UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DA LINGUAGEM LINHA DE PESQUISA: POÉTICAS DA MODERNIDADE E DA PÓS-MODERNIDADE GENI MENDES DE BRITO MORNA: IDENTIDADE E LITERATURA EM CABO VERDE Natal - RN 2019 GENI MENDES DE BRITO MORNA: IDENTIDADE E LITERATURA EM CABO VERDE Tese apresentada ao Programa de Pós- graduação em Estudos da Linguagem, Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como requisito para a obtenção do título de Doutor em Literatura Comparada. Orientadora: Profª. Doutora Tânia Maria de Araújo Lima. Co-orientadoras: Profª. Doutora Simone Caputo Gomes, Profª. Doutora Doris Wieser. Natal- RN 2019 Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN Sistema de Bibliotecas - SISBI Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes - CCHLA Brito, Geni Mendes de. Morna, Identidade e Literatura em Cabo Verde / Geni Mendes de Brito. - Natal, 2019. 199f. Tese (doutorado) - Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, 2019. Orientadora: Profa. Dra. Tânia Maria de Araújo Lima. Coorientador: Profa. Dra. Simone Caputo Gomes. 1. Literatura Cabo-verdiana. 2. Identidade. 3. Morna-poesia e prosa - I. Lima, Tânia Maria de Araújo. II. Gomes, Simone Caputo. III. Título. RN/UF/BS-CCHLA CDU 821.111(665.8).09 Elaborado por Heverton Thiago Luiz da Silva - CRB-15/710 Este trabalho é dedicado a Maria Mendes da Silva — D. Deliza (in memoriam) —, minha mãe, que tanto me apoiou e me incentivou para ver este sonho (dela e meu) realizado. Ao meu pai, Gonçalo Ferreira de Brito (in memoriam), homem que tinha a “palavra de rei”, “Tão ético, tão puro, um coração valente”. A eles, meu eterno reconhecimento. AGRADECIMENTOS A Deus, antes de tudo. À professora Doutora Tânia Maria Araújo Lima, minha orientadora, pela confiança e liberdade que me impulsionaram nesta pesquisa. À CAPES, por me contemplar com uma Bolsa de Doutorado, no país, e uma de “doutorado sanduíche”, pelo financiamento dos meus quatro anos de pesquisa, sem o qual eu não conseguiria dispor de recursos para viabilizar este projeto. À professora Doutora Simone Caputo Gomes, minha coorientadora da Universidade de São Paulo, fonte inesgotável de conhecimento sobre a literatura de Cabo Verde, pela leitura enriquecedora e profunda desde os primeiros textos de minha tese, em minha qualificação, e pelas sugestões que me ajudaram na escrita do trabalho. Por ela, toda minha estima. À minha coorientadora da Universidade de Lisboa, Doutora Doris Wieser, pela abertura com que me recebeu e pela forma como me ajudou na minha inserção no meio acadêmico em Portugal; pelos encontros e partilhas sobre a questão da identidade cultural dos países africanos de Língua Portuguesa, pelo empenho em ler meus textos e partilhar conhecimentos. À professora Doutora Isabel Lobo, da Universidade Lusófona de Humanidades em Mindelo — Ilha de São Vicente — Cabo Verde, pela leitura atenta dos capítulos iniciais da tese em minha qualificação, pela competência nas discussões sobre a literatura cabo-verdiana e pela partilha de material de pesquisa sobre as Mornas. Agradeço de coração à professora amiga Irene Severina Rezende da Universidade Estadual do Mato Grosso (UNEMAT), a quem tenho grande apreço e consideração, por ter sido aquela quem, por primeiro, orientou-me e deu todo suporte para a realização desta pesquisa. Em Cabo Verde, às amigas e “manas do coração” Maria do Céu Baptista, Emanuela Tavares, Tuca Tavares, Antônia Veiga, Dulce Helena Levy, que foram um apoio sincero e fundamental para obter significativa referência bibliográfica para meu trabalho de pesquisa. Agradeço, em especial, à Emanuela e à Tuca Tavares pelo acolhimento tão fraterno, em suas casas, pela amizade e carinho que me dispensaram na minha primeira visita a Cabo Verde em 2015. Em Portugal, agradeço o acolhimento e recepção agradável à amiga de Conceição Horta e seu irmão José Alberto Horta, que me apresentaram um pouco do lado cultural e histórico do mundo lusitano. Agradeço, ainda, a tão grande ajuda de me terem enviado os livros de pesquisa de Lisboa para o Brasil. Na Bélgica, agradeço o apoio fraterno e sincero de Edith Pirard, irmã da Congregação de Notre Dame, que sempre me impulsionou ao conhecimento e a lutar pelas metas estabelecidas. Meu agradecimento para Claire Dewerchin, Cécile Jacquérie, pela amizade e apoio. Na Itália, o meu agradecimento para Antonieta Michielletto, amiga de longas datas por sempre estar presente nas minhas lutas e caminhadas. Pelo apoio e amizade sempre presentes, muito obrigada! Na França, agradeço de modo especial, à Chantal Poncet, grande interlocutora das “Letras francesas”, pelos importantes e tão intensos diálogos de conhecimentos partilhados ao longo da escrita de minha tese. No Brasil, especificamente em Natal (RN), agradeço imensamente à Professora Paula Pires, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte e a seu esposo Evandro, pelo sempre alegre acolhimento em sua casa, pela alegria e pelo humor sempre partilhado na boa convivência e apoio. Às amigas de Teresina, em especial à Flávia Sampaio e à Cleuma Magalhães, colegas de Mestrado, sempre presentes, pelo apoio emocional e material de que lancei mão em muitas ocasiões. A vocês, um abraço grande e sempre próximo. Agradeço, ainda, à Iracema, Joana, Emília, Elda, Edna, Dodô, Ana Lúcia Gomes, Marilene, Marilúcia, Maurilene, Mônica Batista, Lúcia Fernandes, Genésia Xavier, Núbia Lima pelo apoio e pela nossa amizade. Agradeço às amigas de outros estados brasileiros, que me apoiaram nessa empreitada, como Cleusa Denz (Fortaleza- CE), Fátima Jerônimo (Fortim- CE), Giseuda Rocha e Lourdes Barreto (São Paulo- SP), Eva Ferreira (Curitiba- PR), Maria Regina Soletti (Tangará da Serra- MT), Maria Cilene (Tangará da Serra- MT), Laine Andrade (Cuiabá- MT), Simone Gadelha (Fortaleza- CE), Irmã Annette Dumoulin (Juazeiro- CE) e a tão querida amiga Josilda e família (Canoa Quebrada- CE) Agradeço, também, aos colegas professores Élio Ferreira, Sebastião Teixeira, Assunção Sousa, que sempre me apoiaram de forma fraterna; a vocês, toda minha gratidão. Um especial agradecimento aos membros da minha banca, ao professor Dr. Amarino Oliveira de Queiros (da UFRN), Professor Dr. Sebastião Cardoso (da UERN), à Professora Dra. Rosilda Alves Bezerra (da UEPB) e a professora Dra. Érica Antunes que, com dedicado empenho e observação, ajudaram-me a enriquecer e aprofundar minha pesquisa sobre Cabo Verde e a Literatura presente nas ilhas. Por fim, um agradecimento especial aos meus queridos irmãos Gumercindo, Vicença, Regina, Gerson, Gabriel e Ribamar, pelo apoio sincero e amigo, pela compreensão das longas etapas de ausência, pelo apoio material e fraterno. Muito obrigada. RESUMO A literatura, em Cabo Verde, conheceu um significativo desenvolvimento, no final do século XIX, contando com o impulso dos jornais que dinamizavam a criação ficcional e poética. Mas, foi no século XX, com o surgimento da revista Claridade (1936) que se alicerçou o projeto literário cabo-verdiano. Nessa revista, os escritores do arquipélago procuram fixar-se em temáticas predominantemente crioulas, como o drama das secas e da fome, da emigração e da evasão, da insularidade e da saudade, expressas através da Morna, gênero musical que, conforme Simone Caputo Gomes (2008), assume um lugar privilegiado na literatura cabo- verdiana e estabelece um diálogo com a poesia e com a prosa de ficção com as quais ela interage, constituindo um diversificado percurso no panorama literário. Dada essa importância, propõe-se, nesta pesquisa, traçar a forma como poetas e ficcionistas cabo- verdianos definem, caracterizam e apresentam a Morna ora como tema principal de suas obras, ora como um dos elementos que conferem a identidade cabo-verdiana aos textos, atribuindo-lhe uma função narrativa, lírica, descritiva e dramática. Para a construção do presente trabalho: “Morna, identidade e literatura, em Cabo Verde”, a proposta metodológica concentrou-se, na pesquisa documental e bibliográfica, com base em fontes literárias, históricas, antropológicas. A fundamentação teórico-crítica foi realizada a partir dos estudos de Juliana Brás Dias, Benilde Justo Caniato, Manuel Ferreira, Moacyr Rodrigues, Simone Caputo Gomes, Vasco Martins, Gabriel Mariano. Percebe-se que, dentre os diversos gêneros musicais presentes em Cabo Verde, a Morna é, sem dúvida, a forma musical e poética mais cultivada, em todas as ilhas do arquipélago, uma vez que ela simboliza sentimentos cabo- verdianos, como a tristeza, a angústia e as dores, que, sob o peso da dominação colonial e cultural, resistem e se manifestam, principalmente, através da língua crioula, símbolo maior que ressignifica o universo cultural cabo-verdiano. Palavras-chave: Literatura cabo-verdiana. Identidade. Poesia. Morna. Prosa. ABSTRACT Literature in Cape Verde experienced a significant development at the end of the 19th century, relying on the impulse of the newspapers that dynamized its fictional and poetic creation. However, it was in the twentieth century, with the emergence of the magazine Claridade (1936) that the Cape Verdean literary project was consolidated. In this magazine, the writers of the Archipelago try to focus, predominantly, on Creole themes, such as: the drama of droughts and their consequences, emigration and evasion, insularity and longing, recurrent themes told and sung through Morna- a musical genre, which assumes a privileged place in Cape Verdean literature and establishes a dialogue with the poetry, prose of fiction. Things that affects it and with which it interacts, constituting, thus, a diversified course in the literary Creole panorama. Knowing this importance, we propose in this research, to outline how poets and fictionists define, characterize and present Morna as the main theme of their work, or as one of the elements that grant the Cape Verdean identity to their texts, outlining their lyric, descriptive and dramatic narrative functions. In order to write the present work "Morna, Identity and Literature in Cape Verde" - our methodological proposal focuses on a documentary and bibliographic research, based on literary, historical and anthropological sources. The theoretical-critical basis was developed from the studies of Juliana Brás Dias, Benilde Justo Caniato, Manuel Ferreira, Moacyr Rodrigues, Simone Caputo Gomes, Vasco Martins, Gabriel Mariano, among others. We found out that among various musical genres present in Cape Verde, Morna is undoubtedly the most cultivated musical and poetic form in all the islands of the archipelago. It symbolizes Cape Verdean sentiment of sadness, anguish and pain, which, even under the weight of colonial and cultural domination, resists and manifests itself, mainly through the language (the Creole), a major symbol that unifies the Cape Verdean universe . Keywords: Cape Verdean Literature. Identity. Morna. Poetry. Prose RÉSUMÉ La littérature au Cap-Vert a connu un développement significatif à la fin du XIXe siècle grâce à l’impulsion des journaux qui ont dynamisé la création fictive et poétique. Mais, c’est au XXe siècle, avec l’apparition du magazine “Claridade”-(1936) qu’a été fondé le projet littéraire du Cap-Vert. Dans ce magazine, les écrivains de l’archipel cherchent à s'attacher à dans des thèmes essentiellement créoles, comme le drame des sécheresses et de la famine, de l'émigration et de l'évasion, de l'insularité et de la nostalgie, exprimés à travers la Morna le genre musical qui d'après Simone Caputo (2008) assume une place privilégiée dans la littérature cap-verdienne et établit un dialogue avec la poésie et la prose de fiction avec lesquelles elle interagit en constituant un parcours diversifié dans le paysage littéraire. Compte tenu de cette importance, il est proposé dans cette recherche de retracer la manière dont les poètes et les écrivains de fiction cap-verdiens définissent, caractérisent et disposent de la morna comme thème principal dans leurs œuvres, ainsi que comme l'un des éléments qui donnent l’identité cap-verdienne à leurs textes, en leur conférant une fonction narrative, descriptive, lyrique et dramatique. Pour la construction de ce travail « Morna, identité et littérature au Cap-Vert », la proposition méthodologique se concentre sur une recherche documentaire et bibliographique, fondée sur des sources littéraires, historiques et anthropologiques. Le fondement théorique et critique a été réalisé à partir des études de Juliana Brás Dias, Bénilde Justo Caniato, Manuel Ferreira, Moacyr Rodrigues, Simone Caputo Gomes, Vasco Martins, Gabriel Mariano. Nous nous rendons compte que, parmi les différents genres musicaux présents au Cap-Vert, la Morna est sans doute la forme poétique et musicale la plus cultivée dans toutes les îles de l’archipel, puisqu’elle symbolise la sensibilité capverdienne comme la tristesse, l’angoisse et la douleur, qui, sous le poids de la domination coloniale et culturelle, résiste et se manifeste principalement par la langue créole, symbole majeur qui ressignifie l’univers culturel cap-verdien. Mots clés : Littérature cap-verdienne. Identité. Morna. Poésie. Prose. Morna Aí vem o canto dolente O canto que evoca coisas distantes que Só existem além do pensamento e deixam vagos Instantes de nostalgia... Ó mar azul Ó mar cor di céu Aí vem de novo o canto dolente e doloroso Irrompe dali perto. De onde uma luz mortiça De candeeiro esbate os pares entorpecidos Quando se extingue e deixa um travo de melancolia Ó mar azul Ó mar di sodade - Mamãe, B. Léza está fazendo umas mornas. Troveiro do povo, B. Léza ia direto ao coração. - Esta fala só do mar E de repente, lembranças e receios tão vivos [...]. (QUEJAS, 1998). SUMÁRIO INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 14 1. A IDENTIDADE CULTURAL CABO-VERDIANA ...................................................... 22 1.1- Identidade cultural: um processo complexo e dinâmico ................................................... 22 1.2 Construindo a identidade cultural cabo-verdiana .............................................................. 29 1.2.1 Mestiçagem e hibridação ................................................................................................. 33 1.2.2 Insularidade e emigração ................................................................................................. 53 1.2.3 A língua cabo-verdiana .................................................................................................... 60 1.3- Música cabo-verdiana e identidade ................................................................................... 66 1.3.1 A Morna como expressão identitária ............................................................................... 73 1.3.2 A trajetória histórica da Morna ........................................................................................ 79 2. MORNA E POESIA .......................................................................................................... 83 2.1 Morna e sua expressão lírica ............................................................................................. 87 2.2. A Morna de Eugénio Tavares .......................................................................................... 112 3- A MORNA E A PROSA LITERÁRIA CABO-VERDIANA ....................................... 122 3.1 A morna no conto cabo-verdiano ..................................................................................... 122 3.1.1 - “Galo cantou na Baía” - conto de Manuel Lopes ..................................................... 125 3.1.2 - A morna em “Terra Trazida”, de Manuel Ferreira ...................................................... 135 3.1.3 A Morna em “Mornas eram as noites”, de Dina Salústio .............................................. 151 3.2- A morna no romance cabo-verdiano ............................................................................... 155 3.2.1 “Chiquinho” - de Baltasar Lopes ................................................................................... 156 3.2.2 – “Os Flagelados do Vento Leste” - de Manuel Lopes ................................................. 164 3.2.3 Hora Di Bai, de Manuel Ferreira. .................................................................................. 171 CONCLUSÃO ....................................................................................................................... 181 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................................... 186 14 INTRODUÇÃO Morna: de música crioula a Patrimônio Imaterial da Humanidade. “Há só uma terra que conhece a Morna e só um povo conhece-lhe os versos – Cabo Verde e o homem cabo-verdiano.” (CRUZ; 1933) Afirma-se que Cabo Verde é a terra da Morna pelo destaque que o gênero tem, na sociedade cabo-verdiana e pela expansão que alcançou dentro e fora das ilhas, o que deu a ela um significativo papel na construção da identidade nacional. Diferentes interpretações são discutidas na busca de definir esse gênero musical e poético, como neste trabalho, que se propõe pensar a Morna e a forma como é interpretada, definida e caracterizada n’alguma prosa de ficção e n’alguma poesia de pertença cabo-verdiana. O encanto pela literatura cabo-verdiana, especificamente, pela Morna, impulsionou o interesse pelo campo em que esta tese se insere. Na música cabo-verdiana, a morna é a impressão mais forte retido a partir do primeiro contato com a história e a cultura de Cabo Verde, no ano de 1994. A motivação para escrever sobre a Morna surgiu por meio de um grupo de estudantes cabo-verdianos oriundos da ilha de Santiago, na Universidade de Louvain-la-Neuve, na Bélgica. A partir da audiência de uma Morna cantada por Cesária Évora, entendeu-se que a arte de cantar está intimamente ligada com a proeza de extrair da alma os sentimentos mais sublimes, mais genuínos, principalmente, quando se canta interpretando o sentimento de uma nação. “Na música cabo-verdiana, a voz é um elemento fundamental que complementa os instrumentos, e ambos, em harmonia, dão corpo à expressão cultural tão característica de Cabo Verde” (NÓS GENTI, 2012, p.1) A morna, enquanto modalidade musical que expressa a identidade cabo-verdiana, ganhou força com o reconhecimento internacional por meio da voz de Cesária Évora, consagrada, primeiramente em Cabo Verde, e depois difundida na diáspora, nos novos territórios em que os emigrantes cabo-verdianos iam reconstruindo suas vidas, readaptando- se. Por esse processo de reconhecimento, a música cabo-verdiana já não pertence exclusivamente aos cabo-verdianos, mas a um patrimônio musical de toda a humanidade. Por esse percurso marcado por referências e registros muito antigos de compositores e intérpretes de renome e estilos próprios de interpretação, que constituíram períodos estéticos, “o Governo de Cabo Verde aprovou, em 2012, uma resolução que classifica a Morna como 15 Património Histórico e Cultural Nacional, sendo esse um primeiro requisito para torná-la Património Imaterial da Humanidade”1 (JACINTO, 2017, p. 387). Proclamando essa decisão, no dia 27 de fevereiro de 2018, um grupo de parlamentares cabo-verdianos do Movimento para a Democracia (MpD) aprovou, por unanimidade, a data de 3 de dezembro como Dia Nacional da Morna, reverenciando o dia em que nasceu Francisco Xavier da Cruz, apelidado por B. Léza (1905 – 1958). “Troveiro do povo”, como é carinhosamente conhecido, B. Léza é considerado um dos maiores compositores e intérpretes desse gênero musical e destaca-se como um dos obreiros da Morna. O musicólogo cabo verdiano Gabriel Moacyr Rodrigues (2015) escreve que “influenciado pela música brasileira e argentina – B. Léza inovou a morna ao introduzir o meio tom, com os acordes de passagem, antes pouco usados nesse gênero musical”. Natural da cidade do Mindelo (capital da ilha de São Vicente), B.Léza compôs dezenas de Mornas, entre as quais se destacam Eclipse, Miss Perfumado, Resposta de Segredo Cu Mar e Lua Nha Testemunha; esta foi composta no leito do hospital, dias antes da sua morte a 14 de Junho de 1958. Conforme o presidente do Instituto do Património Cultural (IPC) de Cabo Verde, Hamilton Jair Fernandes, são grandes as expectativas para, até ao final do ano, a música cabo- verdiana imortalizada por vozes como B. Léza, Cesária Évora, Titina, Bana, Ildo Lobo, Tito Paris, entre muitos outros, obtenha a classificação, tal como aconteceu com o Fado em Portugal, em 2011. Já o atual Ministro da Cultura e das Indústrias Criativas, o cabo-verdiano Abraão Vicente, pontua que o Dia Nacional da Morna pretende homenagear compositores, músicos e intérpretes, além de reconhecer a sua importância e chamar a atenção da sociedade cabo- verdiana para a necessidade de valorizar esse gênero musical e poético. Ao mesmo tempo, acrescenta o Ministro, essa data representa uma “consagração da Nação”, pois Cabo Verde “abraça a morna reconhecendo nela um legado e patrimônio imaterial de todos” (NÓS GENTI, 2018, p. 3). Em entrevista à agência Sapo-MG: Lusa (2019, p.1), o especialista na elaboração de processos de candidatura a Património Imaterial da Humanidade da UNESCO, o cabo- 1 Distinção criada em 1997 pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura para a proteção e o reconhecimento do patrimônio cultural imaterial, abrangendo as expressões culturais e as tradições que um grupo de indivíduos que preserva em respeito da sua ancestralidade, para as gerações futuras, gerando um sentimento de identidade e continuidade. São exemplos de patrimônio imaterial: os saberes, os modos de fazer, as formas de expressão, celebrações, as festas e danças populares, lendas, músicas, costumes e outras tradições ( Fonte: Unesco- Paris, 2003). 16 verdiano e antropólogo Paulo Lima, que fez parte da equipe de elaboração do dossiê de candidatura da Morna a Património Imaterial da Humanidade, entregue na sede da UNESCO, em Paris, a 27 de março de 2018, afirma que a candidatura pretendeu traduzir “um povo que vê na Morna uma entidade insular, arquipelágica, mas também uma comunidade espalhada pelo mundo e que tem, nesse tipo de produção, um dos pilares, senão o mais conhecido, ao nível da música”. Com essa mesma intenção de preservar a Morna e salvaguardar sua história, diferentes projetos de estudo e investigação estão em andamento para serem implementados em todo o arquipélago como, por exemplo, a valorização da Língua cabo-verdiana e a sua importância no cotidiano do ilhéu, bem como a proposta de reestruturar os centros culturais e os monumentos ligados às figuras de ilustres escritores da cultura cabo-verdiana. Entre as ações práticas que serão desenvolvidas fora de Cabo Verde, está previsto "um grande concerto na sede da UNESCO, em Paris, com o fito de levar a essência da alma cabo-verdiana que é a Morna", assim como apresentar uma maior dinâmica relacionada aos “espaços” ligados à Morna, como aconteceu com o fado em Portugal, que catapultou lugares como Alfama, Mouraria, Madragoa ou o Bairro Alto para o 'top' das preferências dos turistas e também lisboetas. Para o Ministro Abraão Vicente, “a Morna é o género musical que configura uma forma mais completa daquilo que representa a alma e o percurso do povo cabo-verdiano”. Considera, ainda, que a Morna, “Nasce não só num momento histórico na ilha da Boavista, mas como resultado do nosso percurso como povo, que passou pela descoberta, pela chegada dos portugueses, pelo triângulo de tráfico de escravos, a descoberta da própria África, em que Cabo Verde foi sempre um trampolim, o período colonial e o período da luta pela independência. A morna acompanhou todos os movimentos literários e intelectuais de Cabo Verde, mas também acompanhou os movimentos de resistência, de imigração e de emigração” (ONU NEWS, 2018, p.1). Um dos principais símbolos de Cabo Verde, a Morna está presente em todas as ilhas do arquipélago e fortalece, em cada um dos ilhéus, o sentimento de pertencimento a uma comunidade. Por essa razão, é tomada como manifestação própria do domínio da cultura popular cabo-verdiana, pois, além de expressar, ela própria, inúmeros aspectos da cultura cabo-verdiana, tem sido apropriada em diferentes releituras que a tomam como inspiração para pensar Cabo Verde e sua gente. É nesse contexto que o ministro Abraão Vicente insiste e 17 reafirma que “a consagração da Morna como Patrimônio da Humanidade será o reconhecimento do percurso histórico do povo cabo-verdiano” (ONU NEWS, 2018, p. 2). No campo literário, pode-se afirmar que a Morna tem se constituído em um ícone da literatura cabo-verdiana e, por isso, surge como produto de uma terra, de um clima e das condições de vida de um povo. De Eugénio Tavares aos poetas da atualidade envolvidos seja em uma atmosfera de alegria, seja em sentimentos nostálgicos, a composição da Morna eterniza-se na literatura, quando se conta a história de Cabo Verde, descrevem-se suas paisagens e o estado de alma de sua gente. É oportuno aqui trazer a discussão sobre o arquipélago, a diáspora e as questões da identidade cabo-verdiana, com relação à qual se destacam as produções no campo da literatura, relembrando que Cabo Verde viu desenvolver- se, em suas terras, desde meados do século XIX, um rico espaço literário que possibilitou ao arquipélago sobressair-se no cenário colonial e pós-colonial. Ainda hoje, é preciso dizer que a literatura se relaciona diretamente com as manifestações existenciais do homem, pois, por meio de sua linguagem própria e de seu caráter sonoro e visual, exprime situações que um indivíduo pode ou não experimentar. Frente a essa consciência, investigadores e estudiosos de Cabo Verde buscam compreender as questões sobre a formação da identidade do cabo-verdiano. A história de Cabo Verde emerge da fusão de diferentes civilizações europeias e africanas que, ao longo dos séculos, formou uma cultura de valores afro-europeus, de população mestiça e identidade sui generis que une seus habitantes em todas as latitudes. Nos países africanos de língua portuguesa, é sobejamente conhecido o papel da literatura diante da identidade e da realidade do continente. As literaturas angolana, guineense, são-tomeense e moçambicana continuam refletindo sobre a realidade dos recentes estados nacionais. Os escritores desses países buscam novos caminhos e novas experiências poético-ficcionais e, embora ligados às questões coloniais e pós-coloniais, procuram encontrar as respostas para as inquirições que afligem a sociedade nos tempos atuais. A literatura cabo- verdiana, em particular, não foge à regra. A respeito de algumas questões que persistem na discussão entre pesquisadores em torno dos conceitos de literatura, identidade e cultura cabo- verdianas, nas quais este estudo se centra, reconhece-se, nessa literatura, a importância do conceito de identidade como incorporador das representações de Cabo Verde e dos cabo- verdianos sobre si próprios e sobre os outros. É importante informar que a escolha do tema da tese, intitulada “Morna, Literatura e Identidade em Cabo Verde”, contou com a importante contribuição e co-orientação da 18 professora Doutora Simone Caputo Gomes, da Universidade de São Paulo, que já havia desenvolvido o tema em capítulos de suas obras “Cabo Verde: literatura em chão de cultura” (2008), com a chancela da Biblioteca Nacional de Cabo Verde, e A symphony of flavors: food and music in concert (Newcastle upon Tyne, UK, 2015) e propôs o desenvolvimento mais minucioso do assunto em campo mais vasto. A proposta inicial deste trabalho era desenvolver uma pesquisa sobre o “banzo, a morna e o fado” como uma relação possível no âmbito da literatura, em que se pretendia destacar, em textos literários, históricos, sociológicos, antropológicos e em letras de música, o seu propósito de denúncia da desculturação sofrida por povos que foram escravizados no Brasil e em Cabo Verde. Porém, por ser a Morna o gênero musical que mais se expandiu dentro e fora de Cabo Verde, optou-se por analisar o papel que ela desempenha, nas obras de poetas e ficcionistas cabo-verdianos como Baltasar Lopes, Manuel Ferreira, Manuel Lopes e Dina Salústio, entre outros. Quanto à estruturação metodológica da pesquisa desenvolvida, passou-se pelo levantamento bibliográfico das diferentes obras sobre a história das sociedades africanas, especificamente a história de Cabo Verde, da sua cultura, da sua literatura e do seu povo. Durante muito tempo, Cabo Verde serviu como entreposto de escravos retirados da África e enviados, posteriormente, para a América do Sul, o que deu origem, muito cedo, a uma população mestiça. Essa nova população compôs um grupo intermediário entre os dois polos da pirâmide composta por brancos e negros. Sua história emerge da fusão com outras civilizações, especificamente de origem europeia e a africana. Nesse contexto, este estudo buscou privilegiar uma abordagem, na linha dos estudos culturais, que tem caracterizado os estudos africanos, destacando, sobretudo, a questão da identidade no contexto cabo-verdiano. A justificativa ampara-se na ambiguidade da palavra e, mesmo, no entendimento de que a identidade é um problema em meio à crise existencial em que vive o homem moderno, ao seu deslocamento, à incerteza. Por isso, conforme (MERCER, 1990), o anseio em falar sobre identidade é um sintoma da pós-modernidade que se propaga contemporaneamente. Mas, nem sempre foi assim, conforme Bauman (2005, p. 22-23): “antes do século XX, os debates acerca da identidade eram unicamente um objeto de meditação filosófica”. Portanto, este trabalho de investigação parte de um resgate teórico que aborda a identidade cabo-verdiana com questões inseridas no espaço das discussões dos Estudos 19 Culturais, sob a perspectiva de Stuart Hall e de Zygmunt Bauman, além da contribuição latino-americana para a discussão da identidade com Néstor García Canclini. Os procedimentos técnicos da investigação envolveram o levantamento de textos teóricos basilares e sua confrontação e diálogo com os que já faziam parte do acervo bibliográfico pesquisado. Com isso, a intenção foi obter uma maior compreensão dos conceitos que são articulados na pesquisa, em busca de contribuições para o desenvolvimento e os ajustes do capítulo da tese concernente ao eixo epistêmico pesquisado. Além da pesquisa em bibliotecas, houve participação em Congressos Nacionais e Internacionais, Colóquios e Palestras sobre a cultura e literatura cabo-verdiana. A proposta metodológica para a construção deste trabalho de pesquisa concentrou-se, principalmente, na pesquisa documental e bibliográfica, aproveitando fontes literárias já conhecidas além de outras obras que foram indicadas pela orientadora e co-orientadora. Nesta pesquisa, houve também a contribuição direta de escritores cabo-verdianos, como Dina Salústio e Filinto Elísio, em entrevista sobre a temática da cabo-verdianidade, tema ricamente relacionado à identidade cultural do povo de Cabo Verde. Quanto à teoria, a pesquisa foi feita a partir dos pares literatura e cultura, literatura e história, literatura e língua, e literatura e música, tendo como referência as ideias de Stuart Hall (2003) sobre a crise de identidade relacionada ao deslocamento geográfico. Segundo o teórico, o deslocamento do indivíduo, no mundo social em que vive, é um deslocamento de si mesmo. A questão da identidade está presente na produção dos escritores e poetas cabo- verdianos, a partir do reconhecimento de suas origens crioulas, da mestiçagem étnica e cultural do seu povo, que sensibiliza a intelectualidade africana do continente. Esses poetas e escritores resistem à opressão colonial e expressam em suas produções literárias suas marcas identitárias. Prosseguindo com essa proposta metodológica, contemplou-se, através dos estudos de Alfredo Margarido (1980), a literatura das nações africanas de língua portuguesa e de Manuel Veiga (1998) a respeito dos estudos sobre a literatura e a insularidade em Cabo Verde. Sobre a temática, a escritora Dina Salústio afirma que “a literatura cabo-verdiana revela o cabo- verdiano, ele próprio, que só se compreende na insularidade” (SALÚSTIO, 1998, p. 42). Para conhecer esses sentimentos de viver a insularidade, recorreu-se à obra de Gabriel Mariano, que propicia uma imersão na cultura cabo-verdiana, assim como foi realizado um percurso pelos cenários históricos e culturais do arquipélago através da obra de Danny Spínola (2004). 20 Para penetrar nos estudos específicos sobre a Morna, fez-se amiudada leitura dos textos de pesquisadores como Manuel Ferreira (1973), Simone Caputo Gomes (2008), Moacyr Rodrigues e Isabel Lobo (1996), Antônio Germano Lima (2001), Vasco Martins (1989), dentre outros autores que se destacam no campo da literatura cabo-verdiana, na produção lírica e discursiva, criando uma literatura de caráter nacional, sem esquecer o “fincar os pés no chão” e a exaltação da realidade cabo-verdiana. Por fim, essa proposta metodológica conduziu as questões da crítica literária e seu diálogo com a história e as inquirições sociais, políticas e culturais. Para responder a esses questionamentos, recorreu-se a autores como Benjamim Abdala Junior, Manuel Ferreira, José Luís Hopffer Almada, Gabriel Mariano, Pires Laranjeira, Elsa Rodrigues dos Santos, críticos que se destacam pela relevância literária e pela intervenção cultural indiscutível que tiveram para este estudo, assim como pela interpelação que fazem da literatura, da cultura e da sociedade, da política, da história e da crítica literária em geral. A abordagem sobre “Morna, Identidade e Literatura Cabo-Verdiana” será apresentada através de três capítulos. O primeiro, intitulado A Identidade Cultural Cabo Verdiana, tem como objetivo retratar as especificidades do arquipélago de Cabo Verde, sua origem, formação social, política e cultural, reconhecendo em sua formação identitária um contínuo processo de construção. Para responder a esse objetivo, um percurso histórico sobre as ilhas foi apresentado, como também diferentes elementos que constituem a formação da identidade cabo-verdiana, como a miscigenação e o hibridismo cultural, dois fatores que se configuram como resultado da contribuição de europeus e africanos e como produto do “caldeamento étnico e cultural de origem diversa que se processou nas ilhas” (ALFAMA, 2006, p. 91). Ver-se-á, também nesse capítulo, que a insularidade e a emigração se revelam como duas das vertentes temáticas mais presentes, no percurso cultural identitário do povo, e da literatura cabo-verdiana. Dentre outros elementos que contribuíram para a construção da identidade do arquipélago, está a língua cabo-verdiana e a música, especificamente, a Morna. Esses temas, ao longo dos séculos, vêm sendo objeto de discussão, reflexão e, por vezes, de calorosos debates envolvendo intelectuais das Letras, cientistas sociais, pesquisadores e acadêmicos. Proveniente do cruzamento entre colonizadores europeus e escravizados africanos, o cabo-verdiano é “confrontado”, nos mais variados debates e discussões que enveredam pelos caminhos da História, da Antropologia e da Sociologia, desde a colonização do arquipélago até os dias atuais. 21 O segundo capítulo tem como título Morna e Poesia; seu objetivo é apresentar a Morna e o diálogo que ela estabelece com a poesia tanto de Eugénio Tavares, considerado um dos maiores compositores de mornas e do lirismo clássico em língua cabo-verdiana, como de outros escritores de diferentes gerações, que definem, caracterizam e discorrem sobre este gênero. Para esse propósito, vê-se que a Morna, “enquanto modalidade musical assume um lugar privilegiado na literatura” (GOMES, 2008, p. 150), e estabelece um discurso interativo com a poesia, constituindo, assim, um diversificado percurso no panorama literário cabo- verdiano, que leva poetas a apresentarem a Morna ora como tema principal de suas obras, ora como um dos elementos que conferem a identidade cabo-verdiana. Considera-se importante informar que, nesse capítulo, o método utilizado foi a observação e comparação referente à forma como os poetas cabo-verdianos definem e caracterizam a Morna, lançando mão das figuras de estilo, como as metáforas e comparações que se corporificam numa poesia baseada nas emoções, em diferentes estilos de linguagem, por meio dos quais transmitem-se sentimentos traduzidos em palavras. O terceiro capítulo, A morna e a prosa literária cabo-verdiana, pretende demonstrar que a Morna e as temáticas nela recorrentes são também apresentadas, definidas e caracterizadas em contos e romance. Para a concretização desse propósito, foram analisados cinco contos e três romances de diferentes autores. Para esses ficcionistas, a Morna é ilustrada como “testemunha” da sociedade cabo-verdiana, presente, desde a história da cruel colonização, passando por uma dramática relação com a natureza. Por fim, as temáticas desta pesquisa estão explicitamente relacionadas aos mais árduos problemas enfrentados pelos cabo-verdianos, como a seca e seus efeitos devastadores, a fome, a miséria, a falta de esperança e expectativa, o “querer ficar e ter que partir”, esse querer bipartido que gera o desejo de emigrar para a “terra longe” em busca de melhores condições de vida. Assim, a saga de Cabo Verde é contada e cantada, na Literatura, à luz da evocação da Morna. 22 1. A IDENTIDADE CULTURAL CABO-VERDIANA “O humanismo da nossa crioulidade tem a dor da escravatura, a seiva da Europa, o trabalho e a tenacidade da diáspora espalhada no mapa, a cultura e a sabedoria da África no mundo [...] Estas são as características de nossa Identidade islenha.” (VEIGA, 2005, p. 15) 1.1- Identidade cultural: um processo complexo e dinâmico Nas últimas décadas, as narrativas e as questões associadas à origem do cabo- verdiano, assim como da realidade identitária do arquipélago e da construção da Nação em Cabo Verde, tem sido objeto de discussão, reflexão e, por vezes, de calorosos debates envolvendo intelectuais das Letras, cientistas sociais, pesquisadores e acadêmicos. E, em torno da demonstração das diferentes possibilidades de compreensão dessa temática, analisam-se as especificidades do arquipélago, desde sua origem, chegando à sua formação identitária sempre inacabada e em contínua construção. Proveniente do cruzamento entre colonizadores europeus e escravos africanos, os cabo-verdianos são “confrontados” nos mais variados debates e discussões que enveredam pelos caminhos da História, da Antropologia e da Sociologia, desde a colonização do arquipélago até os dias atuais. A história de Cabo Verde nos põe frente a uma sociedade construída a partir de um regime escravocrata implementado pelos colonizadores portugueses, que perdurou desde os primórdios da ocupação das ilhas, entre 1460-1462, até o início do último quartel do século XIX. Os habitantes do arquipélago de Cabo Verde, composto de ilhas oceânicas e com uma cultura híbrida, são fruto da fusão de diversos povos oriundos da Europa e da África, permeados por diversas línguas e diferentes culturas que participaram da sua formação social e geraram a identidade cabo-verdiana ou a “caboverdianidade”. O termo “identidade”, por “sua própria natureza, está sempre em questão” (MILES, 1999, p. 2). Em qualquer circunstância, apresenta-se como uma questão complexa, ainda mais em se tratando da identidade cabo-verdiana, “resultante do contato de culturas feito nas condições brutais e alienantes da escravatura e da colonização” (DUARTE, 1998, p. 383). Marcada por diásporas, fugas, exílios e busca por melhores condições de vida, a identidade cabo-verdiana, “decorreu de fatos históricos e culturais e de uma consciência nacional sobre o que é ser cabo-verdiano” (MADEIRA, 2015, p. 14). 23 A partir da formação geográfica e territorial e da própria evolução histórica da sociedade cabo-verdiana, pode-se falar de várias identidades, uma vez que estão associadas, principalmente na sua base, duas civilizações e realidades distintas: a europeia – sobretudo a portuguesa e os traficados como escravizados oriundos de diferentes zonas da costa africana, que, hoje em dia, pertencem a países como Senegal, Gâmbia, Serra Leoa, e das enseadas dos “Rios da Guiné”, ou “Rios de Cabo Verde”, que, desde o século XVI, representavam a maioria populacional da região (PEIXEIRA, 2003, p. 24). Desse entrelaçamento de civilizações, surge o povo cabo-verdiano, resultado inicialmente do encontro entre europeus e africanos que, diretamente, contribuíram no processo de povoamento do arquipélago possibilitando o surgimento de uma língua, assim como de variadas manifestações culturais que, ao longo desta pesquisa, serão apresentadas. O conceito de identidade incorpora as representações de Cabo Verde e dos cabo- verdianos sobre si próprios e sobre os outros. Baseados em indagações sobre quais os elementos que foram hibridados para construir a ideia da cabo-verdianidade e como foram interpretados, pode-se chegar às manifestações culturais da crioulidade que caracterizariam a expressão artística do que é ser cabo-verdiano no arquipélago e na diáspora. Para tanto, partir- se-á a definir como se configura a identidade cultural em geral e, posteriormente, como se plasma a identidade cultural cabo-verdiana em específico, assim como os elementos que identificam o cabo-verdiano tanto na diáspora quanto nas ilhas. O termo “identidade” abrange, hoje, uma multiplicidade de significados, pois tem assumido o percurso próprio na história das Ciências Sociais e, consequentemente, tem se adaptado às mudanças discursivas. Deriva desse fato a variação terminológica do conceito, que passa por expressões como “imagem”, “representação” e “conceito de si”, em geral, abordando conteúdos como “conjunto de traços”, de “imagens” e “sentimentos” que o indivíduo reconhece como fazendo parte dele próprio. Maria das Graças Jacques, no seu artigo intitulado “Identidade” (2011), informa que, na literatura norte-americana, o termo consagrado é self ou self-concept, correspondendo a “conceito de si”; já a tradição europeia privilegia a noção de “representação de si” (JACQUES, 2011, p. 160). Várias teorias ilustram o vocábulo “identidade”, relacionando-o ao conceito de “comunidade” ou de “grupo”, de “igual” e de “diferente”. Contudo, essa identidade está representada pelo nome, pelo pronome “eu” ou por outras predicações como aquelas referentes ao papel social do sujeito. Sob esse ponto de vista, a identidade se refere a um 24 conjunto de representações que responde à pergunta “quem és” (JACQUES, 2011, p. 160- 161). Atualmente, o conceito de identidade, ao assumir uma multiplicidade de sentidos, dá conta da complexidade desse fenômeno, tornando sua abordagem multidisciplinar. Interessa, assim, a praticamente todas as disciplinas e a diferentes sociedades dispersas, além de ser usado para indicar situações de continuidade de um indivíduo ou de um grupo, uns e outros considerados como parte de um contexto social. Tanto para os Estudos Culturais como para a História, os estudos sobre identidade têm se concentrado nas sociedades contemporâneas, resultado do processo de globalização e de outros fenômenos do mundo moderno. Para a britânica Woodward, “a globalização envolve uma interação entre fatores econômicos e culturais, causando mudanças nos padrões de produção e consumo, as quais, por sua vez, produzem identidades novas e globalizadas” (WOODWARD, 2004, p. 20). Efetivamente, a globalização começou com o colonialismo e a escravatura, mas Cabo Verde continua a ser atingida pelos processos de globalização moderna no pós-independência. Na atualidade, “o nosso mundo, e a nossa vida, vêm sendo moldados pelas tendências conflitantes da globalização e da identidade” (CASTELLS, 1999, p. 17); em outras palavras, as identidades sofrem impactos com o processo da globalização, que interfere diretamente na vida pessoal e nas dinâmicas culturais das sociedades. A globalização, “enquanto complexo de processos de forças de mudanças” (HALL, 2015, p, 39), tem o poder de deslocar e transformar identidades. Daí a importância de conhecer os impactos que esse fenômeno econômico e cultural produz nas questões relacionadas à identidade. Para Manuel Castells, (1999, p. 22), a identidade é entendida como “fonte de significado e experiência de um povo” e se caracteriza por uma construção cultural do significado por um ator social ou coletivo, construído através de elementos da história, da geografia e de elementos relacionados às instituições e memórias individuais e coletivas. Da experiência de vida dos membros dessa comunidade, surge uma pluralidade de identidades que consiste numa trincheira de resistência e sobrevivência construída por atores em posição desvalorizada e estigmatizadas por uma ideologia de poder dominante. Interpretada a partir de diferentes olhares, a identidade é conceituada por alguns autores como “sentimento pessoal”, ou seja, as identidades são analisadas como atributos específicos do indivíduo que o identificam como “pertencente a um determinado grupo” ou categoria (GIDDENS, 1991). A identidade mostra-se como uma partilha de aspectos comuns, seja a um território histórico ou terra de origem, assim como a mitos, memórias, cultura, 25 economias comuns com características específicas do indivíduo e de seu pertencimento a uma determinada categoria ou grupo. Nesse caso, a identidade é um processo de edificação de significados a partir de uma base cultural em que o indivíduo se sente inserido. A identidade é construída na relação entre o “eu” e o “outro”. O “outro”, na concepção da Sociologia, é a própria “sociedade”; melhor explicando, a identidade centra-se na interação do indivíduo com a sociedade. Para Anthony Giddens, a identidade é construída em um contexto de múltiplas escolhas e diferentes estilos de vida (GIDDENS, 2002, p. 13). Do “eu” e do “outro”, surgem duas variações ou percepções possíveis da identidade: a pessoal e a social (FEARON, 2013, p. 3). A identidade pessoal está ligada a uma construção individual do conceito de si, definida como um conjunto de atributos específicos do indivíduo, como as crenças, os desejos, ou os princípios de ação que ele considera poder distingui-lo socialmente de forma relevante, trazendo-lhe particular orgulho e orientando o seu comportamento de tal forma, que ele não saberia como agir ou o que fazer sem tais atributos. A identidade pessoal garante uma individualização quando representa os limites do “eu” e do “outro”, seja esse “outro” uma pessoa ou um mundo externo. Dessa forma, para a caracterização de um ser como “único”, é preciso compará-lo com os “demais”. No contexto cabo-verdiano, os debates sobre a identidade e a percepção que o ilhéu tem de si ainda são motivo de conflitos, pois se trata de discussões complexas sobre a herança cultural cabo-verdiana e sua origem (se é africana ou europeia). Por isso, Ingrid Creppell (2003) considera que a identidade pessoal é algo “imprevisível”, pois não se consegue prenunciar a forma como cada indivíduo assimila todas as influências culturais que recebe com as suas próprias experiências (CREPPELL, 2003, p. 9). Quanto à “identidade social ou coletiva”, trata-se do conceito ou da representação que o indivíduo dá a si a partir da sua vinculação a grupos sociais; descreve ou caracteriza um grupo de pessoas marcado por rótulos e distinguido por regras de pertença, recebendo predicativos mais específicos, como identidade étnica, religiosa, profissional. (FEARON, 2013, p. 11). Esse conceito de identidade social é um discurso que se insere no âmbito da psicologia social, a qual enfatiza que a identidade se constrói na relação entre o “eu” e o “outro”, mesmo que ambos pertençam a grupos diferentes. A “identidade social” toma em consideração a importância da socialização do sujeito, da sua transformação pessoal. Richard Jenkins (1994) afirma que é preciso articular a identidade social com a identidade pessoal, uma vez que a primeira deve ser construída com 26 base numa teorização apropriada que possa permitir a inserção de identidades individuais e coletivas dentro de um quadro analítico (JENKINS, 1994, p. 218). Na atualidade, conforme Stuart Hall, a ideia de identidade passa por um processo de transformação que se caracteriza pela crítica à ideia de uma identidade integral ou unificada. Para o autor, o conceito de identidade emerge como uma concepção que não assinala um “núcleo estável do eu”, ao contrário: “As identidades não são nunca unificadas, que elas são, na modernidade tardia, cada vez mais fragmentadas e fraturadas; que elas não são, nunca, singulares, mas multiplamente construídas ao longo de discursos, práticas e posições que podem se cruzar ou ser antagônicos. As identidades estão sujeitas a uma historização radical, estando constantemente em processo de mudança e transformação” (HALL, 2003, p. 108). Considerando essa noção, observa-se que a identidade cabo-verdiana também foi sendo moldada conforme os processos de construção e organização do país como um todo. De uma sociedade escravocrata, passando por todo um processo de colonização, resistência e sobrevivência, a sociedade cabo-verdiana evoluiu, no decorrer dos tempos, em busca da afirmação de uma identidade própria e de um “fincar os pés na terra-mãe2” identificando-se com ela a partir da consciência do “ser cabo-verdiano”. Em conformidade, uma vez mais, com Castells (1999), este afirma que a construção da identidade se processa através de uma relação de poder e possui três características a partir da sua origem e da sua forma de ser: a identidade legitimadora, a identidade de resistência e a identidade de projeto (CASTELLS, 1999, p. 25-26). A legitimadora seria a identidade introduzida por instituições dominantes de diferentes sociedades, com o objetivo de disseminar e expandir ou, ainda, racionalizar seu poder de dominação sobre um povo. Conforme Luciano dos Santos (2011), a identidade legitimadora está relacionada ao aparelho ideológico do Estado (como Escola, a Igreja e os Meios de Comunicação). Um exemplo dessa identidade se constrói na manifestação do nacionalismo, em que o Estado busca unificar os grupos sociais que vivem no mesmo território e com a mesma concepção em torno do ideal de Nação ( DOS SANTOS, 2011, p. 150). A identidade de resistência é criada por atores sociais que se encontram em desvantagens e/ou estigmatizados pela lógica da dominação, como forma de criar barreiras para a sua sobrevivência com base em princípios diferentes dos que norteiam as instituições 2 Significa a busca das raízes nativas do cabo-verdiano, um debruçar mais atento sobre sua realidade e suas condições de vida. 27 dominantes das sociedades. Essa identidade funciona como resistência à dominação e à exclusão e, através dela, “excluídos e marginalizados” buscam transformar a realidade na qual vivem em outra ainda não existente, mas desejável. Essa forma de identidade foi a que marcou os movimentos sociais na luta contra a opressão e discriminação. Pelo apagamento de uma identidade, outra se constrói. Por último, a identidade de projeto ou identidade de “mudança e transformação”, é aquela social e culturalmente construída; logo, mutável e dinâmica. Sua construção se dá por meio de materiais culturais ao alcance de seus autores, para redefinir posições na sociedade e construir uma nova identidade, transformando ou redefinindo a estrutura social (CASTELLS, 1999, p. 24). Stuart Hall adverte que as nações já não são mais os principais referenciais em que os processos identitários buscam apoio, porém continuam a oferecer seus discursos culturais para a formação dessas identidades. A globalização provoca uma hibridização das identidades, mas, antes, ela desaloja o indivíduo da sua própria identidade e o coloca em situação de profundo sentimento de perda subjetiva. Hall lembra que as “nações modernas são todas híbridas culturais”, não havendo mais espaço para as culturas e identidades lineares (HALL, 2003, p.62), assim como não “podemos considerar os membros de cada nacionalidade como elementos de uma cultura homogênea, tendo, portanto, uma única identidade distinta e coerente” (CANCLINI, 2006, p. 196). Seguindo a trilha de grande parte dos cientistas sociais, o cabo-verdiano João Lopes Filho (2003, p. 23) se refere à identidade como uma construção cultural que está particularmente ligada ao conhecimento e à consciência coletiva, definida a partir de indicadores como: o modo de vida, a linguagem, a religião e as tradições culturais que caracterizam um povo. E acrescenta: “A identidade é construída através de uma relação com os lugares, testemunhos, ações, memórias e outros elementos com os quais nos identificamos” (LOPES FILHO, 2003, p. 34). Sobre a identidade enquanto construção cultural, Hall defende que: “Em vez de pensarmos a identidade como um facto consumado […] devemos pensar […] que a identidade é uma “produção”, que nunca está concluída, sempre em construção, e sempre constituída dentro, e não fora, da representação”. (HALL, 2015, p. 222). A identidade é socialmente construída (FOUCAULT, 1978) e essa construção se apresenta dentro de um plano discursivo, no qual as diferenças são estabelecidas e as posições 28 sociais são assumidas pelo sujeito, embora sabendo que elas são sempre representações. São construções de um projeto incompleto, inacabado “[...] por integração e por diferenciação com e contra, por inclusão e por exclusão, por intermédio de práticas de distinção classistas e estatutárias” (PINTO, 1991, p. 288). São construídas não somente por forças materiais, mas, sobretudo, por ideias compartilhadas que podem ser caracterizadas, por um lado, como um elemento de ligação entre os elementos de uma comunidade e, por outro, como uma relação institucional entre uma comunidade e um determinado Estado (WENDT, 1994, p. 385). A questão da identidade como elemento fabricado e construído é dependente de outra identidade para sua existência; nasce e se desenvolve na relação com o outro, portanto é relacional, construída por meio da diferença e depende de um evento externo a ela para existir, de uma identidade que ela não é, logo, diferente de si (WOODWARD, 2014, p. 9). A nosso ver, identidade e diferença são indissociáveis, sujeitas ao poder, muitas vezes impostas e disputadas, resultam de anseios dos diferentes grupos sociais colocados em posições diferentes dentro da sociedade. Por isso, identidade e diferença se completam, e, havendo as diferenças, haverá também uma relação de poder. Sem a diferença, não há identidade (SILVA, 2003, p. 9). Nesse contexto, Bauman acrescenta: “A identidade é um grito de guerra usado em uma luta defensiva: [...] um grupo menor, e por isso mais fraco, contra uma totalidade maior e dotada de mais recursos (e por isso ameaçadora). [...] A identidade é uma luta simultânea contra a dissolução e a fragmentação; uma intenção de devorar e ao mesmo tempo uma recusa resoluta a ser devorado”. (BAUMAN, 2005, p. 83-84). A construção da identidade é simbólica, de modo que “adquire sentido por meio da linguagem e dos sistemas simbólicos pelos quais ela é representada” (WOODWARD, 2014, p. 8). Essa condição simbólica é o que dá sentido às práticas e relações sociais, definindo quem são os excluídos ou incluídos. Ao mesmo tempo, a assunção de que “afirmar a identidade significa demarcar fronteiras, fazer distinções entre o que fica dentro e o que fica fora” (WOODWARD, 2014, p. 14,) mostra que essas diferenças, dependendo do caso, podem ser interpretadas como umas mais importantes que outras, determinando a exclusão de grupos ou indivíduos. Frente às exposições acima referenciadas, entendemos que as identidades sociais têm características conflitantes: “o próprio conceito de identidade está associado aos conflitos”, assim afirma o sociólogo polonês Zygmunt Bauman, enfatizando que “as identidades não podem realizar a sua tarefa de identificação sem dividir tanto quanto unir as suas intenções includentes que se misturam com as suas intenções de segregar e excluir” (BAUMAN, 2005, 29 p. 85), levando o sujeito a assumir duas ou mais identidades, mesmo que entrem em contradição devido à relação de poder na sociedade. De natureza ambígua e ambivalente, a identidade nasce da crise do pertencimento e está associada à discórdia, ao conflito e à luta entre poderes políticos e opositores (BAUMAN, 2005, p. 26). O sentimento de pertencer, conforme afirma Hall (2003, p. 26), é algo “móvel, não estanque, construído”, a partir de um “sujeito imaginado”, que faz parte também de uma “comunidade imaginada” sempre atuante (ANDERSON, 2005). Seguindo a linha de pensamento de Bauman e Woodward, Ana Cordeiro afirma que a identidade “resulta do confronto, nasce de uma situação relacional, isto é, a partir das diferenças que opõem grupos que estão em contato, pois é na oposição que uma identidade vai tomando forma” (CORDEIRO, 2009, p. 41). 1.2 Construindo a identidade cultural cabo-verdiana “Reza a lenda que Deus, depois de construir o mundo, cansado, colocou um pé na África Negra e outro na Europa, sacudiu as santas mãos e caíram dez bocados de barro. Sem se aperceber, criou as dez ilhas de Cabo Verde e, desta forma, marcou o destino do povo ilhéu. Esquecidas pelo Senhor, o tempo sucedeu ao tempo e as ilhas foram achadas desertas pelos portugueses e habitadas. Povos africanos e europeus ali, em perfeita simbiose, se miscigenaram e da metamorfose resultou outro homem, o cabo verdiano”. (ALFAMA, 1998, p. 247) A identidade cultural cabo-verdiana deve ser compreendida como uma dinâmica relacional, que se formou perante um processo bastante complexo de miscigenação, gerando inclusão e exclusão entre os europeus e os africanos. Ana Cordeiro explica esse processo de inclusão e exclusão, quando afirma: “Inclusão pela retórica liberal da igualdade para todos e exclusão pelas práticas racistas e escravagistas; inclusão pela defesa de um modelo de um Império Colonial uno e integrador e exclusão pelo Estatuto de Indígena” (CORDEIRO, 2009, p. 41). A identidade cabo-verdiana foi construída, por um lado, a partir de conflitos pelas condições difíceis de uma natureza agreste e adversa; por outro, pelo convívio entre as matrizes humanas e culturais de origem europeia e africana. Do contato entre colonizador e colonizado, surge uma sociedade que se formou entre uma identidade cultural dominadora e 30 assimilacionista, a europeia, impondo seus padrões, costumes e tradições, e outra realidade identitária culturalmente variada, a africana. Na luta pela sobrevivência, esses dois grupos (europeus e africanos) buscaram a cooperação e o entendimento entre si, um comportamento que resultou no que se chama de “cabo-verdianidade”. Nas palavras de Leitão da Graça, esse termo representa “o ponto de partida quando se quer definir a cultura cabo-verdiana” (2007, p.58). Portanto, para conhecer os elementos que compõem a cabo-verdianidade e compreender a questão identitária cabo- verdiana, é importante apresentar alguns flashes da história e da cultura dessa sociedade crioula. Cabo Verde, arquipélago de origem vulcânica, de território insular, faz parte da Macronésia, nome dado aos cinco grupos de ilhas a sudoeste da Europa e a noroeste da África: Açores, Madeira, Selvagens, Canárias e Cabo Verde. Conforme a tese oficial, as ilhas foram descobertas pelos navegadores Diogo Gomes, Diogo Afonso e António de Noli, a serviço da Coroa Portuguesa. Até a chegada dos portugueses em 1460, “as ilhas não eram habitadas, apesar de algumas hipóteses contrárias” (GOMES, 1993, p. 23). O poeta cabo- verdiano Jorge Barbosa (1902-1971) reconstitui esse momento histórico de Cabo Verde no poema “Prelúdio”, aqui transcrito: Quando o descobridor chegou à primeira ilha Nem homens nus Nem mulheres nuas Espreitando Inocentes e medrosos Detrás da vegetação. […] Havia somente, As aves de rapina De garras afiadas As aves marítimas De voo largo As aves canoras Assobiando inéditas melodias. […] Quando o descobridor chegou E saltou da proa do escaler varado na praia Enterrando O pé direito na areia molhada E se persignou. Receoso ainda e surpreso Pensando n’El-Rei Nessa hora então. Nessa hora inicial. Começou a cumprir-se Este destino ainda de todos nós. (BARBOSA, 1956, p. 1) 31 Jorge Barbosa apresenta uma Cabo Verde deserta de elementos humanos, mas com uma fisionomia própria, com aves e vegetação características de uma região agreste. De acordo com os estudos de Lessa & Ruffié (1960, p. 14): “nenhum vestígio que comprovasse a presença de povos africanos ou de outras nacionalidades ou etnias foi encontrado no arquipélago antes da chegada dos colonos portugueses”, o que demonstra que as ilhas eram inabitadas. Devido a sua localização geográfica e aos fatores climáticos, as estiagens são frequentes em todo o arquipélago. Os ventos originários do Continente Africano, precisamente do Saara, como o Harmatão, também denominado de Vento Leste ou Lestada, são causadores de vendavais devastadores e de secas prolongadas. A característica climática de Cabo Verde é a irregularidade das chuvas, causadora de grandes períodos de secas. Recuando no tempo e na história, sobre a construção da identidade cabo-verdiana, Appiah (1997, p. 242), afirma ser preciso olhar as culturas pré-coloniais para compreender a variedade das tradições na África contemporânea. Conforme esse autor, embora as políticas coloniais implementadas pelos portugueses tenham sido idênticas, o resultado das ações nos países colonizados como Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, São Tomé e Príncipe, Timor e Macau foram bem diferentes, uma vez que existia uma definição de fronteiras pelo império que diferenciava os nativos dos continentes africano, asiático e oceânico. Para ilustrar essa realidade, é importante ressaltar que Salazar e seus ministros criaram a condição de “assimilado” como status social, legalmente instituído para todos os nascidos nas colônias, que deveriam cumprir determinadas obrigações instituídas pelo “Estatuto do Indigenato”3 publicado em 1926 e que vigorou até 1961. O artigo 2o do Estatuto dos Indígenas Portugueses das Províncias da Guiné, Angola e Moçambique considerava “indígenas”: “Os indivíduos de raça negra ou seus descendentes que, tendo nascido ou vivendo habitualmente nelas, não possuam ainda a ilustração e os hábitos individuais e sociais pressupostos para a integral aplicação do direito público e privado dos cidadãos portugueses”. (Decreto-lei no 39. -666, de 20 de março de 1954). 3 A aplicação de um estatuto especial para os povos dos territórios colonizados, através de um sistema jurídico e social, simbolizou o produto mais acabado da dominação portuguesa. 32 Portanto, era considerado “indígena” todo indivíduo negro, residente nos territórios colonizados, que não demonstrasse valores e comportamentos da cultura portuguesa. Exaltando, ainda, o seu poder, o governo colonial português considerava que sua missão era: “Por todos os meios, o melhoramento das condições materiais e morais da vida dos indígenas, o desenvolvimento das suas aptidões e faculdades naturais e, de maneira geral, a sua educação pelo ensino e pelo trabalho para a transformação dos usos e costumes primitivos, valorização da sua actividade e integração activa na comunidade, mediante acesso à cidadania”. (ESTATUTO DO INDIGENATO, 1954, Artigo 4o). Todos esses discursos coloniais tinham como objetivo fundamental transformar esses homens e mulheres negros africanos em cidadãos portugueses “amantes e orgulhosos da sua Pátria, da sua língua, dos seus costumes e da sua crença” (NÓVOA, 1996, p. 405). Para obter a cidadania portuguesa, o “indígena” passava por todo um processo de aculturação e assimilação, ou seja, o nativo era construído e transformado em um “novo- homem”, à imagem do português. Para tornar-se um “assimilado”, o indivíduo deveria “[...] ter abandonado inteiramente os usos e costumes da raça negra, falar, ler e escrever corretamente a língua portuguesa, adoptar a monogamia”, como também “exercer profissão, arte ou ofício compatível com civilização europeia, ou ter rendimentos que sejam suficientes para prover aos seus alimentos, compreendendo o sustento com habitação e vestuário para si e sua família” (NORÉ & ADÃO, 2003, p. 101-126). Conforme Ferreira (1977), a assimilação tinha como objetivo mostrar que Portugal não era racista e que qualquer africano poderia tornar-se português, desde que assimilasse a religião, a língua e a cultura lusitana. Os assimilados, ao abdicar dos seus costumes africanos, recebiam alguns privilégios como, por exemplo, ocupar baixos cargos na administração colonial, acessar tribunais regulares, ter direito à formação acadêmica e à educação, ter dispensa do trabalho “voluntário” que, na época, era extensivo a todos os indígenas. Embora possuindo os mesmos direitos que os europeus, continuavam sendo tratados como “[...] cidadãos de segunda classe, alvo de preconceito racial, econômico e social” (HERNANDEZ, 2002, p. 515). Quanto aos indígenas “não assimilados”, ou os nativos, a maioria da população cabo- verdiana era constituída por mestiços e negros, caracterizados por serem analfabetos e possuírem um nível de vida muito baixo, não gozando dos mesmos direitos civis dados aos assimilados, ou seja, o indígena, mesmo após a abolição do Estatuto do Indigenato, em 1962, 33 e o reconhecimento de que também era cidadão português, não “tinha instrução, nem crenças” (VASCONCELOS, 1900, p. 15). É de Ana Cordeiro (2009) a afirmação de que “o Estatuto do Indigenato, criado pelo decreto orgânico de 1869, aplicado nos países Angola, Guiné Bissau, Moçambique, não vigorou, em Cabo Verde, pois os cabo-verdianos tinham recebido da Rainha D. Maria II o direito de cidadania” (CORDEIRO, 2009, p. 37-38). Por serem considerados cidadãos portugueses, os cabo-verdianos, em especial as elites locais, opuseram-se à aplicação do Estatuto do Indigenato, tendo em vista o seu estado de “civilização”. Esses intelectuais, também conhecidos por “nativistas”, desde o início do século XIX, buscavam obter o estatuto de “adjacência”, ou seja, dotar as ilhas cabo-verdianas de uma “identidade política e administrativa” próxima à que Portugal atribuíra, em 1834, às ilhas dos Açores e da Madeira (CENTEIO, 2007, p. 82). A exclusão de Cabo Verde de participar do “Estatuto de Adjacência” foi motivada, segundo a administração colonial, pela distância entre as ilhas e a Metrópole, pela condição econômica e pela fraca produção de riquezas naturais. Outros motivos, conforme Centeio (2007), estavam relacionados às questões humanas, ou seja, Cabo Verde era constituído majoritariamente por mestiços e negros, com apenas uma pequena parte da população constituída de brancos, contrariamente às outras ilhas, que receberam o Estatuto de Adjacência. 1.2.1 Mestiçagem e hibridação Cabo Verde despertou particular interesse da Coroa portuguesa devido à sua localização próxima à Costa Africana. Carreira (1983) afirma que o povoamento das ilhas é resultado da contribuição de europeus e africanos, porém essa contribuição foi permeada de conflitos e resistências devido às práticas impostas pelo colonizador. Durante muito tempo, as ilhas serviram como entreposto de escravizados retirados da África e enviados, posteriormente, para a América do Sul, constituindo, muito cedo, uma população mestiça. Formou-se, logo, uma comunidade composta por várias tribos, com grande variedade étnica, surgindo o que Manuel Ferreira (1972) chamou de “terra trazida”. A prática da escravidão, nas ilhas, decorreu da posição geoestratégica do arquipélago, que fez com que a Ribeira Grande, localizada na Ilha de Santiago, funcionasse como comércio escravagista, servindo de ponto de aprovisionamento para as caravelas transatlânticas. Com a chegada das diferentes etnias africanas à Ilha, deu-se início à estruturação de uma sociedade escravocrata, e aquele passou a ser um espaço de concentração 34 de escravizados, com o propósito não somente de trabalhar nas explorações agropecuárias, como também de suprir a necessidade de mão-de-obra na lavoura, assim como para fins de ladinização e reexportação desses escravos para as Américas. A ladinização, enquanto exigência da Coroa Metropolitana consistia numa ação desenvolvida pela Igreja Católica para doutrinar, cristianizar e batizar os escravizados não cristãos, ou seja, instruí-los e alfabetizá-los, tornando-os de maior valor comercial; ou “resgatá-los”, que significava primeiro, a substituição dos seus nomes de origem por nomes portugueses, o seu afastamento das crenças próprias, de suas tradições culturais, trazendo-os para as crenças dos “senhores” (PEIXEIRA, 2003, p. 31). Lembramos que o “achamento” do arquipélago de Cabo Verde está relacionado com a expansão marítima de Portugal e que seu povoamento começou com colonos brancos que se estabeleceram na Ilha de Santiago4 (PEIXEIRA, 2003, p. 22-23). Assim, em 1462, começou a colonização da região, primeiro com portugueses vindos do Alentejo e do Algarve, e com alguns africanos “homens livres que acompanhavam os comerciantes e capitães de navios nas suas deslocações, dos quais se destacam os cassangas e os brâmanes5” (MADEIRA, 2014, p. 52). Também havia outros forasteiros vindos da Itália (genoveses) e da região espanhola de Andaluzia. Juntando-se aos europeus, surgem depois, em grandiosa quantidade, os “negros” africanos trazidos como escravizados das “enseadas dos Rios da Guiné”6. É importante ressaltar que: “A região costeira próxima ao arquipélago de Cabo Verde passou a ser chamada por Guiné, Guiné do Cabo Verde, Alta Guiné ou Senegâmbia, como é conhecida hoje. Esta região, compreendida entre os deltas dos rios Senegal e Gambia, era parte da Confederação dos Jalofos- reino do interior que dominava as populações do litoral e por onde passavam caravanas rumo ao norte”. (RIBEIRO, 2011, p. 1). Da contribuição étnica do elemento africano vieram para o arquipélago: Mandingas, Bambaras, Balantas, Fulas, Jalofos, Bigajós, Felupes, Pepéis, Quissis, Bololas, Mandjacos, Wolof, entre outros (GRAÇA, 2007; PEIXEIRA, 2003). Elsa dos Santos informa que “os portugueses, logo que se estabeleceram, cruzaram com mulheres de cor, pois eram raras as mulheres brancas” (1989, p. 35). Desse 4 Primeira cidade fundada pelos portugueses no Ultramar e que, devido à sua posição estratégica no Atlântico, teve o porto como ponto de escala obrigatório nas aventuras da descoberta, no tráfico negreiro, nas lides comerciantes entre a Europa e outros continentes. 5 Os Brâmanes e Cassangas pertencem ao grupo étnico dos Mandjacos - agricultores e animistas da Guiné Bissau, que possuem uma organização social hierarquizada sobre o modelo Mandiga (nobres homens cultos, artesões). 6 Toda a região, denominada por “rios da Guiné” estendia-se entre o Senegal e a Serra Leoa, englobando os rios do Ouro, Senegal, Gâmbia, Casamansa, Cacheu, Grande, Nuno, Geba e Cabo Branco (FURTADO, 2013, p. 6). 35 estabelecimento nas ilhas, deu-se início a uma relação de tolerância social entre senhores e escravizados, pois ambos estavam isolados e distantes de suas terras, de suas tradições e modo de viver, diferente do que aconteceu nas colônias portuguesas do continente africano. Dessa convivência, “que pode ter sido violenta nas suas emoções e complexa nas suas atitudes” (LOPES FILHO, 2010, p. 130), desse encontro entre europeus e escravizados, desse cruzamento de diferentes culturas e diferentes povos, “fruto da interpenetração das matrizes europeias e africanas sob condições históricas singulares” (PEIXEIRA, 2003, p. 64), surgiram dois processos subjacentes à identidade cabo-verdiana: a mestiçagem e as trocas culturais. Conforme Peixeira (2003, p. 64), a mestiçagem como núcleo gerador da identidade cabo-verdiana se dá em três tempos concretos: o primeiro, com o engendramento do indivíduo biológico, surgido do concubinato. Conforme Eurídice Monteiro (2016), com a penetração colonial, em termos funcionais, “começou a delinear-se o desequilíbrio nas relações de poder de género, classe e raça”, a autora lembra ainda que, tal como o racismo colonial, “também o sexismo colonial se concebia como mecanismo de dominação”, ou seja, esse concubinato não só se revelava socialmente transversal, como era resultante de um violento sistema colonial e patriarcal (MONTEIRO, 2016, p. 92-93). Como citado anteriormente, a ausência de mulheres brancas favoreceu a união sexual (mas não necessariamente social) entre senhores e escravizadas. Esse foi um dos fatores que acelerou a miscigenação, em Cabo Verde, uma vez que, independentemente da função ou do cargo que cada colono ocupava, todos tinham uma negra escravizada à sua disposição. E essa união sexual de “homens brancos com mulheres negras”, mesmo que contestada pela Igreja Católica, ocorria com o envolvimento dos senhores, ou seja, clérigos, governadores e altos funcionários régios da metrópole, dando surgimento ao “mestiço”, ou, ainda, ao “filho da terra”. O escritor e político cabo-verdiano Onésimo Silveira reforça esse contexto de encontro quando escreve: “Do abraço entre o escravo e o seu senhor; do cristão missionário e do negro sem retaguarda; do governador e da concubina; do padre e do leigo, que acabou por nascer o cabo-verdiano, que iria resistir tenazmente às garras devoradoras das secas para se afirmar como senhor de uma língua, crente em um só Deus, atirado sobre uma pátria de pedra, no meio do mar, por obra e graça d'el-Rei”. (SILVEIRA, 2005, p. 121-122). Quando os brancos têm filhos com as escravizadas, a “interpenetração cultural” surge, segundo João Lopes Filho, e dá condições para a formação de uma sociedade baseada na mestiçagem (LOPES FILHO, 2010, p. 130). 36 Afirma-se, ao longo desta investigação que, com a sua ascensão e entrada na chamada “sociedade branca”, o papel do mestiço foi fundamental para a consolidação da identidade cabo-verdiana (MARIANO, 1991). Assiste-se, então, a um processo de cruzamento de vários hábitos, costumes e comportamentos, assim como de modos de sentir e de estar, de comunicar, fruto de duas civilizações - a africana e a europeia. Nesse contexto, considera-se que Cabo Verde é produto do período colonial e os cabo-verdianos, o “resultado de um caso particular da colonização portuguesa” (SEIBERT, 2014, p. 42). Retomando a afirmação de Peixeira sobre o núcleo gerador da identidade cabo- verdiana (2003), a “progressão ascensional do mestiço” foi construída através da sua promoção social e econômica, tendo como base alguns elementos que facilitavam sua subida ao “sobrado”7- como a mestiçagem biológica, que gerou o fato de ser “filho de um pai português” (em virtude da inferioridade numérica do europeu no arquipélago), a apropriação de elementos da cultura portuguesa, assim como a missão de manter “as tradições próprias da economia”, caso os “senhores” decaíssem economicamente (PEIXEIRA, 2003, p. 66). Devido ao término da escravidão, homens e mulheres mestiços arcaram com uma série de responsabilidades socioculturais e econômicas nas ilhas, dando respaldo ao que Gabriel Mariano chamou de “o mundo que o mulato criou” (MARIANO, 1991, p. 39). Existe um consenso entre intelectuais e pesquisadores de que, do ponto de vista da construção e da formação da identidade cultural, Cabo Verde constitui, no contexto africano, um caso “singular” pelo fato de terem sido pessoas mestiças (étnica e culturalmente falando) e não brancas a terem triunfado na sociedade colonial e terem se estabelecido como principais sujeitos da história do arquipélago (MARIANO, 1991). Essa singularidade do processo histórico das ilhas é resultado de uma miscigenação étnica e cultural que permitiu aos cabo- verdianos “tornarem-se praticamente os únicos agentes das transformações culturais em curso, a partir do século XVII” (DUARTE, 1998, p. 8). A temática sobre a “singularidade” cabo-verdiana é constantemente discutida entre sociólogos, antropólogos e diferentes pesquisadores da história cultural e social de Cabo Verde. Victor Barros, sociólogo cabo-verdiano, chama a atenção para o valor excessivo que os intelectuais das ilhas dão a essa questão: “Muitas vezes esquecemos que a singularidade é um traço transversal a todas as sociedades e culturas. [...] “encontramos vivas ainda várias manifestações em torno 7 Termo usado por Gabriel Mariano, que se opõe ao “funcho”. “Sobrado”, no contexto brasileiro, ou “casa grande”, relaciona-se ao “senhor, branco, colonizador” dono de engenhos; o “funcho” era o local do escravizado negro, a “senzala”. 37 do mito de Cabo Verde como uma espécie de África especial, como se as realidades socioculturais do continente fossem desprovidas das suas especificidades e como se o próprio continente constituísse um mundo uno, passível de ser reduzido a um quadro monolítico, cuja mera utilização da designação continental (África) fosse suficiente para descortinar e tornar inteligível as múltiplas composições sociais e históricas da própria África” (BARROS, 2009, p.158). Retomam-se as palavras de Vítor Barros, que esclarece: “A elevação de Cabo Verde à condição de cultura original e específica significa, simplesmente, desconsiderar e destituir os demais grupos das suas especificidades, reduzindo-os a uma representação simplista, colonial e monolítica, como se eles fossem desprovidos dessa aura legitimadora da própria originalidade cabo- verdiana”. (BARROS, 2009, p. 179). As formulações discursivas acerca da singularidade cabo-verdiana, assim como do sentimento de “ser cabo-verdiano” advêm de uma postura das elites intelectuais e da interpretação que estas repassavam. Conforme o pensamento da pesquisadora Carmo Daun, os nativistas já afirmavam que “os cabo-verdianos são mais civilizados do que os coloniais da África continental”; para os claridosos8, a singularidade advém da interpenetração cultural nas ilhas, da mestiçagem um processo histórico relacionado à miscigenação racial e à “desafricanização” cultural do arquipélago; já para os africanistas, a singularidade tem um tom revolucionário, seus membros exortavam a busca das origens africanas e a insurreição da negritude (CARMO DAUN, 2015, p. 790). Esse é o perfil do povo crioulo, essencialmente no campo da linguagem, mestiço, híbrido, desde o seu nascimento, fruto da fusão entre brancos e negros, que se configurou como um importante elemento para a divulgação e afirmação da identidade cultural cabo- verdiana. Para a historiadora Iva Cabral, os mestiços ou os “filhos da terra” constituíam, na hierarquia social cabo-verdiana, a elite local, que passou a assumir o comando das instituições administrativas e a desempenhar o papel de oficial régio dos vários escalões da administração local (CABRAL, 1995, p. 225). Como resume a pesquisadora Simone Caputo Gomes: “O mestiço cabo-verdiano revelou-se como elemento catalisador, mas também inovador e plástico, com o alastramento tanto horizontal quanto vertical, por todo o arquipélago, de expressões de cultura mestiça formadas possivelmente no funcho: a língua crioula, o folclore poético, musical e novelístico, a culinária, a doceria, o 8 Os “claridosos” foram os fundadores da Revista Literária “Claridade”, surgida em 1936 na cidade do Mindelo, na ilha de São Vicente. Os escritores Jorge Barbosa, Manuel Lopes e Baltasar Lopes da Silva, sob o princípio de “fincar os pés na terra”, defendiam a emancipação cultural, social e política da sociedade cabo-verdiana. 38 folclore das adivinhas, dos provérbios, ou festejos populares, as superstições, os hábitos e esquemas de comportamentos”. (GOMES, 2008, p. 128-129). Com a conquista do poder econômico e da ascensão social, os mestiços passam a desempenhar um papel de reconhecida importância, na configuração social e econômica, em Cabo Verde. Em razão da sua identidade miscigenada, por terem descendência direta de portugueses e serem reconhecidos como filhos legítimos, e pela possibilidade de acesso à educação e ao ensino, os mestiços podem equiparar-se ao senhor, chegando mesmo a dividir com ele cargos políticos e administrativos, o que se revelou determinante para a consolidação da sua posição na estruturação da sociedade cabo-verdiana (PEIXEIRA, 2003, p. 65-66). Porém, nem tudo foi assim tão passivo para os mestiços ou para os “filhos bastardos”, como eram chamados. Esses “filhos da terra”, em certas circunstâncias, pagaram um preço alto por usufruir de direitos que eram inerentes aos portugueses, como os direitos civis e políticos, ou seja, os cabo-verdianos podiam participar, mesmo que de forma marginal, da estratégia de ocupação e controle do sistema colonial, como funcionários em estabelecimentos públicos, em outros territórios africanos Angola, São Tomé e Príncipe, Guiné e Moçambique. Também podiam participar do projeto civilizacional do império português, através do alargamento da sua administração, assim como ter acesso à educação e ao ensino (como sinônimo de civilização), necessários para a ascensão social dos considerados “não brancos” e exigência dos senhores para que o mestiço se afirmasse como pessoa íntegra (RAMOS, 2009, p. 25); (GRAÇA, 2007, p. 49). Conforme o historiador António de Oliveira Marques (2001), para o exercício pleno de algumas atividades, o mestiço teria de preencher requisitos pré-estabelecidos como “saber ler e escrever a Língua Portuguesa; possuir os meios necessários à sua subsistência e à das suas famílias; ter bom comportamento; diferenciar-se pelos seus usos e costumes do usual da sua raça” (MARQUES, 2001, p. 26), ou seja, “este novo homem” tinha que passar pelo processo de assimilação, como já mencionado anteriormente, fazendo uma ponte, nem sempre pacífico, entre colonizados e colonizadores, entre duas culturas que ali se chocavam e se moldavam. Do ponto de vista cultural e biológico, e como resultado da interpenetração dos diferentes grupos étnicos, nas ilhas de Cabo Verde, ainda hoje se questiona se os cabo- verdianos são africanos, europeus ou simplesmente cabo-verdianos. As pesquisas do sociólogo João Paulo Carvalho Madeira (2015) indicam que são muitos os debates entre intelectuais, políticos e acadêmicos em torno do pertencimento de Cabo Verde à África ou à 39 Europa ou se o arquipélago é simplesmente uma região tropical (MADEIRA, 2015, p. 77). O sentimento dos cabo-verdianos das várias ilhas também varia entre ser mais africano ou mais português. Geograficamente, Cabo Verde se encontra mais próximo do continente africano que do europeu. Contudo, debates já aconteciam antes mesmo da independência de Cabo Verde e estão associados aos aspectos culturais, políticos, econômicos, comerciais e de segurança, com destaque para a construção do Estado-Nação (MADEIRA, 2014, p. 52). Como aponta o sociólogo José Carlos Gomes dos Anjos (2002), a identidade do mestiço cabo-verdiano só vem a ser reconhecida pela população das ilhas quando os “filhos da terra” são convocados para cargos intermediários na administração das demais colônias portuguesas em territórios africanos: “Mestiço, portanto distinto dos demais nativos, o intelectual cabo-verdiano é o mediador por excelência da colonização portuguesa na África. É o conjunto desses componentes que torna a questão da identidade cabo-verdiana tão debatida no seio da elite intelectual de Mindelo na primeira metade deste século. A obsessão em definir o “povo cabo-verdiano” como não sendo nem português nem africano é a problemática de uma elite familiarizada com os valores básicos da cultura europeia, mas colocada como cidadãos de segunda classe no império português”. (ANJOS, 2002, p. 281). Diversos fatores contribuíram para o surgimento ou reprodução do papel do mestiço como “mediador” entre “colonos e negros”: a miscigenação e a assimilação dos valores dominantes pela elite local, a não aplicação do Estatuto do “indigenato”, a falta de um projeto político tanto para o desenvolvimento da cultura cabo-verdiana como para a erradicação dos preconceitos raciais oriundos do colonialismo (GRAÇA, 2007, p. 61). Segundo Russel Hamilton (1984), logo após a abolição do regime escravocrata (1854), o governo português concedeu o status de “civilizado” aos cabo-verdianos. Considerados instruídos, um número significativo de ilhéus, os chamados “intelectuais burocráticos”, oriundos da pequena burguesia, ocuparam postos relevantes: primeiramente, como “mediadores” entre colonizado e colonizador, “tomando posições étnicas entre brancos e negros, realçando a sua cabo-verdianidade” (GRAÇA, 2007, p. 71); segundo, na burocracia governamental, no clero, no comércio e no exército, tanto no arquipélago como em algumas colônias portuguesas, como Guiné-Bissau e Angola (HAMILTON, 1984). João Paulo Madeira informa que: 40 “Foi a partir da década de trinta do século XX que Cabo Verde foi considerado, entre as antigas colônias portuguesas, a que melhor aculturou e assimilou os hábitos e costumes dos “brancos europeus”. Tal reconhecimento foi assinalado no seio dos intelectuais, nomeadamente os da geração dos claridosos que defendiam o mestiço como aquele que melhor se assemelha ao europeu”. (MADEIRA, 2015, p. 178). A publicação da Revista de Artes e Letras Claridade, em 1936, foi realizada em um momento de emancipação política, cultural e social do povo cabo-verdiano; por isso, ela marca o nascimento de uma nova fase da história e da identidade desse povo. Com um forte componente poético, literário e artístico, “a revista surgiu como um órgão e um veículo cultural que, na sua vertente ensaística, produziu estudos de índole sociológica, etnográfica e de caráter diverso” (BARROS, 2008, p. 198). É importante notar que, já no último número da revista, Pedro de Sousa Lobo afirmou: “cultural e sociologicamente, Cabo Verde não é África, embora etnicamente não seja Europa” (LOBO, 1960, p. 67). Sobre a questão do pertencimento das ilhas, sociólogos e literatos cabo-verdianos dialogam entre si e trazem à tona essa ambiguidade, que, na visão de David Hopffer Almada, é “considerada politicamente explorável e explorada”. Ele questiona: “Sendo Cabo Verde um arquipélago, não pertencendo, portanto, ao continente e tendo sido povoado por populações europeias e africanas, onde inserir Cabo Verde? Ou, como alguns colocaram a questão: Cabo Verde pertence ao espaço português (Europa) ou africano?” (ALMADA, 2006, p. 80-81). Para o antropólogo cabo-verdiano Augusto Lima, Cabo Verde não é África nem Europa, e sim uma região dos trópicos (LIMA, 1996, p. 4). Manuel Veiga, linguista cabo- verdiano, refere-se à singularidade cultural do arquipélago e exorta o cabo-verdiano a não esquecer sua origem africana (1997, p. 318). Já a historiadora Elisa Andrade argumenta que “Os cabo-verdianos souberam, durante séculos, distanciar-se e diferenciar-se do europeu e do africano, tendo criado, ainda no antigo Império Colonial, perante limitações contextuais, uma identidade própria e expressiva, imbuída de significados simbólicos eternizados na sua memória” (ANDRADE, 1997, p. 17). Ressaltamos que a famosa frase pronunciada por Baltasar Lopes, em 1956: “nem africano nem europeu; sou cabo-verdiano”, foi uma resposta ao sociólogo Gilberto Freyre, que, após ter visitado algumas ilhas, afirmou na sua obra Aventura e Rotina (2001) não ter encontrado no território cabo-verdiano nenhum vestígio de “uma arte popular que seja própria do cabo-verdiano e marque, em sua cultura, uma sobrevivência africana cultivada com algum carinho” (FREYRE, 2003, p. 276). Quanto ao cabo-verdiano, Freyre afirma que: 41 “O cabo-verdiano é um mestiço mais africano que português [...] com costumes, muitos deles, ainda solidamente africanos, outros de tal modo africanoides que retêm sua potência africana sob o verniz europeu. Das suas origens africanas, o cabo-verdiano já perdeu, talvez, o melhor; e quanto às sobrevivências africanas em sua cultura, a atitude do maior número tende a ser uma atitude de pudor que faz de muito cabo-verdiano mestiço um envergonhado daquela sua origem”. (FREIRE, 2001, p. 277). Nesse contexto, entende-se que “identidade cabo-verdiana” é o resultado do contato entre duas culturas e diferentes povos de origens diversas, de tradições e rituais complexas e variadas, de diferentes contingentes populacionais que participaram no povoamento do Arquipélago de Cabo Verde. Identidade híbrida, proveniente de hábitos e costumes, do cruzamento, nem sempre harmonioso, que permitiu ao arquipélago a aquisição de uma cultura específica, peculiar, das quais fazem parte elementos como a língua, a música, a gastronomia, o sincretismo religioso e hábitos de vida, constituindo, assim, a riqueza cultural desse povo morabe,9 das ilhas insulares do meio do Atlântico. Para o historiador Daniel Pereira, a expressão: “nem africano nem europeu; sou cabo- verdiano”, pronunciada por Baltazar Lopes, tem sido “campo para muita ambiguidade política, cultural e sociológica, cuja elasticidade tem, naturalmente, os seus limites, dificultando, e de que maneira, a identificação enquanto africanos de parte inteira” (PEREIRA, 2012 p. 36). A respeito dessa ambiguidade, o sociólogo Gabriel Fernandes (2002) afirma que, “na verdade, não podemos esquecer que, sendo uma região de Portugal como Minho ou Algarve, Cabo Verde não só partilha como participa do universalismo da cultura portuguesa” (FERNANDES, 2002, p. 80). Esse discurso ideológico sobre o pertencimento de Cabo Verde ora ao continente africano, ora ao continente europeu, passa pela literatura cabo-verdiana, permitindo às diferentes gerações de escritores tomarem diferentes posicionamentos sobre o arquipélago em relação à África. Cabe ressaltar que, durante cinco séculos em chão crioulo, a cultura europeia foi sempre privilegiada em detrimento da cultura africana. Ao observar essa situação, Manuel Lopes fez uma análise nos seguintes termos: “[…], pois o cabo-verdiano foi espiritualmente nutrido, desde o seu aparecimento, pelo humanismo português, influenciado por uma convivência social, política e 9 Povo alegre, acolhedor, harmonioso e simples. 42 religiosa que nada tinha que ver com África, antes parecia combatê-la”. (HANRAS, 1995, p. 347). É preciso ressaltar que, a partir do momento em que as ilhas se tornaram colônias, os elementos culturais africanos foram combatidos, as diferentes identidades étnicas foram perdidas e substituídas por novas identidades coletivas, levando os cabo-verdianos a acreditarem que eram mais europeus que africanos. O próprio Baltasar Lopes da Silva, um dos fundadores da revista Claridade, não reconhece a herança africana em Cabo Verde, e se expressa nos seguintes termos: “O homem cabo-verdiano é predominantemente europeu e Cabo Verde representa, no momento actual, a mais frisante justificação da capacidade colonizadora portuguesa [...] um exemplo formidável para a justificação do direito de Portugal a ter colônias”. (SILVA, 1931).10 Embora tenha ocorrido significante evolução socioeconômica e política, em Cabo Verde, considerando o encontro das duas culturas, europeia e africana, os efeitos alienantes da política da desculturação e da assimilação fizeram nascer, na elite cabo-verdiana, certos preconceitos frente à componente africana. Essa situação se reflete na mentalidade e nas obras dos escritores cabo-verdianos das primeiras décadas do século XX. Dulce Almada Duarte (1961) diz que, “mesmo quando alguns escritores dos anos 20 se insurgiram contra a desigualdade social e econômica entre portugueses e nativos, se mantiveram fiéis a Portugal que, para eles, era a Pátria” (DUARTE, 1986, p. 386). Essa ambivalência cultural se explica pela ação coerciva da instrução clássica e alienante ministrada no Seminário Liceu de São Nicolau. Mas, cabe também afirmar que muitos intelectuais e escritores cabo-verdianos das diferentes gerações buscaram sua identidade, ainda que fragmentada, no chão cultural africano, resistindo, questionando, desafiando e assumindo suas heranças africanas frente ao contexto colonial que estavam inseridos. Jorge Querido (2011) afirma que Manuel Duarte, ativista pela independência de Cabo Verde, em um texto panfletário intitulado “Cabo Verde e a Revolução Africana” elaborado em 1962, quando da visita do ministro do Ultramar de Salazar, Adriano Moreira, escreve nestes termos: “Nós, Povo das ilhas, não queremos continuar a pensar com pensamentos que não nos pertencem e que nos foram impostos pela dominação colonial portuguesa; não queremos continuar a sentir com sentimentos que nos são alheios e nos constrangem 10 Regionalismo e Nativismo, in: Noticias de Cabo Verde, n.10, 1931. 43 a renegar o nosso corpo (nossa cor, nosso nariz, nossos cabelos...) e a nossa grande raça negra materna” (QUERIDO, 2011, p. 124). Conforme Tavares (2012, p. 93), “a imagem que os cabo-verdianos tinham de si próprios era aquela que os colonizadores lhes tinham dado” e, ao longo da história dessa gente, tal imagem foi incorporada ao subconsciente coletivo, dando origem a um complexo de superioridade do cabo-verdiano sobre outros povos colonizados africanos. Essa crença foi baseada no mito do “novo homem”, “diferente”, “criado à imagem e semelhança do português”, gerado sérias consequências na definição da identidade do cabo-verdiano. Sobre essas ambiguidades, Alfredo Margarido nos informa que: “O ponto cimeiro desta confusão de valores humanos [...] estará na pressa com que Baltasar Lopes se empenha em rejeitar a hipótese da existência de contributos negroides na cultura cabo-verdiana. Não que essa existência tenha, em si mesma, uma importância decisiva, mas tem-na já na maneira como se recusa a hipótese dessa existência que tem, no entanto, nas tabancas de Santiago, um elemento que não pode ser facilmente escamoteado”. (MARGARIDO 1964, p. 71) De forma recorrente, o discurso de que “Cabo Verde não é África” e, por conseguinte, os cabo-verdianos não são africanos, está bem presente nas narrativas e nas práticas de uma parte da intelectualidade e dos políticos, que acabam por se disseminar pelo tecido social cabo-verdiano. Essa negação da herança africana é o resultado de “um longo processo de internalização dos valores e visões sobre as culturas europeias, africanas e cabo-verdianas e que remonta ao período colonial” (FURTADO, 2013, p. 10). O próprio Manuel Ferreira considera a ausência de uma arte cabo-verdiana como prova da diluição de valores africanos nas ilhas e afirma que “o pudor de ser africano, de certo modo existe” (FERREIRA, 1973, p. 78). Quanto à questão sobre a “diluição da África” em Cabo Verde, o sociólogo Gabriel Fernandes faz esta consideração: “É fundamentalmente a partir da recusa dos traços culturais africanos e da plena assunção dos lusitanos que a nova elite intenta afastar-se dos colonizados e aproximar-se do colonizador. Nessa operação, instaura-se uma espécie de dinâmica automutiladora, na qual, sob os influxos teórico-epistemológicos resgatados ao Brasil, idealizou-se um “mundo que o português criou” e em que o africano não entrou ou está prestes a sair”. (FERNANDES, 2002, p. 17). As divergências em torno do processo de integração e da adjacência de Cabo Verde ao Estatuto administrativo atribuído às ilhas dos Açores e da Madeira (uma vez que esse desejo 44 político das elites locais marcou praticamente toda a história do arquipélago até a sua independência em 1975) adquiriram um impacto significativo a partir da década de cinquenta, época em que foi discutido o processo de integração de Cabo Verde ao continente africano, ou seja, o “retorno às origens” ou a “reafricanização dos espíritos” (FERNANDES, 2002). Conduzidos pelos ideais da geração dos Nacionalistas 11liderada por Amílcar Cabral, um dos mais importantes representantes do movimento de “reafricanização dos espíritos” novos debates de afirmação da identidade nacional cabo-verdiana foram abertos, além da defesa do resgate dos ideais e das origens africanas que, mais tarde, conformariam o projeto de unidade e luta para a libertação de Cabo Verde e Guiné-Bissau da opressão colonial (MADEIRA, 2014, p. 64). Dulce Almada Duarte (1998) ressalta que, para se encontrar a plena identidade através de uma práxis revolucionária, “Não basta a libertação política e econômica; é preciso igualmente a revalorização de todas as facetas da cultura do colonizado, nomeadamente daqueles traços culturais que geraram nele complexos de inferioridade em relação à cultura do colonizador. Estão neste caso, entre outros, os traços fenotípicos do negro e do mestiço que, ao longo da colonização, foram fonte permanente de comparação desvantajosa em relação ao padrão helênico de beleza representado pelo colonizador” (DUARTE, 1998, p. 391). Historicamente, o processo de assimilação imposto aos cabo-verdianos pela potência colonizadora representava a rejeição da herança cultural africana e de todo um legado histórico e memorial dos escravizados africanos. Nesse contexto, uma vez mais, Dulce Duarte afirma: “Para que o homem cabo-verdiano, culturalmente herdeiro da África e da Europa, pudesse assumir integralmente as componentes específicas da sua idiossincrasia, teria que começar pela descolonização dos fundamentos históricos da sua identidade”. (DUARTE, 1998, p. 391). Advém daí a importância do “retorno às fontes”, tão exortado por Amílcar Cabral, constituindo o despertar da consciência da africanidade e, por conseguinte, das raízes culturais africanas que contribuíram para a formação da identidade cabo-verdiana e a assunção da cabo-verdianidade, constituindo por si só “a subscrição de um projeto político de luta pela independência” (DUARTE, 1998, p. 392). Para Dulce Duarte, a cabo-verdianidade saiu 11 A geração denominada de Nacionalistas surge na década de 1950 e marca uma nova era no debate e na afirmação da identidade nacional. Essa geração defendia o resgate das origens africanas em Cabo Verde. 45 enriquecida com essa nova dimensão surgida quando o intelectual cabo-verdiano reconheceu o valioso contributo cultural aportado pelo africano à cultura cabo-verdiana. A geração de luta de libertação, nacionalista, supera essa relação conflituosa entre a consciência de uma identidade própria, diferente da consciência do colonizador, e a existência de uma superestrutura implementada pela colonização, que não permitia ao cabo-verdiano identificar o objeto dessa distinção na qual estava implicado (DUARTE, 1998, p. 392). David Hopffer Almada, a propósito da cabo-verdianidade, afirma: “A percepção e a defesa da cabo-verdianidade e sua individualização em relação à cultura portuguesa reside precisamente no fato de se tratar de uma cultura mestiça dotada de uma grande dinâmica e capacidade de moldagem frente a influências exteriores sem, no entanto, perder a sua própria singularidade”. (ALMADA, 2006, p, 85-86). “Enquanto atitude filosófico-cultural”, o termo “cabo-verdianidade” surgiu na região do Barlavento, nos finais do século XIX, e seus precursores foram os poetas Eugénio Tavares, Pedro Cardoso, José Lopes e o músico B. Léza. Porém, a originalidade do termo ganha destaque e maior configuração na década de 1930, com o surgimento dos Claridosos, grupo de intelectuais representado por Baltasar Lopes, Jorge Barbosa, Manuel Lopes e Félix Monteiro, escritores que pretendiam ser os “porta-vozes do povo cabo-verdiano” (GRAÇA, 2007, p. 58). A cabo-verdianidade, nessa época, é também sustentada pela ideia de regionalismo “enquanto manifestação da auto-percepção e auto representação discursiva da identidade cabo-verdiana no quadro do mundo luso-tropical, criado por Portugal” (BARROS, 2008, p. 198). Para os intelectuais da revista Claridade, o regionalismo cabo-verdiano foi concebido como uma experiência portuguesa bem-sucedida criada à luz do luso-tropicalismo12 de Gilberto Freyre. O regionalismo é também assinalado no sentido de que a cabo-verdianidade não reivindicava sua especificidade africana. Nesse sentido, o regionalismo: “Ganha uma conotação territorializante enquanto espaço que, devido à sua natureza insular, moldou e definiu os contornos, as particularidades e as características da mundividência e da idiossincrasia sociocultural e antropológica cabo-verdiana”. (BARROS, 2008, p. 198). 12 O luso-tropicalismo foi uma teoria que buscava demonstrar de forma positiva a expansão da cultura portuguesa em regiões tropicais. Gilberto Freyre é considerado o “pai” do luso-tropicalismo, e a partir das obras Casa Grande & Senzala (1933), O Mundo que o Português criou (1940), Integração Portuguesa nos Trópicos (1958) e O Luso e o Trópico (1961), o autor tenta explicar a originalidade da adaptação da cultura portuguesa no Brasil desde o século XVI (grifo dessa pesquisadora). 46 Victor Barros refere-se à cabo-verdianidade, apontando algumas ambiguidades e defende que um dos paradoxos está na “negação da sua paternidade africana e na inferiorização dos componentes afro-negros da sua formação” (BARROS, 2008, p. 206). Considerado o termo síntese da identidade cabo-verdiana, formada com base em elementos de origem europeia e africana, a linguista Dulce Almada Duarte reconhece que “nas obras literárias dos escritores claridosos não se sente a herança cultural africana como uma componente importante da cabo-verdianidade” (DUARTE, 1998, p. 12). Em outras palavras, seguindo o pensamento de Pires Laranjeira (1992), “os escritores cabo-verdianos, a essa altura, não reivindicavam propriamente uma especificidade africana face à situação política e jurídica do arquipélago” (LARANJEIRA, 1992, p. 12). Daí, a ambiguidade presente em “não assumir uma posição que valorizasse os elementos das heranças culturais e humanas afro-negras que estiveram na base da formação e configuração do cabo-verdiano” (BARROS, 2008, p. 206). Um dos objetivos dos claridosos era definir a identidade cabo-verdiana, e essa definição passava forçosamente por uma consciencialização13 política, levando em conta os elementos que a constituem: a valorização do indivíduo nascido no arquipélago, assim como um debruçar-se de forma mais atenta aos problemas vitais de Cabo Verde e às condições de vida do seu povo. Além dos objetivos literários, os idealizadores da revista Claridade tinham a preocupação não somente de apresentar “as características sociais de Cabo Verde, mas, sobretudo, suas raízes humanas e telúricas, conferindo reconhecimento e honra ao dialeto de Cabo Verde - o crioulo” (BARROS, 2008, p. 195). Para José Luís Hopffer Almada, “a revista Claridade passou a ser um marco no sentido da cabo-verdianidade poética, ou seja, no conjunto de textos que reflectem o real cabo-verdiano” (ALMADA, 2008, p. 325). A partir desse contexto, os escritores buscavam apresentar, em suas obras, temas associados às angústias e aflições por que passava o cabo- verdiano devido às prolongadas secas, que resultavam em extrema miséria, acompanhada de fome e grandiosa mortandade. Em entrevista concedida a esta pesquisa, a escritora cabo-verdiana Dina Salústio afirma que a cabo-verdianidade é a “consciência que provoca uma atitude que individualiza o cabo-verdiano, caracteriza-o culturalmente, identifica-o e congrega e distingue-o de outras identidades”. Para a autora, a cabo-verdianidade é, sobretudo, “resultante de um conjunto de 13 Termo usado pelo escritor cabo-verdiano Onésimo Silveira no ensaio intitulado “Consciencialização na Literatura Caboverdiana”, publicado em 1963, como um panfleto, pela Casa dos Estudantes do Império. 47 circunstâncias próprias das ilhas e do confronto das culturas europeia e africana”. Aqui, a escritora refere-se aos motivos históricos ligados à descoberta e ao povoamento das ilhas e acrescenta: “a cabo-verdianidade caracteriza-se através, sobretudo, da emigração, elemento fundamental na construção permanente da identidade cabo-verdiana, que permite uma maior predisposição para a circulação na Europa e no mundo” (SALÚSTIO, 2017). A partir das afirmações dessa escritora, percebe-se que a “cabo-verdianidade” é, principalmente uma construção histórica da experiência de vida do povo cabo-verdiano, uma experiência que reconstrói uma temporalidade e a transpõe em narrativas. Isso é o que se chama de estetização da história, ou seja, “a colocação em ficção, ou a narrativização da experiência da história” (JAUS, 1989, p. 81) do povo cabo-verdiano que será apresentada nos próximos capítulos dessa investigação. Para José Luís Hopffer Almada (2008), a ideia e o conceito de cabo-verdianidade é de “difícil definição, mas [o] que, para os cabo-verdianos, condensa a morabeza14, [é] o ser ilhéu, o ser crioulo, o ter uma identidade própria capaz de nos diferenciar de tudo e de todos. (ALMADA, 2008, p. 76). Nesse contexto, entende-se que a cabo-verdianidade é a tradução de um sentimento de pertença ao arquipélago, vista como a expressão máxima da elevada autoestima de um povo espalhado pelo mundo, é um esforço contínuo pela afirmação de uma identidade inacabada e em permanente construção. Durante o processo de “assimilação” da cultura portuguesa, é importante notar que, de algum modo, as raízes africanas foram preservadas. A tão mencionada “cabo-verdianidade” é o produto das marcas culturais cabo-verdianas desde a colonização. Nas palavras de Manuel Veiga, “a cabo-verdianidade não é um mito nem, tampouco, uma fantasia ou uma alienação […] ela significa ser um povo, uma nação, ter um território livre e possuir uma cultura própria” (VEIGA, 1994, p. 314). A cabo-verdianidade é, acima de tudo, uma resistência coletiva, traduzida em uma tomada conjunta de consciência e posição em relação a hábitos e costumes vividos pelo ilhéu, que, apesar da pressão exercida pelo poder colonial, resistiu e nunca se esqueceu de manifestações culturais como a tabanca, o funaná e o batuque, das cantigas de trabalho e das fugas massivas para os recantos mais altos e escondidos das ilhas. O debate em torno da cabo-verdianidade e, por conseguinte, da formação da identidade cabo-verdiana, está também relacionado ao conceito de “Nação” (MADEIRA, 2015), que, no contexto do arquipélago, ultrapassa as fronteiras geográficas. Em Cabo Verde, 14 A morabeza, característica do cabo-verdiano, que reflete seu modo de ser e de estar; em qualquer parte do mundo, a forma como se relaciona com seus semelhantes o distingue dos demais povos africanos. 48 desde os finais do século XIX, sobretudo a partir da geração dos nativistas, já existia a vivência relacionada aos elementos culturais, históricos e sentimentais que uniam os cabo- verdianos em torno de uma origem comum e do mesmo sentimento de pertença (VARELA, 2010, p. 28). Vale lembrar que o território, a língua e a ideia de uma tradição cultural comum são elementos que sustentam e fortificam esse pertencimento e lealdade entre os membros de uma nação que estão ligados por meio das representações simbólicas ou, como afirma Benedict Anderson (2005), das “comunidades imaginadas”. No contexto cabo-verdiano, a nação é o resultado “de um processo histórico, linear e transparente” (SILVEIRA, 2005, p. 60) que surgiu a partir de um contexto social e político em que a elite local buscava identificar antecedentes históricos e culturais que justificassem sua existência como povo. Ao contrário da maioria das nações africanas, em que o Estado antecede a Nação, em Cabo Verde, a Nação surgiu alguns séculos antes da criação do Estado independente, devido a um conjunto de fatores que contribuíram para a formação de uma consciência nacional advinda de experiências históricas, iniciadas desde o povoamento do arquipélago (MADEIRA, 2015, p. 17-18). Isso contribuiu para a construção da identidade nacional e, consequentemente, da nação cabo-verdiana, destacam-se alguns constituintes considerados importantes nesse processo: a valorização da língua materna - o crioulo; o sentimento de ligação e pertencimento à terra-mãe; a valorização do mestiço e, por conseguinte, sua participação na gestão da administração colonial. Contribuiu, também, para esse processo, a criação do primeiro Liceu Nacional, em 1860, na cidade da Praia, na ilha de Santiago. Ele possibilitou uma significativa formação intelectual para a elite que, mais tarde, adquiriu importante papel como mediadora entre colonizados e colonizadores. Acrescente-se, ainda, o fato de Cabo Verde não ter sido enquadrado no Estatuto do Indigenato, por ser considerado um caso especial ante os demais países de língua portuguesa (MADEIRA, 2015, p. 18- 19); (PEIXEIRA, 2003). Outra razão significante que contribuiu para a criação da nação cabo-verdiana foi a maneira como se deu a independência das ilhas: através de um projeto de parceria em que Guiné Bissau e Cabo Verde se uniram em prol da luta de libertação do jugo colonial, criando o Partido para a Independência de Guiné Bissau e Cabo Verde (PAIGC). Ressalta-se, mais, 49 que Cabo Verde faz parte do grupo de países integrantes da Macaronésia e dos PALOP15, único cuja língua materna é o crioulo (MADEIRA, 2015, p.19). A definição de “Estado Nação” é alcançável quando se consideram os cabo-verdianos que estão fisicamente distantes das ilhas, vivendo em diferentes territórios políticos, campos da vida social, construindo história, compartilhando e privilegiando espaços e eventos em que, conforme Baltasar Lopes melhor se revela “a voz do arquipélago chamando tenazmente os emigrantes para o canto do mundo de onde partiram” (LOPES, 1993, p. 96). A propósito, ainda, do conceito de nação cabo-verdiana, para Manuel Brito-Semedo16, a construção da identidade nacional se apresenta em três fases evolutivas. A primeira, a dos “nativistas” (1856-1932), geração ligada ao movimento pan-africanista17, que denunciava os maus-tratos que os africanos sofriam pelas mãos do colonizador e, por isso, lutava pela criação de um estatuto jurídico e sócio-político de igualdade face aos senhores da Metrópole. Os nativistas defendiam as manifestações de cariz africano, além dos direitos dos “filhos da terra” e a autonomia das ilhas do arquipélago, fundamentados na valorização da terra de origem. Esta é a geração dos poetas Eugénio Tavares, Pedro Cardoso, José Lopes e Luís Loff de Vasconcelos, entre outros. Brito Semedo ressalta ainda que: “A militância dessa elite intelectual cabo-verdiana nas organizações pan-africanistas e a sua colaboração nos jornais por estas serem publicados nos jornais em Lisboa serviram para despertar nessa elite o espírito africanista, cujos princípios transportaram para os jornais das ilhas”. (BRITO SEMEDO, 2005, p. 213). Conforme o sociólogo João Paulo Madeira (2015), os nativistas reivindicavam, frente à Metrópole, além da defesa da cultura e da identidade cabo-verdianas, que Portugal reconhecesse Cabo Verde como região portuguesa e, consequentemente, os nativos adquirissem a cidadania lusitana (MADEIRA, 2015, p. 141). A segunda fase é a que Brito Semedo denominou “de consciência regionalista” (1932- 1958) ou a “geração dos claridosos” - grupo de intelectuais que buscava valorizar as especificidades regionais de cunho histórico, geográfico e cultural, a partir do conhecido lema “fincar os pés na terra”, como postulado da cabo-verdianidade e do reconhecimento da 15 Sigla usada para designar os “Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa”, composto pelos respectivos países: Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique e São Tomé e Príncipe. 16 MANUEL BRITO-SEMEDO, Do nativismo ao Nacionalismo: A Construção da Identidade Nacional. In: Cabral no Cruzamento de Épocas: Comunicações e discursos produzidos no II Simpósio Internacional Amílcar Cabral. Praia: Alfa Comunicações, 2005, p. 328. 17 O Pan-Africanismo tem sua origem nos países de colonização inglesa, em oposição ao tráfico de escravos nas Américas, Ásia e Europa, onde surgiram importantes movimentos de protesto e revolta, que reivindicavam a libertação dos escravos trazidos da África, bem como se travava a luta em prol da liberdade e igualdade das populações africanas que viviam no estrangeiro. 50 identidade cabo-verdiana. Essa geração assume a identidade pelos moldes europeus, sem deixar de reivindicar uma especificidade mestiça. A geração dos nacionalistas ou a “geração de Amílcar Cabral” corresponde à terceira fase (1958-1975), caracterizada pelas lutas em prol da independência de Cabo Verde, que tinha como objetivo difundir as tradições culturais africanas através do processo de “reafricanização dos espíritos” ou, como também é conhecido, “retorno às fontes”. Nessa geração, Amílcar Cabral é apontado como “um dos líderes mais carismáticos e, em termos teóricos, mais influentes do nacionalismo africano” (VENÂNCIO, 2009, p. 97). Realça-se que, para essa geração, a expressão “fincar os pés na terra” adquire um significado político que implicava a ascensão imediata da condição de africano e, consequentemente, o envolvimento de Cabo Verde com outros países também envolvidos na luta pela emancipação político e cultural (MADEIRA, 2001, p. 155). O forte sentimento de unidade e coesão presente em Cabo Verde, desde o seu povoamento, atravessando todo o período da colonização, fez com que os cabo-verdianos se “dessem as mãos” em prol da construção da nação e da identidade nacional. Assim, houve uma tomada de consciência nacional que foi se processando ao longo do tempo, com o progressivo crescimento de uma nova cultura que implicava o modo de sentir e pensar do cabo-verdiano, fazendo com que houvesse um distanciamento dos padrões culturais apregoados pelo colonizador. Nesse contexto de reconhecimento de si, em uma das suas falas, por ocasião dos 30 anos da independência de Cabo Verde, Manuel Veiga, então ministro da Cultura, assim declara: “Somos crioulos, crioulos de Cabo Verde. Esta é a nossa especificidade primeira. Nascemos do cruzamento de sangue e de culturas. Do confronto, primeiro, e do reencontro depois, entre a África e a Europa, emergiu a antropologia das ilhas. Nem a África somente, nem a Europa apenas. No caldeirão da história das nossas ilhas dois mundos se cruzaram, se fundiram, se amalgamaram, se constituíram numa nova individualidade cultural, num novo humanismo: a crioulidade atlântica de Cabo Verde, um novo rosto no mosaico africano” (VEIGA, 2005, p. 15). Para Onésimo Silveira, Cabo Verde “é o berço da primeira sociedade crioula nos trópicos” (SILVEIRA, 2005, p. 26) e, para Almada Dias, “foi o primeiro país fundado pelos europeus nos trópicos [...] primeiro país crioulo do Novo Mundo” (DIAS, 2015, p. 12). Em Cabo Verde, o crioulo, enquanto língua foi uma importante contribuição para que o escravizado trazido da África pudesse recuperar a palavra perdida. Nas palavras de Dulce Almada Duarte (2003), “as ilhas de Cabo Verde foram as primeiras colônias onde os escravos 51 trazidos do continente africano puderam reelaborar as suas línguas pela formação de outra: o crioulo”. A língua crioula foi, em Cabo Verde, o centro do universo sociocultural no qual o escravizado chegado da África se refugiou para resistir culturalmente pela capacidade de se comunicar, a capacidade de transmitir e de reelaborar seus valores, de conceber um pensamento e uma filosofia própria, de acordo com o seu novo habitat (DUARTE, 2003, p. 5). Conforme Glissant, para que a crioulização ocorra, é preciso que elementos culturais diferentes, em contato com o outro, sejam “equivalentes em valor”, que nenhum grupo predomine sobre o outro (GLISSANT, 2005, p. 20). Portanto, quando um grupo cultural predomina sobre o outro, a crioulização acontece, porém, de forma injusta, desequilibrada, dentro de uma proposta de exclusão que vem sendo fomentada teoricamente, ao longo da história, por um tipo de hibridismo eurocêntrico, como é o caso de Cabo Verde, em que “os componentes culturais africanos e negros foram inferiorizados, deixando resíduos amargos e incontroláveis” (GLISSANT, 2005, p. 21). Tendo em conta a diversidade linguística e cultural africana, os traficantes de escravizados separavam os diferentes grupos étnicos, despojando-os de tudo, até mesmo de suas línguas. A estratégia de separação tinha como objetivo evitar qualquer tipo de motim e impedir a concentração do patrimônio cultural africano, sobretudo, o linguístico. Porém, essa estratégia fez com que os escravizados recriassem uma nova língua, novas artes e expressões culturais, ao que Glissant denominou de “rastro/resíduos” (GLISSANT, 2005, p. 19-20). O africano deportado não teve chances de manter suas heranças pontuais, no entanto criou um contexto imprevisível a partir dos pensamentos, dos rastros ou resíduos que lhes restavam na memória. A crioulidade é uma categoria identitária, de “uma mestiçagem consciente de si própria” (GLISSANT, 1981, p. 9). Em Cabo Verde, ser crioulo é, entre outras coisas: “Ser-se di terra. Brancos, pretos e mestiços são todos crioulos sem que deixem com isso de ser brancos, pretos e mestiços. As classificações raciais e classistas que os diferenciam em certas situações coexistem com outra que os irmana” (VASCONCELOS, 2006, p. 11). A crioulidade, em Cabo Verde, é uma classificação identitária que “contempla não somente elementos genealógicos (o fato de ter nascido em Cabo Verde ou de ter pais ou avós cabo-verdianos) e fenotípicos” (VASCONCELOS, 2006, p. 10), mas está também relacionada a elementos performativos, ou seja, o sentimento de ser cabo-verdiano, de pertencer a essas 52 ilhas atlânticas, de identificar-se com sua gente, sua cultura crioula e, por conseguinte, com suas raízes. Assim, o crioulo cabo-verdiano é o resultado da miscigenação que marcou o período colonial no arquipélago. Nem africano, nem português, ele é fruto de uma sociedade mestiça, hibridada, culturalmente definida, que se desenvolveu a partir do cruzamento sociocultural de diferentes povos, línguas e tradições. Essa hibridação emerge com força desde os primórdios do povoamento das ilhas e de sua colonização, garantindo, desde a sobrevivência da cultura dos “trazidos” até o processo de modernização da cultura da elite local. No contexto das ilhas cabo-verdianas, sob o prisma de Canclini (2015), a hibridação abriu espaço para a tolerância entre as diferentes culturas presentes no arquipélago. Para Stuart Hall, a hibridação se faz no contexto da diáspora e da tradi”ção cultural18, quando os indivíduos procuram meios de se adaptar às tradições culturais diferentes daquelas de sua origem. Hall dá visibilidade aos processos “diaspóricos” e suas narrativas de deslocamento e construção das identidades culturais dos povos colonizados, especialmente do continente africano. Canclini (2015), por sua vez, apresenta a hibridação cultural a partir de um olhar político no qual está em jogo a cultura da elite e a do “outro”, que pode ser o indígena, o escravizado, o assimilado, o colonizado, o estrangeiro. Nesse contexto, a hibridação surge com a função de romper com a ideia de “pureza cultural”, resultado da interferência da globalização nos processos de construção identitária, expondo uma cultura ao contato com outras culturas, com outras ideologias, uma vez que as produções culturais não se restringem mais a um único espaço e, por isso, não podem mais ser pensadas ou definidas exclusivamente em relação a uma comunidade nacional ou local (CANCLINI, 2015). As identidades tornam-se híbridas, abertas, desprendidas dos referentes tradicionais de espaço e tempo, pois estão constituídas por elementos que circulam facilmente, como as pessoas, capitais, sistemas simbólicos, mensagens, ideologias, linguagens, dentre outros. Isso significa dizer que “hoje a identidade é poliglota, multiétnica, migrante, feita com elementos mesclados de várias culturas” (CANCLINI, 2006, p. 131), por isso não pode ser associada apenas a uma nação ou a nacionalidades. É um processo que transcende esses limites. 18 Hall define como tradução cultural o processo de negociação entre novas e antigas matrizes culturais, vivenciado por pessoas que migraram de sua terra natal. Elas têm diante de si uma cultura que não as assimila e, ao mesmo tempo, não perdem completamente suas identidades originárias. Mas precisam dialogar constantemente com as duas realidades (2003, p. 88 e 89). 53 1.2.2 Insularidade e emigração “Pensar a condição de ilhéu é também refletir sobre partidas e chegadas.” (SALÚSTIO, 2017, p. 21) A questão da insularidade revela-se como uma das vertentes temáticas mais presentes no percurso cultural identitário do povo e da literatura cabo-verdiano. Para Elsa Rodrigues dos Santos, “A insularidade nasce do relacionamento do sujeito com o espaço das ilhas, ou seja, do sentimento de solidão, de nostalgia que o cabo-verdiano experimenta face ao isolamento e os limites da fronteira líquida que o separa do mundo, criando no ilhéu um estado de angústia e ansiedade” (SANTOS, 1989, p. 59). Considerada além de um conceito físico (DELGADO, 2009, p. 168), a insularidade constitui- se como núcleo fundador ideológico uma estética poética (LABAN, 1986, p. 96). Conforme destaca Manuel Veiga, durante o longo caminhar de sua história, os cabo- verdianos tiveram por companheira inseparável uma insularidade “madrasta” que se manifesta através de fatores geográficos, climáticos, antropológicos, sociais, econômicos e políticos (VEIGA, 1998, p. 9). Os sentimentos do sujeito insular são reflexos do seu consciente, de sua vivência íntima e coletiva dentro de um espaço e de um tempo. Nesse contexto, o fator geográfico e climático do arquipélago e o confronto do sujeito com o mar marcam a “sentimentalidade e a maneira de estar” do cabo-verdiano (SANTOS, 1989, p. 61). Pertencente ao oceano Atlântico e próximo da Costa Africana, Cabo Verde é um dos estados africanos de língua portuguesa que “compartilha com outras nações do continente uma característica insular” (PITA, 2017, p. 71), que marca a realidade cabo-verdiana na sua globalidade. Nesse sentido, Fernando Cristóvão pontua que: “A escala do continente a que pertence Cabo Verde, tal como outros países insulares, apresenta significativa individualidade geográfica, onde cada ilha é um pequeno microcosmos. Desabitadas aquando do seu achamento, as ilhas foram modeladas por cinco séculos de colonização portuguesa que gerou paisagens humanas originais, onde se reflecte o efeito de uma luta constante e tenaz com a natureza saeliana” (CRISTÓVÃO, 2005, p. 373). Devido ao seu posicionamento estratégico, em relação a outras nações do continente africano, “Cabo Verde apresenta características específicas e privilegiadas, na rota da circulação marítima, no âmbito do projeto de expansão europeia e na escala de navegação, entre o continente africano, asiático, europeu e americano” (SEMEDO, 2016, p. 3). 54 Conceituada como fator geográfico, a noção de insularidade está diretamente relacionada com a definição de ilha e, consequentemente, desta com o ilhéu. Definida como “trecho de terra rodeada de água por todos os lados” (MINI AURÉLIO, 2010, p. 408) “terra menos extensa que os continentes de forma sustentável nas águas de um oceano, de um mar, de um lago ou de um fluxo” (ROBERT, 1971, p. 541) ou, ainda, “aquilo que está isolado” (PORTO, 2015); nesta acepção, o isolamento é uma das expressões possíveis da insularidade que aporta consequências nas questões econômicas, sociais e culturais. O tema da insularidade é também recorrente nos estudos relacionados à história e à economia, à literatura e à cultura, sendo aplicado em diferentes contextos e territórios, incluindo aqueles que são geralmente classificados na categoria de espaços continentais. O francês Jean-Luc Bonniol salienta o fato de que “l’insularité est toujours relative”19 (1998, p. 87). Isso não significa ser um conceito vago, mal definido, mesmo se “les îles offrent une palette inépuisable de cas particuliers” (1997, p. 73)20. Conforme Henriques (2009, p. 13-14), as certezas categóricas e definitivas sobre as ilhas e a condição insular estão associadas a conceitos negativos, como isolamento e solidão, separação e afastamento, fechamento e aprisionamento. Entretanto, essa visão nem sempre corresponde à realidade, uma vez que o sentimento insular varia de pessoa para pessoa, segundo realidades e contextos geográficos. Nesse caso, é importante conhecer os valores e projetos individuais e coletivos de um território insular, o modo de vida do povo e suas condições sociais. O termo “insularidade” no arquipélago de Cabo Verde, em um primeiro momento, está relacionado à geografia física das ilhas, assim como às limitações que as atingem, uma vez que “o desenvolvimento destas depende de fatores geográficos, sejam humanos ou físicos; daí, justifica-se uma abordagem dos aspectos geográficos de Cabo Verde para dar a conhecer, em parte, a realidade cabo-verdiana” (OLIVEIRA JÚNIOR, 2010, p. 12). Um dos elementos ilustrativos da insularidade cabo-verdiana que apresenta grande relevância para a população local é o isolamento geográfico das ilhas, a distância entre elas. E, embora possuindo atributos especiais que as distinguem dos ambientes não insulares em certas características, “a questão insular propicia reflexos na fauna, na flora e nas atividades humanas, o que resulta em ecossistemas frágeis e vulnerabilidade política e social dos habitantes das ilhas” (SANTOS, 2011, p. 58). 19 “A insularidade é sempre relativa” (tradução nossa). 20 “As ilhas oferecem uma gama inesgotável de casos” (tradução nossa). 55 Subjetivamente e no contexto cabo-verdiano, a insularidade é uma percepção do espaço telúrico, da “terra-mãe” e da consciência de uma identidade, “resultado da luta e dos desafios nascidos do chão das ilhas” (VEIGA, 1998, p. 9). Muitas vezes, essa insularidade está imbricada no sentimento desejoso de evasão, no conhecido dilema do querer “bipartido”, do “ter que partir querendo ficar” e “ter de ficar querendo partir”, cujos traços ganham forma e conteúdo no confronto e reencontro “da água com a terra, do homem com o mar” (VEIGA, 1998, p. 9). Conforme Elsa dos Santos (1989), a insularidade no contexto cabo-verdiano tem sua origem, desde o processo de povoamento, quando o negro africano “lançado no espaço insular e obrigado a adoptar a cultura e a língua do colonizador sofre [...] um desenraizamento” (SANTOS, 1989, p. 62). Ao mesmo tempo em que essa autora questiona a sentimentalidade insular cabo-verdiana, ela a justifica, nestes termos: “[...] a crioulização que conferiu ao cabo-verdiano a identidade, não o tornará, ao mesmo tempo, num exilado, numa ilha dentro de outra ilha? Exilado em relação à língua e à cultura que lhe é imposta em que sua própria língua de berço é proibida na escola oficial, exilado, portanto, pelo não reconhecimento da parte da autoridade portuguesa da sua cultura?”(SANTOS, 1989, p. 62-63) É importante ressaltar que o uso da língua cabo-verdiana – o crioulo - foi severamente proibida pelas estruturas coloniais, nos diferentes meios de socialização, começando pelas escolas, nas quais os professores eram obrigados a dar aulas em língua portuguesa e, consequentemente, os alunos eram proibidos de falar em sua língua nativa, dando espaço para o que se chamou de “contenção” que, de forma direta, contribuiu para a “agudização da insularidade”, sentida e manifestada nas líricas e na prosa de ficção cabo-verdiana. Assim, desde a época colonial, no espaço geográfico das ilhas, a insularidade surge como sentimento existencial, de solidão, de nostalgia e de injustiça, que o ilhéu experimenta face à prisão. O cabo-verdiano não se conforma com os problemas sociais que deve suportar e dos quais é vítima. A imagem do isolamento e da tragédia de uma pequena ilha sempre em confronto com o mar, “agiganta no ilhéu os sonhos, agudiza a saudade do desconhecido e do longe, sobretudo, na alma do poeta” (SANTOS, 1989, p. 61) ou dos vários poetas e das suas “relações de amor com o cenário que eles percorrem” (SALÚSTIO, 1998, p. 35). A escritora Dina Salústio afirma que “a literatura cabo-verdiana revela o cabo- verdiano a ele próprio, que só se compreende na insularidade” (SALÚSTIO, 1998, p. 42). Esta dá origem a outras representações temáticas como “o medo, a insegurança, a fragilidade, 56 a saudade, sentimentos que acompanham o ilhéu, muitas vezes, limitado pelos mares, pelos medos e pelos mitos” (SALÚSTIO, 1998, p. 42). A questão da insularidade e da relação desta com a identidade do cabo-verdiano vai mais além dos quilômetros e do isolamento físico que separa as ilhas das fronteiras terrestres com outras nações. O sentimento de insularidade cabo-verdiana como isolamento é o resultado das adversidades que as ilhas protagonizaram desde o período colonial (quando foram duramente exploradas). Mesmo após sua independência em 1975, essas adversidades não cessaram por não haver uma preparação que proporcionasse uma autonomia confortável e promissora para os habitantes do arquipélago. Para essa situação, Dina Salústio aponta a “viagem” como solução, e questiona: “que outro destino para as ilhas, para o ilhéu?" (SALÚSTIO, 1998, p. 40). A partir desse contexto, surgem as razões que motivam o cabo- verdiano a deixar sua terra, sua ilha, em busca de melhor qualidade de vida, em outros territórios, impulsionando a emigração, tão presente e intensa na vida do cabo-verdiano. Para além do contexto histórico, social, cultural e político que a insularidade gera para os habitantes da ilha, ela, além de enriquecer a literatura cabo-verdiana, contribui para a afirmação da identidade do ilhéu, seja regional ou nacional. Para os cabo-verdianos que emigraram para diferentes zonas continentais, sua relação com a terra natal, com seu ambiente insular, nem sempre se perde ou se deteriora; pelo contrário, é reforçada pelos laços culturais que os unem. A insularidade, de modo geral, provoca emoções contraditórias em seus diferentes atores, uma vez que está associada à ideia de vulnerabilidade, fraqueza, dependência. Porém, apesar de engendrar sentimentos de isolamento e fragilidade, não deixa de potenciar igualmente situações e oportunidades que, devidamente aproveitadas, podem servir de eixos para promover o desenvolvimento econômico, social e cultural dessas nações insulares. Justificada pela grande concentração de recursos naturais numa reduzida superfície, a insularidade apresenta elevados níveis de vantagem comparativa, como o mar e suas temperaturas elevadas, durante todo o ano, os recursos geológicos, as águas termais tão solicitadas para a prática do turismo, os recursos biológicos, com sua vegetação exuberante e singular (palmeiras, coqueiros, mangais), e uma fauna diversa, com suas aves marinhas, além dos recursos culturais (música, dança, gastronomia, cultos religiosos, costumes, e folclore, etc.), que, em muitos casos, podem ser vestígios de civilizações passadas. Acrescenta-se a esses elementos a imaginação e a utopia que as ilhas proporcionam aos seus visitantes, 57 “dando-lhes a sensação de segurança e orientação, a ilusão de estar-se perante um mundo completo e, ao mesmo tempo, complexo” (SANTOS, 2011, p. 279-280). A contrapartida do que se chama de insularidade como isolamento, em Cabo Verde, é o fenômeno da emigração, que representa um dos traços marcantes da identidade cabo- verdiana, como também um dos traços fundamentais na evolução econômica do arquipélago. As dificuldades enfrentadas pelos cabo-verdianos, desde as condições climáticas das ilhas agrícolas, com seus sucessivos períodos de secas e fome, à pouca oferta de trabalho, dão causa à emigração, “fenômeno que marcou e marca de forma estrutural a história da formação social cabo-verdiana” (FURTADO, 2013). Na pesquisa intitulada “Mulheres imigrantes em Portugal: vivência e percursos migratórios das mães solteiras cabo-verdianas” (2011), a pesquisadora Carla Suzana Silva Lopes, nos aponta que: “A história da emigração cabo-verdiana é relativamente longa. Ela faz parte da própria história do povo cabo-verdiano. Góis menciona (2006: 23), que “pode afirmar-se que o cabo-verdiano já nasceu (e)migrante, ou, dito de outro modo, que a emigração é um dos fenómenos mais antigos e estáveis da sociedade cabo-verdiana, antecedendo em muitas décadas a independência do país, que ocorreu em 1975. Neste sentido, Cabo Verde é um exemplo, talvez único, de um Estado que nasce já transnacionalizado”. Como salienta Lobo (2007, 171) na vida de qualquer cabo- verdiano é inevitável a ideia de emigração “ (LOPES, 2011, p. 30). A emigração cabo-verdiana remonta o século XVII e início do século XVIII, quando o mar era o meio principal e privilegiado para os que deixavam as ilhas. As primeiras emigrações tinham como destino os Estados Unidos, onde os ilhéus eram recrutados para trabalharem nos baleeiros. Com as prolongadas crises de seca e fome que assolaram o arquipélago por longos anos, ocasionando centenas de mortes, os cabo-verdianos se viram forçados a emigrar para trabalharem nas “roças de São Tomé e Príncipe”21. Em 1924, foi criada, nos Estados Unidos, a “Lei das Quotas”, que limitava a entrada de estrangeiros em território norte-americano. Com essa medida, houve uma emigração em massa para países da América Latina, como Brasil e Argentina, e para diferentes países da África Ocidental, como Senegal e Angola, respectivamente, formando outra “diáspora” cabo- verdiana (SPÍNOLA, 2004; QUERIDO, 2011). Além de um deslocamento físico e territorial, também houve um movimento de deslocamento identitário, cultural, político, social e 21 Devido às crises cíclicas de fome ocorrida nos anos 1930, 40 e 50 do século XX, assim como a falta de trabalho nas ilhas de Cabo Verde, houve uma emigração forçada de milhares de cabo-verdianos, sozinhos ou em família, para pesados trabalhos braçais nas roças de café e cacau nas ilhas de São Tomé e Príncipe (QUERIDO, 2013, p. 82-83). 58 ideológico. De acordo com Antônio Carreira (1983, p. 99), o maior êxodo da história do arquipélago em todos os tempos se deu nos anos de 1964, 1968 e 1969, com uma saída significativa de cabo-verdianos das ilhas. Após a Segunda Guerra Mundial, fugindo da fome e da miséria que assolavam as ilhas, uma nova onda de emigrantes procurou os países europeus, como França, Holanda, Luxemburgo, Bélgica e Portugal, com destaque o país lusitano (52,9%) que formou, após os Estados Unidos, a segunda maior comunidade de cabo-verdianos da diáspora. Conforme João Lopes Filho, a Europa não constituía um destino tradicional dos emigrantes cabo-verdianos, mas, devido às devastações da II Guerra, que deixaram alguns países europeus desprovidos de mão-de-obra para sua reconstrução, as correntes migratórias foram alteradas com o objetivo de suprir as necessidades desses países ( LOPES FILHO, 2010, p. 135). Desse fluxo migratório, assim como desse momento de trânsito e de entrelaçamento de valores, surgem novos sujeitos, reformados ou remoldados, que reproduzem seus valores crioulos em terras estrangeiras, em um novo território, significando: “Um Cabo Verde fora do lugar, permitindo que ‘identidades cabo-verdianas’ sejam reconstruídas em um novo espaço que não é o seu território de origem, que pertence a outros Estados, “mas efetivamente apropriados e reapropriados quotidianamente pelos imigrantes cabo-verdianos e sua descendência, como um “chão” cabo- verdiano”. (SAINT-MAURICE, 1997). No contexto das sociedades africanas, o conceito de território não se limita apenas aos espaços físicos e geográficos, mas é, sobretudo, o portador de uma história mítica que liga povos, tradições culturais e ancestralidade. Cabo Verde é o exemplo concreto dessa identidade que ultrapassa as fronteiras, os territórios, uma vez que o cabo-verdiano é obrigado a reconstruir suas ilhas e a si mesmo nos novos territórios de acolhimento. É nesse contexto que Cláudio Alves Furtado (2013, p. 4) afirma que “o território comporta uma dimensão cultural e religiosa indiscutível que a colonização, pela sua expropriação, laicizou e, por via disso, buscou formas de legitimar a ocupação e a reclamação do direito de propriedade”. Assim, no contexto do continente africano pré-colonial: “O território define-se por isso, pela relação que sustenta com a história, e que se exprime não só na presença dos espíritos dos antepassados, mas pela acumulação de sinais e de marcadores, uns criados pela natureza e reinterpretados pelos homens, os outros provindos do imaginário do indivíduo e da sua sociedade. Um homem define a sua identidade por meio de alguns suportes: primeiro pelo facto de pertencer a uma família, a qual está integrada num clã, numa comunidade, numa nação. Esta aparente dependência do indivíduo e da família em relação às unidades superiores, não deve, contudo, enganar-nos: é a soma das pequenas identidades que autoriza a construção 59 global da identidade, a qual está historicamente ligada a um território” (CASTRO, 2004, p. 5). Do ponto de vista histórico, a ocupação das ilhas de Cabo Verde constitui, a um só tempo, primeiro, um processo de construção de um território (considerando esse território como processo de historicização do espaço físico e simbólico); segundo, um processo de desterritorialização, ou seja, o abandono forçado do território natal, implicando aqui tanto os escravizados africanos como os europeus, alguns considerados degredados, que foram expropriados dos seus territórios de origem e, por último, um processo de reterritorialização que, para Deleuze (1992), significa a construção de um novo território (enquanto espaço geográfico) e a reconstrução de si próprio em um novo território (FURTADO, 2013, p. 5). Furtado acrescenta que: “Esse triplo processo de desterritorialização, territorialização e reterritorialização é um fator de construção de uma identidade de fronteira na justa medida em que impulsiona a necessidade de invenção de uma tradição identitária que deve estar permanentemente ritualizada e reatualizada em espaços físicos, identitários e étnicos extremamente fluidos” (FURTADO, 2013, p. 5-6). Esses processos são concomitantes e indissociáveis, de modo que a emigração geográfica interfere na identidade humana. Tanto o nomadismo como a prática do deslocamento geográfico geram discussões em torno da identidade e das mudanças que sofrem os indivíduos quando migram, sobretudo, em suas posições sociais, chegando mesmo a desenvolver, em muitos casos, crises existenciais. Por isso, consideramos as palavras de João Lopes, que aborda a emigração cabo- verdiana nestes termos: “a emigração está enraizada na própria origem e na formação da sociedade cabo-verdiana, fazendo mesmo parte do seu imaginário, pois está também presente na tradição oral, na música, na literatura, como característica marcante desse povo” (LOPES FILHO, 2010, p. 135). Frente aos fatores que compõem a identidade cultural cabo-verdiana, entende-se que esta foi construída a partir da combinação de elementos socioculturais de características africanas e de traços europeus. Do encontro direto entre essas duas culturas, resultou um processo de aculturação mútua: “uma europeização dos africanos, bem como uma africanização dos europeus” (SEIBERTH, 2014, p. 41), dando origem a uma sociedade crioula, com suas manifestações culturais próprias, suas realizações materiais e simbólicas. 60 As manifestações culturais cabo-verdianas surgiram a partir de um esforço de sobrevivência e convivência entre europeus e africanos que, frente às dificuldades encontradas no arquipélago, “misturaram-se, étnica e culturalmente, originando, assim, um povo com uma personalidade e identidade definida, fruto de um trabalho lento de cinco séculos de aculturação” (RAMOS, 2009, p. 34). Assim como os reflexos do colonialismo português são visíveis nas ilhas cabo-verdianas, desde os séculos XV e XVI, as marcas das culturas africanas e europeias são perfeitamente reconhecíveis nessa sociedade insular crioula. 1.2.3 A língua cabo-verdiana “A língua cabo-verdiana [...] é a doce língua da mãe, das estórias, dos provérbios, dos pensamentos mais íntimos, da poesia em verso ou em prosa, que se diz ou escreve.” (PEREIRA, 2001, p. 153) A língua cabo-verdiana é considerada o principal traço de identidade crioula, que nasce da necessidade de comunicação e compreensão mútua entre europeus e africanos desde a colonização do arquipélago. O crioulo, que mais tarde passou a denominar-se “língua cabo- verdiana”, “é, antes de tudo, a língua de expressão da alma cabo-verdiana” (MOURÃO, 1986, p. 422), isto é, a melhor forma de o povo se expressar, mostrar a sua alegria, a sua dor, os seus anseios, os seus sonhos. Além disso, “comprova o triunfo generalizado, em Cabo Verde, de expressões mestiças de raízes afro-negras” (GOMES, 2012, p. 4). Devido à necessidade de se estabelecer a comunicação entre os habitantes locais, deu- se origem ao que foi denominado de os línguas, tradutores africanos levados pelos portugueses para ensinar a língua lusitana aos escravizados e, assim, facilitar a comunicação entre os dois grupos: colonizadores e colonizados. “A oficialização da profissão dos línguas”, segundo Carreira (1982, p. 52), deu-se em resposta aos movimentos de resistência das populações africanas, que não aceitavam aprender nem a língua europeia, nem mesmo a língua cabo-verdiana. Esse encontro entre as duas culturas deu origem a uma “crioulização” (GLISSANT, 1997, p. 37) que se “insere no âmbito do encontro de várias culturas ou de elementos heterogêneos de culturas distintas”, a exemplo, África, resultando daí uma performance nova, imprevisível, por relação à soma ou à simples síntese desses elementos. A língua cabo-verdiana é, então, uma mistura de várias tradições, fruto das diásporas africana e europeia, que buscam nas suas reminiscências uma coexistência possível. “Língua de emergência e resistência”. É como Simone Caputo Gomes trata a língua cabo-verdiana, e acrescenta: 61 “A língua materna dos cabo-verdianos criou-se desde muito cedo como língua de emergência, para ser usada como instrumento de comunicação entre os escravizados de diferentes etnias transportados para o arquipélago e também entre essa maioria e os portugueses colonizadores. Língua de mestiçagem, mas também de resistência, o crioulo dava suporte às diferentes manifestações negras e mestiças de Cabo Verde, como o batuque, executado à noite no terreiro por mulheres, depois do trabalho forçado, constituindo um ritual matrilinear de canto e dança, de liberação e de crítica ao colonizador, preservado até hoje na ilha de Santiago”. (GOMES, 2012, p. 4). Desde o período colonial, a Língua Portuguesa, devido a seu prestígio cultural, seu reconhecimento oficial e sua legitimação como língua do poder, era concebida como superior à língua cabo-verdiana, e esta, mais tarde, constituiu um instrumento de peso, na divulgação da cultura daquele povo, seja dentro das ilhas, seja fora delas. Atualmente, parte-se do princípio de que a língua cabo-verdiana nasceu na ilha de Santiago (CERRONE, 1996, p. 73; PEREIRA, 1996, p. 552), tendo sido uma tentativa bem-sucedida de reelaborar uma língua, a partir, não somente do português, como também das línguas maternas dos africanos. Por causa desse último aspecto, a cultura que nasceu, em Cabo Verde, como uma língua das mais originais foi sempre condenada ao preconceito e ao menosprezo. Largamente falada em todo o arquipélago, a língua cabo-verdiana ganhou desenvoltura e uma força telúrica na sua comunicabilidade após a independência de Cabo Verde. É importante salientar que, durante muitas décadas, o colonialismo não permitiu a fixação oficial do “crioulo”. As instituições oficiais não tinham interesse em divulgar a cultura local, e a língua cabo-verdiana era malvista pelo poder político, por isso, era proibida nos serviços públicos. Mas, ainda assim, ela surge como um elemento importante de identificação. Para o antropólogo cabo-verdiano Brito-Semedo (1995, p. 5), “a língua cabo- verdiana fundamenta a identidade do país, pois se encontra em consonância com a sua importância na cultura e na política nacional”. Para a antropóloga Dulce Duarte (2003), o crioulo cedo se tornou a língua de comunicação em Cabo Verde. Foi inicialmente a língua materna dos escravos e seus descendentes, mas, no decorrer dos tempos, passou a ser meio de comunicação dos cabo- verdianos, a elemento de resistência à comunidade opressora. Assim, pode-se afirmar que a língua crioula é uma das manifestações mais marcantes da identidade cultural do povo cabo- verdiano. Como língua materna, preservada de geração em geração, ela uniu o cabo-verdiano no passado e continua unindo, desde a diáspora; por isso, ela é a língua das relações sociais, 62 familiares e afetivas, que narra a história do povo do arquipélago: “Ela nasce no contexto colonial português, o que possibilitou a sua passagem por um processo sociolinguístico e, consequentemente, com marcas visíveis na sua estrutura linguística” (LIMA, 1992, p. 24-25). Sobre o surgimento da língua cabo-verdiana, Dulce Duarte discorre: “O crioulo, língua nacional do povo cabo-verdiano, emergiu de uma situação histórica e social que tem por nome o colonialismo […] o crioulo aparece como língua de tipo específico, produto do encontro de várias línguas, em que uma delas, europeia, se assume como dominante, e as restantes, africanas, passam à condição de dominadas” (DUARTE, 2003, p. 35). A história da língua cabo-verdiana é a história da escravatura, do “regime de plantação”, do colonialismo, da dominação, mas também da resistência (VEIGA, 1994, p. 203). Ela constitui um idioma comum a todas as ilhas e a todas as camadas sociais, é o fruto da criatividade do cabo-verdiano e, talvez por isso, o seu principal elemento. Como afirma Dulce Pereira, a língua cabo-verdiana é “a doce língua da mãe, das estórias, dos provérbios, dos pensamentos mais íntimos, da poesia em verso ou em prosa, que se diz ou escreve conforme se pode ou a nova lei manda: língua de todos os cabo-verdianos sem excepção, mesmo dos que falam português” (PEREIRA, 2001, p. 153). Já Manuel Ferreira enxerga, na língua cabo-verdiana, um fator distintivo da cultura das ilhas: “Desde cedo nos impressionou este fenômeno tantas vezes por estranha bizarria vituperada como se tratasse de um acto de insuportável rebeldia: o crioulo de Cabo Verde, afinal seiva pura de uma autêntica cultura nova: a cultura cabo-verdiana, simultaneamente garantia de uma transculturação de adaptação e quiçá a mais extraordinária prova a que a língua portuguesa já foi submetida pelas cinco partidas do mundo” (FERREIRA, 1973, p. 115). Com exceção da poesia popular e da Morna, o aproveitamento da língua cabo- verdiana enquanto instrumento de expressão literária à disposição dos escritores cabo- verdianos surgiu de forma lenta. Conforme mostram as pesquisas de Sara Alexandre Patrício Silva (2011, p. 71-72), três razões são apresentadas para tal fenômeno. A primeira: o uso da língua cabo-verdiana era considerado subversivo e nativista pelas instituições colonialistas. No entanto, com o surgimento da revista Claridade, excepcionalmente no seu primeiro número, a poesia em língua cabo-verdiana ganhou espaço com a apresentação de uma Finaçon22, o que serviu para enaltecê-la e dar-lhe prestígio enquanto forma de expressão. A 22 A Finaçon é o prelúdio que anuncia a dança cadenciada do batuque, que nas suas origens, era acompanhada pela cimboa, instrumento de uma corda, semelhante ao violino. Em Santiago, é interpretada como uma das partes 63 segunda razão está relacionada à eficácia do uso da língua portuguesa como instrumento de divulgação dos acontecimentos sociais, políticos e culturais em Cabo Verde. A terceira razão diz respeito à ideia de alguns críticos, de que a língua cabo-verdiana deveria ser o veículo preferencial de expressão literária. Essa afirmação foi contestada, pois se defendia que para esse objetivo deveria ser utilizada à língua portuguesa (PATRICIO SILVA, 2011, p. 71). Ressaltamos que os poetas Pedro Monteiro Cardoso (1902-1971) e Eugénio Tavares (1867- 1930) são apontados como os que tiveram a iniciativa de dar à língua cabo-verdiana “dignidade de língua literária”. Mas é com a língua portuguesa que autores cabo-verdianos vêm construindo uma literatura nacional, “radicalmente cabo-verdiana” (FERREIRA, 1985, p. 132). Além de Pedro Cardoso, poeta bilíngue que reivindicava o uso preponderante da língua cabo-verdiana, outros poetas, como Januário Leite e Guilherme Dantas, deram importante contribuição para o reconhecimento da língua cabo-verdiana. Pedro Cardoso defende-a quando brada, em plena vigência do Estado Novo e da intensificação das políticas coloniais portuguesas: “como o milho, como a grama, o maldito crioulo resistirá ao sirôco, e, evolucionando, viverá [...] enquanto existir Cabo Verde e se cantar a Morna” (CARDOSO, 1933, p. 3). Segundo Manuel Veiga (2002, p. 26), a tradição oral do povo cabo-verdiano foi o refúgio principal da sua língua nos tempos de triste memória em que ela era o objeto dos mais diversos anátemas. A partir do século XIX, com a introdução do ensino oficial em Cabo Verde, a língua cabo-verdiana passou a ser objeto de ataques cerrados, em que puristas lançavam maldição ao crioulo nesses termos: “idioma perverso, corrupto, imperfeito, gíria ridícula, composto monstruoso de antigo português e das línguas da Guiné, miscelânea sem regras de gramática e que constitui um atentado à unidade do império”23. Apesar da rejeição, a língua cabo-verdiana resistiu em vários tipos de expressão, como as cantigas de trabalho, as práticas religiosas (como as cerimônias de casamento e da morte), a medicina tradicional e a educação informal. Carlos Delgado (2009, p. 76) argumenta que “em Cabo Verde, a língua identifica o cabo-verdiano tanto do ponto de vista linguístico como cultural”. É a língua da identidade coletiva, que permite ao cabo-verdiano reconhecer-se entre si e ser reconhecido pelos outros. Conforme a reflexão da pesquisadora Ana Josefa Gomes Cardoso (2005), a língua cabo-verdiana é o instrumento fundamental não só da comunicação, como também da própria do batuque, em que a cantadeira, como em conversa ritmada, apresenta conceitos gerais, provenientes das experiências vividas no dia-a-dia. 23 Texto retirado da “Revista Cultura de Cabo Verde”, nº 1, 1997, p. 61. 64 vivência do ilhéu; ela foi uma das maiores formas de resistência do povo cabo-verdiano, na luta pela independência, visto que aqueles que lutaram para a libertação (Amílcar Cabral e os seus companheiros de luta) falavam quase sempre “em crioulo” nas suas reuniões e no seu convívio (CARDOSO, 2005, p. 39). A defesa da língua cabo-verdiana foi efetivada, ainda no século XX, quando um grupo de escritores e trovadores começou a reivindicá-la como suporte principal da cabo- verdianidade. Foram escritores como Eugénio Tavares (1916), Napoleão Fernandes (1920), Baltasar Lopes (1957), Jorge Pedro Barbosa (1958), Ovídio Martins (1962), Manuel Veiga (1979), Tomé Varela (1980) os que contribuíram para o “fincar os pés no chão” da língua crioula, pois, desde sempre, estiveram dispostos a defendê-la (CARDOSO, 2005, p. 44). Já na década de 1920, frente aos confrontos e restrições impostas pelo regime colonial, Eugénio Tavares e Pedro Cardoso, corajosamente, defendem a língua cabo-verdiana, que começa a ganhar prestígio com a publicação do importante estudo intitulado Dialecto crioulo de Cabo Verde, de Baltasar Lopes (1956). A publicação evidencia o reconhecimento, aos poucos notáveis, da cabo-verdianidade pela manifestação em língua nacional, em conjunto com a presença da Língua Portuguesa. Tal fato auxiliou na elaboração da consciência e da afirmação de uma literatura nacional. Os poetas Eugénio Tavares, Pedro Cardoso e José Lopes foram os pioneiros que se empenharam na valorização da língua cabo-verdiana nas primeiras décadas do século passado. Eugénio Tavares se destacou, porque sempre retratou isso em suas obras dispersas pelos jornais, panfletos, e, sobretudo, em suas Mornas. Segundo Jorge Barbosa, escritor de renome, no panorama literário cabo-verdiano, “ninguém como ele foi tão expressivo como tipo de uma raça, ninguém como Eugénio viveu tão intensamente pela sua terra, ninguém pode medir com ele no grau atingido de caboverdianismo” (BARBOSA, 2000, p. 4). Para Simone Caputo Gomes, a língua cabo-verdiana: “Constitui o elemento cultural que mais assume, fixa e expressa os valores cabo- verdianos, a cultura cabo-verdiana enquanto comunidade de memória, com um sentimento de identidade que conjuga todo o arquipélago e se estende à diáspora, gerando uma consciência de grupo bem demarcada.” (GOMES, 2008, p. 98). A língua cabo-verdiana, pouco a pouco, ganhou raízes e se tornou um dos mais importantes elementos da cultura e da identidade cabo-verdiana, que nasceu e se afirmou com a origem do povo cabo-verdiano e em situações experimentadas por indivíduos provenientes 65 de diferentes grupos étnicos que foram postos em contato uns com os outros, dando origem a uma língua de comunicação. Manuel Veiga diz que “a língua cabo-verdiana é a nossa bandeira cultural e um dos elementos mais significativos do nosso cartão de identidade” (VEIGA, 2002, p. 7). Como língua materna, ela é considerada o veículo e o suporte do modo de ser, de viver e de agir do ilhéu, e surgiu da necessidade de comunicação entre os diferentes grupos étnicos presentes nas ilhas desde sua colonização. Já para Gilberto Freyre, a língua cabo-verdiana é “tão radicada na terra como o homem crioulo, e todo aquele que tentasse e, por impossível, conseguisse a sua erradicação, mutilaria irremediavelmente a alma do homem cabo-verdiano. Seria uma das formas de crime de genocídio” (FREYRE, 2001, p. 30). Nascida das bocas de negros e de mulatos, para o sociólogo Gilberto Freyre, a língua cabo-verdiana se alastrou por todo o arquipélago, “impondo-se como o facto mais eloquente e mais decisivo da nossa especialização cultural” (MARIANO, 1991, p. 69). Sobre o tema, Peixeira ressalta que: “O crioulo é realmente o suporte insubstituível da identidade cabo-verdiana: na comunicação corrente, na vivência de hábitos e costumes rurais como citadinos. Mas também numa aproximação aos ritmos tradicionais de texto, música e dança; para captação e expressão de emoções estéticas tanto no campo da poética como da narrativa.” (PEIXEIRA, 2003, p. 162). Mantendo-se, até os dias atuais, a língua cabo-verdiana, desde cedo, começou a ser usada como língua literária, num processo que se foi intensificando e se mantém até hoje. Para além de Eugénio Tavares, outros nomes, como Pedro Cardoso, Manuel Veiga, Kaoberdiano Dambará, Sérgio Frusoni, Ovídio Martins, Tomé Varela da Silva, Eurídes Rodrigues, Kaká Barbosa ou Kaliostro Fidalgo, escrevem e compartilham suas obras na língua nacional cabo-verdiana. Como elemento estruturante da identidade e da Nação cabo-verdiana, sua língua ultrapassa fronteiras e une os cabo-verdianos presentes nas várias ilhas e os que se distanciaram na diáspora. Ela é o espelho da alma do ilhéu, é a língua do lar, das conversas entre familiares, amigos, vizinhos, é a língua do amor, da emoção e da tristeza, do canto e da prece, das declarações por meio da Morna, é a língua do choro e da despedida, a língua nacional do cabo-verdiano que emergiu de uma situação histórica e social, desde o colonialismo, que incutiu neles a ideia de pertencimento a uma nação e a um povo. 66 1.3- Música cabo-verdiana e identidade La na cêu bo ê un estrela Ki catá brilha Li na mar bô ê un areia Ki catá moiá Espaiote nesse munde fora Sô rotcha e mar Terra pobre chei di amor Tem morna, tem coladera Terra sabe chei di amor Tem batuco, tem funaná (Nando Da Cruz, 1994) Uma das funções exercidas pela música tem sido apresentar Cabo Verde para o mundo, tarefa extraordinariamente exercida pela saudosa cantora Cesária Évora (1941-2011), que, ao longo de sua existência, emprestou sua voz cantando Mornas - gênero musical de referência mundial que retrata e transmite harmonia melódica de sentimentos. Consagrada em Cabo Verde como a “diva dos pés descalços”, Cesária apresenta alguns dos diferentes gêneros musicais do seu “Petit Pays”24. Para além da língua, a identidade cultural cabo-verdiana consubstancia-se, também, na música, pois esta constitui “uma das pedras basilares identitárias mais fortes da unidade nacional” (MONTEIRO, 2003, p. 74) e, enquanto expressão cultural, uma das mais importantes alavancas dessa sociedade insular. Torna-se, assim, uma componente identitária bastante representativa. Os ritmos e os sons de Cabo Verde, em especial, a sua música tradicional, a Morna, são importantes elementos de afirmação identitária, tanto para os cabo- verdianos residentes no arquipélago, quanto para os que vivem longe dele. Em sua tese intitulada Música Migrante em Lisboa: Trajetos e Práticas de Músicos Cabo-Verdianos (2011), Cesar Monteiro afirma o seguinte: “A música, a par de outras expressões culturais, constitui um importantíssimo pilar da sociedade cabo-verdiana e é uma das componentes mais representativas e estruturantes da sua identidade cultural, que se foi desterritorializando e reterritorializando mercê de intensos movimentos migratórios verificados ao longo 24 “Petit Pays” (Pequeno pais), título de uma morna de Nando da Cruz, interpretada por Cesária Évora (1995). 67 da sua evolução histórica, de que resultaram significativas comunidades de imigrantes (...) em quase todas as latitudes,” (MONTEIRO, 2011, p. 1). O jornalista francês Frank Tenaille, (1993, p. 47), especialista em Word Music, afirma que “o mais fiel bilhete de identidade de Cabo Verde é a sua música”, e destaca as diferentes manifestações musicais presentes nas ilhas, com suas características sincréticas, fruto da miscigenação enraizada no arquipélago desde o período colonial. Essa música vem contribuindo nos “projetos de construção nacional das ilhas e na luta para determinar as contribuições da África e da Europa nas definições da cabo-verdianidade” (SIEBER, 2005, p. 141). A música das ilhas é uma verdadeira crônica viva e expressiva do cabo-verdiano, pois ela traduz toda a sua idiossincrasia e sempre acompanhou o seu tempo e os problemas de Cabo Verde. No campo e na cidade, canta-se de tudo: a partida e o regresso, a saudade, a esperança, a tristeza e a alegria, o amor à mãe e o apego à terra, o humor, a crítica, a sátira, a coragem, a luta, o morrer e o nascer, assim como outros problemas existenciais do ilhéu. As variedades e os ritmos musicais refletem essa heterogeneidade das ilhas, que é um dos atributos identitários da riqueza humana e cultural de Cabo Verde. Rui Jacinto afirma que: “A penetração em todos os sectores da vida pessoal e colectiva do país torna a música transversal à sociedade, marcante da identidade de Cabo Verde, referência incontornável com que se identificam todos os que se encontram tanto aquém como além do Mar Azul.” (JACINTO, 2017, p. 381). Do cruzamento de culturas africanas e europeias, origina-se uma diversidade de músicas, danças e ritmos, assim como manifestações orais e performáticas como as citadas por Cesária Évora: as lendárias Morna e coladeira, que coexistem com outros gêneros, como o batuque e o funaná, além das manifestações rítmicas como a tabanca, as cantigas de trabalho, entre outros gêneros. Eles estão “enraizados num hibridismo transatlântico complexo de formas musicais euro-africanas, variando de ilha para ilha e dos grupos nórdicos e sulistas das ilhas” (ARENAS, 2011, p. 45);É importante discorrer um pouco sobre cada um deles. Quanto à Morna, primeiro gênero musical citado por Cesária, é necessário fazer uma apresentação mais detalhada sobre esse gênero, no próximo item intitulado “A morna como expressão identitária”. A Coladeira é o segundo gênero musical mencionado. Conforme Juliana Dias (2004), “ela é uma evolução da Morna, resultado de um processo de transformação advindo da 68 alteração no seu andamento e no seu compasso, passando de quaternário para binário” (DIAS, 2004, p. 23). Em outras palavras, os músicos aceleravam a execução das Mornas, passando de uma atmosfera nostálgica, triste, para um ritmo dançante mais animado e motivado. Para tocar a Coladeira, geralmente, são utilizados instrumentos como a viola, o cavaquinho, a rabeca e outros instrumentos de percussão. Relativamente recente e presente, principalmente em salões de dança, a Coladeira surgiu na ilha de São Vicente, em meados do século XIX, tornando-se conhecida e fazendo grande sucesso em todo o arquipélago e por toda a diáspora cabo-verdiana. Graças aos compositores Manuel D’Novas, Frank Cavaquim e ao trompetista e clarinetista Luís Morais, a Coladeira atinge seu auge, adotando na sua forma definitiva um estilo quente, erudito e popular, ao mesmo tempo, inspirado na música latino-americana (BARROS, 2007, p. 21). Entre as principais características da Coladeira, estão seus textos críticos, sarcásticos e irreverentes que, com uma boa dosagem de humor, buscam atingir indivíduos (principalmente, as mulheres) nas situações cotidianas e nos problemas sociais. Eis o exemplo de uma Coladeira do músico Frank Cavaquinho ( 1992): “As menininhas do monte sossego/ Elas não têm valor, não tem boa fama/. A única coisa que sabem fazer é criticar/ Quando vão para o mercado de peixe e para a vascona/ [fonte para apanhar água]. Percebe-se que o autor faz uma crítica às mulheres, que são descritas como pessoas de má fama e que gostam de fazer intriga. Manuel Ferreira (1968) apresenta algumas características da Coladeira, comparando-a com a Morna nesses termos: “enquanto a Morna é a mágoa de nossa vida (mágua de nôs bida), [...], A outra: a mordacidade, a alegria de zombar, de criticar, a tendência para a mofa, o motejo, o riso descarado, a brincadeira alada, a irreverência desbocada” (FERREIRA, 1973, p. 191). Descrita como o lugar do escárnio, da brincadeira e da alegria, a coladeira é jocosa, satírica, zombeteira e, em muitos momentos, picante; é a canção do maldizer. Ao mesmo tempo em que Mornas e Coladeiras se opõem, também se complementam. Por isso, “Enquanto a morna é lenta e pretende tocar o íntimo da alma, a coladeira provoca o movimento dos corpos. Seu ritmo é descrito pelos termos “sacudido”, “nervoso”, “balanceado”, “trepidante”, “vivo”, “dinâmico”, “excitante”. A boa morna desperta o choro, enquanto a boa coladeira leva ao riso e à dança.” (FERREIRA, 1973, p. 190). A Coladeira é o lugar da crítica social de Cabo Verde e, por conseguinte, o espaço para questionar o comportamento do cabo-verdiano. Suas letras refletem as variadas situações 69 vividas no cotidiano do ilhéu, observadas pelo compositor. Por isso, elas criticam, questionam, perguntam, respondem, revelam uma aproximação maior com a realidade vivida pelo indivíduo. “Essa forma de expressão musical, que funciona como sátira social e se entronca,, no processo de escárnio e maldizer da literatura medieval portuguesa, critica, com sarcasmo e humor refinado, a sociedade mindelense” (BRITO-SEMEDO, 2006, p. 93). A crítica é sempre acompanhada de um conselho, que ensina a reagir, diante de determinadas situações, apresentando acima de tudo, um viés moralista, em apoio à ideologia patriarcal. Porém, as letras não incidem apenas sobre tipos específicos de comportamento social, há também aquelas de teor político, que expõe de forma direta, as críticas às questões relacionadas à seca, ao flagelo da fome, ao fenômeno da emigração, dentre outros problemas vivenciados pelos cabo-verdianos. Já o Batuque (ou Batuko) é dança e ritmo típicos da ilha de Santiago, onde se encontram as raízes mais profundas das manifestações culturais ligadas ao passado escravocrata do povo cabo-verdiano. Como o nome indica, é uma “forma musical de percussão e canto à qual se têm atribuído raízes wolofes ou gelofes” (LANG, 2007, p. 160). Na sua origem, o Batuque era visto como “um divertimento de escravo” (NOGUEIRA, 2011, p. 81); como “festa de relaxamento e liberação dos escravizados, num canto do terreiro, depois de um árduo dia de trabalho” (GOMES, 2011, p. 1905). Executado por mulheres, o Batuque retoma as tradições de uma ilha caracterizada pela forte presença do elemento africano em sua formação. Considerado uma das manifestações musicais mais antiga de Cabo Verde, o Batuque é tocado, geralmente, em momentos especiais de festas de casamentos e batizados; sobretudo em ambiente rural, o Batuque é, ao mesmo tempo, poesia, dança e cântico, com um ritmo eufórico e uma orquestração característica em que os únicos sons melódicos são as vozes das mulheres. Ritmo marcado pelas mãos espalmadas em chumaços de panos ou pedaços de tecidos dobrados, recobertos de plásticos, utilizados para a percussão, colocados entre as coxas das batucadeiras ou pelo bater sincopado de palmas (SPÌNOLA, 2004, p.49). O ritual do Batuque é composto por diferentes elementos, como a finaçon - canto improvisado com diferentes assuntos, cantado pela personagem denominada “profeta”, acompanhado pela cimboa - instrumento de origem sudanesa (país situado na Costa Ocidental africana); a tchabéta, que impõe maior vigor ao canto e à dança. Essa é a parte principal do Batuque, quando são realizados os sons da percussão com o bater ritmado das mãos sobre panos; o torno- dança executada por uma ou duas mulheres que, com um pano atado à cintura, 70 movimentam as ancas ao som dos batimentos. De forma poética, o cabo-verdiano Armando Napoleão Gonçalves acrescenta que: “O Batuque é uma cantilena acompanhada de cimboa, que canta, soluça, geme e chora, conforme o canto da viola que se despinica, e a Chabéta que segue o ritmo, ora brando e cadenciado, ora forte e repicado, acompanhando a letra e a cadência (Finaçon), seguida do torno.” (GONÇALVES, 2006, p.18). Quanto à finaçon - interpretada como o prelúdio que anuncia a dança cadenciada do Batuque -, o termo remete aos antigos “griôts” africanos, simbolizando o respeito pelos mais velhos, considerados os guardiões das tradições e memórias do povo. Lopes da Silva (1984) informa que “em Santiago, esse termo especializou-se na designação de uma das partes do Batuque, em que o cantor ou a cantadeira exprimem conceitos gerais, provindos da experiência e da observação da vida de todos os dias” (LOPES DA SILVA, 1984, p. 198). É de Simone Caputo Gomes a afirmação de que: “A finaçon é geralmente entoada por uma mais velha, que transmitirá, com sua voz áspera e sua parte de improvisação, a sua crônica de existência, sua pedagogia social, os conselhos morais, por meio da filosofia dos provérbios, críticas ou recomendações.” (GOMES, 2008, p.5). Além de transmitir as experiências cotidianas das populações, a finaçon evidencia a importância da língua crioula, expressão máxima da identidade cabo-verdiana. Nas temáticas apresentadas pelas cantadeiras, as regras morais, as normas de comportamento, os conselhos e provérbios são recorrentes. Quanto ao Funaná, último gênero musical citado por Cesária Évora, surgiu no meio rural da ilha de Santiago, constituindo uma das características da cabo-verdianidade, expressão musical de camponeses, de compasso binário, com andamento duplo, médio e rápido, acompanhado de dança alegre e sensual. Inicialmente, o Funaná era executado pela gaita de mom (acordeão diatônico trazido pelos religiosos portugueses para o arquipélago, para fins religiosos, nos rituais litúrgicos das missas) e pelo raspar de uma faca numa barra de ferro, ou o “ferrinho”, como é mais conhecido. Esses instrumentos foram sendo apropriados para acompanhar outros tipos de festas, como os casamentos e batizados. A origem do termo veio da fusão do nome de dois conhecidos tocadores de gaita e ferrinho- Funa e Naná - surgindo o canto e dança- Funaná. Música com característica coreográfica, dançada de forma sensual pelos pares, cantada em língua cabo-verdiana, o Funaná sempre esteve associado à vida mundana, a brigas, morte, a 71 bebedeiras; considerado música de mau gosto, de selvagens, era desprezado pelas autoridades coloniais e pela Igreja Católica. Lembramos que, desde a colonização, as autoridades portuguesas, apoiadas pela Igreja, “combateram sistematicamente, em Cabo Verde, todas as manifestações culturais africanas, desde a Coladeira ao Batuque, passando pela Tabanca e o Funaná e por certas práticas de carácter animista” (DUARTE, 2003, p.94). Por considerar alguns desses gêneros musicais contra os ensinamentos e doutrinas transmitidos pela Igreja Católica (Funaná e Fatuque), a administração portuguesa intensificou sua política de repressão, durante o regime do Estado Novo. Após o dia 25 de abril, de 1974, houve, em Cabo Verde, o que foi denominado de “explosão cultural”, especialmente relacionada à música, fazendo surgir diferentes grupos, como o Bulimundo e os Tubarões, músicos que contribuíram para a evolução e a afirmação da música em Cabo Verde, expondo uma vasta produção musical com temas relacionados à resistência. Essas músicas serviram como forma de consciencialização para a libertação das ilhas do jugo colonial. “Ao mesmo tempo, e decorrente do processo de libertação, começa um movimento de revalorização das manifestações culturais que tinham sido desprezadas e reprimidas pelo regime colonial” (GONÇALVES, 2005, p. 101) e que ressurgiram após a independência das ilhas em 1975. Com a independência de Cabo Verde, deu-se uma evolução significativa do Funaná, graças à criação do grupo Bulimundo que, sob a orientação do músico cabo-verdiano Katcháss (Carlos Alberto Martins), conseguiu adaptar o Funaná aos instrumentos eletrônicos, valorizando-o e garantindo um enriquecimento harmônico a esse gênero, que foi elevado à categoria de música nacional e conquistou grande aceitação dentro e fora do arquipélago (ÉVORA, 2010, p. 34). Outros importantes grupos surgiram, como o Finaçon, dos compositores Zeca e Zezé de nhá Rinalda, projetando o Funaná em uma escala de reconhecimento nacional e internacional. Surge também o grupo “Ferro Gaita”, dando novo fôlego ao Funaná, que atinge patamares de sucesso nunca antes alcançados, uma vez que esse grupo prestigia a nova música de Cabo Verde, nos circuitos internacionais, iniciando uma nova fase da música cabo- verdiana. Quanto à Tabanca, não citada por Cesária, a rigor, não é considerada propriamente um gênero musical, porém é uma das mais antigas tradições implantadas em solo cabo-verdiano. A Tabanca é fruto de uma miscigenação étnica e cultural e produto do sincretismo religioso, 72 pois inclui rituais africanos e cultos populares aos santos; é uma manifestação popular de acentuado caráter festivo e de rua, com aglomeração de multidões, rufar de tambores, tocar de cornetas e palavras de ordem. Conjuga cânticos, músicas e danças em procissões que se realizam em determinadas datas consideradas sagradas. As festas da Tabanca têm início no dia 3 de maio, data que coincide com a festa de Santa Cruz, quando os grandes proprietários de terras, seguindo costume da ilha de Santiago, deixavam livres os seus escravos, pois era a celebração que simbolizava a libertação do homem. A Tabanca é, sobretudo, uma agremiação, ou uma sociedade ritualista com uma organização sólida em torno de um princípio de vida, em que a solidariedade, a entreajuda e a coesão comunitária se revelam como signo de uma sabedoria popular. Desde sua implementação, por volta do século XVI, a Tabanca teria sido uma associação de antigos escravos que, querendo manter os valores religiosos dos antepassados, constituíram uma significativa forma de união e de ajuda mútua entre seus membros. Para além dos gêneros musicais já mencionados, considera-se importante apresentar outros que fazem parte do patamar cultural cabo-verdiano, como as cantigas de trabalho, geralmente cantadas pelo homem do meio rural e, mais frequente, nas ilhas consideradas mais agrícolas, como Santiago, Fogo, São Nicolau e Santo Antão. É importante notar que o poeta Oswaldo Osório (1980) relaciona as cantigas de trabalho a diversas modalidades temáticas como: cantigas agrícolas (cantadas nas ilhas de Santo Antão, São Nicolau, Santiago, Fogo e Brava); cantigas marítimas (de pescadores e marinheiros, sobre sua dependência e ligação com o mar); cantigas de trapiche (as dolentes toadas de aboio ou o colá boi). Os trapiches eram as usina de açúcar movidas pelos escravos e, mais tarde, pelo gado; daí, o lamento conhecido como canto di bombâ (“bombar” ou “bramir”), que é um “arquétipo trazido das profundezas da noite colonial, a simbolizar, talvez, a sujeição, a paciência, mas também as reservas insuspeitadas para lances de coragem e rebeldia” (OSÓRIO, 1980, p. 42). Para Oswaldo Osório, as cantigas de trabalho foram “componentes fundamentais, primeiro, da renascença da cultura cabo-verdiana naquelas décadas e, depois, do contexto do governo revolucionário do PAIGC, o âmago de um sistema literário kauberdianu politicamente comprometido” (OSÓRIO, 1980, p. 20). Outras danças e ritmos estão presentes nas diferentes ilhas, como a contradança, gênero importado da França, dançada também nas ilhas de São Nicolau, Boa Vista e Santo Antão. Nessas ilhas, a Mazurca polonesa é tocada e dançada em festas de casamento, batizados, acompanhados de instrumentos acústicos. Outro ritmo centenário é o canto-dança 73 Lundu ou Landu, executado nas ilhas de Boa Vista e São Nicolau, ainda hoje cantado e dançado nas cerimônias de casamento, que Lima denomina de “dança nupcial da meia noite” (LIMA, 2002, p. 179). Esse breve percurso pela música cabo-verdiana, embora tenha sido estruturado considerando os gêneros mais tocados e cantados no “petit pays” de Cesária Évora, conduz o reconhecimento de que a música em Cabo Verde, assim como em outras culturas, aproxima os povos, gera uma atmosfera tocante de convívio, une-os nos mesmos sentimentos de pertencimento, constituindo um veículo de ligação entre as ilhas e o resto do mundo numa fraterna comunhão. 1.3.1 A Morna como expressão identitária “Canta Amigo, canta, deixa que se espraie no teu coração dorido a Morna que acalenta.” (MARTINS, 1963, p. 54) A Morna é um gênero musical, poético e textual que representa um dos importantes traços da identidade cabo-verdiana. Ela tem merecido a atenção de vários estudiosos, os quais investigam a origem do próprio nome que ostenta. Por isso, assim escreve Manuel Ferreira, em seu livro “A aventura crioula” (1973): a “Morna é uma criação original de Cabo Verde”. Sua história está estreitamente ligada à formação da sociedade cabo-verdiana. Assim como o cabo-verdiano é o resultado do entrelaçamento entre europeus e africanos, a Morna é “fruto do encontro de civilizações e de interinfluências entre os vários povos que passaram por essas ilhas” (ÉVORA, 2010, p. 37). Ela é também o resultado do cruzamento de culturas diversas, híbridas, que fizeram surgir características marcantes, a partir da descoberta e do processo de povoamento do arquipélago. Sua origem envolve questões ligadas às raízes e às tradições culturais que identificam o cabo-verdiano dentro das ilhas ou aqueles dispersos pelo mundo. Uma das referências brasileiras, em estudos sobre Cabo Verde, a professora e pesquisadora Simone Caputo Gomes afirma que “traçar a história da Morna é tarefa complexa, que tem envolvido músicos, intelectuais e o cabo-verdiano mais humilde” (GOMES, 2008, p. 149). Discorrer sobre esse assunto produz envolvimento direto na elaboração de uma pluralidade de versões para a história desse gênero, que se manifesta na 74 poesia, na música, na dança, na prosa de ficção, e está relacionado às manifestações próprias do domínio da cultura popular e da história de Cabo Verde. Aclamada como “a expressão da alma de um povo”, considerada como uma tradição pertencente a todas as ilhas e constituída símbolo de um país, a Morna é um importante instrumento de divulgação e afirmação da identidade e da cultura cabo-verdiana, pois ela fortalece, no ilhéu, o sentimento de pertencimento à nação crioula. Como símbolo identitário, observando a Morna e os discursos construídos sobre ela, é possível investigar uma variedade de questões relacionadas à história de Cabo Verde, do encontro dos diversos povos que chegaram ao arquipélago, das variedades de línguas permeadas de diferentes culturas que culminaram em uma identidade própria - a cabo-verdiana. Vastos e imprecisos são os discursos sobre a origem da Morna; uma vez que as “fontes de informação são essencialmente orais, muita coisa se perdeu” (MARTINS, 1988, p. 9). Por isso, não se apresentam datas ou comprovações de sua origem, sabe-se apenas que surgiu, provavelmente, entre os séculos XVIII e XIX. Atualmente, esse gênero está presente em todas as ilhas que formam o arquipélago, mas “ao longo do tempo, esteve estreitamente vinculada às experiências musicais dos habitantes das ilhas da Boa Vista, Brava e São Vicente” (DIAS, 2004, p. 21). Conforme Benilde Caniato (2005), “A Morna já era cantada e dançada, no Arquipélago, desde o século XIX, e, por seu caráter dolente e nostálgico, é possível que tenha recebido alguma influência dos lamentos árabes marroquinos” (CANIATO, 2005, p.73). De acordo com o poeta Eugénio Tavares (1932, p.17), a morna seria originária da Ilha da Boa Vista e “Brada Maria” é o título da mais antiga morna registrada que se conhece no arquipélago. Ela é classificada como “a mais velha Morna da Brava, cantada há quase cem anos, porventura a mais linda de quantas se orgulha o nosso folclore, é esse grito lancinante grito de uma caída, Brada Maria! Ouve-se sempre com lágrimas nos olhos” (TAVARES, 1932, p. 17). Na versão eurocêntrica, a origem da Morna está relacionada ao Fado português, outro gênero considerado místico quanto à sua origem. O compositor de Mornas B. Léza apoia-se no Fado e no Tango argentino para reforçar a relação da Morna com esses cantares. E escreve: “A Morna, que em si condensa todo o lirismo deste sensível povo, tem semelhança com o fado português e parecença com o tango argentino. A Morna cantada está para o cabo-verdiano como o fado para o português; e dançada tem a expressão e o ritmo do tango argentino” (CRUZ, 1933, p. 11). 75 O Fado afirma-se como o gênero musical mais significativo da música popular lusitana que, até o século XIX, era sinônimo da palavra latina factum - sina, destino; é sob esse viés que ele aparece na literatura portuguesa anterior ao século XIX (NERY, 2012, p.18- 23). Caracterizada pela saudade e pela melancolia, para alguns pesquisadores, a Morna é considerada uma “parente ultramarina, ou luso-tropical, do fado” (NETO, 2008, p. 189). Conforme Rui Jacinto (2017), Morna e Fado se encontram na forma e no conteúdo, e “buscam a melhor tradução para sodade - sentimento popular profundamente enraizado” nesses dois gêneros (JACINTO, 2017, p. 387). Enquanto gênero musical, a Morna é cantada em diferentes ambientes: nas ruas, em bares e restaurantes com apresentação ao vivo; em festas diversas, como nos casamentos, nos batizados ou guarda-cabeça,25 realizado no sétimo dia após o nascimento de uma criança, como também nos rituais fúnebres. Por isso, Manuel Ferreira questiona: “Ocorrerá em qualquer outra parte do mundo um fenômeno desta natureza: um povo inteiro prezo, em absoluto, por uma forma de expressão artística? Falamos da morna de Cabo Verde. Haverá um cabo-verdiano insensível à morna? Insensível, ou mesmo, vamos lá, indiferente? Não.” (FERREIRA, 1973, p. 163). O músico cabo-verdiano Vasco Martins afirma a possibilidade de a Morna ter sua origem no Lundu e na Modinha brasileira do século XVIII. Quanto ao primeiro gênero, o Lundu (Landu ou Lundum), é definido como canto e dança de origem africana, trazido para o Brasil por escravizados, principalmente de Angola, difundido no século XVIII. Na obra intitulada A Música Tradicional Cabo-Verdiana - I (A Morna), o autor Vasco Martins (1988), afirma que “antes da Morna, e revivendo num ou noutro ponto do arquipélago, como antepassado, cantou-se e dançou-se o Lundum, irmão do vira, e a chama-rita, dança de roda, braços ao alto, em ondas harmoniosas animadas” (MARTINS, 1988, p. 40). Das muitas definições referentes à Morna, Félix Monteiro apresenta de forma completa e esclarecedora um conceito para esse vocábulo retirado do posfácio escrito por José Osório de Oliveira: “Morna é o nome que designa, ao mesmo tempo, a dança e as canções típicas de Cabo Verde. Ritmo de baile, palavras e músicas das canções, são coisas inseparáveis. Não se trata com efeito de uma dança acompanhada de palavras como qualquer outra. O facto do povo de Cabo Verde dançar a morna cantando (repare 25 “Guarda-cabeça ou “noite de sete”, que consistia em guardar o recém-nascido na noite do sexto para o sétimo dia de vida, para que ele não fosse comido pelas bruxas”. Para defender a criança, colocavam debaixo do travesseiro tesouras abertas, debaixo da cama facas e machados e, por cima da casa, jogavam sal misturado com enxofre. A sala ficava cheia de gente que comia e bebia à vontade (LOPES, 2006, p. 31). 76 que não se trata de uma dança de roda) indica claramente que, para ele, gestos, letra e melodia são formas indistintas do mesmo ritmo interior. Pode afirmar-se, portanto, que a morna resume em si todos os sentimentos e condensa todas as aspirações artísticas do cabo-verdiano.” (MONTEIRO, 1996, p. 131). A Morna identifica-se com a forma de viver do cabo-verdiano e reflete sua inquietação cotidiana associada à problemática da partida e do regresso (da emigração), da insularidade, da diáspora, do distanciamento da terra- (evasão) e da mãe e da cretcheu26. Em seu longo ensaio inserido na obra “Aventura Crioula” (1973), Manuel Ferreira, após ter afirmado que “se destruíssem a Morna ao cabo-verdiano, a sua personalidade ficaria amputada” (FERREIRA, 1973, p. 163); acrescenta: “originária de Cabo Verde, como pensamos, ou importada das Antilhas, como insinua Archibald e pretende Gilberto Freyre, o certo é que a morna consubstancia a alma do cabo-verdiano, quase o definindo e sempre o identificando” (Ibdem, 176). Conforme Rodrigues & Lobo (1996, p. 21), “a morna não se define em exclusivo por nenhum dos gêneros tradicionais nem tão pouco pelos da literatura tradicional africana”. Os temas ligados a ela se fixam, corporizam-se em espaços do contexto cotidiano. Enquanto manifestação mais abrangente da identidade cabo-verdiana, a Morna assume, de um lado, “aspectos coletivos” quando ilustra a saga do cabo-verdiano, a sua origem (europeia e africana) e as circunstâncias históricas que o indivíduo vivenciou; por outro lado, ela assume “aspectos particulares” conforme o contexto das diferentes ilhas e em razão do sofrimento pelo qual passa o indivíduo, das atribulações advindas das questões climáticas, da insularidade, da seca, da fome, da morte, da dor, da separação, das carências materiais e da luta pela sobrevivência. Em todo contexto em que o cabo-verdiano está inserido, a Morna acompanha-o ao longo de toda sua existência (PEIXEIRA, 2003, p. 172). Do ponto de vista histórico, o antropólogo cabo-verdiano José Carlos dos Anjos informa que “todo o processo de construção da identidade nacional cabo-verdiana tem o continente africano como referência, seja para uma afirmação de distanciamento, ou para uma afirmação de proximidade ou de pertencimento” (ANJOS, 2002, p. 580). Nesse contexto, é importante notar que, como símbolo identitário, a Morna torna-se possível a partir da junção das culturas afro-negras com as particularidades da história de Cabo Verde, desde seu povoamento, passando pelo período escravocrata e pela colonização. Antônio Germano Lima (2002) pontua que existiu uma fase da Morna primordial (Século XVIII), na ilha da Boa Vista, de forte influência afro-negra, à base de queixumes e 26 Termo que significa “a mulher amada”. 77 lamentações, provocadas pela dor da escravidão. Lima acrescenta que os escravos africanos e seus descendentes são apresentados como os principais personagens da história da Morna, e que o nascimento desta ocorreu graças à união da cultura africana com as particularidades da história e da geografia cabo-verdiana; e reafirma: “a morna surge da dor, dos queixumes e das lamentações dos escravizados expressos em linguagens e gestos imperceptíveis para os colonizadores, mas sempre na forma de cantos e danças” (LIMA, 2001, p. 247). Gilberto Freyre, em uma de suas viagens pelo arquipélago, refere-se à Morna como “uma música lânguida, com alguma coisa de banzo, banzeira, nostálgica, tristonha” (FREYRE, 2003, p. 279), que teria vindo das Antilhas. Freyre alude ao banzo africano, um intenso ressentimento que surge devido às saudades da terra natal e dos amores perdidos, pelas injustiças e traições sofridas e, principalmente, pela “cogitação profunda sobre a perda da liberdade” (MENDES, 2007, p. 370). Esse sentimento se manifestava desde a travessia atlântica ou logo depois da chegada dos escravos africanos aos diferentes países a que eram destinados. Para o poeta António Aurélio Gonçalves, a morna advém das “cantadeiras”, mulheres do povo, consideradas de “má vida”, mas que tiveram um papel importante não só na composição de Mornas, como na sua difusão pelas ilhas (REIS, 1984, p. 3). Sobre essa questão, salienta Moacyr Rodrigues (2015): “Todas as fontes são concordantes ao afirmar que as mornas eram cantadas por mulheres e que eram produzidas mais por elas do que por eles. Para, além disso, as mornas mais antigas de que se tem memória, foram também elas, compostas e divulgadas por mulheres, julgando-se que terão constituído um protótipo. Assim, o cruzamento destas diversas fontes atesta não só o papel fundamental que as mulheres terão tido na produção mornística, como nos dá novos elementos sobre a forma como terá surgido e se terá desenvolvido este género musical em Cabo Verde.” (RODRIGUES, 2015, p. 48). Tendo se “desenvolvido em meio feminino” a Morna é expressa, sobretudo, na língua cabo-verdiana, o crioulo, definido por Baltasar Lopes da Silva (1984, p. 286) como “a fala genuinamente popular e dialetal, sem contaminações por via culta”. A gênese da língua cabo- verdiana tem sido objeto de muitas especulações, como foi referido no capítulo anterior, mas afirma-se que se constituiu, no final do século XVI, como resultado da segregação de escravos provenientes da costa da Guiné, e dos colonizadores falantes de Português na ilha sulista de Santiago (LANG, 2000, p. 49-52). Se, em geral, a Morna é cantada em crioulo, não deixa também de ser cantada ou recitada em Língua Portuguesa. Já para Manuel Ferreira (1973) “o dialecto cabo-verdiano 78 constitui a documentação de uma das transformações felizes da língua portuguesa entre os povos coloniais” (FERREIRA, 1973, p. 52). Tradicionalmente, a Morna tem sido executada por instrumentos de cordas como o violino, também conhecido como rabeca; o violão é um importante instrumento de acompanhamento que ocupa lugar principal na execução da Morna. Outros instrumentos, como o cavaquinho, a viola de dez cordas, o banjo e a guitarra portuguesa têm acompanhado os ritmos da Morna nas suas diferentes manifestações. A pesquisadora Juliana Braz Dias (2004) afirma que, desde os anos 1960 do século passado, outros instrumentos mais modernos vêm substituindo a formação acústica tradicional; é o caso dos instrumentos de sopro, como o saxofone, o clarinete ou o trompete, que tomaram o lugar do violino. Citam-se aqui também os instrumentos elétricos, como a guitarra, o baixo e os teclados, acompanhados da bateria (DIAS, 2004, p.22). Enquanto traço identitário cabo-verdiano, a Morna tem sido tomada como manifestação própria do domínio da cultura, reivindicada por músicos como B. Léza, que afirma: “[...] há uma só terra que conhece a morna e só um povo conhece-lhes os versos — Cabo Verde e o cabo-verdiano”. Por isso ao cabo-verdiano é dado comover-se ouvindo uma morna quer em Cabo Verde, quer longe dele, porque só a ele é dado a conhecer, sentir, interpretar a alma da sua terra,” (GONÇALVES, 2006, p. 72). Com essa afirmação, B. Léza estabelece uma relação direta entre terra e povo, afirmando seu nacionalismo cabo-verdiano. E a Morna é, sem dúvida, o veículo de expressão mais cultivado em todas as ilhas de Cabo Verde. Ao escutar uma Morna, o ilhéu imagina sua terra insular e, por isso, condensa todos os sentimentos e aspirações artísticas do cabo- verdiano, vivendo e sentindo a Morna como parte integrante do seu “eu” e de tudo o que o prende a essas ilhas atlânticas. Quanto ao sofrimento, à tristeza, à saudade, à dor, ao luto, ao choro, à lamentação e à melancolia expressadas através da morna, Osório de Oliveira aponta de onde surgem esses sentimentos e quais as razões de existirem: “Que os cabo-verdianos são uma raça mestiça, que a sua terra é um arquipélago, que o seu clima é o dos trópicos e que as condições de vida obrigam o seu povo a emigrar. Disso tudo devia resultar uma forma de arte impregnada de melancolia e de nostalgia, de lirismo sensual e de ritmo melodioso, extremamente lento, quase arrastado, um pouco monótono talvez, mas duma beleza incontestável.” (MONTEIRO, 1996, p. 131). 79 A literatura cabo-verdiana, em geral, é uma literatura de nostalgia que, em partes, se define como ontológica, subjetiva, sempre em busca da memória esquecida dos antepassados, que, ao longo da história, foi-lhes tirada e negada. E a Morna é canto identitário, testemunha da realidade existencial do cabo-verdiano, presente nos diferentes grupos sociais, nos meios eruditos ou populares, cantada por homens e mulheres do povo, espalhados pelas ilhas. 1.3.2 A trajetória histórica da Morna “A Morna fixou os olhos no mar e no espaço azul, e adquiriu essa linha sentimental, essa doçura harmoniosa[...]” (TAVARES, 1969, p. 18) A Morna nasceu na ilha da Boa Vista e difundiu-se por todo o arquipélago, caracterizando-se e tomando a “feição psíquica do povo e das diferentes ilhas” (Peixeira, 2003, p.171). Considerada um fator de identificação entre as ilhas e de união do povo cabo- verdiano, a difusão da morna se deu graças ao empenho e à dedicação de um dos mais conhecidos compositores de mornas - Eugénio de Paula Tavares (1867-1930), poeta, orador, escritor e jornalista, nascido em Vila de Nova Sintra, na ilha da Brava, no dia 18 de outubro 1867, e falecido no mesmo local, no ano de 1930, aos 63 anos. “Nhô Eugénio”, como era carinhosamente conhecido na ilha da Brava, manifesta-se como grande compositor de belas Mornas, escritor de várias peças teatrais, contos e crônicas, que “legou ao povo cabo-verdiano e aos outros cultores da língua de Camões um autêntico património espiritual que se traduz na experiência linguística, histórica, estética e artística” (CARLOS, 2015, p. 104). Esse poeta bravense é considerado personagem exemplar da cultura cabo-verdiana. Eugénio não se preocupou em mostrar dados que comprovassem a afirmação de que a Morna nasceu na ilha da Boa Vista, mas descreveu as características que esse gênero musical assumiu nas diferentes ilhas. Começando pela Boa Vista e referindo os estudos do musicólogo José Alves dos Reis (1984), na sua primeira fase, a Morna caracterizou-se por ser: “Equilibrada, pura de belas melodias”, de andamento acelerado e ritmo saltitante. Os poemas tinham certa malícia não agressiva, própria do maldizer frequente nas mulheres das pequenas aldeias do mundo rural, próprio do mexerico caseiro. A melodia dos galopes, chegados a Cabo Verde, servia quase sempre para veicular letras improvisadas pelas mulheres, por ser uma música alegre, brejeira e galhofeira. Não tinha atingido, contudo, aquela sátira agreste, cáustica, própria da cidadania urbana, a que se assistiu no Mindelo. A intenção era a de fazer chacota. Fazia parte 80 das produções de prazer, do gozo alegre de puro divertimento - da pirraça.” (REIS, 1984, p.12) De ilha a ilha, chegando a São Vicente, a Morna adquiriu uma característica jocosa, crítica, igualando-se à Morna da Boa Vista. Percebe-se uma evolução na música, mas as letras continuam afastadas das expressões artísticas boa-vistenses. Na Ilha do Fogo, tornou-se tão doce no ritmo, quanto áspera e inexpressiva na letra. Em Santo Antão, não tinha mais letra e sua melodia tornou-se muito triste (TAVARES, 1969, p. 18). Na Ilha Brava, ilha natal de Eugénio Tavares, a Morna recebeu sua valiosa contribuição, pois foi o poeta quem mais elevou esse gênero musical e lhe deu uma lírica até hoje inigualável. Moacyr Rodrigues afirma que, na Brava, “Eugénio Tavares fez modificações na Morna, novos temas e acordes foram introduzidos, próprios das formas musicais dos finais do século XIX, impregnando-as do romantismo português tardio” (RODRIGUES, 2015, p. 69). Das modificações que o gênero sofreu, na Brava, Eugénio Tavares explica que: “Na ilha Brava, onde os homens casam com o mar, a morna fixou os olhos no mar e no espaço azul, e adquiriu essa linha sentimental, essa doçura harmoniosa que caracteriza as canções bravenses. Elevou-se do riso ao pranto e afinou-se, amorosamente, pelo portuguesíssimo diapasão da saudade.” (TAVARES, 1969, p. 18). O mar, para o cabo-verdiano, firma-se como solução e fuga aos problemas do território insular. Para a sensação de isolamento gerada pela insularidade, que traz o “tumbeiro da opressão”, o mar propiciava a ligação com a terra distante e, com o mundo, como elo entre Cabo Verde e os demais países para os quais seus filhos emigravam. A temática sobre o mar é bastante recorrente e presente nas Mornas tanto de Eugénio Tavares como de outros poetas cabo-verdianos. Pelas características que a Morna assume nas diferentes ilhas, ora descritas como mais alegres, outras mais tristes, mais amoráveis; melancólicas em algumas, ou transformando o riso em pranto noutras, sentimentos que encontram correspondência na saudade e na nostalgia que ela tornou-se símbolo máximo da alma do cabo-verdiano. Nessa trajetória, “a Morna surge como um dos principais elementos da construção identitária nacional, em Cabo Verde, e valores como a melancolia, a tristeza, a saudade e a dor constituem o campo semântico dessa manifestação da cultura popular cabo-verdiana” (DIAS, 2004, p. 72). Se a cultura cabo-verdiana é produto de um encontro entre duas sociedades, mestiça em sua formação, a Morna, como importante instrumento de divulgação e afirmação da 81 identidade e da cultura cabo-verdiana, torna-se um símbolo sui generis dessa simbiose cultural. Por isso, ela: “É um dos patrimônios espirituais que simbolizam a resistência passiva do povo cabo-verdiano, desde a resistência dos seus antepassados para a conquista e afirmação da sua identidade até a luta contra as condições de uma vida agreste de um passado recente. Em síntese, é o canto saído da luta do povo das ilhas para a sua própria sobrevivência. Assim, originado desta força anímica, o canto-dança morna é uma forma de expressão tão forte que através dela todo o povo das ilhas, lá onde estiver, mais rapidamente se identifica.” (LIMA, 2001, p. 241). No cenário cultural e literário, a evolução da Morna contou com contribuição substancial do poeta, compositor e intérprete de Mornas Eugénio Tavares e do músico Francisco Xavier da Cruz (mais conhecido como B. Léza), autor de novos temas e novas expressões mornísticas. Eugénio Tavares foi grandiosamente reconhecido por intelectuais tanto da sua geração como da geração seguinte, que identificaram na Morna um instrumento privilegiado para narrar a vivência coletiva. Esse poeta contribuiu de forma importante para a divulgação da Morna enquanto patrimônio histórico-cultural cabo-verdiano. Considerado um dos maiores poetas da crioulidade, Eugénio se destacou, porque sempre retratou a alma do cabo-verdiano em suas Mornas. Para além de ter escrito grande parte da sua obra em língua cabo-verdiana- o crioulo - ele defendia ser este um elemento que caracteriza o ilhéu. Essa defesa residia no próprio ato de escrever de Eugénio Tavares, que, através da sua pena, demonstrou que a língua cabo- verdiana pode ser um meio para fazer literatura. Suas Mornas são o maior destaque da sua produção poética, por demonstrarem a sintonia entre “as solicitações profundas do seu mundo pessoal” e o “sentimento coletivo” (TAVARES, 1969, p. 11). Quanto ao músico B. Léza, considerado uma autoridade da música cabo-verdiana, quer como compositor quer como intérprete, suas Mornas constituem contributos valiosos para a reconstituição da história de Cabo Verde (LIMA, 2007, p. 3-5). Na sua forma de compor, B. Léza incorpora novas e audaciosas propostas, tanto do ponto de vista musical, quanto de ordem temática e semântica, ao mesmo tempo em que apresenta novos motivos musicais com outros valores culturais. Complementando essa informação, Genivaldo Rodrigues Sobrinho acrescenta que: “B. Léza introduziu na Morna de São Vicente o meio tom, rompendo com o andamento tradicional da morna boa-vistense e bravense, entrecortando-o com pausas e suspensão, técnica da música brasileira da época (samba e modinha). Todavia, foi preciso aguardar até o século XIX para que a morna despontasse como autêntica forma musical.” (SOBRINHO, 2017, p. 147). 82 Na evolução da Morna, a figura de B. Léza foi considerada significativa, pois ele constrói uma nova relação com os ouvintes, mas também colabora com o projeto dos “claridosos” de “fincar os pés na terra” cantar e exaltar a realidade cabo-verdiana. As Mornas que B. Léza compôs e cantou, ao longo de sua vida, retratam fragmentos, não só da vida como também da personalidade do povo cabo-verdiano, dos seus sentimentos, representando aspectos da mentalidade coletiva, elementos estruturais da sua história. Sendo “a Morna um texto com funções narrativas, líricas e descritivas, em que se combinam formas de expressão como o diálogo, o monólogo, a reflexão” (RODRIGUES & LOBO, 1996, p. 31), ela se firma diante dos valores ideológicos do cabo-verdiano e da sua forte ligação com a terra em que nasceu e com a qual se identifica. Segundo Mendes: “Isso, porque os cabo-verdianos são muitos apegados à terra, e estão rodeados pelo mar que os separa do resto do mundo. E sempre que saem de Cabo Verde levam consigo a saudade e a tristeza. Tal realidade arquipelágica fá-los sentir-se muito afastados e distantes do resto do mundo. Aí reside a nostalgia - uma das características da morna e que ao mesmo tempo é própria do cabo-verdiano, um ser melancólico pelo vivo desejo de tornar a ver a pátria, o país natal.” (MENDES, 2010, p. 37). A Morna, além de ser uma música nostálgica e melancólica, é uma das representações mais significativas da identidade cabo-verdiana, que une homens e mulheres espalhados em diferentes territórios fora do arquipélago. Ela é também uma expressão de resistência e do amor a essas ilhas crioulas, a essa terra em que nasceram e criaram raízes. Na Morna está presente todo um amálgama das tradições populares e da literatura cabo-verdiana, desde a descoberta das ilhas e durante o processo de colonização, que poetas, cronistas e narradores vêm buscando revelar, ao retratar o cotidiano dos cabo-verdianos, desde sua história cultural, social e política, chegando aos seus dramas existenciais. A Morna é a testemunha principal dessa realidade, é a mensageira dos sentimentos, vivenciados pelos habitantes das ilhas como a eterna saudade e a morabeza, - enraizados nesses povos atlânticos. 83 2. MORNA E POESIA “A morna tem a variedade duma pequena literatura, senão quanto às formas, quanto aos sentimentos”. (OLIVEIRA, 1931, p. 17). A Morna, enquanto gênero musical e poético é uma das mais genuínas criações da inventividade artística cabo-verdiana e aquela que possui o ônus de maior representatividade na literatura local, pois ela exprime o que de mais delicado e requintado as ilhas conseguiram criar como retrato da construção identitária cabo-verdiana, ao percorrer diferentes momentos da história cultural do país e envolver membros de diferentes setores da população. Os temas presentes e explorados na poesia e na prosa de ficção de diferentes gerações que constroem a literatura cabo-verdiana encontram guarida e possibilidade de execução através das mornas, que versam, preferencialmente, temas como o amor — em todas as suas vicissitudes, a saudade, a emigração forçada, a dor da partida e a alegria do regresso, o clamor da injustiça e da má distribuição das riquezas (DA CRUZ, 2006, p. 81). A história de Cabo Verde, enquanto construção de nação está intimamente ligada à sua história literária, uma vez que desde o século XVI já existia certo letramento no arquipélago. Já em meados do século XIX, o país passou a desenvolver um rico espaço literário, com a formação de uma literatura proto-nacional filiada às linhas de força do mar, da poesia, das histórias e contos de sabor popular, nas letras das Mornas e nos romances. Em suas abordagens sobre a literatura cabo- verdiana, Jorge Miranda Alfama (2006) reforça que, apesar das duras condições climáticas, nessas ilhas atlânticas formou-se uma literatura caracterizada pela nostalgia, pela saudade sem fim, que foi buscar sua inspiração no mar que rodeia as ilhas, no isolamento, na insularidade, na chuva, no milho e sua simbologia, nas estiagens. Através das páginas das obras literárias, conhece-se melhor o processo de construção da cabo-verdianidade e as particularidades que o caracterizam, como o papel da emigração constante do ilhéu, sempre ligada ao desejo de partir ou ficar, e a crioulidade, enquanto produto do caldeamento étnico e cultural de origem diversa que se processou nas ilhas (ALFAMA, 2006, p. 91). Recuando no tempo, torna-se necessário informar que a construção do sistema literário cabo-verdiano resultou de um processo de longa duração, cujos primórdios remontam à segunda metade do século XIX, como testemunham as obras de José Evaristo de Almeida (origem e data de nascimento e morte desconhecida), autor do livro O Escravo, considerado o primeiro romance de temática cabo-verdiana, publicado em 1856; e de Guilherme Dantas 84 (Brava, 1849-1888) e Antónia Gertrudes Pusich (1805-1883), que tiveram participação no Almanach de Lembranças Luso Brasileiro. Porém, há outros nomes mais destacados e reconhecidos, como Eugénio Tavares (1867-1930), que surge no final do século XIX, cultor e responsável pela consagração literária da Morna — gênero que ganha popularidade pelo seu lirismo amoroso com grande destaque na poesia. Também se destacou, naquela época, Pedro Monteiro Cardoso (1883-1942), poeta bilíngue natural da ilha do Fogo, que reivindicava o uso preponderante do crioulo, autor de Folclore Cabo-verdiano, cuja poesia enaltece a história da África. Destacamos, também, a figura de José Lopes (1872-1962) e de Januário Leite (1867-1930) (FERREIRA, 1977, p. 19-20; SPÍNOLA, 2004, p. 43). Essas primeiras manifestações literárias, em Cabo Verde, evidenciaram-se, nas diversas revistas, jornais e periódicos, nascidos antes e depois da geração dos nativistas ou geração de Eugénio Tavares. Com o surgimento da imprensa no arquipélago, em 1842, e a criação do Boletim Oficial de Cabo Verde, começa a haver nas ilhas uma impactante movimentação cultural, através de publicações, tais como crônicas, críticas, poemas e outras obras de teor literário, mostrando esforçado empenho dos intelectuais da época em organizar um ambiente cultural letrado. Além da imprensa, que tinha uma função informativa e um papel social, visto que era o principal meio de intercâmbio entre os habitantes das ilhas, o ensino, nessa fase, também teve fundamental importância para a constituição de uma literatura coesa que retratasse os anseios e as preocupações do povo cabo-verdiano (GARMES, 1999; p. 288; OSÓRIO, 1998, p. 110). Nos seus apontamentos sobre a literatura em Cabo Verde, Amílcar Cabral (1976, p.27) lembra que a poesia que se escrevia, naquela época (segunda metade do século XIX), era caracterizada por um desprendimento quase total do ambiente local, numa expressão poética que não correspondia com a realidade das ilhas e de sua gente. Esse era um reflexo da cultura clássica dos poetas daquela geração, adquirida, principalmente no Seminário de São Nicolau, que imprimia um aspecto formal na poesia, ou seja, o respeito sagrado à métrica e a submissão à rima. Ainda segundo Cabral (1976, p. 27), havia uma distância entre o povo e a realidade que viviam e esses poetas que pertenciam à elite. Enquanto os cabo-verdianos, nas letras da Morna, cantavam os seus sofrimentos e amores, os poetas da elite, que, embora sendo cabo- verdianos, criavam sonetos perfeitos para exaltar um sentimento qualquer, as belezas da 85 Grécia ou uma data célebre da História. Gabriel Mariano (1993) sai em defesa desses poetas esclarecendo que: “... eram poetas como da Metrópole [...] eles ainda não tinham ouvido a voz do Atlântico à roda das ilhas, não tinham entendido o desenrolar das estiagens sobre os nossos campos, não tinham chorado com o emigrante, não tinham, enfim, escutado os rumores das coisas simples da nossa Terra, como fazem os poetas de hoje e como ao menos o tentou Eugénio Tavares na sua lírica crioula.” (MARIANO, 1993, p. 11) Assim, enquanto na Europa os poetas já caminhavam rumo ao Futurismo, ao Expressionismo, ao Surrealismo e a outras manifestações artísticas da época, os poetas cabo- verdianos, devido ao isolamento que viviam nas ilhas, tornaram-se anacrônicos, permanecendo fiéis a estilos literários clássicos como o Romantismo, o Parnasianismo e o Arcadismo. Faz-se uma ressalva para algumas obras de Eugénio Tavares (ao cantar o ambiente da ilha Brava) e Pedro Cardoso (ao traduzir do crioulo quadras populares da ilha do Fogo) que buscavam em suas criações literárias retratar os valores específicos cabo-verdianos, estabelecer uma relação mais próxima e direta entre o poeta e a realidade em que estava inserido, além de buscar coerência no processo de afirmação da cultura nacional (LOPES FILHO, 1986, p. 4-6). Decorrido desse contexto, criou-se um consenso entre intelectuais e pesquisadores cabo-verdianos e estrangeiros, de que a moderna poesia cabo-verdiana surgiu em 1936, juntamente com a revista de artes e letras Claridade, criada pelos poetas Baltasar Lopes (São Nicolau, 1907-1989), Jorge Barbosa (Santiago, 1902- 1971) e os ficcionistas Manuel Lopes (São Vicente, 1907-2005), João Lopes (São Nicolau, 1894-1979) e Antônio Aurélio Gonçalves (1901-1984). Com o lema “fincar os pés na terra cabo-verdiana”, eles intensificaram uma interlocução com a literatura brasileira, especialmente a poesia, adotando parâmetros praticados pelos modernistas. Além dos autores acima citados, a revista acolheu outras gerações de poetas e escritores do arquipélago, “Estabelecendo uma marca divisória entre o passado e o presente da vida literária cabo-verdiana, a começar pelos próprios criadores da revista, que privilegiavam o aspecto dialógico da literatura e se preocupavam, sobretudo, em expressar de forma poética o sentir cabo-verdiano.” (DOS SANTOS, 2012, p. 116) Os claridosos, como se nomeavam os escritores desse período, vão encontrar na literatura do Realismo Nordestino brasileiro um modelo a seguir, como afirmaria Baltasar 86 Lopes: “Precisávamos de certezas sistemáticas que só podiam vir como auxílio metodológico e como investigação de outras latitudes” (LOPES, 1956, p. 5-6). A partir dessa nova visão, os idealizadores da revista Claridade afrontam o purismo da Língua Portuguesa e rompem com as formas clássicas da poesia quanto à rima, à métrica e aos gêneros literários. Eles incorporam o verso livre e o uso da língua cabo-verdiana — o crioulo —, clamando por uma poesia autêntica, que buscava afirmar a cabo-verdianidade. Os poetas e ficcionistas desse período, falavam dos temas que mais mobilizavam a população, como a situação econômica das ilhas, as constantes estiagens e o flagelo da seca, fenômenos que particularizavam o arquipélago, motivando a criação de muitos textos antológicos e, consequentemente, o enriquecimento temático da literatura. É importante perceber que, atualmente, o discurso poético dos autores cabo-verdianos caracteriza-se por uma diversidade de concepções estéticas e ideológicas sintonizadas com a poesia em todo o mundo. Na Antologia dos Novíssimos Poetas Cabo-verdianos — intitulada Mirabilis27- de veias ao sol —, o poeta e romancista Arménio Vieira comenta, a propósito da poesia daquele momento, que ela: “[…] abrange a diversidade de concepções estético-ideológicas e estilos, verificáveis nas diferentes oficinas aqui apresentadas […]. Tal é, aliás, reflexo da pluralista profusão de correntes, concepções e estilos estéticos, quiçá inovadores, no panorama da busca em que se encontra a Nova Poesia Cabo-verdiana das Novas do nosso tempo.” (ALMADA, 1991, p. 22). Assim era descrita a proposta estética dos claridosos, e frente a essa realidade literária, apresentar-se-á, nesse capítulo, a Morna e o diálogo que esta estabelece com a poesia tanto de Eugénio Tavares, considerado um dos maiores compositores desse gênero e do lirismo clássico em língua cabo-verdiana, como de outros poetas de diferentes gerações, que definem, caracterizam e discorrem sobre tal produção poética presente em suas obras. É de Simone Caputo Gomes a afirmação de que “a Morna, enquanto modalidade musical tem assumido um lugar privilegiado na literatura cabo-verdiana” (GOMES, 2008, p.150), e estabelece um diálogo com a poesia, com a prosa e com a dança, que a impactam e com os quais ela interage. Constitui-se, assim, um diversificado percurso no panorama literário crioulo, que levou poetas e ficcionistas a apresentarem a Morna ora como tema principal de suas obras, ora como um dos elementos que conferem a identidade cabo-verdiana aos seus textos. 27 Planta que nasce no deserto, símbolo da resistência. 87 2.1 Morna e sua expressão lírica Os poetas de Cabo Verde Estão cantando... Cantando os homens Perdidos na pesca da baleia. Cantando os homens Perdidos em aventuras da vida Espalhados por todo o mundo! Em Lisboa? Na América? No Rio? Sabe-se lá!... — Escuta. É a Morna... Voz nostálgica do cabo-verdiano Chamando por seus irmãos! (TENREIRO, 1942, p. 36-37) Foi “nos princípios do século XX, que poetas cabo-verdianos como José Lopes, Pedro Cardoso, Eugénio Tavares, Osório de Oliveira, Jorge Barbosa, dentre outros, começaram a caracterizar e a falar da Morna nos seus poemas” (RODRIGUES, 2015, p, 48). Esse período caracterizado, por um lado, pelo forte impacto do Romantismo, Naturalismo e Simbolismo; por outro, pelo Classicismo-renascentista europeu. Acrescente-se o fato de Cabo Verde ser ainda uma plataforma giratória, nas ligações entre os continentes e de, na produção desses poetas, rastrearem-se facilmente a influência do Romantismo brasileiro, inclusive, com citações diretas dos seus autores. A partir desses fatos, pode-se enquadrar a Morna, como metadiscurso nacionalista, a segunda grande característica do Romantismo, enquanto movimento, na poesia cabo-verdiana. Assimilada como um dos principais símbolos da nação cabo-verdiana, a Morna expressa inúmeros aspectos da cultura que se vive nas ilhas e, com base nos discursos construídos sobre ela, é possível investigar vários projetos de pertencimento elaborados por grupos sociais e culturais distintos. 88 Em entrevista, o poeta Filinto Elísio28 (2019) contribuiu com esta pesquisa, ao pontuar que a poética da Morna, na sua grande maioria escrita e falada em língua materna- a cabo-verdiana, “é esteticamente lírica, com figuras de estilo, como metáforas e comparações”, corporizando-se em uma poesia baseada, tanto nas emoções do autor como nas tradições culturais do arquipélago, ou seja, o “eu- poético” toma mão de diferentes estilos de linguagem para transmitir os seus sentimentos e as emoções presentes por trás das palavras. Do ponto de vista temático, acrescenta Elísio que “a Morna é plural e diversa, e centra-se na relação do ilhéu e do apego deste ao arquipélago, da saudade agravada pela insularidade e diasporicidade; pelo sentimento de amor e de perdas, o ápice da condição existencial” (ELÍSIO, 2019, p.1). Quanto ao processo evolutivo da Morna, um dos expoentes do cancioneiro cabo- verdiano se expressa de forma muito evidenciada, na poesia, em alguns casos entre popular e erudita, a exemplo, na obra Hespéridas, publicada em 1930, o poeta Pedro Cardoso recorre a mitos e lendas populares e constrói a Morna imprimindo-lhe um caráter oralizante numa simbiose perfeita entre a tradição e a erudição. Nesse contexto, percebe-se que a Morna passeia por diferentes tipos de artes como a dança, a poesia, a prosa, e por diversificados discursos construídos como o histórico, ideológico, religioso, político, cultural. A antropóloga Juliana Braz Dias informa que a Morna também vinha sendo construída por intelectuais locais como um dos principais símbolos da nação cabo-verdiana e que a “relação entre esse gênero musical e a formação de Cabo Verde como nação não é fruto apenas dos discursos produzidos pelos intelectuais sobre a Morna; é também parte do discurso da própria Morna” (DIAS, 2004, p. 49), ou seja, a Morna se auto-representa e se auto-define dentro dos diversificados contextos cabo-verdianos. Cabe ressaltar a contribuição da obra musical de artistas populares cabo-verdianos, quer como compositores quer como intérpretes, enquanto fontes orais da reconstituição histórica e cultural de Cabo Verde. Ainda de acordo com a pesquisadora Juliana Dias (2004, p. 50), “a proximidade entre os projetos elaborados por esses dois grupos distintos — músicos populares e intelectuais — torna-se mais evidente”. Toma-se, aqui, por exemplo, nos versos da Morna Sina de Cabo Verde, produto da parceria entre um músico popular (Jacinto Estrela) e um membro da intelectualidade cabo-verdiana (Gabriel Mariano) Sina de Cabo Verde Esta é que é a minha terra, é Cabo Verde, 28 Entrevista concedida em 11 de Maio de 2019 sobre “as características estéticas da morna” ( Via internet). 89 (O Senhor) Deus largou-a/deixou-a no meio do mar Navio de pedra busca o rumo Sem o poder achar no seu lugar. Oh mar azul abre-me o caminho, Falucho branco traz-me a minha carta Povo sagrado chora mansinho Cretcheu no peito, morna na boca. Se não chove, morre-se de sede. Se chove, morre-se afogado Gente sem sorte, não há remédio. Lamenta a tua sina, chora magoado. Essa que é minha terra é Cabo Verde, Terra de morna, de lua cheia. Terra de Eugénio e serenata, Onde o mar canta junto da areia. Essa que é minha terra, o Senhor Deus que me deu. Não existe lugar mais sabe no mundo inteiro, De sol mais quente, de luar mais brando, De mar mais doce no coração. (RODRIGUES & LOBO, 1996, p. 177) A Morna “Sina de Cabo Verde” confere à tradição oral cabo-verdiana um caráter culto, que reside no que se define como “semiose”, ou seja, a ação do signo de ser interpretada e que apresenta com perfeição o movimento auto-gerativo, pois a ação de interpretar o signo gera outro signo e, assim, infinitamente (SANTAELLA, 1995, p. 19 ). Essa perfeição semiótica apresenta-se a partir do título da Morna o qual se constitui como metáfora da assertividade, da assunção e do compromisso do ser cabo-verdiano, metáfora fundadora da auto-geração dos sentidos, significados e significações do “eu”, da enunciação simultaneamente individual e coletiva. Sina é signo que conota tanto o destino, como o caminho, a fatalidade; a própria definição de Cabo Verde, a sorte e o sentimento de pertencimento às ilhas (“à minha terra”) que é descrito através de uma série de atributos positivos: “Terra de Morna, de lua cheia”; “Não tem lugar mais sabe no mundo inteiro / De sol mais quente, de luar mais brando. / De mar mais doce [...]” os quais, em conjunto com os negativos, formam a antítese definidora por excelência de Cabo Verde. A antítese cria um sentido de tensão necessária à criação por sua vez do sentido de pertença e, sobretudo, de afetividade. 90 Essa Mise en abyme29 de significados é reforçada pela antítese definidora do ser cabo- verdiano, identidade forjada no humus contraditório da sua própria terra e pela natureza de clímax da estrofe que serve de refrão “Se não chove”, texto de cunho dramático que sucede a uma descrição de Cabo Verde, “terra largada pelo Senhor Deus no meio do mar”, em que o “eu-lírico” acusa o “abandono superior”, ou seja, essa minha terra indestrutível e lutadora que busca um rumo no meio do mar, que não encontra seu lugar. Em “Sina de Cabo Verde”, o mar enquanto elemento personificado que “canta junto da areia” faz parte da iconografia metafórica tanto da cultura como da literatura cabo- verdiana. O terceiro momento do texto corresponde à quarta estrofe, num ato de abrandamento de tensão dramática anterior, reiterando a direção semântica apontada desde o título: o ato de amor por Cabo Verde na repetição “Essa que é minha terra” reforçada pela morfossintaxe do possessivo (minha) e pelo determinativo de Morna, de lua cheia, e intensificação da experiência afetiva levada ao indescritível com o adjetivo sabe30. É importante frisar que a Morna ganha lugar de destaque, não só como o canal para transmissão da mensagem, mas também como seu próprio objeto; assim afirmava o professor, antropólogo, romancista cabo-verdiano João Lopes: “a nossa Morna como elemento folclórico tem profundas raízes na nossa psicologia e todo seu andamento traduz um sentir próprio do povo cabo-verdiano” (LOPES FILHO, 2007, p. 114). Logo, a Morna é um veículo de transmissão das tradições psicossociais e culturais cabo-verdianas e é importante que se ressaltem os fatores que estabelecem sua relação com outros gêneros, como a música, por exemplo. Conforme Germano Lima, a participação ativa de músicos populares cabo-verdianos como compositores ou como intérpretes na produção de canções, nas quais a Morna se torna um veículo de exaltação do arquipélago, encaixa suas obras no propósito de “fincar os pés na terra”. Elas constituem contributos valiosos para a reconstituição da história psicossocial e cultural das comunidades a que pertencem o que nos permite perceber que: “A história psicossocial e cultural de Cabo Verde tem de ser feita contando também com as suas obras musicais, na medida em que os poemas, as melodias e as 29 Termo francês que costuma ser traduzido como "narrativa em abismo", usado pela primeira vez por André Gide ao falar sobre as narrativas que contêm outras narrativas dentro de si. Mise en abyme pode aparecer na pintura, no cinema e na literatura. 30 “Sabe”- numa ilhas, “sabi”, noutras. Termo que em língua cabo-verdiana significa algo “gostoso, prazeroso, delicioso, saber bem, saboroso", também conceituado como um momento ou atividade que dá prazer ou alegria. 91 coreografias das suas composições representam facetas do passado psicossocial e cultural das ilhas.” (LIMA, 2007, p. 3) Imbuídos desse propósito de “fincar os pés na terra”, historiadores, compositores e intérpretes da música cabo-verdiana guardam e transmitem, por via da oralidade, elementos do passado psicossocial e cultural de Cabo Verde. Nomes como o do poeta Eugénio Tavares e dos músicos Francisco Xavier da Cruz (B. Léza); Jorge Monteiro, conhecido como (Jótamon); Armando Antônio Lima (o Lela de Maninha); Manuel de Jesus Lopes (Manuel d’Novas) marcaram esse período, pois, segundo Simone Caputo Gomes (2008, p. 150), “já demonstravam o intercâmbio existente entre poesia e música nas suas mornas interpretadas por Cesária Évora, Titina, Celina Pereira, Arlinda Santos”. Muitos outros artistas também avultam como obreiros cuja obra mornística fornece elementos relevantes para a reconstituição da história cultural cabo-verdiana. Nessa literatura, o mar figura como tema, frequentemente abordado, muitas vezes personificado nos versos das Mornas: “Essa que é minha terra [...] onde o mar canta junto da areia” (RODRIGUES & LOBO, 1996, p. 177). Nas ilhas, o cabo-verdiano procura o isolamento para poder monologar com o mar, que é construído como um valor não apenas nos discursos sobre a Morna, mas também no discurso da própria morna. Esse mar que se apresenta ora como interlocutor, ora como confidente, é conotado quase sempre com a saudade, a tristeza e o sofrimento, sentimentos recorrentes no pensamento do ilhéu, que decorrem do desejo de estar em sua terra-mãe. Conforme Inocência Mata (2008), é na observação do mar onde o poeta cabo-verdiano encontra alento, e acrescenta: “ É do mar que lhe vem elementos para a construção do locus amoenus do espírito, através do qual são compensadas as angústias da vida em terra firme, seja por causa da estiagem, da rotina opressiva do cotidiano ou dos constrangimentos sociais.” (MATA, 2008, p. 452). Dessa forma, o canto da Morna veicula uma mensagem que é o reflexo da inquietação do poeta frente a esse “mar azul, como é na realidade o das ilhas, com suas ondas que rolam na areia ou em pleno oceano, encavalitando-se umas nas outras” (RODRIGUES, 2015, p. 159). Nas suas indagações sobre o mar, Bachelard (1997) ressalta que: 92 “O mar propicia contos antes de propiciar sonhos. [...] Sem dúvida os contos acabam por juntar-se aos sonhos; os sonhos acabam por alimentar-se dos contos. [...]. O Mar é fabuloso porque se exprime primeiro pelos lábios do viajante da mais longínqua viagem; isto porque o herói dos mares sempre volta de longe, volta de um além; nunca fala da costa.” (BACHELARD, 1997, p. 159). O mar é uma das maiores riquezas do cabo-verdiano, em toda sua plenitude; é o símbolo por excelência da vida, da sobrevivência; tudo sai do mar e tudo retorna a ele, que traz de volta a terra o pescador que aporta o peixe, o emigrante que regressa trazendo alegria e esperança aos entes queridos. Por isso, o mar é o lugar que simboliza as transformações e os renascimentos das realidades: ora pelas incertezas e dúvidas, ora pela indecisão, ele simboliza o estado transitório da vida. Ao ritmo da Morna que embala as composições poéticas, os escritores mostram “o drama do mar, o desassossego do mar” e a força que o mar tem na vida dos cabo-verdianos. “O mar está tão vinculado à história das ilhas, que parece fazer parte da mundividência das suas gentes e, não por acaso, está sempre presente na música, na poesia, na prosa de ficção, na literatura em geral e, naturalmente, na produção historiográfica cabo-verdiana” (Évora, 2014, p. 101). A relação do cabo verdiano com o mar se dá de forma bastante natural, pois, desde muito cedo, o ilhéu já ouve as histórias relacionadas com o mar, contadas pelos mais velhos, pelos avós, repassadas de pais para filhos e testemunhadas na literatura e no canto da Morna. Desde os contos orais tradicionais até a literatura escrita, o mar surge ora como caminho para as descobertas da solução para alcançar diferentes objetivos, ora como um valor, pois é dele e de suas ondas que vem o ritmo e a melodia da Morna. Nesse sentido, a Morna conduz o ilhéu a um escape lírico, a um devaneio com o além- mar, a uma fuga do real, a uma aventura onírica da viagem para a “terra-longe”. Ela representa um sentimento de nostalgia que reflete a inquietação do cabo-verdiano frente às adversidades da vida, incluindo o poeta, e traduz o anseio do longe, do distante. Representa desse modo, a libertação e a fuga para outra dimensão, o que leva Manuel Ferreira a questionar: - Até que ponto o homem crioulo não transferiu o seu sofrimento social para a dor da Morna amorosa? Até que ponto o lamento da Morna não é uma atitude mítica? (FERREIRA, 1973, p. 183). Essa poesia sentimental lírica, de temas envolventes e quase sempre apaixonados, é um ícone da identidade do povo cabo-verdiano. Desde nossa epígrafe, essa “voz nostálgica do cabo-verdiano” é objeto de variadas definições, porém é importante frisar que, além de representar uma das principais marcas da identidade crioula, ela constitui um expoente do lirismo literário de Cabo Verde. Para defini-la, é preciso passar, obrigatoriamente, pela leitura 93 dos textos e pela compreensão do contexto histórico-social em que ela foi escrita. É importante conhecer a história cultural dessas ilhas, para que se possa compreender a Morna, “ligando-a ao todo e ao particular, ao social e ao ideológico, o que o tornará verdadeiro e credível, e sua especificidade reside na sua natureza, estrutura e objetivos” (RODRIGUES & LOBO, 1996, p. 21-22). Interpretada como fonte para diferentes leituras da história do povo cabo-verdiano, a Morna contribui para a construção de uma memória coletiva, que também cria suas próprias omissões, silenciamentos, exclusões e marginalizações. Para Antônio Aurélio Gonçalves (1955, p. 173), é “incontestável que, em muitos e muitos exemplos, a Morna atinge beleza notável. Por muitas das suas qualidades, pela sua delicadeza, pela inesgotável variedade dos seus motivos, ela tem probabilidades de poder ser considerada a parte mais rica do nosso folclore”. Seus elementos nascem da vontade do poeta de expressar as marcas identitárias que unem os habitantes do arquipélago e os cabo-verdianos da diáspora. A poesia e a musicalidade dos versos trazem à tona os sentimentos do fundo da alma do povo, ou seja, a manifestação de sua alegria e dor, da incerteza ou da esperança. Todos esses elementos estão presentes no poema intitulado “A Morna31”, de Pedro Cardoso, que a define como: Flor de duas raças tristes, Vindas da selva e do mar Que a sós se acharam um dia Na mesma praia ao luar. A morna, verbo ou cantiga, A quem saiba sentir, Trava ao gosto doce-amargo, De delícias punir. A morna quem a inventou Foi um poeta de aquém Mar, Numa tarde roxa e amena Ouvindo a onda murmurar. Na sua morna cadência Canta a mágoa e a alegria, Dos éstos da Alma Crioula É a rubra sinfonia. A morna é a flor mais linda Do canteiro Hesperitano! Pelo amor das jardineiras, 31 Poema de Pedro Cardoso transcrito de RODRIGUES SOBRINHO, Genivaldo. Eugénio Tavares: retratos de Cabo Verde em Prosa e Poesia, 2017, p. 178-179. 94 Fez-se a Rosa de todo o ano. Pelo ritmo em ameno encanto E o primor das cantigas; Desponta e floresce em beijos Na boca das raparigas. A morna nasceu de um beijo De cálidas vibrações Numa só fundindo as almas De uma Bárbara e um Camões! Essa Morna, pela sua natureza lírica, serviu aos propósitos da escrita romântica de Pedro Monteiro Cardoso, que apresenta a “morabeza”, um sentimento, muitas vezes evocado no processo de construção da cabo-verdianidade: o ser alegre, amorável, amigável, acolhedor, mas que também é triste, saudosista e melancólico, sentimentos nostálgicos próprios do cabo- verdiano e de uma elite letrada do final do século XIX, cuja produção se estendeu até aos anos 50 do século XX. Definida como resultado de uma cultura luso-tropical (“flor de duas raças tristes”) percebe-se, nessa Morna, que o “eu- lírico” toma de empréstimo elementos da poesia romântica brasileira da primeira geração, ou seja, a busca da identidade nacional, da exaltação da natureza e retorno ao passado; mas, sendo produto único e singular, revela as características contraditórias dos éstos da Alma Crioula (v.15), na “Rosa de todo o ano” (v. 20), na estrutura popular resgatada pelo Romantismo (quadra, versos oscilando entre as cinco e seis sílabas populares orais, rima cruzada) e tipo de metáforas. A Morna simboliza elementos culturais das tradições africana e europeia, caldeada ao longo de um complexo processo histórico. Essa realidade é ilustrada no poema de Pedro Cardoso, de 1942, numa perspectiva claridosa, isto é, modernista e realista; é abordada num jogo intertextual no poema “Povo”, de Jorge Barbosa (1935), em que as características dessas duas “raças” são também evidenciadas: Conflito numa alma só De duas almas contrárias Buscando-se, amalgamando-se Numa secular fusão; Conflito num sangue só Do sangue forte africano Com o sangue aventureiro 95 Dos homens da Expansão; Conflito num ser somente De dois pólos em contacto Na insistente projecção De muitas gerações. N’alma do povo ficou Esta ansiedade profunda - Qualquer coisa de indeciso Entre o clima tropical E o espelho de Portugal... (BARBOSA, 1935, p. 32-33). A Morna torna-se, assim, um dos principais símbolos de Cabo Verde e constitui-se como “a expressão máxima da dor e do sofrimento: da dor física da época da escravatura e do sofrimento psicológico da partida e da ausência devidas à emigração” (CARDOSO, 2007, p. 96). Nesse sentido, a Morna é a configuração dessas características do povo ilhéu. A referência a essas “duas raças tristes / Vindas da selva e do mar” revela que “a história de Cabo Verde se confunde com a epopeia do mar que, em diferentes conjunturas, desempenhou papel de relevo para a afirmação das ilhas no Atlântico e no mundo” (ÉVORA, 2014, p. 102). Foi por via do mar que chegou a essas ilhas uma multiplicidade de povos, de diferentes paragens, culturas, grupos étnicos, percursos históricos, trazendo em suas bagagens os ingredientes que viriam a determinar uma cultura cabo-verdiana própria, conhecidamente denominada de crioula. Nos versos: “A Morna é a flor mais linda / do canteiro Hesperitano!”, o eu-poético traz em cena um antigo mito proveniente da Antiguidade Clássica32, denominado “hesperitano” ou “arsinário”. O conhecimento sobre esses mitos foi adquirido no Seminário de São Nicolau e eram abordados pelas correntes românticas e ultrarromânticas, parnasianas e simbolistas, como se pode constatar, também, nas poesias de Eugénio Tavares, José Lopes, Guilherme Dantas, Januário Leite, entre outros poetas hesperitanos, arsinários e claridosos. Enquanto Pedro Cardoso compara a Morna ao canteiro de suas Hespérides (1930) e Jardim das Hespérides (1926) às voltas com os mitos greco-latinos, o poeta Jorge Barbosa (1902-1971) refere-se à Morna em alguns de seus poemas como: [...] 32 Trata-se de um mito de que no Atlântico existiu um imenso continente que recebera o nome de Hespério, e as ilhas de Cabo Verde seriam as Ilhas Arsinárias, de Cabo Arsinário, nome antigo de Cabo Verde recuperado da obra de Estrabão (LARANJEIRAS, 1995, p. 181). 96 Canto que evoca Coisas distantes Que só existem Além Do pensamento, E deixam vagos instantes De nostalgia Num impreciso tormento Dentro de nossas almas... Morna Desassossego, Voz da nossa gente, Reflexo subconsciente Em nós Das vagas ao longo das praias; Das aragens Que trazem um sorriso bom Às equipagens Dos barquinhos à vela [...] Musicando rapsódias em surdina Nos tectos das casas pobres (BARBOSA, 1935, p. 30-31) Para Jorge Barbosa, tanto a Morna como o cabo-verdiano possuem forte ligação com o arquipélago. O poeta se refere ao canto como a voz de sua gente, uma voz que ecoa sentimentos relativos à distância e à nostalgia, tão marcantes no ilhéu. Sua temática centra-se nas realidades étnico-sociais e culturais de Cabo Verde, como o mar, as rochas e a luta do cabo-verdiano frente às adversidades climáticas. O mar mencionado na poesia de Jorge Barbosa é um símbolo que evoca uma das características mais marcantes da sociedade e da cultura cabo-verdiana: a insularidade, que, numa primeira instância, conforme Maria Teresa Salgado (2009, p. 164), “pode ser apreendida a partir do isolamento geográfico e existencial experimentado pelo ilhéu, da solidão daí decorrente, que encontra ecos e desdobramentos na humana condição em qualquer parte do globo”. Esse sentimento de solidão e de nostalgia que o cabo-verdiano experimenta face ao isolamento imposto pelo mar, que separa as ilhas do arquipélago do resto do mundo, provoca no ilhéu um estado de angústia e de ansiedade que o leva a sonhar com outros horizontes além-mar. Para o povo dessas ilhas, o mar está em tudo. É o que sugere o próprio Jorge Barbosa, em seu “Poema do Mar”, publicado em 1941, no livro de poesia intitulado Ambiente: 97 O Mar Dentro de nós todos No canto da Morna No corpo das raparigas morenas Nas coxas ágeis das pretas No desejo da viagem que fica Em sonho de muita gente. Este convite de toda a hora Que o Mar nos faz para a evasão! Este desespero de querer partir E ter de ficar! (BARBOSA, 1941, p. 30) Jorge Barbosa é considerado o poeta do mar e o pioneiro da moderna poesia cabo- verdiana. Nesse poema, o autor apresenta os vários “sememas” do signo mar, como: desejo, viagem, evasão, desespero. O poeta quer mostrar que o mar está no homem, na alma, no corpo, nos movimentos; que dá voz ao ideal da “terra-longe” e do “querer bipartido”; que impregna e espraia-se “No canto da morna, / no corpo das raparigas morenas”, explode “nas coxas ágeis das pretas” e no “desejo da viagem que fica”. Por isso, o sujeito-lírico afirma que o mar está presente em tudo e em todos, e reafirma: “está dentro de nós todos”. O mar é o meio que liga Cabo Verde a diferentes povos e nações e que inspira o cabo- verdiano à emigração, a buscar a “terra-longe”, a terra “prometida”. Para o eu-poético, o mar é drama, mas é, antes de tudo, esperança, uma vez que une os cabo-verdianos que partem do arquipélago e os que permanecem nas ilhas. Associado à problemática da partida e do regresso, o mar, assim como outros elementos da natureza, mais do que um objeto a ser descrito é, sobretudo, um tema que se pretende pormenorizar, em termos de essência, de pensamento e não de coisa. Conforme Santilli (2007, p. 2), “o mar surge, na poesia cabo-verdiana, representando, na busca pelas especificidades da jovem nação, a liberdade e a esperança, como também a alusão à tristeza, ao desterro e à percepção de uma sina”. O mar está ligado à saudade, ao sofrimento, ao isolamento, à tristeza, e funciona como metonímia do constante desejo do cabo-verdiano de estar na sua terra. O mar que separa é o mesmo que liga. Assim, está expresso na letra da Morna de B. Léza: “A separar-nos o mar e a ligar-nos também. Ó mar, assim severa é a minha dor” (RODRIGUEZ, 2015, p. 153-154). 98 Conforme o antropólogo cabo-verdiano João Lopes Filho, “O mar é responsável pela insularidade, mas também pela viagem, o que implica emigração e evasão, tendo em conta que, até há poucas décadas, era através dele que se podia sair da terra, voltar ou permanecer no estrangeiro (LOPES FILHO, 2007, p.25)”. Pelo mar, pode perceber-se que a distância norteada pela ausência da terra (emigração) não é uma distância que separa, mas uma distância que une. Para Vasco Martins (1988): “O Mar, elemento mais constante e misterioso da ilha, e que dá a possibilidade de partir ou de pura evasão, é também uma fonte de inspiração para a poesia mornista. [...] O mar evoca quase sempre uma coisa desconhecida, misteriosa e dramática, e que produz evocações da morte.” (MARTINS, 1988, p. 91). Cabe lembrar que os poetas que escrevem sobre a Morna, em geral, fazem referência a uma diversidade de temas que configura a realidade histórico-cultural das ilhas, características postas na morna-poesia de Jorge Barbosa intitulada “Irmão”. A Morna é caracterizada no texto como instrumento de comparação e de referência telúrica ao mar que abraça a terra, ao mesmo tempo em que retrata uma radiografia do drama social do homem cabo-verdiano: [...] A Morna... Parece que é o eco em tua alma Da voz do Mar E da nostalgia das terras mais ao longe Que o Mar te convida. O eco Da voz da chuva desejada, O eco Da voz interior de nós todos. Da voz de nossa tragédia sem eco A Morna... Tem de ti e das coisas que nos rodeiam A expressão da nossa humildade, A expressão passiva do nosso drama, Da nossa revolta Da nossa silenciosa revolta melancólica! [...] (BARBOSA, 1941, p. 19) Várias linhas temáticas são abordadas nesse trecho do poema: os dramas sociais sempre relacionados com a escassez de água, de alimento, de trabalho, com as grandes 99 estiagens que geram a fome e a falta de esperança no futuro, com as secas e com o terra- longismo geográfico, nostálgico e melancólico. Nota-se, também, o tom de denúncia, que é uma das principais linhas de força na poesia de Jorge Barbosa. Frente a essas situações com as quais, diariamente, o povo cabo- verdiano tem que lidar, ele faz surgir, no sujeito poético, uma espécie de frustração, de impotência, de resignação, que o eu lírico denomina de “nosso drama”, sentimento que se traduz em uma “silenciosa revolta melancólica”, fruto de uma “expressão passiva” que reproduz o “eco da alma” do irmão cabo-verdiano, que se torna o “eco da nossa própria alma”. A poesia cabo-verdiana recebe também a contribuição de mulheres que, ao longo dos tempos, vêm construindo uma tradição literária que tem se destacado e cresce a cada dia. Suas obras vêm buscando, insistentemente, a própria identidade feminina, uma consciência nacionalista suficientemente desenvolvida, que, por muitos séculos, ficou escondida e foi até mesmo massacrada pelos representantes do sexo masculino, pela ideologia patriarcal associada à opressão advinda do colonialismo. Conforme Pires Laranjeira (2006, p. 31-32), embora “a literatura de cada colônia (Angola, Moçambique, São Tome e Príncipe, Cabo Verde e Guiné-Bissau) tenha evoluído, na sua forma escrita, desde o século XIX, [...] até os anos 50 do século XX, as mulheres são uma minoria ainda mais extrema do que a extrema minoria dos intelectuais”. Contudo, convém afirmar que, desde meados do século XIX, a literatura cabo- verdiana tem recebido valiosa contribuição feminina, a partir da escritora e poeta Antónia Gertrudes Pusich (1805), uma das primeiras poetisas africanas a colaborar no “Almanach de Lembranças Luso Brasileiro”, passando por Ana Procópio (1873), Maria Luísa de Sena Barcelos (1893), Ivone Aida Ramos, Orlanda Amarílis e Yolanda Morazzo; a escrita dessas mulheres vai pouco a pouco tomando um espaço no contexto literário cabo-verdiano. Outras escritoras se destacaram, entre 1930 a 1960 do século XX, como, Leopoldina Barreto (1937), Fátima Bettencourt e Maria Margarida Mascarenhas (ambas de 1938), Alice Wahnon Ferro (1940), Dina Salústio (1941), Arcília Barreto (1945), Ana Júlia Sanca (1947), Luísa Queirós (1948), Maria Madalena Silva (1951), Vera Duarte (1952), Alzira Cabral (1955), Ana Paula Martins T. de Carvalho (1957) e Helena Regina R.M.Teófilo (1959). Na atualidade, a produção literária feminina cabo-verdiana traz à cena uma diversidade de temas que revelam as experiências de vida, os dilemas existenciais, 100 preocupações diárias, as lutas e conquistas de mulheres sem nome, sem voz; as anônimas, mas que trazem no cotidiano experiências que são retratadas em diferentes realidades. Poetisas, cronistas, ficcionistas (contistas e romancistas), estão enquadradas em todos os gêneros literários, e essa visibilidade e a voz das mulheres é aqui representada pela escritora e ensaísta cabo-verdiana Carlota de Barros (2011), que escreveu o poema “Mornas”, definindo-o como “Encanto de um povo”, comparado a “uma melodia suave”, igual à “chuva miudinha na telha” (BARROS,2011, p.18) A temática da chuva sempre teve uma conotação especial, constituindo-se como elemento essencial para a sobrevivência do cabo-verdiano; a chuva também desempenha um papel de relevo na poética, nas narrativas e na literatura cabo-verdiana. Acompanhando o estado de alma dos poetas, a chuva que não vem reflete certa melancolia. Por isso, o poeta Jorge Barbos,a em seu poema “A Terra”, pontua: “Se não cai a chuva, / [ocorre] o desalento, a tragédia da estiagem [...] uma dor profunda”, e lamenta: “Ai o drama da chuva, ai o desalento, o tormento da estiagem” (BARBOSA, 1935, p.23-24). Mas, quando cai, a chuva é louvada e festejada, pois traz aos cabo-verdianos momentos de fartura e de alegria. Assim, ela foi cantada e celebrada na “Morna” de Ovídio Martins: [...] Choveu Festa na terra Festas nas ilhas Já tem milho pa cachupa já tem milho pa cuscus Nas ruas nos terreiros Por toda banda As mornas unem os pares Nos bailes nacionais Mornas e Sambas Mornas e Marchas Mornas mornadas [...] (MARTINS, 1963, p. 44-45). A chegada da chuva, em Cabo Verde, sempre foi uma festa, uma alegria, pois ela é o símbolo, por excelência, da fartura e da vida. Para o poeta, as Mornas são as testemunhas concretas dessa alegria nacional que se espalha em todas as ilhas, que alimenta o desejo amoroso, que “unem os pares / Nos bailes nacionais”. Para o cabo-verdiano, a chuva é comparada a um tesouro e a água representa o renascimento, a ressurreição para a vida; sendo 101 escassa ou abundante, a chuva é sempre um elemento que fertiliza a terra. Ela proporciona ao homem do campo a felicidade e a prosperidade, por isso ela merece ser louvada e festejada. Desde a geração de poetas e ficcionistas da Claridade até aos dias atuais, a chuva tem sido um leitmotiv da poesia e da ficção cabo-verdiana de que nenhum dos seus escritores pôde escapar. A lírica de Carlota Barros canta e exorta a chegada da chuva, nas ilhas, através da Morna, que retrata esses momentos de festa. Em “Recado para as ilhas”, a autora canta a chegada da chuva nesses termos: Chegou a chuva [...] E com ela, o verde, e o rosa, os azuis. [...] Trazem de comer E beber Para todos Há sons de timbales que passam [...] Violões Rabecas Clarinetes E cavaquinhos Ensaiam Mornas Coladeiras E funaná As gentes dançam batuque e mazurca E lá vem a contradança Também porque as ilhas são verdes E a chuva chegou... (BARROS, 2011, p. 23) O eu-lírico, além de festejar a chegada da chuva, apresenta uma variedade de atributos positivos que ela produz: a paisagem colorida de verde, rosa e azuis; o “comer / E beber / Para todos”, acompanhado dos sons das festas com seus instrumentos e suas danças: “Mornas / Coladeiras / E funaná”. É necessário salientar que, na literatura cabo-verdiana, especialmente na poesia, os escritores buscam pensar nos problemas de Cabo Verde, nas secas cíclicas que assolam o arquipélago, instalando um clima de lamento e tristeza, bem como de miséria que conduz à morte. Por isso, esses poetas abordam o tema da chuva numa perspectiva dialética, ou seja, a morte e a miséria causada pela falta da chuva, ou de sua chegada, como símbolo da alegria, da fé e da esperança para o cabo-verdiano. 102 Em outro poema, intitulado “Morna”, Carlota de Barros apresenta uma diversidade de temas, como o lugar, o ambiente socioeconômico e a condição social do povo, retratados e correlacionados com o mar. Para a autora, a Morna está associada às ilhas e à realidade do seu povo: A Morna [...] É o eco silencioso da nostalgia, De um povo pobre. Morna Melodia de amor Esperança e saudade De um povo simples Náufrago nas ilhas Que Deus sonhou e povoou. Morna Doce canto do ilhéu Na valsa lenta das ondas Voz de um povo de poetas A namorar o mar Morna Carícia nua No coração da nossa terra Pobre e desflorida (BARROS, 2011, p.18) Para o sujeito poético, a morna é o “eco silencioso da nostalgia”, é a “Melodia de amor / Esperança e saudade” de um povo caracterizado como “pobre”, “simples” e de “poetas”, que nessas “ilhas Deus sonhou e povoou”. É importante notar que a religiosidade é uma característica marcante no povo cabo-verdiano e a crença em Deus e na providência divina é sempre retratada como a solução dos problemas. Os autores cabo-verdianos formularam as suas imagens sobre a religião a partir do quadro mental português, profundamente marcado pelas transformações ideológicas, políticas, sociais e culturais do Iluminismo Católico. Desde o povoamento de Cabo Verde, dessas “ilhas que Deus sonhou e povoou”, a Igreja Católica surge como mantenedora da fé, das crenças e dos valores cristãos, que passados de geração em geração, assume-se como a primeira instituição de relevância no arquipélago que “assentava as bases de toda a ordem moral e social da época” (LOPES FILHO, 1996, p.180). 103 Conforme Antônio Carreira (1983), a cristianização da população das ilhas se deu com a imposição da fé e, com ela, a ação evangelizadora iniciada nos primeiros anos da década de 1460. Nessa época, a Igreja Católica, insuflava, no espírito do escravizado, valores e costumes das tradições católicas portuguesas, provocando o “desaparecimento de muitos costumes e comportamentos de feição africana” (CARREIRA, 1983, p. 466). Nesse contexto, assim como o poeta está preso a suas raízes, ao sagrado e ao profano, a Morna está presente, no cotidiano do cabo-verdiano, como se pode constatar no poema “Baile” de Jorge Barbosa: No baile A morna Entorna Dolências... O rabequeiro Compassa A música, Batendo a planta descalça No chão. Os pares Giram Apertados Uns contra os outros, Levados Na morna... [...] A um canto, A preta sadia Amamenta Uma criança luzidia, Toda nua e sorridente. E olhando-a aumenta O seu sorriso contente Num ar feliz Que faz lembrar Virgem Maria Quando Ficava olhando Cisto-menino... Que o filho que traz ao peito É para ela Um pequenino Jesus, Todo esculpido Em ébano Polido... 104 No ambiente O cheiro Forte O suor, Mais o aroma Da Aguardente No baile A morna Entorna Dolências. (BARBOSA, 1932, p. 56-57) Jorge Barbosa retrata uma cena do cotidiano cabo-verdiano, um baile, fazendo alusão ao submundo do Porto de São Vicente, no qual estão presentes homens e mulheres simples, de todas as categorias sociais, uma mãe “preta e sadia” que, em um canto da casa, amamenta uma criança de “ébano polida”, remetendo ao retrato da “Virgem Maria” com o seu Menino Jesus. Como a Morna é uma dança de sala, o sujeito poético traz à cena os pares que dançam em uma sala de terra batida, de paredes caiadas, que têm o cheiro forte de suor e aguardente. É um retrato do cotidiano cabo-verdiano em que o autor apresenta uma estética poética derivada do relacionamento do sujeito com o espaço em que ocupa: a ilha. E a Morna, que é parte integrante das festas e bailes, surge como testemunha desse cenário simples das ilhas e de sua gente. Importante é pontuar que, a partir dos anos 20 e 30 do século XX, conforme Osório de Oliveira33, a Morna sempre fez parte integrante das festas e dos bailes em Cabo Verde. “[…] dos chamados “bailes nacionais” em que cantam e dançam mornas […]. Como a morna é uma dança de sala, aqueles bailes apesar de populares, não se realizam num terreiro, mas sim, dentro de casa. Promovem-nos, geralmente raparigas do povo, costureiras e criadas de servir, mas tomam parte neles homens e rapazes de todas as categorias sociais, tão democráticas é a maneira de ser dos cabo-verdianos.” (OLIVEIRA, 1931, p. 79). Tanto no passado como no presente, em situações festivas ou tristes, a Morna sempre foi cantada e dançada. Atualmente, ela é sinônima de música universal, conhecida dentro e fora de Cabo Verde, encontrada em festividades diversas como nos casamentos e batizados, nas partidas e chegadas do emigrante. 33 “Posfácio Alheio”; in Eugénio Tavares; Mornas: Cantigas Crioulas; Lisboa; 1931. 105 Em “Dois poemas ao mar”, de Arnaldo França (2010), a Morna tem papel fundamental na construção da partida e da recordação como valor: Partir, Deixar a ilha tão pequena Que o vento nômade Bafeja E as ondas do mar Rodeiam. [...] Deixar na terra o canto de uma morna Que o emigrante Recorde. Fugir, Deixar no mar o sulco branco Da hélice do vapor, Que as vagas mansas Apaguem... Nos olhos a saudade retratada Da distância percorrida. Noites de vigília Sonhando a distância longínqua Do caminho por andar. (FERREIRA, 1997, p. 138) O tema da partida, na poesia cabo-verdiana, é constantemente recorrido em diferentes autores. Na poesia de Arnaldo França, o “eu-poético” afirma que esse “desejo de partir, de deixar a ilha” cria a nostalgia naqueles que ficam e a resignação nos que partem para países distantes, levando recordações expressadas através da Morna. E o mar constitui-se num caminho que o ilhéu deve percorrer, numa imagem criadora da evasão, do “deixar a terra”, do “fugir” para um destino, muitas vezes desconhecido. Para o cabo verdiano, o “partir”, numa percepção semiótica, representa a busca para a sobrevivência. Ao lado da dor da partida, outro sentimento valorizado pela literatura cabo-verdiana é a saudade, enraizada nas Mornas como sentimento inevitável da experiência de quem emigra, de quem parte. Para o poeta Teobaldo Virgínio, a Morna é: Saudades dispersas Na brisa que passa Na noite que chora Na aurora que sorri No mar que brama 106 Na flor que perfuma Na mágoa que mata Na Morna da nossa vida. (FERREIRA, 1997, p. 276). Nessa Morna-poesia, Teobaldo Virgínio presentifica a saudade, esse sentimento melancólico de incompletude, ligado pela memória de privação da presença de alguém ou de algo, afastamento de um lugar ou de uma coisa. Para o sujeito lírico, a saudade se manifesta “na brisa”, “na noite”, “na aurora”, “no mar” e “na flor”, como também “na mágoa que mata” e na “Morna de nossa vida”. Como não associar o tema da saudade às terras cabo-verdianas, às ilhas, ao sentimento de morabeza, à sua gente simples, aberta, cordiais, às canções e danças populares, às expressões identitárias da miscigenação de raças da cabo-verdianidade? É difícil tratar da “sôdade” cabo-verdiana, em termos literários, sem se considerar a Morna-poesia de Eugénio Tavares, de Jorge Barbosa, de Ovídio Martins, de Pedro Cardoso, dentre outros. Trata-se, como se percebe, de um campo tão vasto e rico que, mesmo que houvesse aprofundamento na análise acerca da saudade, na literatura e na cultura cabo-verdiana, seria difícil abarcar, na totalidade de suas nuances, suas particularidades e a da psique coletiva. A saudade e a nostalgia são “dois dos sentimentos que mais ligam a alma humana à sua terra-mãe” (LIMA, 2001, p. 259). Esses sentimentos são percebidos no poema intitulado “Morna” - de Daniel Filipe (1925-1964), presente na obra “A ilha e a solidão” (1957). Consagrado autor, apenas nascido em Cabo Verde, sempre esteve repartido entre dois sistemas literários, inicialmente a cabo-verdiana, depois a portuguesa. Daniel Filipe se revelou poeta fora de sua terra, mas, embora tenha sido radicado em Portugal e com nome ligado à literatura portuguesa, exige a sua recuperação cabo-verdiana. Seus textos- poéticos refletem o contexto sócio-político em que viveu, marcando constantes indagações sobre o presente e o futuro. Nesse seu poema, o sujeito poético saudosamente evoca a mãe-ilha — Cabo Verde — sua terra natal, num exercício de reminiscência e angústia existencial que percorre toda a escrita, como se realizasse uma síntese de sua memória, envolvida, ao mesmo tempo, por uma dolorida evocação ou presentificação do passado: Morna É já saudade a vela, além. Serena, a música esvoaça. 107 Na tarde calma, plúmbea, baça, Onde a tristeza se contém. Os pares deslizam embrulhados De sonhos em dobras inefáveis. Ó deuses lúbricos, ousáveis. Erguer, então, na tarde morta. A eterna ronda de pecados Que ia bater de porta em porta! E ao ritmo túmido do canto Na solidão rubra da messe. Deixo correr o sal e o pranto — subtil e magoado encanto Que o rosto núbil me envelhece. (FERREIRA, 1997, p. 259) Tanto a poesia de Daniel Filipe, como de outros poetas cabo-verdianos, a saudade das ilhas sempre impactou de forma profunda a lírica desses autores que, por qualquer motivo, tiveram de deixar Cabo-verde para a “terra-longe”. Nesse sentido, como falar da ideia de saudade, em Cabo Verde, sem considerar o lugar de origem? É o que transmite Corsino Fortes, nascido em Mindelo, ilha de São Vicente, Cabo Verde, em 1933. Em sua lírica, esse poeta constrói hinos de amor à sua cidade natal, nomeando-a como doce e plena de luzes. E a Morna encontra, nessa cidade “De lua nascente e poente”, um espaço propício para que o poeta, em tom nostálgico, relembre: Mindelo... Entre a escuridão E o silêncio da noite Amachucado Entre a Morna e o violão Sonho... Mindelo De mãos apoiadas Sobre o eco da tua pulsação [...] Mindelo Ó doce Mindelo morno De lua nascente e poente De noite debruçado Na morna dolente De poesia encostada Na esquina da noite. 108 Mindelo de luzes De pétalas e prantos Ó quimera perdida Ó berço adormecido Embalado Dentro de mim [...] (FERREIRA, 1997, p. 198) Mindelo - cidade Atlântica que nasceu e prosperou em torno do Porto Grande- considerada uma “imensa janela aberta sobre o Atlântico e através da qual os ventos de outras paragens, de outras civilizações e do progresso refrescam essas ilhas” (SEMEDO, 1986, p. 139), é cidade responsável por criar uma atmosfera de acolhida, tanto dos estrangeiros passantes vindos da Europa (Inglaterra, França, Holanda, Bélgica), como de camponeses cabo-verdianos das ilhas vizinhas (São Nicolau e Santo Antão). Conforme Juliana Bráz Dias (2004, p. 97), para os cabo-verdianos, “Mindelo representava segurança de emprego, sonhos povoados de imagens criadas a partir das histórias daqueles que já haviam conhecido a cidade do porto e descreviam-na como uma porta aberta para o mundo”. “Terra da promissão” e, ao mesmo tempo, “terra da perdição” são adjetivos que fazem referência a essa cidade cosmopolita, boêmia, na qual proliferavam bares, restaurantes, cafés, casas de jogos. Foi esse o ambiente em que prosperou a Morna dolente, que encontrou as condições propícias para ser vivida em toda a sua profundidade. Nos botequins de Mindelo, à beira do porto, a Morna encontrou, ainda, os nostálgicos marinheiros vindos de outras terras, com suas novidades musicais que agregavam à canção cabo-verdiana novas qualidades, especialmente à Morna. Era ali, entre a Morna e o violão, ao fim de um longo dia de trabalho, “ao som das Mornas, que muitos homens do porto encontravam seu merecido descanso- tocando seu instrumento à soleira das portas, no movimento das tabernas ou mesmo na diversão dos bailes a pau-e-corda” (DIAS, 2004, p. 101). Sendo a Morna entendida como a expressão dos sentimentos do povo, para o poeta Vasco Martins (1988), ela é “essencialmente uma temática sensitiva e elegante, é a dramatização das aspirações e do conceito do imaginário do povo cabo-verdiano” (MARTINS, 1988, p. 9). Por isso, para Jorge Barbosa, ouvir uma Morna significa “ouvir a alma do arquipélago” (SANTOS, 1993, p.53), ou seja, ouvir sua história e, sobretudo, conhecer o percurso social e político dessas ilhas crioulas, da sua gente, incluindo suas danças e diferentes gêneros musicais espalhados pelas ilhas. 109 Em “Reminiscência”, o poeta Virgílio Pires (1935) relembra esses estilos musicais, enquanto questiona: Quem não se lembra Dos bailes da bola preta? Ritmos brasileiros, fox, mazurcas E a morna a sublimar paixões [...]. Mazurcas com os passos rigorosamente medidos. E a Morna morna no violino crioulo do Djédji. (FERREIRA, 1997, p. 283) Virgílio Pires entoa essa Morna-poesia com naturalidade, através de um sujeito lírico que transporta para a criação poética ritmos sonoros estrangeiros - “Ritmos brasileiros, / fox, mazurcas” - e elementos sonoros cabo-verdianos como a Morna, em sons que se encontram e se harmonizam, sublimando paixões. Na poesia de Antônio Pedro (1909- 1965), jovem poeta tocado pelo Modernismo português e sensibilizado com o Vanguardismo europeu, há uma ruptura com as estruturas tradicionais poéticas do arquipélago. Em seu livro de poemas Diário (1929), escreveu sobre a morna, interpretando-a como: Reminiscência dum fado Que, dançado Num maxixe, Tem a tristeza postiça Dum cansaço. Um semicivilizado Lasso Balanço Embalado Sobre o ventre dum fetiche. (FERREIRA, 1977, p. 41) Para o sujeito poético, a Morna é apresentada em dois momentos distintos: quanto à sua origem, que passa necessariamente pela afetividade portuguesa - da reminiscência de um Fado ao Maxixe- dança tradicional brasileira, e quanto aos sons onipresentes nas ilhas, território de influências múltiplas, sincréticas, objetos da cultura popular de dois povos e do encontro nada pacífico entre colonizador e colonizado; este definido pelo eu-lírico como semicivilizado e lasso, considerações expressas sobre o cabo-verdiano. 110 Outras definições são atribuídas à Morna, expressas em textos de diferentes representantes da intelectualidade cabo-verdiana. Para Manuel Ferreira, a Morna é descrita como um “Canto dolente e doloroso que só existe além do pensamento” (2010, p. 580). Para João Lopes (1968, p. 38), o cabo-verdiano “responde a todos os anseios e apelos da sua alma com a Morna [...] toda ela impregnada de melancolia e doce nostalgia”. De volta aos textos de Pedro Cardoso, poeta e estudioso que publicou Folclore Cabo-Verdiano (1933), ele afirma, em tom poético e mítico, que “Mornas passam cantando as crioulas trigueiras”, presente em Hespérides, e acrescenta: “em ritmo, a Morna polariza a alma cabo-verdiana”. Para o poeta Antônio Nunes, “a Morna traz ao corpo a lassidão e o sonho” (FERREIRA, 1997, p. 132). Em “Jardim das Hespérides”, José Lopes (1872-1962), apresenta a Morna nestes termos: Não procureis no ar desta palavra a origem, Não é brando calor: é só dolência e pranto! Traduz a languidez da nossa raça, o encanto. Dêsse vago sonhar que também dá vertigem. A cantilena, a dança e o ritmo seus corrigem. Quaisquer erros por si, pois dizem “dor”: porquanto. Do “mourn” inglês vem morna, e é lamentar; e tanto. Que é o coração chorando... E que outra prova exige? “Mourner” é quem a canta, é “mourner” quem a dança. Ela pode causar a síncope que cansa E ela pode causar a síncope que mata... Ela é o Pranto Antigo, a dor da nossa raça... Ela é a alma de Eugénio, é a minha, onde perpassa. A unção da morbidez que em nós se fez inata... (LOPES, 1935, p. 213) José Lopes não discorre sobre a definição do termo “morna”: “não procures no ar dessa palavra a origem”, mas prefere apresentá-la a partir do conceito anglo-saxônico “to mourn”, que significa lamentar, chorar. Em outras palavras, para o eu-lírico a Morna é um lamento, é um choro (que ele compara a um “canto de dolência e pranto”), fazendo uma relação direta com a história colonial de Cabo Verde, com a dor dos “trazidos” como escravos para o arquipélago. A expressão da “languidez da raça” exprime também a dor e o lamento, no choro e na melancolia pela separação dos entes queridos. Por essa definição da Morna, percebe-se o poder de uma narrativa que a identifica com a dor na sua expressão máxima, pois ela substitui o choro do escravo, confunde-se com seus gemidos e tem servido como 111 linguagem para falar das tristezas e das amarguras vividas pelo povo cabo-verdiano desde o cruel período da colonização (DIAS, 2004, p. 92). Já para autor português Osório de Oliveira, a Morna se caracteriza como uma “melodia triste” e “sensual” (OLIVEIRA, 1932, p. 98). Dessa simbiose histórica da Morna com os sentimentos, surge, no espírito do poeta, a construção de um lirismo nostálgico, que origina uma poesia que se chamou de morna/saudade, morna/despedida, morna/dor, e tantas outras temáticas que são expressas através da Morna. A concepção relacionada à dor, ao sofrimento e à tristeza, vem sendo revista por músicos, poetas e ficcionistas das novas gerações, que querem mostrar outra imagem de Cabo Verde e, por conseguinte, do cabo-verdiano. A Morna não deve ser reduzida simplesmente como expressão de tristeza, da saudade e da dor, mas ela é a afirmação e a configuração da luta do povo cabo-verdiano que, mesmo frente à opressão a que foi submetido, a toda sorte de sofrimento — desde as situações climáticas, passando pela fome e pela morte, pelas dores do colonialismo cruel e selvagem, sempre se levantou e resistiu. Essa outra face da Morna foi retratada, em 1969, pelo músico Humberto Bittencourt Santos- o conhecido Humbertona34, quando, em tom musical e poético esbraveja e afirma: “Morna ca sô dor”35: Há mornas que nos fazem dor... E tem umas dores que fazem mornas. Mas… MORNA NÃO É SÓ DOR... Morna é o instrumento de que o povo de Cabo Verde se serve para exprimir o seu sofrimento e a sua esperança no futuro. Morna é o povo de Cabo Verde no caminho de S. Tomé, no porão dos vapores como um pedaço de carvão. Morna é o dia 27 de Setembro quando tivemos de nos separar da família para ir para a tropa. Morna é saudade, é mantenha, é morabeza, é cretcheu. São as mensagens que herdámos dos nossos pais, São as mensagens que temos de deixar aos nossos filhos. Morna é o nosso protesto para a construção de Cabo Verde amanhã, Um Cabo Verde com trapiche, com máquinas de refinaria e de fábrica, um aeroporto cheio de aviões e uma terra de turistas… Um Cabo Verde sem diferenças de classe, sem brancos nem pretos, onde cada camponês tenha o seu pedaço de terra, onde cada menino vá à escola. 34 Humberto Bettencourt Santos nasceu em 1940, em Santo Antão, conhecido como uma das maiores referências do violão cabo-verdiano. Além de músico, Humbertona, como é carinhosamente conhecido, exerceu a função de embaixador a chefe de missão junto das Nações Unidas, foi membro da delegação responsável pelas negociações com Portugal dos termos e acordos para a Independência Nacional. Foi, ainda, gestor empresarial e presidente do conselho de administração da CV Telecom durante mais de dez anos. É, atualmente, cônsul honorário da Holanda e Bélgica, consultor e membro da comissão de honra da candidatura da Morna a Património Imaterial da Humanidade (Da revista Nós Genti- Maio de 2014, p. 22). 35 “Morna não é só dor”. AAVV (1969) Morna ca sô dor. Roterdão: Morabeza Records, LP. 112 Um Cabo Verde que não veja mais os seus filhos ir para terra longe… E vamos continuar a fazer morna… NÃO!... MORNA NÃO É SÓ DOR! Nesse texto extremamente rico, o autor traz à cena um antigo debate em torno das representações sobre a Morna e o seu papel na sociedade cabo-verdiana. Percebe-se que o autor faz referência a alguns dos aspectos mais doloroso do passado colonial cabo-verdiano, como a emigração forçada para São Tomé e Príncipe e o tratamento desumano dado aos “contratados” nos porões dos vapores. Por isso, apesar de o autor iniciar definindo a Morna como dor e sofrimento, como choro e lamento sentimentos usualmente presentes nas líricas crioulas e mesmo nas obras de ficção, ele termina o texto propondo uma morna-esperança, a possibilidade de ter como tema futuro as conquistas do povo cabo-verdiano. O sujeito poético quer mostrar que a Morna, é acima de tudo, uma resistência do povo cabo-verdiano, é a expressão mais genuína de cantar a vida em sua plenitude, manifestada em todos os momentos em que o cabo-verdiano está presente, e que, mesmo frente às mais nefastas situações da existência, “teimosamente continuam de pé”, mostrando que a Morna, em suas vertentes musicais ou poéticas, não representa somente a dor, mas, e, sobretudo, a vida, a luta e a resistência. Logo, ao mesmo tempo em que a Morna é o “veículo privilegiado de expressão da totalidade da vivência individual e coletiva dos cabo-verdianos”, torna-se o símbolo de Cabo Verde que se quer no futuro: independente, justa e solidária. Assim, a Morna será eternamente esse “instrumento por excelência da afirmação do ‘nós’ que é a nação” (RODRIGUES, 2015, p. 226). Enquanto a Morna é apresentada como “símbolo de Cabo Verde”, o poeta José Lopes, um dos cultores do mito das “Hespérides”, afirma que a “Morna é a alma de Eugénio”, referindo-se a um dos mais conhecidos representantes desse gênero musical e poético da literatura cabo-verdiana, e quem melhor soube expressar e cantar os sentimentos da alma desse povo. Para o português Julião Quintinha, Eugénio Tavares é, por excelência, o “intérprete maravilhoso da alma desse povo ilhéu e sonhador” (FERREIRA, 1973, p. 167). 2.2. A Morna de Eugénio Tavares Eugénio Tavares (1867-1930) é considerado um dos maiores poetas da crioulidade, que legou a Cabo Verde a perenidade dos seus temas líricos nas Mornas, algumas escritas em língua portuguesa- língua que sabia utilizar com mestria. Mas foram, sobretudo, as suas 113 Mornas em língua cabo-verdiana — o crioulo na variante da ilha Brava — que o notabilizaram. Eugénio foi também um dos primeiros compositores a catalisar as heranças da Morna primordial da Boa Vista (local em que esse gênero poético-musical nasceu). Ao elevar a poesia em língua cabo-verdiana, fez uso da Morna como principal veículo, aproximando-se do modelo estilístico dos portugueses Camões e João de Deus. Esse poeta bravense criou o lirismo clássico, em língua cabo-verdiana, servindo-se de toda a tradição de canções populares, para traduzir os sentimentos mais profundos do seu mundo interior que, de certa forma, são os sentimentos do povo. Trovador nostálgico, poeta do amor e da emigração, cantor de serenatas e de tertúlias, “Nhô Eugénio” ao mesmo tempo em que aborda temas sentimentais como a saudade, a despedida, a partida e o regresso, posiciona-se de forma combativa frente aos problemas sociais e existenciais enfrentados pelo povo cabo-verdiano, ou seja, os dramas oriundos da seca e da fome, como também do abandono em que se encontravam as ilhas e a maioria da população, situação como essa que leva a pesquisadora Nilda de Carvalho Mota (2011) a afirmar que “um autor ou autora que esteja inserido em determinado contexto caracterizado por relações desiguais, ao mergulhar em si mesmo, enquanto um ser social deverá reencontrar-se com essa mesma sociedade” (MOTA, 2011, p. 20). A autora refere-se ao papel de poetas e de compromissos que assumem ao denunciar, através de obras poéticas ou ficcionais, as desigualdades sociais nas diferentes realidades em que estão inseridos. É importante informar que Eugénio Tavares, em termos políticos e ideológicos, nutria importante compromisso com o republicanismo, vindo a revelar-se através de periódicos, com artigos críticos de 1897 a 1929, em que denunciava a opressão e a exploração do cabo- verdiano pelo colonialismo português. Tal atitude constituiu o fio condutor da ação política e jornalística de Eugénio Tavares, poeta de caráter indomável, incapaz de se calar perante a injustiça. Grande defensor dos direitos dos seus concidadãos de Cabo Verde empenhou-se com afinco à defesa da língua e da identidade nacional cabo-verdiana; essas atitudes passam pelo conceito à época da literatura, na qual a poesia era arte maior, para temas “maiores” (GUIMARÃES, 2005, p. 6-7). No livro intitulado “A Outra Voz”, o ensaísta e poeta mexicano Otavio Paz questiona sobre “o lugar da poesia nos anos que vêm pela frente” (PAZ, 1982, p. 145). O autor mostra uma clara preocupação com a sobrevivência da arte, especificamente, da poesia, que defende como sendo a “outra voz”. Para esse autor, a poesia é: 114 “Conhecimento, salvação, poder, abandono. Operação capaz de transformar o mundo, a atividade poética é revolucionária por natureza; exercício espiritual é um método de libertação interior. A poesia revela este mundo; cria outro [...]. Expressão histórica de raças, nações, classes. Nega a história, em seu seio resolvem-se todos os conflitos objetivos e o homem adquire, afinal, a consciência de ser algo mais que passagem. Experiência, sentimento, emoção, intuição, pensamento não dirigido. Filha do acaso; fruto do cálculo. Arte de falar em forma superior; linguagem primitiva. Obediência às regras; criação de outras. Imitação dos antigos, cópia do real, cópia de uma cópia da Ideia [...]” (PAZ, 1982, p. 15). Do final do século XIX ao início do século XX, os poetas cabo-verdianos, concentraram-se em produzir uma poesia que não apenas divulgasse os problemas sociais, políticos e culturais das ilhas, mas também incitasse o povo cabo-verdiano à ação. Para Sartre (2006), “a poesia é o lugar ideal para a expressão do engajamento do escritor”, e para o chileno Vicente Huidobro: “O poeta faz mudar de vida as coisas da natureza, recolhe com sua rede tudo aquilo que se move no caos do inominado, estende fios elétricos entre as palavras e ilumina subitamente rincões desconhecidos, e todo esse mundo estoura em fantasmas inesperados.” (HUIDOBRO, 1991, p. 213). Nesses termos, o autor aponta a função do poeta e o caráter social e revolucionário presente na poesia. Para Jorge Luís Borges (2000), o poeta é “um fazedor”, não somente de notas líricas, mas aquele que narra uma história na qual todas as vozes da humanidade podem ser encontradas (BORGES, 2000, p. 51). Em se tratando de Cabo Verde, é através da Morna que o “cabo-verdiano encontra o polo por excelência do seu génio artístico” (FERREIRA, 1973, p. 90). Através da poesia, não somente as consideradas pesarosas, melancólicas, muitas denúncias foram feitas contra a fome que se espalhava por todo o arquipélago, contra a degradação moral e a falta de instrução que atingia a maioria da população, constituída pelas camadas mais pobres de Cabo Verde. Deve-se lembrar de que, desde a colonização das ilhas, já havia, por parte dos poetas e ficcionistas cabo-verdianos, a preocupação com uma transformação social, com o desejo de mudanças, devido ao inconformismo com a situação estabelecida e imposta em Cabo Verde. Conforme Alfredo Bosi: “A poesia resiste à falsa ordem, que é, a rigor, barbárie e caos, [...] Resiste ao contínuo “harmonioso” pelo descontínuo gritante; resiste ao descontínuo gritante pelo harmonioso. Resiste aferrando-se à memória viva do passado, e resiste imaginando uma nova ordem que se recorta no horizonte da utopia. (BOSI, 2000, p. 169). 115 Portanto, ao abraçar essa perspectiva de “engajamento” e de “resistência”, enquanto poesia, a Morna se tornou um importante objeto de estudo e discussão no âmbito literário. Eugénio Tavares foi considerado o poeta (por excelência) das Mornas, o primeiro que tentou interpretar Cabo Verde, que buscava combinar sua melodia a textos de profundo lirismo. Sua poesia constitui um marco da ascensão da Morna à categoria expressiva de que ela é credora. Por isso, o poeta sempre obteve um merecido reconhecimento por parte das diferentes gerações literárias como o poeta maior das Mornas, um grande cultor da poesia lírica cabo- verdiana. Eugénio Tavares é, ainda, o poeta do amor, mas também escrevia Mornas de cunho cômico e satírico. Frente à sua significativa representação para a literatura cabo-verdiana, destacam-se duas de suas principais Mornas: “Força de cretcheu” e “Morna da despedida”. O amor e a despedida são os temas que, em geral, destacam-se nas Mornas de Eugénio Tavares que ficaram célebres, venceram o tempo e a tradição e, hoje, continuam a fazer parte do repertório musical e poético em Cabo Verde. Esses são temas também recorrentes e abordados por outros mornistas de sua época e da nova geração de poetas cabo-verdianos. A Morna “Força de Cretcheu” ou “A força do amor” exorta e eleva o amor e a mulher amada — a “cretcheu”. A comparação com a representação do amor, na literatura ocidental, influenciou a abordagem do tema, em Eugénio, “destacando, simultaneamente as peculiaridades do amor crioulo e tropical, de que Eugénio é um poeta exemplar” (CARLOS, 2015, p. 106-107). Em seu ensaio sobre a cultura cabo-verdiana, no capítulo intitulado: “Amor e partida na poesia crioula de Eugénio Tavares ou a inquietação amorosa”, Gabriel Mariano (1991), escritor, crítico e ensaísta, aborda o tema do amor em Eugénio Tavares, questionando e apontando diferenças com o amor na literatura ocidental. Seu estudo parte das “cantigas de amigo” até chegar à representação do amor em Cabo Verde, retratando como o tema se manifesta nas mornas de Eugénio. Para Gabriel Mariano: “a principal linha de força da poesia de Eugénio Tavares é o amor” e “seus poemas são outras tantas letras de Mornas, a música típica do arquipélago cabo-verdiano” (MARIANO, 1991, p. 126). É de Vasco Martins a afirmação de que “a noção de Amor, em Eugénio Tavares, justifica, é claro, uma época romântica, uma estrutura poética condizente com os estados espirituais também do próprio poeta, que diz possuir pela mulher uma paixão sensível” (MARTINS, 1988, p. 87). 116 Desde a primeira até a última estrofe, a Morna “Força de Cretcheu” aborda a temática do amor. Para o eu lírico, nada na vida se compara com o amor que sente pela amada, “maior que o mar e que o céu”, um amor que não encontra termos de comparação, pois, entre outros amores, o do eu poético é “ainda maior”. Veja-se o poema: A força do amor Não há nada nessa vida Maior que o amor. Se Deus não tem medida, O amor ainda é maior... O amor ainda é maior... Maior que o mar e que o céu: Mas, entre outros amores, O meu ainda é maior. A melhor mulher amada, É aquela que é minha. Ela que é a chave Que me abre o céu... A melhor mulher amada É aquela que me quer Se eu a perder A morte já vem... Ó força do amor, Abra minha asa em flor! Deixe-me alcançar o Céu Para eu olhar Nosso Senhor. Para eu pedir a Ele a semente Do amor como esse meu, Para eu dar a todo o mundo, Para todos conhecerem o Céu! (TAVARES, 1969, p. 34) As Mornas de Eugénio Tavares distinguem-se pelo ritmo e musicalidade típicos da língua cabo-verdiana e pela manifestação de sentimentos do povo insular e da cultura crioula. Conforme a pesquisadora, professora e ensaísta Isabel Lobo (2019), a Morna “Força de Cretcheu” surge de uma circunstância muito particular: criticado sobre seus constantes amores como um comportamento pouco normal, apaixonando-se constantemente, apesar de casado, essa Morna é uma resposta do lado republicano, anticlerical de Eugénio que reage à crítica e escreve “Força de Cretcheu”, colocando o amor acima de Deus (V. 3 e 4), “Se Deus não tem medida, o amor ainda é maior, o amor é que me abre o céu, [...] e pedirei a semente 117 desse tipo de amor para todos o sentirem”. Por essa intencionalidade, as primeiras estrofes são grandiosas como uma elegia ao amor que não é divino, mas pode ser divinizado (estrofe III). Para o eu-lírico, o amor entre homem e mulher é um sentimento grandioso: “A melhor mulher amada, / é aquela que é minha. / Ela que é a chave / Que me abre o céu”. O sujeito poético compara o ser amado a um caminho para se chegar a Deus, sempre indissociável desse amor que regenera a vida. Porém, para ele, o amor é superior a tudo que existe, até ao próprio Deus, pois “se Deus não tem medida, o amor ainda é maior”, e reafirma: “o amor ainda é maior”, ou seja, o amor que sente é maior que todas as coisas. O eu-lírico considera que Deus é o responsável pelo amor, por agraciar o sujeito poético com esse sentimento, entretanto pode até perder a fé em Deus, mas jamais no amor. Outro aspecto importante que se observa nessa Morna é o lado culto da tradição que Eugénio consegue construir, ou seja, a gestão de uma transgressão e renormativização de conceitos. O conceito de amor é reelaborado por Eugénio e devolvido ao público com uma grande naturalidade normativa, pelos recursos que usa no texto: linguagem popular/normatizada, recuperação do amor e do divino através de Deus como autoridade popular e não institucional. Para o sujeito poético, o amor é gastronômico (gostoso, saboroso) e, somente através dele, consegue-se atingir a felicidade, que consiste em “alcançar o Céu / para eu olhar Nosso Senhor” e chegar até Deus “para eu pedir a Ele a semente / Do amor [...]”. Sem o amor, só existe lugar para a morte. Para o poeta, é o remédio ideal que cura e evita – até - a morte, que é apresentada, em outro poema, como essa “grande benfeitora [...] que ampara e guarda, perpetuamente, as almas sem ventura” (TAVARES, 1996, p. 16). No entanto, o eu lírico tem a opção de um “igual amor”; é o que expõe Luís Manuel de Sousa Peixeira: que possa “cantar o amor jovem, exaltado, o amor paixão. É o amor frágil, quanto impetuoso. O amor que, fenecendo, adoece e mata, a menos que igual amor se anuncie” (PEIXEIRA, 2003, p. 184). Vê-se esse tema no trecho do poema “A Morte”, de conteúdo ultrarromântico: [...] Não me faças rezas, Não me leves ao médico, Não é remédio que vai me curar: Esse mal de amor que está me matando. A sua cura é a morte, Ou igual amor. [...] 118 (TAVARES, 1969, p. 53). Desde Eugénio Tavares, a sacralização do amor e da mulher amada tem sido seguida como um padrão no tratamento desse circuito temático nas Mornas e em diferentes poetas da cabo-verdianidade. Para Genivaldo Sobrinho (2017), em “Força de Cretcheu”, pode-se considerar o amor como força universal que une irmãos, ou tudo o que se ama, sobrepujando o amor carnal de macho e fêmea e alcançando outra dimensão mais ampla (SOBRINHO, 2017, p. 160). No poema, o sujeito poético faz uma diferenciação entre o amor, tema discutido em todas as literaturas espalhadas pelo mundo, e “cretcheu”, termo genuinamente cabo-verdiano que aparece na literatura local. O amor surge como tema primordial da criação poética, presente também em outros gêneros literários cultivados pelo poeta, como as composições musicais. Nelas, ele acrescenta a presença quase constante do mar e de temas poéticos correlatos, inspirados no exílio, na insularidade, na emigração, na partida e na chegada e na saudade, sem esquecer os dramas da sua terra. Ele toma com a mão suas Mornas e revela Cabo Verde ao mundo, de forma poética, também através das secas, da pobreza e da fome. É de notar que a maioria dos poetas cabo-verdianos apresenta em suas poesias, subtemas que se inter-relacionam, como a emigração, a partida, o exílio, a nostalgia, o mar, a saudade e a despedida. Destaca-se, também, nesse trabalho de pesquisa, o tema da despedida, porque traduz o drama do cabo-verdiano na escolha entre o ficar e o partir. Trata-se de um mote da cultura presente nas ilhas, explorado especialmente pelos idealizadores da revista Claridade. Na “Morna da despedida”, Eugénio Tavares aborda os temas que mais se destacam na literatura cabo-verdiana, quase sempre presentes nas Mornas de poetas de diferentes gerações: Hora de partida, Hora de dor, É meu desejo Que não amanheça! De cada vez Que a lembro, Prefiro Ficar e morrer! Hora de partida, Hora de dor! Amor Deixa-me chorar! Corpo cativo, 119 Vai tu que és escravo! Ó alma viva, Quem te há de levar? Se o regresso, a chegada é doce, A partida é triste, amarga; Mas se não se parte Não se regressa! Se morremos Na despedida, Deus no regresso Dá-nos a vida. Deixa-me chorar Destino de homem: Oh dor Que nem nome tem: Dor de amor Dor de saudade Dor de alguém Que eu quero, que me quer.. Deixa-me chorar O destino do homem, Oh Dor Que não tem nome! Sofrer junto de ti Sem ter uma certeza, Morrer na ausência Com a tua tristeza! (TAVARES, 1932, p. 41-42) A “Morna da despedida”, também conhecida como “Hora de Bai”, é considerado um clássico da música cabo-verdiana e uma das criações poéticas mais completa de seu autor Eugénio Tavares. Uma quantidade expressiva de Mornas sobre a “partida” e a “saudade”, e os temas que se correlacionam como a emigração e a despedida, têm sido abordados com frequência nas diferentes obras poéticas e ficcionais na literatura cabo-verdiana. Conforme Vasco Martins 1988: “A saudade e a partida são temas que fazem parte do universo literário da Morna. Depois da temática do amor, é a inspiração mais frequente. [...] A saudade é um sentimento que acompanha a partida, uma saudade romanceada, por vezes profunda e pondo em causa a Terra longe, onde se vai buscar um melhor modo de vida ou, simplesmente, a necessidade de ver o mundo, sair das ilhas para um encontro com outras culturas, outros modos de vida, outras mentalidades. No confronto dessas culturas, à Morna resta uma temática sentida profundamente, é um elo de união e de recordações, é a canção onde se transmite a saudade da ilha, de um antigo amor, da mãe, figura que liga o homem cabo-verdiano à terra, através de lembranças de infância, tentativa de retorno à simplicidade e ao aconchego materno. [...] A mãe é a continuação para o mornista e o cabo-verdiano da simplicidade e do 120 amor e dos ambientes psicológicos da infância e adolescência que acompanham a alma cabo-verdiana toda a vida.” (MARTINS, 1988, p. 89- 90) Na “Morna da despedida”, o sujeito poético evoca e grita a sua dor, agarra-se a ela com profundo lamento diante da necessidade de partir. Sentindo-se “escravos” de uma situação difícil, pouco animadora, os “filhos da terra” necessitam partir para fugir dos problemas, em busca de melhores condições de vida para si e para os familiares queridos que permanecerão nas ilhas. Percebe-se toda a tristeza do sujeito-lírico pelo fato de ter que deixar a “Terra-Mãe”; o partir é relacionado à morte, por isso, o poeta chora e lamenta-se. Na segunda parte desse poema, o eu poético conclui que “partir” é a única solução e saída para mudar de vida; reconhece que “A partida é triste, é amarga”, contudo “se não se parte / não se regressa”; por isso, aposta na recompensa, prometida por Deus que terá ao regressar à terra natal: “Deus no regresso / Dá-nos a vida”. O ato de emigrar é constante nas letras das Mornas dos poetas cabo-verdianos. A grande maioria dos escritores cabo-verdianos da diáspora tem por temática Cabo Verde; os cabo-verdianos e a própria emigração. A partida sempre foi um tema de inspiração preferido de poetas, ficcionista e compositores de músicas tradicionais; por isso, ela tem sido um tópico constante na literatura cabo-verdiana. Para esses poetas, a emigração é uma aventura, e para o emigrante, é uma porta que se abre, é uma forma de luta; e o mundo lá fora é visto como um paraíso prometido, como um ideal de vida a seguir. A partida surge, em Eugénio Tavares, não como um desejo dos filhos da terra e, sim, como uma imposição do poder e da situação social, em um momento indesejado. Ela é suportada apenas pela condição “escrava do corpo”, em outras palavras, parte-se somente porque o corpo é escravo e tem de submeter-se; a alma, esta partícula divina, saída do seio de Deus, é livre. Estamos frente a uma “metáfora da situação colonial e da liberdade do homem que a colonização não consegue sujeitar nem dominar” (RODRIGUES, 2015, p. 66). É por essa razão que a partida, em Eugénio Tavares, é inseparável do regresso. Esse é o momento tão esperado e desejado por aqueles que partiram, sentimento de alegria e de glória pelo reencontro com amigos e familiares; o regresso é o tempo de desfrutar de tudo o que foi conquistado no exterior, longe das ilhas. Após a explanação desse diversificado discurso histórico e cultural sobre a Morna e das diferentes características e definições a ela atribuídas por poetas e intelectuais cabo- verdianos, é importante perceber como esse gênero poético e musical se impõe como um elemento de afirmação e de vivência coletiva nos seus mais diversos aspectos. 121 Nesse sentido, para concluir, concorda-se com as palavras de Luís Peixeira, quando expõe que a Morna “conta histórias, descreve paisagens e estados de alma” (PEIXEIRA, 2003, p. 171), características que ganham destaque e que são valorizadas na cultura cabo- verdiana. Por esses atributos e pela riqueza de imagens que descrevem a Morna, Jorge Barbosa exorta outros poetas lusos a viajar pelas ilhas e ouvir “a alma do arquipélago cantando mornas” (GOMES, 2008, p. 15); essa “Morna que perdura e acalenta” (MARTINS, 1963, p. 51, 54) o coração dorido e nostálgico do cabo-verdiano - símbolo maior da cultura crioula dessas ilhas atlânticas. 122 3- A MORNA E A PROSA LITERÁRIA CABO-VERDIANA “A literatura cabo-verdiana só passou realmente a existir quando foi assumida com as paisagens de Cabo Verde, com os homens de Cabo Verde, quando o escritor assume que escreve como um cabo- verdiano.” (VICENTE, 2017) 36 A representação da Morna e as temáticas nela recorrentes são também apresentadas através do conto, das crônicas e dos romances, em seus diferentes estilos, representativos na ficção cabo-verdiana. Durante cinco séculos, o arquipélago de Cabo Verde foi cruelmente oprimido pela colonização portuguesa, o que causou efeitos que se refletiram diretamente na produção cultural e literária de poetas, cronistas e ficcionistas que, reconhecendo a grandeza e a resistência do povo cabo-verdiano, buscou definir essa sociedade a partir do cotidiano e da sua dramática relação com a natureza. Para a elite literária crioula, Cabo Verde “ainda que seca e estéril, ainda que queimada e nhanhida37, merecia também que seus escritores nela se inspirassem” (CANIATO, 2006, p. 137). Foi o que os ficcionistas claridosos fizeram, pois eles tinham a consciência de que escrevendo, assumiam a situação e as responsabilidades de individualidades representativas da inteligência, do espírito e das aspirações de um povo. A concretização desse propósito pode ser percebida, em diversas obras que encontram na Morna o seu tema, entre elas, os contos cabo-verdianos. 3.1 A morna no conto cabo-verdiano “A Morna conta histórias, descreve paisagens e estados de alma.” (PEIXEIRA, 2003, p. 171) A teoria do conto ocupa um lugar especial na teoria da literatura, porém, conforme a pesquisadora Luana Teixeira Porto (2015), esse gênero literário cuja forma se apresenta, às vezes, “imprecisa, híbrida, de difícil definição, ainda gera impasses e descompassos na teoria 36 Palavras do ministro cabo-verdiano da Cultura e Indústrias Criativas, Abraão Vicente, durante sua participação no Festival Literário Rota das Letras – Macau- (China) em 7 de março de 2017. 37 Infeliz, triste, desgraçada. “Ninguém olha por ela” Expressão usada pela personagem Nhá Venância no romance Hora de Bai- de Manuel Ferreira (FERREIRA, 1980, p. 48). 123 da literatura”, porque a sua criação não pode ser considerada apenas como ação intuitiva ou resultante de inspiração, mas se define como um trabalho árduo de linguagem, forma, reflexão e encaixe de palavras. A autora afirma, ainda, que “o conto é resultado de um trabalho consciente do autor” e alerta que este “deve se cercar de recursos narrativos capazes de lhe garantir o efeito desejado na obra.” (PORTO, 2015, p. 111). Considerando as informações históricas sobre esse gênero literário, o argentino Luís Borges (2000, p. 57) pontua que, ao final do século XVIII e início do século XIX, a tentativa de criar histórias começou com Edgar Allan Poe (1809-1849), editor, ficcionista, crítico literário, poeta, considerado o primeiro teórico do conto, que expõe seu olhar sobre a técnica de escrever histórias e indicar critérios de valor para a narrativa curta. Poe é considerado um dos precursores da literatura de ficção científica e o primeiro a refletir a respeito da ficção curta como forma de expressão artística, chegando a afirmar que ela “possui vantagens peculiares sobre o romance, é uma área muito mais refinada que o ensaio, e chega a ter pontos de superioridade sobre a poesia” (POE, 2004, p. 1). Para esse autor, o contista deve planejar, durante o processo de criação literária, qual efeito intencional quer provocar no leitor, ou seja, o efeito que a leitura deve causar (GOTLIB, 1990, p. 20), considerando que o conto não se refere só ao acontecido, não tem compromisso com o evento real. Nele, realidade e ficção não têm limites precisos. Ao escrever, Poe ficcionaliza uma representação da realidade e busca penetrar profundamente na psique humana, provocando diferentes comportamentos ou reações no sujeito. Nesse contexto, e ao tratar sobre o conto cabo-verdiano, vê-se que seus autores procuram registrar com fidelidade a realidade de Cabo Verde e de sua gente em diferentes períodos da história sociocultural e política do arquipélago. Para os ficcionistas cabo- verdianos, o objetivo da literatura é, além de apresentar Cabo Verde ao mundo, permitir que o leitor, através de uma imersão histórico-cultural, conheça a identidade desse povo crioulo. Conforme o antropólogo, historiador e romancista Lopes Filho (2003), os contos tradicionais cabo-verdianos possuem sua origem na própria gênese dessa nação, cujos povos, com a chegada de elementos provenientes dos vários países da costa africana, como Senegal e Guiné-Bissau, misturaram-se a colonos europeus. Boa parte dos contos cabo-verdianos foi tomada dos fabulários africanos ou europeus, que só depois foram incorporados numa nova versão, de acordo com o contexto sociocultural de cada ilha, por cada contador, que oscilava entre a fidelidade e a liberdade criativa em suas narrativas (LOPES FILHO, 2003, p. 50-51). 124 Dessa interpenetração de culturas, de conhecimentos e de aprendizagens, surgem os griots38, trazendo elementos associados à transmissão das tradições orais, dos contos di bóka tardi39, ou das noites quentes de luar, com suas narrativas sobre bichos e lendas populares. Suas histórias foram passadas de geração em geração, tornando-os a fonte na qual essas tradições encontram suas raízes. O conto, em sua primitiva forma, foi uma narrativa essencialmente oral que, segundo Carlos Reis (1987): “Enraíza-se em ancestrais tradições culturais que faziam do ritual do relato um fator de sedução e de aglutinação comunitária. O conto esteve originalmente ligado a situações narrativas elementares: nelas, um narrador, na atmosfera quase mágica instaurada pela expressão “era uma vez” suscitava num auditório, fisicamente presente, o interesse por acções relatadas num único acto de narração e que não raro tinham, para além dessa função lúdica, uma função moralizante.” (REIS, 1987, p. 79). O senegalês Léopold Sédar Senghor, ao prefaciar o livro “Les contes du Griot” (1987), do congolês Kama Kamanda, apresenta o seguinte discurso sobre o conto: « En vérité, le conte vien du continente africain avec la première civilisation humaine digne de ce nom. Et il est vrai qu’il procede essentiellement de la littérature orale, comme la poésie au demeurant, tandis que la fable, ele, est le fait de la littérature écrite parce de la raison discursive. Celle-ci veut instruire tandis que le conte envoûte en enchantant, au sens étymologique du mot. » 40(SENGHOR, 1988, p. 9). Nos países africanos, a tradição oral está diretamente relacionada à importância da memória e do testemunho. Nesse contexto, Hampâté Bâ assinala que o conhecimento sobre a África só será possível, caso “se apoie nessa herança de conhecimento de toda a espécie, pacientemente transmitido, de boca a ouvido, de mestre a discípulo ao longo dos séculos. Essas heranças pode-se dizer, são memórias vivas da África” (BÂ, 1982, p. 182), que envolvem acontecimentos relacionados à história do próprio continente, aos rituais sagrados, à arte, à dança, à ciência, e a tudo o que uma sociedade considera importante para o seu perfeito funcionamento. 38 Homens de memórias prodigiosas, considerados conhecedores da história do seu povo, repassadores de contos e provérbios, que exercem a função de animadores e porta-vozes das suas comunidades ou aldeias, responsáveis por boa parte das epopeias de heróis africanos. 39 Contos contados nos começos da tarde - ou à tardinha. 40 “Na verdade, o conto vem do continente africano com a primeira civilização humana digna desse nome. E é verdade que ele procede essencialmente da literatura oral, como também a poesia; enquanto a fábula provém de fato, da literatura escrita, em razão de sua função discursiva. Enquanto a fábula quer ensinar, o conto enfeitiça encantando, no sentido etimológico da palavra.” ( tradução da autora). 125 Cabe informar que a transmissão dos contos tradicionais era feita por homens considerados detentores do conhecimento, os guardiões dos segredos das histórias de seu povo, com estatuto social definido, preparados para exercer essa função de forma adequada. Em se tratando de Cabo Verde, independentemente da classe social a que pertenciam e da erudição que possuíam, era aos mais velhos a quem competia repassar a formação aos mais jovens. Esse fato já era percebido, no romance popular, presente na narrativa Chiquinho, de Baltasar Lopes, em que Nhá Rosa Calita ou Mamãe-Velha são as encarregadas da transmissão oral dos contos (PEIXEIRA, 2003, p. 157). Surge, assim, na ficção, um modo de representar Cabo Verde com graus de proximidade ou afastamento da sua realidade. Nesse contexto, poetas, romancistas, cronistas e contistas tornam-se “porta-vozes” do povo, dos seus dramas materiais e existenciais e debruçam-se sobre as ilhas, suas lutas, derrotas e conquistas, apropriando-se das questões ambientais, culturais, religiosas, sociais e políticas, que constituem um fator central na construção da personalidade do cabo-verdiano. Para perceber esse “debruçar” do autor, indica-se o conto “Galo Cantou na Baía”, em que a Morna desempenha um papel importante e sua origem será contada a partir das reflexões do principal protagonista da história - o guarda Tói. 3.1.1 - “Galo cantou na Baía” - conto de Manuel Lopes “A morna se ergue de uma necessidade individual, de um momento de inspiração.” (FERREIRA, 1973, p. 184) O nascimento da moderna prosa narrativa cabo-verdiana teve seu início com o conto “Galo Cantou na Baía” cuja versão original foi publicada no segundo número da revista Claridade, em 1936. Esse conto representa um marco na literatura cabo-verdiana, com traços regionais, que reforçam a construção da identidade do arquipélago. Seu autor foi o poeta, ensaísta e romancista cabo-verdiano Manuel Lopes, nascido na ilha de São Nicolau, em 23 de dezembro de 1907, nome que se destacou, tanto na história literária do arquipélago quanto pelas suas incursões nos domínios da pintura, da música e da fotografia. Para Margarida Fernandes, a literatura de ficção cabo-verdiana é interpretada como uma: 126 “Fonte para o antropólogo, que dela recolhe elementos etnográficos, com caráter descritivo, analisa as circunstâncias da produção da obra escrita e as motivações do autor, na busca de elementos culturais que lhe permitam uma melhor compreensão da sociedade local.” (FERNANDES, 2000, p. 263). É nesse contexto que Manuel Lopes procura apresentar ao leitor uma literatura com traços genuinamente cabo-verdianos, reforçando a construção da identidade do arquipélago, da sua gente, e buscando denunciar, em sua ficção, as tragédias que afetaram o arquipélago na década de 1940; os problemas mais visíveis na sociedade, como a pobreza e a fome a que os cabo-verdianos eram submetidos. Esse ficcionista apresenta uma narrativa comprometida com os que são socialmente desprovidos dos bens fundamentais para a sobrevivência, na qual imperam temáticas como a emigração, a saudade e os dilemas existenciais vivenciados pelos ilhéus. Em seu artigo intitulado “Utopia e dualidade no contato de culturas: o nascimento da literatura Cabo-verdiana” (2011), Abdala Júnior afirma que o conto de Manuel Lopes é o primeiro da literatura identificada com a cabo-verdianidade, ou seja, com a tomada de consciência de uma identidade regional, diferente da “assimilação41” imposta por Portugal; é o texto fundador da crioulidade. Abdala Júnior acrescenta: “Em “Galo cantou na baía”, a comunidade cabo-verdiana é observada assim com os pés assentados nas margens e não no centro do domínio colonial português. Esse descentramento da óptica metropolitana revela, então, novas faces do referencial cabo-verdiano, por desconsiderar as mesmices que não permitiam descortinar o específico de Cabo Verde, perspectivas [...] impostas pelos padrões coloniais do centro metropolitano. Não se trataria nessa imagem literária (simbolizada pelo Guarda Tói, que circulava no Mindelo por uma simbólica estrada marginal) apenas de um grupo: simbolicamente, toda a nação estaria numa situação correlata, toda ela seria marginal.” (ABDALA JUNIOR, 2011, p. 84). O narrador conta a história de Tói, guarda de alfândega que é responsável por coibir uma das principais atividades da ilha: o contrabando do grogue42, praticado devido à escassez de trabalho que garantisse os proventos necessários à sobrevivência do ilhéu. É importante notar que, em o “Galo cantou na Baía”, o diálogo entre os personagens é quase escasso, cabendo ao narrador, em terceira pessoa, contar os fatos, dos quais não participa como personagem, mas comporta-se ora como informante que faz observações 41 O cabo-verdiano, culturalmente herdeiro da África, deveria rejeitar a herança africana posta em causa pela potência colonizadora e assimilar-se à cultura europeia. 42 Em Cabo Verde a palavra grogue (grogu ou grog ) em crioulo) designa a aguardente de cana-de-açúcar, equivalente à cachaça brasileira. 127 acerca do que se passa no ambiente, ora como observador onisciente intruso, que sabe tudo sobre a história, os costumes do povo, dá opiniões, critica, questiona e tem acesso aos pensamentos mais íntimos dos personagens, o que fazem e o que sentem (LEITE, 1993, p. 32). Ressalta-se que a voz do narrador, na ficção cabo-verdiana, constitui uma realidade em todos os relatos. Conforme a definição de Reis & Lopes (1987, p. 254-256), as funções do narrador “não se esgotam no ato de enunciação que lhe é atribuído, pois o narrador é detentor de uma voz que revela uma determinada instância de enunciação do discurso”, responsável pela narração de acontecimentos que, integrado no texto, é traduzida de acordo com os tipos de narrador. Esses autores apresentam três tipos de narrador: autodiegético, o heterodiegético homodiegético. O narrador autodiegético refere-se ao narrador que relata suas experiências como personagem principal da história. Por ser o principal protagonista, a narrativa ocorre em primeira pessoa. O narrador heterodiegético é aquele que relata uma história, mas não faz parte dela enquanto personagem, “não integra o universo diegético em questão” (REIS & LOPES, 1987, p. 254-255). Esse narrador tem um conhecimento amplo, manipula o tempo e, geralmente, exprime-se em terceira pessoa. O narrador homodiegético é o personagem e o narrador da sua própria experiência diegética, que retira de suas vivências as informações necessárias para construir o seu relato. O narrador do conto de Manuel Lopes pode ser nomeado como heterodiegético (GENETTE, 1995, p. 243-244), que relata uma história da qual não participa, não integra como personagem o universo diegético, exprime-se tanto em terceira como em primeira pessoa. Sua principal preocupação, enquanto narrador observador e onisciente, é mostrar os fatos ao leitor. Para o crítico literário Jonathan Culler, a narração onisciente, em que parece não haver, em princípio, limitações ao que pode ser conhecido ou contado, “é comum não apenas nos contos tradicionais, mas nos romances modernos, em que a escolha do que será contado é crucial” (CULLER, 1999, p. 91). Assim, no conto de Manuel Lopes, o narrador informa que Tói é também conhecido como “mornador brabo”, e as Mornas que inventa são dançadas e cantadas com entusiasmo, nos bailes nacionais, menos de uma semana depois de nascidas (LOPES, 1998. p. 15). Os personagens estão dispersos no espaço e afastados uns dos outros. São seus parceiros de boêmia a Salibânia, proprietária do bar e apreciadora de suas Mornas; o Jack da Inácia, responsável por registrar, no papel, as composições musicais do guarda; e o Griga, 128 personagem secundário que aparece no final da narrativa, frequentador do bar, não muito simpático para os demais companheiros. Em segundo grau de importância, surge o capitão Jom Tudinha, que comanda a travessia entre duas ilhas do arquipélago, trazendo com ele, além do contrabando de grogue, alguns passageiros, como a vendedeira do Pelourinho, um tripulante apelidado de Castanha, uma senhora que dorme em um dos lados do barco, uma jovem professora e Miguel, jovem solitário que se apaixona pela professora. Outro personagem importante é Jul’Antone, que espera, em seu bote de dois remos, a chegada da bebida transportada a bordo da Grinalda. Na praia, aguardam a esposa Guida e a mãe dela. Em o “Galo cantou na Baía”, Manuel Lopes destaca a importância da Morna como modalidade artística típica das ilhas cabo-verdianas, incluindo, em seu processo criativo, a poesia, a música e a dança, ao mesmo tempo em que descreve com detalhes o processo de criação poética do Guarda Tói. Ele compara a composição da Morna com o nascimento de Vênus (1485), tela de Sandro Botticelli. Essa é a forma como Manuel Lopes absorve e interpreta o mito grego original representado na tela renascentista de Botticelli (ABDALA JUNIOR, 2011, p. 82). Em “Galo antou na Baía” o guarda Tói afirma que a Morna veio do mar: “Digo e torno a dizer a vocês que morna veio do mar, cada vez tenho mais a certeza. Toada de morna é toada de mar. Minhas mornas têm um gostinho salgado, dizem, pois se é lá no mar onde nascem que as vou buscar.” (LOPES, 1998, p. 17). O mar, nesse contexto, surge como um valor, pois é dele e de suas ondas que nasce o ritmo da Morna e, no murmúrio da brisa, a sua melodia. Conforme Juliana Dias (2004), essa melodia nascente “não é apenas a alma do povo ilhéu, mas a própria alma do oceano” (DIAS, 2004, p. 83). A condição de ínsula proporciona ao cabo-verdiano uma relação intensa com o mar, que se afirma como um prolongamento da terra onde nasceu e que facilmente percorre. Considerado uma das maiores riquezas que os cabo-verdianos possuem, o mar simboliza todos os sentimentos enraizados na identidade desse povo, pois, ao mesmo tempo em que representa um desafio, uma barreira, que provoca o isolamento, levando o ilhéu a viver entre sonhos e realidade, o mar dilata sonhos e convida-o para uma viagem. O convite à viagem é intertextualizado por Jorge Barbosa e Onésimo Silveira, quando os dois poetas afirmam: 129 “Este convite de toda a hora que o Mar nos faz para a evasão / Este desespero de querer partir / e ter que ficar.” (BARBOSA, 1989, p. 97). “E pôs [o mar] em nós esta febre constante / Este espírito irresistível de sair oceano fora / que nos fez marinheiros, passageiros e clandestinos/ E emprestou à nossa terra essa saudade estranha / Das mil terras cravadas no ventre do globo.” (SILVEIRA, 2008, p. 33). A evasão e a emigração estão entre os temas recorrentemente presentes, na literatura cabo-verdiana, que remetem à constante movimentação dos habitantes do arquipélago. O evasionismo é uma característica dos países insulares como Cabo Verde, onde os habitantes ficam circunscritos a um espaço pequeno. A evasão que, conforme Dina Salústio, “lembra a partida e o regresso, os sonhos mais sonhados de qualquer ilhéu” (SALÚSTIO, 1998, p. 37), leva, pois, o poeta a evadir-se intelectualmente e criar um universo imaginário, no qual seja possível realizar seus anseios. Alicerçada em uma atitude de resignação e escapismo frente às impreteríveis carências do povo cabo-verdiano, a evasão é formada, conforme Onésimo Silveira (1963), “por uma dualidade marcadamente cabo-verdiana, que realça um estereótipo de quem habita o arquipélago: o desejo de fugir” (SILVEIRA, 1963, p. 10). A partir desse contexto, o autor de Conscientização na literatura cabo-verdiana denuncia as mazelas que levam o povo cabo- verdiano à emigração. Para o ilhéu, partir se traduz em uma necessidade de integração e afirmação, realidade recorrentemente descrita nas líricas de diferentes poetas e nas prosas narrativas dos ficcionistas. Essa partida é carregada de desejo de retorno, de regresso, tão bem descrito por Eugénio Tavares, em um trecho de uma Morna, quando afirma: “Si ben e sabe / Bai é maguado. Mas, si ca bado / ca ta birado”43 (TAVARES, 1932, p. 8). Vale ressaltar que Tavares defendia abertamente a emigração, principalmente para os Estados Unidos, país considerado o lugar ideal para aqueles que buscavam melhores condições econômicas e qualidade de vida, riqueza e civilização. De retorno ao conto “Galo cantou na Baía”, o guarda Tói reflete sobre a origem da Morna e afirma que esse gênero musical e poético nasceu entre os pescadores da Ilha da Boa Vista: “Nunca acrescentou, todavia, qualquer justificação à convicção de que foi na ilha de Boa Vista, entre os pescadores, que nasceram às primeiras toadas rítmicas e queixosas da morna- razão, acrescentava, porque a morna tinha a cadência do remo 43 “Se a chegada é doce, a partida é amarga; mas quem não parte, não regressa.” 130 na forqueta, e embalava os pares na sala como o bote embalava os pescadores no mar da costa.” (LOPES, 1998, p. 16). O ritmo da Morna seria análogo ao das ondas do mar, com uma cadência correlata aos movimentos dos remos dos barcos de pescadores; as composições traziam os lamentos e as queixas desses pescadores que “para esquecerem as horas, arranjaram uma cantilena ao ritmo do balanço do bote” (LOPES, 1998, p. 16). O estudo sobre a origem da Morna, conforme Vasco Martins (1990), é problemático, pelo fato de não existir uma documentação relativa a essa forma da memória coletiva. Para Benilde Caniato (2005), “há opiniões divergentes quanto à origem desse tipo de produção. Sua gênese perde-se no tempo em que se dá o processo de aculturação” (CANIATO, 2005, p. 75). A partir desse contexto, explica-se que a Morna teria tido uma origem remota no Lundum africano, “no doce lundum chorado”, que o poeta brasileiro Caldas Barbosa introduziu nos salões de Lisboa (ABDALA JUNIOR, 2011, p. 83). Para compor as suas Mornas, Tói precisa da proximidade do mar: “quando sinto que estou para ter morna, procuro sombra. E sombra com mar diante... Só com mar diante” (LOPES, 1998, p. 17). E, nessa intimidade com o mar, em “voz alta, manejando o braço direito como um mestre de banda”, Tói cria a primeira quadra nascida das ondas, mesmo sem as mencionar explicitamente: “Sê rosto ê sol de nha tristeza, Nha rosto ê céu que ta variâ: Se Sol bem, ta fazê clareza, Ma só el dxó’m, scuro tapâ”44 (LOPES, 1998, p. 20). A Morna, portanto, torna-se o centro da narrativa do conto, registrada em língua cabo- verdiana - o crioulo, falado em todo o arquipélago. Enquanto cantiga popular tradicional, ela se destaca como um dos temas mais frequentes nas ilhas e como ponto de referência do regionalismo cabo-verdiano. Para Manuel Ferreira (1973): […] “as estórias do conto são narradas em crioulo porque o crioulo é a língua mais doce e que chama mais a nossa atenção e desperta o interesse. É a língua mais expressiva. Que haverá de mais querido e mais plasmado à nossa sensibilidade do que aquele meio através do qual exprimimos as nossas virtudes? [...] esta língua, o crioulo, não deve ser apenas sentimental [...] cola, pode dizer-se, à realidade cabo- 44 Seu rosto é o sol da minha tristeza / Meu rosto é céu que muda: / Se o Sol vem / aparece / surge, ilumina-se, /Mas se me deixa, escurece-se. 131 verdiana tão perto que se pode afirmar ela exprimir melhor do que qualquer outra língua a essência da civilização especialmente cabo-verdiana.” (FERREIRA, 1973, p. 135- 136). O guarda Tói, de improviso, cria uma quadra em língua cabo-verdiana, sua língua materna, a língua em que pensa e na qual se sente mais à vontade e na que ao se inspirar, surgem as letras de suas Mornas. Na perspectiva de Tói, é o momento do nascimento da Morna e do nascimento de Vênus, ambas emergidas das águas do mar. “Essa emersão não será apenas a imagem do nascimento, mas a do batismo da Morna, batismo de uma literatura que passa a existir enquanto literatura cabo-verdiana” (ABDALA JUNIOR, 2011, p. 88), de expressão própria, original, que traz, sobretudo, a paisagem de Cabo Verde presente nos diferentes contextos. Tal qual a Morna, a literatura nasce a partir da expressão e das temáticas cabo-verdianas, exprimindo a sensibilidade e a idiossincrasia do povo ilhéu. Para o guarda Tói, assim como a morna, “[...] Vênus nascia completa, com cabeça, tronco e membros, e alma” [...] “parte onda, parte mulher ou meio morna” (LOPES, 1998, p.17). O guarda declama cantarolando, duas, três vezes, a quadra recém-nascida das ondas do mar. “ [...] a morna veio do mar. Como Vênus”, [...] surgiu pura e nua das espumas do mar, e também como Vênus, é a protectora do amor porque foi à sua sombra que os nossos avós armaram casamento e o farão também os filhos dos nossos filhos, afirmara Tói, com evidente eloquência, num baile nacional do Tolentino.” (LOPES, 1998, p. 15). Para Simone Caputo Gomes (2010), a relação entre o nascimento da Morna, no conto de Manuel Lopes, e o nascimento de Vênus de Sandro Botticelli, reafirma ideologias vigentes desde a Antiguidade clássica, oriundas da herança europeia disseminada pelo Liceu de São Nicolau. Conforme a autora, Botticelli representou a ideia neoplatônica do amor divino sob a forma de uma Vênus nua, nascida das espumas do mar, flutuando em direção à praia numa concha. Gomes afirma que o “simbolismo da concha na tela renascentista, além do redondo que se associa à simbologia do feminino, parece evocar as qualidades fecundantes da água, e Vênus é considerada, nessa versão, uma deusa da criação” (GOMES, 2010, p. 55). O nascimento de Vênus de Botticelli continua a extasiar o público, bem como os críticos de arte, desafiando-os a descobrir novos significados na tela, constantemente recriada e recontextualizada em outras épocas e culturas. Simone Caputo Gomes também destaca a figura simbólica do galo e sua relação com o guarda Tói. Ambos possuem características semelhantes, como a vigilância e o poder, mas, 132 enquanto Tói representa o criador, o compositor, o galo representa o masculino, a forma como a ótica masculina enxerga Vênus. Perfeita é Vênus e perfeita é a Morna, produto da lira de Tói. Haveria, assim, para representar a Morna, uma mistura inusitada da simbologia do galo com a mitologia da Vênus. Gomes afirma: “Aliando este ícone clássico à imagem do galo e ao que ela representa na memória coletiva dos povos (a vigilância, a criatividade, a ressurreição, o macho e o poder), poderemos chegar a uma aproximação plausível do processo sincrético operado por Manuel Lopes neste conto: a morna, impulsionada pelos ventos alísios (que corresponderiam aos deuses eólicos), no contexto de poder da lira masculina de Tói (o guarda, o vigilante, o “galo”) pode ser traduzida como a criação criatura que convoca à contemplação da beleza perfeita.” (GOMES, 2008, p. 154). É importante notar que, no conto, a relação entre a Morna cabo-verdiana e Vênus, representante do amor e da beleza, reforça a definição das Mornas amorosas de Eugénio Tavares, que trazem a exaltação da beleza feminina tão presente na literatura ocidental, sem deixar de mesclá-la com ingredientes da cultura cabo-verdiana. Em “Galo cantou na Baía”, enquanto a Morna está relacionada ao planeta Vênus, o guarda Tói é comparado ao poeta Eugénio Tavares, por suas composições de Mornas, e por exaltar a cultura cabo-verdiana. A partir desse contexto, Gomes informa que: “Nos bailes (dentre os quais é citado no conto o do Tolentino, histórico baile nacional), Tói é tratado com reverência semelhante à dispensada aos famosos tocadores de mornas, sambas e modinhas brasileiras em voga na época: Salibânia, personagem histórica do mundo musical crioulo, qualifica a arte do guarda Tói, comparável à do grande poeta e músico Eugénio Tavares referência cabo-verdiana para a morna da Brava e sua evolução.” (GOMES, 2008, p. 153). Em todas as ilhas cabo-verdianas, em diferentes publicações literárias, os registros sobre os bailes nacionais são recorrentes. É importante ressaltar que, somente a partir do início do século XX, os bailes organizados nas diferentes ilhas aparecem amplamente citados em artigos, destacados em anúncios de jornais e, até mesmo, nos Boletins Oficiais. Ver-se-á, em outros momentos desta investigação, que os bailes são recorrentemente mencionados nos contos, nas crônicas e nas novelas dos escritores cabo-verdianos (DIAS, 2004, p. 207), destacando-se neles a execução de Mornas. Retornando ao conto de Manuel Lopes, o narrador nos informa que, a poucas braças da praia, o galo que canta na Baía (e que dá título ao conto), por uma segunda vez, “bateu as asas com um ruído seco e metálico de matraca, estendeu o pescoço pelado e cantou 133 sonoramente” (LOPES, 1998, p. 41), anunciando o amanhecer. Para o guarda Tói, o cantar do galo era também o despertar para uma realidade que se anunciava: “Ahn! Cantar de galo, galo canta na baía! Sonha naturalmente que está empoleirado numa árvore que balança com a aragem. Porto abandonado. É como uma casa velha, cheia de aranhas e bichinhos vagabundos. Até galo já canta na baía! Mas é poético. Se fosse rouxinol ou cotovia, como nos livros, mais poético seria. Mas não temos cotovias, temos é galo. [...] Qualquer um que o ouve cantar, fica sabendo que a manhã não tarda, o sol vem perto. Tói declama: Galo cantâ na baía... Assim mesmo na língua sabe da nossa terra.” (LOPES, 1998, p. 42). A simbologia do galo em diferentes culturas, (ocidentais e orientais), incluindo diversas tradições religiosas, está universalmente ligada aos cultos solares, porque o seu canto anuncia o nascer do sol e de uma nova aurora. Também é um símbolo associado à moralidade e à consciência de vigília e coragem, iluminação, premonição e confiança. Em diferentes tradições, o galo é o anunciador ou mensageiro do amanhecer; um símbolo da ressurreição espiritual pregada nas doutrinas do Cristianismo. Nas tradições africanas, o galo está associado ao conhecimento secreto, e, por consequência, à bruxaria. Considerando essas afirmações teóricas apresentadas por Cirlot (1999, p. 51-52) e Tresidder (2000, p. 6), na versão crioula de Manuel Lopes, o primeiro canto do galo “anuncia uma nova literatura, que emerge da Vênus-criatura e continua emitindo suas reverberações até os nossos dias” (GOMES, 2011, p. 1904). No final do conto, o narrador informa que Tói compõe a sua segunda quadra, irrompida de uma catadupa de palavras e música: Já cantâ galo na baía Sol cá ta longe de somâ. Coma m ta longe de Maria. Scuro ta continua 45 (LOPES, 1998, p. 42). A segunda quadra da Morna de Tói está ligada ao título do conto de Manuel Lopes. Entretanto, o segundo canto do galo denuncia a presença de Jul’Antone e seus companheiros chegados à Baía. Com o despontar do amanhecer, Tói reconhece os contornos do barco Grinalda e apreende o contrabando, encaminhando, em seguida, o velho marinheiro e seus companheiros para a prisão. A história termina com a detenção dos contrabandistas, que se 45 “O galo já cantou na baía / Não demora que o sol surja. / Como estou longe de Maria / a escuridão continua”. 134 dera na madrugada, e com Tói pagando sanduíches para os presentes, a fim de comemorar o contrabando apreendido. Nesse conto, Manuel Lopes reúne as mais diversas possibilidades de representações da Morna na literatura cabo-verdiana. O autor busca construir uma literatura engajada, com traços regionais, solidária e comprometida com a realidade do povo cabo-verdiano, principalmente, com grupos marginalizados. É importante perceber a preocupação do autor, que usa a escrita do conto enquanto arte, a serviço da causa política e a favor da sociedade cabo-verdiana como forma de refletir a realidade das ilhas, em um contexto colonial, onde imperam grandes desigualdades sociais. Para o crítico Edvaldo Bergamo (2008), uma literatura engajada é aquela que procura denunciar as mazelas de uma realidade histórica e perversa, uma vez que a arte deve proporcionar reflexão e provocar no leitor uma participação mais ativa aos desafios de seu tempo histórico. Na opinião do autor, é: “Inegável que toda obra de arte possua um posicionamento diante da vida; resta saber, contudo, se essa postura pode ser traduzida em termos de alienação e conformismo à indagação crítica em face aos desafios desfechados constantemente pela vida concreta ao homem concreto, uma vez que o verdadeiro engajamento deve ser formulado no sentido de compatibilidade da eternidade da obra literária com a fidelidade às exigências irrecusáveis da época histórica que reflete.” (BERGAMO, 2008, p. 51). Por fim, um escritor engajado é aquele que, ao apropriar-se da literatura, posiciona-se diante da realidade histórica à qual pertence e atua. Sua função se concretiza quando sua obra toma uma posição revolucionária e serve como veículo de conscientização e afirmação política, sem, com isso, deixar de valorizar a estética e a ideologia na obra. Ressalta-se que muitos são os temas que poderiam ser desenvolvidos na análise do conto “Galo cantou na Baía”. Nas entrelinhas do texto, percebe-se que o autor traz à cena o drama a que o povo cabo-verdiano sempre foi submetido: a luta pela sobrevivência e as diferentes manobras que enfrenta diante dos problemas materiais e existenciais. Para o público leitor, é apresentado um diversificado contexto em que a Morna é mencionada, definida e, a partir de sua origem, identificada como principal traço cultural dos cabo-verdianos. Desse modo, enquanto gênero ficcional que canta e conta a história de Cabo Verde, de sua gente, de suas tradições, ela é considerada o “núcleo do conto de Manuel Lopes” (GOMES, 2008, p. 150). 135 Outras possibilidades de representações da Morna estão presentes nos contos selecionados da obra “Terra Trazida” de Manuel Ferreira. 3.1.2 - A morna em “Terra Trazida”, de Manuel Ferreira “A morna, a busca de comida, o círculo do mar, o terra-longismo, quatro polos de referência da gesta cabo-verdiana. Esta, pelo menos, a imagem viva dentro de mim. A terra trazida por mim.” (FERREIRA, 1972, p. 11) Em 1972, os livros de contos do escritor, contista e romancista Manuel Ferreira, “Mornas” (1948) e “Morabeza” (1958), foram reunidos num único volume, sob o título “Terra Trazida”. Português, nascido em 1917, em Gândara dos Olivais (Leiria) e falecido em 1994, em Lisboa, Manuel Ferreira, este luso-cabo-verdiano, como se apresentava, vem de uma experiência literária ligada aos neorrealistas portugueses. Foi o fundador dos estudos literários africanos, em Portugal e, por ter vivido um significativo período de sua vida em terras cabo- verdianas, na década de 1940, contribuiu para o surgimento do movimento em torno da revista Certeza 46 (1944). Seus ensaios de literatura africana de Língua Portuguesa, bem como suas antologias de poesia são consideradas imprescindíveis para o estudo dessas correntes de criação. Quer pelo ambiente da sua obra literária, quer pela divulgação que fez das literaturas africanas de língua portuguesa, Manuel Ferreira, enquanto escritor de Língua Portuguesa, confere uma maior universalidade à língua de Camões. A sua narrativa de ficção, especialmente os contos publicados no livro intitulado “Morna”, está profundamente marcada pelas experiências que esse autor viveu nas ex-colônias, como Angola e Goa. São histórias em que Ferreira busca denunciar a repressão do colonialismo e do regime fascista implantado em Cabo Verde. Nos contos que ora serão apresentados e que giram à volta da Morna, “Puchinho”, “Belinha foi ao baile pela primeira vez”, “O cargueiro voltou ao porto” e “Uma flor entre os cardos”, Manuel Ferreira procura captar a realidade mindelense, com seus pequenos dramas, elevando-os ao plano da ficção. Referindo-se às ilhas cabo-verdianas, o autor caracteriza-as 46 Os homens que constituem esta geração em torno da revista “Certeza” propõem uma forma diferente de perceber a realidade, a partir da visão marxista. A literatura passa a estar fortemente vinculada ao neorrealismo. Os poetas e ficcionistas desta época não rompem com as ideias da “Claridade”, mas, lhe dá continuidade, com algumas mudanças, descartando o tema da evasão, constante em alguns textos dos poetas claridosos. Nesse contexto, esse grupo prega que é necessário ficar na própria terra, aliar-se e lutar por melhorias, valorizando também a língua. 136 como sendo “Terra pequena, madrasta, entreposto de negreiros [...]. Terra que o tempo e a história destruíram” (FERREIRA, 1972, p. 7). É a terra de “Puchinho”, título do primeiro conto extraído da obra. 3.1.2.1- “Puchinho” “Puchinho” é uma narrativa que envereda pelo caminho das memórias do protagonista da história, que relata, em primeira pessoa, suas experiências pessoais. Imergido em um monólogo profundo, ele questiona seus próprios sentimentos, repletos de melancolia de um tempo que não viveu, de aspirações que jamais realizou. Puchinho recorda o tempo passado: “Como os anos passaram. Como o tempo rolou nesse ritmo que se escapa aos projetos, aos sonhos, aos anseios e ficam os esforços falhados” (FERREIRA, 1972, p. 17). A imagem que segue é a de um vapor grego partindo lentamente das águas do Porto Grande da capital Mindelo, na ilha de São Vicente. Apoiados no muro do cais, dois amigos, Mário e Puchinho, observam a cena e divagam, relembrando os sonhos tão idealizados e tão meticulosamente elaborados. Enquanto o vapor se afasta, percebe-se o olhar sensível e melancólico de Puchinho, ao relembrar velhos tempos, de um passado de sonhos, de afetividade entre os amigos de infância, de imagens da ilha natal e dos seus hábitos e tradições. Porém, rememorar esse passado idealizado, não vivenciado, gera uma culpa no personagem, por não ter partido da ilha, não ter realizado o sonho de emigrar como tantos amigos fizeram, de conhecer novas terras, novos horizontes. Por essa razão, Puchinho compara-se um “balão roto esvaziado caído flácido incapaz de subir” (FERREIRA, 1972, p. 18). O conto é situado na cidade de Mindelo - importante centro cultural, onde a produção artística, como a música, o teatro e a literatura, merecem destaque. Através do olhar de Puchinho, o autor estabelece uma leitura crítica da atual realidade em que se encontra a cidade: “Dia de mala. [...] Homens sujos e rotos curtidos de grogues farras sexo privações desenganados batidos mondongados dormiam ao sol. Mulheres sentadas no chão inexpressivamente olhando, uma ou outra fumando canhoto. [...]. Chusma de miúdos sem vida e sem destino. Soldados macambúzios e relaxados [...]. Uma preguiça velha se coava da beira do cais e tolhia os gestos os modos. Até as palavras.” (FERREIRA, 1972, p. 20). 137 A voz do narrador informa sobre os efeitos da crise que atingira Cabo Verde, ao longo da segunda metade do século XIX e primeira metade do século XX. Porto Grande, localizado na cidade de Mindelo, durante muitas décadas dependeu do movimento marítimo internacional, e sofreu duramente os efeitos da crise econômica depois da Segunda Guerra Mundial. Foi a partir de 1930 que a gravidade da crise do Porto Grande passou a ser sentida com maior intensidade. Diversos fatores contribuíram para o enfraquecimento das atividades portuárias, como a queda do movimento de navios, o aumento do preço do carvão, em São Vicente, que abastecia os navios de outras metrópoles, e o surgimento de novos portos (Canárias e Dacar) com o preço do carvão mais competitivo. Em face dessa situação, muitos dos investimentos foram aniquilados e os trabalhadores, vítimas da situação econômica, ficaram desempregados ou dependentes de subempregos para sustento de seus familiares. Além da conturbada situação pós-guerra, Cabo Verde passava por uma dramática situação de seca e de fome que assolava todas as ilhas. Nesse contexto, e devido ao intenso fluxo migratório de cabo-verdianos oriundos de outras ilhas em busca de sobrevivência, houve, na cidade, uma ampliação da já dramática taxa de desempregados (DIAS, 2004; p. 108; RODRIGUES, 2015, p. 139). Retornando ao conto de Manuel Ferreira, situado nesse cenário de abandono em que se encontra Mindelo, Puchinho medita sobre si próprio, sobre os amigos que partiram para outras terras, sobre a oportunidade que deixou passar, e lamenta, porque “perdera, então, a oportunidade de abalar. Nesse tempo, o pai podia e tanto desejava. Imperdoável. Outro meio. Outra vida. Maiores possibilidades” (FERREIRA, 1972, p. 21). Às oportunidades sonhadas e perdidas, Puchinho compara a realidade em que vive: seus ideais e sonhos estavam morrendo no mar, por isso lamenta-se da sorte, principalmente, porque todos acreditavam nele, “até os professores” (FERREIRA, 1972, p. 22). Tomado por um grande sentimento de frustração, ele se deixa levar pelos acontecimentos do dia-a-dia da ilha e observa as preocupações e inquietudes do cabo-verdiano: “Sobre o veleiro que zarpou. Do sol quente desses dias. Do vento desabalado e da poeira impossível da terra. Da escassez das chuvas. E da fome. A fome impiedosa que mata que ceifa o Arquipélago inteiro. Um pesadelo permitido. Tão velho como o passado. É da vida.” (FERREIRA, 1972, p. 23). O protagonista está perplexo e triste diante da cosmogonia das ilhas, das situações com as quais se defronta diariamente: a tragédia das secas e as desgraças que causam. A voz 138 narrativa toma de empréstimo o trecho do poema “Panorama”, de Jorge Barbosa (na obra “Arquipélago”, escrita nos longínquos anos de 1935), e aproveita-se da intertextualidade com este poeta também cabo-verdiano, para dar mais voz à melancolia do protagonista: Destroços de que continente, De que cataclismos, De que cismos, De que mistérios?... Ilhas perdidas No meio do mar, Esquecidas Num canto do mundo Que as ondas embalam, Maltratam, Abraçam... [...] (BARBOSA, 1935, p. 9) Desconfortável, nessas terras perdidas, esquecidas, maltratadas e, curiosamente, acariciadas pelas ondas do mar, Puchinho sonha com sua partida da ilha: “Vou me empregar no Telégrafo. E, nas horas vagas, trabalhar na literatura a sério. Dar uma volta à minha vida. [...] Depois, talvez uma saltada a Lisboa e, então, um curso. Mas para voltar. Aqui é o lugar de todos nós” (FERREIRA, 1972, p. 25). Característica da temática da evasão cabo-verdiana, a ideia de partida em Puchinho também implica de imediato, o seu regresso, porque “Aqui é o lugar de todos nós”. Assim, mesmo na perspectiva ainda não consumada de partida, Puchinho já prevê seu retorno à terra natal. É por essa razão que Alfredo Margarido (1980) afirma que o cabo-verdiano “nunca chega a partir completamente e, mesmo quando se afasta, quando se radica em outro ponto que não o arquipélago, mantém os fundamentos mais típicos da sua cabo-verdianidade” (MARGARIDO, 1980, p. 403), ou seja, procura conservar os valores culturais que o identificam e o ligam à sua terra, como a língua crioula, a culinária, as músicas, entre outras expressões. Entretanto, Puchinho desperta desse “sonho”, ao ouvir o chamado do amigo Brito, convidando-o para mais uma noite “sabe” de Mornas e serenatas, de “violas, cavaquinhos e violinos”, para ouvir “aquele moço que canta Morna de verdade” (FERREIRA, 1972, p. 27). E, assim, os dois amigos partem “para a conquista da cidade prisioneira do mar” e dos botequins, das esquinas, das janelas, dos recantos onde se dedilhavam e entoavam Mornas. 139 De repente, em um dos botequins da cidade, surge “um rapaz de modos lentos, chegado da Praia, dentes tão brancos, olhos inchados grandes esquisitos, bigodinho ralo, um jeito amoroso na voz. Um caso sério esse badiu47 de pé-rachado” (FERREIRA, 1972, p. 26- 27), e “em êxtase, e num sabor de crioulo fundo”, atirou para a noite “Brada Maria”, a Morna mais antiga de Cabo Verde, que canta o amor e o sofrimento motivado pela traição. “Brada Maria” é entoada em uma clássica balada mindelense, levando os pares a um “sentimento de insatisfação trazida pela melancolia da Morna e das horas tardias” (FERREIRA, 1972, p. 27). Percebe-se, nesse conto, que o narrador mostra que, nas diferentes circunstâncias em que o cabo-verdiano se encontra, a Morna é sempre mencionada e caracterizada como a música de Cabo Verde, por excelência, com seu ritmo lento, de cariz fundamentalmente saudosista, com temas sobre o amor, a emigração e a saudade. Com esse sentimento nostálgico, Puchinho retorna para casa. No silêncio da cidade deserta, revive o peso da noite, “da imagem do moço badio cheio de mansura, que sabia cantar Mornas de Eugénio Tavares, de Belèza” (FERREIRA, 1972, p. 28). Manuel Ferreira se refere aos dois mais conhecidos e imortais poetas que legaram a Cabo Verde a perenidade dos seus temas líricos nas Mornas, dos sentimentos e vivências e de suas mais profundas manifestações de saudade, de amor e apego à Terra-Mãe. E o conto finaliza com Puchinho dormindo, envolvido por um sono mansinho, como as melodias de uma Morna. Foi sob o prisma da memória que essa narrativa foi desenvolvida. Puchinho representa a juventude cabo-verdiana em sua mais típica tensão: ficar ou partir. Ficar na ilha, próximo da sua gente, dos amigos, preso ao destino e à “alquimia do veneno das ilhas”, frente à afronta da seca e da miséria ou partir para a “terra-longe”, o que responde ao apelo mais forte da sobrevivência (SANTILLI, 1980, p. 9). O protagonista em primeira pessoa desenvolve um monólogo interior no qual narra os momentos da crise existencial que passa nessa Mindelo abalada pelas crises econômicas. O leitor toma conhecimento das recordações e pensamentos instaurados na cabeça do jovem Puchinho, nessa narrativa com características frustradas e melancólicas, porém, como uma Morna, plena de lirismo. 3.1.2.2- “Belinha foi ao baile pela primeira vez” 47 O termo “badiu” remonta ao século XVIII e refere-se aos homens e mulheres naturais da Ilha de Santiago, que por muito tempo foram retratadas como pessoas ignorantes, iletradas, violentas e pouco refinadas na sua forma de ser. O termo é também uma identificação regional dos cabo-verdianos que está relacionado a uma dimensão racial, porque os badius costumam ser associadas a pessoas de peles escuras, herdeiras das tradições africanas que disseminaram suas culturas na ilha de Santiago (BATALHA, 2002, p. 74). 140 “A Morna são os pares que volteiam na sala onde se adensou o fumo do tabaco e o grogue e o amor aqueceram as almas”. (FERREIRA, 1973, p. 196) Nesse segundo conto selecionado da obra “Terra Trazida”, a ação centra-se na iniciação sexual da personagem principal, Belinha, uma adolescente de catorze anos, ansiosa para frequentar os famosos bailes das noites tropicais mindelense. O conto começa com a jovem pedindo permissão à mãe para ir ao baile: “- Mamãe, eu queria ir hoje ao baile de Zé de Canda” (FERREIRA, 1972, p.31). É importante apontar que os bailes, em Cabo Verde, eram considerados uma ocasião de lazer e de encontro aberto entre pessoas de todas as classes sociais. Conforme relembra Luís Manuel de Sousa Peixeira (2003), o baile nacional: “[que acontecia], Aos sábados à noite em várias associações recreativas e salas improvisadas, é uma verdadeira instituição; constitui a expressão de alegria de um convívio numa terra de poucas diversões. Mas existiam áreas na cidade em que a mistura acontecia, em que os diferentes grupos se consubstanciavam em “Espaço de Mistura”.” (PEIXEIRA, 2003, p. 151). Quanto aos bailes realizados em São Vicente, já nos anos de 1882 (fazendo um recuo na história), o português Joaquim Vieira Botelho da Costa profere uma comunicação direcionada à Sociedade de Geografia de Lisboa; ao povo cabo-verdiano, relata que “este povo, como o de toda província, é muito amante de festas e folgares, para o que aproveitam todo e qualquer pretexto [...]. Mulheres e homens são infatigáveis dançadores e dansam [sic] mesmo bastante bem” (COSTA, 1882, p. 128 e 160). Para as mães que criavam suas filhas sozinhas, os bailes representavam lugares de sedução de meninas ingênuas. A mãe de Belinha, então, procurava não expor a filha aos perigos dos bailes de São Vicente, das pessoas que não faziam parte do meio social em que elas estavam inseridas. Na intenção de proteger a filha, a mãe argumenta: “ - Minha filha, não sejas disparatente. Tens só catorze anos. Ainda és muito nova, já disse. Quando fores mais crescida, deixo-te ir a todos os bailes de Soncente. Mas tu sabes, eu quero tirar-te do perigo. Eu quero-te moça séria. Tu és filha de Santo Antão. Não te esqueças disso. Tu sabes, moça de Santo Antão é moça séria. Não é menina daqui de Soncente. Quero tirar-te da perdição. Moça perdida não se casa mais. Hoje é dum, amanhã é doutro.” (FERREIRA, 1972, p. 31-32). No conto, a mãe de Belinha tem um papel central na estrutura familiar, pois ela é a provedora da família. Além disso, suas lutas e sacrifícios simbolizam a precariedade social e 141 econômica, resultado das contingências da emigração e do desemprego. Muitas mulheres, abandonadas pelos pais dos seus filhos ou separadas, tornam-se as únicas responsáveis por suas vidas, e assumem-se como chefes de famílias; sozinhas, criam e sustentam seus filhos trabalhando fora em serviços de construção civil ou como lavadeiras ou cozinheiras. Nessa narrativa, enquanto o leitor é guiado pela geografia da cidade, o narrador em terceira pessoa, como verdadeiro cicerone, vai caracterizando a geografia humana, ao mesmo tempo em que fornece sua “visão por detrás” dos acontecimentos. É importante informar que a teoria das “visões” mencionada nesta investigação foi fundamentada a partir das pesquisas do francês Jean Pouillon. Em seu livro O Tempo no Romance (1974), publicado originalmente em 1946, o autor estabelece três tipos de visão para compreender a interioridade do personagem em uma narrativa: a visão "com", a visão "por detrás" e a visão “de fora”. Na visão “com”- surge um único personagem como centro da narrativa; em muitas situações, representa a temporalidade decorrente das reflexões ou sentimentos da personagem, de sua visão externa a partir da visão interior. Na visão “de fora”- o narrador ao falar dos acontecimentos toma distância das diferentes emoções dos personagens, ou seja, “de fora” ele observa os fatos externos, condutas e limita-se a descrevê-las. Na visão “por detrás” o narrador encontra-se não dentro do mundo representado, mas “por detrás” “como um demiurgo ou um espectador privilegiado que conhece o lado inferior das cartas” (POUILLON, 1974, p. 54), dominando todo um conhecimento sobre a vida da personagem, suas circunstâncias, seu interior, passado e presente e sobre o seu destino. Neste contexto, conforme Pouillon, o romancista é quem escolhe a sua posição para ver a personagem. Assim, o conto de Manuel Ferreira refere à cidade Mindelo como reconhecida terra das festas, das diversões, considerada a capital cultural de Cabo Verde. Ganhou fama e prestígio pela vida agitada, pelos bares animados com música ao vivo, pelas novidades vindas de fora, pelo fluxo de estrangeiros de nacionalidades diversas que chegavam à ilha, transformando o cotidiano e o ambiente do cabo-verdiano. Com características de cidade cosmopolita, portuária, Mindelo é também conhecida pelos eventos que lá acontecem anualmente, como o Carnaval, as festas de fim de ano e o Festival Internacional da música realizada na Baía das Gatas. Em relação às protagonistas, mãe e filha moram em um dos bairros pobres mindelenses, Monte Sossego, que se resumia a um amontoado de casebres rasteiros remendados com pedaços de lata roubadas dos ingleses no porto. De tão pobre e silencioso, 142 dir-se-ia que o local havia parado no tempo “em meio desse sossego, dessa tristeza apertada, e longe começou a subir uma Morna como se fosse choro de gente” (FERREIRA, 1972, p. 33). A ideia de que os instrumentos “choram”, “gemem”, “soluçam”, “soltam gritos plangentes” e produzem “chorosas notas” (DIAS, 2004, p. 202) está relacionada ao sentido que pode ser dado à música, vista tal qual uma lamentação que evoca mágoas profundas. O sentimentalismo na composição da Morna é traçado pelos tocadores, uma vez que a música executada por eles busca expressar os sentimentos valorizados pela cultura cabo-verdiana, como a saudade, a partida, o amor não correspondido, as injustiças do destino e outros temas que evocam, em tempos de seca, sobretudo, a tristeza e a dor (DIAS, 2004, p. 202). Sentadas à porta, lado a lado, a filha agarra uma das mãos da mãe, aperta-a com força e rompe a soluçar baixinho. Esse choro de Belinha se junta ao choro da Morna, na voz e no violão do troveiro Muxim48, que cantava uma “saudade como um prisioneiro eterno da ilha” (FERREIRA, 1972, p. 33). Belinha insistia: “Mamãe, deixe-me ir ao baile. Mamãe, se eu não vou, eu desespero. Deixe-me, mamãe” (p. 33). E a menina derrama um choro tão semelhante a uma Morna que se ouvia no bairro, tão intenso, que a mãe se deixa levar pelo arrebatamento do mornista e enfraquece seu poder de decisão. Permite, então, que a filha vá ao baile e siga ao encontro do seu destino, mas impõe uma condição: que ela tivesse cuidado com os rapazes de “Soncente”: “A noite veio e nela um sabor uma morabeza um bafo de desejos alcançados. E o baile de Zé de Canda crescia nas horas tardias dessa noite luminosa. Apareceram os rapazes da morada. Moços de repartição, moços de liceu, rapazes voluntários que lhes dando na veneta punham tudo em estado de sítio, mas também sabiam lidar com todos os modos de sedução. [...] O cheiro de petróleo, o suor dos corpos, a respiração excitada daquela gente turbulenta empestavam a sala do baile.” (FERREIRA, 1972, p. 34). A música começa. Moças e rapazes dançam ao ritmo da Morna e dos sons que envolvem os pares em sentimentos mistos. Os rapazes apertam as moças, e elas, flexuosas, moldam o seu corpo no corpo deles. Em Belinha, surge uma atração mansa, marota por Miguelim, moço conhecedor dos portos do mundo e de mulheres, que confunde os sentimentos da adolescente. Ela inquieta, questiona-se: “Como afastar-se dele? Quer, mas não consegue. Que força é essa que vem desse moço de braços fortes, pele bronzeada, lábios grossos que lhe dá vontade de sentir-se bem apertada bem enterrada no corpo dele?” (FERREIRA, 1972, p. 36). 48 Zeferino José Andrade (conhecido como Muxim do Monte), figura lendária, importante cantador de mornas (RODRIGUES, 2015, p. 30). 143 “A música parou. E os pares, entregues à moleza gostosa da Morna, bateram palmas e pedem bis” (FERREIRA, 1972, p. 36). Em “Aventura Crioula” (1973), Manuel Ferreira pontua que “é no baile que a Morna alcança a sua terceira dimensão: o ritmo da dança lenta, quaternária, amorosa, adquirindo, assim, a expressão total, dado que ela é sempre para ser cantada e dançada” (FERREIRA, 1973, p. 172). Nessa atmosfera festiva e envolvente, Belinha é contagiada pelas Mornas que se dançam e cantam. E, apesar dos conselhos da mãe sobre os cuidados que deveria ter com seu corpo e com a atenção que deveria tomar com os rapazes de São Vicente, a jovem se deixa seduzir por Miguelim: “para que resistir e dizer que não, se tudo vinha envolvido na Morna de Muxim do Monte?” (FERREIRA, 1972, p. 38). A melodia acaba, “os corpos imobilizam-se e ficam por instantes colados desfazendo o encaixe molemente” (FERREIRA, 1972, p. 38). O rapaz aproveita o momento para seduzir Belinha: “Miguelim estreitou Belinha. [...] ciciou lhe: “Belinha, eu quero falar-te. Estás a ouvir? Estás a ouvir, Belinha?” O corpo do rapaz colado ao seu, deixava que ele a dobrasse toda pela cintura... A noite alongava-se. Os corpos excitavam-se e a todos percorreria o desejo de liberalidade. O trompete atirou para a noite um grito desafinado, num compasso de dança negra, de batuque moderno. Um ritmo que penetrava na carne, um apelo das origens da terra-mãe africana. E nessas noites tropicais a morna de B. Léza é cantada por Mochinho do Monte. E Belinha foi ouvindo as palavras, cedendo pouco a pouco numa tensão de desespero e deliciosa entrega. O trompete, no auge da sua loucura, abafou as palavras da moça. Sumidas dolorosas. Submissas. “_Não. Não”. A voz da noite sabe como intentação.” (FERREIRA, 1972, p. 39). A Morna sempre foi uma das formas musicais mais apreciadas e partilhadas nos denominados bailes nacionais, era “dançada tanto no funcho como no sobrado” (PEIXEIRA, 2003, p. 173) e, nesses encontros festivos, o carismático músico e também poeta Francisco Xavier da Cruz, conhecido por B.Lèza ou como o “saboroso troveiro que, durante anos e anos, derramou pela sua terra algumas das Mornas mais apetecidas do romanceiro crioulo” (FERREIRA, 1973, p. 164) é sempre mencionado pelos ficcionistas. Essa referência se deve à habilidade com que o intérprete e mornista estabelecia uma relação íntima entre a Morna e os sentimentos do cabo-verdiano. Suas letras populares exortam os valores e os sentimentos do amante apaixonado, pela sua modalidade sentimental, pelos textos poéticos que se aproximam do dizer cotidiano. Assim, a Morna de B.Léza é cantada coletivamente, nos bailes de São Vicente, e atinge todas as camadas sociais. 144 Nesse conto, portanto, Manuel Ferreira utiliza-se do clima sensual proporcionado pela Morna (tanto pela música como pela dança) para desenvolver o tema da sedução, envolvendo adolescentes, nos bailes da cidade de Mindelo, permite ao leitor entrever a desventura futura de meninas. No baile de Zé de Canda, Belinha é seduzida por um parceiro de dança e segue a sina de outras meninas na sociedade cabo-verdiana: é vítima de uma iniciação sexual precoce contra sua vontade que, nas palavras da pesquisadora Sônia Queiroz, foi arte de perigosos “predadores” (QUEIROZ, 2010, p. 69). 3.1.2.3 “O cargueiro voltou ao porto” “Tu vais e eu fico Mas nos acordes do teu violão Há a morna que perdura”. (MARTINS, 1963, p. 51) Em “O cargueiro voltou ao porto”, Manuel Ferreira aborda o problema da fuga e da viagem clandestina aos quais muitos jovens cabo-verdianos se submetem em troca de melhores condições de vida. No primeiro cenário, testemunha-se um diálogo entre mãe e filho. Manuel Lima, conhecido como Lela, jovem de dezoito anos, magro e faminto, conversa com a mãe sobre o naufrágio do veleiro “Matilde”, que, na partida das ilhas rumo à América, “foi para o fundo do mar” (FERREIRA, 1972, p. 57): “- Mamãe, papai era mesmo capitão de navios? ‘– Deixa de disparate, meu filho’ (FERREIRA, 1972, p. 57). O filho espiava os olhos da mãe, cansados, sentados à porta sobre duas pedras puídas, de velhice, a música avivando e reavivando durezas e sonhos da vida. Enquanto ouviam a música de uma viola isolada, da voz de uma Morna, drama de pátria mestiça” (FERREIRA, 1972, p. 58-59). Em “O cargueiro voltou ao porto”, o autor compara a Morna ao “drama da pátria mestiça”, ou seja, aos problemas sociais vividos pelos cabo-verdianos e que fazem parte da sua história que não pode ser contada sem que se discorra sobre a estiagem que culminava na fome, na morte, na emigração clandestina e em outros dramas que homens e mulheres vivenciam desde a colonização das ilhas. Tem-se, assim, uma narração “por detrás” (heterodiegética), em que o narrador descreve os eventos de uma perspectiva externa e conta em terceira pessoa a história do jovem Lela. Assim, o leitor vai se dando conta de que, na ficção cabo-verdiana, o tom de denúncia é bastante recorrente. Nesse sentido, deve-se ressaltar que a história e a ficção são tipos de 145 narrativas sintéticas e recapitulativas e que ambas têm como objeto a atividade humana. Para o historiador Paul Veyne, “Como o romance, a história seleciona, simplifica, organiza, faz com que um século caiba numa página, e essa síntese da narrativa é tão espontânea quanto a da nossa memória, quando evocamos os dez últimos anos que vivemos.” (VEYNE, 1998, p. 18). Essa seleção e organização é o que o historiador britânico Robin George Collingwood (1952) chama de imaginação a priori, comum ao historiador e ao romancista. Enquanto criadores de obras de ficção, os trabalhos do historiador e do romancista não diferem, mas afastam-se quando a imaginação do historiador pretende ser verdadeira (COLLINGWOOD, 1952, p. 234). Esse autor considera que o historiador deve empregar sua imaginação ao fazer um relato histórico, pois a imaginação é uma “faculdade cega”, mas indispensável, sem a qual não poderíamos perceber o mundo que nos circunda; e essa percepção é indispensável, da mesma forma, para a história e o historiador. Assim Collingwood afirma que a história é, simplesmente, um ato verídico, uma construção de uma experiência, que reconstrói uma temporalidade e a transpõe em narrativa. Isso é o que Hans Robert Jauss denomina de “estetização da história, ou seja, a colocação em ficção, ou a narrativização da experiência da história” (JAUSS, 1989, p. 81). Nesse viés e frente às questões históricas do arquipélago de Cabo Verde, a Morna é uma narrativa que se impõe como expressão genuína da vivência coletiva. Nos seus mais diversos aspectos, ela conta a história das ilhas e propõe diversas interpretações, valendo-se do discurso poético e literário. Dando sequência ao conto de Manuel Ferreira, o narrador mostra a cidade de Mindelo: ao fundo, a baía. Veleiros. Um ou outro barco. Enquanto mãe e filho sonham com “longínquas paragens, outras gentes, a fartura, o dólar da América” (FERREIRA, 1972, p. 58), o narrador apresenta, por meio da memória da mãe, fatos que marcaram sua vida: ela rememora, traz à cena suas experiências passadas, mobilizando-as e pondo-as em ação para construir uma narrativa de si. Fala de um passado ainda mais triste, da saudade de São Nicolau, sua ilha natal, da fome e da morte que assola Cabo Verde; “a morte coletiva, a morte anônima; a solidão que ecoa de todos os cantos: das rochas, dos coqueiros, da cidade e do mar” (FERREIRA, 1972, p. 59-60). O diálogo envereda pelos caminhos do lamento, da saudade: “- Mamãe, quando vamos para nossa terra”?” “ - Meu filho, agorinha assim, não pense nisso.” “ - Lá, fome é ainda mais 146 crâ.” “ - Mamãe, nós aqui morremos de saudade...” “ - E lá, meu filho? Lá morríamos de fome” (FERREIRA, 1972, p. 58). Os temas da saudade e da fome são recorrentes na literatura cabo-verdiana. A saudade está ligada ao passado do protagonista, ao sentimento que o liga à sua terra natal e às pessoas amadas; a fome é crônica, é o “drama da pátria mestiça”, é também “o drama do poeta e da sua ilha: a fome de saber e de comida; a falta de liberdade e a negação da dignidade; o aumento da pobreza; a proliferação da injustiça; a legalização da morte” (VEIGA, 2004, p. 37). O drama da fome é ilustrado em diferentes obras cabo-verdianas. No prefácio do livro “Terra Trazida” (1972), Manuel Ferreira considera que o cabo-verdiano resiste à fome se houver milho, feijão e leite. Mas, com a escassez das chuvas e o desaparecimento da cabra, o equilíbrio começa a ser destruído. O cabo-verdiano ainda consegue subsistir com o milho e o feijão, dois alimentos com os quais prepara a “cachupa pobre”49. Porém, se resta pouco milho, instala-se a tragédia da fome, que o autor caracteriza como: “Fome oculta, fome crônica, fome epidérmica, fome total. A boqueira, o beribéri, a caquexia, o inchaço, a pelagra larvando. A pelagra na sua destruição dos três dd: dermatose, diarreia, demência. É nesta dura caminhada, nesta longa odisseia, dezenas de milhares caídos de morte morrida, morte matada.” (FERREIRA, 1972, p. 8). A fome e a falta de trabalho trazem o desespero ao povo de São Vicente. Para o jovem Lela, não há emprego: “No cais trabalho não tem. Nem em bote nem na Companhia Inglesa. Somente no contrabando. Toda a ilha sofre com a fome. Toda a ilha está morrendo, não resta nada, nem milho nem batata nem mandioca. Tem gente que vendeu tudo. Tábuas de sobrado, janelas de casa, portas, tudo enquanto.” (FERREIRA, 1972, p. 59). Nesse cenário, o autor retrata as ilhas desfavorecidas pela natureza e, parafraseando Jorge Barbosa (1935), caracteriza-as como “terra abandonada, esmagada sob o peso do sol penetrante, terra seca cheia de sol” (BARBOSA, 1941, p. 14), ao que Ferreira (1972, p. 61) completa: “Terra amargurada [...], Terra pobre, amarela e tristonha”. Ao perceber a entrada de vapores estrangeiros, na Baia de Ribeira Bote, Lela busca meios de fugir da ilha. Sua esperança está em “correr mundo”, mesmo que viaje no porão de algum barco estrangeiro. Ele e os amigos combinam, então, de fugir no primeiro vapor, 49 Prato tipicamente cabo-verdiano, preparado com milho e feijão, acompanhado de um refogado de cebola, azeite ou banha, alho e sal. 147 metendo-se nas sacas de carvão e ficando enterrados nelas. Entretanto, um dos companheiros de fuga não aguenta a falta de ar e eles são descobertos por um dos guardas e denunciados para o Comissário: “Vocês são uns gajos do catano. Sempre gostava de saber o que é que iam fazer no barco, clandestinamente. Nem cédula marítima nem documentos. Sempre gostava de saber. [...] Mas vamos a isto. Diz-me lá sem rodeios e em português. Essa mania do crioulo há-de acabar. Só me interessa saber uma coisa. O que é que tu e os outros iam fazer? Diz lá: Lela procurou responder no melhor português que sabia: _Patrão, nós ia por esse mundo para arranjar trabalho. O patrão-mor olhou-o bem nos olhos: _Tens família? _Tenho mamãe. O patrão-mor levantou-se. Parecia hesitante. Um problema de consciência? Este gajo fugiu para arranjar trabalho. Ali era a miséria que se via. Morria-se de fome. Este gajo tem razão. Mas a lei corta como aço. É fria como a neve. [...] Que tinha ele a ver com aquele gajo? Tinha alguma necessidade de se chatear?” (FERREIRA, 1972, p. 64-65). O Porto Grande era a porta de saída clandestina para muitos jovens que queriam deixar Cabo Verde. Isso se devia ao fato de que a metrópole não concedia facilmente passaportes aos naturais das colônias. Sair de Mindelo não era difícil, desde que se conseguisse obter uma cédula marítima como trabalhador do mar. Aqueles que não conseguiam emigrar saiam clandestinamente nos barcos estrangeiros (RODRIGUES, 2015, p. 195). Esse contexto ilustra o que se chamou “emigração forçada”, ou seja, o cabo-verdiano procura, a todo custo, sair do arquipélago por razões estritamente econômicas, em busca de trabalhos ou terras onde tenha melhores condições de vida (GRAÇA, 2007, p. 96-97). Lela, porém, não consegue emigrar: “O patrão-mor foi para dentro com os autos, resolvido nesta ideia. Se puder, mando este tipo embora. Mando, não mando, e depois? Bolas só a mim é que me acontece disto. No dia seguinte, a mãe foi ver Lela ao Vovô, nome que na ilha se dá à prisão.” (FERREIRA, 1972, p. 65). Mais uma vez, a voz narrativa afirma que “desgraça assim não mais dela se esqueceria” (FERREIRA, 1972, p. 60). O conto finaliza ao som dos acordes de uma Morna, que lembram a tragédia e a inquietação de um povo que, apesar da dor do abandono, resiste. 3.1.2.4 “Uma flor entre os cardos” Morna Carícia nua No coração da nossa terra Pobre e desflorida (BARROS, 2011, p. 18) 148 No quarto e último conto selecionado, “Uma flor entre os cardos”, Manuel Ferreira, também através de um narrador heterodiegético, que relata “de fora” e em terceira pessoa, conta a estória de Rosita que, assim como Belinha, também é uma adolescente, treze anos, que vive com os pais em Chão de Alecrim, “um aglomerado de casinhotas aleijadas batidas pelo vento do mar” (FERREIRA, 1972, p. 131). Fisicamente, Rosita é assim representada: “os olhos são duas amêndoas, cabelo negro, um pouco escorrido, cinturinha fina, túmidos seios a crescerem como papaias, não havia homem que não a mantenhasse. Disputada nos bailes, ao fogo da Morna” (FERREIRA, 1972, p. 133). Na ótica patriarcal, Rosita é descrita como um objeto de desejo, associada a valores sexuais, à passividade. Passando-se por conselheiro, o narrador usa a fala da mãe para conscientizar a filha sobre os perigos que correm as adolescentes sonhadoras, que se entregam aos ritmos das Mornas e das Coladeiras. Porém, apesar da pouca idade, Rosita não descansa enquanto não consegue licença da mãe para ir aos bailes de São Vicente, lugar de diversão, alegria e encontros que, na visão da progenitora, são “cheios de desgraça, de moças mocratas50 por todos os cantos” (FERREIRA, 1972, p. 132). Ela aconselha a filha nesses termos: “Minha filha espia. São meninas de vida. Pegam doença ruim. Ninguém tem mão nelas. Tomâ cuidado com elas são meninas arregaçadas. Dançam coladeiras nuinhas para a gente de bordo. Aqueles homens dão dinheiro para grogue, elas bebem e pronto.” (FERREIRA, 1972, p. 132). Na visão da mãe de Rosita, as “meninas de vida” são socialmente discriminadas e exibidas como exemplo que fere os padrões morais da sociedade local. A mãe de Rosita representa todas as mães cabo-verdianas que, como parte das suas funções domésticas, ensinam comportamentos, educam. Seus conselhos recomendam “juízo”, com vistas a casamento, à manutenção do papel de mulher ideal, pura, virgem, que cuida do lar. Do contrário, ser mocrata ou “menina-de-vida”, “menina arregaçada”, com “doença ruim”, esperando homens e frequentadora do espaço são-vicentino reservado às prostitutas, é um futuro que as mães cabo-verdianas, a todo custo, tentam afastar de suas filhas: “tu sabes, minha filha, é preciso muito juízo. Saber lidar com moço, mas não adiantar na brincadeira. Mulher assim pode arranjar marido para viver” (FERREIRA, 1972, p. 132). 50 “Adolescentes prostitutas”. 149 Rosita, personagem cuja estrutura familiar condiz com os padrões sociais esperados pela cultura patriarcal crioula, era considerada “moça séria”, que “esquivava” aos rapazes, “desarmava-os” quando algum mais atrevido a assediava; sua tarefa maior era ajudar a mãe lavadeira (FERREIRA, 1972, p. 133). Na ficção de Manuel Ferreira, Rosita será duplamente tocada pela dor e pela transformação; primeiro com o surgimento de Tói, moço aventureiro da ilha do Fogo, brincalhão, cantador de sambas e Mornas, dançador de rumbas, que se mostrava com manhas de homem sabido. Clandestinamente, o moço zarpou em um barco grego, deixando a menina “triste, amargurada, esperando uma carta, ansiando por uma promessa de amor ou pelo regresso de Tói, numa tarde qualquer, mas a carta nunca veio e ele nunca mais deu sinal de si” (FERREIRA, 1972, p. 133). Com a chegada de uma tropa a Chão de Alecrim, fez-se festa na cidade, as ruas de São Vicente foram tomadas por desfiles da militança, pelas moças do liceu, pelos soldados furriéis51 oficiais. Para as moças, namorar um furriel era a novidade, era a moda. Por isso, ele tinha o quinhão para namorar, às escondidas, as meninas sérias e finas e aquelas que frequentavam o liceu. No conto, é interessante observar as diferentes representações das meninas da capital Mindelo. São visíveis as relações de poder entre as próprias mulheres, ou seja, entre elas existe uma classificação. É o caso das moças que frequentavam o Liceu, que eram vistas como meninas sérias e finas. Rosita está fora desse rol, não é menina do Liceu. É menina do povo, mas quer casar, arranjar namorado que não fosse somente para divertimentos. Em um desses bailes do Chão de Alecrim, surge o furriel Rui Armando, alto, moreno, gajo de riso malandro, de voz mansa e insinuante, que fala de amor em crioulo e que promete casa, criada e levar Rosita para o continente, onde ela terá “vestidos finotes”, “óleo para os cabelos” e “sapatos como os da Joana” (FERREIRA, 1972, p. 135). Em certa manhã, o furriel, queixando-se de dores no corpo, aborda Rosita: “Acariciou-lhe os braços pôs-lhe as mãos nas coxas. Ela consentia. Qualquer coisa lhe tomava o corpo prendendo-a ali como mel. O furriel conversava dizia graças numa voz do inferno. Insistindo, acariciando, ela percorria duma delituosa sensação, que lhe restava?” Puxando-a para si, Rui assenhora-se de Rosita, que, sem chances de fugir, igual a um “fruto maduro”, sucumbe ao toque e ao gesto do furriel. A adolescente, que antes era uma menina alegre, que por onde passava deixava o “gosto saboroso da vida”, torna-se pensativa, 51 Sargento de Cavalaria. 150 como se “a flor desse em murchar”. A mãe desconfia e descobre; o pai, “homem de seu grogue e de sua farra”, ao descobrir o ocorrido com a filha, dirige-se à casa do tropa e o acusa: “o senhor, sabe, Rosa não é mais moça virgem. O senhor desgraçou-a” (FERREIRA, 1972, p. 136). O pai de Rosita exige uma reparação do furriel que, sem argumento, tenta desculpar-se e esquivar-se. Mas Luís Cândido, consciente de que tinha todas as razões, acusa-o e o chantageia “O senhor é tropa. Se quiser, vou fazer queixa no quartel e o senhor vai para a cadeia” (FERREIRA, 1972, 137). Finalmente, Luís Cândido resolve abafar a situação, vendendo a honra da filha para o furriel por trezentos escudos. E, sem pestanejar, argumenta: “Eu sei. Mal está feito, está feito, não tem remédio, não senhor, minha filha não é moça para o senhor, eu sei. Senhor é homem de posição, eu sei. Se me der trezentos escudos, pronto, negócio fica direito. [...] Já tranquilo, o tropa puxou uma fumaça. [...] levantou-se e procurou a carteira. Tirou as notas para entregá-las ao pai de Rosita [...] E quando Rui Armando lhe estendia as notas, o velho, sem pestanejar, rectificou a parada. Senhor Rui, o senhor me dá quinhentos escudos. Trezentos é pouco. O senhor sabe.” (FERREIRA, 1972, p. 137). O conto termina com um sabor amargo de tragédia. Rosita, “que outrora fora a pequena rainha do Chão de Alecrim”, agora é “sensível às Mornas de Belèza”, a um futuro incerto, ou talvez tenha um sonho interrompido. Rosita é o símbolo da cretcheu, cantada como rainha e relacionada à ideia de sublime, de celestial, de pureza e inocência, adjetivos comuns às Mornas de São Vicente, cuja tradição é cantar a beleza das suas mulheres enquanto jovens e inocentes e designá-las como joias, rainhas, princesas. Esses sentimentos estão presentes tanto na lírica como nas canções poéticas interpretadas por Eugénio Tavares, B.Léza, dentre outros. É o que nos confirmam os ensaístas Rodrigues e Lobo: “A morna de Eugénio Tavares e de B. Léza revela a afectividade, o carinho e o apreço que se tem pela mulher, nessa fase, na sociedade cabo-verdiana. Revela certa sensibilidade quase feminina da própria poesia.” (RODRIGUES & LOBO, 1996, p. 69). No entanto, enquanto a Morna de Eugénio e B.Léza exalta a mulher em toda a sua plenitude, em “Uma flor entre os cardos”, Rosita é depreciada pelo próprio pai, quando afirma que a filha não é moça para um “homem de posição”, como o furriel, e negocia sua honra por quinhentos escudos. Sem demonstrar preocupação com a filha, o pai de Rosita dá por encerrada a situação e, com o dinheiro da venda, ruma diretamente ao botequim Scotland Bar. 151 Em mais esse conto, Manuel Ferreira mostra ao leitor que as mulheres de Cabo Verde são submetidas a uma cultura que as oprime e silencia de forma machista e patriarcal, que reproduz conceitos que as inferioriza. Na época da escrita desse conto, a mulher é encarada como um símbolo do prazer, do sexo fraco, valorizada somente quanto a aspectos domésticos. É importante notar que, enquanto no conto “O cargueiro voltou ao porto” vê-se que, para os homens, existe a possibilidade de fugirem clandestinamente escondendo-se nos barcos. Se as mulheres fizessem o mesmo, correriam um grande risco nesses barcos. Em “Uma flor entre os cardos” há indicações de que, para as mulheres, a única forma de fugir das ilhas é casar-se com homens portugueses (militares). Portanto, é-lhes negada uma vida autodeterminada sem tutela masculina. Todos esses papéis “empurrados” para a mulher como verdade são construções sociais de opressão e dominação, que a condenam ao silenciamento e geram sentimentos de tristeza, revolta e dor, também traçados em outras histórias de mulheres, em outros contextos sociais, repassados através da literatura. Isso se observou, com clareza, na história de Rosita, é o que se verá no próximo conto, “Álcool na noite” da obra intitulada “Mornas eram as noites”, de Dina Salústio. 3.1.3 A Morna em “Mornas eram as noites”, de Dina Salústio “Mornas São crônicas da vida cantadas por mulheres” (GOMES, 2000, p. 115) A Morna recebe novas abordagens, após a independência de Cabo Verde em 1975, com a escritura de autoria feminina. Assim, já na última década do século XX, no livro de contos “Mornas eram as noites” (1994), a escritora e poeta Dina Salústio retrata o surgimento da Morna, no cotidiano da mulher cabo-verdiana, e “como elas se entregaram aos dias”. Simone Caputo Gomes, referência nos estudos culturais cabo-verdianos afirma: “A partir dos anos noventa, a voz feminina, silenciada pela História da Literatura em Cabo Verde, tem propiciado o aparecimento de uma temática centrada na mulher, em suas ocupações, preocupações, dilemas e novas posturas: cumplicidade, curiosidade, liberdade, loucura, bruxaria, bebedeira, lesbianismo, prostituição, maternidade precoce, violência conjugal, abuso e prostituição infantil, pedofilia, machismo são linhas constantemente desenvolvidas pelas autoras.” (GOMES, 2008, p. 155). 152 Bernardina de Oliveira Salústio nasceu na ilha de Santo Antão em 1941; é autora das seguintes obras: Mornas eram as noites (1994), A louca de Serrano (1998), A estrelinha Tlim, Tlim (1998), O que os olhos não veem (2002), Filha do Vento (2009) e Filhos de Deus( 2018). Desenvolveu funções como assistente social, jornalista e professora. Para Dina Salústio, “Mornas eram as noites” traz histórias sobre mulheres representadas em diferentes facetas. A autora revela Cabo Verde ao mundo e traz à cena sua cultura e sua arte, o mar e a insularidade. Em uma entrevista concedida a Simone Caputo Gomes, a autora afirma que o livro surgiu de uma: “Necessidade de publicar inúmeras histórias de vida que passam por mim. Não são ficção, é cá um encontro que é verdade, um momento só. Não fiz uma seleção desses textos, só o primeiro foi intencional, para querer mostrar o meu reconhecimento a estas mulheres que trabalham duro, que fazem o trabalho da pedra, que carregam água, que trabalham a terra, que têm a obrigação de cuidar dos filhos, de acender o lume. Quis prestar uma homenagem a esta mulher. Falo das mulheres intelectuais, daquelas que não são intelectuais, daquelas que não têm nenhum meio de vida escrito, falo da prostituta, falo de todas as mulheres que me dão alguma coisa, e que eu tenho alguma coisa delas.” (2008, p. 218). “Mornas eram as noites” é um livro de contos com trinta e cinco narrativas curtas que apresentam, em um contexto multifacetado, um arsenal de temas associados a situações vividas por mulheres cabo-verdianas. Dina Salústio afirma que é “uma mulher que escreve umas coisas” (GOMES, 2008, p. 218), que “conta estórias de mulheres” em um universo identitário regido pelo signo da alteridade, retratando a situação de outras mulheres que, durante séculos, foram silenciadas. Na percepção de Salústio, essas personagens sem nome, sem rosto, sem voz, trazem, ao palco, os problemas que tocam as mulheres não somente de Cabo Verde, mas de diferentes lugares. “Mornas eram as noites” é uma obra que não passa despercebida aos olhos do leitor, pois, nela, o conceito de Morna assume variados contextos. Morna é modalidade musical típica de Cabo Verde, mas é também uma modalidade poética em que o cabo-verdiano expressa sua alegria e dor, a nostalgia e o amor. Ela define diversos sentimentos enraizados na alma dos cabo-verdianos. Para Gomes (2000, p. 115), “Mornas” são crônicas da vida cantadas por mulheres, nas quais estão presentes o ambiente doméstico e todos os sentimentos existenciais do cotidiano feminino. Conforme Daniel Spínola (1998, p. 206), Dina Salústio “capta os pequenos nadas que se geram em nosso íntimo, as grandes contradições a que diariamente somos sujeitos e os 153 fluídicos pensamentos desconcertantes que nos assaltam constantemente”. Para esse ensaísta, Salústio é a escritora da psicanálise por excelência, que capta estados subjetivos, ou seja, a autora percorre e descreve os pormenores, explora o interior dos sujeitos e suas pequenas ações, buscando denunciar as situações dolorosas de seus personagens. Spínola afirma, ainda, que as narrativas de “Mornas eram as noites”: “São contos, ou talvez crônicas. Crônicas do dia-a-dia, vividas e não vividas, imaginadas e não imaginadas, ora de plangências profundas, ora de deleitantes constatações ou reimpressões de factos. São também histórias, histórias do cotidiano, reais e virtuais, imaginárias deste mundo nosso concêntrico e circular, enrolado sobre si mesmo e sobre suas vísceras.” (SPÍNOLA, 1998, p. 207). Nesse sentido, percebe-se que a obra de Dina Salústio cria um sentimento ou, ainda, o reconhecimento de emoções que estão atreladas às vivências diárias dos sujeitos. É o caso de um dos seus breves contos intitulado “Álcool na noite”, que expõe uma das duras realidades vividas por muitas mulheres: o alcoolismo. A narrativa traz à cena a embriaguez de duas mulheres numa noite calma e quente. A imagem feminina se apresenta em situação degradante, humilhante, quase animalesca. A princípio, a narradora-personagem assusta-se com a maneira como um canto é entoado pelas mulheres, parecido com grunhidos de algum bicho, vindo da direção do cemitério: “A noite estava serenamente calma e o calor convidava a estar-se a olhar para as estrelas, preguiçosamente, sem pensar em pensamento nenhum. [...] De lá das bandas do cemitério uma voz canta uma Morna. Tudo normal se a voz não parecesse sair dos intestinos de algum bicho em vez de uma garganta humana, por muito desafinada que fosse. Era uma mulher, reconheci com mais cuidado. Aliás, eram as vozes de duas mulheres. A segunda faz coro com obscenidades e a desarmonia, o desleixo transparecido e o despudor agridem os ouvidos. [...] Vêm-se aproximando. E estão bêbadas. [...] Parecem-me jovens. Duas mulheres ainda novas. E estão abraçadas, tentando equilibrar-se, uma no corpo da outra [...]. Retomam a Morna interrompida. Ó Mar, Ó Mar!” (SALÚSTIO, 1999, p. 56). No mundo da Morna, o espaço da mulher é, por excelência, a cantoria. Por exemplo, na ilha da Boa Vista, falavam-se das kantaderas, mulheres que cantavam o cotidiano, de improviso, do apanhar da água à lavagem de roupas nas ribeiras, ou enquanto ocupadas nos serviços domésticos. Em períodos posteriores, as kantaderas destacavam-se quando participavam dos bailes populares (LIMA, 2002, p. 235-238). De volta ao conto, percebendo o estado de embriaguez, no qual se encontram as duas mulheres, a narradora expressa sua subjetividade: 154 “Há um sentimento incomportável nas palavras quotidianas. Vêm-se aproximando. E estão bêbadas. Depois um palavrão. Talvez o eco de uma topada. E outro. E gargalhadas. Não consegui entender a felicidade dos risos debochados. Mas haveria mesmo felicidade? [...]” Sinto raiva (SALÚSTIO, 1999, p. 56). A narradora em primeira pessoa apresenta um forte sentimento de indignação com a deplorável situação de embriaguez das duas jovens. A cena é ainda mais constrangedora quando uma das mulheres é abordada por uma criança, a filha, que é duramente insultada pela mãe: “- Mamã és tu, mamã?” “-Que mania essa de andares atrás de mim feito cachorro: qualquer dia ainda te desfaço” (SALÚSTIO, 1999, p. 57). Tal como uma peça de teatro, a cena é cortada e as cortinas são fechadas. A narradora questiona os motivos da situação de desigualdade que vivem as mulheres. Ela recusa todo tratamento diferenciado: “A noite não tinha mais magia. Acho que nem estrelas. Apenas uma ferida no sentimento antigo de ver nas mulheres, para além de tudo, seres diferentes. Por que esta incompreensão para a sua embriaguez? Por que o preconceito contra fraquezas que não são minhas?” (SALÚSTIO, 1999, p. 57). Colocando-se no lugar das companheiras, essa narradora se posiciona diante da situação, toma para si a responsabilidade de compreendê-la. Ao mesmo tempo, expõe sua “vergonha, humilhação e revolta. E pena” (SALÚSTIO, 1999, p. 57). Comprometida com a questão de gênero, ela revela a subjetividade feminina e as aprendizagens possíveis a partir de circunstâncias que envolvem as experiências das mulheres. De acordo com Teresa Salgado (2008), todas as histórias de “Mornas eram as noites” tratam de temas amplamente abordados na literatura: a solidão, o medo, a violência social, a miséria, a frustração dos desejos e expectativas: “No entanto, por mais dolorosas que sejam as cenas aí retratadas, o saldo final é o do mergulho do narrador no texto, nutrindo-o a partir de suas experiências pessoais, não como alguém mais sábio, mas como alguém capaz de captar admiravelmente experiências e emoções, compartilhando-as com o leitor.” (SALGADO, 2008, p. 39). Essa compreensão encontra amparo no pensamento de Walter Benjamin. O crítico literário e filósofo alemão aborda a figura do narrador, não mais como um sábio, mas como aquele que é capaz de dar um conselho e cuja tarefa é “trabalhar a matéria-prima da experiência, a sua e a dos outros, transformando-a num produto sólido, útil e único” 155 (BENJAMIN, 1986, p. 221), como o faz a narradora de “Mornas eram as noites”, em cenas curtas, porém contundentes. As histórias que a escritora constrói a partir das experiências vividas no seu contexto, são, às vezes, angustiantes, tristes, bem-humoradas, por vezes cheias de sonhos e esperanças. É importante perceber que o narrador de “mornas eram as noites” participa dos acontecimentos e assume o papel de testemunha presencial dos fatos, é o que o teórico Osmar Tacca ( 1983, p. 62) denomina de relato em primeira pessoa. O narrador de “Mornas eram as noites” narra os acontecimentos da história, que, mesmo sem grande destaque, participa, questiona, critica e testemunha. Sua participação nos acontecimentos pode assumir um papel secundário, ou de mero testemunho presencial dos fatos. Na arte de discorrer sobre as Mornas, Dina Salústio reinventa o cotidiano das mulheres que estão inseridas no mundo doméstico, feminino. Percebem-se, na prosa salustiana, as pegadas dos avanços para a emancipação das mulheres, a denúncia contra as violências sociais, as discriminações sofridas, a iniciação sexual precoce ou violenta, assim como a gravidez precoce, a falta de planejamento familiar, a prostituição, o alcoolismo, os emblemas sociais ainda visíveis no quadro de exclusão das mulheres cabo-verdianas de todas as classes sociais e de diferentes idades. Atualmente, Dina Salústio é uma das ficcionistas mais conhecidas da literatura cabo- verdiana. Sobre ela, o escritor, pintor e crítico da literatura e da cultura cabo-verdiana, Danny Spínola, afirma que “inaugura uma nova forma de comunicar e um novo modo de percepção do mundo” (SPÍNOLA, 1998, p. 205). E essa produção literária do arquipélago é hoje reconhecida pela crítica, pois “inaugura uma nova maneira de dizer o mundo a partir de Cabo Verde” (GOMES, 2000, p. 115). 3.2- A morna no romance cabo-verdiano “América! Mar largo! Amores distantes, Saudades crioulas Das Mornas de Eugénio!” (BARBOSA, 1935, p. 21) 156 A narrativa literária cabo-verdiana começa a ser divulgada a partir do surgimento da revista Claridade, em 1936, ocasião em que ficcionistas apresentam uma temática voltada para as questões sociais, pós-coloniais, carregadas das marcas da luta pela independência e da necessidade de reconstruir uma arte literária que expresse a voz do povo cabo-verdiano e suas necessidades. Manuel Ferreira destaca que “os narradores cabo-verdianos, a partir de Claridade, souberam centrar-se, no mundo específico insular, e procederam a uma denúncia muito viva da sociedade a que pertenciam” (FERREIRA, 1977, p. 63), buscando apresentar uma literatura autenticamente cabo-verdiana que retratasse esteticamente as questões sociais e políticas do arquipélago. Nesse período, uma diversidade de obras se destaca, entre elas, “Chiquinho”, de Baltasar Lopes da Silva; “Os Flagelados do Vento Leste”, de Manuel Lopes, e “Hora de Baí” de Manuel Ferreira. Esses escritores, através de suas narrativas, retratam o universo das ilhas e o cotidiano do homem cabo-verdiano. É o que veremos a seguir, com o primeiro romance que será apresentado. 3.2.1 “Chiquinho” - de Baltasar Lopes Assim como o contexto social cabo-verdiano é retratado, em “Chiquinho” (1947), principal obra literária de Baltasar Lopes, romance considerado marco na literatura cabo- verdiana e um clássico da literatura de língua portuguesa, a Morna é também recorrentemente citada por um narrador autodiegético que se funde com o personagem principal, e que oferece um discurso subjetivo, no qual a narrativa se constrói e “ajusta-se às preocupações formuladas por Manuel Lopes, sob o tema de ‘fincar os pés na terra’; e por Baltasar Lopes, alertando para a necessidade de ‘pensar o problema de Cabo verde” (PEIXEIRA, 2003, p. 211). Dessa forma, o leitor vai percebendo a evolução dos acontecimentos que preparam o desfecho da narrativa e da construção da personalidade do narrador-personagem para a emigração, para a hora da despedida. Sendo a cultura cabo-verdiana o produto de um encontro entre culturas mestiças em sua formação, a Morna, enquanto instrumento de divulgação e afirmação da identidade cabo- verdiana, torna-se seu símbolo sui generis. Ela é, em sua essência, “parceira” em todas as situações em que o cabo-verdiano está inserido, e percorre diferentes momentos da história do 157 arquipélago, desde seu passado colonial, expressando-os no diversificado universo literário cabo-verdiano. No romance “Chiquinho”, o leitor acompanhará o narrador em uma viagem memorialística ao longo das três partes em que estruturalmente a obra se divide. A primeira parte do romance está centrada nas doces recordações do protagonista sobre a sua infância: “- Como quem ouve uma melodia muito triste, recordo a casinha em que nasci no Caleijão” (LOPES, 1947, p. 11). O capítulo apresenta a infância do narrador-personagem na ilha de São Nicolau, lugar onde viveu a meninice e parte da adolescência, em um ambiente rural e familiar, onde recebeu a primeira formação escolar, os primeiros conhecimentos nas letras e nas vivências empíricas. Entre suas lembranças, Chiquinho apresenta um sentimental monólogo sobre a ausência do pai que, mesmo emigrado para a América, “era uma presença constante na nossa casa. Bastava olharmos para a mobília americana, o gramofone, os quadros na parede, para sentirmos papai assistindo conosco, embora tão longe” (LOPES, 1957, p. 15). As razões para a emigração do pai de Chiquinho tiveram como causa: “As secas de novecentos e quinze, quando os sequeiros não deram nada e no regadio a água quase secou. Tudo na nossa vida, a casa, as mobílias, as recordações, os nossos interesses, faziam uma reportagem sentimental que dava a Papai uma presença quase física no meio de nós.” (LOPES, 1957, p. 18). Em suas pesquisas sobre as formas de organização familiar, em Cabo Verde, Juliana Dias (2000), assegura que uma série de fatores tem contribuído para a ausência da figura paterna, nos lares e no exercício do papel de provedor, como as dificuldades oriundas da escassez econômica e os altos índices de emigração. Ao partirem em busca de melhores condições de vida, os pais rompem os laços familiares, deixando à mulher-mãe a responsabilidade de educar e criar os filhos sozinhas. A autora afirma, ainda, que “essas mulheres constroem fortes relações com os filhos e também concentram poder de tomada de decisão em suas mãos” (DIAS, 2000, p. 40). Romance de denúncia e crítica à ordem sócio-política e econômica que vigorava na época, em “Chiquinho”, Baltasar Lopes assume uma postura política que busca retratar os aspectos do cotidiano, de uma diversidade de situações vividas, utilizando-se da escrita como instrumento de denúncia e recorrendo à Morna, gênero artístico presente na trajetória do protagonista e dos demais personagens construtores da narrativa em questão. 158 Entre os episódios que marcaram a vida do protagonista nessa primeira parte, destaca- se, aqui, o momento em que Chiquinho se desloca para participar de uma festa de casamento na localidade Ribeira Prata. Esse episódio é marcado pelo envolvimento sentimental e memorialístico do protagonista na situação retratada: “Fui à Ribeira da Prata assistir a um casamento para que titio fora convidado. Ribeira da Prata! Este nome soava dentro do meu coração como um presságio aziago. Era um grito em noite escura que eu sentia quando evocava os casos que na ilha contavam daquela ribeira povoada de feiticeiras. [...] A campanha do casamento chegou da Vila com o seu cortejo de foguetes. Lembro-me ainda da marcha nupcial com que os rabequistas e os violeiros esperavam os noivos à porta da casa. À noite baile.” (LOPES, 1947, p. 56-58). De um modo simples e descontraído, o narrador-protagonista recorda, em primeira pessoa, alguns eventos que marcaram o começo de sua participação na vida social, no contato com a realidade rural, com as tradições do seu povo. Estas eram conhecidas nas festas de casamento, nas histórias de feiticeiras, retiradas do imaginário, das histórias narradas por Mamãe-Velha e Nhá Rosa Calita, à noite, ao lado de outros meninos solenemente acomodados em bancos. Até mesmo o cão “Baluca” fazia parte desse espaço mágico “de histórias de princesas, de meninos presos a engordar dentro de caixas grandes, por velhas feiticeiras” (LOPES, 1947, p. 22). O narrador destaca o valor e o significado dessa educação com base na tradição oral: “Nhá Rosa Calita ía-nos assim abrindo o entendimento às coisas desta vida, com as suas histórias cheias de segundo sentido, e seu falar sentencioso, vestido de parábolas e alegorias” (LOPES, 1947, p. 25). A Morna é mencionada, neste texto, quando o narrador conta a história da morte de um jovem afogado no mar: “Vinham à minha memória os perigos que contavam da passagem estreita, com rochas altas dum lado, e o mar lá em baixo, batendo como um leão. E cantava na minha cabeça a morna do “Pau, matou o meu filho”, em que numa melopeia muito arrastada, a velha deplora a morte do filho, que, de regresso da América, desembarcou no Barril e, querendo encurtar caminho, na grandeza de ver a mãe, caiu no Pau e se afogou no mar. Tudo obra das feiticeiras da Ribeira da Prata, que não podiam ver um filho abraçando sua mamãe já muito velhinha, depois de ter trabalhado como um escravo naquelas terras que ficam lá longe, no meio do mar.” (LOPES, 1947, p. 57). Baltasar Lopes constrói seu romance, “rompendo com os padrões europeus e assume a responsabilidade de cabo-verdianizar o arquipélago, descolonizando e excluindo os 159 portugueses de toda e qualquer discussão referente ao destino das ilhas e dos homens” (MARGARIDO, 1980, p. 460). A linguagem no romance se organiza, em grande parte, na combinação de estruturas léxicas da língua cabo-verdiana - o crioulo com as da língua portuguesa - o que resulta em uma linguagem direta, descomplicada, coloquial e cheia de termos regionais do falar espontâneo do cabo-verdiano. Ao mesmo tempo em que o autor transpõe para a cena literária a forma de falar do povo cabo-verdiano, buscando sua valorização, enraizada no “fincar os pés na terra”, busca, também, “fixar construções da língua nativa, pelas falas das personagens e pelo discurso do narrador, acentuando a cabo-verdianidade do arquipélago” (CANIATO, 1980, p. 215). O léxico crioulo é, recorrentemente, citado no romance como “mantenhas” (saudações), “codê” (filho mais novo), ou em expressões populares que evocam o regionalismo, como “Saudade é sol da velhice” (LOPES, 1947, p. 204); “Pobreza é mãe da virtude” (p. 201); “Dinheiro é respeito” (p. 203). Essas expressões estão inseridas no que se pode chamar de “literatura humana”, ou seja, aquela que está identificada com a terra e com o povo e com elementos que o caracterizam (SOUSA, 2006, p. 41). Todos esses elementos linguísticos dão ao romance maior força dramática e verossimilhança, concedendo-lhe um carácter realista. Na segunda parte da obra, Chiquinho já está em transição para a vida de adulto e a necessidade de prosseguir os estudos o leva a migrar para a ilha de São Vicente, onde irá concluir o 7º Ano do Liceu. Além disso, o protagonista busca desenvolver seus conhecimentos e aprimorar sua personalidade social, pois, para ele, São Vicente representa a “terra em que a civilização do mundo passa em desfile” (LOPES, 1947, p. 116): “Agora seguiria para São Vicente estudar o 6o e o 7a ano do Liceu. Papai deu ordem e mamãe e mamãe-velha concordaram. Era justo aproveitar a minha boa cabeça. [...]. Ficava-me para trás os campos em que me criei e os companheiros da minha infância. Mas tinha vontade de conhecer São Vicente. Era a ilha que eu sentia da Praia Branca, quando estive com meu tio, para além da cintura do mar [...]. Estava farto de ouvir falar do Porto Grande, no seu movimento, nos seus vapores de trânsito, nas imagens da Europa que passeiam pela cidade. Queria ver o mundo. [...] De lá adivinhava o que o mar escondia aos meus olhos e podia ouvir a voz da minha gente, chamando-me.” (LOPES, 1947, p. 116). O desenvolvimento da ilha de São Vicente se dá a partir de dois importantes acontecimentos: a construção do Porto Grande e a ascensão da cidade de Mindelo, que, a partir de 1917, cresceu e prosperou. Como sede do Liceu Nacional Infante D. Henrique, o ensino teve papel fundamental para o desenvolvimento cultural, na cidade, pois as famílias 160 que tinham melhores condições financeiras enviavam seus filhos para estudar lá. Juliana Dias (2004) pontua que “mais tarde, esse vínculo construído entre São Vicente e a educação formal seria também responsável por fortalecer a imagem da ilha como a capital cultural de Cabo Verde” (DIAS, 2004, p. 107-108). Em Mindelo, momentos marcantes são delineados na trajetória do personagem Chiquinho, como sua socialização com os primeiros amigos do Seminário Liceu, a descoberta do primeiro amor, sua participação como membro do Grêmio Cultural Cabo-verdiano, da Associação Operária Mindelense e sua contribuição na edição do jornal “Voz do Grêmio”. Ainda que inserido em um contexto cultural cosmopolita e festivo, Chiquinho se dá conta dos dramas do Porto Grande: a repressão na ilha, a miséria, a revolta dos famintos encabeçada por Mestre Ambrósio52, a fome representada no amigo Manuel de Brito: “o mais pobre de todos nós. Tenho uma pena imensa da miséria em que meu camarada vive. De tão orgulhoso, ele recusa a merenda dos colegas, mesmo quando seus olhos estão gritando de fome” (LOPES, 1947, p. 170). Retomando a narrativa, para além da convivência com os amigos do Grêmio, Chiquinho envolve-se na atmosfera lírica e amorosa dos bailes da cidade e dos ritmos do Samba e da Morna. Conforme Dias: “A Morna encontrou na Cidade do Mindelo o contexto propício para seu desenvolvimento e sua projeção, agregando qualidades que ajuda a definir esse gênero tal qual a conhecemos hoje. Como a própria Ilha de São Vicente, a morna encontrou no Porto Grande e nos ambientes que o rodeavam fatores capazes de reorientar toda a sua dinâmica.” (DIAS, 2004, p. 95). Enquanto gênero musical popular urbano, a Morna encontrou, no Porto Grande, espaço de importante fertilidade musical, além de valorização e reconhecimento como música nacional. No romance, ela surge nos versos dos poemas de Nonó, “filho da Boa Vista, poeta lírico do grupo” (LOPES, 1947, p. 127), camarada de Chiquinho que compõe Mornas que são cantadas e dançadas nos bailes de São Vicente. Para Chiquinho, “As Mornas que Nonó compunha não tinham o sainete atrevido e saltitante das canções da sua terra. Era sempre uma história de amores tímidos, desesperos silenciosos, pasmos contemplativos perante morabeza e a graça branda da Cretcheu. Muitas vezes, no meio de uma conversa, Nonó largava tudo e seguia a serenata que passava, com o seu toque de violão, em cujos segredos Frank Beleza o tinha iniciado.” (LOPES, 1947, p. 127). 52 A “Revolta de Nho Ambrose” se deu em 1934, quando a Câmara Municipal, a Alfândega e algumas lojas foram saqueadas. Movidos pela falta de recursos materiais, pela miséria que assolava a Ilha, manifestantes desfilavam nas ruas de Mindelo com uma Bandeira Negra, simbolizando a fome. 161 Em diferentes trechos do romance, a Morna é mencionada e revezada com o Samba, música brasileira popularizada e espalhada pelos bailes e serenatas de todo o arquipélago, principalmente, na cidade de Mindelo. Chiquinho, envolvido amorosamente com Nuninha, passa o tempo decorando poesia, apropriando-se da Morna de Nonó, para estabelecer um discurso lírico, cheio de sentimentos e desejos. É importante observar que Chiquinho e seus camaradas de liceu não se isolam do restante da sociedade mindelense, pelo contrário, participam ativamente das incursões pelas tabernas dos bairros populares e pelos bailes organizados por diferentes grupos sociais. Eles se infiltram em diferentes contextos, participam das festas carnavalescas, dos bailes ao ritmo do Samba e da Morna ao som do violino, da viola e do cavaquinho, em que “os rapazes cantam, dançam e requebram, brindando à base de aguardente com vermute” (LOPES, 1947, p. 176). A Morna do momento é “Eclipse”53, tocada nos bailes, “ao som da doçura e da melodia dos violinos e dos violões, batucam o acompanhamento, sobressaem os cavaquinhos que fazem um fundo frenético à Morna langorosa” (LOPES, 1947, p. 177) de B.Lèza apreciada, em Cabo Verde e nos bailes nacionais: “Nonó está emocionado. A Morna buliu com a alma dele. Pedem-lhe que cante. A morna parece que vaporizou a meia fusca que ele trazia. Há gravidade na fisionomia de todo mundo. Também desapareceu a eletricidade que havia no ar. A música espalhou uma neblina de tristeza no ambiente farrista de ainda agorinha.” (LOPES, 1947, p. 177). “Eclipse” foi escrita por B.Lèza, conforme as pesquisas de Moacyr Rodrigues (2015), atendendo a um pedido de Baltasar Lopes: “Pelo seu estilo romântico e sua estrutura bem elaborada, rica de ingredientes semânticos e estilísticos”, descreve, também, a natureza da ilha de São Vicente, entrelaçando uma poesia de caráter culto (representada por Baltasar Lopes) e poesia popular (na figura de B.Lèza o conhecido e amado “troveiro do povo”). (RODRIGUES, 2015, p. 163). No espaço de dança, o narrador registra também a presença do folclore poético de origem africana, quando cita a intervenção de um badiu que introduz na festa um batuque, 53 Conforme Moacyr Rodrigues, “Eclipse”, escrita por Belèza é considerada uma das mornas de maior inspiração, tanto do ponto de vista literário como musical, e teve sua primeira apresentação pública no Liceu Infante D. Henrique, onde o autor estudara (RODRIGUES, 2015, p. 148). 162 cantilena acompanhada da viola e da cimboa. Canta Diguigui Cimbrom54. A sala está na África com seus ritmos, seus tambores, palmas, tornos, requebros, com o “sol na achada e paisagem de savana, com macacos cabriolando. O badiu leva todo o mundo consigo na sua viagem de regresso de século” (LOPES, 1947, p. 180) e nas reminiscências da cultura africana, de seus cantos e danças que ecoam resistência. O sax solta um lamento prolongado de animal nostálgico. Novamente a Morna. O carnaval deixa-se vencer pela tristeza envolvente que vem da orquestra. Baltasar Lopes traz, ao baile, a importante figura de Cesária Évora, quando anuncia a Morna “Miss Perfumado”: “Deixa-me morrer sonhando / Na sombra de teus olhinhos / Duma menina gentil,/ De um corpo perfumado” (LOPES, 1947, p. 183). Considerada uma das mais conhecidas intérpretes da Morna, Cise, como é carinhosamente chamada, com sua voz penetrante, canta a nostalgia moldada em ternura. Foi Cesária Évora, a “musa dos pés descalços”, quem mostrou Cabo Verde ao mundo. É importante notar que as Mornas encontram, na cidade de Mindelo, as condições propícias para serem vivenciadas em toda sua profundidade. Seja através da poesia ou da prosa de ficção, a Morna narra os sentimentos mais visíveis que se relacionam com o drama existencial e material do cabo-verdiano. Foi na ilha das tocatinas e das serenatas, berço dos movimentos literários, dos compositores e cantores, como B.Lèza e Cesária Évora, sob a vigília do Monte Cara, que a Morna encontrou sua maior consagração enquanto símbolo da unidade nacional em Cabo Verde. Na terceira e última parte do romance, intitulada “As águas”- quando é retratado o dilema do retorno de Chiquinho a São Nicolau: “o meu primeiro contato com a minha gente foi quase doloroso” (LOPES, 1947, p. 210). Concluídos os estudos secundários, de retorno ao Caleijão, Chiquinho sente o distanciamento cultural entre sua terra de infância e a cidade portuária de Mindelo: “Senti cruelmente a falta dos meus companheiros do Grêmio. Queria era ter ali comigo Andrezinho [...] Nonó fazendo as suas mornas e preconizando poemas sobre motivos que fossem nossos, bem nossos. Eu desejaria adormecer ouvindo as mornas de Nonó, como “Eclipse”, que tirou quando foi repelido por uma moreninha que ele queria bem.” (LOPES, 1947, p. 212-213). No retorno, o protagonista toma consciência de que nada mudara na vida dos familiares e amigos e confronta-se com a saudade de São Vicente e de Nuninha: “Procurei 54 O Batuque de Tuta Cimbrom era cantado nos terreiros de Santa Catarina - ilha de Santiago. In: Claridade, no. 7, Dezembro de 1949, p. 49. 163 não pensar em Nuninha. As minhas esperanças de casamento foram emoção ocasional de uma tarde de São Vicente, morrendo docemente no desamparinho do crepúsculo” (LOPES, 1947, p. 213). Tendo passado algum tempo sem trabalho e sem perspectiva, Chiquinho assume a função de professor numa comunidade bem distante da sua. Durante esse período, o protagonista conscientiza-se dos problemas que afetam São Nicolau e as demais ilhas, as secas e a fome provocadas pelas chuvas irregulares, que obrigam o ilhéu a deixar sua terra e emigrar à procura de melhores condições de vida: “Era seca, nua, devastadora, como nas crises mais terríveis de que rezava a crônica da minha ilha. Desaparecidas todas as esperanças, enganadas, as promessas de chuva. De todas as ribeiras a notícia que vinha era a mesma. Não se colheria um grão de milho, e dos feijoeiros, nem falar, que a Lestada de Novembro crestara tudo.” (LOPES, 1947, p. 263-264). Chiquinho conclui que a função de professor para a qual se preparara é inútil num espaço onde a maioria das crianças não frequenta a escola, ora porque devem auxiliar os pais na agricultura, ora porque morrem de fome: “No meu degredo do Morro Braz, eu ia tomando o pulso à crise pela diminuição progressiva da frequência do posto. O meu decurião Emílio foi o primeiro a desertar. Vinha de muito longe, de um lugar perto da Jalunga. Os condiscípulos me informaram que a família de Emílio batera, fugindo à seca, em direitura da Preguiça. Soube tempos depois que ele não pode aguentar a jornada e ficou numa moita de purgueira no Canal de Carambola. Lá fui eu com meus alunos plantar uma cruz no lugar onde Emílio morreu.” (LOPES, 1947, p. 264). Finalmente, o personagem toma consciência de que a emigração é a única alternativa para driblar os problemas do arquipélago: “O mar também era o meu caminho” (LOPES, 1959, p. 289). Mais uma vez, o mar torna-se o protagonista da literatura cabo-verdiana, como o caminho para a “terra-longe”, como saída de uma vida árdua e sem perspectiva. Para Chiquinho, “só o mar lhe daria a libertação" (LOPES, 1947, p. 234), o contato com o mundo e com o conhecimento. Não havia como fugir desse destino, e ele reflete quando o pai questiona sobre partir: “Perguntou-me se eu queria ir para a América. Tio Joca apoiou imediatamente. Mamãe lamentou o destino que me obrigava a largar a minha terra. Mas também, ela não queria que eu ficasse pasmado pelo Caleijão, como gente sem eira nem beira.” (LOPES, 1947, p. 289). 164 Assim, a “América”, terra da promissão, torna-se o lugar onde Chiquinho poderá concretizar seus sonhos, assim como tantos outros cabo-verdianos. “América” é o termo que finaliza o romance de Baltasar Lopes. 3.2.2 – “Os Flagelados do Vento Leste” - de Manuel Lopes “Partir, Deixar na terra o canto duma morna Que o emigrante Recorde!” (FRANÇA, 1944) “Os Flagelados do Vento Leste” é uma narrativa de ficção de Manuel Lopes, escrita a partir de memórias e lembranças, resultado do testemunho e da experiência do autor junto ao povo de Santo Antão. Por ser uma narrativa fluida e dinâmica, o romance “coroa uma trajetória de amadurecimento dos processos estéticos” e apresenta recursos que prendem o leitor causando uma boa recepção da obra. Ao descrever a paisagem da ilha, o escritor toma como ponto de partida a descrição do espaço insular que, de um lado, narra as adversidades da seca que acometeu o povo cabo-verdiano e, do outro, a realidade ambiental, os elementos dóceis e singelos da paisagem, os campos, os terrenos, os raios do sol - imagens que transmitem sensações díspares. Nesse primeiro momento, a voz do narrador apresenta a saga do povo cabo-verdiano, sua realidade social e política que, mesmo vivendo em um lugar inóspito, busca sua autenticidade e a afirmação da cabo-verdianidade. No texto que segue, a voz do narrador relembra um cenário de fartura, de festa. São anos de alegria porque são: “Anos de boas águas! Santo André. Festa de Santo André no Norte. Ocê não conhece? Tempo é frio, mas tem grogue. Bonitas espigas de milho. Tome ocê uma espiga de milho assado. Veja ocê. Milho-leite. Milho cozido, uma pouquinha de sal. Temos também papa. [...] Ocê vai experimentar papa de milho verde ralado, com leite, e diga depois se é de mangação. As cabras dão muito leite neste tempo, sabe ocê? Leite sem destino. Festa de Santo André no Norte. Vamos dançar também. Morna é cura de reumatismo. Roncam tambores nos terreiros, é tal trabuzana! Tocam violas e rabecas nos quartinhos térreos e nas casas assoalhadas. Não faz mal se não tem rabeca. As raparigas cantam. Cantam e dançam, dançam e cantam, Ocê nunca ouviu as raparigas do Norte cantar. É quando mostram que sabem cantar [...] Se não tem rabeca não faz mal. E Santo André está lá pra armar casamento. Mas é festa de todo o mundo, velhos e novos, bonitos e feios, brancos e pretos. Tum-tum- tum... de tambores que os homens levam e trazem, pelos atalhos, de casa em casa. 165 [...] Mocinhas bebem leite se quiserem, os homens bebem grogue. Grogue é só para homens. Mas tem moças que metem grogue no corpo coma homem. Vamos dançar a morna. Agora e logo se sempre que ocê quiser. Morna é cura de reumatismo. [...] Contradança! Ó, meu Deus! Faz-me saudade a contradança. Mais do que a morna, sabe ocê? É a coisa mais bonita que o mundo deitou nesta terra. Minha gente! Agora é contradança! Ocê vem ver o que é saracotear. Velhos e novos vamos dançar a contradança. Tirem o canhoto da boca. Cada cavalheiro dá cinco tostões. Não há que refilar. É pra comprar grogues prós tocadores. Grogue tira canseira. [...] Festa de Santo André no Norte. Novembro. Anos de boas águas, anos de esmola de Deus. Este ano não tem Santo André.” (LOPES, 1979, p.122) Nesse excerto, Manuel Lopes traz à baila alguns dos ícones considerados importantes para o que se denomina “cabo-verdianidade”: a cabra, a cana (de onde se extrai o grogue), a Morna e o milho, elementos em que o texto literário registra uma época de abundância nas ilhas de Cabo Verde. O narrador, em terceira pessoa, fazendo uso do discurso indireto livre, numa viagem retrospectiva, mergulha nas recordações de um tempo festivo, relatando todo contentamento do ilhéu nos “anos de boas águas”. De forma discreta e explicita, ele relata a fartura gastronômica, as festas pela abundância das chuvas e da colheita do milho, esse alimento que “se desdobra em variações de sabores, odores e prazeres, desde o prato etnográfico e soberano - a cachupa e outras iguarias” (GOMES, 2015, p. 8). Há também o ritmo da morna, acompanhada de seus violões e violinos que, junto ao saboreio do grogue, traz alegria aos corações. É a festa que homenageia Santo André do Norte, na qual se comemoram os dons da natureza e de mais um ciclo de vida (LOPES, 1979, p. 122). Em tom nostálgico e lamentoso, o leitor é informado que, naquele ano, não haveria festa de Santo André. Nas constatações do narrador, quando o mês de agosto chegou ao fim, “[...]. Setembro entrou feio, seco de águas; o Sol peneirando chispas num céu cor-de- cinza; a luminosidade tão intensa que trespassava as montanhas descoloria-as, fundi- as na atmosfera espessa e vibrante. Os homens espiavam de cabeça erguida, interrogavam-se em silêncio. Havia ansiedade nos seus olhos, mas também dureza e persistência. E havia esperança e coragem e medo. A esperança nas águas e o temor da estiagem faziam parte de um hábito secular transmitido de geração a geração.” (LOPES, 1979, p. 12-13). A ação desse romance desenrola-se na ilha de Santo Antão, a mais ocidental do arquipélago, localizada na região denominada Barlavento, cerca de 600 km da costa africana, com uma área aproximada de 779 km2, sendo assim a segunda ilha em superfície. De origem vulcânica, “Santo Antão possui costa rochosa e escarpada e para evitar os efeitos da erosão, o homem construiu socalcos segurados por pedras. O relevo é montanhoso e de ravinas 166 profundas. Nessa ilha, encontra-se a única ribeira de curso permanente em todo o arquipélago: a ribeira do Paúl” (INÁCIO, 2001, p. 43). É importante notar que o título desse romance é uma construção metafórica que “consiste em deslocamento e em uma ampliação do sentido das palavras derivada de uma teoria da substituição” (RICOUER, 2015, p. 9), ou seja, essa teoria possibilita ver duas coisas em uma só. Nesse sentido, pode-se afirmar que o título do romance é a metáfora do povo cabo-verdiano, da realidade climática de Cabo Verde e, decorrentes dela, das calamidades e das tragédias que fazem dos cabo-verdianos vítimas das constantes secas que atingem todo o arquipélago. Por sua posição geográfica, entre o Norte e o Sul, o Ocidente e o Oriente, localizado na rota das grandes linhas de navegação e do comércio marítimo (MADEIRA, 2014, p. 2), Cabo Verde sofre com a ação dos ventos secos, como o Harmatão, a Lestada e o Monção. Os dois primeiros ventos são oriundos do deserto africano (do Saara), que transportam o ar seco do deserto, poluem a atmosfera com uma poeira fina conhecida como bruma seca, responsável pela estiagem que assola todas as dez ilhas do arquipélago; e do Monção, vento que surge de julho a setembro, carregado da umidade do Atlântico Sul, responsável pela possibilidade de chuva. A ação desses três ventos é retratada no romance, porém, o autor dá maior destaque ao “vento leste”, o grande causador das estiagens por todas as ilhas. O fragmento extraído da obra de Manuel Lopes apresenta essa realidade: “Por onde passava, deixava manchas de amarelo-torrado, folhas doiradas dançando nos ares e um cheiro irrespirável a pimenta em pó. Os milharais agitavam-se aflitivamente, como pedindo socorro aos homens. Os feijoeiros e as aboboreiras, desamparados, acenavam os compridos caules quase despidos de folhas. Estas eram continuamente arrancadas e levadas no turbilhão. Redemoinhos de poeira vermelha dançavam a sua dança de roda, aqui e ali.” (LOPES, 1979, p. 93-94). Gradativamente, a voz narrativa vai retratando a situação vivenciada pelo povo de Santo Antão e, no decorrer do romance, o leitor toma conhecimento das calamidades instaladas na região, das tragédias que assolam o arquipélago e das mudanças que ocorrem nas ilhas devido à falta de chuva e à ação dos ventos. Em “Os Flagelados do Vento Leste” (1979), Manuel Lopes apresenta um retrato da difícil realidade a que são submetidos os habitantes da ilha de Santo Antão, os problemas oriundos da seca e todo o drama que dela advém, a pesar tragicamente sobre os destinos 167 humanos. O próprio autor dá seu testemunho quando afirma: “quanto a “Os Flagelados do Vento Leste”, apenas poderei adiantar que o quadro humano geral é a simbolização de um acontecimento que presenciei e vivi. Refiro-me à tragédia coletiva da estiagem de 1942” (HANRAS, 1995, p. 379). Considerado como um dos escritores mais influentes da literatura cabo-verdiana, suas obras mais conhecidas são “Chuva Braba” (romance escrito em 1956 e ganhador do prêmio Fernão Mendes Pinto), “Galo Cantou na Baía” (contos, 1959) e “Os Flagelados do Vento Leste” (romance escrito em 1959, contemplado com o Prêmio Meio Milênio do Achamento de Cabo Verde). As obras de Manuel Lopes “[...] documentam um momento ímpar de fundação de imagens que fecundarão a cultura e, em especial, a literatura de Cabo Verde, dos anos de 1930 até o nosso século” (GOMES, 2008, p. 181). Manuel Lopes começou sua carreira publicando os primeiros textos literários em 1927, no Almanaque de Lembranças Luso-Brasileiro, como também em diversos jornais de Cabo Verde. Enquanto integrante do grupo de intelectuais fundadores da Revista Claridade, esse poeta e ficcionista apresenta, em suas obras, as preocupações com as questões da “Mãe-Terra materializada na luta, com contornos dramáticos de seu povo pela sobrevivência que, de forma magistral descreve na sua obra” (ALFAMA, 1998, p. 240). Toda uma vivência marcada pela paisagem física e humana, pelos vales e montanhas, pela escassez da água, é contada pelo próprio escritor em entrevista concedida a José Carlos Venâncio: “Ali convivi com os homens da terra, da enxada, do trabalho duro, com os seus dramas reais; para melhor observação e convivência comprei uma pequena propriedade e construí uma casinha. Cheguei a pegar na enxada para lhes mostrar que também sabia cavar como eles. Criei amigos. Criei amizades e confiança. O período de terrível estiagem que ali passei (ano de 1942) inspirou-me mais tarde Os Flagelados do Vento Leste. Talvez para fugir ao gesto de Pilatos . (VENÂNCIO, 1992, p. 68). O romance está dividido em duas partes e tem como cenário Terranegra, região central da ilha, zona na qual se cultiva o sequeiro55. Os personagens mais mencionados na primeira parte do romance são José da Cruz, Mochinho, Zepa, José Felícia, Nhô Manuelito e a viúva Aninha, definidos como estereótipos da pobreza, da persistência, da fidelidade à terra e aos camaradas de luta, que trazem em suas histórias a denúncia dos problemas sociais decorridos das secas e das lutas de classes. 55 Agricultura de sequeiro é uma técnica agrícola para cultivar terrenos onde a pluviosidade é diminuta. A expressão “sequeiro” deriva da palavra “seco” e refere-se a uma plantação em solo firme (o contrário de brejeiro, ou de brejo, como é comum em regiões de solo úmido. A agricultura de sequeiro depende de técnicas de cultivo específicas, que permitem um uso eficaz e eficiente da limitada umidade do solo. 168 Na segunda parte, o autor apresenta as consequências da seca sobre as ilhas e sobre os personagens. De acordo com Patrícia Camargo (2008), Manuel Lopes “rompe com as características próprias do neorrealismo para narrar as consequências das calamidades sobre os personagens” (CAMARGO, 2008, p. 2), que se apresentam com uma construção psicológica profunda. Tanto quanto a terra, o flagelo da seca e da fome resseca a alma do homem e atinge sua moral, seu caráter, levando-o a situações extremas e degradantes, como a violência praticada por meio do roubo de alimentos. É o que acontece, por exemplo, com a personalidade e o caráter do personagem Leandro, filho primogênito do primeiro casamento de José da Cruz, que se destaca na narrativa: “ A rapariga pousou os olhos nas mãos dele. Já eu conhecia as tuas mãos antes de ver o teu rosto. Há muito tempo. Olha, esta madrugada sonhei com elas. Eu e minha companheira Xenxa corríamos pelos campos, e as tuas mãos arremessavam grandes pedras até que a minha companheira começou a gritar, a gritar, e caiu com um pé ensanguentado. As tuas mãos chegaram-se a ela e arrebataram o balaio que, ela, mesmo ferida e estendida no chão, se esforçava por conservar. Só vi as tuas mãos, escondia o rosto por detrás da máscara de pele de cabra. Mas vi que eras tu. Levaste o balaio com comida que ela tinha comprado prá família que tava passando fome.” (LOPES, 1979, p. 190). Dentro de um ambiente de fome e de abandono, Leandro destaca-se por manifestar suas reações. Para não morrer de fome, e, no intuito de suprir suas necessidades e as dos familiares, torna-se um “mascarado” e começa a praticar assaltos para promover sua própria subsistência: _“Era a minha falta murmurou o rapaz soluçando. Era a minha falta. Cada qual, pra não morrer, tira aos ouros. Porque nesse mundo uns têm demais e outros não têm nada. Era a minha falta” (LOPES, 1979, p. 191). Leandro representa o sujeito que, vivendo na solidão e no desamparo, ao seu modo de fazer justiça, luta pela sobrevivência. “Os Flagelados do Vento Leste” é também a história dos que ficaram e daqueles que, de alguma forma, lutaram pela sobrevivência, pela terra, como está ilustrado no personagem José da Cruz, “homem de bom pensar e de bom conselho, homem de sacrifício quotidiano; dessa raça de gente direita que sabia diferençar as coisas” (LOPES, 1979, p. 15), símbolo da resistência, protótipo do povo cabo-verdiano, na medida em que demonstra um grande apego, um grande amor pela terra. Mesmo diante da mais cruel realidade, José da Cruz resiste para além das possibilidades humanas, na esperança de que, a qualquer momento, os sofrimentos possam ter fim. Além da situação caótica da seca, da fome e da morte retratadas no romance, o narrador também registra poeticamente a culinária, a música e a língua crioula, “três aspectos 169 da cultura cabo-verdiana, mais comumente, usados como caracteres significativos da especificidade, da identidade e autonomia culturais do arquipélago” (ALMADA, 2006, p.73). Assim como outras manifestações culturais que contribuem para a construção da identidade cabo-verdiana, a culinária se apresenta como o resultado da convergência dos hábitos alimentares herdados dos africanos e dos europeus, originando uma culinária local diversificada na sua confecção e preparo, baseada em pratos típicos, preparados, principalmente, a partir do “milho e do feijão, da batata-doce e da mandioca, que resultaram de uma adaptação, ao longo do tempo, ao clima” (MADEIRA, 2014, p. 12). Sendo o milho a base da culinária cabo-verdiana, ele tem uma importância fundamental para as diferentes comunidades. Em “Os Flagelados do Vento Leste”, o narrador apresenta um discurso pleno de imagens que dão novos sabores ao milho: “Bonitas espigas de milho. Tome ocê uma espiga de milho assado, milho cozido, uma pouquinha de sal. Ocê com certeza nunca ouviu falar de papa de milho verde. Ocê vai experimentar papa de milho verde ralado, com leite, e diga depois se é mangação.” (LOPES, 1979, p. 122). O milho é, portanto, usado diariamente, sobretudo na preparação da cachupa, prato tipicamente cabo-verdiano. Para além da cachupa, utiliza-se o milho moído para as papas, o rolão, o xerém, a camoca, o cuscuz, a brinhola, o fonguinho, entre outros. É o alimento principal da família de José da Cruz. Em diferentes partes do dia, esse cereal é servido de diversas formas: como bolo de camoca (milho torrado e moído muito fino) com meia caneca de leite; ou cachupa guisada: “A hora do almoço, Zepa levava-lhes papa-rolão com soro de leite [...] e, antes que descesse a noite, engoliam à pressa o caldo de cachupa.” (LOPES, 1959, p. 49). Portanto, assim como a língua, conforme declara José Luís Hopffer Almada, o milho é um dos “símbolos maiores da identidade cabo-verdiana” (ALMADA, 1998, p. 75). Outra especificidade cabo-verdiana retratada por Manuel Lopes é a musicalidade no arquipélago, que “aparece intimamente ligada à alimentação, como forma complementar de afirmação da cultura cabo-verdiana” (LOPES FILHO, 1996, p. 252). A Morna é definida pelo autor Manuel Lopes como canção popular do arquipélago, que, de forma prazenteira, serve até como “cura de reumatismo” (LOPES, 1979, p. 122), ou seja, por seus diversificados atributos, como amorosa, brejeira, sentimental, suave, nostálgica, possibilita ao cabo-verdiano expressar os sentimentos que estão enraizados na sua forma de ser e de viver. 170 Outro gênero musical mencionado pelo autor é a contradança56, “a coisa mais bonita que o mundo deitou nesta terra” e que todos, “velhos e novos”, podem dançar e “saracotear” (LOPES, 1979, p. 123). Percebe-se, assim, que, no texto de Manuel Lopes, “a música cabo- verdiana, numa perspectiva identitária, surge como veículo privilegiado da divulgação, afirmação e expressão da cabo-verdianidade” (MADEIRA, 2014, p. 11). Ela é um dos aspectos mais expressivos dessa cultura e desempenhou um papel de relevo na resistência cultural durante o período colonial. Hoje, constitui uma ponte que liga os cabo-verdianos espalhados pelo mundo. É importante salientar que, nesse romance de Manuel Lopes, a intenção do autor é apresentar o drama de José da Cruz, de sua família e dos demais agricultores de Santo Antão, que vivem em meio à escassez de água, e, por falta desta, subjugados à improdutividade da terra, que gera o desprovimento de alimentos e fome. Consequentemente, há o abandono da terra natal, pois o ilhéu se vê forçado à emigração. O romance “Os Flagelados do Vento Leste” possui duas importantes características: regionalista e universal. Regionalista, na medida em que seu autor busca apresentar ao leitor as especificidades de Cabo Verde com sua realidade humana e cultural, ou seja, a insularidade, o mar, os ritmos populares, a paisagem agreste, a organização da sociedade, os costumes, a gastronomia, a música e o falar cabo-verdiano; e universal, quando Manuel Lopes coloca, em primeiro plano, a língua suporte, o Português falado por mais 170 milhões de locutores; pela exploração de temas que não são específicos de Cabo Verde, como a chuva, a seca, a fome, pelo tema da emigração, constante na sociedade cabo-verdiana. Conforme Manuel Veiga (1994, p. 125): “A universalidade literária cabo-verdiana manifesta-se ainda na aceitação do plurinacionalismo de um José Evaristo e Almeida, de um Sérgio Fruzoni ou ainda de um Manuel Ferreira, que, sendo estrangeiros pelo sangue, são irmãos nossos pela cultura, pela literatura, pela caboverdianidade.” Assim, o leitor poderá perceber que essa obra é, acima de tudo, uma narrativa que expõe a luta secular do cabo-verdiano pela sobrevivência. “Os Flagelados do Vento Leste” garante universalidade às especificidades locais cabo-verdianas, como a culinária, a língua e a música, especificamente a Morna. O modo de vida do ilhéu é valorizado e tematizado por Manuel Lopes, que “ganhou um lugar cimeiro, graças a um aturado esforço de realização pelas suas qualidades e pela riqueza imagística da sua prosa” (FRANÇA, 2010, p. 69). 56 Atribui-se a “contradança” a aventureiros franceses que fixaram residência na localidade de Fontainhas, em Santo Antão (LIMA, 1996, p. 18). 171 3.2.3 Hora Di Bai, de Manuel Ferreira. Onde ides naus da Fome, Da Morna, Do Sonho, E da Desgraça?... Onde Ides? [...] Nós vamos, Sonhando Sofrendo, Em busca do infinito!... (OSÓRIO, 1984, 64-65) O romance “Hora di Bai”, publicado em 1962, é uma obra de cariz neorrealista, que conta a história trágica da fome que avassalou Cabo Verde, nos anos de 1940, anos de seca prolongada, de miséria e de repressão. Escrito por Manuel Ferreira, “Hora di Bai” é formado por 53 capítulos, que, na denominação de Maria Aparecida Santilli, “são mini-textos com lastro de sentido trazido de seu contexto anterior, valendo como substrato etimológico” (SANTILLI, 1980, p. 13). Quanto aos temas do romance, Manuel Ferreira retrata a fome e a emigração. A fome e suas consequências físicas, sociais e humanas: “a maldição varrera a ilha. A maldição da estiagem. Da fome” (FERREIRA, 1980, p. 18). A emigração: “E nesse tempo da fome a ilha de São Vicente era o porto de salvamento... [...] o veleiro mandado por Deus Nosso Senhor que os levaria a outra ilha distante e abençoada” (FERREIRA, 1980, p. 19). Mais uma vez, esses temas aparecem na literatura cabo-verdiana permeada pela Morna “a dileta música cabo-verdiana que o ficcionista e ensaísta Luís Romano qualificou como gerada pela melancolia do ser humano esmagado pela dor” (SANTILI, 1980, p. 9). Aliás, o próprio título da obra, que significa “hora da partida ou da despedida”, inspira-se, nos versos de uma Morna de Eugénio Tavares (1867-1930), cujos fragmentos são diversas vezes repetidos, ao longo do romance, demonstrando como a Morna, enquanto elemento de identidade cabo-verdiana, é de vital importância na vida dessa população. “Hora di Bai” é a hora da despedida daqueles que são obrigados a deixar a terra natal, onde estão suas raízes, para tentar uma nova vida em outras terras. Para Benilde Caniato (2006, p. 132-33), esse romance foi consagrado pelo povo, por estar inteiramente integrado à 172 vida insular, à evasão e à emigração para quem “o ato de partir sempre foi algo sofrido na carne com a separação forçada, não só pelo destino, como pelos senhores da terra” (RODRIGUES & LOBO, 1996, p. 70). O romance está dividido em duas partes: na primeira, o narrador, em terceira pessoa, retrata a viagem e as condições de extrema pobreza dos passageiros, assim como as esperanças que eles depositam na migração. Sob a égide da partida, essa primeira parte inicia- se na ilha de São Nicolau, no ano de 1943, período de grande seca. Uma multidão anseia por embarcar, no “Senhor das Areias”, nome do veleiro que levará cabo-verdianos para a Ilha de São Vicente - a terra da promissão. Dessa multidão, apenas os que constam na lista de indicados pelo governo ou chamados por amigos ou benfeitores podem embarcar, embora alguns tenham conseguido entrar no barco por outros meios: “adoçando o mando do capitão ou subtraindo-se à vigilância dos seus homens, conseguem acoitar-se no veleiro, remoçando os sonhos, na secreta convicção de que aportam a São Vicente, onde a caridade há de acolhê- los” (FERREIRA, 1980, p. 20). Em tom testemunhal, a voz narrativa informa: “Isto se passava no verde arquipélago de ano de mil novecentos e quarenta e três e ninguém, que eu saiba, o olvidou. E não o desconhecia o capitão do veleiro, quarenta anos, não mais, quando arribou ao porto da ilha de São Nicolau. Mas nem por isso deixou de se impressionar com aquele mundão de gente espraiado pelo cais, erguendo-se e movimentando-se em modos lentos, o olhar fixo na redentora aparição. Era o veleiro mandado por Deus Nosso Senhor. Que os levaria a outra ilha distante e abençoada onde todos encontrariam abrigo e proteção. Lá não havia fome. Lá a cachupa chegava para os mais necessitados e perseguidos pela estiagem. Gente, São Vicente tinha Porto Grande, tinha navio de todas as partes do mundo trazendo trabalho e comida. Soncente tinha tropa que enchia a barriga de todos nós. O veleiro levá-los-ia à terra da promissão.” (FERREIRA, 1980, p. 19). Romance fragmentado, “Hora di Bai” está ligado às condições de vida dos personagens e ao eterno dilema do cabo-verdiano de “querer ficar e ter que partir”. Toda a narrativa se passa em Cabo Verde, mais especificamente nas ilhas de São Vicente e São Nicolau. Os personagens estão divididos em dois grupos: os que estiveram a bordo do “Senhor das Areias”, durante a viagem de São Nicolau a São Vicente, e os que já estavam em São Vicente quando chega o navio mandado pelo governo com a leva de famintos. Durante a viagem, algumas das personagens contam suas histórias de vida, como é o caso de Júlia Vicente Gonçalves: “Eu mesmo recebi carta de nha senhora onde trabalhei muitos anos e fui bem tratada. “uma vez estava em Soncente eu quis voltar para São Nicolau. Era nha terra e filha e genro me chamaram para tomar conta de casa e dos netinhos. Tínhamos 173 comida e tudo enquanto, graças a Deus. Depois, quando fome veio vindo, primeiro morreram Antone e Lela e depois morreu nha filha. Marido dela embarcou num veleiro e ninguém mais viu ele. Dias-há chegou nhô Tomás e me disse: Vá para Soncente. Vá para Soncente, Jula, que sua patroa Arminda quere-a lá. Aproveite veleiro que governo há-de mandar. Ela mesma deu seu nome na administração.” (FERREIRA, 1980, p. 21). Cada personagem tem sua história e, em cada história, o drama da fome se manifesta. O narrador comporta-se como informante, situando a grande seca da época (1943) na ilha de São Nicolau. Na sequência do romance, o narrador vai tomando outras posições, tornando-se convencional, onisciente, elegendo, nomeando e individualizando os personagens que se comprimem no veleiro: “Nita Mendonça coitada! Tão magra tão chupada de pernas e de peitos. Devia ter sido bonita, mas agora não prestava. E ali está Chica Miranda, que no outono fará trinta e sete anos. Reparem nela. Um molho de ossos. Um retrato de sofrimento. Os tormentos da fome deram-lhe uma expressão de cinquenta.” (FERREIRA, 1980, p. 25- 27). Para Benilde Caniato (1980, p. 199), esse grupo de personagens representa “o protótipo ilustrativo da grande seca de 1943”. O personagem Chico Afonso os descreve como: “Gente mirrada, doentes enrodilhadas uns nos outros. Mocinhas esquálidas, dormitando, que famílias de São Vicente iriam albergar por caridade. De tanto olhar o amontoado, afligia-o aquela gente. Que desgraça tamanha caíra na terra de Cabo Verde. Desgraça como nunca se viu.” (FERREIRA, 1980, p. 37). O tempo do romance refere-se ao histórico episódio da estiagem do ano de 1943, período de uma Cabo Verde Colônia e mergulhada nos problemas resultantes da Segunda Guerra Mundial. Em seu livro Cabo Verde: Aspectos Sociais, Secas e Fomes do Século XX (1984), Antônio Carreira informa sobre as tragédias oriundas das secas que ocorriam nas ilhas desde que foram descobertas. Esse historiador ainda informa que, entre os anos de 1941 e 1943, mais de 24 mil pessoas morreram de fome em Cabo Verde (CARREIRA, 1984, p. 17- 19). Conforme Jorge Querido (2011, p. 80), “os trabalhos públicos abertos pelo Governo para apoiar os famintos, de pouco serviram, e, nesse período, intensificou-se a emigração forçada dos contratados para as roças de São Tomé”. O veleiro era conduzido pelo capitão Fonseca Morais: “Nhô Fonseca Morais era um homem bom. Sim, senhor, um homem bom este Fonseca Morais que sabe governar barco e tratar pessoal como ninguém” (FERREIRA, 1980, p. 28). Chico Afonso, ajudante de Fonseca Morais, era o moço do barco, cantador de Mornas (FERREIRA, 1980, p. 23): 174 “O moço pegou no violão e lançando a vista sobre o mar começou a trautear mornas de um popular troveiro. Havia, porém, um desencontro entre as canções que ele entoava e o sofrimento que a seus pés se estendia. Só nhô Eugénio sabia pegar na tragédia do povo. Ninguém como ele fora tão fundo no coração da sua gente. Nem Belèza nem Mochinho do Monte. Só agora, larga experiência da vida alcançada e mais: só neste momento, único da sua vida de homem do mar, ele o sentia deveras.” (FERREIRA, 1980, p. 22). Nessa narrativa, além de o autor recorrer a temas como a estiagem, a fome e a emigração, Manuel Ferreira acrescenta um terceiro - a música. Em “Hora di Bai” a Morna toma amplo espaço. Logo no começo do romance, ela é apresentada como “tragédia do povo” (FERREIRA, 1980, p. 22). O autor mostra a necessidade que o cabo-verdiano tem de ouvir a Morna em diferentes situações. Em um contexto social sofrido, a Morna torna-se uma aliada do povo, que se deixa embalar em lembranças que o fazem chorar, afirmação feita por uma das personagens: “pois a Morna cantada por Salibânia, moço, fazia chorar a gente” (FERREIRA, 1980, p. 23). Durante a viagem da ilha de São Nicolau para a de São Vicente, a Morna é cantada na hora das lembranças: “Chico Afonso ergueu-se, apertou o violão contra si e, virando-se ao mar, a Morna que se desprendia era, naquele momento, um cântico telúrico que realizava a harmonia entre a ilha e o ilhéu” (FERREIRA, 1980, p. 113). O mar é um convite para partir, propõe uma viagem ao ilhéu, nem sempre fácil, pois aquele que parte pode passar por angústias e dissabores, pois o mar nem sempre é amigo, nem sempre é calmo ou sereno. Para os “sobreviventes da estiagem, o mar se revela violento e encrespado. Na voz do narrador, o mar conversa, chora e dança com os viajantes, acalmando- os e confortando-os em suas dores e lamentos” (FERREIRA, 1980, p. 22). Em outro momento, a Morna é empregada enquanto meio de denúncia: “Povo anda chateado. Povo só ameaça. Canta morna da fome, e lá para a Salina, Monte Sossego, Chão de Alecrim, Fonte Cônego, Ribeira Bota, toda gente canta morna da fome. Morna da fome? Senhor, sim. Morna da fome. Morna da fedegosa57 .”(FERREIRA, 1980, p. 132). 57 A Morna da fedegosa conta a história de uma família que não tendo nada para alimentar-se, encontra no mato uma erva, julgando que podem comer das suas sementes, quase todos da família morrem envenenados, com exceção de uma criança que não a havia provado. Originária da ilha de Santo Antão, a morna da “morte” como também é conhecida, canta o drama da fome, relembrando o dramático período de 1939 a 1943, quando muitos cabo-verdianos sucumbiram devido à seca e, por conseguinte, à fome (RODRIGUES, 2015, p. 183). 175 A Morna da fedegosa ou da fome, como é conhecida e cantada nos bairros pobres de Mindelo, é um grito de revolta e denúncia da situação de miséria que enfrenta o cabo- verdiano nos anos de 1940: “Fedegosa dava um chá gostoso. Povo pegou fedegosa e muita gente morreu. Gente de São Vicente fez morna. Morna de fedegosa. Chico veio ao chamo de nhô Mochinho: _ Bô sabe aquela morna de fedegosa? Canta essa morna da fome para a gente ouvir, Chico. Chico Afonso foi buscar o violão e cantou a morna de fedegosa. A planta maldita, a erva que trazia dentro de si a traição.” (FERREIRA, 1980, p. 56). Assim, a fedegosa é recorrentemente mencionada na música e no romanceiro cabo- verdiano: Oh fedegosa! Fedegosa bô ê mau. Bô mata-m nha mamá. Bô mata- m nha papá58 Margarida Fernandes (2000) explica que, em situações de fomes extremas, a população recorre a toda fonte de alimentação que lhes parece comestível: “foi então que o povo do interior da ilha da Boa Vista se lembrou da potona” (CARREIRA, 1984, p. 37). A autora informa, ainda, que o consumo de plantas impróprias tinha consequências nefastas (FERNANDES, 2000, p. 268). A denúncia é uma das mais visíveis características da literatura cabo-verdiana presente nas diversas obras de poetas, cronistas e ficcionistas, como também na música. Essas obras retratam a situação miserável de uma grande parte da população islenha. E a Morna, enquanto gênero que conta e canta os dramas do povo, é um dos veículos para que os escritores dediquem-se a compor em forma de lamentos, de críticas, de questionamentos. Sutilmente, às vezes utilizando-se de uma linguagem metafórica, cheia de ironia, eles expõem as dramáticas situações sociais a que homens e mulheres são vulneráveis. Em “Hora di Bai”, cantar é uma forma de esquecer a miséria que paira em Mindelo e que pesa nas almas, por isso a voz narrativa exorta: “Chico canta! Canta Chico, canta. Cantar é uma necessidade. Alivia, faz esquecer. Canta Chico. Nossas canções são feitas de amor. Vêm do fundo dos nossos corações. Da tragédia da nossa raça. Canta, canta, canta Chico, que a nossa alma precisa de libertação. A malta escutando-o dava conta de que a morna era também 58 “Ó Fedegosa! - Fedegosa é má. Mataste-me a minha mãe / mataste-me a meu pai” (tradução livre de RODRIGUES, 2015, p. 184). 176 canção de sonhos e anseios. Dela vinha uma força estranha, um desejo de lutar.” (FERREIRA, 1980, p. 114). Para o cabo-verdiano, cantar é uma necessidade em diferentes momentos: nas festas de batizados e casamentos, nos momentos fúnebres, nos velórios, o canto faz parte da cultura cabo-verdiana. Ele é também uma forma de esquecer as tragédias e denunciá-las. No romance de Manuel Ferreira, durante o percurso, uma das passageiras pede para Chico Afonso cantar a Morna “Hora di Bai”. Nessa passagem, Manuel Ferreira apresenta os mais conhecidos poetas populares personificados, primeiro, em Nhô Eugénio: “Morna de Nhô Eugénio é mesmo sabe, moço” (FERREIRA, 1980, p. 22); segundo, em B. Lèza, Mochinho do Monte e Salibânia: “- Melhor cantador de mornas de Cabo Verde é Mochinho do Monte. - Uáh, nem nada. B. Lèza. Uáh, nem nada. Ouve uma coisa. Melhor tocador de morna em Cabo Verde, fica sabendo, é Salibânia. - Nunca ouviste cantar Salibânia? (FERREIRA, 1980, p. 23). E a personagem prossegue descrevendo a mornista: “Pois Salibânia, moço, fazia chorar a gente. Morreu cega, coitada. Salibânia parecia mesmo homem, ouviste? Corpo de homem, cara de homem, mãos de homem. Fazendo briga como homem. Mulher-macho de verdade. Mas a cantar morna, moço, nem Belèza, nem Mochinho do Monte, ninguém fica sabendo. Depois fizeram morna de Salibânia, tu sabes.” (FERREIRA, 1980, p. 23). No romance de Manuel Ferreira, além da figura de Eugénio Tavares, que é apresentado como um dos mais conhecidos poetas das Mornas, o autor reconhece também a contribuição cultural aportada por B.Lèza e Salibânia, mornistas que fazem parte da história da música em Cabo Verde. No segundo segmento, acompanha-se o percurso dos personagens do veleiro “Senhor das Areias”, que, chegados à ilha de São Vicente, são inseridos numa nova realidade: “Ouve-se um “uáá” de admiração ao chegar a São Vicente tão iluminadinho como se fosse dia de festa. [...]. No desembarque alguns foram tirados às costas pelos descarregadores. Conchinha, por exemplo. Sob a luz baça dos candeeiros, a leva espalhada pelo chão de cimento metia dó. [...]. A gente de São Vicente olhava amargurada para aqueles corpos onde a fome entrava como bicho devorador. Mirrada as pernas, comidas as faces, destruídas as formas arredondadas, apenas feixes de ossos dentro das roupas leves, rotas, bamboleantes. Crianças de cabelos encrespados, sujos, tão esqueléticas, mal se tinham de pé. O público acotovelava-se no cais para ver de perto .” (FERREIRA, 1980, p. 59-60). Para os flagelados, São Vicente é a esperança de dias melhores: 177 “Mas, enfim, nós chegamos, e aqui estou com a ajuda de Nhá Venância, e agora Deus me há-de ajudar também. Bia Diniz falava com prazer, um gozo de convalescença, uma sensação de conforto, distante dos dias de fome de São Nicolau e orgulhosa de ter vivido tamanha aventura.” (FERREIRA, 1980 p. 62). A temática da fome, da miséria e do medo se expande em um contexto social mais amplo: a cidade de Mindelo, “onde ligações por afinidade se farão, em favor dos flagelados ou em desfavor deles” (SANTILII, 1980, p. 15). Porém, na ilha de São Vicente, no “porto da promissão”, no ano de 1943, assim como em todo o arquipélago, a estiagem persistia e a realidade era a mesma: a terra seca, amarga, árida, sufocante, desgraçada que, em termos políticos e humanos, nada tinha a oferecer ao seu povo. Para alguns personagens do “Senhor das Areias”, a viagem, que tem por objetivo fugir da fome e buscar nova vida, concretiza-se na morte. Destaca-se a situação da jovem Conchinha, grávida e sem destino certo, que, durante a viagem, dá à luz um menino, nascido morto, o qual é atirado ao mar, chegando ela própria a sucumbir quando da sua chegada ao cais: “Que suores esquisitos. Não vejo. Onde estou? Que tenho eu? Vou cair. Mas que é isso meu Deus? Uma agonia. Deixa-me segurar aqui. Aqui. Caiu. Caiu redondamente no cimento do cais. Caiu e lá ficou. Levou-a carroça da Câmara, ao outro dia, na plamanhânzinha.” (FERREIRA, 1980, p. 61). Outro personagem, Nhô Mochinho, que veio para São Vicente sem ter quem o acolha, sessenta anos, com uma chaga exposta em uma perna, representa a voz da esperança e da experiência. Homem das letras e do Liceu chegou mesmo a ser chefe de secção, mas tem um triste destino em São Vicente: torna-se mendigo, alcoólatra, e morre abandonado: “Um vulto deitado no chão, coisa frequente naquele tempo de fome. Era Mochinho. Magro, sujo, roupas esfrangalhadas, parecia não dar acordo de si. Curvaram-se sobre ele. Manduca apalpou-o e sentiu as carnes frias. _Está morto.” (FERREIRA, 1980, p. 113). As consequências da estiagem e da fome são também sentidas pelos personagens que já estavam em São Vicente, como Nhá Venância, Dr. César, Dr. Maia e Dr. França, Capitão Fonseca Morais, Beatriz, Alferes Viegas, Juca Florêncio, Sebastião Cunha, entre outros. Nesse grupo, as ações dos personagens demonstram diferentes atitudes frente à situação da fome que se expandia em todas as ilhas. Conforme o ensaísta João Ferreira (1987), a narrativa de Manuel Ferreira leva o leitor a deduzir duas posições frontalmente opostas: a briga entre Dr. César e Juca Florêncio, dois 178 personagens que representam duas mentalidades. Um, a mentalidade estática do Governo, que não se move, que não apresenta uma programação política dinâmica que procure superar, por um lado, a adversidade climática; por outro, a situação de carência das ilhas e de seu povo (FERREIRA, 1987, p. 108). Essa é a mentalidade representada pelo jornalista Juca Florêncio, “também conhecido como Nhô Juca, ou nhô Jom Morgoso, de seu nome vulgar, feio e da cor de carvão” (FERREIRA, 1980, p. 33). Juca Florêncio era jornalista, cinquenta e seis anos, chefe de repartição, escritor simplório e pretensioso. Para esse personagem, que apoiava o Governo, a riqueza do mar resolveria o problema da fome em Cabo Verde. Para ele, “o cabo-verdiano tem que se convencer de que é senhor de uma riqueza invejável que existe neste mar que nos rodeia, e não tem sabido aproveitar” (FERREIRA, 1980, p. 64). Ele abertamente apoiava a transferência dos flagelados para as roças de São Tomé: “[...] Eis-nos em face de uma das medidas de maior alcance: a transferência dos mais necessitados” (FERREIRA, 1980, p. 64). Por outro lado, havia a mentalidade dos estudantes e da elite, que criticavam duramente Juca Florêncio e buscavam soluções para minorar a miséria do povo. Contrapondo- se a Juca Florêncio, surge a figura do Dr. César, “Homem respeitado e admirado, sujeito que não calava o que sentia, o que ele dizia era a voz do povo. Quando ele blasfemava, blasfemava o povo. Professor bom. Puxava pelos alunos, obrigava-os a estudar.” (FERREIRA, 1980, p. 97). Era o representante da “mentalidade nativista progressista e renovadora” (FERREIRA, 1987, p.108); sua luta era pela busca de uma resposta favorável aos apelos dos cabo- verdianos. Em “Hora di Bai”, o autor mostra ao leitor que a forma de vida que predominava no arquipélago nunca conseguiu combater a fome de uma forma ostensiva. Veio a revolta, e, com ela, um dos episódios mais dramáticos do romance: a desilusão, o desespero do povo, a triste escolha de ter que partir como contratado para as roças de São Tomé: “A chuva não vinha, a fome continuava e o caminho livre era o da escravidão. A própria Chica Miranda reconsiderou. Chorosa, na noite anterior, disse a Nhá Venância: _ Senhora, eu vou. Nossa terra está a acabar em nada. _Chuva não vem.” (FERREIRA, 1980, p. 132-133). Pelos porões do navio negreiro, a voz narrativa pesarosamente questiona: “Minha gente conhecida, aonde ia ela? Lá iam, lá iam no negro navio negreiro” (FERREIRA, 1980, p. 179 135). O povo devia escolher: ou partir como escravo ou participar da marcha da fome, levando bandeiras negras na mão até os celeiros de Sebastião da Cunha: “Homens e mulheres, rapazes e raparigas, gente daquelas profissões que amassam o pão negro de cada dia com o suor do seu rosto, afluindo de vários pontos, concentravam-se no largo de salina. A dada altura, silenciosamente, começou a movimentar-se em direção à parte central da cidade, muitos deles levando ao ombro bandeiras negras desfraldadas, que agitavam de quando em quando. Bandeiras negras por quê, papai? _ São bandeiras da fome, minha filha.” (FERREIRA, 1980, p. 137). Assim, no capítulo 48 do histórico romance “Hora di Bai”, o leitor acompanha a insurreição, representada pelas bandeiras negras, comandada pela grande figura do Capitão Ambrósio que estabelece este diálogo com a multidão: “Gente, vocês têm fome? Temos fome, sim senhor! Vocês têm trabalho? Não temos trabalho nem comida! E comida onde está? Em casa de Sebastião Cunha!” (FERREIRA, 1980, p. 139) Em uma fúria desordenada, a multidão agita a bandeira negra da fome. Para a grande multidão de esfomeados, a única saída era o saque, o motim. Porém, com a chegada da tropa, chega também a repressão, o medo, a morte, a dispersão dos famintos e uma amarga consciência dolorida dos direitos espezinhados. É importante informar que esse episódio dramático sobre a revolta popular, denunciando a fome de 1934, na cidade de Mindelo, é narrado em diferentes obras literárias. O acontecimento, considerado verídico, foi encabeçado por Mestre Ambrósio Lopes, natural da ilha de Santo Antão, mas que vivera em São Vicente. Na literatura cabo-verdiana, a saga de Capitão Ambrósio é mencionada em um dos capítulos do romance “Chiquinho” (1947), de Baltasar Lopes da Silva, e também é recitada no longo poema “Capitão Ambrósio” (1966), de Gabriel Mariano. Finalizando, poder-se-ia dizer que “Hora di Bai” conduz o leitor a conhecer a situação de Cabo Verde na sua mais crua verdade e cruel realidade. Manuel Ferreira, em tom de denúncia, procura mostrar a situação do povo cabo-verdiano: a realidade da seca e seus efeitos devastadores, a fome, a miséria, a falta de esperança e a morte. 180 “Hora di Bai” apresenta dois dos temas mais recorrentes da literatura cabo-verdiana: a emigração e a Morna. Ambas estão em relação constante com o mar, elementos geradores do grande dilema: “ter que partir, querendo ficar”. Reconhecendo na literatura cabo-verdiana a valorização desse lema, Benilde Caniato reforça: “Viver em Cabo Verde é querer ficar e ter de partir e, também, querer partir e ter de ficar; qualquer decisão será sempre provisória” (CANIATO, 2006, p. 202). Para essa autora, “Hora di Bai” , em síntese, acaba por assimilar o mote da Morna de Eugénio Tavares de mesmo título: “Corpo, qu´ê nego, sa ta bai/ Coraçom, qu´ê fôrro, sa ta fica” (Corpo, que é escravo, vai/ Coração, que é livre, fica). Assim, pelos caminhos do romance e nos acordes de uma Morna, o leitor acompanha alguns dos personagens em sua emigração para a “terra-longe”. 181 CONCLUSÃO Povo Canta morna na tua voz magoada e quente Deixa o violão explicar a tua alma poética Que no amanhecer de um dia qualquer o milagre acontecerá: Os campos ficarão verdes A chuva cairá rija nos telhados E rirá conosco e cantará conosco Mornas compostas nas noites quentes de verão. (ANAHORY, 1962) Após longa pesquisa sobre autores que contam a história de Cabo Verde, pode-se considerar que refletir sobre o arquipélago é adentrar uma diversidade de temas inerentes à formação da identidade do povo cabo-verdiano. Em um primeiro momento dessa pesquisa, a intenção foi mostrar que os debates sobre a identidade cabo-verdiana são recorrentes tanto no meio acadêmico, como no cenário político e social dentro e fora de Cabo Verde. Por sua própria natureza, o termo “identidade” está sempre em questão, ainda mais se tratando da identidade cabo-verdiana, resultado do contato de culturas europeias e africanas, ambas com diferentes estatutos, mas que partilhavam de um mesmo espaço geográfico. Desse espaço geográfico, nasce em Cabo Verde a cultura e a língua cabo-verdiana - o crioulo - provenientes de um processo de miscigenação sui generis, marcando, assim, o nascimento do “mestiço” e da sua afirmação no contexto do Estado Colonial. Conforme José Maria Semedo e Maria Turano (1997), o processo de miscigenação, em Cabo Verde, decorreu, principalmente, dos elementos culturais e das especificidades cabo-verdianas relacionadas à cultura africana, como a Tabanca, o Funaná e o Batuque, manifestações que chegaram a ser proibidas, no século XIX, pelo governo colonial. Nesse cenário, conforme Seibert (2014, p. 42), Cabo Verde é produto do período colonial e das transações entre diferentes povos, convertendo-se em uma sociedade de cultura híbrida; e os mestiços cabo- verdianos, são o “resultado de um caso particular da colonização portuguesa”. Para o crítico cabo-verdiano João Lopes Filho (2003), a identidade está relacionada a uma construção cultural ligada ao conhecimento e a uma consciência coletiva definida a partir de indicadores como: o modo de vida, a língua, as crenças e a religiosidade, assim como as tradições orais, culturais que caracterizam um povo. E acrescenta: “A identidade é construída através de uma relação com os lugares, testemunhos, ações, memórias e outros elementos com 182 os quais nos identificamos” (LOPES FILHO, 2003, p. 34). Nesse âmbito, foi visto que, entre as diversas manifestações culturais que se somam na construção da identidade cabo-verdiana, a música, especificamente a Morna, surge como veículo privilegiado na expressão e divulgação da caboverdianidade. Nesse trabalho de investigação, buscou-se privilegiar o gênero Morna por considerá-la uma das mais significativas manifestações de pertencimento a Cabo Verde, pois, por meio dela, o cabo-verdiano manifesta sentimentos fortemente valorizados, como a dor, a tristeza, a saudade e a melancolia, assim como a resistência frente às condições físicas e sociais opressivas. Vale lembrar que a Morna tem recebido especial atenção dos estudiosos que investigam a sua origem, a pluralidade de versões da sua história, a forma como é definida na poesia, na música, na dança, assim como é caracterizada nos contos e no romanceiro popular. Por ser uma “criação original de Cabo Verde”, por meio da Morna, conta-se a história do povo cabo-verdiano, desde o processo de colonização e povoamento das ilhas, passando pelas duras realidades traduzidas em preconceitos e discriminações raciais, pelas durezas climáticas, as cruezas das secas, da fome, do abandono e da morte. Frente a esse contexto e conforme as afirmações de Jorge Miranda Alfama (2006), a história de Cabo Verde está intimamente ligada à história literária, uma vez que, desde o século XVI, já existia algum letramento no arquipélago e, apesar das duras condições climáticas, formou-se nas ilhas uma literatura caracterizada pela nostalgia, pela saudade, pela escassez da chuva e pela insularidade, pela plantação do milho e pela inspiração no mar que circunda essas ilhas atlânticas (ALFAMA, 2006, p. 91). Essa literatura, em parte, define-se como ontológica, subjetiva, sempre em busca da memória esquecida dos antepassados, que, ao longo da história, foi tirada e negada. E a Morna é o canto identitário, que testemunha essa realidade existencial do cabo-verdiano, presente nos diferentes grupos sociais, nos meios eruditos e populares, cantada por homens e mulheres do povo, espalhados pelas ilhas e pelo mundo. Considera-se importante mostrar que as primeiras manifestações literárias, em Cabo Verde, surgiram através das diferentes revistas, jornais e periódicos, nos quais eram publicados excertos de diferentes obras de teor literário, como crônicas, poemas e novelas. Acrescenta-se a essas manifestações literárias a existência dos denominados “pasquins”- produção escrita em verso, encontrada em princípio do século XVIII, no Arquivo Histórico do Ultramar, com característica satírica e divulgada de forma manuscrita (LOBO, 2011, p. 19). 183 Além das revistas, tanto a imprensa como a escola tiveram um papel fundamental para a consolidação de uma literatura coesa, realista, que buscava retratar a mais fiel realidade histórica e social do povo cabo verdiano. Com o lema “fincar os pés na terra cabo-verdiana”, em 1936, surge, em Cabo Verde, especificamente na ilha de São Vicente, a Revista de Artes e Letras Claridade, considerada um marco na literatura cabo-verdiana. Com ela, uma nova geração de intelectuais, frente aos embates políticos da época (anos 30 do século XX), procurou construir, no arquipélago, uma literatura genuinamente cabo-verdiana, com sua temática voltada para as questões sociais, coloniais e pós-coloniais, atenta à busca das raízes insulares, da consciência regionalista e da valorização das especificidades de Cabo Verde, capaz de exprimir uma arte literária renovada, que expressasse a voz do povo e as suas necessidades, tendo como base os valores e motivações próprias das ilhas. É importante frisar que o movimento claridoso se destacou por estimular a produção local, fazendo surgir obras que interpretavam e dialogavam com a realidade do arquipélago, com seu povo, envolvendo suas lutas, derrotas e vitórias. Nesse contexto, a intenção dessa pesquisa foi mostrar essa produção por meio das narrativas dos claridosos, como Manuel Lopes, com o conto “Galo cantou na Baia” (1998) e o romance “Os Flagelados do Vento Leste” (1979). Também Manuel Ferreira, com “Puchinho”, “Belinha foi ao baile pela primeira vez”, “O cargueiro tornou ao porto” e “Uma flor entre os cardos”, contos de Mornas e Morabeza reunidos no livro “Terra Trazida” (1972), onde o autor procura ilustrar, no plano da ficção e por meio da morna, os dramas do cabo-verdiano. É o que ocorre também em “Hora di Bai”, romance de Manuel Ferreira, publicado em 1962, que conta a trágica história da fome que avassalou Cabo Verde nos anos de 1940. Em “Chiquinho” (1947), romance de Baltasar Lopes, o autor assume uma postura política e utiliza-se da escrita para denunciar as situações oriundas da tragédia das secas e suas consequências, como a fome e a emigração forçada. Também buscou-se apresentar, nesta tese, a narrativa de autoria feminina, na figura de Dina Salústio, que, em “Mornas eram as noites” (1999), problematiza a condição feminina em seus contos, “incorporando diferentes aspectos da feminilidade, em Cabo Verde, e opondo-se a uma cultura patriarcal e androcêntrica, que não vê a mulher como parte ativa dela, mas submetida àqueles que são mais fortes” (PAZ, 1982, p. 135). Esses ficcionistas apresentam uma narrativa comprometida com os que são socialmente desprovidos dos bens fundamentais para a sobrevivência. Por essa razão, suas temáticas estão voltadas para a evasão, a emigração, a fome (de justiça e de alimento); a luta 184 pela terra em que vivem, assim como os dilemas existenciais relacionados à angústia, ao medo, às incertezas. Cabe ressaltar que as representações da Morna e as temáticas nela recorrentes são apresentadas através de contos e crônicas, por meio da poesia e da prosa de ficção em seus diferentes estilos representativos. Nesses textos, os autores procuravam, além de registrar com fidelidade a realidade de Cabo Verde e de sua gente em diferentes períodos da história sociocultural e política do arquipélago, denunciar os problemas existenciais e matérias do povo cabo-verdiano. Acrescenta-se que, ao tratar sobre a temática da Morna, não se podia deixar de manifestar o reconhecimento ao poeta, jornalista e prosador Eugénio Tavares (1867-1930), que, por meio da sua produção escrita, dominou o cenário cabo-verdiano nas primeiras décadas do século XX. Eugénio Tavares foi um dos pioneiros a lançar mão da Morna para denunciar com rigor os graves problemas sociais, existenciais e políticos em que vivia o povo cabo-verdiano, ou seja, os dramas oriundos da seca e da fome, como também do abandono em que se encontravam as ilhas e a maioria da população. “Nhô Eugénio”, como era carinhosamente conhecido na ilha da Brava, foi: “Grande compositor de belas mornas, escritor de várias peças teatrais, contos e crônicas, que “legou ao povo cabo-verdiano e aos outros cultores da língua de Camões um autêntico património espiritual que se traduz na experiência linguística, histórica, estética e artística.” (CARLOS, 2015, p. 104). Considerado um dos maiores poetas da crioulidade e referência deste gênero musical, Eugénio Tavares, apelidado como “trovador nostálgico”, “poeta do amor e da emigração”, “cantor de serenatas e tertúlias”, em suas Mornas, cantou o amor à mulher, à mãe, à emigração, à saudade, à partida, à despedida e ao regresso, temas que também estão presentes nas obras de outros escritores que, neste trabalho foram abordados. Convém lembrar que Eugénio, além de ter lançado mão da Morna como principal veículo para expressar o lirismo em língua cabo-verdiana, buscou expressar os sentimentos mais profundos do seu mundo interior, que, de certa forma, são os sentimentos do povo (MARTINS, 1993, p. 3). Enfim, procurou-se apresentar a Morna e o diálogo que ela estabelece com a poesia e com a prosa de ficção, através desses autores escolhidos, que definem, caracterizam e discorrem sobre esse gênero. Nesse contexto, reafirma-se, portanto, juntamente com Simone Caputo Gomes, que “a Morna assume um lugar privilegiado na literatura cabo-verdiana” (GOMES, 2008, p.150) e, por esse motivo, ela define as várias circunstâncias da vida, como a 185 alegria e a tristeza, a partida e o regresso, a vida e a morte, a dor e a euforia - sentimentos que retratam as experiências e os percursos de vida do povo cabo-verdiano. Nesse contexto, os diferentes temas da literatura cabo-verdiana que foram abordados nesta tese, não se esgotam aqui; pelo muito do que foi escrito sobre a “Morna”, muitas questões estão ainda por responder, conhecer e debater. Contudo, ao atualizar o termo “fincar os pés no chão”, frase tantas vezes repetida, nos discursos, sobre a identidade cabo-verdiana, requer-se identificar um conjunto de elementos que fazem homens e mulheres das ilhas reconhecerem-se como cidadãos inseridos em uma realidade da qual eles fazem parte e a constrói. 186 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ABDALA JR, Benjamin. Utopia e dualidade no contato de culturas: o nascimento da litera tura cabo-verdiana. In: literatura insular: leituras e escritas: Cabo verde, São Tomé e Príncipe. (Org.): RIBEIRO, Margarida Calafate e JORGE, Sílvio Renato. Ed. Afron tamento, 2011. ALFAMA, Jorge Miranda. Literatura. Atlas da Lusofonia. Cabo Verde. Editora Prefácio, 2006. _________ “Chiquinho, de Baltasar Lopes, o romance de Claridade”. In: VEIGA, Manuel (coord.) Cabo Verde - Insularidade e Literatura. Ed. Karthala, 1998, p. 247. ALMADA, David Hopffer. Pela cultura e pela identidade: em defesa da cabo-verdianidade. 2006. ALMADA, José Luís Hopffer. (Coord.) 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