UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES
DEPARTAMENTO DE ARTES
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES CÊNICAS
JOSADAQUE ALBUQUERQUE DA SILVA PIRES
(LOU) CURE-SE!!!: CORPOS VIVIDOS EM INSTAURAÇÕES
CÊNICAS NO HOSPITAL DR. JOÃO MACHADO
NATAL-RN
2016
JOSADAQUE ALBUQUERQUE DA SILVA PIRES
(LOU) CURE-SE!!!: CORPOS VIVIDOS EM INSTAURAÇÕES CÊNICAS NO
HOSPITAL DR. JOÃO MACHADO
Trabalho de dissertação apresentado ao
Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas
– PPGARC, da Universidade Federal do Rio
Grande do Norte – UFRN, como requisito para
obtenção do grau de Mestre em Artes Cênicas.
Orientadora Prof.ª Dra. Nara Salles
NATAL-RN
2016
Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN
Sistema de Bibliotecas - SISBI
Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Departamento de Artes - DEART
Pires, Josadaque Albuquerque da Silva.
(Lou) cure-se!!!: corpos vividos em instaurações cênicas no
hospital Dr. João Machado / Josadaque Albuquerque da Silva
Pires. - 2016.
121 f.: il.
Dissertação (mestrado) - Universidade Federal do Rio Grande do
Norte, Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Programa de
Pós-graduação em Artes Cênicas, Natal, 2016.
Orientador: Profª Drª Nara Salles.
1. Artes cênicas - Dissertação. 2. Loucura na arte -
Dissertação. 3. Corporeidade - Dissertação. 4. Subjetividade -
Dissertação. 5. Criação (Literária, artística, etc.) -
Dissertação. 6. Vivências - Hospital Dr. João Machado - Natal
(RN) - Dissertação. I. Salles, Nara. II. Título.
RN/UF/BS-DEART CDU 792(043.3)
TRABALHO DE DISSERTAÇÃO
Aluno: Josadaque Albuquerque da Silva Pires
Curso: Mestrado em Artes Cênicas
Ano: 2013/2015
Dissertação apresentada como cumprimento
das exigências para obtenção do título de
Mestre em Artes Cênicas pela Universidade
Federal do Rio Grande do Norte.
Aprovado por:
Presidente: Profª. Dra. Nara Salles
Titular Interno: Prof. Dra. Teodora Araújo
Titular Externo: Profa. Dra. Urânia Maia - UFBA
Data:____/____/______
AGRADECIMENTOS
Aos meus pais e irmãos que me acolheram e me lançaram nessa jornada existencial de
pulsantes paradoxos, angústias, certezas e incertezas, medos e coragem, faltas, sonhos e desejos
no mundo de encontros e desencontros, de sentidos e de falta de sentidos, em que a humanidade
habita dentro e fora de mim.
A minha esposa Maria de Fátima Teixeira Neri e meu filho Joaquim Miguel Neri Pires
pela companhia e paciência na partilha da angústia e da perseverança na concretização desse
projeto de estudo.
Aos artistas da Coligação Cruor Arte Contemporânea e aos clientes do hospital Dr. João
Machado pela parceria neste processo colaborativo de pesquisa e criação artística.
As psicólogas Ana Patrícia Sá Leitão e a Maria Telma S. Lira, amigas e colegas de
trabalho, pelo apoio amigo e suporte teórico em questões pertinentes ao olhar, a escuta e
conduta clínica dos participantes deste processo. Foram cúmplices ouvindo, dialogando,
clareando as conexões entre psicologia e arte, e lançando luzes de forma apaixonada e
interessada sobre as complexidades e possibilidades de acontecimentos neste processo de
pesquisa e criação.
A Débora Albuquerque Pires Rocha pela correção e orientação desta escrita dissertativa.
A amiga Maria Dalva Horácio pela atenção e suporte afetivo na construção deste
trabalho.
A minha orientadora professora Nara Salles que, com entusiasmo, empenho, afeto e
dedicação, fez acontecer encontros criativos e afetivos com os internos do Hospital Dr. João
Machado. Mesmo nos momentos difíceis da pesquisa, sempre tinha uma palavra amiga e de
incentivo. O meu agradecimento interior por ter acreditado nesta proposta criativa e desafiadora
por se desenvolver em um mundo em que a grande maioria não ousa olhar e nem tocar e por se
tratar de um ambiente difícil de se concretizar ações.
No ponto de desgaste a que chegou nossa
sensibilidade, certamente precisamos antes de
mais nada de um teatro que nos desperte: nervos
e coração.
ARTAUD, 1999, p.95.
RESUMO
Esta dissertação enfoca uma proposta de investigação com metodologia de pesquisa ação; sobre
o denominado ser louco, sua corporeidade e as relações intersubjetivas que esses corpos travam
e que se revelam na cena cotidiana de uma instituição psiquiátrica, quando em contato direto
com processos artísticos de instaurações de cenas; lembrando sempre que, esses corpos sob o
signo da loucura lidam com o estigma.Trata-se de pesquisar o modo de ser corporalmente
predominante por restrições e desorganização na relação que essas pessoas têm com o outro,
com o tempo e com o espaço, para tanto observa-se o modo como esses corpos se estruturam e
se movimentam nos espaços sociais que parecem estar impregnados por uma ideologia de
valores, crenças e preconceitos adquiridos no processo histórico-social. O tratamento dado ao
louco é definido historicamente por uma prática de exclusão e pela diferença que faz do louco
um ser desprovido de razão e consciência, amoral e nocivo, e deste modo, a discriminação é
efetivada pelo controle através do enclausuramento e/ou da medicação exacerbada; As marcas
cruéis desta ideologia opressora que caracterizam a história da loucura, onde o louco ainda
ocupa o lugar do oprimido, são visíveis neste recorte pesquisado e percebidas nas gestualidades
e expressões orais e corporais; A história desses corpos são presentificadas em dramas narrados
e pela carga emocional impregnada nos gestos, na tonalidade da voz em falas, cantos e gritos
que se revelam na cena cotidiana. Deste modo, este trabalho se propõe a uma articulação entre
loucura e arte e para isto, procura-se encontrar conexões entre conceitos e questões que
permeiam o tema da loucura e os processos de criação, enfatizando a importância do contato e
da vivência humana com a linguagem da arte através do contato dos internos no Hospital
Psiquiátrico Dr. João Machado com a coligação Cruor Arte Contemporânea, grupo permanente
de Arte e Cultura, residente no DEART/UFRN, grupo de prática cênica do Núcleo
Transdisciplinar de Pesquisa em Artes Cênicas e Espetaculares. Articular arte e loucura neste
estudo está vinculado a experiência vivida na interação desses corpos nos encontros. Trata-se
da relação desses corpos rotulados e institucionalizados nomeados como doentes mentais, por
terem um histórico de enclausuramento em internações hospitalares, denominadas de
manicômio, que contém uma cultura de controle social coercitivo. Investiga-se o encontro os
corpos de artistas que trazem em si a experiência da arte e a partir dai se pensa na possibilidade
de uma estética existencial das relações entre corpo, espaço, tempo e movimento nas
instituições totalitárias e em um sentido mais amplo, nas condições determinadas
historicamente ao louco, marcadas pelo abandono e ausência desse corpo, como também pela
desorientação temporal e espacial, para tanto tenho o aporte da Psicologia Corporal em uma
leitura fenomenológica existencial e da Psicologia Analítica através do estudo do significado
dos símbolos na relação do ser humano consigo mesmo e com o ambiente. Essas perspectivas
teóricas apresentadas foram escolhidas por trazerem contribuições para o estudo do ser humano
em seus aspectos simbólicos, corporais e existenciais sob a ótica da arte. Estudos estes,
essenciais para a construção da experiência fenomenológica do sujeito enquanto trajeto de vida,
em sua relação consigo mesmo e com o outro através da vivência da loucura com a presença da
arte. No decorrer deste processo investigativo compreendemos que estudar as atuais cenas
cotidianas protagonizadas no hospital Dr. João Machado por subjetividades diferenciadas como
portadoras de transtorno mental ou pessoas em sofrimento psíquico perpassa pelo entendimento
de que na sociedade atual temos novas formas de produção da loucura, novos modos de ser
louco, e reafirmando pois que a fabricação dessas emergentes formas subjetivas de ser louco é
social e histórica e a arte pode ser um caminho para esta compreensão. Pois, é possível permitir
a plasticidade e estéticas para outras formas de vivências, e “ser” com abertura para ousar, criar
e refletir suas questões, seus estranhamentos, suas posturas adotadas e lugares assumidos na
coletividade. E neste sentido, pela arte, em um espaço de saúde e ciência produzir conhecimento
sobre o real e o vivido, com a linguagem artística das artes cênicas, pois esta facilita ao ser
humano expressar e perceber o mundo de uma forma mais intensa. Vislumbrou-se pensar
pedagogias vivenciais e corporais para lidar com as cenas e os corpos que circulam e se fazem
presentes naquela realidade institucionalizada, assim foi criada com alguns pacientes a
instauração cênica (Lou) Cure-se!!!, apresentada ao público nos meses de julho e agosto de
2016, nas dependências do hospital psiquiátrico Dr. João Machado.
Palavras chaves: Corpo. Loucura. Espaço. Tempo. Instituição. Vivência. Arte. Criatividade.
Processos criativos. Subjetividade. Instauração cênica.
ABSTRACT
This thesis focuses on a research proposal, with a research-action methodology, on the so-called
be crazy, its corporeality and interpersonal relations established by these bodies and that are
revealed in everyday scene of a psychiatric institution, when in direct contact with artistic
processes of the instauration of scenes; always remembering that these bodies under the sign of
madness deal with stigma. It is about finding the way of being bodily predominant by
restrictions and disruption in the relationship that these people create with one another, with
time and space. With that in mind, it is observed how these bodies are structured and how they
move in social spaces that appear to be impregnated by an ideology of values, beliefs and
prejudices acquired in the socio-historical process. The treatment of the insane is historically
defined by a practice of exclusion and difference that makes the crazy a being destitute of reason
and conscience, amoral and harmful, and thus discrimination is effected by control through the
enclosure and/or exacerbated medication; The cruel marks of this oppressive ideology that
characterizes the history of madness, where the crazy still occupies the place of the oppressed,
are still visible in this research and perceived in gestures and oral and body expressions; the
history of these bodies is personalized in narrated dramas and by the emotional charge
impregnated in gestures, the tone of voice in speeches, songs and screams that are revealed in
the everyday scene. Thus, this work proposes a link between madness and art and for this, we
try to find connections between concepts and issues that permeate the theme of madness and
creation processes, emphasizing the importance of the contact and of the human experience
with the language of art through the contact with the residents of the Psychiatric Hospital Dr.
João Machado, working together with Cruor Arte Contemporânea, a permanent group of art
and culture, from the DEART/UFRN (Art Department), a dramaturgy group from the Núcleo
Transdisciplinar de Pesquisa em Artes Cênicas e Espetaculares (Interdisciplinary Center for
Research on Performing and Spectacular Arts). Articulating art and madness in this study is
linked to the experience obtained in the interaction of these bodies in the meetings. This is the
relationship of these labeled and institutionalized bodies appointed as mentally ill, for having a
record of enclosure in hospital stays, places termed madhouse, which contains a coercive social
control culture. We investigate the encounter of the bodies of artists who bring in themselves
the experience of art and, from there, we consider the possibility of an existential aesthetic of
the relationship between body, space, time and movement in totalitarian institutions and in a
wider sense, in conditions historically determined for the crazy, marked by abandonment and
absence of this body, as well as the temporal and spatial disorientation. In order to study this
scenario, we took advantage of the contribution of the Body Psychology added to an existential
phenomenological reading and of the Analytical Psychology, by studying the meaning of the
symbols in the relationship of the human with themselves and the environment. These
theoretical perspectives presented were chosen for bringing contributions to the study of the
human being in its symbolic, bodily and existential aspects, from the perspective of art. Such
studies are essential to the construction of the phenomenological experience of the subject as a
way of life in their relationship with themselves and the other through the experience of
madness with the presence of art. During this investigative process, we understood that studying
the current everyday scenes enthralled in the hospital Dr. João Machado by considering
differentiated subjectivities as mentally disabled or people in psychological distress pervades
the understanding that in today's society there are new forms of production of madness, e.g.,
new ways to be crazy, and therefore reaffirming that the manufacture of these emerging
subjective ways of being crazy is social and historical and the art can show a way for this
understanding. Then, it is possible to allow the plasticity and aesthetics to other forms of
experiences, and "be" with openness to dare, create and reflect their issues, their strangeness,
their adopted positions and places undertaken in the community. In this sense, by the art, in a
space of health and science to produce knowledge about the real and the lived, with the artistic
language of the performing arts, as this makes the human being being able to express and
perceive the world in a more intense way. It was in sight to consider experiential and body
pedagogies to handle the scenes and the bodies that circulate and are present in that
institutionalized reality, and it was created, with some patients, the scenic instauration
(Lou)Cure-se!!! [(Un)Heal Yourself!], presented to the public in July and August 2016, on the
premises of the psychiatric hospital Dr. João Machado.
Keywords: Body. Madness. Space. Time. Institution. Experience. Art. Creativity. Creative
processes. Subjectivity. Scenic instauration.
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Imagem 01 Eu Sou a Desintegração – obra de Frida Khalo.................................... 90
Imagem 02 O Que Vi na Água – obra de Frida Khalo............................................. 91
Imagem 03 Cartaz veiculado convidando para assistir “TAI” do Cruor Arte
Contemporânea no Hospital psiquiátrico Dr. João Machado................
92
Imagem 04 Apresentação da obra “TAI” do Cruor Arte Contemporânea no Hospital
Psiquiátrico Dr. João Machado junto com alguns internos......
92
Imagem 05 Apresentação da obra “TAI” do Cruor Arte Contemporânea no Hospital
psiquiátrico Dr. João Machado junto com alguns internos.......
93
Imagem 06: Cena 05: “Pétalas” – pavilhão feminino – Foto Felipe Galvão............ 96
Imagem 07 Entrada da residência artística do CRUOR Arte Contemporânea no
Hospital Psiquiátrico Dr. João Machado onde foram montadas as
instalações – foto Caroline Macedo......................................................
97
Imagem 08 Instalação Retalhos & Flores de Emisandra Ribeiro – foto Wallacy
Medeiros................................................................................................
98
Imagens 09 e 10 Instalação Retalhos & Flores de Emisandra Ribeiro – fotos Felipe
Galvão...................................................................................................
98
Imagem 11 Instalação Chaves & Segredos de Jessica Cerejeira – fotos de Caroline
Macedo...................................................................................
99
Imagem 12 Instalação Deriva de Camila Morais – fotos de Felipe Galvão............. 99
Imagem 13 Instalação Natércia de Fanny Lo – foto Nara Salles............................. 100
Imagem 14 Instalação Imagens Processos de Criação Cruor Arte Contemporânea
– foto Caroline Macedo........................................................................
100
Imagem 15 Cartaz de divulgação design: Ícaro Pereira........................................... 101
Imagem 16 Folder - design: Ícaro Pereira................................................................ 102
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 11
CAPITULO I – CONTEXTUALIZANDO A PESQUISA .................................................. 13
CAPÍTULO II – ARTE E LOUCURA: PROCESSOS DE CRIAÇÃO ............................ 36
CAPÍTULO III – NO HOSPITAL UMA INSTAURAÇÃO CÊNICA ACONTECE:
“(LOU)CURE-SE!!!” ............................................................................................................. 74
ASPECTOS (IN)CONCLUSIVOS: TESSITURAS FINAIS, CONCEITUAIS E
CÊNICAS .............................................................................................................................. 103
REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 110
11
INTRODUÇÃO
Este estudo realizado no âmbito do Programa de Pós-graduação em Artes Cênicas da
Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) constitui uma pesquisa ação, através
de processos artísticos colaborativos e compartilhados, envolvendo um grupo de alunos-
artistas-pesquisadores do Departamento de Artes desta universidade em encontros artísticos
com os internos do Hospital psiquiátrico Dr. João Machado (HJM). Nesse sentido trata-se de
um trabalho científico e artístico, conforme dissertamos nesta introdução, bem como no
desenvolvimento e considerações finais.
A presente dissertação contém três capítulos que correspondem à contextualização e
intenções da pesquisa, as conceituações, apreensões, reflexões, trajeto metodológico
percorrido, e de criação artística da instauração cênica (Lou) Cure-se!!!, apresentada ao
público no próprio hospital como prática cênica da pesquisa. Nas considerações finais, em
capítulo intitulado Aspectos (in) conclusivos: Tessituras finais, conceituais e cênicas
avaliamos o processo e a significância da construção de um saber sobre a loucura na
proposição e nos procedimentos do próprio fazer teatral.
No primeiro capítulo apresentamos a pesquisa e contextualizamos sua identidade
temática: o fenômeno da loucura em uma instituição psiquiátrica, seu sentido de ser histórico
e as implicações da arte e da psicologia com a experiência sensível do ser na loucura, neste
recorte a clientela assistida no HJM e sua vivência em internações no espaço-tempo
pesquisado. Descrevemos o tipo e o enfoque metodológico da pesquisa, os envolvidos no
processo e as proposições investigativas e artísticas. Destacando o espaço pesquisado,
contemplando a estrutura física e existencial, sua ambientação estética e psicológica, os atores
dessa realidade, as sensações, as tramas relacionais, valores culturais e saberes que circulam
na cena cotidiana desta instituição. E, considerando a presença do Hospital Dr. João Machado
e sua importância histórica na vida social, cultural e política do estado do Rio Grande do Norte
como ambiente hibrido e de transição para que as atuais políticas públicas de atenção aos que
necessitam de cuidados pertinentes à saúde mental sejam implementadas e incorporadas ao
imaginário social.
O segundo capítulo aborda o processo de criação e a relação estabelecida entre a arte
e a loucura, entre o ser criativo e o ser oprimido, adoecido nas amarras manicomiais.
Debruçando-se e compartilhando desse encontro afetivo e criativo entre duplos, artistas e
loucos, como potência de vida, e suas especificidades alusivas à liberdade existencial de
12
criação e de expressão estética e afetiva nos entornos sociais. Neste sentido a vivência artística
nesses encontros como catalizadora de produção de conhecimento sobre o fenômeno da
loucura. Considerando que outras possibilidades de lidar com os loucos e a loucura podem
acontecer, em especial, quando o ambiente espontâneo e criativo proporcionado pela arte
contemporânea permite: o participante improvise e inove suas ações e se posicione no mundo.
Entendo que o fenômeno da loucura, em seus diversos aspectos, psíquico-corporal, político,
social e cultural, passíveis de transformações, permeia a vivência do ser da loucura e do artista,
entrelaçando-os como duplos desde a antiguidade.
O terceiro capítulo enfatiza a Instauração Cênica (Lou) Cure-se!!!, seus impactos e
estranhamentos nos participantes deste acontecimento artístico que se dá na cotidianidade da
própria Instituição Hospitalar em que artistas, público, internos e profissionais se entrelaçam
e se misturam como que, por uma magia, fazem acontecer o teatro, a poesia e a dança; e que
todos os presentes se tornem atores da cena instaurada, e ao mesmo tempo reflitam sobre os
aspectos sensíveis psicológicos e estéticos deste cotidiano. O (Lou) Cure-se!!! por sua
construção e constituição investigativa priorizou as sensações apreendidas num viés de
transformação. Neste sentido esta encenação instaura cores, fragrâncias, paladares, sons,
gestos, toques e olhares que se propagam em cortejos pelos espaços internos do HJM. Assim
abordaremos a força dessa Coligação de seres humanos, que se locomovem juntos, artistas,
internos, visitantes e profissionais, fazendo acontecer uma instauração cênica em cortejo e em
estações e, ao mesmo tempo, a possibilidade de circulação de outras ideias e de outra
corporeidade permeada pela leveza, fluidez e gestualidades que a arte cênica permite. Neste
capítulo abordamos também aspectos profundos, míticos e simbólicos experienciados pelo ser
humano na loucura, na construção dos elementos cênicos e das partituras cênicas que
compuseram as instalações e as instaurações do (Lou) Cure-se!!! pelos artistas.
Nas tessituras finais faremos as considerações significativas sobre a atuação artística
e a pesquisa articulada entre duas instituições distintas, o Hospital Dr. João Machado e a
Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Ressalto a importância dessa articulação tanto
para os alunos-artistas-pesquisadores como para os internos e profissionais do HJM. Registro
nossa proposta artística e educativa para os internos e para o hospital em continuidade a esta
ação sistemática durante essa prática de pesquisa.
13
CAPITULO I – CONTEXTUALIZANDO A PESQUISA
Esta dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Artes
Cênicas da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) trata de uma pesquisa
qualitativa, descritiva, com enfoque na pesquisa ação no âmbito do Hospital Dr. João
Machado (HJM), instituição com fins de atendimento às pessoas que demandam cuidados na
área de saúde mental e que buscam assistência no Sistema Único de Saúde (SUS). O HJM faz
parte da Rede de hospitais públicos subordinados a Secretaria de Saúde Pública do Estado do
Rio Grande do Norte (SESAP – RN). Hospital de referência em urgências e internamento em
saúde mental, classificado como de média complexidade no SUS está localizado na Avenida
Alexandrino de Alencar, número 1700, no bairro do Tirol, município de Natal-RN.
Na época em que foi construído, o Hospital Dr. João Machado propositadamente
edificado em uma localização afastada do centro da cidade, de difícil acesso, conforme
preconizava o modelo da psiquiatria asilar, modelo característico da época. Assim, foi
inaugurado para funcionar como um hospital colônia para pessoas com transtorno mental,
qualificadas como loucas, ou seja, consideradas inadequadas ao convívio social, em geral tidas
como emocionalmente indesejadas e insuportáveis aos sentidos físicos dos cidadãos ditos
normais, conforme concepção então vigente.
Apesar dessa visão excludente da pessoa com transtorno mental, ressalta-se o fato do
Hospital Colônia ter sido criado com base na psiquiatria social, que acreditava na laborterapia
como forma de promover a recuperação, criando espaço físico para que os pacientes pudessem
criar porcos e plantar alimentos para complementar a sua subisistência, bem como ajudar na
manutenção da instituição. No entanto, sabe-se que de fato, essa proposta não vingou. Assim,
a lógica de assistência ficou restrita a uma dinâmica na qual, ao ser interno a pessoa
denominada louca era lançada no mundo de pavilhões entre muitos outros que também se
enquadravam nessa mesma categoria de doente mental.
Conforme retrata o jornalista João Alves (2007),
quando foi idealizado pelo médico psiquiatra João Machado, o hospital
Colônia deveria receber as pessoas “estranhas e mal vistas pela sociedade.
Inaugurado em 15 de janeiro de 1957, contou com a presença do então
presidente da república, Juscelino Kubtschek na solenidade. O hospital era
localizado na época em uma área afastada da cidade Natal. Eram em pontos
distantes dos centros que ficavam as pessoas indesejadas. (ALVES, 2007,
p.1).
14
Até hoje, o hospital está registrado no Cadastro Nacional de Estabelecimento em
Saúde (CNES) como Hospital Colônia Dr. João Machado, porém é tratado pela SESAP-RN
nas relações oficiais e sociais apenas como Hospital Dr. João Machado. Na atualidade, ainda
podemos ouvir pessoas da cidade do Natal se referirem ao Hospital Dr. João Machado pelo
nome de Hospital Colônia, nome que de fato é desde a sua fundação e como era conhecido
pela sociedade. O nome Hospital Colônia por vezes é uma referência pejorativa e
preconceituosa no imaginário social que associa o Hospital Dr. João Machado como o local
onde os doidos do Rio Grande do Norte deveriam ser contidos e confinados.
A concepção de Hospital Colônia vincula-se a marca existencial da cultura
manicomial historicamente estabelecida nos espaços institucionalizados cujo tratamento dado
à pessoa com transtorno mental é caracterizado por uma lógica de exclusão social, nos mesmos
moldes do tratamento dado a louco no mundo ocidental.
Neste modelo de tratamento, os loucos - termo tradicional utilizado historicamente
na literatura e nas produções científicas para deseginar e retratar o ser humano com transtorno
mental, ainda é comum na cena urbana para serem reclusos em espaços institucionais
totalitários e distantes da sociedade. E neste sentido, para compreendermos a razão de ser da
loucura neste espaço contemporâneo, nos ancoramos na história da loucura no ocidente
narrada por Foucault (2005), e neste recorte pesquisado, a partir da observação participante
nos motivamos a pensar a história da loucura, refletindo para além desse isolamento ao louco
que se dá em espaço longínquo contornado por altas e concretas paredes manicomiais.
Propomo-nos a refletir sobre a experiência sensível dos internos, no encontro dado
com um grupo de artistas, o CRUOR Arte Contemporânea, grupo permanente de arte e cultura
da UFRN, que passou a fazer uma residência artística no hospital, como parte prática da
investigação desta dissertação, visando à criação de uma obra artística que pudesse ser
apresentada ao público.
É fato que os loucos no Estado do Rio Grande do Norte, em seu trajeto histórico,
também foram retirados da cena urbana onde é de direito se movimentar com autonomia e
liberdade para viverem enclausurados por longas e sucessivas internações nos restritos
espaços de hospitais psiquiátricos da região. Neste recorte pesquisado, aos loucos, restou a
imposição de atuarem em uma tragédia real no papel de submissos doentes mentais de um
enredo desenrolado numa instituição totalitária caracterizada por uma cultura de repressão e
controle.
Em outras palavras,
15
isto faz com que a forma adaptativa mais comum seja a de aceitar essa
proposta do meio manicomial e começar a comportar-se “como um louco”,
ou seja, a cumprir as expectativas da instituição. Acrescente-se aqui que nem
todas as condutas loucas são permitidas, mas apenas as de “louco adaptado”,
obediente e respeitoso para com os enfermeiros, os diagnósticos e
regulamentos. (MOFFATT, 1983, p.15).
Mesmo assim, apesar de todo esse controle exercido sobre o corpo do louco, é
importante ressaltar que tem algo espontaneamente e específico na loucura que escapa a essa
tentativa de enquadramento e submissão. A subjetividade da loucura está na transgressão e
subversão, pois
a subjetividade legitima-se por ser uma produção de sentidos subjetivos que
transcende toda a influência linear e direta de outros sistemas de realidade,
quaisquer que estes sejam. O sentido subjetivo está na base da subversão de
qualquer ordem que se queira impor ao sujeito ou à sociedade desde fora.
(REY, 2005, p.22).
Por este viés entende-se que a loucura em essência não cumpre a lógica linear dos
discursos. As palavras, ações e gestos, muitas vezes, saem sem coerência e sem coesão, com
conteúdos desorganizados, fantasiosos e/ou com presença de delírios, soam de modo esquisito
e tendem a gerar um ambiente de confusão que necessita de uma escuta qualificada, cujo
conceito é a valorização da palavra do usuário na reconstituição de sua história de vida,
possibilitando assim uma reestruturação de sua existência. Entender a experiência sensível e
existencial requer que estejamos atentos corporalmente, não apenas com os ouvidos e os olhos,
mas com nossa totalidade de sentidos, as sensações dos internos e as nossas sensações
também, posto que as comunicações entre os corpos revelam o verbal e o não-verbal.
Desta maneira buscar entender como os loucos se expressam e se evoluem
corporalmente nos espaços internos do hospital, e não apenas observarmos os movimentos,
mas compartilharmos de seus movimentos e gestualidades, caminharmos com eles, e junto a
eles se faz necessário para um maior acolhimento e uma melhor compreensão do ser humano
em adoecimento e sofrimento psíquico. Neste modo ao ser sensível a esta relação implicada
de sentidos e intencionalidades, entendemos que afetamos e somos afetados ao interagirmos
com outros corpos, nos propomos, corporalmente juntos, artistas e loucos, compreendermos,
pensarmos, sentirmos e apreendermos o mundo vivido na instituição. Percebemos com
estranhamentos a atmosfera e ambientação do hospital que visivelmente difere em densidade,
cheiro, gosto, cor, temperatura e luminosidade do mundo que os internos do HJM deixaram
lá fora, extra-muros, lá nas ruas da cidade.
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Assim nesse entrelaçamento de corpos, encontros entre artistas e loucos, vivenciamos
emoções e sentimentos peculiares ao mundo da loucura, a medida que afetamos e somos
afetados em nossa humanidade, o modo de lidar com as coisas e com as relações pessoais
naquele mundo implicou em novas reflexões e percepções sobre o modo como lidamos com
nossos corpos, nossos figurinos, nossos objetos pessoais e como lidamos com o a organização
do tempo e do espaço quando nos desestruturamos ou saímos do padrão comportamental de
normalidade e racionalidade aceito socialmente. E deste modo, compartilhar com os internos
do HJM esse lugar que ocupa o louco, em realidade emocional e social, não é difícil que
imaginemos as perdas afetivas e a ruptura de vínculos existenciais destes com a família,
amigos, escola e trabalho logo após o adoecimento psíquico, considerando que deixaram um
tempo, um espaço e um corpo com ânimo pessoal para serem controlados e isolados aos
cuidados da ciência médica, e sendo assim se tornam um corpo institucionalizado de louco.
Para entendermos este corpo institucionalizado e estigmatizado de louco vejamos
que no século XX, sob a égide das Ciências Naturais, a loucura é entendida, à luz do paradigma
psiquiátrico, esse modo científico de explicar a verdade sobre os fenômenos vai enquadrar a
loucura como consequência que preconiza a loucura como doença orgânica. Reconheçamos
que essa corporeidade se instaura ao longo de várias internações, onde a pessoa vai se
adaptando e se moldando coercitivamente aos mandantes da cultura manicomial. Estética e
funcionalmente, o corpo vai se configurando em expressões faciais, gestos e movimentos que
o enquadram numa estética de doente mental. Essa estética tem repercussão negativa no
imaginário e surge a tendência, nas pessoas ditas normais, de depreciá-lo e desestruturá-lo
como pessoa bem quista e desejável.
Assim entendemos que essas transformações refletem uma corporeidade construída
a partir de uma adequação existencial que se constitui na cultura manicomial. A locomoção
restrita, a falta de espontaneidade nos gestos, os efeitos da medicação nos movimentos
articulares e as expressões de amarguras e sofrimento no rosto revelaram as relações
cotidianas impregnadas por desqualificação, falta de aceitação e respeito que reduzem a auto
estima da pessoa. Deste modo nos imbuímos à compreensão da vivência da loucura a partir
da experiência sensível dos internos e de encontros artísticos entre internos e artistas
pesquisadores, em sua maioria, os artistas são alunos da UFRN e compõem a Coligação de
artistas Cruor Arte Contemporânea, como afirmado anteriormente. Esses encontros se deram
no próprio hospital e também em ambientes externos à instituição. Sistematicamente às
segundas-feiras, do ano de 2015, segundo semestre e no ano de 2016, primeiro semestre, os
internos participaram de aulas de dança no Departamento de Artes da Universidade Federal
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do Rio Grande do Norte, com a professora Dra. Elke Riedel, do curso de Música da UFRN,
cuja técnica utilizada foi a de DanceAbility.
Essa proposta constituiu-se em um projeto de extensão oferecido à comunidade
interna e externa da universidade ofertada pelo Núcleo Transdisciplinar de Pesquisa em Artes
Cênicas e Espetaculares, coordenado pela orientadora desta dissertação. Estas aulas fizeram
parte do programa vencedor do edital PROEXT/MEC/SESU para os anos de 2015 e 2016
intitulado “Arte Contemporânea e Cultura Investigadas Para Conhecer Apreender e
Transformar”, o programa contém vários projetos e um deles é do DanceAbility.
Para falar da arte como algo relevante para o ser humano em adoecimento psíquico,
consideramos importante que a arte, de uma forma ampla, desde os primórdios da civilização,
tem importante valor para a vida pessoal e social das pessoas, visto que a arte facilita, de forma
criativa, as diversas expressões e comunicações do ser humano com a natureza, consigo e com
a cultura. Nesta direção, Ferraz (2009) considera que o valor da arte está em ser um meio pelo
qual as pessoas expressam, representam e comunicam conhecimentos e experiências. O fato de
que nascemos em um mundo com uma história social de produções culturais que influenciam e
contribuem para a estruturação do nosso senso estético.
E para uma melhor compreensão da pesquisa desenvolvida, se fez necessário
contextualizá-la, entender o ambiente no qual foi desenvolvida e o panorama do tratamento da
loucura atualmente no nosso país e na cidade de Natal, onde resido e atuo como psicólogo.
Atualmente o HJM tem 160 leitos psiquiátricos cadastrados no SUS, sendo apenas 130
utilizados, os outros 30 apesar de estarem cadastrados com a Secretaria Municipal de Saúde estão
em desuso por conta de limitações na estrutura física e deficiência no quantitativo de Recursos
Humanos (RH). A Reforma psiquiátrica preconiza a redução de leitos nos hospitais psiquiátricos
e consequentemente o fechamento gradativo deste modelo de tratamento.
Conforme o Ministério da Saúde a desinstitucionalização depende sempre da
pactuação das três esferas de governo (federal, estadual e municipal) e de movimentos sociais
envolvidos na questão. E deste modo, paralelamente ao fechamento desses leitos a expansão
dos serviços substitutivos, tais como os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), Centros de
Convivências e as Residências Terapêuticas (RTs).
Ademais, outras medidas para assegurar a concretização deste processo são os
Programas do Ministério da Saúde em consonância com a Reforma Psiquiátrica. Entre estes
programas podemos citar: O Programa Nacional de Avaliação do sistema Hospitalar/Psiquiatria
(PNASH/Psiquiatria) e o Programa Anual de Reestruturação da Assistência Hospitalar
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Psiquiátrica no SUS (PRH). É digno de nota que o Programa do Governo Federal “De Volta Para
Casa” se constitui um benefício financeiro para se concretizar a proposta de desinstitucionalização.
Deste modo, o processo de desinstitucionalização pressupõe transformações culturais
e subjetivas na sociedade ao visar um deslocamento da atenção à saúde mental,
tradicionalmente centrada na instituição hospitalar para uma assistência na própria
comunidade, o que visa a inclusão da pessoa com transtorno mental à vida cotidiana familiar
e social. Em ressonância com este processo, a clientela do HJM passou a ser assistida nesta
lógica de reinserção no meio social e familiar. Mesmo assim é importante observar que a
cultura de internação na sociedade ainda é muito forte e faz com que encontremos, nos espaços
internos deste hospital, seres humanos que passam grande parte do tempo de suas vidas em
extensas e repetitivas internações, sem perspectivas de data para retornar à sociedade, e muitas
vezes abandonados pela família, tornam-se moradores do hospital.
Desta maneira, este serviço de saúde oferece regularmente 56 leitos femininos, 45
masculinos e mais 16 leitos param clientela masculina dependente de álcool e outras drogas em
suas respectivas enfermarias. As mulheres com dependência química são tratadas nas
enfermarias para transtorno mental. Ainda durante esta pesquisa, havia um espaço separado para
pacientes crônicos que perderam a vinculação familiar e por isso moraram anos no hospital.
Estes pacientes residiam em uma ambientação que buscava se aproximar de uma estrutura física
e psicossocial de uma morada familiar. Este espaço, denominado de Moradia Assistida, onde
recentemente moravam 07 homens e 05 mulheres, os quais após um processo de transição,
foram transferidos à 3ª Residência Terapêutica do Município de Natal, no dia 19 de maio de
2016; sendo inaugurada oficialmente no dia seguinte.
Ressalte-se que a Moradia Assisitida foi desocupada, desde então e até o presente
momento, é usado para a residência artística do CRUOR Arte Contemporânea. As várias
dependências são os locais onde foram montadas as instalações destinadas às parte prática desta
dissertação, a instauração cênica denominada (Lou) Cure-se!!!., cuja vivência passarei a
descrever no próximo capítulo.
Considere-se que o Pronto-socorro para urgências psiquiátricas do Estado do Rio
Grande do Norte também é localizado neste Hospital, com 35 leitos, onde pacientes ficam no
aguardo de vagas e/ou observação. Funciona em regime intensivo, 24 horas, atende as urgências
psiquiátricas. Conta ainda com atendimento ambulatorial destinado exclusivamente aos
egressos de internações e com a finalidade de contribuir com a formação acadêmica dos
residentes em psiquiatria deste hospital. Existem ainda 40 leitos de clínica médica que
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funcionam no anexo deste serviço como retaguarda aos pacientes dos corredores do Hospital
Geral Monsenhor Walfredo Gurgel.
Destaque-se que no cotidiano deste hospital, constata-se que coexistem práticas
híbridas de intervenção onde é possível encontrar profissionais e projetos que se incluem numa
visão da Clínica Ampliada e outros, numa visão da Clínica Tradicional. No entanto, o olhar
sobre a loucura neste espaço de Saúde Mental ainda está preponderantemente associado ao
paradigma psiquiátrico clássico que apreende a loucura como doença orgânica e mental.
A rigor, a doença mental é aquela que acomete o cérebro e consequentemente os
processos mentais e comportamentais. Deste modo, é fácil perceber que, no cotidiano desta
instituição, o uso da medicação psicotrópica ocupa o lugar da intervenção principal no
tratamento das crises e quadros comportamentais instaurados. E, a compreensão do
diagnóstico dos pacientes é orientada pelos seguintes manuais: Manual Diagnóstico e
Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-V) e pelo Código Internacional de Doenças (CID-
10). Estes manuais representam o pensamento científico da psiquiatria sobre os transtornos
mentais e apresentam, de forma sistematizada, os sinais, sintomas e comportamentos padrões
repetitivos que apontam e definem os transtornos e diagnósticos clínicos oficializados pelo
médico psiquiatra. Para dados estatísticos oficiais é adotado pelo SUS a nomenclatura do CID-
10 referentes aos transtornos mentais.
Como já citado acima, no mundo contemporâneo, as compreensões no campo
clínico/social seguem orientações dos manuais científicos, DSM-5 e CID-10 de psiquiatria, os
quais possuem classificações e descrições de como a loucura/doença mental se estabelece. No
entanto, não é de hoje que se classifica em grau e natureza as diversas formas de expressões
cabíveis na loucura. Na antiguidade já se questionava o fenômeno da loucura e buscava-se
entender as múltiplas formas nas quais a loucura se revelava e se estabelecia no mundo. Nos
relatos das tragédias da Antiguidade, a loucura era expressa em padrões patológicos de
comportamento, os quais, com as devidas alterações, poderiam se enquadrar nas classificações
das doenças mentais descritas na atualidade nos manuais de psiquiatria. JESUÍNO (2009) cita
os conceitos de mania e a melancolia, que nas tragédias eram apresentados respectivamente
como a loucura eufórica e a tristeza, que caracterizavam as personagens trágicas no teatro.
Em maio de 2016, segundo dados fornecidos pelo Serviço de Arquivo Médico e
Estatística do Hospital Dr. João Machado (SAME/HJM), as internações mais frequentes
foram de pacientes portadores de diagnóstico classificados no Código Internacional de
Doenças (CID-10) como F20 (Esquizofrenia), seguido de F10 (Transtornos Mentais e de
comportamento decorrente do uso abusivo de álcool e outras drogas) e em terceiro por F30
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(Transtornos Afetivos do Humor). Abrange internações voluntárias, involuntárias e
compulsórias de curta, média e longa duração, cuja permanência média tem sido, em geral, de
vinte e cinco dias. Nota-se uma maior incidência de pacientes do sexo masculino. É digno de
reflexão que essa impressão diagnóstica se constitui uma exigência burocrática do boletim de
atendimento de urgência médica, podendo sofrer alteração no decorrer do internamento.
Para Bock (2002), o sofrimento psíquico é entendido pela psicologia como uma
representação da cultura em que as pessoas estão inseridas., em linhas gerais, parte da
compreensão de que a doença mental constitui um sofrimento psíquico em que há uma
desorganização da personalidade do indivíduo, com decisiva vinculação às condições de vida
dos sujeitos, sua família, seus grupos e experiências significativas, bem como sua estrutura
psíquica, cujas condições externas concorrem para determinar ou desencadear a doença
mental ou ao contrário, propiciar a saúde mental, o que em última instância constitui
possibilidade de realização pessoal do indivíduo em todos os aspectos de sua capacidade.
Antes de tecer considerações e aprofundamentos conceituais sobre as articulações
relevantes entre Arte e Loucura e sobre o objeto a ser pesquisado, vejo a importância em
relatar sobre o meu trajeto, percorrido anterior a esta pesquisa, para uma melhor compreensão
de meu trajeto e interesse, enfocando as motivações e afetações que influenciaram a chegada
e opção por tal estudo e que fortalecem e evidenciam as bases sólidas do presente estudo.
Meu interesse em fazer um Mestrado em Artes Cênicas advém de minha dupla paixão
e formação em Pisocologia e em Dança com especialização em Biodanza 1 . Além de
Licenciado em Dança, Fisioterapeuta e Psicólogo, minha atuação no Hospital Dr. João
Machado desde o ano de 2009 tem sido influenciada pela complementariedade entre tais
formações possibilitando uma unidade entre corpo, alma e movimento, elementos centrais do
processo de instauração cênica.
Estas escolhas são significativas e têm como ponto em comum: Psicoterapias
Corporais vivenciadas ora como cliente, ora como profissional, ou ainda na clínica de
reabilitação fisioterápica, acolhimento de pessoas com limitações de movimentos devido a
dor. Assim, não apenas como caminho para meu crescimento pessoal, o corpo tornou-se algo
importante para minha vida acadêmica, torna-se naturalmente o meu objeto de estudo e o
1 Biodanza é um sistema de integração humana, de renovação orgânica, de reeducação afetiva e de
reaprendizagem das funções originais da vida, com uma metodologia que consiste em induzir
vivências integradoras por meio da música, do canto, do movimento e de situações de encontro em
grupo. (TORO, 2002).
21
acesso para compreender as subjetividades humanas. Outro foco de interesse pessoal,
alinhados com a questão do processo de criação artística, eixo e cerne desta pesquisa, são as
instaurações cênicas propostas em ações durante o desenvolvimento da pesquisa como
procedimentos que deságuam na instauração cênica aberta ao público denominada (Lou)Cure-
se!!!.
Neste sentido, reconheço que essas áreas de conhecimento se entrelaçaram para dar
sentido a uma formação profissional mais qualificada, seja atuando em qualquer de uma
dessas áreas de conhecimento, o apreendido sobre o corpo vem contribuindo nos encontros e
desafios vividos. Ressalto que três experiências marcaram esse trajeto de forma determinante,
possibilitando uma dança de interiorização para integração dos conteúdos assimilados nas
distintas formações acadêmicas:
1 – Os estudos para titulação como facilitador e os encontros dançantes e vivenciais no
Sistema Biodanza Rolando Toro;
2 – A participação no Projeto do Grupo de Dança da Universidade fundamentado no método
Dança-Educação Física com o professor Edson Claro;
3 - As relações fenomenológicas-existenciais no campo da psicologia corporal, em específico
a abordagem Biossistêmica, por ser adotada recentemente como norteadora do meu exercício
profissional por considerar em seus procedimentos as expressões artísticas, movimentos
dançantes e gestualidades nas comunicações entre as subjetividades e na reorganização do
cotidiano.
Estas escolhas serão citadas e conceituadas ao longo da fundamentação teórica deste
trabalho, enfatizando as suas importantes contribuições para uma visão sistêmica sobre o ser
humano e o mundo no enredo da loucura, contemplando a vivência da expressão humana e
sua dimensão corporal numa instituição totalitária e o encontro com os artistas e a vivência
decorrente disso nos processos de criação cênica.
No ano de 2009, primeiro semestre, iniciei a formação universitária em licenciatura
em Dança e, em junho deste mesmo ano, também atuei como fisioterapeuta no Serviço de
fisioterapia do Jardim Lola, município de São Gonçalo do Amarante, e ainda neste mesmo
período, como já afirmei, comecei a trabalhar como psicólogo no Hospitalar Dr. João
Machado, em Natal, no Rio Grande do Norte, Brasil. Desta forma, lidar com o fenômeno da
loucura faz parte da minha rotina, e as questões relacionadas a arte e loucura me despertam
para um aprofundamento nos processos criativos artísticos, não só no sentido de entender a
loucura como inspiração artística, mas também para propor com os chamados loucos
22
processos de criações artísticas, algumas das quais, por opção metodológica de recorte, serão
descritas nos capítulos referentes a metodologia e descrição e análise do trabalho realizado.
Dessa maneira, pensar as questões relacionadas ao popularmente nomeado “mundo
dos loucos” para desenvolver esta dissertação em Artes Cênicas tem nos fatos apontados sua
gênese e a influência dessas áreas nas quais estou envolvido.
Aprofundar o tema loucura, arte e saúde mental requer estudos em fontes diversas com
foco transdisciplinar e uma postura aberta para religar e dialogar com os diversos saberes. Além
da linguagem artística e da linguagem da ciência médica, os conhecimentos produzidos por outras
áreas ou ramos de conhecimento das Ciências humanas, tais como a psicologia, a antropologia e
a filosofia, são importantes e necessários para todos que lidam e interagem no cotidiano
profissional, familiar ou social com pessoas que tenham algum tipo de transtorno mental.
A Psicologia é um ramo das Ciências Humanas, como formula Bock (2002), a sua
identidade, isto é, aquilo que a diferencia, pode ser obtida considerando-se que cada um desses
ramos enfoca de maneira particular o objeto ser humano, construindo conhecimentos distintos
e específicos a respeito dele. E como campo de conhecimento, a Psicologia colabora
especificamente com o estudo da subjetividade para a compreensão da totalidade da vida
humana. Entendo subjetividade, nesta dissertação, como
a síntese singular e individual que cada um de nós vai constituindo conforme
vamos nos desenvolvendo e vivenciando as experiências da vida social e
cultural; é uma síntese que nos identifica, de um lado, por ser única, e nos
iguala, de outro lado, na medida que os elementos que a constituem são
experiências no campo comum da objetividade social. Esta síntese – a
subjetividade – é o mundo de ideias, significados e emoções construídas
internamente pelo sujeito a partir de suas relações sociais, de suas vivências
e de sua constituição biológica; é, também, fonte de suas manifestações
afetivas e comportamentais. (BOCK, 2002, p.23).
Esta noção de subjetividade neste trabalho está ligado aos procedimentos e processos
artísticos e podemos compreender, como ensina Nise da Silveira em sua extensa obra, que
manifestações artísticas são também manifestações afetivas, pois pela arte os humanos
expressam suas emoções e sentimentos, ideias, valores históricos e culturais, ou seja, as
subjetividades humanas e a partir destas expressões singulares ou plurais, a linguagem
artística possibilita a compreensão das relações e expressões subjetivas e objetivas no mundo
da humanidade. Assim pode-se compreender que nossa matéria prima é homem enquanto ser
genérico, que é
o homem em todas as suas expressões, as visíveis (nosso comportamento) e
as invisíveis (nossos sentimentos), as singulares (porque somos o que somos)
e as genéricas (porque somos todos assim) – é o homem-corpo, homem-
23
pensamento, homem-afeto, homem-ação e tudo isso está sintetizado no
termo subjetividade. (BOCK, 2002, p. 25).
As vivências artísticas em si oportunizam expressar a subjetividade, gostos, anseios
e desejos, o que pode despertar no interno do hospital psiquiátrico contatar com a dimensão
afetiva, subjetiva e estética, e assim podemos pensar a arte entrelaçada a psicologia como
caminho criativo e afetivo para expressões de emoções, sentimentos e entendimentos sobre si
mesmo e sobre o mundo.
Sobre a condição humana de existir no mundo, consideramos conforme Bock (2002,
p. 25) que há “um mundo objetivo, em movimento, porque seres humanos o movimentam
permanentemente com suas intervenções; um mundo subjetivo em movimento porque os
indivíduos estão permanentemente se apropriando de novas matérias-primas para constituírem
suas subjetividades. ”
Assim sendo, o projeto terapêutico do Hospital Dr. João Machado visa à valorização
da fala do interno, onde a assistência ao cliente/usuário deve ser pautada numa escuta
qualificada. Caso a equipe ou o próprio profissional identifique a necessidade para uma escuta
clínica psicológica individual, os profissionais da psicologia são solicitados. É fato comum
que este atendimento seja solicitado pelos próprios pacientes. E neste sentido primamos pelo
reconhecimento de que o interno também é um ser de necessidades psicológicas e estéticas
que precisam encontrar vias para expressá-las, inclusive na vivência de um processo artístico,
com a presença de artistas, como é a proposta desta dissertação. O momento de estar com um
psicólogo em uma instituição caracterizada pelo domínio de uma conduta rotineira centrada
em diagnósticos e medicação soa, algumas vezes, como uma conduta subversiva, e de que ser
um profissional pautado na escuta de quem está com a razão desestruturada possa ser
desnecessário, pois ao louco, como descreveremos adiante, foi negado o direito de existir na
condição humana, de ser e ter voz, corpo, espaço e sentimentos e de ser dono do seu tempo.
No entanto, falar sobre psicologia e doença mental é necessariamente compreender que
a evolução psicológica integra o passado ao presente numa unidade sem
conflito, nesta unidade ordenada que se define como uma hierarquia de
estruturas, unidade sólida que apenas uma regressão patológica pode
comprometer; a história psicológica, pelo contrário, ignora uma junção
semelhante do anterior e do atual; ela os situa um em relação ao outro,
colocando entre eles esta distância que suscita normalmente tensão, conflito
e contradição. Na evolução, é o passado que promove o presente e o torna
possível; na história, é o presente que se destaca do passado, confere-lhe um
sentido e torna-o inteligível. O devir psicológico é ao mesmo tempo,
evolução e história; o tempo do psiquismo deve ser analisado,
concomitantemente, segundo o anterior e o atual – isto é, em termos
evolutivos – mas também segundo o passado e o presente – quer dizer em
24
termos históricos. (FOUCAULT, 1984, p.39).
Na interface entre ser psicólogo e ser artista busco promover uma ação dialógica entre
Psicologia e Artes Cênicas, imbuído na compreensão da loucura humana, fenômeno complexo
que abarca um universo de disciplinas e especificidades no levante de questões sobre o ser
humano e suas inquietações no mundo. E assim, nesta dissertação que se dá no campo das Artes
Cênicas, estou abordando aspectos psicológicos e estéticos na vivência de alunos artistas de um
projeto integrado de pesquisa, ensino e extensão da UFRN, O CRUOR Arte Contemporânea;
com os internos de uma instituição psiquiátrica, que implica numa relação com o fenômeno
existencial da loucura. Entendemos que falar do fenômeno da loucura requer compreensão da
dimensão existencial humana, especificamente o fenômeno da loucura, como já foi afirmado. A
Psicologia trata das subjetividades e num nível mais específico destacamos a Psicologia
Profunda que fala dos fenômenos invisíveis da psique, ou seja, dos processos inconscientes, que
também são estudados pela psicanálise, no entanto não é por este viés o meu caminhar.
Não devemos esquecer que a arte também pode cumprir, embora não seja este seu
objetivo, funções terapêuticas, e que áreas de conhecimento investem em produções
científicas com foco nos benefícios à saúde e a qualidade de vida que a vivência artística
proporciona. Cito as seguintes intervenções, como exemplos: Arte Terapia, Terapia
Ocupacional e o Sistema Biodanza de desenvolvimentos das potencialidades humanas. E
lembro que o foco desta pesquisa foi o processo de criação artística, no entanto não podemos
desvinculá-lo dos efeitos terapêuticos dessa ação; sobretudo no ambiente hospitalar.
E assim, conjecturamos que, para a construção de conhecimento sobre o fenômeno
da loucura no campo da Arte, se faz importante uma metodologia em que a poética esteja
presente em seu trajeto, para que possamos transitar nas questões pertinentes a existência
humana que estão presentes nas profundezas da alma individual e coletiva da humanidade,
visto que o caminho da individuação de cada singularidade se dinamiza na coletividade. Pois
compartilho com o seguinte pensamento:
as obras artísticas são construções poéticas por meio das quais os artistas
expressam ideias, sentimentos e emoções. Resultam do pensar do sentir e do
fazer, que por sua vez são mobilizados pela materialidade da obra, pelo
domínio de técnicas, e os significados pessoais e culturais. São, por isso,
constituídas de um conjunto de procedimentos mentais, materiais e culturais.
Podem concretizar-se em imagens visuais, sonoras, verbais, corporais, ou
são apenas manifestações das próprias linguagens, como expressão e
representação de algo. (FERRAZ, 2009, p.20).
25
Ao pesquisador, acredito ser importante, além do posicionamento científico, ele deve
adotar uma atitude de abertura também para a compreensão do simbólico, que muitas vezes
se esconde em mistérios e, outras vezes, se revela em sonhos e em linguagens míticas. Este
assunto será abordado mais adiante, quando discorrerei sobre a Psicologia Analítica e o
conceito de Inconsciente Coletivo formulado por Jung.
Aos seres humanos é possível o acesso ao mundo interno que pulsa no nosso interior,
para além dos sentidos proprioceptivos e, ao mundo externo, sistemas sensoriais
exteroceptivos2, que se concretiza também nas relações com os outros. A diversidade de
mundos que se apresenta faz com que muitas vezes seja necessário construir pontes que
permitam que os processos energéticos e criativos do inconsciente sejam comunicados e
esclarecidos tanto de forma racional e consciente, como de forma afetiva e poética, em um
processo muito complexo e singular. Esses processos, internos e externos, contudo, são
apreendidos e construídos na vivência coletiva, como a que investimos nesta pesquisa.
Nesse sentido, corroboramos com a compreensão de que
o mundo social e cultural conforme vai sendo experienciado por nós,
possibilita-nos a construção de um mundo interior. São diversos fatores que
se combinam e nos levam a uma vivência muito particular. Nós atribuímos
sentido a essas experiências e vamos nos constituindo a cada dia […]
entretanto, a síntese que a subjetividade representa não é inata ao indivíduo.
Ele a constrói aos poucos, apropriando-se do material do mundo social e
cultural, e faz isso ao mesmo tempo em que atua sobre o mundo (externo),
o homem constrói e transforma a si próprio. (BOCK, 2002, p. 23).
Note-se que esse outro mundo composto de símbolos e mistérios se apresentam em
ações subjetivas e objetivas e em linguagens diversas, ora poéticas, dramáticas, corporais e
gestuais, simbólicas e abertas para intervenções imaginárias e criativas, envolventes e
sedutora, ora frias e concretas, fechadas e metódicas imbuídas de cientificidade.
A arte de uma forma inerente se faz presente em espontaneidade nos cânticos,
movimentos dançantes, nos desenhos e poemas inscritos nas paredes do hospital Dr. João
Machado. Assim sendo, propor possibilidades de vivenciar processos vitais e criativos através
do movimento presentes na dança e no teatro para compor uma estética existencial e artística,
2 Nas duas vias possíveis de conexões cérebro corporal: 1- neural: nervos motores e sensoriais
periféricos, que transportam sinais de todo o corpo para o cérebro e vice-versa; e 2 – sanguínea: sinais
químicos são transportados através de hormônios, neurotransmissores e neuromodeladores; existe uma
complexidade esquematizada por Damásio (2004), que nos aponta: o mundo exterior traz os sinais
exteroceptivos, através dos sentidos: tato, olfato, paladar, visão, audição. O mundo interior traz os
sinais interoceptivos, tanto via corrente sanguínea quanto via sensação do meio interno, o que inclui
dor, temperatura, emoção, vísceras, músculos, sistema músculo-esquelético, sistema vestibular. E o
cérebro atua em todas as partes do corpo através da transmissão em feixes nervosos pelos neurônios.
26
esta vislumbrando uma possibilidade de abrir canais de expressão e expansão para corpos que,
aprisionados num modo de ser restrito, possam experimentar para além dessas formas já
conhecidas de ser corporalmente louco e ser reconhecido como artista.
Durante o desenvolvimento desta pesquisa, estivemos a investigar a corporeidade
que se revela na cena cotidiana da instituição hospitalar psiquiátrica Dr. João Machado,
descrevendo como esses corpos se articulam no espaço-tempo, e como ocupam e se fazem
existentes num espaço marcado historicamente por relações totalitárias concomitantes com
histórias humanas que trazem em si marcas de abandono, traumas e desencantos,
possibilitando investigar contribuições da vivência corporal e artística para outras
possibilidades de ser corpo a estas pessoas. Corpos que tem a oportunidade de se expressar
artisticamente.
Para pensar na arte a estética existencial das relações entre corpo, espaço, tempo e
movimento nas instituições totalitárias e, no sentido mais amplo, nas condições determinadas
historicamente ao louco, marcadas pelo abandono e ausência desse corpo vivo e sua
desorientação temporal e espacial, como mencionado anteriormente, tenho o aporte da
Psicologia Corporal em uma leitura fenomenológica existencial e da Psicologia Analítica,
através do estudo do significado dos símbolos na relação do ser humano consigo mesmo e
com o ambiente. Essas perspectivas teóricas apresentadas foram escolhidas por trazerem
contribuições para o estudo do ser humano em seus aspectos simbólicos, corporais e
existenciais, que podem ser interconectadas aos procedimentos metodológicos de Instauração
Cênica pela orientadora desta dissertação, a qual esteve presente em todo o seu
desenvolvimento prático no processo de criação artístico. Estudos estes essenciais para a
construção da experiência fenomenológica do sujeito em sua relação consigo mesmo e com o
outro, através da vivência da loucura na residência artística realizada com a Coligação Cruor
Arte Contemporânea no hospital, que será descrito em capítulo posterior.
Ao incursionarmos sobre estes aportes teóricos – bem como suas intervenções sobre
o fenômeno da loucura, e a relevância que as mesmas atribuem a arte como caminho
terapêutico\pedagógicos- podem criar espaços de humanização que contemplem as expressões
criativas e afetivas na forma de processos artísticos, e que de fato se pode criar obras cênicas
em um hospital psiquiátrico. Entre os teóricos estudados, cabe aqui lembrar e ressaltar que
este estudo tem um olhar sistêmico, busquei recolher e aproveitar o que há de esclarecedor e
27
útil nas diversas abordagens. Deste modo, conforme Dalgalarrondo3 (2008), reconheço que
para dialogar com as diversas concepções e visões que abordam o fenômeno da loucura é
essencial uma atitude aberta, desprovida de preconceitos para não considerar as diferentes
teorias como “fechadas” e “acabadas”, ou aceitar uma imposição ditatorial de uma corrente
sobre outra. Doutro modo, reconhecer a multidisciplinaridade deste campo de pesquisa, pois
tal fenômeno se revela e aparece no mundo de modo versátil e diverso, e também nos
deparamos no campo prático e teórico com muitos discursos e saberes produzidos; campo
caracterizado pela diversidade de disciplinas, tanto nas biológicas, cognitivo-
comportamentais, psicanalíticas ou socioculturais, faz-se necessário reconhecer as
especificidades epistemológicas de cada concepção, bem como a complexidade e a assimetria
das relações interdisciplinares. Contudo, diante desta complexidade, procurei iniciar esta
pesquisa dialogando com os seguintes autores: Michel Foucault, Sigmund Freud, Carl Gustav
Jung, Nise da Silveira, Wilhelm Reich, Alexander Lowen, Jerome Liss, Merleau-Ponty,
Rolando Toro, Alfredo Moffatt, Erving Goffman, Moreno, Augusto Boal e José Gil como
caminho para pensar tal temática, distribuindo ao longo do texto as teorias quando necessárias
para fundamentar a prática.
Destacamos as ideias do filósofo francês Michel Foucault (1926-1984), sobre saúde
e doença mental e o tratamento dado a loucura pela sociedade ocidental nas diversas épocas
históricas. No intuito desta compreensão, realizei uma leitura crítica das ideias deste
pesquisador, por ele trazer uma narrativa da loucura em que se é possível abstrair
compreensões e reflexões sobre os discursos e tratamentos atribuídos ao louco nas diversas
fases da história; ao contextualizar a razão de ser da loucura a partir das ideias filosóficas,
movimentos artísticos e descobertas científicas que influenciavam e determinavam o modo de
ser das pessoas em suas relações no social e artístico-cultural, leitura esta capaz de provocar
sensações, imaginações e apreensões pessoais, que instauram imagens, formas e sentidos
sobre o louco e a loucura.
Deste modo, nesta pesquisa, que tem, como já foi afirmado, um caráter qualitativo, e
centrado na prática da cena, trata-se de buscar entender e produzir conhecimentos a partir do
percebido e do narrado pelas subjetividades que constituem a cena do hospital psiquiátrico
Dr. João Machado. Salienta-se que para a produção de conhecimento, conforme Queiroz et al
(2005), na pesquisa qualitativa, há um modo específico de ver a realidade empírica, modo este
3 Paulo Dalgalarrondo é médico psiquiatra autor de diversos livros sobre saúde mental. Professor titular
de Psicopatologia da Universidade Estadual de Campinas.
28
com relevância para indicadores subjetivos que difere dos procedimentos da pesquisa das
ciências naturais, cujas investigações são de natureza quantitativa e cuja análise recai sobre a
frequência positiva de repetição dos eventos observados na amostra (clientela).
Nota-se que há comumente uma estrutura trágica e dramática nas diversas narrações
sobre o louco, e esse traço trágico e dramático nessas narrativas ocasionou reflexões e
motivações para compreender as movimentações do ser louco, notoriamente marcada por
sujeições e submissões, omitindo a presença de desejos, sonhos e resistências frente às
opressões sofridas.
Com uma narrativa desvinculada do ponto de vista da psiquiatria, a pesquisa de
Foucault contribuiu valiosamente para uma compreensão da constituição histórica do conceito
de doença mental, para tanto, pesquisou os discursos encontrados nos documentos dos arquivos
de prisões, hospitais e hospícios. E nesta direção, Horrocks (2013) identifica o fato de que
Foucault em seus estudos investigativos sobre a loucura e as instituições, estava imbuído de
uma motivação para explicar a razão pelo qual os seres humanos tornaram-se historicamente
sujeito e objeto de práticas e discursos, nos diversos campos da vida do indivíduo em que a
loucura interfere: políticos, científicos, econômicos, filosóficos, legais e sociais.
Foucault fala sobre corpo, loucura e as relações de poder, controle e disciplinarização
destes através dos saberes, discursos e ações que fundam a Psiquiatria. Assim,
o objeto de estudo de Foucault em A História da Loucura é precisamente a
rede de relações entre práticas, saberes e discursos que vêm fundar a
psiquiatria. Os dispositivos disciplinares da prática médica psiquiátrica
permitem um mascaramento da experiência trágica e cósmica da loucura,
através de uma consciência crítica. Esta obra aponta para uma
desnaturalização e desconstrução do caminho aprisionador da modernidade
sobre a loucura, qual seja, aquele que submeteu a experiência radicalmente
singular do enlouquecer a classificações e terapêuticas ditas científicas:
submissão da singularidade à norma da razão e da verdade do olhar
psiquiátrico, rede de biopoderes e disciplinas que conformam o controle
social do louco. (AMARANTE, 1995, p. 24).
Neste sentido encontramos no pensamento filosófico de Michel Foucault uma
preocupação ética em questões relacionadas ao abuso de poder da ciência positivista no
tratamento dado ao louco. Este paradigma da ciência cumpre na trama política o respaldo de
verdade aliada aos interesses das indústrias multinacionais de psicotrópicos. Por esta
compreensão, não é difícil refletir que a doença mental tem sua razão de ser na submissão a
essa rede de biopoderes, e que as relações clínicas são por vezes pautadas no lucro do capital
dessa indústria aliada ao poder da psiquiatria, que faz os doentes se tornarem os corpos dóceis.
E consequentemente, na contemporaneidade tem-se que o portador de transtorno mental se
29
torna refém da indústria de medicamentos. Assim sendo, percebemos que para Foucault o
devir da loucura deveria ser entendido a partir de uma visão histórica crítico-reflexiva e
existencialista contextualizada nas relações de poder. Foucault defendia ainda a ideia de
subjetividade vinculada e produzida por conhecimento e poder, o que direciona a selecionar
como foco de estudo, o sistema complexo das instituições. E assim, entender as subjetividades
e as complexas relações presentes e regulares no fenômeno da loucura, como também, o
sentido e as práticas determinantes nas opiniões e atitudes cotidianas. Pois, de acordo com a
citação abaixo entendemos a trama de poder que se estrutura nas instituições fechadas para
que o portador de doença mental fique submetido a controles sistemáticos.
Foucault considera como objeto “o conhecimento investido no sistema
complexo das instituições”. Autoridades, suas práticas e opiniões seriam
estudados para demonstrar a loucura não como um discurso científico ou
teórico, mas como uma prática cotidiana, regular. Pensemos a prática regular da
psiquiatria em separar o louco do são. (HORROCKS; JEVTIC, 2013, p.37).
Acrescente-se outros que dois teóricos fundamentais para entendermos a filosofia e
a política reinante na vida cotidiana de uma Instituição Totalitária são Alfredo Moffatt4 e
Erving Goffman5. Para estes estudiosos, as Instituições Totalitárias são o registro real da
cultura manicomial e estas instituições cumprem a função social de aprisionamento e opressão
das pessoas em adoecimento psíquico. O pensamento de ambos autores complementa a visão
histórica da loucura de Foucault, principalmente no estudo das relações cotidianas e a função
política de controle e poder sobre os corpos de grupos de pessoas que, em algum sentido,
expressam comportamentos transgressores ou subversores, e que, portanto, são ameaçadores
da ordem social. Neste estudo, os loucos, trancafiados em instituições fechadas, não deixam
de existir como seres humanos, subvertendo a lógica da razão e da ordem positivista. Para
estes autores, percebe-se uma construção teórica e prática, imbuída numa ética de respeito,
aceitação e solidariedade com importantes conceitos e atitudes nas relações estabelecidas por
esses corpos com outros corpos que convivem sistematicamente no tempo e no espaço a que
estão submetidos nesses estabelecimentos. Goffman (2010) conceitua estes estabelecimentos
de instituições totalitárias, e define que estas instituições têm como razão de ser a manutenção
do controle sobre o corpo e a vida do louco. Em respaldo a essas ideias, Alfredo Moffatt, no
conjunto de sua obra, tece relações do pensamento simbólico junguiano, e a vivência
enlouquecedora de habitar um hospício, este autor tece construções sobre a corporeidade e
4 Alfredo Moffatt: psicólogo social, psicodramatista e arquiteto argentino.
5 Erving Goffmann: Cientista social, antropólogo, sociólogo e escritor canadense.
30
sua relação com o espaço numa perspectiva existencial. Asssim, elabora a definição do corpo
oprimido para falar das condições a que está submetido o corpo da pessoa internada em
manicômio. Sua temática existencialista busca as razões, o sentido, o modo de ser e de
funcionar desses estabelecimentos.
Assim, trabalhamos com a hipótese de que é viável no campo da arte pensar a relação
entre corpo, espaço e movimento na perspectiva de proporcionar uma proposta de criação cênica
como obra artística aberta ao público; com os ditos loucos marcados por uma ambiência de
cenas fortes, com cargas emocionais e expressivas da vulnerabilidade e fragilidade da condição
existencial humana, a dor do sofrimento psíquico. Investimos na ideia de que, apesar das
subjetividades nas instituições totalitárias serem moldadas e fabricadas, elas também possuem
forças internas para moldarem a si próprias e tangenciarem para outras formas de existir, mesmo
que estas se constituam como formas liminares, no sentido dado pela antropologia, de suspensão
do cotidiano para uma vivência poética e estética. Compactuando que
o homem pode promover novas formas de subjetividade, recusando-se ao
assujeitamento e à perda de memória imposta pela fugacidade da informação;
recusando a massificação que exclui e estigmatiza o diferente, a aceitação
social condicionada ao consumo, a medicalização do sofrimento. Nesse
sentido, retomamos a utopia que cada homem pode participar na construção
do seu destino e de sua coletividade. (BOCK, 2002, p. 24).
Por ser social e histórica, compreendemos que apesar de novas construções no campo
das ciências naturais e humanas, o ser diferenciado como louco ainda suporta o estigma e os
afetos negativos através de gestos, imagens, palavras e tons pejorativos que historicamente
lhe são direcionados. Não é incomum presenciarmos cenas que denunciam alguém em
situação de poder atuar com um dedo indicador apontado ou uma pegada forte pelo braço do
paciente, indicando quem é submisso e quem é dominador na relação e, antes dessas palavras,
o pronome de tratamento “Seu”, que na situação complementa o tom de menos-valia do
receptor e a superioridade de quem emite. Imaginemos então: Seu louco! Seu alienado, insano,
débil mental, incapaz, maluco, lunático.
Podemos também imaginar como desagradável é assumirmos este lugar, e receber do
coletivo toda essa carga de desprezo e exclusão. Visto que,
pensar sobre a loucura nos leva a pensar sobre nós mesmos, pois a loucura
pode ser o outro e pode ser o outro de nós mesmos. A loucura assume aqui
o sentido de alteridade, de um estranhamento que nos é tão distante e, ao
mesmo tempo, tão próximo [campo das forças do Fora]. Nesse sentido,
somos constituídos por esse estranhamento, mesmo quando o conjuramos.
(MACHADO, 2007, p.79-95).
31
Adentrar o mundo da loucura para pesquisar nos afeta e causa estranhamento e nos
faz ficarmos mais próximos da nossa fragilidade humana. Há várias concepções e crenças
sobre a loucura, e algumas destas adquirimos no nosso trajeto cotidiano desde sempre, outras
ancoradas nos diversos saberes, como senso comum, religioso, filosófico ou científico, e estas
crenças podem influenciar e/ou contaminar na nossa maneira de lidar com as pessoas e
pesquisar sobre o fenômeno da loucura.
Acreditando que no campo da arte há espaços para pensar de modo mais próximo do
que há de humanidade nisso tudo e encontrar caminhos que permitam encontros e liberdade
de expressão, onde saberes possam ser religados e pensados juntos, e que sejam dialogados;
nesta premissa chegamos a obra (Lou) Cure-se!!!.
Investimos assim em compreender e construir conhecimento a partir dos conteúdos
das linguagens da arte da dança e do teatro, coadunados com o saber da psicologia, e assim
fomos abrindo espaços para tematizar as oposições saúde e doença, normal e patológico,
loucura e sanidade, opressão e submissão, tendo abertura para pensar as múltiplas formas de
expressão e percepção sobre a loucura através dos movimentos corporais e da relação tempo
e espaço, que fazem parte do contexto de realidade da instituição pesquisada.
E assim, pela arte, em um espaço de saúde e ciência, produzir conhecimento sobre o
real e o vivido, concretizado na obra cênica. Pois, compartilhamos a firme convicção que
fazer arte é construir novos saberes sobre o real e, portanto, é frequentar
territórios que costumam pertencer unicamente ao pensamento das ciências.
É importante discutir quais os canais que conectam os polos do fazer artístico
e dos procedimentos acadêmicos, e delimitar como estas dinâmicas diversas
podem se relacionar. (CARREIRA, 2012, p.21).
O que vislumbra pensar pedagogias vivenciais e corporais para lidar com as cenas e
os corpos que circulam e se fazem presentes naquela realidade institucionalizada, e facilitar
um espaço onde a pessoa possa ter voz e expressá-la com autonomia corporal, e destas ações
artísticas e pedagógicas oportunizar os participantes a resignificar a sua existência, e se
implicar de uma forma ativa sobre loucura e arte.
No decorrer deste processo investigativo, compreendemos que estudar as atuais
cenas cotidianas protagonizadas no hospital Dr. João Machado por subjetividades
diferenciadas com transtorno mental ou pessoas em sofrimento psíquico perpassa pelo
entendimento de que, na sociedade atual, temos novas formas de produção da loucura, novos
modos de ser louco. E reafirmando, pois, que a fabricação dessas emergentes formas
subjetivas de ser louco é social e histórica, e a arte pode ser um caminho para esta
compreensão. Pois, se permitir a plasticidade e estéticas para outras formas de vivências, e
32
“ser” com abertura para ousar, criar e refletir suas questões, seus estranhamentos, suas
posturas adotadas e lugares assumidos na coletividade. E neste sentido, pela arte, em um
espaço de saúde e ciência, produzir conhecimento sobre o real e o vivido, pois a linguagem
artística facilita ao ser humano expressar e perceber o mundo de uma forma mais autêntica.
Nesta pesquisa com caráter qualitativo, procuro identificar imagens e discursos que
se revelam sobre o ser louco tanto no campo da arte como no campo da psicologia, e de uma
forma mais abrangente, considerando a loucura uma expressão da subjetividade, entendo que
loucura e subjetividade são dimensões presentes em todos os fenômenos da cultura, da
sociedade e do ser humano, portanto são temas/categorias e construções de todas as ciências
humanas e sociais, ou Ciências Antropossociais e nas Artes. Compondo um conjunto de
características que dão tons, cores, cheiros e sensações, criando uma estética, que fazem do
mundo da loucura uma atmosfera desagradável à primeira vista ou fala, no entanto pode ser
diluída no fazer artístico. Entendo que para tanto se fez necessário compreender questões
epistemológicas pertinentes a ciência, a psicologia e a arte.
Descreveremos cenicamente como esses corpos se articulam e se fazem presentes ou
ausentes na cena de um hospício, como ocupam e se fazem existir e resistir num espaço
marcado historicamente por relações totalitárias e por histórias humanas que trazem em si
marcas de abandono, traumas e desencantos, como já apontado.
E sob essa ótica, compreender através das narrativas dos participantes, as reflexões e
sentidos atribuídos sobre o vivido nos processos de criação nos laboratórios de corpo/voz
propostos e na pesquisa de campo nos espaços de saúde mental visando um processo de criação
artística colaborativo, a instauração cênica (Lou) Cure-se!!!. Desta forma o que foi verificado
nas observações e estudos preliminares tornou-se uma tendência que viria a integrar e dar
continuidade ao trajeto escolhido na vida acadêmica, pessoal e profissional por uma psicologia
corporal e criativa orientada e pautada a priori nos estudos de Merleau-Ponty, embasado em um
olhar fenomenológico e existencial sobre o corpo. Os estudos voltados para o corpo como fonte
de investigação e observação buscam compreender e situar os fenômenos que podem se revelar
na vivência cotidiana do espaço, o que levou-se a pensar outras possibilidades para o corpo
institucionalizado na loucura. Vejamos,
na perspectiva fenomenológica de Merleau-Ponty o corpo é um corpo vivo,
que trabalha, sente prazer, sofre de amor e de fome, molda, transforma,
conforma, disciplina-se e disciplina. Um corpo que escreve sua história e que
constitui inúmeras técnicas corporais para dançar e festejar seus rituais. Um
corpo em que é possível ler informações geradas pelo universo da cultura no
tempo e no espaço, portanto, na história; universo esse que mantém vivo esse
33
corpo e, ao mesmo tempo, é sustentado por ele através da transmissão social
de informações e conhecimentos. (VIANA, 2009. p.81).
A linguagem artística facilita ao ser humano se expressar e perceber o mundo de
modo mais sensível, singular e autêntico. O corpo quando se movimenta com criatividade,
espontaneidade e em ambiente afetivamente seguro, se reorganiza, informa-se sobre si
mesmo, criando significações transcendentes ao dispositivo anatômico, cria cultura. Dessa
forma,
o corpo é nosso meio geral de ter um mundo. Ora ele se limita aos gestos
necessários a conservação da vida, e correlativamente, põe em torno de nós
um mundo biológico, ora brincando com seus primeiros gestos e passando
do seu sentido próprio a um sentido figurado, ele manifesta através de um
novo núcleo de significação: é o caso dos hábitos motores com a dança. Ora,
enfim a significação visada não pode ser alcançada pelos meios naturais; é
preciso então que ele se construa um instrumento, e ele projeta em torno de
si um mundo cultural. (MERLEAU-PONTY, 1994, p. 203).
Para a realização da parte prática da pesquisa, como já apontei anteriormente,
convidei o grupo permanente de arte cultura da UFRN, Cruor Arte Contemporânea para, em
uma parceria e residência artística, desenvolver comigo este trabalho no hospital,
proporcionando dessa maneira uma interação entre os pacientes e os artistas. Pois
fundamentado nas palavras de Carreira (2012), entende-se que
o trabalho compartilhado traz para a pesquisa tanto a ampliação das
possibilidades de questionamento do objeto abordado quanto a
intensificação do processo de aprendizagem daqueles envolvidos no projeto
investigativo. O cruzamento das experiências faz com que a ação dos
investigadores dialogue de modo polivalente com um objeto multifacetado.
Assim, pode-se supor uma replicação do modo de recepção do espetáculo
teatral dentro do projeto de pesquisa. (CARREIRA, 2012, p.31).
Proporcionando assim um solo fértil para a prática cênica e sua descrição dissertativa,
desenvolvendo tal campo temático, abrindo possibilidades para tecer considerações e
impressões sobre o vivido e pesquisado.
Compreende-se que esta pesquisa tem importância e relevância no campo da arte,
considerando que estes mecanismos de construção, pois, sob a luz desse estudo organizou-se
os procedimentos e instrumentos que podem ser selecionados para a execução da investigação
e dos processos criativos, contextualizando sistematicamente este fazer e fruir artístico, que
se deu em encontros interativos principalmente no Hospital Dr. João Machado entre artistas e
a clientela do hospital.
34
Assim, adentrou-se no universo existencial dessas pessoas classificadas como
anormais ou indesejáveis, e que em sua trajetória de vida conhecem a vivência de
internamento em um hospital psiquiátrico. Para a pesquisa se fez vital criar um ambiente
acolhedor para que a fala e a expressão artística dos envolvidos fossem ouvidas e respeitadas,
pois há uma tendência de imposição social e histórica para viverem em restrição de abertura
do ser, com limitação da sua liberdade e dignidade para expressar sua autonomia. Portanto,
trabalhou-se na perspectiva compreensiva de que
pesquisar é criar espaço de diálogo com as diferentes tramas do fazer teatral,
construindo olhares que inquiram e que reflitam desde uma posição cuja
especificidade contribui para a produção de uma tensão transversal ao eixo
criação – fruição. (CARREIRA, 2012, p.17).
Sobre o aspecto processual e coletivo da pesquisa em artes cênicas, Carreira (2012)
faz considerações pertinentes que ressalta a importância da interação do pesquisador com a
coletividade.
Considero importante encarar a pesquisa como processo coletivo. Ainda que
não se possa afirmar que o trabalho com coletivos é essencial para a
produção de uma pesquisa em teatro, dado que se podem ver muitas
produções relevantes que resultam do mergulho individual de um
pesquisador sobre um tema, o exercício com o coletivo tem características
que redimensionam o próprio saber produzido. (CARREIRA, 2012, p.31).
Em consonância com Carreira (2012), também se encontra afirmativas em Telles
(2012) sobre o fazer da pesquisa em artes, onde, problematizar a pesquisa é instalar parâmetros
que permitam a análise da criação no contexto da própria criação, ou seja, sem comparações com
parâmetros outros que não os próprios determinados pela obra ou processo, o que se entende como
muito relevante para esta pesquisa, e considera-se como uma metodologia adotada.
Os integrantes da pesquisa sempre foram inteirados sobre o andamento da pesquisa
teórico prática, com abertura para opinar e propor sobre os procedimentos metodológicos,
caminhos e escolhas que foram surgindo ao longo da pesquisa, e sobre os processos de criação,
que foi instaurado nesse processar colaborativo. A vivência dessa coligação intenciona
interagir esses atores sociais, quer sejam ligados a arte ou a saúde mental, de modo
significativo em que a apreciação crítica aconteceu no próprio contexto de criação. O “como”
e o “porque” dessas instaurações cênicas foram compartilhados e problematizados pelos
participantes, esperando promover algo que os fizesse presentes na obra artística e no universo
que trata das relações a respeito dessa temática. E sobretudo criar vínculos comprometidos
com o objeto pesquisado, pois,
35
perguntar sobre procedimentos de pesquisa em artes cênicas é buscar vias a
partir das quais ambas as práticas possam se interferir mutuamente. Neste
sentido é oportuno observar que as abordagens de ordem filosóficas contribuem
para aproximações ontológicas, que ajudam a compreender as matrizes do fazer
teatral, ao mesmo tempo em que sugerem ”formas de trabalho que propõem um
compromisso vinculante, estreitando a distância entre objeto e pesquisador.
(CARREIRA; CABRAL, 2007, p.16).
Assim sendo, o presente estudo faz tessituras sobre a loucura humana no mundo
ocidental a partir de aspectos históricos, psicológicos e estéticos que se coadunam para falar
das sensibilidades experienciadas. Por outro lado, neste fazer artístico, e entendendo que, por
estar em um mestrado em Artes Cênicas, o foco, em uma perspectiva transdisciplinar, se faz
necessário apontar que devem ser feitas considerações sobre os encontros sistemáticos entre
estudantes da UFRN, que são artistas pesquisadores credenciados a Coligação Cruor Arte
Contemporânea com a clientela do hospital Dr. João Machado, que mais uma vez comprova
que a arte pode ter efeito terapêutico no campo da saúde mental, como meio catalizador de
afetos potencialmente favoráveis a uma relação de aproximação e inclusão das pessoas em
acometimento de algum tipo de desconforto psíquico, ou seja, especificamente devido algum
transtorno mental, muito embora como já apontado nosso foco seja a criação artística.
No próximo capítulo será abordado o fenômeno da loucura como vivência inerente a
condição existencial e histórica do ser humano, posto que esta pesquisa propõe uma
investigação na perspectiva metodológica de uma pesquisa ação com uma abordagem teórica
fenomenológica, e são investigadas as relações arte e loucura a partir da experiência
vivenciada pelo pesquisador e das pessoas envolvidas no espaço do hospital psiquiátrico com
tempos e lógicas diferentes.
36
CAPÍTULO II – ARTE E LOUCURA: PROCESSOS DE CRIAÇÃO
A pesquisa se desenvolveu na ideia do encontro criativo e afetivo entre artistas e
internos do hospital Dr. João Machado, considerando que historicamente há uma relação
significativa entre loucos e artistas que os tornam arquetipicamente duplos ligados pela ânsia de
liberdade, na angústia em alcançá-la ou perdê-la em sua plenitude. Na relação do ser humano
com a arte e a loucura, pode-se identificar aspectos dessa dualidade que puderam ser refletidas
nesses encontros. Martinho (2015), aborda o tema do duplo na literatura apresentando-o como
fenômeno que retrata a vivência arquetípica da dualidade que se presentifica na psique desde a
antiguidade.
Esta dualidade, antítese, cisão, remete em termos do imaginário, ao
fenômeno especular inscrito no duplo: espelhos, duplos, e reflexos habitam
as lendas, as histórias de magia e as tradições populares, articulando um
profundo sentimento de insegurança individual, social ou comunitária. Esta
temática faz parte dos temas literários com profundas raízes mitológicas. No
mundo em que a diferença é articulada através do sentido e do valor, a noção
do duplo, da réplica, perturba e inquieta a identidade porque testemunha a
insuficiência do ser. (MARTINHO, 2015, p.1).
Nessa perspectiva, os atores da coligação iniciaram a pesquisa de campo com a
proposição de escolherem entre os internos seus duplos para juntos construírem cenas e, assim
montarem a encenação. No entanto, nesta construção compartilhada, os internos se
empoderaram da identidade artística, tornando-se parte da coligação nesta ação e, como seres
criadores e atores se posicionaram com poder de decisão, sugerindo, opinando e também
escolhendo os seus duplos. Esta procura provocou inquietações nos artistas que passaram a
questionar sobre o processo e os critérios para suas escolhas. A partir destes questionamentos,
aprofundamos a reflexão sobre a identificação de um duplo, entendendo que esta escolha
implicaria na subjetividade dos participantes envolvendo aspectos profundos da psique, ou seja,
o inconsciente. Neste sentido, respaldando-se em Nasio (2009, p.71) compreende-se que o
corpo' é a via régia que daria acesso ao inconsciente, a questões existenciais profundas. Que
corpo-sujeito é esse cujo duplo seria a imagem corporal que revelaria caminhos de acesso ao
inconsciente do outro? Ou ainda, que corpo de louco refletiria a imagem do artista, ou que
corpo de artista refletiria a imagem do louco? De certo que, nos encontros afetivos e criativos,
emoções recalcadas, muitas vezes sem consciência, se refletiam em imagens corporais,
possibilitando aos duplos captarem emoções espontâneas ou recalcadas. A identificação de
um fulgor no olhar, um gesto distraído, movimentos e posturas corporais compartilhados, o
jeito como movem a cabeça, como expressam seus sons gruturais ou murmuram palavras
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inaudíveis são mensagens corporais que foram utilizadas como recursos para os atores
pesquisadores escolherem os seus duplos.
Neste contexto, a noção de duplos apresentada por Nasio (2009) enfatizando que uma
imagem é sempre o duplo de alguma coisa e, ressaltando que “não existe imagem senão de um
objeto investido afetivamente, inscrito na memória consciente ou inconciente e capturado nas
redes de relação com o outro” embasou também este trabalho. Dessa forma, identificou-se a
importância do corpo e suas imagens, nos encontros e escolhas significativas e subjetivas, numa
perspectiva de encontro de duplos, abriu-se possibilidades para uma compreensão criativa e
subjetiva do corpo em adoecimento psíquico, oprimido e instituído nos manicômios.
Se pensarmos agora na imagem do corpo, diremos que é um duplo que pode
aparecer como uma representação plástica em duas ou três dimensões
(pintura, fotografia, cinema, escultura etc.); como um reflexo sobre uma
superfície polida – como o reflexo de sua silhueta num espelho ou num vidro;
ou como uma representação mental "impressa" na superfície virtual da
consciência ou do inconsciente – tal qual a imagem consciente de uma
sensação gustativa ou a imagem consciente e recalcada da mesma sensação
já sentida quando criança; e, finalmente, a imagem pode se desdobrar em
uma ação e assumir a forma de um comportamento, de um gesto irrefletido
ou de uma atitude corporal involuntária. Essa última variante que designo
como imagem-ação, é a expressão corporal de uma emoção cujo sujeito não
tem consciência. (NASIO, 2009, p.65).
Desta maneira, entende-se que a vivência artístico-cênica por ser corporal, criativa, e
espontânea possibilita pensar a corporeidade para além da visão anatômica de corpo, facilitando
a identificação de aspectos subjetivos, psicológicos e estéticos implicados nas relações e
comportamentos apresentados na cena existencial do espaço vivido.
A imagem-ação não é representada no papel, nem refletida no espelho, nem
inscrita na cabeça, ela intervém nos movimentos corporais de um sujeito que
não percebe que seu comportamento põe em cena um vivido emocional
antigo do qual ele não tem lembrança. (NASIO, 2009, p.66).
Parafraseando Nasio (2009, p.53), “não somos nosso corpo em carne e osso, somos o
que sentimos e vemos do nosso corpo”, artistas e loucos se encontram nesta proposta para uma
compreensão vivencial da loucura num processo artístico de criação. Ressalta-se que o modo
como os participantes entendiam e lidavam com as variáveis corpo, espaço e tempo no espaço
manicomial, bem como, a interação entre eles no processo artístico em relação a um encontro
com artistas que propõem ações cênicas, ao tempo que participam de aulas de dança e, neste
encontro juntos para a criação colaborativa e compartilhada de uma instauração cênica no
espaço hospitalar.
May (1975, p.79), estudioso da arte criativa, expõe uma teoria sobre a criatividade e o
encontro a partir dos seus contatos com artistas e poetas. Trata-se do seguinte, “a criatividade
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ocorre num ato de encontro, e deve ser compreendida como tendo por centro esse encontro”.
Nesta perspectiva, a criação artística é vista como um encontro existencial do artista com sua
obra, que faz pensar no compromisso ético e estético do artista com sua criação. É importante
lembrar que pacientes e artistas tiveram aulas de DanceAbility6, com Dra Elke Beatriz Riedel,
no DEART, destacando-se a qualidade das relações destes encontros, proporcionando
aproximação, integração e aprofundamento destes corpos em processo de criação.
Utilizando o conceito de “encontro de corpos”, aprofundado por Deleuze (2002) a
partir de Espinosa, para este autor o conceito de “encontro de corpos” está diretamente
relacionado ao “conceito de afeto”. Assim, quando os corpos se encontram produzem afetos,
dessa forma, pode-se compreender um ser existente em seu corpo; pelo modo como ele é afetado
por outro corpo, de fato, pelos efeitos que os encontros produzem nos corpos. As implicações
dos encontros podem provocar tristezas ou alegrias. Sendo alegres, potencializarão os corpos,
se forem tristes, terão o efeito de despotencialização. Assim, o desejo sempre foi de proporcionar
um alegre encontro dos artistas do CRUOR Arte Contemporânea com os internos.
Conforme Azevedo (2004), jamais o corpo em si deverá ser o nosso objeto de estudo
e nem objetivo de um labor específico, assim, na observação participante foi identificada a
experiência de uma totalidade que pensa, sente e age. Neste sentido, essa interação com uma
totalidade que é pensada, sentida, agida no espaço vivo de valores subjetivos e práticas
direcionadas ao fenômeno da loucura se manifestam nas relações cotidianas. O estudo,
portanto, se dá no entrelaçamento das tramas da vida, no encontro de corpos exercendo a vida
no espaço hospitalar e tendo a oportunidade de vivenciar nesse emaranhado de processos uma
criação artística, criando uma trama de possíveis leituras para aqueles que vem ao hospital e
estarem nessa instauração cênica.
Segundo Merleau-Ponty (1994), pesquisar sob a ótica da fenomenologia é
compreender, dar sentido a existência. Trata-se da volta ao que denomina de mundo-vida, ou
seja, o mundo vivido pelo ser humano, o qual se torna palco de significados atribuídos às
situações vividas no cotidiano. Deste modo, foi abordada a experiência sensível do ser da
loucura, considerando-a como fenômeno inerente ao ser humano e sua condição histórica e
existencial, e buscando compreensão da relação do ser criativo com o ser da loucura, ou seja,
o ser humano em sua angústia e ânsia de liberdade no seu devir de ser em expansão e expressão
6 DanceAbility é um método para dança, movimento e comunicação não-verbal que integra pessoas com e sem
deficiência. Esse método permite que todas as pessoas se expressem e colaborem artisticamente. Desde sua
criação em 1979, a Companhia Joint Forces e seu diretor Alito Alessi, fundador deste método, cultivam e
propagam esta dança criativa e inclusiva pelo mundo. (espanhol.danceability.com/portuguese.php)
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criativa e afetiva. Para tanto se fez necessário compreender a sensível relação da loucura com
a arte, considerando aspectos estéticos e psicológicos presentes na trajetória dos seres
humanos acometidos pela loucura e, como foco de estudo, o processo criativo cênico
vivenciado pelos participantes nos encontros artísticos no Hospital Dr. João Machado. Assim
fundamentado em Merleau-Ponty (1994), compreende-se que a vivência nesses encontros
implica em diálogos, falas e escutas entre os participantes e um processo com tramas
complexas e angustiantes, pois as situações e cenas no cotidiano exigem dos participantes
escolhas e atitudes que por vezes desestabiliza o pesquisador participante em sua zona de
conforto. No entanto, surgiram alguns momentos delicados, dentre eles, conseguir manter a
alegria dos encontros para possibilitar uma potencialização dos corpos. Por esta necessidade
houve um momento em que se fez necessário refazer a primeira configuração de artistas do
CRUOR, aqueles que iniciaram os trabalhos e então uma reestruturação com a seleção de
novos bolsistas e o descredenciamento daqueles que não conseguiram compreender a
profundidade do trabalho proposto e não estavam acompanhando o trabalho a contento. Não
participavam das ações propostas e faltavam muito.
A partir da experiência sensível do ser humano em adoecimento psíquico, sujeito a
longas e sucessivas internações, compreende-se que articular arte, loucura e psicologia é
reconhecer a angústia humana frente às situações de privação ou de liberdade, podendo
claramente perceber a dificuldade dos artistas envolvidos no processo em lidar com esta
situação posta.
Por outro lado, a imagem que se observa do artista e do louco, apesar de distintas,
tem associação imediata com o tema da liberdade em situação de oposição, pois o louco se
encontra preso e sem liberdade de ir e vir. O artista precisa ser livre para criar e intuir suas
obras, e o louco é aquele que é livre para falar e fazer o que vir de imediato a cabeça. Todos
os dois têm medo de perder a liberdade que se torna a marca pessoal da identidade, tanto do
louco como do artista. A sensibilidade abundante no artista é qualidade digna de aplausos e
de aproximação, e no louco, é sinônimo de sintoma e de afastamento. A estética existencial
de ambos se contrapõem aos padrões da ordem dominante, às regras e às normas no estilo de
se vestir, falar, gesticular e de se relacionar. Mas apenas o louco historicamente foi trancafiado
e controlado em instituições fechadas e posto para viver às margens da cidade com o aval da
ciência e do poder socioeconômico vigente pelo fato de ser o que é e como é. Acrescenta-se
ao louco a vivência de maus tratos, abandono e opressão, e sedação pelo uso excessivo de
medicação que naturalmente se põem como empecilhos na criação de sua própria existência,
pois a vida a que estão submetidos os tornam desesperançados e rígidos. Já o artista é visto
40
como ser criador, e que assim sendo reconhecido tem uma relação mais íntima com a
criatividade, logo o encontro de loucos e artistas vislumbra outras possibilidades vitais para
lidar com a liberdade e a loucura, potencializando a alegria e, nesse afetamento positivo,
potencializando corpos. Mas, há de ressaltar que nessa interação com a “loucura-doença”
somos seres humanos e por isso temos nossas afetações e muitas limitações que de fato nem
todos os artistas conseguiram lidar com essa complexidade de emoções negativas que se
configuram em tristeza no internamento psiquiátrico. Assim chegaram até o fim do trabalho e
estão na instauracção cênica (Lou) Cure-se!!!, os artistas Andreza Paulino, Camila Morais,
Emisandra Ribeiro, Fanny Lo, Francisco Júnior, Jéssica Cerejeira, Matheus Arcanjo, Surama
Rodrigues, e foi convidada como cantora Wisla Ferreira, para atuar na Cena 11 intitulada
“Bicho de Sete Cabeças”.
Neste sentido, para propor processos criativos em um espaço caracterizado por
restrinções afetivas e criativas, a pesquisa encontrou respaldo em May (1975), Deleuze (2002)
e Merleau-Ponty (1994), bem como em Ostrower (2008) e Toro (2002) que em seus estudos
reconhecem a criatividade e a afetividade como potenciais inerentes ao humano, e ainda que
as realizações desses potenciais sejam entendidas como necessárias e fundamentais ao
exercício pleno da vida. Toro (2004) afirma ser a criatividade uma atividade que forma parte
integrante da transformação cósmica, um caminho do caos a ordem e que, no ser humano, se
manifesta como impulso de inovação frente à realidade. A atividade criativa, pela sua
natureza, possibilita ao ser humano organização de uma linguagem única e singular,
compartilhável no encontro de corpos e na vivência coletiva, visto ainda que, conforme Toro,
a obra de criação é sempre o expressivo resultado do ato de viver.
A arte é comumente associada à realização ou à liberação de energia criadora e
geradora de vida. Para Toro (2004), o artista é um indivíduo que tem a necessidade e a
coragem de frutificar, e afirma que a característica essencial do ser humano criador é a
superabundância. Esta riqueza interior, esta abundância de potenciais profundos, existem em
todas as pessoas, sejam diagnosticadas como loucas ou não. No entanto o artista é aquele que
tem a coragem de expressar suas potencialidades. O conceito elitista que separa os artistas
criadores das pessoas comuns não representa, senão, um dos tantos prejuízos culturais que, no
fundo, reforçam a trágica dissociação dos seres humanos e suas obras.
Criar é basicamente formar, ou seja, dar forma a algo novo. Em qualquer que seja o
campo de atividade, trata-se, nesse novo de possíveis inovações e coerências que se
estabelecem para a mente humana, fenômenos relacionados de modo novo e compreendidos
41
em termos novos. O ato criador abrange, portanto, a capacidade de compreender, e esta, por
sua vez, a de relacionar, ordenar, configurar, significar. (OSTROWER, 2008).
Desde as primeiras culturas, o ser humano surge dotado de um uma capacidade
singular: mais do que “homo faber”, ser fazedor, o indivíduo é um ser formador e
transformador. Ele é capaz de estabelecer relacionamentos entre os múltiplos eventos que
ocorrem ao redor e dentro dele. Relacionando os eventos, ele os configura em sua experiência
do viver e lhes dá um significado. Nas perguntas que a pessoa faz ou nas soluções que
encontra, ao agir, ao imaginar, ao sonhar, sempre o ser humano relaciona e forma. Nós nos
movemos entre formas. Um ato tão corriqueiro como atravessar a rua – é impregnado de
formas. Observar as pessoas e as casas, notar a claridade do dia, o calor, reflexos, cores, sons,
cheiros, lembrar-se do que se intenciona fazer, de compromissos a cumprir, gostando ou
detestando o preciso instante e ainda o associando a outros – tudo isto são formas em que as
coisas se configuram para nós. De inúmeros estímulos que recebemos a cada instante,
relacionamos alguns e os percebemos em relacionamentos que se tornam ordenações.
A percepção de si mesmo dentro do agir é um aspecto relevante que distingue a
criatividade humana. Movido por necessidades concretas sempre novas, o potencial criador
surge na história como um fator de realização e constante transformação. Ele afeta o mundo
físico, a própria condição humana e os contextos culturais. Para tanto, a percepção consciente
na ação humana se nos afigura como uma premissa básica da criação, pois, além de resolver
situações imediatas, o indivíduo é capaz de a elas se antecipar mentalmente, podendo antever
problemas e certas soluções. Daí podermos falar da intencionalidade da ação humana. Mas do
que um simples ato proposital, o ato intencional pressupõe existir a mobilização interior, não
necessariamente consciente, que é orientada para determinada finalidade antes mesmo de
existir a situação concreta para a qual a ação seja solicitada. É uma mobilização latente
seletiva. Assim, circunstâncias em tudo hipotéticas podem repentinamente ser percebidas
interligando-se na imaginação e propondo a solução para um problema concebido.
Representariam modos de ação mental a dirigir o agir físico. (OSTROWER, 2008, p.10).
O ato criador não nos parece existir antes ou fora do ato intencional, nem haveria
condições, fora da intencionalidade, de se avaliar situações novas ou buscar novas coerências.
Em toda criação humana, no entanto, revelam-se certos critérios que foram elaborados pelo
indivíduo através de escolhas e alternativas.
Os processos de criação interligam-se intimamente com o nosso ser sensível. Mesmo
no âmbito conceitual ou intelectual, a criação se articula principalmente através da
sensibilidade. Inata ou até mesmo inerente à constituição do indivíduo, a sensibilidade não é
42
peculiar somente a artistas ou alguns poucos privilegiados. Em si, ela é patrimônio de todos
os seres humanos. Ainda que em diferentes graus ou talvez em áreas sensíveis diferentes, todo
ser humano que nasce, nasce com um potencial de sensibilidade.
Neste contexto, a sensibilidade e a criatividade são qualitativamente importantes à
promoção de vida, embasando-se no pensamento de Ostrower (2008), a palavra sensibilidade
é compreendida, considerando-a como manifestação existencial criativa baseando-se numa
disposição elementar, num permanente estado de excitabilidade sensorial, como uma porta de
entrada das sensações, representando uma abertura constante ao mundo e nos ligando de modo
imediato ao acontecer em torno de nós. Deste modo, considerou-se a relevância das reações
sensoriais dos artistas ao espaço vivido no processo criativo. Percebia-se em momentos
diferenciados as sensíveis afetações ao espaço vivido, quando as subjetivações destes eram
expressas na corporeidade, ou muitas vezes, verbalizadas.
A implicação corporal e afetiva dos artistas pesquisadores com a transformação do
mundo dos internos em um ambiente gerador de vida também tem relação com a sensibilidade,
neste sentido, encontrando aporte em Ostrower (2008, p. 12), “toda a forma de vida tem que
estar aberta ao seu meio ambiente a fim de sobreviverem, tem que poder receber e reconhecer
estímulos e reagir adequadamente para que se processem as funções vitais do metabolismo,
numa troca de energia e continuidade de vida”. Neste processo criativo observou-se que nem
sempre a relação dos artistas com a vida no hospital foram harmoniosas, alguns tenderam ao
fechamento ou a abertura para a vivência criativa de acordo com suas afetações aos
acontecimentos do dia, que por vezes, se revelaram em cenas de relações desagradáveis,
desencadeando sensações negativas e desejo de afastar-se dessa atmosfera manicomial,
enfatizando que alguns artistas sem motivação interna para interagir de forma espontânea e
criativa com a vida no hospital, decidiam por não se fazerem presentes nos encontros.
Essas decisões aparentemente poderiam ser vistas como prejudiciais ao andamento
do processo, no entanto, entre os participantes compreendeu-se de forma compartilhada que
elas também faziam parte do processo e estavam implicadas com o próprio ato de criação,
considerando que uma grande parte da sensibilidade, a maior parte talvez, incluindo as
sensações internas, permanece vinculada ao inconsciente. A ela pertencem as reações
involuntárias do nosso organismo, bem como todas as formas de auto-regulagem.
Uma outra parte, porém, também participando do sensório, chega ao nosso
consciente. Ela chega de modo articulado, isto é, chega em formas organizadas. É a nossa
percepção. Abrange o ser intelectual, pois a percepção é a elaboração mental das sensações.
Kneller (1978) aponta que a Criatividade pode ser entendida por alguns teóricos como “Força
43
vital”. Desta forma temos que, uma das consequências da teoria da evolução de Darwin foi a
noção de ser a criatividade humana manifestação da força criadora inerente à vida. Neste
entendimento, a evolução orgânica é fundamentalmente criadora, uma vez que está sempre a
gerar novas espécies. Na verdade, a força criadora da evolução parece lançar-se para frente,
em inesgotável variedade de formas peculiares, sem precedentes, sem repetição, irreversíveis.
Um dos expoentes dessa ideia é o biólogo Edmund Sinnott7. A vida, afirma Sinnott, é criativa
porque se organiza e regula a si mesma e porque está continuamente originando novidades.
Na evolução física essas novidades nascem em decorrência de alteração genética e
modificações no meio. No ser humano, entretanto, surge o poder de iniciar conscientemente
o novo – poder que é da imaginação criadora. Tal poder manifesta-se acima de tudo na
capacidade humana de encontrar ordem num amontoado de particulares, de impor sentido e
padrão a uma multidão de coisas ou experiências que a princípio pareciam sem relação. Esse
poder criador é, no fundo, manifestação do processo organizador de toda vida. Assim como
um organismo cria um sistema organizado e vivo, que é o seu próprio corpo, a partir do
alimento retirado ao meio, também de dados desorganizados o ser humano pode criar uma
obra artística. Ao passo que um animal organiza de acordo com normas biologicamente
determinadas e instintivas, o ser humano pode criar padrões de ordem por si mesmo.
A criatividade humana também tem sido encarada como expressão de uma criatividade
universal imanente a tudo que existe. Segundo Alfred North Whitehead8, essa criatividade é
rítmica ou cíclica, pois o mundo não consiste em uma corrente de eventos singulares, mas de
eventos que constituem entidades reais, que nascem, se desenvolvem e morrem.
As manifestações artísticas são exemplos vivos da diversidade cultural dos povos e
expressam a riqueza criadora dos artistas de todos os tempos e lugares. Em contato com essas
produções, um estudante pode exercitar suas capacidades cognitivas, sensitivas, afetivas e
imaginativas, organizadas em torno da aprendizagem artística e estética. Ao mesmo tempo,
seu corpo se movimenta, suas mãos e olhos adquirem habilidades, o ouvido e a palavra se
aprimoram, quando desenvolve atividades em que relações interpessoais perpassam o
7 Edmund Ware Sinnott, nasceu em Cambridge, em 05 de fevereiro de 1968 e morreu em New Haven
em 06 de janeiro de 1988, foi botânico. Ficou conhecido pelos trabalhos em anatomia vegetal. Sinnott
reforçou a ideia de descoberta científica e da importância de fazer medições cuidadosas e interpretar
corretamente os dados, e tentou explicar o organismo como um todo integrado a partir da soma das
suas partes, processos e da sua história.
8 Nasceu em 15 de fevereiro de 1861, Ramsgate, Reino Unido e morreu em 30 de dezembro de 1947,
em Cambridge, Massachusetss, EUA. Foi um filósofo e matemático britânico, renomado pesqui-
sador na área da filosofia da ciência, principalmente no que diz respeito aos fundamentos da matemá-
tica.
44
convívio social o tempo todo. Muitos trabalhos, sobretudo os da arte contemporânea,
expressam questões humanas fundamentais: falam de problemas sociais e políticos, de
relações humanas, de sonhos, medos, perguntas e inquietações de artistas documentam fatos
históricos, manifestações culturais particulares e assim por diante.
Após a compreensão de criatividade retomamos, neste ponto, a questão artistas e
loucura, desde a antiguidade há uma tendência em associar o artista à loucura e compreender
a obra de arte como produto de uma manifestação sublime, pois na antiguidade o louco, o
gênio e o artista eram considerados como seres privilegiados ou castigados pelos deuses, de
acordo com a sua razão e sua jornada pela existência, caracterizada por facilidades e graças
ou composta de dificuldades e tormentos. Existe ainda o fato de que,
outra tradição que remonta à Antiguidade, concebe a criatividade
naturalisticamente como forma de loucura. Sua aparente espontaneidade e sua
irracionalidade são explicadas como fruto de um acesso de loucura. No mundo
ocidental essa noção começou com Platão, que não distinguia muito bem o
frenesi da visitação divina do que resulta da loucura. (KNELLER, 1978, p.33)
Vejamos na explanação a seguir:
com Hesíodo, essa atitude tornou-se significativamente diversa. Segundo
Brandão (2004), aquele poeta apresentava a existência de duas tendências
no homem, ambas conferidas pelos deuses. Uma delas seria a vida justa e
temente aos deuses (Diké), que era premiada pelas postetades. A outra era a
Hybris, o furor violento descontrolado, entregue a desrazão. Essa era punida
com o oblívio. Cabia ao homem enfrentar a árdua vida de Diké ou os castigos
de render-se à Hybris. (JESUÍNO, 2009, p.35).
Deste modo, compreende-se que desde a antiguidade, a loucura é entendida como
um fenômeno de dupla face, ou seja, por uma face um devir do êxtase, alegria e liberdade e
por outra um devir de agonia, tormento e opressão, conforme a vontade dos deuses. Na antiga
Grécia evocava-se às divindades inspiradoras alteração dos estados de consciência para poder
materializar a obra de arte. Vejamos,
[...] relembra os modos de alteração da consciência que a antiga Grécia
evocava, inserindo-as dentro dos parâmetros da criatividade. As loucuras da
Pitonisa (inspiração religiosa), do homem nos momentos de criação
(inspirado pela Musa) e a do amante não cabem nos limites estreitos da
normalidade como é concebida em ciência atual. Jung lança mão de um
critério transcultural de comparação para demonstrar que o critério de
normalidade não tem sentido. (BOECHAT, 2014, p.76-77).
Desta forma observa-se que, na cultura antiga, o artista, como ser criativo, ao ser
45
tomado pelas musas inspiradoras, alterava não só a consciência, mas também a sua presença
humana se diferenciava por atitudes e comportamentos que o deixa fora da norma; desde
então, ressalta-se a partir de Boechat (2014) que o artista se instaurava no social de uma forma
idêntica aos seguidores do deus Dioniso, pela característica criativa, inebriante e apaixonante
do vinho inspirador. Destaca-se o fato de que Dioniso, o deus do teatro, é também o deus da
loucura, e que a chamada loucura criativa era considerada sagrada na antiguidade.
Segundo Nietzsche, o cerne da tragédia grega é a união entre o mito do herói e
a esfera musical dionisíaca, representada esta primitivamente pelo coro dos
sátiros, o cortejo que em cantos e danças evoluía em adoração ao deus Dioniso.
Por isso, em relação ao herói da epopeia, o herói trágico teria um caráter bem
especial. É que o herói trágico, posto sob a influência do mundo dionisíaco, seria
levado a experimentar as “mais elevadas e mais fortes emoções” passíveis ao
humano, e a encarnar todos os potentes e inextricáveis aspectos da natureza, de
júbilo e dor, criação e destruição, vida e morte, mas sempre sob o efeito
transfigurador da arte. […] Nietzsche enfatiza a importância do coro no
nascimento da tragédia “aquelas partes corais com que a tragédia está
entrançada são, em certa medida, o seio materno de todo assim chamado
diálogo, quer dizer, do mundo cênico inteiro, do verdadeiro drama”. (SUAREZ
apud HADDOCK-LOBO, 2010, p.143-145).
Por sua vez temos na gênese do teatro a experiência de sair da medida de si mesmo
através dos rituais com cantos e danças que dramatizam a tragédia da vida, e tem-se a
experiência que desabita a sua morada corporal. Na verdade, o pensamento do artista por vezes
não segue a lógica do pensamento racional, e nisto, a ação intuitiva e criativa do artista é
considerada, por vezes pela ciência, como uma ação desprovida de razão. Vejamos na seguinte
citação o enfoque mítico-religioso da loucura na antiguidade:
na verdade, os registros históricos sobre a loucura remontam à Grécia
Antiga. Homero (700 a.C.), considerado o primeiro e o maior poeta épico da
Grécia, autor de Ilíada e Odisseia, apresenta em sua obra um enfoque
mitológico-religioso da loucura: todo ato insensato é determinado pela ação
dos deuses, ou porque seus caprichos determinam o rumo dos
acontecimentos ou porque deliberadamente roubam do homem a razão.
(COCIUFFO, 2007, p.21).
Efetuando um salto no tempo, observamos que a teoria da loucura, real ou potencial,
do artista, continuou durante o século XIX, e sob o olhar da clínica, o artista, muitas vezes,
passa a ser associado a doença mental e a insanidade como aquele desprovido de razão. E
neste sentido, o fazer artístico e a obra de arte, bem como os criadores geniais, foram e ainda
estão sendo estudados pela ciência como seres portadores de alguma suposta patologia
psíquica. As pesquisas científicas geralmente buscam confirmar relações causais entre loucura
e criatividade, por vezes os pesquisadores da ciência estão imbuídos de comprovar a hipótese
de que algo neurofisiológico ou psicológico não funciona bem, ou ao contrário, funciona bem
46
demais nos cérebros e mentes dos artistas, ou ainda, que funciona diferente das pessoas ditas
normais. De acordo com Kneller,
o sociólogo Cesare Lombroso citou muitos homens geniais que eram
neuróticos ou loucos, alegando que a natureza irracional ou involuntária da
arte criadora deve ser explicada patologicamente. Sigmund Freud sustentou
que o artista encontrava na arte um meio de exprimir os conflitos interiores
que de outra maneira se manifestariam como neuroses. A criatividade seria
por isso uma espécie de purgativo emocional que mantinha mentalmente
sãos os homens. (KNELLER,1978, p.34).
Esta busca por compreensão tem sua razão no fato de que muitos gênios da arte
tiveram sua trajetória existencial marcada por sofrimentos psíquicos e descontrole emocional
e comportamental, denominados hoje pela psicopatologia como surtos psicóticos, e como os
demais loucos, estes artistas também vivenciaram a triste condição de doentes mentais sob o
poder da psiquiatria clássica e assim submetidos a tratamentos desumanos e enclausuramentos
em instituições totais. É fato público na vasta literatura e na biografia de Antonin Artaud, Van
Gogh, Foucault, Joyce, Bispo do Rosário, Mozart e Isadora Duncan entre outros célebres
artistas, a vivência traumática e devastadora de agonizantes períodos de surtos a loucura como
também a superabundância de impulsos e potencial criador. Daí vem a ideia de que o artista
como o louco são classificados como pessoas diferentes e especiais, e a partir desses traços
acreditou-se, durante algum tempo, que os mesmos deveriam ser excluídos do convívio das
pessoas consideradas normais.
Ao associar a criatividade a processos psíquicos patológicos, tem-se que, do mesmo
modo como o louco, o artista é dotado de acentuada capacidade criadora, passando a ser visto,
muitas vezes, como um ser excêntrico, anormal ou esquisito e, a lidar com situações críticas
e discriminatórias que o rotulam diferente e marginal por se desviar dos padrões de
comportamento e das normas geralmente aceitas para o comportamento humano. Todos os
adjetivos pejorativos resultam na ideia supérflua e generalista de que todo artista é louco.
É importante lembrar que Borden, (2001), relata que Jung sempre incentivou os seus
pacientes a desenhar ou pintar as imagens que apareciam em seus sonhos. Para ele, a forma
era significativa e não apenas o conteúdo que pudesse ser extraído dessas representações. Ele
achava importante que as pessoas desenhassem e pintassem regularmente, de modo livre,
possibilitando a expressão dos conteúdos inconscientes. E ainda, pontuou a diferença básica
entre Freud e Jung a respeito da relação loucura, arte e saúde mental da seguinte maneira:
sua ligação [de Jung] com a arte não encontra paralelo em Freud, que a
considerava uma sublimação neurótica. Esta posição foi criticada por Jung
como sendo o equivalente a considerar a obra de arte como uma doença.
Afinal, considerar que as neuroses de uma artista influenciaram a sua arte,
47
não explica o apelo que a grande obra exerce sobre tantas pessoas. Para Jung,
a Grande Arte apresenta-se como uma mensagem do inconsciente coletivo
para toda a humanidade. Trata-se, portanto, de canalização e não de
sublimação. (BORDEN, 2001, p.51)
E ainda:
devido ao excesso de energia psíquica consumida por tão grande tarefa, esse
processo pode provocar um desequilíbrio da personalidade. Assim, para
Jung, a atividade artística, em seu nível mais alto, pode alterar a mente do
artista, levando-o a neurose, se seu psiquismo não estiver forte o bastante.
Para Freud, ao contrário, são as neuroses que explicam a obra de arte.
(BORDEN, 2001, p. 52).
No entanto, a psicanálise atual rejeita a noção de que a pessoa criativa seja
emocionalmente desajustada. Pelo contrário, afirma que aquela pessoa deve ter um ego tão
flexível e seguro que lhe permita viajar pelo seu inconsciente e retornar a salvo com suas
descobertas. (KNELLER, 1978, p. 43).
A pessoa criativa não é dominada pelas produções de seu inconsciente, usa-as, isto
sim. Ela pode regredir precisamente porque sabe que pode retornar à realidade. É sabido que
muitas pessoas emocionalmente perturbadas que são tidas em grande conta como criativas,
recusam a terapêutica, pelo temor de que esta lhes mate a criatividade, resolvendo-lhes os
problemas emocionais. A isso o moderno psicanalista retruca que tais pessoas criam a despeito
de suas neuroses, e não por causa delas. O que conseguem criar fica sempre aquém do que
atingiriam se fossem realmente sãs. (KNELLER, 1978, p. 43).
Para Jung o mundo racional é visto na perspectiva do inconsciente, ou seja, o mundo
do irracional não é vivido como algo temível, como a parte negativa de nossa personalidade
que o Eu deve reprimir sob a orientação do Superego, essa invenção da “professora vitoriana”9
na obra de Freud. (MOFFATT, 1983, p.105).
Assim, ao adentrarmos o espaço interno do Hospital Dr. João Machado com a arte
contemporânea, nossa perspectiva de intervenção se dava primeiramente pela apreensão
daquilo que se produz a si mesmo, o devir de existir como presença. Neste sentido
9 O autor faz referências as práticas educativas da era vitoriana, período marcado pelo governo da Rainha
Vitória da Inglaterra, 1819 – 1901. Período marcado por Sentimentalismo, nostalgia e um cânone de
beleza que eram veiculados por imagens impressas de crianças, donzelas, cachorrinhos e flores. Valores
tradicionais de lar, religião e patriotismo eram simbolizados com sentimentalismo e devoção. A era
vitoriana foi um tempo de fortes convicções morais e religiosas, convenções sociais e otimismo. Durante
a Era Vitoriana, houve a restauração do prestígio da Coroa Inglesa e o enriquecimento da classe burguesa,
além da implantação de rígidos valores morais e da repressão aos críticos das ideias vitorianas e a
perseguição às pessoas que não seguiam os valores morais propostos pelo regime.
48
pesquisadores abertos para reflexão, transformação, desconstrução e criação do espaço de vida
e dos corpos que se propagam nele, permitindo que o ser humano afetivo e criativo se
apresente na cena do mundo da loucura, proporcionando um encontro com os loucos, visando
a potencialização dos corpos e possibilitando um processo de criação artística. Assim as
instaurações cênicas propostas como procedimentos para a criação da encenação final no
Hospital se caracterizaram como espaços de sensibilidades para que os internos expressassem
sua humanidade e tivessem um pensamento meditante sobre o vivido e que, em sua formação
artística nas aulas de DanceAbility, fossem se reconhecendo também como artistas e não mais
só como loucos. O pensamento meditante é um pensamento que vive na disponibilidade e
permite que o ser se desvele no intermeio entre o seu mostrar-se e a sua origem escondida, a
partir do qual o ser se mostra. Somente um pensamento meditante e rememorante pode entrar
no movimento do dar-se do ser, este é um pensamento outro, diferenciado, que não é
calculante nem objetivante, mas que se dá ao acontecimento provocado no encontro.
Numa linguagem fenomenológica pode-se afirmar que estes encontros artísticos
proporcionaram espaços lúdicos e poéticos para que o ser humano se revelasse como um
tornar manifesto o que é presente, o seu devir, a sua existência. Mesmo que na estética do
espaço e da existência predominassem as relações e discursos de sofrimento e aprisionamentos,
as Instaurações Cênicas fundamentava-se como uma metodologia artística de transformação
da atmosfera e da ambientação, que num sentido fenomenológico, o acontecer do momento
criativo proporcionava aberturas para outras possibilidades de relações, potencialmente em
ações espontâneas e criativas. Desta maneira a presença dos artistas criadores participantes e
de sua arte fez grande diferença no espaço de saúde mental, pois o artista, ao se fazer presente
na cena cotidiana e real de modo disposto e decidido, trouxe mudanças significativas pelo seu
estilo de ser em movimentos e gestos e com sua atitude propositiva e intencionada à criação e
improvisação que foram efetivados numa instituição com resquícios de uma cultura
manicomial que tem como práxis o controle e a normatização. O que nos instiga a pensar
sobre outros modos de lidar com a loucura. As instaurações cênicas foram um dos modos da
arte se fazer presente no espaço como linguagem. A arte neste espaço se faz terapêutica por
ser um caminho de abertura para expressão criativa e afetiva dos que estão presos em seus
próprios manicômios e nos manicômios da vida real; no entanto é arte e proporciona fruição
e questionamentos com uma proposição estética trazida pela coligação de artistas, que pode
ser observada na instauração cênica final e que está sempre em processo de criação, que lida
com o acaso e a improvisação a cada novo encontro, mesmo tendo um roteiro dramatúrgico
estabelecido; assim como um percurso dentro do espaço hospitalar a ser percorrido, os
49
envolvidos sempre se propuseram a trabalhar sob esta perspectiva da improvisação, inclusive
porque dentro dos pavilhões acontecem interferências e propostas que são absorvidas pelos
atuadores.
Deste modo compreende-se que na escuta da loucura deve-se considerar que o
interno traz questões de sua interioridade e do mundo de suas relações sociais pertinentes a
sua comunicabilidade. Através do poema A liberdade como um problema do poeta brasileiro
José Paulo Paes é possível visualizar os impactos da Cultura manicomial sobre a vivência de
liberdade no ser humano em adoecimento psíquico em seus aspectos estéticos, psicológicos e
sociais. E ainda confirmar a produção de conhecimento sobre a angústia vivenciada na loucura
via linguagem poética. Visualizemos o poema de José Carlos Paes:
A liberdade como problema
Falam os poetas:
A torneira seca
(mas pior: a falta de sede)
A luz apagada
(mas pior: o gosto do escuro)
A porta fechada
(mas pior: a chave por dentro)
Sobre este poema Chaui (2011) a seguir, ressalta os contrapontos apresentados entre
uma situação externa experimentada como um dado ou como um fato (a torneira seca, a luz
apagada, a porta fechada) e a inércia resignada no interior do sujeito (a falta de sede, o gosto
do escuro, a chave por dentro). Assim,
o contraponto é feito pela expressão, “mas pior”. Que significa ela? Que
diante da adversidade (a falta de água, a falta de luz, a falta de abertura),
renunciamos a enfrentá-la (já nem queremos beber água, assim como já nem
queremos luz ou portas abertas), fazemo-nos cúmplices dela. Porém, não é
isso o pior. Pior é a renúncia à liberdade. Renunciamos a sede, que nos faria
abrir a torneira, renunciamos ao desejo de luz, que nos faria acender a luz,
renunciamos ao aberto, que nos faria girar a chave. Dessa maneira, secura,
escuridão e prisão deixam de estar fora de nós para se tornarem nós mesmos,
com nossa falta de sede, nosso gosto do escuro e nossa falta de vontade e
girar a chave. (CHAUI, 2011, p.412).
O poema sobre a liberdade traz reflexões significativas sobre a experiência da
ausência de liberdade e lembranças de situações e sensações semelhantes as vivenciadas no
espaço interno do hospital psiquiátrico em questão. A liberdade do ser da loucura como
questão filosófica tem seu sentido ideológico que afeta de modo direto a existência do interno.
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Como psicólogo e artista a experiência de estar no cotidiano de muitas contingências,
carências, dor e restrições também me afeta interiormente embora saiba como os artistas da
Coligação Cruor Arte Contemporânea, que estamos lidando com o fenômeno da dor do
adoecimento psíquico em perspectivas e pontos diferentes dos internos. Todos os participantes
se reconhecem com a potencial possibilidade de ocupar o espaço da loucura, mas sabem
também que não estão loucos, pois conseguem se organizar para ser e estar no exercício da
vida. Apesar da dor e das afetações, todos os artistas participantes sabem que não tem
impedimento para ganhar os portões da rua e voltar para os seus lares e ao serem confundidos
com internos, podem contar com o fato de serem artistas para se garantirem na saída para o
mundo de fora.
Lamentavelmente tendemos a nos acomodar com o modo de lidar com a loucura
desta cultura de fechamento que é o modo preponderante nesta instituição. Neste sentido, a
filósofa aponta de modo claro e conciso que nos faz imaginar e fazer pontes entre a realidade
dos que adoecem e a possibilidade de empatia do artista em se colocar no lugar do interno,
como se fosse o outro. O duplo.
A partir disto me sinto em liberdade para pensar e vivenciar uma prática interventiva.
Considero que o pensamento meditante da psicoterapia fenomenológico-existencial é
importante a nossa pesquisa de intervenção artística, e deste modo ao adentramos o espaço
interno do Hospital Dr. João Machado com a arte contemporânea e levar para os encontros
com os internos o pensamento aberto a muitas possibilidades. Seria a própria ação artística, a
Instauração cênica, uma meditação, em que artistas e internos atuam juntos na criação de uma
relação e de um discurso livre e meditante, no qual reside uma criação colaborativa e
compartilhada, poética, musical e dançante, mesmo que possa ser apontada por alguns e pela
sociedade atual tecnocrata como um processo “inútil”. É parte de minha pesquisa desvelar o
contrário dessa afirmação e potencializar o valor do fazer artístico para a sociedade, abrindo
para o público diverso a instauração cênica que ao longo do trabalho intitulou-se “(Lou)Cure-
se!!!”, uma obra artística na qual internos e artistas tecem as tramas de uma dramaturgia
existencial. A última cena é um compartilhamento entre todos os participantes do significado
dessa vivência artística, abrindo-se a palavra para os presentes que podem comunicar-se
livremente sobre as suas impressões. No dia 23 de julho, o aluno do Curso de Psicologia da
UFRN, militante da Luta Antimanicomial Breno Diniz, se manifestou na Cena 12 – Escuta,
cantando a música “Esse Mundo é Meu” do Sérgio Ricardo:
Esse mundo é meu
Esse mundo é meu
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Fui escravo no reino
E sou
Escravo no mundo em que estou
Mas acorrentado ninguém pode
Amar
Saravá ogum
Mandinga da gente continua
Cadê o despacho pra acabar
Santo guerreiro da floresta
Se você não vem eu mesmo vou
Brigar
Esse mundo é meu
Esse mundo é meu
Breno Diniz me informou que participa do coletivo Vento dos Avoados, “um coletivo
experimental de teatro composto por usuários de serviços de saúde mental da cidade de
Natal/RN, pessoas em situação de rua, estudantes de Psicologia da UFRN, psicólogos,
psicólogas, atores e atrizes. O coletivo teve início no segundo semestre do ano de 2014 e desde
então têm desenvolvido pesquisas em diferentes linguagens cênicas com o intuito de
fomentar processos de criações coletivas usando cenas poéticas como potencialidades para a
produção de outras formas de existência para os integrantes”.
Segundo Capalbo in Castro (2003) o termo existência, como categoria de filosofia
existencial, significa a maneira de ser própria do ser humano. Ela não significa, como o fora
para Kant, o simples fato de ser real. Só os humanos existem como modo de ser encarnado,
enquanto corpo consciência. Ele não é uma coisa no meio de outras coisas, pois tem percepção
das coisas. Mas ele não é também uma interioridade fechada sobre si mesma no seio de suas
representações imanentes como afirmava Descartes em relação à alma, ou Leibniz em relação
à monada10. Neste sentido tem-se que para configurar esta articulação a partir da história da
loucura o reconhecimento de que a vivência do ser louco é extremamente fundada sobre a
ambivalente condição de angústia em afirmar essa liberdade de ser ou de perdê-la. E no caso
da doença mental, a angústia e os mecanismos de defesa são vivenciadas de modo a aprisioná-
los literalmente e existencialmente. Por um lado, como uma experiência interna de
impossibilidades expressivas de ser quem ele é, do seu mundo profundo e interior, da ordem
10 As mónades são consideradas átomos da natureza, ou seja, elementos simples que compõem todas
as coisas. Cada mônada é, no entanto, distinguível das outras, possuindo qualidades que variam
unicamente por princípio interno, visto que, enquanto substância pura, nenhuma causa exterior pode
influir no seu interior. Não havendo partes em uma mónade, ela possui um detalhe múltiplo, envolve
uma multiplicidade na unidade e expressa o universo sob um determinado ponto de vista, ou seja é
dotada de percepção.
52
do não compreensível, dos mistérios do inconsciente e por outro lado, por um cotidiano
trancafiado em instituições totalitárias ou sedados por megas doses de psicotrópicos; com
poucos espaços ou nenhum para a expressão do seu ser, acontece que a angústia tem seu modo
próprio de se manifestar na experiência do adoecimento da alma. Vejamos:
Certamente, todo indivíduo sentiu angústia e erigiu condutas de defesa; mas
o doente vive sua angústia e seus mecanismos de defesa numa circularidade
que o faz defender-se contra a angústia com os mecanismos que lhe estão
ligados historicamente, que, por isso, exaltam-no ao máximo, e ameaçam
incessantemente fazê-la ressurgir. Em oposição à história do indivíduo
normal, esta monotonia circular é o traço da história patológica.
(FOUCAULT,1984, p.51).
Deste modo, tratamos desta temática por um viés psicológico e preponderantemente
artístico, mas não deixando de estar pautado na psicologia compreensiva e na arte
contemporânea, tecendo considerações e reflexões sobre a corporeidade e a relação com o
espaço na experiência real da loucura, em meio às tramas políticas, sociais e culturais, que
dão um caráter estético à existência. Por compreensiva entendemos as psicologias que se
propõem a uma escuta qualificada da angústia, do simbólico, dos sentidos e significados que
o ser humano atribui e relata em suas experiências. Por outro lado, sobre o caráter estético
existencial encontrado no mundo da loucura, entendemos que não seja algo estático e linear,
mas sim dinâmico e aberto, pois que a experiência sensível através das linguagens artísticas
possibilita mudanças e transformações no modo que lidamos com as coisas e com o mundo.
Entretanto, aprofundamos nossa presença no espaço interno do hospital, psicólogo e artistas,
cientes de que a melhora clínica do paciente não depende exclusivamente de uma ação artística
ou psicológica, depende de todo um contexto, o próprio hospital deve ter uma visão mais
ampla, humana, de respeito e aceitação. O doente está inserido numa sociedade problemática,
ele é com ela, não existe uma loucura do nada, ela passa a existir no social, posto que os
sistemas sociais se organizam de forma a colocar tais seres humanos em opressivas, restritivas
e sub-humanas condições. Nossa ação com a coligação dentro do hospital sempre foi voltada
a uma perspectiva estética e da arte, e não curativa, mas, como já foi apontado anteriormente,
não se pode negar o efeito terapêutico da arte.
Ao conviver paralelamente em ambientes institucionais distintos, o Departamento de
Artes da UFRN e o Hospital Dr. João Machado, que acolhem respectivamente as suas
demandas, estudantes de licenciaturas nas linguagens artísticas e pessoas em adoecimento
psíquico me instiga a pensar relações similares e antagônicas em que essas duas categorias se
entrelaçam, se encontram e se distanciam. No sentido mais amplo as culturas dessas duas
53
instituições também se entrecruzam no espaço interno da encenação, pois diversas vezes
travamos contato com estudantes e colegas universitários na condição de internos deste
hospital, ou ainda de seus familiares. Nos relatos do grupo de pesquisadores e da própria
vivência como aluno do Departamento de Artes, presenciamos casos de adoecimento dos
nossos colegas, de professores, funcionários ou familiares. Acredito que por tabu e receio de
discriminação, a temática de adoecimento psíquico na vida escolar não tem sido considerada
relevante e deste modo não problematizados entre a comunidade universitária. É fácil de
perceber o quanto desse universo de loucura está visível no cotidiano da UFRN até porque se
tornam fatos sensacionalistas nas conversas de corredores e salas de aulas e inclusive nas redes
sociais, seja em grupos abertos ou secretos. Imagino que os futuros professores irão entrar em
contato em suas salas de aulas ou escolas com algum tipo de loucura, então se faz mister saber
como lidar com a situação, mesmo não sendo um profissional da saúde, para sobretudo
quebrar o estigma que envolve a pessoa diagnosticada como louca.
Nesta direção nos propomos e refletimos enquanto artistas, educadores, cidadãos
sobre a qualidade política, afetiva e criativa neste espaço-tempo, que tipo de contato e de
relações estabeleceríamos com os internos e com a cultura da instituição, e esta foi se
estabelecendo ao longo dos dois anos no qual trabalhamos juntos. E, como pesquisadores,
precisaríamos conhecer, apreender e compreender o mundo vivido no Hospital Dr. João
Machado, ao mesmo tempo que nos inseríamos neste mundo como propositores de arte. A
priori entendemos que no mundo pesquisado há um modo preponderante em lidar com as
subjetividades da clientela da instituição pertinentes aos sintomas da loucura, quer seja
comportamental ou orgânico. Neste sentido o nosso olhar investigativo tem um caráter
reflexivo e meditante que nos faz apreender a experiência, dialogando com nosso interior e
com as intersubjetividades ao nosso redor, à medida que somos afetados e evocados para lidar
com situações singulares de nossa própria história de vida e com as situações intersubjetivas
diversas de impactos na experiência imediata com este mundo. Assim sendo acreditamos que
o modo como lidamos com os sintomas e encaramos a problemática da loucura está
diretamente ligado aos procedimentos metodológicos adotados, e que nossas ações artísticas
sempre estiveram imbuídas na promoção de espaços-tempos de abertura para que tais
problematizações fossem contempladas no próprio processo de criação, no contato com a
cultura do local e com a arte.
As Instaurações cênicas no hospital possibilitaram ambientações favoráveis a
socialização entre artistas e internos e na descoberta de um jeito criativo e cúmplice para habitar
o espaço real e cênico num modo colaborativo, meditativo e reflexivo. E ainda, podemos afirmar
54
sobre as ambientações cênicas instauradas que havia a visibilidade de outros mundos possíveis
nos espaços-tempos da loucura. Que o encontro dos corpos causava mudanças no som, nos
movimentos desses corpos, mudando uma atmosfera de controle e rigidez; transformando o
momento para uma outra atmosfera de despretensão e espontaneidade, trazendo potencialização
aos corpos onde, para os participantes, o fato de ser inútil ou útil torna-se irrelevante; à medida
que a produção artística vai surgindo de modo espontâneo e criativo, se fazia mister a utilidade
dos encontros para uma criação artística. Assim sendo, habitar o mundo dessas pessoas sem
pretensão de querer modificá-las, e sim de estar junto delas e com elas na perspectiva do
encontro e da criação artística trouxe e traz grande diferença na qualificação do espaço. Neste
sentido procuramos em nossa abordagem entendê-las como um ser de abertura, de
possibilidades, sem julgá-las. O fato de não as tratarmos como máquinas que precisam de ajustes
e controles implicou em considerarmos a condição de liberdade e de possibilidades dessas
pessoas em terem oportunidade de experimentar, improvisar e criar com consciência a arte e
reinventar a própria vida. Aproximando-se a uma das características da arte contemporânea o
entrelaçamento entre arte e vida, Cytrynowicz (1997) tece considerações que, neste querer ter
consciência, o ser humano pode descobrir-se em sua liberdade, tanto no que se refere à utilização
das coisas, como no seu próprio fazer-se no mundo. Pode, ainda, descobrir sua serenidade no
“inútil”, e não se angustiar para se tornar um objeto de utilidade para adequar-se às exigências
do mundo do “das man”.
A experiência artística no Hospital Dr. João Machado possibilitou uma escuta mais
íntima dos internos e comumente ouvir das pessoas internas a necessidade de serem tratadas
como seres humanos reconhecidos como iguais e capazes, e ainda como pessoas úteis e
necessárias para o convívio em sociedade, que podem lidar de modo satisfatório com as pessoas
e o trabalho, ou ainda, mais profundamente, de serem tratadas como seres livres e conscientes
para decidirem as próprias vidas. Contudo, a abertura para diálogos esteve pautada no contexto
de realidade e de possibilidades para uma consciência crítica por todos os participantes. Nos
espaços artísticos os internos podiam expressar seu senso crítico e exercitar o pensamento
atrelado a fala, ter o seu próprio discurso sobre a loucura, sobre o mundo institucionalizado no
hospital, tratamento recebido, os valores éticos e morais, personagens da realidade, os outros
internos, profissionais da saúde, da limpeza, da segurança, da administração, ou seja, em relação
com pessoas que atuam na cena real e as correlações de forças entre os que habitam de modo
sistemático o hospital em prol de uma abertura ou de um fechamento para uma vida mais digna
para os que sofrem por adoecimento psíquico.
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Deste modo, entendemos que nas instaurações cênicas se fez necessário uma atitude
colaborativa, compartilhada, reflexiva e meditativa por parte dos pesquisadores participantes,
alunos da UFRN. Uma efetivação positiva para esta prática artística requer dos organizadores
a preparação de um ambiente de aceitação e de abertura para que os internos participantes
possam se permitir a ser criativos e afetivos, e assim sendo, se permitirem a uma existência
num modo autêntico e próprio. Cytrynowicz (1997), sobre a psicologia clínica em uma
perspectiva fenomenológico-existencial, considera que a intervenção clínica deve possibilitar
um pensamento meditante para que se tenha abertura àquele, que em angústia, clama pelo
poder-ser mais próprio, de reconhecer-se como ser-para-a-morte, por se encontrar no
impróprio. A postura decidida do artista participante implica num modo próprio de se
propagar com sua arte e com seu corpo no espaço de pesquisa, que exige um corpo cênico e,
ao mesmo tempo, um corpo real. Esta habilidade foi por vezes questionada pelos artistas da
Coligação Cruor Arte contemporânea. Pela difícil tarefa em se responsabilizar pelos internos
enquanto seres institucionalizados, acredito que poderiam alguns internos, por exemplo,
aproveitar das práticas artísticas para escapulir do internamento e ganhar a rua. No entanto a
única vez que isso aconteceu, a atriz Emisandra Ribeiro foi ter com a fugitiva e estabeleceram
um diálogo, no qual a paciente se colocou na sua angústia e sofrimento, concordando em
retornar ao hospital somente se fosse de mãos dadas com a atriz; e dessa forma adentraram
novamente no hospital, obviamente com a concordância da paciente e com o apoio corporal
da atriz.
É relevante ressaltar a importância desta pesquisa tanto para a área artística como
também para a área de saúde mental, pois atuar nos espaços internos do Hospital Dr. João
Machado, como psicólogo e propositor de artes concomitantemente e em parceria com uma
Coligação de artistas, despertou a certeza de que a valorização de aspectos estéticos e artísticos
na prática clínica como psicólogo no hospital Dr. João Machado veio complementar e
consolidar com uma prática pautada numa visão compreensiva, contextualizada e não
alienante da loucura. A partir da compreensão de que não há separação entre humanidade e
mundo, entre corpo e alma, clínica e social e que a experiência estética é inerente ao ser
humano não importa a situação em que se encontre a partir do contato que temos com as coisas
e o mundo. Pois o ser humano, o ser louco, o ser criativo “é” no mundo, ele “é” no social.
Neste sentido a abordagem clínica fenomenológica existencial na contemporaneidade num
viés de clínica ampliada permite uma metodologia relacional que possibilita uma melhor
aproximação do ser humano em adoecimento psíquico e abertura para uma escuta ampliada
56
do cotidiano e da história deste ser através da arte contemporânea, o que foi realizado durante
toda o processo de criação. Desta forma,
ao trazer à discussão o caráter de abertura e histórico em que a existência se
constitui, conquistamos a possibilidade de uma reinterpretação da clínica
psicológica existencial. Primeiramente, ao deslocarmo-nos da ideia de que
os problemas existenciais dizem respeito a uma fissura na interioridade psí-
quica, pensamos que as crises são existenciais porque dizem respeito ao
ethos, espaço compartilhado, em que nos encontramos e que tem em sua base
um horizonte historicamente constituído. Assim passamos a inscrever novas
possibilidades na psicologia que se encontravam obscurecidas pelo pensa-
mento dominante. Essa apropriação de um outro espaço clínico, que vem
marcado por sua negatividade porque não dispõe de fundamentos teóricos e
práticos, consiste em acompanhar a possibilidade de que as transformações
existenciais ou metamorfoses possam acontecer e não que necessariamente
aconteçam. (FEIJOO, 2012, p.12).
E a isso, devo acrescentar ainda, a prática profissional pautada na psicoterapia
Biossistêmica e o sistema de desenvolvimento humano Biodanza que contribuíram para
pretensão de uma ação criativa e afetiva, artística e psicológica de caráter corporal,
compreensivo, interventivo e transformador no Hospital Dr. João Machado. Os criadores,
respectivamente, Jerome Liss e Rolando Toro, de tais abordagens de conhecimentos sobre os
sistemas humanos tiveram em suas bases epistêmicas um encontro aprofundado com o mundo
da loucura priorizando a experiência do mundo sensível. Deste modo se faz necessário apontar
essas experiências que são significativas no meu trajeto existencial, e que fundamentam
teoricamente o desenvolvimento da presente dissertação.
Rolando Toro11, antropólogo, psicólogo, poeta e dançarino chileno, em 1965 inicia
seus trabalhos com uma pesquisa de campo em um hospital psiquiátrico na cidade de Santiago
no Chile na intenção de investigar e compreender os efeitos neurofisiológicos e psicológicos
que a música e o movimento poderiam afetar na corporeidade do ser humano em adoecimento
psíquico. Assim sendo, Rolando Toro decidiu oferecer um método curativo não convencional:
a Dança; mas como uma dança para à vida, então: Biodanza, para o português Biodança.
Segundo Gonsalves (2010) os trabalhos vivenciais propostos por Toro foram
iniciados a partir de um pressuposto: o de que a dança e a música tinham força no tratamento
dos pacientes. Nesse caso, as alucinações e os delírios aumentavam e podiam durar diversos
dias. Doentes com uma identidade mal integradas dissociavam-se ainda mais quando faziam
certos movimentos. Verificando isso, Toro selecionou uma série de músicas e de danças que
poderiam reforçar o sentimento da própria identidade. Propôs também exercícios de contato
11 Sobre sua história consultar GONSALVES (2010) e TORO (2002).
57
para dar limite corporal e coesão interna. Ele, então, estendeu suas pesquisas para as pessoas
em geral, procurando uma intervenção na cultura, observando os estilos de vida adotados pelas
pessoas e determinados grupos e a relação desses estilos com a díade saúde-doença, que o
levaram a crer que determinados estilos de viver promovem expansão, alegria e saúde, outros
estilos acarretam retraimentos, opressão, tristeza e doença. Deste modo, as diversas posturas
corporais, gestos, tipos de caminhares, diferentes maneiras de se reunir e se encontrar em
rodas são experiências expressivas que podem revelar do mundo de sentidos e da psique do
ser humano interno inserido numa cultura antivida própria do ambiente manicomial. A partir
de uma metodologia vivencial, Rolando Toro criou o sistema de desenvolvimento humano de
reaprendizagem dos movimentos geradores e estimuladores de vida. A linguagem da dança
seria a via de conexão dessa aprendizagem. Porém, vale ressaltar a importância que Rolando
Toro deu em seu método vivencial a qualidade afetiva e criativa do encontro humano como
gerador de vida, o modo como os seres humanos se encontram para compartilhar de suas
experiências sensíveis, de suas subjetividades e para dar conta de suas questões e relações
existenciais, que seja através da arte e dos seus ritos são conteúdos profundos, importantes e
significativos desta metodologia.
Nesses encontros dançantes e corporais há ambientação favorável à qualificação,
aceitação e o respeito à vida humana como princípio para potencializar saúde emocional,
psíquica e física. Assim sendo, Toro criou exercícios corporais e situações vivenciais
associando músicas, selecionadas pelo ritmo, melodia, harmonia e intensidade ao movimento
dançante. Ele investigou de forma compartilhada com os docentes pesquisadores e
participantes do Sistema Biodanza num modo sistemático e fenomenológico, na própria
corporeidade, as diversas provocações e estranhamentos que diferentes tipos de músicas
associadas a determinados tipos de movimentos causariam no corpo-sujeito, ou seja, na
totalidade do ser humano.
Para Rolando Toro, em sua vasta obra, específicos gestos e movimentos corporais
potencializam experiências afetivas, criativas e vitais. As gestualidades e os movimentos
corporais vivenciados em aulas de Biodanza tem um valor significativo de conexão com a
existência do participante que estão implicados com a presença humana e caracterizam-se por
sua intenção de existir enquanto encontro com o outro e com o mundo. E ainda, esses
encontros dançantes deflagram sensações e emoções que integram a corporeidade ao ambiente
vivido.
Toro confere tanta importância a interação entre expressão corporal e vida
proporcionado pela dança, enfatizando claramente na seguinte observação:
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a minha proposta, no entanto, não consiste apenas nisso, mas na realização
de exercícios específicos, inspirados no significado primordial da dança,
estruturados a partir de gestos naturais do ser humano e destinados a ativar
a potencialidade afetiva que nos conecta a nós mesmos, ao semelhante e ao
universo. (TORO, 2002, p.14).
Assim, afirma que movimentos naturais como caminhar, saltar e espreguiçar-se e
gestos sociais como dar a mão, abraçar, embalar e acariciar, e ainda gestos arquetípicos,
constituem os modelos naturais em que se baseiam os exercícios de Biodanza. Assim,
Biodança significa a Dança da vida, e tem como pilares de sua teoria o Princípio Biocêntrico
e o Inconsciente Vital12, pilares que conforme Gonsalves (2010) que em sua perspectiva
biocêntrica Toro trata o corpo como um lugar pleno de expressões, sentimentos e sentidos do
mundo que permite o encontro da reflexividade e da comunicabilidade. Neste sentido o corpo
é bom para pensar, e assim afirmava que o sentimento, o pensamento e as emoções nascem
em todos os lugares do corpo. A partir do pressuposto da existência de um psiquismo celular
Rolando Toro desenvolveu o conceito de Inconsciente vital. Toro, ao longo de seus estudos,
fundamentou tais pilares procurando identificar os mais diversos tipos de danças desde os
tempos primitivos, considerando os gestos arquetípicos, os mitos, o movimento humano.
Nesse sentido, Toro (2002) considera os diversos aspectos da condição existencial humana -
cosmológico, biológico, psicológico, cultural - como inerente ao ato de dançar.
Pessoalmente creio em uma dança orgânica, que responda aos modelos
naturais de movimento do ser humano: movimentos capazes de incorporar
harmonia musical, gestos arquetípicos, feitos em profunda ressonância com
o cosmo. Procurei essa coerência e a encontrei. (TORO, 2002, pag.14).
Ainda para Toro (2002), a dança é um fenômeno presente nas relações sociais, como
via de comunicação e compreensão de si mesmo e do mundo, capaz de revelar ideias,
sensações e sentimentos e de dizer algo para o mundo e sobre o mundo.
Nessa linha de raciocínio, afirma que
entre os povos primitivos, ela (a dança) era uma modalidade de comunicação
para externar alegria e tristeza, para realizar celebrações e para exprimir
homenagens religiosas ou profanas. O processo de civilização contribuiu
muito para a morte desta manifestação da experiência da vida por meio do
movimento. (TORO, 2002, pag.14).
Para Rolando Toro, dançar a vida seria criar a própria dança, e criar a própria vida,
12 O Inconsciente Vital é um psiquismo que gera regularidades e mantém estáveis as funções orgânicas;
possui uma grande autonomia frente a consciência e ao comportamento humano; suas manifestações
durante a vida cotidiana são o humor endógeno, o bem-estar cenestésico e o estado geral de saúde
(TORO 2008:83 apud GONÇALVES, 2010, p, 53)
59
num sentido existencial vivendo movimentos plenos de sentidos, o ser humano seria a própria
dança. E ainda, nesta compreensão do pensamento de Toro, Gonsalves (2009): afirma “para
ser dança a pessoa precisa ter uma disposição interna, o tônus aberto, ser receptivo para
permitir que a música faça o seu caminho e o conduza para o estado cinestésico – vivencial”
, mas obviamente entendemos que também se pode dançar sem música, no entanto para a
Biodança a música é muito importante porque conecta as pessoas pelo ritmo.
Segundo Toro (2000), a ação terapêutica da Biodança implica a consciência de que
nosso estilo de vida pode conduzir a determinada patologia; neste sentido, a Biodança pode
ser considerada como um sistema de reeducação afetiva para as chamadas “doenças da
civilização”, as psicopatologias. Além da dimensão biológica e física do corpo, aspectos
emocionais e psíquicos são considerados para avaliação, prevenção e tratamento. A
intervenção é sobre a parte saudável do indivíduo.
Neste sentido acolhemos e aplicamos esses conhecimentos apreendidos no Sistema
Biodanza de Rolando Toro na vivência cotidiana ao lidar simultaneamente com os artistas e
internos participantes desta pesquisa no Hospital Dr. João Machado. No início desta pesquisa
ministrei aulas de Biodança para os artistas da Coligação Cruor em projeto de extensão com
pessoas da UFRN e da comunidade em geral. Os encontros vivenciados nas aulas têm um
caráter integrador e envolve um diálogo humano em que a corporeidade se torna a via de
trabalho principal de acesso para um encontro consigo mesmo e com os outros envolvidos na
vivência. Entendemos o movimento dançante em essência um movimento humano, pois o que
se vivencia é uma totalidade integrada em que o pensamento, o sentimento e a ação são
ativados e mobilizados de modo a promover uma compreensão do que está sendo sentido,
pensado e agido pelo ser humano ao vivenciar esses encontros.
As aulas de Biodanza tornaram-se uma oportunidade para os artistas da Coligação
integrarem as experiências criativas que desenvolveram ao longo de sua vivência estética e
artística em laboratórios e encenações de teatro e dança a seus conteúdos pessoais afetivos e
emocionais de sua própria história de vida. Entrar em sintonia pelo ritmo, melodia, encontros
de mãos, olhos, caminhar juntos acariciamento, abraços, dar colo, cuidar do outro, de si e do
grupo, ter a ideia de pertencimento, gestos de intimidade consigo e com o cosmos. São
exercícios vivenciais que foram se incorporando ao processo dos encontros no hospital para
propor as instaurações cênicas que depois foram montadas para a instauração cênica final. A
pretensão da Biodanza é que essas vivências sejam radicalizadas no cotidiano, e deste modo,
os participantes possam levar esses gestos para a vida real. E levo para o meu trabalho como
psicólogo e na coligação CRUOR com os artistas como procedimentos metodológicos para o
60
desenvolvimento da pesquisa.
Neste mesmo sentido, apliquei aulas de Biodança com os internos, e a ideia inicial
seria de integrar artistas e internos nessas aulas, que, de forma alternada, se dariam na própria
instituição Hospital Dr. João Machado e na UFRN. Contudo aconteceram apenas cinco aulas
destas, porque, como já apontado, foi em um momento em que o CRUOR precisou de uma
nova organização e configuração de pessoas, pois parte dos bolsistas não estavam
conseguindo se envolver com a proposta da pesquisa, e ao começarem a faltar muito foram
substituídos. Então resolvi, no hospital durante a pesquisa, improvisar, e experimentava criar
situações corporais fundadas nos exercícios vivenciados na Biodanza. E deste modo optei por
aplicar os princípios dos exercícios de Biodanza de uma forma diferenciada, em detrimento
de uma aula sistematizada com sequência e metodologia nos moldes do rigor de um padrão
de aula de Biodanza, por entender que loucos e artistas tem em comum outra lógica de se
conduzirem em suas atividades. Neste caso os loucos e artistas parecem não apreciar seguir
normas ou regras, preferem seguir orientação própria, quase sempre arrumam um jeito de
fazer as coisas do seu modo, e quando não conseguem, boicotam, ou saem da relação. Aprendi
com essas clientelas que as minhas intervenções não poderiam ter um caráter diretivo e
normativo que trouxesse a conotação de controle, mas ao mesmo tempo não poderia deixar
de estar presente e participar do processo junto, contribuindo, pontuando e intervindo na
terapêutica com eles; assim como no processo criativo dos artistas, junto aos internos, que
muitas vezes se constituiu em processo terapêutico com os artistas.
Deste modo, devido minha inserção como psicólogo e artista, é digno de nota a
consideração feita por Feijoo (2012) que na clínica existencial, o psicólogo analista apenas
participa, mas não comanda, nem determina, nem se posiciona. No entanto, a sua participação
é decisiva para que aconteça um jogo em que o analista e o analisando abram um espaço de
abertura para possibilidades que se encontram obscurecidas, para que essas possam
transparecer. O mesmo se deu no jogo da criação cênica neste trabalho.
A partir do exposto entendi que o desenvolvimento da pesquisa se daria na convicção
de que eu, no papel de psicólogo, deveria chegar no espaço interno do hospital com
disponibilidade corporal para interagir com eles, lançar e acolher propostas de forma sutil e
espontânea, como numa dança invisível de caráter dinâmico. Assim sendo, a pedido dos
internos que reclamavam de atividades diretivas, que não gostavam, o trabalho de grupo ou
individual no hospital passou a ser concretizado sem precisar normatizações rígidas. Eu
comecei a promover e estabelecer encontros espontâneos nos espaços verdes e abertos, onde
eles pudessem se sentirem com permissão para serem expressivos através do canto, da dança
61
e dos gestos.
Deste modo eles traziam suas músicas conectadas aos sentimentos e história de vida,
o que fazia com que espontaneamente se abrissem para falar sobre seus gostos e afetos e de
seus mundos de sentidos, saindo da atmosfera manicomial que nega a singularidade para tratar
todos de uma forma impessoal. Assim sendo, artistas e internos, ao participarem deste
processo de criação, se mobilizavam a partir de suas apropriações como ser humano para criar
saídas singulares, encontrando pontos de conexões entre terapia e processos de criação.
Ressalte-se que
para Heidegger (2006), são as tonalidades afetivas fundamentais que se cons-
tituem em uma atmosfera que promove a possibilidade de uma saída da restri-
ção e do estreitamento das possibilidades existenciais. Acontece que, na mai-
oria das vezes, tendemos a encobrir tais tonalidades. A tentativa de encobri-
mento da verdade do ser, ou seja, seu caráter de indeterminação, finitude e
vulnerabilidade, acaba acontecendo pela restrição de sentidos. Heidegger
(1958) pensa o cotidiano em uma perspectiva do comportamento mediano na
era da técnica, com o qual temos a impressão de que somos determinados,
temos o controle e que podemos viver imersos na novidade. Agimos de modo
a acreditar que a nossa vida nos pertence e que nada pode ameaçar nossa exis-
tência. E toda vez que temos o anúncio do incontrolável e do indeterminado
tendemos, no início e na maioria das vezes, a retornar à tutela do impessoal.
Acontece que quando as tonalidades afetivas fundamentais surgem e rompem
com as determinações sedimentadas, outras possibilidades são descortinadas.
E assim abre-se a possibilidade de uma saída singular. (FEIJOO, 2012, p.9).
Devo lembrar que nos primeiros anos de trabalho no Hospital eu fui designado para
atender a demanda dos setores feminino e pronto-socorro. Nos finais de semanas atendia a
demanda mista, ou seja, homens e mulheres. A falta de recursos técnicos e salas apropriadas
para um trabalho com os internos, em uma demanda individual ou coletiva em que muitas
vezes se fez necessário uma certa privacidade, me impulsionou a buscar na intuição e na
imaginação recursos criativos e de improvisos para lidar com a demanda de sofrimento,
amargura, tristeza, decepção e abandono e, ao mesmo tempo, a necessidade de expressar suas
angústias e falar de si, de seus mundos de sentidos, de sonhos, gostos e desejos me fez criar
espaços imaginários com os internos. E assim devido à falta de estrutura e de espaços privados
instaurávamos um jogo cênico de locais imaginários e pactuávamos em um jogo de
imaginação o nosso espaço sério, digno de respeito e de segurança para uma fala própria e
secreta. Esta sala ficou sendo chamada como a sala da escuta terapêutica imaginária. E deste
modo, numa prática sistemática e constante, os pacientes começaram a compartilhar das regras
e procedimentos deste jogo, respeitando o espaço-tempo de cada um; e quando algum interno
desrespeitava as regras os outros logo orientavam os procedimentos para o atendimento.
62
Outra metodologia significativa eram as rodas de encontros, aparentemente não
intencionadas, mas que de forma espontânea se concretizavam numa proposta de grupo. Nos
primeiros contatos eu os provocava cantando uma música que tivesse significado afetivo e
conexão com minhas emoções, ou que tivesse a ver com as histórias que eram narradas e, na
maioria das vezes, eles que traziam suas músicas e seus gestos. O aprender a ouvir e a olhar
quando um estivesse se expressando, e a liberdade para se expressar e dar descontos aos que
estavam ainda descompensados e desestruturados pelos surtos, foram práticas construídas e
absorvidas durante nossos encontros.
Nos atendimentos individuais, quase sempre utilizo canções como recurso para criar
uma atmosfera descontraída e amena, porém de segurança afetiva; os internos quase sempre
trazem em sequência outras canções, de modo a me procurar pelos corredores do hospital de
forma vinculada e afetiva para falar ou cantar alguma música que lembrou, ou que gosta, ou
uma música que já cantamos em um outro internamento da pessoa atendida. Acontecia que
alguns tinham em suas trajetórias a arte como memória, algo significativo e valoroso para si,
a arte como potencial criativo de seu ser, uns cantavam, dançavam ou brincavam com sons,
outros pediam para desenhar. E nesse acontecer os internos abriam espaços para suas
expressões artísticas e para falar de si, dos seus amores, dos filhos, do casamento, do trabalho,
do tempo da escola, de alguém que há muito tempo não se lembrava. Num sentido terapêutico,
podemos dizer que a pessoa se acalmava e percebia-se uma tendência a se reestruturar nas
relações com os outros e com o espaço de internamento, na medida em que vivenciava um
processo de criação artística.
Neste sentido as canções confirmam de forma significativa a humanidade do ser, e a
clara convicção de que ainda há um ser humano presente e a importância e o valor social da
arte, pois
podemos dizer que a música, tal como a literatura, é o sonho acordado das
civilizações. Assim como não há equilíbrio psíquico sem o sonho durante o
sono, talvez não seja possível haver equilíbrio social sem música e literatura
e, mas modernamente, sem canção – o encontro híbrido de música e
literatura, posto ser, no mínimo e simultaneamente, melodia, voz e letra.
Como formas de imaginação criadora, essas linguagens operam como
fatores indispensáveis de humanização, pois confirmam o homem na sua
humanidade. Inclusive porque, em sua dimensão de linguagem, atuam, em
grande parte, inconscientemente. (ANDRADE, 2010, p.68).
Incorporamos outras estratégias utilizadas em nossos encontros em que os corpos se
agrupavam em uma ação criativa conjunta e que instaurávamos encontros terapêuticos e
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cênicos são: a Feira da Sulanca13, os cortejos artísticos e as apresentações musicais que
ocorriam de forma improvisada a partir de iniciativas ou minha, ou dos internos. Nos dois
anos de desenvolvimento desta pesquisa de forma mais estruturada com a presença dos artistas
que traziam uma propostas de vivência três vezes por semana, à tarde das 14:00 às 18:00 horas
e posteriormente nas aulas de DanceAbility, ministradas no DEART, na UFRN, sendo os
pacientes transportados do hospital para este local nos carros particulares dos profissionais
envolvidos:o meu, o da orientadora deste trabalho e da terapeuta ocupacional do Hospital, a
Maria Goreti de Albuquerque Medeiros, pois não foi atendida à solicitação através de ofício
a UFRN para o transporte dos internos.
A Feira da Sulanca do setor feminino foi utilizada como uma tática para minimizar
os confrontos decorrentes de apropriações indevidas de objetos pessoais entre elas.
Historicamente os funcionários faziam vistorias nas bolsas das internas para identificar os
objetos desaparecidos, o que considerávamos uma prática invasiva. Com o estabelecimento
desta dinâmica, os objetos desaparecidos eram expostos pelas próprias internas, simulando
uma feira e naturalmente os objetos iam sendo identificados por elas e devolvidos às
verdadeiras donas num clima pacífico, descontraído e alegre.
Os cortejos pelos espaços internos do hospital foram recursos utilizado para minha
saída do setor feminino no final de expediente, pois era difícil fazê-las entender o momento
da separação, sempre alguma me grudava pelo braço ou todas queriam ir junto para fora do
espaço interno. Assim entendi que se fosse em forma de Cortejo, cantando e dançando até a
porta de saída do setor, elas poderiam deixar-me sair, aceitando a despedida, onde eu podia
abrir e fechar a porta, tornando-se esta ação uma prática constante.
Através da inclusão da arte na escuta clínica novas possibilidades de vinculações e
abertura de espaços para que os internos conduzissem suas próprias necessidades existenciais
e expressassem seus gestos, seus sons, suas falas e canções, procurando fazer parte da melodia
e do ritmo, dando contornos, integrando os limites, criando e fortalecendo vínculos de
confiança e de afetos na relação.
Os materiais criativos trazidos pelos internos para os nossos encontros são de
extraordinária riqueza de potencial artístico. Em nossas rodas de encontro promulgamos a
cultura de aceitação e reconhecimento de todos como seres humanos, sem julgamentos,
porém, pautadas no respeito e na compaixão. Pois para este momento de integração não
13 Feira organizadas para vender produtos populares de fabriquetas e importados e/ou roupas com
tecido de uso popular barato.
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tínhamos intuito de críticas e nem de exclusão. Procurava ter nos bolsos da roupa lápis de cera
e papel pois quase sempre alguém queria se expressar por essa via, escrever algo ou desenhar.
Deste modo os internos narravam suas histórias também em narrativas poéticas e musicais.
Esta interação pessoal com os internos me fez pensar na potência curativa que encontros entre
internos e artistas poderiam proporcionar e assim nos propomos a experiência destes encontros
e assim convidarmos o grupo de artistas para estar nesse encontro foi uma consequência
natural do processo.
É deste encontro que se trata o cerne e eixo central desta dissertação, envolvendo
internos e artistas em práticas de Instaurações Cênicas; nos mobilizamos com o pressuposto
de que o encontro entre essas duas humanidades, o ser criador e o ser que adoece em loucura
em um ambiente de abertura para o pensamento criativo seria algo de grande valia no processo
de vida de ambos, aprendizagens e reflexões para a vida profissional e pessoal.
Para tanto, nesta pesquisa, discutimos a relação de corpo, espaço e movimento em
um ambiente carregado de cargas emocionais e expressivas em que a vulnerabilidade e
fragilidade da condição existencial humana são exacerbadas e se revelam. Em ressonância e
consonância com o pensamento sistêmico de Rolando Toro e o pensamento Fenomenológico
Existencial, trago para esses encontros artísticos os conhecimentos das psicoterapias corporais
apreendidos principalmente na formação clínica da Biossistêmica, uma das abordagens
psicocorporais, elaborada sistematicamente por Jerome Lisss, Maurizio Stupizzia e Rubens
Kignel e no Brasil divulgada e ensinada por Ana Patrícia Sá Leitão, em seu Instituto
Psicossomático (IPS) em Natal-RN, local onde fiz minha formação.
Foi problematizado o fenômeno da corporeidade no “hospício” a partir da observação
e vivência interativa relacional dos corpos, dos espaços e da movimentação, percebendo esses
corpos em ações corporais e partituras físicas na ocupação dos espaços, visando à criação da
encenação (Lou)Cure-se!!!. Com este objetivo, a vivência em dança, em psicoterapia corporal
e psicologia fenomenológica existencial nos impulsionou o olhar em busca de compreensão
desse corpo ser humano, corpo de louco por ânsia de vida, corpo louco pela possibilidade de
existir, de não ser coisa, de não ser objeto, mas de ser reconhecido e visto, aceito e sentido na
presença de outros seres humanos, para troca de energia e encontros afetivos. Neste sentido
entendemos que para encontrar-se com os internos do hospital seria essencial estar atento as
linguagens do corpo, pois,
o processo não-verbal nos levará ao estudo de signos e símbolos, que servem
de mediadores entre consciente e inconsciente e, nos primeiros anos de vida,
de formadores da consciência acompanhados de suas sintonias de afeto.
Nesta perspectiva, a ideia de organismo, corpo e afetos parte do pressuposto
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de que estamos num fluxo inestancável de informações organizadas e
desorganizadas transmitidas em diferentes níveis de comunicação,
influenciando o meio ambiente de forma coerente ou incoerente. Este
processo nos levará a experimentar a possibilidade de conexão entre
organismo e palavra, tantas vezes dissociadas, distorcendo nossa capacidade
mais eficiente de comunicação. (KIGNEL, 2005, p.59).
Partir da compreensão de que por esses corpos transitam processos, memórias,
histórias que o presentificam no modo como se revelam, possibilitando uma pesquisa a partir
da aparência que se revela na cena, na fala aparente, em direção ao que o interno expressa
gestualmente, pois só assim poderíamos entrar no contato mais profundo, de sentidos
eminentemente humanos.
De acordo com Kignel (2005, p.51), o espaço interno do corpo, sua fisiologia, sua
cinestesia, fazem parte de um desconhecido interno que, quando percebido, torna-se
imediatamente expressivo. Os músculos, a face, a pele, a voz, conforme afirma Gil (2004),
esquematizam o sentido dos afetos e pensamentos. Nessa esquematização aparece uma figura
representada no exterior que lhe dá um sentido ou uma ideia do sentido. O espaço interno do
corpo, o não visível, permite que o pensemos como inconsciente ou não consciente, algo não
vivido ou a ser vivido, que por meio de intensidades e forças se revela nas posturas de um
corpo habitado.
É muito importante para a compreensão desta pesquisa o fato de que a partir do
reconhecimento do corpo como trajeto de emoções, memórias e de vida de sensações e
relações é fundamental apreender os princípios dos processos relacionais em um encontro
entre dois, ou mais seres humanos em um processo terapêutico numa abordagem
psicocorporal da Biossistêmica, que acontece entre psicólogo e cliente. Pois no transporte
dessa ação para nossa pesquisa, configurada no processo como encontros para instaurações
Cênicas na tessitura de um roteiro para uma instauração cênica final; podemos entende-las
como as relações dadas entre os artistas da Coligação Cruor e internos do hospital psiquiátrico,
nos encontros. Neste sentido foram utilizados os seguintes conceitos: ressonância, sintonia
e empatia. Que cito a partir dos apontamentos das aulas que assisti do Rubens Kgnel14, citação
14 Doutor em Disciplina Semiótica e Comunicação pela Universidade de Bolonha e mestre em
Comunicação e Semiótica pela PUC-SP. É professor em diversas escolas no Brasil e professor visitante
na Scuola di Specializzazione in Psicoterapia Biosistemica, no Japanese Institute of Bio Integral
Psychology, na Scuola Italiana de Psicologia Funzionalli e na Ecole de Psicologie Biodinamique. É,
desde 2010, presidente da Associação Brasileira de Psicoterapia e pesquisador do LinC - Laboratório
de Estudos em Inteligência Coletiva e Biopolíticas.
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esta que apesar de longa se faz necessária para o esclarecimento do que estamos nomeando
como encontros e trabalhos com o(s) duplo(s):
RESSONÂNCIA não é mágica, é aprendizado, é aprender a lidar com seu
extrassensorial, ressoar dentro de si o que, em parte, acontece dentro do outro,
na experiência do outro. Ressonância não é igual, ela é aproximada. O
Espelhamento é uma forma de ressonância, espelhamento não é perfeito, é
aproximado. É importante ter consciência dessa coisa aproximada e não
perfeita. É um veículo de contato. Importante saber que INTUIÇÃO não está
no campo da SENSAÇÃO, mas da PERCEPÇÃO. Ressonância vem de
ressoar Diapasão – vibração. Quando entra alguém na sala podemos sentir
diversas possibilidades de sensações. A Ressonância está dentro do campo
energético. Está na relação entre os seres humanos. A Ressonância passa
pela experiência vivida.
SINTONIA estar no mesmo tom, na mesma música, no mesmo processo
musical. Estamos juntos tonicamente é mais do que ressonância, é dançar
bem juntos. Rubens cita o exemplo do filme O Lado bom da vida, que retrata
um paciente com Transtorno Obsessivo Compulsivo (TOC), a cura passa
pela sintonia. Exemplo para Sintonia – o maestro pode estar nervoso, mas
faz os músicos tocarem a música corretamente, mas se tiverem em
ressonância vai haver mais harmonia.
EMPATIA – Sensorial mais refinado que a sintonia e a ressonância. Estar
empático é estar em compaixão com a outra pessoa. (No Cristianismo, você
está sofrendo, eu estou sofrendo com você. Rubens diferencia compaixão de
comiseração). A compaixão é uma sensação refinada, você está sofrendo, eu
estou junto com você, mas não estou sofrendo com você. Refinada neste
ponto: eu estou com você, mas não preciso sofrer com você.
(Empatia tem = in; pathos = sentimento). Sentir exatamente o interior do
paciente, identificando-se com ele, sentir as emoções que o dominam
constitui o momento de contato preliminar é a base de todo trabalho
subsequente, constituído pelas outras quatro fases. Esse momento de insight
positivo por parte do terapeuta, livre da ótica da análise e do juízo
psicodinâmico, permite ao próprio paciente entrar em contato mais íntimo e
emotivamente mais intenso com o seu próprio problema, fazendo com que
ocorra uma definição mais rápida. É importante observar que a conexão
empática difere da empatia Rogeriana que com outras palavras tenta-se dizer
as mesmas emoções.
Se fez necessária esta compreensão para podermos desenvolver efetivamente um
trabalho no hospital pois ao adentramos o espaço do hospital é preciso estabelecer uma
conexão empática com os internos. E neste primeiro momento o que estou conceituando como
Conexão Empática é o momento importante para criar a sensação empática de estarmos
juntos, de que o paciente não se sinta sozinho. De que existe um encontro. Você não está
sozinho! Vamos buscar compreensão juntos. Assim temos que ter uma postura de sintonização,
assumirmos uma postura mais ou menos parecida com a do cliente. E deste modo, podemos
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fazer uma viagem junto, no encontro dado, em busca de esclarecer e compreender o processo
desse encontro. Porque se não estamos juntos não poderemos intensificar o processo. E nesta
conexão empática vamos corporificar a palavra-chave e intensificar o processo. O que o
paciente está dizendo, precisamos nos aprofundar nas palavras, se implicar saber o que é que
ele está querendo dizer com aquelas palavras. E finalmente chegarmos a uma FASE DE
COMPREENSÃO: Para que nós possamos criar uma conexão empática precisamos
aprofundar nas palavras para esclarecimentos e poder compreender. Essa mesma lógica foi
seguida pelo grupo de artistas no desenvolvimento do trabalho artístico, com os encontros no
hospital, até se chegar a instauração cênica final.
A partir da compreensão da abordagem Biossistêmica entendo que se faz importante
uma conexão empática, entrar em sintonia e ressonância com os internos. E observar os jeitos,
os movimentos involuntários para que possa capturar os gestos e movimentos, e assim
podemos até mesmo repetir com ele os gestos na busca de uma sintonia, desde que não se
torne desrespeitoso ou caricato.
Aqui cabe ressaltar a experiência com Martins um dos internos que já está há um ano
no hospital psiquiátrico, de alta e a família não vem busca-lo. Martins é um provável candidato
a morador do hospital. Martins é um senhor que aparenta uns 55 anos, mora em uma cidade
pequena e distante do hospital. Martins fala com dificuldades, mas é rico em gestos e sons, no
início dos encontros com os artistas, Martins tinha uma cara rústica, séria e ameaçava bater
nas pessoas com murros ou objetos, em todos indistintamente, se mostrava até certo ponto
violento. As internas não queriam participar de ações com Martins, mas sua vontade e sintonia
com os artistas foi de imediato, todos se afinaram com ele. E Martins em empatia, sintonia e
ressonância manteve e mantem uma boa conexão com a coligação. Percebia e ouvia dos
funcionários do hospital indagações sobre o porquê de o grupo de artistas aceitar aquele
homem e trabalhar artisticamente com ele. Ele participou de forma ativa dos passeios de
campo, das aulas de DançaAbility, das instaurações e é ator na instauração cênica (Lou) Cure-
se!, atuando desde a recepção do público até contracenar com a atriz Emisandra Ribeiro dos
Santos; na cena intitulada Cena 09: “Janelas & Cortinas”, que acontece no pátio em frente o
auditório, na qual os dois artistas fazem um desenho e recitam um poema.
É digno de nota a relação de ternura que foi se estabelecendo entre Martins e Camile
Suellen Dantas de Andrade, que a princípio me preocupou pela profundidade afetiva entre
eles. Por não conhecer Camile, que acabava de entrar na Coligação. Houve uma ótima conexão
empática não só entre ele e Camile mas entre todo o grupo. As pacientes e funcionários do
hospital passaram a dar o mesmo tratamento terno e respeitoso que nós dávamos a ele. Todos
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entenderam que Martins precisava ser compreendido de forma afetiva e aceito. Os gestos de
Martins aos poucos vêm se ampliando e se diversificando e sua expressão verbal também,
quando os artistas o conheceram ele não conseguia se expressar verbalmente. Camile precisou
se ausentar da Coligação, Martins sentiu, mas como uma criança logo percebeu que o afeto
por ele vinha de todos. É gratificante ver Martins com seu corpo decidido em cena,
compreendendo que é um ator. Entendo que esta possibilidade foi dada a partir da experiência
com Biodanza e Biossistêmica, pois a metodologia vivencial me permitiu um acesso ao
sensível de cunho fenomenológico no sentido de que cada participante quando se entrega a
vivencia dançante e se permite ao encontro consigo mesmo e com o grupo acontece um
momento singular de encontro com o fenômeno da sua própria existência. Sensações,
memórias e emoções são acessadas pela via da corporeidade que permite ao ser humano saber
de sua experiência com o mundo sensível, saber de seus gostos, desejos, do que lhe é agradável
ou desagradável. Neste sentido uma intimidade com seu corpo. No sentido existencial
profundo visto que ao se entregar ao fenômeno de dançar a própria vida o participante se
depara sempre com a vivência angustiante da escolha. No entanto, a priori essa escolha de
Martins se deu pela via do acesso sensível com a vivência juntos os artistas da Coligação
Cruor Arte Contemporânea.
Um outro estudo significativo sobre a loucura, arte e saúde mental, e norteador desta
pesquisa, são os construtos teóricos encontrados nas obras desenvolvidas pela psiquiatra
brasileira Nise da Silveira, que em sua trajetória de vida adotou uma postura de enfrentamento
aos maus tratos dados aos pacientes denominados esquizofrênicos e sua proposta ativa incluiu
a arte como via de superação e desmistificação da doença mental. Vejamos:
na década de 40, Nise da Silveira, psiquiatra brasileira, inconformada com
os métodos de tratamento em uso na época, busca novas formas terapêuticas
para os internos do Centro Psiquiátrico Nacional de Engenho de Dentro,
onde trabalhava. Sua sensibilidade apontava para outros caminhos que não
fossem o coma insulínico, ou o eletrochoque, que provoca crises convulsivas
e perda da consciência. Ela não conseguia aceitar tais práticas. (MELLO,
1990, p.7).
O trabalho artístico terapêutico desenvolvido por esta investigadora em sua prática
profissional cotidiana, junto com o crítico de arte Mário Pedrosa; sem dúvida não buscou
inspiração na psiquiatria predominante de sua época, caracterizada pela escassa atenção que
concedia aos fenômenos intrapsíquicos. Nise da Silveira caminhava em sentido diferente, pois
era convicta em seu interesse e desde cedo sua atitude pessoal se dirigia no sentido de encontrar
novos caminhos que acessassem o mundo interno dos esquizofrênicos. Ela aponta que
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em 1907, aos 32 anos de idade, Jung publicou um livro com o significativo
título de A Psicologia da Demência Precoce, onde se unem observação
clínica e experimentação. Nesta obra, é defendida pela primeira vez a tese
de que, na demência precoce (esquizofrenia), todos os sintomas poderão ser
compreendidos psicologicamente. Apesar de absurdos, incongruentes, os
delírios encerram significações e também os neologismos, gestos,
estereotipias, não são vazios de sentidos. (SILVEIRA,1981, p.93).
Nise da Silveira se motivou a buscar coerência entre teoria e prática e uma atenção
humanizada aos doentes mentais em sua vivência hospitalar, sem o peso da opressão que a
psiquiatria vinha comumente destinando aos pacientes. E assim, o encontro com as teorias de
Carl Gustav Jung sobre o psiquismo e sobre a demência precoce, é algo significativo que
desperta profundo interesse nesta pesquisadora. Em suas palavras:
o mais importante acontecimento ocorrido nas minhas buscas de curiosa dos
dinamismos da psique foi o encontro com a psicologia junguiana. Jung
oferecia novos instrumentos de trabalho, chaves, rotas para distantes
circunavegações. Delírios, gestos, estranhíssimas imagens pintadas ou
modeladas por esquizofrênicos, tornavam-se menos herméticas se estudadas
segundo seu método de investigação. E também não lhe faltava o calor
humano de ordinário ausente nos tratados de psiquiatria. (SILVEIRA, 1981,
p.11).
A tese básica de Jung de que os sintomas da esquizofrenia são compreensíveis e
tratáveis a partir dos fenômenos psicológicos, é um pensamento que simbolicamente aponta e
clareia os caminhos metodológicos que a pesquisadora e médica Nise resolve assumir em sua
observação e prática clínica imbuída em entender o mundo interno dos seus doentes, e nos
afirma:
aconteceu que dirigi (1946-194) a seção de terapêutica ocupacional no
Centro Psiquiátrico Pedro II, Rio de Janeiro. O exercício de múltiplas
atividades ocupacionais revelava, por inumeráveis indícios, que o mundo
interno do psicótico encerra insuspeitadas riquezas e as conserva mesmo
depois de longos anos de doença, contrariando conceitos estabelecidos. E
dentre as diversas atividades praticadas na nossa terapêutica ocupacional,
aquelas que permitiam menos difícil acesso aos enigmáticos fenômenos
internos eram desenho, pintura, modelagem feita livremente. (SILVEIRA,
1981, p.11).
Aproximações entre a Psicologia, artes e as ciências antropossociais possibilitavam
aos estudiosos abertura para novos olhares e novos pontos de vistas no entendimento da
loucura, para além da psiquiatria clássica da época. E Nise da Silveira nos confirma a
importância em conhecer artes, mitologia, filosofia, história das religiões, história da
civilização, psicologia dos primitivos para entender e lidar com as emoções humanas e os
fenômenos do mundo da loucura. Assim,
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na escola viva que eram os ateliers de pintura e de modelagem, a escola que
eu frequentava cada dia, constantemente levantavam-se problemas.
Dificuldades que conduziam a estudos apaixonantes e muitas vezes
tornavam necessária a procura de ajuda fora do campo da psiquiatria – na
arte, nos mitos, religiões, onde sempre encontraram formas de expressão as
mais profundas emoções humanas. (SILVEIRA, 1981, p.11).
Assim sendo, entendemos que no trajeto de vida que esses dois pesquisadores
percorreram, há entre eles afinidade e identificação sobre a importância dos saberes da arte e
da psicologia na compreensão e desconstrução da loucura. A arte e a psicologia
interconectadas possibilitam uma comunicação sensível que facilita uma melhor aproximação
e integração entre os internos e os profissionais envolvidos.
E neste ponto é importante lembrar que
a influência de Jung é muito marcante nas artes, por seu entendimento de
que a criatividade é uma força positiva única e pessoal. Jung alertou para a
força das imagens e a tremenda carga psíquica de que podem estar possuídas,
influenciando nesse sentido, até mesmo a psicanálise, apesar de a mesma
tradicionalmente ter valorizado a palavra em detrimento da imagem. Como
vimos, ele tinha um grande sentido visual das coisas e considerava que a
criatividade artística tenderia a ativar e expor o material inconsciente,
levando a uma harmonização da psique. (BORDEN, 2001, p.52).
Desta maneira nesta pesquisa de cunho artístico, colaborativo e compartilhado no
Hospital Dr. João Machado sobre a loucura articulamos conteúdos da psicologia
fenomenológico-existencial, o pensamento de Nise da Silveira, vertente da Psicologia
Analítica conectados ao conceito de Instauração Cênica na arte contemporânea, desenvolvido
pela orientadora desta dissertação em sua tese de doutorado, a qual conceituarei no capítulo
três.
Deste modo adentramos o espaço interno do Hospital imbuídos de que a vivência
artística possibilitaria aos internos um encontro compreensivo e afetivo com a sua história
individual e com o outro, a partir de suas próprias apreciações estéticas e psicológicas; e este
encontro nos levaria a esboçar um roteiro final para cenas a serem apresentadas ao público
como obra artística. Tínhamos ainda o objetivo de ter um espírito de compreensão e aceitação
da clientela interna como participante da experiência vivida, além de qualificar a atenção aos
pacientes e possibilitar movimentos corporais que tivessem uma motivação interna e
intencionalidade própria da singularidade.
Neste aspecto de intervenção, a ação artística possibilitou aos internos do Hospital
Dr. João Machado, durante o processo criativo, imaginar cenas e situações, escolher cores,
preferir cantar uma música ao invés de outras, escolher ficar no ócio apenas junto aos artistas,
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e espontaneamente relembrar um passado com saudosismo, e deste modo as apreciações e
construções estéticas expressas são exposições de si mesmo para o coletivo.
A intervenção artística neste sentido caracteriza-se por um movimento pleno de
intencionalidade artístico na contracultura deste lugar, e no posicionamento de contracultura
do CRUOR Arte Contemporânea15; haja visto que o hospital é caracterizado por uma cultura
de coerções, controles e opressão. Um ambiente repressor tem seu traço impositivo sobre os
seus habitantes que os induz a uma existência mecânica desprovida de compreensão. Em
sentido oposto, as práticas artísticas promovem compreensão e abertura para a experiência
criativa e para a improvisação do uso do corpo, no espaço em um tempo dado, pois esta ação
só acontece com a presença dos artistas; muitas vezes os vigilantes tomaram os pedaços de
giz de cera e papéis dados aos pacientes para que guardassem e pudessem desenhar livremente
quando fosse de seu desejo.
A partir dessa experiência estética vivida no Hospital Dr. João Machado, onde
compartilhamos sonhos, desejos e sentimentos com os internos, presenciamos tantas restrições,
escutamos queixas sobre proibições, direitos negados e burlados, ouvimos gritos de clamores
por liberdade. E nesses vínculos criados a lembrança da voz de Daniel Felipe, um dos internos,
que por vezes expressava o seu pedido de liberdade ao grupo de artistas: “Eu quero meu
harbeas corpus, e ter minha liberdade para ir e vir, e ter de volta o meu poder de decisão”.
Daniel, ao falar sobre loucura e sua relação com o mundo psíquico, revela não apenas aspectos
míticos e simbólicos como também aspectos antropossociais da realidade imposta a condição
de ser da loucura.
Ser artista e ser louco, ou ser louco e ser artista são associações do senso comum que
tendem a rotular a imagem do artista a loucura e a do louco a arte, e podemos identificar nessas
considerações incutida a ideia de que eles são seres diferenciados, que destoam das pessoas
consideradas normais, ora elogiados e ora discriminados. É comum ouvir no cotidiano que
todo artista tem um quê de louco, ou ainda associar ao louco um saber mágico sobre o mundo
ou as pessoas, e que todo louco é dotado de abundância criativa e habilidades artísticas. São
falas que refletem fantasias do imaginário social que aparentemente podem ser considerados
como supérfluos, no entanto são conteúdos para compreensão dos aspectos psicológicos do
ser humano pertinentes à loucura e as artes. Isso nos faz pensar no valor da imaginação e da
fantasia que paralelamente a racionalização são faculdades que levam a suposições de peso
15 Neste sentido consultar o artigo “Uivo, Eu Quero É Botar Meu Bloco Na Rua e Cruor Arte
Contemporânea: Reverberações Contraculturalistas na Arte” de Felipe Monteiro publicado na revista
Repertório, Salvador, nº 23, p.157-168, 2014.2
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sobre a loucura que interferem no modo que as sociedades tratam as pessoas ditas loucas.
Deste modo adquirimos e construímos conhecimento sobre a loucura não apenas nas narrações
científicas, distantes e frias, mas também nas narrações míticas que trazem impactos e nos
aproxima da dimensão sensível, com sensações corporais empáticas ao sofrimento e as
injustiças vividas pelos que sofrem de alguma loucura.
Retomando o psiquiatra Carl Gustav Jung (1875 – 1961), Criador da Psicologia
Analítica, este, ao investigar a relação entre a Psicologia e a Arte, considerou, em seu livro O
espírito na arte e na ciência, o fato de a arte, em manifestação, ser uma atividade psicológica
e, como tal, pode e deve ser submetida a considerações e cunho psicológico. No entanto,
acrescentou a especificidade do conhecimento produzido no campo da arte, considerando que
apenas aquele aspecto da arte que existe no processo e criação artística pode
ser objeto da psicologia, não aquele que constitui o próprio ser da arte. Nesta
segunda parte, ou seja, a pergunta sobre o que seja a arte em si, não pode ser
objeto de considerações psicológicas, mas apenas estético-artísticas. (JUNG,
2013, p.65).
Então, ao ter contato com esse mundo e pesquisá-lo em busca de compreensão das
relações interpessoais presentes da corporeidade expressa, e do modo como lidam com o
tempo e o espaço, fez-se necessário transcender o olhar clínico da psicologia tradicional sobre
o lugar e as pessoas que lidam e vivenciam um transtorno mental, e abrir espaço existencial
para pensar a arte como caminhos para compreender e refletir as cenas e diálogos ali presentes.
Sobre psicologia e arte, nos interessa o sentido da obra, pois de acordo com Jung
para fazer justiça à obra de arte, a psicologia analítica deverá despojar-se
totalmente do preconceito médico, pois a obra de arte não é uma doença e
requer, pois, orientação totalmente diversa da médica. O médico tem que
pesquisar as causas de uma doença para extirpar, se possível, o mal pela raiz,
o psicólogo, porém, deve adotar uma posição oposta em relação à obra de
arte. Com relação à obra de arte é supérfluo investigar o condicionamento
prévio a que estão sujeitos todas as pessoas em geral. É preciso perguntar
pelo sentido da obra. (JUNG, 2013, p.71).
Neste sentido abordamos a história da loucura não apenas pelo viés científico, mas
também pelo viés artístico, por entendermos ser importante a experiência sensível do louco
como via de acesso de conhecimento sobre a loucura. A vivência criativa nos possibilita
visualizar situações inexistentes e incorporar imagens internas que influenciam no modo como
pensamos, sentimos e agimos, o que nos coloca em abertura para acessar possibilidades
existenciais que estão bem para além da experiência imediata de privação e opressão. E deste
modo, nesta dissertação, entendemos que na arte e na ciência há linguagens distintas que
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podem mutuamente contribuir para uma produção de sentidos sobre a loucura e na proposição
de processos criativos, neste caso a instauração cênica (Lou)Cure-se!!!.
Desta maneira, nesta pesquisa ação, considera-se que a vivência sensível nas artes e
o pensamento estético do artista pesquisador da Coligação Cruor Arte Contemporânea
contribuiram significativamente para uma compreensão ampliada e diferenciada do olhar
tradicional da pesquisa clínica sobre a loucura, sobretudo trazendo um viés artístico,
colocando uma obra artística à disposição do público interessado em Artes Cênicas. A
presença performática do artista, sua entrada cênica, postura corporal flexível e sua proposição
artística de natureza criativa e sensível trouxe ideias, sentimentos e novidades a rotina
monótona do hospital, promovendo uma verdadeira revolução artística todas às vezes que
artistas e público adentram o hospital com a obra já citada, da qual se ocupa o próximo
capítulo.
74
CAPÍTULO III – NO HOSPITAL UMA INSTAURAÇÃO CÊNICA ACONTECE:
(LOU) CURE-SE!!!.
(Lou) Cure-se!!!
Nara Salles
Suspensão. A vida no hospital psiquiátrico está suspensa, mas não no sentido
ritualístico de liminaridade ou communitas. Não houve desejo para o fluxo
à vida ser interrompido e suspenso. Assim naturalmente a estética que aos
poucos vai nos embebendo e tomando forma em nosso processo de criação
artística é de um estar contido, ao mesmo tempo que flutuasse na imensidão
do vórtice de pensamentos desdobrados e dissociados com os quais
estivemos em contato por dois anos e cotidiano com o qual Dr. Pires imerge
todos os dias desde 2009. Azul. Barcos. Flores. Remédios. Contensão.
Branco. Paixão. Afetamentos. Duplos. Fios. Amarras. Suturas. O que não
vejo no outro? O que o outro vê em mim? Janelas. Portais. Corpo que dança.
Escuta. Acolhimento. À primeira entrada no hospital convidamos aos
sentidos nas instalações propostas na "residência " resiliência que tem
pedaços suspensos, espalhados e estilhaçados de todxs os artistas que
estiveram juntxs em algum momento no CRUOR Arte Contemporânea nessa
trajetória. A seguir o instar se dá no recorrido por fora. Clara. Nos deparamos
com gotejamentos de vidas se esvaindo seguindo o cortejo para dentro.
Manicômio. Encontros. Mobilidade naquilo que é imóvel. Falta. Buraco.
Tamponamento do fluxo ininterrupto do desejo. Aqui estamos juntxs no
encontro. Afetamentos. Corpos disponíveis no vivido nunca mais serão os
mesmos após atravessar corredor transpor o masculino feminino. Pavilhões.
Pétalas. Você tem medo de que? Do que você tem medo? Vem me dê a mão.
Agora vou pedir para você voltar vou pedir para você ficar. Duplos. Para
fora! Uma árvore. Cirandeiro a pedra de teu anel brilha mais do que o meu.
Corpos girando em risos estridentes. Maluco beleza. Porque você se foi? Eu.
Entrança o cabelo para prender a dor na madeixa. Não soluce. Volta para
casa. Há no muro alto a janela desenhada. Como imaginava Frida Khalo
voaremos atravessando vidraças. Palavras escritas a carvão no mesmo muro
fazem girar corpos e adormecer no chão. Fio. Palavras soltas no ar. Dança.
Você fez um bicho de sete cabeças!! Mas... ainda é possível uma conversa.
Escuta. Não desapareça. Melancia??? Diga, como você se sente agora?
Se disponha. Venha, venha mesmo viver essa história conosco e decifrar em
gestos e movimentos as palavras contidas neste universo de sofrimento, artes
e encontros. Duplos!!!! Atrizes e Atores, Bailarinas e Bailarinos como
próprios atletas da afetividade em corpos decididos a viver e voltar para casa.
Inicio este capítulo afirmando que ele se constitui, na verdade, como a obra artística
“(Lou) Cure-se!!!”, logo a fruição da obra é fundamental para este trabalho dissertativo; assim
sendo, farei neste capítulo um memorial de alguns procedimentos e acontecimentos do
desenrolar do processo, convicto de que não darei conta da grandeza do encontro com a obra e
da vivência do corpo, percorrendo o espaço do hospital, percebendo as cores, sons, sentindo os
cheiros, cantando, percebendo os espaços, apreendendo o gesto de cada bailarino/bailarina,
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ator/atriz, músico/musicista em relação a seus duplos internos, e agora na posição de artistas em
seus figurinos; indo desde a portaria do hospital, em cortejo embaixo de um pano azul, andando
para os locais escolhidos e parando nas denominadas estações, termo usado em referência a
Eugenio Barba (1995), para cada parada onde acontece a cena, em um cortejo cênico. Tenho a
compreensão de que é uma dissertação de mestrado em Artes Cênicas e que, por este motivo, a
obra em si deve ter um valor maior que sua mera descrição, pois a escrita não consegue, de fato,
descrever de forma exata a complexidade do corpo vivido, mas devo seguir o protocolo do
programa de pós-graduação ao qual sou vinculado, almejando ser aprovado e sendo
compreendido pela banca examinadora em meu posicionamento. Isto posto, compreendo que
para iniciar este capítulo se faz importante compreender de maneira mais explícita alguns
estranhamentos e impactos que o mundo da loucura revela e que provocam muitas indagações
que de imediato é despertado pelo senso comum e elaborado pela ciência.
No dia a dia do hospital Dr. João Machado e na temporada de apresentações da obra
“(Lou)Cure-se!!!; que está acontecendo aos sábados nos meses de julho e agosto do ano de
2016; com a presença do público externo, com pessoas que fazem parte da sociedade natalense
indo ao hospital para assistir teatro, mas ao mesmo tempo curiosa para saber sobre o cotidiano
de um manicômio, deparei-me com algumas questões que são frequentes, também por
familiares e pessoas que estão conhecendo o hospital dos loucos. Vejamos algumas destas
questões surgidas: O que seria ser louco, seria prudente chamá-lo doente mental? Eles são
normais? O que seria ser normal? Eles são diferentes ou iguais a gente? Você não tem medo
deles? Eles são perigosos, não são?! Quem convive ou trabalha com loucos fica louco também?!
Para entender e procurar dar conta dessas indagações se faz necessário procurar saber
quem são essas pessoas, consideradas loucas, e entender qual o sentido de ser desse espaço
construído e elaborado para elas. Aos primeiros contatos com o Hospital Dr. João Machado e
com a sua clientela assistida, não é difícil perceber imediatamente que se trata de um espaço
diferenciado destinado a pessoas diferenciadas. Este espaço revela a existência de um mundo
diferente do mundo que convivemos em sociedade. As enormes paredes, janelas altas, vários
portões e portas fechadas, os olhares, jeito de falas, gestualidades, suas ações nos espaços e
comunicações entre os transeuntes e outras inúmeras percepções nos impacta pela estrutura
física e social que supomos apropriada para fins de observação, controle e tratamento dentro
de uma lógica de poder estabelecida, inclusive pela força, quando necessária, presente nas
instituições totalitárias.
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A partir desta busca é importante compreender as formas de loucuras e modos de
encarar a loucura de cada época. Na época clássica, o louco não estava ainda sob o poder da
ciência médica, e sua imagem associada à doença.
Na época clássica (século XVII e XVIII), os critérios para definir a loucura
ainda não eram médicos – a designação de louco não dependia de uma
ciência médica. Esta designação era atribuída à percepção que instituições
como a igreja, a justiça e a família tinham do indivíduo e os critérios
referiam-se à transgressão da lei e da moralidade. (BOCK, 2002, p.349).
Nesta direção, tem-se que a história revela que o lugar de exclusão instituído por
excelência ao louco nem sempre esteve atrelado à doença mental. No final do século XVII,
com a fundação do Hospital Geral em Paris no ano de 1656, passa a acontecer o que ficou
conhecido como “a grande internação”. Segundo Bock (2002, p.349), este hospital não tinha
o caráter de uma instituição médica, mas assistencial, não havia tratamento para a loucura,
posto que os loucos não eram vistos como doentes. Outra relevância a considerar é que:
Neste período, buscava-se construir um conhecimento médico sobre a
loucura, contudo a medicina da época – que tinha como modelo a história
natural e o seu método classificatório (a descrição e a taxionomia da
estrutura visível das plantas e animais eram feitas com a finalidade de
estabelecer semelhanças e diferenças) – não conseguia abarcar a
complexidade de manifestações da loucura. (BOCK, 2002, p.349).
O Hospital Geral acolhia em suas demandas de internações uma população
heterogênea, embora, conforme Bock (2002), pudesse ser agrupada em quatro grandes
categorias: 1 – devassos (doentes venéreos), 2 – feiticeiros (profanadores), 3 – libertinos e 4
– loucos. E assim, os loucos continuaram sendo mantidos fora do convívio da sociedade,
integrando um conjunto composto por todos os segregados da sociedade. O louco é
criteriosamente excluído por ser considerado inadequado à vida social.
Vale ressaltar que, antes disso, o louco não era enclausurado em uma instituição
fechada. O sentido da loucura passaria a ser vista como oposição à razão, sendo entendida
como instância de verdade e moralidade. Contudo, o olhar avesso sobre o louco continuou
marcado pela discriminação; e, no imaginário coletivo, o louco era visto como um ser
estranho, incapaz de conviver em sociedade, perigoso, às vezes violento, podendo ameaçar,
inverter e desarrumar a ordem estabelecida pelo poder dominante e a que está posta. Neste
último sentido, a loucura passaria a ser vista como oposição à razão, entendida como instância
de verdade e moralidade. Antes da construção de hospitais para recebê-los,
...no século XVI, período do Renascimento, o louco vivia solto, errante,
expulso das cidades, entregue aos peregrinos e navegantes. E ainda, o louco
também era visto como aquele que tem um saber esotérico sobre os homens
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e sobre o mundo, um saber cósmico que revela verdades secretas. Nessa
época, a loucura significava ignorância, ilusão, desregramento de conduta,
desvio moral, pois o louco toma o erro como verdade, a mentira como
realidade. (BOCK, 2002, p.348).
Esses traços característicos marcados pela falta de razão e desregramento moral do
louco, que o diferenciam da personalidade dos homens ditos normais, bem como dos
percursos históricos destinados ao louco, como serem lançados em cidades estranhas, ao
desconhecido e incerteza do destino, nos traz a imagem simbólica e uma ideia pré-formada do
que acreditamos ser o que denominamos louco, e isto, nos remete a pensar na figura
arquetípica do louco, representada nas cartas do Tarô Mitológico que é personificada no mito
de Dionísio.
As cartas do Tarô fazem parte dos sistemas de conhecimento sobre a psique humana
e suas passagens pelos ritos da vida no mundo da antiguidade. Estes conhecimentos são
elaborados e organizados, considerando a dimensão simbólica e mítica que contemplavam ao
ser humano uma compreensão da sua condição existencial como ser que pensa, sente e que se
relaciona com os mundos. Entendemos que há um mundo de sentidos que tem a ver com a
dimensão interior do ser humano, como ele lida com suas emoções e questões singulares
pertinentes a si mesmo; e um outro mundo voltado para as relações com o externo, com o
social e com a cultura, possibilitando ao ser humano apreender a lidar com sua estrutura
pessoal e entender o significado do lugar que ele ocupa na comunidade, assim como entender
sua cultura, seus mitos e seus ritos como aspectos importante para situar o ser humano nas
afetações e estranhamentos, essas sensações que podem vir de si mesmo ou do outro.
O Tarô mitológico é um baralho composto por 78 cartas que foi elaborado pela
psicoterapeuta americana Juliet Sharman-Burke em parceria com a astróloga Liz Greene.
Estas mulheres são pesquisadoras e estudiosas do mundo simbólico presentes nas formas
arquetípicas e mitológicas de compreensão da existência humana. O Tarô mitológico
contempla os aspectos simbólicos, mitológicos, divinatórios e psicológicos da psique humana.
As vinte e duas primeiras cartas do Tarô Mitológico são personificadas pelos deuses e
heróis da mitologia grega, são as cartas dos Arcanos Maiores, nelas estão contidas uma série de
imagens que descreve diferentes fases e aspectos de nosso desenvolvimento psíquico. Retratam
as forças energéticas de personalidades arquetípicas que estão influenciando e determinando
nos conflitos existenciais dos seres humanos. A função primordial das cartas do tarô é clarificar
através de uma linguagem mitológica e simbólica a correlação de forças externas e internas que
há no momento presente sobre o ser humano. Neste sentido, o conhecimento simbólico das
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cartas de Tarô reflete o conhecimento histórico sobre a loucura na antiguidade. Nas cartas do
Tarô mitológico, o personagem Dionísio, ao mesmo tempo que é protagonista da Carta O Louco,
é o protagonista da história de todo ser humano. Dionísio deixa claro que tem estilo próprio, tem
um jeito que escolheu para se conduzir pela vida e explorar o mundo. Dionísio era loquaz,
gostava de vinho, de festas dançantes e dramáticas, suas ideias e sua estética transgredia as
normas do poder vigente. Assim compreendemos que Dionísio, o louco, se diferenciava por
seus aspectos físicos, psicológicos e divinos, mas transitava com liberdade com seu discurso
próprio de louco, de brincante e de artista, detentor de sabedoria e de mistérios, com jeito de
homem e de menino, mas tinha seu lugar na sociedade e suas verdades eram comunicadas e
presentes mesmo que incomodasse alguns personagens.
Dando continuidade a este pensamento, posso dizer que a viagem mitológica que ao
louco do tarô é posta, encontro semelhanças com os caminhos errantes, de abandono à própria
sorte que as pessoas denominadas loucas, ao longo da história da humanidade, foram
obrigadas a seguir e a vivenciar.
Foucault (2005), antes das famosas casas de internamentos do século XVII, afirma
que os loucos tinham seus mistérios, tinham sua linguagem própria e loquaz, eles eram
dotados de animalidade, coragem e impulsos criativos. Com uma vida errante prestes a cair
em abismos e precipício que os faziam seres sem garantia de estabilidade, os conduziam a
improvisação constante e a transgressão das normas e padrões sociais.
Vejamos a descrição da Carta taróloga do Louco por Sharman-Burke et al (1988):
essa carta mostra um jovem corajoso, vestido apenas com peles animais,
executando uma espécie de acrobacia à beira de um precipício. Traz na
cabeça uma coroa de folhas de parreira e da testa lhe saem dois pequenos
chifres de cabrito. Seus olhos estão voltados para o romper do dia, a distância,
onde o sol começa a despontar por entre as montanhas. A sua volta, apenas
uma paisagem desolada e árida. A esquerda, oculta pelas sombras da noite
que acaba de terminar, vê-se a entrada de uma caverna, de onde o rapaz acaba
de sair. Em cima da entrada da gruta, surge um galho seco e desfolhado onde
uma águia está pousada.
As outras 56 cartas lidam com as questões referentes as dimensões e situações
existenciais que dizem respeito ao desenvolvimento interior do ser humano. Essas
experiências são narradas através dos mitos, simbolizando e relacionando-as aos quatro
elementos da natureza, e assim as funções são articuladas: pensamento (ar), intuição (fogo),
sentimento (água) e percepção (terra).
Através do estudo do tarô Sharman-Burke et al (1988), aprofunda questões sobre os
mitos, os ritos e os símbolos, e assim retrata o ser humano em sua viagem simbólica pelos ritos
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de passagens que vivencia, como humanos e mortais no trajeto existencial pelo mundo e pela
vida. Os estágios dessa viagem podem ser identificados em vários mitos, lendas e contos de
fadas, além de ser encontrados também em grandes ensinamentos religiosos do mundo inteiro.
Cada carta mitológica compõe uma cena com elementos simbólicos que se arrumam
para dizer algo do psiquismo do ser humano. Podemos compreender aspectos psicológicos
nas mensagens que o tarô transmite. E para corporificar este indivíduo nesta viagem temos
por protagonista o personagem denominado “O Louco”. A carta do Louco nos remete a
situações e circunstâncias em que nos lançamos, sem garantia de nada, em um mundo sem
forma, de caos existencial.
E deste modo, podemos dizer que como “o louco”, vivenciamos situações e
momentos em que o sentimento de ambivalência toma proporções emocionais demasiadas e
ficamos confusos, sem saber sobre si e sem entendimento sobre o mundo. Ficamos sem definir
nossos objetivos, sem dar sentido aos nossos desejos e sonhos. O Louco é considerado uma
figura ambivalente, pois, conforme retrata as imagens da carta do tarô mitológico, o Louco
está prestes a ser lançado no abismo, e lá no fundo há mundos onde não há garantia de chegar
a salvo, ou mesmo de chegar ao fim dela.
O que a carta do Louco nos fala é sobre entregar-se ao acaso e amar o transitório. E
neste modo de compreensão sobre os humanos e suas relações consigo (mundo interno) e com
os outros (mundo externo), que se pode pensar o mundo corporal interno do louco e como
esse corpo sujeito existe, bem como nossas implicações com esse mundo, ou seja, com a
loucura. Muitos acreditam que o esquizofrênico não conhece essa experiência de ser corpo,
de ser ego, de ser desejo, de ser sonho, de ser existência. A imagem corporal do Louco é de
um ser primitivo, com expressões de animalidade. De acordo com Foucault:
na loucura o homem é separado de sua verdade e exilado na presença
imediata de um ambiente em que ele mesmo se perde. Quando um homem
clássico perdia a verdade, é porque era rejeitado para essa existência
imediata onde sua animalidade causava devastação, ao mesmo tempo em
que aparecia essa decadência primitiva que o indicava como originariamente
culpado. Quando se falar agora de um homem louco, será designado aquele
que abandonou a terra de sua verdade imediata, e que se perdeu.
(FOUCAULT, 2005, p.37).
Neste sentido, não é difícil de entender as respostas e estranhamentos que no senso
comum costuma-se pensar e imaginar sobre a pessoa em estado de loucura, a ideia de alguém
perdido e abandonado, ou alguém periculoso que precisa ser enclausurado. Loucura como
sinônimo de morte em vida, e que em seu mundo tanto interno, como externo tem as marcas
da tragédia, do abandono, da dor.
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E sob este enfoque mitológico encontramos a loucura presente na vida dos humanos
como figura divina personificada no deus grego Dionísio, que traz em si não apenas o trágico,
mas com ele o êxtase e a embriaguez. A loucura como possibilidade de realização plena do
ser entregue aos prazeres com liberdade e não subserviência aos padrões de conduta
estabelecidos. Coelho (2012) reitera que na Grécia arcaica o culto de Dionísio, vindo do
estrangeiro pela Trácia, penetrou pouco a pouco no solo grego. E, como um vírus contagioso,
espalhou-se pelos campos e arregimentou legiões de seguidores, tanto por aceitar a
participação dos escravos e das mulheres nos rituais, quanto pela sua própria natureza
transgressora e subversiva aos valores tradicionais da sociedade escravagista e aristocrática
dos Eupátridas, os nobres, devotos dos deuses olímpicos, pois permitia aos oprimidos e
explorados o acesso ao êxtase e ao entusiasmo através da ingestão ritual do vinho, que era tido
como o sangue de Dionísio.
Coelho (2012) considera que por vezes, quando a ameaça vem de fora e penetra na
sociedade pouco a pouco e não há como expulsá-la ou destruí-la, ela é assimilada e integrada,
de modo que, de ameaça, converte-se numa parte integrante da própria cultura. Nesta direção,
Brandão, 1986 apud Coelho, 2012, p.52, nos aponta que o culto a Dionísio no início foi alvo
de proibições e perseguições, e foi sendo progressivamente tolerado e aceito, à medida que a
Democracia se consolidava. Com as reformas de Pisistrato (605-527 a.C.), finalmente,
estabeleceram-se oficialmente as grandes celebrações festivas em homenagem ao deus do
vinho. Se faz interessante lembrar que,
para que tal fato ocorresse, ou seja, que um deus estranho pudesse ser
cultuado na Grécia, sua estrangeiridade foi apagada através de um novo
batismo mítico. Deram-lhe então uma origem olímpica, aparecendo ora
como filho de Zeus e Perséfone, ora como filho de Zeus e Sémele, uma
princesa tebana. Assim um deus combatido e perigoso, uma vez
incorporado, tornou-se num dinamizador daquilo que antes ameaçava:
Dionísio converteu-se no deus do teatro, da fertilidade e da abundância.
(COELHO, 2012, p.52).
No senso comum se escuta, em certo sentido de uma forma pueril e com pouca
profundidade, que é na loucura que muitos encontram a sua felicidade, pois o rótulo de louco
por vezes autoriza a pessoa a realizar seus desejos com pouca ou nenhuma censura. Contudo,
Dalgalarrondo (2008) aponta que por vezes para falar do fenômeno loucura/normalidade,
muitos enfatizam em seus discursos a percepção subjetiva do próprio indivíduo em relação a
seu estado de saúde. O ponto falho desse critério é que muitas pessoas que se sentem bem,
“muito saudáveis e felizes” como no caso de sujeitos em fase maníaca, apresentam, de fato,
um transtorno mental grave.
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Dalgalarrondo (2008) afirma que: Alguns autores de orientação fenomenológica e
existencial propõem conceituar a loucura/doença mental como perda da liberdade existencial.
Dessa forma a saúde mental se vincularia às possibilidades de transitar com graus distintos de
liberdade sobre o mundo e sobre o próprio destino. No entanto, a doença mental é
constrangimento do ser, é fechamento, é fossilização das possibilidades existenciais.
Cyro Martins apud Dalgalarrondo (2008) afirma que a saúde mental poderia ser vista,
até certo ponto, como a possibilidade de dispor de senso de realidade, senso de humor e de
um sentido poético perante a vida, atributos estes que permitiriam ao indivíduo relativizar os
sofrimentos e as limitações inerentes à condição humana e, assim, desfrutar do resquício de
liberdade e prazer que a existência oferece.
E assim muitas vezes absorvemos no cotidiano a imagem do louco como aquele que
não sabe de si, nem tem orientação interna para fazer suas escolhas. A imagem do louco carrega
em si a estigmatização e a expressão dos sentimentos de agonia e desespero da alma, assim
como também a alegria insana, e a ideia que se tem no senso comum é a de que a expressão de
sua existência só poderá ser permitida às margens das cidades. É assim na personificação do
deus grego Dioniso que a imagem do louco marca o seu traçado no simbólico da humanidade
ocidental, como espaço ocupado por estas pessoas no imaginário popular que aos poucos vai se
firmando como outras possibilidades e formas de entendimento da pessoa louca.
Para Jesuíno (2009), a tradição medieval teve duas vertentes principais para a
abordagem da doença mental. A primeira, mais conhecida, era a doutrina demonológica da
inquisição católica. As teorias que daí derivaram embasavam-se epistemologicamente,
sobretudo, na Filosofia Escolástica. Esta filosofia asseverava a existência de um mundo
espiritual e das almas como mais sublime aspecto da espécie humana, para o qual o corpo era
apenas complemento. A Filosofia Escolástica tinha como principal expoente São Tomás de
Aquino.
Na idade Média a loucura era associada à possessão diabólica, o que reedita o modelo
mítico religioso encontrado na obra de Homero, acrescido agora dos valores do cristianismo.
Com o Renascimento e a Reforma Protestante instala-se gradativamente uma concepção
científica da loucura. O livro Tratado de Pinel16, com primeira edição em 1800, foi marco
inaugural da psiquiatria como especialidade médica. Pinel priorizou os aspectos
comportamentais da loucura. Essa posição contrariava a tendência da época, que enfatizava a
16 Livro escrito por Pinel intitulado “Tratado Médico Filosófico Sobre a Alienação Mental ou a Mania.
Onde relata sobre o uso de medicamentos, as sangrias e duchas frias como tratamento da loucura como
sem validade alguma e faz reflexões sobre o uso de intervenções novas ou antigas com os pacientes
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importância das alterações anatomofisiológicas como determinantes das psicopatologias.
(COCCIUFO, 2007, p.27).
A psicanálise de Freud surgiu no final do século XIX, com a enfatização do
inconsciente trazendo à cena o sujeito do inconsciente, o sujeito habitado por forças que
desconhece, um sujeito que precisa ser olhado e compreendido à luz de sua subjetividade.
(COCCIUFO, 2007, p.27).
Para Foucault (2005), antes de a loucura ser dominada, por volta da metade do século
XVII, antes que se ressuscitassem, em seu favor, velhos ritos, ela tinha estado ligada,
obstinadamente, a todas as experiências maiores da Renascença. E assim destaca-se pelo valor
simbólico, uma das figuras que marca presença na paisagem imaginária da Renascença: a Nau
dos Loucos, estranho barco que deslizava ao longo dos calmos rios da Renânia e dos canais
flamengos. Sobre este assunto esclarece Foucault:
mas de todas essas naves romanescas ou satíricas, a Narrenschiff é a única
que teve existência real, pois eles existiram, esses barcos que levavam sua
carga insana de uma cidade para outra. Os loucos tinham então uma
existência facilmente errante. As cidades escorraçavam-no de seus muros;
deixava-se que corressem pelos campos distantes, quando não eram
confiados a grupos de mercadores e peregrinos. Este costume era frequente
particularmente na Alemanha. (FOUCAULT, 2005, p.9).
Ressalta-se, conforme Foucault (2005), que não é fácil pensar o sentido exato deste
costume, no entanto, seria possível pensar que se trata de uma medida de expurgo que as
municipalidades fazem incidir sobre os loucos em estado de vagabundagem; hipótese que por
si só não dá conta dos fatos, pois certos loucos antes mesmo que se construam casas especiais
para eles, são recebidos nos hospitais e tratados como loucos. Nos diz ainda Foucault:
é que esta circulação de loucos, o gesto que os escorraça, sua partida e seu
desembarque não encontram todo seu sentido apenas ao nível de utilidade
social ou da segurança dos cidadãos. Outras significações mais próximas do
rito, sem dúvida, aí estão presentes; e ainda é possível decifrar alguns de seus
vestígios. Assim é que o acesso às igrejas é proibido aos loucos, enquanto o
direito eclesiástico não lhes proíbe o uso dos sacramentos. A igreja não
aplica sanções contra um sacerdote que se torna insano. Mas em Nuremberg,
em 1421, um padre louco é expulso com uma particular solenidade. Como
se a impureza se acentuasse pelo caráter sacro da personagem, e a cidade
retira do seu orçamento o dinheiro que devia servir-lhe de viático. Acontecia
de alguns loucos serem chicoteados publicamente, e que no decorrer de uma
espécie de jogo eles fossem a seguir perseguidos numa corrida simulada e
escorraçados da cidade a bastonadas. Outro dos signos de que a partida dos
loucos se inscrevia entre os exílios rituais. (FOUCAULT, 2005, p.11).
Assim, temos como traço comum na história do louco as ameaças dirigidas a sua
sobrevivência e o impedimento de sua presença na cena social. A partir do século XVII, as
83
medidas sociais de enclausuramento do louco nas casas de internamento e a sua retirada da
cena urbana trouxeram consequências duplas para a constituição da experiência da loucura no
mundo contemporâneo. Sendo que
este fenômeno foi duplamente importante para a constituição da experiência
contemporânea da loucura. Inicialmente, porque a loucura, durante tanto
tempo manifesta e loquaz, portanto tempo presente no horizonte, desaparece.
Entra num tempo de silêncio do qual não sairá durante um longo período; é
despojada de sua linguagem; e se se pode continuar a falar dela, ser-lhe-á
impossível falar de si mesma. Impossível, pelo menos até Freud que,
pioneiro, reabriu a possibilidade para a razão e desrazão de comunicar no
perigo de uma linguagem comum, sempre prestes a romper-se e a desfazer-
se no inacessível. (FOUCAULT, 1984, p.80).
Conviver em um espaço de loucura atuando como psicólogo integrante do corpo de
profissionais do Hospital Psiquiátrico Dr. João Machado, trouxe para próximo de minhas
interiorizações, como também para minha existência cotidiana, um mundo que antes
tangenciava o meu dia-a-dia, pois, antes deste convívio o contato com o louco se dava em
encontros pontuais, na escola, na rua e na família, com pessoas que se diferenciavam em
condutas atribuídas pelo social como loucas, e estes encontros não me implicaria em
sucessivos encontros sistemáticos, ou seja, ter que me relacionar de modo contínuo com elas.
De outro modo, trabalhar em um hospital psiquiátrico, tornou-se quase diário minha
presença neste local e o contato com os pacientes foi se constituindo em relações vinculativas,
em que seus nomes e fisionomias tornaram-se conhecidos, e suas histórias, anseios e segredos
íntimos compartilhados em tom de cumplicidade. Presenciar as cenas impactantes no
hospício, presentes na contenção, maus tratos, opressão e apatias de alguns profissionais,
assim como percebi essa dualidade opressor X oprimido e o hospício como o lugar indesejável
por muitos, me motivou a buscar o sentido de ser daquele mundo, e como este sentido foi
construído historicamente. E assim, a partir da experiência vivida no espaço hospitalar, onde
ainda se encontra resquícios da cultura manicomial, e a loucura é predominantemente tratada
como doença e o louco consequentemente como um doente mental, lembrando os
ensinamentos de Foucault (1984) que a doença só tem realidade e valor de doença no interior
de uma cultura que a reconhece como tal. Compreendi no meu cotidiano hospitalar que o
vínculo é fundamental em qualquer processo, seja terapêutico ou artístico, e esse vínculo foi
sendo estabelecido entre artistas e internos no decorrer da pesquisa, na perspectiva apontada
no capítulo anterior da ressonância, sintonia e empatia à página 32.
A partir dessas considerações, vale ressaltar a influência histórica determinante do
paradigma psiquiátrico clássico na ação interventiva e na qualidade da relação humana do
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tratamento dado ao doente mental pelo profissional da saúde no espaço hospitalar. Neste
sentido, Silveira (1981) sobre o tratamento para os loucos, atenta para a relevância histórica
de que o século XIX foi marcado pelo esforço em inserir a loucura na moldura do modelo
médico, a preocupação era classificar formas clínicas e descrevê-las minuciosamente. Tem-se
então que a síntese desta psiquiatria, Castel (1978) apud Amarante (1995, p.46), opera-se a
partir de uma tríade, aparentemente heterogênea: 1 - a classificação do espaço institucional; 2
- o arranjo nosográfico das doenças mentais; e 3 - a imposição de uma relação específica entre
médico e doente na forma de tratamento moral. Vejamos:
a ligação intrínseca entre sociedade e loucura/sujeito que enlouquece é
artificialmente separada e adjetivada com qualidades morais de
periculosidade e marginalidade. Assim, institui-se uma correlação e
identificação entre punição e terapeutização, a fim de produzir uma ação
pedagógica moral que possa restituir dimensões de razão e de equilíbrio.
(AMARANTE, 1995, 46-47).
O paradigma psiquiátrico clássico é estabelecido de fato na segunda metade do século
XX, tem como característica principal a contestação de que a doença mental possa encaixar-
se no modelo médico, ou seja, que a loucura é um fenômeno que ocorra dentro do organismo.
Este paradigma se enquadra no modelo das Ciências Naturais.
Para a ciência, o real se esgota na ordem natural do universo físico, à qual
tudo se reduz, incluído o homem e a própria razão, que é razão natural. O
homem se constitui então como um organismo vivo, regido pelas leis da
natureza, tanto no plano individual como no social, leis que determinam sua
maneira de ser e de agir. (SEVERINO, 2007, p.107).
Neste sentido, esta forma restrita de lidar com a pessoa em sofrimento psíquico e de
lidar com a loucura como doença orgânica tem razões históricas que são sustentadas sob o
paradigma da psiquiatria clássica, como descrita por Bock na citação abaixo.
A Psiquiatria clássica considera os sintomas como sinal de um distúrbio
orgânico. Isto é, doença mental é igual à doença cerebral. Sua origem é
endógena, dentro do organismo, e refere-se a alguma lesão de natureza
anatômica ou distúrbio fisiológico cerebral. Fala-se, mesmo, na química da
loucura, e inúmeras pesquisas nesse sentido estão em andamento. Nessa
abordagem da doença, os quadros patológicos são exaustivamente descritos
no sentido de quais distúrbios podem apresentar. Por exemplo, a psicastenia
é caracterizada por esgotamento nervoso, com traços de fadiga mental,
impotência diante do esforço, inserção difícil no real, cefaleias, distúrbios
gastrointestinais, inquietude, tristeza. E, finalmente, se a doença mental é
simplesmente uma doença orgânica, ela será tratada com medicamentos e
produtos químicos. Ao lado da medicação, devemos lembrar que ainda são
usados os eletrochoques, os choques insulínicos e, em casos mais graves, o
internamento psiquiátrico, para uma administração controlada e intensiva de
medicamentos. (BOCK, 2002, p.350).
85
A partir do texto citado, Amarante (1995), ressalta que ao transformar a loucura em
doença se produz uma demanda social por tratamento e assistência, esta nova demanda
distancia o louco do espaço social e dos cuidados da família, e transforma a loucura em objeto
do qual o sujeito é isolado, distanciado para produzir saber e discurso. E entra assim para o
âmbito do estigma provocando nas pessoas, as perguntas iniciais deste capítulo.
Antes, temos que, Rosa (2003) considera que, na sociedade pré-capitalista, o louco e
a loucura eram questões remetidas a competência da família. Na sua inexistência ou na sua
impossibilidade de controlar o louco, a loucura tornava-se uma questão pública, de justiça ou
de deliberação do rei. No entanto, na sociedade moderna e capitalista, se estabelece a lógica
terapêutica no trato com a loucura que possibilita a aproximação para com esta, por intermédio
da justiça e da medicina. Deste modo, ao atribuir ao louco uma identidade marginal e doente,
a medicina torna a loucura ao mesmo tempo visível e invisível; neste ponto a psiquiatria firma-
se como poder por ter o saber da ciência, conhecimento tido como verdade absoluta na
sociedade moderna, saber este apropriado para tratar a loucura, este poder age aliando-se ao
poder da justiça. Observemos:
criam-se condições de possibilidade para a medicalização e a retirada da
sociedade, segundo o encarceramento em instituições médicas, produzindo
efeitos de tutelas e afirmando a necessidade de enclausuramento deste para
gestão de sua periculosidade social. Assim, o louco torna-se invisível para a
totalidade social e, ao mesmo tempo, torna-se objeto visível e passível de
intervenção pelos profissionais competentes, nas instituições organizadas
para funcionarem como lócus de terapeutização e reabilitação – ao mesmo
tempo, é excluído do meio social, para ser incluído de outra forma em um
outro lugar: o lugar da identidade marginal da doença mental, fonte de perigo
e desordem social. (AMARANTE, 1995, p.46).
Essa ideia nos leva a pensar sobre o tratamento excludente dado ao portador de
transtorno mental pelos profissionais de saúde mental nas instituições hospitalares de
psiquiatria a partir da modernidade e na atualidade. Torna-se notório que o chamado louco
pela sociedade passa a ser nominado e tratado como doente mental. Este modo moderno de
tratar o louco passa a ser caracterizado por confinamento em instituições hospitalares e
exclusão do ambiente familiar e social; A família passa a ter uma atuação passiva devido a
expectativa de cura confiada ao psiquiatra. Assim,
na sociedade moderna – com um ordenamento social, econômico, e político
próprio e uma nova sensibilidade social — o louco torna-se um doente
mental e objeto de intervenção médica e estatal. Inicialmente, no plano
teórico, é o alienismo que constrói a inteligibilidade das repercussões desse
novo ordenamento sobre a relação do portador de transtorno mental com sua
família, que vai ser mediatizada por trabalhadores e organizações de saúde.
Nesta configuração, o portador de transtorno mental é excluído do seu meio
86
social e a família é colocada num papel passivo de espera dos resultados
consignados pelo saber psiquiátrico que, originariamente, promete a cura.
(ROSA, 2003, p.39-40).
A partir do citado, fica fácil visualizar e imaginar como essas pessoas ditas loucas,
doentes mentais, anormais e amorais tornaram-se vulneráveis a situações de negligências,
abandonos e maus tratos, ao longo do tempo, sem o olhar da sociedade e o cuidado protetor
da família, muitas que se resignaram diante do familiar louco e colocam todas as expectativas
de cura sobre a psiquiatria clássica. Num certo número de casos, o meio familiar ou social vê-
se obrigado a provocar o encontro entre o psicótico e o médico.
E deste modo, a priori, não é difícil pensar que sem o controle familiar e social sobre
tais práticas, alguns profissionais dessas instituições muitas vezes abusaram do poder sobre o
doente mental, no entanto, muitas vezes esses maus tratos e abusos tem a conivência da
família, quer seja pela negligência, abandono ou pactuação com tais práticas, visto que, ao
longo da história da humanidade, denúncias de torturas e maus tratos marcaram tais
instituições hospitalares. No Brasil, essas práticas foram delatadas por jornalistas e pessoas
engajadas em lutas político-sociais em prol dessas pessoas. Entre elas, pode-se citar a pesquisa
de Arbex, referência neste trabalho, que revela histórias deploráveis e que se torna uma porta-
voz que denuncia o Genocídio no Hospital Psiquiátrico de Barbacena – Minas Gerais, episódio
conhecido como o Holocausto brasileiro, neste fato tem-se o registro de 60 mil mortes; outro
registro histórico significante são os relatos de Nise da Silveira em sua vivência como
psiquiatra no hospital de Engenho de Dentro, no Rio de Janeiro.
Diante de uma realidade histórica marcada por restrições e torturas, propor a vivência
artística em um espaço de saúde mental, e, adentrar o universo hospitalar com um grupo de
artistas pesquisadores para uma ação artística efetiva e sistemática, se fez importante
considerar, através da observação participante, as relações hierárquicas presentes entre as
personas que circulam a cena, como também investigar crenças e ideias que circulam no
espaço hospitalar, não apenas sobre o louco e a loucura, mas também sobre o artista e a arte e
a relação deste com a loucura.
Deste modo tornou-se relevante considerar dados e questões sobre o lugar que os
artistas do Cruor Arte Contemporânea passaram a ocupar na cena cotidiana durante a pesquisa,
visto que os artistas passam a compor a cena interagindo, ocupando funções e propondo ações
que as colocaram no imaginário e no real da Instituição como profissionais de competências
e representantes de uma universidade.
87
O que se colocou como questão no início da pesquisa foi: quais formas de abordagens
e contribuições poderiam trazer efetivamente o “profissional das artes” para um espaço de
saúde mental, marcado por relações desproporcionais e verticalizadas e fazer arte com os
internos, trazendo questões referentes a ética, a estética e suas implicações na autonomia na
vida de relação como social.
Como artistas, propomos ocupar o espaço cotidiano da instituição hospitalar como
representantes de um grupo de pesquisadores credenciados a um departamento de artes de
uma universidade com fins de investigação e intervenção numa realidade social e institucional,
em uma pesquisa ação. E isto implica que como profissionais e representantes de um saber
acadêmico temos conhecimento específico para compartilhar e dialogar sempre que se fizesse
necessário nas abordagens cotidianas das pessoas que estão no hospital, e assim agimos
durante todo o processo de criação durante a residência artística no hospital.
Nesta prática sistemática de pesquisa, que envolve artistas e pacientes, investimos
numa abordagem qualitativa e interventiva em que o artista-pesquisador adentra o espaço
institucional, participa da realidade objetiva e interage subjetivamente com as subjetividades
do campo pesquisado. Deste modo a observação e intervenção participante é sobretudo uma
intervenção no conteúdo da vivência estética da existência presente, nos corpos e relações e
como conceito das artes abordamos as instaurações cênicas e a opção pela arte contemporânea.
Contudo, ressaltamos que a qualidade desses conteúdos, por serem adquiridos na
vida sociocultural do ser humano, são saberes constituintes da vida sensível e simbólica que
por si mesmas pedem expressão da singularidade subjetiva do ser humano; e por ser
adquiridos através de experiências pessoais sensíveis que envolvem autonomia e prazer,
através de escolhas, preferências, gostos e afetos referentes a linguagem artística: música,
literatura, teatro, poesia e dança, eles se fazem presentes na encenação apresentada; e se deu
em um processo colaborativo e compartilhado entre artistas e internos, que ao longo do tempo
foram adquirindos para sua identidade a do artista, que participa do teatro na universidade,
sendo reconhecido e respeitados pelos demais frequentadores do hospital, por essa sua nova
condição social.
As práticas artísticas implicam na presença do corpo sensível que pode proporcionar
expressão da totalidade do ser, e para tanto envolve essas escolhas e contato consigo mesmo
e com o outro; e neste ponto, por ser um processo de relação envolveu implicações éticas e
estéticas. O desenvolvimento desse processo contribuiu para as práticas artísticas, no entanto
vão muito além delas. Nesta direção, percebemos que durante este processo de pesquisa no
hospital Dr. João Machado, por vezes, os corpos sensíveis de alguns artistas da Coligação
88
Cruor estavam à flor da pele, sensíveis e desprotegidos a qualquer energia do ambiente, quer
seja agradável ou desagradável; por vezes era fácil perceber como eles embarcavam
reativamente e em ressonância com as energias do espaço e das pessoas do hospital. Isto
visivelmente nas expressões faciais e posturas corporais dos artistas. Corpos temerosos, sem
vitalidade e desejo para entrarem no espaço interno do hospital e para se permitirerem a entrar
no seu próprio espaço interior, o seu mundo existencial, e colocarem-se em relação com os
seres humanos daquele mundo, do mundo da loucura. Isto se confirmava em suas narrativas
verbais de desmotivação e afetações, pois entrar naquele espaço, é também entrar em contato
com a cultura do espaço, e ser participante dela nas horas da pesquisa implicaria não apenas
em proposição de arte, mas de conduta e postura ética.
As falas dos artistas da Coligação Cruor normalmente são caracterizadas por um
olhar e um saber estético que revelam as sensações, os sentidos atentos e presentes na
aquisição do saber sobre o vivido. Como por exemplo: “Não gostei de entrar neste local hoje,
as cenas que vi me deixaram para baixo, não gostei do modo que fui tratado por aquele
profissional, do modo como fui tocado no braço por aquele paciente. É deprimente a maneira
como os pacientes são tratados. Como foi desagradável o cheiro de alguns pacientes ou da
enfermaria. Estou péssimo só em pensar em vir para este lugar desagradável, é um local feio,
sem cor, de abandono”. Foram falas constantes e gerais, e, nesse sentido, optamos por não
indicar essas citações para cada pessoa como metodologia da escrita, para que não aconteça
uma publicização e exposição pessoal; pois foi e está sendo um trabalho muito difícil junto
aos artistas, percebemos no decorrer do processo que algumas pessoas selecionadas para
serem bolsistas e participantes do CRUOR Arte Contemporânea não estavam ainda com uma
maturidade artística desejada e esperada para este tipo de trabalho, e para tanto tivemos que
ter muita paciência, muita escuta e muita habilidade para que se chegasse a bom termo ao final
da dissertação com a obra finalizada e apresentada ao público externo. Lembrando que sempre
houve o cuidado de antes de entrar no hospital para o trabalho, realizar um processo de
preparação psicológica, como pode ser observado na fala do ator e músico Francisco Junior,
no primeiro dia que foi ao hospital:
eu estava com muito medo na minha primeira ida ao hospital, pois não sabia
o que poderia me acontecer. Imaginava que alguém poderia me bater, me
gritar, me xingar, não gostar das músicas, etc. Então fui bem tenso. Mas ao
entrar no hospital foi bem diferente, pois todos os pacientes do hospital me
trataram com bastante carinho e alegria e a roda, antes da entrada, com o
Doutor Pires me deixou um pouco mais seguro para entrar naquele espaço.
No entanto essa segurança não era percebida e sentida em alguns artistas, sobretudo
89
nos mais faltantes. Foi mesmo um ato de muita dedicação cotidiana nossa em persistir e investir
em alguns artistas que se mostravam muito fragilizados no convívio com os loucos e
demonstravam e verbalizavam um grande medo de enlouquecer; sendo que com estas
características só permaneceram dois no trabalho, os outros foram substituídos, como já
apontado.
Por outro lado, alguns artistas demonstravam essa coragem de enfrentamento, como
pode ser observado na fala da atriz Emisandra Ribeiro, a seguir:
Minha primeira dificuldade foi adentrar naquele espaço (me embrenhar
físico e emocionalmente, mas sem medo, sem me esconder, rasgar-me de
coração), naquele prédio de característica antiga, cheio de histórias obscuras,
de sofrimentos, solidão, abandono, de risos que se mistura com lágrimas, de
cura, talvez. Mas, a partir da INSTAURAÇÃO CÊNICA comecei a enxergar
aquele espaço de forma diferente do que meus olhos viam, ou pelo menos,
tentar dar uma outra conotação com base na criação através de
SONHOS/DESEJOS/ALUCINAÇÕES – Não importa! Logo entendi após
ficar mexida por dentro no que eu ouvia em cada conversa com vários
internos. A procura pelo DUPLO não foi bem muito sucedida a princípio.
No meu desejo de iniciante nesse novo trabalho de criação, eu imaginava
que eu escolheria um duplo e tudo já estaria em partes resolvido. Não foi e
nem é bem assim.
É por aqui que a história começa...
Ao contrário, da alegria, no momento em que esse DUPLO, recebeu alta e
voltou para sua casa, espaço tão sonhado e desejado por eles/as; Esse
regresso a uma casa verdadeira ou projetada por vontades guardadas no
fundo de suas memórias, que a todo momento ouvimos da boca de muitos
como uma canção, um lamento triste por estar ali e querer voltar: “Eu recebi
alta, vou voltar para casa” (alguns casos verdadeiros, outros puro desejo de
ir, sair, ser livre novamente). Foi aí que eu fiquei extremamente frustrada
com a saída de meu primeiro DUPLO.
Para mim, toda a ideia artística tinha saído pela porta de entrada que os
mesmos entram quando tem algum problema considerado “problema
mental”, ao sair, ir embora, receber alta.
O encontro com essas duas internas me fez ficar inquieta e, ainda mais
curiosa por esse trabalho de pesquisa e criação. Me fez refletir sobre o apego
e desapego tão necessário para continuidade do trabalho. Foi com elas que
percebi e ficaram na minha mente, que o trabalho não foi em vão, não saiu
pela mesma porta de entrada que as mesmas chegaram naquele espaço como
eu pensava. As conversas, os encontros, os abraços, os sonhos, desejos e as
improvisações internas deflagradas nos nossos corpos em cada DanceAbility
estavam vivas e foram bases para a criação da instauração final.
Note-se que as sensações de tristeza e de mal-estar no corpo dos artistas implicavam
em um pensamento ético e estético. Os artistas falam de seus estranhamentos e surpresa pelo
modo como os internos eram sistematicamente tratados pelo mundo institucional da família e
do hospital. Essas estranhezas no corpo influenciaram diretamente no andamento desta
pesquisa que deram um caráter não linear no trajeto desenvolvido com momentos de avanços
90
e muitos retrocessos e estagnação nas observações participantes e nos processos de criação.
A opção da criação da obra cênica foi por uma estética de rupturas, fragmentação e
deslizamentos, não linearidade e por uma dramaturgia corporal que se encerra em cada cena,
sem continuidade, nem ligações diretas entre elas para contar uma história, como na
dramaturgia clássica, lembrando que esta forma de trabalho é uma opção estética do CRUOR,
por optar pela arte contemporânea que tem em seu bojo estas características.
O Cruor desenvolve estes procedimentos de criações artísticas desde o início de sua
criação desenvolvendo um estudo da obra de Frida Khalo, inclusive tendo viajado ao México,
nos anos de 2012 e 2013 e conhecido a Casa Azul, onde viveu Frida Khalo, e hoje se
constituindo como um museu. Frida Kahlo, na verdade se chamava Magdalena Carmen Frida
Kahlo y Calderón, era conhecida como Frida Kahlo, nasceu no dia 6 de julho de 1907, na
cidade de Coyoacán, no México; hoje é um bairro da Cidade do México, como é conhecida a
capital do México. Viveu na Casa Azul até a sua morte, no dia 13 de julho de 1954, embora
tenho viajado e passado um tempo nos Estados Unidos e na Europa. Viveu somente 47 anos
devido a problemas de saúde causados, sobretudo, por um grave acidente com um ônibus.
Filha de Guilhermo Kahlo e Matilde Alderón e Gonzales, mostrou desde cedo ser uma criança
revolucionária e fora do normal. A obra de Khalo permeia os trabalhos, sobretudo tendo como
referência maior os dois quadros, da autora citada, que podem ser visualizados a seguir:
Imagem 01 – Eu Sou a Desintegração – obra de Frida Khalo.
91
Essas imagens permearam o trabalho no hospital e foram discutidas com os pacientes.
A instauração cênica denominada “Tai”, que tem projeções de a obra de Khalo do Cruor Arte
Contemporânea, foi apresentada no hospital, no auditório para os internos. “Tai” é uma obra
poético-visual criado em 2011 que dialoga com vídeo das obras de Frida Kahlo, foi criado a
partir das aulas do professor Sol das Oliveiras Leão, de Tai Sabaki, que é um conjunto de
técnicas de movimentação corporal, praticado por várias artes marciais japonesas sendo sua
maior finalidade evitar o enfrentamento direto, escusando um ataque.
Imagem 02 – O Que Vi na Água – obra de Frida Khalo
92
Na apresentação deste dia alguns internos participaram ativamente da apresentação
dançando com os artistas, já no empoderamento de sua identidade enquanto artistas, e foi
mesmo uma apresentação emocionante, após a apresentação teve, como de costume, uma roda
de conversas e falamos sobre a obra e vida de Frida Kahlo.
Imagens 04 – Apresentação da obra “TAI” do Cruor Arte Contemporânea
no Hospital Psiquiátrico Dr. João Machado junto com alguns internos
Imagem 03 – Cartaz veiculado convidando para assistir “TAI” do Cruor Arte
Contemporânea no Hospital psiquiátrico Dr. João Machado
93
Imagens 05 – Apresentação da obra “TAI” do Cruor Arte Contemporânea no Hospital
Psiquiátrico Dr. João Machado junto com alguns internos
Na minha análise, os processos colaborativos de criação não afetaram apenas o corpo
sensível singular de cada artista pesquisador, mas o fato do processo de criação ser
desenvolvido no hospital psiquiátrico com um duplo que se encontra internado afetou o corpo
social da Coligação Cruor Arte Contemporânea, mesmo com o aporte psicológico dado a cada
entrada no hospital em forma de roda de conversas e disponibilização para o trabalho e com
o acompanhamento sistemático da orientadora desta dissertação, -que é também da área da
psicanálise-, além da proposição de cada artista participante, na medida em que necessitasse,
procurasse junto a mim auxílio terapêutico; ou seja, houve um cuidado e trabalho em prol do
bem estar desses artistas, que muitas vezes o negligenciaram. E aqui é importante lembrar o
que nos ensina Severino:
a investigação antropológica, subjacente às Ciências Humanas, conduzida
sob a inspiração hermenêutica, pressupõe que toda a realidade da existência
humana se manifesta expressa sob uma dimensão simbólica. A realidade
humana só se faz conhecer na trama da cultura, malha simbólica responsável
pela especificidade do existir da humanidade, tanto individual quanto
coletivamente. E, no âmbito cultural, a linguagem ocupa um lugar
proeminente, uma vez que se trata de um sistema simbólico voltado
diretamente para essa expressão. Por isso mesmo, a análise da linguagem,
nas diferentes formas de discurso, é atividade central na pesquisa
hermenêutica. (SEVERINO, 2007, p.115).
Ima
94
Deste modo, o movimento sensível dos artistas pesquisadores e os significados e
sentidos que atribuíram as suas práticas artísticas com os internos no Hospital Dr. João
Machado marcaram suas narrativas e influíram no tempo, no ritmo e no humor do curso da
pesquisa e das instaurações cênicas. Outro dado percebido nesta pesquisa foi que, mesmo que
objetivamos concretizar algumas ações práticas em combinados para que o processo
colaborativo de criação ganhasse forma, aspectos subjetivos dos pesquisadores referentes a
temática da loucura e a cultura manicomial influenciaram significativamente de modo
negativo o curso investigativo. Inclusive no final de 2015 se fez necessária a troca de 04
bolsistas e no decorrer de 2016, 02 deles desistiram do trabalho e mais 02 que estão desde
2014, também declinaram da continuidade da investigação. Importante ressaltar que todos os
artistas recebem bolsas do PROEXT/MEC/SESU, também temos uma artista bolsista de
iniciação científica PIBIc/CNPq; não se constituindo, portanto, para nenhum deles como um
trabalho voluntário, com exceção da cantora convidada, que não recebeu remuneração, mas
também não participou do processo criativo, apenas dos ensaios gerais, aos quais não faltou
nenhuma vez, diferentemente dos que foram remunerados.
Mesmo com todas as dificuldades e a falta constante dos artistas, de modo persistente
e sistemático mantivemos os encontros para as instaurações cênicas e a continuidade do
trabalho até chegarmos ao seguinte roteiro dramatúrgico:
Cena 1: “Acolhimento” - árvores
Cortejo Azul
Cena 2: “Chaves & Segredos” – residência artística
Instalações na Residência Artística:
Chaves & Segredos: Jessica Cerejeira
Portal: Sussa Rodriguez
Deriva: Camila Morais
Natércia: Fanny Lo
Retalhos & Flores: Emisandra Ribeiro
Imagens do Percurso: Cruor Arte Contemporânea
Cortejo Azul
Cena 3: “Clara” - entrada
Cortejo Azul
Cena 4: “Manicômio” – corredor pavilhão masculino
Cortejo Azul
Cena 05: “Pétalas” – pavilhão feminino
Cortejo Azul
Cena 06: “Essa Ciranda é a Nossa” – árvores farmácia
Cortejo Azul
Cena 07: “Volta Para Casa” – residência médica
Cena 08: “Duplos Eu” - pátio auditório
Cena 09: “Janelas & Cortinas” – pátio auditório
Cena 10: “Fio” – “Pátio Auditório”
Cena 11: “Bicho de Sete Cabeças” – pátio auditório
95
Cena 12: “Escuta” – corredor auditório
Cena 13: “Adeus” – cortejo de retorno do pátio do auditório à portaria do
hospital
Se faz importante observar que se chegou a um roteiro cênico dramatúrgico, no
entanto, a improvisação foi fundamental a cada apresentação, pois aconteceram as mais
variadas interferências a cada apresentação. E compactuando com Teixeira Coelho (1990),
numa perspectiva de teatro pós-moderno que deixa de apresentar espetáculos, feitos por uns e
consumidos por outros. O que acontece são experiências teatrais, sem separação entre palco e
plateia; todos atuam, não existem mais coisas representadas, mas ações presentes,
presentificadas, encenadas aqui e agora, ou seja, este fato presente em (Lou)Cure-se!!!; onde
acontece uma re(a)presentação. Cada cena foi criada e desenvolvida pela metodologia
proposta pelo Cruor Arte Contemporânea, a criação de instaurações a partir da observação e
apropriação do ambiente dado, e na escuta dos seus duplos internos, que em processo
colaborativo, de compartilhamentos de ideias para criação das cenas iam criando
interferências sonoro visuais; e que, neste caso do hospital, como já mencionado, se faz
importante frisar, foi pautado no encontro com um duplo ou duplos, internos do hospital, o
qual acompanharam e conviveram cotidianamente nas várias ações artísticas propostas, como
aulas de pintura, dança, música e instaurações cênicas, ou seja, cada artista trabalhou com um
ou mais internos, e, na medida em que estes interno iam tendo alta, outros eram convidados a
participar. Sobre este processo podemos verificar na fala da atriz Emisandra Ribeiro, em seu
diário do processo criativo:
Nesse dia, que não datei, entrei no setor feminino e logo ao passar pela porta
sou acompanhada por um olhar forte que me persegue. Fui até um banco e
me sentei. Não demorou e duas mulheres sentaram-se no mesmo banco. Foi
nesse dia que lembrei de uma frase que a professora falou no laboratório
“vocês não escolherão os duplos, eles é quem escolherão vocês” acho que
nesse dia entendi um pouco mais sobre instauração cênica, dentro da arte
contemporânea, fiquei inquieta ao sair e vi que toda a ideia já estava criada
a partir do desejo e das conversas com as internas/propositoras.
Nesse mesmo dia conheci Dayse que me pegou pelo braço e me fez ver a ala
feminina e a situação, o cheiro forte, os ratos nos restos de comida no chão,
a falta de absorvente (de um olhar diferente para aquelas mulheres e aquele
espaço)
Quando perguntei para Elisa e Ana Maria, o quê vocês mudariam nesse
espaço? Elas em acordo, haja visto, que naquele momento elas eram muito
unidas e viviam juntas, falaram que colocariam ROSAS rosas vermelhas,
brancas e amarelas, as cores preferidas delas e que tinham um significado.
Elisa falou que tinha uma missão ali dentro. Ana sempre fazia gestos e
movimentos corporais como se estivesse retirando todo o peso espiritual e
tomando para si. Utilizamos isso no DanceAbility algumas vezes.
Depois foi a vez de conversar e conhecer Ana Karla, ela estava muito
inquieta e falava muito, mas, sempre dizia que tinha feito teatro. Me contou
96
sua vida, seu sofrimento e sonhos de sair daquele lugar e ser feliz.
Em algumas sempre percebi o medo de serem esquecidas naquele lugar.
Certo dia Ana Maria me diz: “Seria bom que pelo menos um dia nossas
famílias ficassem aqui (no hospital) para eles verem como não é bom. Ainda
não recebi visita” (E as lágrimas caiam).
Foi com Ana Maria que experimentamos jogar rosas, distribuir rosas, algo
contrário a dor, que simbolizassem amor à aquelas pessoas. Depois
resolvemos, em um dia, recitar um poema, questionar as pessoas sobre seus
medos e lhes presentear com rosas.
A instauração chama-se PÉTALAS. Não é à toa.
A atriz Emisandra foi responsável também pela instalação criada em um dos quartos
da residência artística que foi intitulada Retalhos&Flores e tem conexões com a criação de
sua cena na instauração cênica. O conceito de instalação que optei por utilizar nesta pesquisa
junto ao Cruor Arte Contemporânea é a seguinte:
o termo instalação é incorporado ao vocabulário das artes visuais na década
de 1960, designando assemblage ou ambiente construído em espaços de
galerias e museus. As dificuldades de definir os contornos específicos de
uma instalação datam de seu início e talvez permaneçam até hoje. Quais os
limites que permitem distinguirem com clareza a arte ambiental, a
assemblage, certos trabalhos minimalistas e a instalações? As ambiguidades
que apresentam desde a origem não podem ser esquecidas, tampouco devem
afastar o esforço de pensar as particularidades dessa modalidade de produção
artística que lança a obra no espaço, com o auxílio de materiais muito
Imagem 06: Cena 05: “Pétalas” – pavilhão
feminino – Foto Felipe Galvão
97
variados, na tentativa de construir um certo ambiente ou cena, cujo
movimento é dado pela relação entre objetos, construções, o ponto de vista
e o corpo do observador. Para a apreensão da obra é preciso percorrê-la,
passar entre suas dobras e aberturas, ou simplesmente caminhar pelas
veredas e trilhas que ela constrói por meio da disposição das peças, cores e
objetos.17
As instalações foram montadas em um pavilhão do hospital que foi designada pela
direção hospitalar para que fosse realizada a residência artística do Cruor Arte Contemporânea
no desenvolvimento da pesquisa. Este local era anteriormente a moradia de pacientes
moradores efetivos do hospital que foram transferidos para uma casa alugada com a finalidade
de se constituir como moradia assistida.
O conceito de Residência Artística é uma das formas mais características de apoio e
incentivo ao desenvolvimento das artes e, a partir dos anos 80, consolidou-se em várias
cidades da Europa, Estados Unidos, Canadá, Japão e Brasil. As residências artísticas abarcam
projetos em um local físico, que pode ser uma casa ou uma instituição. Esses projetos têm
17 In Enciclopedia Itaú Cultural. Disponível: . Acesso em: 13 mai. 2003.
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