerca dos tempos vividos em Noruega, Contendas e Jundiá, banhada por uma saudade da infância, acabou por mitificar estes lugares, apresentado-os como mágicos, como cenários mitológicos. No caso do romance de José Lins, o significado do engenho como um mundo fabuloso relacionava-se com a voz narrativa do romance de 1932. Como apontamos anteriormente, Menino de engenho foi um texto de fortes traços memorialístico no qual um narrador em primeira pessoa descreveu sua infância no meio agrário. Ao descrever sua meninice, o narrador-personagem ora assumiu a ótica da criança, ora incorporou a visão do adulto, criando, assim, um jogo de olhares fundamentais para entender tal livro 441 . Ao fazer essa primeira associação entre engenho e reino encantado, teríamos a realidade sendo descrita conforme a ótica de um menino. Trata-se de uma voz narrativa infantilizada, que assumiu os olhos pueris de uma criança, sublinhando como este ser enxergava o espaço do banguê de seu avô. Foi um narrador infantil que produziu o primeiro 440 DIAS, Cícero. Op. Cit., 2011, p. 20-23. 441 CASTELO, José Aderaldo. Op. Cit., 1961, p. 50. 181 sentido do engenho com um reino encantado. É um adulto tentando assumir olhos infantis que descreveu o Santa Rosa como um reino encantado. Por isso há existência de elementos lendários como lobisomens, caiporas e duendes. Para justificar sua memória fantasiosa do Corredor, José Lins, no momento em que teceu o engenho como um reino encantado, recorreu à visão do menino, pôs em si os olhos de Carlinhos, descrevendo alguns aspectos do Santa Rosa conforme esta ótica infantil. Além de uma voz narrativa pueril, a metáfora do engenho como um reino encantado, prenhe do maravilhoso, habitat de figuras lendárias, nos instrui também acerca do modelo narrativo a partir do qual o narrador montou sua imagem do Santa Rosa. José Lins partiu de uma matriz narrativa específica para tecer algumas imagens do engenho. A visão do engenho Santa Rosa foi edificada com base no gênero narrativo da fábula infantil. O narrador memorialístico de Menino de engenho partiu de histórias infantis, de fábulas contadas para entreter crianças, para urdir um determinado sentido para o banguê. Seu modelo narrativo adveio das histórias de Trancoso, do que os adultos do engenho costumavam narrar para os meninos. Isso explicaria a aura encantada e fantasiosa de que revestiu o engenho. As referências aos seres folclóricos, como lobisomem, papa-figo, caipora, bicho do mata, os quais abundam em Menino de engenho, indiciam que o modelo literário usado para tecer dados significados ao engenho consistiu no relato fabular, tradicionalmente narrado para as crianças. O ensinamento moral e o tempo mítico, próprio das fábulas infantis, foram diluídos pelo narrador, para apresentar somente a dimensão mítica e maravilhosa 442 . José Lins do Rego foi um homem que passou sua infância no engenho ouvindo relatos fabulares, histórias as mais mirabolantes, contadas por exímios narradores, homens e mulheres que sabiam urdir uma história, prender a atenção do público, seduzir uma plateia. No momento em que ocupou o lugar de sujeito de romancista, o literato paraibano recorreu aos relatos narrativos que ouviu quando era criança. As histórias contadas, provenientes de uma tradição oral, no engenho de José Lins Cavalcanti foram ressignificados por José Lins já adulto e, assim, aproveitadas para compor seus romances. Sobre isso, é pertinente apontarmos as palavras de José Lins em uma entrevista de 1941: 442 O relato fabular será aproveitado também em outro texto de José Lins do Rego, dessa vez de uma forma bem explicita. Trata-se de um livro, destinado ao público infantil, de 1936. Ver: REGO, José Lins do. Histórias da velha Totônia. Rio de Janeiro: José Olympio, 1936. Totônia foi uma senhora que viveu a perambular pelos engenhos contando histórias ligadas a tradição oral. Tal figura aparece também em Menino de engenho. 182 Na casa do meu avô existia um único livro, a Bíblia. Eu cresci ouvindo as história de Trancoso da velha Totônia. Foi ela quem fez a minha iniciação literária. Chamava-se Antônia e era sogra do mestre Adga, marceneiro do Engenho Corredor. Muito magrinha e sem dentes, essa cabocla tinha um talento especial para contar histórias. Nunca me esquecerei de Sinhá Totônia, essa maravilhosa contadora de histórias, analfabeta e inteligentíssima, que, sem o saber, transformava o menino do Corredor. Porque estou certo de que foi a velha Totônia quem pegou em mim a doença de contar histórias 443 . O tradicionalismo regionalista de José Lins foi o elemento que o fez voltar-se para a infância, para o mundo dos engenhos e servir-se das experiências passadas. O ato de rememorar, no caso do romancista paraibano, não foi uma faculdade natural, espontânea, mas sim um esforço, uma operação sugerida a partir de dados fatores. Foi desse modo que José Lins chegou à figura da velha Totônia para aproveitar suas histórias de Trancoso, as quais muito marcaram sua infância. José Lins só pôde atribuir sua iniciação literária às velhas contadoras de história porque constituiu-se enquanto um romancista que ficcionou seu passado, o passado de sua região, quase dizíamos de sua parentela. A construção simbólica do engenho como um reino encantado, além de uma voz narrativa acriançada, proveio dessas narrativas orais que contadoras de história como a velha Totônia encarnavam muito bem. A arte da narrativa, isto é, a capacidade de transmitir ensinamentos e experiências, de dramatizar a vida, encenando as mais disparatadas situações, tal como nos lembra Walter Benjamin 444 , marcou muitas sociedades pré-capitalistas. Narrar mais do que informar, ensinar mais do que relatar foi um dos atributos que o mundo moderno, burguês e capitalista, assassinou, jogou no passado. A criação de jornais, a formação de uma imprensa nacional relativamente integrada, como a que passou a existir no Brasil dos anos 1930, bem como o crescimento da produção literária romanesca deixou a arte da narrativa com dias contados. Os exímios narradores viraram, assim, criaturas da infância, apenas uma página nas memórias escrita dos adultos. Ao viver no Corredor dos primeiros anos do século XX, engenho localizado no interior da Paraíba, José Lins conheceu essa arte da narrativa e, mais tarde, como um tradicionalista-regionalista, pôde valorizá-la para compor muitas partes dos seus livros. A face lendária do Santa Rosa, presente em Menino de engenho, veio daí, dessas histórias fantásticas que se contava para os meninos de engenho. O relato fabular a partir do qual José Lins teceu seu reino encantado, o engenho, foi uma ressignificação das narrativas ouvidas na tenra idade. 443 BARBOSA, Assis. Op. Cit., 1991, p. 58. 444 BENJAMIN, Walter. O narrador. In:______. Obras Escolhidas I: Magia e Técnica, Arte e Política. São Paulo: Brasiliense, 1985. 183 Não podemos nos esquecer que José Lins, vivendo no interior do Paraíba, estava em contato com um universo social marcado pela oralidade. No entanto, o banguê de infância, presente no texto de Menino de engenho, foi tido como um reino devido também a um outro sentido, o qual passaremos a discutir a seguir. 5.3 O engenho da história: Santa Rosa, um reino patriarcal Em Menino de engenho, a metáfora do engenho como um reino possui uma outra dimensão além do aspecto fabuloso. Trata-se, agora, de algo mais mundano e “realístico”. Vejamos mais uma longa passagem, na qual se tentou uma comparação entre dois engenhos da várzea paraibana: O Santa Fé ficava encravado no engenho Corredor do meu avô. As terras do Santa Rosa andavam léguas e léguas de norte a sul. O velho José Paulino tinha este gosto: o de perder a vista nos seus domínios. Gostava de descansar os olhos em horizontes que fossem seus. Tudo o que tinha era para comprar terras e mais terras. Herdara o Santa Rosa pequeno, e fizera delle um reino, rompendo os limites 445 . A metáfora é a mesma (o engenho como um reino), porém o contexto de enunciação 446 é outro. Já não vemos aqui nenhuma referência a elementos fantasiosos e irreais. O enunciado tratou de elementos concretos e precisou bem o sentido da passagem: o engenho Santa Rosa do senhor de engenho José Paulino seria territorialmente extenso. As terras deste homem o envaideciam de tão largas que eram, perdiam-se no horizonte, escapava dos olhos que tentavam inutilmente vislumbrar seu fim. O Santa Rosa seria um banguê grande, territorialmente vasto, que “acompanhava o Paraíba com as várzeas extensas e entrava de caatinga adentro. Ia encontrar as divisas de Pernambuco nos tabuleiros de Pedra de Fogo”447. Carlinhos viveria, assim, em uma propriedade fronteiriça, entre a Paraíba e Pernambuco. A espacialidade seria tão grande que resvalaria em dois estados do Brasil. Em Menino de engenho, a geografia do engenho foi alargada, ampliada. A noção de reino viria do fato de o banguê ser um espaço extenso, que perfazia léguas e mais léguas de terras. José Paulino era dono de um reino grande. A metáfora do engenho como um reino, a partir de um enunciado textual que marcou a amplidão do território, ganhou o sentido de uma propriedade agrária dilatada, espaçosa. 445 REGO, José Lins do. Op. Cit., 1932, p. 127. 446 RICOEUR, Paul. Op. Cit., 2005, p. 107. 447 REGO, José Lins do. Op. Cit., 1934, p. 127. (A) 184 Léguas e mais léguas de terra faziam do Santa Rosa, engenho de infância de Carlinhos, assemelhar-se a um reino grandioso. A noção de reino, que formou a metáfora do banguê como um reino, já não tem aqui o sentido anterior de um espaço marcado pelo maravilhoso, mas sim de uma espacialidade alargada, territorialmente grande. Temos agora uma dimensão mais concreta, racional, mundana. O reino seria deste mundo mesmo, da história. A mudança de sentido da metáfora, a despeito das palavras serem as mesmas (engenho e reino), explica-se em razão do contexto de enunciação, haja vista que “é um enunciado inteiro que constitui a metáfora”448. Segundo Ricoeur, o analista das metáforas deve considerar o enunciado no qual o recurso linguístico aparece. O sentido da metáfora, portanto, depende do enunciado, de modo que quando este muda aquele pode variar juntamente. Foi isso que aconteceu. A primeira noção de reino da metáfora relacionava-se com o fabuloso em razão do contexto tratar de elementos fabulosos, além da voz narrativa assumir a perspectiva de um menino. O contexto contribuiu na produção do sentido metafórico. O que vemos agora foi uma mudança de enunciado que provocou, por sua vez, uma alteração no sentido da metáfora do engenho como um reino. Ao enfatizar o caráter alargado do Santa Rosa, José Lins, em seu romance inicial, reproduzia um significado para o engenho já posto por Joaquim Nabuco, conforme vimos no primeiro capítulo desta parte. Os dois meninos de engenho rememoraram seus “paraísos” como um mundo cuja amplidão os impressionava. Ambos preocuparam-se em destacar o tamanho de seus engenhos da infância, produziram uma construção memorialística na qual os engenhos possuíam feições territoriais amplas. Massangana e Santa Rosa aproximar-se-iam como espacialidades grandiosas, geradas a partir de uma memória saudosa pelo tempo passado, pelo mundo da meninice agrária. Nas ficções memorialísticas de Joaquim Nabuco e José Lins, o engenho alargava-se, tornava-se um mundo próprio. Na verdade, a construção discursiva do engenho como um território vasto, como um reino de amplos limites territoriais, foi realizada não só por Joaquim Nabuco e José Lins. De acordo com Durval Muniz de Albuquerque Júnior, vários indivíduos provenientes da elite canavieira decadente enunciaram nos textos sobre o passado dessa classe social uma topografia alargada, um mundo cujos limites são difíceis de demarcar. Sobre os discursos de homens como Gilberto Freyre, Julio Bello e José Lins acerca do mundo dito patriarcal, teríamos que “tudo neles parece representar o excesso, fruto de um poder também sem limites. A geografia de seu mando e de seu mundo, era, portanto, bastante ampla e sem limites 448 RICOEUR, Paul. Op. Cit., 2005, p. 135. 185 definidos”449. Desse modo, a noção de reino parece ser mais uma metáfora espacial desse discurso regionalista que desenhou o passado dos senhores de engenho como um mundo grandioso, exagerado, superabundante. Essas falas hiperbólicas foram produzidas em um momento de decadência social e política para a antiga elite canavieira. O que podemos entrever nesses discursos regionalistas que tecem uma geografia do excesso é, na verdade, a contraposição ao presente. Para os filhos da açucarocracia nortista, o poder sem limites do senhor de engenho, exercido sob uma enorme população, e o mundo hierarquizado entre brancos e negros, senhor e ex-escravo, homem e mulher, não era mais possível na realidade do Brasil pós Proclamação da República. As relações sociais, outrora rigidamente hierarquizadas e bem delimitadas, agora tendiam a uma horizontalização social. A diferenciação social agora assumia novos contornos, era marcada não mais com base na hereditariedade ou no sangue. Paralelo a essas mudanças, a usina ganhava terreno, avançava sobre os engenhos endividados e arcaicos, dominava a produção açucareira. E assim, no alvorecer do século XX, tínhamos uma elite claramente decadente, para a qual seu mundo e seu mando não eram mais os mesmos. Diante disso, para regionalistas-tradicionalistas como Gilberto Freyre, Julio Bello e José Lins, a grandiosidade do engenho só poderia mesmo estar no passado, na época do avô, no Brasil patriarcal. Durval Muniz de Albuquerque Júnior apontou que esses indivíduos Olham em volta e não conseguem enxergar mais o seu mundo: sentem-se estranhos ou inatuais. Daí a necessidade de reviver estas territorialidades perdidas, nem que seja em forma de romance ou memória. A necessidade que sentem de escrever e registrar este mundo que estava desabando nasce da própria percepção que a escritura era a única forma ainda disponível para dar materialidade a esta geografia em ruína. Literatura nascida da tristeza, do lamento, da nostalgia, da melancolia, diante de um mundo cujas fronteiras vinham se apagando 450 . O Santa Rosa como um reino que abarcava léguas e mais léguas, que conseguia envolver dois estados do Brasil, era, assim, uma metáfora espacial para contrapor-se ao presente de ruína do grupo social ao qual José Lins vinculava-se. Para o presente diminuto, o passado grandioso. Tal foi a operação discursiva de um grupo social. De fato, o Santa Rosa foi fabricado pelo narrador como uma propriedade agrária enorme. Adiante temos o seguinte enunciado de Menino de engenho: “O Santa Rosa tinha mais de três léguas, de estrema a estrema. E não contente de seu engenho, José Paulino 449 ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. Op. Cit., 2008, p. 423. 450 ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. Op. Cit., 2008, p. 436. 186 possuía mais oito”451. À extensão da terra juntava-se agora a um outro elemento: a vontade de mais e mais terra do senhor de engenho. O coronel José Paulino aparentou ser uma figura que teria sede e fome de terra, querendo sempre expandir seus domínios. O caráter vasto do Santa Rosa adviria da própria vontade de seu comandante maior. Todavia, a noção de reino não tem a ver somente com uma terra alargada. Dentro desse sentido mais mundano e realístico que dissemos existir na metáfora do engenho como um reino, predominou também a dimensão do banguê como um espaço unido sob o poder discricionário de um senhor de terras. O banguê foi tecido como um reino também por causa de ser um espaço unido, sem fissuras e conflitos sociais. A noção de reino, conforme entendemos, relaciona-se não só com o componente territorial alargado, mas guarda também uma dimensão de comunidade, de grupo. Nesse sentido, apontemos mais uma passagem: Restava ainda a senzala dos tempos de captiveiro. Uns vinte quartos com o mesmo alpendre na frente. As negras do meu avô, mesmo depois da Abolição, ficaram todas no engenho. [...] O meu avô continuava a dar-lhes de comer e vestir. E ellas a trabalharem de graça, com a mesma alegria da escravidão. As suas filhas e netas iam-lhes succedendo na servidão, com o mesmo amor à casa-grande e a mesma passividade de bons animaes domésticos. [...] Ali vivíamos misturados, levando carão das negras mais velhas, iguaes aos seus filhos moleques 452 . Mesmo a Abolição, que representou institucionalmente na história do Brasil a quebra dos laços entre senhor e escravo, não conseguiu abalar a unidade do Santa Rosa. Negros e brancos, senhores e ex-escravos, ricos e pobres permaneceriam iguais mesmo sendo hierarquicamente diferentes, unidos pelo amor ao engenho e a vida neste espaço. O engenho não teria conflitos, separações rígidas, pois as diferenças eram naturalizadas, cada indivíduo sabia e aceitava seu lugar na ordem estamental. Daí porque fazia sentido falar dele como um reino unido, uma espécie de grande comunidade fraternal. Como já indicamos, reino sinaliza para uma unidade, um agrupamento espacial humano concorde, que se mantém graças a uma autoridade superior. Todo reino se pretende minimamente unido, homogêneo. Em um reino, as clivagens e fissuras tendem a ser abafadas. Por isso, até “nas cozinhas das casas grandes vivem as brancas e as negras, nessas conversas como de iguaes”453. Interessante pontuarmos que em Senhora de engenho encontramos uma passagem bem parecida com aquela de Menino de engenho sobre a Abolição. Mario Sette também ideou o engenho como uma comunidade da qual ninguém queria sair, onde todos se sentiriam bem. 451 REGO, José Lins do. Op. Cit., 1934, p. 96. (A) 452 REGO, José Lins. Op. Cit., 1934, p. 94. (A) 453 REGO, José Lins. Op. Cit., 1934, p. 171. (A) 187 Sobre o assunto, assim se expressou o narrador setteano: “era tradicional Aguas Claras pela doçura dos seus costumes, da sua disciplina, desde os tempos do captiveiro. Feita a Abolição, nenhum dos escravos abandonou o engenho: a morte os foi recrutando ali e as proles iam completando a tarefa dos antepassados”454. Espaço tradicional, que seguia o ritmo da tradição, a possibilidade de conflito, de dissensão não fazia parte da vida nos banguês. Todos seguiam a tradição, o passado, viviam em uma harmonia, mesmo sendo hierarquicamente diferentes. O fato de existir aqueles que mandavam e aqueles outros que obedeciam não implicaria em atrito social. Tanto em Mario Sette como em José Lins, o engenho seria um mundo ordeiro, pacificado pela naturalização das diferenças sociais, onde os indivíduos viveriam o tempo da tradição, da permanência, da não ruptura. O sociólogo Octavio Ianni, em sua conferência intitulada Tipos e mitos do pensamento brasileiro, realizada em 2001, apontou a existência de varias tradições de leitura do Brasil, como se essa nação fosse uma “nuvem nebulosa a qual as mais diversas interpretações tentariam ordenar e explicar sua composição”455. O Brasil, sobretudo a partir da segunda metade do século XIX, quando consolidou-se como um país soberano, seria um enigma, um mistério que muitos homens de letras tentariam desvendar. Nesse sentido, o autor afirmou a predominância de uma tradição interpretativa da sociedade brasileira que tende a suavizar os conflitos sociais, que pende para atenuar as estruturas de dominação e exploração da sociedade. Essa leitura harmonizadora do país tropical, que goza de uma considerável perenidade, estendendo-se até a atualidade, estaria presente em autores como Gonçalves Dias, Joaquim Nabuco, Mario Sette, Gilberto Freyre, José Lins e vários outros regionalistas tradicionalistas. A formação discursiva literatura de engenho parece ter se misturado com essa tendência interpretativa do Brasil, que procura quase sempre mostrar o social como um arranjo ordenado, harmônico, sem muitos conflitos. As subversões existiriam, porém seriam pontuais, ocorreriam apenas algumas vezes, não sendo jamais a tendência da sociedade brasileira. O mito do brasileiro como um povo pacífico, de índole avessa às guerras e demais conflitos, aparenta ressoar em alguns discursos aqui analisados. Os diversos enunciados trazidos por nós mostram um mundo pastoral, uma sociedade pacífica, onde as dissensões aparecem apenas para serem logo solucionadas, jamais para proporem uma mudança social ou um questionamento radical da ordem instituída. O enfoque tende sempre para iluminar a 454 SETTE, Mario. Op. Cit., 1923, p. 165-166. 455 IANNI, Octavio. Tipos e mitos do pensamento brasileiro. Revista brasileira de ciências sociais, Num., 49. p. 5-10, 2001, 6. 188 ordem, a vivência comunitária dos homens, a harmonia social. A literatura de engenho parece ter como um dos seus princípios o canto a cordialidade dos homens, a boa e camarada vivência dos brasileiros no meio rural. O momento em que tal formação discursiva consolidou-se no Brasil, por volta das décadas iniciais do século XX, coincide justamente com o momento que se agudizou na sociedade brasileira o conflito entre as classes sociais. Naquela época, novos grupos sociais entraram em cena, constituindo-se como agentes políticos a reivindicarem melhorias e mudanças estruturais. O movimento operário e suas múltiplas subdivisões (comunistas, anarquistas, sindicalistas), a Coluna Prestes, a agitação dos Tenentistas e monarquistas, o protesto dos imigrantes estrangeiros e a militância religiosa de grupos católicos exemplificam bem a efervescência política pela qual passava a sociedade brasileira das primeiras décadas da Primeira República (1889-1930). Enfretamentos entre operários e patrões, entre comunistas e soldados da polícia, disputas entre militares e civis, entre governadores de alguns Estados e o presidente da República, debates entre católicos e bacharéis, enfim, todas essas dissensões passaram a ocorrer com mais intensidade no Brasil. Era a época do conflito, da desarmonia social, da dificuldade de se chegar a um acordo consensual 456 . Em pouco mais de 40 anos, a sociedade brasileira presenciava dois golpes políticos. Marcados por essa agitação político-social, os diversos discursos ligados a formação discursiva literatura de engenho irromperam para afirmar a existência de um mundo ordeiro, consensual, sem atrito entre as classes sociais. Esse mundo paradisíaco onde todos sentir-se- iam pertencentes estaria no passado, na época anterior a República, no engenho dito patriarcal. Contra o presente de questionamento a ordem, homens como Joaquim Nabuco, Gilberto Freyre, Julio Bello e José Lins imaginaram um passado onde a autoridade era sempre respeitada. Contra o momento marcado por conflitos de classe, eles idealizaram uma sociedade onde os indivíduos quase nunca questionavam sua situação social. Contra a República, eles fabularam o engenho como um reino. A saudade do engenho, outro princípio da literatura de engenho, a variar em intensidade conforme cada discurso, relacionava-se com essa ficção discursiva segundo a qual no banguê a autoridade era sempre respeitada e velada. Os filhos da açucarocracia nortista sentiam saudades do engenho porque acreditavam que nesta espacialidade o poder de seu grupo social era respeitado, bem marcado e jamais questionado. O elogio nostálgico ao 456 Sintoma desse clima de desacordo social e nacional foi a chamada Reação Republicana: o questionamento dos Estados do Rio Grande do Sul, Bahia, Pernambuco e Rio de Janeiro à política “Café-com-Leite” de São Paulo e Minas Gerais, a partir da qual tentavam controlar e determinar as eleições presidenciais. Ver: FAUSTO, Boris. História do Brasil. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2004, p. 265-273. 189 mundo do engenho não era de modo algum inocente, puro, mero sentimento. Ele revelava a insatisfação com o presente, o desejo de que o passado de mando discricionário de uma classe social voltasse a ser atual na sociedade brasileira republicana. Saudade do engenho: tristeza de um grupo social que viu seu poder ser tragado pela história, melancolia de indivíduos que não podiam mais atualizar um passado pretensamente faustuoso. Ao cruzarmos a visão do engenho como um reino unido com a figura de seu comandante, obtemos uma candente relação. O senhor de engenho José Paulino foi idealizado como uma autoridade, senhor da ordem, dono absoluto de suas vastas terras. Sua autoridade não seria questionada e todos se submeteriam ao seu poderio. Daí o texto apontar que esta figura “tinha para mais de quatro mil almas debaixo de sua proteção. Senhor feudal elle foi, mas os seus párias não traziam a servidão como um ultraje”457. Tal qual um senhor feudal ordenava suas propriedades e estabelecia seu domínio, aconteceria com o senhor de engenho do Santa Rosa, que infligiria a todos o seu poder, mantendo sua terra como um domínio ordenado e harmônico. Não há questionamentos e fissuras no banguê de José Lins. O senhor de engenho avô de Carlinhos foi imaginado pelo romance como um patriarca, isto é, como um indivíduo másculo e viril, que detém o poder em suas mãos e o exerce senhorialmente para além de sua rede familiar extensa. O comando do banguê conferir-lhe-ia poder. Sobre esta figura, a produção literária assim se exprimiu: O velho José Paulino gostava de percorrer a sua propriedade, de andá-la canto por canto, entrar pelas suas matas, olhar as suas nascentes, saber das precisões de seu povo, dar os seus gritos de chefe, ouvir queixas e implantar a ordem. Andávamos muitos nessas suas visitas de patriarcha 458 . O engenho seria um reino composto por vastas faixas de terras e onde todos viveriam harmonicamente, tal qual uma comunidade, graças ao seu senhor patriarcal, que implantou uma ordem, estabeleceu seu domínio e zelava pelo seu poder. Nem mesmo um bando de cangaceiros foi capaz de abalar o reino Santa Rosa 459 , tal foi a sua firmeza e união. Ao percorrer suas extensas terras, comandar cada chão de seu reino, José Paulino mantinha firme seu banguê, deixava-o firme e coeso como um reino, inabalável. O engenho seria um espaço personalístico, reflexo do poder de um indivíduo que soberanamente comandava sua propriedade. Era uma terra que tinha dono, terra marcada, nomeada. Não exageraríamos se 457 REGO, José Lins. Op. Cit., 1934, p. 128. (A) 458 REGO, José Lins. Op. Cit., 1934, p. 65. (A) 459 O capítulo 10 de Menino de engenho conta a chegada dos cangaceiros ao Santa Rosa. Porém, tal acontecimento é mostrado pela narrativa romanesca como algo pacífico, ordeiro, apenas “uma visita de cortesia”. Ver: REGO, José Lins do. Op. Cit.,1934, p. 40. (A) 190 dissemos que o Santa Rosa seria um reino patriarcal, dada a figura poderosa e aristocrática de seu senhor. O personagem José Paulino de Menino de engenho foi a representação ficcional do avô de José Lins do Rego. Como tantos outros personagens de sua obra literária 460 , o senhor de engenho do Santa Rosa foi espelhado em alguém que fazia parte de sua vida. Todavia, o relato memorialístico sobre o avô de José Lins coincidiu bastante com a visão de José Paulino, exposta no romance. Nesse sentido, vejamos a imagem construída por José Lins, em 1956, de seu avô nas suas memórias escritas: Olhava eu o meu avô como se fosse êle o engenho. A grandeza da terra era a sua grandeza. Fixara-se em mim a certeza de que o mundo inteiro estava ali dentro. Não podia haver nada que não fôsse do meu avô. Lá ia o gado para o pastoreador, e era dêle; lá saiam os carros-de-boi a gemer pela estrada ao peso das sacas de lã ou dos sacos de açúcar, e tudo era dêle; lá estavam as negras da cozinha, os moleques da estrebaria, os trabalhadores do eito, e tudo era dêle. O sol nascia, as águas do céu se derramavam na terra, o rio corria, e tudo era dele. Sim, tudo era do meu avô, o velho Bubu, de corpo alto, de barbas, de olhos miúdos, de cacête na mão. O seu grito estrondava até os confins, os cabras do eito lhe tiravam o chapéu 461 . Praticamente todos os sentidos arrolados para forjar o personagem José Paulino, encontram-se na citação acima. O discurso memorialístico encontra-se refém do discurso ficcional, a representação de 1956 do avô foi praticamente a mesma visão exposta no romance de 1932. A ficção cativou a memória. A identificação entre indivíduo e espaço, ambos imaginados como grandiosos, o senhor de engenho como uma figura poderosa, detentora de terras, animais, pessoas e mercadorias, como um comandante viril respeitado por todos, reluziu também nas páginas memorialísticas de José Lins. Assim como em Menino de engenho, a imagem patriarcal do senhor de engenho também fez-se presente em Meus verdes anos, passados quase 25 anos entre uma publicação e outra. Em ambas as produções discursivas, podemos detectar a idealização do engenho e de seu dirigente maior. Nas obras literárias de José Lins, em especial no “ciclo da cana-de- açúcar”, predominou um jogo entre ficção e memória, de modo que uma se alimentou da outra, embaralhando-se. No romance de 1932, o engenho foi produzido a partir de uma ficção memorialística, ou seja, foi com base em uma ficção bastante alimentada por experiências vividas que José Lins ficcionou o mundo canavieiro. O discurso literário ora em apreço 460 Para uma análise de todos os personagens criados por José Lins, presentes em sua obra literária, ver: MARQUES JÚNIOR, Milton. O Ser e o Fazer na obra Ficcional de Lins do Rego. (dicionário dos personagens). João Pessoa – PB: FUNESC, 1990. 461 REGO, José Lins do. Op. Cit., 1956, p. 55-56. 191 apresenta-se eivado de uma memória da infância resignificada a luz de ideias tradicionalistas e regionalistas adquiridas na fase adulta. Na construção simbólica do engenho, tal qual operada por José Lins, não podemos apartar ficção e memória. Aliás, estas duas categorias não são necessariamente opostas, na medida em que não existe um discurso puramente ficcional ou genuinamente memorialístico. A memória pode se alimentar de ficções, assim como a ficção pode ser produzida a partir de uma memória. A imagem patriarcal do coronel José Paulino, construída por José Lins em Menino de engenho, marcou um certo deslocamento discursivo na literatura de engenho. O tipo de senhor de engenho ficcionado pelos outros discursos aqui analisados (Massangana e Senhora de engenho) divergem bastante do comandante do Santa Rosa. Embora Joaquim Nabuco tenha evocado sua madrinha como uma figura que lembraria um senhor de engenho, dado o seu caráter ativo e governante, persistiria ainda o fato de que Massangana era governado por uma senhora, por uma mulher, espécie de senhora matriarcal. O próprio nome do engenho traria a marca do feminino. Este se sobressairia ante ao masculino. Não havia senhor de engenho em Massangana. Divergindo desta tessitura discursiva, Mario Sette romanceou seus senhores de engenho como indivíduos híbridos, homens agrários imbuídos de ideias modernas e tecnológicas. Em Senhora de engenho, Nestor e Lúcio não gritam, não berram, não portam cavalo, mas sim um carro, quase não ordenam, em uma palavra: não foram personagens arquitetados virilmente. Podemos assinalar que não constituíam símbolos da masculinidade inventada como nordestina, nos idos dos anos 1920-1940 462 . Eles não comandam nem governam, mas sim administram, gerenciam uma propriedade vista como um patrimônio, um bem familiar. Eram senhores de engenhos modernizados. Além do mais, dividiam o comando do banguê com a senhora de engenho, título bastante valorizado por Mario Sette. Senhor e senhora de engenho partilhavam a administração da propriedade açucareira, conforme apontamos no capítulo anterior. A dimensão feminina no comando do engenho, em José Lins, foi praticamente apagada, destacando-se tão somente a figura máscula do senhor de engenho. As personagens femininas em Menino de engenho foram recolhidas ao universo doméstico, cuidando apenas da cozinha, da arrumação da casa-grande e das crianças pequenas. Quem garantia o domínio 462 O historiador Durval Muniz de Albuquerque Júnior apontou em seu livro que a figura do senhor de engenho patriarcal, construída por uma série de discursos, foi fundamental para a invenção do nordestino, entendido como um cabra macho, viril, valente. A imagem falocêntrica do habitante da região Nordeste adviria, entre outras figuras, do senhor de engenho forjado como um senhor discricionário, comandante soberano do banguê. Ver: ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. Nordestino: a invenção do “falo”, uma história do gênero masculino (1920-1940). São Paulo: Intermeios, 2012, p. 137-231. 192 do engenho era o senhor, quem era responsável pela produção açucareira era o patriarca, quem resolvia os poucos conflitos do Santa Rosa era José Paulino. A chefia do banguê caberia a uma figura masculina, vista como viril, resistente e extremamente apta ao trabalho rural. O engenho seria um espaço masculino. Assinalou Durval Muniz de Albuquerque Júnior que o bueiro, erguido para cima, ultrapassando o ombro dos homens e destacando-se soberanamente na paisagem rural do engenho, seria um símbolo falocêntrico da masculinidade 463 . No Santa Rosa, não há senhora de engenho. Tal título inexistiria em tal espaço. O senhor de engenho, patriarca, governaria sozinho, sem ajuda de nenhuma mulher. Em 1928, José Lins escreveu um artigo para o jornal pernambucano A Provincia, na época dirigido por Gilberto Freyre e José Maria Bello 464 . O fiscal de banco paraibano era o correspondente alagoano deste periódico, contribuindo mensalmente para tal órgão. No seu texto, criticou com veemência duas leituras extremadas do senhor de engenho. Esta figura histórica nem seria um símbolo de maldade nem tampouco de bondade. Nem o inferno nem o céu para ela, acreditava José Lins. Porém, sua crítica centrou-se mais na visão dos senhores de engenho vistos como homens bondosos, caridosos, supridores das necessidades dos indivíduos que viviam debaixo de seu poder: “a coisa virou, totalmente, pelo avesso. Hoje o senhor de engenho já enjôa a gente de tanta bondade reunida. É uma figura sem relevo humano nenhum a que a literatura está pintando”465. O autor finalizou seu raciocínio assinalando que os senhores de engenhos eram os novos índios dos romancistas: seres sem maldades, inocentes e benévolos, uma figura de santo. Menino de engenho, escrito quatro anos depois deste artigo, afastou-se radicalmente da perspectiva que romantiza o senhor de engenho como o governante provedor da comunidade. Embora José Paulino tenha grandes traços paternalísticos, o que se destacou em tal personagem foi a força, a virilidade, o grito possante, a voz de comando e desmando. O comandante do Santa Rosa seria um homem ligado a aristocracia rural, símbolo do passado imperial do Brasil, no qual os senhores de engenho gozavam de imenso poder e prestígio. A construção de José Lins do avô de Carlinhos equipara-se com a visão freyreana dos senhores de engenho dos tempos coloniais e imperiais: homens patriarcais, viris, que não se curvavam diante de ninguém, que não admitiam desonra e desrespeito 466 . O senhor de engenho como aquele que detinha o poder da terra, da fala e do corpo dos outros, tal qual advogado por 463 ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. De Fogo Morto: mudança social e crise dos padrões tradicionais de masculinidade no Nordeste do começo do século XX. In:______. Nos destinos de fronteira: História, espaços e identidade regional. Recife: Bagaço, 2008. 464 LARRETA, Enrique Rodriguez; GIUCCI, Guillermo. Op. Cit., 2007, p. 330-342. 465 A Provincia, 21 de outubro de 1928. 466 FREYRE, Gilberto. Op. Cit., 1970. FREYRE, Gilberto. Op. Cit., 1933. 193 Gilberto Freyre nos seus textos dos anos 1920, está na base da fabricação simbólica de José Paulino. Com essa visão, o engenho tornou-se um reino patriarcal, terra de um patriarca, onde o poder e a ordem não eram questionados. Essa figura poderosa de patriarca, edificada discursivamente por José Lins, não foi apenas uma especificidade de seu trabalho. Na verdade, tal visão do senhor do engenho diz respeito a maneira como parte considerável da elite açucareira decadente enxergava o presente, isto é, o Brasil do início do século XX. Sobre isso, Durval Muniz de Albuquerque Júnior apontou a existência de uma série de discursos que tratavam das transformações ocorridas no país como parte de um processo histórico que estaria feminizando a sociedade brasileira 467 . Acontecimentos como a Abolição, Proclamação da República, crescimento das cidades e de bacharéis, maior participação social das mulheres, ideal de casamento por amor, igualdade entre os sexos etc. estariam desvirilizando os homens, ou seja, criando um tipo masculino mais delicado, polido, sensível. Aquela sociedade endurecida, rústica, autoritária, áspera, onde imperava o poder discricionário do macho, parecia dar lugar a uma sociedade caracterizada por relações mais flexíveis, mais civilizadas, mais delicadas, mais suaves, onde imperava uma crescente aproximação entre os polos antes antagônicos, e onde o feminino ameaçava tomar conta de todos os lugares antes reservados ao masculino, levando à confusão e ao borramento das fronteiras que antes tão bem delimitavam o masculino e o feminino 468 . Na ótica de Gilberto Freyre e Julio Bello, indivíduos ligados à açucarocracia, os homens do século XX não eram iguais aos seus pares do século XIX: não tinham a força destes, o mesmo vigor para a lida diária, a longevidade. A figura do bacharel almofadinha, homem dedicada às leituras, sempre bem vestido, cabelo penteado e barba feita, educado e possuidor de um emprego público, seria, em termos masculinos, o grande símbolo do amolecimento social da sociedade brasileira pós Proclamação da República . Podemos pensar que foi reagindo contra esse presente, supostamente desvirilizado, que indivíduos ligados aos banguêzeiros projetaram no passado um contraponto a esse estado de amolecimento: o senhor de engenho. Não foi à toa que figuras como o coronel José Paulino foram imaginadas como homens viris, comandantes, homens rústicos de voz possante e autoritária. Com o patriarca, almejava contrapor-se ao o que se pensava ser o modelo de homem da sociedade moderna e burguesa. Se esta apresentaria indivíduos polidos, sensíveis, bem educados, que diziam respeitar as conquistas e direitos das mulheres, teciam-se no 467 ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. Op. Cit., 2012, p. 27-125. 468 ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. Op. Cit., 2013, p. 82-83. 194 passado varões masculinizados que não admitiam a desonra nem tampouco uma igualdade com o outro sexo, visto como inferior, que exigiam respeito e não descuidavam de sua autoridade, de seu poder. O senhor de engenho patriarca seria, assim, um espelho do patriarcalismo, da época em que os homens mandavam soberanamente, do momento em que sua voz e sua palavra tinham uma importância enorme, quase nunca sendo desafiadas. José Lins, ao relembrar seu avô, não fugiu dessa ficção social. O homem de grito possante, chapéu na cabeça e cacete na mão, sempre exalando autoridade, encarnaria o patriarcalismo, a suposta sociedade do engenho. O elogio ao avô, visto como um patriarca que não se dobrava a ninguém, feito por muitos letrados das décadas iniciais do século XX, conforme assinalou Durval Muniz de Albuquerque Júnior 469 , relacionava-se justamente com a identificação entre patriarca e patriarcalismo. Elogiando um, estava-se elogiando o outro. Se não for assim, como explicar a exaltação de uma figura que, segundo José Lins em suas memórias, nunca beijou-lhe a face, nunca abraçou-lhe nem tampouco nunca disse-lhe palavras de carinho e afeto? Por que uma série de indivíduos exaltaram o senhor de engenho, homem que parecia mais um “amigo do céu, dado a distância”470? Tal indivíduo, ainda que não afeito a trocas sentimentais, simbolizava o passado de uma sociedade que muitos não queriam ver desaparecer. O patriarca do engenho seria um monumento do passado, estátua firme do mundo açucareiro, o tempo da infância, da meninice agrária, da casa-grande. Sendo assim, a metáfora do engenho como um reino também diz respeito a uma dimensão mais histórica. Além da dimensão fabulosa, do engenho como um reino encantado e fantástico, predominou também naquela metáfora uma carga menos utópica. O engenho foi inventado como um reino porque seria grandioso, estava assentado em largas faixas de terras governadas firmemente por um senhor de engenho patriarcal, que a todos submetia à sua autoridade. A palavra reino no romance ora em análise não guardou um único e exclusivo sentido ou significado. Aliás, como bem pontua Ricoeur, “as palavras não têm significação própria, porque elas não têm a significação própria: não possuem nenhum sentido em si mesmas, porquanto é o discurso, tomado como um todo, que transmite o sentido”471. Não buscamos aqui um único sentido para a metáfora do engenho como um reino porque acreditamos que as metáforas, em particular, e as palavras em geral, só ganham seu 469 ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. Os nomes do Pai: a edipianização dos sujeitos e a produção histórica das masculinidades – o diálogo entre três homens (Graciliano, Foucault e Deleuze). In:_______. História: a arte de inventar o passado. Bauru, SP: Edusc, 2007. 470 REGO, José Lins do. Op., Cit., 1956, p. 230. 471 RICEOUR, Paul. Op., Cit., 2005, p. 124. 195 sentido a partir do texto, do discurso onde estão inscritas, como também da história, da época na qual estão sendo enunciadas. O sentido da metáfora do engenho como um reino variou conforme o enunciado e as questões sociais circundantes 472 . Santa Rosa, ora reino encantado, ora reino patriarcal. Tais foram os sentidos agenciados por José Lins para forjar seu banguê, misto de memória e ficção, realidade e fantasia, história e mito, embriagado de muita saudade pelo engenho. 5.4 O engenho (anti)moderno A noção de reino, tal qual foi usada em seu sentido mais histórico por José Lins, cuja discussão realizamos no tópico precedente, aponta para o período medieval. Reino seria uma categoria espacial da Idade Média, de um mundo de feições aristocráticas, do momento histórico em que a sociedade estava organizada em domínios rurais particulares, governados por um rei relativamente soberano. Segundo medievalistas franceses 473 , tratar-se-ia de uma circunscrição territorial bem concatenada, grande ou pequena (embora com tendências a expansão territorial), formada a partir dos interesses de um rei. Em seu interior, abrigar-se-ia também uma vasta ou pequena população, toda ela a prestar reverência e subordinação à realeza. Em um reino, a figura central seria o rei, aquele que daria não só uma certa conformação espacial a um território, como garantiria também sua unidade e identidade. Todo reino formar-se-ia temporalmente em torno de um governante maior, de modo que sua expansão ou retração dependeria dos interesses e posturas reais. De acordo com Mário Curtins Giordani, a época do Medievo que multiplicaram-se os reinos na região hoje chamada de Europa foi o período que vai do século VI ao século XIII 474 . Época anterior a formação das monarquias nacionais, como Portugal e Espanha, nesse intervalo temporal teríamos os reinos dos Visigodos, Ostrogodos, Lombardos, Francos e muitos outros. Todos esses reinos teriam uma estrutura político-social comum. Eles seriam governados por um rei, identificado como um senhor militar, possuiriam uma classe guerreira e aristocrática, teriam seus territórios bem delimitados por fronteiras precisas e abrigariam um contingente populacional submisso, a trabalhar e a pagar impostos, a fim de manter o reino. A expansão do poder clerical, o desenvolvimento das monarquias nacionais, o fortalecimento 472 Sobre essa questão da palavra guardar um sentido único e a priori, remeto o leitor para um famoso conto de Jorge Luis Borges, no qual o literato argentino mostra que duas frases, feitas com as mesmas palavras, podem possuir sentidos diferentes. Ver: Borges, Jorge Luis. Pierre Menard, autor Del Quijote. In: Ficciones. Buenos Aires: Alianza Editorial, 1984, p.47-60. 473 DUBY, George. Op. Cit., 1994. BLOCH, Marc. Op. Cit., 2001, p. 432-502. 474 As ideias deste parágrafo foram baseadas no livro: GIORDANI, Mário Curtis. Op. Cit., 1976, vol. II. 196 das classes mercantis, o crescimento do comércio e das cidades foram progressivamente minando os reinos medievais, instaurando no continente europeu uma outra forma de organização social, uma distinta composição espacial, onde o Estado e um conjunto de instituições e classes sociais gozavam de centralidade. Os reinos do medievo parecem ter ruídos junto com o sistema feudal, com o mesmo golpe que derrubou a sociedade agrária, descentralizada e autossuficiente do feudalismo. Se os reinos da Idade Média, enquanto configuração político-social, declinaram no momento em que irrompeu na Europa uma sociedade urbano-mercantil, centralizada no Estado, a noção de reino permanecerá como uma categorial mental central até o século XVII, pelo menos. Tal é o que nos apontou George Duby, em seu estudo sobre o imaginário do feudalismo na região que hoje compõe o território francês 475 . Segundo este historiador francês, no imaginário feudal, isto é, no conjunto de crenças e representações sociais, reino indicava duas realidades intercambiáveis, significava tanto o mundo dos homens, a organização social assentada em um território e no poder de um rei, quanto o mundo celestial, dominado por Deus e seu exército angelical. Assim como haveria reinos mundanos, existiria também o reino dos céus. Na verdade, assegura-nos George Duby, acreditava-se que a primeira forma era, na verdade, derivação da segunda, ou seja, porque Deus reinava no céu é que determinados homens – os reis – governavam na terra. Os reinos terráqueos, com seu território composto por um rei, exércitos e súditos, seria uma organização derivada do reino celestial. Tal crença e tal duplo sentido da palavra reino teve seu auge na França medieval do século XI, estendendo-se com enorme vitalidade até aos dois séculos seguintes. Como podemos, então, depreender dessa breve discussão, a noção de reino está intimamente ligada ao medievo, à sociedade europeia dos séculos VI-XVII. Foi nesse período histórico que existiram os reinos medievais, bem como o duplo sentido de reino como o mundo humano e o universo celeste. Desse modo, quando José Lins, em Menino de engenho, agenciou o termo reino para fabricar o engenho, fazia-o para ressaltar aspectos pretensamente medievais de tal espacialidade. As características supostamente medievais do Santa Rosa adviriam, em grande medida, do senhor de engenho, dito e visto como um senhor feudal, governante supremo e soberano do engenho. Como um rei, José Paulino seria a garantia de ordem em sua propriedade, seria “o sustentáculo maior de seu espaço”, conforme assinalou Pávula Maria Sales Nascimento 476 . 475 DUBY, George. Op. Cit., 1994, p. 191-231. 476 NASCIMENTO, Pávula Maria Sales. Op. Cit., 2009, p. 56. 197 Todavia, para além da fabricação simbólica do avô de Carlinhos, protótipo do avô de José Lins, podemos pensar que Menino de engenho possui uma gramática medieval, ou seja, um conjunto de vocábulos medievalizantes para caracterizar o engenho. Ao contrário de Senhora de engenho, pululam não tanto termos religiosos no romance de 1932 de José Lins, mas sim termos ligados a Idade Média. Reino, principal sentido mobilizado para forjar o engenho, conforme discutimos, seria, pois, mais um elemento de uma gramática medieval usada para definir o Santa Rosa. Ele foi mobilizado ao lado de palavras como feudo, domínio, senhorio, léguas, casta, servos e nobreza, todas elas usadas para assegurar uma certa dizibilidade e visibilidade da propriedade canavieira, aproximando-a muito mais do mundo medieval, aristocrático e rural, do que do mundo moderno, burguês e urbano. Como um tradicionalista, José Lins recuou no tempo para ficcionar seu engenho, e alcançou uma sociedade de feições nobiliárquicas, baseada na terra e no poder de um individuo, visto como um nobre da terra. O uso de uma gramática medieval para instituir e caracterizar certos espaços, parece ser algo bastante comum entre os literatos brasileiros que se propõem a escrever livros cujo ambiente relaciona-se à região Nordeste. Ariano Suassuna, conterrâneo e leitor assumido de José Lins, usou e abusou de termos medievais em suas produções literárias, notadamente em sua obra prima Romance d’A Pedra do Reino, iniciada em 1958 mas só concluída em 1970, passados 12 anos. Nos dois literatos paraibanos, a noção de reino apareceu como algo central, estruturante até. Segundo Jossefrania Viera Martins, Ariano Suassuna representou o sertão paraibano, seu local de origem familiar, como um reino, espacialidade aristocrática de fortes traços ibéricos e povoada de “castelos, fortalezas, príncipes, princesas, reis, rainhas, cavaleiros e trovadores populares”477. A operação literária do autor de Romance d’A Pedra do Reino convocou uma série de elementos representativos do universo medieval para forjar o sertão, idealizado de forma semelhante (mas não idêntica) à visão de Euclides da Cunha, ou seja, como um espaço avesso ao litoral, dito urbano, burguês e moderno. O sertão duro, de sol escaldante, universo tradicional e nobiliárquico, congelado em uma temporalidade anterior à modernidade, foi também arquitetado por Ariano Suassuna. Assim como José Lins, traços medievais foram agenciados para compor o espaço de suas obras, com a diferença de que em um o espaço medievalizado foi o sertão e no outro foi o engenho. Mais do que apontarmos uma filiação 477 MARTINS, Jossefrania Viera. O reino encantado do sertão: uma crítica da produção e do fechamento da representação do sertão no romance de Ariano Suassuna. Dissertação. Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Natal, 2011, p.184. 198 causal entre os dois intelectuais paraibanos, queremos apenas pontuar a existência de uma gramática medieval em ambos, usada para produzir alguns dos seus escritos e, assim, certos espaços. Antes de José Lins forjar o engenho como uma espacialidade de feições medievais, dita e vista a partir de uma gramática medieval, Joaquim Nabuco já o tinha feito, com o seu capítulo Massangana, do livro Minha formação, conforme discutimos. O uso de termos medievais parece ser uma regularidade discursiva da literatura de engenho. Gilberto Freyre, um dos intelectuais em quem José Lins mais se inspirou, em um texto presente no Livro do Nordeste, enunciou a propriedade canavieira como um espaço feudal. Tal perspectiva apareceu pioneiramente expressada na sua tese Social life in Brazil in the middle of the 19th century, apresentada em 1922 a Universidade de Columbia 478 . Porém, foi no texto intitulado Vida social no Nordeste: aspectos de um século de transição, publicado em 1925, que seu autor desenvolveu mais essa discussão e assinalou o “caráter feudal da grande propriedade açucareira”479. Cumpre apontarmos que o organizador do Livro do Nordeste não estava referindo-se ao engenho da época colonial, mas sim ao período do século XIX, objeto de estudo não só de seu artigo como do livro que dirigiu. Gilberto Freyre ideou o banguê oitocentista como uma espacialidade de fortes traços feudais em razão, sobretudo, do estilo de vida da classe aristocrática ali residente. O viver dos senhores de engenho, encastelados nas suas vastas propriedades, dominando senhorialmente uma população humana considerável, gozando de uma série de privilégios e riquezas obtidas quase que exclusivamente da terra, tornaria seu território como um feudo medieval. Para comprovar essa afirmação, o jovem pernambucano chamou em seu auxilio um outro autor: “Novos barões feudais”, chamava-os em 1847 um crítico da revista O Progresso (Recife). E resumia-lhes o largo viver feudal: “Quando suas propriedades se acham mais distantes da capital da província, vivem numa independência quase completa, fazendo justiça a si próprios e algumas vezes armando os seus vassalos e em guerra aberta entre si, a despeito das ordens do govêrno e das sentenças dos juízes”480. A citação usada pelo autor acima foi feita de modo a se caracterizar o que ele chamou anteriormente de “largo viver feudal”, entendido como o estilo de vida autônomo e soberano 478 FREYRE, GILBERTO. Social life in Brazil in the middle of the 19th century. New York: Ed. Autor, 1922. Disponível em: . Acesso em: 06 mai. 2013. 479 FREYRE, Gilberto. Op. Cit., 1970, p. 87. 480 As aspas são do autor, por se tratar de uma citação feita por ele. Ver: FREYRE, Gilberto. Op. Cit., 1970, p. 78. 199 dos senhores de engenho, chamados por um crítico – com a clara aprovação de Freyre – de “novos barões feudais”. O adjetivo feudal caberia tanto ao senhor quanto a sua propriedade. A arquitetura do engenho, mais precisamente sua casa-grande, seria também um elemento comprovador da dimensão feudal de tal espacialidade. Foi o que nos asseverou Gilberto Freyre, acerca da residência do senhor de engenho do Megahype: “ainda hoje, com as suas paredes pensas e o seu abalcoado meio podre, dá à paisagem uma como nota feudal. [...] Sente-se nessa construção de engenho pernambucano certa verticalidade feudal”481. A arquitetura do engenho, com sua imponência vertical e seu concreto resistente, destacando-se soberanamente na paisagem, refletiria as próprias características da terra e do senhor: seria feudal, sinônimo de poder e domínio. Porém, segundo Gilberto Freyre, a nota feudal do engenho não viria somente do estilo de vida dos senhores e da disposição de suas casas grandes. Havia ainda um outro elemento. A cavalhada, tradicional festa portuguesa, onde se encenava ludicamente ao ar livre os torneios da cavalaria lusitana medieval e os conflitos entre cristãos e mouros, seria também um elemento feudal do engenho. Tal festividade migrou para a colônia lusitana, aparecendo em tal território desde pelo menos o ano de 1584, conforme o registro de Pe. Fernão Cardim. No Brasil, até meados do século XIX, praticou-se com certa regularidade, e em diversas regiões, a cavalhada, sobretudo em momentos solenes (casamento, nascimento do primogênito, bodas de prata etc.), usando como enredo base a obra Carlos Magno e os doze pares da frança 482 . Para o autor de Vida social no Nordeste: aspectos de um século de transição, as cavalhadas davam ao engenho “um não sei quê de deliciosamente feudal”483. Amante e estudioso do que se convencionou chamar de cultura popular, Freyre não só forjou um atributo para o engenho, a partir de uma festividade, como produziu um claro juízo de valor: as cavalhadas, vistas como a principal festa regional do banguê, dariam um encanto a tal espaço, forneceria prazer visual àqueles que contemplavam sua prática. É pertinente apontarmos que Gilberto Freyre, em reedições do texto Vida social no Nordeste: aspectos de um século de transição, realizou substanciais alterações. Depois do Livro do Nordeste, este texto apareceu na obra Região e Tradição, prefaciada por José Lins e publicada em 1941. Aqui, ela ganhou um novo título: Aspectos de um século de transição no Nordeste do Brasil. No que diz respeito a discussão que estamos realizando – a dita dimensão 481 FREYRE, Gilberto. Op. Cit., 1970, p. 85. 482 Mais informações em: PEREIRA, Niomar. Cavalhadas no Brasil. São Paulo: Escola de Folclore, 1984. 483 FREYRE, Gilberto. Op. Cit., 1970, p. 76. 200 medieval do engenho –, pudemos aferir que o autor do texto de 1941 tentou relativizar suas afirmações feitas em 1925. Assim, na citação da nota 480, ele colocou o termo “quase”, antes de feudal, passando a ideia de que o estilo de vida dos senhores de engenho não era completamente feudal, mas sim parcialmente. Outra alteração substancial realizada foi na citação da nota 479, na qual, depois de 16 anos, Gilberto Freyre publicou a expressão caráter feudal entre aspas. Assim como a primeira modificação, esta também mudou sutilmente o sentido da frase. Ao colocar a expressão sob aspas, o caráter feudal do engenho foi relativizado, perdeu um pouco de sua precisão, tornando-se apenas uma expressão 484 . Longe de queremos denunciar Gilberto Freyre, por ter maculado seu texto original 485 , o que queremos destacar é que o ensaísta pernambucano nos anos 1920, antes de Menino de engenho, reempregou uma gramática medieval para definir o engenho. Se José Lins pensou em termos de reino, seu grande amigo operou com a noção medieval de feudo. Ambos os autores urdiram a grande propriedade açucareira como uma espacialidade a(nti)moderna, reatualizando, assim, o discurso inaugural da literatura de engenho. O banguê açucareiro estaria mais próximo do mundo medieval do que do universo moderno, que se instalava com consistência no Brasil do século XX. Ele seria uma espacialidade com fortes traços do medievo, pois a modernidade significava justamente a destruição deste mundo. Como veremos nos próximos capítulos, José Lins e Gilberto Freyre foram autores que tenderam para uma crítica e rejeição à sociedade moderna, ainda que em alguns momentos propunham uma conciliação conservadora entre o antigo e o moderno. Por fim, precisamos ainda assinalar que, no momento em que Gilberto Freyre e José Lins construíram o engenho a partir de uma gramática medieval, parte considerável da intelectualidade nacional estava em um debate sobre a formação do Brasil, no qual muitos defendiam que tal nação teria passado por um regime feudal. Nos 1920-1930, pensar as pretensas dimensões feudais da sociedade brasileira era algo comum entre os letrados da época. Homens como Oliveira Viana, Malheiro Dias, Austrogildo Pereira, Leoncio Basbaum, Nelson Werneck Sondré e tantos outros letrados não tinham dúvidas de que a colônia portuguesa na América teria passado pelo modo de produção feudalismo, o qual teria deixado inúmeras marcas na sociedade brasileira, visíveis até o início do século XX. De liberais 484 Para conferir essas alterações, remetemos o leitor para a segunda edição de Região e Tradição, por questões de praticidade, pois a primeira edição, por nós consultada, é hoje um livro raro. Ver: FREYRE, Gilberto. Região e Tradição. Rio de Janeiro: Editora Record, 1968, p. 144 e 182. 485 É oportuno assinalarmos que o mestre de Apipucos, ao longo de sua carreira intelectual, republicou vários de seus textos, tendendo quase sempre a fazer neles alterações. Seus escritos dos anos 1920, reunidos e publicados posteriormente em alguns livros, foram, possivelmente, os mais alterados. 201 conservadores a marxistas ortodoxos, acreditava-se que o latifúndio, o patrimonialismo, o personalismo, o mandonismo local seriam oriundos da chaga feudal que acometeu o Brasil via colonização portuguesa. Se muitos concordavam, haviam também aqueles que rejeitavam a chamada tese feudal da formação do Brasil, cujo maior representante nos anos 1930 foi Caio Prado Junior. Gilberto Freyre e José Lins participaram dessa discussão, pensaram e produziram também a partir dela 486 . Se, por um lado, Gilberto Freyre e José Lins não chegaram a defender a existência, no passado, de um modo de produção feudal no Brasil, conforme alguns intelectuais de sua época faziam, por outro lado não deixaram de assinalar os traços medievais do engenho. Para eles, apontar a dimensão feudal da propriedade açucareira não era a mesma coisa do que afirmar a existência do feudalismo no Brasil. Eram coisas distintas. Não houve uma feudalidade no Brasil, enquanto um sistema total, pois determinadas características feudais só se encontravam em dados engenhos açucareiros. A propriedade canavieira como um reino feudal, o senhor de engenho como um senhor feudal seriam marcas distintivas muito mais de uma região específica do que de todo o país. O engenho a(nti)moderno, próximo do medievo, seria uma particularidade da região dita mais tradicional e autêntica do país, o Nordeste. O mundo aristocrático e rural, de feições medievais, criado pelo português em contato com o negro e o índio, sobreviveria muito mais no engenho açucareiro nordestino do que na lavoura cafeeira sulista. E isso fazia toda a diferença. Portanto, assinalar uma dimensão medieval do banguê, seja via a noção de reino (José Lins) ou via o termo feudal (Gilberto Freyre), foi, antes de tudo, uma espécie de marcador espacial identitário, ou seja, cumpriu a função de particularizar um dado espaço. Foi no discurso da elite canavieira decadente, ávida por diferencia-se do sul do país, que se tendeu a pensar o engenho a partir de traços supostamente feudais. Assim garantir-se-ia uma particularidade espacial. 5.5 O engenho do adulto: Santa Rosa, espaço da saudade Assim como Joaquim Nabuco, a saudade pelo engenho está na base da visão do Santa Rosa como um reino encantado e reino patriarcal. José Lins mobilizou estes significados movido por uma intensa nostalgia pelo tempo passado no banguê, notadamente na sua 486 Sobre esse debate, ver: DUCATTI, Ivan. Economia feudal no Brasil: para discutir Nelson Werneck Sodré. Fenix, revista de história e de estudos culturais, Vol. 6., Ano VI, Num. 4., 2009. LIMA, Airton de Souza. Caio Prado Junior e a polêmica feudalismo-capitalismo. Revista Aurora, Ano II., Num. 3., 2008. REIS, José Carlos. As identidades do Brasil: de Varnhagen a FHC. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2007, p. 145-203. 202 infância. Porém, ocorre que no diplomata pernambucano a saudade do engenho, expressada a partir da saudade pelo escravo, conforme interpretamos, apareceu de forma explícita apenas em uma passagem. De fato, a palavra saudade no capítulo Massangana apareceu apenas uma única vez, justamente aquela para expressar um tal sentimento pelo escravo. Em Minha Formação, a saudade pelo engenho ficou mais subtendida e menos explicitada. Para o analista, ela viria mais de uma dedução do que de uma constatação. Nesse sentido, Menino de engenho parece ter potencializado tal sentimento, fazendo escorrer de suas páginas muita saudade pelo banguê da meninice. O saudosismo de José Lins pelo engenho pode ser aferido, em especial, no último capítulo de Menino de engenho. É bastante significativo que nas últimas páginas do romance tal sensibilidade irrompa de maneira clara. O capítulo 40 descreveu a despedida de Carlinhos do seu recanto paradisíaco, o Santa Rosa do coronel José Paulino. O menino iria deixar o engenho para ir para estudar na escola, localizada na cidade. Nessa parte, o narrador- personagem do romance reproduziu claramente o que aconteceu com José Lins, que também foi um menino de engenho que, em uma determinada idade, viu-se obrigado a deixar as terras do avô. O adeus ao engenho foi romanceado com muita saudade. Vejamos o final do romance. Na manhã que Carlinhos iria deixar seu “paraíso”, eis como o menino levantou-se da cama: “acordei com os pássaros cantando no gamelleiro. Tocavam dobrados ao meu bota- fora. E uma saudade antecipada do engenho me pegou em cima da cama. Viera-me acordar. [..] Uma outra vida ia começar para mim” 487. Antes mesmo de deixar o Santa Rosa, a saudade por este espaço já aparecia. Era uma saudade antecipada, ou seja, a saudade do engenho já era prevista, esperada, quase certa de aparecer, pois Carlinhos sabia que uma nova vida descortinar-se-ia para ele. A referência aos pássaros conferiu não só um clima idílico, romântico à passagem, como prestou-se também para mostrar que a saudade madrugou no menino, que veio junto com o canto das aves das primeiras horas do amanhecer. A saudade do engenho acometeu o menino ainda cedo. Após acordar e tomar seu café, Carlinhos aprontou-se para sua viagem, com destino a cidade. Iria deixar o engenho: 487 REGO, José Lins do. Op. Cit., 1934, p. 194. (A) 203 A minha mala seguira na cabeça do Zé Guedes para a estação. Iríamos depois a cavallo. E nesta viagem, beirando os partidos de canna, passando pela porta dos moradores, a minha saudade se demorava por toda parte. E vinham os moleques olhar para mim. O tio Juca na frente, e eu ronceiro, sentindo em cada passo do Coringa o engenho que se ficava para trás 488 . A cena descrita acima possui dinamicidade, trata-se de uma ação em movimento. A ação desenrola-se, vai acontecendo. Porém, um elemento, em especial, conferiu a mesma uma certa estaticidade. A saudade do engenho foi o elemento que tentou frear os movimentos dos personagens, que tentou estabilizar a cena. Ela não tem pressa, possui um tempo lento, arrastado, assim como Carlinhos, que queria a fixidez no Santa Rosa. O narrador-personagem de Menino de engenho foi prolongando a estadia no banguê, retardando a despedida de tal espacialidade. Tudo por causa do apreço pela propriedade de José Paulino. O sentimento foi tal que produziu uma humanização do Santa Rosa: “o engenho dava-me assim as suas despedidas, como os namorados, fazendo os derradeiros agrados”489. Menino e engenho estavam unidos, irmanados pelo afeto que o primeiro sentia pelo segundo. Seriam como dois apaixonados, que viveram uma experiência de paixão intensa e que se veriam, agora, obrigados pela a vida a se separarem, tal foi o caso do menino Carlinhos deixando a terra que tanto apreendera a amar. Depois de percorrer afetivamente a sua propriedade de infância, sentindo-a em cada passo, Carlinhos finalmente chegou à estação de trem. Segundo Iranilson Buriti de Oliveira, o trem em Menino de engenho representou a modernidade e, como tal, a ruptura, a desterritorialização. Sob os trilhos, com a máquina cinzenta cortando a paisagem, desenhava- se a separação com o mundo rural. O apito do trem lembrava uma vida que ficava para trás e outra que estava prestes a se iniciar 490 . Era a perda da infância. E assim o menino de engenho adentrou em um dos grandes símbolos do progresso, da tecnologia, rumo ao palco da modernidade: as cidades. No trem, um dos principais não-lugares da sociedade burguesa 491 , a saudade do engenho ecoou mais alto que o barulho do maquinário: 488 REGO, José Lins do. Op. Cit., 1934, p. 196. (A) 489 REGO, José Lins do. Op. Cit., 1934, p. 196. (A) 490 OLIVEIRA, Iranilson Buriti de. O autor e a autoria: José Lins do Rego em cena. Alpharrábios, Vol. 2., Num. 1, 2008, p. 01-14. Disponível em: . Acesso em 13 jun. 2013. 491 Não-lugar, tal qual entende Marc Augé, são lugares de circulação, de passagem, surgidos com a modernidade e para os quais os indivíduos não guardam nenhuma afetividade ou identidade, não estabelecem uma relação duradoura. Trata-se de um conceito que aponta para espaços não significativos para determinadas pessoas, ou seja, contrasta com a noção usual de lugar. Ver: AUGÉ, Marc. Não lugares: Introdução a uma antropologia da supermodernidade. Campinas, São Paulo: Papirus, 1994. 204 E o trem saiu, correndo por entre os cannaviaes e os roçados de algodão do meu avô. [...] Lá estava o Santa Rosa com o boeiro branco e a casa grande rodeada de pilares. Os moleques estavam na beira da linha para me ver passar. - Adeus, adeus, adeus! – com as mãos para mim. E eu com o lenço sacudindo. Os olhos se encheram de lagrimas. Cortava-me a alma a saudade do meu engenho. E o trem corria. [...] Todo esse movimento me vencia a saudade dos meus campos, dos meus pastos 492 . O trem foi deixando o Santa Rosa para trás, ficando na paisagem apenas o notável símbolo do engenho, das classes agrárias aristocráticas: a casa-grande. Tal foi o que o menino viu. O final de Menino de engenho foi melodramático, sensível, em razão do sentimento nutrido pela propriedade açucareira. A saudade produziu tanta identificação que levou a posse do espaço: “meu engenho, meus campos, meus pastos”. José Lins quis tocar seu leitor, sensibilizá-lo, compondo um final no qual as lágrimas jorraram por causa da terra. O desfecho foi dramático devido a separação do engenho. O final extremamente emotivo que acabamos de retraçar erigiu o engenho como um espaço da saudade 493 , isto é, como uma espacialidade que desperta saudade, instiga doces lembranças, capazes de sensibilizar quem dela se afastou. O Santa Rosa foi construído sob o signo da saudade, da identificação afetiva, da presença atemporal. Ele foi um produto nostálgico. Se a saudade do engenho não era algo muito expressivo em Senhora de engenho e em Massangana reduziu-se a uma passagem, em Menino de engenho ela foi algo central, estruturante, um dos principais sentidos agenciados para constituir o engenho. Só no capítulo final deste romance temos a palavra “saudade” aparecendo quatro vezes, o que não ocorreu em nenhum dos outros capítulos. Foi só sair do engenho para a saudade aparecer, mais precisamente, a saudade por tal espaço. Menino de engenho encerrou-se com o engenho sendo algo do passado, da saudade, uma espacialidade perdida que só a memória e/ou a literatura poderia resgatar, dar vida. A saudade está intimamente ligada a presença de uma perda, como se esta fosse a condição de possibilidade deste sentimento. Ela viria, só se manifestaria com mais intensidade, a partir de alguma perda, quando da constatação de uma ausência. Percebendo que se afastaria do engenho por um bom tempo, o personagem Carlinhos entregou-se a saudade, foi tomado pelo desejo de permanência no banguê. Desse modo, a saudade parece ser uma luta contra a perda, um combate para segurar aquilo que se esvai de nós, um corpo a corpo para reter o que nos escapa. A saudade tentar firmar mundos que estão desmoronando, 492 REGO, José Lins do. Op. Cit., 1934, p. 197-198. (A) 493 ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. Op. Cit., 2009, p. 78-207. 205 tentar capturar pedaços de um universo em escombros. Menino de engenho aparenta ser, assim, a tentativa de seu autor de agarrar-se ao universo açucareiro, de ligar-se a esta espacialidade cada vez mais em ruínas na sociedade brasileira, em especial na região Nordeste. Nos anos 1920 e 1930, a saudade pelo engenho foi um sentimento que acometeu muitos brasileiros. Augusto dos Anjos, Jorge de Lima, Julio Bello, Cícero Dias, Gilberto Freyre, José Lins e tantos outros expressarem uma sensibilidade saudosista para com o banguê. Segundo Durval Muniz de Albuquerque Júnior, A saudade é um sentimento pessoal de quem se percebe perdendo pedaços queridos de seu ser, dos territórios que construiu para si. A saudade também pode ser um sentimento coletivo, pode afetar toda uma comunidade que perdeu suas referências espaciais ou temporais, toda uma classe social que perdeu historicamente a sua posição, que viu os símbolos de seu poder esculpidos no espaço serem tragados pelas forças tectônicas da história 494 . Pensamos a saudade como um sentimento pessoal e coletivo, produzido historicamente, a partir de dadas mudanças na sociedade. Sentir saudade, ser saudoso é uma condição não tanto natural, do instinto humano, como é cultural. A saudade expressa-se a partir de códigos socais e é motivada por elementos históricos. Cada época teve suas saudades e nem sempre tem-se saudades das mesmas coisas. É, assim, algo que tem história, brota do mundo humano, demasiado humano 495 . Como tal, pode acometer todo um grupo social. No Brasil das primeiras décadas do século XX, haviam vários ex-meninos de engenho saudosos do seu território da infância, em razão do crescimento das cidades e da modernização do campo, movimentos históricos que iam fazendo do banguê algo do passado, da “infância” brasileira, digamos. A saudade como um sentimento coletivo tende a surgir em momentos de profundas mudanças. As vicissitudes do presente, as metamorfoses do cotidiano, as transformações das práticas e valores sociais geralmente fazem irromper uma postura saudosista. Os olhos só se voltam para o passado depois de terem fitado a alteração do presente. Já se tornou um lugar- comum apontar que o Brasil dos anos 1920-1930 foram períodos de intensas mudanças, nos 494 ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. Op. Cit., 2009, p. 78. 495 ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. As sombras do tempo: a saudade como maneira de viver e pensar o tempo e a história. In: ERTZOGUE, MARIA H.; PARENTE, Temis Gomes (Org.). História e sensibilidade. Brasília: Parelelo 15, 2006. COELHO, Maria Claudia; REZENDE, Claudia Barcellos. Antropologia das emoções. Rio de Janeiro: FGV, 2010. MAUSS, M. A expressão obrigatória dos sentimentos. In: Mauss, Marciel. São Paulo: Ática, 1979, p. 147-53. (Coleção Grandes cientistas sociais, 11). 206 mais diversos níveis da sociedade. Até os homens dessa época perceberam o momento transformador em que viviam. Era o rádio que aparecia, o cinema que se instalava, o navio que aportava diariamente com os últimos produtos da moda francesa, o bonde que encurtava as distâncias, o telefone que aproximava as pessoas, o higienismo que agitava parte considerável da população, as fábricas que se edificavam, os automóveis que tomavam conta das ruas calçadas, a luz elétrica que iluminava as cidades. Para uns, essas novidades encantavam, ao passo que para outros produzia um sentimento de estranhamento. A metáfora do estrangeiro em sua própria cidade foi algo veiculado por muitos homens que nasceram no alvorecer do século passado. A sensação de desconhecer a própria terra que crescera e vivera acometeu muitas pessoas do início da era passada. José Lins experimentou esse presente em metamorfose, vivendo em capitais urbanas que passavam por processos de modernização. Nosso literato paraibano viveu quase sempre desterritorializado, fixando-se temporariamente em cidades como Recife, Maceió e Rio de Janeiro, além das inúmeras temporadas no estrangeiro, em razão tanto de compromissos profissionais (palestras, assessoria) e interesses turísticos. Fruto dessa inconstância territorial, José Lins escreveu dois livros de viagens, um de 1952 e outro de 1957: Bota de sete léguas e Gregos e Troianos, respectivamente. Possivelmente, esse nomadismo citadino, uma errância por muitos espaços, favoreceu sua postura saudosista, produzida em um contexto de intensas transformações. A saudade do engenho em José Lins era mais do que a nostalgia da infância agrária, desfrutada nos banhos de rio, nas brincadeiras com os moleques da bagaceira e na precocidade sexual, alimentada pelas negras ex-escravas. Assim como Joaquim Nabuco, no romancista paraibano a saudade pela sociedade do banguê também ressoou forte. A vivência agrária no engenho, as relações hierárquicas pretensamente amolecidas entre senhor e trabalhador, entre branco e negro, os tipos sociais ditos pitorescos do engenho, as imensas e centenárias arvores desta espacialidade, o cheiro doce do açúcar, a figura discricionária do banguezeiro, a casa-grande com seus pilares firmes e móveis de jacarandás, em suma, todo o complexo espacial açucareiro incendiava a alma de José Lins de saudades. A saudade do engenho seria a saudade da sociedade do engenho. Este representaria todo um estilo de vida que, com a Abolição e Proclamação da República, começou a ruir, a agonizar lentamente no Brasil. Menino de engenho não foi tanto um livro de memória-ficção como o foi de saudade do engenho. 207 A saudade do engenho explicaria as mitificações do Santa Rosa como um reino encantado e reino patriarcal. Tais sentidos foram produzidos sob o céu da nostalgia. Com a noção de reino, José Lins quis dar uma aura de grandiosidade ao seu espaço preferido, ao seu recanto idílico da meninice. De acordo com Ivone Gebara, o saudosista tende quase sempre a embelezar o objeto de sua saudade. Desta sensibilidade, quase sempre, proveriam idealizações, afirmações grandiosas, românticas e idílicas. Pessoas saudosistas, apegadas ao passado, filtram, por razões mais ou menos desconhecidas, pedaços belos do passado, memórias embelezadas e passam a desejá-los de volta, como se eles contivessem uma qualidade de vida superior à monotonia ou ao limite do presente. Assim, a saudade parece trazer de volta o passado modificado, transformado, embelezado, passado que serve de referência e alimento ao presente, quando no presente a fome de sentido e de afeto parece grassar 496 . Foi contaminado de saudade pela sociedade do banguê que José Lins escreveu boa parte de seus romances. Em 1947, já um autor consagrado internacionalmente, foi solicitado ao literato paraibano uma autodescrição, para qual respondeu colocando o saudosismo como elemento central de sua personalidade: “se chove, tenho saudades do sol, se faz calor, tenho saudades da chuva”497. A saudade era a constância de seu ser. Porém, sua saudade não era tanto de fenômenos naturais quanto era de épocas e realidades sociais precisas. Saudosista, José Lins escreveu seu primeiro romance, sentindo-se ainda “um menino de engenho, um menino perdido”498. 496 GEBARA, Ivone. O que é saudade. Rio de Janeiro: Brasiliense, 2010, p. 24-25. 497 MARTINS, Eduardo. Op. Cit., 1980, p. 25. 498 REGO, José Lins do. Op. Cit., 1934, p. 198. (A) 208 Parte III Fecham-se as porteiras: os engenhos decadentes 209 Capítulo 6 O outono do patriarcado: o engenho decadente em Banguê Que tempos seriam esses, santo Deus? Esses rapazes tão sem respeito pelos mais velhos e até pelos santos, pelo próprio Santíssimo Sacramento? Que fim de mundo seria esse? Era o declinio do patriarchalismo; O desprestigio dos avôs terríveis, suavizados agora em vovós. Gilberto Freyre 499 6.1 Banguê e o efervescente mercado de livros no Brasil Após Menino de engenho, José Lins deu continuidade rapidamente a sua atividade literária. Em 1933, o escritor paraibano apresentou ao público brasileiro a continuação de seu romance de estreia: Doidinho, com Carlinhos não mais no Santa Rosa mas sim no Instituto Nossa Senhora do Carmo, um internato escolar paraibano. Esse segundo romance assinalou a aproximação de seu autor ao meio intelectual carioca, marcando um ponto de inflexão na carreira intelectual de José Lins. Após o sucesso de Menino de engenho, romance vencedor do premio Graça Aranha de 1932 e objeto de resenhas elogiosas de críticos como João Ribeiro e Augusto Frederico Schmidt, o meio intelectual da capital brasileira começou a se abrir para o escritor nordestino. Ainda em 1932, meses após a publicação do seu primogênito literário, José Lins conseguiu fazer contatos com editores do Rio de Janeiro. O resultado desses contatos foi uma mudança de editora: da pequena e frágil Adersen-Editora para a mais conhecida e aparelhada Ariel Ltda. Esta editora, sediada no principal centro intelectual do país, estava ligada a revista Boletim de Ariel, onde críticos literários de renome nacional estampavam seus artigos semanalmente. À sua frente estava os cariocas Gastão Cruls e Agripino Grieco, homens de letras e também de negócios, que estavam atentos para os romancistas do Nordeste. Pela mesma época dos anos 1930, Graciliano Ramos e Jorge Amado tiveram, respectivamente, São Bernardo e Cacau publicados pela Ariel Ltda. Em 1933, saiu também da firma de Gastão Cruls o segundo romance de José Lins, em tiragem de 2 mil exemplares. Doidinho veio a público anunciando na contracapa o romance seguinte de José Lins, já inclusive intitulado de 499 FREYRE, Gilberto. Sobrados e Mucambos. São Paulo: Companhia editora nacional, 1936, p. 115. 210 Banguê, o que mostra que seu autor já estava planejando seu terceiro romance, em uma produtividade literária difícil de se ver no Brasil das primeiras décadas republicanas. A história da publicação de Banguê confunde-se com a própria história do aquecimento do mercado editorial brasileiro. Em 1934, ano da publicação daquele romance, José Lins vivia em Maceió, porém tinha seu nome bastante conhecido no meio letrado carioca, em razão, sobretudo, do sucesso de Menino de engenho. No planejamento inicial, o terceiro livro do romancista deveria sair pela Ariel Ltda, como anunciou Doidinho ainda em 1933. Todavia, nos primeiros meses de 1934, um pequeno telegrama enviado por um editor paulista não muito conhecido fez toda a diferença. José Olympio, o editor que telegrafou para José Lins, após ter lido os dois romances deste literato, interessou-se pelo romancista e decidiu enviar-lhe uma mensagem, na qual fazia uma proposta incomum para os padrões editoriais da época: republicação de Menino de engenho, com uma tiragem de 5 mil exemplares, e publicação de Banguê, com 10 mil exemplares. Nos idos iniciais de 1930, o chamado “romance do Nordeste”, com autores como Mario Sette, José Américo de Almeida, Rachel de Queiroz e Amando Fontes, gozava de certo apreço nacional. Os literatos citados encontraram um bom público para suas obras, para além de sua região. Além de um público certo, eles tinham também o apoio da crítica literária, que recebia positivamente seus romances. Um fato em especial serve-nos para atestarmos o sucesso dos “romancistas do Nordeste”: em 1931 e 1932, o prêmio Graça Aranha de melhor romance nacional do ano foi entregue a dois escritores nordestinos, Rachel de Queiroz e José Lins do Rego, companheiros de rodas literárias em Maceió. Segundo Durval Muniz de Albuquerque Júnior, os discursos vinculados ao “romance do Nordeste” encontravam forte acolhimento nas classes médias urbanas das principais capitais do Brasil, segmento social escolarizado, interessado em conhecer outras partes da nação e que estava em forte expansão no Brasil da época 500 . Lucila Soares, jornalista, neta de José Olympio, conta em seu estudo sobre a empresa do seu avô que foi Amando Fontes, literato sergipano que vivia no Rio de Janeiro desde fins de 1920, quem apresentou os romances de José Lins ao editor paulista 501 . As indicações literárias, de possíveis promessas, tinham um papel crucial no universo intelectual brasileiro das décadas iniciais do século XX. É plausível supormos que o autor de Menino de engenho apresentou-se como um literato promissor aos olhos de Amando Fontes e José Olympio, que não conheciam pessoalmente o escritor paraibano. O premio conquistado por José Lins e as 500 ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. Op. Cit., 2006, p. 126. 501 SOARES, Lucila. Rua do ouvidor 110. Rio de Janeiro: José Olympio – FBN, 2006, p. 70. 211 resenhas elogiosas aos seus dois primeiros romances, bem como a indicação de Amando Fontes, escritor bem sucedido 502 , atiçaram o interesse do editor paulista, fazendo-o mover quantias absurdas para ter os direitos autorais sobre a obra do literato paraibano. José Lins não resistiu a proposta de José Olympio. Conta Lucila Soares que sua resposta ao telegrama de José Olympio foi curta e direita: “tomo o próximo navio”503. Mesmo estando com um acordo firmado com Gastão Cruls, acerca da publicação de Banguê, disse em carta a um dos chefes da Boletim de Ariel Recebi proposta de José Olympio de S. Paulo para edições de Menino e Banguê. O editor quer se meter numa aventura, pois me propõe uma tiragem de cinco mil de um e dez mil de outro. Não é preciso dizer que em igualdade de condições você terá preferência. Não acredito que esse negócio lhe seja interessante. 504 O romancista paraibano e o próprio Gastão Cruls sabiam que a proposta de José Olympio era irrecusável. Na sociedade brasileira dos anos 1920-1930, o padrão de tiragem de romances ficava entre dois mil e três mil exemplares, no máximo 505 . Algumas impressões da empresa de Monteiro Lobato (como a terceira edição de Senhora de engenho), que saiam em uma tiragem de cinco mil exemplares, constituíam uma exceção, de modo que querer ultrapassar o padrão de impressão de livros, com uma tiragem de dez mil exemplares, em um país cujo índice de analfabetismo da população representava em torno de 66 %, era mesmo uma aventura 506 . Porém, a ousadia de José Olympio não estava somente na quantidade de exemplares impressos. Para cooptar de vez José Lins para sua editora recém criada, José Olympio ainda ofereceu ao literato o pagamento de nove contos adiantados. Pagar antes do livro ser publicado, antes do mesmo ir à venda, era outro fato incomum para o Brasil dos anos 1930. José Olympio trazia para o meio intelectual nacional propostas ousadas, audaciosas, as quais fizeram com que o mercado editorial brasileiro ganhasse na época uma vitalidade enorme e inédita. Com a atuação deste editor, em especial, começou a ser possível ganhar dinheiro com a venda de livros. E José Lins ganhou, como atestou o recibo transcrito a seguir: “Recebi do snr. José Olympio Pereira Filho, a importância de nove contos (9 000$000) em pagamento da 502 Em 1933, fez grande sucesso com seu romance Os Corumbas. Escrevia também em alguns jornais e revistas cariocas. 503 SOARES, Lucila. Op. Cit., 2006, p. 38. 504 Carta de José Lins a Gastão Cruls, sem data. MARTIN, Eduardo. Op. Cit., 1980, p. 352-353. 505 Lembremos que Menino de engenho e Doidinho, tiveram uma tiragem de dois mil exemplares impressos. Mais de uma década atrás, em 1921, Senhora de engenho veio ao público com uma tiragem de mil exemplares. 506 Para dados acerca do publico leitor na sociedade brasileira, da Primeira República em diante, ver: CÂNDIDO, Antônio. Literatura e Sociedade. São Paulo: Editora Nacional, 1985, p. 134. 212 minha comissão de dez mil “Banguês” e cinco mil “Menino de Engenho”. Rio de Janeiro, 23 de junho de 1934”507. Era a primeira vez que José Lins recebia uma quantia elevada em dinheiro por seus livros, antes mesmo destes serem comercializados. O fato refletia o desenvolvimento promissor do mercado livreiro no Brasil, que estava em pleno aquecimento. Segundo Aníbal Bragança e Márcia Abreu, em um estudo sobre a impressão dos livros no Brasil, a década de 1930 no Rio de Janeiro assistiu a uma “notável expansão do sistema editorial”508. Na capital republicana, cidade mais populosa do Brasil e sede de varias instituições intelectuais e culturais, concentravam-se pequenas e médias editoras, as quais atraiam vários literatos. Pela terceira década do século XX, podemos destacar as editoras Ariel, Schmidt, Civilização Brasileira, Cultura Brasileira e algumas outras de menor expressão 509 . Mais do que São Paulo, que passou, do ponto de vista editorial, por grandes problemas relativos à revolução de 1924 e à política deflacionária de Artur Bernardes 510 , o Rio de Janeiro mostrava-se como um palco promissor para sediar e liderar a expansão do mercado livreiro nacional. Não foi à toa que a Editora José Olympio, com apenas dois anos de vida, já cogitava a mudança de São Paulo para o Rio de Janeiro. Não bastasse a tiragem de dez mil exemplares e parte do pagamento adiantado, outro fato comercial envolveu a publicação de Banguê. Organizou-se, na tarde de 23 de junho de 1934, na livraria José Olympio, agora já sediada no Rio de Janeiro, uma cerimônia de lançamento, destinada à promoção do terceiro romance de José Lins, mas que contou também com o relançamento de Menino de engenho, agora em sua segunda edição, impressa pela José Olympio. A cerimônia ocorreu com a presença do autor e de muitos outros literatos que viviam na capital da República 511 . Segundo Lucila Soares, essa cerimônia literária marcou a “primeira tarde de autógrafos do Brasil”, com José Lins a autografar seus dois romances em 507 Consultamos esse documento no Museu José Lins do Rego. 508 BRAGANÇA, Aníbal; ABREU, Marcia (Orgs.). Impressos no Brasil: dois séculos de livros brasileiros. São Paulo: Unesp, 2010, p. 12. 509 Mais informações em HALLEWELL, Laurence. Op. Cit., 1985, p. 333-346. 510 Trata-se da revolta tenentista liderada pelo oficial do exercito Isidoro Dias Lopes, que irrompeu em São Paulo no dia 5 de julho de 1924, visando derrubar o presidente Artur Bernardes. O mandato deste (1922-1926) caracterizou-se por uma política de redução geral dos preços, a fim de reduzir os gastos do consumidor e a inflação. Tal política gerou grande crise no setor comercial, pois reduziu a oferta de produtos. Mais informações sobre o tenentismo e a política deflacionária de Bernardes, bem como sobre a maneira como tais acontecimentos influenciaram negativamente as editoras paulistas, ver: FAUSTO, Boris. História do Brasil. São Paulo: EDUSP, 2004, p. 295-319. e TOLEDO, Maria Rita de Almeida. A companhia editora nacional e a política de editar coleções: entre a formação do leitor e o mercado de livros. In: BRAGANÇA, Aníbal; ABREU, Marcia (Orgs.). Op. Cit., 2010, p. 139-157. 511 A referência da cerimônia de lançamento de Banguê nos foi sugerida por um depoimento dado por José Olympio a um jornalista. A matéria consta em: MARTINS, Eduardo. Op. Cit., 1980, p. 356. 213 questão 512 . Com tal evento, José Lins saia de sua região para fazer sua entrada triunfal no cenário literário carioca. Outra estratégia comercial de José Olympio que nos parece importante consiste na produção de capas coloridas e bem trabalhadas, com desenhos e muitas cores. A capa de um livro seria parecida com um cartão de visitas, destinar-se-ia à chamar a atenção do leitor, convidando-o para a compra e à leitura da obra. As capas, em grande medida, concederiam uma dimensão estética e visual aos livros. Eis a seguir as primeiras capas dos livros de José Lins produzidos pela editora José Olympio: Figura 9: Capas de Menino de engenho (segunda edição) e Banguê Acervo da Biblioteca Nacional Interessante pontuarmos que as duas capas foram produzidas por Cícero Dias, pintor regionalista que, conforme já indiciamos, também estava vinculado a mesma formação discursiva que José Lins. Nada mais coerente do que um jovem que também experimentou a vivência banguezeira ilustrar romances ligados a literatura de engenho. Desde as capas, contendo letras garrafais e chamativas, que fazem explícita referência ao universo açucareiro, parece ter-se o objetivo de reviver o engenho, em suas brincadeiras e em seus amores. A reconstituição poética do engenho, a construção simbólica de tal espacialidade, tinha seu prelúdio já nas capas, as quais tentavam construir junto à sociedade brasileira uma dada imagem do engenho, uma dada visualidade do universo açucareiro. Os fatos contados até aqui – tiragem elevada, parte do pagamento adiantado, festa de lançamento com direito a autógrafos e livros com capas chamativas – parece-nos mostrar uma dimensão importante sobre Banguê. A produção literária ora em apreço aparenta ter sido 512 SOARES, Lucila. Op. Cit., 2006, p. 23. 214 pensada não só como um simples livro, como um mero objeto a ser lido pela intelectualidade letrada brasileira. Ele parece ter sido arquitetado também como um produto comercial, como uma mercadoria a ser consumida, como um romance a ser vendido. Os acontecimentos por nós arrolados até aqui podem ser vistos como estratégias comerciais, destinadas a fazer de Banguê um verdadeiro sucesso literário e comercial. Em 1934, o mercado interno para o livro nacional era promissor e estava em aquecimento, de modo que os editores tendiam a pensar, na hora de lançar um romance, em como proceder para fazer do lançamento literário um produto comercial rentável. Dentre as produções literárias da literatura de engenho, Banguê revelava-se como a mais promissora. José Olympio, conhecido pelos amigos como J.O., foi um editor empreendedor, cuja ações deram-se em concomitância com a expansão do mercado editorial brasileiro. De acordo com Antonio Candido, a terceira década do século passado marcou um fenômeno denominado pelo crítico de profissionalização da literatura 513 , isto é, a literatura pensada não apenas como uma atividade de diletante, mas sim como um ofício específico, como uma produção textual que demanda todo um trabalho intelectual e físico merecedor de remuneração financeira. Para o crítico literário, tal época marcou o momento em que a literatura ganhou certos ares institucionais, contando com o apoio do Estado, instituições de ensino, rádios, revistas especializadas, jornais e editoras. José Olympio beneficiou e foi beneficiado por esse fenômeno social a que fez referência Antonio Candido. O literato nacional, outrora o grande articulador e produtor de sua obra, aquele que custeava todo o processo de publicação e pouco lucrava com a comercialização (vide Mario Sette), passou a contar com a ajuda de outros agentes. José Olympio, fundando uma editora que teria uma grande e rara longevidade (durou até 1974), foi um destes agentes de promoção do livro, em especial aqueles escritos por autores nacionais. Contudo, não podemos associar a ampliação do mercado editorial brasileiro, ocorrido nos anos 1930, unicamente à sua figura. Editores como Gastãos Cruls, Agripino Grieco, Frederico Schmidt, bem como Monteiro Lobato e Octalles Marcondes Ferreira, livreiros empreendedores da década de 1920, antecederam a José Olympio, permitindo ao editor paulista a inserção em um movimento que estava aquecendo e ampliando o mercado de livros no Brasil. José Olympio beneficiou-se de todo um conjunto de editores predecessores, com os quais pôde apreender muita coisa e vislumbrar o caminho certo. 513 CANDIDO, Antonio. Op. Cit., 1984, p. 27. 215 Laurence Hallewell apontou o seguinte perfil do editor: “em José Olympio se reuniam as qualidades do trabalhador infatigável, do organizador, o tino comercial, a decisão desinteressada de afrontar todos os riscos para o amparo econômico e editorial da cultura brasileira”514. Para o aprendizado de tais qualidades, o contato com as livrarias foi vital. Em 1918, quando ainda tinha apenas 16 anos de idade, José Olympio começou a trabalhar na prestigiada livraria Casa Garraux, onde, certamente, realizou vários contatos e aprendeu muita coisa sobre o mundo dos livros. Em tal estabelecimento comercial, ele teve uma grande ascensão: de limpador e organizador de estantes de livros, passando por balconista, até a gerência da livraria, cargo principal que ocupou entre 1926-1931, quando resolveu sair para abrir seu próprio negócio. A livraria José Olympio Editora, sediada em São Paulo à rua da Quitanda, número 19ª, era inaugurada por alguém que, apesar dos 28 anos de idade, conhecia bastante o meio livreiro e editorial da sociedade paulista. J. O. , valendo-se de sua experiência profissional, sabia bem o que necessitava fazer para promover e expandir seu empreendimento. Seu olhar sobre José Lins não foi um olhar caridoso, de quem queria ajudar desinteressadamente um romancista a publicar sua obra. Antes, sua visada inicial sobre o romancista paraibano foi comercial: ele poderia render capital financeiro e prestígio a José Olympio Editora, daí a necessidade de “cooptá-lo”. Como bem afirmou Gustavo Sorá, em estudo sobre o mercado de livros brasileiro, José Olympio não foi de modo algum um mecenas, do tipo que financiava a obra de um autor sem esperar quase nada em troca, tudo em nome da Arte. Após a crise de 1929 e a Revolução de 1930, fatos que abalaram duramente as oligarquias locais e regionais, o mecenato começou a entrar em liquidação, de modo que o cenário editorial nacional demandava homens como José Olympio, indivíduos que viam na produção livresca um setor comercial a ser explorado como uma fonte de receitas 515 . Jose Olympio foi um mercador de livros no Brasil, homem com uma visão capitalista que se combinava com uma vontade de promover a cultura brasileira. Ainda sobre o interesse de José Olympio em trazer José Lins para sua empresa, precisamos apontar que ele coincidiu justamente com o momento em que a editora passava por um período de expansão. A data eleita para o nascimento da José Olympio Editora foi 29 de novembro de 1931, após seu dono comprar duas fartas bibliotecas particulares. Até junho de 1934, a editora funcionava unicamente em São Paulo. Somente depois de dois anos de funcionamento foi que José Olympio começou a arquitetar sua mudança para o Rio de 514 HALLEWELL, Laurence. Op. Cit., 1985, p. 387. 515 SORÁ, Gustavo. Op. Cit., 1998, p. 81. 216 Janeiro. Enquanto telegrafava para José Lins, fazendo a proposta que já destacamos anteriormente, o editor paulista batalhava para alugar um ponto na famigerada Rua do Ouvidor, principal zona comercial e intelectual do Rio de Janeiro, desde a época Imperial. Dias após o lançamento de Banguê, em 4 de julho, O Jornal estampava em primeira página, com letras garrafais, a seguinte manchete: Figura 10: Notícia sobre a inauguração da José Olympio Editora. Acervo da Biblioteca Nacional É pertinente destacarmos que a notícia do lançamento de Banguê apareceu referenciada na reportagem acerca da abertura da José Olympio em terras cariocas. Assim, julgamos que a captura de José Lins foi parte do mesmo esforço de consolidação e expansão da editora paulistana. Mudar-se para o Rio de Janeiro e trazer José Lins para a José Olympio, publicando audaciosamente Banguê e a segunda edição de Menino de engenho, eram estratégias de um mesmo objetivo: expandir a editora paulista, alcançar novos espaços e novos públicos. Segundo Mariana Chaguri, no momento em que o editor paulista realizou sua proposta a José Lins, estava procurando novos autores para o seu catálogo, a fim de fazer frente a outras editoras, notadamente à Ariel Ltda 516 . Foi assim, para fazer concorrência, que autores nordestinos como José Lins do Rego, Rachel de Queiroz, José Américo e Gilberto Freyre foram trazidos para a José Olympio Editora, todos eles inseridos no acervo para virarem sucessos literários e comerciais. Havia uma disputa entre os selos literários, cada um deles, na medida do possível, tentando manter o seu autor, visto como uma fonte de receitas e de prestígio, como uma lança que poderia atingir novos públicos. A ida de José Lins para a editora que mais tarde se tornará parte mesmo de sua própria história, pois passou a publicar praticamente todos os seus livros, deve ser vista, portanto, a partir do desenvolvimento do mercado editorial no Brasil. O literato paraibano foi bastante 516 CHAGURI, Mariana. Op. Cit., 2009, p. 67-68. 217 beneficiado por esse processo de formação e expansão do mercado nacional livreiro 517 . Por isso que, de 1932 a 1939, conseguir manter a produtiva média de um livro escrito e publicado a cada ano. A década de 1930 entrou para nossa história literária como a época de ouro da literatura brasileira, pois até então a publicação de livros demandava esforços hercúleos e reduzia-se a pequenas tiragens. Tal época revelou a sociedade brasileira as tiragens de dez mil exemplares de livros. Em 1943, quando já tinha uma carreira literária consolida e premiada, escrevendo sugestivamente sobre o comércio de livros no Brasil (título do artigo), confessou o jornalista e literato José Lins que sem José Olympio “o romancista José Lins do Rego não teria animo para escrever, e muitos outros teriam parado”, pois JO era com que uma “força literária”518. José Olympio, vinculando José Lins e outros escritores a uma editora, forneceu as condições necessárias para a continuidade da obra literária do romancista paraibano. Com uma editora certa, com a garantia de publicação e remuneração asseguradas, José Lins pôs-se a escrever seus romances. Assim, Banguê marcou não só uma mudança de editora, mas indica o momento em que seu autor passou a contar com a ajuda de uma “força literária”: o mercado de livros no Brasil. 6.2 Entre o avô e o neto: a decadência do engenho O primeiro grande empreendimento literário de José Lins, Banguê, apresentou ao público brasileiro a continuação da história de Carlinhos, personagem já conhecido em razão dos romances anteriores. Boa parte da crítica literária da época o entendeu como o auge de uma trilogia iniciada em 1932. Valdemar Cavalcanti, Olívio Montenegro e Eugênio Gomes apontaram o caráter continuísta da obra literária de José Lins. Todavia, ao contrário de Menino de engenho e Doidinho, o terceiro livro do escritor foi estruturado não em capítulos sequenciais, mas sim em três partes compostas de alguns capítulos. Na primeira sessão, a menor do livro, denominada de O velho José Paulino, mostra-se o envelhecimento do senhor de engenho. Na parte seguinte, Maria Alice, o leitor descortina uma relação adultera entre 517 Alguns dados servem para aferirmos essa expansão. Em todo o ano de 1933, a José Olympio publicara apenas 8 livros; no ano seguinte, já saltou para 32; em 1935, publicou 59 e, em 1936, 66 livros. A expansão e o crescimento eram nítidos. Dados retirados de: HALLEWELL, Laurence. Op. Cit., 1985, p. 357. 518 A Manhã, 22 de Dezembro de 1943. 218 Carlos de Melo e uma moça da cidade. Por fim, na parte III, a maior do romance, intitulada de Banguê, observamos a derrocada final do Santa Rosa e o fim definitivo de Carlos de Melo 519 . Dedicado a Yan de Almeida Prado, Mario Marroquim e Cícero Dias 520 , Banguê tratou ficcionalmente do fim da tradição patriarcal de senhores de engenho. Nos seus dois primeiros romances, o Santa Rosa estava no auge, com José Paulino governando plenamente. O terceiro romance, continuidade literária das produções anteriores, marcou um salto cronológico na história, de modo que vemos Carlinhos transformar-se em Dr. Carlos de Melo, bacharel em Direito. O tempo passou, e a criança de Menino de engenho e Doidinho chegou a vida adulta. Com isso, o avô senhor de engenho foi envelhecendo, perdendo a força do seu grito, enfraquecendo seu comando do engenho. O velho chegava aos seus 84 anos de idade. Diante do tempo que passa, que esmorece as pessoas, impõe-se o problema da continuidade familiar, da substituição: conseguirá o neto dar continuidade a tradição genealógica? Eis a questão que perpassou todo o romance de 1934 de José Lins. Escrita em primeira pessoa, a história toda de Banguê parece ter se alimentado dessa pergunta. O primeiro capítulo do romance ora em foco se inicia mostrando o tempo narrativo da história: “afastara-me uns dez annos do Santa-Rosa. O engenho vinha sendo para mim um campo de recreio nas férias de collegio e de academia. [...] Vinte e quatro annos, homem, senhor do meu destino, formado em Direito, sem saber fazer nada”521. O menino de engenho de outrora retornou ao seu território familiar depois de ter concluído seu processo de formação estudantil. Carlinhos estudou, passou por diferentes escolas em diferentes cidades e transformou-se no bacharel Carlos de Melo, homem feito que voltava para o engenho de sua meninice a fim dar um rumo efetivo a sua vida. Na verdade, o personagem principal de Banguê, que é também a voz narrativa do romance, não sabia exatamente o que fazer. Seu retorno ao engenho aparentou ser fruto de uma indecisão quanto ao seu futuro, como demonstra as palavras de recepção de José Paulino ao neto: “ – vamos ver para que dá o senhor –”522. 519 A parte I tem 59 páginas; a parte II, 67 e a parte III tem 169. Trabalhamos neste capítulo com a primeira edição do romance. Ver: REGO, José Lins do. Banguê. Rio de Janeiro: José Olympio, 1934 (B). 520 Yan de Almeida Prado (1898-1987) foi um intelectual paulista, colaborador na imprensa de sua cidade e no meio carioca, tanto na função de jornalista quanto na função de ilustrador. Desde 1932, quando auxiliou na candidatura de Menino de engenho ao premio de melhor romance do ano, coroado pela Fundação Graça Aranha, passou a fazer parte do circulo de contatos de José Lins. Já Cícero Dias e Mario Marroquim (1896-1975), erudito alagoano e partícipe das rodas literárias locais, faziam parte do circulo de amizade de José Lins desde fins dos anos 1920. 521 REGO, José Lins do. Op. Cit., 1934, p. 9 (B). 522 REGO, José Lins do. Op. Cit., 1934, p. 9 (B). 219 Ainda sobre o enredo de Banguê, podemos apontar que ele refletiu, em certa medida, uma experiência muito comum na sociedade brasileira da época: o retorno do filho ou do neto à casa familiar. Os processos de escolarização no Brasil, sobretudo em suas fases finais, durante muito tempo ocorreram com os filhos saindo de casa, deixando o lar domiciliar para irem estudar nas principais capitais do país. No Brasil do primeiro tempo republicano, os grandes centros de ensino concentravam-se em alguns polos, de modo que conseguiam exercer uma forte atração sobre as varias regiões circunvizinhas. Assim, o menino-rapaz ausentava-se da casa familiar, vivendo em repúblicas estudantis ou em casas de parentes, e só voltava para o lar original em definitivo depois de alguns anos. Para vários jovens, a formação intelectual era sinônimo de viagem, pois indicava uma temporada na qual se estaria ausente do lar doméstico por alguns anos. O mundo moderno, baseado na valorização da técnica, a sociedade competitiva que se instalou com mais consistência a partir da Proclamação da República, só fez ampliar essa experiência de desterro temporário do lar familiar. Tal processo de formação intelectual distante da casa familiar aconteceu, por exemplo, com os vários indivíduos ligados a literatura de engenho: Joaquim Nabuco, Jorge de Lima, José Américo de Almeida, Gilberto Freyre e José Lins do Rego são bons exemplos de jovens que vivenciariam a experiência do retorno à casa domiciliar, depois de uma temporada de estudos. A produção destes homens de letras alimentou-se consideravelmente desta experiência, de modo que em cada um deles podemos encontrar, em graus variados, é claro, uma centralidade da casa, uma valorização do lar. A saudade da infância, sentimento presente também em alguns deles, recebe seus contornos também aqui, na medida em que muitas vezes confunde-se com a própria saudade do lar originário. A infância seria a época em que se estaria em casa, na proteção dos pais, vivendo rodeado de familiares e outras crianças. Saudades da casa, da infância e do engenho, tudo isso aparenta se confundir e se embaralhar na subjetividade destes homens que desde cedo foram desterrados de seu lar familiar. Não é à toa que encontramos em indivíduos como José Lins a ânsia telúrica de ligar-se à terra, de ser identificado com um dado chão. A terra, o chão, representaria para o literato paraibano o seu mundo primevo, a sua esfera natural, o lugar de onde proveio. Seriam, assim, pontos fixos de sua identidade social e humana. Na sociedade moderna, conforme ressaltou Marc Augé, marcada por uma enorme mobilidade, pelo intenso trânsito de pessoas, ideias e mercadorias, a casa ou o lar passou a ser uma das poucas referencias de fixidez, de estabilidade 523 . Para muitos homens ligados a literatura de engenho, a casa será mesmo uma 523 AUGÉ, Marc. Op. Cit., 1994, p. 25-26. 220 espécie de porto seguro, ponto estável num mundo em constante modificação. Daí a valorização que fazem do lar, este elemento supostamente imune às vicissitudes. Em Banguê, encontramos uma vontade desesperada de juntar-se a terra domiciliar, de religar-se com o mundo original, como se fosse possível encontrar nele um abrigo seguro. Nesse sentido, Carlos de Melo, retornando ao engenho, espelhou uma situação vivida não só por seu criador, o escrito paraibano, como também por vários brasileiros da época. Já nas primeiras páginas de Banguê ficamos sabendo que o coronel José Paulino está em situação de declínio, de definhamento físico. Se o tempo permitiu a Carlos tornar-se um acadêmico, ausentando-se por um tempo considerável do engenho, também permitiu o envelhecimento de seu avô. Assim é descrito o velho senhor de engenho: Ouvia o velho José Paulino tossindo. Já andava mais curvo, o seu grito de mando não ia tão longe. E havia mais silencio na casa-grande. Onde estavam os moleques e os meninos gritando? Onde estavam todo aquelle ruído, as carreiras pelo corredor, as brigas da velha Sinhazinha? A casa era mais vasia, e tudo nella se amesquinhava para mim 524 . O grito do senhor de engenho, um dos principais símbolos da autoridade patriarcal, já não era mais o mesmo. Como a sua voz, José Paulino foi perdendo a força. A fraqueza do comandante dotava o engenho de uma tristeza, de um clima mórbido. Sem os gritos de mando, o Santa Rosa foi ficando silencioso, pacato, pequeno, parado. O Santa Rosa para o qual retornara Carlos já não era mais como o engenho de outrora. É pertinente apontarmos que Banguê possui uma atmosfera cinzenta, de modo que através de suas páginas o leitor pode sentir um clima de tristeza, um sentimento de paraíso desfeito. Ao contrário dos discursos até aqui analisados da literatura de engenho, o romance de 1934 de José Lins foi destituído de qualquer lirismo e idealizações românticas, como pudemos detectar em Senhora de engenho e Menino de engenho. A paisagem canavieira, nestes discursos pintada com cores verdejantes, sob a luz de um sol forte e resplandecente, no terceiro romance de José Lins praticamente não infunde contentamento e ânimo no leitor. Em vez do tom lírico, muito presente no Massangana de Joaquim Nabuco, Banguê veio à tona com uma atmosfera de angustia, de aflição, dada pelo fim iminente do engenho. Menos visual e mais sensível, Banguê esmerou-se em passagens como essa: “o Santa- Rosa era cada vez mais triste. Lá estava o meu avô sentado, olhando não sei para onde, a bater com o cacete na calçada. [...] E o silencio fazia conluio com a minha melancolia. Um silencio 524 REGO, José Lins do. Op. Cit., 1934, p. 10 (B). 221 de quem estivesse com doente em casa”525. O tom melancólico e depressivo que paira sobre essa produção literária advém justamente do início da decadência do engenho. Conforme apontou José Lins, em viagem de 1948 a zona da mata paraibana, “nada mais triste que um engenho de fogo morto”526, isto é, que um engenho parado, sem safrejar, com um senhor de engenho imóvel e de olhar perdido, sem esperanças, sem futuro. Como em muitas produções da literatura de engenho, Banguê também mostrou uma nítida associação entre personagem e espaço. O definhamento de José Paulino foi levando progressivamente ao definhamento do Santa Rosa. Como o engenho foi pensado como um espaço personalístico, a ruína de um tende a levar consigo o desmoronamento do outro. Vejamos em algumas linhas essa relação simbiótica entre homem e espacialidade: “via o meu avô quase como o volante, quase que parado de vez. Meu avô Zé Paulino se arrastando como a roda preguiçosa do engenho. Elle que se movera na vida com tanta presteza em tudo, tão veloz nas suas vontades, agora empacava”527. O movimento lento do senhor de engenho, devido a sua idade já avançada, foi associado à própria dinâmica do banguê em processo de declínio. O Santa Rosa, tal qual seu velho comandante, trabalhava em um ritmo lento, moroso, sem muito ímpeto. Vislumbramos um jogo recíproco entre engenho e indivíduo no qual a fraqueza dá o ritmo. Ao mostrar José Paulino empacado tal qual a roda preguiçosa do Santa Rosa, José Lins acabou tecendo uma metáfora da própria inércia do mundo patriarcal na sociedade brasileira de sua época. No mundo vivido pelo escritor paraibano, o Brasil da primeira metade do século XX, a sociedade patriarcal estava como que emperrada, sem força, sem capacidade de reprodução, isso porque o combustível da dinâmica social eram agora outro, bem diferente daqueles que alimentavam o universo açucareiro. Era agora a vez do capital mediar as relações sociais, da meritocracia roubar o lugar do compadrio, da impessoalidade prevalecer sobre o personalismo, do diálogo contar mais do que o grito. Um ethos moderno e burguês, cada vez mais presente e estruturando a sociedade brasileira, ainda que não de forma completa, entravava a reprodução do mundo patriarcal, enfraquecia a sociedade banguezeira. A velhice de José Paulino pode ser associada ao próprio definhamento do universo social dos engenhos que José Lins ficcionou, dando-lhe uma certa imagem, uma dada perspectiva. A partir da senilidade de José Paulino, José Lins foi montando o prelúdio da decadência do engenho. Sem um senhor de engenho ativo e governante, o Santa Rosa foi 525 REGO, José Lins do. Op. Cit., 1934, p. 32-33 (B). 526 REGO, José Lins do. Op. Cit., 1951, 117 (B). 527 REGO, José Lins do. Op., Cit., 1934, p. 57 (B). 222 entrando em um processo de ruína. A propriedade canavieira demandava um senhor que desse destemidamente gritos para todos os lados, que montasse firmemente no cavalo e fosse dar suas ordens aos carreiros, maquinistas e cabras do eito. Em suma, a espacialidade, para ser produtiva, dependia de um bom senhor de engenho, tal qual tinha sido o avô de Carlinhos. O engenho seria um espaço personalizado, marcada pela figura de um indivíduo soberano e ativo. Sem o comandante, ele tomba, enfraquece, declina. Na ficção imaginada por José Lins, o mundo do engenho começava a decair devido à fraqueza de seu chefe maior. E aqui o escritor paraibano encontrou-se com uma série de discursos regionalistas que também enunciaram o fim do engenho a partir do definhamento de um patriarca. Gilberto Freyre, Julio Bello, José Américo de Almeida e outros intelectuais advogaram em vários textos que o senhor de engenho era o grande sustentáculo do mundo açucareiro. O engenho estava na dependência de um homem. Daí o elogio que muitos indivíduos no período da Republica Velha fizeram aos senhores de engenho: eles provinham e mantinham o mundo dos banguês, todo um universo social movimentava-se a partir de sua ação. Com o Santa Rosa e o seu senhor enfraquecendo, como se portou Carlos de Melo, personagem que, de acordo com a tradição rural brasileira, deveria suceder seu avô no comando do engenho? As páginas do terceiro romance de José Lins nos mostra que o neto do senhor de engenho adotou uma postura de inação quanto ao iminente fim do engenho. Carlos de Melo assistiu passivamente o envelhecimento do avô e o início da ruína do Santa Rosa. A voz narrativa de Banguê retratou-o como um jovem preguiçoso, que passava horas e horas do dia na rede, lendo jornais e livros: “chegara dos estudos há mais de um mês e parecia que fôra hontem que desarrumara as minhas malas. Nem uma vez saíra para rever os meus campos. Só fazia esperar os jornaes; e a rede ringia nas correntes”528. Quando não estava em suas atividades de leitura, nosso personagem ficava a devanear projetos literários de escrever livros e artigos sobre sua parentela familiar. Em um dia, imaginava escrever um livro engrandecendo seus familiares senhores de engenho. No dia seguinte, mudava de ideia e almejava engrandecer os cabras do eito, glorificar aqueles que pegavam mesmo no pesado. O jovem não agia e o engenho ia progressivamente se desintegrando, carente de um senhor rural. 528 REGO, José Lins do. Op. Cit., 1934, p. 13 (B). 223 O que efetivamente tirou Carlos de Melo da rede e das suas leituras foi a vinda de Maria Alice, personagem que entrou na história para mostrar uma espécie de evasão do neto de José Paulino: “as carnes de Maria Alice me alimentavam bem. Saíra daquelle desespero de dois mêses atrás, pelos seus braços carnudos”529. A paralisia do jovem foi sacudida quando da chegada desta mulher ao engenho, vinda da Paraíba, a fim de curar-se com os ares campesinos de algumas moléstias. Tal qual Hortência de Senhora de engenho, Maria Alice chegou no Santa Rosa e encontrou a cura. E mais: encontrou também o sexo. Carlos de Melo e Maria Alice iniciaram uma relação adultera, que não durou muito tempo, pois logo o marido da moça voltou para buscá-la, fazendo Carlos de Melo voltar ao seu estado de inércia e de passividade. Na verdade, como apontou José Aderaldo Castello, Carlos de Melo encarnou uma figura que foi tema literário de muitas produções discursivas de fins do século XIX e início do século XX 530 . Trata-se do bacharel, jovem formado ou nas faculdades de Direito ou de Medicina do Brasil, que passou pelas principais capitais do país, conhecendo teatros, cafeterias e livrarias, bem como os vários ismos (positivismo, evolucionismo, socialismo, liberalismo, romantismo, entre outros) que embalaram a mente de muitos brasileiros da época. Literatos como Machado de Assis, Lima Barreto, Aluísio de Azevedo, Mario Sette e vários outros levaram para o plano ficcional essa figura que, sobretudo a partir da Proclamação da República (1889), começou a ganhar destaque na sociedade brasileira. O bacharel, visto como um doutor, jovem qualificado e merecedor de respeito, afeito a vida urbana e moderna, começou a assumir um espaço preeminente no seio de muitas famílias brasileiras, passou a ocupar vários cargos políticos e a chefiar negócios comerciais. Sinal de sua importância na sociedade brasileira está no fato de que, a partir do final do século XIX, tornou-se comum falar do Brasil como uma “república dos bacharéis”. Para homens como Gilberto Freyre e Luís Martins, o bacharel, seja em Direito ou em Medicina, era quem estava ocupando o posto de mando e autoridade no Brasil republicano, tal qual os senhores de engenho ocuparam no período colonial 531 . Sua presença cada vez maior e sua importância na sociedade creditou sua ida para as páginas literárias, como bem atestou Banguê. Porém, conforme veremos mais na frente, José Lins, assim como vários outros regionalistas- tradicionalistas, não se mostrou muito simpático a estas figuras, embora fizesse parte delas. 529 REGO, José Lins do. Op. Cit., 1934, p. 117 (B). 530 CASTELLO, José Aderaldo. Op. Cit., 1961, p. 130. 531 Ver: FREYRE, Gilberto. Op. Cit., 1936, p 302-279. e MARTINS, Luís. O patriarca e o Bacharel. São Paulo: Alameda, 2008. Luís Martins (1907-1981) foi um romancista e crítico literário carioca, que se tornou muito conhecido pelo ensaio referenciado nesta nota, onde desenvolveu a ideia de que a proclamação da República foi um ato de parricídio, no qual D. Pedro II representava o pai e os bacharéis os filhos insurretos. 224 A inatividade de Carlos de Melo, sua passividade para substituir seu avô doente no comando do Santa Rosa, explicar-se-ia pelo fato dele ser um bacharel, ou seja, um homem formado na cidade, nas escolas e faculdades, instruído para a vida urbana, jamais para a lida rural. A leitura de jornais e de livros, bem como os devaneios literários, são para o neto de José Paulino mais interessantes e instigantes do que o labor de banguezeiro. Em Banguê, José Lins criou um personagem meio que avesso ao engenho, sem jeito para os trabalhos exigidos pelo meio campesino: Encolhido na minha rede, deixava que o tempo corresse. Tomavam-me como um doente. Só podia ser mesmo doença aquelle recolhimento de dias inteiros. [...] Há quase um anno que estava ali e as noites não mudavam. As de inverno, mais dolorosas. Roncava a chuva lá por fora e cada vez mais me encolhia e me sentia só 532 . Carlos de Melo pouco lembra o Carlinhos solto e alegre de Menino de engenho. Longe de se alegrar com o engenho, ele se enfastia com a vida no Santa Rosa, passando a viver entediado, sem ímpeto. Ao contrário de Nestor de Senhora de engenho, Carlos de Melo não conseguiu reconciliar-se com a terra que lhe viu quando menino. A vida nas cidades, as experiências desfrutadas nas ruas recifenses, o ensino na Faculdade de Direito do Recife fizeram dele um corpo estranho em relação ao banguê, tornaram-no incapaz para a chefia rural. Carlos de Melo não se religando ao engenho como esperava, parece rascunhar a própria vida de José Lins do Rego, homem que também tentou se reconciliar com o engenho, na condição de senhor. Lembremos que o autor de Banguê, quando era um jovem recém formado em Ciências Jurídicas, lá pelos idos de 1924, pensou também em ser um senhor de engenho, assumindo o lugar do avô que naquela época tinha morrido recentemente 533 . Como o personagem criado, José Lins também não conseguiu ou não pôde tornar-se um senhor de engenho. Talvez por isso tenha dedicado boa parte de sua obra literária a romancear a vida dos engenhos. A literatura para o escritor paraibano aparenta ter sido o meio utilizado para fazer sua reconciliação com o seu passado banguezeiro. Com tal produção literária, boa parte dela dedicada ao mundo dos canaviais, assegurar-se-ia sua ligação com o universo patriarcal. A escrita acerca dos engenhos compensaria, assim, uma frustração pessoal e existencial, repararia um fracasso. 532 REGO, José Lins do. Op., Cit., 1934, p. 70 (B). 533 Essa informação está na carta de José Lins a Gilberto Freyre, de 30 de outubro de 1924. Fizemos a discussão do conteúdo desta carta no capítulo 1, mais precisamente no tópico 1.2 desta. 225 Se Carlinhos muito tem da infância agrária de José Lins, desfrutada no engenho Corredor, Carlos de Melo em muitos pontos refletiu a própria a mocidade do escritor paraibano, conforme já adiantamos. Assim como este, também formou-se na Faculdade de Direito do Recife, vivendo boemiamente na capital pernambucana. Conforme mostramos no primeiro capítulo da parte I desse trabalho, após bacharelar-se, José Lins também retornou ao engenho familiar, passando alguns anos nele, até decidir seu futuro. Assim, Banguê também apresentou traços autobiográficos, ainda que menores em relação aos romances anteriores. A memória pessoal de José Lins sempre contaminou seus primeiros escritos, constituindo-se como um dos alimentos para seu “ciclo da cana-de- açúcar”. Porém, de um modo geral e em concordância com boa parte da fortuna crítica, tal romance marcou o momento em que seu autor começou a se desligar mais da memória e das experiências pessoais, trabalhando mais a partir da imaginação ficcional do que de suas lembranças. Ao contrário de Menino de engenho e Doidinho, a produção literária de 1934 não foi tanto uma obra memorialística, pois encontramos nela a ficção de um drama não vivido por José Lins Rego, embora haja alguns paralelos. Carlos de Melo não é, em sua totalidade, o retrato de seu idealizador, como se a literatura fosse mero reflexo do literato. Tal personagem, como já apontamos, encarnou um tipo caricatural de bacharel, moço indeciso e sem jeito para a rotina rural, tipo social que José Lins conheceu e com o qual conviveu por anos a fio. José Lins desenhou uma radical alteridade entre o avô senhor de engenho, homem fincado e apegado à terra como uma árvore centenária, e o neto, jovem bacharel em Direito, criado na zona urbana, no turbilhão da cidade moderna. Um seria o legitimo patriarca, representante do potentado rural, ao passo que o outro seria símbolo da cidade, da sociedade urbana e moderna. José Paulino e Carlos Melo simbolizavam um conflito de gerações, um atrito entre dois tempos pintados como opostos. O primeiro seria o coronel dos tempos da escravidão e da sociedade senhorial, e o segundo seria o doutor dos tempos modernos. Para a elaboração destes dois personagens conflitantes, as ideias freyreanas presentes na conferência Apologia pro generatione sua parecem ter contribuído, com a diferença de que em Banguê o conflito não seria entre pai e filho, mas sim entre avô e neto. Tanto em Gilberto Freyre como em José Lins, avô e neto funcionam como que metáforas temporais, como se fossem símbolos de temporalidades distantes e opostas. Por conta dessa radical diferença entre avô e neto, foi que Carlos de Melo assistiu passivamente a progressiva decadência de José Paulino e do Santa Rosa. Aquele não seria como o patriarca, logo, não poderia substituí-lo. Como José Lins, o personagem Carlos, ao sentir a decadência do engenho, mostrou ter profunda consciência de que não poderia 226 comandar um banguê, por mais que ambicionasse e tentasse ser um senhor de engenho. Em resenha de 04 de julho de 1934 sobre Banguê, no jornal Estado da Bahia, Eugênio Gomes questionou se a situação de Carlos de Melo não representaria o drama de toda uma geração de jovens que não se mostrava apta ao governo do engenho. Para o crítico literário baiano, José Lins retratou um drama coletivo, uma situação social fatídica que acometeu várias famílias rurais do Brasil de fins do século XIX 534 . O historiador Evaldo Cabral de Mello, em um ensaio em que analisou a vida de dois senhores de engenho pernambucanos da segunda metade do século XIX, apontou que a questão da sucessão do comando do banguê era um problema recorrente em tal universo social. A partir da criação das faculdades de Direito e Medicina no Brasil, respectivamente em 1828 e 1832, bem como com o crescimento das cidades, inúmeras famílias rurais que viviam no e do engenho passaram pelo drama da sucessão no comando da empresa rural. Muitos pais envelhecidos viram seus filhos não continuarem a obra paterna, pois a chefia do engenho consistia em um aprendizado, dependia da internalização de certos códigos e posturas. Para esse aprendizado, para tornar-se um senhor de engenho, a vivência no meio rural era essencial, acompanhar o dia a dia do banguê era um imperativo para quem almejava ser um senhor de engenho. Em fins do Brasil Imperial, a diferença entre o pai fazendeiro e o filho bacharel chegou a tal ponto que frequentemente os primeiros julgavam que “os filhos jamais serão o que foram os pais ou o que estes supõem que foram”535. Havia uma desconfiança para com os descendentes, de modo que uma suspeita quanto ao futuro do engenho parece ter sido um elemento integrante da sociedade banguezeira. Evaldo Cabral de Melo conta em seu texto citado que Acióli Lins, um rico senhor de engenho coroado com o título de “Barão de Goicana”, após passar alguns engenhos para o seu filho, Sabia que o filho o desapontaria não só por ser quem era (um bacharel), mas porque a lógica patriarcal tende a fomentar a suspeita da incapacidade constitucional dos descendentes para a atividade prática. O chefe de família sendo propriamente insubstituível, seu desaparecimento levará o grupo à ruína 536 . 534 GOMES, Eugênio. Banguê. In: COUTINHO, Eduardo F.; DE CASTRO, Ângela Bezerra (Orgs.). Op. Cit., 1991, 262-266. 535 MELLO, Evaldo Cabral de. O fim das casas grandes. In: NOVAIS, Fernando. A.; ALECASTRO, Luiz Felipe de. (Orgs.) História da vida privada no Brasil: Império. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 419. 536 MELLO, Evaldo Cabral de. Op. Cit., 1997, p. 418. 227 O problema da sucessão rural apareceu de forma nítida no Congresso Agrícola do Recife de 1878. Entre as ideias veiculadas neste evento, uma em especial motivava os participantes: a criação de um ensino agrícola. Acompanhemos a seguir as palavras de um delegado do congresso anteriormente citado: Adaptem-se as escolas às localidades. O ensino é um meio, não um fim, por isso deve acompanhar o fim a que se propõe aquelle que os recebe. Si a escola é do campo, o ensino seja inclinado à agricultura e conhecimentos connexos. Acima da escola primaria devem estar escolas profissionais praticas, propriamente para os operários, agrícolas no campo 537 . É óbvio que a proposta de um ensino agrícola preconizada por muitos agricultores precisa ser vista a partir do problema da mão de obra, questão que se agudizava à medida em que se aproximava a Abolição. Porém, o ensino agrícola serviria tanto para o trabalhador que não tinha nenhum vínculo sanguíneo com o senhor de engenho quanto para o filho deste, indivíduo que, pela ausência de escolas no campo, migrava para a cidade, a fim de realizar a sua formação intelectual. As palavras citadas mais acima do delegado Manuel Balthazar Perreira podem ser vistas também sob a luz do problema da sucessão rural. Um filho formado em uma escola agrícola, voltada para o aprendizado de competências e de habilidades necessárias ao labor rural, e não em um ensino liberal, permitiria a substituição do pai ou do avô no comando do engenho. O romance de José Lins ora em apreço estruturou-se a partir do problema da sucessão do senhor de engenho. Carlos de Melo representou a anomia social dos filhos ou netos bacharéis que não conseguiram suceder o pai ou avô senhor de engenho. Tal personagem espelhou o momento histórico em que uma tradição patriarcal estava se decompondo, em razão da consolidação de uma sociedade industrial e urbana no Brasil. Indivíduo nascido e criado no meio rural, José Lins deve ter ouvido e presenciado muitas histórias como as que Evaldo Cabral de Melo apontou: o pai receoso do filho, o bacharel arruinando o engenho paterno. A decadência do banguê iniciar-se-ia a partir daqui, ou seja, no momento em que o senhor de engenho olhava para sua descendência e não vislumbrava mais um continuador, um herdeiro. Entre o avô patriarca e o neto bacharel, entre José Paulino e Carlos de Melo, entre José Lins Cavalcanti de Albuquerque e José Lins do Rego, insinuou-se a decadência do mundo açucareiro. 537 Citado por DIÉGUES JUNIOR, Manoel. O banguê nas Alagoas. Maceió: Edufal, 1980, 141. 228 Sendo assim, quando o Santa Rosa perdeu seu grande chefe, a decadência do engenho já estava se processando, a célula da ruína já tinha se instalado em seu corpo, corrompendo suas partes. A falta de um continuador para compensar a velhice do senhor de engenho, a ausência de um homem para empunhar a vara de comando do coronel, colocou o banguê na rota da dissolução. José Lins delineou a derrocada do engenho antes mesmo da morte do senhor banguezeiro. José Paulino morto, findado o patriarca do Santa Rosa, restará a Carlos de Melo não só o domínio do engenho, como também a necessidade de lutar contra o fim desta espacialidade. Caberá ao bacharel o posto de senhor de engenho e a missão de evitar a decadência do banguê. A herança que recebia era, pois, de decadência. 6.3 O senhor de engenho postiço: o fim do Santa Rosa A morte do avô de Carlos de Melo o tirou da rede e das leituras. Seguindo o costume rural, o bacharel resolveu tentar ser senhor de engenho, chefiando o Santa Rosa. O narrador- personagem de Banguê nos informou que seu tio Juca tentara comprar o engenho, mas o herdeiro direto desta espacialidade recusou peremptoriamente a proposta: “não haveria dinheiro que me levasse o engenho”538. Mesmo a propriedade estando em processo de débâcle, não cogitava-se a sua venda, pois ela era como um bem um familiar, uma herança a ser preservada e passada a frente. O Santa Rosa não poderia passar para mão de outros. Entre o capital e a família, Carlos de Melo optou pelo segundo. Porém, progressivamente, precisou ir revendo sua posição, ante a decadência do engenho cada vez mais certa. O neto substituiu o avô no comando do engenho, todavia, a decadência do Santa Rosa não foi revertida. Continuava a propriedade açucareira na rota da dissolução, mesmo com a mudança de senhor de engenho. Assim é descrito o processo de decadência do engenho após Carlos de Melo assumir sua direção: Há três anos que o Santa Rosa safrejava com o seu novo dono. E estava quase de fogo morto. O que fizera para isto? Não sabia explicar o meu fracasso. Botava para cima do feitor, o feitor Nicolau. Culpava o preço do assucar, o alambique furado e os tubos velhos. Um engenho daquelle com safra de quinhentos pães! E as cannas no matto, e uma carta da Casa Vergara falando na conta que estava crescendo. [...] O eito parecia o do seu Lula, com dez homens somente. Vendera bois de carro para fazer dinheiro 539 . 538 REGO, José Lins do. Op. Cit., 1930, p. 180 (B). 539 REGO, José Lins do. Op. Cit., 1930, p.182-183 (B). 229 O neto de José Paulino não conseguia reverter a situação fatídica do seu engenho familiar. Até dívidas comerciais, resultadas de empréstimos, conseguiu obter. Aqui José Lins pontilhou um imperativo social muito comum para os engenhos do Brasil republicano: a necessidade de empréstimos. Segundo Peter Eisenberg, a partir de 1870, mais ou menos, engenhos do tipo banguê só conseguiam-se manter graças aos auxílios estatais ou aos empréstimos conseguidos junto a firmas comerciais. Para continuar safrejando com a quantidade exigida pelo mercado açucareiro nacional ou internacional, os banguês precisavam adquirir maquinário necessário (moendas, caldeiras e tachos, por exemplo). A cultura da cana, ao contrário da de algodão, demandava certos investimentos, possuía um custo considerável para cobrir todo o processo de produção do açúcar, o qual ia desde a extração da matéria-prima até o branqueamento do açúcar. Como muitos senhores de engenho não tinham um capital de reserva, guardado para sanar alguns problemas urgentes, a solução era a contração de um empréstimo, o que acarretava, a longo prazo, o agravamento da crise do engenho 540 . Não foram poucos os engenhos que sucumbiram diante de dívidas comerciais, que, nos termos celebrados por Gilberto Freyre, acabaram submissos à praça, isto é, às firmas comerciais e bancos encarregados de fornecer empréstimos a agricultores. Na verdade, no engenho ficcionado por José Lins, a dívida comercial adquirida junto a determinadas entendidas comerciais era apenas mais um sintoma da decadência do banguê. Enquanto José Paulino era vivo, a controlar dia a dia o seu engenho, a necessidade de empréstimo nunca apareceu. O velho senhor de engenho não se dobrava diante de ninguém. Foi só Carlos de Melo assumir o Santa Rosa para pulularem nas páginas de Banguê imagens decadentistas. Com o novo senhor de engenho, eis a dizibilidade e visibilidade decadentista: o mato crescia mais alto que as canas, o eito ficava praticamente despovoado, os bois e as vacas empalideciam de magreza, as tachas e as moendas enferrujavam, a casa grande, um símbolo patriarcal, ficava suja, com buracos na parede e telhas a despencarem do alto. Era a decadência do engenho, nua e crua, acelerada pelo governo de um senhor rural postiço. Nesse sentido, o romance de José Lins juntava-se a uma gama de discursos que, desde o início da primeira República, construíam uma imagem decadentista do mundo dos engenhos, como se este universo social fosse o espaço da decadência por excelência da sociedade brasileira republicana. 540 EISENBERG, Peter. Op. Cit., 1977, p.40. 230 Segundo Iranilson Buriti de Oliveira, a decadência do patriarcado, noção tão usada e abusada pela historiografia, inclusive na atualidade, não constitui um fato em si mesmo, um referente externo absoluto que só precisaria ser verificado ou constatado. Na verdade, em concordância com aquele historiador, a decadência dos engenhos seria um dispositivo imagético-discursivo criado pela açucarocaria em fins do século XIX e prelúdio do século XX, a fim de preservar seu domínio secular ante as forças sociais que lhe ameaçava. O crescimento das cidades diminuindo a zona rural e atraindo a população desta área, a expansão das usinas produzindo açúcar em maior quantidade e o progressivo crescimento da produção cafeeira, deixava tal grupo social temeroso e receoso de perder seus territórios e privilégios seculares 541 . Senhores de engenho nortistas, intelectuais e políticos ligados à oligarquia banguezeira, forjaram-se enquanto decadentes e em declínio, a fim de obterem mais recursos públicos e, assim, preservarem seus domínios. A decadência presente em muitos discursos não deve ser tomada como uma simples tradução de uma situação real. Frequentemente faz-se de uma crise ou de um abalo econômico, uma situação de decadência. O mundo dos engenhos, em especial, sempre sofreu com crises e abalos, assegura-nos Iranilson Buriti de Oliveira, e a prova de que sua decadência pode ser relativizada é a existência de engenhos banguês até fins do século XX. A decadência rural não deixava, assim, de ser uma invenção interesseira, um estratagema político, fabricado pelas oligarquias da região hoje chamada de Nordeste. Na literatura de engenho também podemos encontrar diversos discursos decadentistas sobre o universo dos engenhos. Antes mesmo de José Lins com seu Banguê, seu amigo e companheiro de rodas literárias, Jorge de Lima, produziu em fins dos anos 1920 um poema significativamente denominado de Banguê, no qual apresentava o desaparecimento de “um banguezinho do país das Alagoas”542. O poema todo trata o desaparecimento dos engenhos como se fosse algo já dado, clarividente e inquestionável. Jorge de Lima, que também passou momentos da sua infância em um engenho, parece ter tomado como ponto de partida para a sua produção poética em questão a decadência dos engenhos: Cadê você meu país de banguês? Cadê sua casa grande, banguê, 541 OLIVEIRA, Iranilson Buriti de. Gritos de vida e morte: a construção da ideia de decadência do patriarcado rural nos discursos da Primeira República. Dissertação. Programa de pós-graduação em história da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Recife, 1997. Esse parágrafo e o seguinte baseiam-se neste trabalho. 542 Não podemos deixar de assinalar coincidência de títulos entre o romance de José Lins de 1934 e poema de Jorge de Lima. Talvez, o título de Banguê tenha sido sugestão do poeta alagoano, grande amigo de José Lins. 231 Com suas Dondons, Com as Têtês, Com as suas Bensbens, Com as suas donas alcoviteiras? Com os seus tôstôs e seus pipius corredores de Cavalhadas? E as suas molecas catadoras de piolhos, E as suas negras calus, que sabiam fazer munguzás, manuês, cuscuz, E suas sinhás dengosas amantes dos banhos de rio E de redes de franja larga! Cadê os nomes de você, Banguê? 543 Para o erudito maceioense, o banguê já não estaria mais presente, seria como que uma espacialidade sem lugar, sem existência. Embora no Brasil de fins da Primeira República não fosse lá muito difícil encontrar engenhos, já que até mesmo em Alagoas contabilizava-se 482 engenhos banguês 544 , Jorge de Lima fala como se as propriedades canavieiras fossem algo não em extinção, mas sim já extintas, fora do seu tempo. Daí a pergunta sobre o banguê e sobre seus tipos característicos, como se o poeta olhasse ao redor e não vislumbrasse mais todo o universo físico e social dos engenhos. Nesse poema de Jorge de Lima, fica evidenciado claramente o quão o engenho foi forjado como algo do passado, como uma espacialidade pretérita cujo presente é de ruínas. Assim como a literatura de engenho construiu a grandeza do engenho, fabricou também a decadência desta espacialidade, tratando-a como já extinta, extemporânea, mesmo quando aquilo que chamamos de realidade aponte para o contrário. José Lins, conforme estamos mostrando nesta dissertação, tratou de fixar as duas imagens do engenho: o Santa Rosa como um reino grandioso e o Santa Rosa em processo de declínio, de ruína, como espaço da decadência. Seu romance de 1934 dever ser encarado como mais um discurso produtor da decadência banguezeira. Não vemos Banguê como um documento sobre o desmoronamento da sociedade patriarcal, mas sim como um discurso que, ao enunciar e anunciar o fim de uma propriedade açucareira nordestina, produziu mais uma imagem decadentista e saudosista do engenho. Em vez de relato-testemunho, enfatizamos em Banguê a dimensão de um relato criador, produtor de espacialidades em ruínas. Tanto no engenho forjado como um espaço grandioso quanto como um espaço da decadência, podemos observar a saudade como um elemento central, presente nas duas construções discursivas. O sentimento de saudade, o desejo de que o passado volte a ser 543 DE LIMA, Jorge. Poesia Completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1997, p. 162-163. 544 Em Pernambuco, principal centro da modernização açucareira, encontrava-se até 1940 um número de 697 engenhos banguês. Para mais informações, ver: FALCÃO, Martha Maria de C. Santana. Nordeste, Açúcar e Poder. João Pessoa: UFPB, 1990, p. 237. 232 presente, marcou profundamente a construção simbólica que José Lins empreendeu do engenho. Louvando ou catando os cacos da sociedade patriarcal, o escritor paraibano demonstrou sua saudade pela época banguezeira. Seus romances são verdadeiros cantos nostálgicos por um período pretérito. O senhor de engenho em cima de um cavalo a dar gritos em todos, a casa-grande destacando-se na paisagem arbórea, as negras na cozinha e os cabras do eito pingando de suor sob o sol da labuta diária, são as imagens escritas de uma mente saudosa do engenho. Na glória e na ruína, o engenho foi fabricado como espaço da saudade. José Lins, com seus romances, potencializou a dimensão saudosista que existia nos escritos de Joaquim Nabuco e Mario Sette. Ao contrário de boa parte dos discursos vinculados a literatura de engenho, Banguê mostrou o fim do engenho não tanto a partir da concorrência e competição impossíveis com as usinas, mas sim a partir de um processo de ruína interna ao próprio mundo do engenho banguê, gestado pela ausência de comando, pela ausência de uma figura de chefe que pudesse dar sequência a ordem social anterior do qual o engenho fazia parte, em suma, como resultado da falta de habilidade e de condições subjetivas de mando da figura indolente de Carlos de Melo. O Santa Rosa ruiu devido a um senhor de engenho postiço estar em seu comando, em sua chefia. O neto de José Paulino, formado nos bancos da faculdade e nas ruas do Recife, foi o protagonista da decadência, pois não possuía as habilidades e as competências necessárias para governar o engenho. Ele era aquele que “gostava da rede. Às vezes, enquanto o sol queimava nos meios-dias, ficava aos balanços, ouvindo estalar os canários na gamelleira” e “quase sempre acordava com o sol alto”545. O jovem bacharel e senhor de engenho recolhia-se preguiçosamente para dentro da casa grande, deixando boa parte dos serviços para o feitor. Com isso, com esse mau governo, o engenho foi cada vez mais se aproximando do fim: A verdade dura, porém, era esta: o Santa Rosa qualquer dia faria parelha com o Santa Fé do seu Lula [engenho de fogo morto]. Havia quase myistério nestas decadencias. Tudo era para que eu fôsse para frente. Terra bôa, mocidade e dinheiro no bolso. E terra para tudo. Se gastasse em farras, passando bem, botando raparigas na cama, se explicava. Em que diabo ia embora meu dinheiro? 546 Com o progressivo fim do engenho, Carlos de Melo convenceu-se de sua incapacidade para a chefia do engenho. Fizesse o que fizesse, tentasse imitar o avô, tudo seria em vão, ante a falta de uma espécie de ethos rural necessário para o bom governo da propriedade 545 REGO, José Lins do. Op. Cit., 1934, p. 184-185 (B). 546 REGO, José Lins do. Op. Cit., 1934, p. 186 (B). 233 açucareira. Somente pessoas capacitadas, criadas e vividas no meio rural, seriam capazes de comandar o engenho. Esta espacialidade como que exigia autênticos senhores de engenho, coisa que Carlos de Melo não era de maneira alguma. E assim, o bacharel, deitado macuínamente em sua rede, onde nem mais lia livros e jornais, entregou-se a uma postura de inação, inércia total, como se a decadência do engenho fosse uma força histórica contra a qual não se poderia lutar. De fato, Banguê, ao romancear o desaparecimento do patriarcado e do engenho, pareceu apoiar-se em uma certa visão fatalista da história. Em História e Memória, Jacques Le Goff apontou a existência de uma relação entre a noção de decadência e uma certa visão da história. Nas palavras do historiador francês, “o conceito de decadência foi inventado para ler o movimento em história”547, ou seja, tal categoria, ao ser usada, indiciaria uma leitura da história, uma dada concepção do transcorrer dos acontecimentos passados. Nesse sentido, detectamos em Banguê uma visão organicista e escatológica da história: depois da ascensão e do apogeu do patriarcado, chegava-se ao seu fim inescapável. Com tal fenecimento, ruía-se o engenho e seus tipos sociais característicos. A noção de decadência, assegura-nos Le Goff, só faz sentido se pensada em concomitância com a noção de progresso: existe o declínio porque antes houve o apogeu. Após os tempos áureos do Santa Rosa, descritos em Menino de engenho, surgia o desmoronamento de tal espacialidade, conforme estamos mostrando. A decadência do banguê seria algo certo, inelutável. Em muitos momentos do romance, Carlos de Melo foi mostrado como esmagado e espremido por essa visão fatalista da história. Não haveria como lutar ou resistir contra as forças da decadência. Daí porque, nas últimas páginas da produção literária, o senhor de engenho fracassado entregou-se a uma completa e total paralisia, conforme podemos entrever a partir da citação a seguir: “o engenho inteiro era uma desordem. A canalha do Pilar não comprava mais lenha. Invadiam as minhas terras, botavam roçado sem meu consentimento. E nada disto me importava. Despedaçassem tudo, que era o mesmo”548. Carlos de Melo, esperando já o fim da história, nada mais fazia e com nada mais se importava, apenas aguardava a tragédia certa. A noção de decadência em Banguê, portanto, ancorou-se em uma leitura determinista e sombria da história, como se esta fosse uma força que se movia à revelia dos indivíduos. 547 LE GOFF, Jacques. Decadência. In:______. História e Memória. Campinas. São Paulo: Editora da Unicamp, 2013, 381. 548 REGO, José Lins do. Op. Cit., 1934, p. 304-305 (B). 234 Intimamente relacionado a tal concepção de história, temos ainda nos últimos capítulos do livro uma atmosfera claustrofóbica, em razão do senhor de engenho postiço trancafiar-se na casa grande. Aceitando a decadência como algo inevitável, Carlos de Melo passou a viver melancolicamente em lugares pequenos e apertados. Aqui, destacam-se três lugares: o alpendre, a rede e o quarto. Como bem percebeu Luciano Trigo, a geografia da casa grande do Santa Rosa, nos momentos de agonia final do engenho, reduziu-se àqueles três lugares, com Carlos de Melo sentindo-se, quase sempre, encolhido, espremido e esmagado pelas forças tectônicas da história 549 . A partir da decadência, o engenho virou uma geografia em ruínas, sem espaço aberto e livre, tudo pressionado pelo fim iminente. O senhor de engenho bacharel escolhia-se na rede e no alpendre para ruminar seus pensamentos mirabolantes: escrever um livro, plantar algodão, largar tudo ou ir morar no estrangeiro. Utilizava o quarto como refúgio, com medo de um possível ataque de Zé Marreira, lavrador de seu engenho que acabou ascendendo e tornando- se senhor de engenho, bem como do seu tio Juca, o parente interessado na propriedade. A existência do personagem se resumia, cada vez mais, a esses lugares claustrofóbicos. O medo, a paralisia e os devaneios definem o perfil de Carlos de Melo, um senhor de engenho em agonia. Na vacância do lugar de comando, com as tarefas não sendo realizadas pelo novo senhor de engenho do Santa Rosa, entrou em cena um personagem que participa do enredo justamente para agravar ainda mais a decadência do engenho: José Marreira, lavrador da época de José Paulino. Enquanto o neto ficava prostrado, aceitando passivamente o fim de sua propriedade, o trabalhador rural aproveitou para crescer e fortalecer-se, tirando proveito da situação de falência. A situação chegou ao ponto de Carlos de Melo, o senhor de engenho, dever dez contos a José Marreira, o simples lavrador. No declínio do engenho, as hierarquias sociais, outrora bem delimitadas, embaralhavam-se e até invertiam-se. Um pequeno pedaço de terra, bem cuidado e bem trabalhado, conseguia render mais cana do que todo um vasto território. Na verdade, o antigo lavrador de José Paulino conseguiu ser o senhor de engenho que Carlos de Melo não foi. Aos poucos, no vazio de governo do engenho, José Marreira foi conquistando poder e ganhando direitos. Até que 549 TRIGO, Luciano. Engenho e memória: o Nordeste na ficção de José Lins do Rego. Rio de Janeiro: Topbooks, 2002, p. 197. 235 O Santa Rosa dividia-se em duas partes. E Zé Marreira mandava num pedaço. Os cabras de Zé Marreira só trabalhavam para elle. Os bois de Zé Marreira mais gordos do que os meus. Até o prestígio da casa-grande passava-se para a casa do moleque. Tio Juca parava na sua porta, o povo do pilar só vivia lá. Na última festa que dera vinha gente até da Parahyba. O capitão Zé Marreira crescia às minhas custas 550 . A ascensão do ex-lavrador indiciava a derrocada do engenho e a fraqueza do senhor bacharel. Carlos não sabia retirar da terra o que ela poderia dar, não sabia fazer o que um simples lavrador sabia realizar. José Lins teceu aqui mais uma oposição entre aquele que é criado trabalhando na terra e aquele outro que apenas vivenciou uma idade pueril no engenho. Um conheceria a terra e saberia crescer a partir dela, ao passo que o outro não saberia o que fazer com ela. E o resultado era a ruína do Santa Rosa: José Marreira deixou a antiga propriedade de José Paulino e comprou o Santa Fé, tornando-se um senhor de engenho e deixando o Santa Rosa completamente abandonado. Porém, o problema do Santa Rosa não era só um lavrador ascendente que fazia frente ao senhor de engenho. José Lins urdiu uma situação onde o fim do engenho ecoou por todos os lados. No mesmo momento em que José Marreira ascendia, crescia também as dívidas financeiras do engenho, fruto de empréstimos contraídos junto a firmas comerciais, como a Casa Vergara. Eis a situação devedora do engenho: “estava atrasado. Vergara queria saber da safra futura. Mandaria um caixeiro para examinar e tomar nota do que eu esperava fazer. Viria da cidade um sujeito qualquer espreitar-me, dando-me ordens, sómente porque me mandava charque e bacalhau a crédito”551. Os cobradores, indo bater na porta da casa grande, cobrando as dívidas, indiciaria a própria falência do engenho, outrora um espaço autossuficiente, independente, que dependia somente de si para sobreviver e existir. Com um senhor de engenho postiço, a situação mudava, de modo que os comerciantes urbanos eram agora vitais para o funcionamento do banguê. O engenho submetia-se rancorosamente à cidade, à “invasão” de indivíduos que viviam na cidade e que trabalhavam em entidades comerciais, em suma, tal espacialidade começava a se submeter ao jogo capitalista: empréstimo dado, dívida cobrada. O banguê perdia seus prestígio e seus privilégios. No discurso ficcional de José Lins do Rego, podemos detectar o mesmo tom judicativo e rancoroso presente no discurso sociológico de Gilberto Freyre, quando se trata do processo histórico de falência do universo rural e ascensão do meio urbano. Também vinculado a 550 REGO, José Lins do. Op. Cit., 1934, p. 209 (B). 551 REGO, José Lins do. Op., Cit., 1934, p. 190 (B). 236 literatura de engenho e lançado dois anos após Banguê, Sobrados e Mucambos atestou também uma certa insatisfação quanto a subordinação do engenho à cidade: os engenhos, lugares santos donde outrora ninguem se approximava sinão na ponta dos pés e para pedir algumas coisa – pedir asylo, pedir voto, pedir moça em casamento, pedir esmola para festa de igreja, pedir comida, pedir côco d’agua para beber - deram para ser invadidos pelos taes agentes de cobrança, representantes de uma instituição arrogante da cidade - o Banco – quasi tão desprestigiadora da majestade das casas-grandes. 552 Como o engenho seria um espaço sagrado, conforme já nos mostrou Senhora de engenho, os representantes comerciais, indo cobrar dívidas, cometeria uma espécie de sacrilégio, um ato de profanação. Dado a pretensa sacralidade e soberania dos engenhos, José Lins e Gilberto Freyre aparentam pensar que tais espacialidades estariam imunes de cobraças, isentas do jogo capitalista. Daí o tom o ríspido com o qual descrevem as práticas comerciais interpelando os engenhos. Os discursos de José Lins e Gilberto Freyre expressaram uma situação muito comum na sociedade brasileira de sua época: a subordinação rural ao capitalismo financeiro 553 . Desde fins do século XIX, quando os engenhos centrais e as usinas chegaram ao campo, a fim de aplicarem processos de modernização na produção açucareira, os senhores de engenho foram se submetendo a lógica capitalista. Tais homens precisavam agora se submeter ao jogo do capital, não podiam mais ignorar as cidades nem muito menos as firmas comerciais, como ocorrera no período colonial. Desde pelo menos 1808, quando a família real lusitana chegou ao Rio de Janeiro e fez desta capital uma importante praça comercial, que as cidades brasileiras foram progressivamente deixando de ser meras extensões do potentado patriarcal. O engenho de fins do Oitocentos, para continuar produtivo, precisava de equipamentos e instrumentos técnicos necessários para uma produção açucareira rentável. Não raro, esses materiais eram adquiridos a partir de empréstimos financeiros, concedidos por empresas da cidade de acordo com suas tabelas de juros, uma vez que a renda do senhor, obtida com o açúcar, nem sempre dava para aparelhar a propriedade agrária. E assim o capitalismo financeiro, para a ira de homens como José Lins e Gilberto Freyre, foi cercando as propriedades canavieiras, exigindo delas o pagamento dos empréstimos, assim como era feito com qualquer cliente. Precisamos lembrar também que a produção açucareira constituía-se como uma produção um tanto quanto irregular, nem sempre dando lucros altos. Como toda 552 FREYRE, Gilberto. Op., Cit., 1936, p. 49. 553 Várias obras trataram sobre este assunto. Nossos comentários foram baseados em: EISENBERG, Peter L. Op. Cit., 1977. ANDRADE, Manuel Correia de. Op. Cit.,1989. E SANTOS, Gladson de Oliveira dos. José Lins do Rego e a modernização da economia açucareira nordestina. Dissertação. Programa de pós-graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Natal, 2010. 237 produção agrícola, dependia de vários fatores, como o mercado, a mão de obra, o clima, as matérias-primas etc. Nesses momentos de crise, era comum que os senhores de engenho recorressem aos empresários capitalistas, figuras cada vez mais comuns no Brasil de final do século XIX e décadas iniciais do século XX. Tal qual muitos senhores de engenho da República Velha, Carlos de Melo também não conseguiu quitar suas dívidas. Com um engenho praticamente de fogo morto, ficou impossível honrar os compromissos financeiros. Para evitar que o Santa Rosa tombasse por dívida e cai-se nas mãos de estranhos, o que seria uma profanação do espaço familiar, o jovem senhor de engenho decadente decidiu vender a propriedade rural para seu tio Juca, que também era filho de José Paulino. Após fechar o negócio, que compreendia o pagamento das dívidas do Santa Rosa e mais 300 contos a seu sobrinho Carlos, o tio usineiro expressou em poucas palavras uma das grandes “verdades” do romance: “ – você pode ainda advogar e fazer carreira. Nem todo mundo tem jeito para a agricultura”554. Carlos de Melo não teve jeito para o engenho, por isso viu um lavrador enricar às suas custas e as dívidas multiplicarem-se, sem nada fazer diante de tudo isso. Assim, só restava-lhe como futuro a advocacia, o caminho que um bacharel deveria naturalmente trilhar. O posto de senhor de engenho, a chefia de uma propriedade canavieira não seria para bacharéis como Carlos de Melo. No espaço onde Carlinhos crescera, teríamos agora uma usina. Em vez de um senhor de engenho, teríamos um usineiro. Ao invés de um bueiro, a paisagem contaria com uma chaminé. O Santa Rosa transformar-se-ia na usina do tio Juca. Assim findou-se a história do Santa Rosa, história essa que expressou, em certa medida, o próprio fim de vários engenhos de fins do século XIX e décadas iniciais da era seguinte. O engenho acabou não resistindo e sendo suplantando por novas unidades produtivas, mais modernas e desenvolvidas, condizentes com o Brasil republicano que se queria moderno, avante na marcha do progresso. Nesse sentido, o final de Banguê foi sintomático do próprio processo que fez o engenho sucumbir. Como em Menino de engenho, o romance de 1934 encerrou-se com Carlos de Melo afastando-se de suas terras a bordo de um trem. Vejamos o desfecho do livro: Da janela do vagon via o Santa Fé novo em folha, com a casa-grande espelhando, ao sol. Depois o Santa Rosa ficando de longe. O trem já apitava na curva do caboclo. O bueiro, as cajazeiras, os mulungus da estrada ficavam. Tudo ficava para trás. [...] O cemitério de São Miguel de Itapú se 554 REGO, José Lins do. Op. Cit., 1934, p. 307 (B) Grifos nossos. 238 mostrava do alto com as suas cruzes velhas. Mandaria levantar um túmulo bonito para Nicolau. O trem corria. Tudo ficava para trás. Um túmulo bonito para Nicolau 555 . Após fixar-se na casa grande (grande símbolo do engenho) do Santa Fé, no bueiro e na natureza verde que arredondava o Santa Rosa, a voz narrativa concentrou-se no cemitério, estabilizando-se no túmulo do feitor que tanto trabalhou e ajudou seu senhor. Do trem em movimento, contemplava-se a própria morte do banguê, de uma estrutura férrea moderna constatava-se o fim do patriarcado. Coincidência? Não. O desligamento do universo rural, o desencaixe com o engenho, o arremate de uma tradição, foi significativamente produzida a partir do trem, tal qual ocorreu antes com o romance de 1932. O trem, símbolo do progresso e estrutura responsável pela desterritorialização de muitos brasileiros da época de José Lins, parece estar presente no final de Banguê para comprovar a primazia da sociedade industrial. Enquanto o engenho ficava na paisagem, mostrando-se cada vez mais distante e pequeno, o trem passava, trafegava rapidamente sobre os trilhos e seguia despreocupadamente seu rumo. Segundo Hélder Viana, em um estudo onde articula técnica e percepção espacial, o trem, atravessando vários lugares e permitindo a locomoção das pessoas e das mercadorias por regiões distantes, encarnaria fortemente a modernidade cinética 556 . Em 1930, em quase todas as capitais do Brasil, a Great Western e empresas similares de trafico férreo apresentavam-se na paisagem urbana e rural da sociedade. Nessa época, o apito do trem já começava a rivalizar com o sino da igreja, como sendo um dos sons mais conhecidos e familiares para a população citadina. Assim, José Lins colocou um objeto que simbolizava sua época para contrastar com uma espacialidade que ficava no passado. O trem seria o presente, o futuro, e o engenho seria o passado. E assim o Santa Rosa, tal qual seu idealizador, José Lins do Rego, foi ficando perdido num tempo pretérito que o trem deixava para trás. Tão significativo quanto o trem, temos também no final a referência à construção de um túmulo a Nicolau, personagem de Banguê que representa as relações sociais ditas solidárias e afetivas existentes no engenho. Nicolau foi o feitor de Carlos de Melo, homem trabalhador que aguentou a decadência do engenho e que acabou morrendo em razão de sua fidelidade ao senhor de engenho. Nicolau era quem exigia trabalho e dinheiro dos moradores do Santa Rosa, e, ao realizar seu trabalho, acabou sendo assassinado por um morador do 555 REGO, José Lins do. Op. Cit., 1934, p. 310 (B). 556 VIANA, Hélder. Espaço. In:____. Técnica, tecnologia e artefato: ensaios de aproximação. Natal: Edufrn, 2012, p. 150. 239 engenho. A ideia de um túmulo para Nicolau, posta no final por José Lins, vem nos falar do próprio fim das relações paternalistas entre senhor e trabalhador, da própria morte da antiga subserviência social que existia no banguê. Com Nicolau morto, enterrava-se a suposta solidariedade entre as classes sociais do universo patriarcal. Ecoou aqui uma nota saudosista pelas relações trabalhistas de outrora, quando o trabalhador rural servia com amor e fidelidade ao seu senhor, sendo até capaz de dar a vida por ele. Construindo um túmulo para Nicolau, teríamos a monumentalização do passado, erguido agora à condição de símbolo, de monumento posto como um lugar de visitação, onde as pessoas poderiam prantear o morto. O personagem mereceria um mausoléu bonito porque encarnaria aspectos positivos da sociedade patriarcal, universo social bem diferente da sociedade burguesa que se afirmava no Brasil da época, no qual o trabalhador vendia sua força de trabalho por dinheiro, agindo sem nenhum sentimento, apenas por necessidade. Com esse ato, José Lins acabou produzindo uma glorificação das antigas relações sociais paternalistas e personalistas, afirmando mais uma vez o engenho como uma comunidade afetiva e harmônica, típica imagem da literatura de engenho. Um túmulo para Nicolau era, assim, um túmulo para o banguê, para o passado, para a história que ficou para atrás e que José Lins estava agora a contar. A obra literária do escritor paraibano pode ser vista como uma sepultura do passado patriarcal, páginas literárias que deram um túmulo ao morto e, assim, asseguraram sua memória, sua história, sua revisitação, seu culto. 6.4 Com suspiros de saudade: a crítica social de Banguê Para a derrocada do engenho Santa Rosa, a figura de um bacharel foi fundamental. Em Banguê, José Lins arquitetou e teceu uma história ficcional na qual a propriedade açucareira entrou em declínio justamente porque um indivíduo não conseguiu ou não pôde suceder à altura seu avô, mostrado como um legítimo e autêntico senhor de engenho. Nesse enredo, vemos muito mais do que uma simples história, assim como na literatura vislumbramos muito mais do que uma simples prática de distração social. Acreditamos que, com a trama da produção literária de 1934, o escritor paraibano deixou um no ar uma certa crítica social, um dado ataque aos membros de sua geração. Com Carlos de Melo fazendo decair o engenho, José Lins armou uma ofensiva contra a sua sociedade moderna e urbana, mais precisamente, contra aqueles que, formado nos bancos das faculdades, estavam fazendo todo um universo pretérito ruir. 240 No personagem que sucedeu José Paulino no comando do engenho, parece haver uma construção discursiva que censura a classe dos bacharéis, grupo social que José Lins conhecia muito bem, dada a sua formação na Faculdade de Direito do Recife e o seu contato ao longo da vida com vários acadêmicos. Não foi gratuitamente e desinteressadamente que o romancista nordestino retratou Carlos de Melo como um jovem preguiçoso, inerte, indeciso e avesso ao mundo rural. O neto de José Paulino seria um anti-herói, protagonista da decadência do banguê, aquele indivíduo que fez de sua terra familiar, outrora grandiosa e prospera, um espaço da decadência. No Brasil da época de José Lins, e desde o período Imperial, o bacharel representava o progresso, a esperança da nação de alçar-se ao patamar das grandes civilizações do mundo moderno. Tal figura, com seu saber acumulado durante quatro ou cinco anos de estudo, simbolizava a luz que iluminaria os recônditos bárbaros e selvagens do Brasil, e que traria em sua mente o progresso da cultura para as áreas rústicas do país. Reagindo contra essa imagem otimista, veio José Lins com seu Banguê, como que passando o seguinte recado: “o bacharel não está trazendo progresso, mas sim ruína”. Tal figura social, que fazia do engenho um campo de férias, estaria condenando o passado patriarcal ao desaparecimento, ao aniquilamento físico. Ela seria o responsável pelo fim da tradição dos senhores de engenho, aquele que estava pondo uma pedra em cima de um passado de gloria. Em Banguê, encontramos diversas páginas que compararam o patriarca e o bacharel. Desnecessário dizer que, nessas comparações entre os dois tipos sociais, o primeiro sempre saiu ganhando, mostrado como superior ao segundo. Vejamos sobre isso uma longa, porém necessária, passagem: Fui até a sala de visitas e olhei o meu avô, no quadro da parede. O olhar bom, a cara sem malícia alguma, o homem que em oitenta annos gritou por ali, mandou, fez e desfez por sua própria conta. Pode ser que tenha existido outro senhor de engenho com mais luxo, mais talheres de prata, mais força do que elle. Nenhum, porém, chegava à sua altura na condescendência com a sua gente. Fora um explorador do braço alheio, com mais coração do que os outros. Eis acima o elogio do avô, dito e visto como uma criatura grandiosa e bondosa, que sabia comandar seu povo e governar seu engenho. Agora passemos para o neto bacharel: O neto era fraco para tudo. Por uma mulher, correra como uma besta no cio pelo engenho; por causa de um negro, escovava as portas, botava cabras pra dormir com ele. Por que não herdara do velho Zé Paulino aquella serenidade, o seu vigor para a acção, a sua consciência, a confiança no que fazia? Nunca 241 um cabra ergueu a voz para ferir a sua dignidade, nunca questionou com ninguém. Os limites das suas propriedades não se contestavam 557 . Radicalmente diferente do avô, o neto acadêmico foi forjado como um fracote, indivíduo que não herdou as qualidades másculas e viris do patriarca. Do avô para o neto, haveria um claro processo de enfraquecimento, de perda da virilidade. O primeiro foi capaz de comandar e sustentar o engenho, ao passo que o outro não conseguiu lidar nem com um simples lavrador. A condenação ao bacharel veio logo após o elogio do patriarca, a fim de mostrar-se, de forma clara, a superioridade desta figura social. O repúdio ao bacharel, a marca de uma geração que representava o progresso, fez José Lins forjar um personagem que frequentemente duvidava de sua masculinidade. A passividade, o temor, a indecisão e a própria formação intelectual de Carlos de Melo, seriam sintomas de um homem nada viril. Daí seu insucesso no Santa Rosa, espaço que exigia um homem de fibra, com voz e porte de mando: “precisava-se de um homem no Santa Rosa. Terras e cabras não faltavam. Ellas e elles, nas mãos de um homem, dariam muito”558. O engenho foi construído como uma espacialidade virilizada, marcado pela figura de um senhor discricionário, de modo que um homem delicado e polido, afeito às letras, jamais poderia comandá-lo. Tal espaço desapareceu porque não contou com um sucessor com traços másculos e viris. Carlos de Melo não era um cabra macho, valente, um comandante nato. O topos da feminização da sociedade brasileira (por nós já aludido no capítulo anterior), presente no discurso da elite açucareira da República Velha, parece ressoar também nas páginas de Banguê. Neste romance, seu autor seguiu o movimento discursivo dos textos de Julio Bello, Aníbal Fernandes e Gilberto Freyre, os quais pontilhavam a existência de um processo, inaugurado em fins do século XIX, de desvirilização do povo brasileiro. Conforme nos mostrou Durval Muniz de Albuquerque Júnior, os bacharéis, dedicando-se aos livros e a escrita, indiferentes ao labor rural, materializariam a perda de virilidade da sociedade brasileira. Reproduzamos uma citação daquele historiador: O bacharelismo era mais uma forma de desvirilização. Homem que era homem, na sociedade do tempo dos patriarcas, não gostava de livros, apreciava era “uma boa pinga, um bom cavalo, uma boa briga de galo e uma boa mulata”. [...] Como uma mulher, o intelectual é visto, nesses discursos regionalistas, como este ser frágil e atrapalhado com as coisas mais viris, arredio, vivendo dentro de seu escritório, gabinete ou quarto, numa vida mais de imaginação, atrapalhado com a realidade 559 . 557 REGO, José Lins do. Op. Cit., 1934, p. 244 (B). 558 REGO, José Lins do. Op. Cit., 1934, p. 243-244 (B). 559 ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. Op. Cit., 2012, p. 57-58. 242 Carlos de Melo seria o moço bacharel desvirilizado, “homem” mais dos livros do que da terra, triste figura amolecida pela educação liberal. Nesse sentido, a literatura de José Lins andou de mãos dadas com os discursos de muitos regionalistas-tradicionalistas ligados à elite banguezeira decadente. A criação do personagem que arruinou o Santa Rosa originou-se, em certa medida, da mesma visão que destacava um pretenso amolecimento social no Brasil republicano. Longe de ser produto de um mero impulso pretensamente natural, como afirmam vários críticos literários 560 , a obra de José Lins mostrou-se como fruto de um cálculo, como uma operação literária bem dirigida e direcionada, cujo alvo era os bacharéis de sua época, representantes da cidade, da civilização moderna que suplantou o patriarcado. Em Sobrados e Mucambos, estudando justamente a decadência do patriarcalismo, Gilberto Freyre viu vários “Carlos de Melos”. Para o sociólogo recifense, a ruína do patriarcado, o progressivo desaparecimento dos engenhos, dever-se-ia a ascensão revolucionária dos bacharéis, os quais dominam a política e a economia no período republicano. Os acadêmicos, formados em São Paulo, Olinda, Coimbra ou Montpellier, não tinham a aptidão necessária para o comando do engenho, pois “faltava-lhes aquele bom senso terra-a-terra, aquele equilíbrio, aquela solidez, aquela perspectiva das coisas que só se consegue com a experiência, aquele profundo realismo”561. O banguê tombou com os letrados. Talvez isso explique as duras palavras dirigidas contra tal categoria social: Doentes, e com a volupia da doença. Os homens mais velhos deviam ser uns gigantes, comparados com os moços franzinos cheios de “gastrites, encephalites, bronchites, pulmonites, splenites, pericardites, interites, collites, cephalagras, hipertrophias, cardialgias, nevroses de todo nome. 562 A mesma crítica aos bacharéis, vistos como frágeis, e o mesmo elogio aos avôs, encarados como gigantes e “velhos sadios”, encontramos também em Sobrados e Mucambos. Este livro, juntamente com Banguê, formam discursos vinculados à literatura de engenho, e, como tal, pensam o mesmo objeto (a decadência do engenho) a partir das mesmas imagens, 560 As grandes referências aqui são os textos de Otto Maria Carpeaux, os quais abriram vários romances de José Lins, quando de suas reedições. Como exemplo, veja-se o artigo inserido na 69° edição de Fogo Morto: CARPEAUX, Otto Maria. O brasileirismo de José Lins do Rego. In: REGO, José Lins do. Fogo Morto. Rio de Janeiro: José Olympio, 2010. 561 FREYRE, Gilberto. Sobrados e Mucambos. São Paulo: Globo, 2003, p. 198. Citamos aqui intencionalmente a partir das modificações que Freyre realizou na primeira edição, as quais datam de 1951, a segunda edição do livro. No texto original era: “faltava-lhe, entretanto, aquelle bom senso seguro, aquelle equilíbrio chamado burguês, aquella perspectiva das coisas que só se consegue com a experiencia, aquelle profundo realismo”. Ver: FREYRE, Gilberto. Op. Cit., 1936, 113. 562 FREYRE, Gilberto. Op. Cit., 1936, p. 109. 243 regras e conceitos. A representação do bacharel não foi inocente: destinava-se a ridicularizar aqueles que teriam sido responsáveis pelo desmoronamento do regime patriarcal, centrado nas propriedades canavieiras. Ela aparenta ter cumprido a função de mostrar como e porque estas espacialidades sucumbiram, como e por que se tornaram um espaço da decadência. É valido apontarmos que Gilberto Freyre, em pelo menos duas cartas a José Lins, colocou Banguê como um dos grandes livros do seu amigo paraibano. Em carta de 29 de novembro de 1938, comentando sua opinião sobre o romance Pedra Bonita, Freyre escreveu que não era dos romances mais fortes de José Lins, que “não estava no mesmo nível de Banguê ”. Em escrito de 1947, para não deixar dúvidas, elencou o que seria “os dois romances mais altos” de José Lins: Fogo Morto e Banguê563. Tal avaliação parece-nos indicar muito mais do que uma simples preferência literária. O autor de Sobrados e Mucambos viu no romance literária de 1934, de seu amigo paraibano, muitas ideias por ele também defendidas e disseminadas. Banguê, se tivesse sido escrito depois de 1936, seria uma espécie de versão romanesca do segundo ensaio histórico de Gilberto Freyre. Ambos os escritores foram cúmplices da visão segundo a qual o engenho declinou por falta de homens que continuassem efetivamente a obra dos patriarcas. Para eles, chegou um momento da história do Brasil que os senhores de engenho não encontraram ou não puderam mais formar herdeiros. No ataque discursivo do literato paraibano e do ensaísta recifense identificamos um certo paradoxo: como pode dois homens de letras, formados em bancos de faculdades, criticar os bacharéis, seu pares? No caso de José Lins, o paradoxo aumenta, pois ele também foi um bacharel em ciências jurídicas. No entanto, os dois letrados aqui citados, ao longo de boa parte de suas vidas, quase sempre procuraram negar suas formações acadêmicas 564 . José Lins e Gilberto Freyre, como costumavam afirmar, eram apenas escritores. Ambos alimentaram um desejo de não se identificarem com a sociedade moderna, a sociedade da especialização dos saberes, a sociedade do bacharel, do doutor. Durante boa parte de suas vidas, eles não se viram e não se disseram como um bacharel, sobretudo José Lins, que recusou conscientemente um ofício ligado à sua formação em Direito. Ser bacharel significava ligar-se ao presente, ao Brasil do progresso, da civilização moderna. Em vez dessa associação 563 Carta de Gilberto Freyre para José Lins do Rego, 29 de outubro de 1939 e 22 de agosto de1947. Nesta última carta, Freyre colocou O moleque Ricardo de José Lins como o romance mais baixo e fraco do escrito paraibano. 564 Gilberto Freyre, entre 1920-1940, anos de afirmação intelectual, procurou firmar sua posição de sociólogo, cientista e historiador, frente aos questionamentos que se faziam a sua obra. Passado aquele período, a tendência foi para dizer-se apenas um escritor ou um ensaísta. Sobre essa discussão de Gilberto Freyre consigo mesmo, com sua própria história intelectual, ver: NICOLAZZI, Fernando. Op. Cit., 2011, p. 95-143. e FREYRE, Gilberto. Como e porque sou escritor. João Pessoa: Universidade Federal da Paraíba, 1965. 244 presentista, eles decidiram militar pelo Brasil patriarcal, ligando-se à tradição, ao passado, ao tempo do banguê, da casa grande. A crítica de José Lins e Gilberto Freyre, bem como de outros homens de letras ligados a açucarocracia, mostra a insatisfação perante o presente, perante aqueles que no Brasil dos anos 1930 dominavam a política e que gozavam de privilégios e prestígios. No fundo, com seus ataques e ridicularizações aos bacharéis, ambos os escritores demonstraram suas preferenciais pelo avô, por aqueles que dominavam soberanamente antes da ascensão dos acadêmicos. Por isso a crítica a estes vem, quase sempre, acompanhada com o elogio dos primeiros. Constatando a decadência e seus algozes, os regionalistas-tradicionalistas não conseguiam disfarçar a saudade do avô, do velho patriarca bom e sadio, figura que personificava o próprio engenho. A crítica aos bacharéis foi um suspiro de saudade pelos tempos idos, um grito de descontentamento contra o passado patriarcal que desaparecia perante olhos inertes e saudosos. A saudade do avô, do senhor patriarca, portanto, mostrou-se não como um sentimento gratuito ou inocente, totalmente desinteressado. Longe disso, tal sentimento revelou-se como político e estratégico. Os sentimentos, as emoções, as sensibilidades, muitas vezes, constituem aquilo que Claudia Barcellos e Maria Claudia denominaram de micropolíticas, isto é, apresentam-se enredadas em questões políticas e sociais, emergem nos indivíduos e na sociedade carregando consigo determinadas posições a respeito da sociedade e de sua forma de organização e governo 565 . A saudade do avô, presente em José Lins e Gilberto Freyre, veio como uma crítica a nova ordem social onde imperavam os bacharéis, vistos como homens amolecidos, desvirilizados, responsáveis pelo fim da tradição patriarcal e, no limite, do próprio engenho. Podemos dizer que em Banguê e em Sobrados e Mucambos, a nostalgia pelo patriarcado é inseparável do ataque aos indivíduos formados nas faculdades de Direito e de Medicina. Suspirando de saudades pelo senhor de engenho, escritores como os citados neste parágrafo armaram-se para realizarem suas ofensivas contra os bacharéis detratores do universo canavieiro. 565 COELHO, Maria Claudia; REZENDE, Claudia Barcellos. Op. Cit., 2010, p. 75-97. 245 Capítulo 7 O patriarcado em ruínas: o engenho de Fogo Morto Coitado do Santa-Fé! Já o conheci de fogo morto. E nada é mais triste do que um engenho de fogo morto. Uma desolação de fim de vida, de ruína, que dá à paisagem rural uma melancolia de cemitério abandonado. José Lins do Rego 566 7.1 De Maceió para o Rio de Janeiro: o romancista integrado à capital Com a publicação de Banguê, José Lins do Rego aproximou-se do Rio de Janeiro. Seus romances literários viriam agora com o timbre da José Olympio Editora, uma das casas editoriais de maior prestígio no Brasil da época, cobiçada por vários homens de letras, sejam aqueles em início de carreira ou aqueles com um trajeto literário já consolidado. Após a publicação do terceiro romance, os laços entre a capital da República brasileira e o romancista paraibano foram se estreitando cada vez mais. O escritor ora em apreço, além de ter seus romances apreciados por críticos cariocas como Alceu Amoroso Lima, Augusto Frederico Schmidt, Gastão Cruls e Agripieno Grieco, passou também, em algumas ocasiões, a visitar pessoalmente alguns destes e outros literatos que viviam naquela cidade. Vinculado à José Olympio, pois nela publica dois livros (no começo de 1935 seriam três, já que o romance Doidinho sairia com uma segunda edição), José Lins precisava frequentemente viajar para o Rio de Janeiro, a fim de resolver pendências profissionais, conforme indicou em carta a Gilberto Freyre, em fins de 1934 567 . A união definitiva e irreversível com a cidade carioca veio no prelúdio de 1935, quando José Lins foi transferido de Maceió para o Rio de Janeiro. Por alguma questão interna ao funcionalismo público brasileiro que não conseguimos averiguar com clareza, o fiscal de banco paraibano foi obrigado a mudar de cargo: agora seria um fiscal de imposto. Para ocupar este novo posto, José Lins precisava mudar-se para a capital da República. Nesse momento de sua vida, começava o processo de consolidação de sua carreira literária, de modo que ainda não estava no seu horizonte viver unicamente das letras, embora já ganhasse certas quantias financeiras razoáveis com seus romances. Ele tinha família, morava com a esposa, e tinha 566 REGO José Lins do. Op. Cit., 1934 (A), p. 128. 567 Carta de José Lins do Rego para Gilberto Freyre, sem mês, 1934. 246 filhas 568 para sustentar, ou seja, dependia ainda do seu emprego público, sua principal fonte de renda no momento. Gilberto Freyre, em carta não datada à José Lins (provavelmente em fevereiro ou março de 1935), acusou da seguinte maneira a notícia da partida de seu colega nordestino: Meu querido Lins: recebi sua carta com a noticia de que V. vae mesmo embora para o Rio. Deu-me uma grande tristesa – alias, sem razão, porque V. em Alagoas é o mesmo que V. no Rio – e em certo sentido, ainda mais distante e separado. Infelizmente não se pôde realizar o desejo, mais meu do que seu de, chegarmos a morar no mesmo Recife, como naqueles dois ou tres annos que passaram tão depressa, deixando saudade. A vida é assim, como diz a cantiga carioca 569 . Até fins de janeiro de 1935, o destino de José Lins oscilava entre Recife e Rio de Janeiro. Freyre esperava que seu amigo paraibano conseguisse transferir seu cargo para o Recife, a fim de que ambos pudessem viver e reviver a amizade na capital pernambucana, semelhante aos idos de 1923, quando se conheceram. O desejo freyreano não se realizou, de modo que em carta de 10 de julho de 1935 José Lins já estava em terras cariocas, distante do Recife, ausente do Nordeste 570 . Embora não saibamos exatamente a data, especulamos que a chegada de José Lins no Rio de Janeiro ocorreu na segunda quinzena do mês de junho, pois na correspondência citada anteriormente Gilberto Freyre perguntou se o seu amigo paraibano tinha já estado com “Bandeira, Rodrigo, Prudente, Sergio, essa gente”571. Tal pergunta só faria sentido se José Lins já estivesse há algum tempo morando em sua nova cidade, pois somente assim teria tido tempo para estar ou não com as pessoas inquiridas pelo escritor de Apipucos. Tal questionamento indicia também que havia fortes expectativas, da parte de Gilberto Freyre, de que José Lins logo se integrasse ao meio da intelectualidade local. Será que tal expectativa se confirmou na prática, ao longo dos anos vividos no Rio de Janeiro? Tal é a pergunta que estrutura o tópico corrente. 568 José Lins do Rego teve com Filomena Massa três filhas, tidas pelo pai como as suas “três Marias”: Maria Elizabeth, Maria da Glória e Maria Cristina. 569 Carta de Gilberto Freyre a José Lins do Rego, sem mês e ano. Para efeitos de localização, trata-se de um manuscrito de três páginas, no qual Freyre, além da lamentar a partida do amigo paraibano, diz também estar doente e solicita que José Lins avise a José Olympio. É importante dizermos ainda que Gilberto Freyre confundiu a duração de seu contato pessoal com José Lins no Recife. Ambos os literatos tiveram uma convivência de quase um ano, em 1923, conforme discutimos no nosso primeiro capítulo. 570 Carta de Gilberto Freyre para José Lins, 10 de julho de 1935. 571 Manuel Bandeira, Rodrigo Melo de Franco Andrade, Prudente de Morais Neto e Sergio Buarque de Holanda, respectivamente. 247 Segundo Elizabeth Rego, a primeira filha do ilustre romancista paraibano, seu pai embarcou para o Rio de Janeiro sozinho, sem a família, residindo inicialmente em uma pensão. Após algumas semanas na nova cidade, foi que sua esposa e suas filhas chegaram, a bordo do navio Ita 572 . Podemos supor que o início da vida carioca de José Lins não foi lá muito difícil, haja vista que chegava ao meio citadino como alguém que já tinha visitado a cidade, que desfrutava de um emprego público e do conhecimento de alguns homens de letras. De certa forma, José Lins do Rego, por meio de seus livros e artigos jornalísticos, já circulava no meio carioca, pelo menos no universo letrado. Não era, de forma alguma, um desconhecido que aportava no Rio de Janeiro, nem muito menos um literato nordestino carente de reconhecimento, que chegava no primeiro semestre de 1935 na capital da República. Não podemos nos esquecer que o autor de Banguê, em algumas ocasiões, circulou pessoalmente entre os intelectuais cariocas, como naquela tarde de autógrafos, na recém inaugurada loja da José Olympio Livraria. O autor de Menino de engenho encontrou uma cidade bastante diferente de Maceió, como era de se esperar. Em termos populacionais, em 1935, o Rio de Janeiro tinha uma população perto de 1. 764. 141 habitantes, cifra essa esmagadoramente maior que a população da capital alagoana, próxima de 90. 253 moradores na época 573 . Enquanto Maceió ocupava a décima segunda posição no rol das capitais brasileiras mais populosas, a capital da República não tinha ninguém a sua frente, ocupava o primeiro lugar no ranking das populações das cidades nacionais. Tal condição hegemônica fazia do Rio de Janeiro uma cidade que atraia quase que irresistivelmente pessoas de todos os cantos do país, devido as possibilidades de empregos, serviços e consumo de bens. Desde o início do século XX, com a famigerada reforma de Pereira Passos, que tal urbe alimentava uma imagem de cidade moderna, centro da civilização brasileira, imagem essa que só cresceu ao longo das décadas. Centro administrativo do país, o Rio de Janeiro era também um polo intelectual, uma zona de atração por suas atividades culturais e artísticas. Lembremos que vários membros das rodas literárias de Maceió, a partir dos anos 1930, mudaram-se para a capital da República, sendo José Lins do Rego mais um intelectual nordestino que fazia um percurso comum a vários outros literatos. Em tal cidade, pelos idos dos anos 30, haviam instituições intelectuais reconhecidas nacionalmente e internacionalmente, como a Academia Brasileira de Letras, a Biblioteca Nacional, a Escola Nacional de Belas Artes, a Associação dos Artistas Brasileiros, o Ministério da Educação, o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, entre outros. À estes 572 REGO, Elizabeth. Op. Cit., 1982, p. 196. 573 Esses números são relativos ao censo populacional das cidades brasileiras de 1940, feito pelo IBGE. 248 órgãos, que transformavam a urbe em uma espécie de polo intelectual oficial do país, devemos acrescentar mais um, que revestia ainda mais o Rio de Janeiro com uma áurea de “cidade intelectual”: a Universidade do Distrito Federal (UDF), pioneiramente criada em abril de 1935. Dois anos após esta data, criava-se a Universidade do Brasil, que em 1939 incorporaria a UDF. Tais instituições, todas elas envolvidas com as Letras, existiam unicamente na cidade do Rio de Janeiro (exceto São Paulo, que na época também já abrigava uma universidade), embora houvesse em outras capitais do Brasil modelos similares. Segundo Ângela de Castro Gomes, em estudo sobre a intelectualidade carioca das primeiras décadas do século XX, os órgãos citados no parágrafo anterior funcionavam como “referências impossíveis de serem ignoradas pelos intelectuais de todo o país, por reunirem as pessoas e os paradigmas de maior prestigio em inícios do século”574. Certamente, o Rio de Janeiro das décadas iniciais do século XX fascinava muitos homens de letras do país. Não exageraríamos se dissemos que os olhos de muitos letrados do Brasil estavam voltados para o que se produzia, em termos literários e científicos, na capital. Daí porque produções literárias cariocas como A Ilustração Brasileira circulava pelos quatros cantos da República, sendo consumida por intelectuais das mais diferentes regiões nacionais. José Lins, provavelmente, encantou-se com a cidade, integrando-se rapidamente no circuito letrado da urbe. À exemplo do que ocorrera em Maceió dos anos 20, o universo intelectual carioca tratou logo de acolher o literato paraibano recém chegado. Em carta de 22 de julho de 1935, onde diz ainda não ter o endereço fixo de José Lins, Valdemar Cavalcanti afirmou ter lido, dias atrás, um artigo do autor de Menino de engenho sobre Murilo Mendes, poeta católico mineiro, muito amigo de Jorge de Lima 575 . Tal escrito de José Lins foi publicado na revista carioca Boletim de Ariel, periódico mensal dirigido por Gastão Cruls e Agripino Grieco, conforme já mencionamos. É provável que tal escrito tenha sido elaborado quando o romancista nordestino já estava em terras cariocas, o que indiciaria sua rápida convivência no meio literário do Rio de Janeiro. Talvez, o artigo ora em apreço marque também a primeira colaboração de José Lins, desde sua chegada ao seu novo lar urbano. O periódico de Gastão Cruls favorecia tal contribuição, pois desde 1932 que este literato mantinha contatos com José Lins, por meio de cartas. Vale lembrar que Menino de engenho recebeu elogiosas críticas no Boletim de Ariel e 574 GOMES, Ângela de Castro. Essa gente do Rio...: modernismo e nacionalismo. Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio Vargas, 1999, p. 29. 575 Carta de Valdemar Cavalcanti a José Lins do Rego, 22 de julho de 1935. 249 que Doidinho saiu pela editora deste mensário 576 . Assim que chegou ao Rio de Janeiro, o diretor do Boletim de Ariel, juntamente com Agripino Grieco, era o principal contato de José Lins. Na verdade, desse contato inicialmente profissional, parece ter brotado uma amizade, tal é o que podemos depreender de uma carta não datada de José Lins: Caro amigo Gastão Cruls: penso que estarei ahi no Rio no próximo mês de maio. E para isto quero lhe fazer uma consulta. Senão fosse a nossa camaradagem não teria cara para fazê-la. Trata-se do seguinte: para esta minha ida até aí não estou muito sólido de finanças e pensei em lhe escrever para consultar-lhe se era possível contar com qualquer saldo da Ariel. Estou lhe escrevendo como amigo e não como autor. Seja franco. Quero crer que isto não o incomodará 577 . Uma viagem ao Rio de Janeiro, nas décadas iniciais do século passado, demandava consideráveis quantias, para cobrir gastos com transporte, estadia e alimentação. Para realizar sua viagem, provavelmente para cuidar de compromissos profissionais, José Lins contou com o empréstimo do amigo (e não do editor) Gastão Cruls. Enfatizemos que o escritor paraibano utilizou a amizade como base para fazer seu pedido. Era como amigo, como alguém que conhecia, como quem se correspondia, como quem mantinha relações de apoio mútuo que ele escreveu para Gastão Cruls solicitando a sua ajuda. Uma camaradagem, baseada em relações de reciprocidade, parecia unir os dois homens de letras. Assim, torna-se plausível supormos que O Boletim de Ariel foi um dos primeiros periódicos a receber contribuições do recém chegado romancista, contribuições essas fruto de uma relação fraterna entre José Lins e os diretores do periódico, em especial com Gastão Cruls. Em suas memórias, Agripino Grieco recordou sua boa relação pessoal com o autor de Banguê, apesar das varias ressalvas que nutria acerca da sua obra literária 578 . Ainda sobre a relação amigável com os diretores do Boletim de Ariel, ressaltemos que o romance Pedra Bonita de José Lins, publicado em 1938 pela José Olympio Editora, foi dedicado, entre outros nomes, à Gastão Cruls 579 . Porém, outras portas da imprensa carioca abriram-se para o agora fiscal de impostos no Rio de Janeiro. Em 18 de maio de 1936, encontramos um artigo de José Lins intitulado Usina e Latifúndio, publicado no jornal carioca A Manhã, periódico diário dirigido por Pedro Motta 576 CRULS, Gastão. Menino de engenho. Boletim de Ariel, Rio de Janeiro, N. 1, Ano I, Ago. 1932. E MONTENEGRO, Olivio. Um romance brasileiro. Boletim de Ariel, Rio de Janeiro, N. 6, Ano II, Mar. 1933. 577 Carta de José Lins do Rego a Gastão Cruls, sem data. Provavelmente de 1933 ou 1934. Ver: MARTINS, Eduardo. Op. Cit., 1980, p. 352. Grifos nossos. 578 Ver: GRIECO, Agripino. Memórias. Rio de Janeiro: Editora Conquista, 1972, Vol. II, p. 383-393. 579 REGO, José Lins do. Pedra bonita. Rio de Janeiro: José Olympio, 1938. 250 Lima, jornalista que havia iniciado sua carreira ao lado de Mario Rodrigues, um dos grandes nomes da imprensa carioca nos anos 1920. Foi em tal jornal, fundado em 29 de dezembro de 1925, que José Lins também estampou seus primeiros artigos quando de sua chegada à capital da República. O jornal A Manhã forneceu-nos valiosas referências sobre os primeiros anos da vida literária do romancista paraibano em sua fase pós-Maceió. Os artigos de José Lins e as diversas notícias sobre sua pessoa que pululam nas páginas do periódico indiciam sua rápida integração ao meio letrado carioca. Sua vivência no Rio de Janeiro, a partir do segundo semestre de 1935, lembrou muito seus anos maceioenses, quando vivia em meio aos intelectuais locais, escrevendo artigos e participando de debates literários. Em 4 de setembro de 1935, o A Manhã noticiou, na sua primeira página, a formação da comissão que iria presidir o Congresso Brasileiro dos Escritores, grupo encarregado de organizar tal evento. Entre os membros dessa comissão, “consagrados escritores encarregados de fazerem a Defesa da Cultura”, estava José Lins do Rego580. De acordo com Ângela de Castro Gomes, as comissões de congressos intelectuais no Brasil das primeiras décadas do século XX formavam-se geralmente a partir de convites e de indicações de amigos 581 . Para compor uma banca, admitia-se geralmente pessoas que estivessem envolvidas com as letras, apenas elas tinham o privilegio de participarem, pois tratavam-se de eventos estritamente intelectuais, quase dizíamos científicos. Com menos de um ano no Rio de Janeiro, o escritor paraibano já começava a fazer parte dos projetos literários da intelectualidade carioca. Ao lado de outros escritores de prestígio regional, seu nome desfrutava de um certo poder para legitimar eventos culturais, emprestava a estes uma dimensão intelectual importante. Participar da feitura de um congresso vinculado às letras e selecionar e avaliar teses de escritores nacionais indicia o reconhecimento e o prestígio de José Lins entre os homens de letras da capital da República. Destaquemos que, entre todos os membros da comissão, o autor de Banguê era o único escritor nordestino que participava da banca. A vivência de José Lins no meio letrado carioca foi por nós aferida também em uma outra notícia de A Manha. Dessa vez, em 29 de outubro de 1935, o diário carioca veio a público anunciando na sua quinta página a participação de José Lins do Rego em um programa de rádio, juntamente com Murilo Mendes. O rádio, meio de comunicação bastante usado pelo presidente Getúlio Vargas, estava na época em forte expansão, sendo também 580 Juntamente com Roquette Pinto, Basílio Magalhães, Maria Lacerda, Hermes Lima, José Oiticica, Eunície Weaver, Álvaro Moreyra e Annibal Machado. Ver: A Manhã, 4 de setembro de 1935. 581 GOMES, Ângela de Castro. Op. Cit., 1999, p. 79. 251 usado muitas vezes para assuntos culturais e artísticos. Os dois escritores citados, identificados como as duas grandes revelações literárias dos anos 1930, foram convidados para discorrer sobre a literatura brasileira 582 . O literato paraibano, na época já autor de quatro romances e de centenas de artigos, mostrava-se para a sociedade carioca como alguém autorizado a falar sobre a literatura nacional, haveria nele as competências e as disposições necessárias para um exercício metaliterário. Romancista consagrado, tendo um público e uma audiência certa, José Lins circulava pelos novos espaços destinados aos homens de letras no Brasil moderno. Ainda nos anos 30, por volta de 1938, José Lins vinculou-se também a uma outra importante iniciativa literária. Trata-se da posição de sócio-correspondente da revista literária Lanterna Verde na Paraíba. Embora não residisse em João Pessoa, José Lins foi consagrado pelos diretores da Sociedade Felipe D’Oliveira, entidade literária surgida em 1933 que mantinha Lanterna Verde como seu boletim artístico, como a pessoa responsável por distribuir e difundir tal periódico pelo estado da Paraíba, além de conseguir novas assinaturas nesta região 583 . Mais especificamente, o trabalho do escritor paraibano consistia em remeter edições da Lanterna Verde aos intelectuais paraibanos, através de encomendas via Correios. Mesmo morando na capital da República, José Lins mantinha contato com a intelectualidade paraibana, o que acabou contribuindo para seu cargo na revista carioca em apreço. Tal participação, ocorrida ao lado de escritores como Gilberto Freyre e Afrânio Coutinho, sócio- correspondentes em Pernambuco e na Bahia, respectivamente, demonstra mais uma articulação do literato paraibano com o establishment carioca. O casamento de José Lins com a literatura, iniciado em Recife e consolidado em Maceió, manteve-se firme e forte no Rio de Janeiro, conforme estamos mostrando. A ligação com Lanterna Verde, importante periódico da cena intelectual carioca 584 , e as duas notícias de A Manhã brevemente discutidas, já nos servem para explicitarmos a articulação de José Lins com o universo letrado do Rio de Janeiro, logo nos primeiros anos de sua chegada. O literato paraibano não foi ignorado pelos seus pares cariocas, não foi de modo algum um outsider do campo intelectual local. Antes, juntou-se aos letrados em iniciativas literárias, partilhando ideias e realizando debates. Assim como ocorreu em Maceió, José Lins passou a conviver no Rio de Janeiro com os intelectuais locados nesta cidade. As dedicatórias 582 A Manha, 29 de outubro de 1935. 583 Os diretores eram Rodrigo Otávio, Ribeiro Couto e Otávio Tarquíno de Souza. Essas informações e a discussão do parágrafo estão baseadas em: GOMES, Ângela de Castro. Op. Cit., 1999, p. 86. 584 Talentos literários de grande reconhecimento nacional, como Mario de Andrade, Gilberto Freyre, Graciliano Ramos, Francisco Campos, Jorge Amado, Cornélio Pena, Jorge de Lima e Lúcio Costa, escreveram em tal revista. Ver: GOMES, Ângela de Castro. Op. Cit., 1999, p. 90. 252 de seus primeiros romances escritos no Rio de Janeiro atestam bem a proximidade que José Lins estabeleceu com os talentos literários da urbe carioca. Convivendo com os literatos da cidade, José Lins continuou atualizando anualmente sua obra literária, até 1939 585 . Em 1935, no Rio de Janeiro mesmo, o escritor paraibano escreveu O moleque Ricardo, oferecido a Rodrigo Melo Franco de Andrade e Otávio Tarquínio de Souza. No ano seguinte, a José Olympio Editora colocou na praça mais um romance originado da pena de José Lins: Usina, dedicado a Graciliano Ramos e José Olympio. Em 1937, outro romance, denominado de Pureza, oferecido a Manoel Bandeira. Estes três livros, os quais marcam as primeiras produções romanescas de José Lins no Rio de Janeiro, servem bem para mapearmos as relações de seu autor com os letrados da capital. Todas as pessoas as quais os romances foram dedicados moravam no Rio de Janeiro. Apesar de somente Otávio Tarquínio de Souza ser carioca, Rodrigo Melo Franco de Andrade, Graciliano Ramos, Manoel Bandeira e José Olympio eram nomes fortes da intelectualidade do Rio de Janeiro. A menção a estes nomes constitui-se como um rastro das articulações que José Lins estabeleceu com o universo literário da nova cidade que lhe acolheu a partir de 1935. Dessa forma, podemos finalizar nossa discussão deste tópico apontando que José Lins do Rego foi mais um dos vários literatos que, vivendo no Rio de Janeiro, tornou-se aquilo que Ângela de Castro Gomes nomeou de intelectual carioca: indivíduo letrado não nascido no Rio de Janeiro, mas que estabeleceu nesta cidade uma rede intelectual, uma ligação fortíssima com os literatos da terra, de modo a cimentar uma vinculação intensa à urbe 586 . Nesse sentido, cabe ressaltarmos que Água Mãe e Eurídice (1947), romances escritos no Rio de Janeiro, têm como ambiente principal a cidade carioca. Oscar de Castro, amigo de José Lins no Rio de Janeiro dos anos 40, sintetizou bem a vivencia do colega, traçando palavras que recompõem a sociabilidade do escritor paraibano em sua fase pós-Maceió: No Rio, era quase invariável o nosso passeio diário, quando a saúde ainda lhe sorria. As onze nós íamos juntos à redação de “O Globo”, onde Zé Lins deixava seu artigo diário. Almoço na Gonçalves Dias, ali, no restaurante da Colombo, passeio pela rua da Assembléia e uma parada para apreciar a beleza das mulheres...Depois parada na José Olympio e outras livrarias, nono andar do Ministério da Educação... [...] As paradas para prosas se limitavam ao encontro dos seus amigos íntimos, como Luis Jardim, Valdemar Cavalcanti, Santa Rosa, Odilon Ribeiro, Ledo Ivo, Medeiros 585 Neste ano, José Lins escreveu Riacho Doce, e só voltou a escrever um novo romance dois depois, em 1941, Água Mãe. 586 GOMES, Ângela de Castro. Op. Cit., 199, p. 19. 253 Lima, Dante Costa, Otto Maria Carpeaux, os irmãos Condé, Adonias Filho, Carlos Lacerda e Nereu Ramos 587 . Na capital da República, José Lins participou de eventos e iniciativas literárias, colaborou em jornais e revistas, bem como escreveu romances e conviveu com vários outros intelectuais que viviam no Rio de Janeiro. Neste espaço, última cidade em que residiu, escreveu em 1943 o romance tido pela sua fortuna crítica como o maior de sua vasta obra literária: Fogo Morto, significativamente dedicado ao intelectual carioca João Condé Filho 588 e prefaciado por Otto Maria Carpeaux, renomado crítico literário austríaco, residente desde 1939 no Brasil. 7.2 A experiência saudosa de retorno ao engenho O décimo romance de José Lins do Rego, Fogo Morto, traz um elemento muito apontado mas pouco discutido pelos seus críticos e estudiosos: o retorno literário à paisagem canavieira. De 1936 até 1943, durante quase dez anos, o escritor paraibano afastou-se literariamente do ambiente que lhe consagrou como romancista. Usina, romance publicado em 1936, foi seu último livro a se passar como que totalmente na zona canavieira. Com Pureza (1937), Pedra Bonita (1938), Riacho Doce (1939) e Água Mãe (1941) observamos uma incursão literária em outras paisagens, a composição de outros cenários, como a vila litorânea, o sertão nordestino e a cidade do Rio de Janeiro. Para Luciano Trigo, tal fuga de José Lins da ambientação açucareira ocorreu em razão do romancista querer ampliar e variar sua obra literária, muito identificada ao cenário dos banguês 589 . Compondo romances em novos espaços, era como se José Lins rebatesse as críticas de que era um escritor limitado ao universo dos engenhos unicamente, como chegaram a apontar alguns críticos literários de sua época. Interessante explicitarmos que esse retorno à paisagem açucareira que Fogo Morto empreendeu encontra paralelo na própria vida de José Lins, homem que sempre retornou aos engenhos, tal qual alguns dos seus personagens literários. O escritor paraibano, desde quando se ausentou do seu engenho familiar, o Corredor, adotou o costume de regressar a tal 587 CASTRO, Oscar de. José Lins do Rego: depoimento do amigo. In: MARTINS, Eduardo. Op. Cit., 1980, 116- 117, 588 Foi um procurador federal, nascido em Caruaru (1912), mas que viveu boa parte de sua vida no Rio de Janeiro, onde conviveu com vários literatos. Tornou-se relativamente famoso por ter organizado um arquivo formado por cartas e livros de vários escritores, o que lhe valeu o título de “o gari da literatura”. Ver: GRIECO, Agripino. Op. Cit., 1972, p. 301. 589 TRIGO, Luciano. Op. Cit., 2002, p. 247. 254 espacialidade. Quando estava na escola e na Faculdade, o engenho permanecia como o lugar especial onde passava as férias, onde se refugiava da vida urbana frenética. Quando foi residir longe de seu espaço preferido, também não deixou de retornar ao engenho da parentela. Em Maceió, nos anos 1920 e 1930, o romancista não deixou de visitar a terra dos seus parentes. No Rio de Janeiro dos anos 1940, o mesmo também ocorreu. José Lins, mesmo morando longe, mesmo residindo na zona urbana, mesmo habitando o palco da modernidade, não abandonou seu engenho, realizando inúmeras viagens de retorno à terra que lhe viu nascer e crescer. Nesse sentido, pretendemos discutir neste tópico essa experiência de retorno ao engenho, que José Lins realizou praticamente durante toda a sua vida. Nos anos 1940, quando morava no Rio de Janeiro, a cidade do progresso, a capital da civilização brasileira, o autor de Fogo Morto escreveu dois importantes relatos de viagens ao engenho de sua família. Ambos os relatos foram incorporados aos seus livros de relatos de viagem, Bota de sete léguas, de 1952, e Gregos e Troianos, de 1957. Essas obras dos anos 1950, quando seu autor já atingia mais de 50 anos de idade, trazem diversos relatos do viajante José Lins do Rego. São escritos que descrevem cidades da França e da Inglaterra, que descortinam paisagens de Israel e da Grécia. Há também referências a países como Alemanha, Finlândia e Portugal. Pouco se tem de descrição de regiões do Brasil, o que faz dos livros ora em apreço relatos de viagens sobre terras internacionais. Sendo assim, as remissões ao engenho ganham ares especiais, como se tal espacialidade não pudesse ficar de fora da lista dos lugares visitados e descritos por José Lins ao longo de sua vida. A nota comum aos dois relatos de viagem de retorno ao engenho é a saudade do banguê familiar. Tratam-se de textos passadistas, eivados de um desejo nostálgico pelo retorno do mundo rural dos senhores de engenho. O retorno ao espaço, realizado por José Lins, é acompanhado de um mergulho no tempo da infância banguezeira. Acompanhemos um trecho de um destes relatos: Vim encontrar a Paraíba em paz, com as praias ainda com veranistas de pijamas, à sombra dos coqueiras, e alguns engenhos a moer as últimas canas. [...] Mesmo assim, sobrou-me o Itapuá, moendo o bastante para contentar as minhas saudades de “menino de engenho”590. Temos acima o relato de uma visita a um engenho de um tio de José Lins, engenho esse ao qual, quando criança e adolescente, dirigiu-se varias vezes, pois ficava perto do 590 REGO, José Lins do. Bota de sete léguas. Rio de Janeiro: A Noite, 1952, p.115. 255 Corredor. Itaupá é retrado como um engenho sobrevivente, dado o processo de industrialização existente no meio rural. Ele era a joia que resistiu ao processo de ruína dos engenhos e que permitiu ao viajante José Lins dar vazão a sua saudade do engenho. Revisitando o Itapuá, volta-se a identidade, a lembrança, a imagem de um menino de engenho que, mesmo adulto, não esqueceu o local onde se deu sua infância rural. Em seguida, o relato prosseguiu mostrando uma espécie de ressurreição do tempo perdido, dado pelo encontro com Itapuá. José Lins viajante evocou o tempo e o espaço de sua infância: O cheiro da bagaceira, a fumaça doce da “casa de caldeiras”, o gemer dos carros de boi, deram-me um tempo perdido em corpo inteiro. Senti-me do passado, dos tempos do meu avô, como se fosse o Dedé. [...] Entre dormindo e acordado, tudo se passou como se estivesse no “Corredor” do velho José Lins. O barulho do curral era o mesmo, mesmas as vozes que escutava naquele amanhecer de janeiro sem chuvas. Já ouvira o moer do engenho, o bater compassado da roda preguiçosa. Não quis fugir dos lençóis para o leite ao pé da vaca, para que mais demorasse o sonho acordado. Passou-me pela calçada alguém que batia forte no chão. E meu avô chegou-me para fixar-se cada vez mais na saudade do cronista piegas 591 . Visitando as terras familiares, por onde correu quando menino, o autor das palavras acima rememorou não só o engenho, como, por momentos, também recordou aquela pessoa que personificava tal espacialidade: o senhor de engenho, o avô de José Lins. O grande personagem másculo do “ciclo da cana-de-açúcar”, o avô patriarca, compareceu fortemente na evocação saudosa. A saudade do engenho foi tal que produziu brevemente o apagamento da diferença entre passado e presente, mostrando-se como duas temporalidades juntas, unidas, corporificadas no tempo da lembrança saudosa. A memória nostálgica, como metaforizou Paul Ricoeur, “iguala os fios do tempo” 592, une por um instante com um nó firme o presente e o pretérito, tal qual fez José Lins do Rego. Sua obra literária parece ter sido fruto deste entrelaçamento temporal. A passagem destacada mais acima nos incita a pensarmos sobre o tempo da saudade. A temporalidade deste sentimento parece consistir em um tempo mais alongado, moroso, lento. E mais: parece ser também um tempo instável, incerto, que a qualquer momento pode ser abreviado. Sensação fugidia, um tanto quanto inesperada, a saudade lembra a experiência do sonho, na medida em que através dela o desejo pode se tornar realidade. Em José Lins, tal sentimento materializou seus anseios de presentificação do universo canavieiro, fez aparecer 591 REGO, José Lins do. Op. Cit., 1952, p. 115. 592 RICOEUR, Paul. Op. Cit., 2007, p. 503. 256 aquelas criaturas do engenho de que tanto sentia saudade. Este sentimento, pulsando forte no visitante, enformando tanto suas visitas quanto seus relatos de viagens acerca do engenho, cristalizou no espaço suas lembranças da infância. Como ressaltou Gaston Bachelard, os espaços são instrumentos essenciais para a retenção do tempo, para a própria percepção da temporalidade. Espaço e tempo formam categorias intercambiáveis 593 , e o relato de viagem de José Lins, associando engenho e infância, atesta bem essa relação dialética. O relato dessas viagens de regresso ao engenho atualizaram uma imagem já instituída por boa parte dos discursos vinculados à literatura de engenho. Trata-se do banguê como espaço da saudade. Essa dizibilidade e visibilidade é um traço recorrente dos textos de José Lins, em especial, mais do que de qualquer outro autor ligado à literatura de engenho. Este espaço é descrito a partir da saudade, do desejo enorme que se tem de revê-lo, como se isso fosse uma necessidade existencial do sujeito. A saudade seria importante porque combateria o esquecimento, faria a ponte entre passado e presente, traria para mais perto o ausente desejado. Segundo Paul Ricouer, o esquecimento implica na perda da relação não só com o passado, mas com o próprio tempo que passa e com a própria vida, deixando o sujeito meio que sem identidade, desorientado, perdido em um eterno presente 594 . Certamente José Lins angustiava-se diante da possibilidade de um presente sem passado, de uma vida sem saudade, de um tempo sem engenhos. Uma vida sem saudades seria uma vida triste e trágica, posto que sem lembranças e sem recordações dos tempos idos. José Lins valorizou e cultivou este sentimento, mobilizando-o para fabricar uma dada imagem e escrita do engenho, a qual entendemos, seguindo a esteira de Durval Muniz de Albuquerque Júnior, como espaço da saudade. Os sentimentos e as sensibilidades atuam na construção das espacialidades. Na propriedade canavieira revisitada, o viajante paraibano poderia “matar” suas saudades dos banhos de rio, dos animais, do cheiro das árvores e da terra molhada, em suma, poderia reviver memorialisticamente o tempo em que foi um menino de engenho. Em autores como José Lins do Rego, parece haver um desejo pela experiência de sentir saudade, como se houvesse um fetiche por esse sentimento. A saudade exerceria um fascínio, provocaria um bem estar, alegraria corações e mentes carentes de passado. Ela seria, então, uma abertura para o passado desejado, uma janela por onde o tempo pretérito escaparia das ruínas e invadiria o tempo presente, trazendo mais vida e ânimo para aquele que contempla o passado não esquecido. 593 BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes, 1993, p. 36-39. 594 Mais informações em RICOEUR, Paul. Op. Cit., 2007, p. 423-467. 257 Além do saudosismo referente ao universo da cana, os relatos de retorno ao engenho de José Lins traçaram também uma outra imagem desta espacialidade muito comum na literatura de engenho. Acerca disso, analisemos agora o outro relato de viagem, presente no livro Gregos e Troianos, sugestivamente intitulado de Uma viagem sentimental. Neste texto, o romancista paraibano viajante vislumbrou seu universo pueril a partir de um trem, um dos grandes símbolos do progresso e da modernidade. O relato de viagem foi construído como se o visitante estivesse em movimento, como se contemplasse tudo da janela de um trem: O trem corria pelo meio dos partidos de cana. As terras de minha infância apareciam do outro lado do rio. Lá estava o Corredor, com o cata-vento, a casa-grande de pilastra, a terra amada de meu avô, matriz dos outros engenhos que saíram de suas várzeas de cana. [...] A minha vida de menino retornava às origens, ao berço ido, às fontes queridas 595 . O trecho destacado, que lembra muito as cenas dos romances de José Lins, fabricou o engenho como a pátria de origem, como o território primevo, espécie de manancial existencial de onde o individuo provem e para o qual sempre é preciso voltar. O engenho seria o berço, o local de formação do indivíduo. A imagem do engenho como fonte, já presente pioneiramente no capítulo Massangana, do livro Minha Formação de Joaquim Nabuco, foi agenciado por José Lins também em uma entrevista, dada a Clóvis de Gusmão, publicada em 28 de junho de 1941 no jornal carioca Dom Casmurro. Eis abaixo a tessitura discursiva desta visibilidade e dizibilidade do engenho: O Engenho Corredor foi a minha grande fonte literária. Lembrando-me dele fui escritor, contando a sua história escrevi os meus romances, fiz viver criaturas. Foi a terra que me deu forças para trabalhar em 10 livros e realizar o que nunca imaginei ser possível. [...] Vim da terra, sou da terra e quero continuar da terra. O velho Engenho Corredor continua a me alimentar, a me dar o que minha imaginação carece. O massapé paraibano tem muito que dar 596 . Ecoou nas palavras de José Lins o constructo discursivo nabuconiano do engenho fabricado como uma fonte para a qual se retorna e da qual se retira ensinamentos e matéria prima para outras criações, sobretudo literárias. No fundo, José Lins na entrevista ora em foco atualizou a visão de Joaquim Nabuco da propriedade canavieira como um agente, entidade 595 REGO, José Lins do. Gregos e Troianos. Rio de Janeiro: Bloch Editores, 1957, p. 176. 596 Entrevista reproduzida em: COUTINHO, Eduardo F.; CASTRO, Ângela Bezerra de. (Org.). Op. Cit., 1990, p. 53. 258 que influencia (apontemos que engenho apareceu grifado com um “E” maiúsculo) na vida das pessoas. Nascente de cujas águas José Lins muito bebeu, há como que um dívida para com o banguê Corredor, o que justificaria as viagens de retorno, as visitas aos engenho familiares feitas durante sua vida. Viagens de retorno ao engenho foram praticadas por vários indivíduos que enunciaram discursos ligados a literatura de engenho. O próprio Joaquim Nabuco, que com seu capítulo Massangana representou o discurso fundador desta formação discursiva, realizou trajetos de regresso ao banguê, quando seu engenho familiar já não mais pertencia aos seus parentes e já estava em processo de ruína 597 . Gilberto Freyre e Cícero Dias foram outros indivíduos que, mesmo morando na zona urbana e tendo conhecido as principais cidades do mundo, não deixaram de retornar ao engenho familiar. Com o primeiro, aliás, José Lins ampliou suas viagens pelos banguês, conhecendo outras propriedades canavieiras. Em carta de 22 de dezembro de 1923, Gilberto Freyre comentou com Francis Butler Simkins suas primeiras viagens com o amigo paraibano: My dear Francis, I have just arrived from Parahyba, the state north of Pernambuco. I had a delightful time there - specially in the interior, where I visited in [ILEGÍVEL] four or five "engenhos", or sugar cane estates. There must be something inherited, hereditary, in my attraction toward sugar cane estates, towards the life and the manners of the rural aristocracy of North Brazil - though psychologists perhaps would deny this as a scientific possibility. Most of the engenhos where I visited with my very dear friend Lins do Rego - I wish you could meet him - he has a very acute sense of the picturesque and is exceptionally brilliant - were formerly monastic estates. There are many interesting reminscences of those old days 598 . Já destacamos, no nosso primeiro capítulo desta dissertação, a importância dessas viagens para a irrupção do tradicionalismo e regionalismo de José Lins. Cabe agora sublinharmos que o escritor paraibano, desde seus tempos de formação intelectual, adotou a prática de incursionar pelos engenhos, em especial aqueles pertencentes a sua família. José Lins foi aprendendo, tendo Freyre como mentor, a visitar e a valorizar as propriedades 597 NABUCO, Joaquim. Op. Cit., 1900, p. 223. 598 Carta de Gilberto Freyre a Francis Butler Simkins, em 22 de dezembro de 1923. Devo gratamente a consulta deste documento a historiadora norte-americana Courtney Campbel. Tradução livre: “Meu querido Francis, Acabei de chegar da Paraíba, o Estado ao norte de Pernambuco. Passei um tempo agradável lá – especialmente no interior, onde visitei (ilegível) quatro ou cinco ‘engenhos’, ou propriedades de cana de açúcar. Deve existir alguma coisa inerente, hereditária, na minha atração pelas propriedades de cana de açúcar, pela vida e pelas maneiras da aristocracia rural do norte do Brasil – embora psicólogos talvez neguem isso como possibilidade científica. A maioria dos engenhos que visitei com meu querido amigo Lins do Rego – Gostaria que você pudesse conhecê-lo – ele tem um senso pitoresco muito aguçado e é excepcionalmente brilhante – Eram antigamente propriedades monásticas. Há muitas reminiscências interessantes daqueles velhos dias”. 259 açucareiras, de modo que jamais se afastou de tais espacialidades. A experiência de retorno ao engenho tornou-se uma prática frequente na vida de José Lins. Indivíduos tradicionalistas como José Lins e Gilberto Freyre, certamente poderiam repetir as palavras proféticas de Joaquim Nabuco, quando de sua saída do Massangana: Mez e meio depois da morte de minha madrinha, eu deixava o meu paraíso perdido, mas pertencendo-lhe pra sempre... Foi alli que eu cavei com as minhas pequenas mãos ignorantes esse poço da infancia, insondável na sua pequenez, que refresca o deserto da vida e faz d’elle para sempre em certas horas um oasis seductor 599 . Para os homens que pensaram boa parte de suas obras sob o céu da literatura de engenho, o banguê seria uma fonte sacral de alimentação, um manancial com o qual foram saciados e do qual foram, portanto, beneficiados. As viagens de retorno ao engenho seriam, assim, um gesto de gratidão, o cumprimento de uma dívida, como que também a prestação de um culto a uma entidade espacial que muito ajudou nas suas vidas. As viagens ao engenho não deixam, assim, de ter um certo ar de peregrinação. Homens como Joaquim Nabuco, Cícero Dias, Gilberto Freyre, Julio Bello e José Lins aparentam ter guardado incomodamente um grande temor quanto ao fim dos engenhos. Eles temiam o desaparecimento dos banguês, tremiam diante da possibilidade do meio rural brasileiro não possuir mais em sua paisagem as velhas casas-grandes. Um mundo sem engenho, uma paisagem sem bueiros e canaviais aterrorizavam estes descendentes da elite patriarcal. Tal sentimento de medo viria do mundo moderno, da realidade mesmo em que eles viviam. Joaquim Nabuco, Cícero Dias, Gilberto Freyre, Julio Bello e José Lins foram pessoas viajadas que conheceram os principais centros urbanos da modernidade. Nesse sentido, eles intuíam a capacidade destruidora do passado que a sociedade moderna trazia consigo. A usina que substituía as engenhocas primitivas, as relações de trabalho capitalistas que findava com a relação escravo-senhor e as cidades que avançavam sob o universo rural, entre outros processos sociais comuns no Brasil do século XX, entoavam uma canção sombria para esses homens ligados ao passado patriarcal. Sendo assim, as viagens de retorno aos banguês eram oriundas de um medo quanto à história, eram produtos de um receio quanto ao futuro. Os deslocamentos até o engenho, que indivíduos como José Lins realizaram varias vezes, incansavelmente, ocorreram por causa de um sentimento de medo, de dúvida quanto à existência futura das propriedades canavieiras. 599 NABUCO, Joaquim. Op. Cit., 1990, p. 222-223. 260 No Brasil dos anos 1920-1940, tempo marcado pela instauração mais efetiva de uma sociedade de modos capitalistas e moderno, não se sabia até quando se poderia encontrar engenhos. Para desespero e agonia dos regionalistas-tradicionalistas, o passado ia ficando para trás, na poeira de um tempo acelerado, sempre rumo ao futuro. Enquanto houvesse engenho, ou simplesmente pedaços dele, cacos de um passado glorioso, caberia as viagens de retorno, pois “o saudosista sabe que está a ver de perto os últimos suspiros de um mundo que se vai”600. José Lins do Rego, vivendo as grandes transformações do Brasil das primeiras décadas do século XX, foi um indivíduo que subjetivou uma forte consciência da decadência dos engenhos. Seus romances decadentistas acerca dos banguês alimentaram-se dessa sua consciência, formada historicamente e socialmente. Fogo Morto, ainda mais que Banguê, construiu uma faceta decadentista para o engenho, debruçando-se sobre a vida em uma propriedade arruinada, prestes a sucumbir. Em 1943, quando escreveu seu décimo romance, José Lins não só já tinha visitado vários banguês em ruínas, como já tinha também produzido uma imagem decadente para o engenho. Mesmo assim, o escritor paraibano, como fez varias vezes em sua vida, decidiu retornar, e voltou a tecer um discurso decadentista e saudosista para ficcionar as propriedades açucareiras. Tal é o que veremos a seguir. 7.3 Vida e morte do Santa Fé: o engenho de Fogo Morto Narrado em terceira pessoa, o romance de 1943 de José Lins fez uma espécie de biografia do engenho Santa Fé. Esta espacialidade já tinha sido apresentada aos leitores do escritor paraibano, quando da publicação de Menino de engenho. Assim como narrou a história da propriedade Santa Rosa, contada através dos romances Menino de engenho, Banguê e Usina, José Lins também decidiu ficcionar a história do Santa Fé, engenho que nas obras citadas apareceu apenas como um engenho coadjuvante, o vizinho das terras de José Paulino. Nas obras mencionadas do “ciclo da cana-de-açúcar”, o Santa Fé já surgira como um engenho decadente, em franco processo de desaparecimento. Como ocorreu a decadência desta espacialidade? Como era sua vida antes da decadência, em seus tempos áureos? Questões como estas parecem ter ecoado na mente de José Lins, motivando-o a escrever mais um romance cujo eixo temático central fosse o débâcle do banguê. 600 REGO, José Lins do. Op. Cit., 1952, p. 116. 261 Desse modo, a temática de Fogo Morto é praticamente idêntica a de Banguê. Porém, podemos dizer que aquele romance alargou e complexificou o quadro traçado na obra de 1934. O décimo romance de José Lins, para ficcionar a decadência do engenho, não optou por focar em uma única pessoa, como aconteceu em Banguê, a partir de Carlos de Melo. Em Fogo Morto, emergiu de suas páginas a imagem do fim do engenho como um drama coletivo, como um processo que afetaria todos os grupos sociais, indistintamente. José Lins deu um novo tratamento, dessa vez bem mais sofisticado, ao tema da ruína do patriarcado. À época de 1943, o banguê como espaço da decadência já havia se tornado um topos literário, elemento discursivo recorrente e tratado pelos mais variados discursos. O próprio José Lins, em artigo de A Manhã de 25 de setembro de 1944, ao resenhar um livro de Moacir Pereira sobre o assunto, fez tal constatação 601 . A decadência do mundo açucareiro, pelos idos da década de 1940, já era um objeto de saber consagrado para vários discursos, em especial para aqueles vinculados à literatura de engenho. Para romancear a vida e a morte do Santa Fé, seu criador adotou a estratégia narrativa de dividir o romance em três partes, cada uma das quais concentrando-se em personagens distintos. A primeira parte, a mais extensa do romance, denominada de O mestre José Amaro, dedicou forte atenção a um seleiro de beira de estrada, morador do engenho. A parte seguinte, a mais curta do livro, O engenho de seu Lula, abordou o senhor de engenho do Santa Fé, o coronel Lula de Holanda Chacon. E a parte final, intitulada de O capitão Vitorino, tratou do terceiro personagem central do romance, o capitão Vitorino Carneiro da Cunha. Estas três partes 602 não foram tecidas de modo a serem independentes entre si, mas sim para dialogarem uma com a outra, evitando, assim, que um personagem ganhasse demasiada centralidade sobre os outros. A partir da história de vida destes indivíduos, história essa bastante integrada, o discurso romanesco foi urdindo a narrativa sobre o engenho em liquidação. Mesmo com esse enfoque nos personagens, o que acabou diminuindo a focalização na paisagem, o engenho ocupou em Fogo Morto um aspecto central. Na verdade, além do personagem Vitorino Carneiro da Cunha, que circula por entre as três partes do romance, o engenho também pode ser visto como o elemento que perpassa toda a produção literária, na medida em que constitui o pano de fundo de praticamente todas as ações dos personagens. Os principais personagens de Fogo Morto circulam pelo engenho, seja na casa-grande do Santa 601 REGO, José Lins do Rego. “O livro de um senhor de engenho”, A Manhã, 25 de Setembro de 1943. 602 Segue a quantidade de páginas de cada parte: parte I, 155 páginas; parte II, 82 páginas; parte III, 102 páginas. Neste capítulo, trabalhamos com a primeira edição do romance, consultada na Biblioteca Central Zila Mamede da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Ver: REGO, José Lins do. Fogo Morto. Rio de Janeiro: José Olympio, 1943. Optamos por manter, em sua quase totalidade, a ortografia original. 262 Fé ou nas redondezas desta espacialidade. A referência espacial maior do romance é, sem sombra de dúvida, o engenho. Assim como em outros livros de José Lins, a propriedade canavieira recebeu um grande destaque. A centralidade do engenho pode ser aferida atentando-se para a própria capa do romance, elaborada por Tomás Santa Rosa, paraibano amigo de José Lins, de quem ilustrou vários livros. Segue abaixo a capa da primeira edição de Fogo Morto: Figura 101: Capa da primeira edição de Fogo morto Imagem consultada na Biblioteca particular de Vicente Serejo Pela imagem acima, podemos observar o engenho ao fundo, representado pelo bueiro coberto de flores. Como se vê, o Santa Fé, juntamente com um homem, destacou-se na paisagem. Pela capa, contemplamos um engenho decadente, de fogo morto, o que aliou-se imageticamente ao próprio título do romance, que faz alusão ao processo de declínio do banguê. À exemplo de outras capas, a construção simbólica do engenho decadente, portanto, iniciou-se desde a própria capa do livro, elemento, certamente, pensado pelo literato e pelo ilustrador. A propriedade açucareira dilacerada foi o grande alimento literário de José Lins para a feitura de Fogo Morto. Nesse sentido, descortinamos nas páginas deste romance, do ponto de vista ficcional, a vida em um engenho decadente, a maneira como as pessoas levavam suas vidas em uma espacialidade cuja ruína tomou conta de tudo e de todos. Como se percebe, e ao contrário de Banguê, o declínio do engenho foi posto logo de saída, como pressuposto. O romance de 1943 teceu uma dada leitura do processo histórico de transição da sociedade patriarcal para a sociedade burguesa. Este foi mais do que o pano de fundo do livro. A transição histórica entre duas formações sociais distintas é o que explica a própria decadência do engenho e dos homens que vivem neste universo social. 263 Os três personagens principais, os quais estruturam a obra, vivem em uma época de decaimento inelutável, isso porque “as safras do Santa Fé não davam cem pães. Diziam que o velho [Lula de Holanda] todo ano ia ao Recife trocar as moedas de ouro que o capitão Tomás deixara para a filha”603. O Santa Fé foi representado como um engenho de baixíssima produtividade, o que acabou por prejudicar a vida neste universo social, extremamente dependente do açúcar. Tal espacialidade não teria acompanhado as exigências dos novos tempos de progresso: “ - Está aí o engenho num atrazo danado. O major Tomás, o que deixou está aí no mesmo pé. Engenho de bestas, num tempo deste!”604, disse o seleiro José Amaro. Fogo Morto passa-se numa época histórica em que a modernidade e os melhoramentos materiais já chegaram ao campo, produzindo uma situação que exigiu dos banguês o acompanhamento das mudanças. De certa maneira, a decadência do engenho foi urdida a partir da não incorporação dos processos produtivos disponíveis. O Santa Fé, mesmo tendo a possibilidade histórica de realizar melhoramentos materiais, insistiu em permanecer uma engenhoca primitiva. Vemos aqui, em certo sentido, a crítica de José Lins ao progresso, a modernização, encarada como um elemento que, se por um lado permitiu a manutenção dos engenhos, modernizando-os, por outro contribuiu para morte de tantos outros banguês, os quais não quiseram ou não puderam aderir às novas transformações. A condição histórica de possibilidade da ruína dos engenhos teria sido gestada a partir da modernização que invadiu o campo. Ao contrário de Mario Sette, o olhar de José Lins para com a modernização dos engenhos não foi de modo algum simpático ou conciliador. Mais uma vez, observamos posições diferentes e conflitantes no interior da literatura de engenho, sistema discursivo bastante heterogêneo, capaz de abrigar varias produções literárias. A modernização, palavra de ordem no Brasil dos anos 1940, quase um slogan do regime de Getúlio Vargas, não poderia salvar de modo algum os engenhos. O autor de Fogo Morto permaneceu cético em relação às promessas do industrialismo, do pensamento liberal que assegurava uma melhoria social e econômica para o Brasil caso a modernização grassasse a todo vapor. Em um artigo de 1945, intitulado Os lucros da indústria, José Lins fez seus ataques aos propugnadores da modernização: Estou a falar de uma terrível situação que a ganância de homens sem entranhas não quer sentir. Fala-se de uma nova política econômica, no sentido de dar ao povo brasileiro mais gosto pela vida. Como homem da 603 REGO, José Lins do. Op. Cit., 1943, p. 48. 604 REGO, José Lins do. Op. Cit., 1943, p. 47. 264 classe média, como funcionário público, como escritor, eu estarei ao lado dos que pretendem dar têrmo aos vampiros da industria. A política que quiser liquidar com os crimes da indústria que escravisa o país, contará com o povo brasileiro 605 . Os romances de José Lins também expressaram o engajamento sociopolítico das palavras acima. Conforme já assinalamos, a literatura para nós possui uma dimensão política, não se constituindo de forma alguma como uma produção descolada das disputas sociais, como se fosse um discurso neutro e imparcial, apolítico. Com seu romance de 1943, José Lins do Rego tinha certo alvos para atacar. A modernização dos engenhos, os bacharéis, a corrupção da política local, dentre outros, seriam um desses alvos que o escritor paraibano combateu em seu livro. Em Fogo Morto, quase não vemos referências às usinas, simplesmente porque a salvação não está nela nem tampouco a causa única da decadência. O engenho desmantelou- se em razão de toda uma conjuntura histórica, devido ao aparecimento de um novo tempo, de uma nova sociedade, marcada por princípios capitalistas e modernos. O Santa Fé, espacialidade decadente de Fogo Morto, não acompanhou as mudanças e ficou para atrás, tendo uma produção de açúcar irrisória, não podendo competir com outros engenhos mais aparelhados tecnicamente. A parca produção do açúcar foi um dos principais sinais agenciados por José Lins para construir a decadência do engenho. Conforme sabemos, a comercialização do açúcar foi a principal fonte de receita dos engenhos, isso desde a época colonial. Se a produção do açúcar for baixa, toda a engrenagem material da propriedade canavieira encontrava-se em risco. Em Fogo Morto, a pouco produtividade do açúcar foi mostrada em razão do Santa Fé ser um engenho primitivo, movido ainda a tração animal, uma espacialidade que não se modernizou. De acordo com Peter Eisenberg, somente aparelhando o engenho com instrumentos modernos e industriais é que a produtividade do açúcar poderia ser consideravelmente expandida 606 . Nesta mesma direção, Gladson de Oliveira, em estudo sobre a modernização dos engenhos, assinalou que os engenhos movidos a animais, como ilustra ficcionalmente o Santa Fé, chegavam a desperdiçar 30% do material sacarífero, o que certamente implicava na redução da produção do açúcar 607 . 605 A Manhã, 20 de dezembro de 1945. 606 EISENBERG, Peter. Op. Cit., 1977, p. 100. 607 SANTOS, Gladson de Oliveira de. José Lins do Rego e a modernização da economia açucareira nordestina. Dissertação de mestrado. Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Natal, 2010, p. 50. 265 A baixa produtividade instaurava a miséria. E com o engenho imaginado por José Lins também não foi diferente. O Santa Fé no tempo de Lula de Holanda teve uma existência paupérrima. Assim foi descrito o interior da casa-grande, por um personagem pobre do romance, a esposa de Vitorino Carneiro da Cunha, Adriana: “– a sala vazia cheirava a môfo. As cadeiras grandes estendidas em filas que davam para dois sofás, os quadros na parede, o espelho grande do tamanho da parede”608. O principal local do engenho, a moradia do senhor, foi descrita sem nenhuma ostentação ou riqueza. Antes, sobressaiu nessa descrição uma atmosfera de velharia, de móveis velhos, de uma sala parada no tempo. O local que costumava receber os visitantes, onde corriam muitas vezes as festividades do ano, foi narrado como não tendo nenhum luxo ou pujança. É pertinente contrastarmos a passagem citada mais acima com a descrição da sala da casa-grande do Santa Rosa exposta em Menino de engenho, marcada por “firmes mobílias de jacarandá: mesas de chá, sofás, cadeiras de balanço, candeeiros, guarda vestidos, aparadores, consolos”609. O interior da residência do Santa Rosa, com todo o seu mobiliário, diferenciava- se radicalmente da sala da casa-grande do Santa Fé, pois o primeiro engenho representava uma espacialidade em seu tempo áureo, ao passo que o segundo banguê ilustrava a espacialidade decadente. Para José Lins, assim como para Gilberto Freyre, os móveis das casas-grandes eram como indicadores da situação econômica do engenho. À uma residência farta em móveis, bem mobilhada, corresponderia um engenho prospero. No entanto, o que obervamos no Santa Fé foi uma penúria de móveis, e os poucos existentes exalando um cheiro de mofo, “um bafo de morte”610, como pontuou a certa altura a voz narrativa. A miséria do Santa Fé foi arquitetada pelo discurso literário de José Lins também a partir dos animais do engenho. Sob a ótica do narrador de Fogo Morto, temos que o gado do engenho “eram umas três vacas, uns dez bois de carro, uns poucos novilhos. Era tudo que o Cel. Lula tinha de criação. Fosse comparar aquilo com o gado do Santa Rosa?!”611. Semelhante ao interior da casa-grande, pobre e velho em móveis, temos os poucos animais do Santa Fé, criação exígua e bastante diferente da do Santa Rosa. Não bastasse a pouca quantidade de animais, a voz narrativa do romance ainda fez a comparação com o engenho de José Paulino, o que acabou por reforçar a imagem do engenho em miséria. Ainda sobre os animais, temos a seguinte descrição: 608 REGO, José Lins do. Op. Cit., 1943, p. 55. 609 REGO, José Lins do. Op. Cit., 1934, p. 63. 610 REGO, José Lins do. Op. Cit., 1934, p. 70. 611 REGO, José Lins do. Op. Cit., 1943, p. 49. 266 Os cavalos já não eram aqueles dois belos cavalos ruços, que pareciam de história de Trancoso. A nova parelha do cabriolé não apresentava aquela beleza de antigamente. Eram dois pobres quartaus, que podiam ser bem duas bestas de cargas. Em todo o caso teriam forças bastante para arrastar a família do Santa Fé pelas estradas 612 . O cavalo, animal que no discurso da elite patriarcal servia como símbolo aristocrático, como marcador identitário de distinção social, foi dito e visto sem nenhuma ostentação e glamour. Antes, ressaltou-se a miséria do animal, próximo de uma besta de carga usada por qualquer pessoa. O engenho decadente não tem animais pachorrentos e bem tratados. Em vez dessa imagem, sublinhou-se uma criação magra e mal tratada. A desventura do engenho também foi forjada a partir da pouca quantidade de ex- escravos no Santa Fé. Ao contrário do Santa Rosa, onde os escravos permaneceram nas terras do senhor mesmo após a Abolição, no engenho de seu Lula a escravaria tomou outros rumos para além do engenho. Em todos os engenhos haviam ficado escravos que não queriam abandonar os senhores, que amavam os senhores como si fossem criaturas da casa- grande. Ali no Santa Fé não paravam. E eram até vistos como inimigos. Via aquele Nicolau, já bem velho, passar pela porta e mal tirar o chapéu. Parecia um negro de longe, que nunca parara no engenho. E todos os outros, exceção do boleeiro, se tinha feito no mundo 613 . Um engenho decadente é um engenho com quase nenhum ex-escravo, o que faz de tal espacialidade um lugar solitário, abandonado, silencioso. O tradicional vínculo entre senhor e escravo, louvado como um elo firme e afetivo por muitos regionalista-tradicionalistas, foi mostrado como rompido, devido à ruína do banguê. A ausência ou a pouca quantidade de ex- escravos funcionou como mais um elemento para destacar a decadência do engenho, espacialidade esvaziada. Cumpre assinalarmos que ao retratar a não permanência dos escravos após o maio de 1888, José Lins realizou uma espécie de torção nos enunciados da literatura de engenho. Nos discursos vinculados a esta formação discursiva, conforme pudemos mostrar a partir de Senhora de engenho e Menino de engenho, era comum apontar a permanência dos escravos no engenho após a Abolição. O engenho era uma grande comunidade da qual ninguém queria sair ou deixar, onde todos sentiam-se acolhidos e integrados, sem conflito, vivendo em harmonia. Ocorre que esta imagem ordeira, construída por boa parte dos discursos vinculados a literatura de engenho, diz respeito ao engenho em seus tempos áureos, a uma espacialidade 612 REGO, José Lins do. Op. Cit., 1943, p. 231. 613 REGO, José Lins do. Op. Cit., 1943, p. 223-224. 267 não corroída pela decadência. O banguê em Minha Formação, Senhora de engenho e Menino de engenho não são espacialidades decadentes, mas sim ambientes prósperos, vivendo sua época de ostentação e progresso. Quando forjou-se a propriedade açucareira em colapso, como ocorreu em Fogo Morto, a visão comunitária desfez-se, e os ex-escravos são retratados não mais como habitantes de um mundo idílico e pacífico, mas sim como seres não afeiçoados ao engenho, espaço do qual querem distancia. O engenho decadente já não é mais um éden, um reino paradisíaco onde todos vivem em harmonia. O mundo pastoral, de afetos entre senhor e escravo, começa a desabar junto com o decaimento do engenho e da própria sociedade escravista. Findam-se as relações afetivas e pessoais entres os grupos sociais. A espacialidade torna-se um reles lugar, onde vive o senhor de engenho, sua esposa e seus filhos, apenas, sem a companhia daqueles que secularmente lhe serviram. Com a decadência, irrompe o conflito de classe, ocorre a quebra da tradição e a ruptura quanto aos papeis sociais. Ao pontilhar a Abolição como elemento desencadeador do caos social no engenho, o autor de Fogo Morto acabou aproximando seu discurso romanesco com a tradicional queixa da elite banguezeira decadente. A literatura de José Lins, como todo discurso, longe de ser apolítico, não se isentou das questões sociais nem muito menos dos interesses políticos de dados grupos sociais. De acordo com Iranilson Buriti de Oliveira, a açucarocracia de fins do século XIX armou-se discursivamente com a ideia segundo a qual a Abolição, da maneira como foi feita durante o período monárquico, acabou por prejudicar muito barões do açúcar. Esta classe social teria perdido propriedades que lhe eram suas por compra, portanto por direito, e isso sem nenhuma indenização ou compensação do Estado. O resultado disso teria sido a perda de capitais, o aumento das dívidas e a diminuição da produção açucareira, o que teria gerado, a longo prazo, o próprio dos fim dos engenhos 614 . Gilberto Freyre, rebento da açucarocracia nortista, foi quem mais se apropriou da e atualizou, nas décadas iniciais do século XX, este discurso ressentido da elite banguezeira de fins do Oitocentos. Para o escritor pernambucano, teria sido o Nordeste a região que mais sentiu e sofreu com a libertação dos escravos, em razão da grande quantidade de engenhos que havia em tal região. Ao contrário do sul, região que recebera imigrantes, que assentava sua mão de obra em relações assalariadas, a Abolição teria desencadeado no antigo norte do Brasil uma verdadeira crise não só de mão de obra, mas também social, dada pela progressiva diminuição dos engenhos patriarcais 615 . Fogo Morto, livro escrito por alguém muito próximo 614 OLIVEIRA, Iranilson Buriti de. Op. Cit., 1997. p. 26. 615 FREYRE, Gilberto. Op. Cit., 1970, p. 80. 268 a Gilberto Freyre e também descendente da açucarocracia, aparenta também ter embarcado nessa construção discursiva, sublinhando o papel desagregador do maio de 1888, evento histórico que teria esvaziado o banguê, que teria instaurado o caos nesta espacialidade, contribuindo, pois, para sua decadência. Uma outra imagem decadentista agenciada pelo discurso literário de Fogo Morto para fabricar o engenho destroçado consistiu na representação da terra abandonada. O Santa Fé, com o passar dos anos, foi ficando cada vez mais desassistido, como se não tivesse um senhor para cuidar-lhe. A decadência levaria ao abandono do engenho. Eis abaixo a visualidade construída pelo discurso do narrador: A carruagem atravessava as várzeas do Santa Fé. Tudo estava coberto de mato. Só um partido de cana, umas 3 cinquentas, com o verde escuro das canas bem criada. No mais era a mataria, o tabocal, o matapasto, o melão de S. Caetano se enroscando pelas estacas da beira da estrada. Também não havia ninguém que quisesse plantar as terras do Santa Fé. [...] D. Amélia, de cima de sua carruagem, enfeitada de trancelins, com os dedos duros de ouro, sentia o abandono da terra de seu pai, como si visse um filho no desamparo 616 . D. Amélia era a esposa de Lula de Holanda e a filha do senhor de engenho que fundou o Santa Fé. Na gestão de seu esposo, a sua terra familiar se desgastara, ficara sem assistência, sem tratamento adequado. A retórica da passagem acima tem claros contornos familiares e afetivos, de modo que o engenho foi figurado como se fosse um filho que precisasse de cuidados, espécie de criança cujo crescimento é necessário acompanhar. Na verdade, uma retórica afetuosa acerca do engenho foi um típico componente discursivo da literatura de engenho. Semelhante a José Lins, imaginando o Santa Fé coberto de mata como um filho desamparado, encontramos também uma poesia de um literato alagoano, companheiro do escritor paraibano nas rodas literárias de Maceió nos anos 1930. Trata-se do poema Engenho Boa Sorte, escrito em 1929 por Théo Brandão. Assim iniciou a produção literária do poeta saudoso do banguê: Engenho Boa Sorte! Que sorte ruim a tua Meu engenho de cana! Como estais tão velho, tão paralítico Tão abandonado, Engenho Boa Sorte! 617 616 REGO, José Lins do. Op. Cit., 1943, p. 252. 617 BRANDÃO, Théo. Théo Brandão, mestre do folclore brasileiro. Maceió: EDUFAL, 1988, p. 161-162. 269 O autor acima, constatando a decadência do seu engenho familiar, fez uma espécie de humanização da espacialidade em tela, travando com ela um diálogo nostálgico. É como se o engenho Boa Sorte fosse uma pessoa querida, um ente familiar. Daí porque faria sentido dizê- lo como estando velho, paralítico e abandonado, bem como desejar-lhe boa sorte na vida. O engenho decadente seria como “uma carcaça velha”618, espacialidade sem vida, a beirar da morte, vivendo apenas de passado, sem futuro nenhum. O fim do engenho despertou no poeta a saudade do banguê. É comum nos discursos da literatura de engenho a decadência desta espacialidade vir acompanhada de uma postura saudosista, de um olhar nostálgico. Como já apontamos, existe uma intima relação entre saudade e perda. O lamento pela ruína da propriedade canavieira tende a convocar a saudade do engenho, saudade essa que é, na verdade, um sentimento não pelo espaço em si mesmo, mas sim pelas relações sociais que se tinham no universo açucareiro. Semelhante à saudade de Joaquim Nabuco pelo escravo da propriedade de sua madrinha, a saudade do engenho, expressada por Theo Brandão e certamente compartilhada por José Lins, seria um choro pela sociedade patriarcal, pelos códigos sociais que sustentavam e regiam esta formação social. O engenho não seria tão somente a terra, as árvores ou os rios, mas seria também o próprio espaço humano, ou seja, sentir-se-ia saudade dos homens e das mulheres que habitaram o banguê, das relações sociais aí estabelecidas, dos papeis sociais instituídos. Como ressaltou Michel de Certeau, o espaço é um conjunto de práticas, a série de vivências estabelecidas pela sociedade num dado lugar 619 . Das práticas sociais da sociedade escravista, das experiências desfrutadas numa sociedade patriarcal, da vivência hierárquica e personalista do engenho, sentir-se-ia saudade. O desmoronar do engenho levaria consigo não só o desabamento da propriedade canavieira ou da casa-grande, mas também de todo o sistema social existente neste universo. Daí o pranto saudosista que muitos indivíduos fizeram. Julio Bello, em suas Memórias de um senhor de engenho 620 , livro publicado em 1938 (mas escrito em 1935) por incentivo de Gilberto Freyre, na época diretor da coleção Documentos Brasileiros 621 , e prefaciado por José Lins, também fabricou o engenho decadente 618 BRANDÃO, Théo. Op. Cit., 1988, p. 162. 619 DE CERTEAU, Michel. Op. Cit., 1994, p. 183-194. 620 Para uma análise deste livro, ver o capítulo segundo (“1935, lembranças de um velho senhor”) da tese de AGRA DO Ó, Alarcon. Velhices imaginadas: Memória e Envelhecimento no Nordeste do Brasil (1935, 1937, 1945). Tese. Programa de Pós-graduação em História, Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Recife, 2008, p. 60-101. 621 Conjunto de obras publicadas pela José Olympio Editora, a partir de 1936, voltadas para a produção de um conhecimento sobre o Brasil, a partir das diversas realidades nacionais. Gilberto Freyre coordenou tal empreendimento até 1938, quando foi sucedido por Octávio Tarquínio de Souza. Mais informações sobre esta coleção em: FRANZINI, Fábio. Escrever textos, editar livros, fazer história: a coleção documentos brasileiros e 270 a partir de uma retórica afetiva. Para o memorialista pernambucano, que viveu boa parte de sua vida no engenho Queimadas, a despeito de sua varias incursões na política estadual, a casa-grande de sua propriedade estava ficando cada vez mais Como uma velhinha que ao peso dos annos se dobra toda olhando a terra onde irá em breve dormir para sempre, dia-a-dia ella mais se acachapa e diminui na altura descendo também para a terra... Trago-a limpa, com as suas paredes sempre bem caiadinhas e as suas portas e janellas, rudes, de pau, pintadas de verde, da cor das árvores que formam o fundo do quadro onde ella se destaca. Não ponho no seu asseio nada de enfeites ridículos: tudo moderado e discreto, como convém a uma velhinha que se respeita 622 . A casa-grande, já não contando mais com a época de esplendor do engenho, foi figurada como uma velhinha, como uma entidade humana que, tal qual uma pessoa, também se desgastava e sofria a ação do tempo. A decadência do engenho parece produzir uma retórica extremamente afetiva para falar sobre esta espacialidade. Quando vislumbra-se a derrocada do banguê, usa-se de uma escrita empática, humanizadora dos espaços. José Lins, Theo Brandão e Julio Bello produziram discursos irmanados neste sentido. Nestes homens, o fim do banguê foi sentido como se fosse a morte de uma pessoa querida, de um ente familiar. O fim do banguê machucaria tanto como a morte de um parente numa família unida. Na verdade, a destruição da propriedade canavieira, situação que começou a se multiplicar no Brasil das primeiras décadas do século passado, foi encarada como o desmoronar de pedaços de suas próprias vidas, haja vista que tais indivíduos forjaram-se enquanto meninos de engenho, adultos que se lembram saudosamente de suas infâncias rurais, desfrutadas nos banguês. A decadência do engenho significaria o apagamento de um espaço da infância, agora só existente na memória saudosa. José Lins, Theo Brandão, Julio Bello e muitos outros homens que passaram parte de suas vidas em casas-grandes, produziram suas obras impregnadas dessa memória saudosa do engenho, o que explicaria a dose empática e afetuosa de suas escritas. O discurso memorialístico, como pontuou Fernando Nicolazzi, tende a produzir uma retórica da identidade, isto é, um texto oriundo de uma profunda identificação íntima entre aquele que escreve e o objeto da escrita 623 . Na literatura de engenho, a escrita tende a ser imaginada como um elemento que permitiria uma aproximação com o espaço querido, o as transformações da historiografia nacional (1936-1960). Revista Tempo e Argumento, Florianópolis, v. 5, n.9, jan./jun. 2013. p. 24 - 45. 622 BELLO, Julio. Op. Cit., 1938, p. 25-26. 623 NICOLAZZI, Fernando. Op. Cit., 2011, p. 321-373. O desenvolvimento da ideia de uma retórica da identidade, pensada a partir da escrita de Gilberto Freyre, encontra-se discutida nas páginas indicadas. 271 engenho. Naquela formação discursiva, a escrita se quer ponte para o passado, janela para tempos vividos, meio de acesso para eventos transcorridos. No caso de José Lins, sua narrativa, presente tanto em seus romances quanto em seus relatos de viagens, foi um empreendimento de busca do tempo perdido, revela todo seu esforço para evocar um passado que o escritor não queira de forma alguma que passasse. Pela literatura, almejava-se reencontrar e reconstruir um tempo, uma sociedade, um espaço. O historiador francês Jacques Le Goff asseverou em seu livro História e Memória a existência de uma relação entre decadência e envelhecimento. A associação entre velhice e declínio é algo muito comum de se observar nas mais diversas sociedades, porque a senilidade é um momento no qual se percebe uma tendência para o retraimento social, a diminuição do vigor, a existência de alguns malefícios físicos e a proximidade com a morte 624 . O romance de 1943 de José Lins, assim como os textos aqui citados de Theo Brandão e Julio Bello, aparenta ter feito essa articulação entre velhice e decadência. Como assinalaram Aline de Paulo Nascimento e Débora Souza Martins, Fogo Morto contém um elenco de personagens envelhecidos. Não há crianças nem jovens em tal obra literária 625 . Assim como a estrutura material do engenho envelheceu, os indivíduos habitantes deste universo também sofreram os efeitos de Cronos. A decadência ocorre no e com o tempo. José Lins produziu um universo social todo desgastado, arruinado, sem perspectiva nenhuma de futuro. Um engenho decadente seria uma espacialidade envelhecida, sem capacidade nenhuma de reprodução futura. A mata crescendo ao redor da casa-grande, tomando conta dos partidos de cana, aumentando cada vez mais seu território no engenho, indiciaria ainda a falta de labor humano. Nesse sentido, José Lins operou a partir da dicotomia, muito presente no pensamento social brasileiro das décadas iniciais do século XX, entre natureza e trabalho. O engenho decadente, em franco processo de definhamento, caminharia cada vez mais rumo ao reino da natureza, para a esfera do não trabalho, da não ação social. Ele voltaria a ser o que era antes da ação humana: mero pedaço de terra, natureza despovoada. O banguê de fogo morto, declinado, deixaria de ser engenho humano, tornando-se tão somente uma área abandonada. Para evitar a decadência da propriedade açucareira, portanto, seria mister a ação humana, mais precisamente, o trabalho do homem, coisa que não havia no Santa Fé do seu Lula. 624 LE GOFF, Jacques. Op. Cit., 2013, p. 344. 625 NASCIMENTO, Ana Paula do; MARTINS, Débora Souza; Paredes de tempo: espaço e loucura em Fogo Morto. Revista Mafuá, Ano 6., Num. 9., 2008. 272 Tal qual Banguê, o romance de 1943 de José Lins também mobilizou uma explicação para o declinar do engenho Santa Fé. Para George Lukács, estudioso dos romances europeus do século XIX, uma das principais características do romance histórico diz respeito à capacidade de articular explicações para eventos históricos. Tal gênero literário, que logrou considerável sucesso no Brasil dos anos 1930-1940, não só transplantaria acontecimentos históricos para o plano ficcional como elaboraria uma explicação de tais fatos, fornecendo uma dada leitura do passado, uma determinada perspectiva dos eventos transcorridos 626 . Fogo Morto, muito mais do que Banguê, pode ser etiquetado com o selo de romance histórico, na medida em que seu autor inseriu no plano narrativo uma clara explicação dos acontecimentos pretéritos. A explicação do passado, como ousou provocar Frederico Jameson em uma conferência sobre o romance histórico, nunca foi e dificilmente um dia será monopólio exclusivo dos historiadores 627 . Nesse sentido, a decadência do engenho teria uma explicação, não seria de modo algum um mistério. Teria, pois, sua história, ainda que contada por um literato do ponto de vista romanesco. Da leitura de Fogo Morto, depreendemos que o engenho tornou-se decadente a partir do governo de Lula de Holanda, homem vindo da cidade de Recife e que herdou o Santa Fé após casar-se com a filha do senhor de engenho que fundou tal propriedade, o capitão Tomás Cabral de Melo. Lula de Holanda não passa de uma reedição, com pequenas diferenças, de Carlos de Melo. Tal qual este, foi educado na cidade, onde tornou-se bacharel em Direito. Tal qual o neto de José Paulino, viu-se também obrigado a assumir o controle do engenho após a morte do patriarca fundador do Santa Fé. Ainda tal qual Carlos de Melo, mostrou-se completamente despreparado para o comando do banguê (também passava o tempo lendo jornal e livros na rede), o que acabou por colocar o Santa Fé na rota da decadência. Assim como o Santa Rosa, o engenho de Fogo Morto também declinou em razão da administração de um senhor de engenho despreparado, homem avesso ao meio rural, feito da e para a cidade. Fogo Morto foi mais um dos vários romances dos anos 1930-1940 vazados numa oposição entre cidade e campo, sendo esta esfera representada pelo engenho. Na verdade, na obra literária de José Lins, dificilmente cidade e engenho se harmonizam, predominando sempre o conflito e a dicotomia entre essas duas esferas. Nessa postura, vemos um eco da própria sociedade brasileira de início do século XX, marcada cada vez mais pelo crescimento da zona urbana. No Brasil vivido por José Lins, a população citadina aumentava, as cidades 626 LUKÁCS, George. O romance histórico. São Paulo: Editora Boitempo, 2011, p. 37. 627 JAMESON, Frederico. O romance histórico ainda é possível? Revista Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, Num. 77., Mar. 2007, p.185-2003. 273 cresciam do ponto de vista material e concentravam vários serviços e bens de consumo, o que fazia de tais espaços uma zona privilegiada e sedutora. Por essa época, já era possível intuir, para uns de forma triste e para outros de forma entusiasmada, que a cidade roubaria do campo o posto de área central do país, capaz de agregar pessoas e gerar lucros para a nação. A dualidade entre engenho x cidade vem dessa realidade, já perceptível no Brasil das primeiras décadas republicanas. José Lins, ao explicar a decadência do engenho a partir de um senhor de engenho incompatível com tal oficio, atualizou o problema da herança patriarcal. No fundo, o que levou o banguê a desaparecer foi a falta de verdadeiros herdeiros, homens que pudessem e soubessem comandar um engenho, tal qual um José Paulino. A tradição patriarcal de homens que sabiam empunhar uma vara, dar gritos e fazer-se obedecer, não encontrou continuadores, o que acabou sendo decisivo para o fim dos engenhos. Lula de Holanda ilustrou mais uma vez esse problema da tradição quebrada, em razão de uma nova época, de uma nova sociedade incompatível com o universo patriarcal. A explicação da decadência do engenho residiria aí, na falta de homens como Tomás Cabral de Melo e José Paulino, indivíduos que acordavam cedo, percorriam cada ponto do engenho e não poupavam gritos aos cabras do eito. Além da mesma explicação para o fim dos engenhos, encontramos também em Fogo Morto o mesmo elogio aos antepassados, dessa vez de uma forma mais clara e sofisticada. José Lins, em 1943, reeditou a gloria dos patriarcas de outrora, reelogiou os homens que seriam os autênticos senhores de engenho. No caso do romance ora em apreço, o grande patriarca seria o capitão Tomás Cabral de Melo, personagem que fundou o Santa Fé e manteve-o produtivo até o dia de sua morte, quando então começou a declinar. Mais uma vez, ligou-se simbioticamente engenho e indivíduo: O mestre Amaro parou um pouco junto ao paredão do engenho, e reparou nos estragos que a chuva fizera nos tijolos descobertos. Pareciam feridas vermelhas. O bueiro baixo, e a boca da fornalha escancarada, um barco sujo. Lembrou-se dos tempos do capitão Tomás de quem o seu pai lhe contava tanta coisa, das safras do capitão, da botada com festas, das pejadas, com a casa de purgar cheia de açúcar. [...] Lá na casa-grande do Santa Fé estava escrito uma data: 1850. Ainda o tempo do capitão Tomás, o tempo da grandeza 628 . A temporalidade em Fogo Morto, ao contrário dos outros romances de José Lins aqui analisados, oscilou em pelo menos duas temporalidades. A primeira parte, que contou a história de José Amaro, cobriu uma temporalidade que se passa nos anos iniciais do século 628 REGO, José Lins do. Op. Cit., 1943, p. 50. 274 XX, enquanto que a segunda parte fez um retorno temporal, voltando-se para acontecimentos que ocorreram entre 1848-1910, mais ou menos. A terceira parte voltou aos anos iniciais do século XX. Foi com essa estrutura temporal não linear que José Lins pôde louvar os anos passados, construindo a época patriarcal do Capitão Tomás como a era de ouro do engenho Santa Fé. 1850, indica o governo de Tomás Cabral de Melo, emblema dos tempos de grandeza patriarcal, insígnia dos tempos gloriosos. No comando do capitão Tomás, as safras eram para mais de mil pães de açúcar, a escravaria era farta, os animais bem cuidados e os partidos de cana formavam um verdadeiro mar verde ao redor da casa-grande. Se Lula de Holanda lembrou muito Carlos de Melo, Tomás Cabral assemelhou-se muito com José Paulino. Ambos senhores de engenho possuíam o grito de mando, a vara de comando patriarcal e o tino para serem obedecidos. Tal personagem marcou o reelogio de José Lins aos senhores de engenho. Com ele, personagem que ilustrou a autêntica linhagem patriarcal dos engenhos, o escritor paraibano reencontrou também a valorização do trabalho, tal qual exposta por Mario Sette em Senhora de engenho, a partir dos senhores Nestor e Lúcio, dois personagens que também encarnaram, como vimos, uma ética do trabalho. O autor de Fogo Morto fabricou um senhor de engenho devoto do trabalho, homem que “não havia chuva que o impedisse de sair de casa, não havia sol quente que lhe metesse medo. Assim o Santa Fé, com o capitão Tomás Cabral de Melo, chegou a sua grandeza”629. O engenho atingiu seu brio máximo em razão da existência de um senhor de engenho que não dispensava trabalho, que fiscalizava e controlava cada ponto de sua terra. Tal espacialidade abateu-se justamente por falta de iniciativa e disposição, pelo fato do novo senhor de engenho ficar mais em casa, preguiçosamente, sem querer trabalhar. Decadência indica, pois, falta de trabalho, ausência de um senhor de engenho disposto ao labor diário. No entanto, a valorização do trabalho, presente em Fogo Morto, deve ser articulada não só a partir da literatura de engenho. No ano de 1943, o Brasil passava pela ditadura do Estado Novo, instaurada por Getúlio Vargas desde 1937. Tal regime político teve uma nota muito audível de valorização do trabalho, visto como um dos principais elementos que poderiam regenerar o país. A modernização do Brasil, projeto encabeçado por Getúlio Vargas, ocorreria a partir do trabalho de cada indivíduo nos quatros cantos do Brasil. As várias medidas do Estado Novo como a instituição da Consolidação das Leis do Trabalho, instaurada em 1943, como a institucionalização da Carteira de Trabalho, a criação da Justiça do Trabalho 629 REGO, José Lins do. Op. Cit., 1943, p. 177. 275 e do salário mínimo, da folga semanal remunerada, entre outras medidas, se atestam a luta do movimento operário, atestam também a abertura do regime para a valorização do homo faber. José Lins, que colaborou em algumas iniciativas do regime 630 , provavelmente acolheu estas ideias e delas se serviu para tecer o perfil de Tomás Cabral de Melo, retratado como um senhor de engenho disposto e ativo. A caracterização deste personagem cumpriu o propósito de explicitar a decadência do engenho. O Capitão Tomás foi o elemento que encaminhou o tempo de glória para o passado, deixando para o presente o tempo da ruína, da desgraça. A data de 1850, estampada na casa- grande do Santa Fé e tantas vezes retomada na narrativa do romance, seria o ano-símbolo da época de grandeza do engenho. 1850, não nos parece aleatória esta data: tempo da monarquia brasileira, época anterior à Abolição, à Proclamação da República e às usinas, ano da Lei de Terras, quando os senhores de engenho legitimaram de vez suas propriedades, e da medida que determinou o fim do trafico interatlântico de escravos (Lei Eusébio de Queiroz). O tempo de glória patriarcal estaria recuado no tempo, alojado em um período distante do presente de José Lins, presente este que se pretendia moderno e democrático. A era de ouro dos senhores de engenho como capitão Tomás e José Paulino não estaria, de modo nenhum, no século XX. A decadência seria, portanto, um evento datado: a partir de fins do século XIX. Nesse sentido, temos a retomada de uma marca muito comum dos romances de José Lins: o passado como a era de ouro, a época feliz, os anos adocicados. O tempo da prosperidade, a época de paz e harmonia tende sempre a ser remanejado para o passado. A obra literária de José Lins permaneceu cativa desta valorização do tempo pretérito. E aqui o escritor paraibano encontrou-se com o ideário do grupo regionalista-tradicionalista, para o qual o passado patriarcal merece louvores e o presente burguês e moderno merece repúdios. José Lins detratou o presente em função do passado. Para ele, o seu momento atual, os seus anos vividos, trazem a marca da decadência, do insucesso, da desventura. A posição de José Lins na esfera pública, zona muito ocupada pelos literatos brasileiros da primeira metade do século XX, foi praticamente a mesma exposta nos seus romances: É que a cidade vai crescendo sem ver o homem, e o homem se perde na cidade, em vez de nela se integrar. Vamos, assim, desumanizando a casa, fazendo-a subir em arranhas-céus disformes, e eliminando o que há de vivo e natural nas nossas moradas. Os edifícios coletivos separam os homens em células de presídio. O homem ali é mais individualista, mais só, mais 630 Colaborou assiduamente no jornal A Manhã, quando da direção de Cassiano Ricardo, intelectual que ocupou vários cargos na maquina burocrática do Estado Novo. Além de colaborar naquele jornal, o escrito paraibano escreveu também alguns artigos para revista oficial do regime político inaugurado em 1937: cultura política. 276 separado do mundo, de cima do seu apartamento. Perde o contato com a terra, vê as árvores de cima para baixo, isola-se para viver, perdendo assim atributos da natureza. Tudo isto pode ser pratico, mas é estúpido. O Rio de Janeiro que vivia tão próximo a natureza, com as suas praias, com as suas matas, vai no rumo das grandes cidades americanas querendo transformar-se em aglomerado de monstro de cimento armado 631 . Este artigo de José Lins, escrito um ano antes da publicação de Fogo Morto, resumiu bem sua posição frente à sua época. Há nas palavras acima não só uma recriminação ao urbanismo moderno, uma censura ao meio urbano, visto como um espaço onde a solidão grassa mais facilmente, onde não há uma integração entre homem e natureza, como há também a própria percepção de que o tempo presente seria um tempo decadente, que trouxe muitos prejuízos ao homem. Antes, na sociedade patriarcal, o indivíduo não vivia só, mas em comunidade, assim como estava integrado à natureza, em comunhão com as árvores, com as águas e com os animais. Na sociedade moderna, tudo isso teria sido rompido, em nome de outros valores e modos de vida. Instaurou-se a decadência, o triste fim da sociedade banguezeira. O presente seria um amontoado de ruínas, um monumento de destroços pilhados pela sociedade moderna. José Lins louvou o passado porque detratava sua época, repudiava seu presente dito moderno. Nesse sentido, entendemos porque o romancista em seus primeiros livros dedicou-se a ficcionar o passado da civilização açucareira. A construção simbólica do engenho decadente é fruto, em grande medida, dessa postura reativa em relação ao presente moderno, caracterizado por uma sociedade diferente daquela que predominou nos engenhos de açúcar. Os romances de José Lins do “ciclo da cana-de-açúcar” respiram um mal estar para com a época das décadas iniciais do século XX, justamente porque esse foi um momento de intensas transformações, as quais acabaram por dizimar certos traços e símbolos da sociedade banguezeira. Sempre quando se aproxima dessa temporalidade, fabrica-se o engenho decadente. A liquidação desta espacialidade não estaria no tempo da monarquia, na sociedade imperial, no momento em que as cidades não passavam de pequenas vilas, mas estaria, sim, no tempo republicano, na aurora da era moderna. Em Fogo Morto, a decadência do engenho foi fabricada de modo a afetar não só o espaço, mas também as próprias pessoas que nele habitam. Engenho e indivíduos mostram-se decadentes, unidos no fim da propriedade canavieira. O final do romance é significativo neste sentido. Nas últimas páginas vemos um diálogo entre José Passarinho, negro que perambulava pelo Santa Fé e redondezas, e Vitorino Carneiro da Cunha. Os dois homens encontraram-se 631 A Manhã, 5 de agosto de 1942. 277 devido ao suicídio de José Amaro, encontrado sozinho na sua casa com uma faca encravada no peito. Os dois homens saíram então pela estrada, a fim de providenciarem o enterro do amigo, e a certa altura do caminho, tem-se: Lá da estrada, quando deram a volta, viram a fumaça do bueiro do Santa Rosa, melando o céu azul. - O Santa Rosa botou hoje? - É, capitão. Foram andando. [...] Agora viam o bueiro do Santa Fé. Um galho de gitirana subia por ele. Flores azues cobriam-lhe a boca suja. - E o Santa Fé quando bota, Passarinho? - Capitão, não bota mais, está de fogo morto 632 . Estas foram as palavras finais do romance, as quais pairaram como uma espécie de epitáfio sobre o túmulo do engenho, agora de fogo morto, isto é, completamente destruído. Em carta a Gilberto Freyre de 1943, comentando seu novo romance, José Lins afirmou que “a sugestão do engenho parado me dá o título”633. A imagem decadentista do Santa Fé, reforçada com a comparação com o bueiro do Santa Rosa, perpassou praticamente todo o romance, do início ao fim. O final, de resto como todo o livro, ficcinou a vida e a morte do engenho, mostrou o banguê como espaço da decadência. O final do romance destacado acima retratou uma situação que provavelmente muitos regionalista-tradicionalistas como José Lins, homens que se habituaram a incursionar por engenhos em ruínas, presenciaram ao longo de suas viagens de retorno ao banguê. Um galho de Jitirana só nasce em um bueiro de engenho quando não há mais fumaça, quando a temperatura do bueiro perdeu o calor proporcionado pela produção do açúcar. Assim, uma flor de Jitirana surgindo em um bueiro, num local que possui uma boa visualidade, pois está no alto, indica o próprio fim do engenho, indicia a ausência de produção açucareira. O escritor paraibano afeito a viagens deve ter visto cenas como a do final de Fogo Morto: uma flor azul nascendo sobre a ruína de um engenho, espacialidade agora arruinada, cedendo espaço para a natureza. A Jitirana emergindo no bueiro representaria uma nova vida que surgia por entre os escombros do banguê arrasado. Há aqui a presença incômoda da morte, da morte do universo banguezeiro. A morte, seja de uma pessoa ou a do próprio engenho, marcou o final de Fogo Morto. Aliás, como bem notou Durval Muniz de Albuquerque Júnior, a morte foi um elemento que 632 REGO, José Lins do. Op. Cit., 1943, p. 363. 633 Carta de José Lins do Rego a Gilberto Freyre, sem mês, 1943. 278 perpassou toda a obra literária de José Lins 634 . Seu romance inicial e sua última obra literária, as memórias contidas em Meus verdes anos, anunciam logo nas primeiras páginas a morte 635 . A presença deste elemento nos fala do fim da própria sociedade banguezeira que o escritor paraibano tanto sonhou e idealizou. A morte rondou seus escritos literários porque José Lins não só presenciou o esfacelamento do universo patriarcal, como tentou também recuperá-lo, refundá-lo, nem que fosse por meio da literatura. José Lins escriturou a morte dos engenhos, ficcionou o fim desta espacialidade para torná-la mais viva entre os vivos, para que seus contemporâneos não esquecessem do banguê. Falar da propriedade canavieira, nem que fosse daquelas de fogo morto, seria uma maneira de combater a finitude do mundo patriarcal, de evitar o esquecimento social de uma espacialidade que desde o século XVI marcava a história do Brasil. No fundo, foi contra a morte dos banguês que José Lins tanto escreveu. Daí a presença incômoda da morte nos seus escritos literários. 7.4 Vidas decadentes: a ruína do engenho como uma tragédia coletiva Em Fogo Morto, como já insinuamos, José Lins ampliou substancialmente seus personagens, não tanto do ponto de vista numérico, mas sim a partir do perfil de cada um deles. Ao contrário dos seus outros romances, o livro de 1943 apresentou três personagens principais, todos eles intensamente investigados e adensados. A perspectiva de um único personagem central, visto como “o” protagonista, foi abandonada, em detrimento de uma escolha que privilegiou quase que igualmente os personagens de José Amaro, Lula de Holanda e Vitorino Carneiro da Cunha. Por conta desse traço, Antonio Candido, em breve estudo, afirmou que “Fogo Morto é, por excelência, o romance dos grandes personagens”636. Tanto quanto o engenho Santa Fé, os personagens criados também se sobressaíram na história, obtendo grande relevo e destaque. De fato, podemos afirmar que existe uma intensa articulação entre os personagens e o engenho, mais precisamente com o processo de ruína do Santa Fé. Durval Muniz de Albuquerque Júnior, em um artigo onde investiga a partir de Fogo Morto a crise de determinado modelo de masculinidade, a ruína de uma dada forma de 634 ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. Op. Cit., 2008, p. 353. 635 REGO, José Lins do. Op. Cit., 1934 (A); REGO, José Lins do. Meus Verdes Anos. Rio de Janeiro: José Olympio, 1956. 636 CANDIDO, Antonio. Um romancista em decadência. In: COUTINHO, Eduardo F.; CASTRO, Ângela Bezerra de. (Org.). Op. Cit., 1990, p. 393. 279 virilidade e de uma dada maneira de ser homem, afirmou que o trauma da decadência do banguê manifestou-se nos próprios personagens do romance 637 . Tal produção literária se caracterizaria por construir não só uma espacialidade decadente, mas também por forjar pessoas em decadência. Nesse sentido, enveredando a partir da senda aberta por Antonio Candido e pelo historiador citado neste parágrafo, discutiremos neste tópico a maneira como a decadência do engenho se corporificou nos personagens centrais de Fogo Morto. Através destes, explicitaremos também uma outra faceta do decaimento da propriedade rural. O primeiro personagem abordado por Fogo Morto foi um seleiro de beira de estrada, homem que tinha por nome José Amaro e que vivia nas terras do Santa Fé sem nada pagar, em virtude de ser um morador antigo. Na verdade, José Amaro ilustrou um típico personagem da sociedade açucareira, o foreiro, indivíduo que morava na terra do senhor e que, por conta dessa moradia, pagava-lhe uma determinada quantia. Personagem existente desde a época colonial, o foreiro representava um homem livre, situado intermediariamente entre a classe dos senhores e a classe dos escravos ou ex-escravos. No romance de 1943, porém, José Amaro representou o homem pobre, dependente da boa vontade paternalista do senhor de engenho Lula de Holanda. José Amaro veio desde criança para o Santa Fé, fato esse que, somado ao bom relacionamento do seu pai com o senhor de engenho, o livrou do pagamento do foro. José Amaro foi arquitetado por José Lins como um homem amargurado e rancoroso, indivíduo que devotava ódio aos senhores de engenho. Trata-se de um personagem infeliz e frustrado, por não ter tido filho varão para sucede-lhe no ofício de seleiro, por trabalhar para homens de pouco valor, por morar com uma mulher com quem tinha se casado apenas para tira-lhe do caritó e por ter uma filha enlouquecida. Amargo amaro levava uma vida sem entusiasmo e alegria, apenas batendo diariamente na sola, assim esperando os dias findarem. Seu nome e sua vida trazem a marca da amargura. José Lins pensou um personagem cujo próprio nome confunde-se com a tristeza, com o desgosto pela vida. A decadência da sociedade banguezeira começou a se manifestar primeiramente na sua vida profissional: Amaro fabricava arreios para homens pobres, indivíduos de pouco prestígio, bem diferente de seu pai que urdia peças para o imperador. José Lins pontilhou aqui a condição inferior do artesão em um tempo em que a manufatura já começava a se impor. As peças de Amaro, feitas a partir de um trabalho manual e primitivo, já não podia competir com a indústria, que produzia peças em um tempo bem 637 ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. De Fogo Morto: mudança social e crise dos padrões tradicionais de masculinidade no Nordeste do começo do século XX. In: ________. Op. Cit., 2008, p. 403. 280 mais rápido e com matéria prima mais resistente. A situação de José Amaro, produzindo poucas peças para pessoas pobres, ilustrava o próprio processo de ruína da economia familiar. O mundo que veio a se impor sobre o universo dos engenhos já não toleraria processos produtivos domésticos, onde a produção era lenta e o mercado era restrito a poucas pessoas. Assim como o engenho pagou com sentença de morte a sua não modernização, parece ter ocorrido também com aqueles artesãos que não acompanharam a “evolução” dos processos de produção. José Amaro aclarou bem o processo histórico de modernização da economia rural, onde a figura do artesão ligada a uma economia familiar acabou ficando para trás, derrapando na rampa do progresso, sem expectativas nenhuma de futuro. Decadente profissionalmente e remoendo uma frustração enorme com a vida, José Amaro foi adquirindo uma doença não nomeada pelo narrador de Fogo Morto. Ele passou a perambular pela noite, a ficar vagando no engenho na alta madrugada, o que acabou gerando suspeitas de que estava virando um lobisomem. Enquanto os outros dormiam em suas casas, José Amaro saia errante pelo engenho afora, caminhava e caminhava. Não conseguia ficar em casa: “Foi andando de estrada a fóra, queria estar só, viver só, sentir tudo só. A noite convidava-o para andar. Era o que nunca fazia. Vivia pegado naquele tamborete, como negro no tronco”638. José Amaro amargurado, não aceitando sua condição social decadente, começou a sofrer de ímpetos, de desejos inesperados. Sua aparência passou a ser monstruosa: Era a doença que o consumia, que lhe devorava a coragem de homem. Na parede, a sua sombra era como de um monstro, os olhos amarelos feito gema de ovo, as pernas enormes, tremendo com a oscilação da lamparina, com as pernas pesadas, com o corpo doído 639 . Ao longo da narrativa, a impressão que nos dá é que José Amaro foi progressivamente desumanizando-se, fundindo-se com a suspeita popular de que era mesmo um lobisomem. Mais uma vez, no mundo ficcionado por José Lins, ocorreu a incorporação de elementos folclóricos em suas histórias, tal qual ocorreu também em Menino de engenho. A lenda de lobisomem e de outros bichos folclorizados compareceu também fortemente em Fogo Morto. A decadência de Amaro acomete-o de uma doença que o fez perder os contornos humanos. Seu corpo atestava sua ruína, ruína essa que era, na verdade, o esfacelamento de sua sociedade rural que não reservava mais lugares para artesãos como ele. O seleiro de beira de estrada perdeu seu lugar. 638 REGO, José Lins do. Op. Cit., 1943, p. 44. 639 REGO, José Lins do. Op. Cit., 1943, p. 135. 281 Outro personagem que teve a decadência inscrita na sua vida foi o senhor de engenho Lula de Holanda, homem que herdou uma propriedade prospera e que acabou arruinando-a. Para além de sua vida como um chefe rural decadente, que não soube ser obedecido e comandar um engenho, temos também em Lula de Holanda uma doença, dessa vez mais explicitada do que a moléstia de José Amaro. O segundo senhor de engenho do Santa Fé sofria de ataques repentinos, espécie de convulsões epilépticas. Assim como José Amaro, tal personagem também sentia a decadência no seu próprio corpo. A partir da visão de Amélia, esposa de Lula de Holanda, a voz narrativa de Fogo Morto assim comentou o “ataque” do senhor de engenho: Ela pela primeira vez viu uma coisa horrível. O seu marido empalidecer, procurar o sofá e cair com o corpo todo se torcendo, como si tudo nele fosse se partir. Aquilo durou uns minutos, mas foram os instantes piores da sua vida. A baba branca que saía da boca de Lula, o bater desesperado dos braços, das pernas, fizeram-lhe medo. Correu para dentro da casa. E não havia uma viva alma lá dentro 640 . A doença de Lula de Holanda consistia nesses “ataques” que jogavam seu corpo no chão e o fazia tremer. Interessante pontuarmos que boa parte dos momentos epilépticos do senhor de engenho do Santa Fé ocorria quando havia alguma ameaça ao seu poder ou ao seu território. A situação retratada acima, por exemplo, ocorreu em razão dos ex-escravos rodearem a casa-grande e ameaçarem o senhor de engenho. Temendo um ataque dos seus antigos negros, Lula de Holanda foi literalmente ao chão, esperneando. No enredo de Fogo Morto, José Lins inseriu em vários momentos situações que sinalizaram para o questionamento do poder do senhor de engenho. Escravos que fogem e não voltam nunca mais, homens que ameaçam tomar a propriedade rural e cangaceiros que assaltam casas-grandes foram algumas das situações nas quais podemos perceber uma afronta ao poder patriarcal. Parece haver uma íntima ligação entre o questionamento à ordem patriarcal e a decadência do banguê. No momento em que o engenho entrou em processo de débâcle, começou a ocorrer fatos que apontam para a disputa pelo poder. Em Menino de engenho, romance que forjou o engenho como uma espacialidade grandiosa, não identificamos nenhum acontecimento de ultraje ao poder dos senhores de engenho. O mesmo, todavia, não podemos dizer de Banguê e Fogo Morto, obras que se dedicaram a ficcionar uma espacialidade decadente. Questiona-se, portanto, o poder patriarcal somente quando o engenho, base espacial e econômico deste poder, encontra-se em franco processo de ruína. 640 REGO, José Lins do. Op. Cit., 1943, p. 218. 282 Nesse sentido, José Lins registrou a mutação histórica nas próprias relações de poder existentes na sociedade brasileira. Segundo Jurandir Freire Costa, no Brasil do início do século XX, a autoridade dos senhores de engenho viu-se cada vez mais minada por interferências externas 641 . As ordens judiciais, policiais e médicas foram enfraquecendo o poder discricionário do pater familia. O homem que antes mandava na sua família como governava no seu engenho, passou a ter seu poder enfraquecido, encurtado, devido ao surgimento de novos agentes sociais investidos de autoridade pelo Estado. O período republicano, ao descentralizar o poder central, ao fortalecer a ação dos Estados e dos municípios, acabou por gerar, muitas vezes, conflitos com a classe dos senhores de engenhos, indivíduos que queriam estender seu domínio para além das suas terras. Em Fogo Morto observamos o tenente Maurício, investido pela prefeitura de Pilar, dar ordem de prisão a vários homens, contrariando até a vontade dos senhores de engenho da várzea paraibana. Tal fato atesta o enfraquecimento do poder patriarcal, submetido agora à novos sujeitos, à novas relações. Para Durval Muniz de Albuquerque Júnior, um dos grandes temas do romance de 1943 de José Lins é a impotência dos homens. Nesta obra literária, haveria a presença de homens sem a capacidade de mando, senhores de engenho não respeitados nem por meros moradores de beira de estrada, indivíduos que não conseguiam manter a autoridade nem na própria casa, sendo questionados por mulheres. São homens amolecidos, desfibrados, destroçados socialmente, tal qual o engenho de fogo morto. O poder do homem másculo, viril, esfacelou- se juntamente com o banguê: Homens que veem seu poder solapado, afrontado, desrespeitado. Homens desfeiteados, que veem sua identidade de macho se desmanchar lentamente. Homens que se tornam sombras do que eram, que perambulam como simulacros e fantasmas pela casa, pelo engenho, pelas estradas. Homens a quem ninguém mais respeita, nem os pobres, nem os negros, nem as crianças. Homens que vivem da aparência, que tentam através da retórica inflamada, das constantes afirmações verbais da masculinidade, de sua macheza, compensar a clara decadência e impotência 642 . Para o autor das palavras acima, o final de Fogo Morto, expondo flores azuis no bueiro do engenho (vide a capa do romance), seria uma metáfora literária usada para ilustrar o processo de impotência física e social dos homens patriarcais, dado que o bueiro, erguido para cima, em posição ereta, funciona como um símbolo fálico masculino. A expressão “fogo 641 COSTA, Jurandir Freire. Ordem médica e norma familiar. Rio de Janeiro: Graal, 1979, p. 34-36. 642 ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. Op. Cit., 2008, p. 377-378. 283 morto”, assim, aludiria não somente a derrocada do banguê, mas também a desvirilização dos homens rurais, agora débeis, incapazes de fertilizar tanto a terra como suas mulheres: homens improdutivos, que apodrecem como a terra. O senhor de engenho Lula de Holanda foi o personagem que mais sintetizou o processo de impotência masculina. Tal “chefe” rural não conseguiu exercer sua autoridade nem diante de um morador pobre, o José Amaro, seleiro que foi expulso da propriedade mas que, protegido pelo cangaceiro Antonio Silvino, acabou ficando até seu suicídio no Santa Fé. Desmoralizado por um reles artesão que ficou no engenho contra sua ordem, Lula de Holanda ainda foi desfeiteado pelos bandidos liderados por Antonio Silvino, que invadiram sua casa grande em busca de ouro. Na decadência do engenho, os senhores desta espacialidade seriam desfeiteados por agentes externos, pois não teriam mais a força de outrora. Ser desfeiteado significa perder as feições, perder o rosto, ser como que desmanchado. O poder é o que dar corpo a estes homens que, desfeiteados, perdem a sua identidade, perdem seus traços e tornam-se figuras que se esvaem, como que borradas da história. A afronta ao poder patriarcal representa, pois, um abalo na própria identidade do senhor de engenho, personagem identificado ao poder, ao mando, à força. Em Fogo Morto, senhor de engenho é uma identidade em crise, uma posição social cada vez mais questionada, abalada e ameaçada pela história. Na trama de Fogo Morto, José Lins inseriu a figura do histórico cangaceiro pernambucano Manoel Batista de Morais, conhecido e temido como o Antonio Silvino, jovem que iniciou no banditismo social em 1896, após a morte do seu pai. O cangaceiro que antecedeu Lampião, Antonio Silvino só foi preso em 1914, depois de cometer muitos crimes na zona da mata nordestina, sua esfera de ação preferida 643 . Foi a segunda vez que o escritor paraibano trouxe para seus romances a figura deste cangaceiro “fora da lei”, dado que em Menino de engenho ele já comparecia à suas páginas literárias. Como um romance histórico, José Lins trouxe para o plano ficcional pessoas “reais”. Além da invasão de Antonio Silvino, outro acontecimento do romance deu bem o tom da impotência de Lula de Holanda. Nos últimos dias do Santa Fé, José Lins colocou a esposa do senhor de engenho, Dona Amélia, para prover e governar o engenho. Como Lula de Holanda preferia ficar lendo livros e jornais, numa atitude de desprezo para com o engenho, Amélia assumiu as rédeas da espacialidade e tocou o banguê para frente nos seus últimos dias: 643 As informações sobre Antonio Silvino foram obtidas em: DIAS, Cícero. Op. Cit., 2011, p. 225. 284 Lula era como que não soubesse das dificuldades por que passavam. Só Amélia tinha olhos para ver o Santa Fé como estava, na petição de miséria em que vivia. [...] Seria somente ela quem teria coração, quem teria olhos para ver, ouvidos para ouvir, que era a ruína do Santa Fé. O engenho na ultima safra quase não moera por falta de animais. Lula parecia um homem que não tinha tempo para olhar o engenho 644 . Na ausência de um legitimo senhor de engenho, precisou emergir a senhora de engenho. Amélia representa a personagem que mantém laços firmes e fieis com a terra, pois cresceu nela e vi o seu progresso, quando da época de seu pai, o capitão Tomás Cabral. Ela, muito mais do que o decadente Lula de Holanda, identifica-se com o engenho e quer salvá-lo do fim iminente. Na verdade, podemos apontar que Fogo Morto, semelhante ao romance Senhora de engenho, de Mario Sette, fez o elogio da mulher que assume o comando do banguê, que incorpora a figura masculina do senhor de engenho e realiza as tarefas necessárias para o bom funcionamento da propriedade. Além de Amélia, sua mãe, Dona Mariquinha, também ilustrou a figura tão louvada pela literatura de engenho: a senhora de engenho. Quando da morte de Tomás Cabral de Melo, o Santa Fé passou a ser comandado pela esposa deste. Eis a representação do governo matriarcal: E assim tudo começou a depender das ordens de D. Mariquinha. Era a senhora de engenho que vendia açúcar aos cargueiros de Itabaiana. Agora D. Mariquinha pouco saía para as missas do Pilar. Ali em casa olhava para tudo, ordenava tudo. Os negros vinham lhe tomar a benção de manhã e de noite, o feitor chegava-se para tomar ordem. O Santa Fé não seria aquele da saúde do capitão Tomás mas ia andando com a energia da mulher de expediente de homem. Aquilo dera o que falar. Com um genro dentro de casa, a velha Mariquinha preferia ser o homem da família 645 . Tal qual um senhor de engenho, agia Dona Mariquinha, realizando as tarefas de comandante do engenho. Embora o engenho tenha sido construído como uma espacialidade masculina, a mulher, na condição de senhora de engenho, não deixa de ter nessa construção um papel importante. A propriedade canavieira precisa de um governante, de alguém que dê as ordens, que se faça obedecido. Na ausência de um homem, emerge a figura feminina para cuidar do engenho, espacialidade sempre identificada a uma pessoa. José Lins parece ter feito o elogio do poder pessoal, personalístico, contrapondo-o ao poder anônimo e coletivo, de base republicana. 644 REGO, José Lins do Rego. Op. Cit., 1943, p. 249. 645 REGO, José Lins do. Op. Cit., 1943, p. 202. 285 O mesmo elogio da senhora de engenho feito por Mario Sette e José Lins, encontramos também em Gilberto Freyre, o que nos autoriza a pensar esse enaltecimento da mulher como um forte elemento da literatura de engenho. Lembremos que desde Joaquim Nabuco, em Massangana, que a figura da mulher comandante do engenho foi exaltada. De certo modo, Mario Sette, José Lins e Gilberto Freyre, todos eles assíduos leitores do abolicionista pernambucano, não se desvencilharam totalmente da dizibilidade e visibilidade instituída por Nabuco acerca do engenho. As palavras a seguir parecem ser um desdobramento textual da imagem de Ana Rosa Falcão, tal qual edificada por seu ilustre sobrinho: Tais mulheres que, na administração de fazendas enormes, deram mostras de extraordinária capacidade de acção – andando a cavalo por toda a parte, lidando com vaqueiros, com os mestres de açúcar, com os cambiteiros, dando ordens aos negros, tudo com uma firmeza de voz, uma autoridade de gesto, uma segurança, um desassombro, uma resistência igual à dos homens 646 . Em Fogo Morto, porém, o tipo de mulher construído acima, a senhora de engenho, só apareceu em razão da malemolência do senhor de engenho, como se ela fosse um personagem secundário. Além do mais, a mulher governando o engenho foi posto como um sintoma da decadência do banguê. Quando o poder patriarcal entrou em crise, emergiu a figura feminina para cuidar do engenho, como se este fosse um doente necessitado de uma assistência feminina. No fundo, a inserção da mulher em José Lins, a partir de seu romance de 1943, ainda nos parece reacionária, pois, ao contrário de Senhora de engenho, a figuram feminina só surgiu por causa de uma situação de decrepitude, situação essa que ela não consegue reverter. O elogio da senhora de engenho de José Lins, portanto, tem seus limites bem evidenciados. Outra figura decadente que desfilou por entre as páginas literárias de Fogo Morto foi o personagem Vitorino Carneiro da Cunha, homem que também representou as classes intermediarias da sociedade açucareira. Primo pobre de José Paulino, Vitorino Carneiro da Cunha não trabalhava e era sustentando por sua mulher, a sinhá Adriana. Sua vida resumia-se aos seus ingênuos sonhos de mudança social e política, o que o fazia perambular por varias terras. Enquanto Lula de Holanda e José Amaro são personagens fixados a um lugar específico, Vitorino Carneiro da Cunha caracterizou-se pela mobilidade, por levar uma vida como que de judeu errante. 646 FREYRE, Gilberto. Op. Cit., 1936, p. 68. 286 Nas suas andanças, tentava firmar acordos políticos que pudessem revolucionar o status quo da Paraíba. Porém, ninguém levava a sério seus projetos políticos, vendo neles mais um disparate de uma mente infantilizada do que uma real alternativa política. Ridicularizado como o “Papa rabo”, em razão de andar montado em uma égua esquelética de rabo cortado, Vitorino Carneiro da Cunha é uma espécie de bobo do engenho, indivíduo que provocava risos e quase nunca era tratado com seriedade. Eis abaixo a descrição que resume a personalidade do personagem em análise: Era um homem branco, era um homem bom, uma criança sem juízo. Era um menino de cabelos brancos. E devagar, como si fosse ninar um filho para dormir, começou Adriana a balançar a rede, onde o corpo grande de Vitorino Carneiro da Cunha repousava como num berço 647 . Na verdade, Vitorino Carneiro da Cunha, que se intitulava de capitão, tinha um claro déficit de compreensão da realidade. Seus olhos viam aquilo que sua vontade queria que fosse. A égua esquelética era, por exemplo, um “animal de primeira ordem”, um majestoso cavalo bem tratado e forte, assim como suas “alianças” políticas eram a salvação para a Paraíba. A alcunha que recebeu de “papo rabo”, bem como as risadas e desprezo com as quais era quase sempre recebido, ele atribuía a uma perseguição política dos seus supostos opositores, homens que seriam desalijados do poder, após a transformação política que iria ajudar a construir na vila de Pilar. Quando seu filho, o marinheiro Luis, retornou para sua casa, a fim de passar férias, e quis levá-lo para o Rio de Janeiro, imaginou que não poderia deixar sua terra, pois ali todos dependiam de sua atividade, o futuro de Pilar dependeria de suas ações. Desse modo, o personagem ora em tela revela um alto grau de alienação, de incompreensão da realidade. Podemos afirmar que Vitorino Carneiro da Cunha apresenta uma fuga para a fantasia, para os seus sonhos mirabolantes. Rumo a ficção, tal personagem chega até a lembrar, em alguns momentos, o próprio movimento literário de seu criador, José Lins do Rego, literato que “fugiu” do seu presente, de seu tempo e espaço, romanceando a vida e a morte dos engenhos da zona da mata nordestina. Seria Vitorino Carneiro da Cunha um alterego do escritor paraibano? Longe de querermos responder a tal questão, deixamos aqui somente o seu registro. 647 REGO, José Lins do. Op. Cit., 1943, p. 65. 287 Nas páginas finais do romance, quando a ruína do Santa Fé já era mais do que uma certeza e após ser preso e surrado na cadeia, Vitorino Carneiro da Cunha põe-se a devanear, a dar vazão à sua utopia ingênua: No outro dia sairia pelo mundo para trabalhar pelo povo. Para ele, Antonio Silvino e o tenente Maurício, José Paulino e Quincas do Engenho Novo, todos valiam a mesma coisa. Quando entrasse na casa da Câmara sacudiriam flores em cima dele. Dariam vivas, gritariam pelo chefe que tomava a direção do município. Mandaria abrir as portas da cadeia. Todos ficariam contentes com o seu triunfo. A queda de José Paulino seria de estrondo. Ah, como ele não havia grande mandando em pequenos. Ele de cima quebraria a goga dos parentes que pensavam que a vila fosse bagaceira de engenho. [...] E, escorado no portal da casa de taipa, de chão de barro, de paredes pretas, Vitorino era dono do mundo que via, da terra que a lua branqueava, do povo que precisava de sua proteção 648 . A passagem acima sintetizou bem as ilusões revolucionárias do personagem que imaginou as transformações sociais e políticas por uma via bem tradicional e personalística, típica da sociedade banguezeira paternalista. A via revolucionária não seria pelo povo, não passaria por uma coletividade, mas sim por um homem, por aquele único indivíduo que, como um eleito consagrado, sabia o que fazer e como fazer. Vitorino Carneiro da Cunha, idealizando mudanças bruscas, foi uma espécie de personagem messiânico, anunciador de novos tempos, de novas propostas sociais. Interessante apontarmos que o autor de Fogo Morto colocou os anseios de mudanças justamente em um personagem transloucado e infantilizado, como se quisesse passar a ideia segundo a qual os ideários de transformação radical, na sociedade canavieira, eram uma espécie de disparate, um contrassenso produto de alguém que não compreendia adequadamente o mundo ao seu redor. Antes da revolução, melhor seria a manutenção, a estabilidade social, a não ruptura sociopolítica. No engenho, ainda que passando por um processo de decadência, o mais ajuizado seria mesmo manter o status quo e, assim, evitar a via revolucionária. Desse modo, com as abstrações de Vitorino Carneiro da Cunha, podemos identificar o conservadorismo de José Lins do Rego, indivíduo temente das revoluções que sacudissem a ordem social, que invertesse as milenares posições privilegiadas dos senhores de engenho. O autor de Fogo Morto, durante boa parte de sua vida, afastou-se dos ideais de transformação radical da sociedade e aproximou-se de posturas conservadoras, notadamente daquelas que preservavam aspectos ligados ao mundo patriarcal, como o personalismo, o paternalismo, a 648 REGO, José Lins do. Op. Cit., 1943, p. 360-361. 288 autoridade irrestrita etc. Daí Iranilson Buriti de Oliveira apontar que “para José Lins, a sociedade deveria ser sempre rural, parada no tempo, estática quanto à evolução e dinâmica quanto à conservação”649. O ideário autoritário e conciliador do Estado Novo, em voga e bastante difundido na época do romance, recriminador dos movimentos sociais revolucionário, parece perpassar por entre as páginas literárias de Fogo Morto. Não podemos esquecer-nos que José Lins, assim como vários outros intelectuais da época, foi um literato sensível e simpático ao regime implantando por Getúlio Vargas. José Lins criou o personagem Vitorino Carneiro da Cunha, como confessou em carta a Gilberto Freyre, para ser um “Dom Queixote dos canaviaes”650. Tal qual o celebre personagem de Cervantes, ele tem o mesmo desprezo pelas condições materiais em que se encontrava, a mesma coragem maluca e, sobretudo, a mesma capacidade para ver as coisas segundo a deformação do ideal, e não segundo o que realmente são. Vitorino Carneiro da Cunha, enlouquecido, enxergava o que queria, fazia da vida um grande cenário criado por sua mente transloucada e pueril. Produto da decadência do engenho, acreditava loucamente que um homem, o político Rego Barros, ia colocar ordem na Paraíba e acabar com a lordeza dos senhores de engenho como José Paulino. Idealista extremado por deficiência mental e não por opção racional, o capitão Vitorino Carneiro da Cunha foi mais um personagem decadente de Fogo Morto, decadente porque suas ações não revertem o quadro socioeconômico nem muito menos melhoram a sua situação nem de sua família. Como o engenho, ele também foi caminhando para o fim, para a ruína. Seus sonhos derradeiros de grandeza foram imaginados para disfarçar sua derrocada. Os três personagens, brevemente discutidos no presente tópico, foram marcados pela decadência, sofreram em suas vidas a chaga de uma espacialidade que ruía. José Amaro doente e amargurado, Lula de Holanda impotente e Vitorino Carneiro da Cunha bobo do engenho revelam a decadência do Santa Fé, homens que nem de longe lembram os José Paulino, os Tomás Cabra de Melo. A decadência envolveu-os, penetrou em suas vidas, por isso que os três possuem muitos pontos em comum. Destaca-se, aqui, o escapismo, a fuga do presente de agonia: José Amaro, refugiou-se na idealização do cangaço; Lula de Holanda, na religião católica, como se fosse um carola; e Vitorino Carneiro da Cunha na utopia desvairada de mudança social. Antonio Candido foi quem melhor sintetizou a situação traumática dos personagens principais de Fogo Morto, os quais insinuam a própria decadência do banguê, desenham o próprio quadro de desmantelamento da espacialidade: 649 OLIVEIRA, Iranilson Buriti de. Op. Cit., 1997, p. 170. 650 Carta de José Lins do Rego a Gilberto Freyre, 24 de maio de 1943. 289 Os seus [personagens principais] são sempre indivíduos colocados numa linha perigosa, em equilíbrio instável entre o que foram e o que não serão mais, angustiados por essa condição de desequilíbrio que cria tensões dramáticas, ambientes densamente carregados de tragédia, atmosferas opressivas, em que o irremediável anda solto. Os seus heróis são de decadência e de transição, tipos desorganizados pelo choque entre um passado divorciado do futuro 651 . O passado sem futuro, o engenho sem perspectiva de amanhã, vivendo unicamente o presente de esfacelamento: tal foi a condição temporal que se abateu tragicamente sobre os personagens do romance, fazendo-os também seres decadentes. O desmoronamento do engenho afetaria os próprios homens deste universo social. Não se poderia fugir, pois a decadência era total, como uma sombra negra que envolveria tudo e todos. Daí porque escritores como Julio Bello, Gilberto Freyre, Manuel Diegués Júnior e muitos outros vinculados à literatura de engenho não se cansaram de dizer que o fim da sociedade patriarcal seria, na verdade, um drama coletivo, uma tragédia social. Esta imagem de decadência coletiva foi arquitetada também por José Lins, a partir de Fogo Morto, discurso que atrelou homem e meio, fincados na ruína do banguê, ambos de fogo morto, sem perspectiva nenhuma de ver novamente o sol derramar-se sobre o verde dos canaviais. Engenho, espacialidade cujo presente é de decadência, de agonia, de morte, espaço da decadência. 7.5 A dor das coisas que se passaram: engenho decadente, espaço da tristeza Segundo Álvaro Lins, crítico literário pernambucano, “Fogo Morto é por excelência o romance da tristeza brasileira” 652. Carlos Drummond de Andrade, em artigo escrito logo após a morte de José Lins, afirmou que Fogo Morto é um romance que “continua doendo depois de lido” 653. Nessa mesma direção, Franklin Thompson, outro crítico literário, assinalou que o romance ora em apreço “possui essa tristeza que tudo invade, oprime e nos aperta a garganta; essa melancolia sufocante que se oculta sob a alegria superficial” 654. Para além dos inúmeros elogios recebidos, a recepção de Fogo Morto mostra também que tal romance foi entendido 651 CANDIDO, Antonio. Um romancista em decadência. In: COUTINHO, Eduardo F.; CASTRO, Ângela Bezerra de. (Org.). Op. Cit., 1990, p. 392. 652 Citado por TRIGO, Luciano. Op. Cit., 2002, p. 245. 653 O artigo foi reproduzido em REGO, José Lins. Fogo Morto. Rio de Janeiro: José Olympio, 2010, p. 27. 654 THOMPSON, Franklin. José Lins do Rego. In: COUTINHO, Eduardo F.; CASTRO, Ângela Bezerra de. (Org.). Op. Cit., 1990, p. 403. 290 como um dos livros mais tristes e trágicos de José Lins do Rego. O epíteto de escritor cético e pessimista, não raro pairou sobre a cabeça do escritor paraibano 655 . A fortuna crítica do romance de 1943 de José Lins registrou um aspecto importantíssimo da construção simbólica do engenho decadente. Trata-se da tristeza, sentimento e atmosfera mobilizada pelo escritor paraibano para compor sua tessitura discursiva do banguê em ruínas. Em Fogo Morto, o seu autor ampliou o quadro de tristeza e de melancolia rascunhado no romance de 1934, Banguê. Naquela produção literária, o engenho foi mergulhado numa atmosfera de tristeza. Ao contrário de Senhora de engenho, de Mario Sette, romance vazado num lirismo que destilou ânimo e esperança aos seus leitores, Fogo Morto descarregou no seu público uma forte dose de consternação, como bem apontaram os crítico literários citados no parágrafo anterior. De acordo com Moacyr Scliar, em um livro no qual estudou as expressões da melancolia na Europa e no Brasil, um clima de tristeza (sentimento muito próximo à melancolia) pairou sobre a sociedade ocidental quando das primeiras décadas do século XX, chegando a enformar vários discursos e outras práticas sociais 656 . Tal clima de tristeza estaria ligado aos eventos traumáticos do início do século XX: o imperialismo europeu na África e Ásia, as duas guerras mundiais, as guerras civis em países da América Latina e os regimes totalitários no Novo e no Velho Mundo. Todos esses acontecimentos instauraram um lamento quanto ao presente e uma suspeita quanto ao futuro, tempo esse visto como uma era que poderia ser tão sombria quanto o presente de destruição e mortes. A tristeza do século que se iniciara vinha justamente deste ambiente histórico ameaçador, marcado por conflitos em grandes proporções. No Brasil, segundo o autor citado no início deste parágrafo, Retrato do Brasil de Paulo Prado, sentenciando que “numa terra radiosa vive um povo triste”, seria o grande o livro melancólico da sociedade brasileira da primeira república. Escrito no momento em que as notícias da II Guerra dominavam as primeiras páginas dos principais jornais das capitais brasileiras, Fogo Morto tem também seus contornos tristes e melancólicos. A tristeza seria um componente essencial do engenho decadente. Com tal espacialidade em processo de ruína, não haveria motivos para felicidade e esperança. José Lins parece ter seguido a anotação do seu amigo Julio Bello, quando a certa altura de suas memórias registrou que “o engenho de fogo morto entristeceu. O povo entristeceu como o 655 Sobre a recepção literária de Fogo Morto, ver: OLIVEIRA, Izabel Cristina da Costa Bezerra. Fogo Morto e a recepção da crítica literária. Imburana: Revista do núcleo Camara Cascudo de estudos norte-rio-grandenses. Num., 04, Jul./Dez. 2011. 656 Este parágrafo foi escrito a partir da leitura de: SCLIAR, Moacyr. Saturno nos Trópicos. A melancolia europeia chega ao Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, p. 167-255. 291 engenho”657. O engenho de fogo morto, tal qual uma pessoa, tal qual um indivíduo que sofre uma perda na vida, é um universo triste. E com o Santa Fé não foi diferente, conforme podemos entrever a seguir: A casa-grande do Santa Fé vivia assim, cada vez mais triste. Às tardes, o piano de D. Amélia, quando o marido pedia à mulher para tocar, enchia aquele mundo calado de muita mágoa, das melancolias das valsas. O capitão Tomás dera também para andar sozinho pela várzea, subir os altos, sem um destino certo. Não olhava para coisa nenhuma. Andava, andava, e hora depois voltava para a rede e lá permanecia, sem dar uma palavra. Era mais sombra que criatura 658 . A passagem acima retrata já o momento em que o capitão Tomás, fundador do engenho, estava velho e achava-se já convicto de que não iria ser sucedido pelo genro, homem que não tinha jeito para o comando do banguê. Todos já viviam a decadência do engenho e davam como certo o fim de tal espacialidade. A atmosfera de uma casa-grande marcada pela expectativa do fenecimento patriarcal seria de profundo desânimo e amargura, com o senhor de engenho como um melancólico prostrado, a beira da loucura. Há um vínculo entre tristeza e decadência do engenho, como se aquele sentimento fosse uma espécie de sintoma desta situação trágica. A tristeza foi mais um sinal agenciado por José Lins para forjar uma dada imagem da propriedade açucareira agonizante: A carruagem rompia as estradas com o povo mais triste da várzea indo para a missa do Pilar, para as novenas, arrastadas por cavalos que não eram mais nem a sombra dos dois cavalos ruços do capitão Tomás. A barba de seu Lula era toda branca, e as safras de açúcar e de algodão minguava de ano para ano. As várzeas cobriam-se de grama, de mata-pasto, os altos cresciam em capoeira. [...] A cozinha da casa-grande só tinha uma negra para cozinhar. E enquanto na várzea não havia mais engenhos de bestas, o Santa Fé continuava com as suas almanjarras. Não botava máquina a vapor. Nos dias da moagem, nos poucos dias do ano em que as moendas de seu Lula esmagavam cana, a vida dos tempos antigos voltava com ar animado, a encher tudo de cheiro de mel, de ruído alegre 659 . A passagem é longa porque nela estão contidos praticamente todos os sentidos da decadência do engenho por nós discutidos neste capítulo. A tristeza seria um desses sentidos, mostrada como um sentimento que acomete os engenhos decadentes. Destaquemos que a alegria, sentimento oposto ao de tristeza, apareceu intimamente articulada com a “botada” do engenho, isto é, com o momento em que o banguê safreja, na hora em que tal espacialidade 657 BELLO, Julio. Op. Cit., 1938, p. 132. 658 REGO, José Lins do. Op. Cit.,1943, p. 206. 659 REGO, José Lins do. Op. Cit.,1943, p. 242. 292 destila no ar o cheiro forte de cana. A cana esmagada, o açúcar reluzindo na casa de açúcar, exalaria alegria, ânimo por toda parte. Um engenho de “fogo aceso” seria alegre, ao passo que um engenho de fogo morto seria triste. A tristeza do engenho em Fogo Morto também está ligada a vida dos personagens do romance. Lembremos que tal livro desfilou uma galeria de vidas decadentes, marcadas por sofrimentos, frustrações, doenças e loucuras. Para ficarmos somente nos indivíduos ligados à casa-grande, temos que “Seu Lula já estava velho, D. Amélia era aquela criatura sumida, mas sempre com seu ar de dona, Neném uma moça que não se casava, D. Olívia falando, falando as mesmas coisas. Esta era a casa-grande do Santa Fé”660. Uma mesmice desgraçada marcava a vida no engenho ficcionado por José Lins. O tempo em Fogo Morto, a despeito das oscilações temporais do enredo, é algo estagnado, como se a decadência num tivesse pressa, como se fosse uma força que corroí aos poucos a vida das pessoas. E a tristeza de um tempo que demora a passar, tem tudo a ver com essa monotonia que afligem a todos no engenho. Um personagem, em especial, veiculou tristeza mais do que qualquer outro no livro. Trata-se da figura de José Passarinho, negro que vivia errante pelos vários caminhos e estava sempre embriagado. Tal personagem apareceu em Fogo Morto como um amigo de José Amaro, alguém que sempre vinha conversar com o seleiro de beira de estrada. Seu principal traço é a cantoria de versos fúnebres, os quais aparecem sempre em momentos dramáticos, em ocasiões onde a decadência manifesta-se. Vejamos a seguir alguns exemplos: - Senhora, botai a mesa. - A mesa sempre está posta para vossa senhoria. Sentaram-se ambos os dois. Nem um, nem outro comia. Que as lágrimas eram tantas Que pela toalha corriam. - Senhora, fazei-me a cama. - A cama sempre está feita para vossa senhoria. Deitaram ambos os dois. Nem um, nem outro dormia. Que as lágrimas eram tantas Que pela cama corriam 661 . A lamúria acima inseriu-se no capítulo um da terceira parte do romance, momento em que José Amaro foi abandonado por sua esposa, porque não aguentava mais viver com um homem que todos diziam ser um lobisomem, dada sua doença, conduta e aparência. Os versos lamurientos aliaram-se, assim, ao próprio contexto do romance, ao que se passava na história, 660 REGO, José Lins do. Op. Cit.,1943, p. 242. 661 REGO, José Lins do. Op. Cit.,1943, p. 264-265 293 em termos de enredo. Mas não só isso: eles contribuíram também para forjar o clima de tristeza que paira sobre todos os personagens de Fogo Morto. Os cantos fúnebres de José Passarinho também trataram do engenho decadente, infundindo tristeza pelas páginas de Fogo Morto. Nas últimas páginas do romance, quando a produção de açúcar do Santa Fé já reduzira-se a quase nada, quando Amélia sustentava a casa-grande com a venda de ovos, o negro lamuriento exclamou: O engenho de massangana Há três anos que não moe. Ainda ontem plantei cana Há três anos que não moe 662 . Os versos acima funcionam como uma espécie de previsão do que acontecerá com o Santa Fé, ou seja, virará um engenho de cantoria, mero objeto para cantadores elaborarem suas prosas tristes. As palavras acima, fazendo verso musicado com a decadência do engenho, infunde no leitor uma sensação de amargura, de desventura para com o engenho. José Passarinho, com seus versos ritmados, cantados em um momento propício, foi um veículo da decadência e da tristeza do engenho. Os versos trazidos até aqui atestam ainda uma dimensão importante dos romances de José Lins do Rego, a saber: a valorização da oralidade. As lamúrias musicalizadas de José Passarinho foram postas para representarem a fala popular, a pretensa voz do povo, das camadas baixas da sociedade banguezeira. Em Meus verdes anos, José Lins confessou ter construído o personagem José Passarinho, bem como o capitão Vitorino Carneiro da Cunha, a partir de alguns tipos populares que tinha conhecido na sua infância de menino, enquanto vivia no Pilar/PB 663 . O escritor paraibano, em seus vários escritos romanescos, sempre procurou inserir elementos retirados de uma dita cultura popular, universo que representaria a verdadeira cultura nordestina. Seus romances trazem a marca de uma saudade desse mundo oral, visto como espontâneo, natural e autêntico, onde o povo sabe seu lugar e não questiona as posições socialmente instituídas. Fogo Morto também trouxe a marca da oralidade que seu autor tanto tentou reeditar. Porém, a tristeza do engenho não seria somente algo exclusivo do povo, das camadas socialmente desfavorecidas. Como vimos, a casa-grande do Santa Fé também encheu-se de tristeza, sentimento que, como a decadência, afetaria a todos. Interessante assinalarmos que José Lins só mobilizou a tristeza como um sentimento marcante quando forjou o engenho 662 REGO, José Lins do. Op. Cit.,1943, p. 294. 663 REGO, José Lins do. Op. Cit.,1956, p. 34. 294 como espaço da decadência. Em Menino de engenho, excetuando-se as últimas páginas, justamente aqueles em que ocorreu a despedida do Santa Rosa, predominou um clima lírico, de emoção e de alegria. No engenho grandioso, na propriedade açucareira fabricada como um reino, não haveria lugar para a tristeza, sentimento reservado apenas para engenhos decadentes, como o Santa Fé e o Santa Rosa com Carlos de Melo. O engenho como espaço da tristeza, como universo social atravessado por um sentimento de consternação, só emergiu quando se fabulou a decadência. Tal fato nos faz pensar que o próprio José Lins sentiu com tristeza o fim da espacialidade que criou. Como menino criado em engenhos, como adulto que procurou sempre que possível visitar e regressar, nem que fosse por curtos períodos, a banguês, como escritor que se fez contando a vida nas e das propriedades açucareiras, José Lins parece mesmo sentir com enorme pesar o fim dos engenhos de açúcar. A tristeza do engenho de Fogo Morto aparenta ser a amargura do próprio autor por ficcionar a morte de um engenho. José Lins queria, assim, transmitir sua tristeza pelo fim do banguê, para com isso, quem sabe, conseguir aliviar a dor que jazia em seu peito. Na verdade, a tristeza pelo fim do engenho, assim como a saudade desta espacialidade, marcou a vida de vários indivíduos. Nos vários escritores que enunciaram discursos sob a égide da literatura de engenho podemos detectar uma amargura para com o dito fim dos banguês. As palavras do poema Banguê de Jorge de Lima podem bem figurar como o sentimento de todo um grupo social, ante ao desmantelamento dos engenhos, processo iniciado no Brasil desde o final do século XIX e objetivado por vários discursos nos anos iniciais do século seguinte: Onde é que está a alegria das bagaceiras? O cheiro bom do mel borbulhando nas tachas? A tropa dos pães de açúcar atraindo arapuás? Onde é que mugem os meus bois trabalhadores? Onde é que cantam meus caboclos lambanceiros? Onde é que dormem de papos para o ar os bebedores de resto de alambique? E os senhores de espora? E as sinhás-donas de cocó? E os cambiteiros, purgadores, negros queimados na fornalha? [..] Bangüê! Bangüê! Ouve a voz de quem te chama! 664 664 DE LIMA, Jorge. Op. Cit., 1997, p. 162. 295 Há nas palavras acima a dor de toda uma geração, a aflição de um conjunto de homens que se forjaram enquanto representantes dos engenhos, que dedicaram parte considerável de suas produções intelectuais para tentarem cristalizar um mundo que cada vez mais tornava-se passado. Jorge de Lima deu vazão ao pranto de indivíduos que, como ele, conheceram o universo açucareiro na infância e dele não quiseram mais se afastar, quando adultos. O engenho foi ficando para trás, mas não sem os escritores fazerem suas despedidas saudosas, num ritual onde se pode perceber toda a amargura do fim, toda a tristeza pelo desabamento do mundo patriarcal, toda a saudade pelos tempos adocicados do banguê. Engenho, espaço da saudade, espaço da decadência, espaço da tristeza. Podemos dizer que homens como Gilberto Freyre, José Lins do Rego, Manuel Diegues Júnior, Julio Bello, Jorge de Lima e tantos outros que escreveram acerca dos engenhos de açúcar, aliviaram seus pesares com a escrita. Conforme nos faz lembrar Durval Muniz de Albuquerque Júnior, a escrita é muitas vezes usada como remédio, como meio para atenuar a dor, como anestésico contra o sofrimento causado por algum infortúnio. O desabar do universo patriarcal, o fim dos senhores de engenhos, o desaparecimento das casas-grandes rodeadas por frondosas árvores, foi sentido por homens como José Lins com enorme dor. E assim, as produções intelectuais destes homens entristecidos com o engenho de fogo morto viraram O trabalho irônico e meticuloso do luto pela realidade que se perdeu. Escrita expiatória, a literatura, a memória, o ensaio, a história buscam conter essa sensação de morte de um tempo, de uma sociedade, de um espaço, de vidas 665 . 665 ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. Op. Cit., 2008, 493. 296 Considerações finais A poética do engenho: um palimpsesto escrito na saudade Neste trabalho, investigamos a construção simbólica do engenho açucareiro em José Lins do Rego, romancista paraibano que dedicou parte de sua obra literária ao mundo dos canaviais. Articulando história, literatura e espaço, procuramos enveredar pelo caminho dos sentidos e dos significados com os quais aquele literato pôde pensar e dizer o engenho açucareiro. A dimensão sensível da propriedade açucareira, tal qual foi tecida pela narrativa literária de José Lins, foi o nosso grande objeto de investigação. Partimos do pressuposto elementar de que as mais diferentes espacialidades são produtos de práticas sociais, são originadas de determinadas ações e de movimentos humanos. A narrativa romanesca de José Lins foi pensada como uma prática construtora de espaços. O engenho, nosso espaço-objeto, não foi pensado como um a priori, como um universo socioeconômico que a narrativa teria apenas o trabalho de descrever ou de traduzir. Ao invés disso, operamos com a ideia segundo a qual o engenho foi fabricado discursivamente. Além de pensarmos o espaço como um constructo, julgamos também que os mesmos são compostos tanto de elementos materiais como também de elementos simbólicos. Esta dimensão simbólica é tão “real” quanto àquela, isso porque ela também é algo constituinte, também afeta a maneira como vemos e sentimos a realidade. Percebemos os espaços, bem como o mundo ao nosso redor, tanto a partir de sua dimensão física quanto a partir dos seus valores e significados. Nesse sentido, procuramos destacar o processo de significação do engenho, processo esse realizado por José Lins mediante seus romances e que acabou proliferando uma dada imagem do banguê, uma determinada compreensão da propriedade açucareira. Para investigarmos a construção simbólica do engenho em José Lins, sentimos a necessidade de historicizarmos sua obra romanesca, o material discursivo com o qual fabricou o banguê. Antes de adentrarmos nos seus romances, optamos por fazer um exercício de historicização da literatura, a fim de percebermos como José Lins chegou a ocupar o lugar de sujeito de autor de romances. Além do mais, muitas ideias veiculadas pela sua obra literária, com as quais teceu o engenho, podiam ser explicadas recorrendo-se à historicidade de sua produção romanesca. Tendo essas questões em mente, partimos para discutir as condições históricas de possibilidade da obra literária do romancista paraibano. E aqui fizemos o que chamamos de uma historicização biográfica e historicização discursiva, isto é, uma discussão 297 norteada pela busca da historicidade das obras literárias de José Lins, dos elementos a partir dos quais seus romances foram possíveis. Tratamos a literatura como um discurso que emerge a partir de dados fatores. A parte I de nosso trabalho, Ao rés do chão: os lugares de José Lins, tentou fazer essa historicização biográfica, ou seja, almejou, a partir do sujeito José Lins, de sua trajetória sinuosa de vida, destacar e discutir os elementos fundamentais para a irrupção de sua obra literária. Nesse sentido, o primeiro capítulo sublinhou os anos recifenses de José Lins, quando o futuro romancista ainda era um jovem em formação, dividido entre a boemia, a militância sociopolítica e a crítica literária. Contrariando a versão freyreana, mostramos que o período recifense de José Lins por nós discutido (1919-1923) foi importante por marcar seus primeiros contatos efetivos com a literatura, embora esta ainda não fosse a sua grande preocupação. Na capital pernambucana, José Lins colaborou em vários jornais, destacando-se sua atividade de crítico no Jornal do Recife. Ainda neste capítulo, abordamos também a adesão do literato paraibano ao tradicionalismo de Gilberto Freyre, elemento igualmente importante para a elaboração de seus romances. Em um contexto de intensa amizade, mostramos como o escritor pernambucano, recém-chegado ao Brasil dos anos 1920, contribuiu para a virada tradicionalista de seu amigo José Lins do Rego, jovem que a partir de então decidiu-se pela valorização do passado, pela reabilitação do “Brasil de nossos avós”. Assim, não foi à toa que os primeiros romances de José Lins realizaram um mergulho no passado, na época patriarcal dos senhores de engenho. Continuando a discussão da historicidade ao nível do sujeito, tratamos no segundo capítulo dos anos que José Lins do Rego residiu em Maceió, etapa essa geralmente esquecida por boa parte dos analistas de sua obra. Tal fase alagoana (1926-1935) foi de suma importância para sua carreira literária, pois foi onde efetivamente decidiu-se pela literatura, trabalhando assiduamente como crítico literário no Jornal de Alagoas. Casado e com um emprego público, o de fiscal de banco, José Lins se dedicou quase que totalmente às letras. Nesse momento de sua vida, fundiu ao seu tradicionalismo o regionalismo freyreano, movimento artístico-político que passou a acompanhar desde fins de 1924, quando estava morando no engenho de sua família. Em Maceió, conviveu com os letrados locais, fez importantes amizades literárias e participou de algumas polêmicas intelectuais. Esse ambiente letrado fez pulsar a veia romanesca do crítico literário, de modo que, com a ajuda dos literatos de Maceió, conseguiu lançar seu primeiro romance em 1932: Menino de engenho. Na capital alagoana, integrado nas rodas literárias, José Lins ainda escreveu seus três primeiros romances. 298 Na parte seguinte de nosso trabalho, denominada de Abram-se as porteiras: a literatura de engenho, procuramos não só continuar a proposta de historicização da literatura de José Lins, como pretendemos também iniciar a análise do engenho nos romances do literato em apreço. Porém, nesta sessão trabalhamos não mais ao nível do sujeito, mas sim ao nível dos discursos. Daí falarmos em uma historicização discursiva. Julgamos que a discussão dos elementos históricos que fundamentaram a obra literária de José Lins precisaria ainda de uma discussão sobre os discursos que precederam seus romances. E assim chegamos aos textos de Joaquim Nabuco e Mario Sette, os quais foram entendidos como o arquivo a partir do qual José Lins pôde iniciar sua construção simbólica do engenho açucareiro. Sem os discursos daqueles dois pernambucanos, o escritor paraibano não poderia ter elaborado sua construção simbólica do jeito que elaborou. Com a análise desses dois discursos predecessores, pudemos fazer uma espécie de arqueologia da construção simbólica do engenho açucareiro em José Lins do Rego. Com os dois capítulos iniciais da parte II, fechamos a historicização discursiva e partimos para o capítulo cinco, no qual fizemos a análise do engenho no primeiro romance do literato paraibano, mostrando não só a feitura simbólica da propriedade açucareira, mas evidenciando também as relações entre Menino de engenho e os seus discursos antecessores. Com seu romance de 1932, José Lins apropriou-se do constructo nabuconiano do engenho, forjando esta espacialidade como um reino encantado e patriarcal. O Santa Rosa, espacialidade onde se passa a história de Menino de engenho, foi imaginado tanto como um espaço mítico, cheio de criaturas lendárias e elementos fabulosos, quanto como um reino patriarcal, universo chefiado por um senhor de engenho discricionário, espécie de senhor feudal. José Lins minimizou a dimensão feminina do engenho, tal qual havia em Joaquim Nabuco e Mario Sette, provocando certos deslocamentos na literatura de engenho. Ainda no capítulo cinco, evidenciamos que José Lins potencializou o engenho como espaço da saudade, significado esse que já havia sido pontilhado, ainda que pontualmente, no capítulo Massangana e no romance Senhora de engenho, conforme mostramos nos capítulos três e quatro. O romancista paraibano, menino que nasceu e viveu boa parte de sua infância nos engenhos da várzea do rio Paraíba, e que passou a vida adulta morando em diferentes cidades, forjou o engenho sob o signo da saudade, como uma espacialidade que desperta alegres memórias da infância, como um universo do qual se deve sentir saudade, como um mundo que jamais deve ser esquecido, sempre visitado e revisitado. A saudade do engenho, sentimento marcante em inúmeros homens que vivenciaram a infância em um banguê do início do século XX, foi um dos principais elementos agenciados pelo romancista paraibano 299 para forjar seu espaço querido. Com essa discussão, finalizamos a parte II, e descortinamos uma visão idealizada e saudosa do engenho, a qual marcou inúmeros discursos no Brasil dos anos 1920-1940. Na nossa última parte, intitulada de Fecham-se a porteiras: os engenhos decadentes, discutimos uma outra face da construção simbólica do engenho, tal como arquitetou José Lins do Rego. A tessitura semântica do engenho não parou na imagem desta espacialidade como um reino encantado e patriarcal. Banguê e Fogo Morto, os dois últimos romances que analisamos, dedicando um capítulo a cada um deles, ficcionaram a decadência do engenho. O romance de 1934 elaborou a ruína do Santa Rosa, propriedade que conheceu seu fim em razão da quebra da tradição patriarcal, colocada por José Lins como o sustentáculo do mundo açucareiro. Já a produção literária de 1943, tida pela fortuna crítica de José Lins como a sua obra prima, romanceou a destruição do Santa Fé, espacialidade que agonizou juntou com a própria dissolução da sociedade patriarcal, ante as novas formas sociais que se implantavam no mundo banguezeiro. Banguê e Fogo Morto não só forjaram uma imagem decadentista do engenho, como mobilizaram também o sentido do banguê como espaço da saudade. Tanto na visão grandiosa do engenho quanto na perspectiva decadentista desta espacialidade, pudemos detectar o peso de uma consciência e sensibilidade saudosa. Glorificando o banguê ou lamentando sua destruição, o sentimento de saudade compareceu, constituindo-se como uma peça fundamental erigida por José Lins para edificar sua visão do engenho. A construção simbólica do engenho açucareiro em José Lins, tal qual seus romances, apresentou uma clara memória saudosa dos tempos idos. Realizada em um contexto de profundas e de traumáticas mudanças sociais, relacionadas a instauração de uma sociedade burguesa e moderna, tal elaboração não deixa de funcionar como um conforto para o seu idealizador, indivíduo que se refugiou em uma espacialidade pretérita e fez desta seu grande tema literário. Para sintetizarmos a construção simbólica do engenho açucareiro em José Lins do Rego, a metáfora do palimpsesto pode nos ser útil. Escrita sobre uma outra escrita, o palimpsesto foi um material escriturário muito usado no mundo medieval ocidental, no qual aqueles que mobilizavam a arte da escrita escreviam textos em cima de outros textos, sem, contudo, apagar totalmente o escrito originário. Devido à dificuldade de conseguir pergaminhos ou papiros, aproveitavam-se estes materiais para uma nova escrita que se sobrepunha parcialmente ao texto primeiro. Assim, todo palimpsesto possuiria diferentes e distintas camadas textuais, escritas em momentos diferentes e, talvez, por pessoas também diferentes. 300 Retendo essa imagem de distintas camadas, de um espaço pluricelular, fruto de diversas escritas, podemos pensar o engenho fabricado por José Lins como um palimpsesto, como uma espacialidade que conteria em seu interior diversas camadas semânticas, oriundas de um processo histórico de atribuição de sentidos, processo esse realizado não só pelos textos do escritor paraibano, como também por vários outros escritores 666 . Quando o autor de Menino de engenho começou a escrever sua obra literária, o engenho era uma espacialidade em construção, já havia dadas camadas semânticas constituindo tal espaço, sedimentadas, sobretudo, pelos discursos de Joaquim Nabuco e Mario Sette. José Lins operou com essas camadas já instituídas para o banguê, ora aprofundando-as, ora enfraquecendo-as, ora rejeitando-as. Ao escrever seus romances, ele inseriu-se dentro de uma malha discursiva, começou a pensar a partir de todo um estoque discursivo precedente, por isso conseguiu agenciar novos sentidos e significados para o engenho. Ao lado do engenho fabricado como um agente e como um centro identitário, conforme realizaram respectivamente Joaquim Nabuco e Mario Sette com seus discursos, teríamos outros significados imaginados pelo autor do “ciclo da cana-de-açúcar”. Reino encantado e patriarcal, universo habitado por seres lendários e por um senhor de engenho imperial, bem como espaço da saudade e espaço da decadência, foram algumas das camadas de sentido que José Lins solidificou para o banguê nordestino. Na sua pena, a propriedade canavieira deixou de ser uma unidade espacial inteiriça, semanticamente homogênea. Ao invés dessa imagem, o engenho foi figurado com uma multiplicidade de sentidos e significados, os quais se agruparam nesta espacialidade e formaram diferentes camadas justapostas. Embora determinados sentidos tenham ganhado mais força e consistência, por terem sido mais mobilizados e atualizados, o banguê não se definiria por um único e exclusivo significado. Assim como as varias grafias definiriam um palimpsesto, teríamos com o engenho de José Lins, construído a partir de uma constelação de enunciados. Podemos pensar os romances do literato paraibano como a tinta com a qual escreveu dados significados para o engenho, como o material discursivo usado para desenhar e redesenhar novas faces do banguê. Os diversos textos de José Lins analisados neste trabalho instituíram um conjunto de sentidos para a propriedade açucareira nordestina, de modo que esta espacialidade pode ser encarada como um palimpsesto, como um agregado espacial no qual podemos observar uma multiplicidade de significados. Uma massa semântica foi 666 A discussão do engenho como um palimpsesto nos foi sugerida pela leitura dos seguintes textos: SCHAMA, Simon. Paisagem e memória. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 13-33 e p. 387-447. e PESAVENTO, Sandra Jatahy. Com os olhos no passado: a cidade como um palimpsesto. Revista Esboços, Florianópolis, Vol. 1, Num. 11, p. 25-30, 2005. 301 mobilizada para definir o engenho, para compor e recompor sua identidade espacial. Sobre sua estrutura física, sobre os pilares e as paredes que estruturam a casa-grande, uma gama de significados, valores e imagens vieram se agrupar, formando uma geografia simbólica como que revestindo a geografia física do engenho. Espacialidade palimpsesto, o engenho, na poética de José Lins, na sua arte de moldar espaços, tornou-se um aglomerado simbólico, um feixe de múltiplos enunciados. Na verdade, para José Lins e para vários homens de sua época, o engenho deixou de ser unicamente o complexo açucareiro. O sentido econômico e produtivo, que marcou e definiu tal espacialidade durante mais de três séculos, foi colocado em segundo plano. No Brasil do século XX, o local que produzia açúcar passou a ser identificado cada vez mais às usinas, unidade industrial que, a partir de fins dos anos 1920, suplantou a produção açucareira dos engenhos. Para indivíduos como José Lins do Rego, o banguê passou a ser o cenário da infância, a terra do avô, o mundo grandioso e harmônico do senhor de engenho, o espaço da saudade, a espacialidade que o mundo moderno estava destruindo. Estes sentidos e muitos outros compuseram uma nova identidade espacial para o engenho. Esta espacialidade tornou- se um palimpsesto composto de várias camadas de sentidos. Eis abaixo as palavras de Jayme Griz, poeta pernambucano, nascido em 1900 no engenho Liberdade: Como te sinto e te recordo, ainda e sempre Através do lírico e rumoroso correr dos anos Oh! Meu íntimo e velho amigo Engenho Liberdade No convívio de tua gente simples e boa Recolhi nobres e grandes lições de sabedoria do mundo Engenho Liberdade Terra de minhas raízes, Engenho de minha alegria Engenho de minha saudade... Foi na contemplação de tua grandeza panorâmica, Tocado pelas altas virtudes de tua alma bravia Que nas profundezas do meu ser despertou O telúrico e indomável instinto da liberdade.... 667 Produzido no início dos anos 1950, quando José Lins já tinha concluído o seu “ciclo da cana-de-açúcar”, o poema acima condensa praticamente todas as camadas semânticas do engenho-palimpsesto, conforme foram sedimentadas pelos mais variados discursos da literatura de engenho. Jayme Griz produziu versos sobre o engenho sem se quer fazer nenhuma referencia ao açúcar. No Brasil da terceira República, isso era possível porque o 667 Consultamos esse poema em: Correio da Manhã, 02 de janeiro de 1955, p. 07. 302 engenho já estava identificado a outros sentidos, para além da produção açucareira. Outras camadas de significados e de imagens plasmaram-se no engenho, formando-o. Na propriedade açucareira, uma geografia sensível sobrepôs-se a uma geografia física, embaralhando a maneira como os homens enxergavam tal universo. Dentre os múltiplos sentidos mobilizados por José Lins para construir o engenho, a noção de espaço da saudade parece ter sido central. Tal sentido parece mesmo constituir o núcleo do engenho-palimpsesto, afetando inclusive todas as outras camadas, uma vez que a saudade do engenho foi um sentimento que aferimos em todos os romances de José Lins com os quais trabalhamos. O engenho, seja descrito em seu apogeu ou em sua ruína, foi marcado por esse sentimento, como se o literato guardasse um enorme desejo de rever ou revisitar a espacialidade de sua infância. Tal espacialidade receberia sua inteligibilidade da saudade, ganharia seus contornos claros a partir deste sentimento. O engenho, representando o desejo de retorno, o mundo para o qual se quer voltar, encarnaria a própria saudade, o próprio anseio de presentificação do passado desejado. Se a escrita é uma prática, podemos pensar que José Lins, com seus livros sobre o universo açucareiro, praticava sua saudade do engenho, encenava no momento mesmo da escrita seu desejo nostálgico pela vivência no mundo canavieiro. A saudade em José Lins do Rego parece ser mais do que um sentimento ou uma sensibilidade. Ela aparenta ser uma espécie de condição existencial, uma dada forma de viver, uma determinada maneira de ver o mundo e a sociedade. Lembramos aqui um trecho já por nós citado do seu autorretrato, esboçado em 1947: “se chove, tenho saudades do sol, se faz calor, tenha saudades da chuva”668. Há aqui a presença constante da saudade, como se ela fizesse parte da personalidade que é narrada, como se ela fosse um dos traços definidores da pessoa retratada. Componente da subjetividade, a saudade estaria presente na maneira de José Lins enxergar não só os fenômenos naturais, mas também atuaria na sua leitura dos processos sociais. O comportamento do escritor paraibano, sua percepção das coisas, assim como suas produções literárias, seriam atravessados pela sua condição de homem saudoso, indivíduo atento à dimensão finita e trágica da vida. Destilando saudades pelo estilo de vida patriarcal do engenho, pela sociedade banguezeira centrada na casa-grande, pelo universo social chefiado pelo senhor patriarca, José Lins projetou no seu presente o anseio de que o futuro fizesse uma curva em direção ao passado. Feita não só de passado, a saudade implica também em um desejo de futuro, em um 668 MARTINS, Eduardo. Op. Cit., 1980, p. 25. 303 anseio de que o passado volte a ser presente. Mais do que negação, o engenho de José Lins atestaria uma relação complexa com o tempo, na qual a integração entre o ontem, o hoje e o amanhã davam o tom. Passado, presente e futuro se articulariam na sua construção simbólica do engenho. Sua poética do engenho, sua arte de fazer, fabricou o engenho como uma espacialidade eivada de saudade, palimpsesto composto de distintas camadas semânticas e temporais. Daí porque o escritor e o homem José Lins do Rego passou boa parte de sua vida adulta desejando “sempre recordar, estar sempre me lembrando. Quisera ter mais memória para mais me sentir preso a uma vida que é ainda minha grande vida” 669. 669 REGO, José Lins do. A terra é quem manda em meus romances. Entrevista concedida a Glóvis de Gusmão em 28 de junho de 1941. Reproduzida em: COUTINHO, Eduardo F.; CASTRO, Angela Bezerra de (Org.). Op. Cit., 1990, p. 54. 304 Fontes e referências bibliográficas 1. Fontes 1.1 Artigos: AMADO, Jorge. O dia em que conheci Graciliano. Revista Status, São Paulo, novembro, 1978, p. 150-151. CARPEAUX, Otto Maria. O brasileirismo de José Lins do Rego. In: REGO, José Lins do. Fogo Morto. Rio de Janeiro: José Olympio, 2010. CAVALCANTI, Valdemar. José Lins, cronista. Ciência & Trópico. Recife, V. 10, N.2, p.143-148, Jul./Dez., 1982. CRULS, Gastão. Menino de engenho. Boletim de Ariel, Rio de Janeiro, N. 1, Ano I, Ago. 1932. FREYRE, Gilberto. Em torno da Recifensização de José Lins do Rego. Ciência & Trópico. Recife, V. 10, N.2, p175-178, Jul./Dez., 1982. LIMA, Oliveira. Discurso na Academia Pernambucana de Letras, 1921. In: CENTENÁRIO da Academia Pernambucana de Letras: os de ontem, os de hoje, os de sempre. Revista da Academia Pernambucana de Letras. Recife: APL, 2001, v. 1, p. 23. MONTENEGRO, Olívio. 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